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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CASO GRACIE ALLEN / S. S. Van Dine
O CASO GRACIE ALLEN / S. S. Van Dine

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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O caso chamado Gracie Allen foi sem dúvida o que mais agradou a Philo Vance entre todos aqueles de que participou. Podemos acrescentar que foi talvez o mais divertido de todos.
É verdade que um crime de morte nada tem de divertido e o mistério narrado neste livro tem aspectos sinistros, sombrios e intensamente dramáticos. Mas isso não impediu que o caso, talvez pela intervenção e pelo auxílio de Gracie Allen, tenha um fermento quase constaste de humor e divertimento.
Foi, entretanto, um caso quase incrível de muitos ângulos, mostrando-se extremamente fora do comum e imprevisível. O mistério e o encantamento do perfume impregnam todo o quadro. A magia das previsões comerciais do destino das pessoas se relacionou intimamente com a sua decifração. E houve em todo ele um forte elemento romântico.
Como se vê, O Caso Gracie Allen tem todos os elementos para ser um grande romance policial, pois, além de todos esses ingredientes ótimos, ainda apresenta a personalidade magnífica do grande detetive que é Philo Vance, criação magistral de S. S. Van Dine, que foi um dos grandes autores policiais do mundo.

 

 

 

 

 

 

CAPITULO I
FOGE O ABUTRE

(Sexta-feira, 17 de maio — 20:00 horas)
Por estranho que pareça, Philo Vance sempre gostou mais do caso Gracie Allen do que de qualquer dos outros em que tomou parte ativa.
Talvez esse caso não tenha sido tão sério como alguns dos outros; mas, pensando melhor, não tenho certeza absoluta de que isso seja estritamente verdadeiro. Para ser exato, potencialmente o caso Gracie Allen continha um sem-número de maus agouros. E agora, passando-o mentalmente em revista, relembro que seus elementos básicos eram intensamente dramáticos e sinistros, apesar do seu quase constante tempero de humor.
Nas várias vezes em que perguntei a Vance por que ele gostava tanto desse caso, ele sempre me respondeu, com ar indiferente, que o mesmo constituiu o seu único fracasso flagrante como investigador dos inúmeros crimes que lhe foram apresentados pelo procurador distrital John F.-X. Markham.
— Não... Oh, não, Van; o caso não foi meu, você não sabe? — falou Vance, em tom arrastado, enquanto nós dois estávamos sentados diante do fogo da sua lareira, em certa noite de inverno, muito depois dos acontecimentos. — Na verdade, não mereço nenhum elogio por ele. Eu teria ficado completamente confuso e perdido, não fora a encantadora Gracie Allen, que sempre aparecia na hora do aperto para me salvar do desastre. Se algum dia você publicar esse caso, peço que atribua o mérito a quem realmente o conquistou. Arre, que pequena fenomenal! As deusas do lar olímpico de Zeus jamais atormentaram tanto os velhos Príamo e Agamenon com o esplendor exibido por Gracie Allen ao apoquentar os personagens daquele caso altamente perfumado. Espantoso!...
Foi um caso quase incrível sob vários aspectos, extremamente fora do comum e imprevisível. O mistério e o fascínio do perfume impregnavam todo o quadro. A magia da adivinhação, da cartomancia e da quiromancia comercial estava intimamente envolvida na sua decifração. E havia um elemento humano romântico que lhe emprestou uma cor-de-rosa toda especial.
Para início de conversa, era primavera — o décimo sétimo dia de maio — e o tempo apresentava-se extremamente agradável. Vance, Markham e eu jantáramos na espaçosa varanda do Bellwood Country Club, de onde se dominava o Hudson. Nós três tagareláramos sobre assuntos banais, pois aquela devia ser uma hora de completo relaxamento e prazer, sem nenhuma intromissão dos ásperos interlúdios de crimes que haviam marcado tantas de nossas palestras em anos recentes.
No entanto, até neste momento de serenidade, iam-se alongando feios ângulos de crime, embora nenhum de nós o soubesse; e sua sombra se aproximava sorrateiramente de nós.
Acabáramos de tomar nosso café e estávamos bebericando um delicioso licor fabricado por frades, quando o sargento Heath, com um aspecto sério e espantado, apareceu na porta que levava da sala de jantar principal para a varanda e caminhou em passos largos e rápidos para a nossa mesa.
— Olá, Senhor Vance. — Seu tom de voz era de pressa. — Olá, chefe. Desculpe importuná-lo, mas isto chegou à delegacia meia hora depois da sua partida, e, como eu sabia onde o senhor estava, achei melhor trazê-lo sem demora. — Puxou uma folha dobrada de papel amarelo do bolso e, abrindo-a, colocou-a de maneira enfática diante do procurador distrital.
Markham leu cuidadosamente, fez um movimento de indiferença com os ombros e devolveu o papel a Heath.

— Não entendo — falou ele, sem emoção alguma — por que uma informação rotineira como esta lhe exigia uma viagem até aqui.
As faces de Heath inflamaram-se de exasperação.
— Ora, chefe, esse foi o sujeito que ameaçou sua vida.
— Sei perfeitamente disso — observou Markham, friamente. E depois acrescentou, em tom de voz mais suave: — Sente-se, sargento. Considere-se de folga por alguns instantes e tome um gole do seu uísque predileto.
Depois que Heath se instalara em uma cadeira, Markham prosseguiu.
— Claro que você não espera que eu, depois de tanto tempo, comece a levar a sério as ameaças histéricas de criminosos que condenei no cumprimento dos meus deveres.
— Mas esse sujeito é perigoso, chefe, e não é dos que esquecem ou perdoam.
— Em todo caso — riu Markham, despreocupado —, ele demorará, no mínimo, até amanhã para chegar a Nova York.
Enquanto Heath e Markham falavam, as sobrancelhas de Vance se ergueram, desmonstrando leve curiosidade.
— Escute, Markham... Ao que me parece, o seu sargento teme pela sua existência cerceada, e vejo que você mesmo está um tanto aborrecido com a preocupação zelosa dele.
— Ora, Senhor Vance, não estou preocupado — disse Heath, em um desabafo. — Estou só pensando nas possibilidades, digamos assim.
— Sim, sim, eu sei — sorriu Vance. — Sempre cuidadoso. Cosendo costuras que nem sequer ainda foram rebentadas. Capaz e admirável como sempre, sargento. Mas de onde vem a sua apreensão?
— Sinto muito, Vance. — Markham pediu desculpas pelo seu fracasso de explicação. — Na verdade, não tem nenhuma importância. É apenas um aviso telegráfico de rotina de uma fuga comum em Nomenica. Três homens, condenados a sentenças longas, tentaram a fuga, e dois deles foram baleados pelos guardas...

— Não estou preocupado com os sujeitos que foram baleados — interrompeu Heath. — Minha preocupação está com o outro, com o sujeito que conseguiu escapar...
— E quem seria esse personagem que lhe dá tanto que pensar, sargento? — indagou Vance.
— Benny, o Abutre! — murmurou Heath, com ênfase melodramática.
— Ah! — E Vance sorriu. — Um espécime ornitológico... Buteo borealis. Talvez ele tenha fugido voando...
— Ora, Senhor Vance, não é assunto para brincadeira. — E Heath ficou ainda mais sério. — Benny, o Abutre, ou Benny Pellinzi, para lhe dar o nome de batismo, é um sujeito bastante perigoso, apesar da aparência inofensiva de rapazola de rosto bonito. Apenas há alguns anos, andava por aí dizendo a quem quisesse ouvir que ele era o Inimigo Público Número Um. É um sujeito assim. Mas ele não passava de peixe miúdo, e dele se pode apenas dizer que era um tipo duro e perverso... Na verdade, não passa de um rato imbecil e tolo...
— Rato? Abutre? Diacho... Você não está misturando a sua História Natural, sargento?
— E há apenas três anos — prosseguiu Heath, obstinadamente — o Senhor Markham mandou-o para a penitenciária com uma pena de vinte anos para cumprir. E ele tenta fugir da cadeia, hoje à tarde, e consegue. Não é motivo para preocupação?
— Contudo — observou Vance —, sem dúvida, esse não é o primeiro preso que foge de uma cadeia.
— Sem dúvida. — E Heath resolveu esticar mais um pouco a folga que o procurador lhe dera e pediu outro uísque. — Mas o senhor deve ter lido o que aquele sujeito fez no tribunal quando foi condenado. Mal o juiz acabara de condená-lo a vinte anos de prisão, e ele explodiu. Apontou para o Senhor Markham e, a plenos pulmões, jurou que haveria de voltar para vingar-se dele, mesmo que isso lhe custasse a própria vida. E parecia estar falando sério. O homem achava-se tão furioso e agitado, que foram necessários dois guardas fortes para arrastá-lo para fora do tribunal. Geralmente, é contra o juiz que as ameaças são feitas, mas esse sujeito escolhera como alvo das suas o procurador distrital, e de certa forma isso fez mais sentido.
Vance assentiu de cabeça, lentamente.
— Sim, muito mais. Compreendo o que você quer dizer, sargento. O homem é diferente e, portanto, perigoso.

— E o motivo que me trouxe aqui esta noite — prosseguiu Heath — foi o de dizer ao Senhor Markham o que eu pretendia fazer. Naturalmente, estaremos à procura do Abutre. Ele poderia vir diretamente para cá, ou talvez resolvesse seguir rumo oeste, para tentar alcançar os Dakotas... que, para ele, são um refúgio seguro, se é que ele tem inteligência.
— Exatamente — observou Markham. — Talvez você tenha razão ao dizer que possivelmente o fugitivo seguirá para Oeste. E, sem dúvida, não pretendo fazer nenhuma excursão imediata aos Montes Negros.
— Seja como for, chefe — insistiu o sargento, teimosamente —, não me vou arriscar nem um pouco com o Abutre... ainda mais pelo fato de ele contar com apoio decisivo dos seus velhos amigos desta cidade.
— E que amigos íntimos são esses, sargento?
— Mirch, do Restaurante Domdaniel, e a antiga namorada de Benny, que é a cantora do restaurante... Chama-se Dixie Del Marr.
— Não tenho certeza de que Mirche e Pellinzi são amigos íntimos — disse Markham. — É um assunto discutível.
— Mas, para mim não é, chefe. E, se o Abutre voltar às ocultas para Nova York, tenho um palpite de que irá diretamente a Mirche pedir ajuda.
Markham não discutiu mais as possibilidades. Em vez disso, limitou-se a perguntar:
— Qual é o seu plano de ação, sargento? Heath inclinou-se para o outro lado da mesa.
— Acho que vai ser da seguinte maneira, chefe. Se o Abutre realmente pretende voltar aos lugares por onde andava antes, fará isso com esperteza. Virá depressa, com a rapidez do relâmpago, pensando que não estamos preparados. Se ele não aparecer nos próximos dias, desistirei da minha hipótese e então os rapazes trabalharão no caso à moda rotineira. Mas, a começar de amanhã cedo, pretendo deixar Hennessey de guarda na velha pensão que fica defronte ao Domdaniel, vigiando a pequena porta que leva para o escritório particular de MircTie. E Burke e Snitkin ficarão com Hennessey, para a eventualidade de que o fugitivo apareça.
— Você não está sendo um pouco otimista, sargento? — indagou Vance. — Três anos de prisão podem produzir muitas modificações na aparência física de um homem, principalmente sendo, ele ainda jovem e não muito robusto.
Heath afastou o ceticismo de Vance com um gesto de impaciência.
— Confio em Hennessey... Ele é muito bom fisionomista.
— Oh, não estou pondo em dúvida a habilidade de Hennessey em reconhecer fisionomias — garantiu-lhe Vance. — Contando que o seu Abutre, que adora a liberdade, seja tolo a ponto de escolher a porta da frente para entrar no escritório de Mirche. Mas você não acha, meu caro sargento, que mestre Pellinzi pode achar mais prudente entrar pela porta dos fundos?
— Não há nenhuma porta dos fundos — explicou Heath.
— E não há, também, portas laterais. Existe só uma sala particular, tendo apenas uma entrada, que dá para a rua. É assim que trabalha o tal Mirche... Com tudo às claras. É um sujeito bem esperto...
— Esse escritório fica em um prédio separado? — indagou Vance. — Ou é um anexo do restaurante? Não me lembra bem...
— Nada disso. E quem não o estivesse procurando não o encontraria. É como um cômodo de fim de prédio que tivesse sido separado no canto do edifício, como fazem para separar um consultório médico ou uma pequena loja, em um prédio grande de apartamentos. Mas, se a pessoa quiser encontrar Mirche, aquele é o lugar mais provável para isso. A sala parece tão inocente quanto a casa de uma senhora idosa.
Heath olhou para nós, de maneira significativa, enquanto prosseguia.
— E, contudo, acontece muita coisa comprometedora naquela saleta. Se eu conseguisse ocultar um gravador lá, o gabinete do procurador distrital teria trabalho de julgamentos para manter-se em ação de agora em diante.
O sargento fez uma pausa e piscou um olho na direção de Markham, maliciosamente.
— Que tal acha da minha idéia para amanhã?
— Não pode fazer nenhum mal, sargento — respondeu Markham, sem nenhum entusiasmo. — Mas continuo achando que é perder tempo e energia.
— Talvez seja. — E Heath acabou de tomar o seu uísque.
— Mas, ainda assim, acho que preciso seguir o meu palpite.

Vance colocou na mesa o seu copo de licor e uma expressão extravagante lhe surgiu nos olhos.
— Escute, Markham — disse ele, em voz arrastada. — Seria mesmo perder tempo e energia, não importa qual seja o resultado. Ah, a sua preciosa lei, e seus processos meticulosos! Mesmo que esse falcão de cauda vermelha e nome de ópera aparecesse nos antigos lugares por onde costumava andar e caísse na arapuca do sargento, você ainda o trataria com bondade e ternura, sob a frase eufemística ”nos moldes da lei”. Você lhe afagaria a cabeça. Você faria tudo para prendê-lo vivo, embora ele próprio talvez estourasse os miolos de uns dois auxiliares do sargento. Depois, você lhe daria boa casa e comida; você o levaria pela cidade em um carro de luxo bem possante e, para finalizar, lhe daria uma viagem panorâmica de volta a Nomenica, uma viagem agradável. E tudo para que, meu caro? Em troca do discutível privilégio de sustentá-lo pelo resto da vida, em um gesto muito elegante.
Era evidente que Markham ficara irritado.
— Suponho que você poderia resolver tudo isso com um tiro.
— Bem que poderia. — Vance estava em um daqueles dias em que gostava de provocar os outros. — Esse sujeito é um patife inútil, que de há muito vem apoquentando a lei; que, você muito bem sabe, matou um homem e foi condenado segundo a justiça. Um meliante que planejou uma fuga da prisão, o que custou mais duas vidas humanas; que ameaçou matá-lo a sangue-frio, e que neste exato momento está privando o sargento do seu direito de tirar uma soneca. Não é uma boa pessoa, Markham. E todas essas irregularidades poderiam ser resolvidas com tanta facilidade e rapidez, matando-se o patife sem mais delongas, ou livrando-se dele de outra maneira qualquer, sem mais trabalho nem cerimónia.
— E suponho eu — Markham falou quase com raiva — que você mesmo estaria disposto a executar esse expurgo ilegal.
— Disposto? — Havia um tom provocante na voz de Vance. — Eu ficaria positivamente encantado em fazer isso. Seria a minha boa ação do dia.
Markham tirou baforadas vigorosas do seu charuto. Ficava sempre irritado quando as caçoadas de Vance enveredavam por esse caminho.
— Escute, Vance. Tirar deliberadamente uma vida humana é...
— Por favor, poupe-me o sermão, seu vigário. Já sei o que vai dizer. É uma arenga a respeito de sociedade, lei e ordem e direitos humanos. Mas você tem de confessar que a solução que eu sugeri é lógica, prática e justa.
— Já discutimos esse sofisma várias vezes — cortou Markham. — E, além do mais, não vou deixar que você estrague meu jantar com asneiras desse quilate.

CAPÍTULO II
UM INTERLÚDIO RÚSTICO

(Sábado, 18 de maio — à tarde)
No dia seguinte, pouco depois do meio-dia, encontramo-nos com Markham na sua modesta sala particular de onde se dominava o cemitério. Geralmente, aos sábados, a sala do procurador distrital já estava fechada a estas horas, mas Markham achava-se nas malhas de uma difícil complicação política e desejava ver o caso resolvido o mais rápido possível.
— Lamento muito — falou Vance — que você tenha de trabalhar em uma tarde como esta. Eu tinha esperanças de que talvez pudesse convencê-lo a dar um passeio de carro nos arrabaldes da cidade.
— Quê?! — exclamou Markham, com fingida surpresa. — Você está sucumbindo aos seus impulsos naturais? Não me diga que a Mãe Natureza conseguiu abalar um sibarita ferrenho como você com o seu canto de sereia! Por que não pede a Van para amarrá-lo ao mastro, como manda o figurino da Odisséia?
— Não. Descobri que anseio realmente pela magia de uma ilha paradisíaca cheirando a cidra e a cedros...
— E talvez com uma ninfa dos bosques, como Calipso.
— Ora, meu caro Markham! Nada disso! — E Vance fingiu indignação. — Não, meu caro! Pretendo apenas fazer algumas travessuras no cenário verde do Bronx.
— Vejo que você caiu nas malhas das sereias cor-de-rosa dos campos floridos. — O sorriso de Markham era brincalhão e zombeteiro. — Se o sonho de mau agouro de Heath se realizar, mais tarde navegaremos por uma rota tempestuosa entre a cruz e a caldeirinha.
— Ora, a gente nunca sabe... Mas, se isso acontecer, espero que nenhum homem seja arrancado do nosso navio oco pelas ondas revoltas.
— Ora, por Deus, Vance, não seja tão sombrio. O que você está dizendo é uma tolice completa.
(Lembro-me particularmente dessa resposta clássica e espirituosa, que, sem dúvida, não teria vindo parar nestas páginas, não fora o caso de se ter ela transformado em uma observação curiosamente profética, mesmo quanto ao cheiro de cidra e à caverna do monstro de Messina.)
— E suponho — sugeriu Markham — que você vai dar o seu passeio vestido a rigor. Não sei por que, mas não o consigo imaginar trajado com roupas de excursionista.
— Você está redondamente enganado — disse Vance. — Vou vestir um terno velho de algodão, de tecido riscado, o mais antigo que tenho... Mas diga-me, Markham, que é feito do zeloso sargento e dos maus agouros dele?
— Oh, creio que ele está executando o seu plano inútil — Markham falou com indiferença. — Mas, se o pobre Hannessey tiver de ficar esperando durante muito tempo, terei mais a temer dele, em forma de represália, do que do ilustre Senhor Beniamino Pellinzi. Não consigo entender direito a súbita preocupação de Heath pela minha segurança.
— Bravo sujeito, o Heath. — Vance estudou a cinza do seu cigarro, com um sorriso hesitante. — Na verdade, Markham, pretendo partilhar da hospitalidade cara de Mirche logo à noite.
— Você também! Você vai mesmo ao Domdaniel, logo à noite?
— Não na esperança de encontrar seu amigo, o Abutre — replicou Vance. — Mas Heath despertou minha curiosidade. Gostaria de ver mais de perto o incrível Senhor Mirche. Eu já o vi, é claro, no restaurante, mas, na verdade, sem lhe prestar muita atenção às feições. E quero também dar uma espiada — pelo lado de fora, é lógico — nesse escritório misterioso que tanto agitou a imaginação do sargento... E há sempre a possibilidade de que apareça alguma aventura emocionante quando as sombras portentosas do crepúsculo anunciarem a noite misteriosa que chega e...
— Ora, Vance, pare com isso. Você está parecendo um desses escritores medíocres de novela superbarata. Que pensamento secreto se oculta por trás dessa cortina de fumaça de palavras?
— Se você quer mesmo saber, Markham, a comida lá no Domdaniel é excelente. Eu estava apenas tentando ocultar uma ansiedade de gastrônomo...
Markham bufou e a conversa mudou para outros assuntos, interrompida, de vez em quando, por telefonemas. Quando Markham acabou de cuidar dos preparativos para a tarde e a noite, nos fez passar pelos gabinetes dos juizes e descer para a rua.
Após um rápido almoço, levamos Markham de carro para o seu escritório novamente, e depois seguimos para o apartamento de Vance, um tanto afastado do centro da cidade. Lá, Vance mudou de roupa, envergando agora um velho terno de algodão riscado, muito surrado, e calçou botas mais pesadas e um chapéu macio e bem surrado, tipo Homburg. Depois, saímos novamente até o seu carro e uma hora depois seguíamos de automóvel, muito calmamente, pela avenida Palisade, na parte do Bronx chamada Riverdale.
Nos dois lados da rua havia arvoredo e arbustos densos. O ar apresentava-se impregnado da fragrância de flores da primavera, e de vez em quando surgiam pontos coloridos de verdura. À nossa esquerda, para além de um contínuo muro de concreto, uma ladeira suave levava para o Hudson. À direita, o terreno erguia-se mais abruptamente, e assim o muro de pedra rústica não nos impedia de ver a paisagem.
No alto de uma inclinação ligeira, no exato lugar em que a estrada seguia para o interior, Vance saiu com o carro da estrada principal, parando-o de maneira suave.
— Acho que este aqui é um ponto ideal para nos misturarmos com a flora e comungarmos com a natureza.
Com exceção da cerca do lado do rio e da parede de pedra, que teria, talvez, um metro e oitenta de altura, ao longo da orla interna da estrada, estávamos, segundo tudo indicava, em uma estrada deserta do interior. Vance atravessou a faixa larga e coberta de sombras e capim, que se estendia como um tapete verde entre a rodovia e o muro. Escalou com dificuldade o muro de pedra, fazendo-me um sinal para o seguir, enquanto desaparecia na folhagem rústica e rica que havia do outro lado.
Durante mais de uma hora, andamos para trás e para diante, no meio do mato, e então, repentinamente, quando deparamos novamente com o muro de pedra, Vance olhou com relutância para seu relógio.
— Quase cinco horas — informou ele. — É melhor irmos para casa, Van. Já estamos cansados.
Segui na frente dele para a rodovia, e começamos a voltar lentamente para o carro. Um automóvel grande, rodando quase sem ruído, apareceu de repente na curva. Parei, enquanto ele passava velozmente, e fiquei vendo-o desaparecer no alto da subida. Depois, continuei andando na direção do nosso carro.
Depois de dar alguns passos, notei uma jovem, de pé, perto do muro, bem afastada da rodovia, em um caramanchão isolado e de chão coberto de capim. A moça estava sacudindo nervosamente a frente da sua saia, o que fazia com visível agitação, e batia um pé sobre o chão macio da terra. Parecia perturbada e aborrecida, e quando me aproximei um pouco mais vi que havia um buraco de queimadura na parte dianteira do seu vestido leve de verão. O orifício queimado devia ter uns três centímetros de diâmetro.
Enquanto a moça soltava uma exclamação de aborrecimento, Vance saltava — ou, melhor dizendo, caía — do muro atrás dela. O seu calcanhar ficou agarrado no muro mal feito e, enquanto ele lutava para recuperar o equilíbrio, uma saliência aguda de massa lhe rasgou a manga do paletó. O barulho inesperado assustou novamente a jovem, que se virou, alerta, para ver o que era.
Era pequena e de movimentos graciosos, dona de um rosto oval, provocante, e de feições sensíveis e regulares. Os olhos, grandes e castanhos, eram recobertos por pestanas extremamente compridas. Um nariz reto e fino conferia dignidade e caráter a uma boca feita para sorrir. Era esguia e ágil e parecia combinar perfeitamente com o ambiente rústico que a cercava.
— Caramba! — murmurou Vance, olhando para ela. — Não foi uma entrada muito graciosa no seu caramanchão. Desculpe se eu a assustei.
A moça continuou olhando desconfiada para Vance, e quando tornei a olhar para este compreendi muito bem o que lhe causava essa reação. Vance estava completamente despenteado. Além disso, seus sapatos e suas calças apresentavam-se generosamente cobertos de lama; o chapéu, todo amassado, estava grotescamente torto na sua cabeça, e a manga do paletó, rasgada, dava-lhe a aparência de um mendigo ambulante. A moça logo sorriu.
— Oh, não estou assustada — garantiu ela, em uma voz musical que possuía um timbre muito jovial e muito atraente. — Estou apenas zangada. Terrivelmente zangada. O senhor já ficou zangado? Mas não é com o senhor que estou aborrecida, pois nem sequer o conheço... Talvez eu ficasse zangada com o senhor se eu o conhecesse... Já pensou nisso?
— Sim, sim... Tenho pensado nisso muitas vezes. — Vance riu e tirou o chapéu, com o que ficou imediatamente mais apresentável. — E tenho certeza de que a senhorita teria mais do que motivo para ficar zangada... A propósito, posso sentar-me? Estou exausto...
A moça olhou rapidamente ao longo da estrada e depois se assentou um tanto abruptamente, como uma criança que se deixa cair descuidadamente no chão.
— Isso seria maravilhoso. Vou ler a palma da sua mão. O senhor já mandou ler a palma da sua mão? Sei ler muito bem a palma da mão das pessoas. Delpha me ensinou a ler todas as linhas. Ela sabe tudo referente à leitura de mãos e tudo sobre os astros, e também a respeito dos números da sorte. Ela é cartomante. Além disso, Delpha é médium. Como eu também. Sou médium. O senhor é médium? Mas talvez eu não me possa concentrar hoje. — Sua voz adquiriu um tom místico. — Alguns dias, quando me sinto disposta, eu seria capaz de lhe dizer qual a sua idade e quantos filhos o senhor tem...
Vance riu e sentou-se ao lado da jovem.
— Mas sabe de uma coisa? Acho que eu não poderia suportar saber de fatos tão atordoantes a meu respeito, neste instante ...
Vance tirou do bolso a cigarreira e abriu-a lentamente.
— Tenho certeza de que a senhorita não se importaria se eu fumasse — disse ele, de modo cativante, estendendo-lho a cigarreira. Mas, recebendo em resposta apenas uma risadinha e uma sacudida de cabeça, acendeu um dos seus Régios para si mesmo.
Mas muito me alegra que o senhor tenha falado em cigarros — disse a moça. — Isso me faz lembrar do quanto eu estava furiosa.
Ah, sim. — Vance sorriu, indulgente. — Mas não quer
me dizer com quem estava tão zangada?
A jovem apertou os olhos ao mirar o cigarro que se achava entre os dedos de Vance.
Agora, não sei — respondeu ela, ligeiramente confusa.
Mas que pena... Talvez fosse comigo que a senhorita estava zangada o tempo todo, hem?
Não, não era com o senhor... Pelo menos, eu não achava que era. Agora, não tenho tanta certeza. A princípio, pensei que fosse alguém num carro grande que passou e...
— E por que estava zangada?
— Ah, isso... Bem, olhe aqui para a frente do meu vestido. — Ela estendeu a saia ao seu redor. — Está vendo esse furo enorme de queimadura? Meu vestido está estragado. E eu o adoro. O senhor não gosta dele? Isto é, se ele não estivesse queimado? Fui eu própria quem o fez... Bem, seja como for, eu disse a mamãe como é que eu queria que ela o fizesse. Ele me fez ficar muito bonitinha. E, agora, não o posso mais usar. — Havia um pesar legítimo na sua voz. — Foi o senhor quem jogou aquele cigarro aceso?
— Que cigarro? — indagou Vance.
.— Ora, o cigarro que queimou meu vestido. Deve estar aqui por perto... Bem, em todo caso, a pontaria foi muito boa, já que não podia ver-me para mirar. E talvez o senhor nem soubesse que eu estava aqui. E isso teria dificultado muito atingir-me, não acha?
— Sim, compreendo aonde a senhorita quer chegar. — Vance estava tão interessado quanto divertido. — Mas, na verdade, minha querida, deve ter sido algum vilão que passou no tal carro... Se é que passou mesmo algum carro.
A moça suspirou.
— Bem, então — murmurou ela, resignada —, acho que não era com o senhor que eu estava furiosa. E, agora, não sei com quem era. E isso me deixa mais furiosa do que nunca. Tenho certeza de que, se fosse com o senhor que eu estivesse furiosa, o senhor procuraria reparar o malfeito.
Digamos, então, que lamento tanto o que houve como se eu tivesse jogado o cigarro... — sugeriu Vance.
— Mas, agora, não sei se o senhor o jogou ou não. Se o senhor não podia ver-me através do muro, como é que poderia eu vê-lo?
— Uma lógica incontestável! — retorquiu Vance, adaptando-se à disposição aparentemente fantasiosa da jovem. — Portanto, é preciso que a senhorita me permita reparar o malfeito ... não importa quem tenha sido o culpado.
— Ora... — falou ela. — Não sei o que quer dizer com isso. — Mas havia em seus olhos um brilho que parecia desmentir-lhe as palavras.
— Quero dizer o seguinte: desejo que a senhorita vá à loja Chareau e Lyons e escolha um dos vestidos mais bonitos que eles tiverem. Um vestido que a faça ficar tão bonitinha como este.
— Oh, não tenho dinheiro para comprar um vestido assim!
Vance tirou do bolso a carteira de cartões de visita e, rabiscando algumas palavras em um deles, enfiou-o por baixo da tampa da bolsa de mão da jovem, que estava caída no capim.
— Leve esse cartão ao Senhor Lyon em pessoa e lhe diga que fui eu quem a mandou lá.
Os olhos da moça brilharam de gratidão e ela não protestou mais.
— Como a senhorita diz, muito acertadamente — prosseguiu Vance —, não podia ver através do muro e, portanto, não há meios de provar que não fui eu quem jogou o cigarro.
— Bem, então isso resolve o assunto, não é? — disse ela, rindo novamente baixinho. — Estou tão contente por ter sido com o senhor que eu estava furiosa por ter jogado o cigarro...
— Eu também estou — garantiu Vance. — E, por falar nisso, espero que a senhorita ponha novamente o mesmo perfume, ao usar o seu vestido novo. Esse perfume é como a primavera... ”Um delicioso cheiro de cidra e laranjeiras”, conforme disse Longfellow em um de seus livros famosos.
— Ah, ele disse isso?
— A propósito, que perfume a senhorita usa? Não o reconheço como nenhum dos perfumes mais populares que há por aí.
— Não sei — replicou a moça. — Acho que ninguém sabe. Não tem nome. Imagine, não se ter nome! Se nós não tivéssemos nome, ficaria tudo uma confusão, não é? O perfume foi feito especialmente para mim pelo George... Mas acho que não devo referir-me a ele como George, falando a desconhecidos. Ele é o Senhor Burns. Sou auxiliar dele na Fábrica de Perfumes In-O-Scente. É uma firma grande. Ele está sempre misturando ingredientes diferentes e experimentando-os. É a profissão dele. E é muito hábil. Só tem o defeito de ser sério demais. Mas não creio que ele tenha misturado cidra neste perfume. Na verdade, não sei como é o cheiro de cidra. Pensei que isso fosse uma coisa que a gente põe no bolo.
— O que se põe no bolo é a casca da cidra, em conserva — explicou Vance. — O óleo de cidra é muito diferente disso. Tem cheiro de erva-cidreira e limão. E, quando tratado com ácido sulfúrico, adquire até o cheiro de violetas.
— Não é maravilhoso? — disse ela. — Ora, o senhor fala igualzinho a George. Ele está sempre dizendo coisas assim. Tenho certeza de que o Senhor Burns sabe de tudo a respeito disso. Algumas vezes, fico muito confusa, na hora de lhe levar os vidros certos de extratos e essências. E ele é tão exigente nesse particular... Algumas vezes, ele chega até a dizer que não sei ferver os seus velhos tubos de ensaio e pipetas. Imagine.
— Mas tenho certeza — garantiu Vance — de que a senhorita lhe levou os frascos certos quando ele preparou este perfume que está usando. E tenho certeza de que um deles continha cidra, embora pudesse ter estado com outro nome... E, por falar em nomes, por acaso o seu é Calipso?
A moça sacudiu a cabeça.
— Não, mas é coisa muito parecida com isso. É Gracie Allen...
Vance sorriu e a conversa da jovem assumiu outra direção.
— Mas o senhor não me vai contar o que estava fazendo do outro lado do muro? Isso é propriedade particular, e eu não entraria ali por nada deste mundo. Não seria direito, seria? E, seja como for, não sei onde há um portão. Mas isto aqui é agradável. Já vim aqui várias vezes, e no entanto é a primeira vez que alguém me atira um cigarro, embora eu tivesse estado diversas vezes neste mesmo lugar. Mas acho que um dia sempre as coisas acontecem pela primeira vez. O senhor já pensou nisso?
— Sim, oh, sim. É uma pergunta profunda. — E Vance riu baixinho. — Mas a senhorita não tem medo de vir sozinha a um lugar tão deserto?
— Sozinha? — e novamente a jovem olhou para a estrada. — Não venho sozinha. Geralmente, venho com um amigo que mora lá para as bandas da Broadway. Chama-se Puttle e trabalha na mesma firma que eu. O Senhor Puttle é vendedor. E o Senhor Burns... Já lhe contei tudo a respeito dele. Ficou muito zangado comigo pelo fato de eu ter vindo aqui esta tarde com Puttle. Mas ele fica sempre zangado quando vou a algum lugar com alguém, principalmente se esse alguém é o Senhor Puttle. Não acha que isso é tolice? — E ela fez um muxoxo de contentamento.
— E onde estaria o Senhor Puttle, no momento? — perguntou Vance. — Não me diga que ele está tentando vender perfumes ao longo das estradas de Riverdale.
— Oh, meu Deus, não! Ele nunca trabalha nas tardes de sábado, nem eu. Acho realmente que o cérebro deve descansar de vez em quando, não acha? Oh, o senhor me perguntou onde está o Senhor Puttle. Bem, vou lhe contar, porque tenho certeza de que ele não se importaria. Ele foi procurar um convento de freiras.
— Um convento de freiras? Céus! Para quê?
— Ele disse que de lá se tem uma vista linda, com bancos, flores e tudo o mais. Mas não sabia se ficava para cima da estrada ou para baixo. Por isso, mandei-o procurar primeiro. Não tive vontade de ir a um convento de freiras, sem saber onde ele ficava. O senhor iria a um convento se não soubesse onde ele fica, principalmente se estivesse com os pés doendo?
Não, acho que a senhorita foi muito sensata. Mas acontece que sei onde o convento fica: é do outro lado, bem longe daqui.
Bem, então, o Jimmy... isto é, o Senhor Puttle, seguiu na direção errada. Ele está sempre se enganando. Ainda bem que eu o mandei procurar primeiro...


CAPITULO III
A ESPANTOSA AVENTURA

(Sábado, 18 de maio — 17:30 horas)
A jovem inclinou-se para diante e olhou para Vance, ansiosa e impulsiva.
— Mas eu me esqueci: estou morrendo de vontade de saber o que os senhores estavam fazendo do outro lado do muro. Espero que tenha sido emocionante. Sou muito romântica, sabe? O senhor é romântico? Isto é, adoro as emoções e o perigo. E isto aqui é tão emocionante e misterioso, principalmente com esse muro alto... Sei que os senhores devem ter vivido alguma aventura especial lá. Toda sorte de emoções e aventuras acontece dentro das paredes. Não é à toa que a gente manda construir muros, não é mesmo?
— Realmente.., — Vance sacudiu a cabeça, com fingida ansiedade. — Geralmente, só se faz um muro quando há um motivo muito bom para isso... Para impedir a entrada de alguém ou para manter pessoas dentro dos muros.
— Vê? Eu tinha razão... E, agora, diga-me — implorou ela —, que aventura emocionante os senhores viveram do outro lado do muro?
Vance tirou uma baforada profunda do seu cigarro.
— Sabe de uma coisa? — disse ele, com fingida seriedade. — Tenho medo de deixar alguém saber do que houve...
A propósito, a senhorita gosta de viver aventuras muito ou pouco emocionantes?
— Oh, elas têm de ser terrivelmente emocionantes, perigosas e sombrias, e cheias de espírito de vingança. Sabe, como um homicídio... Talvez um assassinato passional...
— É isso! — E Vance deu uma palmada no joelho. — Agora, posso contar-lhe tudo... Sei que a senhorita compreenderá. Baixou a voz, transformando-a em um cochicho íntimo e cavernoso. — Quando saltei o muro de maneira tão pouco elegante, eu... eu tinha acabado de cometer um homicídio.
— Maravilhoso! Simplesmente maravilhoso! — Mas notei que a moça se afastou um pouco de Vance.
— Era por isso que eu estava fugindo numa carreira desabalada — prosseguiu Vance.
— Acho que o senhor está gracejando — e a jovem ficou novamente calma. — Mas prossiga...
— Na verdade, foi um ato de altruísmo — prosseguiu Vance, que parecia estar-se divertindo realmente com o conto fantástico inventado. — Fiz isso por um amigo... para salvar um amigo do perigo... por causa de uma vingança.
— Ele deve ter sido um patife. Tenho certeza de que ele merecia morrer e de que o senhor praticou uma ação nobre... como os heróis dos tempos antigos. Eles não esperavam a polícia, a justiça e todas essas coisas. Avançavam, a cavalo, e resolviam a parada, num abrir e fechar de olhos. — A jovem estalou os dedos e não pude deixar de pensar na alusão sarcástica de Markham à solução simplista dada por Vance, na noite anterior, para resolver o caso do preso fugido.
Vance estudou a moça, atônito e sério.
— Ora, de uma criança a gente só pode esperar... — começou ele.
— Quê? — fez ela, e franziu o cenho.
— Nada, nada... — E Vance riu baixinho... — Bem, continuando esta sombria confissão: eu sabia que o tal sujeito era um homem muito perigoso e que a vida do meu amigo estava em perigo. Por isso, vim aqui, esta tarde, e lá, no mato sombrio, onde ninguém podia ver, eu o matei... Alegra-me imensamente a senhorita achar que agi corretamente.
Sua história inventada, baseada na sua conversa com Markham na noite anterior, correspondia bem ao desejo inesperado de uma aventura emocionante, expresso pela jovem.
— E qual era o nome do assassinado? — perguntou ela. — Gostaria que fosse um nome horrível. Eu sempre digo que as pessoas têm os nomes que merecem. É como na numerologia... só que é diferente. Quando a gente tem certo número de letras no nome, não é como ter outro número de letras, é? Significa, também, alguma coisa. Delpha me disse.
— Que nomes lhe agradam mais? — indagou Vance.
— Bem, vejamos... Burns é um nome bonito, não acha?
— Sim, acho — E Vance sorriu de maneira agradável. — Por falar nisso, é um nome escocês...
— Mas George não é escocês — protestou a moça, indignada. — Ele é até muito generoso.
— Não, não — apressou-se Vance a tranqüilizá-la. — Quando disse escocês, eu não quis dizer usurário. Em escocês, essa palavra significa ”riacho” ou ”córrego”...
— Ah, água! Isso é diferente. Eu tinha razão! — disse ela, num chilreio. Depois, confirmou, com um movimento de cabeça. — Água! É só o que George consome! Ele nunca toma bebidas alcoólicas. Diz que a bebida alcoólica lhe atrapalha o olfato e o impede de distinguir bem os perfumes.
— Distinguir perfumes?
— Aahn. George está sempre às voltas com perfumes... É a profissão dele. Experimenta perfumes para saber qual será bem vendido, qual será capaz de fazer uma mulher virar uma conquistadora e qual é tão ruim que só serve para sabonete de hotel, Ele é terrivelmente hábil nesse campo. Chegou até a inventar um perfume novo, misturado apenas por ele. E o Senhor Doolson — o nosso patrão — deu nome ao novo produto para George. Bem, não exatamente para George, mas o senhor sabe o que quero dizer.
O orgulho lhe brilhava nos olhos.
— E... oh! — prosseguiu ela, depressa. — George tem cinco letras no sobrenome... Falo sério, basta contá-las... B-U-R-N-S. E eu também tenho cinco letras no meu sobrenome. Não é engraçado? Mas isso significa algo muito importante. É... É ciência. Vibro com o número cinco. Mas o seis me traz muito azar. Sou alérgica — é assim que Delpha diz — ao número seis. Isso é muito científico, sabe?
— O sobrenome do Senhor Puttle tem seis letras — disse Vance, com um olhar maroto para a jovem.
— Ê verdade. Já pensei nisso... Oh, bem... Mas me esqueci... Qual era o nome do homem que o senhor matou tão valentemente?
— O sujeito tinha um nome muito desagradável. Chamavam-no de Benny Buzzard (Abutre).
A cabeça da moça subiu e desceu vigorosamente, demonstrando completa compreensão.
— Sim, é um nome horrível. Tem... deixe ver... sete letras. Oh! É um número místico. Isso é quase destino!
— Bem, ele foi mandado para a prisão, para cumprir uma pena de vinte anos de cadeia. — E Vance reiniciou a sua engenhosa história. — Mas tramou uma fuga e conseguiu escapar ontem, e voltou para Nova York a fim de matar esse meu amigo.
— Oh, então amanhã vão aparecer manchetes em todos os jornais sobre o fato de o senhor o ter assassinado
— Céus! Espero que não apareçam — E Vance fingiu-se dominado por uma grande preocupação. — Sinto que pratiquei uma boa ação, mas espero também, é claro, que não descubram o que fiz. E tenho certeza de que a senhorita não contaria a ninguém, não é mesmo?
— Oh, claro que não — garantiu a moça.
Vance soltou um suspiro exagerado e levantou-se lentamente.
— Bem, agora preciso ir me esconder — falou ele — antes que a polícia venha a saber do meu crime. Mais uma hora e quem sabe? Talvez eles saiam à minha procura.
— Oh, os policiais são uns trouxas — disse ela, com um beicinho — Estão sempre pondo os outros em apuros. Sabe? Se todos fossem bons, não precisaríamos de policiais, não é?
— É...
— E, se não houvesse policiais, não precisaríamos dar-nos ao trabalho de ser bons, não é?
— Céus! — murmurou Vance. — A senhorita, por acaso, é algum filósofo disfarçado?
A jovem pareceu atônita.
— Ora, isto não é um disfarce. Eu só usei disfarce quando... Quando era menina. Fui a uma festa fantasiada de fada.
Vance sorriu em tom de admiração.
— Tenho certeza — disse ele — de que foi uma fantasia completamente dispensável. A senhorita jamais precisará fantasiar-se, minha querida, para passar como uma fada encantadora... Quer apertar os ossos de um vilão barato?
Ela colocou a mãozinha na dele.
— O senhor, na verdade, não é um vilão. Ora, limitou-se a matar um facínora. E muitíssimo obrigada pelo lindo vestido novo — acrescentou ela. — O senhor falou sério quando me mandou buscá-lo?
— Falei seriíssimo. — E a sinceridade da voz de Vance dissipou qualquer dúvida que pudesse restar no espírito da jovem. — E boa sorte com o Senhor Puttle... e com o Senhor Burns.
A moça fez um aceno solene enquanto caminhávamos ao longo da estrada poeirenta na direção do nosso carro. Vance estava ocupado em acender outro cigarro, e quando íamos fazendo a curva da estrada olhei para trás. Havia um rapaz guapo diante da jovem, e compreendi que o tal Puttle, o vendedor de perfumes, voltara da sua busca infrutífera ao convento de freiras.
— Que criatura espantosa! — murmurou Vance, enquanto subíamos no carro e partíamos. — Acho mesmo que ela acreditou, em parte, na minha dramatização dos temores do sargento e nas minhas zombarias contra Markham. Ela é muito ingênua, Van. Ou, talvez, de uma natureza basicamente astuta, superabundante em romance, lutando para viver nas nuvens, neste mundo sórdido. E vivendo do fabrico de perfumes. Que combinação incrível de circunstâncias! Tudo misturado com a primavera... e visões de heroísmo e de amor jovem!
Olhei para ele, com ar indagador.
— Completamente — repetiu ele. — Isso estava indicado de forma definitiva. Mas, infelizmente, acho que os esforços de conquista do Senhor Puttle, da Broadway, vão ser baldados Como você notou, ela usava o perfume sem nome do Senhor Burns, mesmo quando passeando por breves instantes, no interior, com o Senhor Puttle. Levando em conta todos os sinais, considero o misturador e experimentador dos aromas sutis das arábias como favorito disparado para conquistar a Taça do Amor.

CAPITULO IV
O KESTAURANTE DOMDANIEL
(Sábado, 18 de maio — 20:00 horas)

O restaurante Domdaniel, localizado na rua 50, Oeste, perto da Sétima Avenida, atraíra uma freguesia geral e variada durante muitos anos. A reforma do velho casarão no qual o restaurante era instalado fora feita com muito gosto, e grande parte do velho ar de solidez e de durabilidade tinha sido mantida.
De cada lado da larga entrada até às extremidades do prédio corria um terraço estreito e descoberto, onde se viam vasos pseudogregos de alfenas bem aparadas. Na extremidade oeste da casa um beco de serviço separava o restaurante do prédio vizinho. Do lado leste havia uma alameda pavimentada, de aproximadamente três metros de largura, passando sob um alpendre coberto de trepadeiras para a garagem, que ficava nos fundos. Um arranha-céu comercial, na esquina da Sétima Avenida, terminava nessa alameda.
Eram quase oito horas da noite quando chegamos, naquela noite suave de maio. Acendendo um cigarro, Vance espiou para as sombras do alpendre e para a área mal iluminada que ficava mais além. Depois, caminhou com passo apressado alguns metros, pela estreita passagem, e contemplou as janelas cobertas de trepadeiras e a porta lateral, quase oculta da rua. Alguns momentos depois, retornou para junto de mim, no passeio, e voltou sua atenção, aparentemente com indiferença, para a frente do prédio.
— Ah — murmurou ele. — Lá está a entrada do escritório misterioso do Senhor Mirche, que despertou tanta atenção no sargento. Talvez uma janela ampliada, quando o casarão foi reformado. Simplesmente utilitário...
Era, como Vance observou, uma abertura de porta despretensiosa, dando diretamente para o terraço estreito. E duas escadas de madeira, reforçadas, levavam para o passeio. Em cada lado da porta via-se uma pequena janela — ou, diria eu, uma abertura semelhante a uma sacada —, seguramente fechada por uma grade de ferro batido.
— O escritório tem uma janela maior na parte lateral, da qual se domina a alameda forrada de mosaicos — falou Vance. — E também essa janela é fechada por uma grade. A luz que vem de fora deve ser um tanto insuficiente, quando, como o sargento parece pensar, o Senhor Mirche está lá dentro dedicado às suas tramas nefastas.
Para surpresa minha, Vance subiu pela escada de madeira até o terraço e espiou com ar indiferente, por uma das estreitas janelas, para dentro do escritório.
— Por dentro, o escritório parece ser tão honesto e em ordem quanto se apresenta aqui de fora — informou ele. — Acho que o nosso desconfiado sargento tem sido vítima de pesadelos...
Virou-se e olhou para a pensão, que ficava do outro lado da rua. Duas janelas próximas, no segundo andar, localizadas diretamente em frente à pequena porta de canto do Domdaniel, achavam-se às escuras.
— Pobre Hennessey! — suspirou Vance. — Atrás de um daqueles quadrados sombrios de trevas ele está vigiando e tendo esperanças. Ele simboliza toda a humanidade... Bem, vamos deixar de perder tempo. Tenho visões amorosas de um Meando de vitela à Macedônia. Espero que o mestre-cuca não tenha perdido nada da sua habilidade desde a última vez em que estive aqui. Naquela época, esse prato, feito por ele, era sublime...
Caminhamos até à entrada principal e fomos recebidos no luxuoso saguão de recepção pelo untuoso Senhor Mirche, em pessoa. O homem pareceu muito contente de ver Vance, ao qual se dirigiu pelo nome, e nos entregou ao chefe dos garçons, recomendando pomposamente ao nosso acompanhante que nos dispensasse o máximo de consideração e de atenção.
O interior redecorado do Domdaniel possuía uma aparência muito mais moderna do que o exterior. Apesar disso, grande parte do encanto do passado ainda transparecia nos painéis de madeira entalhada, nos corrimões trabalhados da escada e em uma lareira larga que fora deixada intacta em um dos lados da enorme sala principal.
Não podíamos ter escolhido uma mesa melhor do que aquela à qual fomos levados. Ficava perto da lareira, e, como as mesas ao longo das paredes eram ligeiramente elevadas, tínhamos uma vista livre de todo o salão. Mais para a nossa direita, um tanto distante, ficava a entrada principal, e à nossa esquerda situava-se o estrado da orquestra. Defronte a nós, do outro lado do salão, um arco levava ao corredor; e para além dele, quase como que recortada na soleira da porta, podíamos ver a escada larga e atapetada que levava para o andar de cima.
Vance olhou de relance por todo o salão, sem fixar muito o olhar, e depois voltou a atenção para o trabalho de encomendar o jantar. Feito isso, meu companheiro se recostou na sua cadeira e, acendendo um cigarro, relaxou todo o corpo, instalado confortavelmente. Mas notei que, por baixo das pálpebras semicerradas, Vance perscrutando todas as pessoas que se se achavam ao nosso redor. De repente, endireitou o corpo na cadeira e, inclinando-se na minha direção, murmurou:
— Arre! Acho que estou ficando velho e que meus olhos estão-me enganando. Olhe à minha direita, perto da entrada. É a espantosa jovem do cheiro de cidra. E está-se divertindo muito. Acha-se na companhia de um namorado muito bem vestido. Não sei se o jovem é o que a acompanhava na excursão a Riverdale ou se é o tal Burns, o rapaz sério e abstêmio. Seja quem for, está sendo muito atencioso para com ela, e acha-se tremendamente satisfeito consigo mesmo.
Reconheci imediatamente o elegante rapaz que eu vim do relance quando íamos fazendo a curva da avenida Palisade, quando voltávamos para o carro. Informei Vance do que, sem dúvida nenhuma, era o jovem Puttle.
— Isso não me surpreende nem um pouco — foi sua resposta. — É evidente que a moça está seguindo a técnica milenar e sobejamente comprovada como eficaz. Puttle receberá uma porcentagem esmagadora dos seus favores, até chegar o momento realmente importante da decisão final. Aí, creio eu que o eleito será Burns, que hoje é desprezado. — E riu baixinho. — Os truques do amor são sempre os mesmos. Oh, se o próprio Burns estivesse em cena aqui esta noite, afastado dela, roendo-se de ciúmes e estourando de raiva! — E sorriu, divertido.
O olhar de Vance tornou a vagar pelo salão, enquanto ele puxava preguiçosamente fumaça do seu cigarro. Dentro em pouco, seu olhar pousou em um homem que se achava sozinho a uma pequena mesa, no canto mais distante.
— Sabe, acho que encontrei o nosso jovem Burns, a hipotenusa dolorosa do meu triângulo imaginário. Ele está sozinho. A idade confere com a dele. É um rapaz sério. Senta-se a uma mesa colocada no ângulo exato que lhe permita observar a sua fujona ninfa das matas e seu companheiro. Observa-a atentamente, e parece aborrecido e tão enciumado, que chega até a pensar em assassinato. Não tem apetite para comer o que tem diante de si. Sobre sua mesa não há vinho nem bebidas alcoólicas. E está... fulo de raiva!
Deixei meu olhar seguir o de Vance, enquanto este falava, e observei o jovem solitário. Tinha o rosto sério e um tanto agressivo. Apesar do senso de humor denotado pelas suas sobrancelhas, viradas em um ângulo para cima, sua testa larga dava a impressão de considerável profundeza de pensamentos e de capacidade de julgamento acurado. Seus olhos cinzentos eram bem afastados um do outro e de cativante candura, e tinha o queixo sensível, embora firme. Trajava-se com apuro, embora com simplicidade, em forte contraste com a grandeza exibicionista da forma de trajar do Senhor Puttle.
Durante um intervalo do espetáculo de pista, o jovem solitário levantou-se um tanto hesitante da sua cadeira e encaminhou-se, com passos largos e resolutos, até à mesa ocupada pela Senhorita Allen e seu companheiro. Os dois o cumprimentaram sem entusiasmo. O recém-chegado, franzindo a testa de modo desagradável, não fez nenhuma tentativa para ser cordial.
A jovem levantou o cenho com uma altivez teatral, totalmente em desacordo com a expressão maliciosa das suas feições. Os modos do seu acompanhante eram indiferentes e dotados de palpável condescendência. Seu papel era o de um homem vitorioso que trata com o inimigo vencido e atormentado. Seu efeito sobre Burns — se é que era Burns — deve ter sido tremendamente agradável para ele. Isto, juntamente com o falso desdém da jovem, intensificou ainda mais o mau humor do Intruso. Este fez um gesto desajeitado de derrota e, virando-se, voltou desanimado para sua mesa. No entanto, notei que a Senhorita Allen lançou vários olhares abertamente na sua direção, o que deixava entrever que ela estava longe de ser indiferente para com o rapaz, como fingia ser.
Vance observava o pequeno drama, entre interessado e encantado.
— E agora, Van, — falou ele — o quadro do amor jovem está completo. Ah, o coração feminino, eternamente sádico e, no entanto, leal...!
Quinze ou vinte minutos depois, Mirch, sorrindo de canto a canto da boca e fazendo mesuras, entrou no refeitório, vindo do corredor da entrada principal, e seguiu adiante, rumo aos fundos do salão, até uma pequena mesa que ficava atrás do estrado da orquestra, onde uma das artistas se achava sentada. Tratava-se de uma mulher loura e de uma beleza berrante, que, segundo eu sabia, era a famosa cantora Dixie Del Marr.
Dixie saudou Mirche com um sorriso que parecia mais íntimo do que seria de se esperar que o fosse entre empregada e empregador. Mirche puxou a cadeira que se achava diante da mulher e sentou-se à mesa. Fiquei um tanto surpreso ao notar que Vance os observava atentamente, e senti que não se tratava apenas de mera curiosidade inconseqüente da sua parte.
Tornei a voltar o olhar para a mesa da cantora. Dixie Del Marr e Mirche tinham dado início ao que parecia ser um bate-papo confidencial. Achavam-se inclinados para diante, na direção um do outro, e era evidente que desejavam evitar serem ouvidos pelos que se achavam perto deles. Mirche frisava algum ponto, e Dixie Del Marr concordava, com um aceno afirmativo de cabeça. Depois, a Senhorita Del Marr fez uma pergunta, à qual o outro, por sua vez, respondeu com um aceno compreensivo de cabeça.
Depois de alguns minutos dessa conversa aberta e, no entanto, sigilosa, ambos recostaram-se em suas cadeiras e Mirche deu uma ordem a um garçom que passava. Alguns momentos depois, o garçom voltava com dois copos finos e compridos de um líquido cor-de-rosa.
Muito interessante — murmurou Vance. — Fiquei curioso...


CAPITULO V
UM ENCONTRO
(Sábado, 18 de maio — 21:30 horas)

Foi pouco depois disto que notei que a jovem Gracie Allen se levantava alegremente da sua cadeira, ao lado do radiante Senhor Puttle. Fez-lhe um aceno acanhado enquanto deslizava ao longo do restaurante, como uma gazela cheia de graça.
Céus! — falou Vance, rindo baixinho. — A espantosa ninfa dos bosques está vindo na nossa direção. Se ela me reconhecer, a história que inventei esta tarde vai cair em pedaços sobre minha cabeça mentirosa...
Enquanto meu companheiro falava, ela o observava. Depois, jogou as mãos para o alto, em um gesto de surpresa e encantamento, e veio rumo à nossa mesa.
— Que surpresa agradável — falou ela. Depois, censurou Vance, em voz mais baixa: — O senhor é um assassino muito atrevido. Terrivelmente ousado. Não sabe que alguém pode vê-lo aqui? Um garçom, por exemplo, ou outra pessoa qualquer.
— Ou a senhorita — sorriu Vance.
— Oh, mas eu não contaria a ninguém. Não se lembra? Eu prometi não contar. — A moça sentou-se com espantosa rapidez e riu baixinho, em tom musical. — E eu sempre digo que as pessoas devem cumprir as promessas feitas, se é que sabe a que me refiro... Mas meu irmão é esquisito nesse particular. Ele jamais cumpre as promessas que faz, embora cumpra muitas das outras coisas que se propõe a fazer. E algumas vezes ele se mete em sérios apuros por não cumprir aquilo que combina. Está sempre encrencado. Talvez seja porque é tão ambicioso. O senhor é ambicioso?
— Por falar em promessas — falou Vance — a senhorita cumpre todas as promessas que faz ao Senhor Burns?
— Nunca fiz nenhuma promessa ao George — garantiu ela a Vance, com um rubor de confusão aumentando em suas feições maliciosas. — Que foi que o fez pensar isso? Mas ele tem feito tudo para me fazer prometer-lhe alguma coisa. E fica terrivelmente zangado comigo. Está zangado esta noite. Mas, é claro, ele não demonstraria isso diante de tanta gente. George é tão cavalheiresco... Jamais se sabe em que ele está realmente pensando. Mas ninguém sabe, também, em que eu estou pensando. Só que não sou cavalheiresca. Ó Senhor Puttle diz que sou apenas bonitinha e atraente. E ele me conhece há muito tempo. E acho que é muito melhor ser bonitinha e atraente do que ser cavalheiresca. O senhor não concorda comigo?
Vance não fez nenhum esforço para ocultar sua hilaridade.
— Claro que concordo — respondeu ele. — E, a propósito, onde está o cavalheiresco Senhor Burns esta noite?
A moça deu uma risadinha abafada, embaraçada.
— Está sentado do outro lado do salão. — Virou graciosamente a cabeça, para indicar o jovem solitário que antes já nos atraíra a atenção. — E parece, também, sentir-se muito infeliz. Não consigo imaginar por que ele veio aqui esta noite... Sei que George nunca veio a este restaurante. Quer saber de um segredo? Pois vou-lhe contar, mesmo que o senhor não queira ouvir. Eu também estou vindo aqui hoje pela primeira vez. Mas isto aqui está-me agradando. O senhor não está gostando? Isto é muito grande e barulhento. E há tanta gente... O senhor não gosta de ver muita gente em um lugar só? Acho que aquela gente é muito agradável. Mas receio que George não esteja gostando do ambiente. Talvez seja por isso que está com aquele ar tão infeliz.
Vance não a interrompeu. Meu companheiro parecia estar-se divertindo com a inconseqüente saraivada de palavras da jovem.
— E... oh! — exclamou ela, como se lhe tivesse ocorrido algum pensamento de importância transcendental. — Esqueci-me de dizer-lhe: sei quem o senhor é! Que acha disso? O senhor é Philo Vance, não é? Não acha que sou terrivelmente esperta por saber disso? Aposto que o senhor não sabe como foi que descobri. Olhei no cartão de visitas que o senhor me deu hoje à tarde e lá estava o seu nome! Isto é, o Senhor Puttle olhou no seu cartão e disse que aquele devia ser o seu nome. E também ficou zangado um instante, quando lhe contei o caso do vestido novo que vou buscar na segunda-feira. Mas logo se acalmou novamente. Disse que, se o senhor era tão trouxa, ele não tinha nada com isso, e que gente como o senhor nasce a todo instante. Não sei o que quis dizer com isso. Mas foi assim que descobri o seu nome.
A moça mal fazia pausas para respirar.
— E... ohl O Senhor Puttle me contou mais alguma coisa a seu respeito. Uma coisa muito emocionante. Disse que o senhor era uma espécie de detetive e que era o senhor quem era elogiado por todo o trabalho duro que os pobres policiais fazem. Isso é mesmo verdade?
E ela nem esperou resposta.
— Em certa ocasião, meu irmão quis entrar para a polícia, porém não entrou. Mas não importa, pois acho que ele não tem altura suficiente para ser um polícia de verdade. Não é alto como o Senhor Puttle. É pequeno, como eu e George. E nunca vi um policial pequeno. O senhor já viu? Mas talvez ele pudesse ter sido detetive. Aposto em que ele nunca pensou nisso. Ou talvez também não haja detetives de baixa estatura. Alguém pode ser detetive, sendo pequeno demais? Ou talvez o senhor não saiba.
Vance riu, muito divertido, olhando dentro dos olhos da moça, como se desconcertado pelas suas confusas divagações.
— Tenho conhecido alguns detetives de baixa estatura — disse-lhe Vance.
— Bem... Em todo caso, acho que meu irmão não sabia disso. Ou talvez não quisesse ser detetive. Pode ser que ele desejasse ser policial apenas porque os policiais usam uniforme... Oh, senhor Vance? Acaba de me ocorrer outra coisa. Aposto em que sei que o senhor não tem medo de estar aqui esta noite. Eles não podem prender um detetive! E também não podem prender um policial, podem? Se pudessem, quem ficaria para prender os homens fora da lei? E, por falar no meu irmão, ele também está aqui esta noite. Está aqui toda noite...
— Ah! — murmurou Vance. — E onde é que ele está sentado?
— Oh, não quero dizer que ele esteja aqui no restaurante — declarou a moça, ingenuamente. — Ele trabalha aqui.
— Não diga! Que é que ele faz?
— O serviço dele é muito importante.
— Ele trabalha no Domdaniel há muito tempo?
— Ora, trabalha aqui há mais de seis meses! É muito tempo, em se tratando do meu irmão. Parece que ele nunca foi muito de trabalhar. Acho que é um sonhador. Em todo caso, alega que nunca lhe dão o merecido valor. E foi só hoje que ele disse que vai ter um aumento de salário. Mas receia que seu patrão também não lhe dê o devido valor.
— E que é que seu irmão faz aqui? — indagou Vance.
— Trabalha na cozinha. E lavador de pratos. É por isso que seu trabalho é tão importante. Imagine, se um restaurante grande como este não tivesse um lavador de pratos! Não seria horrível? Ora, nem sequer se poderia fazer uma refeição. Como poderiam servir a comida à gente, se os pratos estivessem imundos?
— Devo confessar que a senhorita tem razão — admitiu Vance. — Seria uma situação muito embaraçosa. Como você diz, o trabalho do seu irmão é muito importante. E, de passagem, diga-se que a senhorita é a jovem mais deliciosamente espantosa e mais perfeitamente natural que já conheci na minha vida.
Ficou evidente que o elogio foi desperdiçado com ela, pois a moça voltou imediatamente ao assunto do seu irmão.
— Mas talvez ele deixe o emprego hoje. Disse que deixaria, se não obtivesse aumento. Mas acho que, na verdade, ele não devia deixar o emprego, o senhor não acha? E vou dizer isto a ele... Aposto que o senhor não sabe aonde eu vou agora.
— Espero que não vá à cozinha.
— Ora, o senhor é mesmo um bom detetive. — Os olhos da moça, pestanejando, arregalaram-se. — É para lá que eu iria, mas Philip, meu irmão, afirmou que eles não me deixariam entrar na cozinha. Mas vou-me encontrar com ele na escada da cozinha. Philip disse que eu estava apenas fazendo-me de importante quando lhe disse que viria aqui esta noite. Imagine! Ele não quis acreditar em mim. Portanto, eu disse: — Então, você vai ver. — E ele retrucou: — Se você for mesmo ao Domdaniel, vá ao meu encontro na escada da cozinha, às dez horas da noite. — E é para lá que eu vou agora. Meu irmão tinha tanta certeza de que eu não viria aqui, que prometeu que, se eu lhe provasse que estava aqui, indo ao seu encontro, não sairia do emprego, mesmo que não lhe dessem aumento de salário. E sei que a mamãe quer que ele continue no emprego. Portanto, tudo sairá bem... Oh, que horas são, Senhor Vance? Vance consultou de relance o seu relógio.
— Faltam cinco minutos para as dez horas.
A jovem levantou-se tão de repente quanto se sentara.
— Não me importo muito com o bobo do Philip — falou ela. — Mas quero fazer mamãe feliz.
Enquanto Gracie se apressava rumo à distante passagem em arco, Burns, o rapaz solitário, se levantou e a seguiu rapidamente para o corredor. Quase simultaneamente, os dois passaram pela tapeçaria de damasco que havia na soleira da porta e desapareceram de vista.
Vance notara o jovem correr atrás da Senhorita Allen e fez um aceno benevolente de satisfação.
— Pobre e infeliz rapaz! — observou ele. — Agarrou a sua única oportunidade fugidia de falar a sós com sua amada. Espero que ele não cometa a imprudência de ralhar com ela... Mas, seja o que for que ele fizer, a deusa Afrodite já lhe está sorrindo de forma favorável, embora ele não lhe reconheça a fisionomia sorridente.
Voltei minha atenção, com indiferença, para a mesa onde Mirche e a Senhorita Del Marr tinham estado sentados. No entanto, a cantora havia desaparecido, e Mirche perscrutava de forma complacente o salão de refeições. Depois, ele seguiu pelo corredor, rumo à entrada principal.
Ao chegar à nossa mesa, parou um instante, fez uma mesura pomposa, para se certificar de que não nos faltava nada, e Vance convidou-o para sentar-se conosco.
Não havia nenhuma característica que distinguisse Daniel Mirche de forma especial. O homem era do tipo comum, esse misto de político e de dono de restaurante, grande e um tanto exibicionista. Era, ao mesmo tempo, agressivo e bajulador, com maneiras de polidez superficial. Seus cabelos ralos eram ligeiramente grisalhos e seus olhos tinham um peculiar matiz esverdeado.
Vance conduziu a conversa com facilidade, abordando vários aspectos relacionados com o interesse de Mirche no restaurante e sua gerência. Seguiu-se uma discussão a respeito de vinhos e suas safras. Momentos depois, Vance lançara-se a um dos seus assuntos prediletos: isto é, os conhaques raros do distrito oeste central da França, os distritos de Grande Champagne e Pequeno Champagne e os vinhedos em torno de Mainxe e Archiac.
Enquanto eu perpassava os olhos pelo salão, a esmo, notei que o jovem Burns voltara para sua mesa. E pouco depois a moça reaparecia no arco da porta do lado oposto, indo diretamente rumo ao Senhor Puttle. Nem sequer olhou de relance na nossa direção; e, pela expressão de desanimo do seu rosto, só pude supor que ela falhara no seu objetivo.
No entanto, não me ocupei demasiado tempo com essas reflexões. Minha atenção foi atraída pela entrada furtiva e quase felina de um homem magro e alto, que seguiu, como se não quisesse atrair atenção, para uma pequena mesa no canto oposto do salão. Essa mesa, não muito distante daquela em que se encontrava sentado o desalentado jovem Burns, já estava ocupada por dois homens, que se achavam de costas para o salão; e, quando o recém-chegado ocupou a cadeira vaga diante dos dois, eles se limitaram a fazer um aceno de cabeça.
Meu interesse por esse personagem alto e magro baseava-se no fato de que ele me fazia lembrar de fotografias que eu tinha visto de um dos facínoras mais notórios da época, um tal Owen. Corriam os boatos mais desagradáveis a respeito do tal homem, e houvera rumores de que ele era o planejador — ou, como se diz vulgarmente na gíria jornalística desse tipo de reportagens, ”o cérebro” por trás de certas organizações, de vulto considerável, de meliantes. Acreditava-se que ele representava um papel de direção entre os fora-da-lei, e que esse papel era tão importante que o homem conquistara o apelido de ”Coruja”.
Havia uma característica notável implícita nas suas feições super-refinadas. Uma característica maligna, sem dúvida, mas que deixava entrever potencialidades muito vastas e talvez até heróicas. O homem se formara com louvor em uma grande universidade e me trouxe à mente um lindo retrato de Robespierre que eu vira um dia: lá estava a mesma expressão maquiavélica de inteligência e de sagacidade. O homem tinha cabelos e olhos escuros, mas uma pele sem cor, como se fosse de cera. A impressão dominante que ele dava era de uma dureza inflexível: era fácil imaginá-lo desempenhando as funções de um carrasco com um sorriso indiferente e cruel nos lábios finos.
Estou descrevendo este homem de maneira tão minuciosa porque ele deverá representar um papel de vital importância no estranho desenrolar do caso que estou contando. Mas, naquela noite, eu não podia mesmo por um salto fantástico de imaginação, tê-lo ligado, fosse como fosse, com a quase incrível e descuidada Gracie Allen. E, contudo, esses dois caracteres tão diferentes deveriam cruzar o caminho um do outro, em breve, da maneira mais espantosa.
Eu já estava para afastar esse homem da minha mente, quando notei um tom de voz fora do comum na fala de Vance, enquanto ele batia papo com Mirche. Com aquela fleuma peculiar e ao mesmo tempo alerta, Vance estava olhando fixamente para a mesa situada no canto mais distante, onde os três homens se achavam sentados.
— A propósito — falou ele a Mirche, um tanto abruptamente. — Aquele, sentado lá, perto da coluna do canto, não é o famoso ”Coruja” Owen?
— Não conheço o Senhor Owen — respondeu Mirche, suavemente. No entanto, virou-se ligeiramente, com natural curiosidade, na direção apontada por Vance. — Mas poderia ser — acrescentou ele, depois de um instante de exame. — Até que é parecido com as fotografias que tenho visto do Senhor Owen... Se quiser, posso ir-me certificar.
— Oh, não, não é preciso — falou Vance. — Mas é muita amabilidade sua. Mas não é coisa importante, sabe?
Os componentes da orquestra iam voltando aos seus lugares, e Vance empurrou sua cadeira para trás.
— Tive uma noitada muito agradável e edificante — disse ele a Mirche. — Mas, agora, preciso mesmo ir andando.
Os protestos delicados de Mirche pareceram bastante legítimos, quando ele nos sugeriu que ficássemos pelo menos até depois do número de Dixie Del Marr, que seria o próximo.
— É uma excelente cantora — acrescentou Mirche, com entusiasmo. — E uma mulher de raro encanto pessoal. Ela faz seu número às onze da noite, e já está quase na hora.
Mas Vance alegou assuntos urgentes que ainda lhe exigiam a atenção naquela noite e pôs-se de pé.
Mirche exprimiu seu profundo pesar e nos acompanhou até à entrada principal, onde nos deu um efusivo boa noite.

CAPITULO VI
O CADÁVER
(Sábado, 18 de maio — 23:00 horas)

Descemos a escada de degraus largos de pedra, até à rua, e seguimos para leste. Na Sétima Avenida, repentinamente, Vance fez sinal para um táxi e deu ao motorista o endereço da residência do procurador distrital.
— Nesta altura, Markham já deve ter voltado da sua ronda de tarefas políticas — disse Vance, enquanto seguíamos para o centro da cidade. — Sem dúvida, ele me criticará impiedosamente pela minha aventura noturna oca. Mas, não sei por que, senti uma inquietação estranha esta noite nos salões espaçosos do Domdaniel, depois de ouvir as observações pouco recomendáveis do sargento a respeito do restaurante. O restaurante continua sendo como sempre foi. No entanto, por que minha mente era assombrada por pensamentos sinistros e de mau agouro, enquanto eu remexia no Meando e bebericava o Château Haut-Brion. Acho que, com o correr dos anos, os tentáculos envolventes da desconfiança estão-se fechando sobre minha natureza, outrora confiante. Ai de mim...!
O táxi parou de chofre diante de um pequeno prédio e fomos imediatamente para o apartamento do procurador distrital.
Markham, usando paletó esporte e chinelos, recebeu-nos com divertida surpresa.
— Espero que não seja outro mensageiro afobado com más notícias.
— Nada de Hermes nem de caduceus. Você está sendo acossado pelos arautos?
— Mais ou menos isso — retorquiu Markham, com uma careta. — O sargento aqui acaba de me trazer uma mensagem.
Eu não notara a presença de Heath, mas agora o vi, de pé, perto de uma janela, na sombra. O sargento avançou com um aceno amigável de cabeça.
— Caramba, sargento — falou Vance. — Que veio fazer aqui?
— Vim por causa da mensagem de que o Senhor Markham estava falando, Senhor Vance. Uma mensagem de Pittsburgh.
— São más notícias?
— Bem, não são exatamente o que se poderia chamar de boas — queixou-se Heath. — Acho que são até bem ruins.
— Não diga...
— Acho que não errei muito nas deduções e previsões que fiz ontem à noite a respeito do caso... O capitão Chesholm, de Pittsburgh, acaba de mandar-me a notícia de que um dos seus motociclistas localizara um carro viajando sem luzes em uma estrada secundária, e que, quando o carro diminuiu a marcha para fazer um curva apertada, um sujeito que viajava no banco traseiro deu dois tiros contra o policial. O carro fugiu, seguindo para leste, rumo à estrada principal.
— Mas, sargento, por que esse pequeno tiroteio na Pennsylvania perturbaria a sua excelente voz de tenor?
— Vou-lhe dizer por que. — Heath tirou o charuto da boca. — O guarda pensou ter reconhecido Benny, o Abutre!
Vance não se deixou impressionar.
— Nas circunstâncias em que se deu o fato, ele pode ter-se enganado redondamente.
— Foi exatamente o que eu disse ao sargento. — Markham fez um aceno de cabeça, aprovando. — Nas próximas semanas, vamos receber comunicados de que Pellinzi foi visto em todos os Estados deste país.
— Talvez — insistiu Heath. — Mas o modo como o tal carro estava viajando encaixa exatamente na minha idéia. O Abutre já poderia ter chegado a Nova York hoje cedo, se ele tivesse vindo diretamente de Nomenica. Mas, fazendo um círculo até a Pennsylvania e vindo de lá rumo oeste, talvez ele pretendesse, com isso, evitar muitas dificuldades.
— Pessoalmente — falou Markham — estou convencido de que aquele sujeito se manterá afastado de Nova York. — Seu tom de voz era equivalente a uma crítica à ansiedade do sargento.
Heath sentiu a repulsa.
— Espero que não o tenha importunado, vindo aqui esta noite, chefe. Eu sabia que o senhor tinha dois compromissos hoje, e pensei que ainda estivesse de pé.
Markham suavizou o tom de voz.
— O fato de você ter vindo aqui não tem importância — falou ele, para tranqüilizar o defensor da lei. — Tenho sempre prazer em vê-lo, sargento. Sente-se e sirva-se da garrafa... Talvez o próprio Senhor Vance esteja à procura de uma platéia para contar a ela a respeito das sobrancelhas arqueadas de Mirche e de outros pormenores horrendos da sua estada no Domdaniel... Então, Vance? Você tem alguma história de duendes com que nos regalar antes de irmos para a cama?
Heath instalara-se em uma cadeira e serviu-se de uma bebida. Vance também estendera a mão para pegar o seu conhaque predileto.
— Sinto muito, Markham, velho amigo — disse ele, na sua voz arrastada. — Não tenho nenhuma fantasia para contar... Nem mesmo uma a respeito de um carro misterioso em fuga. Mas tentarei igualar a história inspirada do sargento com um conto sobre uma ninfa dos bosques e um experimentador de perfumes; de uma Lorelei que canta de um pódio em vez de cantar de um penhasco rochoso. De um dono esperto de um restaurante e de um escritório vazio, cercado de grades misteriosas; de uma sacada coberta de trepadeiras e de uma coruja sem penas... Você poderia suportar ouvir o cântico do meu poema?
Estou com resistência baixa.
Vance estendeu as pernas diante de si.
— Bem, com licença, então — começou ele. — Nesta noite, uma encantadora jovem, uma garota espantosa, nos fez companhia à nossa mesa, durante alguns minutos. Uma criança, cujo cérebro é uma roda-viva e gira como um pião, irradiou as fagulhas mais coloridas; porém, seu espírito, é tão ingênuo quanto o de uma criança.
— A tal ninfa dos bosques de quem você tagarelou no preâmbulo?
— Sim... Ela mesma. Eu a vi pela primeira vez hoje à tarde em um bosque sombrio em Riverdale. E ela estava no Domdaniel hoje à noite, acompanhada por um sujeito chamado Puttle, que ela estava usando como isca para fisgar o verdadeiro queridinho do seu coração, um rapaz de nome Burns. Este também se achava presente esta noite, mas longe da moça, e sozinho... e muito infeliz.
— Seu encontro com ela hoje à tarde sugere possibilidades mais interessantes — comentou Markham, com indiferença.
— Talvez você tenha razão, meu caro. A verdade é que a moça se achava sozinha quando me introduzi no seu reino florestal. Mas ela aceitou minha intromissão sem dificuldades. Até se ofereceu para ler a palma da minha mão.
— Delpha? — interrompeu Heath, em tom agudo. — Refere-se àquela cartomante que negocia com a profissão sob esse nome falso?
— Talvez seja — falou Vance. — Essa Delpha, ao que me consta, lida com leitura das linhas da mão, com astrologia, com numerologia e com outras coisas semelhantes. Você conhece essa pitonisa, sargento?
— Claro que conheço. E conheço também o marido dela, de nome Tony. Os dois são ligados de estranha maneira com um punhado de malfeitores do submundo. Esse casal atua como informante e como observador para assaltos a joalharias... São o que se poderia chamar de espiões para assaltos. Mas não conseguimos pilhá-los em flagrante. O sobrenome deles é Tofana e os dois têm uma loja para enganar os trouxas... ”Delpha” — bufou ele. — Para os vizinhos, ela é apenas Rosie. Talvez ela fique livre das grades durante algum tempo, mas algum dia eu a agarrarei.
— Você me deixa atônito, sargento. Simplesmente, não posso imaginar que minha linda fada dos bosques — que, a propósito, trabalha em uma fábrica de perfumes a semana inteira — tenha algo a ver com a megera sombria da sua descrição.
— Mas eu posso — falou Heath. — Esse é um dos truques mais batidos da velha Rosa Tofana: cercar-se de jovens inocentes. E, enquanto ela finge ser uma comerciante inofensiva e imaculada, o velho Tony está talvez tramando alguma patifaria, ou batendo carteiras, bancando o gigolô ou então vendendo entorpecentes do outro lado da cidade. Esperto, o Tony... Sabe fazer quase de tudo.
— Bem — murmurou Vance. — Talvez estejamos falando de duas mulheres diferentes, não é? ”Delpha” pode ser um nome popular da irmandade mística. Talvez uma sugestão fonética para o oráculo de Delfos...
— Coragem, Vance — interrompeu Markham, em tom agradável. — Não deixe que o sargento o afaste do seu conto da carochinha.
— E o pormenor mais espantoso — prosseguiu Vance — foi o cheiro de cidra que havia ao redor do duende. O perfume fora feito especialmente para ela, e não tinha nome. Muito misterioso, hem? Fora preparado pelo cavalheiro chamado Burns, uma espécie de mago das essências, empregado na mesma fábrica em que a moça trabalha. Burns, que ficou tão aborrecido com a aparente preferência que ela resolvera passar a dar a um rival dele.
Markham deu um sorriso torto.
— Não consigo entender onde é que entra o mistério da situação.
— Nem eu — confessou Vance. — Mas deixe seu cérebro obtuso demorar sobre o fato de que a tal jovem foi escolher exatamente esta noite para visitar o restaurante de Mirche.
— Talvez ela tenha seguido os seus passos, desde Riverdale, até você chegar ao Domdaniel.
— Ora, isso não resolveria nada. Ela já se achava lá quando eu cheguei.
— Então, talvez a moça estivesse com fome.
— Eu já pensara nisso. — Os olhos de Vance brilharam alegremente. — Talvez você tenha solvido o mistério! Mas... — prosseguiu ele — isso não explica o fato de que o próprio Mirche estivesse no Domdaniel.
— Ora, e onde é que você queria que ele estivesse? Mas talvez você agora vá dizer-me que ele é o pai da sua heroína, de quem se separara há muito tempo, não é?
— Não — suspirou Vance. — Mirche, ao que temo, é de uma sublime ignorância da existência da jovem. Que maçada. E eu, que estava tentando inventar uma história divertida para você se entreter...
— Aprecio o esforço. — O charuto de Markham precisava ser aceso novamente, e ele cuidou disso. — Mas diga-me o que achou de Mirche. Lembro-me de que seu objetivo principal, ao ir hoje ao Domdaniel, foi o de estudar o homem mais de perto.
— Ah, sim. — Vance mexeu-se e afundou mais na sua poltrona. — Você é sempre tão prático, Markham... Bem, não gosto de Mirche. É um cavalheiro correto, mas não admirável. No entanto, fez esforços enormes para me agradar. Não sei o motivo disso... Talvez ele estivesse tramando alguma sujeira, embora tenha-me dado a impressão de que é do tipo de homem que precisaria de alguém para fazer planos para ele. Não, Mirche não é um líder de homens, mas, sem dúvida, é um assecla fiel e capaz. Um sujeito sombrio e perverso... Bem, aí tem você o vilão da peça.
— E que farei com ele? Seu conto está fracassando a cada instante que passa.
— Receio que você tenha razão — confessou Vance. — Deixe-me ver... Examinei detidamente o escritório de Mirche, mas, infelizmente, a sala achava-se desprovida de qualquer coisa comprometedora. Apenas uma sala de tamanho razoável, sem nenhum ocupante. E depois olhei com muito gosto para a velha porta e para as janelas que ficam além do alpendre, dentro da alameda por onde entram os carros. Mas, apesar de todo o exame minucioso que fiz, não consegui descobrir nada que ajudasse. Mas as trepadeiras que havia por lá eram muito agradáveis. Trepadeiras inglesas.
— Agora, você passou para a Botânica — disse Markham. — Devo dizer que prefiro a narrativa, feita pelo sargento, do tiroteio de Pittsburgh... Mas você não falou de uma Lorelei?
— Ah, sim. E bem loura... como convém a uma sereia do Reno. Mas o nome dela tem um elo gaulês: Del Marr. Uma Lorelei impressionante. Mais inteligente, creio eu, do que Mirche. Mas houve uma conversa séria entre ela e Mirche. Os dois sentaram-se a uma mesa, durante um intervalo de descanso da orquestra, e tenho certeza de que a conversa não se limitou a assuntos musicais ou profissionais de empregador e cantora. Havia uma atmosfera de intimidade entre os dois. Liberdade, igualdade, fraternidade... Assim. Não era uma simples contratada conversando com seu empregador.
— Eu também imaginei isso, há alguns anos — intrometeu-se Heath. — Além disso, ela tem um carro de luxo e motorista. Sua profissão de cantora certamente não lhe dá dinheiro para tanta coisa. E a cara do tal motorista também não me agrada: é um tipo mal-encarado, como um desses leões-de-chácara que trabalham nas casas de jogatina.
— Pelo menos, Vance, — falou Markham, esperançoso — você descobriu uma ligação em potencial entre os componentes do seu drama, quase totalmente desorganizados e sem relações entre si. Talvez você possa desenvolver a estrutura da sua narrativa tendo isso como base.
Vance sacudiu a cabeça, desanimado.
— Não, acho que, infelizmente, não estou à altura da tarefa.
— E que há a respeito da ”coruja sem penas” de que você falou há pouco?
— Ah! — E Vance bebericou o seu conhaque. — Eu me referia ao sombrio e misterioso Senhor Owen, de lembrança detestável e má reputação.
— Compreendo. ”Coruja” Owen, hem? Eu tinha uma idéia vaga de que ele se estivesse torrando ao sol da Califórnia. Há algum tempo atrás, correu o boato de que ele estava morrendo, talvez por efeito dos seus pecados.
— Oh, estava bem vivo lá no Domdaniel, sentado do outro lado do salão, junto com dois outros homens.
— Aqueles dois sujeitos — adiantou Heath — eram, talvez, seus guarda-costas. Ele não anda sem a companhia dos dois.
— Acho que você não vai conseguir nada com ele, Vance — falou Markham. — Certa ocasião, o FBI se preocupou com ele, mas, depois de efetuar investigações, declararam o homem isento de culpa. Ou, pelo menos, disseram que não havia provas da sua culpa.
— Confesso que estou derrotado. — Vance sorriu, tristonho. — Cheguei até a tentar atrair Mirche para que este confessasse que conhecia Owen. Mas o homem negou o mínimo conhecimento com o ”Coruja”...
Após mais uma hora de conversa sem objetivo, fomos interrompidos pelo tilintar do telefone. Markham franziu o cenho, aborrecido, enquanto atendia. Depois, pondo o receptor no lugar, virou-se para Heath.
É para você, sargento. É Hennessey.
Heath também ficou aborrecido.
— Desculpe, chefe. Não deixei este número com ninguém quando vim para cá.
Enquanto saudava Hennessey pelo telefone, sua voz era belicosa. Escutou vários minutos, a expressão fisionômica mudando rapidamente da beligerância para outra de quem está profundamente confuso. De repente, berrou para o fone: ”Não desligue, espere um instante!” — E, segurando o receptor do telefone de lado, virou-se para nós:
— Parece-me uma loucura, chefe, mas Hennessey está telefonando lá do Domdaniel, e preciso ir falar com ele imediatamente...
— Esplêndido! — disse Vance, num impulso. — Por que não manda Hennessey vir aqui? Tenho certeza de que Markham não se oporia.
Markham dirigiu a Vance um olhar de espanto.
— Está bem, sargento — disse ele, de mau humor. Heath recolocou novamente o fone ao ouvido, com rapidez.
— Escute, Hennessey — disse ele, em voz áspera. — Venha aqui à casa do procurador.
— Que agitação é essa, sargento? — indagou Vance. — Terá o Mirche se escondido com seu próprio dinheiro e fugido com a Senhorita Del Marr para casar-se com ela?
— É muito esquisito — murmurou Heath, ignorando a pergunta. — Os rapazes encontraram um cadáver de homem no restaurante.
— Espero, nesse caso, que tenha sido achado no escritório de Mirche — disse Vance, em tom leve.
— O senhor acertou. — E Heath olhou fixamente para o soalho.
— E de quem seria o cadáver?
— É justamente isso que torna a coisa esquisita. O cadáver é de um empregado que trabalhava na cozinha do restaurante.
— Esse fato o ajudará a reviver o seu conto fracassado? — perguntou Markham a Vance.
— Céus, não! Isso fulmina completamente toda a minha história. — Vance tornou a se virar para Heath. — Você já sabe o nome do morto, sargento?
— Não prestei muita atenção ao nome quando Hennessey disse que era apenas um empregado de cozinha. Mas me pareceu algo como Philip Allen.
As pálpebras de Vance bateram ligeiramente.
— Philip Allen, hem? Muito interessante!

CAPITULO VII
ESTRANHAS COINCIDÊNCIAS
(Domingo, 19 de maio — 0:45 horas)

Hennessey chegou em menos de quinze minutos. Era um homem corpulento e sério, de feições severas e maneiras desajeitadas.
Heath foi diretamente ao assunto que interessava.
— Conte sua história, Hennessey. Depois, eu lhe farei perguntas. Mas, primeiro, quero saber por que você me telefonou para cá a estas horas da noite.
— Diacho, sargento! — retrucou Hennessey. — Havia mais de uma hora que eu estava tentando encontrá-lo. Eu sabia que o senhor fazia ligação de idéias entre o Senhor Markham e o Domdaniel, e imaginei que o senhor quereria saber de uma morte inesperada acontecida lá. Por isso, telefonei para sua casa e para inúmeros outros lugares em que eu pensava que o senhor poderia estar, mas em vão. Depois, arrisquei-me a ligar para cá. Eu não queria que o senhor gritasse comigo amanhã, para me passar um carão.
— Bem, o que você sabe? — resmungou Heath.
— A história parece um tanto maluca, sargento. Mas, por volta das onze horas, vi o Senhor Vance sair do restaurante. Antes disso, já o vira rondando o escritório de Mirche...
— Às oito horas — interrompeu Vance, com um sorriso.
Hennessey tirou seu caderno de anotações e virou algumas
páginas.
— Às sete e cinqüenta e seis, Senhor Vance.
Céus, que observação meticulosa!
Hennessey sorriu.
— Bem... Uns quinze ou vinte minutos depois que o Senhor Vance saiu, dois homens do Departamento de Homicídios chegaram com o Dr. Mendel, e os três entraram no escritório de Mirche. Achei aquilo esquisito, e por isso deixei Burke de vigia, em companhia de Snitkin, e fui ver o que estava acontecendo. Quando estávamos subindo a escada, o próprio Mirche chegou correndo, todo agitado, passou por nós e entrou na sala. Acho que o porteiro, que o senhor conhece, Joe Hanley, deve ter-lhe dito que alguma coisa estranha estava acontecendo...
— Não tente adivinhar coisas.
— Pois bem — prosseguiu Hennessey. — Dentro da sala havia um sujeito de terno preto, estendido no chão, com meio corpo embaixo da escrivaninha. Mirche foi até junto dele, cambaleando um pouco e mortalmente pálido. Inclinou-se bem perto, por cima do homem, ao lado do médico, que estava abrindo a camisa do cadáver e encostando-lhe ao peito uma dessas cornetas acústicas...
— Um estetoscópio! Céus! — Vance olhou para Markham.
Eu não sabia que um médico oficial levava um desses fiéis instrumentos consigo.
— Geralmente, não leva — falou Markham. — Mendel é um médico jovem e acaba de ser nomeado para o corpo médico; por isso, não me surpreenderia se ele levasse também consigo um espirômetro por onde anda, e também o seu diploma.
— Prossiga, Hennessey — grunhiu Heath. — E depois? Guilfoyle perguntou a Mirche quem era o sujeito. Não sei se o que aconteceu em seguida foi antes ou depois que Mirche respondeu à pergunta; só sei que mais ou menos nessa altura Dixie Del Marr entrou correndo. E Mirche disse, num cochicho, que a vítima era um dos lavadores de pratos do restaurante um tal Philip Allen. Eu mesmo poderia ter contado isso a Guilfoyle. Eu conhecia Allen, e o tinha visto pessoalmente naquela tarde. Depois, Guilfoyle perguntou a Mirche por que o rapaz estava no escritório, onde ele vivia e o que Mirche sabia sobre sua morte. O sapo velho declarou que não sabia de nada a respeito do morto, nem de como ele fora parar ali, ou onde ele morava. De que era tudo um mistério para ele. E parecia ser sincero, ou estava fingindo muito bem.
— Tem certeza de que ele não estava enganando a todos vocês? — indagou Heath, desconfiado.
— Ahn? A mim, não — garantiu Hennessey. — Nenhum sujeito pode fingir tão bem estar abalado.
— Que aconteceu depois?
Hennessey prosseguiu, agora mais depressa.
— O médico começou a examinar o homem, levantando-lhe as pálpebras, espiando a sua garganta, movendo suas pernas e braços... Todos os exames de praxe. E, enquanto ele estava ocupado em mexer no sujeito, a tal Dixie Del Marr abriu a porta de um armário embutido e tirou um livro de registro da firma. Virou algumas páginas, e depois disse: ”Aqui está, Mirche. Philip Allen mora na rua Leste, 37, número 198, com a mãe dele”.
Markham olhou para cima e virou-se para Vance.
— Vejo que sua dedução, não muito profunda, está sendo apoiada de leve. Sua Lorelei é, evidentemente, a guarda-livros de Mirche.
Hennessey ficou impaciente com a interrupção.
— Depois, Guilfoyle perguntou ao médico qual fora a causa da morte do homem. ”Não sei” — foi a resposta do médico. ”Talvez ele tenha morrido de morte natural, mas não posso dizer, apenas com o exame superficial feito. Ele apresenta queimaduras nos lábios e sua garganta parece ter alguma coisa. Vocês vão ter de levá-lo ao necrotério para uma autópsia completa.” — O médico nem sequer sabia há quanto tempo a vítima estava morta.
— E que fez a cantora Del Marr? — indagou Heath.
— Recolocou o livro na prateleira do armário embutido e sentou-se em uma cadeira, com uma expressão dura e indiferente, até que Mirche a mandou voltar para o restaurante.
— E então vocês mandaram o cadáver para o necrotério. — Heath estava tirando baforadas no seu charuto, sombriamente.
— Isso mesmo, sargento. Guilfoyle se encarregou de chamar o carro fúnebre. Ele e o outro investigador do Departamento de Homicídios, de nome Sullivan, encarregaram-se das investigações... É uma história boba, mas sei que o senhor sempre desconfiou daquele tal Mirche... Principalmente agora, com o Abutre à solta.
Heath franziu o cenho e dirigiu a Hennessey um olhar fixo e frio.
— Está bem! — berrou ele. — Quem entrou no escritório, depois que o Senhor Vance chegou lá, às oito da noite?
— Ah, isso é fácil. — E o policial riu, desconsolado. — A cantora Del Marr entrou no escritório por volta das oito e meia e saiu logo depois. Pouco mais tarde, o porteiro entrou lá também. Mas creio que ele costuma fazer isso sempre. Acho que Hanley apenas foi lá para tomar um gole de uísque, pois saiu esfregando a boca com a manga do paletó...
— A que horas aconteceu tudo isso? — indagou Heath.
— No início da noite, uma hora depois que o Senhor Vance esteve lá.
— Suponho que você investigou para saber se algum deles viu o cadáver, não é?
— Claro que sim. Mas nenhum deles o viu. O porteiro foi lá depois da cantora, e pode apostar sua vida em que, se houvesse um cadáver lá dentro, Hanley teria soltado um grito. Ele é um sujeito honesto, sargento.
— Claro. Conheço Joe Hanley há muito tempo. — Heath pensou um momento. — Nada disso faz sentido... Mas, agora, quero saber de uma coisa: a que horas você tirou a sua soneca, esta noite?
De repente, compreendi a significância da pergunta de Heath.
- Juro por Deus, sargento, não tirei nenhuma soneca.
Mas não sei como o tal Allen entrou no escritório. Não o vi entrar lá.
— Ahn! — E havia um mundo de sarcasmo no grunhido do sargento. — Você não dormiu, mas Allen entrou no escritório, teve um ataque cardíaco, ou coisa semelhante, e morreu enrodilhado embaixo da escrivaninha de Mirche! Esta é a última piada para os anais da polícia.
Hennessey ficou vermelho como um camarão.
— Eu não o culpo por estrilar, sargento. Mas, sinceramente, não afastei os olhos daquela porta nem por uma fração de segundo...
— Então, a vítima se tornou invisível e entrou lá sem quo você a visse, num passe de mágica. Ou talvez tenha descido pela chaminé, como o Papai Noel... Se é que há chaminé. — A ironia do sargento pareceu desnecessariamente brutal.
— Escute, sargento — interrompeu Vance. — O verdadeiro objetivo da vigilância de Hennessey era ficar alerta ao aparecimento de Benny Pellinzi, não se esqueça disso. Sem dúvida, você não postou três marmanjos na pensão apenas para vigiarem um pobre lavador de pratos.
Heath abordou outra faceta do assunto.
— Quem foi que telefonou para a chefatura de polícia, Hennessey?
— Essa é outra coisa engraçada, sargento. O telefonema chegou, por vias normais, às dez e cinquenta... não mais de dez minutos depois que o senhor saiu. Quem telefonou foi uma mulher. Ela não quis dar o nome; bancou a misteriosa e desligou.
— Sim. Se foi engraçado... Podia muito bem ter sido essa megera dessa cantora, Del Marr.
— Também pensei nela, e a interroguei a respeito do assunto. Mas ela parecia ignorar tanto o fato como Mirche o ignorava. Mas poderia ter sido alguma das velhas empregadas que trabalham na cozinha. Grande parte dos empregados entra e sai por aquela alameda que dá para o escritório. E, se um deles quisesse bisbilhotar, bastar-lhe-ia levantar-se na ponta dos pés e espiar pela janela.
— E o edifício de escritórios que fica ao lado da alameda? — indagou Vance.
Foi Heath quem respondeu à pergunta.
— Não há janelas ali, senhor. Os primeiros três andares são fechados por uma parede maciça de tijolos...
O cigarro de Vance se acabara e ele acendeu outro.
— Juntando tudo isso — comentou ele — não pareço muito promissor para um crime misterioso. É muito triste. Tive esperanças tão grandes quando Hennessey telefonou a essa hora mais ou menos de bruxaria.
— Tenho de confessar — disse Heath — que eu também não consigo vislumbrar nada de especial no relatório de Hennessey. Mas há outra coisa que eu desejo saber. — E tornou a virar-se para Hennessey. — Você disse que conhecia esse lavador de pratos, o Allen, e que o viu mais cedo, no mesmo dia. Fale-nos a esse respeito.
— Eu fiquei conhecendo-o por acaso — retrucou o policial. — Uma noite, no inverno passado, ele saiu correndo da alameda, por volta das três horas da madrugada, e quase me derrubou no chão. Eu o agarrei e levei-o à presença de Hanley, para ver quem ele era. Depois o soltei. Hoje à tarde, eu o vi rondando o escritório de Mirche. Entrou e saiu de lá três ou quatro vezes, entre uma e cinco horas da tarde. Depois por volta das seis, quando Murche chegara ao escritório, o rapaz tornou a entrar lá e ficou uns dez minutos, dessa vez. Quando saiu, foi a última vez que o vi.
— Para onde foi ele?
— Sei lá... Não sei ler os pensamentos dos outros. Ele não voltou para a cozinha, se é isso que o senhor deseja saber. Foi para a rua.
— Tem certeza de que foi Allen quem você viu? — indagou o sargento, desanimado.
— Claro que tenho! — riu Hennessey. — Mas é muito engraçado o senhor me perguntar isso. Na primeira vez em que vi Allen, esta tarde, tive a idéia maluca de que poderia ser Benny, o Abutre: são ambos da mesma estatura, com o mesmo rosto redondo e pálido, macilento. E Allen trajava um terno simples e preto, como já lhe disse... e é assim que o Abutre estaria vestido, se ele quisesse entrar aqui, furtivamente, e desejasse evitar que o vissem com facilidade. O senhor se lembra das roupas elegantes que ele usava nos velhos tempos. Em todo caso, resolvi certificar-me. Eu sabia que estava agindo como um tolo, mas fui até o restaurante e disse olá ao sujeito. Era mesmo Allen. Ele me disse que estava por ali a fim de conseguir um aumento de salário com o velho Mirche. Pura perda de tempo!
Heath coçou a cabeça.
— Mais alguma coisa a respeito do tal Allen lhe vem à idéia?
— Eu estava pensando — disse Hennessey. — Sim... Ele se encontrou com um sujeito por volta da metade da tarde, aproximadamente às quatro horas. Era um homem miúdo, como Allen. Os dois foram para o lado oeste do restaurante e pouco depois se empenharam em animada discussão. Parecia que a qualquer instante iriam sair para os sopapos. Mas não lhes prestei muita atenção, e finalmente o tal sujeito foi embora. Tem mais alguma pergunta, sargento?
Vance chamou Heath de lado e lhe cochichou algumas palavras ao ouvido. Finalmente, o sargento fez um movimento indiferente de ombros e confirmou de cabeça. Depois, tornou a se virar para Hennessey.
— É só isto — falou ele. — Vá para casa e durma um pouco. Mas esteja de volta ao trabalho ao meio-dia.
Quando Hennessey se retirara, Markham, notando uma mudança repentina na maneira de se portar de Vance, franziu a cenho e inclinou-se para diante.
— Em que é que você está pensando, Vance? — perguntou ele.
— Na história de Hennessey. No meu conto de fadas de hoje à noite, não mencionei o nome da ninfa dos bosques. Ela se chama Gracie Allen. E Philip Allen é seu irmão. Ela me contou, muito francamente, que ele era lavador de pratos no Domdaniel. Ela até me contou que ele ia encurralar Mirche, hoje à tarde, no covil deste, para lhe pedir aumento de salário. E, quando a Senhorita Allen parou junto à minha mesa, esta noite, estava indo ao encontro do irmão, em alguma parte das dependências do restaurante.
Markham tornou a recostar-se no espaldar da poltrona, com uma risada curta.
— Talvez você possa encaixar tudo isso na fantasia que estava tecendo hoje cedo.
— É como você diz, meu velho amigo. — Vance não estava mais disposto a gracejar. — Sem dúvida, vou tentar fazer isso. Não me conformo com o fato de tantas coisas irrelevantes acontecerem em um lugar só e ao mesmo tempo. Deve haver alguma coisa unindo esses acontecimentos. Em todo caso, não estou disposto a continuar acordado, e por isso vou para casa dormir.
Vance caminhou até o fim da sala, no sentido do comprimento, depois voltou, de cabeça baixa. Em seguida, parou de chofre e sorriu, com um misto de seriedade e embaraço, mas bem resoluto.
— Escute aqui, Markham — falou ele. — Confesso que minhas idéias são muito vagas e que aquela bruxazinha em Riverdale pode ter-me enfeitiçado. Mas me sinto inclinado a descobrir o que puder a respeito da morte prematura de Philip Allen, e talvez assim amenizar o choque para a jovem. E preciso da sua ajuda para isso. Você não quer apoiar minhas excentricidades mais uma vez?
Markham suspirou, resignado.
— Farei tudo para me livrar de você a estas horas avançadas e impróprias.
— Já que é assim, encarregue-me do caso Allen, para eu brincar com ele como bem entender, mas, naturalmente, tendo a meu lado o eficiente sargento.
Markham hesitou.
— Que tal acha disso, sargento?
— Se o Senhor Vance tiver algumas idéias extravagantes — retrucou Heath, vigorosamente — prefiro trabalhar com ele.
— Está bem, sargento, então vá trabalhar com o nosso dramaturgo amador. — Depois, Markham virou-se novamente para Vance. — E, quanto a você — falou ele, com uma franqueza brincalhona — acho que é doido varrido.
— Vá lá. Mas não se esqueça de que o grande louco de hoje é o Prêmio Nobel de amanhã...

CAPITULO VIII
NO NECROTÉRIO
(Domingo, 19 de maio — 1:30 horas)

Vance, Heath e eu fomos primeiro ao apartamento de Vance. Lá, enquanto Vance trocava de roupas, vestindo um terno folgado, Heath deu alguns telefonemas necessários.
Interrogou Guilfoyle, durante algum tempo, a respeito de quaisquer pormenores pertinentes que Hennessey pudesse ter omitido, e deu ordens a Sullivan para ficar no Domdaniel até o meio-dia. Em seguida, telefonou para o Dr. Mendel. Achei, tanto pela sua expressão como pelas perguntas que fez, que Heath ficou intrigado e aborrecido com as informações que estava obtendo do jovem médico. Quando Vance voltou para junto de nós, o sargento, ao que parecia, continuava pensando no assunto.
— Este caso — falou ele — está começando a parecer ainda mais maluco do que a princípio, a história de Hennessey mostraria. O Dr. Mendel ainda acha que Allen poderia ter morrido de morte natural, mas descobriu um punhado de indícios de que ele poderia ter sido assassinado. Ele está transferindo a responsabilidade para outro, e mandou o cadáver sem demora para o necrotério, onde Doremus fará a autópsia. Mendel não se quer envolver no caso. Quando lhe perguntei a que horas ele achava que o sujeito morreu, procurou ganhar tempo, falando de rigidez de morte e de certa forma de espasmo.
— Espasmo cadavérico — contribuiu Vance.
— Sim, é isso. E, depois, começou a dizer que há muita coisa, em medicina, que ainda é desconhecida. Como se isso fosse novidade para mim!
— Sim, nós já sabemos isso de cor e salteado — suspirou Vance. — Mas, enquanto isso, você já avisou a mãe do rapaz que morreu?
— Sim, é preciso avisá-la. Pensei em mandar o Martin, que é muito jeitoso para essas coisas.
— Não... Oh, não, sargento — falou Vance. — Já estou vendo a careta que a pobre senhora fará se você mandar Martin. Nós vamos avisá-la pessoalmente.
— Está bem, chefe. — O sargento piscou um olho e sorriu. — O senhor pediu o caso, e agora ele é seu. Em todo caso, esse trabalho de identificação não levará muito tempo.
Descobrimos a residência da Senhora Allen na rua Leste, número 37, uma habitação modesta: um velho prédio de frente de tijolos à vista, que fora dividido em pequenos apartamentos. A própria Senhora Allen atendeu, quando tocamos a campainha. Achava-se completamente vestida e todas as luzes estavam acesas na sala mobiliada com simplicidade.
Era uma pessoa franzina, cuja presença lembrava a de uma ratinha, e muito mais idosa do que eu esperara que fosse a mãe da Senhorita Allen. Havia na sua expressão uma suavidade e algo muito vago — quase uma melancolia — como a de uma pessoa que envelhecera antes do tempo, ou em virtude de uma dor repentina ou de vicissitudes prolongadas.
A mulherzinha mostrou-se muito nervosa e assustada com nossa presença à sua porta; mas, quando o sargento lhe contou quem ele era, a mulher nos convidou imediatamente para entrarmos. Sentou-se muito rígida, como se para poder enfrentar algum golpe duro. Suas mãos achavam-se entrelaçadas com tanta força, que os nós dos dedos ficaram brancos.
Heath pigarreou forte. Apesar de toda a dureza da sua natureza de homem habituado a ver dramas, parecia muito condoído da situação da velhinha.
— Estou falando com a Senhora Allen? — começou ele. Em parte era uma interrogação, em parte uma afirmação.
A mulher fez um aceno de cabeça, trêmula.
— A senhora tem um filho chamado Philip?
A mulher limitou-se novamente a confirmar, com um aceno de cabeça. Mas as pupilas dos seus olhos se dilataram.
Heath mudou o peso para o outro lado do corpo e olhou um instante ao seu redor. Seu rosto tornou-se visivelmente mais suave. Até então, eu só vira o sargento profundamente comovido uma vez na vida: fora quando ele olhara dentro do armário vazio e deparara com o corpo inerte da pequena Madeleine Moffat, durante sua investigação do caso do Bispo Preto.
— A senhora tem ficado acordada até muito tarde da noite, não é, Senhora Allen? — perguntou ele, como se ainda não tivesse encontrado as palavras para amenizar o golpe que ia causar com a notícia.
— Sim, senhor detetive — disse a mulher, num fio de vox trêmula. — Sempre fico acordada, esperando minha filha, quando ela está fora. Mas não me importo com isso.
Heath assentiu com um aceno de cabeça e, com uma súbita torrente de palavras, abordou o assunto que nos levara ali.
— Bem... Sinto muito, mas tenho más notícias para a senhora — disse ele, em um repente. — O seu filho, Philip, sofreu um acidente. — Fez uma pausa, durante alguns instantes. — Sim, Senhora Allen, preciso contar-lhe... Ele está morto. Foi encontrado esta noite, no restaurante onde trabalhava.
A mulher agarrou a sua cadeira com força. Seus olhos se arregalaram e seu corpo oscilou um pouco. Vance foi rapidamente até junto dela e, segurando-a pelos ombros, firmou-a.
— Oh, meu pobre filho! — gemeu ela, várias vezes. Depois, olhou de um de nós para o outro, como se tonta. — Contem-me o que aconteceu.
— Ainda não sabemos ao certo, senhora — disse Vance, baixinho.
— Mas quando? — indagou ela, em voz sem inflexão. — Quando foi que isso aconteceu?
— Recebemos o telefonema por volta das onze horas, esta noite — contou-lhe Heath.
— Eu não sei o que fazer. — Ela ergueu o olhar, com uma súplica. — Os senhores me levarão para vê-lo?
— Foi justamente para isso que viemos aqui, Senhora Allon. Nós queremos que a senhora vá conosco — apenas por alguns minutos — à cidade, para identificá-lo. O Senhor Mirche já fez isso, naturalmente, mas nós pedimos à senhora para reconhecê-lo, apenas por formalidade legal. Depois, ajeitaremos tudo... Agora, foi Vance quem falou com a mulher.
— Sei que é uma tarefa muito triste para a senhora. Mas, como o sargento explicou, é uma formalidade necessária, e mais tarde isso facilitará tudo para a senhora e para sua filha. A senhora tentará ser forte, não é?
A velhinha fez um aceno afirmativo de cabeça, vagamente.
— Sim, preciso ser forte, a bem da Gracie.
Não pude deixar de admirar a fortaleza de espírito dessa mulherzinha frágil. E, quando ela se levantou, resolutamente, para vestir o casaco e colocar o chapéu, minha admiração por ela aumentou mais ainda.
— Vou demorar apenas o tempo necessário para deixar um bilhete para minha filha — falou ela, desculpando-se, quando estava pronta para sair conosco. — Ela ficaria preocupada, se chegasse em casa e não me encontrasse aqui.
Ficamos esperando, enquanto ela arranjava um pedaço de papel. Vance lhe ofereceu o seu lápis. Então, com mão trémula, ela descreveu algumas palavras e deixou o papel bem à vista, em cima da mesa.
A caminho da cidade, a mulher não falou, mas ficou ouvindo mansamente as instruções e sugestões do sargento.
Quando entramos pela porta do elevador do necrotério municipal, na rua 29, a mulher levou as duas mãos ao rosto e murmurou algumas palavras, como uma oração, acrescentando, em voz mais alta:
— Oh, meu pobre Philip! No fundo, ele era um rapaz tão bonzinho...
Heath pegou-a pelo braço, de forma protetora, e levou-a solicitamente para a sala nua do porão. A cena acabou não sendo tão medonha quanto eu imaginara que fosse. A dolorosa obrigação da mãe de Gracie Allen terminou no instante em que Heath a fez parar diante da forma inerte que fora tirada de uma gaveta do refrigerador. Seu sofrimento terminou depressa e de modo misericordioso.
Após um olhar momentâneo, ela se virou para o outro lado, com um soluço abafado, perdeu os sentidos e escorregou para o chão.
O sargento, que estivera observando a mulher atentamente, desde a hora em que saíramos do elevador, pegou-a rapidamente nos braços, carregando-a para a sala de recepção, mal iluminada, onde a depositou em um sofá de vime. O rosto da mãe de Gracie apresentava-se lívido e sua respiração era fraca, mas, depois de alguns minutos, ela começou a se mover debilmente. Depois, com a onda de sangue às faces e com o umedecimento da pele, que acompanham a reação de quem desmaia, veio uma torrente de lágrimas.
Enquanto ela chorava livremente por alguns instantes, Heath puxou uma cadeira e sentou-se diante da mulher.
— Eu sei, Senhora Allen, — disse ele — que isso deve ser muito doloroso para a senhora, mas nós precisamos ter cuidado em casos como este. É a lei. Não poderíamos deixar que se cometessem erros a respeito. E a senhora não quereria que nós cometêssemos erros, não é?
— Oh, isso seria horrível. — Sua mão moveu-se lentamente sobre seus olhos, como se para afastar alguma visão horripilante.
— Claro, eu sei... — murmurou o sargento. — É por isso que a senhora tem de nos perdoar por sermos um tanto desumanos.
— Quando — perguntou ela, como alguém que não lhe tivesse ouvido as palavras — quando foi que o pobre rapaz...?
— Isso é outra coisa que tenho de lhe contar, Senhora Allen. — Heath interrompeu sua pergunta inacabada. — É que não poderemos deixar que a senhora leve imediatamente seu filho. O médico ainda não tem certeza de que foi que ele morreu, e o médico precisa certificar-se. Isso é tanto em seu benefício como no nosso. Portanto, temos de ficar com ele ainda por um dia ou talvez dois.
A mulher moveu a cabeça para cima e para baixo, tristemente.
— Sei o que o senhor quer dizer — falou ela. — Um dia, um sobrinho meu morreu em um hospital... — E ela deixou a frase incompleta e acrescentou: — Sei que posso confiar nos senhores.
— Sim, Senhora Allen — garantiu-lhe Vance. -— O sargento não demorará mais tempo do que o necessário. É preciso cuidar desses assuntos de forma legal e com todo cuidado. Prometo comunicar-lhe pessoalmente logo que o assunto fique resolvido... Além disso, terei muito prazer em ajudá-la e à sua filha de todas as outras formas que eu puder.
A mulher virou-se lentamente para Vance e estudou-o um instante. Uma expressão de confiança lhe transpareceu nos olhos.
— Minha filha — começou ela, baixinho. — Quero pedir-lhe uma coisa, em benefício dela. Isso significará tanto para ela e para mim, no momento. Por favor, eu lhe peço, não conte a minha filha ainda, o que houve com Philip. Vamos deixar para quando ela precisar mesmo saber, e então quero ser eu a lhe contar... Ela ficaria preocupada com coisas que, talvez, não sejam nem um pouco verdadeiras. Ela tem uma imaginação muito viva — herdada de mim — creio eu. Por que não deixar que ela tenha mais um dia, talvez mais dois dias, de felicidade? Só até que saibam o que realmente houve com meu filho...
Era evidente que o pedido da mulher fundava-se na desconfiança de que seu filho tivesse sido assassinado, e ela temia que uma dúvida semelhante pudesse torturar também à sua filha.
— Mas, Senhora Allen, — perguntou Vance — se guardarmos segredo deste assunto durante algum tempo, como é que a senhora vai explicar à sua filha a ausência prolongada do irmão dela? Sem dúvida, ela ficará preocupada com isso.
A Senhora Allen sacudiu a cabeça.
— Não. Philip costuma ficar fora de casa, com freqüência, e às vezes durante vários dias. Hoje ele disse que talvez saísse do emprego do restaurante e talvez fosse embora da cidade. Não, Gracie não suspeitará de nada.
Vance olhou para Heath, com uma indagação no olhar.
— Acredito, sargento, — falou ele — que seria humano e prudente atender ao pedido da Senhora Allen.
Heath concordou com um aceno vigoroso de cabeça.
— Sim, também acho, Senhor Vance. Creio que se pode dar um jeito nisso.
Um olhar de compreensão passou entre os dois e então Vance tornou a se dirigir à Senhora Allen.
— Nós temos muito prazer em lhe fazer essa promessa, senhora.
— E não aparecerá nenhuma notícia a respeito nos jornais? — indagou ela.
— Acho que isso também se pode arranjar — prometeu Vance.
— Obrigada — disse a Senhora Allen, com simplicidade. Nesse instante, um auxiliar entrou na sala e fez um sinal ao sargento, que se levantou e dirigiu-se para onde ele se achava. Os dois conversaram um pouco e saíram juntos por uma porta lateral. Alguns minutos depois, o sargento voltava e enfiava alguma coisa no bolso.
A Senhora Allen recuperara um pouco o seu autodomínio, e, quando o sargento veio novamente para junto de nós, ele sorriu para ela, para encorajá-la.
— Acho que já podemos levá-la de volta à sua casa. Levamos a Senhora Allen de volta ao seu apartamentozinho, de carro, e lhe demos boa noite.
Alguns minutos depois, nós três fomos à biblioteca de Vance. Eram duas horas e meia da madrugada.
— É uma mulherzinha estranha — murmurou Vance, enquanto servia um copo de conhaque para cada um de nós. — E é, também, de uma notável bravura. Não tive nenhuma preocupação pelo fato de a deixarmos sozinha na casa dela. Resistiu melhor do que eu esperava, depois de receber uma notícia tão chocante.
— Tenho conhecido muitas mulheres miúdas como aquela — comentou Heath — que são capazes de suportar golpes duros muito melhor do que um marmanjo de dois metros de altura.
— Sim, realmente... Não sei se seu esforço para poupar a filha será tão bem sucedido quanto ela espera. Gracie Allen não é nenhuma jovem comum... É sagaz, apesar da sua vivacidade estonteante.
— A velhinha facilitou tudo para nós — observou o sargento.
Vance confirmou, com um aceno de cabeça, enquanto bebericava o seu conhaque.
— Exatamente. Era justamente nisso que eu estava pensando, sargento. Não precisamos ter nenhuma preocupação a respeito de interferências até que o relatório do Dr. Doremus sobre a morte de Philip fique pronto. A Senhora Allen, sem dúvida, não nos apressará, pois acho que ela ficará agradecida pelo fato de termos poupado uma dor mais prolongada à sua filha. E, sem dúvida, Mirche achará preferível guardar sigilo sobre o acontecido... Ele não deseja nenhuma publicidade negativa relacionada com o seu restaurante... Quer fazer tudo que puder para manter o caso em segredo o tempo máximo que puder, sargento?
— Finalmente, o senhor está-me pedindo para fazer alguma coisa fácil — sorriu Heath. — Direi aos rapazes lá do Departamento de Homicídios para guardarem sigilo; e o senhor poderá investigar dois dias inteiros, sem que ninguém o importune.
Vance sorriu, aparentemente tranqüilo, mas ainda estava preocupado.
Heath acabou de tomar o seu conhaque e acendeu um charuto comprido e preto.
— A propósito, Senhor Vance, aqui está uma coisa que talvez lhe interesse. — Enfiou a mão no bolso do paletó e tirou uma pequena cigarreira de madeira, com uma granulação peculiar e com quadrados alternados de verniz claro e escuro, que lhe dava um desenho destacado de xadrez. — Encontrei-a entre os pertences de Allen, no necrotério.
— Mas por que, meu caro sargento, este objeto me interessaria?
— Bem, não sei ao certo, senhor. — Heath falava quase em tom de desculpa. — Mas sei que o senhor tem idéias sobre o que ocorreu esta noite, e eu não tenho.
— Mas não há nada de extraordinário no fato de que a vítima fumava cigarros.
— Não é isso, senhor. — Heath abriu a cigarreira e apontou para o canto interno da tampa da mesma. — Há um nome gravado a fogo ali dentro... Parece trabalho de amador. E acontece que o nome é ”George”. E esse não é o nome da vítima.
De repente, a expressão do rosto de Vance mudou. Ele se inclinou para diante e, tirando a cigarreira da mão de Heath, examinou a gravação tosca feita a fogo.
— As coisas não deviam acontecer assim... Não deviam, mesmo, sargento. O homem que Gracie Allen realmente ama se chama George. George Burns, para ser mais exato. O mesmo rapaz de quem falei hoje na casa de Markham. E o tal Burns estava no Domdaniel na noite de hoje. E Gracie também se encontrava lá. Junto com seu vistoso acompanhante o tal Senhor Puttle. E também Philip Allen e o untuoso Mirche. E a misteriosa Dixie Del Marr. E o sinistro ”Coruja” Owen. E a sombra ameaçadora de um abutre.
— Que acha disso, Senhor Vance?
— Sargento... Oh, meu sargento! — suspirou Vance. — Que é que se pode deduzir de tudo isso? Exatamente nada. É por isso que estou envelhecendo de maneira tão visível diante dos seus olhos. É por isso que os meus cachos de cabelo estão ficando brancos.
— Como acha que aquela cigarreira foi parar no bolso de Philip Allen, Senhor Vance? — E Heath continuava obstinadamente a abordar o problema.
— Pare de me torturar! — implorou Vance.
Heath pegou a cigarreira, fechou-a, com um estalido, e a recolocou no próprio bolso.
— Vou descobrir — disse ele, resolutamente. — Se Philip Allen não morreu de morte natural, e se esta cigarreira pertence ao tal Burns, juro que lhe arrancarei a verdade, mesmo que tenha de inventar um recurso novo para conseguir isso. Este caso está-me deixando torturado também, Senhor Vance. Tudo nele é desencontrado; e não gosto de nada que não faça sentido... Hei de encontrar o tal rapaz, e vou achá-lo esta noite. Nesta altura o Domdaniel já está fechado e, portanto, talvez ele já tenha ido para casa... se é que tem casa. Irei primeiro à fábrica. Como foi que disse que era o nome da fábrica, Senhor Vance?
— Fábrica de Perfumes In-O-Scent — disse Vance, sorrindo. — É um nome um tanto desalentador para dar início à procura de um suspeito... Não é, sargento? Mas espero que esse nome seja simbólico.
— Suas palavras são profundas demais para mim, senhor — queixou-se Heath, seguindo rumo à porta. — No momento, só tenho de me preocupar em encontrar o tal Burns.
Bem, sargento, quando você encurralar o Senhor Burns, podemos ou eliminar parte do enigma ou então pô-lo em algum lugar onde a peça do quebra-cabeças encaixe. — Suspirou fundo. — Estarei à espera da sua perfumada comunicação amanhã cedo.


CAPITULO IX
PRESO SOB SUSPEITA
(Domingo, 19 de maio — 10:30 horas)


Já eram quase dez e meia, na manhã de domingo, quando Heath chegou ao apartamento de Vance. Este se levantara pouco antes e achava-se sentado na biblioteca, envergando um roupão de mandarim, tomando sua refeição matinal, bastante frugal, com café turco. Acabara de acender o segundo cigarro, quando o sargento foi introduzido lá, com uma aparência um tanto cansada mas triunfante.
— Finalmente, eu o agarrei! — anunciou ele, sem parar a fim de cumprimentar.
— Arre, sargento! — Vance saudou-o. — Sente-se e descanse um pouco. Precisa tomar um pouco de café, para recuperar as forças. Sem dúvida, você se refere a Burns. Mas não me diga que você ficou a noite inteira acordado, investigando.
Heath sentou-se pesadamente.
— Sim, a verdade é que eu fiquei. E, se não se importa, Senhor Vance, quer colocar mais alguma coisa nesse café? Preciso reanimar-me.
Vance atendeu-o, sorridente.
— Fale-me a respeito das suas andanças noturnas, sargento.
— Bem, a verdade, senhor, é que ainda não o agarrei — corrigiu Heath. — Mas estou à espera de um telefonema para cá a qualquer instante, a ser dado por Emery... Eu o deixei vigiando a casa da Senhora Allen, e...
— A casa da Senhora Allen?
— Sim! É para lá que o sujeito vai.
— Sabe de uma coisa? Essa história parece tremendamente complicada.
— Não foi tão complicada assim, Senhor Vance — respondeu Heath. — Foi só muito trabalhosa... Quando saí daqui, ontem à noite, fui diretamente à Fábrica In-O-Scent e agarrei o vigia noturno da firma. Ele me levou pessoalmente para dentro do escritório, com sua chave-mestra, encontrou o livro de registro de empregados e me mostrou o nome de Burns com o endereço de um hotel de segunda classe que ficava a poucos quarteirões de lá. Fui até o hotel. Mas parece que Burns já estivera lá, trocara de roupas e saíra novamente. O recepcionista noturno me deu essa informação. Aí, mostrei-lhe a cigarreira, e foi então que tive um pouco de sorte. O sujeito estava disposto a jurar que Burns tem uma cigarreira igual a ela. Muitas vezes Burns pára a fim de bater papo com ele, quando chega tarde ao hotel.
— E — intrometeu-se Vance — é muito provável que lhe ofereça um cigarro durante as caçoadas.
— É isso, senhor... Depois, telefonei a Emery, lá no Departamento de Homicídios, para ele ir até o hotel e ficar de vigia, no caso de Burns pretender voltar. Depois que Emery chegou lá, fui à minha casa, onde dormi umas duas horas.
— E acaso o seu auxiliar interrompeu o seu sono com a notícia do desaparecido experimentador de perfumes?
— Não. Burns não voltou para o hotel. Por isso, às oito horas fui pessoalmente até lá, a fim de ver se conseguia descobrir mais alguma coisa com o recepcionista de serviço. E fiquei sabendo que ele e Burns, e mais dois outros sujeitos, amigos de Burns, algumas vezes sentam-se à mesa, jogando cartas no saguão do hotel, à noite. Um deles mora do outro lado da rua, mas disse que não vê Burns há vários dias. Mas ele me disse para procurar o outro sujeito, um tal Robbin, de Brooklyn, pois muitas vezes Burns passa a noite na casa de Robbin, principalmente as noites de sábado. Por isso, fui a Brooklyn. Não telefonei para a casa de Robbin, porque não desejava alarmar Burns. Levei mais de uma hora a encontrar a casa, que fica a meia dúzia de quarteirões fora da linha principal, em Bensonhurst, um local afastado.
— Que horrível odisséia matinal, sargento! — E Vance estremeceu, pesaroso. — E que aconteceu quando finalmente você chegou à choupana de Emaú?
— Como já disse, o nome do sujeito é Robbin. E ele não mora em uma choupana... Bem, perguntei-lhe por Burns, e ele me disse que Burns fora lá às três horas da madrugada, dizendo que estava deprimido e precisava de companhia. Robbin também me contou que Burns estava nervoso e não dormiu muito bem. Levantou-se cedo e já fora embora antes de eu chegar lá... Que acha de tudo isso, Senhor Vance?
— Acho que isso é muito parecido com o amor florescente em estado de suspense — falou Vance. — Ah, a doce crueldade da mulher!
— Não sei a que ponto o senhor quer chegar — replicou o sargento. — Mas parece-me que o homem tem peso na consciência. Principalmente pelo fato de Burns não ficar em casa... De fugir, por assim dizer... e por se ocultar lá no fim do mundo que se chama Bensonhurst... Em todo caso, quando mostrei a Robbin a cigarreira, ele a reconheceu imediatamente. Não se lembrava bem se ela estivera em poder de Burns na noite anterior. Perguntei a Robbin se ele tinha alguma idéia do lugar para onde Burns teria ido. O homem riu e disse que sabia para onde Burns fora, mas que não estaria lá antes das onze horas. Portanto, vendo que ele ainda não podia ter voltado para Nova York, telefonei para Emery, no hotel onde Burns mora, para ele ir vigiar a casa dela...
— A casa da Senhora Allen?
— Sim. Robbin disse que era lá que Burns estaria às onze horas da manhã. E ele não tinha nenhuma dúvida a respeito disso. Achei que isto era razoável. O senhor mesmo me disse que Burns era namorado da moça. E ele poderia ter a idéia de pedir a Gràcie e à mãe desta que o ajudassem, antes que o descobrissem. Por isso, voltei para Nova York, o mais depressa que pude. E aqui estou, fazendo meu relatório ao senhor e esperando o telefonema de Emery.
— Extraordinário! — murmurou Vance. — Que zelo! Você encaixou muitos fatos, e até com habilidade, enquanto estive apenas cochilando. E suponho que você faça mais progressos quando receber o chamado de Emery e acosse o jovem Burns.
— Claro que farei isso! — E então o sargento acrescentou: — Estou começando a pensar que o senhor realmente teve uma boa idéia ontem à noite, na casa do procurador distrital.
— Não sei... Em todo caso, vou junto com você, sargento.
— E Vance seguiu rumo à porta do quarto de vestir.
— Imaginei que o senhor quereria ir. Mas há uma coisa que lhe preciso pedir: deixe que eu resolva este caso à minha maneira.
— Oh, perfeitamente, sargento. — E Vance deixou a biblioteca.
Vance acabara de voltar para a sala, completamente vestido, quando o telefone tocou. Heath saltou da sua cadeira e já estava com o fone ao ouvido antes que Currie, o velho mordomo de Vance, pudesse alcançar o aparelho.
Era esperado o telefonema de Emery, e, depois de ouvir alguns instantes, Heath respondeu ansiosamente.
— Sim, estarei aí dentro de cinco minutos. — Bateu o receptor do telefone no descanso e, esfregando as mãos, satisfeito, seguiu rumo à porta. — Vamos, Senhor Vance. Finalmente, estamos fazendo progressos...
Quando dobramos a esquina da avenida Lexington, vimos Emery de pé do outro lado da rua, defronte à casa da mãe de Gràcie. O homem deu alguns passos na nossa direção e fez um aceno significativo de cabeça.
Heath grunhiu para denotar que já vira o sinal e deu ordens a Emery para entrar lá conosco.
Foi Gràcie Allen quem atendeu à porta, desta vez, quando tocamos a campainha. Avistou logo Vance e jogou as mãos para o alto, em um exuberante gesto de encantamento.
— Oh, olá, Senhor Vance! Sua presença aqui é maravilhosa! — disse ela, com voz musical, aparentemente quase flutuando.
— Como foi que descobriu onde moro? O senhor deve ser um detetive muito hábil...
Ao notar a presença dos dois homens sérios que nos acompanhavam, ela parou subitamente de falar.
— Estes dois senhores são da polícia, Senhorita Allen — informou-lhe Vance. — E viemos aqui para...
— Ah, coitado! Eles o agarraram, não é? — exclamou ela, muito desalentada. — Não é horrível? — E seus olhos se arregalaram. — Mas, sinceramente, Senhor Vance, não fui eu quem o denunciou. Eu não faria uma coisa dessas, de forma alguma. Não foi à toa que lhe dei minha palavra de honra...
Heath e Emery foram entrando na sala, passando por ela, e Vance lhe estendeu a mão.
— Por favor, minha querida — disse ele, ansiosamente. — Só um instante. Viemos aqui tratar de um assunto bem diferente.
Gracie afastou-se e recuou, impressionada pelos seus modos sérios; e Vance seguiu os dois policiais sala adentro.
Sentado em um sofá na parede oposta estava o jovem George Burns, visivelmente aborrecido com nossa intromissão. Heath já atravessara a sala rapidamente, na sua direção.
— Seu nome é George Burns, não é? — perguntou ele, em tom áspero.
— Sempre foi — retrucou Burns, com um ressentimento sombrio. — Quem quer saber?
— Espertinho, hem? — E Heath remexeu nos bolsos e depois perguntou, em tom conciliatório: — Tem um cigarro aí, Burns?
Burns tirou do bolso automaticamente um maço de cigarros.
— Quê? — exclamou o sargento. — Você fuma e não tem cigarreira?
— Ora, claro que ele tem! — afirmou Gracie Allen, toda orgulhosa. — Eu própria lhe dei uma de presente, no Natal passado... E era muito bonita, toda enxadrezada...
Vance a fez silenciar, com um gesto peremptório.
— Sim — confessou Burns. — Eu tinha uma, porém eu... eu a perdi ontem. — Parecia confuso com a maneira como estava sendo interrogado.
— Talvez seja esta aqui. — Heath disse isso com ênfase ameaçadora, enquanto colocava a pequena cigarreira debaixo do nariz de Burns.
Este, assustado e intimidado, fez um aceno de cabeça, de modo débil. Pegando a cigarreira, segurou-a contra as narinas e cheirou-a várias vezes. Depois, ergueu o olhar para o sargento.
— Beije-me depressa!
— Quê?! — explodiu Heath.
— Oh — murmurou Burns, embaraçado. — Esse é apenas o nome de um perfume bem conhecido para lenços. A fórmula leva erva-cidreira, almíscar, junquilho e...
— Ah, e eu sei o que mais — ajudou a Senhorita Allen, ansiosamente. — Jasmim e angélica...
Burns ficou zangado.
— Ora, essa é a fórmula do Ano Bissextox.
— Alto lá! — berrou Heath. — Afinal de contas, o que está acontecendo aqui?
Vance estava rindo tranqüilamente, no íntimo. O sargento arrancou a cigarreira da mão de Burns e a recolocou no bolso.
— Onde foi que você perdeu a cigarreira, ontem? Burns remexeu-se no sofá, inquieto.
— Bem, eu não a perdi, exatamente. Eu apenas... Bem, eu apenas a emprestei a alguém.
— Então, você emprestou um presente de Natal que lhe foi dado pela sua namorada, hem?
— Bem, também não a emprestei. — Burns ficou confuso. — Encontrei-me com um sujeito, a quem ofereci um cigarro. Depois, tivemos uma pequena discussão e acho que ele se esqueceu de...
— Claro! Ele foi embora e levou a cigarreira — retorquiu Heath, com enorme sarcasmo. — E você se esqueceu de lhe pedir que a devolvesse e deixou que ele a guardasse... como um presentinho seu a ele. Ótimo... E quem era esse sujeito?
Burns remexeu-se uma vez mais.
— Bem, já que insiste em saber... Foi o irmão de Gracie.
— Claro que foi! Você é muito esperto, não é? — E então uma nova idéia surgiu na cabeça do sargento. — Isso deve ter acontecido nas proximidades do restaurante Domdaniel, e por volta das quatro horas da tarde.
— Mas como foi que o senhor soube? — perguntou Burns, espantado.
— Quem faz as perguntas sou eu — cortou Heath, em tom ríspido. — E não foi uma discussãozinha, como você disse. A coisa quase chegou às vias de fato, não foi mesmo? Você estava muito zangado por algum motivo, não estava?
Burns olhou fixamente para o sargento, desalentado, e depois para Gracie Allen.
— Oh, meu Deus, George! — exclamou a moça. — Você e Philip estavam brigando novamente. Vocês dois não passam de dois moleques brigões.
Heath rilhou os dentes.
— Não se envolva nisto, boneca.
— Oh! — riu a moça, acanhada. — Foi disto que o Senhor Puttle me chamou, ontem à noite.
Heath voltou-se novamente para Burns, que estava muito aborrecido.
— Por que você e Allen estavam discutindo?
O homem rolou os olhos, numa expressão vaga, como se tivesse medo de responder e como se receasse não responder. Finalmente, gaguejou:
— Era por causa de Gracie... por causa da Senhorita Allen. Parece que Philip não gosta de mim. Ele me disse para me afastar desta casa. E depois disse que eu não sabia vestir-me... Que eu não era elegante como o tal Puttle...
— Bem, eu também tenho alguma coisa a lhe dizer. E é uma coisa elegante...
Vance deu uma palmadinha rápida em um dos ombros do sargento e lhe cochichou alguma coisa.
Heath endireitou o corpo e, girando nos calcanhares, apontou para a moça.
— Vá para a outra sala, senhorita. Tenho algo a dizer a este rapaz a sós... Entende? A sós.
— Isso mesmo, Gracie. — Fiquei surpreso por ouvir a voz tranqüila da Senhora Allen. Ela estava de pé, timidamente, alojada em uma pequena abertura entre as portas corrediças, ao fundo da sala. Eu não sabia quanto tempo ela estivera ali. — Venha comigo, Gracie, e deixe estes senhores com George.
A moça não discutiu, e foi com a mãe para o quarto dos fundos, e as duas fecharam as portas ao passar.
— E agora, vamos às más notícias, meu jovem — recomeçou Heath, avançando ameaçadoramente rumo ao confuso Burns. Mas Vance tornou a interrompê-lo.
— Um instante, sargento. Senhor Burns... Por que ficou tão surpreso com o cheiro que havia na sua cigarreira?
— Eu não... Eu não sei, na verdade. — Burns franziu o cenho. — Não é um perfume comum, e há muito tempo não o tenho encontrado. Mas no restaurante, ontem à noite, eu o notei, e muito forte, no saguão da frente, quando eu ia entrando no salão do restaurante.
— Quem o estava usando?
— Oh, eu não poderia saber. Havia tanta gente lá... Vance pareceu satisfeito e, com um gesto, entregou o rapaz novamente ao sargento.
— Bem, aqui está a notícia ruim — disse Heath a Burns, em tom áspero e de excesso de autoridade. — Nós encontramos um sujeito morto, ontem à noite... e a sua cigarreira achava-se no bolso da vítima.
A cabeça de Burns saltou para cima, com um puxão, e uma luz de espanto e susto lhe apareceu nos olhos.
— Meu Deus! — disse ele, sem fôlego. — Quem... Quem fez isso?
Heath deu um sorriso cruel.
— Eu nem posso imaginar. Talvez você possa.
— Não foi... Philip! — e Burns ficou sem voz. — Oh, meu Deus... Sei que não está aqui hoje. Mas ele saiu da cidade... Juro que ele saiu. Ontem, disse-me que ia para outra cidade.
— Você é esperto, mas não o bastante, embora tenha sido bem habilidoso, tentando jogar a culpa em outra pessoa, com aquela história de perfume. — Heath fez uma pausa e depois tomou subitamente uma decisão. Fez um breve sinal a Emery. — Nós vamos levar este rapaz conosco — anunciou ele. — Vamos deixá-lo onde possamos alcançá-lo com facilidade.
Vance tossiu discretamente.
— Então, você vai prendê-lo sob suspeita, não é, sargento? Ou, talvez, como testemunha material.
— Não me importa que nome se dê a isso, Senhor Vance. Ele vai ficar quietinho em um lugar de onde não possa sair, pensando muito na vida, até que tenhamos o relatório do Dr. Doremus... É melhor pôr-lhe as pulseiras, Emery, até chegarmos à esquina e chamar o tintureiro.
Heath e Emery estavam levando o atônito Burns para a porta, quando Gracie Allen voltou correndo para a sala, depois de se libertar das mãos da sua mãe, que tentava segurá-la.
— Oh, George, George! Que aconteceu? Para onde eles vão levá-lo? Tive um pressentimento... Como quando uso minha mediunidade...
Vance chegou até junto dela e colocou as duas mãos nos seus ombros.
— Minha querida menina — falou ele, em tom consolador. — Por favor, creia em mim quando digo que você não precisa preocupar-se com coisa alguma. Não torne a coisa mais difícil para o Burns... Não quer confiar em mim?
A jovem deixou pender a cabeça e virou-se para a mãe. Os dois policiais, com Burns entre eles, já haviam saído da sala; e, quando Vance se virou e tornou a abrir a porta, a voz delicada da Senhora Allen se fez ouvir novamente.
— Obrigada, Senhor Vance. Tenho certeza de que Gracie confia no senhor... como eu confio.
A cabeça da moça estava apoiada no ombro da mãe.
Oh, mamãe — disse ela, fungando. — Não me importa nem um pouco o fato de
George não se vestir com tanta elegância quanto o Senhor Puttle.


CAPITULO X
UMA VISITA INESPERADA
(Domingo, 19 de maio — 12:00 horas)

Quando o carro da polícia chegou e o infeliz Burns ia entrando no veículo para ser levado, Vance lhe sorriu de maneira a encorajá-lo.
— Ânimo — falou ele, e depois ficou vendo o tintureiro afastar-se. Logo que o veículo sumiu de vista, Vance tomou um táxi e foi imediatamente para o apartamento do procurador distrital.
— Realmente, Markham — começou ele. — O sargento Heath é lógico demais. Em condições normais, eu receberia de bom grado a providência dele, mas neste caso preciso pedir a sua intervenção.
Em seguida, fez um resumo a Markham de todos os acontecimentos que tinham ocorrido desde que nós saíramos do seu apartamento, na noite anterior. A visita ao necrotério e a promessa à Senhora Allen; o fato de Heath ter descoberto a cigarreira e a sua busca a Burns, a noite inteira; a entrevista com o estarrecido jovem, quando ele foi encontrado; e, finalmente, a decisão de Heath de deixar Burns preso até chegar o relatório de Doremus.
Markham ouviu atentamente, mas sem entusiasmo.
— Acho que, no todo, Heath fez um serviço muito inteligente. Não compreendo onde ou por que você deseja que eu intervenha.
— Burns é inocente — garantiu Vance. — E sou inflexível na minha crença. Portanto, desejo que você telefone para o distrito policial e diga a Heath para libertá-lo. Na verdade, Markham, insisto em que você faça isso. Mas, primeiro, desejo que o sargento traga o rapaz aqui, se você não se opuser a que ele venha à sua casa. Desejo que ele entenda claramente que uma das condições para a sua libertação é o sigilo absoluto, por enquanto, a respeito do fato de que Philip Allen está morto no necrotério. Foi isso que prometemos à Senhora Allen, e Burns precisa cooperar conosco, ao ser libertado. Por favor, faça logo isto, meu caro amigo.
— Você conhece o tal Burns? — indagou Markham.
— Eu só o vi duas vezes. Mas tenho meus caprichos, sabe?
— O que é um eufemismo como outro qualquer para o seu atual desequilíbrio mental... Por que deseja que esse rapaz seja libertado?
— Estou encantado pela ninfa dos bosques — sorriu Vance Markham uniu os lábios, aborrecido.
— Se eu não o conhecesse, diria que...
Ora, vamos, seja bonzinho e telefone logo ao Heath.
Markham levantou-se, resignado: ele conhecia Vance há muito tempo e sabia que, por trás dos seus gracejos, havia muitas vezes seriedade. Depois, foi rumo ao telefone.
— O caso é seu — falou ele — se é que há um caso, e você pode dirigi-lo à sua vontade. Já tenho minhas próprias dificuldades.
O sargento mal havia chegado ao distrito policial, quando Markham telefonou e lhe deu ordens de acordo com o pedido de Vance.
Quinze minutos depois, Heath entrava escoltando Burns na biblioteca do procurador distrital. Vance descreveu cuidadosamente as circunstâncias a Burns e lhe exigiu uma promessa formal de não revelar a ninguém a morte de Philip Allen, impressionando-o com relação à própria Gracie Allen dentro do assunto.
George Burns, com inconfundível sinceridade, prontamente concordou com a exigência, e o sargento lhe disse que estava livre para se retirar.
Mas, quando ficamos a sós, Heath desabafou.
— E depois de todo o trabalho que tive ontem à noite! — queixou-se ele, amargamente. — Encontrar a cigarreira; perder meu sono e fazer um trabalho difícil hoje cedo; amarrar aquele sujeito e levá-lo para onde eu o queria... E foi tudo idéia sua, Senhor Vance. E, agora, quando lhe encontro alguma coisa palpável, que faz o senhor? Manda soltar o passarinho!
E mascou furiosamente seu charuto.
— Mas, se pensa que não vou mandar vigiar aquele sujeito, então não é muito esperto, Senhor Vance. Mandei o Tracy para cá, antes de vir, e ele vai seguir o Burns a partir do instante em que ele sair deste prédio.
— Ora, mas é claro que eu esperava que você fizesse exatamente isso. — E Vance deu de ombros, de maneira agradável.
— Mas, por favor, sargento, não fique com uma impressão errônea do meu capricho de libertar o jovem misturador de perfumes. Vou-me empregar a fundo no sentido de resolver este caso intricado. E esperarei o relatório do médico legista, ansiosamente... A propósito, em meio à sua roda-viva de atividade, você ficou sabendo de alguma coisa a respeito da autópsia?
— Claro que fiquei — falou Heath. — Telefonei ao Dr. Doremus pouco antes de sair do posto policial. Ele brigou comigo, como sempre, mas disse que iniciaria a autópsia logo depois do almoço, e que logo à noite o relatório estaria pronto.
— Ótimo — suspirou Vance. — Eu o cumprimento, sargento, e peço desculpas por ter atrapalhado o seu plano, admirável mas inútil, de privar o Senhor Burns da sua liberdade. Mas espero que isso não distraia sua atenção do trabalho de proteção da vida de Markham contra a ameaça de Pellinzi.
— Nada me vai distrair nem me impedir que me preocupe com o Abutre e com o Senhor Markham — garantiu Heath. — Não se preocupe! Aquele escritório está sendo vigiado dia e noite, e há auxiliares valentes meus, prontos para agarrarem aquele facínora se ele aparecer.
O sargento retirou-se alguns minutos depois, e Vance e eu aceitamos o convite de Markham para ficar para o almoço.
Eram quase três horas quando nós voltamos para o apartamento de Vance. Currie veio ao nosso encontro na porta, mostrando-se muito preocupado.
— Estou horrivelmente perturbado, patrão — disse ele, em voz baixa. — Há uma jovem incrível aqui à sua espera. Tentei firmemente mandá-la embora, senhor, mas não consegui fazê-la compreender. Ela era muito resoluta e muito ousada, patrão. — Deu uma rápida olhada para trás. — Eu a tenho estado observando muito cuidadosamente, e tenho certeza de que ela não tocou em nada. Espero, senhor...
— Você está perdoado, Currie — Vance interrompeu as desculpas do preocupado velhote e, entregando-lhe o chapéu e a bengala, foi diretamente para a biblioteca.
Gracie Allen estava sentada na enorme espreguiçadeira de Vance, e estava sumida no imenso estofamento de veludo. Quando saltou de pé a fim de saudar Vance, foi sem a exuberância de antes.
— Olá, Senhor Vance — disse ela, em tom solene. — Aposto que não me esperava ver. E também que o senhor não sabe como descobri o seu endereço. E o velhote rabugento que me recebeu na porta também não me esperava ver. Mas ainda não lhe contei como descobri seu endereço. Foi da mesma forma usada para descobrir seu nome... Lendo-o no seu cartão de visitas. Embora na verdade eu não tenha vontade de ir buscar aquele vestido novo, amanhã. Talvez eu não vá. Isto é, talvez eu espere até saber que não aconteceu nada ao George...
— Alegra-me muito que você tenha sido esperta e tenha descoberto meu endereço. — E o tom de voz de Vance era suave. — E também estou encantado pelo fato de você continuar usando o perfume de cidra.
— Ah, sim! — E ela olhou para Vance, agradecida. — A princípio, eu não gostava muito deste perfume, mas, agora, não sei por que... eu o adoro! Não é engraçado? Mas creio na mudança de idéia dos outros. Suponha que...
— Sim — disse Vance, com um movimento de cabeça e um sorriso leve. — Só a fantasia tem consistência: os duendes e as fadas existem mesmo...
— Mas eu não creio em duendes... Isto é, não tenho acreditado desde meus tempos de criança.
— Não, claro que não.
— E, quando descobri que o senhor morava tão perto de mim, achei isso muito conveniente, pois eu tinha de lhe fazer um punhado de perguntas importantes. — Ela olhou para Vance, de baixo para cima, como se para ver qual a reação dele às suas palavras. — E, ah... eu descobri algo mais a seu respeito! Seu nome tem cinco letras... como o meu e o do George.
É o destino, não é? Se o senhor tivesse seis letras, talvez eu não tivesse vindo. Mas, agora, sei que tudo vai acabar bem, não vai?
— Sim, minha cara — disse Vance, com um aceno afirmativo de cabeça. — Tenho certeza de que vai.
De repente, ela deixou escapar o fôlego, como se tivesse afastado com sucesso um ponto controvertido.
— E, agora, quero que o senhor me conte exatamente por que aqueles policiais levaram o George. Estou muito assustada, preocupada e aborrecida, embora o George tenha-me telefonado, dizendo que estava bem.
Vance sentou-se de frente para a moça.
— Você não precisa se preocupar por causa do Senhor Burns — começou ele. — Os homens que o levaram hoje cedo cometeram a tolice de achar que havia circunstâncias suspeitas ligadas com a pessoa dele. Mas tudo se esclarecerá dentro de um dia ou dois. Por favor, confie em mim.
Havia completa confiança no olhar franco da jovem.
— Mas deve ter sido alguma coisa muito séria o que fez aqueles homens irem hoje à minha casa e aborrecerem tanto o George.
— Mas — explicou Vance — eles apenas pensavam que era séria. A verdade, minha amiga, é que um homem foi encontrado morto, ontem à noite, no Domdaniel e...
— Mas que é que o George poderia ter tido a ver com isso, Senhor Vance?
— Ora... Na verdade, tenho certeza de que ele não teve nada a ver com isso.
— Então, por que os policiais agiram de maneira tão esquisita a respeito da cigarreira que dei a George? Afinal, como foi ela parar nas mãos deles?
Vance hesitou vários instantes. Depois, pareceu ter tomado uma decisão quanto até que ponto esclareceria a moça.
— Para ser franco — explicou ele, com paciência — a cigarreira do Senhor Burns foi encontrada no bolso do homem morto.
— Oh! Mas o George não daria a outra pessoa um objeto que eu lhe dei de presente...
— Como eu já disse, acho que foi tudo um engano lamentável.
A jovem olhou para Vance durante longo tempo, com um olhar perscrutador.
— Mas suponha, Senhor Vance... Suponha que o tal homem não tenha morrido de morte natural. Imaginemos que ele tenha sido... bem, que tenha sido assassinado, como o senhor disse que matou aquele homem em Riverdale, ontem. E suponha que a cigarreira do George tenha sido encontrada no bolso dele. Tenho lido, nos jornais, que algumas vezes a polícia prende inocentes, julgando-os culpados de certos crimes, e de como... — ela parou, de repente, e levou as mãos à boca, horrorizada.
Vance inclinou-se e pousou a mão no braço da moça.
— Por favor, minha querida criança! — disse ele. — Você está recomeçando a acreditar em duendes. E não deve. Duende é coisa que não existe, é pura imaginação. Nada vai acontecer ao Senhor Burns.
— Mas podia acontecer! — E com isso mostrou que seus temores estavam apenas ligeiramente amenizados. — Não compreende? Podia! E o senhor tem de ser um detetive muito bom, se alguma coisa assim acontecer!
Havia uma expressão amedrontada e suplicante nos olhos
da moça.
— Hoje de manhã, depois da saída de George, fiquei terrivelmente preocupada. E sabe o que foi que fiz? Fui à casa de Delpha, conversar com ela. Eu sempre procuro Delpha quando estou em apuros... e algumas vezes até quando não estou. E ela sempre diz que se alegra em me ver, pois gosta da minha presença. Acho que é porque eu sou médium, uma médium forte. E a presença de médiuns faculta a concentração, sabe? A casa de Delpha é exótica. A princípio, dá arrepios na gente. Há cortinas pretas e compridas, penduradas por toda a casa, e a gente não vê janelas. E existe só uma porta. E, quando as cortinas pretas são puxadas, fechando a porta, a pessoa sente como se estivesse em algum lugar muito distante, em companhia de Delpha e dos espíritos que lhe contam coisas.
Gracie olhou ao seu redor e estremeceu ligeiramente.
— Além disso, nas cortinas pretas de Delpha existem grandes gravuras de mãos, com inúmeras linhas. E há também sinais esquisitos, que Delpha chama de símbolos. Em cima de uma mesa, existe uma bola grande de vidro e outra, pequena. E mapas dos astros, com palavras engraçadas ao redor, que significam alguma coisa, quando a gente é um caranguejo, um peixe ou uma cabra, ou coisas assim.
— E que foi que Delpha lhe disse? — perguntou Vance, com bondoso interesse.
— Ah! Eu não lhe contei, contei? — E o rosto da jovem se iluminou. — Delpha mostrou-se muito misteriosa e pareceu terrivelmente surpresa quando eu lhe falei a respeito de George. Ela me fez as perguntas mais esquisitas: todas sobre os homens que foram à minha casa e a respeito da cigarreira... Era como se ela estivesse tentando arrancar-me revelações. Acho que ela estava procurando ler meu pensamento, porque minha mente vibrava. E Delpha sempre diz que ajuda muito quando uma pessoa está bem concentrada ao consultá-la. Em todo caso, ela disse que nada vai acontecer ao George... como o senhor mesmo disse. Só que ela falou que eu preciso ajudá-lo...
A moça olhou ansiosamente para Vance.
— O senhor me ajudará a tirar o George de apuros, não ajudará? Mamãe falou que o senhor lhe disse que ia fazer tudo que pudesse por nós. Sei que posso trabalhar de detetive, se o senhor me ensinar. É que... Preciso ajudar o George, entende?
Intrigado e perturbado pelo pedido sincero da jovem, Vance levantou-se, pensativo, e caminhou até à janela. Finalmente, voltou para junto da sua cadeira e tornou a sentar-se.
— Então, você quer ser detetive! — disse ele, alegremente.
— Acho que é uma excelente idéia, e vou dar-lhe toda a ajuda que puder. Nós dois vamos trabalhar juntos; você será minha assistente, por assim dizer. Mas você precisa trabalhar muito. E precisa não deixar ninguém suspeitar que você está fazendo serviço de detetive... Essa é a primeira regra.
— Oh, é maravilhoso, Senhor Vance! É exatamente como em um romance policial. — E a moça ficou imediatamente animada.
— Mas, agora, diga-me o que preciso fazer para ser detetive.
— Muito bem — começou Vance. — Vejamos... Primeiro, é claro, você precisa anotar tudo que possa ajudar o seu trabalho. Pegadas em lugares suspeitos são um bom ponto de partida. Quando alguém caminha pisando em terreno macio, naturalmente deixa pegadas. E então, medindo essas pegadas, pode-se dizer que número de sapatos a pessoa usa...
— Mas suponha — interrompeu a jovem — que a pessoa estivesse usando sapatos de número maior, apenas para nos enganar?
Vance sorriu com admiração.
— Esta, minha criança — disse ele — é uma observação muito hábil. Já houve quem fizesse exatamente isso. No entanto, não creio que nos precisemos preocupar com essa questão, por enquanto... Agora, prosseguindo, o detetive deve sempre examinar os blocos de escrivaninha, à procura de pistas. Geralmente, o que é escrito em um bloco, na folha de cima, pode ser lido quando se leva a folha a um espelho.
Vance demonstrou isso para ela, e a jovem ficou tão fascinada como se estivesse vendo um mágico trabalhar.
— Além disso, outro ponto muito importante são os cigarros. Se o detetive encontra uma ponta de cigarro, talvez consiga dizer quem o fumou. Deve começar procurando uma pessoa que fuma a tal marca de cigarro. E algumas vezes a ponta de cigarro costuma revelar o fumante. Quando há batom na ponta de cigarro, então já se sabe que ele foi fumado por uma mulher que usava batom.
— Ah! — E de repente a moça ficou desolada. — Talvez, se eu tivesse examinado cuidadosamente o cigarro que queimou meu vestido, ontem, eu pudesse dizer quem o jogou.
— É possível — retrucou Vance, alegremente. — Mas há muitas outras maneiras de tirar a limpo as suspeitas que a gente tenha a respeito das pessoas. Por exemplo, se alguém tivesse ido cometer um crime em uma casa onde houvesse um cão vigia, e se o detetive soubesse que o cão não latiu com esse alguém, então poderia concluir que o criminoso era amigo do cachorro. Como é sabido, os cães não latem para as pessoas amigas.
— Mas suponha — interrompeu a jovem — que a futura vítima tivesse em casa não um cão, mas sim um gato, ou mesmo ... ou mesmo um canário. Que é que o detetive deve fazer, nesse caso?
Vance não pôde deixar de rir.
— Nesse caso, o detetive tem de procurar outras coisas que identifiquem o culpado...
— É aí que as pegadas vêm a calhar, não é? Mas há muita gente que usa o mesmo número de sapatos. Os meus servem perfeitamente nos pés da minha mãe. E, além disso, os dela servem em mim.
— Ainda há outras maneiras...
— Conheço uma! — interrompeu ela, triunfante. — Que tal o perfume? Por exemplo, se encontrássemos no local do crime uma bolsa de mulher, e essa bolsa cheirasse Frangipanni... e não uma que usasse Gardênia... Mas eu não seria muito hábil nisso, o senhor seria? Estou sempre confundindo os cheiros de perfumes. Isso deixa o George furioso. Mas ele seria simplesmente maravilhoso na hora de reconhecer o perfume de um criminoso. George é capaz de reconhecer imediatamente qualquer espécie de perfume e dizer de onde é que ele vem, e de falar tudo a respeito do mesmo... Mesmo quando não consigo sentir o cheiro de nada. Ele tem uma espécie de dom inato... Como quando ele cheirou a cigarreira, hoje de manhã... Mas, por favor, prossiga, Senhor Vance.
Realmente, Vance prosseguiu, durante mais de meia hora, ensinando-lhe cuidadosamente as coisas que, segundo ele sabia, interessariam à moça. Não havia nenhuma dúvida quanto à sua compreensão e simpatia, quando, na hora em que a jovem estava para ir embora, ele telefonou para Currie e lhe deu instruções bem claras.
— Esta moça, Currie, — falou ele — deve ser recebida sempre que vier aqui. Se eu estiver fora e ela quiser esperar-me, dê-lhe as boas vindas e ponha-a à vontade aqui.
Quando a Senhorita Allen se retirou, Vance me disse:
— A impressão de ter em quem se apoiar fará muito bem àquela pobre mocinha, no momento. Ela está muito infeliz e bastante assustada. A nova ocupação que ela imagina ter será para ela um tônico provisório, mas necessário... Desconfio, Van, de que estou ficando um tanto sentimental com o correr dos anos. Estou amolecendo com a idade, como as uvas da França.
E bebericou lentamente o seu conhaque.


CAPITULO XI
FOLCLORE E VENENOS
(Domingo, 19 de maio — 21:00 horas)

Naquela noite, Markham telefonou a Vance, às nove horas. Este ouviu atentamente durante vários minutos, e enquanto ouvia ia franzindo profundamente a testa, com uma expressão intrigada. Finalmente, pendurou o fone e virou-se para mim.
— Nós vamos ao apartamento de Markham. Doremus está lá. Isso não me agrada... Isso não me agrada nem um pouco, Van. Doremus telefonou a Markham, há poucos instantes, cheio de novidades e de mistério. Não sabia onde Heath se achava e, em todo caso, queria mesmo antes falar com Markham. Este deve ter localizado o mal-humorado sargento, e agora deseja que eu também vá até lá. Só um desastre cataclísmico poderia agitar o irascível Doremus o bastante para que ele fosse ao encontro do procurador distrital, em vez de apenas entregar seu relatório oficial. É muito intrigante...
Uns quinze ou vinte minutos depois, um táxi nos deixava bem defronte à casa de Markham. Um chamado em voz áspera nos fez parar no instante exato em que íamos entrando no prédio, e o sargento Heath surgiu, andando depressa.
— Acabo de receber o recado do procurador distrital, lá em casa, e vim correndo para cá — disse Heath, ofegante. — Acho que é uma coisa esquisita, Senhor Vance.
O mordomo abriu-nos a porta, e depois nós o seguimos para a biblioteca, onde Markham e o Dr. Doremus nos aguardavam.
O médico apertou os olhos e olhou para Heath com expressão malévola.
— Só poderia, mesmo, ser um dos seus casos — roncou ele, sacudindo um dedo na direção do sargento, com ar acusador. - Por que você nunca pode arranjar um assassinato simples e fácil, em vez de me trazer esses casos cabulosos? — E depois acenou a Vance, em uma fraca tentativa de parecer alegre.
Doremus era um homem pequeno e ardente, que dava mais a impressão de ser um rabugento corretor da Bolsa de Valores do que um cientista altamente eficiente.
— Estou ficando farto desses seus assassinos complicados — prosseguiu ele, falando com o sargento. — Além disso, desde o meio-dia que eu não como. Não posso comer direito nem aos domingos. Você e os seus cadáveres malucos!
O sargento sorriu e ficou calado. Ele conhecia Doremus há muito tempo, e desde então habituara-se a aceitar suas maneiras excêntricas e algumas vezes ranzinzas.
— Não, doutor — interrompeu Vance, em tom apaziguador. — O pobre do sargento é apenas um espectador inocente... Afinal de contas, qual é a dificuldade?
— O senhor também está trabalhando neste caso, hem? — retorquiu Doremus. — Eu já devia saber! Êi, o senhor não gosta de ver pessoas mortas a tiros ou a punhaladas, em um crime limpo e bonito, em vez de serem envenenadas, para que eu tenha de trabalhar o tempo todo?
— Envenenadas? — perguntou Vance, curioso. — Quem foi envenenado?
— O cadáver de que estou falando — gritou Doremus. — O sujeito que Heath me entregou para autopsiar. Esqueci o nome dele.
— Philip Allen — informou o sargento.
Pois bem, não importa. Ele estaria tão morto quanto está, qualquer que fosse o seu nome. E o que me deixa mais furioso é que não sei mais, sobre o que o matou, do que se ele fosse um zulu morto em Isipingo.
— O senhor falou em veneno, doutor — disse Vance, calmamente.
— Falei, sim — disse Doremus, em tom áspero. — Mas não sei que espécie de veneno. Não confere com nenhum dos meus livros sobre Toxicologia.
— Na verdade, isso não parece exatamente científico, sabe? — sorriu Vance. — Espero que não estejamos retrocedendo ao misticismo.
— Oh, é bastante científico — insistiu Doremus. — O veneno — seja qual for — foi, sem dúvida, absorvido pela derme ou pela membrana mucosa. Poderia ter sido um sem-número de venenos. Mas não consegui nenhuma reação clara com as provas de laboratório que geralmente dão resultados evidentes. Poderia ser uma combinação de drogas. — O médico grunhiu. — Contudo eu descobrirei o que é. Mas não esta noite. Talvez leve um dia. Nunca deparei com uma autópsia tão complicada.
— É fácil crer nisso de imediato — falou Vance. — Do contrário, o senhor não estaria aqui esta noite.
— Talvez eu não devesse estar. Mas este sujeito cacete — e apontou para Heath — não cessou de dizer que o caso era muito importante e que talvez tivesse relações com a segurança do Senhor Markham. Pareceu-me um logro, mas achei melhor dizer a ele que não podia fornecer um relatório definitivo esta noite. Ele que se preocupe... Tenho fome.
— Que é que tenho eu a ver com isto, sargento? — E o tom de voz de Markham continha uma censura aguda.
— O cadáver não estava no escritório de Mirche, chefe? — defendeu-se Heath, de forma agressiva. — E é lá que tenho estado alerta ao aparecimento de uma ameaça à sua vida... E Hennessey está de vigia lá, e tudo — concluiu ele, desajeitadamente, enquanto Vance o interrompia de chofre com um aceno de mão.
— Nós agradecemos o seu trabalho e a sua gentileza, doutor — falou Vance. — O senhor tem certeza absoluta de que Philip Allen não podia ter morrido de morte natural?
— Não, a não ser que a ciência médica tenha ficado completamente maluca — retrucou Doremus, de forma enfática. — Aquele sujeito foi envenenado... Disso tenho certeza. Não admira que o jovem Mendel tenha ficado desanimado com o caso. O que provocou a morte da vítima foi não só um veneno, mas ainda um veneno rápido e poderoso, capaz de produzir efeito imediato. Mas a droga atuou de maneira totalmente diferente daquelas cujo efeito estou habituado a ver nas vítimas cuja autópsia tenho feito.
— Mas, doutor — insistiu Vance. — O senhor deve ter alguma idéia do que tenha sido.
— Ora, tenho muitas idéias. É justamente essa a minha dificuldade: tenho idéias demais a respeito.
— Por exemplo?
— Bem, há o nosso velho amigo, o cianeto de potássio. Há muitos indícios de que seja ácido cianídrico. Acho que ele cheirou algumas vezes o gás cianeto e perdeu os sentidos. Os olhos esbugalhados e a cor da pele podem significar cianeto... e também podem significar outra coisa. E percebi um pouco do cheiro nos pulmões e na mucosa estomacal. Mas nada na boca, nem quando abri a cavidade craniana. Mas isso também não significa nada, principalmente pelo fato de terem aparecido muitas outras coisas que não significavam a presença de ácido prússico, de trás para diante ou de diante para trás, ou nos dois sentidos, a partir do meio.
— Acho que o Dr. Mendel falou em queimaduras, talvez uma reação local, nos lábios e na garganta. Que me diz disso?
— Sei lá... — E Doremus parecia aborrecido com o mundo inteiro. — O cheiro que senti nos pulmões dele indicava uma provável inalação de algum gás, conforme eu já disse.
— Poderia ter sido nitrobenzeno? — sugeriu Vance.
— Não sei... Sou apenas médico.
— Ora, vamos, doutor — falou Vance, bem-humorado. — Estou apenas tentando afastá-lo dos tóxicos antigos.
Doremus sentou-se com um movimento rápido e sorriu, à guisa de desculpa.
— Não o culpo, Senhor Vance. Estou aborrecido e com raiva. Talvez eu esteja falando como se tivesse andado metido com egípcios antigos, com mandrágora e venenos de víboras... Com poções ciganas secretas, com unguentos de bruxas com seus meimendros negros, com os venenos dos Bórgias, com água Perugia e com água Tofana...
— O senhor disse Tofana, doutor? — interrompeu Heath. — Esse é o nome da tal cartomante chamada Delpha, Senhor Vance. E acho que ela e o marido são perfeitamente capazes de envenenar uma pessoa.
— Não, sargento, não — corrigiu Vance. — A Tofana de que o doutor está falando morreu na Sicília no século dezessete. E não era cartomante. Longe disso. Ela dedicava seu talento a misturar um líquido que desde então ficou sendo conhecido pelo seu nome. Água Tofana era um veneno mortífero. E a tal mulher vendeu seu veneno em escala tão grande, que o nome do seu preparado nunca mais foi esquecido. Embora talvez sua mistura não passasse de uma solução forte de arsênico, ainda hoje há muito mistério ligado a esse preparado. E era a essa mulher, morta há vários séculos, que o Dr. Doremus estava se referindo.
— Ainda assim, digo que Rosa Tofana seria capaz de cometer a mesma infâmia —insistiu Heath, obstinadamente.
— Você parece espantosamente cheio de ódios e de desconfianças, sargento.
— Na minha profissão, eu tenho de ser assim — murmurou Heath.
Vance virou-se para Doremus.
Desculpe-nos por interrompermos, doutor. Parece que o caso que estamos atualmente investigando nos deixou a todos amargurados... Mas que me diz dos venenos tirados de flores? Seria difícil identificá-los, não seria?
— Não! Seria até bem fácil, mas levaria tempo. E eu os conheço todos. Acho que o senhor se refere: à colquicina, tirada do açafrão do campo; à heleborina, extraída da rosa-de-natal, à narcisina, tirada do narciso do prato, e à convalarina, extraída do lírio do vale... Coisas assim. Mas garanto-lhe que o veneno que deu cabo da vida de Philip não foi nenhuma droga suave como essas... Ou talvez... — E piscou um olho para Vance, astutamente. — Agora, é o senhor quem está falando a respeito dos assim chamados venenos do romance medieval. Bolas! A ciência moderna ri deles.
— Não... Oh, não. Não me extraviei até tão longe — riu Vance. — Estava apenas pensando no mascate ambulante de Londres, que vendia perfumes, e que perdeu os sentidos quando cheirou o óleo de mirbana que pusera nas flores para tornar o cheiro delas mais forte.
— Não é nada parecido com isso. — Doremus sacudiu a cabeça, desdenhosamente. — Estou apenas dizendo que ainda não sei o que foi que o tal Allen cheirou... Mas me dêem um pouco de tempo e amanhã descobrirei. E, além disso, não será uma coisa tão maluca quanto agora quer parecer.
— O senhor é capaz de dizer quando foi que ele morreu, doutor? — indagou Heath.
Doremus olhou furioso para o sargento.
— Ora, como iria eu saber? Não sou nenhum adivinho. Foi só hoje à tarde que vi o cadáver. — Sua raiva diminuiu quando ele viu a decepção de Heath. — Falei com o Dr. Mendel, mas ele não quis arriscar um palpite. Disse que não havia a rigidez de morte quando viu o cadáver pela primeira vez. Mas ninguém pode acompanhar o enrijecimento dos músculos com um cronômetro. O começo desse fenômeno é altamente variável e depende de vários fatores que incidem sobre ele. Pelo que pude saber, o homem podia ter morrido umas duas horas antes de ter sido encontrado, ou podia ter morrido até dez horas antes... Não sei, Mendel não sabe e nem os senhores sabem...
Depois que Doremus desabafou um pouco mais, deixou-nos, com um alegre aceno de mão.
— Bem, Vance — disse o procurador distrital. — Agora, como é que você pretende encaixar essa situação absurda na sua história?
Vance sacudiu a cabeça, pensativo.
— Não sei, Markham. Mas fique sossegado, que ela tem de encaixar em algum lugar, e ainda estou confuso diante dos diversos fatores convergentes do meu conto... E a sua referência aos Tofanas foi muito curiosa, sargento. Rosa Tofana, a sua amiga, está demonstrando uma estranha curiosidade a respeito do cavalheiro morto...
Vance levantou-se e caminhou várias vezes de um lado para outro.
— Ainda não confesso que estou derrotado, Markham. Existem muitas perguntas na minha mente, que clamam por respostas. Por exemplo, como foi que a vítima tornou a entrar na sala de Mirche, depois que Hennessey o viu lá, às seis horas?
— Hennessey devia estar olhando para outro lado — falou Heath, impassível.
— Isso não é provável, sargento. Aconteceu alguma coisa muito esquisita lá.
Vance ficou fumando algum tempo, em silêncio.
— Gostaria de ver as plantas da reforma do velho casarão, quando Mirche resolveu instalar o restaurante. Deve haver algo sugestivo nelas. Confesso que é um desejo estranho, mas eu gostaria de examiná-las.
— Não vejo o que adiantaria ver as tais plantas — falou Heath. — Mas, se quer mesmo vê-las, posso arranjá-las com facilidade para o senhor. Doyle e Schuster foi a firma que fez a reforma, e eu já tive negócios com o desenhista-chefe deles.
— Acho que isso ajudaria muito, sargento. Quando é que você poderia conseguir essas plantas para mim?
— Antes que o senhor se levante, de manhã — retrucou o outro, confiante. — Digamos, por volta das dez horas.
Markham parecia divertido.
— Por que não espera até Doremus mandar o relatório final?
— Tem toda razão — admitiu Vance, com relutância. — Gosto das coisas simples. Além disso, tenho de pensar em uma jovem muito suplicante.
— Eu lhe garanto — falou Markham, sem nenhuma pena — que depois de examinar as plantas, amanhã, você terá tempo de sobra para pensar na tal jovem suplicante.
— Não... Não, Markham — disse Vance sério. — Não é uma questão de leviandade...
Depois, ele contou, com pormenores, a visita patética feita a ele naquela tarde por Gracie Allen. Seu pedido de ajuda, sua preocupação por Burns, e as sugestões que ele, compadecido, dera para que a jovem mantivesse a mente ocupada.
— Eu e o sargento — concluiu ele — fizemos uma promessa à mãe dela. E, depois da visita inesperada da moça, hoje, quero encarecer a vocês dois a necessidade de mostrarmos consideração para com a jovem, sempre que ela resolver intrometer-se no nosso trabalho.
— Considero um prazer, para não dizer uma coisa rara, elogiar a sua meticulosidade sentimental — observou Markham. — Mas talvez eu não seja chamado a ajudar nesse logro caridoso. Acho que a situação cairá com violência sobre você e o sargento.
— Para mim, isso não tem importância, chefe — falou Heath. — A Senhora Gracie Allen é muito amável. E sua filha é muito bonita.
Vance sorriu, agradecido.
— Você terá de ser um tanto cuidadoso, sargento. O melhor modo de enfrentar a situação é não mostrar nenhuma pena, aparentemente. Isso poderia deixar a moça desconfiada. Devemos agir, em qualquer tempo, como se não soubéssemos mais,
a respeito da morte do seu irmão, do que ela própria. É preciso ser ator, sargento. Você seria capaz de representar?
— Claro que representarei! — E a voz de Heath era decidida e sincera. — Mas ainda não sou tão insensível que possa prometer não sentir um nó na garganta de vez em quando...
E o sargento parecia um tanto envergonhado da extravasação de sentimentos, tão inadequada para ele.
— Raios! — acrescentou ele, depressa. — Vou acabar sendo um daqueles ídolos de filmes infantis.

CAPITULO XII
UMA ESTRANHA DESCOBERTA
(Segunda-feira, 20 de maio — 9:00 horas)

Vance relutara em deixar o apartamento de Markham, na noite de domingo, e ficara lá até tarde. Mas, na manhã seguinte, levantou-se mais cedo do que o costume. Por volta das oito e meia, ele já estava completamente vestido e já tomara seu café. Pouco depois das nove horas, o sargento Heath chegou e entrou na biblioteca em passos largos e triunfantes.
— Aqui estão elas, Senhor Vance — anunciou ele, colocando um rolo comprido de papelão em cima da escrivaninha. — Se todos os meus trabalhos fossem tão fáceis de fazer como obter estas plantas para o senhor, eu jamais morreria de excesso de serviço.
— Céus, que eficiência!
Vance tirou as plantas do invólucro e estendeu-as em cima da escrivaninha. Estudou-as todas, minuciosamente, examinando separadamente a planta de cada piso. No entanto, dedicou mais tempo à planta do andar térreo, que incluía o salão do restaurante, o saguão de entrada e as salas onde eram guardados os abrigos dos fregueses, onde ficava a cozinha e onde estava instalado o escritório. O sargento ficou observando-o com uma expectativa divertida.
— Muito convencional — murmurou Vance, tamborilando nas folhas com o dedo. — Umas plantas muito boas. Feitas com inteligência. Nada mais, nada menos. Triste... Muito triste.
Nesse instante, Gracie Allen chegou, inesperadamente. Entrou na bibblioteca antes de Currie, tornando supérfluo que ele a anunciasse.
— Oh, eu tinha de vê-lo, Senhor Vance! Não sei por que, mas parece que não estou fazendo nenhum progresso, e trabalhei com tanto afinco. Sinceramente, eu trabalhei!
— Caramba! Minha jovem... — Vance falou em tom agradável. — Por que não está trabalhando na fábrica, hoje?
— Não pude ir ao trabalho — retorquiu ela. — Por enquanto, não posso. Estou pensando em tanta coisa ao mesmo tempo... Isto é, em coisas terrivelmente importantes. E tenho certeza de que o Senhor Doolson não se importará... George também não foi trabalhar. Telefonou-me, ontem à noite, e disse que não podia fazer nada na fábrica. Está muito transtornado.
— Bem, talvez, afinal de contas, Senhorita Allen, alguns dias de descanso...
— Oh, mas eu não estou descansando. — Ela pareceu magoada. — Estou terrivelmente ocupada o tempo todo. O senhor mesmo disse que preciso manter-me ocupada, lembra-se? — Ela avistou Heath, e uma expressão de medo lhe veio aos olhos grandes, ao reconhecer o sargento.
Vance amenizou a situação, apresentando Heath em tom indiferente.
— Ele também está trabalhando conosco no caso — acrescentou Vance. — Você pode confiar no sargento. Expliquei-lhe o seu engano de ontem e agora ele está do nosso lado... Além disso — prosseguiu Vance, alegremente — ele também tem cinco letras no nome.
— Oh! — E seus temores foram um tanto diminuídos por essa informação, embora ela olhasse novamente para Heath com ar incerto antes de romper em um sorriso leve. Depois, a jovem apontou para a escrivaninha. — Que são aqueles papéis azuis, Senhor Vance? Não estavam ali ontem. Talvez sejam uma pista ou algo parecido. São mesmo?
— Não, receio que não. São apenas plantas do Domdaniel, onde você esteve na noite de sábado...
Oh, posso dar uma olhada?
— Sem dúvida — respondeu Vance, e se curvou sobre a escrivaninha ao lado dela. — Veja, este é o grande salão de refeições e a porta de entrada que vem do corredor. E aqui fica a cozinha, além da porta lateral. E nesta parte fica a alameda que passa embaixo do arco. E neste canto fica o escritório, com a porta que dá para o terraço. E...
— Espere um instante — interrompeu a moça. — Na verdade, isto não é um escritório.
Gracie curvou-se mais perto, sobre a planta, e acompanhou o traçado dos corredores com um dedo, eliminando-os à medida que os acompanhava. Acabou seguindo o contorno do pequeno aposento. Depois, ergueu o olhar.
— Ora, mas esse é o quarto particular de Dixie Del Marr. Ela própria me contou isso... Não acha que ela é linda, Senhor Vance? E como canta bem... Gostaria de poder cantar como Dixie. Canta canções clássicas...
— Tenho certeza de que a senhorita canta muito melhor do que ela — disse-lhe Vance, de maneira galante. — Mas acho que está enganada ao afirmar que esse é o quarto de Dixie. Na verdade, é o escritório de Mirche, não é, sargento?
— Claro que é!
Gracie Allen curvou-se ainda mais sobre as plantas.
— Oh, mas é o quarto em que eu estive — garantiu ela, de maneira terminante. — Vou-lhes mostrar: aquela janela dá para a alameda. E aqui fica a rua, para onde dão aquelas janelinhas. Aqui na planta até diz ”rua Cinquenta”. Ora, tem de ser o quarto da Senhorita Del Marr. E a gente não pode ter dois quartos no mesmo lugar, mesmo em uma planta... Pode?
— Não, seria absurdo...
— E as paredes não são todas pintadas de lilás? E não há três ou quatro cadeiras grandes de couro ao longo desta parede? E não há um enorme peixe morto, em uma tábua, pendurado aqui? — E ela ia apontando para a localização dos objetos, enquanto falava. — E não há um candelabro pequeno, de vidro, muito engraçado, pendurado no... Oh, onde fica o teto, Senhor Vance? Não vejo nenhum teto nesta planta.
Heath tornara-se altamente interessado nas análises da jovem.
— Claro — falou ele. — As paredes são de uma espécie de cor de púrpura, e Mirche diz que pescou aquele peixe lá na Flórida. Ela tem toda razão, Senhor Vance... Mas escute aqui, moça, quando foi que esteve naquele cômodo?
— Ora, eu estive lá ainda na noite de sábado.
— Quê?! — berrou Heath. Gracie ficou assustada.
— Será que eu disse alguma coisa errada? Não tive intenção de entrar lá. Foi por acaso...
Agora, foi Vance quem falou.
— A que horas, durante a noite, você entrou lá, Gracie?
— Ora, Senhor Vance. Foi quando fui à procura de Philip, às dez horas da noite... Mas não o encontrei. Ele não estava em parte alguma. E também não veio ontem para casa. Acho que foi tirar umas férias fora da cidade. E prometeu que não deixaria o emprego.
Vance acabou com a tagarelice sem objetivo da jovem.
— Não vamos falar em Philip agora. Diga-me apenas como foi que você se dirigiu ao terraço à procura do seu irmão, quando, na realidade, o que você queria era ir para os fundos do restaurante.
— Não fui para o terraço. — Gracie sacudiu a cabeça, de maneira enfática. — Afinal de contas, para que eu desejaria ir ao terraço? Eu me resfriaria, pois estava trajando um vestido muito fino. Não acha que era um vestido lindo, Senhor Vance? Foi a mamãe também que o fez.
— Sim, você estava encantadora nele... Mas deve ter-se esquecido, pois o único jeito de entrar naquele quarto é pelo terraço.
— Oh, mas eu entrei por outro caminho... Entrei pela porta dos fundos. — Ela apontou para a parede que ficava diretamente em frente à porta da rua do escritório de Mirche; depois, seus olhos se arregalaram, quando ela examinou a planta. — Há alguma coisa muito estranha aqui, Senhor Vance. Quem fez esta planta não teve muito cuidado.
Vance aproximou-se mais dela. O sargento também chegou mais para perto, e ficou ao lado dos dois, com um ar de expectativa e curiosidade, com o charuto erguido no alto.
— A senhorita acha que deveria aparecer outra porta nesse lugar? — indagou Vance, baixinho.
- Ora, é claro! Porque há uma porta ali mesmo. Do contrário, como poderia eu ter entrado no quarto de Dixie Del
Marr? Mas o que não posso imaginar é por que ela conserva aquele peixe lá no seu quarto. Não vejo nenhuma beleza nisso. . .

— Não se preocupe com o peixe. Olhe aqui para a planta um instante. . . Agora, aqui está o arco pelo qual você deixou o salão de refeições.. .

— Sim. O que tem a grande escada trabalhada defronte.

— E agora, vejamos, você deve ter entrado por aqui, no corredor. . .

— Isso mesmo. George queria que eu ficasse para falar com ele, mas eu tinha pressa. Por isso, voltei direto, até passar por outro corredor pequeno. E então fiquei sem saber em que direção seguir.

— Você deve ter entrado nessa passagem estreita e caminhado até este ponto aqui. — Vance parou o lápis com o qual estivera acompanhando, na planta, o roteiro seguido pela moça.

— Foi exatamente o que fiz! Como foi que o senhor soube? Estava-me observando?

— Não, Gracie — respondeu Vance, com paciência. — Mas talvez você esteja um tanto confusa. Há uma porta aqui, na extremidade desta estreita passagem, onde você diz que desceu.

— Sim, eu vi a tal porta. Cheguei até a abri-la. Mas não havia nada lá, apenas a alameda de entrada de carros. Nesse momento compreendi que estava perdida. E então, quando eu estava lá, de pé, encostada à parede e imaginando como iria encontrar Philip, essa outra porta de que eu lhe estava falando — a que leva para dentro do quarto de Dixie Del Marr — abriu-se atrás de mim. — A jovem deu um riso abafado, como se estivesse pensando em alguma piada que fosse contar em seguida. — E eu caí dentro do quarto! Foi muito embaraçoso, mas não estraguei meu vestido. E poderia tê-lo rasgado, caindo daquela maneira. .. Mas acho que a culpa foi apenas minha, por não ter olhado onde me estava encostando. Mas eu não sabia que havia uma porta ali. Não vi porta nenhuma. Em todo caso, lá estava eu, dentro do quarto. Não é uma tolice? Não ver uma porta e apoiar-se nela, e depois cair através dela dentro do quarto de Dixie? — Ela riu de maneira encantadora, ao lembrar-se do que lhe acontecera.

Vance levou a moça para uma cadeira e arrumou um travesseiro para ela.

— Sente-se ali, minha querida — falou ele. — E contenos tudo a respeito do que aconteceu com você.

— Mas eu já lhes contei — falou ela, ajeitando-se de maneira confortável. — Foi muito engraçado, e fiquei muito embaraçada. A Srta. Del Marr também ficou embaraçada. Ela me disse que aquele era seu quarto particular. Por isso, eu lhe disse que lamentava muito o acontecido e lhe expliquei que estava procurando meu irmão. Ela até conhecia Philip. Acho que era porque ambos trabalhavam no mesmo lugar, como eu e George. . . E depois ela me levou de volta ao corredor e apontou o caminho certo para o patamar da escada da cozinha. Foi muito boazinha para comigo. Bem. . . Esperei muito tempo, mas Philip não apareceu. Por isto, voltei para junto do Sr. Puttle. Eu sabia encontrar o caminho de volta. . . E agora, Sr. Vance, quero fazer-lhe mais algumas perguntas a respeito do que o senhor disse ontem. . .

— Eu teria muito prazer em responder a elas, Srta. Allen

— disse Vance. — Mas, na verdade, não tenho tempo, esta manhã. Talvez depois, à tarde. Não se importará, não é?

— Oh, claro que não. — A jovem saltou de pé, agilmente.

— Também tenho algo muito importante a fazer. E talvez George vá à casa da minha mãe, passar alguns minutos conosco.

— Ela apertou a mão de Vance, fez um movimento de cabeça na direção de Heath, arisca e um instante depois se retirara.

— Com mil gafanhotos! — explodiu Heath, quase antes que a porta se fechasse atrás de Gracie Allen. — Eu não lhe disse que o tal Mirche era um sujeito esperto? Então, ele tem uma porta secreta! Mas aquela boneca tonta não a viu... Claro que não a viu! Alguém deve ter sido descuidado.. . Ela se encostar a uma porta invisível e cair dentro do quarto.. . E exatamente dentro do quarto onde mataram seu irmão! É a maior!

Vance deu um sorriso leve.

— Mas, afinal de contas, sargento, não há nenhuma lei que proíba um homem de ter uma porta secreta para o seu escritório. E essa, sem dúvida, é a nossa resposta a como teria o morto ido parar lá dentro sem que fosse visto por Hennessey. Mas alguém deve ter estado lá dentro com ele. Não foi Mirche, que estava à minha mesa entre dez e onze horas da noite. E, sem dúvida, não havia nenhum morto lá dentro às dez horas da noite.

— Mas o senhor não pensa...

— Faça silêncio algum tempo, sargento. — E Vance andava de um lado para outro.
— Gostaria de ir ao Domdaniel e arrombar aquela porta falsa! — declarou Heath, violentamente.
— Não... Oh, não — aconselhou Vance. — Você não deve ser tão impetuoso. Precisa ser fino. Que essa seja a nossa palavra de ordem, por enquanto.
— Ainda assim — disse Heath, resolutamente — se o Domdaniel for o quartel-general de uma quadrilha de meliantes, como sempre desconfiei, nada me daria mais prazer do que esmagar todo aquele prédio, e Mirche também, junto com o resto.
— Tem uma natureza impulsiva demais, sargento — censurou Vance. — Ninguém pode rebentar a casa dos outros sem provas da culpa da pessoa.
— Estou apenas dizendo o que eu gostaria de fazer.
— E outra coisa, sargento: Mirche seria apenas um elo secundário na sua imaginária cadeia criminosa. Como eu disse, ele está longe de ser um líder de homens.
— Pois ele me parece bastante esperto — insistiu Heath, mansamente. — Em todo caso, o tal de ”Coruja” Owen, com quem o senhor estava preocupado, deve ser um dos chefes.
— É verdade — disse Vance, pensativo. — Mas ele era apenas um companheiro de jantar, quando o vi. Muito correto e comedido. Embora eu confesse que sua presença lá, naquela noite, não me agradou, com tantas outras coisas esquisitas juntando-se sem significarem nada. — Vance fez um gesto vago. — Acho que podemos esquecê-lo, por enquanto, para nos concentrar em estabelecer quem matou o pobre sujeito.
— Mas como? Investigando um pouco mais de perto a respeito de Mirche?
— Exatamente, sargento. E também não deixarei de investigar a respeito de Dixie Del Marr, depois daquela espantosa informação sobre a porta falsa que dá para seu quarto particular.
— E como pretende fazer isso, Senhor Vance?
— Bem abertamente, sargento. Vou até lá bater um papo. Por falar nisso, onde é que Mirche mora?
— Isso é fácil — informou Heath. — Mora no primeiro andar do Domdaniel.
— Foi o que imaginei... E você poderia responder com igual facilidade, se eu lhe perguntasse onde mora a Senhorita Del Marr?
— Claro — grunhiu Heath. — Eu não teria durado tanto tempo no Departamento de Homicídios, se não soubesse onde moram as pessoas que considero suspeitas de estarem tomando parte em patifarias ou em crimes. O senhor a encontrará no Hotel Antler, na Rua Cincoenta e Três.
— Você é um fundo de informações, sargento — elogiou Vance.
— Quando pretende ir falar com eles, Senhor Vance? E que faremos, depois?
— Tentarei comunicar-me com Mirche e com Dixie Del Marr hoje de manhã. Em seguida, esforçar-me-ei para conseguir que Markham almoce comigo. Depois, ficaria encantado em me encontrar novamente com você, aqui, às três horas da tarde.
— O caso continua sendo seu, Senhor Vance — murmurou Heath. — E eu não lhe direi como conduzi-lo. — E ele ficou mais meia hora antes de se retirar.
Depois, Vance telefonou para Markham, e em seguida sentou-se e acendeu um cigarro, de maneira mais deliberada do que de costume.
Mais outra faceta espantosa na pedra preciosa, Van — falou ele. — Markham estava para me telefonar quando me ligaram com seu gabinete. O Senhor Doolson — o tal da fábrica de perfumes In-O-Scent — estivera lá e fora embora. Markham prometeu contar-me a história da sua visita mais tarde, quando nos encontrarmos, e parecia muito divertido. Devemos encontrar-nos no seu gabinete por volta da uma hora da tarde. Eu disse a ele que, se não estivéssemos lá até as duas horas, ele deveria mandar uma pelotão dos nossos bravos rapazes dar uma batida no Domdaniel.

CAPITULO XIII
NOTÍCIAS DE UMA CORUJA
(Segunda-feira, 20 de maio — 11:00 horas)

Às onze horas, Vance foi ao Domdaniel. Não teve nenhuma dificuldade em falar com Mirche. Após uma espera de apenas cinco minutos, o proprietário do restaurante entrou na sala de recepções onde estávamos esperando. Cumprimentou Vance de maneira efusiva, embora me desse a impressão de que estava representando um papel bem ensaiado.
— A que devo esta visita inesperada, Senhor Vance? — indagou ele, amavelmente.
— Eu queria apenas conversar com o senhor a respeito do pobre coitado que foi encontrado morto aqui na noite de sábado. — Vance falou com indiferença, embora em tom agradável.
— Ah, sim. — Se Mirche ficou surpreso, disfarçou muito bem. — Claro, se for a respeito da família dele, teremos prazer em ver o que pode ser feito. Naturalmente, eu gostaria de evitar escândalos, pois isso prejudicaria a freqüência ao nosso restaurante. Foi um acidente lamentável. Mas... É melhor irmos para o meu escritório.
O homem foi na frente ao longo da sacada e, abrindo a porta, afastou-se para um lado a fim de que entrássemos na sua frente. Vance sentou-se em uma das grandes cadeiras de
couro e Mirche sentou-se em outra, mais ou menos de frente — para Vance.
— A polícia tem feito muitas perguntas a respeito do caso — começou Mirche. — Mas eu esperava que, nesta altura, todo esse assunto já estivesse sido resolvido.
— Sei que estas coisas são muito importunas — falou Vance. — Mas há um ou dois pontos, nessa situação, que me interessam um pouco.
— Pois me surpreende muito que se interesse por esse caso, Senhor Vance. — Mirche falava em tom frio e delicado. — Afinal de contas, o homem era apenas um lavador de pratos. Eu o mandara embora antes da hora do jantar. Ele reclamou que seu salário era muito baixo e não chegamos a um acordo a respeito do assunto. Não entendo por que ele teria voltado, a não ser que houvesse pensado melhor e quisesse ser readmitido. Foi lamentável ele morrer no meu escritório. Mas não parecia ser um sujeito particularmente robusto, e acho que nunca se pode saber quando o coração vai estourar... A propósito, Senhor Vance, já foi determinada a causa da morte?
— Não, acho que não — respondeu Vance, sem se comprometer. — No entanto, não é isso que interessa, no momento. O fato, Senhor Mirche, é que havia um policial na rua, lá fora, na noite de sábado, e ele insiste em que não viu esse seu lavador de pratos entrar aqui no seu escritório, depois que foi visto saindo dele, por volta das seis horas.
— Talvez ele não o tenha notado — falou Mirche, com indiferença.
— Não, não... O policial, que, a propósito, conhecia Philip Allen, tem certeza absoluta de que a jovem vítima não entrou no seu escritório, pelo lado da sacada, a noite inteira.
Mirche ergueu o olhar e estendeu as mãos.
— Mas, assim mesmo, insisto, Senhor Vance...
— Seria possível que o tal Philip tivesse alcançado este aposento por outra entrada? — Vance fez uma pausa momentânea e olhou ao redor. — Talvez tivesse entrado por aquela pequena porta que há na parede dos fundos.
Mirche ficou um instante calado. Olhou fixamente para Vance, com expressão astuta, e os músculos do seu corpo pareceram retesar-se. Se algum dia vi uma fotografia viva de um homem pensando depressa, Mirche era o retrato vivo desse homem.
De repente, o homem soltou uma risada curta.
— E eu pensava que havia guardado tão bem o meu segredinho... Aquela porta é invenção minha, apenas para meu uso particular, o senhor compreende. — Levantou-se e foi até o fundo da sala. — Vou-lhe mostrar como ela funciona. — Apertou um pequeno medalhão, no lambril, e uma folha de porta, que não teria nem meio metro de largura, girou sem ruído para dentro do aposento. Do outro lado ficava o estreito corredor no qual Gracie Allen perdera o rumo.
Vance olhou para as dobradiças ocultas da porta secreta e depois se afastou, como se a revelação não fosse nenhuma novidade para ele.
— Muito hábil — disse ele, em sua voz arrastada.
— É muito conveniente — falou Mirche, fechando a porta. — Uma entrada particular que liga o restaurante ao meu escritório. Como vê, Senhor Vance...
— Ah, sim, sem dúvida. É muito útil quando a gente quer-se isolar um pouco do resto do mundo. Sei que certos corretores de Wall-Street têm portas assim. E acho que com razão... Mas como é que o seu lavador de pratos teria tomado conhecimento da existência de tal porta?
Mirche coçou o queixo, pensativo.
— Ora, não sei... Embora seja perfeitamente possível, é claro, que algum empregado do restaurante haja visto quando abri a porta... Ou talvez tenha descoberto casualmente o segredo.
— A Senhorita Del Marr sabia dele, não sabia?
— Oh, sim — confessou Mirche. — Ela, às vezes, me ajuda aqui um pouco no trabalho. Não vejo nenhum motivo para não a deixar usar a porta, quando ela quer.
Era evidente que Vance fora colhido de surpresa pela franqueza de Mirche, e logo mudou a conversa para outros assuntos. Fez inúmeras perguntas a respeito de Allen e depois voltou aos acontecimentos da noite de sábado.
No meio de uma das perguntas de Vance, a porta da frente abriu-se e Dixie Del Marr apareceu na soleira da porta. Mirche convidou-a para entrar e imediatamente nos apresentou.
— Eu estava justamente falando a estes senhores — disse ele, rapidamente — a respeito da entrada secreta que existe para este aposento. — E forçou uma risadinha. — O Senhor Vance parecia pensar que devia haver alguma ligação misteriosa entre isso e...
Vance ergueu a mão, protestante em tom agradável.
— Infelizmente, acho que o senhor imaginou significados ocultos nas minhas palavras, Senhor Mirche. — Depois, sorriu para Dixie Del Marr. — A senhorita deve achar aquela porta muito útil.
— Ah, sim... Principalmente quando o tempo está ruim. Na verdade, ela tem sido muito útil. — Ela falou em tom de voz indiferente, mas havia uma dureza, quase amargura, na expressão do seu rosto.
Vance a estava examinando atentamente. Eu esperava que ele a interrogasse a respeito da morte de Allen, pois sabia que fora essa a sua intenção. Mas, realmente, ele tagarelou descuidadamente a respeito de coisas banais, completamente sem relação com o assunto que nos levara ali.
Pouco antes de despedir-se, ele disse à Senhorita Dixie Del Marr, em tom de voz conciliatório:
— Desculpe-me se pareço pessoal, mas não posso deixar de admirar o perfume que a senhorita está usando. Eu arriscaria um palpite... Seria, acaso, uma mistura de narciso e rosa?
Se a mulher ficou atônita com o comentário de Vance, não deu nenhuma demonstração.
— Sim — respondeu ela, com indiferença. — Tem um nome ridículo... Completamente indigno dele, creio eu. O Senhor Mirche também usa o perfume... Tenho certeza de que por influência minha. — Dirigiu um sorriso convencional ao homem, e novamente notei a dureza e a amargura das suas maneiras.
Nós nos retiramos pouco depois disso e, enquanto caminhávamos ao longo da Sétima Avenida, Vance mostrava-se de uma seriedade fora do comum.
— O nosso Senhor Mirche é muito esperto — murmurou Vance. — Não compreendo por que não ficou mais preocupado a respeito da porta secreta. Mas ele está preocupado. Oh, e muito. É muito esquisito... Não precisei interrogar Dixie. Mudei de idéia a esse respeito no instante em que ela falou tão suavemente e olhou para Mirche. Havia ódio, Van. Ódio cruel e apaixonado, e ambos usavam Beije-me Depressa. Oh, que tem esse perfume a ver com o nosso caso? É curioso...!
Markham nos falou, em seu gabinete, acerca da visita de Doolson, acontecida naquela manhã.
-— O homem está desesperadamente preocupado, Vance, e pelo motivo mais incrível. Parece que tem uma opinião muito elevada a respeito da habilidade do jovem Burns. Acha que sua fábrica de perfumes não poderia funcionar sem o rapaz. Está convencido de que Burns é quem tem a chave do sucesso contínuo da sua empresa. E falou mais coisas assim, de espantosa tagarelice.
— Não foi tagarelice, de forma alguma, Markham — interrompeu Vance. — Doolson talvez tenha toda razão de considerar muito Burns. Foi este quem preparou as fórmulas para a In-O-Scent e salvou Doolson da falência. Compreendo exatamente o que ele quis dizer.
— Bem... Parece, também, que as vendas da firma só são efetuadas em determinadas épocas, e que se aproxima, agora, a fase de vendas mais altas. Doolson investiu uma fortuna em uma campanha de vendas, e precisa imediatamente de vários e novos perfumes populares. E acha que só Burns pode preparar-lhe tais perfumes.
— Isso é interessante e plausível. Mas por que a visita dele ao seu gabinete?
— Parece que Burns não compareceu ao emprego e que não irá mais lá até que fique livre de suspeitas no caso Allen. Burns está nervoso e, creio eu, bastante amedrontado. Não pode trabalhar, não pode pensar, não pode experimentar perfumes ... Está completamente desorientado. E Doolson está muito aflito. Hoje cedo, conversou com o rapaz e ficou sabendo dos motivos da sua recusa obstinada em voltar para o trabalho. Burns lhe disse que o caso estava sendo abafado temporariamente, e não forneceu nomes. Mas explicou que ele estava implicado, de alguma forma, e, portanto, transtornado. Tendo confiança completa em Burns, Doolson veio correndo para cá, em desespero de causa. Talvez tenha achado que meu departamento está trabalhando demasiado lentamente.
— Que foi que ele disse?
— Doolson insiste em oferecer um prêmio em dinheiro pela solução do caso, na esperança desesperada de me incentivar, e ao meu pessoal, a resolvermos o assunto imediatamente, para que seu precioso Burns possa voltar ao trabalho. Pessoalmente, acho que o homem está doido.
— Talvez esteja, Markham, mas não o desiluda.
— Já tentei, mas ele insistiu.
— E quanto é que ele acha que valem os serviços imediatos e tranqüilos do Senhor Burns?
— Cinco mil dólares!
— É uma loucura — riu Vance.
— Concordo com você. Eu também não acreditaria, se não tivesse um cheque dessa importância, assinado por Doolson e visado, neste momento, guardado no meu cofre. E, por falar nisso, esse cheque só é válido por quarenta e oito horas...
Depois que Vance absorvera essas informações fantásticas, contou suas atividades da manhã. Falou da porta secreta que dava para o escritório de Mirche e frisou o ponto da desconfiança insistente do sargento de que o Domdaniel era a sede de uma poderosa quadrilha de criminosos.
Sobre este último ponto, Markham fez um aceno lento e pensativo de cabeça.
— Não tenho certeza — observou ele — de que as suspeitas do sargento sejam infundadas. Aquele lugar sempre me preocupou um pouco, mas nunca veio à luz nada concreto.
— O sargento mencionou Owen como um possível chefe — falou Vance. — E acho a idéia interessante. Estou um tanto inclinado a procurar o ”Coruja” e tentar fazê-lo arrepiar as penas. A propósito, Markham, se meu impulso vencer minha discrição, qual é o nome verdadeiro de Owen? Você entende, não posso andar por aí perguntando por uma ave noturna de rapina.
— Acho que é Dominic.
— Dominic, Dominic... — De repente, Vance se levantou, com os olhos fixos no espaço à sua frente. — Dominic Owen! E Daniel Mirche! — E segurou o cigarro, suspenso no alto. — Agora, tudo se tornou fantasia. Você tem razão, Markham... Estou tendo visões: estou envolto em um conto misterioso. Uma coisa fantástica!
— Ora em nome dos céus... — começou Markham.
— Ora, mas você ainda não compreendeu? — E depois, disse: — Dominic... Daniel. Que engenhoso... Daí saiu DOMDANIEL!
Markham ergueu o cenho, incrédulo.
— Pura coincidência, Vance. Embora haja nisso certa dose de fantasia, coisa que eu confesso. Se bem me lembro da leitura que fiz das Mil e Uma Noites, o Domdaniel original ficava no fundo do mar, em algum ponto perto de Túnis, e era uma curiosa morada de espíritos malignos. Mesmo que Mirche tenha ouvido falar daquele palácio submarino e fosse realmente sócio de Owen no restaurante, ele jamais teria coragem ou iniciativa suficientes para isso.
— Mirche não teria, Markham, mas Owen teria. Owen teria a suteliza, a ousadia e o humor sombrio para isso. A idéia teria sido magnífica, creio eu. Oferecendo ao mundo a chave do seu segredo e depois rindo sozinho, muito à semelhança dos demônios que originalmente habitavam aquela cidadela submarina do pecado...
Juntamente com Markham, condoeu-se das complicações da vida e deixou-o sozinho para tirar suas próprias conclusões.
Quando voltamos para o apartamento de Vance, pouco antes das três horas da tarde, não era Heath quem estava à nossa espera. Era Gracie Allen, que parecia estar sempre em toda parte e, como de costume, saudou Vance com alegria e exuberância.
— O senhor me disse para voltar hoje à tarde. Ou não disse? Seja como for, o senhor disse alguma coisa a respeito de logo mais à tarde. E, como eu não sabia a que horas deveria vir, vim cedo. Já reuni muitas pistas... Isto é, umas três ou quatro. Mas acho que elas não servem para nada. O senhor arranjou alguma pista?
— Ainda não — falou ele, sorridente. — Isto é, não tenho pistas definidas. Mas tenho várias idéias.
— Oh, fale-me das suas idéias, Senhor Vance — pediu ela, insistente. — Talvez elas sejam úteis. Nunca se sabe o que pode resultar quando se começa a pensar. Ainda na semana passada, pensei que ia haver uma tempestade violenta, e houve mesmo!
— Bem, vejamos... — E Vance, um tanto levado pelo espírito da brincadeira, e contudo com evidente benignidade, falou-lhe das suas suposições com relação ao significado da palavra ”Domdaniel”. Demorou-se sobre o mistério e o romance da lenda original de Domdaniel, contida nas Mil e Uma Noites, para divertir a jovem: falou dos califas sírios, das ”raízes do mar”, das quatro entradas e dos quatro mil degraus, citou Magharabi e os outros mágicos e feiticeiros.
Heath chegara no começo da história, e ficou de pé, ouvindo, tão encantado quanto o estava a moça. Quando Vance terminou, Gracie Allen relaxou os nervos e músculos, durante alguns instantes.
— Isso é simplesmente maravilhoso, Senhor Vance. Gostaria de poder ajudar a encontrar o tal Dominic. Temos um empregado gorducho, na fábrica, um homem corpulento, que se chama também Dominic. Mas ele não pode ser quem o senhor procura.
— Não, tenho certeza de que não é. O que estou procurando é um homem pequeno, de olhos muito escuros e penetrantes e rosto muito branco, e tem cabelos quase pretos.
— Oh! Talvez seja o homem que eu vi no quarto de Dixie Del Marr.
— Quê?! — E a exclamação do sargento assustou a jovem.
— Meu Deus! Será que tornei a dizer alguma coisa errada, seu Heath?
Vance fez um aceno para o sargento se afastar, e havia censura no gesto. Depois, falou calmamente com a moça.
— Quer dizer, Gracie, que você viu alguém no quarto, além de Dixie Del Marr, quando caiu casualmente dentro dele, na noite de sábado passado?
— Sim. Um homem exatamente igual ao que você descreveu.
— Mas por que — indagou Vance — você não me contou isso, hoje de manhã?
— Ora, o senhor não me perguntou! Se me houvesse perguntado, eu lhe teria contado. E, em todo caso, achei que isso não tinha nenhuma importância... Isto é, o fato de aquele homem estar no quarto de Dixie Del Marr. Ele não teve nada que ver com a minha queda.
— E você tem certeza — prosseguiu Vance — de que ele era parecido com o homem que acabo de lhe descrever?
— Sim, certeza absoluta.
— E suponho que foi a primeira vez que você o viu, não foi?
— Sim, isso mesmo. E, se o tivesse visto antes, ter-me-ia lembrado. Eu sempre me recordo de fisionomias, mas não consigo é lembrar-me de nomes. Mas eu o vi depois daquilo.
— Depois? Onde foi isso?
— Ora, ele estava sentado no salão de refeições do restaurante, bem a um canto, não muito longe do George. Não posso imaginar como foi que olhei casualmente naquela direção, pois me achava em companhia do Senhor Puttle naquela noite.
— Havia mais alguém com o homem, quando você o viu no restaurante? — prosseguiu Vance.
— Sim, mas eu não os podia ver, já que se achavam de costas para mim.
— A quem está-se referindo?
— Ora, aos outros dois homens sentados à mesa do sujeito que o senhor está procurando.
Vance tirou uma fumaça profunda do cigarro.
— Diga-me, Gracie... Que é que o homem estava fazendo, quando você o viu no quarto de Dixie Del Marr?
— Deixe-me pensar... Acho que ele é um amigo muito íntimo da Senhorita Del Marr, pois estava guardando uma caderneta grande de anotações em uma das gavetas. E deve mesmo ser amigo muito íntimo de Dixie, do contrário não saberia qual o lugar do tal caderno, não é? Depois Dixie Del Marr veio até junto de mim e pousou uma das mãos no meu braço, levando-me depressa para fora. Acho que ela estava apressada. Mas foi muito amável comigo...
— Bem... Foi uma aventura muito divertida, minha querida.
Pouco depois dessa espantosa informação, Gracie Allen despediu-se de nós, muito alegremente, com um ar cômico de mistério, dizendo que precisava cuidar de muitas coisas importantes. Confidencialmente, disse-nos que talvez até fosse encontrar-se com Burns.
Quando a jovem se retirou, Vance olhou para o outro lado, para o sargento, como se esperasse algum comentário.
Heath esparramou-se em uma cadeira, aparentemente atordoado.
— Não tenho nada que dizer, Senhor Vance. Vou ficar maluco!
— Até eu estou um pouco tonto — falou Vance. — Mas, agora, tenho de falar com Owen. Francamente, eu não estava muito animado a ir falar com ele, e só vagamente acreditava na minha charada a respeito de Owen e Mirche. No entanto, o tempo todo Gracie Allen conhecia a ligação. Sim, agora é indispensável que eu encontre ”o Coruja”... Você pode ajudar-me, sargento?
Heath apertou os lábios.
— Não sei onde ele se hospeda, em Nova York, se é a isso que se refere. Mas talvez um dos agentes federais que eu conheço me dê essa informação. Espere um instante...
Heath foi ao telefone, no corredor, enquanto Vance fumava, silencioso e pensativo.
— Finalmente, consegui — anunciou Heath, ao voltar para a sala, meia hora depois. — Nenhum dos agentes federais sabia que Owen se achava na cidade, mas um deles examinou o arquivo e me disse que Owen costumava morar no hotel St. Carlton, na época em que foram feitas investigações a respeito dele. Resolvi ligar para o hotel. Ele está hospedado lá, realmente... Chegou na quinta-feira...
— Obrigado, sargento. Vou telefonar para você amanhã cedo. Enquanto isso, não pense muito no assunto.
O sargento retirou-se e Vance telefonou imediatamente para Markham.
— Você vai fazer a refeição matinal comigo amanhã — disse o detetive ao procurador distrital. — Hoje à noite, esforçar-me-ei para visitar o erudito Senhor Owen. Tenho muitas coisas a contar a você, e talvez amanhã cedo tenha mais. Lembre-se, Markham: refeição matinal amanhã... É uma imposição, e não um convite banal...

CAPÍTULO XIV
UM LOUCO MORIBUNDO
(Segunda-feira, 20 de maio — 20:00 horas)

Naquela noite, às oito horas, Vance foi ao Hotel St. Carlton. Ao invés de telefonar da mesa da recepção, escreveu as palavras ”visita não profissional” no seu cartão e mandou-o a Owen. Alguns minutos depois, o mensageiro voltou e nos levou até os aposentos de Owen.
Havia dois homens sentados perto de uma janela, quando nós entramos, e o próprio Owen achava-se sentado, inerte, em uma cadeira baixa, contra a parede, virando lentamente o cartão de visitas de Vance nos dedos finos, que tamborilavam. Olhou para Vance e jogou o cartão no tamborete fixo ao seu lado. Depois, disse, em tom de voz suave mas imperioso:
— É só isto, por esta noite.
— Os dois homens saíram imediatamente do quarto e fecharam a porta.
— Desculpe-me — falou ele, com um sorriso melancólico, à guisa de desculpa. — O homem é um animal desconfiado. — Moveu a mão, em um gesto vago: era o seu convite para nos sentarmos. — Sim, desconfiado. Mas para que se importar com isso? — A voz de Owen era baixa e de mau agouro, mas continha um tom intenso de queixa, como um pio de pássaro ao crepúsculo. — Sei por que vieram e tenho prazer em vê-los. Alguma coisa poderia ter sucedido nesse intervalo.
Ao examinar mais detidamente o homem, tive a impressão de que ele se achava tomado por uma doença grave. Sua fisionomia era marcada por uma profunda letargia íntima. Tinha uma expressão aquosa nos olhos; seu rosto era quase roxo, indício de graves distúrbios circulatórios, e sua voz era monótona. Deu-me a impressão de um morto-vivo.
— Durante vários anos — prosseguiu ele — tem havido a esperança vaga de que algum dia... Necessidade de consciência, de bondade, de identidade de pensamentos... — E a voz lhe faltou.
— A solidão do isolamento psíquico... — murmurou Vance. — Exatamente. Talvez seja eu a pessoa.
— Ninguém é a pessoa, claro. Perdoe minha presunção.
— Owen sorriu languidamente e acendeu um cigarro. — O senhor acha que algum de nós dois quis este encontro? Mas o homem não faz escolhas. Sua escolha é seu temperamento. Somos sugados por um redemoinho, e até escaparmos dele lutamos para justificar essa ”escolha”.
— Mas isso não importa, não é? — falou Vance. — Alguma coisa vital sempre nos foge e a mente jamais pode responder a perguntas que faz a si mesma. Dizer uma coisa ou não a dizer e pensá-la, dá na mesma.
— Exatamente. — O homem dirigiu um olhar de indagação.
— Em que é que o senhor está pensando?
— Estava imaginando que foi que o senhor veio fazer em Nova York. Eu o vi no Domdaniel, no sábado. — O tom de voz de Vance mudara.
— Eu também o vi, embora não tivesse certeza. Pensei, na ocasião, que talvez o senhor entrasse em contato comigo. Sua presença naquela noite não foi pura coincidência. Coincidência é coisa que não existe. É uma palavra falsa para mascarar nossa nauseabunda ignorância. Só existe um padrão em todo o universo do tempo.
— Mas a sua visita à cidade... Estar-me-ei intrometendo em algum segredo?
Owen rosnou e senti um calafrio descer-me pela espinha. Depois, sua expressão mudou e passou a ser de tristeza.
— Vim consultar um especialista... Enrick Hofmann.
— Sim. É um dos maiores cardiologistas do mundo. O senhor o consultou?
— Sim, há dois dias. — Owen deu uma risada amarga.
— Condenado! Ao contrário de Alexandre, uma vida breve mas sem glórias!
Vance limitou-se a erguer ligeiramente as sobrancelhas, e puxou uma baforada profunda do seu cigarro.
— Obrigado — falou Owen — por me poupar os lugares comuns sem significado. — Depois, perguntou, de repente: — Seu nome é Daniel?
— Acaso Belshazzar precisa de um profeta? — E Vance olhou diretamente para o homem. — Não, nada disso! Não sou Daniel. E também não me chamo Dominic.
Owen deu uma risada diabólica.
— Eu tinha certeza de que o senhor sabia! — E sacudiu a cabeça, satisfeito. — Mirche morrerá sem suspeitar, nem de leve, da brincadeira. Ignora tanto As Mil e Uma Noites como Southey e Carlyle. É um patife analfabeto!
— Foi uma idéia hábil — falou Vance.
— Oh, hábil, não. Apenas uma boa piada. — A letargia pareceu novamente dominá-lo. Sua expressão tornou-se uma pobre máscara e suas mãos jaziam inertes sobre os braços da cadeira que ele ocupava. Parecia um cadáver. Houve um longo silêncio, e então Vance falou.
— A escrita na parede, feita à mão. O senhor se sentiria consolado, se eu sugerisse que talvez todos os anos, por todo o infinito, estejam contados e divididos?
— Não — cortou Owen, em tom ríspido. — Consolo... Outra palavra falsa. — Depois, prosseguiu, ansiosamente: — A eterna volta... Ressurreição. A tortura perfeita. — E começou a murmurar. — O mar começará a secar... Um planeta extinto... absorvido pelo Sol... Estrelas maiores... O último instante... Dispersão eterna das coisas... Bilhões de anos daqui... Neste mesmo quarto... — Sacudiu-se, fracamente, e olhou fixamente para Vance. — Moore tinha razão: é como a loucura.
Vance fez um aceno de cabeça, condoído.
— Sim. Loucura. Completa. Aquilo que é finito e atual é só o que ousamos enfrentar. Mas coisa finita não existe.
— Não, é claro que não existe. — Owen falava com voz sepulcral. — Mas aqueles bilhões de anos além, quando a mente volta ao que é infinito... como as ondas intermináveis feitas por uma pedra que se joga na água. E precisamos também ser limpos de espírito. Não agora, mas nessa época. Não devemos provocar ondas intermináveis... Graças a Deus que eu posso falar-lhe. O senhor me entende.
Vance fez um aceno afirmativo de cabeça.
— Sim, compreendo perfeitamente. ”Limpeza”... Sei o que o senhor quer dizer. O que é finito se equilibra... Isto é, nós podemos equilibrá-lo, mesmo até o fim. Podemos voltar limpos até um tempo interminável. Sim. ”Limpeza de espírito”, uma frase adequada. Nenhuma onda. Concordo plenamente.
— Mas não por meio da indenização — disse Owen, rapidamente. — Não por meio de confessionários absurdos.
Vance fez um aceno de mão, em sinal negativo.
— Eu não quis dizer isso. Apenas uma inexistência. Depois do que é finito, quando não houver mais lutas, quando pararmos de tentar eliminar os impulsos colocados em nós pelo mesmo ser que nos impede cedermos a eles...
— É isso! — E apareceu uma centelha de animação na voz de Owen. Depois, ele recaiu no seu langor. O leve gesto da sua mão foi tão gracioso quanto o de uma mulher. Mas a dureza de aço do seu olhar permaneceu. — o senhor me impedirá de provocar ondas na água, caso...?
— Sim — retrucou Vance, com simplicidade. — Se um dia chegar a hora, e eu puder ajudá-lo, pode contar comigo.
— Confio no senhor... E, agora, posso falar um instante? Eu sempre quis dizer estas coisas a alguém que me compreendesse … 1234
Vance limitou-se a esperar, e Owen prosseguiu.
— Nada tem a mínima importância... Nem mesmo a própria vida. Nós próprios podemos criar ou esmagar a vida de seres humanos... Façamos o que fizermos, o resultado será sempre o mesmo. — Owen sorriu, desalentado. — A futilidade podre de todas as coisas... A futilidade de fazer seja o que for, até de pensar. Raios levem a agoniante sucessão de dias que chamamos de vida! Meu temperamento sempre me atraiu em diversas direções ao mesmo tempo... Sempre entre o espeto e a brasa. Talvez, afinal de contas, seja manchar almas.
E ele pareceu encolher-se, como se fugisse ao contato de um fantasma, e Vance intercalou:
— Sei a inquietação que decorre de demasiada atividade inútil, com todos os seus múltiplos desejos.
— A luta sem objetivo! Sim, sim. A luta para se enquadrar em um molde que é diferente daquele que a gente tinha antes. Essa é a maldição derradeira. O instinto de alcançar... Bolas! Nós só descobrimos que não vale a pena quando já fomos devorados por ele. Fui atingido por instintos diferentes, em épocas diversas. Era tudo mentira... Mentiras astutas e corrosivas. E nós pensamos que podemos submeter nossos instintos ao domínio da mente. A mente! — E ele riu baixinho. — O único valor da mente é alcançado quando ela nos ensina que ela é inútil.
O homem moveu-se um pouco, como se abalado por um ligeiro espasmo involuntário.
— Nem podemos atribuir nossos instintos destorcidos à memória racial. Não há raças: existe apenas uma caudal enorme e imunda de vida, que flui do limo primitivo. A sensualidade abortiva da vida animal primitiva jaz adormecida dentro de nós. Se a suprimimos, ela se manifesta em forma de crueldade e de sadismos: se a libertamos, ela produz perversões e loucura. Não há solução... Algumas vezes, o homem se esforça para combater esses horrores libertando um ideal íntimo da sua concepção abstrata, através de símbolos visuais. Os próprios símbolos não passam de abstrações. — Veio o tom monótono e mordaz de Owen. — E também a Lógica não pode ajudar. A Lógica não leva nenhum homem à verdade: conduz apenas a decepções e à loucura. A apoteose da Lógica: anjos dançando na ponta de uma agulha... Mas por que sequer me preocupo, nesta sombra entre dois infinitos? Só posso dar uma resposta: a ansiedade obscena de comer bem e de viver de maneira confortável... que, por sua vez, são instintos e, portanto, mentiras.
— Talvez isso seja mais profundo do que simples instinto — sugeriu Vance. — Pode ser uma ansiedade trazida para cá quando a sombra da vida caiu na senda do infinito pela primeira vez... A ansiedade cósmica de fazer um jogo com a vida, a fim de fugir às tensões e às pressões do que é finito.
Eu sabia que Vance tinha uma finalidade muito definida em mente, embora, para mim, obscura, enquanto falava com este homem estranho e nada natural diante dele.
— Aqui, neste mundo de sonhos esgotados — falou Owen, confusamente — nenhuma forma de ação é melhor do que outra; uma pessoa ou uma coisa não é mais importante do que qualquer outra pessoa ou outra coisa. Todas as coisas opostas são passíveis de trocas entre si: criação ou destruição, serenidade ou tortura. No entanto, a vaidade goteja através da crosta sarnenta da minha metafísica congelada. Bolas! — E encolheu o corpo e olhou fixamente para Vance. — Aqui não existem nem tempo nem existência.
— É como o senhor diz. Na verdade, o infinito não é divisível.
— Mas há a possibilidade terrificante de que possamos acrescentar algum fator ao tempo diante de nós. E, se o fizermos, esse fator continuará eternamente... É preciso não se jogar nenhuma pedrinha. Temos de atravessar completamente essa sombra.
Owen fechara os olhos e Vance o examinava sem expressão, Depois, disse, em tom de voz quase consolador:
— Isto é sabedoria... Sim, limpeza de espírito.
Owen fez um aceno afirmativo de cabeça, muito langoroso.
— Amanhã à noite, vou partir de navio para a América do Sul. Calor... O mar... Um entorpecente, talvez. Estarei ocupado amanhã o dia inteiro. Coisas a fazer: contas, uma limpeza de casa, cuidar de certas coisas... Não quero ondas de superfície da água a me seguirem o tempo todo. Limpeza... Além... O senhor compreende?
— Sim. — Vance não baixou o olhar. — Compreendo. É preciso cessar aqui, para que não haja um castigo dos céus...
Os olhos do homem abriram-se lentamente. Endireitou o corpo e acendeu outro cigarro. Sua disposição estranha se dissipou, e outra expressão lhe apareceu nos olhos. Durante toda essa discussão, ele não erguera a voz nem uma vez sequer; nem houvera mais do que uma leve inflexão nas palavras. No entanto, eu sentia como se estivesse ouvindo uma tirada apaixonada.
Agora, Owen começou a falar dos seus velhos livros, dos seus dias em Cambridge, da sua juventude cheia de cultura e de ambição, dos estudos de música, feitos na sua infância. Era bem versado em conhecimentos das civilizações antigas e, para meu espanto, entendia, com paixão e fanatismo, do Livro dos Mortos Tibetano. Mas, por estranho que pareça, falava sempre em si mesmo com uma impressão de dualismo, como se estivesse falando de outra pessoa. Havia uma sensível cortesia no homem,
mas, não sei por que, ele me inspirava um sentimento próximo do medo. Havia sempre uma aura invisível ao seu redor, como a de uma fera primitiva e fumegante. Fiquei preso ao fascínio diabólico daquele homem, e senti uma inconfundível sensação de alívio quando Vance se levantou para ir embora.
Quando nos separamos dele, à porta, o homem disse a Vance, com uma indiferença aparente:
— Contado, pesado, dividido... O senhor me prometeu. Vance enfrentou seu olhar, diretamente, por um breve instante.
— Obrigado — disse Owen, sem fôlego, curvando-se profundamente.

CAPITULO XV
UMA ACUSAÇÃO PAVOROSA
(Terça-feira, 21 de maio — 9:30 horas)

— Sim, Markham, completamente louco. — Foi assim que Vance resumiu, enquanto acabávamos de fazer a refeição matinal no seu apartamento, na manhã seguinte. — Totalmente maluco. Um louco venenoso, como algum bicho rasteiro e traiçoeiro. O seu fim está chegando rapidamente, e um medo hediondo lhe está destruindo o cérebro. A súbita certeza da morte lhe cortou a ligação com a sanidade mental. Owen está procurando uma toca, onde se esconder para fugir ao inevitável. Mas ele não tem onde se esconder: apenas o sepulcro fétido que seu cérebro destorcido construiu. Essa é a única realidade que lhe resta. Uma criatura vil, que deveria ser esmagada como nós destruímos um germe mortífero. Um leproso mental, moral e espiritual. Sujo, poluído. E eu... Eu tenho de salvá-lo dos horrores que o infinito contém para ele.
— Você deve ter tido uma noite agradável em companhia dele — comentou Markham, com aversão.
O sargento Heath, tendo chegado, em resposta a chamados telefônicos repetidos feitos por Vance, ouvira atentamente a conversa. Mas ele parecia estar recolhido em si mesmo, quando, alguns instantes depois, Gracie Allen entrou saltitando alegremente na biblioteca. Carregava uma pequena caixa de madeira, apertada de encontro ao corpo. E atrás dela vinha George Burns, desconfiado e hesitante. Gracie explicou as coisas, com a habitual vivacidade.
— Eu tinha de vir, Senhor Vance, para lhe mostrar as minhas pistas. E George tinha acabado de chegar para falar comigo. Por isto, eu o trouxe. Acho que ele deve ficar sabendo como nós nos damos bem, não é, Senhor Vance? E a mamãe também chegará aqui dentro de poucos minutos. Ela disse que deseja falar com o senhor, embora eu não possa imaginar qual o motivo.
A jovem fez uma pausa suficiente para Vance apresentá-la a Markham. Aceitou-o sem a desconfiança dedicada antes a Heath; e Markham ficou ao mesmo tempo fascinado e divertido pela tagarelice viva e leve da moça.
— E agora, Senhor Vance, — prosseguiu ela, indo até à escrivaninha e tirando a capa rígida da pequena caixa que ela trouxera — tenho de lhe mostrar as minhas pistas. Mas, na verdade, não creio que sirvam para nada, porque eu não sabia exatamente onde as devia procurar. Em todo caso...
E começou a exibir os seus preciosos tesouros. Vance fingiu estar profundamente interessado, para agradar à jovem. Markham, intrigado e sorridente, avançou alguns passos; e Burns ficou de pé, pouco à vontade, do outro lado da escrivaninha. Heath, aborrecido pela interrupção frívola, acendeu um charuto, caceteado, e caminhou até à janela.
— Veja, Senhor Vance, aqui está o tamanho exato de uma pegada humana. — Gracie Allen tirou uma tira de papei onde havia alguns números escritos. — A pegada mede vinte e um centímetros de comprimento, e o homem da sapataria disse que esse era o comprimento de um sapato número trinta e cinco, a não ser que fosse um sapato inglês, e que nesse caso seria o de um sapato trinta e quatro. Acho que ele era grego, pois era um dos garçons lá do Domdaniel. Fui até lá, porque foi lá que o senhor disse que o morto foi encontrado. E esperei muito tempo para que alguém viesse à cozinha e deixasse uma pegada. E então, quando ninguém estava olhando, eu medi a pegada...
Ela colocou a folha de papel de lado.
— E agora, aqui está um pedaço de bloco que tirei da escrivaninha do Senhor Puttle, ontem, na hora do almoço, quando ele não se achava lá. E levei a um espelho, mas consegui ler apenas ”4 d. S. Sá.”, como tornei a escrever aqui. E tudo isso significa apenas: ”quatro dúzias de caixas de sabonete de sândalo...”

Gracie extraiu da bolsa mais dois ou três objetos inúteis, que explicou, com pormenores, de forma divertida, enquanto os colocava ao lado dos outros.
Vance não a interrompeu durante essa exibição divertida mas patética. Mas Burns, que estava ficando nervoso e exasperado com a desnecessária perda de tempo da moça, finalmente pareceu perder a paciência e desabafou:
— Por que não mostra a estes senhores as amêndoas que traz aí e acaba logo com esta coisa tola?
— Não tenho nenhuma amêndoa, George. Resta só uma coisa na caixa, e isso não tem nada a ver com o caso. Eu estava treinando quando arranjei aquela pista...
— Mas alguma coisa me cheira como amêndoa amarga. De repente, Vance ficou seriamente interessado.
— Que é que ainda tem na caixa, Senhorita Allen? — indagou ele.
A jovem riu baixinho, ao tirar a última pista: um envelope ligeiramente volumoso e totalmente selado.
— É apenas um cigarro velho — falou ela. — E é uma boa brincadeira com o George. Ele está sempre sentindo os cheiros mais esquisitos. Acho que não pode evitar fazer isso.
Rasgou o canto do envelope e deixou um cigarro achatado e parcialmente partido deslizar para sua mão. À primeira vista, eu teria dito que aquele cigarro nunca fora aceso, mas depois notei-lhe a ponta carbonizada, como se tivessem começado a fumá-lo. Vance pegou o cigarro e levou-o ao nariz, com aversão.
— Aqui está o seu cheiro de amêndoa amarga, Senhor Burns. — Seus olhos estavam focalizados em alguma coisa no espaço, longe dali. Depois, tornou a colocar o cigarro em um dos seus envelopes e deixou-o em cima da lareira.
— Onde foi que encontrou esse cigarro, Senhorita Allen? — indagou Vance.
A moça tornou a dar uma risadinha musical.
— Ora, foi esse cigarro que fez um buraco no meu vestido, no sábado passado, em Riverdale. Lembra-se? E então, quando o senhor me falou da importância dos cigarros, resolvi ir lá imediatamente. Desejava tentar encontrar o cigarro que foi jogado em mim. Na verdade, eu não acreditava que fosse o senhor que o houvesse jogado... Tive muita dificuldade em encontrá-lo, porque eu o pisara e ele se achava meio coberto.
Em todo caso, não descobri nada ao encontrá-lo, e fiquei novamente fula de raiva. Mas achei que seria melhor guardá-lo, pois era a primeira pista que eu obtivera, embora na verdade ele não tivesse nada a ver com o caso em que eu o estava ajudando.
— Minha querida menina — disse Vance, lentamente. — Talvez ele não tenha nada a ver com o nosso caso, mas pode ter relação com algum outro caso.
— Oh, não seria maravilhoso se tivesse? — exclamou a moça, encantada. — Assim, teríamos dois casos, e eu seria realmente um detetive, não é?
Markham avançara.
— Que foi que você quis dizer com essa última observavão, Vance?
— Talvez tenha havido cianeto nesse cigarro. — Ele olhou para Markham, de forma significativa. — Quanto à possível ação desta droga, bem como ao possível modo de administrá-la, tenho apenas de me referir às observações feitas por Doremus, na noite de domingo.
Markham fez um gesto de impaciência.
— Por Deus, Vance! Sua atitude para com este caso torna-se mais louca a cada instante que passa.
O detetive ignorou o comentário do outro e prosseguiu.
— Supondo acertada a minha suposição de que este agarro é realmente a arma mortífera que estamos ansiosamente procurando, vale lembrar que muitas outras coisas, igualmente fantásticas, ligadas ao caso, tornaram-se racionais. Assim, poderíamos ligar vários dos nossos dados desconhecidos e de pesadelo e assim estabelecer uma teoria que — pelo menos dentro das suas próprias limitações — brilharia, cheia de sentido. A saber: já conseguimos explicar o fato de Hennessey não ter conseguido ver a vítima entrar no escritório, na noite de sábado. Pudemos limitar o conhecimento da porta secreta a Mirche e a mais uma pessoa íntima sua — o que, como você deve admitir, seria lógico. Poderíamos supor que o crime tenha sido cometido em outro lugar, que não o escritório de Mirche — em Riverdale, para ser específico — e que o cadáver tenha sido levado para o escritório por algum motivo definido. Tal suposição poderia fornecer uma explicação da maneira peculiar como a polícia foi avisada; e poderia também esclarecer a dificuldade que o Dr. Mendel teve em determinar a hora da morte. Pois, se o crime tivesse acontecido no escritório, não o poderia ter sido antes das dez horas, uma vez que Gracie Allen esteve lá por volta daquela hora. Enquanto que, se o crime tivesse acontecido em outro lugar qualquer, poderia ter sido praticado a qualquer hora, num período de dez horas antes de o cadáver ser encontrado. Vance caminhou até junto à lareira e tamborilou, pensativamente, no envelope que continha o cigarro.
— Se o cigarro que está no envelope tiver mesmo estado impregnado de veneno, e se tivesse sido usado, como Doremus disse, que tal recurso pode ser usado, então estaríamos diante de uma coincidência completamente impossível. Isto é: teríamos o fato de que, em duas partes separadas da cidade, duas pessoas teriam sido assassinadas pelo mesmo sistema misterioso, no mesmo dia. E, além disso, temos um só cadáver.
Markham fez um aceno afirmativo de cabeça, lentamente, sem entusiasmo.
— É remotamente capcioso. Mas...
— Conheço suas objeções, Markham — interrompeu Vance. — E elas são também as que eu tenho. Todas as minhas suposições caprichosas podem não passar de simples fantasias... Mas são minhas e, no momento, eu as adoro.
Markham começou a falar, mas Vance prosseguiu.
— Deixe-me falar mais um instante, antes que você rne ponha uma camisa-de-força... Contemplo, em um sonho, as pastagens refrescantes a que minha estranha suposição poderia levar. Poderia até ligar os fatores aborrecidos que me têm roubado o doce sono... A pronta confissão de Mirche com relação à existência da sua porta secreta; o ódio que vi de relance nos olhos de Dixie Del Marr; a saga mística dos Tofanas; e a presença do ”Coruja” no Domdaniel, na noite de sábado. Poderia explicar as implicações sutis que há no nome do restaurante. Poderia até justificar a hipótese insistente, formulada pelo sargento, sobre a existência de uma quadrilha de criminosos. Poderia, também, esclarecer a presença da nômade cigarreira com cheiro de perfume de narciso. E há outras coisas, que agora me deixam confuso, mas que poderiam juntar-se em um todo consistente... Céus, Markham! Isso tem as possibilidades mais espantosas. Deixe-me com o meu sonho tão doce. Afinal, forma-se um quadro no meu cérebro torturado, e é o primeiro desenho coerente que invadiu minha imaginação febril desde a véspera de sábado. Baseado na singular premissa de que o cigarro estivesse convenientemente envenenado, posso forçar um punhado de elementos, até agora recalcitrantes, a entrar na linha, ou, melhor, eles irão entrando sozinhos na linha, como as partículas coloridas de um caleidoscópio.
— Vance, pelo amor de Deus! Você está apenas criando uma nova fantasia absurda, para explicar a sua primeira fantasia. — O severo tom de voz de Markham logo fez Vance voltar a si.
— Sim, tem toda razão — falou ele. — Naturalmente, mandarei o cigarro imediatamente para ser analisado por Doremus. E talvez ele não revele nada. Você é quem manda. Francamente, não compreendo como o cheiro poderia ter ficado em um cigarro tanto tempo, a não ser que um dos venenos misturados tenha atuado como fixador e tivesse retardado a volatilização... Mas, Markham, eu quero — eu preciso — do cadáver de um homem que foi assassinado em Riverdale no sábado passado.
Gracie Allen estivera olhando de um para outro dos homens, confusa e tonta.
— Oh, agora eu aposto em que eu compreendo! — exclamou ela, exultante. — O senhor pensa mesmo que o cigano poderia ter matado alguém... Mas eu nunca ouvi dizer que alguém morresse só pelo fato de fumar um cigarro.
— Não é um cigarro comum, minha cara Gracie -— explicou Vance, com paciência. — É possível que o cigarro em questão tenha sido imerso em algum veneno terrível.
— Ora, isso é horrível, se for mesmo verdade — disse ela, pensativa. — E logo em Riverdale, com tantos outros lugares! Lá é tão lindo e tão sossegado...
Seus olhos começaram a arregalar-se, e finalmente ela exclamou:
— Mas aposto em que sei quem era o morto! Aposto!
— Ora, mas de que você está falando? — Vance riu e olhou para a jovem, com um olhar intrigado. — Quem você pensa que foi?
Gracie olhou para Vance, com olhar perscrutador, durante alguns instantes, e depois disse:
— Ora, foi Benny, o Abutre!
O sargento Heath ficou de repente rígido, com a boca aberta.
— Onde foi que você ouviu esse nome, moça? — disse ele, quase gritando.
— Ora, ora... — gaguejou ela, surpreendida pela veemência do sargento. — O Senhor Vance me contou tudo a respeito dele.
— O Senhor Vance contou a você... ?
- Claro que contou! — disse a jovem, em tom de desafio. É assim que agora eu sei que Benny, o Abutre, foi morto em Riverdale.
- Morto em Riverdale? — e o sargento pareceu confuso. - E talvez você saiba, também, quem foi que o matou, não é?
Claro que sei... Foi o próprio Senhor Vance!


CAPITULO XVI
OUTRO CHOQUE
(Terça-feira, 21 de maio — 10:30 horas)


A espantosa acusação caiu como uma bomba entre os presentes, que ficaram todos paralisados. Passaram-se vários momentos antes que me pudesse controlar o bastante para ver a lógica que havia por trás daquilo. A declaração da moça era o desfecho natural da história que Vance inventara para ela na tarde em que nós a conhecemos.
Markham, que sabia apenas de poucos pormenores do rústico encontro e que não sabia de nada da história inventada por Vance, deve ter-se lembrado imediatamente da conversa tida com o detetive no Bellwood Country Club, na qual Vance exprimira suas idéias quanto à forma de eliminarem Pellinzi.
Heath, também, atônito pela comunicação da moça, deve ter-se lembrado do que houvera no jantar de sexta-feira; e tinha muita razão para supor que ele possuía alguma suspeita nevoenta a respeito da culpa de Vance.
O próprio Vance ficou temporariamente aturdido. No momento, sua cabeça devia estar ocupada com assuntos de maior monta, que suplantavam totalmente o episódio de Riverdale. Mas, agora, de repente ele compreendeu que a acusação de Gracie Allen adquiria foros de plausibilidade.
Markham aproximou-se da moça, sério e com a testa franzida.

— A acusação que acaba de fazer é muito grave, Senhorita Allen — falou ele. Seu tom de voz grave indicava as dúvidas intangíveis que havia no íntimo da sua mente.
— Caramba, Markham! — interrompeu Vance, muito aborrecido. — Faça o favor de olhar ao seu redor. Não estamos em um tribunal.
— Sei exatamente onde estou — retorquiu Markham, obstinadamente. — Deixe-me cuidar deste assunto. Ele é cheio de dinamite. — E virou-se para a moça. — Diga-me, por que você afirma que foi o Senhor Vance quem matou Benny, o Abutre?
— Ora, eu não disse isso... Isto é, eu não inventei isso. Apenas repeti o que ouvi.
Embora fosse evidente que Gracie não considerava a situação séria, era óbvio que a maneira grave de falar de Markham a deixara perturbada.
— Foi o Senhor Vance quem o disse. Ele falou isso quando o conheci em Riverdale, ao lado da estrada que segue ao longo de um grande muro branco, na tarde da sexta-feira passada, quando eu estava com... isto é, quando eu fui lá com...
Markham, notando o nervosismo da moça, sorriu, para tranqüilizá-la, e começou a falar de outra maneira.
— Não tem nenhum motivo para se preocupar, Senhorita Allen — disse ele. — Basta que me conte toda a história, exatamente como aconteceu.
— Oh! — exclamou ela, enquanto uma nota mais alegre lhe voltava à voz. — Por que não me disse logo que era isso que o senhor queria? Está bem, vou-lhe contar. Bem, fui a Riverdale na tarde do sábado passado... Nós não trabalhamos na fábrica aos sábados, pois o Senhor Doolson é muito bondoso nesse ponto. Fui até lá com o jovem Puttle, que é um dos nossos vendedores. Mas não creio que ele seja tão bom vendedor quanto alguns dos outros da In-O-Scent. Que é que você acha, George?
Ela virou-se um instante para Burns, mas não esperou resposta.
— Bem... Em todo caso, George queria que eu fosse com ele a outro lugar. Mas achei que seria melhor ir a Riverdale com Puttle, principalmente porque ele ia-me levar para jantar naquela noite. E achei que podia ficar zangado se eu não fosse com ele a Riverdale, e assim não me levaria para jantar. Por isso, não fui com George, mas fui a Riverdale com Puttle. Bem, nós chegamos a Riverdale, lugar aonde eu sempre vou, porque acho que aquilo lá é lindo. Mas é uma caminhada muito longa da Broadway, e então o Senhor Puttle foi procurar um convento de freiras...
— Por favor, Senhorita Allen — interrompeu Markham, com admirável controle. — Conte-me como foi que a senhorita encontrou o Senhor Vance e o que ele lhe disse.
— Oh, eu já ia chegar lá... O Senhor Vance apareceu depois de saltar o muro. E eu lhe perguntei o que ele tinha andado fazendo. Declarou que estivera matando um homem. E eu perguntei o nome do homem. Ele disse que era Benny, o Abutre.
Markham suspirou, impaciente.
— Pode-me dizer mais algumas coisas, Senhorita Allen, a respeito desse incidente?
— Pois não. Como eu já lhe disse, o Senhor Vance saltou o muro e caiu, pouco atrás do lugar onde eu estava sentada... Não, desculpe, eu não estava sentada, porque alguém acabara de jogar um cigarro em mim... esse cigarro que se acha agora cm cima da prateleira da lareira... Só que ele estava aceso e queimava ... E eu me achava de pé, sacudindo meu vestido, quando vi o Senhor Vance cair. Ele parecia estar com muita pressa, também. Eu lhe falei a respeito do cigarro e ele disse que talvez ele mesmo o tivesse jogado. Mas eu achava que o cigarro fora jogado de um carro grande que passara velozmente pelo ponto onde me encontrava. Seja como for, o Senhor Vance disse-me para ir à loja buscar um vestido novo, que ele pagaria, pois lamentava muito o ocorrido. E então ele sentou-se e fumou mais cigarros.
Gracie respirou fundo e prosseguiu apressadamente.
— E foi então que perguntei a ele o que estava fazendo do outro lado do muro, e ele disse que acabara de matar um facínora chamado Benny, o Abutre. Disse que fez isso porque o tal Senhor Abutre fugira da cadeia e pretendia matar um amigo dele... isto é, um amigo do Senhor Vance. Ele se apresentava com as roupas em completo desalinho e o chapéu amassado e virado de fado, e realmente tinha toda aparência de quem acabara de matar alguém. Até eu fiquei com medo dele, algum tempo. Mas venci o medo...
Ela parou um instante, a fim de contemplar Vance atentamente, como se estivesse fazendo uma comparação de roupas.
— Agora, vejamos... Onde é que eu estava? Ah, sim... Ele estava afastando-se de carreira, muito apressado, porque disse que não queria que ninguém soubesse que ele matara o tal homem. Mas ele me contou. Acho que viu logo que podia confiar em mim. Mas não sei por que motivo estava preocupado, porque ele disse que achava que agira direito, para salvar seu amigo do perigo. Em todo caso, ele me pediu para não contar a ninguém, e eu prometi. Mas agora ele acaba de me pedir para contar o que eu queria dizer a respeito do morto de Riverdale, e por isso acho que ele quis dizer que eu não precisava mais guardar sigilo. E é por isso que lhes estou contando.
O espanto de Markham foi aumentando, à medida que a jovem falava em disparada. Quando ela terminou a narrativa e olhou ao redor, à procura de aprovação, o procurador distrital virou-se para Vance.
— Céus, Vance! Essa história é realmente verdadeira?
— Infelizmente, é — confessou Vance, dando de ombros.
— Mas por quê... Por que você lhe contou tal história?
— Talvez por causa do tempo suave. Estamos na primavera, você sabe...
— Mas — perguntou a moça. — O senhor não vai prendê-lo?
— Não, eu... — E Markham ficou indeciso.
— Por que não? — insistiu a jovem. — Aposto que sei o motivo! Aposto que o senhor pensa que não se pode prender um detetive. Eu também pensava assim, antes. Mas no domingo perguntei a um policial, e ele me disse que claro que se pode prender um detetive.
— Sim, pode-se prender um detetive — sorriu Markham — quando se sabe que ele infringiu a lei. Mas tenho sérias dúvidas de que o Senhor Vance tenha realmente matado um homem.
— Mas ele mesmo afirmou isso. Do contrário, como iria ele saber? Eu também não o julgava culpado, a princípio. Pensei que ele apenas estava-me contando uma história romântica porque eu gosto muito de histórias românticas! Mas, depois, o Senhor Vance mesmo declarou — aqui nesta mesma sala, e todos ouviram — que no sábado passado mataram um homem em Riverdale com o cigarro. E ele falou muito sério... Notei isso, pela maneira como ele agiu e falou. Não foi, de forma alguma, como se ele estivesse inventando outra história romântica...
Gracie parou de chofre e olhou para o confuso Senhor Burns. A julgar pela sua expressão, outra idéia lhe surgira na cabeça. Ela tornou a se virar para Markham, com renovada seriedade.
— Mas o senhor devia prender o Senhor Vance — disse ela, em tom decisivo. — Mesmo que ele não seja culpado. Acho que, na verdade, não creio que ele seja mesmo culpado. Ele tem sido tão bonzinho para mim... Mas, assim mesmo, acho que o senhor devia prendê-lo. O que eu quero dizer é que o senhor pode fingir que acredita que ele matou o tal homem em Riverdale. E assim o George ficaria livre de acusações. E o Senhor Vance não se importaria nem um pouco... Sei que ele não se importaria. Não é, Senhor Vance?
— Em nome dos céus, a que ponto você quer chegar agora? — indagou Markham.
Vance sorriu.
— Sei exatamente o que ela quer dizer, Markham. — E virou-se para Gracie. — Mas, na verdade, minha prisão não ajudaria o jovem Burns.
— Oh, ajudaria, sim — insistiu Gracie. — Sei que ajudaria. Porque há alguém seguindo-o para onde ele vá. E George diz que deve ser algum detetive. E todos os policiais que rondam o hotel de George o olham de uma forma esquisita. Aposto que deve haver muita gente que pensa que George é culpado... porque a polícia foi à casa e o levou de tintureiro, e tudo o mais. George me contou tudo, e isso o deixa terrivelmente preocupado. George já não é o mesmo de antes. Não pode dormir muito bem e perdeu a capacidade de sentir essências. Portanto, como pode trabalhar? Não imagina o quanto isso é horrível, Senhor Vance. Mas, se o senhor fosse preso, então todos pensariam que o senhor era o culpado e deixariam de importunar o George. E ele poderia voltar ao trabalho e ser como era antes. E então, depois de algum tempo, o verdadeiro culpado seria encontrado e tudo acabaria bem para todos.
Gracie parou um instante, a fim de recuperar o fôlego, e em seguida tornou a disparar, com feroz determinação.
— E é por isso que acho que o senhor deveria prender o Senhor Vance. E, se o senhor não o fizer, chamarei os jornais e lhes contarei tudo que o Senhor Vance disse e tudo a respeito de Benny, o Abutre, e direi que ele não foi morto no Domdaniel, e sim em outro lugar qualquer. E aposto que eles publicarão essa reportagem. Principalmente porque o Senhor Puttle estava de pé atrás da árvore, quando o Senhor Vance estava falando comigo, e ele ouviu tudo. E, se eles não acreditarem em mim, terão de acreditar em mim e no Senhor Puttle juntos. E tenho certeza de que assim publicarão a história. E todos ficarão tão interessados no fato de um homem tão famoso quanto o Senhor Vance ser culpado de homicídio, que não se importarão mais com George. Não compreendem o que quero dizer?
Havia a resolução zelosa de uma cruzada nos olhos da moça, e suas frases desordenadas achavam-se cheias de paixão vibrante para ajudar o homem amado.
— Céus, chefe! — gritou Heath. — O que ela diz é dinamite. Bem que o senhor disse!
Vance moveu-se sonolento na sua cadeira e olhou para Heath com um sorriso irônico.
— Está vendo em que encrenca você e o fato de Tracy ter seguido o Senhor Burns me deixaram, sargento?
— Claro que estou! — E Heath deu um passo na direção da Senhorita Allen. A perturbação dele era quase cômica. — Escute aqui, moça — disse ele, furioso. — Ouça-me um instante. Você está totalmente enganada. Confundiu tudo. Não sabemos que tenha havido um homicídio em Riverdale. Não sabemos de nada a esse respeito, entende? Só sabemos que apareceu um morto no restaurante. E ele não era o Abutre, e sim seu irmão...
O sargento parou de chofre, com um tremor, e ficou todo ruborizado.
— Mil raios! Desculpe-me, Senhor Vance. Sinto muito. Vance levantou-se depressa e foi postar-se ao lado de Gracie. Esta achava-se com as mãos no rosto, com um ataque de riso incontrolável.
— Meu irmão? Meu irmão? — E depois, com a mesma rapidez com que começara a rir, ficou séria. — O senhor não me pode enganar assim, sargento.
Vance recuou.
— Diga-me — e uma nota subitamente nova lhe apareceu na voz. — Que quer dizer com isso, Senhorita Allen?
Meu irmão está na cadeia!


CAPITULO XVII
IMPRESSÕES DIGITAIS
(Terça-feira, 21 de maio — 11:30 horas)

Foi neste momento que a Senhora Allen, serena e discreta, foi introduzida na sala por Currie.
Vance virou-se depressa e lhe deu as boas-vindas com uma breve saudação.
— É verdade, Senhora Allen, — perguntou ele — que seu filho não está morto?
— Sim, Senhor Vance, é verdade. Foi por isso que vim até aqui. Vance acenou a cabeça, com um sorriso compreensivo, e, guiando a senhora até uma cadeira, pediu-lhe explicações mais completas.
— Acontece, Senhor Vance, — começou ela, em voz sem inflexão que Philip foi preso perto de Hackensack, naquela noite terrível, depois de deixar o emprego no restaurante. Ele se achava com outro rapaz em um automóvel, e um policial entrou e disse ao outro rapaz — que se chama Stanley Smith e que o amigo de Philip — para seguir para o distrito policial. Acusou-os de roubarem o carro, e então, quando estavam a caminho da cadeia, o policial lhes disse que era o mesmo carro que acabara de matar um ancião e de fugir. Foi um desses atropelamentos em que a vítima morre e o motorista foge. E isso deixou Philip muito assustado, pois ele não sabia o que o tal Stanley podia ter feito antes do encontro dos dois. E então, quando o carro parou a fim de esperar um sinal abrir, Philip saltou e fugiu. O policial atirou contra ele, mas meu filho não foi agarrado.
Vance fez um aceno afirmativo de cabeça.
— Depois, Philip telefonou para mim. Notei que estava muito assustado, e disse que a polícia estava à sua procura e que ele ia-se esconder em certo lugar. Oh, fiquei tão preocupada, Senhor Vance, com o meu pobre e infeliz filho tão assustado, e escondido da polícia... O senhor sabe, um fugitivo da justiça. E então, quando o senhor veio, naquela noite, pensei que estava à procura dele. Mas, quando o senhor me disse que meu filho estava morto, pode imaginar...
Heath saltou para diante.
— Mas a senhora disse que era o seu filho que estava lá no necrotério! — Heath lhe atirou as palavras, como uma chicotada.
— Não, eu não disse, senhor policial — disse a mulher, com simplicidade.
— Não disse, uma conversa fiada! — gritou Heath.
— Sargento! — E Vance ergueu a mão. — A Senhora Allen tem razão... Se você relembrar, verá que ela não disse, nenhuma vez, que o morto era o filho dela. Receio que fomos nós que dissemos isto por ela, porque pensávamos que fosse verdade. — E sorriu, melancólico.
— Mas ela desmaiou, não é? — insistiu Heath.
— Desmaiei de alegria, senhor policial, — explicou a mulher — quando vi que não era o meu Philip.
Mas Heath não se deu por satisfeito.
— Mas... Mas a senhora não disse que o morto não era seu filho. E nos deixou pensar...
Vance teve de contê-lo novamente.
— Acho que entendo perfeitamente por que a Senhora Allen nos deixou pensar que o morto era seu filho. Ela sabia que nós representávamos a polícia, e sabia, também, que seu filho estava fugido da polícia. E, ao notar que pensávamos que seu filho estava morto, ficou muito contente de nos deixar com essa idéia, imaginando que assim poria fim à perseguição de Philip... Não é verdade, Senhora Allen?
— Sim, Senhor Vance, — a mulher confirmou, calmamente, de cabeça. — E, naturalmente, eu não queria que os senhores contassem a Gracie que Philip estava morto, pois então eu teria de lhe contar que ele estava escondido da polícia, e isso a teria tornado infeliz. Mas achei que dentro de poucos dias tudo se esclareceria, e então eu contaria aos senhores. Em todo caso, pensei que dentro em breve vocês descobririam que o morto não era o meu filho.
A mulher ergueu o olhar, com um leve sorriso triste.
— E tudo saiu direito, como eu esperava e rezava para sair, e como eu sabia que sairia.
— E estamos todos muito felizes por ter saído assim — falou Vance. — Mas diga-nos como foi que tudo acabou direito.
— Ora, hoje cedo — recomeçou a Senhora Allen — Stanley Smith chegou à minha casa para perguntar por Philip. E quando eu lhe disse que Philip continuava escondido da polícia, ele informou que fora tudo um engano, e como seu tio foi à polícia e provou que o carro não fora roubado, e que fora outro carro que atropelara e matara o tal ancião... Portanto, contei imediatamente tudo a Gracie e fui levar a notícia maravilhosa a meu filho e trazê-lo de volta para casa...
— Então, como foi, — prosseguiu o sargento, evidentemente furioso — se a senhora contou tudo à sua filha, que ela acaba de nos dizer que seu irmão estava na cadeia?
A Senhora Allen sorriu timidamente.
— Está, sim. Na noite de sábado fazia muito calor e por isso Philip deixara seu paletó no carro. Foi assim que a polícia ficou sabendo quem ele era, pois ele esqueceu o cheque do pagamento no bolso do paletó. Por isso, ele foi à cadeia em Hackeasack, hoje cedo, buscar o paletó, e vai chegar a tempo de almoçar.
Vance riu, a contragosto, e dirigiu um olhar maroto a Gracie Allen.
— E garanto que era um paletó preto.
— Oh, Senhor Vance! — exclamou a moça, extasiada. — Que detetive maravilhoso o senhor é! Como pôde ver a cor do paletó do Philip, do outro lado do rio?
Vance riu baixinho e depois de repente ficou sério.
— E, agora, devo pedir a todos vocês para irem — falou ele — e se preparar para a volta de Philip à casa materna.
Nessa altura, Markham interveio.
— Mas e as declarações que a senhorita pretendia fazer aos jornais, Gracie? Eu não poderia permitir uma coisa dessas.
George Burns, com um sorriso largo no rosto, respondeu ao procurador distrital.

— Gracie não fará isso, Senhor Markham. É que eu agora já estou completamente feliz e vou voltar para o trabalho amanhã cedo. Na verdade, eu não estava preocupado com a possibilidade de ser culpado ou de que alguém me seguisse. Mas eu tinha de contar isso a Gracie e ao Senhor Doolson, porque o senhor me fizera prometer que não diria uma palavra a respeito de Philip. E era o fato de ele estar morto, e de Gracie não saber, e tudo o mais, que me fazia sentir tão mal, não me deixando dormir nem trabalhar.
— Não é maravilhoso? — E Gracie Allen bateu palmas, e depois olhou astutamente para Vance. — Eu não queria realmente que o senhor fosse para a cadeia, Senhor Vance... Era só para ajudar George. Por isso, dei ao senhor minha palavra de que não contaria nada a ninguém a respeito da sua confissão. Ê o senhor sabe que eu sempre cumpro as promessas que faço.
Quando a Senhora Allen ia-se retirando em companhia da filha e de Burns, dirigiu a Vance um olhar de acanhada desculpa.
— Espero, senhor, — falou ela — que não pense que agi mal enganando-o a respeito daquele pobre morto.
Vance pegou a mão da velhinha.
— Sem dúvida, não penso nada disso. A senhora agiu como qualquer outra mãe teria agido, se ela tivesse sido tão inteligente e tivesse um raciocínio tão vivo quanto o seu.
Beijou-lhe a mão e depois fechou a porta atrás dos três.
— E agora, sargento, — toda a sua maneira de ser mudou — mãos à obra! Chame Tracy aqui e depois mande identificar o morto pelas impressões digitais.
— Não me precisa dizer para por mãos à obra, chefe — retrucou Heath, correndo para a janela. Fez acenos frenéticos para o homem que se achava do outro lado da rua. Depois, voltou para dentro do aposento e, a caminho do telefone, parou de repente, como se um pensamento súbito o houvesse imobilizado.
— Ei, Senhor Vance — perguntou ele. — Por que acha que nosso arquivo tem as impressões digitais do morto?
Vance lançou-lhe um olhar perscrutador e significativo.
— Talvez você vá ter uma grande surpresa, sargento.
— Mãe de Deus! — disse Heath, em tom de espanto, enquanto corria para o telefone, que ficava no corredor.
Enquanto o sargento falava com a polícia, tão afobado que quase não conseguia se fazer entender, Tracy entrou. Vance mandou-o logo levar o envelope fechado, que se achava em cima da lareira, ao Dr. Doremus, para ser analisado.
Alguns minutos depois, Heath voltou para a biblioteca.
— Pronto, os rapazes já começaram a trabalhar! — E esfregou as mãos, energicamente. — Tirarão logo as impressões digitais do homem e procurarão nos arquivos. E, se eles não me telefonarem dentro de uma hora, irei até lá e lhes torcerei os pescoços grossos! — Deixou-se cair em uma cadeira, como se esgotado pelo simples pensamento da rapidez que ele exigira.
Vance telefonou em seguida a Doremus, explicando que era muito importante um relatório imediato sobre o cigarro.
Era quase meio-dia, e nós conversamos sobre coisas banais durante mais uma hora. Havia tensão na atmosfera, e a conversa foi como uma capa jogada propositadamente sobre os pensamentos íntimos desses três homens diferentes.
Quando o relógio que havia em cima da lareira apontou para as treze horas, o telefone tocou e Vance atendeu.
— Não houve nenhuma dificuldade na análise — informou-nos ele, quando pendurou o receptor do telefone. — O eficiente Doremus descobriu no cigarro aquela mesma mistura de venenos misteriosos que o deixou tão aborrecido na noite de domingo... Minha história fantástica, Markham, finalmente está começando a se concretizar.
Mal Vance acabara de falar, quando o telefone tocou novamente, e foi a vez de Heath correr para o corredor. Quando ele voltou para a biblioteca, depois de alguns momentos, tropeçou em uma pequena mesa estilo renascentista, que havia perto da porta, e jogou-a longe.
— Pois bem, estou agitado. E daí? — Os olhos do sargento brilhavam de entusiasmo. — Quem vocês pensam que o sujeito era? Raios! O senhor já sabia, Senhor Vance. É nosso velho amigo, Benny, o Abutre! E talvez aqueles rapazes lá em Pittsburgh não estivessem doidos! E pode ser que o Abutre não tenha saltado direto de Nomenica para Nova York, como eu disse que ele faria... Está livre dessa ameaça, Senhor Markham.
A agitação de Heath era tão grande que, por alguns instantes, foi até mais forte do que o seu respeito para com o procurador distrital.
— Que faremos agora, Senhor Vance?
— Eu diria, sargento, que a primeira coisa a fazer é sentar-se. Tenha calma. É uma virtude muito necessária.
Heath obedeceu prontamente, e Vance virou-se para Markham.
— Acho que o caso continua sendo meu, por assim dizer. Você mo presenteou, num gesto magnânimo, para se livrar da minha tagarelice, na noite do sábado passado. Portanto, agora devo pedir mais uma concessão da sua parte.
Markham esperou, em silêncio.
— Chegou a hora em que tenho de agir com rapidez — prosseguiu Vance. — O caso todo, Markham, já se tornou claro. Os vários fragmentos do quebra-cabeças já encaixaram nos devidos lugares e formaram um mosaico espantoso. Mas ainda falta preencher um ou dois espaços em branco, e acho que Mirche, se for abordado de maneira adequada, poderá fornecer os pedaços que faltam...
Heath intrometeu-se.
— Estou começando a compreender, senhor. Acha que a identificação que Mirche fez do Abutre foi deliberadamente falsa?
— Não, sargento, nada disso. Mirche foi totalmente sincero e com um motivo muito bom. Ele ficou legitimamente atordoado com o aparecimento do cadáver na sua sala, naquela noite.
— Então, não o compreendo, senhor — disse Heath, em tom de desalento.
— Qual é a concessão que você deseja, Vance? — indagou Markham, impaciente.
— Quero só efetuar uma prisão.
— Mas, sem dúvida, não pretendo deixar que você ponha o gabinete do procurador distrital em maus lençóis. Precisamos esperar até que o caso seja solvido.
— Ah! Mas ele já está esclarecido — retorquiu Vance, à queima-roupa. — E você poderá ir comigo, para proteger o bom nome do seu gabinete. Na verdade, sua companhia me encantaria.
— Vá direto ao ponto — falou Markham, irritado. — O que pretende fazer?
Vance inclinou-se para diante e falou com precisão.
— Desejo muito ir ao Domdaniel logo que possível, hoje à tarde. Quero levar dois homens — digamos, Hennessey e Burke — que ficarão de guarda, na passagem do lado de fora da porta secreta. Depois, seguirei com você e com o sargento até à porta da frente que dá para a sacada e pedirei para entrar. Em seguida, agirei, sob o seu olhar controlador, é claro.
— Mas... Céus, Vance! Mirche pode não estar à espera da sua visita no escritório dele. Pode ter outros planos para se divertir esta tarde.
— Esse — declarou Vance — é um risco que precisamos correr. Mas tenho motivos suficientes para crer que o escritório de Mirche, hoje, está uma colmeia de atividade. E muito me espantaria se Dixie e Owen, também, não estivessem lá. Owen vai partir de navio, logo à noite, para a América do Sul, e hoje é o dia para liquidar seus negócios mundanos aqui. Você e o sargento têm suspeitado, há muito tempo, de que o Domdaniel é a sede de toda espécie de patifarias que vem acontecendo na cidade. Pois não precisa mais duvidar disso, Markham.
O procurador distrital pensou um instante.
— Parece-me absurdo e inútil — declarou ele. — A não ser que você tenha fundamentos sérios para tal ação... No entanto, como você diz, eu mesmo estarei lá a fim de me proteger contra qualquer indiscrição da sua parte... Muito bem — capitulou ele.
Vance confirmou de cabeça, com satisfação, e olhou para o espantado Heath.
— E, a propósito, sargento, talvez tenhamos notícias dos seus Rosa e Tony.
— Os Tofanas! — E Heath ergueu-se no sofá, alerta. — Eu já sabia. Aquele trabalho do cigarro é especialidade de Tony...
Vance descreveu seu plano ao sargento. Heath deveria combinar com Joe Hanley, o porteiro, para dar um sinal se Mirche saísse do salão de refeições pelos fundos. Hennessey e Burke deveriam receber instruções quanto ao lugar onde se postar e o que fazer. E Markham, Vance e Heath deveriam esperar na pensão fronteira ao restaurante, de onde podiam ver ou o sinal de Hanley ou Mirche entrar no seu escritório pela sacada.
Contudo, ficou demonstrado que grande parte dos preparativos complicados era desnecessária; pois a teoria e previsões de Vance com referência à situação, naquela tarde, eram inteiramente acertadas.


CAPITULO XVIII
NARCISO E ROSA
(Terça-feira, 21 de maio — 15:00 horas)

Às três horas daquela tarde, Joe Hanley, que estivera de vigia para nós, chegou à esquina da Sétima Avenida e nos informou que Mirche entrara no seu escritório pouco depois do meio-dia, e que nem ele nem Dixie Del Marr tinham sido vistos no restaurante desde então.
Encontramos as persianas das janelas estreitas baixadas e a porta do escritório achava-se trancada à chave. Além disso, não atenderam, embora batêssemos com insistência.
— Abram! — gritou Heath, ferozmente. — Do contrário, terei de arrombar a porta. — Depois, observou para nós: Acho que isso os assustará, se houver alguém lá dentro.
Pouco depois, ouvimos o ruído de passos apressados e vozes furiosas lá dentro. E, alguns momentos mais tarde, a porta nos foi aberta por Hennessey.
— Agora, tudo está bem, chefe — disse ele a Markham. — Eles tentaram fugir pela porta da parede, mas eu e Burke os obrigamos a voltar.
Quando atravessamos a porta, deparei com um quadro estranho. Burke achava-se de costas contra a pequena porta secreta, com o revólver apontado de maneira significativa para o espantado Mirche, que se achava a poucos passos dele. Dixie Del Marr, também coberta pela arma de fogo de Burke, achava-se encostada à escrivaninha, olhando para nós com uma expressão de fria resignação. Em uma das cadeiras de couro estava sentado Owen, sorrindo debilmente, com calma e cinismo. Parecia inteiramente desligado de todo o quadro geral, como um espectador que estivesse contemplando uma cena teatral que lhe ofendesse o intelecto pelo absurdo. Não olhava nem para a direita nem para a esquerda, e foi só depois que estávamos bem ao alcance do seu olhar sonolento que ele fez um leve movimento.
Mas, quando avistou Vance, levantou-se, cansadamente, e se curvou, em uma saudação formal.
— Que esforço inútil — queixou-se ele. Depois, sentou-se novamente, com um leve suspiro, como alguém que acha que tem de ficar até o fim para assistir ao resto de um drama desagradável.
Hennessey fechou a porta e ficou de pé, alerta, vigiando os ocupantes do aposento. Burke, a um sinal de Heath, deixou a mão cair para o lado do corpo, mas manteve uma vigilância severa.
— Sente-se, Senhor Mirche — disse Vance. — É apenas uma pequena discussão.
Quando o homem, lívido e assustado, deixou-se cair em uma cadeira junto à escrivaninha, Vance se curvou delicadamente, cumprimentando Dixie Del Marr.
— Não é preciso a senhorita ficar de pé.
— Prefiro ficar assim — disse a mulher, em tom de voz duro. — Há três anos que venho esperando sentada...
Vance aceitou sem comentário a sua observação misteriosa e voltou novamente sua atenção para Mirche.
— Nós estávamos conversando a respeito de preferências no tocante a vinhos e comidas — falou ele, em tom indiferente. — E eu estava imaginando qual seria a marca de cigarros que o senhor fuma.
O homem pareceu paralisado de medo. Mas logo se recuperou; um simulacro de sua antiga suavidade voltou a seu rosto. O homem fez um ruído como o de um sapo coaxando, que pretendia ser uma risada.
— Não tenho preferência por nenhuma marca — declarou ele. — Eu sempre fumo...
— Não, não — interrompeu Vance. — Refiro-me à sua marca muito especial, reservada para os eleitos.

Mirche tornou a rir e gesticulou largamente com as palmas das mãos viradas para cima, para indicar que não compreendera em nada o significado da pergunta.
— A propósito — prosseguiu Vance — nos tempos medievais, quando Madame Tofana e outros envenenadores famosos prosperaram, havia muitas flores, hoje lendas românticas para nós, que provocavam a morte com uma simples cheirada. É esquisito como essas lendas persistem e como surgem tantos exemplos da sua aparente autenticidade nos tempos modernos. É de se admirar como os velhos segredos da alquimia foram preservados até os tempos atuais. Naturalmente, tais especulações são absurdas à luz da ciência moderna.
— Não compreendo o que o senhor quer dizer com isso. — Mirche falava com uma tentativa de mostrar dignidade ferida.
— E também não entendo esta invasão ultrajante dos meus aposentos particulares.
Vance ignorou o homem um instante e dirigiu-se à Senhorita Del Marr.
— Acaso a senhorita perdeu uma cigarreira especial, com desenhos enxadrezados? Quando ela foi encontrada, tinha o cheiro de narcisos e rosa. Uma combinação excêntrica, Senhorita Del Marr, e lembra a sua pessoa.
Não se notou nenhuma mudança na expressão fisionômica da mulher, que continuou dura, embora ela hesitasse de forma evidente antes de responder.
— Não é minha. Mas creio, no entanto, que conheço a cigarreira a que o senhor se refere. Eu a vi no sábado passado neste escritório, e naquela noite ela me foi mostrada pelo Senhor Mirche. Ele a carregara durante várias horas no bolso... Talvez tenha sido assim que ela adquiriu o perfume. Onde foi que a encontrou, Senhor Vance? Disseram-me que foi esquecida aqui por um dos empregados do restaurante... Talvez o Senhor Mirche pudesse...
— Não sei de nada a respeito de tal cigarreira — disse Mirche, sem delongas. Havia energia e susto nas suas palavras. Jogou um olhar de desafio a Dixie, mas esta se achava de costas para o homem.
— Isso não importa, não é mesmo? — disse Vance. — É apenas uma referência de passagem.
Seus olhos continuavam pousados em Dixie Del Marr, e ele tornou a lhe dirigir a palavra.
— A senhorita sabe, naturalmente, que Benny Pellinzi está morto.
— Sim... Eu sei. — E suas palavras não denotavam nenhuma emoção.
— Há uma estranha coincidência nisso. Ou, talvez, apenas um capricho meu. — Vance falava como se estivesse apenas fazendo uma observação sem importância. — Pellinzi morreu na tarde do sábado passado, pouco depois de ter tido tempo de chegar a Nova York. Mais ou menos nessa altura, acontece que fui casualmente às matas de Riverdale. E, quando começava a voltar para casa, um carro grande passou velozmente pelo local onde me achava. Mais tarde, fiquei sabendo que um cigarro aceso fora jogado do carro, perto do lugar onde eu me achava de pé. Era um cigarro muito diferente dos outros, Senhorita Del Marr. Apenas tinha começado a ser fumado. Mas não era essa a única peculiaridade do tal cigarro. Além disso, havia também um veneno mortífero nele. O equivalente moderno das fabulosas flores envenenadas que figuravam nas tragédias medievais. E, contudo, fora jogado descuidadamente em uma rodovia pública...
— Uma ação imbecil — disse Owen, em tom de voz suave mas cheio de censura.
— Casual, digamos assim... do ponto de vista finito. Mas, na verdade, inevitável. — Vance também falava em tom suave. Só existe um modo de agir em todo o universo.
— Sim — falou Owen, em tom vago e sonhador. A imbecilidade humana é um dos fatores que concorrem para a fatalidade dos acontecimentos.
Vance não se virou. Estava observando atentamente a expressão fisionômica de Dixie Del Marr.
— Posso prosseguir, Senhorita Del Marr, ou minha história a importuna.
Dixie não deu nenhum sinal de ter ouvido a pergunta.
— A cigarreira a que me referi — prosseguiu Vance — foi encontrada no cadáver de Pellinzi. Mas não havia cigarros dentro dela. E ela não continha nenhum cheiro picante de amêndoas amargas... Só o cheiro doce de narciso e rosa... Mas Pellinzi foi envenenado pelo cheiro desse perfume. E, novamente, entra em ação o mortífero agente do romance antigo... É estranho, não é? Como a fantasia evoca associações tão remotas. O pobre Pellinzi deve ter confiado e acreditado em quem o assassinou. Mas sua fé encontrou apenas traição e morte.
Vance fez uma pausa. Havia grande tensão no pequeno aposento. Só Owen parecia despreocupado. Olhava diretamente para diante, com uma expressão fisionômica sem esperanças e distante e a boca torcida por uma expressão cruel.
Quando Vance tornou a falar, suas maneiras tinham mudado: havia uma repentina severidade na sua voz.
— Mas talvez, afinal de contas, eu não esteja sendo lá muito imaginoso. A quem, senão a Senhorita Del Marr, teria Pellinzi comunicado em primeiro lugar a sua chegada a Nova York? E como poderia ele ter sabido, nesses últimos anos, que outro homem conquistara o coração da mulher que outrora lhe pertencera? Possui um carro grande e fechado, Senhorita Del Marr. Uma viagem secreta a Riverdale teria sido coisa fácil para a senhorita. A cigarreira, com o seu perfume sutil, foi encontrada com o cadáver. O amor muda e é cruel...
Owen deixou escapar uma risadinha gélida. Suas sobrancelhas arquearam-se ligeiramente. A expressão cruel da sua boca se transformou em um arremedo de sorriso.
— Muito hábil, Senhor Vance — murmurou ele. Na verdade, admirável. Padrões dentro de padrões. Como o homem se deixa enganar facilmente por fantasmas!
— É a enganosa ordem que existe no caos — falou Vance. Owen fez um aceno de cabeça, quase imperceptível. Seu rosto voltou a ser uma satírica máscara.
— Sim — disse ele, em tom suave. — O senhor também tem um senso exotérico de humor.
— Duvido — murmurou Vance — que a Senhorita Del Marr aprecie o humor da morte.
Um gemido estrangulado irrompeu da garganta da mulher. Ela deixou-se cair em uma cadeira e cobriu o rosto com as mãos.
— Oh, meu Deus! — Foi o primeiro rompimento do seu controle rígido.
Seguiu-se longo silêncio. Mirche olhou um instante para Vance e novamente para a mulher. Seu rosto recuperara parte da sua cor, mas um medo intenso lhe brilhava nos olhos: um medo de um fantasma maligno, cuja forma ele não sabia determinar. Compreendi que se iam acumulando na sua mente perguntas que ele não ousava formular.
A mulher ergueu lentamente a cabeça; as mãos lhe caíram no colo e ficaram lá, em atitude de completo desânimo: A dureza venenosa da sua natureza recuperou o controle. Dixie esteve para falar, mas também ela conteve o impulso, como se a pressão das suas emoções ainda não tivesse alcançado o ponto de libertação.
Vance acendeu lentamente um dos seus cigarros. Depois de tirar duas baforadas, falou novamente com Dixie, e suas palavras pareceram indiferentes, como se ele estivesse fazendo uma pergunta que não contivesse nenhuma importância particular.
— Ainda há uma coisa que me intriga, Senhorita Del Marr... Por que trouxe Pellinzi, morto, para este escritório?
A mulher sentou-se como uma estátua de mármore, enquanto um cacarejo desdenhoso escapou dos lábios de Mirche.
— Está-se referindo, Senhor Vance, — perguntou ele, à sua antiga maneira pomposa — ao homem encontrado morto neste escritório? Estou começando a compreender o seu interesse no lamentável episódio que se passou aqui na noite de sábado. Mas receio que tenha permitido à sua imaginação levá-lo completamente de roldão. O cadáver encontrado aqui era o de um dos empregados do restaurante.
— Sim. Sei a quem se refere, Senhor Mirche. A Philip Allen. Vance falava em tom de voz macio. — Como o senhor disse naquela noite. E não tenho dúvidas de que o senhor acreditava nisso, e de que ainda acredita. Mas, às vezes, os fatos aparentes atuam de forma esquisita. Um padrão está sujeito a mudar o seu desenho da maneira mais incrível... Não é verdade, Senhor Owen?
— É sempre verdade — replicou o espectador silencioso da cadeira. — Confusão. E nós somos as vítimas...
— A que ponto vocês dois querem chegar? — indagou Mirche, levantando-se a meio na sua cadeira, enquanto o medo lhe transparecia nos olhos.
— A verdade, Sr, Mirche, é — falou Vance — que Philip Allen está bem vivo. Depois que o senhor o mandou embora do emprego e que ele, casualmente, deixou uma cigarreira aqui, que realmente não lhe pertencia, Philip Allen não voltou a este escritório.
— Ora, isto é ridículo! — E Mirche perdera a suavidade da fala. — Do contrário, como poderia ele...?
— Era Benny Pellinzi quem estava caído no soalho, naquela noite, morto!
A esta notícia, Mirche tornou a se deixar cair de repente na sua cadeira e ficou olhando, com ar de desafio sem esperanças, para o homem que estava diante de si. Mas os fatos ainda não se tinham organizado na sua mente, e ele recomeçou a protestar.
— Isso é absurdo... Completamente absurdo! Eu próprio vi o cadáver de Allen. E o identifiquei.
— Oh, não discuto a sinceridade da sua identificação. — Vance aproximou-se mais do homem perplexo. Seu tom de voz era quase meloso. — O senhor estava com todas as razões para supor que o morto fosse Philip Allen. Ele é do mesmo tamanho que Pellinzi. Tem a mesma forma de rosto e a mesma cor de pele, e naquele dia ele estava vestindo um terno preto igual ao que Pellinzi usava quando o mataram. O senhor acabara de falar com Philip Allen, no seu escritório, algumas horas antes, e, conforme me disse ontem, o senhor não se surpreendeu pelo fato de ele ter voltado aqui. Além disso, a morte pelo envenenamento muda a expressão dos olhos e todo o aspecto geral do rosto. Acresce, ainda, que Pellinzi era a última pessoa no mundo que o senhor teria esperado encontrar no seu escritório, principalmente naquela noite. Sim, a última pessoa no mundo...
— Mas por que — gaguejou Mirche — por que Pellinzi devia ter sido a última pessoa no mundo que eu teria esperado? Eu sabia, pelos jornais, que o homem fugira da cadeia. E era bem possível que ele tivesse cometido a tolice de me procurar para pedir ajuda.
— Não... Oh, não. Não me refiro a isso, Senhor Mirche — retrucou Vance, tranqüilamente. — Eu tinha outro motivo, mais convincente, para saber que o senhor não esperaria encontrar Pellinzi aqui naquela noite... O senhor sabia que Pellinzi estava morto em Riverdale.
— Ora, como poderia eu ter sabido que ele estava morto? — gritou o homem, freneticamente, saltando de pé. — O senhor mesmo disse que seria Dixie Del Marr a quem ele teria apelado primeiro, e o carro dela, sua viagem a Riverdale... Bolas... O senhor não me pode intimidar!
— Tenha mais calma, Dan — falou Owen, com petulância. — Já existe tumulto de sobra neste mundo pobre. A confusão me cansa.
— Novamente, receio que me tenha entendido mal, Senhor Mirche. — Vance ignorou a queixa de Owen a seu assecla amedrontado. — Quis dizer, apenas, que a Senhorita Del Marr deve tê-lo informado a respeito do fato. Tenho certeza de que vocês dois não ocultam segredos um do outro. Têm uma confiança mútua completa, mesmo no crime. E, sabendo que Pellinzi estava morto em Riverdale, e que a sua digamos assim, sócia? — dificilmente traria o cadáver para cá, como poderia o senhor imaginar que o homem encontrado morto neste escritório, naquela noite, era Pellinzi? Como teria sido natural cometer um erro de identificação! E, já que não poderia ser Pellinzi, deveria ser outra pessoa qualquer. E com que presteza — e com que lógica — Philip Allen lhe veio à idéia... Mas era Pellinzi.
— Como é que o senhor sabe que era Benny? — E Mirche estava atrapalhado, perturbado por alguma visão mental íntima. — O senhor está tentando enganar-me. — Depois, ele quase gritou: — Repito... Não poderia ter sido o Abutre!
— Ah, poderia, sim. É um engano da sua parte. — Vance falava tranqüilamente e com autoridade. — Não há dúvidas possíveis. As impressões digitais não mentem. Pergunte ao sargento Heath ou ao procurador distrital. Ou pode telefonar para a polícia e certificar-se.
— Imbecil! — cortou Owen, com os olhos sonolentos pousados em Mirche, com uma expressão de indizível aborrecimento. Virou-se para Vance. — Afinal de contas, como é fútil... este sonho diabólico... Esta sombra que nos cobre... — E a voz lhe faltou.
Mirche estava olhando fixamente para algum ponto distante além dos limites do cômodo, sozinho com seus pensamentos, lutando para juntar um punhado de fatos isolados.
— Mas — murmurou ele, como se protestando debilmente contra algum vingador inevitável e sem forma — a Senhorita Dell Marr viu o cadáver aqui e...
O homem tornou a cair no silêncio, pensando no assunto. E então um profundo rubor lhe foi aumentando nas feições e aos poucos foi ficando de cor mais intensa, até que pareceu que o sangue ia sufocá-lo. Os músculos do seu pescoço enrigeceram e gotículas de suor lhe apareceram de repente na testa.
Rigidamente e com esforço, o homem virou-se para Dixie Del Marr e, em uma voz de ódio fremente, descarregou contra ela uma saraivada de palavrões.


CAPITULO XIX
ATRAVÉS DA SOMBRA
(Terça-feira, 21 de maio — 16:00 horas)

Outra onda de emoções fortes rompeu a calma de pedra de Dixie Del Marr. Uma paixão violenta e primitiva a consumia por dentro. Ela se levantou e encarou Mirche, e suas palavras saíram em uma torrente incontrolável.
— Claro, sua criatura suja, que eu os deixei pensar que o morto encontrado neste escritório — o homem que você matou — era Philip Allen. Mais alguns dias de dúvida e de tortura para você... Que importava isso? Eu já esperara vários anos para vingar Benny. Oh, eu sabia muito bem que a sua traição o mandara para a cadeia para cumprir vinte anos de prisão. E eu não pude dizer nada para salvá-lo. Havia só um jeito de eu vingar essa injustiça. Eu tinha de esperar com paciência, pois sabia que um dia chegaria a hora... Você gostava de mim... Você me queria. Esse pensamento de me possuir já estava na sua mente inferior quando você deixou que mandassem Benny para a cadeia. Por isso, fingi que estava do seu lado e o ajudei nos seus planos ilegais. Eu o lisonjeei. Fiz o que você mandava. E durante o tempo todo eu amava Benny. Mas eu soube esperar...
Dixie deu uma risada amarga.
— Três anos são muito tempo. E o instante que eu esperara veio tarde demais. Mas eu me consolo com o pensamento de que a morte de Benny foi um fim misericordioso. Ele não podia ter esperanças de uma vida normal, embora tivesse conseguido fugir da prisão. Benny passara a vida inteira sendo perseguido pela polícia. Mas ele foi furioso para a sua cela. Tão furioso a ponto de pensar que podia encontrar a verdadeira liberdade da prisão, para onde a sua traição o havia mandado. Uma fúria irresistível tomou conta da mulher.
— Mas Benny nunca soube da sua traição. Pensava que você era amigo dele. E veio à sua procura para pedir ajuda. Mas, graças a Deus, ele telefonou também para mim quando voltou, no sábado passado. Contou-me que havia telefonado para você antes de chegar à cidade. Que você dissera que o ajudaria. E eu sabia que isso era mentira. Mas que podia eu fazer? Tentei preveni-lo. Mas Benny não me quis dar ouvidos. Pensou que, talvez, depois de tanto tempo, eu tivesse algum motivo forte para querer evitar um encontro entre vocês dois. Não me quis dar ouvidos. Não me contou nada dos seus planos, exceto que você ia ajudá-lo...
— Você está doida — conseguiu dizer Mirche.
— Cale-se, idiota — suspirou Owen. — Você não pode mudar o curso do destino.
— Por isso, eu o segui, Dan, no carro que você me deu, e com o motorista que você me forneceu e que fazia parte da sua quadrilha. — Dixie tornou a rir, com a mesma amargura. — Ele o odeia tanto quanto eu... Mas ele tem medo de você, pois sabe que você pode ser muito perigoso... Eu o segui, desde a hora em que você saiu daqui, na tarde de sábado. Eu sabia que você não deixaria Benny ir até onde você se achava, pois, apesar da sua crueldade, você é um covarde. E eu o segui a um bairro afastado e vi quando você entrou na casa de Tony... Pena que Rosa não tivesse olhado na sua bola de cristal para preveni-lo... E então compreendi o plano torpe que você estava armando para se livrar do Benny. Mas não imaginei que você tivesse coragem de executá-lo, como o fez. Pensei que Benny só deveria morrer quando você estivesse a salvo novamente no seu escritório. Como iria eu saber que você escolheria os cigarros do Tony para fazer o serviço? Pensei que eu ainda podia avisar Benny, antes que fosse tarde de mais... Pensei que eu ainda podia salvá-lo. Por isso, segui você. Vi quando você o apanhou, no lugar onde ele se achava escondido, bem no interior do parque; vi quando você seguiu com o carro rumo ao norte,
atravessando Riverdale; vi quando você parou em um ponto isolado, depois de uma curva, onde pensava que ninguém podia vê-lo. E então, eu o vi colocar o cadáver de Benny rapidamente ao lado da estrada e afastar-se velozmente de carro. A mulher nos varreu com um olhar ardente.
— Oh! Não estou mentindo! — gritou ela. — Nada mais me interessa... exceto o castigo deste homem.
Mirche parecia paralisado, incapaz de falar. Owen, ainda com seu sorriso céptico e distante, não se movera.
— Queira prosseguir, Senhorita Del Marr — pediu Vance.
— Levei o corpo de Benny para meu carro e trouxe-o para aqui, quando sabia que Mirche estaria lá em cima. Cheguei à alameda de entrada de carros, como sempre faço, e parei perto da porta lateral, na extremidade da passagem. — Ela apontou para os fundos do aposento. — Ninguém me podia ver da rua... com a porta do carro aberta. E as trepadeiras também ajudaram a me encobrir. Depois, entrei para me certificar de que não havia ninguém no corredor mais além, e dei o sinal. Meu motorista carregou o pobre Benny e o colocou aos pés do homem que o matara...! Você não sabia, não é, ”Coruja”, que havia um morto naquele armário, quando esteve sentado aqui, conversando comigo, naquela noite?
— E daí? — Houve uma mudança na expressão de Owen.
— E, quando você saiu, ”Coruja”, eu trouxe Benny para baixo da escrivaninha e telefonei para a polícia.
Agora, compreendi que Vance provocara deliberadamente o desabafo frenético da mulher. Enquanto ela falava, ele fizera um sinal ao sargento, e Heath e Hennessey se aproximaram de Mirche sem que este percebesse, e agora o homem se achava com um guarda de cada lado.
— Mas como é, Senhorita Del Marr, — perguntou Vance — que a sua história explica o fato de a cigarreira com perfume de narciso e rosa ter sido encontrada no bolso de Pellinzi?
— Foi medo! Foi a consciência deste patife — retorquiu ela, apontando para Mirche com ar de desafio. — Quando viu o que julgava ser o cadáver de Allen, seu cérebro assustado e enevoado se lembrou de que a cigarreira de Philip Allen ainda estava no seu bolso. E eu o vi, ajoelhado ao lado do cadáver, enfiar a cigarreira no bolso do paletó do morto. O ato impulsivo de um covarde, com o qual ele pretendia livrar-se de toda associação com o que ele julgava ser um segundo assassinato. Mirche queria evitar qualquer possível relacionamento de sua pessoa com outro cadáver.
— É uma versão razoável — murmurou Vance. — Sim. Uma análise bem sutil... E a senhorita se contentou em deixar que a verdade com referência ao morto aparecesse por meio das investigações?
— Sim! Depois de informar à polícia o endereço de Philip Allen, eu sabia que mais cedo ou mais tarde a justiça acabaria descobrindo a verdade. E, enquanto isto, este meliante, Mirche, ficaria preocupado e sofreria... E eu teria meios de sobra para torturá-lo.
— A ética de uma mulher... — começou Owen. Depois, voltou a ficar em silêncio.
— Tem alguma coisa a dizer antes de o prendermos, Mirche? — o tom de voz de Vance era baixo, mas cortante como uma chicotada.
Mirche ficou olhando, de um modo terrível, e sua figura gorducha pareceu encolher-se. De repente, contudo, ele se levantou e apontou um dedo trêmulo contra Owen. As veias do seu rosto estufaram-se como cordéis.
Owen fez um ruído gutural de desprezo.
— Cuidado com a pressão sangüínea, idiota — zombou Owen. — Não vá poupar esse trabalho ao carrasco.
Duvido que Mirche tenha ouvido essas palavras mordazes. Os vitupérios e os palavrões entornaram dos seus lábios. Sua ira parecia ultrapassar todas as fronteiras humanas. Seu veneno transformou-o em um mero autômato: insensato, contorcido, repelente.
— Não pense que levarei a culpa em seu lugar, sem dizer nada! Já cedi demasiado tempo sob a sua influência. Executei os seus planos sujos. Fechei a boca sempre que eles tentavam arrancar de mim a verdade a seu respeito. Posso ir para a cadeira elétrica, ”Coruja”, mas não sozinho! Levarei comigo você com seu cérebro hipnótico e envenenado!
Dirigiu um olhar rápido a Vance e apontou novamente para Owen.
— Ali está o cérebro tortuoso que planejou tudo isto... Eu o avisei da chegada do Abutre, e Owen me mandou buscar os cigarros. Ele me disse o que eu devia fazer. Tive medo de recusar... Achava-me em seu poder...
Owen olhou para o homem com calma zombaria: continuava distante e desdenhoso. A peça estava chegando ao fim, e o seu desprezo e a monotonia da situação ainda não o tinham abandonado.
— Você é um espetáculo triste, Dan. — Seus lábios mal se moveram.
— Se pensa que não estou preparado para este momento, o tolo é você, e não eu. Guardei todos os registros e dados: nomes, lugares... tudo! Durante vários anos, tenho guardado, essas coisas. Eu as ocultei onde ninguém as pode encontrar. Mas eu sei onde as encontrar! E o mundo inteiro saberá...
Essas foram as últimas palavras que Mirche disse em sua vida.
Ouviu-se um tiro. Um pequeno orifício preto apareceu na testa de Mirche, entre os olhos. O sangue gotejou do orifício e o homem tombou para diante, em cima da escrivaninha.
Heath e os dois detetives, com as automáticas empunhadas, começaram rapidamente a atravessar o aposento, para chegar até junto ao imóvel Owen, que continuou sentado, sem se mover, uma das mãos apoiada no colo, empunhando um revólver fumegante.
Mas Vance interveio rapidamente. De costas para a figura silenciosa na cadeira, fez um gesto imperioso para Heath. Virou-se lentamente, depois, e estendeu a mão. Owen ergueu o olhar na sua direção e depois, como se por uma cortesia instintiva, virou o revólver, com o cabo voltado para Vance, e estendeu-o com mansa indiferença. Vance jogou a arma em cima de uma cadeira vazia e, olhando para o homem, esperou.
Os olhos de Owen achavam-se semicerrados e sonhadores. ”O Coruja” não parecia mais notar o que o cercava, nem o corpo de Mirche, que ele acabara de matar, esparramado no chão. Finalmente, ele falou, em um tom de voz que parecia estar vindo de muito longe.
— Isso teria significado as vagas na superfície da água. Vance assentiu de cabeça.
— Sim. Limpeza de espírito... Mas, agora, haverá o julgamento, a cadeira elétrica, o escândalo, que ficarão gravados indelevelmente...
Um tremor sacudiu o débil corpo de Owen. Sua voz se ergueu, até se transformar em um grito agudo.
— Mas como se pode escapar ao finito? Como atravessar a sombra, limpo?
Vance tirou do bolso a cigarreira e segurou-a um instante na mão, mas não a abriu.
— Quer fumar um cigarro, Senhor Owen? — indagou ele. Os olhos do homem contraíram-se. Vance tornou a enfiar sua cigarreira no bolso.
— Sim... — E Owen respirou aliviado, afinal. — Acho que vou mesmo fumar um cigarro. — Enfiou a mão em um bolso interno e de lá tirou uma pequena cigarreira de couro, luxuosa...
— Escute aqui, Vance! — cortou Markham. — O caso deixou de ser da sua alçada. Foi cometido um homicídio diante dos meus olhos, e eu próprio ordeno a prisão deste homem.
— Perfeitamente — disse Vance, em voz arrastada. — Mas, infelizmente, acho que já é tarde demais para isso.
Enquanto Vance falava, Owen afundou mais na sua cadeira; o cigarro que ele acabara de acender lhe escorregou dos lábios e caiu no soalho. Vance esmagou-o rapidamente com o pé.
A cabeça de Owen pendeu para diante, caindo sobre o peito: os músculos do seu pescoço tinham-se relaxado repentinamente.


CAPITULO XX
FELIZ ATERRAGEM
(Quarta-feira, 22 de maio — 10:30 horas)

Na manhã seguinte, Vance achava-se sentado no gabinete do procurador distrital, conversando com Markham. Heath estivera lá, antes, com a notícia da prisão dos Tofanas. No porão da casa deles tinham sido encontradas provas suficientes para condenar ambos, ou pelo menos assim esperava o sargento.
Dixie Del Marr também comparecera, a pedido de Markham, para fornecer pormenores necessários para os registros oficiais. Como não havia nenhum motivo para lhe fazer acusações pelo papel que ela tivera nos negócios de Mirche, Dixie mostrava-se relativamente satisfeita quando nos deixou.
— Realmente, Markham — observou Vance. — Em vista do antigo amor dessa mulher por Benny Pellinzi, sua conduta, como sabemos, é perfeitamente compreensível e perdoável... Quanto a Mirche, teve um fim muito melhor do que merecia... E Owen! Um louco doente. Felizmente, para o mundo, ele escolheu um jeito tão rápido de sair de cena! Sabia que estava morrendo e foi o temor do castigo que lhe inspirou o ato... Podemos dar-nos por satisfeitos em encerrar o assunto. E, afinal de contas, realmente eu fiz ao lunático uma promessa vaga de zelar pelas conseqüências do caso, para que não houvesse ”ondas”, como ele mesmo disse, a segui-lo.
Vance riu melancolicamente.
— Mas, na verdade, que importa isso? Um facínora de importância, é encontrado morto, um acontecimento bem vulgar; um meliante de importância maior é morto com um tiro, também um episódio corriqueiro; e o chefão de uma quadrilha de criminosos se suicida... Bem, talvez isto seja um acontecimento raro, mas, sem dúvida, sem importância... Em todo caso, estamos em plena primavera; a cotovia está esvoaçando, contente, até o caramujo se movimenta... Ei! Que tal irmos comer uns camarões com um bom vinho, depois?
Enquanto Vance falava, a campainha da porta soou e uma voz anunciou a presença do Senhor Amos Doolson na sala de espera. Markham olhou para Vance.
— Suponho que seja a respeito daquele prêmio absurdo. Mas não posso receber o homem agora...
Vance levantou-se rapidamente.
— Deixe-o esperar, Markham! Tive uma idéia.
Depois, foi ao telefone e falou com a Fábrica de Perfumes In-O-Scent. Quando desligou, sorriu para Markham.
— Gracie Allen e George Burns estarão aqui dentro de quinze minutos. — Riu baixinho, realmente muito satisfeito. — Se alguém merece o prêmio, é aquela garota incrível, e vou tomar providências para que ela o receba.
— Ora, você está doido? — disse Markham, surpreso.
— Nada disso. Estou no meu juízo perfeito. E... embora talvez você duvide, sou apaixonadamente dedicado à justiça.
Pouco depois, Gracie Allen e George Burns chegavam.
— Oh, que lugar horrível! — falou ela. — Ainda bem que não tenho de viver aqui, Senhor Markham. — Ela virou os olhos preocupados para Vance. — Tenho de continuar com meu trabalho de detetive? Prefiro trabalhar na fábrica, agora que George voltou e que tudo está bem.
— Não, minha querida — falou Vance, em tom de voz bondoso. — Você já trabalhou até demais. E os resultados que alcançou são soberbos. Na verdade, pedi que você viesse aqui, esta manhã, apenas para receber a sua recompensa. Foi oferecido um prêmio de cinco mil dólares à pessoa que resolvesse o assassinato do homem no Domdaniel. Quem fez o oferecimento foi o Senhor Doolson; e ele está na outra sala, neste instante.
— Oh! — E desta vez Gracie Allen ficou tão intrigada e atônita, que perdeu a fala.
Quando Doolson foi introduzido, dirigiu um olhar de espanto aos seus dois empregados e foi diretamente para a escrivaninha de Markham.
— Quero retirar imediatamente o prêmio, Senhor Markham — disse ele. — Burns voltou para o trabalho, hoje cedo, com excelente disposição, e portanto não há mais necessidade de...
Markham, que já se ajustara ao ponto de vista de Vance, jocoso mas justo, falou na sua maneira mais judiciosa.
— Lamento extremamente, Senhor. Doolson, mas tal retirada está inteiramente fora de cogitações. O caso foi encerrado e arquivado ontem à tarde... Bem dentro do limite de prazo estipulado pelo senhor. Agora, sou obrigado a entregar o prêmio à pessoa que o mereceu.
O homem arregalou os olhos e gaguejou:
— Mas!... — começou ele a argumentar.
— Sentimos tremendamente, Senhor Doolson — intrometeu-se Vance, em tom conciliatório. — Mas tenho certeza de que o senhor ficará satisfeito com sua generosidade impulsiva, quando eu o informar de que é Gracie Allen quem vai receber o prêmio.
— Quê! — explodiu Doolson, como se fosse ter uma apoplexia. — Que é que Gracie Allen tem a ver com isso! É um absurdo!
— Não é, não — retrucou Vance. — É a simples declaração de um fato. Gracie Allen foi a principal colaboradora na solução do caso. Foi ela quem forneceu todas as pistas importantes... E afinal de contas, o senhor recuperou os serviços do Senhor Burns hoje.
— Não consentirei nisso — gritou o homem. — É uma tramóia! Uma farsa! Vocês não me podem obrigar legalmente a fazer isso!
— Pelo contrário, Senhor Doolson — disse Markham. — Sou obrigado a considerar esse dinheiro propriedade da moça. As próprias instruções quanto à concessão do prêmio — ditadas aqui pelo senhor mesmo — não lhe dariam nenhuma arma se o senhor resolvesse impedir legalmente o seu pagamento.
Doolson ficou boquiaberto.
— Oh, Senhor Doolson — exclamou Gracie Allen. — Que lindo prêmio! E o senhor realmente fez isso para que George voltasse para o trabalho voando? Nunca pensei nisso. Mas o senhor precisa terrivelmente dele, não é? E isso me dá outra idéia. Que tal um aumento de salário para George?
— Raios! Isso eu não faço! — E, por um instante, pensei que Doolson estava à beira de um colapso cardíaco.
— Mas suponha, Senhor. Doolson, — prosseguiu Gracie Allen
— que George tornasse a ficar preocupado e não pudesse ir trabalhar! Que seria da sua firma?
O homem controlou-se e estudou George Burns sombriamente, pensativo, durante alguns momentos.
— Sabe, Burns, — disse ele, em tom quase conciliatório — estive pensando, há algum tempo, e achei que você merecia um aumento. Você tem sido um empregado muito leal e muito valioso para a firma. Volte para o seu laboratório imediatamente e discutiremos amigavelmente o assunto. — Depois, virou-se e apontou um dedo para a jovem. — E você, menina, está despedida!
— Oh, não tem importância, Senhor Doolson — retrucou a moça, sorridente e indiferente. — Aposto que o aumento que o senhor vai dar a George fará o salário dele subir e igualar a quantia que o meu e o dele juntos dariam... entende o que eu digo?
— Raios me partam se me importo um pouco, sequer, com o que você diz. — E Doolson saiu pisando duro da sala.
— Creio — disse Vance, amavelmente — que a observação seguinte deve vir de George Burns. — E sorriu para o jovem, de maneira significativa.
George Burns, embora claramente atônito com os acontecimentos da última meia hora, ainda assim estava com a cabeça suficientemente clara para entender o significado das palavras de Vance. Agarrando a sugestão feita, dirigiu-se resolutamente para onde se achava a moça.
— Que tal aquela proposta que fiz a você, na manhã em que me prenderam?
Nossa presença, longe de deixá-lo embaraçado, deu-lhe coragem.
— Ora, que proposta? — perguntou a jovem, maliciosamente.
— Você sabe a que me refiro! — E seu tom de voz era rouco e resoluto. — Que tal nós dois nos casarmos.
Gracie Allen caiu para trás em uma cadeira, com uma risada musical.
— Oh, George! Era isso que você estava tentando dizer!
Pouco mais falta a falar a respeito do que Vance sempre insistiu em chamar de o caso Gracie Allen.
O Domdaniel, como todos sabem, foi fechado há muito tempo, e há poucos anos foi demolido e no seu lugar construído um prédio moderno. Tony e Rosa Tofana resolveram confessar seus crimes e agora estão cumprindo sentença na penitenciária. Não sei o que foi feito de Dixie Del Marr. Talvez tenha adotado novo nome e ido para outra parte do país, para viver tranqüilamente longe dos locais dos seus passados triunfos e sofrimentos.
Gracie Allen e George Burns casaram-se pouco depois daquela proposta de casamento inesperada e divertida, feita no gabinete de Markham.
Em certa tarde de sábado, alguns meses depois, eu e Vance encontramos o jovem casal dando um passeio a pé na Quinta Avenida. Os dois pareciam radiantes de felicidade, e a moça, como sempre, tagarelava muito animadamente.
Paramos alguns minutos para falar com eles. Soubemos que George Burns fora promovido no seu emprego na fábrica de perfumes. E, para gáudio de Vance, veio à baila o fato de que Gracie Allen, por motivos sentimentais, apresentara seu cartão ao Senhor Lyons, da loja Chareau e Lyons, de roupas feitas, quando fora escolher seu vestido de noiva.
Caminhamos ao lado deles durante um curto trecho, e George Burns, no meio de uma frase, parou de repente e notei que suas narinas se dilataram ligeiramente, enquanto ele se inclinava na direção de Vance.
— A fórmula original de Farina para a água-de-colônia! Vance riu.
— Sim. Eu sempre trago água-de-colônia, quando vou à Europa. E isso me faz lembrar: hoje cedo, vi, em uma revista francesa, o nome de um perfume que, depois da colaboração indispensável da Senhora. Burns no nosso caso, você poderia dar, muito apropriadamente, à delicada mistura que você fez para ela. Chamava-se La Femme Triomphant.
Burns sorriu, todo orgulhoso.
— Acho que Gracie o ajudou bastante, Senhor Vance.
A jovem olhou de um para outro, franzindo o cenho, intrigada, e depois riu, acanhada.
— Não compreendo...

O caso chamado Gracie Allen foi sem dúvida o que mais agradou a Philo Vance entre todos aqueles de que participou. Podemos acrescentar que foi talvez o mais divertido de todos.
É verdade que um crime de morte nada tem de divertido e o mistério narrado neste livro tem aspectos sinistros, sombrios e intensamente dramáticos. Mas isso não impediu que o caso, talvez pela intervenção e pelo auxílio de Gracie Allen, tenha um fermento quase constaste de humor e divertimento.
Foi, entretanto, um caso quase incrível de muitos ângulos, mostrando-se extremamente fora do comum e imprevisível. O mistério e o encantamento do perfume impregnam todo o quadro. A magia das previsões comerciais do destino das pessoas se relacionou intimamente com a sua decifração. E houve em todo ele um forte elemento romântico.
Como se vê, O Caso Gracie Allen tem todos os elementos para ser um grande romance policial, pois, além de todos esses ingredientes ótimos, ainda apresenta a personalidade magnífica do grande detetive que é Philo Vance, criação magistral de S. S. Van Dine, que foi um dos grandes autores policiais do mundo.

 

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CAPITULO I
FOGE O ABUTRE

(Sexta-feira, 17 de maio — 20:00 horas)
Por estranho que pareça, Philo Vance sempre gostou mais do caso Gracie Allen do que de qualquer dos outros em que tomou parte ativa.
Talvez esse caso não tenha sido tão sério como alguns dos outros; mas, pensando melhor, não tenho certeza absoluta de que isso seja estritamente verdadeiro. Para ser exato, potencialmente o caso Gracie Allen continha um sem-número de maus agouros. E agora, passando-o mentalmente em revista, relembro que seus elementos básicos eram intensamente dramáticos e sinistros, apesar do seu quase constante tempero de humor.
Nas várias vezes em que perguntei a Vance por que ele gostava tanto desse caso, ele sempre me respondeu, com ar indiferente, que o mesmo constituiu o seu único fracasso flagrante como investigador dos inúmeros crimes que lhe foram apresentados pelo procurador distrital John F.-X. Markham.
— Não... Oh, não, Van; o caso não foi meu, você não sabe? — falou Vance, em tom arrastado, enquanto nós dois estávamos sentados diante do fogo da sua lareira, em certa noite de inverno, muito depois dos acontecimentos. — Na verdade, não mereço nenhum elogio por ele. Eu teria ficado completamente confuso e perdido, não fora a encantadora Gracie Allen, que sempre aparecia na hora do aperto para me salvar do desastre. Se algum dia você publicar esse caso, peço que atribua o mérito a quem realmente o conquistou. Arre, que pequena fenomenal! As deusas do lar olímpico de Zeus jamais atormentaram tanto os velhos Príamo e Agamenon com o esplendor exibido por Gracie Allen ao apoquentar os personagens daquele caso altamente perfumado. Espantoso!...
Foi um caso quase incrível sob vários aspectos, extremamente fora do comum e imprevisível. O mistério e o fascínio do perfume impregnavam todo o quadro. A magia da adivinhação, da cartomancia e da quiromancia comercial estava intimamente envolvida na sua decifração. E havia um elemento humano romântico que lhe emprestou uma cor-de-rosa toda especial.
Para início de conversa, era primavera — o décimo sétimo dia de maio — e o tempo apresentava-se extremamente agradável. Vance, Markham e eu jantáramos na espaçosa varanda do Bellwood Country Club, de onde se dominava o Hudson. Nós três tagareláramos sobre assuntos banais, pois aquela devia ser uma hora de completo relaxamento e prazer, sem nenhuma intromissão dos ásperos interlúdios de crimes que haviam marcado tantas de nossas palestras em anos recentes.
No entanto, até neste momento de serenidade, iam-se alongando feios ângulos de crime, embora nenhum de nós o soubesse; e sua sombra se aproximava sorrateiramente de nós.
Acabáramos de tomar nosso café e estávamos bebericando um delicioso licor fabricado por frades, quando o sargento Heath, com um aspecto sério e espantado, apareceu na porta que levava da sala de jantar principal para a varanda e caminhou em passos largos e rápidos para a nossa mesa.
— Olá, Senhor Vance. — Seu tom de voz era de pressa. — Olá, chefe. Desculpe importuná-lo, mas isto chegou à delegacia meia hora depois da sua partida, e, como eu sabia onde o senhor estava, achei melhor trazê-lo sem demora. — Puxou uma folha dobrada de papel amarelo do bolso e, abrindo-a, colocou-a de maneira enfática diante do procurador distrital.
Markham leu cuidadosamente, fez um movimento de indiferença com os ombros e devolveu o papel a Heath.

— Não entendo — falou ele, sem emoção alguma — por que uma informação rotineira como esta lhe exigia uma viagem até aqui.
As faces de Heath inflamaram-se de exasperação.
— Ora, chefe, esse foi o sujeito que ameaçou sua vida.
— Sei perfeitamente disso — observou Markham, friamente. E depois acrescentou, em tom de voz mais suave: — Sente-se, sargento. Considere-se de folga por alguns instantes e tome um gole do seu uísque predileto.
Depois que Heath se instalara em uma cadeira, Markham prosseguiu.
— Claro que você não espera que eu, depois de tanto tempo, comece a levar a sério as ameaças histéricas de criminosos que condenei no cumprimento dos meus deveres.
— Mas esse sujeito é perigoso, chefe, e não é dos que esquecem ou perdoam.
— Em todo caso — riu Markham, despreocupado —, ele demorará, no mínimo, até amanhã para chegar a Nova York.
Enquanto Heath e Markham falavam, as sobrancelhas de Vance se ergueram, desmonstrando leve curiosidade.
— Escute, Markham... Ao que me parece, o seu sargento teme pela sua existência cerceada, e vejo que você mesmo está um tanto aborrecido com a preocupação zelosa dele.
— Ora, Senhor Vance, não estou preocupado — disse Heath, em um desabafo. — Estou só pensando nas possibilidades, digamos assim.
— Sim, sim, eu sei — sorriu Vance. — Sempre cuidadoso. Cosendo costuras que nem sequer ainda foram rebentadas. Capaz e admirável como sempre, sargento. Mas de onde vem a sua apreensão?
— Sinto muito, Vance. — Markham pediu desculpas pelo seu fracasso de explicação. — Na verdade, não tem nenhuma importância. É apenas um aviso telegráfico de rotina de uma fuga comum em Nomenica. Três homens, condenados a sentenças longas, tentaram a fuga, e dois deles foram baleados pelos guardas...

— Não estou preocupado com os sujeitos que foram baleados — interrompeu Heath. — Minha preocupação está com o outro, com o sujeito que conseguiu escapar...
— E quem seria esse personagem que lhe dá tanto que pensar, sargento? — indagou Vance.
— Benny, o Abutre! — murmurou Heath, com ênfase melodramática.
— Ah! — E Vance sorriu. — Um espécime ornitológico... Buteo borealis. Talvez ele tenha fugido voando...
— Ora, Senhor Vance, não é assunto para brincadeira. — E Heath ficou ainda mais sério. — Benny, o Abutre, ou Benny Pellinzi, para lhe dar o nome de batismo, é um sujeito bastante perigoso, apesar da aparência inofensiva de rapazola de rosto bonito. Apenas há alguns anos, andava por aí dizendo a quem quisesse ouvir que ele era o Inimigo Público Número Um. É um sujeito assim. Mas ele não passava de peixe miúdo, e dele se pode apenas dizer que era um tipo duro e perverso... Na verdade, não passa de um rato imbecil e tolo...
— Rato? Abutre? Diacho... Você não está misturando a sua História Natural, sargento?
— E há apenas três anos — prosseguiu Heath, obstinadamente — o Senhor Markham mandou-o para a penitenciária com uma pena de vinte anos para cumprir. E ele tenta fugir da cadeia, hoje à tarde, e consegue. Não é motivo para preocupação?
— Contudo — observou Vance —, sem dúvida, esse não é o primeiro preso que foge de uma cadeia.
— Sem dúvida. — E Heath resolveu esticar mais um pouco a folga que o procurador lhe dera e pediu outro uísque. — Mas o senhor deve ter lido o que aquele sujeito fez no tribunal quando foi condenado. Mal o juiz acabara de condená-lo a vinte anos de prisão, e ele explodiu. Apontou para o Senhor Markham e, a plenos pulmões, jurou que haveria de voltar para vingar-se dele, mesmo que isso lhe custasse a própria vida. E parecia estar falando sério. O homem achava-se tão furioso e agitado, que foram necessários dois guardas fortes para arrastá-lo para fora do tribunal. Geralmente, é contra o juiz que as ameaças são feitas, mas esse sujeito escolhera como alvo das suas o procurador distrital, e de certa forma isso fez mais sentido.
Vance assentiu de cabeça, lentamente.
— Sim, muito mais. Compreendo o que você quer dizer, sargento. O homem é diferente e, portanto, perigoso.

— E o motivo que me trouxe aqui esta noite — prosseguiu Heath — foi o de dizer ao Senhor Markham o que eu pretendia fazer. Naturalmente, estaremos à procura do Abutre. Ele poderia vir diretamente para cá, ou talvez resolvesse seguir rumo oeste, para tentar alcançar os Dakotas... que, para ele, são um refúgio seguro, se é que ele tem inteligência.
— Exatamente — observou Markham. — Talvez você tenha razão ao dizer que possivelmente o fugitivo seguirá para Oeste. E, sem dúvida, não pretendo fazer nenhuma excursão imediata aos Montes Negros.
— Seja como for, chefe — insistiu o sargento, teimosamente —, não me vou arriscar nem um pouco com o Abutre... ainda mais pelo fato de ele contar com apoio decisivo dos seus velhos amigos desta cidade.
— E que amigos íntimos são esses, sargento?
— Mirch, do Restaurante Domdaniel, e a antiga namorada de Benny, que é a cantora do restaurante... Chama-se Dixie Del Marr.
— Não tenho certeza de que Mirche e Pellinzi são amigos íntimos — disse Markham. — É um assunto discutível.
— Mas, para mim não é, chefe. E, se o Abutre voltar às ocultas para Nova York, tenho um palpite de que irá diretamente a Mirche pedir ajuda.
Markham não discutiu mais as possibilidades. Em vez disso, limitou-se a perguntar:
— Qual é o seu plano de ação, sargento? Heath inclinou-se para o outro lado da mesa.
— Acho que vai ser da seguinte maneira, chefe. Se o Abutre realmente pretende voltar aos lugares por onde andava antes, fará isso com esperteza. Virá depressa, com a rapidez do relâmpago, pensando que não estamos preparados. Se ele não aparecer nos próximos dias, desistirei da minha hipótese e então os rapazes trabalharão no caso à moda rotineira. Mas, a começar de amanhã cedo, pretendo deixar Hennessey de guarda na velha pensão que fica defronte ao Domdaniel, vigiando a pequena porta que leva para o escritório particular de MircTie. E Burke e Snitkin ficarão com Hennessey, para a eventualidade de que o fugitivo apareça.
— Você não está sendo um pouco otimista, sargento? — indagou Vance. — Três anos de prisão podem produzir muitas modificações na aparência física de um homem, principalmente sendo, ele ainda jovem e não muito robusto.
Heath afastou o ceticismo de Vance com um gesto de impaciência.
— Confio em Hennessey... Ele é muito bom fisionomista.
— Oh, não estou pondo em dúvida a habilidade de Hennessey em reconhecer fisionomias — garantiu-lhe Vance. — Contando que o seu Abutre, que adora a liberdade, seja tolo a ponto de escolher a porta da frente para entrar no escritório de Mirche. Mas você não acha, meu caro sargento, que mestre Pellinzi pode achar mais prudente entrar pela porta dos fundos?
— Não há nenhuma porta dos fundos — explicou Heath.
— E não há, também, portas laterais. Existe só uma sala particular, tendo apenas uma entrada, que dá para a rua. É assim que trabalha o tal Mirche... Com tudo às claras. É um sujeito bem esperto...
— Esse escritório fica em um prédio separado? — indagou Vance. — Ou é um anexo do restaurante? Não me lembra bem...
— Nada disso. E quem não o estivesse procurando não o encontraria. É como um cômodo de fim de prédio que tivesse sido separado no canto do edifício, como fazem para separar um consultório médico ou uma pequena loja, em um prédio grande de apartamentos. Mas, se a pessoa quiser encontrar Mirche, aquele é o lugar mais provável para isso. A sala parece tão inocente quanto a casa de uma senhora idosa.
Heath olhou para nós, de maneira significativa, enquanto prosseguia.
— E, contudo, acontece muita coisa comprometedora naquela saleta. Se eu conseguisse ocultar um gravador lá, o gabinete do procurador distrital teria trabalho de julgamentos para manter-se em ação de agora em diante.
O sargento fez uma pausa e piscou um olho na direção de Markham, maliciosamente.
— Que tal acha da minha idéia para amanhã?
— Não pode fazer nenhum mal, sargento — respondeu Markham, sem nenhum entusiasmo. — Mas continuo achando que é perder tempo e energia.
— Talvez seja. — E Heath acabou de tomar o seu uísque.
— Mas, ainda assim, acho que preciso seguir o meu palpite.

Vance colocou na mesa o seu copo de licor e uma expressão extravagante lhe surgiu nos olhos.
— Escute, Markham — disse ele, em voz arrastada. — Seria mesmo perder tempo e energia, não importa qual seja o resultado. Ah, a sua preciosa lei, e seus processos meticulosos! Mesmo que esse falcão de cauda vermelha e nome de ópera aparecesse nos antigos lugares por onde costumava andar e caísse na arapuca do sargento, você ainda o trataria com bondade e ternura, sob a frase eufemística ”nos moldes da lei”. Você lhe afagaria a cabeça. Você faria tudo para prendê-lo vivo, embora ele próprio talvez estourasse os miolos de uns dois auxiliares do sargento. Depois, você lhe daria boa casa e comida; você o levaria pela cidade em um carro de luxo bem possante e, para finalizar, lhe daria uma viagem panorâmica de volta a Nomenica, uma viagem agradável. E tudo para que, meu caro? Em troca do discutível privilégio de sustentá-lo pelo resto da vida, em um gesto muito elegante.
Era evidente que Markham ficara irritado.
— Suponho que você poderia resolver tudo isso com um tiro.
— Bem que poderia. — Vance estava em um daqueles dias em que gostava de provocar os outros. — Esse sujeito é um patife inútil, que de há muito vem apoquentando a lei; que, você muito bem sabe, matou um homem e foi condenado segundo a justiça. Um meliante que planejou uma fuga da prisão, o que custou mais duas vidas humanas; que ameaçou matá-lo a sangue-frio, e que neste exato momento está privando o sargento do seu direito de tirar uma soneca. Não é uma boa pessoa, Markham. E todas essas irregularidades poderiam ser resolvidas com tanta facilidade e rapidez, matando-se o patife sem mais delongas, ou livrando-se dele de outra maneira qualquer, sem mais trabalho nem cerimónia.
— E suponho eu — Markham falou quase com raiva — que você mesmo estaria disposto a executar esse expurgo ilegal.
— Disposto? — Havia um tom provocante na voz de Vance. — Eu ficaria positivamente encantado em fazer isso. Seria a minha boa ação do dia.
Markham tirou baforadas vigorosas do seu charuto. Ficava sempre irritado quando as caçoadas de Vance enveredavam por esse caminho.
— Escute, Vance. Tirar deliberadamente uma vida humana é...
— Por favor, poupe-me o sermão, seu vigário. Já sei o que vai dizer. É uma arenga a respeito de sociedade, lei e ordem e direitos humanos. Mas você tem de confessar que a solução que eu sugeri é lógica, prática e justa.
— Já discutimos esse sofisma várias vezes — cortou Markham. — E, além do mais, não vou deixar que você estrague meu jantar com asneiras desse quilate.

CAPÍTULO II
UM INTERLÚDIO RÚSTICO

(Sábado, 18 de maio — à tarde)
No dia seguinte, pouco depois do meio-dia, encontramo-nos com Markham na sua modesta sala particular de onde se dominava o cemitério. Geralmente, aos sábados, a sala do procurador distrital já estava fechada a estas horas, mas Markham achava-se nas malhas de uma difícil complicação política e desejava ver o caso resolvido o mais rápido possível.
— Lamento muito — falou Vance — que você tenha de trabalhar em uma tarde como esta. Eu tinha esperanças de que talvez pudesse convencê-lo a dar um passeio de carro nos arrabaldes da cidade.
— Quê?! — exclamou Markham, com fingida surpresa. — Você está sucumbindo aos seus impulsos naturais? Não me diga que a Mãe Natureza conseguiu abalar um sibarita ferrenho como você com o seu canto de sereia! Por que não pede a Van para amarrá-lo ao mastro, como manda o figurino da Odisséia?
— Não. Descobri que anseio realmente pela magia de uma ilha paradisíaca cheirando a cidra e a cedros...
— E talvez com uma ninfa dos bosques, como Calipso.
— Ora, meu caro Markham! Nada disso! — E Vance fingiu indignação. — Não, meu caro! Pretendo apenas fazer algumas travessuras no cenário verde do Bronx.
— Vejo que você caiu nas malhas das sereias cor-de-rosa dos campos floridos. — O sorriso de Markham era brincalhão e zombeteiro. — Se o sonho de mau agouro de Heath se realizar, mais tarde navegaremos por uma rota tempestuosa entre a cruz e a caldeirinha.
— Ora, a gente nunca sabe... Mas, se isso acontecer, espero que nenhum homem seja arrancado do nosso navio oco pelas ondas revoltas.
— Ora, por Deus, Vance, não seja tão sombrio. O que você está dizendo é uma tolice completa.
(Lembro-me particularmente dessa resposta clássica e espirituosa, que, sem dúvida, não teria vindo parar nestas páginas, não fora o caso de se ter ela transformado em uma observação curiosamente profética, mesmo quanto ao cheiro de cidra e à caverna do monstro de Messina.)
— E suponho — sugeriu Markham — que você vai dar o seu passeio vestido a rigor. Não sei por que, mas não o consigo imaginar trajado com roupas de excursionista.
— Você está redondamente enganado — disse Vance. — Vou vestir um terno velho de algodão, de tecido riscado, o mais antigo que tenho... Mas diga-me, Markham, que é feito do zeloso sargento e dos maus agouros dele?
— Oh, creio que ele está executando o seu plano inútil — Markham falou com indiferença. — Mas, se o pobre Hannessey tiver de ficar esperando durante muito tempo, terei mais a temer dele, em forma de represália, do que do ilustre Senhor Beniamino Pellinzi. Não consigo entender direito a súbita preocupação de Heath pela minha segurança.
— Bravo sujeito, o Heath. — Vance estudou a cinza do seu cigarro, com um sorriso hesitante. — Na verdade, Markham, pretendo partilhar da hospitalidade cara de Mirche logo à noite.
— Você também! Você vai mesmo ao Domdaniel, logo à noite?
— Não na esperança de encontrar seu amigo, o Abutre — replicou Vance. — Mas Heath despertou minha curiosidade. Gostaria de ver mais de perto o incrível Senhor Mirche. Eu já o vi, é claro, no restaurante, mas, na verdade, sem lhe prestar muita atenção às feições. E quero também dar uma espiada — pelo lado de fora, é lógico — nesse escritório misterioso que tanto agitou a imaginação do sargento... E há sempre a possibilidade de que apareça alguma aventura emocionante quando as sombras portentosas do crepúsculo anunciarem a noite misteriosa que chega e...
— Ora, Vance, pare com isso. Você está parecendo um desses escritores medíocres de novela superbarata. Que pensamento secreto se oculta por trás dessa cortina de fumaça de palavras?
— Se você quer mesmo saber, Markham, a comida lá no Domdaniel é excelente. Eu estava apenas tentando ocultar uma ansiedade de gastrônomo...
Markham bufou e a conversa mudou para outros assuntos, interrompida, de vez em quando, por telefonemas. Quando Markham acabou de cuidar dos preparativos para a tarde e a noite, nos fez passar pelos gabinetes dos juizes e descer para a rua.
Após um rápido almoço, levamos Markham de carro para o seu escritório novamente, e depois seguimos para o apartamento de Vance, um tanto afastado do centro da cidade. Lá, Vance mudou de roupa, envergando agora um velho terno de algodão riscado, muito surrado, e calçou botas mais pesadas e um chapéu macio e bem surrado, tipo Homburg. Depois, saímos novamente até o seu carro e uma hora depois seguíamos de automóvel, muito calmamente, pela avenida Palisade, na parte do Bronx chamada Riverdale.
Nos dois lados da rua havia arvoredo e arbustos densos. O ar apresentava-se impregnado da fragrância de flores da primavera, e de vez em quando surgiam pontos coloridos de verdura. À nossa esquerda, para além de um contínuo muro de concreto, uma ladeira suave levava para o Hudson. À direita, o terreno erguia-se mais abruptamente, e assim o muro de pedra rústica não nos impedia de ver a paisagem.
No alto de uma inclinação ligeira, no exato lugar em que a estrada seguia para o interior, Vance saiu com o carro da estrada principal, parando-o de maneira suave.
— Acho que este aqui é um ponto ideal para nos misturarmos com a flora e comungarmos com a natureza.
Com exceção da cerca do lado do rio e da parede de pedra, que teria, talvez, um metro e oitenta de altura, ao longo da orla interna da estrada, estávamos, segundo tudo indicava, em uma estrada deserta do interior. Vance atravessou a faixa larga e coberta de sombras e capim, que se estendia como um tapete verde entre a rodovia e o muro. Escalou com dificuldade o muro de pedra, fazendo-me um sinal para o seguir, enquanto desaparecia na folhagem rústica e rica que havia do outro lado.
Durante mais de uma hora, andamos para trás e para diante, no meio do mato, e então, repentinamente, quando deparamos novamente com o muro de pedra, Vance olhou com relutância para seu relógio.
— Quase cinco horas — informou ele. — É melhor irmos para casa, Van. Já estamos cansados.
Segui na frente dele para a rodovia, e começamos a voltar lentamente para o carro. Um automóvel grande, rodando quase sem ruído, apareceu de repente na curva. Parei, enquanto ele passava velozmente, e fiquei vendo-o desaparecer no alto da subida. Depois, continuei andando na direção do nosso carro.
Depois de dar alguns passos, notei uma jovem, de pé, perto do muro, bem afastada da rodovia, em um caramanchão isolado e de chão coberto de capim. A moça estava sacudindo nervosamente a frente da sua saia, o que fazia com visível agitação, e batia um pé sobre o chão macio da terra. Parecia perturbada e aborrecida, e quando me aproximei um pouco mais vi que havia um buraco de queimadura na parte dianteira do seu vestido leve de verão. O orifício queimado devia ter uns três centímetros de diâmetro.
Enquanto a moça soltava uma exclamação de aborrecimento, Vance saltava — ou, melhor dizendo, caía — do muro atrás dela. O seu calcanhar ficou agarrado no muro mal feito e, enquanto ele lutava para recuperar o equilíbrio, uma saliência aguda de massa lhe rasgou a manga do paletó. O barulho inesperado assustou novamente a jovem, que se virou, alerta, para ver o que era.
Era pequena e de movimentos graciosos, dona de um rosto oval, provocante, e de feições sensíveis e regulares. Os olhos, grandes e castanhos, eram recobertos por pestanas extremamente compridas. Um nariz reto e fino conferia dignidade e caráter a uma boca feita para sorrir. Era esguia e ágil e parecia combinar perfeitamente com o ambiente rústico que a cercava.
— Caramba! — murmurou Vance, olhando para ela. — Não foi uma entrada muito graciosa no seu caramanchão. Desculpe se eu a assustei.
A moça continuou olhando desconfiada para Vance, e quando tornei a olhar para este compreendi muito bem o que lhe causava essa reação. Vance estava completamente despenteado. Além disso, seus sapatos e suas calças apresentavam-se generosamente cobertos de lama; o chapéu, todo amassado, estava grotescamente torto na sua cabeça, e a manga do paletó, rasgada, dava-lhe a aparência de um mendigo ambulante. A moça logo sorriu.
— Oh, não estou assustada — garantiu ela, em uma voz musical que possuía um timbre muito jovial e muito atraente. — Estou apenas zangada. Terrivelmente zangada. O senhor já ficou zangado? Mas não é com o senhor que estou aborrecida, pois nem sequer o conheço... Talvez eu ficasse zangada com o senhor se eu o conhecesse... Já pensou nisso?
— Sim, sim... Tenho pensado nisso muitas vezes. — Vance riu e tirou o chapéu, com o que ficou imediatamente mais apresentável. — E tenho certeza de que a senhorita teria mais do que motivo para ficar zangada... A propósito, posso sentar-me? Estou exausto...
A moça olhou rapidamente ao longo da estrada e depois se assentou um tanto abruptamente, como uma criança que se deixa cair descuidadamente no chão.
— Isso seria maravilhoso. Vou ler a palma da sua mão. O senhor já mandou ler a palma da sua mão? Sei ler muito bem a palma da mão das pessoas. Delpha me ensinou a ler todas as linhas. Ela sabe tudo referente à leitura de mãos e tudo sobre os astros, e também a respeito dos números da sorte. Ela é cartomante. Além disso, Delpha é médium. Como eu também. Sou médium. O senhor é médium? Mas talvez eu não me possa concentrar hoje. — Sua voz adquiriu um tom místico. — Alguns dias, quando me sinto disposta, eu seria capaz de lhe dizer qual a sua idade e quantos filhos o senhor tem...
Vance riu e sentou-se ao lado da jovem.
— Mas sabe de uma coisa? Acho que eu não poderia suportar saber de fatos tão atordoantes a meu respeito, neste instante ...
Vance tirou do bolso a cigarreira e abriu-a lentamente.
— Tenho certeza de que a senhorita não se importaria se eu fumasse — disse ele, de modo cativante, estendendo-lho a cigarreira. Mas, recebendo em resposta apenas uma risadinha e uma sacudida de cabeça, acendeu um dos seus Régios para si mesmo.
Mas muito me alegra que o senhor tenha falado em cigarros — disse a moça. — Isso me faz lembrar do quanto eu estava furiosa.
Ah, sim. — Vance sorriu, indulgente. — Mas não quer
me dizer com quem estava tão zangada?
A jovem apertou os olhos ao mirar o cigarro que se achava entre os dedos de Vance.
Agora, não sei — respondeu ela, ligeiramente confusa.
Mas que pena... Talvez fosse comigo que a senhorita estava zangada o tempo todo, hem?
Não, não era com o senhor... Pelo menos, eu não achava que era. Agora, não tenho tanta certeza. A princípio, pensei que fosse alguém num carro grande que passou e...
— E por que estava zangada?
— Ah, isso... Bem, olhe aqui para a frente do meu vestido. — Ela estendeu a saia ao seu redor. — Está vendo esse furo enorme de queimadura? Meu vestido está estragado. E eu o adoro. O senhor não gosta dele? Isto é, se ele não estivesse queimado? Fui eu própria quem o fez... Bem, seja como for, eu disse a mamãe como é que eu queria que ela o fizesse. Ele me fez ficar muito bonitinha. E, agora, não o posso mais usar. — Havia um pesar legítimo na sua voz. — Foi o senhor quem jogou aquele cigarro aceso?
— Que cigarro? — indagou Vance.
.— Ora, o cigarro que queimou meu vestido. Deve estar aqui por perto... Bem, em todo caso, a pontaria foi muito boa, já que não podia ver-me para mirar. E talvez o senhor nem soubesse que eu estava aqui. E isso teria dificultado muito atingir-me, não acha?
— Sim, compreendo aonde a senhorita quer chegar. — Vance estava tão interessado quanto divertido. — Mas, na verdade, minha querida, deve ter sido algum vilão que passou no tal carro... Se é que passou mesmo algum carro.
A moça suspirou.
— Bem, então — murmurou ela, resignada —, acho que não era com o senhor que eu estava furiosa. E, agora, não sei com quem era. E isso me deixa mais furiosa do que nunca. Tenho certeza de que, se fosse com o senhor que eu estivesse furiosa, o senhor procuraria reparar o malfeito.
Digamos, então, que lamento tanto o que houve como se eu tivesse jogado o cigarro... — sugeriu Vance.
— Mas, agora, não sei se o senhor o jogou ou não. Se o senhor não podia ver-me através do muro, como é que poderia eu vê-lo?
— Uma lógica incontestável! — retorquiu Vance, adaptando-se à disposição aparentemente fantasiosa da jovem. — Portanto, é preciso que a senhorita me permita reparar o malfeito ... não importa quem tenha sido o culpado.
— Ora... — falou ela. — Não sei o que quer dizer com isso. — Mas havia em seus olhos um brilho que parecia desmentir-lhe as palavras.
— Quero dizer o seguinte: desejo que a senhorita vá à loja Chareau e Lyons e escolha um dos vestidos mais bonitos que eles tiverem. Um vestido que a faça ficar tão bonitinha como este.
— Oh, não tenho dinheiro para comprar um vestido assim!
Vance tirou do bolso a carteira de cartões de visita e, rabiscando algumas palavras em um deles, enfiou-o por baixo da tampa da bolsa de mão da jovem, que estava caída no capim.
— Leve esse cartão ao Senhor Lyon em pessoa e lhe diga que fui eu quem a mandou lá.
Os olhos da moça brilharam de gratidão e ela não protestou mais.
— Como a senhorita diz, muito acertadamente — prosseguiu Vance —, não podia ver através do muro e, portanto, não há meios de provar que não fui eu quem jogou o cigarro.
— Bem, então isso resolve o assunto, não é? — disse ela, rindo novamente baixinho. — Estou tão contente por ter sido com o senhor que eu estava furiosa por ter jogado o cigarro...
— Eu também estou — garantiu Vance. — E, por falar nisso, espero que a senhorita ponha novamente o mesmo perfume, ao usar o seu vestido novo. Esse perfume é como a primavera... ”Um delicioso cheiro de cidra e laranjeiras”, conforme disse Longfellow em um de seus livros famosos.
— Ah, ele disse isso?
— A propósito, que perfume a senhorita usa? Não o reconheço como nenhum dos perfumes mais populares que há por aí.
— Não sei — replicou a moça. — Acho que ninguém sabe. Não tem nome. Imagine, não se ter nome! Se nós não tivéssemos nome, ficaria tudo uma confusão, não é? O perfume foi feito especialmente para mim pelo George... Mas acho que não devo referir-me a ele como George, falando a desconhecidos. Ele é o Senhor Burns. Sou auxiliar dele na Fábrica de Perfumes In-O-Scente. É uma firma grande. Ele está sempre misturando ingredientes diferentes e experimentando-os. É a profissão dele. E é muito hábil. Só tem o defeito de ser sério demais. Mas não creio que ele tenha misturado cidra neste perfume. Na verdade, não sei como é o cheiro de cidra. Pensei que isso fosse uma coisa que a gente põe no bolo.
— O que se põe no bolo é a casca da cidra, em conserva — explicou Vance. — O óleo de cidra é muito diferente disso. Tem cheiro de erva-cidreira e limão. E, quando tratado com ácido sulfúrico, adquire até o cheiro de violetas.
— Não é maravilhoso? — disse ela. — Ora, o senhor fala igualzinho a George. Ele está sempre dizendo coisas assim. Tenho certeza de que o Senhor Burns sabe de tudo a respeito disso. Algumas vezes, fico muito confusa, na hora de lhe levar os vidros certos de extratos e essências. E ele é tão exigente nesse particular... Algumas vezes, ele chega até a dizer que não sei ferver os seus velhos tubos de ensaio e pipetas. Imagine.
— Mas tenho certeza — garantiu Vance — de que a senhorita lhe levou os frascos certos quando ele preparou este perfume que está usando. E tenho certeza de que um deles continha cidra, embora pudesse ter estado com outro nome... E, por falar em nomes, por acaso o seu é Calipso?
A moça sacudiu a cabeça.
— Não, mas é coisa muito parecida com isso. É Gracie Allen...
Vance sorriu e a conversa da jovem assumiu outra direção.
— Mas o senhor não me vai contar o que estava fazendo do outro lado do muro? Isso é propriedade particular, e eu não entraria ali por nada deste mundo. Não seria direito, seria? E, seja como for, não sei onde há um portão. Mas isto aqui é agradável. Já vim aqui várias vezes, e no entanto é a primeira vez que alguém me atira um cigarro, embora eu tivesse estado diversas vezes neste mesmo lugar. Mas acho que um dia sempre as coisas acontecem pela primeira vez. O senhor já pensou nisso?
— Sim, oh, sim. É uma pergunta profunda. — E Vance riu baixinho. — Mas a senhorita não tem medo de vir sozinha a um lugar tão deserto?
— Sozinha? — e novamente a jovem olhou para a estrada. — Não venho sozinha. Geralmente, venho com um amigo que mora lá para as bandas da Broadway. Chama-se Puttle e trabalha na mesma firma que eu. O Senhor Puttle é vendedor. E o Senhor Burns... Já lhe contei tudo a respeito dele. Ficou muito zangado comigo pelo fato de eu ter vindo aqui esta tarde com Puttle. Mas ele fica sempre zangado quando vou a algum lugar com alguém, principalmente se esse alguém é o Senhor Puttle. Não acha que isso é tolice? — E ela fez um muxoxo de contentamento.
— E onde estaria o Senhor Puttle, no momento? — perguntou Vance. — Não me diga que ele está tentando vender perfumes ao longo das estradas de Riverdale.
— Oh, meu Deus, não! Ele nunca trabalha nas tardes de sábado, nem eu. Acho realmente que o cérebro deve descansar de vez em quando, não acha? Oh, o senhor me perguntou onde está o Senhor Puttle. Bem, vou lhe contar, porque tenho certeza de que ele não se importaria. Ele foi procurar um convento de freiras.
— Um convento de freiras? Céus! Para quê?
— Ele disse que de lá se tem uma vista linda, com bancos, flores e tudo o mais. Mas não sabia se ficava para cima da estrada ou para baixo. Por isso, mandei-o procurar primeiro. Não tive vontade de ir a um convento de freiras, sem saber onde ele ficava. O senhor iria a um convento se não soubesse onde ele fica, principalmente se estivesse com os pés doendo?
Não, acho que a senhorita foi muito sensata. Mas acontece que sei onde o convento fica: é do outro lado, bem longe daqui.
Bem, então, o Jimmy... isto é, o Senhor Puttle, seguiu na direção errada. Ele está sempre se enganando. Ainda bem que eu o mandei procurar primeiro...


CAPITULO III
A ESPANTOSA AVENTURA

(Sábado, 18 de maio — 17:30 horas)
A jovem inclinou-se para diante e olhou para Vance, ansiosa e impulsiva.
— Mas eu me esqueci: estou morrendo de vontade de saber o que os senhores estavam fazendo do outro lado do muro. Espero que tenha sido emocionante. Sou muito romântica, sabe? O senhor é romântico? Isto é, adoro as emoções e o perigo. E isto aqui é tão emocionante e misterioso, principalmente com esse muro alto... Sei que os senhores devem ter vivido alguma aventura especial lá. Toda sorte de emoções e aventuras acontece dentro das paredes. Não é à toa que a gente manda construir muros, não é mesmo?
— Realmente.., — Vance sacudiu a cabeça, com fingida ansiedade. — Geralmente, só se faz um muro quando há um motivo muito bom para isso... Para impedir a entrada de alguém ou para manter pessoas dentro dos muros.
— Vê? Eu tinha razão... E, agora, diga-me — implorou ela —, que aventura emocionante os senhores viveram do outro lado do muro?
Vance tirou uma baforada profunda do seu cigarro.
— Sabe de uma coisa? — disse ele, com fingida seriedade. — Tenho medo de deixar alguém saber do que houve...
A propósito, a senhorita gosta de viver aventuras muito ou pouco emocionantes?
— Oh, elas têm de ser terrivelmente emocionantes, perigosas e sombrias, e cheias de espírito de vingança. Sabe, como um homicídio... Talvez um assassinato passional...
— É isso! — E Vance deu uma palmada no joelho. — Agora, posso contar-lhe tudo... Sei que a senhorita compreenderá. Baixou a voz, transformando-a em um cochicho íntimo e cavernoso. — Quando saltei o muro de maneira tão pouco elegante, eu... eu tinha acabado de cometer um homicídio.
— Maravilhoso! Simplesmente maravilhoso! — Mas notei que a moça se afastou um pouco de Vance.
— Era por isso que eu estava fugindo numa carreira desabalada — prosseguiu Vance.
— Acho que o senhor está gracejando — e a jovem ficou novamente calma. — Mas prossiga...
— Na verdade, foi um ato de altruísmo — prosseguiu Vance, que parecia estar-se divertindo realmente com o conto fantástico inventado. — Fiz isso por um amigo... para salvar um amigo do perigo... por causa de uma vingança.
— Ele deve ter sido um patife. Tenho certeza de que ele merecia morrer e de que o senhor praticou uma ação nobre... como os heróis dos tempos antigos. Eles não esperavam a polícia, a justiça e todas essas coisas. Avançavam, a cavalo, e resolviam a parada, num abrir e fechar de olhos. — A jovem estalou os dedos e não pude deixar de pensar na alusão sarcástica de Markham à solução simplista dada por Vance, na noite anterior, para resolver o caso do preso fugido.
Vance estudou a moça, atônito e sério.
— Ora, de uma criança a gente só pode esperar... — começou ele.
— Quê? — fez ela, e franziu o cenho.
— Nada, nada... — E Vance riu baixinho... — Bem, continuando esta sombria confissão: eu sabia que o tal sujeito era um homem muito perigoso e que a vida do meu amigo estava em perigo. Por isso, vim aqui, esta tarde, e lá, no mato sombrio, onde ninguém podia ver, eu o matei... Alegra-me imensamente a senhorita achar que agi corretamente.
Sua história inventada, baseada na sua conversa com Markham na noite anterior, correspondia bem ao desejo inesperado de uma aventura emocionante, expresso pela jovem.
— E qual era o nome do assassinado? — perguntou ela. — Gostaria que fosse um nome horrível. Eu sempre digo que as pessoas têm os nomes que merecem. É como na numerologia... só que é diferente. Quando a gente tem certo número de letras no nome, não é como ter outro número de letras, é? Significa, também, alguma coisa. Delpha me disse.
— Que nomes lhe agradam mais? — indagou Vance.
— Bem, vejamos... Burns é um nome bonito, não acha?
— Sim, acho — E Vance sorriu de maneira agradável. — Por falar nisso, é um nome escocês...
— Mas George não é escocês — protestou a moça, indignada. — Ele é até muito generoso.
— Não, não — apressou-se Vance a tranqüilizá-la. — Quando disse escocês, eu não quis dizer usurário. Em escocês, essa palavra significa ”riacho” ou ”córrego”...
— Ah, água! Isso é diferente. Eu tinha razão! — disse ela, num chilreio. Depois, confirmou, com um movimento de cabeça. — Água! É só o que George consome! Ele nunca toma bebidas alcoólicas. Diz que a bebida alcoólica lhe atrapalha o olfato e o impede de distinguir bem os perfumes.
— Distinguir perfumes?
— Aahn. George está sempre às voltas com perfumes... É a profissão dele. Experimenta perfumes para saber qual será bem vendido, qual será capaz de fazer uma mulher virar uma conquistadora e qual é tão ruim que só serve para sabonete de hotel, Ele é terrivelmente hábil nesse campo. Chegou até a inventar um perfume novo, misturado apenas por ele. E o Senhor Doolson — o nosso patrão — deu nome ao novo produto para George. Bem, não exatamente para George, mas o senhor sabe o que quero dizer.
O orgulho lhe brilhava nos olhos.
— E... oh! — prosseguiu ela, depressa. — George tem cinco letras no sobrenome... Falo sério, basta contá-las... B-U-R-N-S. E eu também tenho cinco letras no meu sobrenome. Não é engraçado? Mas isso significa algo muito importante. É... É ciência. Vibro com o número cinco. Mas o seis me traz muito azar. Sou alérgica — é assim que Delpha diz — ao número seis. Isso é muito científico, sabe?
— O sobrenome do Senhor Puttle tem seis letras — disse Vance, com um olhar maroto para a jovem.
— Ê verdade. Já pensei nisso... Oh, bem... Mas me esqueci... Qual era o nome do homem que o senhor matou tão valentemente?
— O sujeito tinha um nome muito desagradável. Chamavam-no de Benny Buzzard (Abutre).
A cabeça da moça subiu e desceu vigorosamente, demonstrando completa compreensão.
— Sim, é um nome horrível. Tem... deixe ver... sete letras. Oh! É um número místico. Isso é quase destino!
— Bem, ele foi mandado para a prisão, para cumprir uma pena de vinte anos de cadeia. — E Vance reiniciou a sua engenhosa história. — Mas tramou uma fuga e conseguiu escapar ontem, e voltou para Nova York a fim de matar esse meu amigo.
— Oh, então amanhã vão aparecer manchetes em todos os jornais sobre o fato de o senhor o ter assassinado
— Céus! Espero que não apareçam — E Vance fingiu-se dominado por uma grande preocupação. — Sinto que pratiquei uma boa ação, mas espero também, é claro, que não descubram o que fiz. E tenho certeza de que a senhorita não contaria a ninguém, não é mesmo?
— Oh, claro que não — garantiu a moça.
Vance soltou um suspiro exagerado e levantou-se lentamente.
— Bem, agora preciso ir me esconder — falou ele — antes que a polícia venha a saber do meu crime. Mais uma hora e quem sabe? Talvez eles saiam à minha procura.
— Oh, os policiais são uns trouxas — disse ela, com um beicinho — Estão sempre pondo os outros em apuros. Sabe? Se todos fossem bons, não precisaríamos de policiais, não é?
— É...
— E, se não houvesse policiais, não precisaríamos dar-nos ao trabalho de ser bons, não é?
— Céus! — murmurou Vance. — A senhorita, por acaso, é algum filósofo disfarçado?
A jovem pareceu atônita.
— Ora, isto não é um disfarce. Eu só usei disfarce quando... Quando era menina. Fui a uma festa fantasiada de fada.
Vance sorriu em tom de admiração.
— Tenho certeza — disse ele — de que foi uma fantasia completamente dispensável. A senhorita jamais precisará fantasiar-se, minha querida, para passar como uma fada encantadora... Quer apertar os ossos de um vilão barato?
Ela colocou a mãozinha na dele.
— O senhor, na verdade, não é um vilão. Ora, limitou-se a matar um facínora. E muitíssimo obrigada pelo lindo vestido novo — acrescentou ela. — O senhor falou sério quando me mandou buscá-lo?
— Falei seriíssimo. — E a sinceridade da voz de Vance dissipou qualquer dúvida que pudesse restar no espírito da jovem. — E boa sorte com o Senhor Puttle... e com o Senhor Burns.
A moça fez um aceno solene enquanto caminhávamos ao longo da estrada poeirenta na direção do nosso carro. Vance estava ocupado em acender outro cigarro, e quando íamos fazendo a curva da estrada olhei para trás. Havia um rapaz guapo diante da jovem, e compreendi que o tal Puttle, o vendedor de perfumes, voltara da sua busca infrutífera ao convento de freiras.
— Que criatura espantosa! — murmurou Vance, enquanto subíamos no carro e partíamos. — Acho mesmo que ela acreditou, em parte, na minha dramatização dos temores do sargento e nas minhas zombarias contra Markham. Ela é muito ingênua, Van. Ou, talvez, de uma natureza basicamente astuta, superabundante em romance, lutando para viver nas nuvens, neste mundo sórdido. E vivendo do fabrico de perfumes. Que combinação incrível de circunstâncias! Tudo misturado com a primavera... e visões de heroísmo e de amor jovem!
Olhei para ele, com ar indagador.
— Completamente — repetiu ele. — Isso estava indicado de forma definitiva. Mas, infelizmente, acho que os esforços de conquista do Senhor Puttle, da Broadway, vão ser baldados Como você notou, ela usava o perfume sem nome do Senhor Burns, mesmo quando passeando por breves instantes, no interior, com o Senhor Puttle. Levando em conta todos os sinais, considero o misturador e experimentador dos aromas sutis das arábias como favorito disparado para conquistar a Taça do Amor.

CAPITULO IV
O KESTAURANTE DOMDANIEL
(Sábado, 18 de maio — 20:00 horas)

O restaurante Domdaniel, localizado na rua 50, Oeste, perto da Sétima Avenida, atraíra uma freguesia geral e variada durante muitos anos. A reforma do velho casarão no qual o restaurante era instalado fora feita com muito gosto, e grande parte do velho ar de solidez e de durabilidade tinha sido mantida.
De cada lado da larga entrada até às extremidades do prédio corria um terraço estreito e descoberto, onde se viam vasos pseudogregos de alfenas bem aparadas. Na extremidade oeste da casa um beco de serviço separava o restaurante do prédio vizinho. Do lado leste havia uma alameda pavimentada, de aproximadamente três metros de largura, passando sob um alpendre coberto de trepadeiras para a garagem, que ficava nos fundos. Um arranha-céu comercial, na esquina da Sétima Avenida, terminava nessa alameda.
Eram quase oito horas da noite quando chegamos, naquela noite suave de maio. Acendendo um cigarro, Vance espiou para as sombras do alpendre e para a área mal iluminada que ficava mais além. Depois, caminhou com passo apressado alguns metros, pela estreita passagem, e contemplou as janelas cobertas de trepadeiras e a porta lateral, quase oculta da rua. Alguns momentos depois, retornou para junto de mim, no passeio, e voltou sua atenção, aparentemente com indiferença, para a frente do prédio.
— Ah — murmurou ele. — Lá está a entrada do escritório misterioso do Senhor Mirche, que despertou tanta atenção no sargento. Talvez uma janela ampliada, quando o casarão foi reformado. Simplesmente utilitário...
Era, como Vance observou, uma abertura de porta despretensiosa, dando diretamente para o terraço estreito. E duas escadas de madeira, reforçadas, levavam para o passeio. Em cada lado da porta via-se uma pequena janela — ou, diria eu, uma abertura semelhante a uma sacada —, seguramente fechada por uma grade de ferro batido.
— O escritório tem uma janela maior na parte lateral, da qual se domina a alameda forrada de mosaicos — falou Vance. — E também essa janela é fechada por uma grade. A luz que vem de fora deve ser um tanto insuficiente, quando, como o sargento parece pensar, o Senhor Mirche está lá dentro dedicado às suas tramas nefastas.
Para surpresa minha, Vance subiu pela escada de madeira até o terraço e espiou com ar indiferente, por uma das estreitas janelas, para dentro do escritório.
— Por dentro, o escritório parece ser tão honesto e em ordem quanto se apresenta aqui de fora — informou ele. — Acho que o nosso desconfiado sargento tem sido vítima de pesadelos...
Virou-se e olhou para a pensão, que ficava do outro lado da rua. Duas janelas próximas, no segundo andar, localizadas diretamente em frente à pequena porta de canto do Domdaniel, achavam-se às escuras.
— Pobre Hennessey! — suspirou Vance. — Atrás de um daqueles quadrados sombrios de trevas ele está vigiando e tendo esperanças. Ele simboliza toda a humanidade... Bem, vamos deixar de perder tempo. Tenho visões amorosas de um Meando de vitela à Macedônia. Espero que o mestre-cuca não tenha perdido nada da sua habilidade desde a última vez em que estive aqui. Naquela época, esse prato, feito por ele, era sublime...
Caminhamos até à entrada principal e fomos recebidos no luxuoso saguão de recepção pelo untuoso Senhor Mirche, em pessoa. O homem pareceu muito contente de ver Vance, ao qual se dirigiu pelo nome, e nos entregou ao chefe dos garçons, recomendando pomposamente ao nosso acompanhante que nos dispensasse o máximo de consideração e de atenção.
O interior redecorado do Domdaniel possuía uma aparência muito mais moderna do que o exterior. Apesar disso, grande parte do encanto do passado ainda transparecia nos painéis de madeira entalhada, nos corrimões trabalhados da escada e em uma lareira larga que fora deixada intacta em um dos lados da enorme sala principal.
Não podíamos ter escolhido uma mesa melhor do que aquela à qual fomos levados. Ficava perto da lareira, e, como as mesas ao longo das paredes eram ligeiramente elevadas, tínhamos uma vista livre de todo o salão. Mais para a nossa direita, um tanto distante, ficava a entrada principal, e à nossa esquerda situava-se o estrado da orquestra. Defronte a nós, do outro lado do salão, um arco levava ao corredor; e para além dele, quase como que recortada na soleira da porta, podíamos ver a escada larga e atapetada que levava para o andar de cima.
Vance olhou de relance por todo o salão, sem fixar muito o olhar, e depois voltou a atenção para o trabalho de encomendar o jantar. Feito isso, meu companheiro se recostou na sua cadeira e, acendendo um cigarro, relaxou todo o corpo, instalado confortavelmente. Mas notei que, por baixo das pálpebras semicerradas, Vance perscrutando todas as pessoas que se se achavam ao nosso redor. De repente, endireitou o corpo na cadeira e, inclinando-se na minha direção, murmurou:
— Arre! Acho que estou ficando velho e que meus olhos estão-me enganando. Olhe à minha direita, perto da entrada. É a espantosa jovem do cheiro de cidra. E está-se divertindo muito. Acha-se na companhia de um namorado muito bem vestido. Não sei se o jovem é o que a acompanhava na excursão a Riverdale ou se é o tal Burns, o rapaz sério e abstêmio. Seja quem for, está sendo muito atencioso para com ela, e acha-se tremendamente satisfeito consigo mesmo.
Reconheci imediatamente o elegante rapaz que eu vim do relance quando íamos fazendo a curva da avenida Palisade, quando voltávamos para o carro. Informei Vance do que, sem dúvida nenhuma, era o jovem Puttle.
— Isso não me surpreende nem um pouco — foi sua resposta. — É evidente que a moça está seguindo a técnica milenar e sobejamente comprovada como eficaz. Puttle receberá uma porcentagem esmagadora dos seus favores, até chegar o momento realmente importante da decisão final. Aí, creio eu que o eleito será Burns, que hoje é desprezado. — E riu baixinho. — Os truques do amor são sempre os mesmos. Oh, se o próprio Burns estivesse em cena aqui esta noite, afastado dela, roendo-se de ciúmes e estourando de raiva! — E sorriu, divertido.
O olhar de Vance tornou a vagar pelo salão, enquanto ele puxava preguiçosamente fumaça do seu cigarro. Dentro em pouco, seu olhar pousou em um homem que se achava sozinho a uma pequena mesa, no canto mais distante.
— Sabe, acho que encontrei o nosso jovem Burns, a hipotenusa dolorosa do meu triângulo imaginário. Ele está sozinho. A idade confere com a dele. É um rapaz sério. Senta-se a uma mesa colocada no ângulo exato que lhe permita observar a sua fujona ninfa das matas e seu companheiro. Observa-a atentamente, e parece aborrecido e tão enciumado, que chega até a pensar em assassinato. Não tem apetite para comer o que tem diante de si. Sobre sua mesa não há vinho nem bebidas alcoólicas. E está... fulo de raiva!
Deixei meu olhar seguir o de Vance, enquanto este falava, e observei o jovem solitário. Tinha o rosto sério e um tanto agressivo. Apesar do senso de humor denotado pelas suas sobrancelhas, viradas em um ângulo para cima, sua testa larga dava a impressão de considerável profundeza de pensamentos e de capacidade de julgamento acurado. Seus olhos cinzentos eram bem afastados um do outro e de cativante candura, e tinha o queixo sensível, embora firme. Trajava-se com apuro, embora com simplicidade, em forte contraste com a grandeza exibicionista da forma de trajar do Senhor Puttle.
Durante um intervalo do espetáculo de pista, o jovem solitário levantou-se um tanto hesitante da sua cadeira e encaminhou-se, com passos largos e resolutos, até à mesa ocupada pela Senhorita Allen e seu companheiro. Os dois o cumprimentaram sem entusiasmo. O recém-chegado, franzindo a testa de modo desagradável, não fez nenhuma tentativa para ser cordial.
A jovem levantou o cenho com uma altivez teatral, totalmente em desacordo com a expressão maliciosa das suas feições. Os modos do seu acompanhante eram indiferentes e dotados de palpável condescendência. Seu papel era o de um homem vitorioso que trata com o inimigo vencido e atormentado. Seu efeito sobre Burns — se é que era Burns — deve ter sido tremendamente agradável para ele. Isto, juntamente com o falso desdém da jovem, intensificou ainda mais o mau humor do Intruso. Este fez um gesto desajeitado de derrota e, virando-se, voltou desanimado para sua mesa. No entanto, notei que a Senhorita Allen lançou vários olhares abertamente na sua direção, o que deixava entrever que ela estava longe de ser indiferente para com o rapaz, como fingia ser.
Vance observava o pequeno drama, entre interessado e encantado.
— E agora, Van, — falou ele — o quadro do amor jovem está completo. Ah, o coração feminino, eternamente sádico e, no entanto, leal...!
Quinze ou vinte minutos depois, Mirch, sorrindo de canto a canto da boca e fazendo mesuras, entrou no refeitório, vindo do corredor da entrada principal, e seguiu adiante, rumo aos fundos do salão, até uma pequena mesa que ficava atrás do estrado da orquestra, onde uma das artistas se achava sentada. Tratava-se de uma mulher loura e de uma beleza berrante, que, segundo eu sabia, era a famosa cantora Dixie Del Marr.
Dixie saudou Mirche com um sorriso que parecia mais íntimo do que seria de se esperar que o fosse entre empregada e empregador. Mirche puxou a cadeira que se achava diante da mulher e sentou-se à mesa. Fiquei um tanto surpreso ao notar que Vance os observava atentamente, e senti que não se tratava apenas de mera curiosidade inconseqüente da sua parte.
Tornei a voltar o olhar para a mesa da cantora. Dixie Del Marr e Mirche tinham dado início ao que parecia ser um bate-papo confidencial. Achavam-se inclinados para diante, na direção um do outro, e era evidente que desejavam evitar serem ouvidos pelos que se achavam perto deles. Mirche frisava algum ponto, e Dixie Del Marr concordava, com um aceno afirmativo de cabeça. Depois, a Senhorita Del Marr fez uma pergunta, à qual o outro, por sua vez, respondeu com um aceno compreensivo de cabeça.
Depois de alguns minutos dessa conversa aberta e, no entanto, sigilosa, ambos recostaram-se em suas cadeiras e Mirche deu uma ordem a um garçom que passava. Alguns momentos depois, o garçom voltava com dois copos finos e compridos de um líquido cor-de-rosa.
Muito interessante — murmurou Vance. — Fiquei curioso...


CAPITULO V
UM ENCONTRO
(Sábado, 18 de maio — 21:30 horas)

Foi pouco depois disto que notei que a jovem Gracie Allen se levantava alegremente da sua cadeira, ao lado do radiante Senhor Puttle. Fez-lhe um aceno acanhado enquanto deslizava ao longo do restaurante, como uma gazela cheia de graça.
Céus! — falou Vance, rindo baixinho. — A espantosa ninfa dos bosques está vindo na nossa direção. Se ela me reconhecer, a história que inventei esta tarde vai cair em pedaços sobre minha cabeça mentirosa...
Enquanto meu companheiro falava, ela o observava. Depois, jogou as mãos para o alto, em um gesto de surpresa e encantamento, e veio rumo à nossa mesa.
— Que surpresa agradável — falou ela. Depois, censurou Vance, em voz mais baixa: — O senhor é um assassino muito atrevido. Terrivelmente ousado. Não sabe que alguém pode vê-lo aqui? Um garçom, por exemplo, ou outra pessoa qualquer.
— Ou a senhorita — sorriu Vance.
— Oh, mas eu não contaria a ninguém. Não se lembra? Eu prometi não contar. — A moça sentou-se com espantosa rapidez e riu baixinho, em tom musical. — E eu sempre digo que as pessoas devem cumprir as promessas feitas, se é que sabe a que me refiro... Mas meu irmão é esquisito nesse particular. Ele jamais cumpre as promessas que faz, embora cumpra muitas das outras coisas que se propõe a fazer. E algumas vezes ele se mete em sérios apuros por não cumprir aquilo que combina. Está sempre encrencado. Talvez seja porque é tão ambicioso. O senhor é ambicioso?
— Por falar em promessas — falou Vance — a senhorita cumpre todas as promessas que faz ao Senhor Burns?
— Nunca fiz nenhuma promessa ao George — garantiu ela a Vance, com um rubor de confusão aumentando em suas feições maliciosas. — Que foi que o fez pensar isso? Mas ele tem feito tudo para me fazer prometer-lhe alguma coisa. E fica terrivelmente zangado comigo. Está zangado esta noite. Mas, é claro, ele não demonstraria isso diante de tanta gente. George é tão cavalheiresco... Jamais se sabe em que ele está realmente pensando. Mas ninguém sabe, também, em que eu estou pensando. Só que não sou cavalheiresca. Ó Senhor Puttle diz que sou apenas bonitinha e atraente. E ele me conhece há muito tempo. E acho que é muito melhor ser bonitinha e atraente do que ser cavalheiresca. O senhor não concorda comigo?
Vance não fez nenhum esforço para ocultar sua hilaridade.
— Claro que concordo — respondeu ele. — E, a propósito, onde está o cavalheiresco Senhor Burns esta noite?
A moça deu uma risadinha abafada, embaraçada.
— Está sentado do outro lado do salão. — Virou graciosamente a cabeça, para indicar o jovem solitário que antes já nos atraíra a atenção. — E parece, também, sentir-se muito infeliz. Não consigo imaginar por que ele veio aqui esta noite... Sei que George nunca veio a este restaurante. Quer saber de um segredo? Pois vou-lhe contar, mesmo que o senhor não queira ouvir. Eu também estou vindo aqui hoje pela primeira vez. Mas isto aqui está-me agradando. O senhor não está gostando? Isto é muito grande e barulhento. E há tanta gente... O senhor não gosta de ver muita gente em um lugar só? Acho que aquela gente é muito agradável. Mas receio que George não esteja gostando do ambiente. Talvez seja por isso que está com aquele ar tão infeliz.
Vance não a interrompeu. Meu companheiro parecia estar-se divertindo com a inconseqüente saraivada de palavras da jovem.
— E... oh! — exclamou ela, como se lhe tivesse ocorrido algum pensamento de importância transcendental. — Esqueci-me de dizer-lhe: sei quem o senhor é! Que acha disso? O senhor é Philo Vance, não é? Não acha que sou terrivelmente esperta por saber disso? Aposto que o senhor não sabe como foi que descobri. Olhei no cartão de visitas que o senhor me deu hoje à tarde e lá estava o seu nome! Isto é, o Senhor Puttle olhou no seu cartão e disse que aquele devia ser o seu nome. E também ficou zangado um instante, quando lhe contei o caso do vestido novo que vou buscar na segunda-feira. Mas logo se acalmou novamente. Disse que, se o senhor era tão trouxa, ele não tinha nada com isso, e que gente como o senhor nasce a todo instante. Não sei o que quis dizer com isso. Mas foi assim que descobri o seu nome.
A moça mal fazia pausas para respirar.
— E... ohl O Senhor Puttle me contou mais alguma coisa a seu respeito. Uma coisa muito emocionante. Disse que o senhor era uma espécie de detetive e que era o senhor quem era elogiado por todo o trabalho duro que os pobres policiais fazem. Isso é mesmo verdade?
E ela nem esperou resposta.
— Em certa ocasião, meu irmão quis entrar para a polícia, porém não entrou. Mas não importa, pois acho que ele não tem altura suficiente para ser um polícia de verdade. Não é alto como o Senhor Puttle. É pequeno, como eu e George. E nunca vi um policial pequeno. O senhor já viu? Mas talvez ele pudesse ter sido detetive. Aposto em que ele nunca pensou nisso. Ou talvez também não haja detetives de baixa estatura. Alguém pode ser detetive, sendo pequeno demais? Ou talvez o senhor não saiba.
Vance riu, muito divertido, olhando dentro dos olhos da moça, como se desconcertado pelas suas confusas divagações.
— Tenho conhecido alguns detetives de baixa estatura — disse-lhe Vance.
— Bem... Em todo caso, acho que meu irmão não sabia disso. Ou talvez não quisesse ser detetive. Pode ser que ele desejasse ser policial apenas porque os policiais usam uniforme... Oh, senhor Vance? Acaba de me ocorrer outra coisa. Aposto em que sei que o senhor não tem medo de estar aqui esta noite. Eles não podem prender um detetive! E também não podem prender um policial, podem? Se pudessem, quem ficaria para prender os homens fora da lei? E, por falar no meu irmão, ele também está aqui esta noite. Está aqui toda noite...
— Ah! — murmurou Vance. — E onde é que ele está sentado?
— Oh, não quero dizer que ele esteja aqui no restaurante — declarou a moça, ingenuamente. — Ele trabalha aqui.
— Não diga! Que é que ele faz?
— O serviço dele é muito importante.
— Ele trabalha no Domdaniel há muito tempo?
— Ora, trabalha aqui há mais de seis meses! É muito tempo, em se tratando do meu irmão. Parece que ele nunca foi muito de trabalhar. Acho que é um sonhador. Em todo caso, alega que nunca lhe dão o merecido valor. E foi só hoje que ele disse que vai ter um aumento de salário. Mas receia que seu patrão também não lhe dê o devido valor.
— E que é que seu irmão faz aqui? — indagou Vance.
— Trabalha na cozinha. E lavador de pratos. É por isso que seu trabalho é tão importante. Imagine, se um restaurante grande como este não tivesse um lavador de pratos! Não seria horrível? Ora, nem sequer se poderia fazer uma refeição. Como poderiam servir a comida à gente, se os pratos estivessem imundos?
— Devo confessar que a senhorita tem razão — admitiu Vance. — Seria uma situação muito embaraçosa. Como você diz, o trabalho do seu irmão é muito importante. E, de passagem, diga-se que a senhorita é a jovem mais deliciosamente espantosa e mais perfeitamente natural que já conheci na minha vida.
Ficou evidente que o elogio foi desperdiçado com ela, pois a moça voltou imediatamente ao assunto do seu irmão.
— Mas talvez ele deixe o emprego hoje. Disse que deixaria, se não obtivesse aumento. Mas acho que, na verdade, ele não devia deixar o emprego, o senhor não acha? E vou dizer isto a ele... Aposto que o senhor não sabe aonde eu vou agora.
— Espero que não vá à cozinha.
— Ora, o senhor é mesmo um bom detetive. — Os olhos da moça, pestanejando, arregalaram-se. — É para lá que eu iria, mas Philip, meu irmão, afirmou que eles não me deixariam entrar na cozinha. Mas vou-me encontrar com ele na escada da cozinha. Philip disse que eu estava apenas fazendo-me de importante quando lhe disse que viria aqui esta noite. Imagine! Ele não quis acreditar em mim. Portanto, eu disse: — Então, você vai ver. — E ele retrucou: — Se você for mesmo ao Domdaniel, vá ao meu encontro na escada da cozinha, às dez horas da noite. — E é para lá que eu vou agora. Meu irmão tinha tanta certeza de que eu não viria aqui, que prometeu que, se eu lhe provasse que estava aqui, indo ao seu encontro, não sairia do emprego, mesmo que não lhe dessem aumento de salário. E sei que a mamãe quer que ele continue no emprego. Portanto, tudo sairá bem... Oh, que horas são, Senhor Vance? Vance consultou de relance o seu relógio.
— Faltam cinco minutos para as dez horas.
A jovem levantou-se tão de repente quanto se sentara.
— Não me importo muito com o bobo do Philip — falou ela. — Mas quero fazer mamãe feliz.
Enquanto Gracie se apressava rumo à distante passagem em arco, Burns, o rapaz solitário, se levantou e a seguiu rapidamente para o corredor. Quase simultaneamente, os dois passaram pela tapeçaria de damasco que havia na soleira da porta e desapareceram de vista.
Vance notara o jovem correr atrás da Senhorita Allen e fez um aceno benevolente de satisfação.
— Pobre e infeliz rapaz! — observou ele. — Agarrou a sua única oportunidade fugidia de falar a sós com sua amada. Espero que ele não cometa a imprudência de ralhar com ela... Mas, seja o que for que ele fizer, a deusa Afrodite já lhe está sorrindo de forma favorável, embora ele não lhe reconheça a fisionomia sorridente.
Voltei minha atenção, com indiferença, para a mesa onde Mirche e a Senhorita Del Marr tinham estado sentados. No entanto, a cantora havia desaparecido, e Mirche perscrutava de forma complacente o salão de refeições. Depois, ele seguiu pelo corredor, rumo à entrada principal.
Ao chegar à nossa mesa, parou um instante, fez uma mesura pomposa, para se certificar de que não nos faltava nada, e Vance convidou-o para sentar-se conosco.
Não havia nenhuma característica que distinguisse Daniel Mirche de forma especial. O homem era do tipo comum, esse misto de político e de dono de restaurante, grande e um tanto exibicionista. Era, ao mesmo tempo, agressivo e bajulador, com maneiras de polidez superficial. Seus cabelos ralos eram ligeiramente grisalhos e seus olhos tinham um peculiar matiz esverdeado.
Vance conduziu a conversa com facilidade, abordando vários aspectos relacionados com o interesse de Mirche no restaurante e sua gerência. Seguiu-se uma discussão a respeito de vinhos e suas safras. Momentos depois, Vance lançara-se a um dos seus assuntos prediletos: isto é, os conhaques raros do distrito oeste central da França, os distritos de Grande Champagne e Pequeno Champagne e os vinhedos em torno de Mainxe e Archiac.
Enquanto eu perpassava os olhos pelo salão, a esmo, notei que o jovem Burns voltara para sua mesa. E pouco depois a moça reaparecia no arco da porta do lado oposto, indo diretamente rumo ao Senhor Puttle. Nem sequer olhou de relance na nossa direção; e, pela expressão de desanimo do seu rosto, só pude supor que ela falhara no seu objetivo.
No entanto, não me ocupei demasiado tempo com essas reflexões. Minha atenção foi atraída pela entrada furtiva e quase felina de um homem magro e alto, que seguiu, como se não quisesse atrair atenção, para uma pequena mesa no canto oposto do salão. Essa mesa, não muito distante daquela em que se encontrava sentado o desalentado jovem Burns, já estava ocupada por dois homens, que se achavam de costas para o salão; e, quando o recém-chegado ocupou a cadeira vaga diante dos dois, eles se limitaram a fazer um aceno de cabeça.
Meu interesse por esse personagem alto e magro baseava-se no fato de que ele me fazia lembrar de fotografias que eu tinha visto de um dos facínoras mais notórios da época, um tal Owen. Corriam os boatos mais desagradáveis a respeito do tal homem, e houvera rumores de que ele era o planejador — ou, como se diz vulgarmente na gíria jornalística desse tipo de reportagens, ”o cérebro” por trás de certas organizações, de vulto considerável, de meliantes. Acreditava-se que ele representava um papel de direção entre os fora-da-lei, e que esse papel era tão importante que o homem conquistara o apelido de ”Coruja”.
Havia uma característica notável implícita nas suas feições super-refinadas. Uma característica maligna, sem dúvida, mas que deixava entrever potencialidades muito vastas e talvez até heróicas. O homem se formara com louvor em uma grande universidade e me trouxe à mente um lindo retrato de Robespierre que eu vira um dia: lá estava a mesma expressão maquiavélica de inteligência e de sagacidade. O homem tinha cabelos e olhos escuros, mas uma pele sem cor, como se fosse de cera. A impressão dominante que ele dava era de uma dureza inflexível: era fácil imaginá-lo desempenhando as funções de um carrasco com um sorriso indiferente e cruel nos lábios finos.
Estou descrevendo este homem de maneira tão minuciosa porque ele deverá representar um papel de vital importância no estranho desenrolar do caso que estou contando. Mas, naquela noite, eu não podia mesmo por um salto fantástico de imaginação, tê-lo ligado, fosse como fosse, com a quase incrível e descuidada Gracie Allen. E, contudo, esses dois caracteres tão diferentes deveriam cruzar o caminho um do outro, em breve, da maneira mais espantosa.
Eu já estava para afastar esse homem da minha mente, quando notei um tom de voz fora do comum na fala de Vance, enquanto ele batia papo com Mirche. Com aquela fleuma peculiar e ao mesmo tempo alerta, Vance estava olhando fixamente para a mesa situada no canto mais distante, onde os três homens se achavam sentados.
— A propósito — falou ele a Mirche, um tanto abruptamente. — Aquele, sentado lá, perto da coluna do canto, não é o famoso ”Coruja” Owen?
— Não conheço o Senhor Owen — respondeu Mirche, suavemente. No entanto, virou-se ligeiramente, com natural curiosidade, na direção apontada por Vance. — Mas poderia ser — acrescentou ele, depois de um instante de exame. — Até que é parecido com as fotografias que tenho visto do Senhor Owen... Se quiser, posso ir-me certificar.
— Oh, não, não é preciso — falou Vance. — Mas é muita amabilidade sua. Mas não é coisa importante, sabe?
Os componentes da orquestra iam voltando aos seus lugares, e Vance empurrou sua cadeira para trás.
— Tive uma noitada muito agradável e edificante — disse ele a Mirche. — Mas, agora, preciso mesmo ir andando.
Os protestos delicados de Mirche pareceram bastante legítimos, quando ele nos sugeriu que ficássemos pelo menos até depois do número de Dixie Del Marr, que seria o próximo.
— É uma excelente cantora — acrescentou Mirche, com entusiasmo. — E uma mulher de raro encanto pessoal. Ela faz seu número às onze da noite, e já está quase na hora.
Mas Vance alegou assuntos urgentes que ainda lhe exigiam a atenção naquela noite e pôs-se de pé.
Mirche exprimiu seu profundo pesar e nos acompanhou até à entrada principal, onde nos deu um efusivo boa noite.

CAPITULO VI
O CADÁVER
(Sábado, 18 de maio — 23:00 horas)

Descemos a escada de degraus largos de pedra, até à rua, e seguimos para leste. Na Sétima Avenida, repentinamente, Vance fez sinal para um táxi e deu ao motorista o endereço da residência do procurador distrital.
— Nesta altura, Markham já deve ter voltado da sua ronda de tarefas políticas — disse Vance, enquanto seguíamos para o centro da cidade. — Sem dúvida, ele me criticará impiedosamente pela minha aventura noturna oca. Mas, não sei por que, senti uma inquietação estranha esta noite nos salões espaçosos do Domdaniel, depois de ouvir as observações pouco recomendáveis do sargento a respeito do restaurante. O restaurante continua sendo como sempre foi. No entanto, por que minha mente era assombrada por pensamentos sinistros e de mau agouro, enquanto eu remexia no Meando e bebericava o Château Haut-Brion. Acho que, com o correr dos anos, os tentáculos envolventes da desconfiança estão-se fechando sobre minha natureza, outrora confiante. Ai de mim...!
O táxi parou de chofre diante de um pequeno prédio e fomos imediatamente para o apartamento do procurador distrital.
Markham, usando paletó esporte e chinelos, recebeu-nos com divertida surpresa.
— Espero que não seja outro mensageiro afobado com más notícias.
— Nada de Hermes nem de caduceus. Você está sendo acossado pelos arautos?
— Mais ou menos isso — retorquiu Markham, com uma careta. — O sargento aqui acaba de me trazer uma mensagem.
Eu não notara a presença de Heath, mas agora o vi, de pé, perto de uma janela, na sombra. O sargento avançou com um aceno amigável de cabeça.
— Caramba, sargento — falou Vance. — Que veio fazer aqui?
— Vim por causa da mensagem de que o Senhor Markham estava falando, Senhor Vance. Uma mensagem de Pittsburgh.
— São más notícias?
— Bem, não são exatamente o que se poderia chamar de boas — queixou-se Heath. — Acho que são até bem ruins.
— Não diga...
— Acho que não errei muito nas deduções e previsões que fiz ontem à noite a respeito do caso... O capitão Chesholm, de Pittsburgh, acaba de mandar-me a notícia de que um dos seus motociclistas localizara um carro viajando sem luzes em uma estrada secundária, e que, quando o carro diminuiu a marcha para fazer um curva apertada, um sujeito que viajava no banco traseiro deu dois tiros contra o policial. O carro fugiu, seguindo para leste, rumo à estrada principal.
— Mas, sargento, por que esse pequeno tiroteio na Pennsylvania perturbaria a sua excelente voz de tenor?
— Vou-lhe dizer por que. — Heath tirou o charuto da boca. — O guarda pensou ter reconhecido Benny, o Abutre!
Vance não se deixou impressionar.
— Nas circunstâncias em que se deu o fato, ele pode ter-se enganado redondamente.
— Foi exatamente o que eu disse ao sargento. — Markham fez um aceno de cabeça, aprovando. — Nas próximas semanas, vamos receber comunicados de que Pellinzi foi visto em todos os Estados deste país.
— Talvez — insistiu Heath. — Mas o modo como o tal carro estava viajando encaixa exatamente na minha idéia. O Abutre já poderia ter chegado a Nova York hoje cedo, se ele tivesse vindo diretamente de Nomenica. Mas, fazendo um círculo até a Pennsylvania e vindo de lá rumo oeste, talvez ele pretendesse, com isso, evitar muitas dificuldades.
— Pessoalmente — falou Markham — estou convencido de que aquele sujeito se manterá afastado de Nova York. — Seu tom de voz era equivalente a uma crítica à ansiedade do sargento.
Heath sentiu a repulsa.
— Espero que não o tenha importunado, vindo aqui esta noite, chefe. Eu sabia que o senhor tinha dois compromissos hoje, e pensei que ainda estivesse de pé.
Markham suavizou o tom de voz.
— O fato de você ter vindo aqui não tem importância — falou ele, para tranqüilizar o defensor da lei. — Tenho sempre prazer em vê-lo, sargento. Sente-se e sirva-se da garrafa... Talvez o próprio Senhor Vance esteja à procura de uma platéia para contar a ela a respeito das sobrancelhas arqueadas de Mirche e de outros pormenores horrendos da sua estada no Domdaniel... Então, Vance? Você tem alguma história de duendes com que nos regalar antes de irmos para a cama?
Heath instalara-se em uma cadeira e serviu-se de uma bebida. Vance também estendera a mão para pegar o seu conhaque predileto.
— Sinto muito, Markham, velho amigo — disse ele, na sua voz arrastada. — Não tenho nenhuma fantasia para contar... Nem mesmo uma a respeito de um carro misterioso em fuga. Mas tentarei igualar a história inspirada do sargento com um conto sobre uma ninfa dos bosques e um experimentador de perfumes; de uma Lorelei que canta de um pódio em vez de cantar de um penhasco rochoso. De um dono esperto de um restaurante e de um escritório vazio, cercado de grades misteriosas; de uma sacada coberta de trepadeiras e de uma coruja sem penas... Você poderia suportar ouvir o cântico do meu poema?
Estou com resistência baixa.
Vance estendeu as pernas diante de si.
— Bem, com licença, então — começou ele. — Nesta noite, uma encantadora jovem, uma garota espantosa, nos fez companhia à nossa mesa, durante alguns minutos. Uma criança, cujo cérebro é uma roda-viva e gira como um pião, irradiou as fagulhas mais coloridas; porém, seu espírito, é tão ingênuo quanto o de uma criança.
— A tal ninfa dos bosques de quem você tagarelou no preâmbulo?
— Sim... Ela mesma. Eu a vi pela primeira vez hoje à tarde em um bosque sombrio em Riverdale. E ela estava no Domdaniel hoje à noite, acompanhada por um sujeito chamado Puttle, que ela estava usando como isca para fisgar o verdadeiro queridinho do seu coração, um rapaz de nome Burns. Este também se achava presente esta noite, mas longe da moça, e sozinho... e muito infeliz.
— Seu encontro com ela hoje à tarde sugere possibilidades mais interessantes — comentou Markham, com indiferença.
— Talvez você tenha razão, meu caro. A verdade é que a moça se achava sozinha quando me introduzi no seu reino florestal. Mas ela aceitou minha intromissão sem dificuldades. Até se ofereceu para ler a palma da minha mão.
— Delpha? — interrompeu Heath, em tom agudo. — Refere-se àquela cartomante que negocia com a profissão sob esse nome falso?
— Talvez seja — falou Vance. — Essa Delpha, ao que me consta, lida com leitura das linhas da mão, com astrologia, com numerologia e com outras coisas semelhantes. Você conhece essa pitonisa, sargento?
— Claro que conheço. E conheço também o marido dela, de nome Tony. Os dois são ligados de estranha maneira com um punhado de malfeitores do submundo. Esse casal atua como informante e como observador para assaltos a joalharias... São o que se poderia chamar de espiões para assaltos. Mas não conseguimos pilhá-los em flagrante. O sobrenome deles é Tofana e os dois têm uma loja para enganar os trouxas... ”Delpha” — bufou ele. — Para os vizinhos, ela é apenas Rosie. Talvez ela fique livre das grades durante algum tempo, mas algum dia eu a agarrarei.
— Você me deixa atônito, sargento. Simplesmente, não posso imaginar que minha linda fada dos bosques — que, a propósito, trabalha em uma fábrica de perfumes a semana inteira — tenha algo a ver com a megera sombria da sua descrição.
— Mas eu posso — falou Heath. — Esse é um dos truques mais batidos da velha Rosa Tofana: cercar-se de jovens inocentes. E, enquanto ela finge ser uma comerciante inofensiva e imaculada, o velho Tony está talvez tramando alguma patifaria, ou batendo carteiras, bancando o gigolô ou então vendendo entorpecentes do outro lado da cidade. Esperto, o Tony... Sabe fazer quase de tudo.
— Bem — murmurou Vance. — Talvez estejamos falando de duas mulheres diferentes, não é? ”Delpha” pode ser um nome popular da irmandade mística. Talvez uma sugestão fonética para o oráculo de Delfos...
— Coragem, Vance — interrompeu Markham, em tom agradável. — Não deixe que o sargento o afaste do seu conto da carochinha.
— E o pormenor mais espantoso — prosseguiu Vance — foi o cheiro de cidra que havia ao redor do duende. O perfume fora feito especialmente para ela, e não tinha nome. Muito misterioso, hem? Fora preparado pelo cavalheiro chamado Burns, uma espécie de mago das essências, empregado na mesma fábrica em que a moça trabalha. Burns, que ficou tão aborrecido com a aparente preferência que ela resolvera passar a dar a um rival dele.
Markham deu um sorriso torto.
— Não consigo entender onde é que entra o mistério da situação.
— Nem eu — confessou Vance. — Mas deixe seu cérebro obtuso demorar sobre o fato de que a tal jovem foi escolher exatamente esta noite para visitar o restaurante de Mirche.
— Talvez ela tenha seguido os seus passos, desde Riverdale, até você chegar ao Domdaniel.
— Ora, isso não resolveria nada. Ela já se achava lá quando eu cheguei.
— Então, talvez a moça estivesse com fome.
— Eu já pensara nisso. — Os olhos de Vance brilharam alegremente. — Talvez você tenha solvido o mistério! Mas... — prosseguiu ele — isso não explica o fato de que o próprio Mirche estivesse no Domdaniel.
— Ora, e onde é que você queria que ele estivesse? Mas talvez você agora vá dizer-me que ele é o pai da sua heroína, de quem se separara há muito tempo, não é?
— Não — suspirou Vance. — Mirche, ao que temo, é de uma sublime ignorância da existência da jovem. Que maçada. E eu, que estava tentando inventar uma história divertida para você se entreter...
— Aprecio o esforço. — O charuto de Markham precisava ser aceso novamente, e ele cuidou disso. — Mas diga-me o que achou de Mirche. Lembro-me de que seu objetivo principal, ao ir hoje ao Domdaniel, foi o de estudar o homem mais de perto.
— Ah, sim. — Vance mexeu-se e afundou mais na sua poltrona. — Você é sempre tão prático, Markham... Bem, não gosto de Mirche. É um cavalheiro correto, mas não admirável. No entanto, fez esforços enormes para me agradar. Não sei o motivo disso... Talvez ele estivesse tramando alguma sujeira, embora tenha-me dado a impressão de que é do tipo de homem que precisaria de alguém para fazer planos para ele. Não, Mirche não é um líder de homens, mas, sem dúvida, é um assecla fiel e capaz. Um sujeito sombrio e perverso... Bem, aí tem você o vilão da peça.
— E que farei com ele? Seu conto está fracassando a cada instante que passa.
— Receio que você tenha razão — confessou Vance. — Deixe-me ver... Examinei detidamente o escritório de Mirche, mas, infelizmente, a sala achava-se desprovida de qualquer coisa comprometedora. Apenas uma sala de tamanho razoável, sem nenhum ocupante. E depois olhei com muito gosto para a velha porta e para as janelas que ficam além do alpendre, dentro da alameda por onde entram os carros. Mas, apesar de todo o exame minucioso que fiz, não consegui descobrir nada que ajudasse. Mas as trepadeiras que havia por lá eram muito agradáveis. Trepadeiras inglesas.
— Agora, você passou para a Botânica — disse Markham. — Devo dizer que prefiro a narrativa, feita pelo sargento, do tiroteio de Pittsburgh... Mas você não falou de uma Lorelei?
— Ah, sim. E bem loura... como convém a uma sereia do Reno. Mas o nome dela tem um elo gaulês: Del Marr. Uma Lorelei impressionante. Mais inteligente, creio eu, do que Mirche. Mas houve uma conversa séria entre ela e Mirche. Os dois sentaram-se a uma mesa, durante um intervalo de descanso da orquestra, e tenho certeza de que a conversa não se limitou a assuntos musicais ou profissionais de empregador e cantora. Havia uma atmosfera de intimidade entre os dois. Liberdade, igualdade, fraternidade... Assim. Não era uma simples contratada conversando com seu empregador.
— Eu também imaginei isso, há alguns anos — intrometeu-se Heath. — Além disso, ela tem um carro de luxo e motorista. Sua profissão de cantora certamente não lhe dá dinheiro para tanta coisa. E a cara do tal motorista também não me agrada: é um tipo mal-encarado, como um desses leões-de-chácara que trabalham nas casas de jogatina.
— Pelo menos, Vance, — falou Markham, esperançoso — você descobriu uma ligação em potencial entre os componentes do seu drama, quase totalmente desorganizados e sem relações entre si. Talvez você possa desenvolver a estrutura da sua narrativa tendo isso como base.
Vance sacudiu a cabeça, desanimado.
— Não, acho que, infelizmente, não estou à altura da tarefa.
— E que há a respeito da ”coruja sem penas” de que você falou há pouco?
— Ah! — E Vance bebericou o seu conhaque. — Eu me referia ao sombrio e misterioso Senhor Owen, de lembrança detestável e má reputação.
— Compreendo. ”Coruja” Owen, hem? Eu tinha uma idéia vaga de que ele se estivesse torrando ao sol da Califórnia. Há algum tempo atrás, correu o boato de que ele estava morrendo, talvez por efeito dos seus pecados.
— Oh, estava bem vivo lá no Domdaniel, sentado do outro lado do salão, junto com dois outros homens.
— Aqueles dois sujeitos — adiantou Heath — eram, talvez, seus guarda-costas. Ele não anda sem a companhia dos dois.
— Acho que você não vai conseguir nada com ele, Vance — falou Markham. — Certa ocasião, o FBI se preocupou com ele, mas, depois de efetuar investigações, declararam o homem isento de culpa. Ou, pelo menos, disseram que não havia provas da sua culpa.
— Confesso que estou derrotado. — Vance sorriu, tristonho. — Cheguei até a tentar atrair Mirche para que este confessasse que conhecia Owen. Mas o homem negou o mínimo conhecimento com o ”Coruja”...
Após mais uma hora de conversa sem objetivo, fomos interrompidos pelo tilintar do telefone. Markham franziu o cenho, aborrecido, enquanto atendia. Depois, pondo o receptor no lugar, virou-se para Heath.
É para você, sargento. É Hennessey.
Heath também ficou aborrecido.
— Desculpe, chefe. Não deixei este número com ninguém quando vim para cá.
Enquanto saudava Hennessey pelo telefone, sua voz era belicosa. Escutou vários minutos, a expressão fisionômica mudando rapidamente da beligerância para outra de quem está profundamente confuso. De repente, berrou para o fone: ”Não desligue, espere um instante!” — E, segurando o receptor do telefone de lado, virou-se para nós:
— Parece-me uma loucura, chefe, mas Hennessey está telefonando lá do Domdaniel, e preciso ir falar com ele imediatamente...
— Esplêndido! — disse Vance, num impulso. — Por que não manda Hennessey vir aqui? Tenho certeza de que Markham não se oporia.
Markham dirigiu a Vance um olhar de espanto.
— Está bem, sargento — disse ele, de mau humor. Heath recolocou novamente o fone ao ouvido, com rapidez.
— Escute, Hennessey — disse ele, em voz áspera. — Venha aqui à casa do procurador.
— Que agitação é essa, sargento? — indagou Vance. — Terá o Mirche se escondido com seu próprio dinheiro e fugido com a Senhorita Del Marr para casar-se com ela?
— É muito esquisito — murmurou Heath, ignorando a pergunta. — Os rapazes encontraram um cadáver de homem no restaurante.
— Espero, nesse caso, que tenha sido achado no escritório de Mirche — disse Vance, em tom leve.
— O senhor acertou. — E Heath olhou fixamente para o soalho.
— E de quem seria o cadáver?
— É justamente isso que torna a coisa esquisita. O cadáver é de um empregado que trabalhava na cozinha do restaurante.
— Esse fato o ajudará a reviver o seu conto fracassado? — perguntou Markham a Vance.
— Céus, não! Isso fulmina completamente toda a minha história. — Vance tornou a se virar para Heath. — Você já sabe o nome do morto, sargento?
— Não prestei muita atenção ao nome quando Hennessey disse que era apenas um empregado de cozinha. Mas me pareceu algo como Philip Allen.
As pálpebras de Vance bateram ligeiramente.
— Philip Allen, hem? Muito interessante!

CAPITULO VII
ESTRANHAS COINCIDÊNCIAS
(Domingo, 19 de maio — 0:45 horas)

Hennessey chegou em menos de quinze minutos. Era um homem corpulento e sério, de feições severas e maneiras desajeitadas.
Heath foi diretamente ao assunto que interessava.
— Conte sua história, Hennessey. Depois, eu lhe farei perguntas. Mas, primeiro, quero saber por que você me telefonou para cá a estas horas da noite.
— Diacho, sargento! — retrucou Hennessey. — Havia mais de uma hora que eu estava tentando encontrá-lo. Eu sabia que o senhor fazia ligação de idéias entre o Senhor Markham e o Domdaniel, e imaginei que o senhor quereria saber de uma morte inesperada acontecida lá. Por isso, telefonei para sua casa e para inúmeros outros lugares em que eu pensava que o senhor poderia estar, mas em vão. Depois, arrisquei-me a ligar para cá. Eu não queria que o senhor gritasse comigo amanhã, para me passar um carão.
— Bem, o que você sabe? — resmungou Heath.
— A história parece um tanto maluca, sargento. Mas, por volta das onze horas, vi o Senhor Vance sair do restaurante. Antes disso, já o vira rondando o escritório de Mirche...
— Às oito horas — interrompeu Vance, com um sorriso.
Hennessey tirou seu caderno de anotações e virou algumas
páginas.
— Às sete e cinqüenta e seis, Senhor Vance.
Céus, que observação meticulosa!
Hennessey sorriu.
— Bem... Uns quinze ou vinte minutos depois que o Senhor Vance saiu, dois homens do Departamento de Homicídios chegaram com o Dr. Mendel, e os três entraram no escritório de Mirche. Achei aquilo esquisito, e por isso deixei Burke de vigia, em companhia de Snitkin, e fui ver o que estava acontecendo. Quando estávamos subindo a escada, o próprio Mirche chegou correndo, todo agitado, passou por nós e entrou na sala. Acho que o porteiro, que o senhor conhece, Joe Hanley, deve ter-lhe dito que alguma coisa estranha estava acontecendo...
— Não tente adivinhar coisas.
— Pois bem — prosseguiu Hennessey. — Dentro da sala havia um sujeito de terno preto, estendido no chão, com meio corpo embaixo da escrivaninha. Mirche foi até junto dele, cambaleando um pouco e mortalmente pálido. Inclinou-se bem perto, por cima do homem, ao lado do médico, que estava abrindo a camisa do cadáver e encostando-lhe ao peito uma dessas cornetas acústicas...
— Um estetoscópio! Céus! — Vance olhou para Markham.
Eu não sabia que um médico oficial levava um desses fiéis instrumentos consigo.
— Geralmente, não leva — falou Markham. — Mendel é um médico jovem e acaba de ser nomeado para o corpo médico; por isso, não me surpreenderia se ele levasse também consigo um espirômetro por onde anda, e também o seu diploma.
— Prossiga, Hennessey — grunhiu Heath. — E depois? Guilfoyle perguntou a Mirche quem era o sujeito. Não sei se o que aconteceu em seguida foi antes ou depois que Mirche respondeu à pergunta; só sei que mais ou menos nessa altura Dixie Del Marr entrou correndo. E Mirche disse, num cochicho, que a vítima era um dos lavadores de pratos do restaurante um tal Philip Allen. Eu mesmo poderia ter contado isso a Guilfoyle. Eu conhecia Allen, e o tinha visto pessoalmente naquela tarde. Depois, Guilfoyle perguntou a Mirche por que o rapaz estava no escritório, onde ele vivia e o que Mirche sabia sobre sua morte. O sapo velho declarou que não sabia de nada a respeito do morto, nem de como ele fora parar ali, ou onde ele morava. De que era tudo um mistério para ele. E parecia ser sincero, ou estava fingindo muito bem.
— Tem certeza de que ele não estava enganando a todos vocês? — indagou Heath, desconfiado.
— Ahn? A mim, não — garantiu Hennessey. — Nenhum sujeito pode fingir tão bem estar abalado.
— Que aconteceu depois?
Hennessey prosseguiu, agora mais depressa.
— O médico começou a examinar o homem, levantando-lhe as pálpebras, espiando a sua garganta, movendo suas pernas e braços... Todos os exames de praxe. E, enquanto ele estava ocupado em mexer no sujeito, a tal Dixie Del Marr abriu a porta de um armário embutido e tirou um livro de registro da firma. Virou algumas páginas, e depois disse: ”Aqui está, Mirche. Philip Allen mora na rua Leste, 37, número 198, com a mãe dele”.
Markham olhou para cima e virou-se para Vance.
— Vejo que sua dedução, não muito profunda, está sendo apoiada de leve. Sua Lorelei é, evidentemente, a guarda-livros de Mirche.
Hennessey ficou impaciente com a interrupção.
— Depois, Guilfoyle perguntou ao médico qual fora a causa da morte do homem. ”Não sei” — foi a resposta do médico. ”Talvez ele tenha morrido de morte natural, mas não posso dizer, apenas com o exame superficial feito. Ele apresenta queimaduras nos lábios e sua garganta parece ter alguma coisa. Vocês vão ter de levá-lo ao necrotério para uma autópsia completa.” — O médico nem sequer sabia há quanto tempo a vítima estava morta.
— E que fez a cantora Del Marr? — indagou Heath.
— Recolocou o livro na prateleira do armário embutido e sentou-se em uma cadeira, com uma expressão dura e indiferente, até que Mirche a mandou voltar para o restaurante.
— E então vocês mandaram o cadáver para o necrotério. — Heath estava tirando baforadas no seu charuto, sombriamente.
— Isso mesmo, sargento. Guilfoyle se encarregou de chamar o carro fúnebre. Ele e o outro investigador do Departamento de Homicídios, de nome Sullivan, encarregaram-se das investigações... É uma história boba, mas sei que o senhor sempre desconfiou daquele tal Mirche... Principalmente agora, com o Abutre à solta.
Heath franziu o cenho e dirigiu a Hennessey um olhar fixo e frio.
— Está bem! — berrou ele. — Quem entrou no escritório, depois que o Senhor Vance chegou lá, às oito da noite?
— Ah, isso é fácil. — E o policial riu, desconsolado. — A cantora Del Marr entrou no escritório por volta das oito e meia e saiu logo depois. Pouco mais tarde, o porteiro entrou lá também. Mas creio que ele costuma fazer isso sempre. Acho que Hanley apenas foi lá para tomar um gole de uísque, pois saiu esfregando a boca com a manga do paletó...
— A que horas aconteceu tudo isso? — indagou Heath.
— No início da noite, uma hora depois que o Senhor Vance esteve lá.
— Suponho que você investigou para saber se algum deles viu o cadáver, não é?
— Claro que sim. Mas nenhum deles o viu. O porteiro foi lá depois da cantora, e pode apostar sua vida em que, se houvesse um cadáver lá dentro, Hanley teria soltado um grito. Ele é um sujeito honesto, sargento.
— Claro. Conheço Joe Hanley há muito tempo. — Heath pensou um momento. — Nada disso faz sentido... Mas, agora, quero saber de uma coisa: a que horas você tirou a sua soneca, esta noite?
De repente, compreendi a significância da pergunta de Heath.
- Juro por Deus, sargento, não tirei nenhuma soneca.
Mas não sei como o tal Allen entrou no escritório. Não o vi entrar lá.
— Ahn! — E havia um mundo de sarcasmo no grunhido do sargento. — Você não dormiu, mas Allen entrou no escritório, teve um ataque cardíaco, ou coisa semelhante, e morreu enrodilhado embaixo da escrivaninha de Mirche! Esta é a última piada para os anais da polícia.
Hennessey ficou vermelho como um camarão.
— Eu não o culpo por estrilar, sargento. Mas, sinceramente, não afastei os olhos daquela porta nem por uma fração de segundo...
— Então, a vítima se tornou invisível e entrou lá sem quo você a visse, num passe de mágica. Ou talvez tenha descido pela chaminé, como o Papai Noel... Se é que há chaminé. — A ironia do sargento pareceu desnecessariamente brutal.
— Escute, sargento — interrompeu Vance. — O verdadeiro objetivo da vigilância de Hennessey era ficar alerta ao aparecimento de Benny Pellinzi, não se esqueça disso. Sem dúvida, você não postou três marmanjos na pensão apenas para vigiarem um pobre lavador de pratos.
Heath abordou outra faceta do assunto.
— Quem foi que telefonou para a chefatura de polícia, Hennessey?
— Essa é outra coisa engraçada, sargento. O telefonema chegou, por vias normais, às dez e cinquenta... não mais de dez minutos depois que o senhor saiu. Quem telefonou foi uma mulher. Ela não quis dar o nome; bancou a misteriosa e desligou.
— Sim. Se foi engraçado... Podia muito bem ter sido essa megera dessa cantora, Del Marr.
— Também pensei nela, e a interroguei a respeito do assunto. Mas ela parecia ignorar tanto o fato como Mirche o ignorava. Mas poderia ter sido alguma das velhas empregadas que trabalham na cozinha. Grande parte dos empregados entra e sai por aquela alameda que dá para o escritório. E, se um deles quisesse bisbilhotar, bastar-lhe-ia levantar-se na ponta dos pés e espiar pela janela.
— E o edifício de escritórios que fica ao lado da alameda? — indagou Vance.
Foi Heath quem respondeu à pergunta.
— Não há janelas ali, senhor. Os primeiros três andares são fechados por uma parede maciça de tijolos...
O cigarro de Vance se acabara e ele acendeu outro.
— Juntando tudo isso — comentou ele — não pareço muito promissor para um crime misterioso. É muito triste. Tive esperanças tão grandes quando Hennessey telefonou a essa hora mais ou menos de bruxaria.
— Tenho de confessar — disse Heath — que eu também não consigo vislumbrar nada de especial no relatório de Hennessey. Mas há outra coisa que eu desejo saber. — E tornou a virar-se para Hennessey. — Você disse que conhecia esse lavador de pratos, o Allen, e que o viu mais cedo, no mesmo dia. Fale-nos a esse respeito.
— Eu fiquei conhecendo-o por acaso — retrucou o policial. — Uma noite, no inverno passado, ele saiu correndo da alameda, por volta das três horas da madrugada, e quase me derrubou no chão. Eu o agarrei e levei-o à presença de Hanley, para ver quem ele era. Depois o soltei. Hoje à tarde, eu o vi rondando o escritório de Mirche. Entrou e saiu de lá três ou quatro vezes, entre uma e cinco horas da tarde. Depois por volta das seis, quando Murche chegara ao escritório, o rapaz tornou a entrar lá e ficou uns dez minutos, dessa vez. Quando saiu, foi a última vez que o vi.
— Para onde foi ele?
— Sei lá... Não sei ler os pensamentos dos outros. Ele não voltou para a cozinha, se é isso que o senhor deseja saber. Foi para a rua.
— Tem certeza de que foi Allen quem você viu? — indagou o sargento, desanimado.
— Claro que tenho! — riu Hennessey. — Mas é muito engraçado o senhor me perguntar isso. Na primeira vez em que vi Allen, esta tarde, tive a idéia maluca de que poderia ser Benny, o Abutre: são ambos da mesma estatura, com o mesmo rosto redondo e pálido, macilento. E Allen trajava um terno simples e preto, como já lhe disse... e é assim que o Abutre estaria vestido, se ele quisesse entrar aqui, furtivamente, e desejasse evitar que o vissem com facilidade. O senhor se lembra das roupas elegantes que ele usava nos velhos tempos. Em todo caso, resolvi certificar-me. Eu sabia que estava agindo como um tolo, mas fui até o restaurante e disse olá ao sujeito. Era mesmo Allen. Ele me disse que estava por ali a fim de conseguir um aumento de salário com o velho Mirche. Pura perda de tempo!
Heath coçou a cabeça.
— Mais alguma coisa a respeito do tal Allen lhe vem à idéia?
— Eu estava pensando — disse Hennessey. — Sim... Ele se encontrou com um sujeito por volta da metade da tarde, aproximadamente às quatro horas. Era um homem miúdo, como Allen. Os dois foram para o lado oeste do restaurante e pouco depois se empenharam em animada discussão. Parecia que a qualquer instante iriam sair para os sopapos. Mas não lhes prestei muita atenção, e finalmente o tal sujeito foi embora. Tem mais alguma pergunta, sargento?
Vance chamou Heath de lado e lhe cochichou algumas palavras ao ouvido. Finalmente, o sargento fez um movimento indiferente de ombros e confirmou de cabeça. Depois, tornou a se virar para Hennessey.
— É só isto — falou ele. — Vá para casa e durma um pouco. Mas esteja de volta ao trabalho ao meio-dia.
Quando Hennessey se retirara, Markham, notando uma mudança repentina na maneira de se portar de Vance, franziu a cenho e inclinou-se para diante.
— Em que é que você está pensando, Vance? — perguntou ele.
— Na história de Hennessey. No meu conto de fadas de hoje à noite, não mencionei o nome da ninfa dos bosques. Ela se chama Gracie Allen. E Philip Allen é seu irmão. Ela me contou, muito francamente, que ele era lavador de pratos no Domdaniel. Ela até me contou que ele ia encurralar Mirche, hoje à tarde, no covil deste, para lhe pedir aumento de salário. E, quando a Senhorita Allen parou junto à minha mesa, esta noite, estava indo ao encontro do irmão, em alguma parte das dependências do restaurante.
Markham tornou a recostar-se no espaldar da poltrona, com uma risada curta.
— Talvez você possa encaixar tudo isso na fantasia que estava tecendo hoje cedo.
— É como você diz, meu velho amigo. — Vance não estava mais disposto a gracejar. — Sem dúvida, vou tentar fazer isso. Não me conformo com o fato de tantas coisas irrelevantes acontecerem em um lugar só e ao mesmo tempo. Deve haver alguma coisa unindo esses acontecimentos. Em todo caso, não estou disposto a continuar acordado, e por isso vou para casa dormir.
Vance caminhou até o fim da sala, no sentido do comprimento, depois voltou, de cabeça baixa. Em seguida, parou de chofre e sorriu, com um misto de seriedade e embaraço, mas bem resoluto.
— Escute aqui, Markham — falou ele. — Confesso que minhas idéias são muito vagas e que aquela bruxazinha em Riverdale pode ter-me enfeitiçado. Mas me sinto inclinado a descobrir o que puder a respeito da morte prematura de Philip Allen, e talvez assim amenizar o choque para a jovem. E preciso da sua ajuda para isso. Você não quer apoiar minhas excentricidades mais uma vez?
Markham suspirou, resignado.
— Farei tudo para me livrar de você a estas horas avançadas e impróprias.
— Já que é assim, encarregue-me do caso Allen, para eu brincar com ele como bem entender, mas, naturalmente, tendo a meu lado o eficiente sargento.
Markham hesitou.
— Que tal acha disso, sargento?
— Se o Senhor Vance tiver algumas idéias extravagantes — retrucou Heath, vigorosamente — prefiro trabalhar com ele.
— Está bem, sargento, então vá trabalhar com o nosso dramaturgo amador. — Depois, Markham virou-se novamente para Vance. — E, quanto a você — falou ele, com uma franqueza brincalhona — acho que é doido varrido.
— Vá lá. Mas não se esqueça de que o grande louco de hoje é o Prêmio Nobel de amanhã...

CAPITULO VIII
NO NECROTÉRIO
(Domingo, 19 de maio — 1:30 horas)

Vance, Heath e eu fomos primeiro ao apartamento de Vance. Lá, enquanto Vance trocava de roupas, vestindo um terno folgado, Heath deu alguns telefonemas necessários.
Interrogou Guilfoyle, durante algum tempo, a respeito de quaisquer pormenores pertinentes que Hennessey pudesse ter omitido, e deu ordens a Sullivan para ficar no Domdaniel até o meio-dia. Em seguida, telefonou para o Dr. Mendel. Achei, tanto pela sua expressão como pelas perguntas que fez, que Heath ficou intrigado e aborrecido com as informações que estava obtendo do jovem médico. Quando Vance voltou para junto de nós, o sargento, ao que parecia, continuava pensando no assunto.
— Este caso — falou ele — está começando a parecer ainda mais maluco do que a princípio, a história de Hennessey mostraria. O Dr. Mendel ainda acha que Allen poderia ter morrido de morte natural, mas descobriu um punhado de indícios de que ele poderia ter sido assassinado. Ele está transferindo a responsabilidade para outro, e mandou o cadáver sem demora para o necrotério, onde Doremus fará a autópsia. Mendel não se quer envolver no caso. Quando lhe perguntei a que horas ele achava que o sujeito morreu, procurou ganhar tempo, falando de rigidez de morte e de certa forma de espasmo.
— Espasmo cadavérico — contribuiu Vance.
— Sim, é isso. E, depois, começou a dizer que há muita coisa, em medicina, que ainda é desconhecida. Como se isso fosse novidade para mim!
— Sim, nós já sabemos isso de cor e salteado — suspirou Vance. — Mas, enquanto isso, você já avisou a mãe do rapaz que morreu?
— Sim, é preciso avisá-la. Pensei em mandar o Martin, que é muito jeitoso para essas coisas.
— Não... Oh, não, sargento — falou Vance. — Já estou vendo a careta que a pobre senhora fará se você mandar Martin. Nós vamos avisá-la pessoalmente.
— Está bem, chefe. — O sargento piscou um olho e sorriu. — O senhor pediu o caso, e agora ele é seu. Em todo caso, esse trabalho de identificação não levará muito tempo.
Descobrimos a residência da Senhora Allen na rua Leste, número 37, uma habitação modesta: um velho prédio de frente de tijolos à vista, que fora dividido em pequenos apartamentos. A própria Senhora Allen atendeu, quando tocamos a campainha. Achava-se completamente vestida e todas as luzes estavam acesas na sala mobiliada com simplicidade.
Era uma pessoa franzina, cuja presença lembrava a de uma ratinha, e muito mais idosa do que eu esperara que fosse a mãe da Senhorita Allen. Havia na sua expressão uma suavidade e algo muito vago — quase uma melancolia — como a de uma pessoa que envelhecera antes do tempo, ou em virtude de uma dor repentina ou de vicissitudes prolongadas.
A mulherzinha mostrou-se muito nervosa e assustada com nossa presença à sua porta; mas, quando o sargento lhe contou quem ele era, a mulher nos convidou imediatamente para entrarmos. Sentou-se muito rígida, como se para poder enfrentar algum golpe duro. Suas mãos achavam-se entrelaçadas com tanta força, que os nós dos dedos ficaram brancos.
Heath pigarreou forte. Apesar de toda a dureza da sua natureza de homem habituado a ver dramas, parecia muito condoído da situação da velhinha.
— Estou falando com a Senhora Allen? — começou ele. Em parte era uma interrogação, em parte uma afirmação.
A mulher fez um aceno de cabeça, trêmula.
— A senhora tem um filho chamado Philip?
A mulher limitou-se novamente a confirmar, com um aceno de cabeça. Mas as pupilas dos seus olhos se dilataram.
Heath mudou o peso para o outro lado do corpo e olhou um instante ao seu redor. Seu rosto tornou-se visivelmente mais suave. Até então, eu só vira o sargento profundamente comovido uma vez na vida: fora quando ele olhara dentro do armário vazio e deparara com o corpo inerte da pequena Madeleine Moffat, durante sua investigação do caso do Bispo Preto.
— A senhora tem ficado acordada até muito tarde da noite, não é, Senhora Allen? — perguntou ele, como se ainda não tivesse encontrado as palavras para amenizar o golpe que ia causar com a notícia.
— Sim, senhor detetive — disse a mulher, num fio de vox trêmula. — Sempre fico acordada, esperando minha filha, quando ela está fora. Mas não me importo com isso.
Heath assentiu com um aceno de cabeça e, com uma súbita torrente de palavras, abordou o assunto que nos levara ali.
— Bem... Sinto muito, mas tenho más notícias para a senhora — disse ele, em um repente. — O seu filho, Philip, sofreu um acidente. — Fez uma pausa, durante alguns instantes. — Sim, Senhora Allen, preciso contar-lhe... Ele está morto. Foi encontrado esta noite, no restaurante onde trabalhava.
A mulher agarrou a sua cadeira com força. Seus olhos se arregalaram e seu corpo oscilou um pouco. Vance foi rapidamente até junto dela e, segurando-a pelos ombros, firmou-a.
— Oh, meu pobre filho! — gemeu ela, várias vezes. Depois, olhou de um de nós para o outro, como se tonta. — Contem-me o que aconteceu.
— Ainda não sabemos ao certo, senhora — disse Vance, baixinho.
— Mas quando? — indagou ela, em voz sem inflexão. — Quando foi que isso aconteceu?
— Recebemos o telefonema por volta das onze horas, esta noite — contou-lhe Heath.
— Eu não sei o que fazer. — Ela ergueu o olhar, com uma súplica. — Os senhores me levarão para vê-lo?
— Foi justamente para isso que viemos aqui, Senhora Allon. Nós queremos que a senhora vá conosco — apenas por alguns minutos — à cidade, para identificá-lo. O Senhor Mirche já fez isso, naturalmente, mas nós pedimos à senhora para reconhecê-lo, apenas por formalidade legal. Depois, ajeitaremos tudo... Agora, foi Vance quem falou com a mulher.
— Sei que é uma tarefa muito triste para a senhora. Mas, como o sargento explicou, é uma formalidade necessária, e mais tarde isso facilitará tudo para a senhora e para sua filha. A senhora tentará ser forte, não é?
A velhinha fez um aceno afirmativo de cabeça, vagamente.
— Sim, preciso ser forte, a bem da Gracie.
Não pude deixar de admirar a fortaleza de espírito dessa mulherzinha frágil. E, quando ela se levantou, resolutamente, para vestir o casaco e colocar o chapéu, minha admiração por ela aumentou mais ainda.
— Vou demorar apenas o tempo necessário para deixar um bilhete para minha filha — falou ela, desculpando-se, quando estava pronta para sair conosco. — Ela ficaria preocupada, se chegasse em casa e não me encontrasse aqui.
Ficamos esperando, enquanto ela arranjava um pedaço de papel. Vance lhe ofereceu o seu lápis. Então, com mão trémula, ela descreveu algumas palavras e deixou o papel bem à vista, em cima da mesa.
A caminho da cidade, a mulher não falou, mas ficou ouvindo mansamente as instruções e sugestões do sargento.
Quando entramos pela porta do elevador do necrotério municipal, na rua 29, a mulher levou as duas mãos ao rosto e murmurou algumas palavras, como uma oração, acrescentando, em voz mais alta:
— Oh, meu pobre Philip! No fundo, ele era um rapaz tão bonzinho...
Heath pegou-a pelo braço, de forma protetora, e levou-a solicitamente para a sala nua do porão. A cena acabou não sendo tão medonha quanto eu imaginara que fosse. A dolorosa obrigação da mãe de Gracie Allen terminou no instante em que Heath a fez parar diante da forma inerte que fora tirada de uma gaveta do refrigerador. Seu sofrimento terminou depressa e de modo misericordioso.
Após um olhar momentâneo, ela se virou para o outro lado, com um soluço abafado, perdeu os sentidos e escorregou para o chão.
O sargento, que estivera observando a mulher atentamente, desde a hora em que saíramos do elevador, pegou-a rapidamente nos braços, carregando-a para a sala de recepção, mal iluminada, onde a depositou em um sofá de vime. O rosto da mãe de Gracie apresentava-se lívido e sua respiração era fraca, mas, depois de alguns minutos, ela começou a se mover debilmente. Depois, com a onda de sangue às faces e com o umedecimento da pele, que acompanham a reação de quem desmaia, veio uma torrente de lágrimas.
Enquanto ela chorava livremente por alguns instantes, Heath puxou uma cadeira e sentou-se diante da mulher.
— Eu sei, Senhora Allen, — disse ele — que isso deve ser muito doloroso para a senhora, mas nós precisamos ter cuidado em casos como este. É a lei. Não poderíamos deixar que se cometessem erros a respeito. E a senhora não quereria que nós cometêssemos erros, não é?
— Oh, isso seria horrível. — Sua mão moveu-se lentamente sobre seus olhos, como se para afastar alguma visão horripilante.
— Claro, eu sei... — murmurou o sargento. — É por isso que a senhora tem de nos perdoar por sermos um tanto desumanos.
— Quando — perguntou ela, como alguém que não lhe tivesse ouvido as palavras — quando foi que o pobre rapaz...?
— Isso é outra coisa que tenho de lhe contar, Senhora Allen. — Heath interrompeu sua pergunta inacabada. — É que não poderemos deixar que a senhora leve imediatamente seu filho. O médico ainda não tem certeza de que foi que ele morreu, e o médico precisa certificar-se. Isso é tanto em seu benefício como no nosso. Portanto, temos de ficar com ele ainda por um dia ou talvez dois.
A mulher moveu a cabeça para cima e para baixo, tristemente.
— Sei o que o senhor quer dizer — falou ela. — Um dia, um sobrinho meu morreu em um hospital... — E ela deixou a frase incompleta e acrescentou: — Sei que posso confiar nos senhores.
— Sim, Senhora Allen — garantiu-lhe Vance. -— O sargento não demorará mais tempo do que o necessário. É preciso cuidar desses assuntos de forma legal e com todo cuidado. Prometo comunicar-lhe pessoalmente logo que o assunto fique resolvido... Além disso, terei muito prazer em ajudá-la e à sua filha de todas as outras formas que eu puder.
A mulher virou-se lentamente para Vance e estudou-o um instante. Uma expressão de confiança lhe transpareceu nos olhos.
— Minha filha — começou ela, baixinho. — Quero pedir-lhe uma coisa, em benefício dela. Isso significará tanto para ela e para mim, no momento. Por favor, eu lhe peço, não conte a minha filha ainda, o que houve com Philip. Vamos deixar para quando ela precisar mesmo saber, e então quero ser eu a lhe contar... Ela ficaria preocupada com coisas que, talvez, não sejam nem um pouco verdadeiras. Ela tem uma imaginação muito viva — herdada de mim — creio eu. Por que não deixar que ela tenha mais um dia, talvez mais dois dias, de felicidade? Só até que saibam o que realmente houve com meu filho...
Era evidente que o pedido da mulher fundava-se na desconfiança de que seu filho tivesse sido assassinado, e ela temia que uma dúvida semelhante pudesse torturar também à sua filha.
— Mas, Senhora Allen, — perguntou Vance — se guardarmos segredo deste assunto durante algum tempo, como é que a senhora vai explicar à sua filha a ausência prolongada do irmão dela? Sem dúvida, ela ficará preocupada com isso.
A Senhora Allen sacudiu a cabeça.
— Não. Philip costuma ficar fora de casa, com freqüência, e às vezes durante vários dias. Hoje ele disse que talvez saísse do emprego do restaurante e talvez fosse embora da cidade. Não, Gracie não suspeitará de nada.
Vance olhou para Heath, com uma indagação no olhar.
— Acredito, sargento, — falou ele — que seria humano e prudente atender ao pedido da Senhora Allen.
Heath concordou com um aceno vigoroso de cabeça.
— Sim, também acho, Senhor Vance. Creio que se pode dar um jeito nisso.
Um olhar de compreensão passou entre os dois e então Vance tornou a se dirigir à Senhora Allen.
— Nós temos muito prazer em lhe fazer essa promessa, senhora.
— E não aparecerá nenhuma notícia a respeito nos jornais? — indagou ela.
— Acho que isso também se pode arranjar — prometeu Vance.
— Obrigada — disse a Senhora Allen, com simplicidade. Nesse instante, um auxiliar entrou na sala e fez um sinal ao sargento, que se levantou e dirigiu-se para onde ele se achava. Os dois conversaram um pouco e saíram juntos por uma porta lateral. Alguns minutos depois, o sargento voltava e enfiava alguma coisa no bolso.
A Senhora Allen recuperara um pouco o seu autodomínio, e, quando o sargento veio novamente para junto de nós, ele sorriu para ela, para encorajá-la.
— Acho que já podemos levá-la de volta à sua casa. Levamos a Senhora Allen de volta ao seu apartamentozinho, de carro, e lhe demos boa noite.
Alguns minutos depois, nós três fomos à biblioteca de Vance. Eram duas horas e meia da madrugada.
— É uma mulherzinha estranha — murmurou Vance, enquanto servia um copo de conhaque para cada um de nós. — E é, também, de uma notável bravura. Não tive nenhuma preocupação pelo fato de a deixarmos sozinha na casa dela. Resistiu melhor do que eu esperava, depois de receber uma notícia tão chocante.
— Tenho conhecido muitas mulheres miúdas como aquela — comentou Heath — que são capazes de suportar golpes duros muito melhor do que um marmanjo de dois metros de altura.
— Sim, realmente... Não sei se seu esforço para poupar a filha será tão bem sucedido quanto ela espera. Gracie Allen não é nenhuma jovem comum... É sagaz, apesar da sua vivacidade estonteante.
— A velhinha facilitou tudo para nós — observou o sargento.
Vance confirmou, com um aceno de cabeça, enquanto bebericava o seu conhaque.
— Exatamente. Era justamente nisso que eu estava pensando, sargento. Não precisamos ter nenhuma preocupação a respeito de interferências até que o relatório do Dr. Doremus sobre a morte de Philip fique pronto. A Senhora Allen, sem dúvida, não nos apressará, pois acho que ela ficará agradecida pelo fato de termos poupado uma dor mais prolongada à sua filha. E, sem dúvida, Mirche achará preferível guardar sigilo sobre o acontecido... Ele não deseja nenhuma publicidade negativa relacionada com o seu restaurante... Quer fazer tudo que puder para manter o caso em segredo o tempo máximo que puder, sargento?
— Finalmente, o senhor está-me pedindo para fazer alguma coisa fácil — sorriu Heath. — Direi aos rapazes lá do Departamento de Homicídios para guardarem sigilo; e o senhor poderá investigar dois dias inteiros, sem que ninguém o importune.
Vance sorriu, aparentemente tranqüilo, mas ainda estava preocupado.
Heath acabou de tomar o seu conhaque e acendeu um charuto comprido e preto.
— A propósito, Senhor Vance, aqui está uma coisa que talvez lhe interesse. — Enfiou a mão no bolso do paletó e tirou uma pequena cigarreira de madeira, com uma granulação peculiar e com quadrados alternados de verniz claro e escuro, que lhe dava um desenho destacado de xadrez. — Encontrei-a entre os pertences de Allen, no necrotério.
— Mas por que, meu caro sargento, este objeto me interessaria?
— Bem, não sei ao certo, senhor. — Heath falava quase em tom de desculpa. — Mas sei que o senhor tem idéias sobre o que ocorreu esta noite, e eu não tenho.
— Mas não há nada de extraordinário no fato de que a vítima fumava cigarros.
— Não é isso, senhor. — Heath abriu a cigarreira e apontou para o canto interno da tampa da mesma. — Há um nome gravado a fogo ali dentro... Parece trabalho de amador. E acontece que o nome é ”George”. E esse não é o nome da vítima.
De repente, a expressão do rosto de Vance mudou. Ele se inclinou para diante e, tirando a cigarreira da mão de Heath, examinou a gravação tosca feita a fogo.
— As coisas não deviam acontecer assim... Não deviam, mesmo, sargento. O homem que Gracie Allen realmente ama se chama George. George Burns, para ser mais exato. O mesmo rapaz de quem falei hoje na casa de Markham. E o tal Burns estava no Domdaniel na noite de hoje. E Gracie também se encontrava lá. Junto com seu vistoso acompanhante o tal Senhor Puttle. E também Philip Allen e o untuoso Mirche. E a misteriosa Dixie Del Marr. E o sinistro ”Coruja” Owen. E a sombra ameaçadora de um abutre.
— Que acha disso, Senhor Vance?
— Sargento... Oh, meu sargento! — suspirou Vance. — Que é que se pode deduzir de tudo isso? Exatamente nada. É por isso que estou envelhecendo de maneira tão visível diante dos seus olhos. É por isso que os meus cachos de cabelo estão ficando brancos.
— Como acha que aquela cigarreira foi parar no bolso de Philip Allen, Senhor Vance? — E Heath continuava obstinadamente a abordar o problema.
— Pare de me torturar! — implorou Vance.
Heath pegou a cigarreira, fechou-a, com um estalido, e a recolocou no próprio bolso.
— Vou descobrir — disse ele, resolutamente. — Se Philip Allen não morreu de morte natural, e se esta cigarreira pertence ao tal Burns, juro que lhe arrancarei a verdade, mesmo que tenha de inventar um recurso novo para conseguir isso. Este caso está-me deixando torturado também, Senhor Vance. Tudo nele é desencontrado; e não gosto de nada que não faça sentido... Hei de encontrar o tal rapaz, e vou achá-lo esta noite. Nesta altura o Domdaniel já está fechado e, portanto, talvez ele já tenha ido para casa... se é que tem casa. Irei primeiro à fábrica. Como foi que disse que era o nome da fábrica, Senhor Vance?
— Fábrica de Perfumes In-O-Scent — disse Vance, sorrindo. — É um nome um tanto desalentador para dar início à procura de um suspeito... Não é, sargento? Mas espero que esse nome seja simbólico.
— Suas palavras são profundas demais para mim, senhor — queixou-se Heath, seguindo rumo à porta. — No momento, só tenho de me preocupar em encontrar o tal Burns.
Bem, sargento, quando você encurralar o Senhor Burns, podemos ou eliminar parte do enigma ou então pô-lo em algum lugar onde a peça do quebra-cabeças encaixe. — Suspirou fundo. — Estarei à espera da sua perfumada comunicação amanhã cedo.


CAPITULO IX
PRESO SOB SUSPEITA
(Domingo, 19 de maio — 10:30 horas)


Já eram quase dez e meia, na manhã de domingo, quando Heath chegou ao apartamento de Vance. Este se levantara pouco antes e achava-se sentado na biblioteca, envergando um roupão de mandarim, tomando sua refeição matinal, bastante frugal, com café turco. Acabara de acender o segundo cigarro, quando o sargento foi introduzido lá, com uma aparência um tanto cansada mas triunfante.
— Finalmente, eu o agarrei! — anunciou ele, sem parar a fim de cumprimentar.
— Arre, sargento! — Vance saudou-o. — Sente-se e descanse um pouco. Precisa tomar um pouco de café, para recuperar as forças. Sem dúvida, você se refere a Burns. Mas não me diga que você ficou a noite inteira acordado, investigando.
Heath sentou-se pesadamente.
— Sim, a verdade é que eu fiquei. E, se não se importa, Senhor Vance, quer colocar mais alguma coisa nesse café? Preciso reanimar-me.
Vance atendeu-o, sorridente.
— Fale-me a respeito das suas andanças noturnas, sargento.
— Bem, a verdade, senhor, é que ainda não o agarrei — corrigiu Heath. — Mas estou à espera de um telefonema para cá a qualquer instante, a ser dado por Emery... Eu o deixei vigiando a casa da Senhora Allen, e...
— A casa da Senhora Allen?
— Sim! É para lá que o sujeito vai.
— Sabe de uma coisa? Essa história parece tremendamente complicada.
— Não foi tão complicada assim, Senhor Vance — respondeu Heath. — Foi só muito trabalhosa... Quando saí daqui, ontem à noite, fui diretamente à Fábrica In-O-Scent e agarrei o vigia noturno da firma. Ele me levou pessoalmente para dentro do escritório, com sua chave-mestra, encontrou o livro de registro de empregados e me mostrou o nome de Burns com o endereço de um hotel de segunda classe que ficava a poucos quarteirões de lá. Fui até o hotel. Mas parece que Burns já estivera lá, trocara de roupas e saíra novamente. O recepcionista noturno me deu essa informação. Aí, mostrei-lhe a cigarreira, e foi então que tive um pouco de sorte. O sujeito estava disposto a jurar que Burns tem uma cigarreira igual a ela. Muitas vezes Burns pára a fim de bater papo com ele, quando chega tarde ao hotel.
— E — intrometeu-se Vance — é muito provável que lhe ofereça um cigarro durante as caçoadas.
— É isso, senhor... Depois, telefonei a Emery, lá no Departamento de Homicídios, para ele ir até o hotel e ficar de vigia, no caso de Burns pretender voltar. Depois que Emery chegou lá, fui à minha casa, onde dormi umas duas horas.
— E acaso o seu auxiliar interrompeu o seu sono com a notícia do desaparecido experimentador de perfumes?
— Não. Burns não voltou para o hotel. Por isso, às oito horas fui pessoalmente até lá, a fim de ver se conseguia descobrir mais alguma coisa com o recepcionista de serviço. E fiquei sabendo que ele e Burns, e mais dois outros sujeitos, amigos de Burns, algumas vezes sentam-se à mesa, jogando cartas no saguão do hotel, à noite. Um deles mora do outro lado da rua, mas disse que não vê Burns há vários dias. Mas ele me disse para procurar o outro sujeito, um tal Robbin, de Brooklyn, pois muitas vezes Burns passa a noite na casa de Robbin, principalmente as noites de sábado. Por isso, fui a Brooklyn. Não telefonei para a casa de Robbin, porque não desejava alarmar Burns. Levei mais de uma hora a encontrar a casa, que fica a meia dúzia de quarteirões fora da linha principal, em Bensonhurst, um local afastado.
— Que horrível odisséia matinal, sargento! — E Vance estremeceu, pesaroso. — E que aconteceu quando finalmente você chegou à choupana de Emaú?
— Como já disse, o nome do sujeito é Robbin. E ele não mora em uma choupana... Bem, perguntei-lhe por Burns, e ele me disse que Burns fora lá às três horas da madrugada, dizendo que estava deprimido e precisava de companhia. Robbin também me contou que Burns estava nervoso e não dormiu muito bem. Levantou-se cedo e já fora embora antes de eu chegar lá... Que acha de tudo isso, Senhor Vance?
— Acho que isso é muito parecido com o amor florescente em estado de suspense — falou Vance. — Ah, a doce crueldade da mulher!
— Não sei a que ponto o senhor quer chegar — replicou o sargento. — Mas parece-me que o homem tem peso na consciência. Principalmente pelo fato de Burns não ficar em casa... De fugir, por assim dizer... e por se ocultar lá no fim do mundo que se chama Bensonhurst... Em todo caso, quando mostrei a Robbin a cigarreira, ele a reconheceu imediatamente. Não se lembrava bem se ela estivera em poder de Burns na noite anterior. Perguntei a Robbin se ele tinha alguma idéia do lugar para onde Burns teria ido. O homem riu e disse que sabia para onde Burns fora, mas que não estaria lá antes das onze horas. Portanto, vendo que ele ainda não podia ter voltado para Nova York, telefonei para Emery, no hotel onde Burns mora, para ele ir vigiar a casa dela...
— A casa da Senhora Allen?
— Sim. Robbin disse que era lá que Burns estaria às onze horas da manhã. E ele não tinha nenhuma dúvida a respeito disso. Achei que isto era razoável. O senhor mesmo me disse que Burns era namorado da moça. E ele poderia ter a idéia de pedir a Gràcie e à mãe desta que o ajudassem, antes que o descobrissem. Por isso, voltei para Nova York, o mais depressa que pude. E aqui estou, fazendo meu relatório ao senhor e esperando o telefonema de Emery.
— Extraordinário! — murmurou Vance. — Que zelo! Você encaixou muitos fatos, e até com habilidade, enquanto estive apenas cochilando. E suponho que você faça mais progressos quando receber o chamado de Emery e acosse o jovem Burns.
— Claro que farei isso! — E então o sargento acrescentou: — Estou começando a pensar que o senhor realmente teve uma boa idéia ontem à noite, na casa do procurador distrital.
— Não sei... Em todo caso, vou junto com você, sargento.
— E Vance seguiu rumo à porta do quarto de vestir.
— Imaginei que o senhor quereria ir. Mas há uma coisa que lhe preciso pedir: deixe que eu resolva este caso à minha maneira.
— Oh, perfeitamente, sargento. — E Vance deixou a biblioteca.
Vance acabara de voltar para a sala, completamente vestido, quando o telefone tocou. Heath saltou da sua cadeira e já estava com o fone ao ouvido antes que Currie, o velho mordomo de Vance, pudesse alcançar o aparelho.
Era esperado o telefonema de Emery, e, depois de ouvir alguns instantes, Heath respondeu ansiosamente.
— Sim, estarei aí dentro de cinco minutos. — Bateu o receptor do telefone no descanso e, esfregando as mãos, satisfeito, seguiu rumo à porta. — Vamos, Senhor Vance. Finalmente, estamos fazendo progressos...
Quando dobramos a esquina da avenida Lexington, vimos Emery de pé do outro lado da rua, defronte à casa da mãe de Gràcie. O homem deu alguns passos na nossa direção e fez um aceno significativo de cabeça.
Heath grunhiu para denotar que já vira o sinal e deu ordens a Emery para entrar lá conosco.
Foi Gràcie Allen quem atendeu à porta, desta vez, quando tocamos a campainha. Avistou logo Vance e jogou as mãos para o alto, em um exuberante gesto de encantamento.
— Oh, olá, Senhor Vance! Sua presença aqui é maravilhosa! — disse ela, com voz musical, aparentemente quase flutuando.
— Como foi que descobriu onde moro? O senhor deve ser um detetive muito hábil...
Ao notar a presença dos dois homens sérios que nos acompanhavam, ela parou subitamente de falar.
— Estes dois senhores são da polícia, Senhorita Allen — informou-lhe Vance. — E viemos aqui para...
— Ah, coitado! Eles o agarraram, não é? — exclamou ela, muito desalentada. — Não é horrível? — E seus olhos se arregalaram. — Mas, sinceramente, Senhor Vance, não fui eu quem o denunciou. Eu não faria uma coisa dessas, de forma alguma. Não foi à toa que lhe dei minha palavra de honra...
Heath e Emery foram entrando na sala, passando por ela, e Vance lhe estendeu a mão.
— Por favor, minha querida — disse ele, ansiosamente. — Só um instante. Viemos aqui tratar de um assunto bem diferente.
Gracie afastou-se e recuou, impressionada pelos seus modos sérios; e Vance seguiu os dois policiais sala adentro.
Sentado em um sofá na parede oposta estava o jovem George Burns, visivelmente aborrecido com nossa intromissão. Heath já atravessara a sala rapidamente, na sua direção.
— Seu nome é George Burns, não é? — perguntou ele, em tom áspero.
— Sempre foi — retrucou Burns, com um ressentimento sombrio. — Quem quer saber?
— Espertinho, hem? — E Heath remexeu nos bolsos e depois perguntou, em tom conciliatório: — Tem um cigarro aí, Burns?
Burns tirou do bolso automaticamente um maço de cigarros.
— Quê? — exclamou o sargento. — Você fuma e não tem cigarreira?
— Ora, claro que ele tem! — afirmou Gracie Allen, toda orgulhosa. — Eu própria lhe dei uma de presente, no Natal passado... E era muito bonita, toda enxadrezada...
Vance a fez silenciar, com um gesto peremptório.
— Sim — confessou Burns. — Eu tinha uma, porém eu... eu a perdi ontem. — Parecia confuso com a maneira como estava sendo interrogado.
— Talvez seja esta aqui. — Heath disse isso com ênfase ameaçadora, enquanto colocava a pequena cigarreira debaixo do nariz de Burns.
Este, assustado e intimidado, fez um aceno de cabeça, de modo débil. Pegando a cigarreira, segurou-a contra as narinas e cheirou-a várias vezes. Depois, ergueu o olhar para o sargento.
— Beije-me depressa!
— Quê?! — explodiu Heath.
— Oh — murmurou Burns, embaraçado. — Esse é apenas o nome de um perfume bem conhecido para lenços. A fórmula leva erva-cidreira, almíscar, junquilho e...
— Ah, e eu sei o que mais — ajudou a Senhorita Allen, ansiosamente. — Jasmim e angélica...
Burns ficou zangado.
— Ora, essa é a fórmula do Ano Bissextox.
— Alto lá! — berrou Heath. — Afinal de contas, o que está acontecendo aqui?
Vance estava rindo tranqüilamente, no íntimo. O sargento arrancou a cigarreira da mão de Burns e a recolocou no bolso.
— Onde foi que você perdeu a cigarreira, ontem? Burns remexeu-se no sofá, inquieto.
— Bem, eu não a perdi, exatamente. Eu apenas... Bem, eu apenas a emprestei a alguém.
— Então, você emprestou um presente de Natal que lhe foi dado pela sua namorada, hem?
— Bem, também não a emprestei. — Burns ficou confuso. — Encontrei-me com um sujeito, a quem ofereci um cigarro. Depois, tivemos uma pequena discussão e acho que ele se esqueceu de...
— Claro! Ele foi embora e levou a cigarreira — retorquiu Heath, com enorme sarcasmo. — E você se esqueceu de lhe pedir que a devolvesse e deixou que ele a guardasse... como um presentinho seu a ele. Ótimo... E quem era esse sujeito?
Burns remexeu-se uma vez mais.
— Bem, já que insiste em saber... Foi o irmão de Gracie.
— Claro que foi! Você é muito esperto, não é? — E então uma nova idéia surgiu na cabeça do sargento. — Isso deve ter acontecido nas proximidades do restaurante Domdaniel, e por volta das quatro horas da tarde.
— Mas como foi que o senhor soube? — perguntou Burns, espantado.
— Quem faz as perguntas sou eu — cortou Heath, em tom ríspido. — E não foi uma discussãozinha, como você disse. A coisa quase chegou às vias de fato, não foi mesmo? Você estava muito zangado por algum motivo, não estava?
Burns olhou fixamente para o sargento, desalentado, e depois para Gracie Allen.
— Oh, meu Deus, George! — exclamou a moça. — Você e Philip estavam brigando novamente. Vocês dois não passam de dois moleques brigões.
Heath rilhou os dentes.
— Não se envolva nisto, boneca.
— Oh! — riu a moça, acanhada. — Foi disto que o Senhor Puttle me chamou, ontem à noite.
Heath voltou-se novamente para Burns, que estava muito aborrecido.
— Por que você e Allen estavam discutindo?
O homem rolou os olhos, numa expressão vaga, como se tivesse medo de responder e como se receasse não responder. Finalmente, gaguejou:
— Era por causa de Gracie... por causa da Senhorita Allen. Parece que Philip não gosta de mim. Ele me disse para me afastar desta casa. E depois disse que eu não sabia vestir-me... Que eu não era elegante como o tal Puttle...
— Bem, eu também tenho alguma coisa a lhe dizer. E é uma coisa elegante...
Vance deu uma palmadinha rápida em um dos ombros do sargento e lhe cochichou alguma coisa.
Heath endireitou o corpo e, girando nos calcanhares, apontou para a moça.
— Vá para a outra sala, senhorita. Tenho algo a dizer a este rapaz a sós... Entende? A sós.
— Isso mesmo, Gracie. — Fiquei surpreso por ouvir a voz tranqüila da Senhora Allen. Ela estava de pé, timidamente, alojada em uma pequena abertura entre as portas corrediças, ao fundo da sala. Eu não sabia quanto tempo ela estivera ali. — Venha comigo, Gracie, e deixe estes senhores com George.
A moça não discutiu, e foi com a mãe para o quarto dos fundos, e as duas fecharam as portas ao passar.
— E agora, vamos às más notícias, meu jovem — recomeçou Heath, avançando ameaçadoramente rumo ao confuso Burns. Mas Vance tornou a interrompê-lo.
— Um instante, sargento. Senhor Burns... Por que ficou tão surpreso com o cheiro que havia na sua cigarreira?
— Eu não... Eu não sei, na verdade. — Burns franziu o cenho. — Não é um perfume comum, e há muito tempo não o tenho encontrado. Mas no restaurante, ontem à noite, eu o notei, e muito forte, no saguão da frente, quando eu ia entrando no salão do restaurante.
— Quem o estava usando?
— Oh, eu não poderia saber. Havia tanta gente lá... Vance pareceu satisfeito e, com um gesto, entregou o rapaz novamente ao sargento.
— Bem, aqui está a notícia ruim — disse Heath a Burns, em tom áspero e de excesso de autoridade. — Nós encontramos um sujeito morto, ontem à noite... e a sua cigarreira achava-se no bolso da vítima.
A cabeça de Burns saltou para cima, com um puxão, e uma luz de espanto e susto lhe apareceu nos olhos.
— Meu Deus! — disse ele, sem fôlego. — Quem... Quem fez isso?
Heath deu um sorriso cruel.
— Eu nem posso imaginar. Talvez você possa.
— Não foi... Philip! — e Burns ficou sem voz. — Oh, meu Deus... Sei que não está aqui hoje. Mas ele saiu da cidade... Juro que ele saiu. Ontem, disse-me que ia para outra cidade.
— Você é esperto, mas não o bastante, embora tenha sido bem habilidoso, tentando jogar a culpa em outra pessoa, com aquela história de perfume. — Heath fez uma pausa e depois tomou subitamente uma decisão. Fez um breve sinal a Emery. — Nós vamos levar este rapaz conosco — anunciou ele. — Vamos deixá-lo onde possamos alcançá-lo com facilidade.
Vance tossiu discretamente.
— Então, você vai prendê-lo sob suspeita, não é, sargento? Ou, talvez, como testemunha material.
— Não me importa que nome se dê a isso, Senhor Vance. Ele vai ficar quietinho em um lugar de onde não possa sair, pensando muito na vida, até que tenhamos o relatório do Dr. Doremus... É melhor pôr-lhe as pulseiras, Emery, até chegarmos à esquina e chamar o tintureiro.
Heath e Emery estavam levando o atônito Burns para a porta, quando Gracie Allen voltou correndo para a sala, depois de se libertar das mãos da sua mãe, que tentava segurá-la.
— Oh, George, George! Que aconteceu? Para onde eles vão levá-lo? Tive um pressentimento... Como quando uso minha mediunidade...
Vance chegou até junto dela e colocou as duas mãos nos seus ombros.
— Minha querida menina — falou ele, em tom consolador. — Por favor, creia em mim quando digo que você não precisa preocupar-se com coisa alguma. Não torne a coisa mais difícil para o Burns... Não quer confiar em mim?
A jovem deixou pender a cabeça e virou-se para a mãe. Os dois policiais, com Burns entre eles, já haviam saído da sala; e, quando Vance se virou e tornou a abrir a porta, a voz delicada da Senhora Allen se fez ouvir novamente.
— Obrigada, Senhor Vance. Tenho certeza de que Gracie confia no senhor... como eu confio.
A cabeça da moça estava apoiada no ombro da mãe.
Oh, mamãe — disse ela, fungando. — Não me importa nem um pouco o fato de
George não se vestir com tanta elegância quanto o Senhor Puttle.


CAPITULO X
UMA VISITA INESPERADA
(Domingo, 19 de maio — 12:00 horas)

Quando o carro da polícia chegou e o infeliz Burns ia entrando no veículo para ser levado, Vance lhe sorriu de maneira a encorajá-lo.
— Ânimo — falou ele, e depois ficou vendo o tintureiro afastar-se. Logo que o veículo sumiu de vista, Vance tomou um táxi e foi imediatamente para o apartamento do procurador distrital.
— Realmente, Markham — começou ele. — O sargento Heath é lógico demais. Em condições normais, eu receberia de bom grado a providência dele, mas neste caso preciso pedir a sua intervenção.
Em seguida, fez um resumo a Markham de todos os acontecimentos que tinham ocorrido desde que nós saíramos do seu apartamento, na noite anterior. A visita ao necrotério e a promessa à Senhora Allen; o fato de Heath ter descoberto a cigarreira e a sua busca a Burns, a noite inteira; a entrevista com o estarrecido jovem, quando ele foi encontrado; e, finalmente, a decisão de Heath de deixar Burns preso até chegar o relatório de Doremus.
Markham ouviu atentamente, mas sem entusiasmo.
— Acho que, no todo, Heath fez um serviço muito inteligente. Não compreendo onde ou por que você deseja que eu intervenha.
— Burns é inocente — garantiu Vance. — E sou inflexível na minha crença. Portanto, desejo que você telefone para o distrito policial e diga a Heath para libertá-lo. Na verdade, Markham, insisto em que você faça isso. Mas, primeiro, desejo que o sargento traga o rapaz aqui, se você não se opuser a que ele venha à sua casa. Desejo que ele entenda claramente que uma das condições para a sua libertação é o sigilo absoluto, por enquanto, a respeito do fato de que Philip Allen está morto no necrotério. Foi isso que prometemos à Senhora Allen, e Burns precisa cooperar conosco, ao ser libertado. Por favor, faça logo isto, meu caro amigo.
— Você conhece o tal Burns? — indagou Markham.
— Eu só o vi duas vezes. Mas tenho meus caprichos, sabe?
— O que é um eufemismo como outro qualquer para o seu atual desequilíbrio mental... Por que deseja que esse rapaz seja libertado?
— Estou encantado pela ninfa dos bosques — sorriu Vance Markham uniu os lábios, aborrecido.
— Se eu não o conhecesse, diria que...
Ora, vamos, seja bonzinho e telefone logo ao Heath.
Markham levantou-se, resignado: ele conhecia Vance há muito tempo e sabia que, por trás dos seus gracejos, havia muitas vezes seriedade. Depois, foi rumo ao telefone.
— O caso é seu — falou ele — se é que há um caso, e você pode dirigi-lo à sua vontade. Já tenho minhas próprias dificuldades.
O sargento mal havia chegado ao distrito policial, quando Markham telefonou e lhe deu ordens de acordo com o pedido de Vance.
Quinze minutos depois, Heath entrava escoltando Burns na biblioteca do procurador distrital. Vance descreveu cuidadosamente as circunstâncias a Burns e lhe exigiu uma promessa formal de não revelar a ninguém a morte de Philip Allen, impressionando-o com relação à própria Gracie Allen dentro do assunto.
George Burns, com inconfundível sinceridade, prontamente concordou com a exigência, e o sargento lhe disse que estava livre para se retirar.
Mas, quando ficamos a sós, Heath desabafou.
— E depois de todo o trabalho que tive ontem à noite! — queixou-se ele, amargamente. — Encontrar a cigarreira; perder meu sono e fazer um trabalho difícil hoje cedo; amarrar aquele sujeito e levá-lo para onde eu o queria... E foi tudo idéia sua, Senhor Vance. E, agora, quando lhe encontro alguma coisa palpável, que faz o senhor? Manda soltar o passarinho!
E mascou furiosamente seu charuto.
— Mas, se pensa que não vou mandar vigiar aquele sujeito, então não é muito esperto, Senhor Vance. Mandei o Tracy para cá, antes de vir, e ele vai seguir o Burns a partir do instante em que ele sair deste prédio.
— Ora, mas é claro que eu esperava que você fizesse exatamente isso. — E Vance deu de ombros, de maneira agradável.
— Mas, por favor, sargento, não fique com uma impressão errônea do meu capricho de libertar o jovem misturador de perfumes. Vou-me empregar a fundo no sentido de resolver este caso intricado. E esperarei o relatório do médico legista, ansiosamente... A propósito, em meio à sua roda-viva de atividade, você ficou sabendo de alguma coisa a respeito da autópsia?
— Claro que fiquei — falou Heath. — Telefonei ao Dr. Doremus pouco antes de sair do posto policial. Ele brigou comigo, como sempre, mas disse que iniciaria a autópsia logo depois do almoço, e que logo à noite o relatório estaria pronto.
— Ótimo — suspirou Vance. — Eu o cumprimento, sargento, e peço desculpas por ter atrapalhado o seu plano, admirável mas inútil, de privar o Senhor Burns da sua liberdade. Mas espero que isso não distraia sua atenção do trabalho de proteção da vida de Markham contra a ameaça de Pellinzi.
— Nada me vai distrair nem me impedir que me preocupe com o Abutre e com o Senhor Markham — garantiu Heath. — Não se preocupe! Aquele escritório está sendo vigiado dia e noite, e há auxiliares valentes meus, prontos para agarrarem aquele facínora se ele aparecer.
O sargento retirou-se alguns minutos depois, e Vance e eu aceitamos o convite de Markham para ficar para o almoço.
Eram quase três horas quando nós voltamos para o apartamento de Vance. Currie veio ao nosso encontro na porta, mostrando-se muito preocupado.
— Estou horrivelmente perturbado, patrão — disse ele, em voz baixa. — Há uma jovem incrível aqui à sua espera. Tentei firmemente mandá-la embora, senhor, mas não consegui fazê-la compreender. Ela era muito resoluta e muito ousada, patrão. — Deu uma rápida olhada para trás. — Eu a tenho estado observando muito cuidadosamente, e tenho certeza de que ela não tocou em nada. Espero, senhor...
— Você está perdoado, Currie — Vance interrompeu as desculpas do preocupado velhote e, entregando-lhe o chapéu e a bengala, foi diretamente para a biblioteca.
Gracie Allen estava sentada na enorme espreguiçadeira de Vance, e estava sumida no imenso estofamento de veludo. Quando saltou de pé a fim de saudar Vance, foi sem a exuberância de antes.
— Olá, Senhor Vance — disse ela, em tom solene. — Aposto que não me esperava ver. E também que o senhor não sabe como descobri o seu endereço. E o velhote rabugento que me recebeu na porta também não me esperava ver. Mas ainda não lhe contei como descobri seu endereço. Foi da mesma forma usada para descobrir seu nome... Lendo-o no seu cartão de visitas. Embora na verdade eu não tenha vontade de ir buscar aquele vestido novo, amanhã. Talvez eu não vá. Isto é, talvez eu espere até saber que não aconteceu nada ao George...
— Alegra-me muito que você tenha sido esperta e tenha descoberto meu endereço. — E o tom de voz de Vance era suave. — E também estou encantado pelo fato de você continuar usando o perfume de cidra.
— Ah, sim! — E ela olhou para Vance, agradecida. — A princípio, eu não gostava muito deste perfume, mas, agora, não sei por que... eu o adoro! Não é engraçado? Mas creio na mudança de idéia dos outros. Suponha que...
— Sim — disse Vance, com um movimento de cabeça e um sorriso leve. — Só a fantasia tem consistência: os duendes e as fadas existem mesmo...
— Mas eu não creio em duendes... Isto é, não tenho acreditado desde meus tempos de criança.
— Não, claro que não.
— E, quando descobri que o senhor morava tão perto de mim, achei isso muito conveniente, pois eu tinha de lhe fazer um punhado de perguntas importantes. — Ela olhou para Vance, de baixo para cima, como se para ver qual a reação dele às suas palavras. — E, ah... eu descobri algo mais a seu respeito! Seu nome tem cinco letras... como o meu e o do George.
É o destino, não é? Se o senhor tivesse seis letras, talvez eu não tivesse vindo. Mas, agora, sei que tudo vai acabar bem, não vai?
— Sim, minha cara — disse Vance, com um aceno afirmativo de cabeça. — Tenho certeza de que vai.
De repente, ela deixou escapar o fôlego, como se tivesse afastado com sucesso um ponto controvertido.
— E, agora, quero que o senhor me conte exatamente por que aqueles policiais levaram o George. Estou muito assustada, preocupada e aborrecida, embora o George tenha-me telefonado, dizendo que estava bem.
Vance sentou-se de frente para a moça.
— Você não precisa se preocupar por causa do Senhor Burns — começou ele. — Os homens que o levaram hoje cedo cometeram a tolice de achar que havia circunstâncias suspeitas ligadas com a pessoa dele. Mas tudo se esclarecerá dentro de um dia ou dois. Por favor, confie em mim.
Havia completa confiança no olhar franco da jovem.
— Mas deve ter sido alguma coisa muito séria o que fez aqueles homens irem hoje à minha casa e aborrecerem tanto o George.
— Mas — explicou Vance — eles apenas pensavam que era séria. A verdade, minha amiga, é que um homem foi encontrado morto, ontem à noite, no Domdaniel e...
— Mas que é que o George poderia ter tido a ver com isso, Senhor Vance?
— Ora... Na verdade, tenho certeza de que ele não teve nada a ver com isso.
— Então, por que os policiais agiram de maneira tão esquisita a respeito da cigarreira que dei a George? Afinal, como foi ela parar nas mãos deles?
Vance hesitou vários instantes. Depois, pareceu ter tomado uma decisão quanto até que ponto esclareceria a moça.
— Para ser franco — explicou ele, com paciência — a cigarreira do Senhor Burns foi encontrada no bolso do homem morto.
— Oh! Mas o George não daria a outra pessoa um objeto que eu lhe dei de presente...
— Como eu já disse, acho que foi tudo um engano lamentável.
A jovem olhou para Vance durante longo tempo, com um olhar perscrutador.
— Mas suponha, Senhor Vance... Suponha que o tal homem não tenha morrido de morte natural. Imaginemos que ele tenha sido... bem, que tenha sido assassinado, como o senhor disse que matou aquele homem em Riverdale, ontem. E suponha que a cigarreira do George tenha sido encontrada no bolso dele. Tenho lido, nos jornais, que algumas vezes a polícia prende inocentes, julgando-os culpados de certos crimes, e de como... — ela parou, de repente, e levou as mãos à boca, horrorizada.
Vance inclinou-se e pousou a mão no braço da moça.
— Por favor, minha querida criança! — disse ele. — Você está recomeçando a acreditar em duendes. E não deve. Duende é coisa que não existe, é pura imaginação. Nada vai acontecer ao Senhor Burns.
— Mas podia acontecer! — E com isso mostrou que seus temores estavam apenas ligeiramente amenizados. — Não compreende? Podia! E o senhor tem de ser um detetive muito bom, se alguma coisa assim acontecer!
Havia uma expressão amedrontada e suplicante nos olhos
da moça.
— Hoje de manhã, depois da saída de George, fiquei terrivelmente preocupada. E sabe o que foi que fiz? Fui à casa de Delpha, conversar com ela. Eu sempre procuro Delpha quando estou em apuros... e algumas vezes até quando não estou. E ela sempre diz que se alegra em me ver, pois gosta da minha presença. Acho que é porque eu sou médium, uma médium forte. E a presença de médiuns faculta a concentração, sabe? A casa de Delpha é exótica. A princípio, dá arrepios na gente. Há cortinas pretas e compridas, penduradas por toda a casa, e a gente não vê janelas. E existe só uma porta. E, quando as cortinas pretas são puxadas, fechando a porta, a pessoa sente como se estivesse em algum lugar muito distante, em companhia de Delpha e dos espíritos que lhe contam coisas.
Gracie olhou ao seu redor e estremeceu ligeiramente.
— Além disso, nas cortinas pretas de Delpha existem grandes gravuras de mãos, com inúmeras linhas. E há também sinais esquisitos, que Delpha chama de símbolos. Em cima de uma mesa, existe uma bola grande de vidro e outra, pequena. E mapas dos astros, com palavras engraçadas ao redor, que significam alguma coisa, quando a gente é um caranguejo, um peixe ou uma cabra, ou coisas assim.
— E que foi que Delpha lhe disse? — perguntou Vance, com bondoso interesse.
— Ah! Eu não lhe contei, contei? — E o rosto da jovem se iluminou. — Delpha mostrou-se muito misteriosa e pareceu terrivelmente surpresa quando eu lhe falei a respeito de George. Ela me fez as perguntas mais esquisitas: todas sobre os homens que foram à minha casa e a respeito da cigarreira... Era como se ela estivesse tentando arrancar-me revelações. Acho que ela estava procurando ler meu pensamento, porque minha mente vibrava. E Delpha sempre diz que ajuda muito quando uma pessoa está bem concentrada ao consultá-la. Em todo caso, ela disse que nada vai acontecer ao George... como o senhor mesmo disse. Só que ela falou que eu preciso ajudá-lo...
A moça olhou ansiosamente para Vance.
— O senhor me ajudará a tirar o George de apuros, não ajudará? Mamãe falou que o senhor lhe disse que ia fazer tudo que pudesse por nós. Sei que posso trabalhar de detetive, se o senhor me ensinar. É que... Preciso ajudar o George, entende?
Intrigado e perturbado pelo pedido sincero da jovem, Vance levantou-se, pensativo, e caminhou até à janela. Finalmente, voltou para junto da sua cadeira e tornou a sentar-se.
— Então, você quer ser detetive! — disse ele, alegremente.
— Acho que é uma excelente idéia, e vou dar-lhe toda a ajuda que puder. Nós dois vamos trabalhar juntos; você será minha assistente, por assim dizer. Mas você precisa trabalhar muito. E precisa não deixar ninguém suspeitar que você está fazendo serviço de detetive... Essa é a primeira regra.
— Oh, é maravilhoso, Senhor Vance! É exatamente como em um romance policial. — E a moça ficou imediatamente animada.
— Mas, agora, diga-me o que preciso fazer para ser detetive.
— Muito bem — começou Vance. — Vejamos... Primeiro, é claro, você precisa anotar tudo que possa ajudar o seu trabalho. Pegadas em lugares suspeitos são um bom ponto de partida. Quando alguém caminha pisando em terreno macio, naturalmente deixa pegadas. E então, medindo essas pegadas, pode-se dizer que número de sapatos a pessoa usa...
— Mas suponha — interrompeu a jovem — que a pessoa estivesse usando sapatos de número maior, apenas para nos enganar?
Vance sorriu com admiração.
— Esta, minha criança — disse ele — é uma observação muito hábil. Já houve quem fizesse exatamente isso. No entanto, não creio que nos precisemos preocupar com essa questão, por enquanto... Agora, prosseguindo, o detetive deve sempre examinar os blocos de escrivaninha, à procura de pistas. Geralmente, o que é escrito em um bloco, na folha de cima, pode ser lido quando se leva a folha a um espelho.
Vance demonstrou isso para ela, e a jovem ficou tão fascinada como se estivesse vendo um mágico trabalhar.
— Além disso, outro ponto muito importante são os cigarros. Se o detetive encontra uma ponta de cigarro, talvez consiga dizer quem o fumou. Deve começar procurando uma pessoa que fuma a tal marca de cigarro. E algumas vezes a ponta de cigarro costuma revelar o fumante. Quando há batom na ponta de cigarro, então já se sabe que ele foi fumado por uma mulher que usava batom.
— Ah! — E de repente a moça ficou desolada. — Talvez, se eu tivesse examinado cuidadosamente o cigarro que queimou meu vestido, ontem, eu pudesse dizer quem o jogou.
— É possível — retrucou Vance, alegremente. — Mas há muitas outras maneiras de tirar a limpo as suspeitas que a gente tenha a respeito das pessoas. Por exemplo, se alguém tivesse ido cometer um crime em uma casa onde houvesse um cão vigia, e se o detetive soubesse que o cão não latiu com esse alguém, então poderia concluir que o criminoso era amigo do cachorro. Como é sabido, os cães não latem para as pessoas amigas.
— Mas suponha — interrompeu a jovem — que a futura vítima tivesse em casa não um cão, mas sim um gato, ou mesmo ... ou mesmo um canário. Que é que o detetive deve fazer, nesse caso?
Vance não pôde deixar de rir.
— Nesse caso, o detetive tem de procurar outras coisas que identifiquem o culpado...
— É aí que as pegadas vêm a calhar, não é? Mas há muita gente que usa o mesmo número de sapatos. Os meus servem perfeitamente nos pés da minha mãe. E, além disso, os dela servem em mim.
— Ainda há outras maneiras...
— Conheço uma! — interrompeu ela, triunfante. — Que tal o perfume? Por exemplo, se encontrássemos no local do crime uma bolsa de mulher, e essa bolsa cheirasse Frangipanni... e não uma que usasse Gardênia... Mas eu não seria muito hábil nisso, o senhor seria? Estou sempre confundindo os cheiros de perfumes. Isso deixa o George furioso. Mas ele seria simplesmente maravilhoso na hora de reconhecer o perfume de um criminoso. George é capaz de reconhecer imediatamente qualquer espécie de perfume e dizer de onde é que ele vem, e de falar tudo a respeito do mesmo... Mesmo quando não consigo sentir o cheiro de nada. Ele tem uma espécie de dom inato... Como quando ele cheirou a cigarreira, hoje de manhã... Mas, por favor, prossiga, Senhor Vance.
Realmente, Vance prosseguiu, durante mais de meia hora, ensinando-lhe cuidadosamente as coisas que, segundo ele sabia, interessariam à moça. Não havia nenhuma dúvida quanto à sua compreensão e simpatia, quando, na hora em que a jovem estava para ir embora, ele telefonou para Currie e lhe deu instruções bem claras.
— Esta moça, Currie, — falou ele — deve ser recebida sempre que vier aqui. Se eu estiver fora e ela quiser esperar-me, dê-lhe as boas vindas e ponha-a à vontade aqui.
Quando a Senhorita Allen se retirou, Vance me disse:
— A impressão de ter em quem se apoiar fará muito bem àquela pobre mocinha, no momento. Ela está muito infeliz e bastante assustada. A nova ocupação que ela imagina ter será para ela um tônico provisório, mas necessário... Desconfio, Van, de que estou ficando um tanto sentimental com o correr dos anos. Estou amolecendo com a idade, como as uvas da França.
E bebericou lentamente o seu conhaque.


CAPITULO XI
FOLCLORE E VENENOS
(Domingo, 19 de maio — 21:00 horas)

Naquela noite, Markham telefonou a Vance, às nove horas. Este ouviu atentamente durante vários minutos, e enquanto ouvia ia franzindo profundamente a testa, com uma expressão intrigada. Finalmente, pendurou o fone e virou-se para mim.
— Nós vamos ao apartamento de Markham. Doremus está lá. Isso não me agrada... Isso não me agrada nem um pouco, Van. Doremus telefonou a Markham, há poucos instantes, cheio de novidades e de mistério. Não sabia onde Heath se achava e, em todo caso, queria mesmo antes falar com Markham. Este deve ter localizado o mal-humorado sargento, e agora deseja que eu também vá até lá. Só um desastre cataclísmico poderia agitar o irascível Doremus o bastante para que ele fosse ao encontro do procurador distrital, em vez de apenas entregar seu relatório oficial. É muito intrigante...
Uns quinze ou vinte minutos depois, um táxi nos deixava bem defronte à casa de Markham. Um chamado em voz áspera nos fez parar no instante exato em que íamos entrando no prédio, e o sargento Heath surgiu, andando depressa.
— Acabo de receber o recado do procurador distrital, lá em casa, e vim correndo para cá — disse Heath, ofegante. — Acho que é uma coisa esquisita, Senhor Vance.
O mordomo abriu-nos a porta, e depois nós o seguimos para a biblioteca, onde Markham e o Dr. Doremus nos aguardavam.
O médico apertou os olhos e olhou para Heath com expressão malévola.
— Só poderia, mesmo, ser um dos seus casos — roncou ele, sacudindo um dedo na direção do sargento, com ar acusador. - Por que você nunca pode arranjar um assassinato simples e fácil, em vez de me trazer esses casos cabulosos? — E depois acenou a Vance, em uma fraca tentativa de parecer alegre.
Doremus era um homem pequeno e ardente, que dava mais a impressão de ser um rabugento corretor da Bolsa de Valores do que um cientista altamente eficiente.
— Estou ficando farto desses seus assassinos complicados — prosseguiu ele, falando com o sargento. — Além disso, desde o meio-dia que eu não como. Não posso comer direito nem aos domingos. Você e os seus cadáveres malucos!
O sargento sorriu e ficou calado. Ele conhecia Doremus há muito tempo, e desde então habituara-se a aceitar suas maneiras excêntricas e algumas vezes ranzinzas.
— Não, doutor — interrompeu Vance, em tom apaziguador. — O pobre do sargento é apenas um espectador inocente... Afinal de contas, qual é a dificuldade?
— O senhor também está trabalhando neste caso, hem? — retorquiu Doremus. — Eu já devia saber! Êi, o senhor não gosta de ver pessoas mortas a tiros ou a punhaladas, em um crime limpo e bonito, em vez de serem envenenadas, para que eu tenha de trabalhar o tempo todo?
— Envenenadas? — perguntou Vance, curioso. — Quem foi envenenado?
— O cadáver de que estou falando — gritou Doremus. — O sujeito que Heath me entregou para autopsiar. Esqueci o nome dele.
— Philip Allen — informou o sargento.
Pois bem, não importa. Ele estaria tão morto quanto está, qualquer que fosse o seu nome. E o que me deixa mais furioso é que não sei mais, sobre o que o matou, do que se ele fosse um zulu morto em Isipingo.
— O senhor falou em veneno, doutor — disse Vance, calmamente.
— Falei, sim — disse Doremus, em tom áspero. — Mas não sei que espécie de veneno. Não confere com nenhum dos meus livros sobre Toxicologia.
— Na verdade, isso não parece exatamente científico, sabe? — sorriu Vance. — Espero que não estejamos retrocedendo ao misticismo.
— Oh, é bastante científico — insistiu Doremus. — O veneno — seja qual for — foi, sem dúvida, absorvido pela derme ou pela membrana mucosa. Poderia ter sido um sem-número de venenos. Mas não consegui nenhuma reação clara com as provas de laboratório que geralmente dão resultados evidentes. Poderia ser uma combinação de drogas. — O médico grunhiu. — Contudo eu descobrirei o que é. Mas não esta noite. Talvez leve um dia. Nunca deparei com uma autópsia tão complicada.
— É fácil crer nisso de imediato — falou Vance. — Do contrário, o senhor não estaria aqui esta noite.
— Talvez eu não devesse estar. Mas este sujeito cacete — e apontou para Heath — não cessou de dizer que o caso era muito importante e que talvez tivesse relações com a segurança do Senhor Markham. Pareceu-me um logro, mas achei melhor dizer a ele que não podia fornecer um relatório definitivo esta noite. Ele que se preocupe... Tenho fome.
— Que é que tenho eu a ver com isto, sargento? — E o tom de voz de Markham continha uma censura aguda.
— O cadáver não estava no escritório de Mirche, chefe? — defendeu-se Heath, de forma agressiva. — E é lá que tenho estado alerta ao aparecimento de uma ameaça à sua vida... E Hennessey está de vigia lá, e tudo — concluiu ele, desajeitadamente, enquanto Vance o interrompia de chofre com um aceno de mão.
— Nós agradecemos o seu trabalho e a sua gentileza, doutor — falou Vance. — O senhor tem certeza absoluta de que Philip Allen não podia ter morrido de morte natural?
— Não, a não ser que a ciência médica tenha ficado completamente maluca — retrucou Doremus, de forma enfática. — Aquele sujeito foi envenenado... Disso tenho certeza. Não admira que o jovem Mendel tenha ficado desanimado com o caso. O que provocou a morte da vítima foi não só um veneno, mas ainda um veneno rápido e poderoso, capaz de produzir efeito imediato. Mas a droga atuou de maneira totalmente diferente daquelas cujo efeito estou habituado a ver nas vítimas cuja autópsia tenho feito.
— Mas, doutor — insistiu Vance. — O senhor deve ter alguma idéia do que tenha sido.
— Ora, tenho muitas idéias. É justamente essa a minha dificuldade: tenho idéias demais a respeito.
— Por exemplo?
— Bem, há o nosso velho amigo, o cianeto de potássio. Há muitos indícios de que seja ácido cianídrico. Acho que ele cheirou algumas vezes o gás cianeto e perdeu os sentidos. Os olhos esbugalhados e a cor da pele podem significar cianeto... e também podem significar outra coisa. E percebi um pouco do cheiro nos pulmões e na mucosa estomacal. Mas nada na boca, nem quando abri a cavidade craniana. Mas isso também não significa nada, principalmente pelo fato de terem aparecido muitas outras coisas que não significavam a presença de ácido prússico, de trás para diante ou de diante para trás, ou nos dois sentidos, a partir do meio.
— Acho que o Dr. Mendel falou em queimaduras, talvez uma reação local, nos lábios e na garganta. Que me diz disso?
— Sei lá... — E Doremus parecia aborrecido com o mundo inteiro. — O cheiro que senti nos pulmões dele indicava uma provável inalação de algum gás, conforme eu já disse.
— Poderia ter sido nitrobenzeno? — sugeriu Vance.
— Não sei... Sou apenas médico.
— Ora, vamos, doutor — falou Vance, bem-humorado. — Estou apenas tentando afastá-lo dos tóxicos antigos.
Doremus sentou-se com um movimento rápido e sorriu, à guisa de desculpa.
— Não o culpo, Senhor Vance. Estou aborrecido e com raiva. Talvez eu esteja falando como se tivesse andado metido com egípcios antigos, com mandrágora e venenos de víboras... Com poções ciganas secretas, com unguentos de bruxas com seus meimendros negros, com os venenos dos Bórgias, com água Perugia e com água Tofana...
— O senhor disse Tofana, doutor? — interrompeu Heath. — Esse é o nome da tal cartomante chamada Delpha, Senhor Vance. E acho que ela e o marido são perfeitamente capazes de envenenar uma pessoa.
— Não, sargento, não — corrigiu Vance. — A Tofana de que o doutor está falando morreu na Sicília no século dezessete. E não era cartomante. Longe disso. Ela dedicava seu talento a misturar um líquido que desde então ficou sendo conhecido pelo seu nome. Água Tofana era um veneno mortífero. E a tal mulher vendeu seu veneno em escala tão grande, que o nome do seu preparado nunca mais foi esquecido. Embora talvez sua mistura não passasse de uma solução forte de arsênico, ainda hoje há muito mistério ligado a esse preparado. E era a essa mulher, morta há vários séculos, que o Dr. Doremus estava se referindo.
— Ainda assim, digo que Rosa Tofana seria capaz de cometer a mesma infâmia —insistiu Heath, obstinadamente.
— Você parece espantosamente cheio de ódios e de desconfianças, sargento.
— Na minha profissão, eu tenho de ser assim — murmurou Heath.
Vance virou-se para Doremus.
Desculpe-nos por interrompermos, doutor. Parece que o caso que estamos atualmente investigando nos deixou a todos amargurados... Mas que me diz dos venenos tirados de flores? Seria difícil identificá-los, não seria?
— Não! Seria até bem fácil, mas levaria tempo. E eu os conheço todos. Acho que o senhor se refere: à colquicina, tirada do açafrão do campo; à heleborina, extraída da rosa-de-natal, à narcisina, tirada do narciso do prato, e à convalarina, extraída do lírio do vale... Coisas assim. Mas garanto-lhe que o veneno que deu cabo da vida de Philip não foi nenhuma droga suave como essas... Ou talvez... — E piscou um olho para Vance, astutamente. — Agora, é o senhor quem está falando a respeito dos assim chamados venenos do romance medieval. Bolas! A ciência moderna ri deles.
— Não... Oh, não. Não me extraviei até tão longe — riu Vance. — Estava apenas pensando no mascate ambulante de Londres, que vendia perfumes, e que perdeu os sentidos quando cheirou o óleo de mirbana que pusera nas flores para tornar o cheiro delas mais forte.
— Não é nada parecido com isso. — Doremus sacudiu a cabeça, desdenhosamente. — Estou apenas dizendo que ainda não sei o que foi que o tal Allen cheirou... Mas me dêem um pouco de tempo e amanhã descobrirei. E, além disso, não será uma coisa tão maluca quanto agora quer parecer.
— O senhor é capaz de dizer quando foi que ele morreu, doutor? — indagou Heath.
Doremus olhou furioso para o sargento.
— Ora, como iria eu saber? Não sou nenhum adivinho. Foi só hoje à tarde que vi o cadáver. — Sua raiva diminuiu quando ele viu a decepção de Heath. — Falei com o Dr. Mendel, mas ele não quis arriscar um palpite. Disse que não havia a rigidez de morte quando viu o cadáver pela primeira vez. Mas ninguém pode acompanhar o enrijecimento dos músculos com um cronômetro. O começo desse fenômeno é altamente variável e depende de vários fatores que incidem sobre ele. Pelo que pude saber, o homem podia ter morrido umas duas horas antes de ter sido encontrado, ou podia ter morrido até dez horas antes... Não sei, Mendel não sabe e nem os senhores sabem...
Depois que Doremus desabafou um pouco mais, deixou-nos, com um alegre aceno de mão.
— Bem, Vance — disse o procurador distrital. — Agora, como é que você pretende encaixar essa situação absurda na sua história?
Vance sacudiu a cabeça, pensativo.
— Não sei, Markham. Mas fique sossegado, que ela tem de encaixar em algum lugar, e ainda estou confuso diante dos diversos fatores convergentes do meu conto... E a sua referência aos Tofanas foi muito curiosa, sargento. Rosa Tofana, a sua amiga, está demonstrando uma estranha curiosidade a respeito do cavalheiro morto...
Vance levantou-se e caminhou várias vezes de um lado para outro.
— Ainda não confesso que estou derrotado, Markham. Existem muitas perguntas na minha mente, que clamam por respostas. Por exemplo, como foi que a vítima tornou a entrar na sala de Mirche, depois que Hennessey o viu lá, às seis horas?
— Hennessey devia estar olhando para outro lado — falou Heath, impassível.
— Isso não é provável, sargento. Aconteceu alguma coisa muito esquisita lá.
Vance ficou fumando algum tempo, em silêncio.
— Gostaria de ver as plantas da reforma do velho casarão, quando Mirche resolveu instalar o restaurante. Deve haver algo sugestivo nelas. Confesso que é um desejo estranho, mas eu gostaria de examiná-las.
— Não vejo o que adiantaria ver as tais plantas — falou Heath. — Mas, se quer mesmo vê-las, posso arranjá-las com facilidade para o senhor. Doyle e Schuster foi a firma que fez a reforma, e eu já tive negócios com o desenhista-chefe deles.
— Acho que isso ajudaria muito, sargento. Quando é que você poderia conseguir essas plantas para mim?
— Antes que o senhor se levante, de manhã — retrucou o outro, confiante. — Digamos, por volta das dez horas.
Markham parecia divertido.
— Por que não espera até Doremus mandar o relatório final?
— Tem toda razão — admitiu Vance, com relutância. — Gosto das coisas simples. Além disso, tenho de pensar em uma jovem muito suplicante.
— Eu lhe garanto — falou Markham, sem nenhuma pena — que depois de examinar as plantas, amanhã, você terá tempo de sobra para pensar na tal jovem suplicante.
— Não... Não, Markham — disse Vance sério. — Não é uma questão de leviandade...
Depois, ele contou, com pormenores, a visita patética feita a ele naquela tarde por Gracie Allen. Seu pedido de ajuda, sua preocupação por Burns, e as sugestões que ele, compadecido, dera para que a jovem mantivesse a mente ocupada.
— Eu e o sargento — concluiu ele — fizemos uma promessa à mãe dela. E, depois da visita inesperada da moça, hoje, quero encarecer a vocês dois a necessidade de mostrarmos consideração para com a jovem, sempre que ela resolver intrometer-se no nosso trabalho.
— Considero um prazer, para não dizer uma coisa rara, elogiar a sua meticulosidade sentimental — observou Markham. — Mas talvez eu não seja chamado a ajudar nesse logro caridoso. Acho que a situação cairá com violência sobre você e o sargento.
— Para mim, isso não tem importância, chefe — falou Heath. — A Senhora Gracie Allen é muito amável. E sua filha é muito bonita.
Vance sorriu, agradecido.
— Você terá de ser um tanto cuidadoso, sargento. O melhor modo de enfrentar a situação é não mostrar nenhuma pena, aparentemente. Isso poderia deixar a moça desconfiada. Devemos agir, em qualquer tempo, como se não soubéssemos mais,
a respeito da morte do seu irmão, do que ela própria. É preciso ser ator, sargento. Você seria capaz de representar?
— Claro que representarei! — E a voz de Heath era decidida e sincera. — Mas ainda não sou tão insensível que possa prometer não sentir um nó na garganta de vez em quando...
E o sargento parecia um tanto envergonhado da extravasação de sentimentos, tão inadequada para ele.
— Raios! — acrescentou ele, depressa. — Vou acabar sendo um daqueles ídolos de filmes infantis.

CAPITULO XII
UMA ESTRANHA DESCOBERTA
(Segunda-feira, 20 de maio — 9:00 horas)

Vance relutara em deixar o apartamento de Markham, na noite de domingo, e ficara lá até tarde. Mas, na manhã seguinte, levantou-se mais cedo do que o costume. Por volta das oito e meia, ele já estava completamente vestido e já tomara seu café. Pouco depois das nove horas, o sargento Heath chegou e entrou na biblioteca em passos largos e triunfantes.
— Aqui estão elas, Senhor Vance — anunciou ele, colocando um rolo comprido de papelão em cima da escrivaninha. — Se todos os meus trabalhos fossem tão fáceis de fazer como obter estas plantas para o senhor, eu jamais morreria de excesso de serviço.
— Céus, que eficiência!
Vance tirou as plantas do invólucro e estendeu-as em cima da escrivaninha. Estudou-as todas, minuciosamente, examinando separadamente a planta de cada piso. No entanto, dedicou mais tempo à planta do andar térreo, que incluía o salão do restaurante, o saguão de entrada e as salas onde eram guardados os abrigos dos fregueses, onde ficava a cozinha e onde estava instalado o escritório. O sargento ficou observando-o com uma expectativa divertida.
— Muito convencional — murmurou Vance, tamborilando nas folhas com o dedo. — Umas plantas muito boas. Feitas com inteligência. Nada mais, nada menos. Triste... Muito triste.
Nesse instante, Gracie Allen chegou, inesperadamente. Entrou na bibblioteca antes de Currie, tornando supérfluo que ele a anunciasse.
— Oh, eu tinha de vê-lo, Senhor Vance! Não sei por que, mas parece que não estou fazendo nenhum progresso, e trabalhei com tanto afinco. Sinceramente, eu trabalhei!
— Caramba! Minha jovem... — Vance falou em tom agradável. — Por que não está trabalhando na fábrica, hoje?
— Não pude ir ao trabalho — retorquiu ela. — Por enquanto, não posso. Estou pensando em tanta coisa ao mesmo tempo... Isto é, em coisas terrivelmente importantes. E tenho certeza de que o Senhor Doolson não se importará... George também não foi trabalhar. Telefonou-me, ontem à noite, e disse que não podia fazer nada na fábrica. Está muito transtornado.
— Bem, talvez, afinal de contas, Senhorita Allen, alguns dias de descanso...
— Oh, mas eu não estou descansando. — Ela pareceu magoada. — Estou terrivelmente ocupada o tempo todo. O senhor mesmo disse que preciso manter-me ocupada, lembra-se? — Ela avistou Heath, e uma expressão de medo lhe veio aos olhos grandes, ao reconhecer o sargento.
Vance amenizou a situação, apresentando Heath em tom indiferente.
— Ele também está trabalhando conosco no caso — acrescentou Vance. — Você pode confiar no sargento. Expliquei-lhe o seu engano de ontem e agora ele está do nosso lado... Além disso — prosseguiu Vance, alegremente — ele também tem cinco letras no nome.
— Oh! — E seus temores foram um tanto diminuídos por essa informação, embora ela olhasse novamente para Heath com ar incerto antes de romper em um sorriso leve. Depois, a jovem apontou para a escrivaninha. — Que são aqueles papéis azuis, Senhor Vance? Não estavam ali ontem. Talvez sejam uma pista ou algo parecido. São mesmo?
— Não, receio que não. São apenas plantas do Domdaniel, onde você esteve na noite de sábado...
Oh, posso dar uma olhada?
— Sem dúvida — respondeu Vance, e se curvou sobre a escrivaninha ao lado dela. — Veja, este é o grande salão de refeições e a porta de entrada que vem do corredor. E aqui fica a cozinha, além da porta lateral. E nesta parte fica a alameda que passa embaixo do arco. E neste canto fica o escritório, com a porta que dá para o terraço. E...
— Espere um instante — interrompeu a moça. — Na verdade, isto não é um escritório.
Gracie curvou-se mais perto, sobre a planta, e acompanhou o traçado dos corredores com um dedo, eliminando-os à medida que os acompanhava. Acabou seguindo o contorno do pequeno aposento. Depois, ergueu o olhar.
— Ora, mas esse é o quarto particular de Dixie Del Marr. Ela própria me contou isso... Não acha que ela é linda, Senhor Vance? E como canta bem... Gostaria de poder cantar como Dixie. Canta canções clássicas...
— Tenho certeza de que a senhorita canta muito melhor do que ela — disse-lhe Vance, de maneira galante. — Mas acho que está enganada ao afirmar que esse é o quarto de Dixie. Na verdade, é o escritório de Mirche, não é, sargento?
— Claro que é!
Gracie Allen curvou-se ainda mais sobre as plantas.
— Oh, mas é o quarto em que eu estive — garantiu ela, de maneira terminante. — Vou-lhes mostrar: aquela janela dá para a alameda. E aqui fica a rua, para onde dão aquelas janelinhas. Aqui na planta até diz ”rua Cinquenta”. Ora, tem de ser o quarto da Senhorita Del Marr. E a gente não pode ter dois quartos no mesmo lugar, mesmo em uma planta... Pode?
— Não, seria absurdo...
— E as paredes não são todas pintadas de lilás? E não há três ou quatro cadeiras grandes de couro ao longo desta parede? E não há um enorme peixe morto, em uma tábua, pendurado aqui? — E ela ia apontando para a localização dos objetos, enquanto falava. — E não há um candelabro pequeno, de vidro, muito engraçado, pendurado no... Oh, onde fica o teto, Senhor Vance? Não vejo nenhum teto nesta planta.
Heath tornara-se altamente interessado nas análises da jovem.
— Claro — falou ele. — As paredes são de uma espécie de cor de púrpura, e Mirche diz que pescou aquele peixe lá na Flórida. Ela tem toda razão, Senhor Vance... Mas escute aqui, moça, quando foi que esteve naquele cômodo?
— Ora, eu estive lá ainda na noite de sábado.
— Quê?! — berrou Heath. Gracie ficou assustada.
— Será que eu disse alguma coisa errada? Não tive intenção de entrar lá. Foi por acaso...
Agora, foi Vance quem falou.
— A que horas, durante a noite, você entrou lá, Gracie?
— Ora, Senhor Vance. Foi quando fui à procura de Philip, às dez horas da noite... Mas não o encontrei. Ele não estava em parte alguma. E também não veio ontem para casa. Acho que foi tirar umas férias fora da cidade. E prometeu que não deixaria o emprego.
Vance acabou com a tagarelice sem objetivo da jovem.
— Não vamos falar em Philip agora. Diga-me apenas como foi que você se dirigiu ao terraço à procura do seu irmão, quando, na realidade, o que você queria era ir para os fundos do restaurante.
— Não fui para o terraço. — Gracie sacudiu a cabeça, de maneira enfática. — Afinal de contas, para que eu desejaria ir ao terraço? Eu me resfriaria, pois estava trajando um vestido muito fino. Não acha que era um vestido lindo, Senhor Vance? Foi a mamãe também que o fez.
— Sim, você estava encantadora nele... Mas deve ter-se esquecido, pois o único jeito de entrar naquele quarto é pelo terraço.
— Oh, mas eu entrei por outro caminho... Entrei pela porta dos fundos. — Ela apontou para a parede que ficava diretamente em frente à porta da rua do escritório de Mirche; depois, seus olhos se arregalaram, quando ela examinou a planta. — Há alguma coisa muito estranha aqui, Senhor Vance. Quem fez esta planta não teve muito cuidado.
Vance aproximou-se mais dela. O sargento também chegou mais para perto, e ficou ao lado dos dois, com um ar de expectativa e curiosidade, com o charuto erguido no alto.
— A senhorita acha que deveria aparecer outra porta nesse lugar? — indagou Vance, baixinho.
- Ora, é claro! Porque há uma porta ali mesmo. Do contrário, como poderia eu ter entrado no quarto de Dixie Del
Marr? Mas o que não posso imaginar é por que ela conserva aquele peixe lá no seu quarto. Não vejo nenhuma beleza nisso. . .

— Não se preocupe com o peixe. Olhe aqui para a planta um instante. . . Agora, aqui está o arco pelo qual você deixou o salão de refeições.. .

— Sim. O que tem a grande escada trabalhada defronte.

— E agora, vejamos, você deve ter entrado por aqui, no corredor. . .

— Isso mesmo. George queria que eu ficasse para falar com ele, mas eu tinha pressa. Por isso, voltei direto, até passar por outro corredor pequeno. E então fiquei sem saber em que direção seguir.

— Você deve ter entrado nessa passagem estreita e caminhado até este ponto aqui. — Vance parou o lápis com o qual estivera acompanhando, na planta, o roteiro seguido pela moça.

— Foi exatamente o que fiz! Como foi que o senhor soube? Estava-me observando?

— Não, Gracie — respondeu Vance, com paciência. — Mas talvez você esteja um tanto confusa. Há uma porta aqui, na extremidade desta estreita passagem, onde você diz que desceu.

— Sim, eu vi a tal porta. Cheguei até a abri-la. Mas não havia nada lá, apenas a alameda de entrada de carros. Nesse momento compreendi que estava perdida. E então, quando eu estava lá, de pé, encostada à parede e imaginando como iria encontrar Philip, essa outra porta de que eu lhe estava falando — a que leva para dentro do quarto de Dixie Del Marr — abriu-se atrás de mim. — A jovem deu um riso abafado, como se estivesse pensando em alguma piada que fosse contar em seguida. — E eu caí dentro do quarto! Foi muito embaraçoso, mas não estraguei meu vestido. E poderia tê-lo rasgado, caindo daquela maneira. .. Mas acho que a culpa foi apenas minha, por não ter olhado onde me estava encostando. Mas eu não sabia que havia uma porta ali. Não vi porta nenhuma. Em todo caso, lá estava eu, dentro do quarto. Não é uma tolice? Não ver uma porta e apoiar-se nela, e depois cair através dela dentro do quarto de Dixie? — Ela riu de maneira encantadora, ao lembrar-se do que lhe acontecera.

Vance levou a moça para uma cadeira e arrumou um travesseiro para ela.

— Sente-se ali, minha querida — falou ele. — E contenos tudo a respeito do que aconteceu com você.

— Mas eu já lhes contei — falou ela, ajeitando-se de maneira confortável. — Foi muito engraçado, e fiquei muito embaraçada. A Srta. Del Marr também ficou embaraçada. Ela me disse que aquele era seu quarto particular. Por isso, eu lhe disse que lamentava muito o acontecido e lhe expliquei que estava procurando meu irmão. Ela até conhecia Philip. Acho que era porque ambos trabalhavam no mesmo lugar, como eu e George. . . E depois ela me levou de volta ao corredor e apontou o caminho certo para o patamar da escada da cozinha. Foi muito boazinha para comigo. Bem. . . Esperei muito tempo, mas Philip não apareceu. Por isto, voltei para junto do Sr. Puttle. Eu sabia encontrar o caminho de volta. . . E agora, Sr. Vance, quero fazer-lhe mais algumas perguntas a respeito do que o senhor disse ontem. . .

— Eu teria muito prazer em responder a elas, Srta. Allen

— disse Vance. — Mas, na verdade, não tenho tempo, esta manhã. Talvez depois, à tarde. Não se importará, não é?

— Oh, claro que não. — A jovem saltou de pé, agilmente.

— Também tenho algo muito importante a fazer. E talvez George vá à casa da minha mãe, passar alguns minutos conosco.

— Ela apertou a mão de Vance, fez um movimento de cabeça na direção de Heath, arisca e um instante depois se retirara.

— Com mil gafanhotos! — explodiu Heath, quase antes que a porta se fechasse atrás de Gracie Allen. — Eu não lhe disse que o tal Mirche era um sujeito esperto? Então, ele tem uma porta secreta! Mas aquela boneca tonta não a viu... Claro que não a viu! Alguém deve ter sido descuidado.. . Ela se encostar a uma porta invisível e cair dentro do quarto.. . E exatamente dentro do quarto onde mataram seu irmão! É a maior!

Vance deu um sorriso leve.

— Mas, afinal de contas, sargento, não há nenhuma lei que proíba um homem de ter uma porta secreta para o seu escritório. E essa, sem dúvida, é a nossa resposta a como teria o morto ido parar lá dentro sem que fosse visto por Hennessey. Mas alguém deve ter estado lá dentro com ele. Não foi Mirche, que estava à minha mesa entre dez e onze horas da noite. E, sem dúvida, não havia nenhum morto lá dentro às dez horas da noite.

— Mas o senhor não pensa...

— Faça silêncio algum tempo, sargento. — E Vance andava de um lado para outro.
— Gostaria de ir ao Domdaniel e arrombar aquela porta falsa! — declarou Heath, violentamente.
— Não... Oh, não — aconselhou Vance. — Você não deve ser tão impetuoso. Precisa ser fino. Que essa seja a nossa palavra de ordem, por enquanto.
— Ainda assim — disse Heath, resolutamente — se o Domdaniel for o quartel-general de uma quadrilha de meliantes, como sempre desconfiei, nada me daria mais prazer do que esmagar todo aquele prédio, e Mirche também, junto com o resto.
— Tem uma natureza impulsiva demais, sargento — censurou Vance. — Ninguém pode rebentar a casa dos outros sem provas da culpa da pessoa.
— Estou apenas dizendo o que eu gostaria de fazer.
— E outra coisa, sargento: Mirche seria apenas um elo secundário na sua imaginária cadeia criminosa. Como eu disse, ele está longe de ser um líder de homens.
— Pois ele me parece bastante esperto — insistiu Heath, mansamente. — Em todo caso, o tal de ”Coruja” Owen, com quem o senhor estava preocupado, deve ser um dos chefes.
— É verdade — disse Vance, pensativo. — Mas ele era apenas um companheiro de jantar, quando o vi. Muito correto e comedido. Embora eu confesse que sua presença lá, naquela noite, não me agradou, com tantas outras coisas esquisitas juntando-se sem significarem nada. — Vance fez um gesto vago. — Acho que podemos esquecê-lo, por enquanto, para nos concentrar em estabelecer quem matou o pobre sujeito.
— Mas como? Investigando um pouco mais de perto a respeito de Mirche?
— Exatamente, sargento. E também não deixarei de investigar a respeito de Dixie Del Marr, depois daquela espantosa informação sobre a porta falsa que dá para seu quarto particular.
— E como pretende fazer isso, Senhor Vance?
— Bem abertamente, sargento. Vou até lá bater um papo. Por falar nisso, onde é que Mirche mora?
— Isso é fácil — informou Heath. — Mora no primeiro andar do Domdaniel.
— Foi o que imaginei... E você poderia responder com igual facilidade, se eu lhe perguntasse onde mora a Senhorita Del Marr?
— Claro — grunhiu Heath. — Eu não teria durado tanto tempo no Departamento de Homicídios, se não soubesse onde moram as pessoas que considero suspeitas de estarem tomando parte em patifarias ou em crimes. O senhor a encontrará no Hotel Antler, na Rua Cincoenta e Três.
— Você é um fundo de informações, sargento — elogiou Vance.
— Quando pretende ir falar com eles, Senhor Vance? E que faremos, depois?
— Tentarei comunicar-me com Mirche e com Dixie Del Marr hoje de manhã. Em seguida, esforçar-me-ei para conseguir que Markham almoce comigo. Depois, ficaria encantado em me encontrar novamente com você, aqui, às três horas da tarde.
— O caso continua sendo seu, Senhor Vance — murmurou Heath. — E eu não lhe direi como conduzi-lo. — E ele ficou mais meia hora antes de se retirar.
Depois, Vance telefonou para Markham, e em seguida sentou-se e acendeu um cigarro, de maneira mais deliberada do que de costume.
Mais outra faceta espantosa na pedra preciosa, Van — falou ele. — Markham estava para me telefonar quando me ligaram com seu gabinete. O Senhor Doolson — o tal da fábrica de perfumes In-O-Scent — estivera lá e fora embora. Markham prometeu contar-me a história da sua visita mais tarde, quando nos encontrarmos, e parecia muito divertido. Devemos encontrar-nos no seu gabinete por volta da uma hora da tarde. Eu disse a ele que, se não estivéssemos lá até as duas horas, ele deveria mandar uma pelotão dos nossos bravos rapazes dar uma batida no Domdaniel.

CAPITULO XIII
NOTÍCIAS DE UMA CORUJA
(Segunda-feira, 20 de maio — 11:00 horas)

Às onze horas, Vance foi ao Domdaniel. Não teve nenhuma dificuldade em falar com Mirche. Após uma espera de apenas cinco minutos, o proprietário do restaurante entrou na sala de recepções onde estávamos esperando. Cumprimentou Vance de maneira efusiva, embora me desse a impressão de que estava representando um papel bem ensaiado.
— A que devo esta visita inesperada, Senhor Vance? — indagou ele, amavelmente.
— Eu queria apenas conversar com o senhor a respeito do pobre coitado que foi encontrado morto aqui na noite de sábado. — Vance falou com indiferença, embora em tom agradável.
— Ah, sim. — Se Mirche ficou surpreso, disfarçou muito bem. — Claro, se for a respeito da família dele, teremos prazer em ver o que pode ser feito. Naturalmente, eu gostaria de evitar escândalos, pois isso prejudicaria a freqüência ao nosso restaurante. Foi um acidente lamentável. Mas... É melhor irmos para o meu escritório.
O homem foi na frente ao longo da sacada e, abrindo a porta, afastou-se para um lado a fim de que entrássemos na sua frente. Vance sentou-se em uma das grandes cadeiras de
couro e Mirche sentou-se em outra, mais ou menos de frente — para Vance.
— A polícia tem feito muitas perguntas a respeito do caso — começou Mirche. — Mas eu esperava que, nesta altura, todo esse assunto já estivesse sido resolvido.
— Sei que estas coisas são muito importunas — falou Vance. — Mas há um ou dois pontos, nessa situação, que me interessam um pouco.
— Pois me surpreende muito que se interesse por esse caso, Senhor Vance. — Mirche falava em tom frio e delicado. — Afinal de contas, o homem era apenas um lavador de pratos. Eu o mandara embora antes da hora do jantar. Ele reclamou que seu salário era muito baixo e não chegamos a um acordo a respeito do assunto. Não entendo por que ele teria voltado, a não ser que houvesse pensado melhor e quisesse ser readmitido. Foi lamentável ele morrer no meu escritório. Mas não parecia ser um sujeito particularmente robusto, e acho que nunca se pode saber quando o coração vai estourar... A propósito, Senhor Vance, já foi determinada a causa da morte?
— Não, acho que não — respondeu Vance, sem se comprometer. — No entanto, não é isso que interessa, no momento. O fato, Senhor Mirche, é que havia um policial na rua, lá fora, na noite de sábado, e ele insiste em que não viu esse seu lavador de pratos entrar aqui no seu escritório, depois que foi visto saindo dele, por volta das seis horas.
— Talvez ele não o tenha notado — falou Mirche, com indiferença.
— Não, não... O policial, que, a propósito, conhecia Philip Allen, tem certeza absoluta de que a jovem vítima não entrou no seu escritório, pelo lado da sacada, a noite inteira.
Mirche ergueu o olhar e estendeu as mãos.
— Mas, assim mesmo, insisto, Senhor Vance...
— Seria possível que o tal Philip tivesse alcançado este aposento por outra entrada? — Vance fez uma pausa momentânea e olhou ao redor. — Talvez tivesse entrado por aquela pequena porta que há na parede dos fundos.
Mirche ficou um instante calado. Olhou fixamente para Vance, com expressão astuta, e os músculos do seu corpo pareceram retesar-se. Se algum dia vi uma fotografia viva de um homem pensando depressa, Mirche era o retrato vivo desse homem.
De repente, o homem soltou uma risada curta.
— E eu pensava que havia guardado tão bem o meu segredinho... Aquela porta é invenção minha, apenas para meu uso particular, o senhor compreende. — Levantou-se e foi até o fundo da sala. — Vou-lhe mostrar como ela funciona. — Apertou um pequeno medalhão, no lambril, e uma folha de porta, que não teria nem meio metro de largura, girou sem ruído para dentro do aposento. Do outro lado ficava o estreito corredor no qual Gracie Allen perdera o rumo.
Vance olhou para as dobradiças ocultas da porta secreta e depois se afastou, como se a revelação não fosse nenhuma novidade para ele.
— Muito hábil — disse ele, em sua voz arrastada.
— É muito conveniente — falou Mirche, fechando a porta. — Uma entrada particular que liga o restaurante ao meu escritório. Como vê, Senhor Vance...
— Ah, sim, sem dúvida. É muito útil quando a gente quer-se isolar um pouco do resto do mundo. Sei que certos corretores de Wall-Street têm portas assim. E acho que com razão... Mas como é que o seu lavador de pratos teria tomado conhecimento da existência de tal porta?
Mirche coçou o queixo, pensativo.
— Ora, não sei... Embora seja perfeitamente possível, é claro, que algum empregado do restaurante haja visto quando abri a porta... Ou talvez tenha descoberto casualmente o segredo.
— A Senhorita Del Marr sabia dele, não sabia?
— Oh, sim — confessou Mirche. — Ela, às vezes, me ajuda aqui um pouco no trabalho. Não vejo nenhum motivo para não a deixar usar a porta, quando ela quer.
Era evidente que Vance fora colhido de surpresa pela franqueza de Mirche, e logo mudou a conversa para outros assuntos. Fez inúmeras perguntas a respeito de Allen e depois voltou aos acontecimentos da noite de sábado.
No meio de uma das perguntas de Vance, a porta da frente abriu-se e Dixie Del Marr apareceu na soleira da porta. Mirche convidou-a para entrar e imediatamente nos apresentou.
— Eu estava justamente falando a estes senhores — disse ele, rapidamente — a respeito da entrada secreta que existe para este aposento. — E forçou uma risadinha. — O Senhor Vance parecia pensar que devia haver alguma ligação misteriosa entre isso e...
Vance ergueu a mão, protestante em tom agradável.
— Infelizmente, acho que o senhor imaginou significados ocultos nas minhas palavras, Senhor Mirche. — Depois, sorriu para Dixie Del Marr. — A senhorita deve achar aquela porta muito útil.
— Ah, sim... Principalmente quando o tempo está ruim. Na verdade, ela tem sido muito útil. — Ela falou em tom de voz indiferente, mas havia uma dureza, quase amargura, na expressão do seu rosto.
Vance a estava examinando atentamente. Eu esperava que ele a interrogasse a respeito da morte de Allen, pois sabia que fora essa a sua intenção. Mas, realmente, ele tagarelou descuidadamente a respeito de coisas banais, completamente sem relação com o assunto que nos levara ali.
Pouco antes de despedir-se, ele disse à Senhorita Dixie Del Marr, em tom de voz conciliatório:
— Desculpe-me se pareço pessoal, mas não posso deixar de admirar o perfume que a senhorita está usando. Eu arriscaria um palpite... Seria, acaso, uma mistura de narciso e rosa?
Se a mulher ficou atônita com o comentário de Vance, não deu nenhuma demonstração.
— Sim — respondeu ela, com indiferença. — Tem um nome ridículo... Completamente indigno dele, creio eu. O Senhor Mirche também usa o perfume... Tenho certeza de que por influência minha. — Dirigiu um sorriso convencional ao homem, e novamente notei a dureza e a amargura das suas maneiras.
Nós nos retiramos pouco depois disso e, enquanto caminhávamos ao longo da Sétima Avenida, Vance mostrava-se de uma seriedade fora do comum.
— O nosso Senhor Mirche é muito esperto — murmurou Vance. — Não compreendo por que não ficou mais preocupado a respeito da porta secreta. Mas ele está preocupado. Oh, e muito. É muito esquisito... Não precisei interrogar Dixie. Mudei de idéia a esse respeito no instante em que ela falou tão suavemente e olhou para Mirche. Havia ódio, Van. Ódio cruel e apaixonado, e ambos usavam Beije-me Depressa. Oh, que tem esse perfume a ver com o nosso caso? É curioso...!
Markham nos falou, em seu gabinete, acerca da visita de Doolson, acontecida naquela manhã.
-— O homem está desesperadamente preocupado, Vance, e pelo motivo mais incrível. Parece que tem uma opinião muito elevada a respeito da habilidade do jovem Burns. Acha que sua fábrica de perfumes não poderia funcionar sem o rapaz. Está convencido de que Burns é quem tem a chave do sucesso contínuo da sua empresa. E falou mais coisas assim, de espantosa tagarelice.
— Não foi tagarelice, de forma alguma, Markham — interrompeu Vance. — Doolson talvez tenha toda razão de considerar muito Burns. Foi este quem preparou as fórmulas para a In-O-Scent e salvou Doolson da falência. Compreendo exatamente o que ele quis dizer.
— Bem... Parece, também, que as vendas da firma só são efetuadas em determinadas épocas, e que se aproxima, agora, a fase de vendas mais altas. Doolson investiu uma fortuna em uma campanha de vendas, e precisa imediatamente de vários e novos perfumes populares. E acha que só Burns pode preparar-lhe tais perfumes.
— Isso é interessante e plausível. Mas por que a visita dele ao seu gabinete?
— Parece que Burns não compareceu ao emprego e que não irá mais lá até que fique livre de suspeitas no caso Allen. Burns está nervoso e, creio eu, bastante amedrontado. Não pode trabalhar, não pode pensar, não pode experimentar perfumes ... Está completamente desorientado. E Doolson está muito aflito. Hoje cedo, conversou com o rapaz e ficou sabendo dos motivos da sua recusa obstinada em voltar para o trabalho. Burns lhe disse que o caso estava sendo abafado temporariamente, e não forneceu nomes. Mas explicou que ele estava implicado, de alguma forma, e, portanto, transtornado. Tendo confiança completa em Burns, Doolson veio correndo para cá, em desespero de causa. Talvez tenha achado que meu departamento está trabalhando demasiado lentamente.
— Que foi que ele disse?
— Doolson insiste em oferecer um prêmio em dinheiro pela solução do caso, na esperança desesperada de me incentivar, e ao meu pessoal, a resolvermos o assunto imediatamente, para que seu precioso Burns possa voltar ao trabalho. Pessoalmente, acho que o homem está doido.
— Talvez esteja, Markham, mas não o desiluda.
— Já tentei, mas ele insistiu.
— E quanto é que ele acha que valem os serviços imediatos e tranqüilos do Senhor Burns?
— Cinco mil dólares!
— É uma loucura — riu Vance.
— Concordo com você. Eu também não acreditaria, se não tivesse um cheque dessa importância, assinado por Doolson e visado, neste momento, guardado no meu cofre. E, por falar nisso, esse cheque só é válido por quarenta e oito horas...
Depois que Vance absorvera essas informações fantásticas, contou suas atividades da manhã. Falou da porta secreta que dava para o escritório de Mirche e frisou o ponto da desconfiança insistente do sargento de que o Domdaniel era a sede de uma poderosa quadrilha de criminosos.
Sobre este último ponto, Markham fez um aceno lento e pensativo de cabeça.
— Não tenho certeza — observou ele — de que as suspeitas do sargento sejam infundadas. Aquele lugar sempre me preocupou um pouco, mas nunca veio à luz nada concreto.
— O sargento mencionou Owen como um possível chefe — falou Vance. — E acho a idéia interessante. Estou um tanto inclinado a procurar o ”Coruja” e tentar fazê-lo arrepiar as penas. A propósito, Markham, se meu impulso vencer minha discrição, qual é o nome verdadeiro de Owen? Você entende, não posso andar por aí perguntando por uma ave noturna de rapina.
— Acho que é Dominic.
— Dominic, Dominic... — De repente, Vance se levantou, com os olhos fixos no espaço à sua frente. — Dominic Owen! E Daniel Mirche! — E segurou o cigarro, suspenso no alto. — Agora, tudo se tornou fantasia. Você tem razão, Markham... Estou tendo visões: estou envolto em um conto misterioso. Uma coisa fantástica!
— Ora em nome dos céus... — começou Markham.
— Ora, mas você ainda não compreendeu? — E depois, disse: — Dominic... Daniel. Que engenhoso... Daí saiu DOMDANIEL!
Markham ergueu o cenho, incrédulo.
— Pura coincidência, Vance. Embora haja nisso certa dose de fantasia, coisa que eu confesso. Se bem me lembro da leitura que fiz das Mil e Uma Noites, o Domdaniel original ficava no fundo do mar, em algum ponto perto de Túnis, e era uma curiosa morada de espíritos malignos. Mesmo que Mirche tenha ouvido falar daquele palácio submarino e fosse realmente sócio de Owen no restaurante, ele jamais teria coragem ou iniciativa suficientes para isso.
— Mirche não teria, Markham, mas Owen teria. Owen teria a suteliza, a ousadia e o humor sombrio para isso. A idéia teria sido magnífica, creio eu. Oferecendo ao mundo a chave do seu segredo e depois rindo sozinho, muito à semelhança dos demônios que originalmente habitavam aquela cidadela submarina do pecado...
Juntamente com Markham, condoeu-se das complicações da vida e deixou-o sozinho para tirar suas próprias conclusões.
Quando voltamos para o apartamento de Vance, pouco antes das três horas da tarde, não era Heath quem estava à nossa espera. Era Gracie Allen, que parecia estar sempre em toda parte e, como de costume, saudou Vance com alegria e exuberância.
— O senhor me disse para voltar hoje à tarde. Ou não disse? Seja como for, o senhor disse alguma coisa a respeito de logo mais à tarde. E, como eu não sabia a que horas deveria vir, vim cedo. Já reuni muitas pistas... Isto é, umas três ou quatro. Mas acho que elas não servem para nada. O senhor arranjou alguma pista?
— Ainda não — falou ele, sorridente. — Isto é, não tenho pistas definidas. Mas tenho várias idéias.
— Oh, fale-me das suas idéias, Senhor Vance — pediu ela, insistente. — Talvez elas sejam úteis. Nunca se sabe o que pode resultar quando se começa a pensar. Ainda na semana passada, pensei que ia haver uma tempestade violenta, e houve mesmo!
— Bem, vejamos... — E Vance, um tanto levado pelo espírito da brincadeira, e contudo com evidente benignidade, falou-lhe das suas suposições com relação ao significado da palavra ”Domdaniel”. Demorou-se sobre o mistério e o romance da lenda original de Domdaniel, contida nas Mil e Uma Noites, para divertir a jovem: falou dos califas sírios, das ”raízes do mar”, das quatro entradas e dos quatro mil degraus, citou Magharabi e os outros mágicos e feiticeiros.
Heath chegara no começo da história, e ficou de pé, ouvindo, tão encantado quanto o estava a moça. Quando Vance terminou, Gracie Allen relaxou os nervos e músculos, durante alguns instantes.
— Isso é simplesmente maravilhoso, Senhor Vance. Gostaria de poder ajudar a encontrar o tal Dominic. Temos um empregado gorducho, na fábrica, um homem corpulento, que se chama também Dominic. Mas ele não pode ser quem o senhor procura.
— Não, tenho certeza de que não é. O que estou procurando é um homem pequeno, de olhos muito escuros e penetrantes e rosto muito branco, e tem cabelos quase pretos.
— Oh! Talvez seja o homem que eu vi no quarto de Dixie Del Marr.
— Quê?! — E a exclamação do sargento assustou a jovem.
— Meu Deus! Será que tornei a dizer alguma coisa errada, seu Heath?
Vance fez um aceno para o sargento se afastar, e havia censura no gesto. Depois, falou calmamente com a moça.
— Quer dizer, Gracie, que você viu alguém no quarto, além de Dixie Del Marr, quando caiu casualmente dentro dele, na noite de sábado passado?
— Sim. Um homem exatamente igual ao que você descreveu.
— Mas por que — indagou Vance — você não me contou isso, hoje de manhã?
— Ora, o senhor não me perguntou! Se me houvesse perguntado, eu lhe teria contado. E, em todo caso, achei que isso não tinha nenhuma importância... Isto é, o fato de aquele homem estar no quarto de Dixie Del Marr. Ele não teve nada que ver com a minha queda.
— E você tem certeza — prosseguiu Vance — de que ele era parecido com o homem que acabo de lhe descrever?
— Sim, certeza absoluta.
— E suponho que foi a primeira vez que você o viu, não foi?
— Sim, isso mesmo. E, se o tivesse visto antes, ter-me-ia lembrado. Eu sempre me recordo de fisionomias, mas não consigo é lembrar-me de nomes. Mas eu o vi depois daquilo.
— Depois? Onde foi isso?
— Ora, ele estava sentado no salão de refeições do restaurante, bem a um canto, não muito longe do George. Não posso imaginar como foi que olhei casualmente naquela direção, pois me achava em companhia do Senhor Puttle naquela noite.
— Havia mais alguém com o homem, quando você o viu no restaurante? — prosseguiu Vance.
— Sim, mas eu não os podia ver, já que se achavam de costas para mim.
— A quem está-se referindo?
— Ora, aos outros dois homens sentados à mesa do sujeito que o senhor está procurando.
Vance tirou uma fumaça profunda do cigarro.
— Diga-me, Gracie... Que é que o homem estava fazendo, quando você o viu no quarto de Dixie Del Marr?
— Deixe-me pensar... Acho que ele é um amigo muito íntimo da Senhorita Del Marr, pois estava guardando uma caderneta grande de anotações em uma das gavetas. E deve mesmo ser amigo muito íntimo de Dixie, do contrário não saberia qual o lugar do tal caderno, não é? Depois Dixie Del Marr veio até junto de mim e pousou uma das mãos no meu braço, levando-me depressa para fora. Acho que ela estava apressada. Mas foi muito amável comigo...
— Bem... Foi uma aventura muito divertida, minha querida.
Pouco depois dessa espantosa informação, Gracie Allen despediu-se de nós, muito alegremente, com um ar cômico de mistério, dizendo que precisava cuidar de muitas coisas importantes. Confidencialmente, disse-nos que talvez até fosse encontrar-se com Burns.
Quando a jovem se retirou, Vance olhou para o outro lado, para o sargento, como se esperasse algum comentário.
Heath esparramou-se em uma cadeira, aparentemente atordoado.
— Não tenho nada que dizer, Senhor Vance. Vou ficar maluco!
— Até eu estou um pouco tonto — falou Vance. — Mas, agora, tenho de falar com Owen. Francamente, eu não estava muito animado a ir falar com ele, e só vagamente acreditava na minha charada a respeito de Owen e Mirche. No entanto, o tempo todo Gracie Allen conhecia a ligação. Sim, agora é indispensável que eu encontre ”o Coruja”... Você pode ajudar-me, sargento?
Heath apertou os lábios.
— Não sei onde ele se hospeda, em Nova York, se é a isso que se refere. Mas talvez um dos agentes federais que eu conheço me dê essa informação. Espere um instante...
Heath foi ao telefone, no corredor, enquanto Vance fumava, silencioso e pensativo.
— Finalmente, consegui — anunciou Heath, ao voltar para a sala, meia hora depois. — Nenhum dos agentes federais sabia que Owen se achava na cidade, mas um deles examinou o arquivo e me disse que Owen costumava morar no hotel St. Carlton, na época em que foram feitas investigações a respeito dele. Resolvi ligar para o hotel. Ele está hospedado lá, realmente... Chegou na quinta-feira...
— Obrigado, sargento. Vou telefonar para você amanhã cedo. Enquanto isso, não pense muito no assunto.
O sargento retirou-se e Vance telefonou imediatamente para Markham.
— Você vai fazer a refeição matinal comigo amanhã — disse o detetive ao procurador distrital. — Hoje à noite, esforçar-me-ei para visitar o erudito Senhor Owen. Tenho muitas coisas a contar a você, e talvez amanhã cedo tenha mais. Lembre-se, Markham: refeição matinal amanhã... É uma imposição, e não um convite banal...

CAPÍTULO XIV
UM LOUCO MORIBUNDO
(Segunda-feira, 20 de maio — 20:00 horas)

Naquela noite, às oito horas, Vance foi ao Hotel St. Carlton. Ao invés de telefonar da mesa da recepção, escreveu as palavras ”visita não profissional” no seu cartão e mandou-o a Owen. Alguns minutos depois, o mensageiro voltou e nos levou até os aposentos de Owen.
Havia dois homens sentados perto de uma janela, quando nós entramos, e o próprio Owen achava-se sentado, inerte, em uma cadeira baixa, contra a parede, virando lentamente o cartão de visitas de Vance nos dedos finos, que tamborilavam. Olhou para Vance e jogou o cartão no tamborete fixo ao seu lado. Depois, disse, em tom de voz suave mas imperioso:
— É só isto, por esta noite.
— Os dois homens saíram imediatamente do quarto e fecharam a porta.
— Desculpe-me — falou ele, com um sorriso melancólico, à guisa de desculpa. — O homem é um animal desconfiado. — Moveu a mão, em um gesto vago: era o seu convite para nos sentarmos. — Sim, desconfiado. Mas para que se importar com isso? — A voz de Owen era baixa e de mau agouro, mas continha um tom intenso de queixa, como um pio de pássaro ao crepúsculo. — Sei por que vieram e tenho prazer em vê-los. Alguma coisa poderia ter sucedido nesse intervalo.
Ao examinar mais detidamente o homem, tive a impressão de que ele se achava tomado por uma doença grave. Sua fisionomia era marcada por uma profunda letargia íntima. Tinha uma expressão aquosa nos olhos; seu rosto era quase roxo, indício de graves distúrbios circulatórios, e sua voz era monótona. Deu-me a impressão de um morto-vivo.
— Durante vários anos — prosseguiu ele — tem havido a esperança vaga de que algum dia... Necessidade de consciência, de bondade, de identidade de pensamentos... — E a voz lhe faltou.
— A solidão do isolamento psíquico... — murmurou Vance. — Exatamente. Talvez seja eu a pessoa.
— Ninguém é a pessoa, claro. Perdoe minha presunção.
— Owen sorriu languidamente e acendeu um cigarro. — O senhor acha que algum de nós dois quis este encontro? Mas o homem não faz escolhas. Sua escolha é seu temperamento. Somos sugados por um redemoinho, e até escaparmos dele lutamos para justificar essa ”escolha”.
— Mas isso não importa, não é? — falou Vance. — Alguma coisa vital sempre nos foge e a mente jamais pode responder a perguntas que faz a si mesma. Dizer uma coisa ou não a dizer e pensá-la, dá na mesma.
— Exatamente. — O homem dirigiu um olhar de indagação.
— Em que é que o senhor está pensando?
— Estava imaginando que foi que o senhor veio fazer em Nova York. Eu o vi no Domdaniel, no sábado. — O tom de voz de Vance mudara.
— Eu também o vi, embora não tivesse certeza. Pensei, na ocasião, que talvez o senhor entrasse em contato comigo. Sua presença naquela noite não foi pura coincidência. Coincidência é coisa que não existe. É uma palavra falsa para mascarar nossa nauseabunda ignorância. Só existe um padrão em todo o universo do tempo.
— Mas a sua visita à cidade... Estar-me-ei intrometendo em algum segredo?
Owen rosnou e senti um calafrio descer-me pela espinha. Depois, sua expressão mudou e passou a ser de tristeza.
— Vim consultar um especialista... Enrick Hofmann.
— Sim. É um dos maiores cardiologistas do mundo. O senhor o consultou?
— Sim, há dois dias. — Owen deu uma risada amarga.
— Condenado! Ao contrário de Alexandre, uma vida breve mas sem glórias!
Vance limitou-se a erguer ligeiramente as sobrancelhas, e puxou uma baforada profunda do seu cigarro.
— Obrigado — falou Owen — por me poupar os lugares comuns sem significado. — Depois, perguntou, de repente: — Seu nome é Daniel?
— Acaso Belshazzar precisa de um profeta? — E Vance olhou diretamente para o homem. — Não, nada disso! Não sou Daniel. E também não me chamo Dominic.
Owen deu uma risada diabólica.
— Eu tinha certeza de que o senhor sabia! — E sacudiu a cabeça, satisfeito. — Mirche morrerá sem suspeitar, nem de leve, da brincadeira. Ignora tanto As Mil e Uma Noites como Southey e Carlyle. É um patife analfabeto!
— Foi uma idéia hábil — falou Vance.
— Oh, hábil, não. Apenas uma boa piada. — A letargia pareceu novamente dominá-lo. Sua expressão tornou-se uma pobre máscara e suas mãos jaziam inertes sobre os braços da cadeira que ele ocupava. Parecia um cadáver. Houve um longo silêncio, e então Vance falou.
— A escrita na parede, feita à mão. O senhor se sentiria consolado, se eu sugerisse que talvez todos os anos, por todo o infinito, estejam contados e divididos?
— Não — cortou Owen, em tom ríspido. — Consolo... Outra palavra falsa. — Depois, prosseguiu, ansiosamente: — A eterna volta... Ressurreição. A tortura perfeita. — E começou a murmurar. — O mar começará a secar... Um planeta extinto... absorvido pelo Sol... Estrelas maiores... O último instante... Dispersão eterna das coisas... Bilhões de anos daqui... Neste mesmo quarto... — Sacudiu-se, fracamente, e olhou fixamente para Vance. — Moore tinha razão: é como a loucura.
Vance fez um aceno de cabeça, condoído.
— Sim. Loucura. Completa. Aquilo que é finito e atual é só o que ousamos enfrentar. Mas coisa finita não existe.
— Não, é claro que não existe. — Owen falava com voz sepulcral. — Mas aqueles bilhões de anos além, quando a mente volta ao que é infinito... como as ondas intermináveis feitas por uma pedra que se joga na água. E precisamos também ser limpos de espírito. Não agora, mas nessa época. Não devemos provocar ondas intermináveis... Graças a Deus que eu posso falar-lhe. O senhor me entende.
Vance fez um aceno afirmativo de cabeça.
— Sim, compreendo perfeitamente. ”Limpeza”... Sei o que o senhor quer dizer. O que é finito se equilibra... Isto é, nós podemos equilibrá-lo, mesmo até o fim. Podemos voltar limpos até um tempo interminável. Sim. ”Limpeza de espírito”, uma frase adequada. Nenhuma onda. Concordo plenamente.
— Mas não por meio da indenização — disse Owen, rapidamente. — Não por meio de confessionários absurdos.
Vance fez um aceno de mão, em sinal negativo.
— Eu não quis dizer isso. Apenas uma inexistência. Depois do que é finito, quando não houver mais lutas, quando pararmos de tentar eliminar os impulsos colocados em nós pelo mesmo ser que nos impede cedermos a eles...
— É isso! — E apareceu uma centelha de animação na voz de Owen. Depois, ele recaiu no seu langor. O leve gesto da sua mão foi tão gracioso quanto o de uma mulher. Mas a dureza de aço do seu olhar permaneceu. — o senhor me impedirá de provocar ondas na água, caso...?
— Sim — retrucou Vance, com simplicidade. — Se um dia chegar a hora, e eu puder ajudá-lo, pode contar comigo.
— Confio no senhor... E, agora, posso falar um instante? Eu sempre quis dizer estas coisas a alguém que me compreendesse … 1234
Vance limitou-se a esperar, e Owen prosseguiu.
— Nada tem a mínima importância... Nem mesmo a própria vida. Nós próprios podemos criar ou esmagar a vida de seres humanos... Façamos o que fizermos, o resultado será sempre o mesmo. — Owen sorriu, desalentado. — A futilidade podre de todas as coisas... A futilidade de fazer seja o que for, até de pensar. Raios levem a agoniante sucessão de dias que chamamos de vida! Meu temperamento sempre me atraiu em diversas direções ao mesmo tempo... Sempre entre o espeto e a brasa. Talvez, afinal de contas, seja manchar almas.
E ele pareceu encolher-se, como se fugisse ao contato de um fantasma, e Vance intercalou:
— Sei a inquietação que decorre de demasiada atividade inútil, com todos os seus múltiplos desejos.
— A luta sem objetivo! Sim, sim. A luta para se enquadrar em um molde que é diferente daquele que a gente tinha antes. Essa é a maldição derradeira. O instinto de alcançar... Bolas! Nós só descobrimos que não vale a pena quando já fomos devorados por ele. Fui atingido por instintos diferentes, em épocas diversas. Era tudo mentira... Mentiras astutas e corrosivas. E nós pensamos que podemos submeter nossos instintos ao domínio da mente. A mente! — E ele riu baixinho. — O único valor da mente é alcançado quando ela nos ensina que ela é inútil.
O homem moveu-se um pouco, como se abalado por um ligeiro espasmo involuntário.
— Nem podemos atribuir nossos instintos destorcidos à memória racial. Não há raças: existe apenas uma caudal enorme e imunda de vida, que flui do limo primitivo. A sensualidade abortiva da vida animal primitiva jaz adormecida dentro de nós. Se a suprimimos, ela se manifesta em forma de crueldade e de sadismos: se a libertamos, ela produz perversões e loucura. Não há solução... Algumas vezes, o homem se esforça para combater esses horrores libertando um ideal íntimo da sua concepção abstrata, através de símbolos visuais. Os próprios símbolos não passam de abstrações. — Veio o tom monótono e mordaz de Owen. — E também a Lógica não pode ajudar. A Lógica não leva nenhum homem à verdade: conduz apenas a decepções e à loucura. A apoteose da Lógica: anjos dançando na ponta de uma agulha... Mas por que sequer me preocupo, nesta sombra entre dois infinitos? Só posso dar uma resposta: a ansiedade obscena de comer bem e de viver de maneira confortável... que, por sua vez, são instintos e, portanto, mentiras.
— Talvez isso seja mais profundo do que simples instinto — sugeriu Vance. — Pode ser uma ansiedade trazida para cá quando a sombra da vida caiu na senda do infinito pela primeira vez... A ansiedade cósmica de fazer um jogo com a vida, a fim de fugir às tensões e às pressões do que é finito.
Eu sabia que Vance tinha uma finalidade muito definida em mente, embora, para mim, obscura, enquanto falava com este homem estranho e nada natural diante dele.
— Aqui, neste mundo de sonhos esgotados — falou Owen, confusamente — nenhuma forma de ação é melhor do que outra; uma pessoa ou uma coisa não é mais importante do que qualquer outra pessoa ou outra coisa. Todas as coisas opostas são passíveis de trocas entre si: criação ou destruição, serenidade ou tortura. No entanto, a vaidade goteja através da crosta sarnenta da minha metafísica congelada. Bolas! — E encolheu o corpo e olhou fixamente para Vance. — Aqui não existem nem tempo nem existência.
— É como o senhor diz. Na verdade, o infinito não é divisível.
— Mas há a possibilidade terrificante de que possamos acrescentar algum fator ao tempo diante de nós. E, se o fizermos, esse fator continuará eternamente... É preciso não se jogar nenhuma pedrinha. Temos de atravessar completamente essa sombra.
Owen fechara os olhos e Vance o examinava sem expressão, Depois, disse, em tom de voz quase consolador:
— Isto é sabedoria... Sim, limpeza de espírito.
Owen fez um aceno afirmativo de cabeça, muito langoroso.
— Amanhã à noite, vou partir de navio para a América do Sul. Calor... O mar... Um entorpecente, talvez. Estarei ocupado amanhã o dia inteiro. Coisas a fazer: contas, uma limpeza de casa, cuidar de certas coisas... Não quero ondas de superfície da água a me seguirem o tempo todo. Limpeza... Além... O senhor compreende?
— Sim. — Vance não baixou o olhar. — Compreendo. É preciso cessar aqui, para que não haja um castigo dos céus...
Os olhos do homem abriram-se lentamente. Endireitou o corpo e acendeu outro cigarro. Sua disposição estranha se dissipou, e outra expressão lhe apareceu nos olhos. Durante toda essa discussão, ele não erguera a voz nem uma vez sequer; nem houvera mais do que uma leve inflexão nas palavras. No entanto, eu sentia como se estivesse ouvindo uma tirada apaixonada.
Agora, Owen começou a falar dos seus velhos livros, dos seus dias em Cambridge, da sua juventude cheia de cultura e de ambição, dos estudos de música, feitos na sua infância. Era bem versado em conhecimentos das civilizações antigas e, para meu espanto, entendia, com paixão e fanatismo, do Livro dos Mortos Tibetano. Mas, por estranho que pareça, falava sempre em si mesmo com uma impressão de dualismo, como se estivesse falando de outra pessoa. Havia uma sensível cortesia no homem,
mas, não sei por que, ele me inspirava um sentimento próximo do medo. Havia sempre uma aura invisível ao seu redor, como a de uma fera primitiva e fumegante. Fiquei preso ao fascínio diabólico daquele homem, e senti uma inconfundível sensação de alívio quando Vance se levantou para ir embora.
Quando nos separamos dele, à porta, o homem disse a Vance, com uma indiferença aparente:
— Contado, pesado, dividido... O senhor me prometeu. Vance enfrentou seu olhar, diretamente, por um breve instante.
— Obrigado — disse Owen, sem fôlego, curvando-se profundamente.

CAPITULO XV
UMA ACUSAÇÃO PAVOROSA
(Terça-feira, 21 de maio — 9:30 horas)

— Sim, Markham, completamente louco. — Foi assim que Vance resumiu, enquanto acabávamos de fazer a refeição matinal no seu apartamento, na manhã seguinte. — Totalmente maluco. Um louco venenoso, como algum bicho rasteiro e traiçoeiro. O seu fim está chegando rapidamente, e um medo hediondo lhe está destruindo o cérebro. A súbita certeza da morte lhe cortou a ligação com a sanidade mental. Owen está procurando uma toca, onde se esconder para fugir ao inevitável. Mas ele não tem onde se esconder: apenas o sepulcro fétido que seu cérebro destorcido construiu. Essa é a única realidade que lhe resta. Uma criatura vil, que deveria ser esmagada como nós destruímos um germe mortífero. Um leproso mental, moral e espiritual. Sujo, poluído. E eu... Eu tenho de salvá-lo dos horrores que o infinito contém para ele.
— Você deve ter tido uma noite agradável em companhia dele — comentou Markham, com aversão.
O sargento Heath, tendo chegado, em resposta a chamados telefônicos repetidos feitos por Vance, ouvira atentamente a conversa. Mas ele parecia estar recolhido em si mesmo, quando, alguns instantes depois, Gracie Allen entrou saltitando alegremente na biblioteca. Carregava uma pequena caixa de madeira, apertada de encontro ao corpo. E atrás dela vinha George Burns, desconfiado e hesitante. Gracie explicou as coisas, com a habitual vivacidade.
— Eu tinha de vir, Senhor Vance, para lhe mostrar as minhas pistas. E George tinha acabado de chegar para falar comigo. Por isto, eu o trouxe. Acho que ele deve ficar sabendo como nós nos damos bem, não é, Senhor Vance? E a mamãe também chegará aqui dentro de poucos minutos. Ela disse que deseja falar com o senhor, embora eu não possa imaginar qual o motivo.
A jovem fez uma pausa suficiente para Vance apresentá-la a Markham. Aceitou-o sem a desconfiança dedicada antes a Heath; e Markham ficou ao mesmo tempo fascinado e divertido pela tagarelice viva e leve da moça.
— E agora, Senhor Vance, — prosseguiu ela, indo até à escrivaninha e tirando a capa rígida da pequena caixa que ela trouxera — tenho de lhe mostrar as minhas pistas. Mas, na verdade, não creio que sirvam para nada, porque eu não sabia exatamente onde as devia procurar. Em todo caso...
E começou a exibir os seus preciosos tesouros. Vance fingiu estar profundamente interessado, para agradar à jovem. Markham, intrigado e sorridente, avançou alguns passos; e Burns ficou de pé, pouco à vontade, do outro lado da escrivaninha. Heath, aborrecido pela interrupção frívola, acendeu um charuto, caceteado, e caminhou até à janela.
— Veja, Senhor Vance, aqui está o tamanho exato de uma pegada humana. — Gracie Allen tirou uma tira de papei onde havia alguns números escritos. — A pegada mede vinte e um centímetros de comprimento, e o homem da sapataria disse que esse era o comprimento de um sapato número trinta e cinco, a não ser que fosse um sapato inglês, e que nesse caso seria o de um sapato trinta e quatro. Acho que ele era grego, pois era um dos garçons lá do Domdaniel. Fui até lá, porque foi lá que o senhor disse que o morto foi encontrado. E esperei muito tempo para que alguém viesse à cozinha e deixasse uma pegada. E então, quando ninguém estava olhando, eu medi a pegada...
Ela colocou a folha de papel de lado.
— E agora, aqui está um pedaço de bloco que tirei da escrivaninha do Senhor Puttle, ontem, na hora do almoço, quando ele não se achava lá. E levei a um espelho, mas consegui ler apenas ”4 d. S. Sá.”, como tornei a escrever aqui. E tudo isso significa apenas: ”quatro dúzias de caixas de sabonete de sândalo...”

Gracie extraiu da bolsa mais dois ou três objetos inúteis, que explicou, com pormenores, de forma divertida, enquanto os colocava ao lado dos outros.
Vance não a interrompeu durante essa exibição divertida mas patética. Mas Burns, que estava ficando nervoso e exasperado com a desnecessária perda de tempo da moça, finalmente pareceu perder a paciência e desabafou:
— Por que não mostra a estes senhores as amêndoas que traz aí e acaba logo com esta coisa tola?
— Não tenho nenhuma amêndoa, George. Resta só uma coisa na caixa, e isso não tem nada a ver com o caso. Eu estava treinando quando arranjei aquela pista...
— Mas alguma coisa me cheira como amêndoa amarga. De repente, Vance ficou seriamente interessado.
— Que é que ainda tem na caixa, Senhorita Allen? — indagou ele.
A jovem riu baixinho, ao tirar a última pista: um envelope ligeiramente volumoso e totalmente selado.
— É apenas um cigarro velho — falou ela. — E é uma boa brincadeira com o George. Ele está sempre sentindo os cheiros mais esquisitos. Acho que não pode evitar fazer isso.
Rasgou o canto do envelope e deixou um cigarro achatado e parcialmente partido deslizar para sua mão. À primeira vista, eu teria dito que aquele cigarro nunca fora aceso, mas depois notei-lhe a ponta carbonizada, como se tivessem começado a fumá-lo. Vance pegou o cigarro e levou-o ao nariz, com aversão.
— Aqui está o seu cheiro de amêndoa amarga, Senhor Burns. — Seus olhos estavam focalizados em alguma coisa no espaço, longe dali. Depois, tornou a colocar o cigarro em um dos seus envelopes e deixou-o em cima da lareira.
— Onde foi que encontrou esse cigarro, Senhorita Allen? — indagou Vance.
A moça tornou a dar uma risadinha musical.
— Ora, foi esse cigarro que fez um buraco no meu vestido, no sábado passado, em Riverdale. Lembra-se? E então, quando o senhor me falou da importância dos cigarros, resolvi ir lá imediatamente. Desejava tentar encontrar o cigarro que foi jogado em mim. Na verdade, eu não acreditava que fosse o senhor que o houvesse jogado... Tive muita dificuldade em encontrá-lo, porque eu o pisara e ele se achava meio coberto.
Em todo caso, não descobri nada ao encontrá-lo, e fiquei novamente fula de raiva. Mas achei que seria melhor guardá-lo, pois era a primeira pista que eu obtivera, embora na verdade ele não tivesse nada a ver com o caso em que eu o estava ajudando.
— Minha querida menina — disse Vance, lentamente. — Talvez ele não tenha nada a ver com o nosso caso, mas pode ter relação com algum outro caso.
— Oh, não seria maravilhoso se tivesse? — exclamou a moça, encantada. — Assim, teríamos dois casos, e eu seria realmente um detetive, não é?
Markham avançara.
— Que foi que você quis dizer com essa última observavão, Vance?
— Talvez tenha havido cianeto nesse cigarro. — Ele olhou para Markham, de forma significativa. — Quanto à possível ação desta droga, bem como ao possível modo de administrá-la, tenho apenas de me referir às observações feitas por Doremus, na noite de domingo.
Markham fez um gesto de impaciência.
— Por Deus, Vance! Sua atitude para com este caso torna-se mais louca a cada instante que passa.
O detetive ignorou o comentário do outro e prosseguiu.
— Supondo acertada a minha suposição de que este agarro é realmente a arma mortífera que estamos ansiosamente procurando, vale lembrar que muitas outras coisas, igualmente fantásticas, ligadas ao caso, tornaram-se racionais. Assim, poderíamos ligar vários dos nossos dados desconhecidos e de pesadelo e assim estabelecer uma teoria que — pelo menos dentro das suas próprias limitações — brilharia, cheia de sentido. A saber: já conseguimos explicar o fato de Hennessey não ter conseguido ver a vítima entrar no escritório, na noite de sábado. Pudemos limitar o conhecimento da porta secreta a Mirche e a mais uma pessoa íntima sua — o que, como você deve admitir, seria lógico. Poderíamos supor que o crime tenha sido cometido em outro lugar, que não o escritório de Mirche — em Riverdale, para ser específico — e que o cadáver tenha sido levado para o escritório por algum motivo definido. Tal suposição poderia fornecer uma explicação da maneira peculiar como a polícia foi avisada; e poderia também esclarecer a dificuldade que o Dr. Mendel teve em determinar a hora da morte. Pois, se o crime tivesse acontecido no escritório, não o poderia ter sido antes das dez horas, uma vez que Gracie Allen esteve lá por volta daquela hora. Enquanto que, se o crime tivesse acontecido em outro lugar qualquer, poderia ter sido praticado a qualquer hora, num período de dez horas antes de o cadáver ser encontrado. Vance caminhou até junto à lareira e tamborilou, pensativamente, no envelope que continha o cigarro.
— Se o cigarro que está no envelope tiver mesmo estado impregnado de veneno, e se tivesse sido usado, como Doremus disse, que tal recurso pode ser usado, então estaríamos diante de uma coincidência completamente impossível. Isto é: teríamos o fato de que, em duas partes separadas da cidade, duas pessoas teriam sido assassinadas pelo mesmo sistema misterioso, no mesmo dia. E, além disso, temos um só cadáver.
Markham fez um aceno afirmativo de cabeça, lentamente, sem entusiasmo.
— É remotamente capcioso. Mas...
— Conheço suas objeções, Markham — interrompeu Vance. — E elas são também as que eu tenho. Todas as minhas suposições caprichosas podem não passar de simples fantasias... Mas são minhas e, no momento, eu as adoro.
Markham começou a falar, mas Vance prosseguiu.
— Deixe-me falar mais um instante, antes que você rne ponha uma camisa-de-força... Contemplo, em um sonho, as pastagens refrescantes a que minha estranha suposição poderia levar. Poderia até ligar os fatores aborrecidos que me têm roubado o doce sono... A pronta confissão de Mirche com relação à existência da sua porta secreta; o ódio que vi de relance nos olhos de Dixie Del Marr; a saga mística dos Tofanas; e a presença do ”Coruja” no Domdaniel, na noite de sábado. Poderia explicar as implicações sutis que há no nome do restaurante. Poderia até justificar a hipótese insistente, formulada pelo sargento, sobre a existência de uma quadrilha de criminosos. Poderia, também, esclarecer a presença da nômade cigarreira com cheiro de perfume de narciso. E há outras coisas, que agora me deixam confuso, mas que poderiam juntar-se em um todo consistente... Céus, Markham! Isso tem as possibilidades mais espantosas. Deixe-me com o meu sonho tão doce. Afinal, forma-se um quadro no meu cérebro torturado, e é o primeiro desenho coerente que invadiu minha imaginação febril desde a véspera de sábado. Baseado na singular premissa de que o cigarro estivesse convenientemente envenenado, posso forçar um punhado de elementos, até agora recalcitrantes, a entrar na linha, ou, melhor, eles irão entrando sozinhos na linha, como as partículas coloridas de um caleidoscópio.
— Vance, pelo amor de Deus! Você está apenas criando uma nova fantasia absurda, para explicar a sua primeira fantasia. — O severo tom de voz de Markham logo fez Vance voltar a si.
— Sim, tem toda razão — falou ele. — Naturalmente, mandarei o cigarro imediatamente para ser analisado por Doremus. E talvez ele não revele nada. Você é quem manda. Francamente, não compreendo como o cheiro poderia ter ficado em um cigarro tanto tempo, a não ser que um dos venenos misturados tenha atuado como fixador e tivesse retardado a volatilização... Mas, Markham, eu quero — eu preciso — do cadáver de um homem que foi assassinado em Riverdale no sábado passado.
Gracie Allen estivera olhando de um para outro dos homens, confusa e tonta.
— Oh, agora eu aposto em que eu compreendo! — exclamou ela, exultante. — O senhor pensa mesmo que o cigano poderia ter matado alguém... Mas eu nunca ouvi dizer que alguém morresse só pelo fato de fumar um cigarro.
— Não é um cigarro comum, minha cara Gracie -— explicou Vance, com paciência. — É possível que o cigarro em questão tenha sido imerso em algum veneno terrível.
— Ora, isso é horrível, se for mesmo verdade — disse ela, pensativa. — E logo em Riverdale, com tantos outros lugares! Lá é tão lindo e tão sossegado...
Seus olhos começaram a arregalar-se, e finalmente ela exclamou:
— Mas aposto em que sei quem era o morto! Aposto!
— Ora, mas de que você está falando? — Vance riu e olhou para a jovem, com um olhar intrigado. — Quem você pensa que foi?
Gracie olhou para Vance, com olhar perscrutador, durante alguns instantes, e depois disse:
— Ora, foi Benny, o Abutre!
O sargento Heath ficou de repente rígido, com a boca aberta.
— Onde foi que você ouviu esse nome, moça? — disse ele, quase gritando.
— Ora, ora... — gaguejou ela, surpreendida pela veemência do sargento. — O Senhor Vance me contou tudo a respeito dele.
— O Senhor Vance contou a você... ?
- Claro que contou! — disse a jovem, em tom de desafio. É assim que agora eu sei que Benny, o Abutre, foi morto em Riverdale.
- Morto em Riverdale? — e o sargento pareceu confuso. - E talvez você saiba, também, quem foi que o matou, não é?
Claro que sei... Foi o próprio Senhor Vance!


CAPITULO XVI
OUTRO CHOQUE
(Terça-feira, 21 de maio — 10:30 horas)


A espantosa acusação caiu como uma bomba entre os presentes, que ficaram todos paralisados. Passaram-se vários momentos antes que me pudesse controlar o bastante para ver a lógica que havia por trás daquilo. A declaração da moça era o desfecho natural da história que Vance inventara para ela na tarde em que nós a conhecemos.
Markham, que sabia apenas de poucos pormenores do rústico encontro e que não sabia de nada da história inventada por Vance, deve ter-se lembrado imediatamente da conversa tida com o detetive no Bellwood Country Club, na qual Vance exprimira suas idéias quanto à forma de eliminarem Pellinzi.
Heath, também, atônito pela comunicação da moça, deve ter-se lembrado do que houvera no jantar de sexta-feira; e tinha muita razão para supor que ele possuía alguma suspeita nevoenta a respeito da culpa de Vance.
O próprio Vance ficou temporariamente aturdido. No momento, sua cabeça devia estar ocupada com assuntos de maior monta, que suplantavam totalmente o episódio de Riverdale. Mas, agora, de repente ele compreendeu que a acusação de Gracie Allen adquiria foros de plausibilidade.
Markham aproximou-se da moça, sério e com a testa franzida.

— A acusação que acaba de fazer é muito grave, Senhorita Allen — falou ele. Seu tom de voz grave indicava as dúvidas intangíveis que havia no íntimo da sua mente.
— Caramba, Markham! — interrompeu Vance, muito aborrecido. — Faça o favor de olhar ao seu redor. Não estamos em um tribunal.
— Sei exatamente onde estou — retorquiu Markham, obstinadamente. — Deixe-me cuidar deste assunto. Ele é cheio de dinamite. — E virou-se para a moça. — Diga-me, por que você afirma que foi o Senhor Vance quem matou Benny, o Abutre?
— Ora, eu não disse isso... Isto é, eu não inventei isso. Apenas repeti o que ouvi.
Embora fosse evidente que Gracie não considerava a situação séria, era óbvio que a maneira grave de falar de Markham a deixara perturbada.
— Foi o Senhor Vance quem o disse. Ele falou isso quando o conheci em Riverdale, ao lado da estrada que segue ao longo de um grande muro branco, na tarde da sexta-feira passada, quando eu estava com... isto é, quando eu fui lá com...
Markham, notando o nervosismo da moça, sorriu, para tranqüilizá-la, e começou a falar de outra maneira.
— Não tem nenhum motivo para se preocupar, Senhorita Allen — disse ele. — Basta que me conte toda a história, exatamente como aconteceu.
— Oh! — exclamou ela, enquanto uma nota mais alegre lhe voltava à voz. — Por que não me disse logo que era isso que o senhor queria? Está bem, vou-lhe contar. Bem, fui a Riverdale na tarde do sábado passado... Nós não trabalhamos na fábrica aos sábados, pois o Senhor Doolson é muito bondoso nesse ponto. Fui até lá com o jovem Puttle, que é um dos nossos vendedores. Mas não creio que ele seja tão bom vendedor quanto alguns dos outros da In-O-Scent. Que é que você acha, George?
Ela virou-se um instante para Burns, mas não esperou resposta.
— Bem... Em todo caso, George queria que eu fosse com ele a outro lugar. Mas achei que seria melhor ir a Riverdale com Puttle, principalmente porque ele ia-me levar para jantar naquela noite. E achei que podia ficar zangado se eu não fosse com ele a Riverdale, e assim não me levaria para jantar. Por isso, não fui com George, mas fui a Riverdale com Puttle. Bem, nós chegamos a Riverdale, lugar aonde eu sempre vou, porque acho que aquilo lá é lindo. Mas é uma caminhada muito longa da Broadway, e então o Senhor Puttle foi procurar um convento de freiras...
— Por favor, Senhorita Allen — interrompeu Markham, com admirável controle. — Conte-me como foi que a senhorita encontrou o Senhor Vance e o que ele lhe disse.
— Oh, eu já ia chegar lá... O Senhor Vance apareceu depois de saltar o muro. E eu lhe perguntei o que ele tinha andado fazendo. Declarou que estivera matando um homem. E eu perguntei o nome do homem. Ele disse que era Benny, o Abutre.
Markham suspirou, impaciente.
— Pode-me dizer mais algumas coisas, Senhorita Allen, a respeito desse incidente?
— Pois não. Como eu já lhe disse, o Senhor Vance saltou o muro e caiu, pouco atrás do lugar onde eu estava sentada... Não, desculpe, eu não estava sentada, porque alguém acabara de jogar um cigarro em mim... esse cigarro que se acha agora cm cima da prateleira da lareira... Só que ele estava aceso e queimava ... E eu me achava de pé, sacudindo meu vestido, quando vi o Senhor Vance cair. Ele parecia estar com muita pressa, também. Eu lhe falei a respeito do cigarro e ele disse que talvez ele mesmo o tivesse jogado. Mas eu achava que o cigarro fora jogado de um carro grande que passara velozmente pelo ponto onde me encontrava. Seja como for, o Senhor Vance disse-me para ir à loja buscar um vestido novo, que ele pagaria, pois lamentava muito o ocorrido. E então ele sentou-se e fumou mais cigarros.
Gracie respirou fundo e prosseguiu apressadamente.
— E foi então que perguntei a ele o que estava fazendo do outro lado do muro, e ele disse que acabara de matar um facínora chamado Benny, o Abutre. Disse que fez isso porque o tal Senhor Abutre fugira da cadeia e pretendia matar um amigo dele... isto é, um amigo do Senhor Vance. Ele se apresentava com as roupas em completo desalinho e o chapéu amassado e virado de fado, e realmente tinha toda aparência de quem acabara de matar alguém. Até eu fiquei com medo dele, algum tempo. Mas venci o medo...
Ela parou um instante, a fim de contemplar Vance atentamente, como se estivesse fazendo uma comparação de roupas.
— Agora, vejamos... Onde é que eu estava? Ah, sim... Ele estava afastando-se de carreira, muito apressado, porque disse que não queria que ninguém soubesse que ele matara o tal homem. Mas ele me contou. Acho que viu logo que podia confiar em mim. Mas não sei por que motivo estava preocupado, porque ele disse que achava que agira direito, para salvar seu amigo do perigo. Em todo caso, ele me pediu para não contar a ninguém, e eu prometi. Mas agora ele acaba de me pedir para contar o que eu queria dizer a respeito do morto de Riverdale, e por isso acho que ele quis dizer que eu não precisava mais guardar sigilo. E é por isso que lhes estou contando.
O espanto de Markham foi aumentando, à medida que a jovem falava em disparada. Quando ela terminou a narrativa e olhou ao redor, à procura de aprovação, o procurador distrital virou-se para Vance.
— Céus, Vance! Essa história é realmente verdadeira?
— Infelizmente, é — confessou Vance, dando de ombros.
— Mas por quê... Por que você lhe contou tal história?
— Talvez por causa do tempo suave. Estamos na primavera, você sabe...
— Mas — perguntou a moça. — O senhor não vai prendê-lo?
— Não, eu... — E Markham ficou indeciso.
— Por que não? — insistiu a jovem. — Aposto que sei o motivo! Aposto que o senhor pensa que não se pode prender um detetive. Eu também pensava assim, antes. Mas no domingo perguntei a um policial, e ele me disse que claro que se pode prender um detetive.
— Sim, pode-se prender um detetive — sorriu Markham — quando se sabe que ele infringiu a lei. Mas tenho sérias dúvidas de que o Senhor Vance tenha realmente matado um homem.
— Mas ele mesmo afirmou isso. Do contrário, como iria ele saber? Eu também não o julgava culpado, a princípio. Pensei que ele apenas estava-me contando uma história romântica porque eu gosto muito de histórias românticas! Mas, depois, o Senhor Vance mesmo declarou — aqui nesta mesma sala, e todos ouviram — que no sábado passado mataram um homem em Riverdale com o cigarro. E ele falou muito sério... Notei isso, pela maneira como ele agiu e falou. Não foi, de forma alguma, como se ele estivesse inventando outra história romântica...
Gracie parou de chofre e olhou para o confuso Senhor Burns. A julgar pela sua expressão, outra idéia lhe surgira na cabeça. Ela tornou a se virar para Markham, com renovada seriedade.
— Mas o senhor devia prender o Senhor Vance — disse ela, em tom decisivo. — Mesmo que ele não seja culpado. Acho que, na verdade, não creio que ele seja mesmo culpado. Ele tem sido tão bonzinho para mim... Mas, assim mesmo, acho que o senhor devia prendê-lo. O que eu quero dizer é que o senhor pode fingir que acredita que ele matou o tal homem em Riverdale. E assim o George ficaria livre de acusações. E o Senhor Vance não se importaria nem um pouco... Sei que ele não se importaria. Não é, Senhor Vance?
— Em nome dos céus, a que ponto você quer chegar agora? — indagou Markham.
Vance sorriu.
— Sei exatamente o que ela quer dizer, Markham. — E virou-se para Gracie. — Mas, na verdade, minha prisão não ajudaria o jovem Burns.
— Oh, ajudaria, sim — insistiu Gracie. — Sei que ajudaria. Porque há alguém seguindo-o para onde ele vá. E George diz que deve ser algum detetive. E todos os policiais que rondam o hotel de George o olham de uma forma esquisita. Aposto que deve haver muita gente que pensa que George é culpado... porque a polícia foi à casa e o levou de tintureiro, e tudo o mais. George me contou tudo, e isso o deixa terrivelmente preocupado. George já não é o mesmo de antes. Não pode dormir muito bem e perdeu a capacidade de sentir essências. Portanto, como pode trabalhar? Não imagina o quanto isso é horrível, Senhor Vance. Mas, se o senhor fosse preso, então todos pensariam que o senhor era o culpado e deixariam de importunar o George. E ele poderia voltar ao trabalho e ser como era antes. E então, depois de algum tempo, o verdadeiro culpado seria encontrado e tudo acabaria bem para todos.
Gracie parou um instante, a fim de recuperar o fôlego, e em seguida tornou a disparar, com feroz determinação.
— E é por isso que acho que o senhor deveria prender o Senhor Vance. E, se o senhor não o fizer, chamarei os jornais e lhes contarei tudo que o Senhor Vance disse e tudo a respeito de Benny, o Abutre, e direi que ele não foi morto no Domdaniel, e sim em outro lugar qualquer. E aposto que eles publicarão essa reportagem. Principalmente porque o Senhor Puttle estava de pé atrás da árvore, quando o Senhor Vance estava falando comigo, e ele ouviu tudo. E, se eles não acreditarem em mim, terão de acreditar em mim e no Senhor Puttle juntos. E tenho certeza de que assim publicarão a história. E todos ficarão tão interessados no fato de um homem tão famoso quanto o Senhor Vance ser culpado de homicídio, que não se importarão mais com George. Não compreendem o que quero dizer?
Havia a resolução zelosa de uma cruzada nos olhos da moça, e suas frases desordenadas achavam-se cheias de paixão vibrante para ajudar o homem amado.
— Céus, chefe! — gritou Heath. — O que ela diz é dinamite. Bem que o senhor disse!
Vance moveu-se sonolento na sua cadeira e olhou para Heath com um sorriso irônico.
— Está vendo em que encrenca você e o fato de Tracy ter seguido o Senhor Burns me deixaram, sargento?
— Claro que estou! — E Heath deu um passo na direção da Senhorita Allen. A perturbação dele era quase cômica. — Escute aqui, moça — disse ele, furioso. — Ouça-me um instante. Você está totalmente enganada. Confundiu tudo. Não sabemos que tenha havido um homicídio em Riverdale. Não sabemos de nada a esse respeito, entende? Só sabemos que apareceu um morto no restaurante. E ele não era o Abutre, e sim seu irmão...
O sargento parou de chofre, com um tremor, e ficou todo ruborizado.
— Mil raios! Desculpe-me, Senhor Vance. Sinto muito. Vance levantou-se depressa e foi postar-se ao lado de Gracie. Esta achava-se com as mãos no rosto, com um ataque de riso incontrolável.
— Meu irmão? Meu irmão? — E depois, com a mesma rapidez com que começara a rir, ficou séria. — O senhor não me pode enganar assim, sargento.
Vance recuou.
— Diga-me — e uma nota subitamente nova lhe apareceu na voz. — Que quer dizer com isso, Senhorita Allen?
Meu irmão está na cadeia!


CAPITULO XVII
IMPRESSÕES DIGITAIS
(Terça-feira, 21 de maio — 11:30 horas)

Foi neste momento que a Senhora Allen, serena e discreta, foi introduzida na sala por Currie.
Vance virou-se depressa e lhe deu as boas-vindas com uma breve saudação.
— É verdade, Senhora Allen, — perguntou ele — que seu filho não está morto?
— Sim, Senhor Vance, é verdade. Foi por isso que vim até aqui. Vance acenou a cabeça, com um sorriso compreensivo, e, guiando a senhora até uma cadeira, pediu-lhe explicações mais completas.
— Acontece, Senhor Vance, — começou ela, em voz sem inflexão que Philip foi preso perto de Hackensack, naquela noite terrível, depois de deixar o emprego no restaurante. Ele se achava com outro rapaz em um automóvel, e um policial entrou e disse ao outro rapaz — que se chama Stanley Smith e que o amigo de Philip — para seguir para o distrito policial. Acusou-os de roubarem o carro, e então, quando estavam a caminho da cadeia, o policial lhes disse que era o mesmo carro que acabara de matar um ancião e de fugir. Foi um desses atropelamentos em que a vítima morre e o motorista foge. E isso deixou Philip muito assustado, pois ele não sabia o que o tal Stanley podia ter feito antes do encontro dos dois. E então, quando o carro parou a fim de esperar um sinal abrir, Philip saltou e fugiu. O policial atirou contra ele, mas meu filho não foi agarrado.
Vance fez um aceno afirmativo de cabeça.
— Depois, Philip telefonou para mim. Notei que estava muito assustado, e disse que a polícia estava à sua procura e que ele ia-se esconder em certo lugar. Oh, fiquei tão preocupada, Senhor Vance, com o meu pobre e infeliz filho tão assustado, e escondido da polícia... O senhor sabe, um fugitivo da justiça. E então, quando o senhor veio, naquela noite, pensei que estava à procura dele. Mas, quando o senhor me disse que meu filho estava morto, pode imaginar...
Heath saltou para diante.
— Mas a senhora disse que era o seu filho que estava lá no necrotério! — Heath lhe atirou as palavras, como uma chicotada.
— Não, eu não disse, senhor policial — disse a mulher, com simplicidade.
— Não disse, uma conversa fiada! — gritou Heath.
— Sargento! — E Vance ergueu a mão. — A Senhora Allen tem razão... Se você relembrar, verá que ela não disse, nenhuma vez, que o morto era o filho dela. Receio que fomos nós que dissemos isto por ela, porque pensávamos que fosse verdade. — E sorriu, melancólico.
— Mas ela desmaiou, não é? — insistiu Heath.
— Desmaiei de alegria, senhor policial, — explicou a mulher — quando vi que não era o meu Philip.
Mas Heath não se deu por satisfeito.
— Mas... Mas a senhora não disse que o morto não era seu filho. E nos deixou pensar...
Vance teve de contê-lo novamente.
— Acho que entendo perfeitamente por que a Senhora Allen nos deixou pensar que o morto era seu filho. Ela sabia que nós representávamos a polícia, e sabia, também, que seu filho estava fugido da polícia. E, ao notar que pensávamos que seu filho estava morto, ficou muito contente de nos deixar com essa idéia, imaginando que assim poria fim à perseguição de Philip... Não é verdade, Senhora Allen?
— Sim, Senhor Vance, — a mulher confirmou, calmamente, de cabeça. — E, naturalmente, eu não queria que os senhores contassem a Gracie que Philip estava morto, pois então eu teria de lhe contar que ele estava escondido da polícia, e isso a teria tornado infeliz. Mas achei que dentro de poucos dias tudo se esclareceria, e então eu contaria aos senhores. Em todo caso, pensei que dentro em breve vocês descobririam que o morto não era o meu filho.
A mulher ergueu o olhar, com um leve sorriso triste.
— E tudo saiu direito, como eu esperava e rezava para sair, e como eu sabia que sairia.
— E estamos todos muito felizes por ter saído assim — falou Vance. — Mas diga-nos como foi que tudo acabou direito.
— Ora, hoje cedo — recomeçou a Senhora Allen — Stanley Smith chegou à minha casa para perguntar por Philip. E quando eu lhe disse que Philip continuava escondido da polícia, ele informou que fora tudo um engano, e como seu tio foi à polícia e provou que o carro não fora roubado, e que fora outro carro que atropelara e matara o tal ancião... Portanto, contei imediatamente tudo a Gracie e fui levar a notícia maravilhosa a meu filho e trazê-lo de volta para casa...
— Então, como foi, — prosseguiu o sargento, evidentemente furioso — se a senhora contou tudo à sua filha, que ela acaba de nos dizer que seu irmão estava na cadeia?
A Senhora Allen sorriu timidamente.
— Está, sim. Na noite de sábado fazia muito calor e por isso Philip deixara seu paletó no carro. Foi assim que a polícia ficou sabendo quem ele era, pois ele esqueceu o cheque do pagamento no bolso do paletó. Por isso, ele foi à cadeia em Hackeasack, hoje cedo, buscar o paletó, e vai chegar a tempo de almoçar.
Vance riu, a contragosto, e dirigiu um olhar maroto a Gracie Allen.
— E garanto que era um paletó preto.
— Oh, Senhor Vance! — exclamou a moça, extasiada. — Que detetive maravilhoso o senhor é! Como pôde ver a cor do paletó do Philip, do outro lado do rio?
Vance riu baixinho e depois de repente ficou sério.
— E, agora, devo pedir a todos vocês para irem — falou ele — e se preparar para a volta de Philip à casa materna.
Nessa altura, Markham interveio.
— Mas e as declarações que a senhorita pretendia fazer aos jornais, Gracie? Eu não poderia permitir uma coisa dessas.
George Burns, com um sorriso largo no rosto, respondeu ao procurador distrital.

— Gracie não fará isso, Senhor Markham. É que eu agora já estou completamente feliz e vou voltar para o trabalho amanhã cedo. Na verdade, eu não estava preocupado com a possibilidade de ser culpado ou de que alguém me seguisse. Mas eu tinha de contar isso a Gracie e ao Senhor Doolson, porque o senhor me fizera prometer que não diria uma palavra a respeito de Philip. E era o fato de ele estar morto, e de Gracie não saber, e tudo o mais, que me fazia sentir tão mal, não me deixando dormir nem trabalhar.
— Não é maravilhoso? — E Gracie Allen bateu palmas, e depois olhou astutamente para Vance. — Eu não queria realmente que o senhor fosse para a cadeia, Senhor Vance... Era só para ajudar George. Por isso, dei ao senhor minha palavra de que não contaria nada a ninguém a respeito da sua confissão. Ê o senhor sabe que eu sempre cumpro as promessas que faço.
Quando a Senhora Allen ia-se retirando em companhia da filha e de Burns, dirigiu a Vance um olhar de acanhada desculpa.
— Espero, senhor, — falou ela — que não pense que agi mal enganando-o a respeito daquele pobre morto.
Vance pegou a mão da velhinha.
— Sem dúvida, não penso nada disso. A senhora agiu como qualquer outra mãe teria agido, se ela tivesse sido tão inteligente e tivesse um raciocínio tão vivo quanto o seu.
Beijou-lhe a mão e depois fechou a porta atrás dos três.
— E agora, sargento, — toda a sua maneira de ser mudou — mãos à obra! Chame Tracy aqui e depois mande identificar o morto pelas impressões digitais.
— Não me precisa dizer para por mãos à obra, chefe — retrucou Heath, correndo para a janela. Fez acenos frenéticos para o homem que se achava do outro lado da rua. Depois, voltou para dentro do aposento e, a caminho do telefone, parou de repente, como se um pensamento súbito o houvesse imobilizado.
— Ei, Senhor Vance — perguntou ele. — Por que acha que nosso arquivo tem as impressões digitais do morto?
Vance lançou-lhe um olhar perscrutador e significativo.
— Talvez você vá ter uma grande surpresa, sargento.
— Mãe de Deus! — disse Heath, em tom de espanto, enquanto corria para o telefone, que ficava no corredor.
Enquanto o sargento falava com a polícia, tão afobado que quase não conseguia se fazer entender, Tracy entrou. Vance mandou-o logo levar o envelope fechado, que se achava em cima da lareira, ao Dr. Doremus, para ser analisado.
Alguns minutos depois, Heath voltou para a biblioteca.
— Pronto, os rapazes já começaram a trabalhar! — E esfregou as mãos, energicamente. — Tirarão logo as impressões digitais do homem e procurarão nos arquivos. E, se eles não me telefonarem dentro de uma hora, irei até lá e lhes torcerei os pescoços grossos! — Deixou-se cair em uma cadeira, como se esgotado pelo simples pensamento da rapidez que ele exigira.
Vance telefonou em seguida a Doremus, explicando que era muito importante um relatório imediato sobre o cigarro.
Era quase meio-dia, e nós conversamos sobre coisas banais durante mais uma hora. Havia tensão na atmosfera, e a conversa foi como uma capa jogada propositadamente sobre os pensamentos íntimos desses três homens diferentes.
Quando o relógio que havia em cima da lareira apontou para as treze horas, o telefone tocou e Vance atendeu.
— Não houve nenhuma dificuldade na análise — informou-nos ele, quando pendurou o receptor do telefone. — O eficiente Doremus descobriu no cigarro aquela mesma mistura de venenos misteriosos que o deixou tão aborrecido na noite de domingo... Minha história fantástica, Markham, finalmente está começando a se concretizar.
Mal Vance acabara de falar, quando o telefone tocou novamente, e foi a vez de Heath correr para o corredor. Quando ele voltou para a biblioteca, depois de alguns momentos, tropeçou em uma pequena mesa estilo renascentista, que havia perto da porta, e jogou-a longe.
— Pois bem, estou agitado. E daí? — Os olhos do sargento brilhavam de entusiasmo. — Quem vocês pensam que o sujeito era? Raios! O senhor já sabia, Senhor Vance. É nosso velho amigo, Benny, o Abutre! E talvez aqueles rapazes lá em Pittsburgh não estivessem doidos! E pode ser que o Abutre não tenha saltado direto de Nomenica para Nova York, como eu disse que ele faria... Está livre dessa ameaça, Senhor Markham.
A agitação de Heath era tão grande que, por alguns instantes, foi até mais forte do que o seu respeito para com o procurador distrital.
— Que faremos agora, Senhor Vance?
— Eu diria, sargento, que a primeira coisa a fazer é sentar-se. Tenha calma. É uma virtude muito necessária.
Heath obedeceu prontamente, e Vance virou-se para Markham.
— Acho que o caso continua sendo meu, por assim dizer. Você mo presenteou, num gesto magnânimo, para se livrar da minha tagarelice, na noite do sábado passado. Portanto, agora devo pedir mais uma concessão da sua parte.
Markham esperou, em silêncio.
— Chegou a hora em que tenho de agir com rapidez — prosseguiu Vance. — O caso todo, Markham, já se tornou claro. Os vários fragmentos do quebra-cabeças já encaixaram nos devidos lugares e formaram um mosaico espantoso. Mas ainda falta preencher um ou dois espaços em branco, e acho que Mirche, se for abordado de maneira adequada, poderá fornecer os pedaços que faltam...
Heath intrometeu-se.
— Estou começando a compreender, senhor. Acha que a identificação que Mirche fez do Abutre foi deliberadamente falsa?
— Não, sargento, nada disso. Mirche foi totalmente sincero e com um motivo muito bom. Ele ficou legitimamente atordoado com o aparecimento do cadáver na sua sala, naquela noite.
— Então, não o compreendo, senhor — disse Heath, em tom de desalento.
— Qual é a concessão que você deseja, Vance? — indagou Markham, impaciente.
— Quero só efetuar uma prisão.
— Mas, sem dúvida, não pretendo deixar que você ponha o gabinete do procurador distrital em maus lençóis. Precisamos esperar até que o caso seja solvido.
— Ah! Mas ele já está esclarecido — retorquiu Vance, à queima-roupa. — E você poderá ir comigo, para proteger o bom nome do seu gabinete. Na verdade, sua companhia me encantaria.
— Vá direto ao ponto — falou Markham, irritado. — O que pretende fazer?
Vance inclinou-se para diante e falou com precisão.
— Desejo muito ir ao Domdaniel logo que possível, hoje à tarde. Quero levar dois homens — digamos, Hennessey e Burke — que ficarão de guarda, na passagem do lado de fora da porta secreta. Depois, seguirei com você e com o sargento até à porta da frente que dá para a sacada e pedirei para entrar. Em seguida, agirei, sob o seu olhar controlador, é claro.
— Mas... Céus, Vance! Mirche pode não estar à espera da sua visita no escritório dele. Pode ter outros planos para se divertir esta tarde.
— Esse — declarou Vance — é um risco que precisamos correr. Mas tenho motivos suficientes para crer que o escritório de Mirche, hoje, está uma colmeia de atividade. E muito me espantaria se Dixie e Owen, também, não estivessem lá. Owen vai partir de navio, logo à noite, para a América do Sul, e hoje é o dia para liquidar seus negócios mundanos aqui. Você e o sargento têm suspeitado, há muito tempo, de que o Domdaniel é a sede de toda espécie de patifarias que vem acontecendo na cidade. Pois não precisa mais duvidar disso, Markham.
O procurador distrital pensou um instante.
— Parece-me absurdo e inútil — declarou ele. — A não ser que você tenha fundamentos sérios para tal ação... No entanto, como você diz, eu mesmo estarei lá a fim de me proteger contra qualquer indiscrição da sua parte... Muito bem — capitulou ele.
Vance confirmou de cabeça, com satisfação, e olhou para o espantado Heath.
— E, a propósito, sargento, talvez tenhamos notícias dos seus Rosa e Tony.
— Os Tofanas! — E Heath ergueu-se no sofá, alerta. — Eu já sabia. Aquele trabalho do cigarro é especialidade de Tony...
Vance descreveu seu plano ao sargento. Heath deveria combinar com Joe Hanley, o porteiro, para dar um sinal se Mirche saísse do salão de refeições pelos fundos. Hennessey e Burke deveriam receber instruções quanto ao lugar onde se postar e o que fazer. E Markham, Vance e Heath deveriam esperar na pensão fronteira ao restaurante, de onde podiam ver ou o sinal de Hanley ou Mirche entrar no seu escritório pela sacada.
Contudo, ficou demonstrado que grande parte dos preparativos complicados era desnecessária; pois a teoria e previsões de Vance com referência à situação, naquela tarde, eram inteiramente acertadas.


CAPITULO XVIII
NARCISO E ROSA
(Terça-feira, 21 de maio — 15:00 horas)

Às três horas daquela tarde, Joe Hanley, que estivera de vigia para nós, chegou à esquina da Sétima Avenida e nos informou que Mirche entrara no seu escritório pouco depois do meio-dia, e que nem ele nem Dixie Del Marr tinham sido vistos no restaurante desde então.
Encontramos as persianas das janelas estreitas baixadas e a porta do escritório achava-se trancada à chave. Além disso, não atenderam, embora batêssemos com insistência.
— Abram! — gritou Heath, ferozmente. — Do contrário, terei de arrombar a porta. — Depois, observou para nós: Acho que isso os assustará, se houver alguém lá dentro.
Pouco depois, ouvimos o ruído de passos apressados e vozes furiosas lá dentro. E, alguns momentos mais tarde, a porta nos foi aberta por Hennessey.
— Agora, tudo está bem, chefe — disse ele a Markham. — Eles tentaram fugir pela porta da parede, mas eu e Burke os obrigamos a voltar.
Quando atravessamos a porta, deparei com um quadro estranho. Burke achava-se de costas contra a pequena porta secreta, com o revólver apontado de maneira significativa para o espantado Mirche, que se achava a poucos passos dele. Dixie Del Marr, também coberta pela arma de fogo de Burke, achava-se encostada à escrivaninha, olhando para nós com uma expressão de fria resignação. Em uma das cadeiras de couro estava sentado Owen, sorrindo debilmente, com calma e cinismo. Parecia inteiramente desligado de todo o quadro geral, como um espectador que estivesse contemplando uma cena teatral que lhe ofendesse o intelecto pelo absurdo. Não olhava nem para a direita nem para a esquerda, e foi só depois que estávamos bem ao alcance do seu olhar sonolento que ele fez um leve movimento.
Mas, quando avistou Vance, levantou-se, cansadamente, e se curvou, em uma saudação formal.
— Que esforço inútil — queixou-se ele. Depois, sentou-se novamente, com um leve suspiro, como alguém que acha que tem de ficar até o fim para assistir ao resto de um drama desagradável.
Hennessey fechou a porta e ficou de pé, alerta, vigiando os ocupantes do aposento. Burke, a um sinal de Heath, deixou a mão cair para o lado do corpo, mas manteve uma vigilância severa.
— Sente-se, Senhor Mirche — disse Vance. — É apenas uma pequena discussão.
Quando o homem, lívido e assustado, deixou-se cair em uma cadeira junto à escrivaninha, Vance se curvou delicadamente, cumprimentando Dixie Del Marr.
— Não é preciso a senhorita ficar de pé.
— Prefiro ficar assim — disse a mulher, em tom de voz duro. — Há três anos que venho esperando sentada...
Vance aceitou sem comentário a sua observação misteriosa e voltou novamente sua atenção para Mirche.
— Nós estávamos conversando a respeito de preferências no tocante a vinhos e comidas — falou ele, em tom indiferente. — E eu estava imaginando qual seria a marca de cigarros que o senhor fuma.
O homem pareceu paralisado de medo. Mas logo se recuperou; um simulacro de sua antiga suavidade voltou a seu rosto. O homem fez um ruído como o de um sapo coaxando, que pretendia ser uma risada.
— Não tenho preferência por nenhuma marca — declarou ele. — Eu sempre fumo...
— Não, não — interrompeu Vance. — Refiro-me à sua marca muito especial, reservada para os eleitos.

Mirche tornou a rir e gesticulou largamente com as palmas das mãos viradas para cima, para indicar que não compreendera em nada o significado da pergunta.
— A propósito — prosseguiu Vance — nos tempos medievais, quando Madame Tofana e outros envenenadores famosos prosperaram, havia muitas flores, hoje lendas românticas para nós, que provocavam a morte com uma simples cheirada. É esquisito como essas lendas persistem e como surgem tantos exemplos da sua aparente autenticidade nos tempos modernos. É de se admirar como os velhos segredos da alquimia foram preservados até os tempos atuais. Naturalmente, tais especulações são absurdas à luz da ciência moderna.
— Não compreendo o que o senhor quer dizer com isso. — Mirche falava com uma tentativa de mostrar dignidade ferida.
— E também não entendo esta invasão ultrajante dos meus aposentos particulares.
Vance ignorou o homem um instante e dirigiu-se à Senhorita Del Marr.
— Acaso a senhorita perdeu uma cigarreira especial, com desenhos enxadrezados? Quando ela foi encontrada, tinha o cheiro de narcisos e rosa. Uma combinação excêntrica, Senhorita Del Marr, e lembra a sua pessoa.
Não se notou nenhuma mudança na expressão fisionômica da mulher, que continuou dura, embora ela hesitasse de forma evidente antes de responder.
— Não é minha. Mas creio, no entanto, que conheço a cigarreira a que o senhor se refere. Eu a vi no sábado passado neste escritório, e naquela noite ela me foi mostrada pelo Senhor Mirche. Ele a carregara durante várias horas no bolso... Talvez tenha sido assim que ela adquiriu o perfume. Onde foi que a encontrou, Senhor Vance? Disseram-me que foi esquecida aqui por um dos empregados do restaurante... Talvez o Senhor Mirche pudesse...
— Não sei de nada a respeito de tal cigarreira — disse Mirche, sem delongas. Havia energia e susto nas suas palavras. Jogou um olhar de desafio a Dixie, mas esta se achava de costas para o homem.
— Isso não importa, não é mesmo? — disse Vance. — É apenas uma referência de passagem.
Seus olhos continuavam pousados em Dixie Del Marr, e ele tornou a lhe dirigir a palavra.
— A senhorita sabe, naturalmente, que Benny Pellinzi está morto.
— Sim... Eu sei. — E suas palavras não denotavam nenhuma emoção.
— Há uma estranha coincidência nisso. Ou, talvez, apenas um capricho meu. — Vance falava como se estivesse apenas fazendo uma observação sem importância. — Pellinzi morreu na tarde do sábado passado, pouco depois de ter tido tempo de chegar a Nova York. Mais ou menos nessa altura, acontece que fui casualmente às matas de Riverdale. E, quando começava a voltar para casa, um carro grande passou velozmente pelo local onde me achava. Mais tarde, fiquei sabendo que um cigarro aceso fora jogado do carro, perto do lugar onde eu me achava de pé. Era um cigarro muito diferente dos outros, Senhorita Del Marr. Apenas tinha começado a ser fumado. Mas não era essa a única peculiaridade do tal cigarro. Além disso, havia também um veneno mortífero nele. O equivalente moderno das fabulosas flores envenenadas que figuravam nas tragédias medievais. E, contudo, fora jogado descuidadamente em uma rodovia pública...
— Uma ação imbecil — disse Owen, em tom de voz suave mas cheio de censura.
— Casual, digamos assim... do ponto de vista finito. Mas, na verdade, inevitável. — Vance também falava em tom suave. Só existe um modo de agir em todo o universo.
— Sim — falou Owen, em tom vago e sonhador. A imbecilidade humana é um dos fatores que concorrem para a fatalidade dos acontecimentos.
Vance não se virou. Estava observando atentamente a expressão fisionômica de Dixie Del Marr.
— Posso prosseguir, Senhorita Del Marr, ou minha história a importuna.
Dixie não deu nenhum sinal de ter ouvido a pergunta.
— A cigarreira a que me referi — prosseguiu Vance — foi encontrada no cadáver de Pellinzi. Mas não havia cigarros dentro dela. E ela não continha nenhum cheiro picante de amêndoas amargas... Só o cheiro doce de narciso e rosa... Mas Pellinzi foi envenenado pelo cheiro desse perfume. E, novamente, entra em ação o mortífero agente do romance antigo... É estranho, não é? Como a fantasia evoca associações tão remotas. O pobre Pellinzi deve ter confiado e acreditado em quem o assassinou. Mas sua fé encontrou apenas traição e morte.
Vance fez uma pausa. Havia grande tensão no pequeno aposento. Só Owen parecia despreocupado. Olhava diretamente para diante, com uma expressão fisionômica sem esperanças e distante e a boca torcida por uma expressão cruel.
Quando Vance tornou a falar, suas maneiras tinham mudado: havia uma repentina severidade na sua voz.
— Mas talvez, afinal de contas, eu não esteja sendo lá muito imaginoso. A quem, senão a Senhorita Del Marr, teria Pellinzi comunicado em primeiro lugar a sua chegada a Nova York? E como poderia ele ter sabido, nesses últimos anos, que outro homem conquistara o coração da mulher que outrora lhe pertencera? Possui um carro grande e fechado, Senhorita Del Marr. Uma viagem secreta a Riverdale teria sido coisa fácil para a senhorita. A cigarreira, com o seu perfume sutil, foi encontrada com o cadáver. O amor muda e é cruel...
Owen deixou escapar uma risadinha gélida. Suas sobrancelhas arquearam-se ligeiramente. A expressão cruel da sua boca se transformou em um arremedo de sorriso.
— Muito hábil, Senhor Vance — murmurou ele. Na verdade, admirável. Padrões dentro de padrões. Como o homem se deixa enganar facilmente por fantasmas!
— É a enganosa ordem que existe no caos — falou Vance. Owen fez um aceno de cabeça, quase imperceptível. Seu rosto voltou a ser uma satírica máscara.
— Sim — disse ele, em tom suave. — O senhor também tem um senso exotérico de humor.
— Duvido — murmurou Vance — que a Senhorita Del Marr aprecie o humor da morte.
Um gemido estrangulado irrompeu da garganta da mulher. Ela deixou-se cair em uma cadeira e cobriu o rosto com as mãos.
— Oh, meu Deus! — Foi o primeiro rompimento do seu controle rígido.
Seguiu-se longo silêncio. Mirche olhou um instante para Vance e novamente para a mulher. Seu rosto recuperara parte da sua cor, mas um medo intenso lhe brilhava nos olhos: um medo de um fantasma maligno, cuja forma ele não sabia determinar. Compreendi que se iam acumulando na sua mente perguntas que ele não ousava formular.
A mulher ergueu lentamente a cabeça; as mãos lhe caíram no colo e ficaram lá, em atitude de completo desânimo: A dureza venenosa da sua natureza recuperou o controle. Dixie esteve para falar, mas também ela conteve o impulso, como se a pressão das suas emoções ainda não tivesse alcançado o ponto de libertação.
Vance acendeu lentamente um dos seus cigarros. Depois de tirar duas baforadas, falou novamente com Dixie, e suas palavras pareceram indiferentes, como se ele estivesse fazendo uma pergunta que não contivesse nenhuma importância particular.
— Ainda há uma coisa que me intriga, Senhorita Del Marr... Por que trouxe Pellinzi, morto, para este escritório?
A mulher sentou-se como uma estátua de mármore, enquanto um cacarejo desdenhoso escapou dos lábios de Mirche.
— Está-se referindo, Senhor Vance, — perguntou ele, à sua antiga maneira pomposa — ao homem encontrado morto neste escritório? Estou começando a compreender o seu interesse no lamentável episódio que se passou aqui na noite de sábado. Mas receio que tenha permitido à sua imaginação levá-lo completamente de roldão. O cadáver encontrado aqui era o de um dos empregados do restaurante.
— Sim. Sei a quem se refere, Senhor Mirche. A Philip Allen. Vance falava em tom de voz macio. — Como o senhor disse naquela noite. E não tenho dúvidas de que o senhor acreditava nisso, e de que ainda acredita. Mas, às vezes, os fatos aparentes atuam de forma esquisita. Um padrão está sujeito a mudar o seu desenho da maneira mais incrível... Não é verdade, Senhor Owen?
— É sempre verdade — replicou o espectador silencioso da cadeira. — Confusão. E nós somos as vítimas...
— A que ponto vocês dois querem chegar? — indagou Mirche, levantando-se a meio na sua cadeira, enquanto o medo lhe transparecia nos olhos.
— A verdade, Sr, Mirche, é — falou Vance — que Philip Allen está bem vivo. Depois que o senhor o mandou embora do emprego e que ele, casualmente, deixou uma cigarreira aqui, que realmente não lhe pertencia, Philip Allen não voltou a este escritório.
— Ora, isto é ridículo! — E Mirche perdera a suavidade da fala. — Do contrário, como poderia ele...?
— Era Benny Pellinzi quem estava caído no soalho, naquela noite, morto!
A esta notícia, Mirche tornou a se deixar cair de repente na sua cadeira e ficou olhando, com ar de desafio sem esperanças, para o homem que estava diante de si. Mas os fatos ainda não se tinham organizado na sua mente, e ele recomeçou a protestar.
— Isso é absurdo... Completamente absurdo! Eu próprio vi o cadáver de Allen. E o identifiquei.
— Oh, não discuto a sinceridade da sua identificação. — Vance aproximou-se mais do homem perplexo. Seu tom de voz era quase meloso. — O senhor estava com todas as razões para supor que o morto fosse Philip Allen. Ele é do mesmo tamanho que Pellinzi. Tem a mesma forma de rosto e a mesma cor de pele, e naquele dia ele estava vestindo um terno preto igual ao que Pellinzi usava quando o mataram. O senhor acabara de falar com Philip Allen, no seu escritório, algumas horas antes, e, conforme me disse ontem, o senhor não se surpreendeu pelo fato de ele ter voltado aqui. Além disso, a morte pelo envenenamento muda a expressão dos olhos e todo o aspecto geral do rosto. Acresce, ainda, que Pellinzi era a última pessoa no mundo que o senhor teria esperado encontrar no seu escritório, principalmente naquela noite. Sim, a última pessoa no mundo...
— Mas por que — gaguejou Mirche — por que Pellinzi devia ter sido a última pessoa no mundo que eu teria esperado? Eu sabia, pelos jornais, que o homem fugira da cadeia. E era bem possível que ele tivesse cometido a tolice de me procurar para pedir ajuda.
— Não... Oh, não. Não me refiro a isso, Senhor Mirche — retrucou Vance, tranqüilamente. — Eu tinha outro motivo, mais convincente, para saber que o senhor não esperaria encontrar Pellinzi aqui naquela noite... O senhor sabia que Pellinzi estava morto em Riverdale.
— Ora, como poderia eu ter sabido que ele estava morto? — gritou o homem, freneticamente, saltando de pé. — O senhor mesmo disse que seria Dixie Del Marr a quem ele teria apelado primeiro, e o carro dela, sua viagem a Riverdale... Bolas... O senhor não me pode intimidar!
— Tenha mais calma, Dan — falou Owen, com petulância. — Já existe tumulto de sobra neste mundo pobre. A confusão me cansa.
— Novamente, receio que me tenha entendido mal, Senhor Mirche. — Vance ignorou a queixa de Owen a seu assecla amedrontado. — Quis dizer, apenas, que a Senhorita Del Marr deve tê-lo informado a respeito do fato. Tenho certeza de que vocês dois não ocultam segredos um do outro. Têm uma confiança mútua completa, mesmo no crime. E, sabendo que Pellinzi estava morto em Riverdale, e que a sua digamos assim, sócia? — dificilmente traria o cadáver para cá, como poderia o senhor imaginar que o homem encontrado morto neste escritório, naquela noite, era Pellinzi? Como teria sido natural cometer um erro de identificação! E, já que não poderia ser Pellinzi, deveria ser outra pessoa qualquer. E com que presteza — e com que lógica — Philip Allen lhe veio à idéia... Mas era Pellinzi.
— Como é que o senhor sabe que era Benny? — E Mirche estava atrapalhado, perturbado por alguma visão mental íntima. — O senhor está tentando enganar-me. — Depois, ele quase gritou: — Repito... Não poderia ter sido o Abutre!
— Ah, poderia, sim. É um engano da sua parte. — Vance falava tranqüilamente e com autoridade. — Não há dúvidas possíveis. As impressões digitais não mentem. Pergunte ao sargento Heath ou ao procurador distrital. Ou pode telefonar para a polícia e certificar-se.
— Imbecil! — cortou Owen, com os olhos sonolentos pousados em Mirche, com uma expressão de indizível aborrecimento. Virou-se para Vance. — Afinal de contas, como é fútil... este sonho diabólico... Esta sombra que nos cobre... — E a voz lhe faltou.
Mirche estava olhando fixamente para algum ponto distante além dos limites do cômodo, sozinho com seus pensamentos, lutando para juntar um punhado de fatos isolados.
— Mas — murmurou ele, como se protestando debilmente contra algum vingador inevitável e sem forma — a Senhorita Dell Marr viu o cadáver aqui e...
O homem tornou a cair no silêncio, pensando no assunto. E então um profundo rubor lhe foi aumentando nas feições e aos poucos foi ficando de cor mais intensa, até que pareceu que o sangue ia sufocá-lo. Os músculos do seu pescoço enrigeceram e gotículas de suor lhe apareceram de repente na testa.
Rigidamente e com esforço, o homem virou-se para Dixie Del Marr e, em uma voz de ódio fremente, descarregou contra ela uma saraivada de palavrões.


CAPITULO XIX
ATRAVÉS DA SOMBRA
(Terça-feira, 21 de maio — 16:00 horas)

Outra onda de emoções fortes rompeu a calma de pedra de Dixie Del Marr. Uma paixão violenta e primitiva a consumia por dentro. Ela se levantou e encarou Mirche, e suas palavras saíram em uma torrente incontrolável.
— Claro, sua criatura suja, que eu os deixei pensar que o morto encontrado neste escritório — o homem que você matou — era Philip Allen. Mais alguns dias de dúvida e de tortura para você... Que importava isso? Eu já esperara vários anos para vingar Benny. Oh, eu sabia muito bem que a sua traição o mandara para a cadeia para cumprir vinte anos de prisão. E eu não pude dizer nada para salvá-lo. Havia só um jeito de eu vingar essa injustiça. Eu tinha de esperar com paciência, pois sabia que um dia chegaria a hora... Você gostava de mim... Você me queria. Esse pensamento de me possuir já estava na sua mente inferior quando você deixou que mandassem Benny para a cadeia. Por isso, fingi que estava do seu lado e o ajudei nos seus planos ilegais. Eu o lisonjeei. Fiz o que você mandava. E durante o tempo todo eu amava Benny. Mas eu soube esperar...
Dixie deu uma risada amarga.
— Três anos são muito tempo. E o instante que eu esperara veio tarde demais. Mas eu me consolo com o pensamento de que a morte de Benny foi um fim misericordioso. Ele não podia ter esperanças de uma vida normal, embora tivesse conseguido fugir da prisão. Benny passara a vida inteira sendo perseguido pela polícia. Mas ele foi furioso para a sua cela. Tão furioso a ponto de pensar que podia encontrar a verdadeira liberdade da prisão, para onde a sua traição o havia mandado. Uma fúria irresistível tomou conta da mulher.
— Mas Benny nunca soube da sua traição. Pensava que você era amigo dele. E veio à sua procura para pedir ajuda. Mas, graças a Deus, ele telefonou também para mim quando voltou, no sábado passado. Contou-me que havia telefonado para você antes de chegar à cidade. Que você dissera que o ajudaria. E eu sabia que isso era mentira. Mas que podia eu fazer? Tentei preveni-lo. Mas Benny não me quis dar ouvidos. Pensou que, talvez, depois de tanto tempo, eu tivesse algum motivo forte para querer evitar um encontro entre vocês dois. Não me quis dar ouvidos. Não me contou nada dos seus planos, exceto que você ia ajudá-lo...
— Você está doida — conseguiu dizer Mirche.
— Cale-se, idiota — suspirou Owen. — Você não pode mudar o curso do destino.
— Por isso, eu o segui, Dan, no carro que você me deu, e com o motorista que você me forneceu e que fazia parte da sua quadrilha. — Dixie tornou a rir, com a mesma amargura. — Ele o odeia tanto quanto eu... Mas ele tem medo de você, pois sabe que você pode ser muito perigoso... Eu o segui, desde a hora em que você saiu daqui, na tarde de sábado. Eu sabia que você não deixaria Benny ir até onde você se achava, pois, apesar da sua crueldade, você é um covarde. E eu o segui a um bairro afastado e vi quando você entrou na casa de Tony... Pena que Rosa não tivesse olhado na sua bola de cristal para preveni-lo... E então compreendi o plano torpe que você estava armando para se livrar do Benny. Mas não imaginei que você tivesse coragem de executá-lo, como o fez. Pensei que Benny só deveria morrer quando você estivesse a salvo novamente no seu escritório. Como iria eu saber que você escolheria os cigarros do Tony para fazer o serviço? Pensei que eu ainda podia avisar Benny, antes que fosse tarde de mais... Pensei que eu ainda podia salvá-lo. Por isso, segui você. Vi quando você o apanhou, no lugar onde ele se achava escondido, bem no interior do parque; vi quando você seguiu com o carro rumo ao norte,
atravessando Riverdale; vi quando você parou em um ponto isolado, depois de uma curva, onde pensava que ninguém podia vê-lo. E então, eu o vi colocar o cadáver de Benny rapidamente ao lado da estrada e afastar-se velozmente de carro. A mulher nos varreu com um olhar ardente.
— Oh! Não estou mentindo! — gritou ela. — Nada mais me interessa... exceto o castigo deste homem.
Mirche parecia paralisado, incapaz de falar. Owen, ainda com seu sorriso céptico e distante, não se movera.
— Queira prosseguir, Senhorita Del Marr — pediu Vance.
— Levei o corpo de Benny para meu carro e trouxe-o para aqui, quando sabia que Mirche estaria lá em cima. Cheguei à alameda de entrada de carros, como sempre faço, e parei perto da porta lateral, na extremidade da passagem. — Ela apontou para os fundos do aposento. — Ninguém me podia ver da rua... com a porta do carro aberta. E as trepadeiras também ajudaram a me encobrir. Depois, entrei para me certificar de que não havia ninguém no corredor mais além, e dei o sinal. Meu motorista carregou o pobre Benny e o colocou aos pés do homem que o matara...! Você não sabia, não é, ”Coruja”, que havia um morto naquele armário, quando esteve sentado aqui, conversando comigo, naquela noite?
— E daí? — Houve uma mudança na expressão de Owen.
— E, quando você saiu, ”Coruja”, eu trouxe Benny para baixo da escrivaninha e telefonei para a polícia.
Agora, compreendi que Vance provocara deliberadamente o desabafo frenético da mulher. Enquanto ela falava, ele fizera um sinal ao sargento, e Heath e Hennessey se aproximaram de Mirche sem que este percebesse, e agora o homem se achava com um guarda de cada lado.
— Mas como é, Senhorita Del Marr, — perguntou Vance — que a sua história explica o fato de a cigarreira com perfume de narciso e rosa ter sido encontrada no bolso de Pellinzi?
— Foi medo! Foi a consciência deste patife — retorquiu ela, apontando para Mirche com ar de desafio. — Quando viu o que julgava ser o cadáver de Allen, seu cérebro assustado e enevoado se lembrou de que a cigarreira de Philip Allen ainda estava no seu bolso. E eu o vi, ajoelhado ao lado do cadáver, enfiar a cigarreira no bolso do paletó do morto. O ato impulsivo de um covarde, com o qual ele pretendia livrar-se de toda associação com o que ele julgava ser um segundo assassinato. Mirche queria evitar qualquer possível relacionamento de sua pessoa com outro cadáver.
— É uma versão razoável — murmurou Vance. — Sim. Uma análise bem sutil... E a senhorita se contentou em deixar que a verdade com referência ao morto aparecesse por meio das investigações?
— Sim! Depois de informar à polícia o endereço de Philip Allen, eu sabia que mais cedo ou mais tarde a justiça acabaria descobrindo a verdade. E, enquanto isto, este meliante, Mirche, ficaria preocupado e sofreria... E eu teria meios de sobra para torturá-lo.
— A ética de uma mulher... — começou Owen. Depois, voltou a ficar em silêncio.
— Tem alguma coisa a dizer antes de o prendermos, Mirche? — o tom de voz de Vance era baixo, mas cortante como uma chicotada.
Mirche ficou olhando, de um modo terrível, e sua figura gorducha pareceu encolher-se. De repente, contudo, ele se levantou e apontou um dedo trêmulo contra Owen. As veias do seu rosto estufaram-se como cordéis.
Owen fez um ruído gutural de desprezo.
— Cuidado com a pressão sangüínea, idiota — zombou Owen. — Não vá poupar esse trabalho ao carrasco.
Duvido que Mirche tenha ouvido essas palavras mordazes. Os vitupérios e os palavrões entornaram dos seus lábios. Sua ira parecia ultrapassar todas as fronteiras humanas. Seu veneno transformou-o em um mero autômato: insensato, contorcido, repelente.
— Não pense que levarei a culpa em seu lugar, sem dizer nada! Já cedi demasiado tempo sob a sua influência. Executei os seus planos sujos. Fechei a boca sempre que eles tentavam arrancar de mim a verdade a seu respeito. Posso ir para a cadeira elétrica, ”Coruja”, mas não sozinho! Levarei comigo você com seu cérebro hipnótico e envenenado!
Dirigiu um olhar rápido a Vance e apontou novamente para Owen.
— Ali está o cérebro tortuoso que planejou tudo isto... Eu o avisei da chegada do Abutre, e Owen me mandou buscar os cigarros. Ele me disse o que eu devia fazer. Tive medo de recusar... Achava-me em seu poder...
Owen olhou para o homem com calma zombaria: continuava distante e desdenhoso. A peça estava chegando ao fim, e o seu desprezo e a monotonia da situação ainda não o tinham abandonado.
— Você é um espetáculo triste, Dan. — Seus lábios mal se moveram.
— Se pensa que não estou preparado para este momento, o tolo é você, e não eu. Guardei todos os registros e dados: nomes, lugares... tudo! Durante vários anos, tenho guardado, essas coisas. Eu as ocultei onde ninguém as pode encontrar. Mas eu sei onde as encontrar! E o mundo inteiro saberá...
Essas foram as últimas palavras que Mirche disse em sua vida.
Ouviu-se um tiro. Um pequeno orifício preto apareceu na testa de Mirche, entre os olhos. O sangue gotejou do orifício e o homem tombou para diante, em cima da escrivaninha.
Heath e os dois detetives, com as automáticas empunhadas, começaram rapidamente a atravessar o aposento, para chegar até junto ao imóvel Owen, que continuou sentado, sem se mover, uma das mãos apoiada no colo, empunhando um revólver fumegante.
Mas Vance interveio rapidamente. De costas para a figura silenciosa na cadeira, fez um gesto imperioso para Heath. Virou-se lentamente, depois, e estendeu a mão. Owen ergueu o olhar na sua direção e depois, como se por uma cortesia instintiva, virou o revólver, com o cabo voltado para Vance, e estendeu-o com mansa indiferença. Vance jogou a arma em cima de uma cadeira vazia e, olhando para o homem, esperou.
Os olhos de Owen achavam-se semicerrados e sonhadores. ”O Coruja” não parecia mais notar o que o cercava, nem o corpo de Mirche, que ele acabara de matar, esparramado no chão. Finalmente, ele falou, em um tom de voz que parecia estar vindo de muito longe.
— Isso teria significado as vagas na superfície da água. Vance assentiu de cabeça.
— Sim. Limpeza de espírito... Mas, agora, haverá o julgamento, a cadeira elétrica, o escândalo, que ficarão gravados indelevelmente...
Um tremor sacudiu o débil corpo de Owen. Sua voz se ergueu, até se transformar em um grito agudo.
— Mas como se pode escapar ao finito? Como atravessar a sombra, limpo?
Vance tirou do bolso a cigarreira e segurou-a um instante na mão, mas não a abriu.
— Quer fumar um cigarro, Senhor Owen? — indagou ele. Os olhos do homem contraíram-se. Vance tornou a enfiar sua cigarreira no bolso.
— Sim... — E Owen respirou aliviado, afinal. — Acho que vou mesmo fumar um cigarro. — Enfiou a mão em um bolso interno e de lá tirou uma pequena cigarreira de couro, luxuosa...
— Escute aqui, Vance! — cortou Markham. — O caso deixou de ser da sua alçada. Foi cometido um homicídio diante dos meus olhos, e eu próprio ordeno a prisão deste homem.
— Perfeitamente — disse Vance, em voz arrastada. — Mas, infelizmente, acho que já é tarde demais para isso.
Enquanto Vance falava, Owen afundou mais na sua cadeira; o cigarro que ele acabara de acender lhe escorregou dos lábios e caiu no soalho. Vance esmagou-o rapidamente com o pé.
A cabeça de Owen pendeu para diante, caindo sobre o peito: os músculos do seu pescoço tinham-se relaxado repentinamente.


CAPITULO XX
FELIZ ATERRAGEM
(Quarta-feira, 22 de maio — 10:30 horas)

Na manhã seguinte, Vance achava-se sentado no gabinete do procurador distrital, conversando com Markham. Heath estivera lá, antes, com a notícia da prisão dos Tofanas. No porão da casa deles tinham sido encontradas provas suficientes para condenar ambos, ou pelo menos assim esperava o sargento.
Dixie Del Marr também comparecera, a pedido de Markham, para fornecer pormenores necessários para os registros oficiais. Como não havia nenhum motivo para lhe fazer acusações pelo papel que ela tivera nos negócios de Mirche, Dixie mostrava-se relativamente satisfeita quando nos deixou.
— Realmente, Markham — observou Vance. — Em vista do antigo amor dessa mulher por Benny Pellinzi, sua conduta, como sabemos, é perfeitamente compreensível e perdoável... Quanto a Mirche, teve um fim muito melhor do que merecia... E Owen! Um louco doente. Felizmente, para o mundo, ele escolheu um jeito tão rápido de sair de cena! Sabia que estava morrendo e foi o temor do castigo que lhe inspirou o ato... Podemos dar-nos por satisfeitos em encerrar o assunto. E, afinal de contas, realmente eu fiz ao lunático uma promessa vaga de zelar pelas conseqüências do caso, para que não houvesse ”ondas”, como ele mesmo disse, a segui-lo.
Vance riu melancolicamente.
— Mas, na verdade, que importa isso? Um facínora de importância, é encontrado morto, um acontecimento bem vulgar; um meliante de importância maior é morto com um tiro, também um episódio corriqueiro; e o chefão de uma quadrilha de criminosos se suicida... Bem, talvez isto seja um acontecimento raro, mas, sem dúvida, sem importância... Em todo caso, estamos em plena primavera; a cotovia está esvoaçando, contente, até o caramujo se movimenta... Ei! Que tal irmos comer uns camarões com um bom vinho, depois?
Enquanto Vance falava, a campainha da porta soou e uma voz anunciou a presença do Senhor Amos Doolson na sala de espera. Markham olhou para Vance.
— Suponho que seja a respeito daquele prêmio absurdo. Mas não posso receber o homem agora...
Vance levantou-se rapidamente.
— Deixe-o esperar, Markham! Tive uma idéia.
Depois, foi ao telefone e falou com a Fábrica de Perfumes In-O-Scent. Quando desligou, sorriu para Markham.
— Gracie Allen e George Burns estarão aqui dentro de quinze minutos. — Riu baixinho, realmente muito satisfeito. — Se alguém merece o prêmio, é aquela garota incrível, e vou tomar providências para que ela o receba.
— Ora, você está doido? — disse Markham, surpreso.
— Nada disso. Estou no meu juízo perfeito. E... embora talvez você duvide, sou apaixonadamente dedicado à justiça.
Pouco depois, Gracie Allen e George Burns chegavam.
— Oh, que lugar horrível! — falou ela. — Ainda bem que não tenho de viver aqui, Senhor Markham. — Ela virou os olhos preocupados para Vance. — Tenho de continuar com meu trabalho de detetive? Prefiro trabalhar na fábrica, agora que George voltou e que tudo está bem.
— Não, minha querida — falou Vance, em tom de voz bondoso. — Você já trabalhou até demais. E os resultados que alcançou são soberbos. Na verdade, pedi que você viesse aqui, esta manhã, apenas para receber a sua recompensa. Foi oferecido um prêmio de cinco mil dólares à pessoa que resolvesse o assassinato do homem no Domdaniel. Quem fez o oferecimento foi o Senhor Doolson; e ele está na outra sala, neste instante.
— Oh! — E desta vez Gracie Allen ficou tão intrigada e atônita, que perdeu a fala.
Quando Doolson foi introduzido, dirigiu um olhar de espanto aos seus dois empregados e foi diretamente para a escrivaninha de Markham.
— Quero retirar imediatamente o prêmio, Senhor Markham — disse ele. — Burns voltou para o trabalho, hoje cedo, com excelente disposição, e portanto não há mais necessidade de...
Markham, que já se ajustara ao ponto de vista de Vance, jocoso mas justo, falou na sua maneira mais judiciosa.
— Lamento extremamente, Senhor. Doolson, mas tal retirada está inteiramente fora de cogitações. O caso foi encerrado e arquivado ontem à tarde... Bem dentro do limite de prazo estipulado pelo senhor. Agora, sou obrigado a entregar o prêmio à pessoa que o mereceu.
O homem arregalou os olhos e gaguejou:
— Mas!... — começou ele a argumentar.
— Sentimos tremendamente, Senhor Doolson — intrometeu-se Vance, em tom conciliatório. — Mas tenho certeza de que o senhor ficará satisfeito com sua generosidade impulsiva, quando eu o informar de que é Gracie Allen quem vai receber o prêmio.
— Quê! — explodiu Doolson, como se fosse ter uma apoplexia. — Que é que Gracie Allen tem a ver com isso! É um absurdo!
— Não é, não — retrucou Vance. — É a simples declaração de um fato. Gracie Allen foi a principal colaboradora na solução do caso. Foi ela quem forneceu todas as pistas importantes... E afinal de contas, o senhor recuperou os serviços do Senhor Burns hoje.
— Não consentirei nisso — gritou o homem. — É uma tramóia! Uma farsa! Vocês não me podem obrigar legalmente a fazer isso!
— Pelo contrário, Senhor Doolson — disse Markham. — Sou obrigado a considerar esse dinheiro propriedade da moça. As próprias instruções quanto à concessão do prêmio — ditadas aqui pelo senhor mesmo — não lhe dariam nenhuma arma se o senhor resolvesse impedir legalmente o seu pagamento.
Doolson ficou boquiaberto.
— Oh, Senhor Doolson — exclamou Gracie Allen. — Que lindo prêmio! E o senhor realmente fez isso para que George voltasse para o trabalho voando? Nunca pensei nisso. Mas o senhor precisa terrivelmente dele, não é? E isso me dá outra idéia. Que tal um aumento de salário para George?
— Raios! Isso eu não faço! — E, por um instante, pensei que Doolson estava à beira de um colapso cardíaco.
— Mas suponha, Senhor. Doolson, — prosseguiu Gracie Allen
— que George tornasse a ficar preocupado e não pudesse ir trabalhar! Que seria da sua firma?
O homem controlou-se e estudou George Burns sombriamente, pensativo, durante alguns momentos.
— Sabe, Burns, — disse ele, em tom quase conciliatório — estive pensando, há algum tempo, e achei que você merecia um aumento. Você tem sido um empregado muito leal e muito valioso para a firma. Volte para o seu laboratório imediatamente e discutiremos amigavelmente o assunto. — Depois, virou-se e apontou um dedo para a jovem. — E você, menina, está despedida!
— Oh, não tem importância, Senhor Doolson — retrucou a moça, sorridente e indiferente. — Aposto que o aumento que o senhor vai dar a George fará o salário dele subir e igualar a quantia que o meu e o dele juntos dariam... entende o que eu digo?
— Raios me partam se me importo um pouco, sequer, com o que você diz. — E Doolson saiu pisando duro da sala.
— Creio — disse Vance, amavelmente — que a observação seguinte deve vir de George Burns. — E sorriu para o jovem, de maneira significativa.
George Burns, embora claramente atônito com os acontecimentos da última meia hora, ainda assim estava com a cabeça suficientemente clara para entender o significado das palavras de Vance. Agarrando a sugestão feita, dirigiu-se resolutamente para onde se achava a moça.
— Que tal aquela proposta que fiz a você, na manhã em que me prenderam?
Nossa presença, longe de deixá-lo embaraçado, deu-lhe coragem.
— Ora, que proposta? — perguntou a jovem, maliciosamente.
— Você sabe a que me refiro! — E seu tom de voz era rouco e resoluto. — Que tal nós dois nos casarmos.
Gracie Allen caiu para trás em uma cadeira, com uma risada musical.
— Oh, George! Era isso que você estava tentando dizer!
Pouco mais falta a falar a respeito do que Vance sempre insistiu em chamar de o caso Gracie Allen.
O Domdaniel, como todos sabem, foi fechado há muito tempo, e há poucos anos foi demolido e no seu lugar construído um prédio moderno. Tony e Rosa Tofana resolveram confessar seus crimes e agora estão cumprindo sentença na penitenciária. Não sei o que foi feito de Dixie Del Marr. Talvez tenha adotado novo nome e ido para outra parte do país, para viver tranqüilamente longe dos locais dos seus passados triunfos e sofrimentos.
Gracie Allen e George Burns casaram-se pouco depois daquela proposta de casamento inesperada e divertida, feita no gabinete de Markham.
Em certa tarde de sábado, alguns meses depois, eu e Vance encontramos o jovem casal dando um passeio a pé na Quinta Avenida. Os dois pareciam radiantes de felicidade, e a moça, como sempre, tagarelava muito animadamente.
Paramos alguns minutos para falar com eles. Soubemos que George Burns fora promovido no seu emprego na fábrica de perfumes. E, para gáudio de Vance, veio à baila o fato de que Gracie Allen, por motivos sentimentais, apresentara seu cartão ao Senhor Lyons, da loja Chareau e Lyons, de roupas feitas, quando fora escolher seu vestido de noiva.
Caminhamos ao lado deles durante um curto trecho, e George Burns, no meio de uma frase, parou de repente e notei que suas narinas se dilataram ligeiramente, enquanto ele se inclinava na direção de Vance.
— A fórmula original de Farina para a água-de-colônia! Vance riu.
— Sim. Eu sempre trago água-de-colônia, quando vou à Europa. E isso me faz lembrar: hoje cedo, vi, em uma revista francesa, o nome de um perfume que, depois da colaboração indispensável da Senhora. Burns no nosso caso, você poderia dar, muito apropriadamente, à delicada mistura que você fez para ela. Chamava-se La Femme Triomphant.
Burns sorriu, todo orgulhoso.
— Acho que Gracie o ajudou bastante, Senhor Vance.
A jovem olhou de um para outro, franzindo o cenho, intrigada, e depois riu, acanhada.
— Não compreendo...

O caso chamado Gracie Allen foi sem dúvida o que mais agradou a Philo Vance entre todos aqueles de que participou. Podemos acrescentar que foi talvez o mais divertido de todos.
É verdade que um crime de morte nada tem de divertido e o mistério narrado neste livro tem aspectos sinistros, sombrios e intensamente dramáticos. Mas isso não impediu que o caso, talvez pela intervenção e pelo auxílio de Gracie Allen, tenha um fermento quase constaste de humor e divertimento.
Foi, entretanto, um caso quase incrível de muitos ângulos, mostrando-se extremamente fora do comum e imprevisível. O mistério e o encantamento do perfume impregnam todo o quadro. A magia das previsões comerciais do destino das pessoas se relacionou intimamente com a sua decifração. E houve em todo ele um forte elemento romântico.
Como se vê, O Caso Gracie Allen tem todos os elementos para ser um grande romance policial, pois, além de todos esses ingredientes ótimos, ainda apresenta a personalidade magnífica do grande detetive que é Philo Vance, criação magistral de S. S. Van Dine, que foi um dos grandes autores policiais do mundo.

 

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CAPITULO I
FOGE O ABUTRE

(Sexta-feira, 17 de maio — 20:00 horas)
Por estranho que pareça, Philo Vance sempre gostou mais do caso Gracie Allen do que de qualquer dos outros em que tomou parte ativa.
Talvez esse caso não tenha sido tão sério como alguns dos outros; mas, pensando melhor, não tenho certeza absoluta de que isso seja estritamente verdadeiro. Para ser exato, potencialmente o caso Gracie Allen continha um sem-número de maus agouros. E agora, passando-o mentalmente em revista, relembro que seus elementos básicos eram intensamente dramáticos e sinistros, apesar do seu quase constante tempero de humor.
Nas várias vezes em que perguntei a Vance por que ele gostava tanto desse caso, ele sempre me respondeu, com ar indiferente, que o mesmo constituiu o seu único fracasso flagrante como investigador dos inúmeros crimes que lhe foram apresentados pelo procurador distrital John F.-X. Markham.
— Não... Oh, não, Van; o caso não foi meu, você não sabe? — falou Vance, em tom arrastado, enquanto nós dois estávamos sentados diante do fogo da sua lareira, em certa noite de inverno, muito depois dos acontecimentos. — Na verdade, não mereço nenhum elogio por ele. Eu teria ficado completamente confuso e perdido, não fora a encantadora Gracie Allen, que sempre aparecia na hora do aperto para me salvar do desastre. Se algum dia você publicar esse caso, peço que atribua o mérito a quem realmente o conquistou. Arre, que pequena fenomenal! As deusas do lar olímpico de Zeus jamais atormentaram tanto os velhos Príamo e Agamenon com o esplendor exibido por Gracie Allen ao apoquentar os personagens daquele caso altamente perfumado. Espantoso!...
Foi um caso quase incrível sob vários aspectos, extremamente fora do comum e imprevisível. O mistério e o fascínio do perfume impregnavam todo o quadro. A magia da adivinhação, da cartomancia e da quiromancia comercial estava intimamente envolvida na sua decifração. E havia um elemento humano romântico que lhe emprestou uma cor-de-rosa toda especial.
Para início de conversa, era primavera — o décimo sétimo dia de maio — e o tempo apresentava-se extremamente agradável. Vance, Markham e eu jantáramos na espaçosa varanda do Bellwood Country Club, de onde se dominava o Hudson. Nós três tagareláramos sobre assuntos banais, pois aquela devia ser uma hora de completo relaxamento e prazer, sem nenhuma intromissão dos ásperos interlúdios de crimes que haviam marcado tantas de nossas palestras em anos recentes.
No entanto, até neste momento de serenidade, iam-se alongando feios ângulos de crime, embora nenhum de nós o soubesse; e sua sombra se aproximava sorrateiramente de nós.
Acabáramos de tomar nosso café e estávamos bebericando um delicioso licor fabricado por frades, quando o sargento Heath, com um aspecto sério e espantado, apareceu na porta que levava da sala de jantar principal para a varanda e caminhou em passos largos e rápidos para a nossa mesa.
— Olá, Senhor Vance. — Seu tom de voz era de pressa. — Olá, chefe. Desculpe importuná-lo, mas isto chegou à delegacia meia hora depois da sua partida, e, como eu sabia onde o senhor estava, achei melhor trazê-lo sem demora. — Puxou uma folha dobrada de papel amarelo do bolso e, abrindo-a, colocou-a de maneira enfática diante do procurador distrital.
Markham leu cuidadosamente, fez um movimento de indiferença com os ombros e devolveu o papel a Heath.

— Não entendo — falou ele, sem emoção alguma — por que uma informação rotineira como esta lhe exigia uma viagem até aqui.
As faces de Heath inflamaram-se de exasperação.
— Ora, chefe, esse foi o sujeito que ameaçou sua vida.
— Sei perfeitamente disso — observou Markham, friamente. E depois acrescentou, em tom de voz mais suave: — Sente-se, sargento. Considere-se de folga por alguns instantes e tome um gole do seu uísque predileto.
Depois que Heath se instalara em uma cadeira, Markham prosseguiu.
— Claro que você não espera que eu, depois de tanto tempo, comece a levar a sério as ameaças histéricas de criminosos que condenei no cumprimento dos meus deveres.
— Mas esse sujeito é perigoso, chefe, e não é dos que esquecem ou perdoam.
— Em todo caso — riu Markham, despreocupado —, ele demorará, no mínimo, até amanhã para chegar a Nova York.
Enquanto Heath e Markham falavam, as sobrancelhas de Vance se ergueram, desmonstrando leve curiosidade.
— Escute, Markham... Ao que me parece, o seu sargento teme pela sua existência cerceada, e vejo que você mesmo está um tanto aborrecido com a preocupação zelosa dele.
— Ora, Senhor Vance, não estou preocupado — disse Heath, em um desabafo. — Estou só pensando nas possibilidades, digamos assim.
— Sim, sim, eu sei — sorriu Vance. — Sempre cuidadoso. Cosendo costuras que nem sequer ainda foram rebentadas. Capaz e admirável como sempre, sargento. Mas de onde vem a sua apreensão?
— Sinto muito, Vance. — Markham pediu desculpas pelo seu fracasso de explicação. — Na verdade, não tem nenhuma importância. É apenas um aviso telegráfico de rotina de uma fuga comum em Nomenica. Três homens, condenados a sentenças longas, tentaram a fuga, e dois deles foram baleados pelos guardas...

— Não estou preocupado com os sujeitos que foram baleados — interrompeu Heath. — Minha preocupação está com o outro, com o sujeito que conseguiu escapar...
— E quem seria esse personagem que lhe dá tanto que pensar, sargento? — indagou Vance.
— Benny, o Abutre! — murmurou Heath, com ênfase melodramática.
— Ah! — E Vance sorriu. — Um espécime ornitológico... Buteo borealis. Talvez ele tenha fugido voando...
— Ora, Senhor Vance, não é assunto para brincadeira. — E Heath ficou ainda mais sério. — Benny, o Abutre, ou Benny Pellinzi, para lhe dar o nome de batismo, é um sujeito bastante perigoso, apesar da aparência inofensiva de rapazola de rosto bonito. Apenas há alguns anos, andava por aí dizendo a quem quisesse ouvir que ele era o Inimigo Público Número Um. É um sujeito assim. Mas ele não passava de peixe miúdo, e dele se pode apenas dizer que era um tipo duro e perverso... Na verdade, não passa de um rato imbecil e tolo...
— Rato? Abutre? Diacho... Você não está misturando a sua História Natural, sargento?
— E há apenas três anos — prosseguiu Heath, obstinadamente — o Senhor Markham mandou-o para a penitenciária com uma pena de vinte anos para cumprir. E ele tenta fugir da cadeia, hoje à tarde, e consegue. Não é motivo para preocupação?
— Contudo — observou Vance —, sem dúvida, esse não é o primeiro preso que foge de uma cadeia.
— Sem dúvida. — E Heath resolveu esticar mais um pouco a folga que o procurador lhe dera e pediu outro uísque. — Mas o senhor deve ter lido o que aquele sujeito fez no tribunal quando foi condenado. Mal o juiz acabara de condená-lo a vinte anos de prisão, e ele explodiu. Apontou para o Senhor Markham e, a plenos pulmões, jurou que haveria de voltar para vingar-se dele, mesmo que isso lhe custasse a própria vida. E parecia estar falando sério. O homem achava-se tão furioso e agitado, que foram necessários dois guardas fortes para arrastá-lo para fora do tribunal. Geralmente, é contra o juiz que as ameaças são feitas, mas esse sujeito escolhera como alvo das suas o procurador distrital, e de certa forma isso fez mais sentido.
Vance assentiu de cabeça, lentamente.
— Sim, muito mais. Compreendo o que você quer dizer, sargento. O homem é diferente e, portanto, perigoso.

— E o motivo que me trouxe aqui esta noite — prosseguiu Heath — foi o de dizer ao Senhor Markham o que eu pretendia fazer. Naturalmente, estaremos à procura do Abutre. Ele poderia vir diretamente para cá, ou talvez resolvesse seguir rumo oeste, para tentar alcançar os Dakotas... que, para ele, são um refúgio seguro, se é que ele tem inteligência.
— Exatamente — observou Markham. — Talvez você tenha razão ao dizer que possivelmente o fugitivo seguirá para Oeste. E, sem dúvida, não pretendo fazer nenhuma excursão imediata aos Montes Negros.
— Seja como for, chefe — insistiu o sargento, teimosamente —, não me vou arriscar nem um pouco com o Abutre... ainda mais pelo fato de ele contar com apoio decisivo dos seus velhos amigos desta cidade.
— E que amigos íntimos são esses, sargento?
— Mirch, do Restaurante Domdaniel, e a antiga namorada de Benny, que é a cantora do restaurante... Chama-se Dixie Del Marr.
— Não tenho certeza de que Mirche e Pellinzi são amigos íntimos — disse Markham. — É um assunto discutível.
— Mas, para mim não é, chefe. E, se o Abutre voltar às ocultas para Nova York, tenho um palpite de que irá diretamente a Mirche pedir ajuda.
Markham não discutiu mais as possibilidades. Em vez disso, limitou-se a perguntar:
— Qual é o seu plano de ação, sargento? Heath inclinou-se para o outro lado da mesa.
— Acho que vai ser da seguinte maneira, chefe. Se o Abutre realmente pretende voltar aos lugares por onde andava antes, fará isso com esperteza. Virá depressa, com a rapidez do relâmpago, pensando que não estamos preparados. Se ele não aparecer nos próximos dias, desistirei da minha hipótese e então os rapazes trabalharão no caso à moda rotineira. Mas, a começar de amanhã cedo, pretendo deixar Hennessey de guarda na velha pensão que fica defronte ao Domdaniel, vigiando a pequena porta que leva para o escritório particular de MircTie. E Burke e Snitkin ficarão com Hennessey, para a eventualidade de que o fugitivo apareça.
— Você não está sendo um pouco otimista, sargento? — indagou Vance. — Três anos de prisão podem produzir muitas modificações na aparência física de um homem, principalmente sendo, ele ainda jovem e não muito robusto.
Heath afastou o ceticismo de Vance com um gesto de impaciência.
— Confio em Hennessey... Ele é muito bom fisionomista.
— Oh, não estou pondo em dúvida a habilidade de Hennessey em reconhecer fisionomias — garantiu-lhe Vance. — Contando que o seu Abutre, que adora a liberdade, seja tolo a ponto de escolher a porta da frente para entrar no escritório de Mirche. Mas você não acha, meu caro sargento, que mestre Pellinzi pode achar mais prudente entrar pela porta dos fundos?
— Não há nenhuma porta dos fundos — explicou Heath.
— E não há, também, portas laterais. Existe só uma sala particular, tendo apenas uma entrada, que dá para a rua. É assim que trabalha o tal Mirche... Com tudo às claras. É um sujeito bem esperto...
— Esse escritório fica em um prédio separado? — indagou Vance. — Ou é um anexo do restaurante? Não me lembra bem...
— Nada disso. E quem não o estivesse procurando não o encontraria. É como um cômodo de fim de prédio que tivesse sido separado no canto do edifício, como fazem para separar um consultório médico ou uma pequena loja, em um prédio grande de apartamentos. Mas, se a pessoa quiser encontrar Mirche, aquele é o lugar mais provável para isso. A sala parece tão inocente quanto a casa de uma senhora idosa.
Heath olhou para nós, de maneira significativa, enquanto prosseguia.
— E, contudo, acontece muita coisa comprometedora naquela saleta. Se eu conseguisse ocultar um gravador lá, o gabinete do procurador distrital teria trabalho de julgamentos para manter-se em ação de agora em diante.
O sargento fez uma pausa e piscou um olho na direção de Markham, maliciosamente.
— Que tal acha da minha idéia para amanhã?
— Não pode fazer nenhum mal, sargento — respondeu Markham, sem nenhum entusiasmo. — Mas continuo achando que é perder tempo e energia.
— Talvez seja. — E Heath acabou de tomar o seu uísque.
— Mas, ainda assim, acho que preciso seguir o meu palpite.

Vance colocou na mesa o seu copo de licor e uma expressão extravagante lhe surgiu nos olhos.
— Escute, Markham — disse ele, em voz arrastada. — Seria mesmo perder tempo e energia, não importa qual seja o resultado. Ah, a sua preciosa lei, e seus processos meticulosos! Mesmo que esse falcão de cauda vermelha e nome de ópera aparecesse nos antigos lugares por onde costumava andar e caísse na arapuca do sargento, você ainda o trataria com bondade e ternura, sob a frase eufemística ”nos moldes da lei”. Você lhe afagaria a cabeça. Você faria tudo para prendê-lo vivo, embora ele próprio talvez estourasse os miolos de uns dois auxiliares do sargento. Depois, você lhe daria boa casa e comida; você o levaria pela cidade em um carro de luxo bem possante e, para finalizar, lhe daria uma viagem panorâmica de volta a Nomenica, uma viagem agradável. E tudo para que, meu caro? Em troca do discutível privilégio de sustentá-lo pelo resto da vida, em um gesto muito elegante.
Era evidente que Markham ficara irritado.
— Suponho que você poderia resolver tudo isso com um tiro.
— Bem que poderia. — Vance estava em um daqueles dias em que gostava de provocar os outros. — Esse sujeito é um patife inútil, que de há muito vem apoquentando a lei; que, você muito bem sabe, matou um homem e foi condenado segundo a justiça. Um meliante que planejou uma fuga da prisão, o que custou mais duas vidas humanas; que ameaçou matá-lo a sangue-frio, e que neste exato momento está privando o sargento do seu direito de tirar uma soneca. Não é uma boa pessoa, Markham. E todas essas irregularidades poderiam ser resolvidas com tanta facilidade e rapidez, matando-se o patife sem mais delongas, ou livrando-se dele de outra maneira qualquer, sem mais trabalho nem cerimónia.
— E suponho eu — Markham falou quase com raiva — que você mesmo estaria disposto a executar esse expurgo ilegal.
— Disposto? — Havia um tom provocante na voz de Vance. — Eu ficaria positivamente encantado em fazer isso. Seria a minha boa ação do dia.
Markham tirou baforadas vigorosas do seu charuto. Ficava sempre irritado quando as caçoadas de Vance enveredavam por esse caminho.
— Escute, Vance. Tirar deliberadamente uma vida humana é...
— Por favor, poupe-me o sermão, seu vigário. Já sei o que vai dizer. É uma arenga a respeito de sociedade, lei e ordem e direitos humanos. Mas você tem de confessar que a solução que eu sugeri é lógica, prática e justa.
— Já discutimos esse sofisma várias vezes — cortou Markham. — E, além do mais, não vou deixar que você estrague meu jantar com asneiras desse quilate.

CAPÍTULO II
UM INTERLÚDIO RÚSTICO

(Sábado, 18 de maio — à tarde)
No dia seguinte, pouco depois do meio-dia, encontramo-nos com Markham na sua modesta sala particular de onde se dominava o cemitério. Geralmente, aos sábados, a sala do procurador distrital já estava fechada a estas horas, mas Markham achava-se nas malhas de uma difícil complicação política e desejava ver o caso resolvido o mais rápido possível.
— Lamento muito — falou Vance — que você tenha de trabalhar em uma tarde como esta. Eu tinha esperanças de que talvez pudesse convencê-lo a dar um passeio de carro nos arrabaldes da cidade.
— Quê?! — exclamou Markham, com fingida surpresa. — Você está sucumbindo aos seus impulsos naturais? Não me diga que a Mãe Natureza conseguiu abalar um sibarita ferrenho como você com o seu canto de sereia! Por que não pede a Van para amarrá-lo ao mastro, como manda o figurino da Odisséia?
— Não. Descobri que anseio realmente pela magia de uma ilha paradisíaca cheirando a cidra e a cedros...
— E talvez com uma ninfa dos bosques, como Calipso.
— Ora, meu caro Markham! Nada disso! — E Vance fingiu indignação. — Não, meu caro! Pretendo apenas fazer algumas travessuras no cenário verde do Bronx.
— Vejo que você caiu nas malhas das sereias cor-de-rosa dos campos floridos. — O sorriso de Markham era brincalhão e zombeteiro. — Se o sonho de mau agouro de Heath se realizar, mais tarde navegaremos por uma rota tempestuosa entre a cruz e a caldeirinha.
— Ora, a gente nunca sabe... Mas, se isso acontecer, espero que nenhum homem seja arrancado do nosso navio oco pelas ondas revoltas.
— Ora, por Deus, Vance, não seja tão sombrio. O que você está dizendo é uma tolice completa.
(Lembro-me particularmente dessa resposta clássica e espirituosa, que, sem dúvida, não teria vindo parar nestas páginas, não fora o caso de se ter ela transformado em uma observação curiosamente profética, mesmo quanto ao cheiro de cidra e à caverna do monstro de Messina.)
— E suponho — sugeriu Markham — que você vai dar o seu passeio vestido a rigor. Não sei por que, mas não o consigo imaginar trajado com roupas de excursionista.
— Você está redondamente enganado — disse Vance. — Vou vestir um terno velho de algodão, de tecido riscado, o mais antigo que tenho... Mas diga-me, Markham, que é feito do zeloso sargento e dos maus agouros dele?
— Oh, creio que ele está executando o seu plano inútil — Markham falou com indiferença. — Mas, se o pobre Hannessey tiver de ficar esperando durante muito tempo, terei mais a temer dele, em forma de represália, do que do ilustre Senhor Beniamino Pellinzi. Não consigo entender direito a súbita preocupação de Heath pela minha segurança.
— Bravo sujeito, o Heath. — Vance estudou a cinza do seu cigarro, com um sorriso hesitante. — Na verdade, Markham, pretendo partilhar da hospitalidade cara de Mirche logo à noite.
— Você também! Você vai mesmo ao Domdaniel, logo à noite?
— Não na esperança de encontrar seu amigo, o Abutre — replicou Vance. — Mas Heath despertou minha curiosidade. Gostaria de ver mais de perto o incrível Senhor Mirche. Eu já o vi, é claro, no restaurante, mas, na verdade, sem lhe prestar muita atenção às feições. E quero também dar uma espiada — pelo lado de fora, é lógico — nesse escritório misterioso que tanto agitou a imaginação do sargento... E há sempre a possibilidade de que apareça alguma aventura emocionante quando as sombras portentosas do crepúsculo anunciarem a noite misteriosa que chega e...
— Ora, Vance, pare com isso. Você está parecendo um desses escritores medíocres de novela superbarata. Que pensamento secreto se oculta por trás dessa cortina de fumaça de palavras?
— Se você quer mesmo saber, Markham, a comida lá no Domdaniel é excelente. Eu estava apenas tentando ocultar uma ansiedade de gastrônomo...
Markham bufou e a conversa mudou para outros assuntos, interrompida, de vez em quando, por telefonemas. Quando Markham acabou de cuidar dos preparativos para a tarde e a noite, nos fez passar pelos gabinetes dos juizes e descer para a rua.
Após um rápido almoço, levamos Markham de carro para o seu escritório novamente, e depois seguimos para o apartamento de Vance, um tanto afastado do centro da cidade. Lá, Vance mudou de roupa, envergando agora um velho terno de algodão riscado, muito surrado, e calçou botas mais pesadas e um chapéu macio e bem surrado, tipo Homburg. Depois, saímos novamente até o seu carro e uma hora depois seguíamos de automóvel, muito calmamente, pela avenida Palisade, na parte do Bronx chamada Riverdale.
Nos dois lados da rua havia arvoredo e arbustos densos. O ar apresentava-se impregnado da fragrância de flores da primavera, e de vez em quando surgiam pontos coloridos de verdura. À nossa esquerda, para além de um contínuo muro de concreto, uma ladeira suave levava para o Hudson. À direita, o terreno erguia-se mais abruptamente, e assim o muro de pedra rústica não nos impedia de ver a paisagem.
No alto de uma inclinação ligeira, no exato lugar em que a estrada seguia para o interior, Vance saiu com o carro da estrada principal, parando-o de maneira suave.
— Acho que este aqui é um ponto ideal para nos misturarmos com a flora e comungarmos com a natureza.
Com exceção da cerca do lado do rio e da parede de pedra, que teria, talvez, um metro e oitenta de altura, ao longo da orla interna da estrada, estávamos, segundo tudo indicava, em uma estrada deserta do interior. Vance atravessou a faixa larga e coberta de sombras e capim, que se estendia como um tapete verde entre a rodovia e o muro. Escalou com dificuldade o muro de pedra, fazendo-me um sinal para o seguir, enquanto desaparecia na folhagem rústica e rica que havia do outro lado.
Durante mais de uma hora, andamos para trás e para diante, no meio do mato, e então, repentinamente, quando deparamos novamente com o muro de pedra, Vance olhou com relutância para seu relógio.
— Quase cinco horas — informou ele. — É melhor irmos para casa, Van. Já estamos cansados.
Segui na frente dele para a rodovia, e começamos a voltar lentamente para o carro. Um automóvel grande, rodando quase sem ruído, apareceu de repente na curva. Parei, enquanto ele passava velozmente, e fiquei vendo-o desaparecer no alto da subida. Depois, continuei andando na direção do nosso carro.
Depois de dar alguns passos, notei uma jovem, de pé, perto do muro, bem afastada da rodovia, em um caramanchão isolado e de chão coberto de capim. A moça estava sacudindo nervosamente a frente da sua saia, o que fazia com visível agitação, e batia um pé sobre o chão macio da terra. Parecia perturbada e aborrecida, e quando me aproximei um pouco mais vi que havia um buraco de queimadura na parte dianteira do seu vestido leve de verão. O orifício queimado devia ter uns três centímetros de diâmetro.
Enquanto a moça soltava uma exclamação de aborrecimento, Vance saltava — ou, melhor dizendo, caía — do muro atrás dela. O seu calcanhar ficou agarrado no muro mal feito e, enquanto ele lutava para recuperar o equilíbrio, uma saliência aguda de massa lhe rasgou a manga do paletó. O barulho inesperado assustou novamente a jovem, que se virou, alerta, para ver o que era.
Era pequena e de movimentos graciosos, dona de um rosto oval, provocante, e de feições sensíveis e regulares. Os olhos, grandes e castanhos, eram recobertos por pestanas extremamente compridas. Um nariz reto e fino conferia dignidade e caráter a uma boca feita para sorrir. Era esguia e ágil e parecia combinar perfeitamente com o ambiente rústico que a cercava.
— Caramba! — murmurou Vance, olhando para ela. — Não foi uma entrada muito graciosa no seu caramanchão. Desculpe se eu a assustei.
A moça continuou olhando desconfiada para Vance, e quando tornei a olhar para este compreendi muito bem o que lhe causava essa reação. Vance estava completamente despenteado. Além disso, seus sapatos e suas calças apresentavam-se generosamente cobertos de lama; o chapéu, todo amassado, estava grotescamente torto na sua cabeça, e a manga do paletó, rasgada, dava-lhe a aparência de um mendigo ambulante. A moça logo sorriu.
— Oh, não estou assustada — garantiu ela, em uma voz musical que possuía um timbre muito jovial e muito atraente. — Estou apenas zangada. Terrivelmente zangada. O senhor já ficou zangado? Mas não é com o senhor que estou aborrecida, pois nem sequer o conheço... Talvez eu ficasse zangada com o senhor se eu o conhecesse... Já pensou nisso?
— Sim, sim... Tenho pensado nisso muitas vezes. — Vance riu e tirou o chapéu, com o que ficou imediatamente mais apresentável. — E tenho certeza de que a senhorita teria mais do que motivo para ficar zangada... A propósito, posso sentar-me? Estou exausto...
A moça olhou rapidamente ao longo da estrada e depois se assentou um tanto abruptamente, como uma criança que se deixa cair descuidadamente no chão.
— Isso seria maravilhoso. Vou ler a palma da sua mão. O senhor já mandou ler a palma da sua mão? Sei ler muito bem a palma da mão das pessoas. Delpha me ensinou a ler todas as linhas. Ela sabe tudo referente à leitura de mãos e tudo sobre os astros, e também a respeito dos números da sorte. Ela é cartomante. Além disso, Delpha é médium. Como eu também. Sou médium. O senhor é médium? Mas talvez eu não me possa concentrar hoje. — Sua voz adquiriu um tom místico. — Alguns dias, quando me sinto disposta, eu seria capaz de lhe dizer qual a sua idade e quantos filhos o senhor tem...
Vance riu e sentou-se ao lado da jovem.
— Mas sabe de uma coisa? Acho que eu não poderia suportar saber de fatos tão atordoantes a meu respeito, neste instante ...
Vance tirou do bolso a cigarreira e abriu-a lentamente.
— Tenho certeza de que a senhorita não se importaria se eu fumasse — disse ele, de modo cativante, estendendo-lho a cigarreira. Mas, recebendo em resposta apenas uma risadinha e uma sacudida de cabeça, acendeu um dos seus Régios para si mesmo.
Mas muito me alegra que o senhor tenha falado em cigarros — disse a moça. — Isso me faz lembrar do quanto eu estava furiosa.
Ah, sim. — Vance sorriu, indulgente. — Mas não quer
me dizer com quem estava tão zangada?
A jovem apertou os olhos ao mirar o cigarro que se achava entre os dedos de Vance.
Agora, não sei — respondeu ela, ligeiramente confusa.
Mas que pena... Talvez fosse comigo que a senhorita estava zangada o tempo todo, hem?
Não, não era com o senhor... Pelo menos, eu não achava que era. Agora, não tenho tanta certeza. A princípio, pensei que fosse alguém num carro grande que passou e...
— E por que estava zangada?
— Ah, isso... Bem, olhe aqui para a frente do meu vestido. — Ela estendeu a saia ao seu redor. — Está vendo esse furo enorme de queimadura? Meu vestido está estragado. E eu o adoro. O senhor não gosta dele? Isto é, se ele não estivesse queimado? Fui eu própria quem o fez... Bem, seja como for, eu disse a mamãe como é que eu queria que ela o fizesse. Ele me fez ficar muito bonitinha. E, agora, não o posso mais usar. — Havia um pesar legítimo na sua voz. — Foi o senhor quem jogou aquele cigarro aceso?
— Que cigarro? — indagou Vance.
.— Ora, o cigarro que queimou meu vestido. Deve estar aqui por perto... Bem, em todo caso, a pontaria foi muito boa, já que não podia ver-me para mirar. E talvez o senhor nem soubesse que eu estava aqui. E isso teria dificultado muito atingir-me, não acha?
— Sim, compreendo aonde a senhorita quer chegar. — Vance estava tão interessado quanto divertido. — Mas, na verdade, minha querida, deve ter sido algum vilão que passou no tal carro... Se é que passou mesmo algum carro.
A moça suspirou.
— Bem, então — murmurou ela, resignada —, acho que não era com o senhor que eu estava furiosa. E, agora, não sei com quem era. E isso me deixa mais furiosa do que nunca. Tenho certeza de que, se fosse com o senhor que eu estivesse furiosa, o senhor procuraria reparar o malfeito.
Digamos, então, que lamento tanto o que houve como se eu tivesse jogado o cigarro... — sugeriu Vance.
— Mas, agora, não sei se o senhor o jogou ou não. Se o senhor não podia ver-me através do muro, como é que poderia eu vê-lo?
— Uma lógica incontestável! — retorquiu Vance, adaptando-se à disposição aparentemente fantasiosa da jovem. — Portanto, é preciso que a senhorita me permita reparar o malfeito ... não importa quem tenha sido o culpado.
— Ora... — falou ela. — Não sei o que quer dizer com isso. — Mas havia em seus olhos um brilho que parecia desmentir-lhe as palavras.
— Quero dizer o seguinte: desejo que a senhorita vá à loja Chareau e Lyons e escolha um dos vestidos mais bonitos que eles tiverem. Um vestido que a faça ficar tão bonitinha como este.
— Oh, não tenho dinheiro para comprar um vestido assim!
Vance tirou do bolso a carteira de cartões de visita e, rabiscando algumas palavras em um deles, enfiou-o por baixo da tampa da bolsa de mão da jovem, que estava caída no capim.
— Leve esse cartão ao Senhor Lyon em pessoa e lhe diga que fui eu quem a mandou lá.
Os olhos da moça brilharam de gratidão e ela não protestou mais.
— Como a senhorita diz, muito acertadamente — prosseguiu Vance —, não podia ver através do muro e, portanto, não há meios de provar que não fui eu quem jogou o cigarro.
— Bem, então isso resolve o assunto, não é? — disse ela, rindo novamente baixinho. — Estou tão contente por ter sido com o senhor que eu estava furiosa por ter jogado o cigarro...
— Eu também estou — garantiu Vance. — E, por falar nisso, espero que a senhorita ponha novamente o mesmo perfume, ao usar o seu vestido novo. Esse perfume é como a primavera... ”Um delicioso cheiro de cidra e laranjeiras”, conforme disse Longfellow em um de seus livros famosos.
— Ah, ele disse isso?
— A propósito, que perfume a senhorita usa? Não o reconheço como nenhum dos perfumes mais populares que há por aí.
— Não sei — replicou a moça. — Acho que ninguém sabe. Não tem nome. Imagine, não se ter nome! Se nós não tivéssemos nome, ficaria tudo uma confusão, não é? O perfume foi feito especialmente para mim pelo George... Mas acho que não devo referir-me a ele como George, falando a desconhecidos. Ele é o Senhor Burns. Sou auxiliar dele na Fábrica de Perfumes In-O-Scente. É uma firma grande. Ele está sempre misturando ingredientes diferentes e experimentando-os. É a profissão dele. E é muito hábil. Só tem o defeito de ser sério demais. Mas não creio que ele tenha misturado cidra neste perfume. Na verdade, não sei como é o cheiro de cidra. Pensei que isso fosse uma coisa que a gente põe no bolo.
— O que se põe no bolo é a casca da cidra, em conserva — explicou Vance. — O óleo de cidra é muito diferente disso. Tem cheiro de erva-cidreira e limão. E, quando tratado com ácido sulfúrico, adquire até o cheiro de violetas.
— Não é maravilhoso? — disse ela. — Ora, o senhor fala igualzinho a George. Ele está sempre dizendo coisas assim. Tenho certeza de que o Senhor Burns sabe de tudo a respeito disso. Algumas vezes, fico muito confusa, na hora de lhe levar os vidros certos de extratos e essências. E ele é tão exigente nesse particular... Algumas vezes, ele chega até a dizer que não sei ferver os seus velhos tubos de ensaio e pipetas. Imagine.
— Mas tenho certeza — garantiu Vance — de que a senhorita lhe levou os frascos certos quando ele preparou este perfume que está usando. E tenho certeza de que um deles continha cidra, embora pudesse ter estado com outro nome... E, por falar em nomes, por acaso o seu é Calipso?
A moça sacudiu a cabeça.
— Não, mas é coisa muito parecida com isso. É Gracie Allen...
Vance sorriu e a conversa da jovem assumiu outra direção.
— Mas o senhor não me vai contar o que estava fazendo do outro lado do muro? Isso é propriedade particular, e eu não entraria ali por nada deste mundo. Não seria direito, seria? E, seja como for, não sei onde há um portão. Mas isto aqui é agradável. Já vim aqui várias vezes, e no entanto é a primeira vez que alguém me atira um cigarro, embora eu tivesse estado diversas vezes neste mesmo lugar. Mas acho que um dia sempre as coisas acontecem pela primeira vez. O senhor já pensou nisso?
— Sim, oh, sim. É uma pergunta profunda. — E Vance riu baixinho. — Mas a senhorita não tem medo de vir sozinha a um lugar tão deserto?
— Sozinha? — e novamente a jovem olhou para a estrada. — Não venho sozinha. Geralmente, venho com um amigo que mora lá para as bandas da Broadway. Chama-se Puttle e trabalha na mesma firma que eu. O Senhor Puttle é vendedor. E o Senhor Burns... Já lhe contei tudo a respeito dele. Ficou muito zangado comigo pelo fato de eu ter vindo aqui esta tarde com Puttle. Mas ele fica sempre zangado quando vou a algum lugar com alguém, principalmente se esse alguém é o Senhor Puttle. Não acha que isso é tolice? — E ela fez um muxoxo de contentamento.
— E onde estaria o Senhor Puttle, no momento? — perguntou Vance. — Não me diga que ele está tentando vender perfumes ao longo das estradas de Riverdale.
— Oh, meu Deus, não! Ele nunca trabalha nas tardes de sábado, nem eu. Acho realmente que o cérebro deve descansar de vez em quando, não acha? Oh, o senhor me perguntou onde está o Senhor Puttle. Bem, vou lhe contar, porque tenho certeza de que ele não se importaria. Ele foi procurar um convento de freiras.
— Um convento de freiras? Céus! Para quê?
— Ele disse que de lá se tem uma vista linda, com bancos, flores e tudo o mais. Mas não sabia se ficava para cima da estrada ou para baixo. Por isso, mandei-o procurar primeiro. Não tive vontade de ir a um convento de freiras, sem saber onde ele ficava. O senhor iria a um convento se não soubesse onde ele fica, principalmente se estivesse com os pés doendo?
Não, acho que a senhorita foi muito sensata. Mas acontece que sei onde o convento fica: é do outro lado, bem longe daqui.
Bem, então, o Jimmy... isto é, o Senhor Puttle, seguiu na direção errada. Ele está sempre se enganando. Ainda bem que eu o mandei procurar primeiro...


CAPITULO III
A ESPANTOSA AVENTURA

(Sábado, 18 de maio — 17:30 horas)
A jovem inclinou-se para diante e olhou para Vance, ansiosa e impulsiva.
— Mas eu me esqueci: estou morrendo de vontade de saber o que os senhores estavam fazendo do outro lado do muro. Espero que tenha sido emocionante. Sou muito romântica, sabe? O senhor é romântico? Isto é, adoro as emoções e o perigo. E isto aqui é tão emocionante e misterioso, principalmente com esse muro alto... Sei que os senhores devem ter vivido alguma aventura especial lá. Toda sorte de emoções e aventuras acontece dentro das paredes. Não é à toa que a gente manda construir muros, não é mesmo?
— Realmente.., — Vance sacudiu a cabeça, com fingida ansiedade. — Geralmente, só se faz um muro quando há um motivo muito bom para isso... Para impedir a entrada de alguém ou para manter pessoas dentro dos muros.
— Vê? Eu tinha razão... E, agora, diga-me — implorou ela —, que aventura emocionante os senhores viveram do outro lado do muro?
Vance tirou uma baforada profunda do seu cigarro.
— Sabe de uma coisa? — disse ele, com fingida seriedade. — Tenho medo de deixar alguém saber do que houve...
A propósito, a senhorita gosta de viver aventuras muito ou pouco emocionantes?
— Oh, elas têm de ser terrivelmente emocionantes, perigosas e sombrias, e cheias de espírito de vingança. Sabe, como um homicídio... Talvez um assassinato passional...
— É isso! — E Vance deu uma palmada no joelho. — Agora, posso contar-lhe tudo... Sei que a senhorita compreenderá. Baixou a voz, transformando-a em um cochicho íntimo e cavernoso. — Quando saltei o muro de maneira tão pouco elegante, eu... eu tinha acabado de cometer um homicídio.
— Maravilhoso! Simplesmente maravilhoso! — Mas notei que a moça se afastou um pouco de Vance.
— Era por isso que eu estava fugindo numa carreira desabalada — prosseguiu Vance.
— Acho que o senhor está gracejando — e a jovem ficou novamente calma. — Mas prossiga...
— Na verdade, foi um ato de altruísmo — prosseguiu Vance, que parecia estar-se divertindo realmente com o conto fantástico inventado. — Fiz isso por um amigo... para salvar um amigo do perigo... por causa de uma vingança.
— Ele deve ter sido um patife. Tenho certeza de que ele merecia morrer e de que o senhor praticou uma ação nobre... como os heróis dos tempos antigos. Eles não esperavam a polícia, a justiça e todas essas coisas. Avançavam, a cavalo, e resolviam a parada, num abrir e fechar de olhos. — A jovem estalou os dedos e não pude deixar de pensar na alusão sarcástica de Markham à solução simplista dada por Vance, na noite anterior, para resolver o caso do preso fugido.
Vance estudou a moça, atônito e sério.
— Ora, de uma criança a gente só pode esperar... — começou ele.
— Quê? — fez ela, e franziu o cenho.
— Nada, nada... — E Vance riu baixinho... — Bem, continuando esta sombria confissão: eu sabia que o tal sujeito era um homem muito perigoso e que a vida do meu amigo estava em perigo. Por isso, vim aqui, esta tarde, e lá, no mato sombrio, onde ninguém podia ver, eu o matei... Alegra-me imensamente a senhorita achar que agi corretamente.
Sua história inventada, baseada na sua conversa com Markham na noite anterior, correspondia bem ao desejo inesperado de uma aventura emocionante, expresso pela jovem.
— E qual era o nome do assassinado? — perguntou ela. — Gostaria que fosse um nome horrível. Eu sempre digo que as pessoas têm os nomes que merecem. É como na numerologia... só que é diferente. Quando a gente tem certo número de letras no nome, não é como ter outro número de letras, é? Significa, também, alguma coisa. Delpha me disse.
— Que nomes lhe agradam mais? — indagou Vance.
— Bem, vejamos... Burns é um nome bonito, não acha?
— Sim, acho — E Vance sorriu de maneira agradável. — Por falar nisso, é um nome escocês...
— Mas George não é escocês — protestou a moça, indignada. — Ele é até muito generoso.
— Não, não — apressou-se Vance a tranqüilizá-la. — Quando disse escocês, eu não quis dizer usurário. Em escocês, essa palavra significa ”riacho” ou ”córrego”...
— Ah, água! Isso é diferente. Eu tinha razão! — disse ela, num chilreio. Depois, confirmou, com um movimento de cabeça. — Água! É só o que George consome! Ele nunca toma bebidas alcoólicas. Diz que a bebida alcoólica lhe atrapalha o olfato e o impede de distinguir bem os perfumes.
— Distinguir perfumes?
— Aahn. George está sempre às voltas com perfumes... É a profissão dele. Experimenta perfumes para saber qual será bem vendido, qual será capaz de fazer uma mulher virar uma conquistadora e qual é tão ruim que só serve para sabonete de hotel, Ele é terrivelmente hábil nesse campo. Chegou até a inventar um perfume novo, misturado apenas por ele. E o Senhor Doolson — o nosso patrão — deu nome ao novo produto para George. Bem, não exatamente para George, mas o senhor sabe o que quero dizer.
O orgulho lhe brilhava nos olhos.
— E... oh! — prosseguiu ela, depressa. — George tem cinco letras no sobrenome... Falo sério, basta contá-las... B-U-R-N-S. E eu também tenho cinco letras no meu sobrenome. Não é engraçado? Mas isso significa algo muito importante. É... É ciência. Vibro com o número cinco. Mas o seis me traz muito azar. Sou alérgica — é assim que Delpha diz — ao número seis. Isso é muito científico, sabe?
— O sobrenome do Senhor Puttle tem seis letras — disse Vance, com um olhar maroto para a jovem.
— Ê verdade. Já pensei nisso... Oh, bem... Mas me esqueci... Qual era o nome do homem que o senhor matou tão valentemente?
— O sujeito tinha um nome muito desagradável. Chamavam-no de Benny Buzzard (Abutre).
A cabeça da moça subiu e desceu vigorosamente, demonstrando completa compreensão.
— Sim, é um nome horrível. Tem... deixe ver... sete letras. Oh! É um número místico. Isso é quase destino!
— Bem, ele foi mandado para a prisão, para cumprir uma pena de vinte anos de cadeia. — E Vance reiniciou a sua engenhosa história. — Mas tramou uma fuga e conseguiu escapar ontem, e voltou para Nova York a fim de matar esse meu amigo.
— Oh, então amanhã vão aparecer manchetes em todos os jornais sobre o fato de o senhor o ter assassinado
— Céus! Espero que não apareçam — E Vance fingiu-se dominado por uma grande preocupação. — Sinto que pratiquei uma boa ação, mas espero também, é claro, que não descubram o que fiz. E tenho certeza de que a senhorita não contaria a ninguém, não é mesmo?
— Oh, claro que não — garantiu a moça.
Vance soltou um suspiro exagerado e levantou-se lentamente.
— Bem, agora preciso ir me esconder — falou ele — antes que a polícia venha a saber do meu crime. Mais uma hora e quem sabe? Talvez eles saiam à minha procura.
— Oh, os policiais são uns trouxas — disse ela, com um beicinho — Estão sempre pondo os outros em apuros. Sabe? Se todos fossem bons, não precisaríamos de policiais, não é?
— É...
— E, se não houvesse policiais, não precisaríamos dar-nos ao trabalho de ser bons, não é?
— Céus! — murmurou Vance. — A senhorita, por acaso, é algum filósofo disfarçado?
A jovem pareceu atônita.
— Ora, isto não é um disfarce. Eu só usei disfarce quando... Quando era menina. Fui a uma festa fantasiada de fada.
Vance sorriu em tom de admiração.
— Tenho certeza — disse ele — de que foi uma fantasia completamente dispensável. A senhorita jamais precisará fantasiar-se, minha querida, para passar como uma fada encantadora... Quer apertar os ossos de um vilão barato?
Ela colocou a mãozinha na dele.
— O senhor, na verdade, não é um vilão. Ora, limitou-se a matar um facínora. E muitíssimo obrigada pelo lindo vestido novo — acrescentou ela. — O senhor falou sério quando me mandou buscá-lo?
— Falei seriíssimo. — E a sinceridade da voz de Vance dissipou qualquer dúvida que pudesse restar no espírito da jovem. — E boa sorte com o Senhor Puttle... e com o Senhor Burns.
A moça fez um aceno solene enquanto caminhávamos ao longo da estrada poeirenta na direção do nosso carro. Vance estava ocupado em acender outro cigarro, e quando íamos fazendo a curva da estrada olhei para trás. Havia um rapaz guapo diante da jovem, e compreendi que o tal Puttle, o vendedor de perfumes, voltara da sua busca infrutífera ao convento de freiras.
— Que criatura espantosa! — murmurou Vance, enquanto subíamos no carro e partíamos. — Acho mesmo que ela acreditou, em parte, na minha dramatização dos temores do sargento e nas minhas zombarias contra Markham. Ela é muito ingênua, Van. Ou, talvez, de uma natureza basicamente astuta, superabundante em romance, lutando para viver nas nuvens, neste mundo sórdido. E vivendo do fabrico de perfumes. Que combinação incrível de circunstâncias! Tudo misturado com a primavera... e visões de heroísmo e de amor jovem!
Olhei para ele, com ar indagador.
— Completamente — repetiu ele. — Isso estava indicado de forma definitiva. Mas, infelizmente, acho que os esforços de conquista do Senhor Puttle, da Broadway, vão ser baldados Como você notou, ela usava o perfume sem nome do Senhor Burns, mesmo quando passeando por breves instantes, no interior, com o Senhor Puttle. Levando em conta todos os sinais, considero o misturador e experimentador dos aromas sutis das arábias como favorito disparado para conquistar a Taça do Amor.

CAPITULO IV
O KESTAURANTE DOMDANIEL
(Sábado, 18 de maio — 20:00 horas)

O restaurante Domdaniel, localizado na rua 50, Oeste, perto da Sétima Avenida, atraíra uma freguesia geral e variada durante muitos anos. A reforma do velho casarão no qual o restaurante era instalado fora feita com muito gosto, e grande parte do velho ar de solidez e de durabilidade tinha sido mantida.
De cada lado da larga entrada até às extremidades do prédio corria um terraço estreito e descoberto, onde se viam vasos pseudogregos de alfenas bem aparadas. Na extremidade oeste da casa um beco de serviço separava o restaurante do prédio vizinho. Do lado leste havia uma alameda pavimentada, de aproximadamente três metros de largura, passando sob um alpendre coberto de trepadeiras para a garagem, que ficava nos fundos. Um arranha-céu comercial, na esquina da Sétima Avenida, terminava nessa alameda.
Eram quase oito horas da noite quando chegamos, naquela noite suave de maio. Acendendo um cigarro, Vance espiou para as sombras do alpendre e para a área mal iluminada que ficava mais além. Depois, caminhou com passo apressado alguns metros, pela estreita passagem, e contemplou as janelas cobertas de trepadeiras e a porta lateral, quase oculta da rua. Alguns momentos depois, retornou para junto de mim, no passeio, e voltou sua atenção, aparentemente com indiferença, para a frente do prédio.
— Ah — murmurou ele. — Lá está a entrada do escritório misterioso do Senhor Mirche, que despertou tanta atenção no sargento. Talvez uma janela ampliada, quando o casarão foi reformado. Simplesmente utilitário...
Era, como Vance observou, uma abertura de porta despretensiosa, dando diretamente para o terraço estreito. E duas escadas de madeira, reforçadas, levavam para o passeio. Em cada lado da porta via-se uma pequena janela — ou, diria eu, uma abertura semelhante a uma sacada —, seguramente fechada por uma grade de ferro batido.
— O escritório tem uma janela maior na parte lateral, da qual se domina a alameda forrada de mosaicos — falou Vance. — E também essa janela é fechada por uma grade. A luz que vem de fora deve ser um tanto insuficiente, quando, como o sargento parece pensar, o Senhor Mirche está lá dentro dedicado às suas tramas nefastas.
Para surpresa minha, Vance subiu pela escada de madeira até o terraço e espiou com ar indiferente, por uma das estreitas janelas, para dentro do escritório.
— Por dentro, o escritório parece ser tão honesto e em ordem quanto se apresenta aqui de fora — informou ele. — Acho que o nosso desconfiado sargento tem sido vítima de pesadelos...
Virou-se e olhou para a pensão, que ficava do outro lado da rua. Duas janelas próximas, no segundo andar, localizadas diretamente em frente à pequena porta de canto do Domdaniel, achavam-se às escuras.
— Pobre Hennessey! — suspirou Vance. — Atrás de um daqueles quadrados sombrios de trevas ele está vigiando e tendo esperanças. Ele simboliza toda a humanidade... Bem, vamos deixar de perder tempo. Tenho visões amorosas de um Meando de vitela à Macedônia. Espero que o mestre-cuca não tenha perdido nada da sua habilidade desde a última vez em que estive aqui. Naquela época, esse prato, feito por ele, era sublime...
Caminhamos até à entrada principal e fomos recebidos no luxuoso saguão de recepção pelo untuoso Senhor Mirche, em pessoa. O homem pareceu muito contente de ver Vance, ao qual se dirigiu pelo nome, e nos entregou ao chefe dos garçons, recomendando pomposamente ao nosso acompanhante que nos dispensasse o máximo de consideração e de atenção.
O interior redecorado do Domdaniel possuía uma aparência muito mais moderna do que o exterior. Apesar disso, grande parte do encanto do passado ainda transparecia nos painéis de madeira entalhada, nos corrimões trabalhados da escada e em uma lareira larga que fora deixada intacta em um dos lados da enorme sala principal.
Não podíamos ter escolhido uma mesa melhor do que aquela à qual fomos levados. Ficava perto da lareira, e, como as mesas ao longo das paredes eram ligeiramente elevadas, tínhamos uma vista livre de todo o salão. Mais para a nossa direita, um tanto distante, ficava a entrada principal, e à nossa esquerda situava-se o estrado da orquestra. Defronte a nós, do outro lado do salão, um arco levava ao corredor; e para além dele, quase como que recortada na soleira da porta, podíamos ver a escada larga e atapetada que levava para o andar de cima.
Vance olhou de relance por todo o salão, sem fixar muito o olhar, e depois voltou a atenção para o trabalho de encomendar o jantar. Feito isso, meu companheiro se recostou na sua cadeira e, acendendo um cigarro, relaxou todo o corpo, instalado confortavelmente. Mas notei que, por baixo das pálpebras semicerradas, Vance perscrutando todas as pessoas que se se achavam ao nosso redor. De repente, endireitou o corpo na cadeira e, inclinando-se na minha direção, murmurou:
— Arre! Acho que estou ficando velho e que meus olhos estão-me enganando. Olhe à minha direita, perto da entrada. É a espantosa jovem do cheiro de cidra. E está-se divertindo muito. Acha-se na companhia de um namorado muito bem vestido. Não sei se o jovem é o que a acompanhava na excursão a Riverdale ou se é o tal Burns, o rapaz sério e abstêmio. Seja quem for, está sendo muito atencioso para com ela, e acha-se tremendamente satisfeito consigo mesmo.
Reconheci imediatamente o elegante rapaz que eu vim do relance quando íamos fazendo a curva da avenida Palisade, quando voltávamos para o carro. Informei Vance do que, sem dúvida nenhuma, era o jovem Puttle.
— Isso não me surpreende nem um pouco — foi sua resposta. — É evidente que a moça está seguindo a técnica milenar e sobejamente comprovada como eficaz. Puttle receberá uma porcentagem esmagadora dos seus favores, até chegar o momento realmente importante da decisão final. Aí, creio eu que o eleito será Burns, que hoje é desprezado. — E riu baixinho. — Os truques do amor são sempre os mesmos. Oh, se o próprio Burns estivesse em cena aqui esta noite, afastado dela, roendo-se de ciúmes e estourando de raiva! — E sorriu, divertido.
O olhar de Vance tornou a vagar pelo salão, enquanto ele puxava preguiçosamente fumaça do seu cigarro. Dentro em pouco, seu olhar pousou em um homem que se achava sozinho a uma pequena mesa, no canto mais distante.
— Sabe, acho que encontrei o nosso jovem Burns, a hipotenusa dolorosa do meu triângulo imaginário. Ele está sozinho. A idade confere com a dele. É um rapaz sério. Senta-se a uma mesa colocada no ângulo exato que lhe permita observar a sua fujona ninfa das matas e seu companheiro. Observa-a atentamente, e parece aborrecido e tão enciumado, que chega até a pensar em assassinato. Não tem apetite para comer o que tem diante de si. Sobre sua mesa não há vinho nem bebidas alcoólicas. E está... fulo de raiva!
Deixei meu olhar seguir o de Vance, enquanto este falava, e observei o jovem solitário. Tinha o rosto sério e um tanto agressivo. Apesar do senso de humor denotado pelas suas sobrancelhas, viradas em um ângulo para cima, sua testa larga dava a impressão de considerável profundeza de pensamentos e de capacidade de julgamento acurado. Seus olhos cinzentos eram bem afastados um do outro e de cativante candura, e tinha o queixo sensível, embora firme. Trajava-se com apuro, embora com simplicidade, em forte contraste com a grandeza exibicionista da forma de trajar do Senhor Puttle.
Durante um intervalo do espetáculo de pista, o jovem solitário levantou-se um tanto hesitante da sua cadeira e encaminhou-se, com passos largos e resolutos, até à mesa ocupada pela Senhorita Allen e seu companheiro. Os dois o cumprimentaram sem entusiasmo. O recém-chegado, franzindo a testa de modo desagradável, não fez nenhuma tentativa para ser cordial.
A jovem levantou o cenho com uma altivez teatral, totalmente em desacordo com a expressão maliciosa das suas feições. Os modos do seu acompanhante eram indiferentes e dotados de palpável condescendência. Seu papel era o de um homem vitorioso que trata com o inimigo vencido e atormentado. Seu efeito sobre Burns — se é que era Burns — deve ter sido tremendamente agradável para ele. Isto, juntamente com o falso desdém da jovem, intensificou ainda mais o mau humor do Intruso. Este fez um gesto desajeitado de derrota e, virando-se, voltou desanimado para sua mesa. No entanto, notei que a Senhorita Allen lançou vários olhares abertamente na sua direção, o que deixava entrever que ela estava longe de ser indiferente para com o rapaz, como fingia ser.
Vance observava o pequeno drama, entre interessado e encantado.
— E agora, Van, — falou ele — o quadro do amor jovem está completo. Ah, o coração feminino, eternamente sádico e, no entanto, leal...!
Quinze ou vinte minutos depois, Mirch, sorrindo de canto a canto da boca e fazendo mesuras, entrou no refeitório, vindo do corredor da entrada principal, e seguiu adiante, rumo aos fundos do salão, até uma pequena mesa que ficava atrás do estrado da orquestra, onde uma das artistas se achava sentada. Tratava-se de uma mulher loura e de uma beleza berrante, que, segundo eu sabia, era a famosa cantora Dixie Del Marr.
Dixie saudou Mirche com um sorriso que parecia mais íntimo do que seria de se esperar que o fosse entre empregada e empregador. Mirche puxou a cadeira que se achava diante da mulher e sentou-se à mesa. Fiquei um tanto surpreso ao notar que Vance os observava atentamente, e senti que não se tratava apenas de mera curiosidade inconseqüente da sua parte.
Tornei a voltar o olhar para a mesa da cantora. Dixie Del Marr e Mirche tinham dado início ao que parecia ser um bate-papo confidencial. Achavam-se inclinados para diante, na direção um do outro, e era evidente que desejavam evitar serem ouvidos pelos que se achavam perto deles. Mirche frisava algum ponto, e Dixie Del Marr concordava, com um aceno afirmativo de cabeça. Depois, a Senhorita Del Marr fez uma pergunta, à qual o outro, por sua vez, respondeu com um aceno compreensivo de cabeça.
Depois de alguns minutos dessa conversa aberta e, no entanto, sigilosa, ambos recostaram-se em suas cadeiras e Mirche deu uma ordem a um garçom que passava. Alguns momentos depois, o garçom voltava com dois copos finos e compridos de um líquido cor-de-rosa.
Muito interessante — murmurou Vance. — Fiquei curioso...


CAPITULO V
UM ENCONTRO
(Sábado, 18 de maio — 21:30 horas)

Foi pouco depois disto que notei que a jovem Gracie Allen se levantava alegremente da sua cadeira, ao lado do radiante Senhor Puttle. Fez-lhe um aceno acanhado enquanto deslizava ao longo do restaurante, como uma gazela cheia de graça.
Céus! — falou Vance, rindo baixinho. — A espantosa ninfa dos bosques está vindo na nossa direção. Se ela me reconhecer, a história que inventei esta tarde vai cair em pedaços sobre minha cabeça mentirosa...
Enquanto meu companheiro falava, ela o observava. Depois, jogou as mãos para o alto, em um gesto de surpresa e encantamento, e veio rumo à nossa mesa.
— Que surpresa agradável — falou ela. Depois, censurou Vance, em voz mais baixa: — O senhor é um assassino muito atrevido. Terrivelmente ousado. Não sabe que alguém pode vê-lo aqui? Um garçom, por exemplo, ou outra pessoa qualquer.
— Ou a senhorita — sorriu Vance.
— Oh, mas eu não contaria a ninguém. Não se lembra? Eu prometi não contar. — A moça sentou-se com espantosa rapidez e riu baixinho, em tom musical. — E eu sempre digo que as pessoas devem cumprir as promessas feitas, se é que sabe a que me refiro... Mas meu irmão é esquisito nesse particular. Ele jamais cumpre as promessas que faz, embora cumpra muitas das outras coisas que se propõe a fazer. E algumas vezes ele se mete em sérios apuros por não cumprir aquilo que combina. Está sempre encrencado. Talvez seja porque é tão ambicioso. O senhor é ambicioso?
— Por falar em promessas — falou Vance — a senhorita cumpre todas as promessas que faz ao Senhor Burns?
— Nunca fiz nenhuma promessa ao George — garantiu ela a Vance, com um rubor de confusão aumentando em suas feições maliciosas. — Que foi que o fez pensar isso? Mas ele tem feito tudo para me fazer prometer-lhe alguma coisa. E fica terrivelmente zangado comigo. Está zangado esta noite. Mas, é claro, ele não demonstraria isso diante de tanta gente. George é tão cavalheiresco... Jamais se sabe em que ele está realmente pensando. Mas ninguém sabe, também, em que eu estou pensando. Só que não sou cavalheiresca. Ó Senhor Puttle diz que sou apenas bonitinha e atraente. E ele me conhece há muito tempo. E acho que é muito melhor ser bonitinha e atraente do que ser cavalheiresca. O senhor não concorda comigo?
Vance não fez nenhum esforço para ocultar sua hilaridade.
— Claro que concordo — respondeu ele. — E, a propósito, onde está o cavalheiresco Senhor Burns esta noite?
A moça deu uma risadinha abafada, embaraçada.
— Está sentado do outro lado do salão. — Virou graciosamente a cabeça, para indicar o jovem solitário que antes já nos atraíra a atenção. — E parece, também, sentir-se muito infeliz. Não consigo imaginar por que ele veio aqui esta noite... Sei que George nunca veio a este restaurante. Quer saber de um segredo? Pois vou-lhe contar, mesmo que o senhor não queira ouvir. Eu também estou vindo aqui hoje pela primeira vez. Mas isto aqui está-me agradando. O senhor não está gostando? Isto é muito grande e barulhento. E há tanta gente... O senhor não gosta de ver muita gente em um lugar só? Acho que aquela gente é muito agradável. Mas receio que George não esteja gostando do ambiente. Talvez seja por isso que está com aquele ar tão infeliz.
Vance não a interrompeu. Meu companheiro parecia estar-se divertindo com a inconseqüente saraivada de palavras da jovem.
— E... oh! — exclamou ela, como se lhe tivesse ocorrido algum pensamento de importância transcendental. — Esqueci-me de dizer-lhe: sei quem o senhor é! Que acha disso? O senhor é Philo Vance, não é? Não acha que sou terrivelmente esperta por saber disso? Aposto que o senhor não sabe como foi que descobri. Olhei no cartão de visitas que o senhor me deu hoje à tarde e lá estava o seu nome! Isto é, o Senhor Puttle olhou no seu cartão e disse que aquele devia ser o seu nome. E também ficou zangado um instante, quando lhe contei o caso do vestido novo que vou buscar na segunda-feira. Mas logo se acalmou novamente. Disse que, se o senhor era tão trouxa, ele não tinha nada com isso, e que gente como o senhor nasce a todo instante. Não sei o que quis dizer com isso. Mas foi assim que descobri o seu nome.
A moça mal fazia pausas para respirar.
— E... ohl O Senhor Puttle me contou mais alguma coisa a seu respeito. Uma coisa muito emocionante. Disse que o senhor era uma espécie de detetive e que era o senhor quem era elogiado por todo o trabalho duro que os pobres policiais fazem. Isso é mesmo verdade?
E ela nem esperou resposta.
— Em certa ocasião, meu irmão quis entrar para a polícia, porém não entrou. Mas não importa, pois acho que ele não tem altura suficiente para ser um polícia de verdade. Não é alto como o Senhor Puttle. É pequeno, como eu e George. E nunca vi um policial pequeno. O senhor já viu? Mas talvez ele pudesse ter sido detetive. Aposto em que ele nunca pensou nisso. Ou talvez também não haja detetives de baixa estatura. Alguém pode ser detetive, sendo pequeno demais? Ou talvez o senhor não saiba.
Vance riu, muito divertido, olhando dentro dos olhos da moça, como se desconcertado pelas suas confusas divagações.
— Tenho conhecido alguns detetives de baixa estatura — disse-lhe Vance.
— Bem... Em todo caso, acho que meu irmão não sabia disso. Ou talvez não quisesse ser detetive. Pode ser que ele desejasse ser policial apenas porque os policiais usam uniforme... Oh, senhor Vance? Acaba de me ocorrer outra coisa. Aposto em que sei que o senhor não tem medo de estar aqui esta noite. Eles não podem prender um detetive! E também não podem prender um policial, podem? Se pudessem, quem ficaria para prender os homens fora da lei? E, por falar no meu irmão, ele também está aqui esta noite. Está aqui toda noite...
— Ah! — murmurou Vance. — E onde é que ele está sentado?
— Oh, não quero dizer que ele esteja aqui no restaurante — declarou a moça, ingenuamente. — Ele trabalha aqui.
— Não diga! Que é que ele faz?
— O serviço dele é muito importante.
— Ele trabalha no Domdaniel há muito tempo?
— Ora, trabalha aqui há mais de seis meses! É muito tempo, em se tratando do meu irmão. Parece que ele nunca foi muito de trabalhar. Acho que é um sonhador. Em todo caso, alega que nunca lhe dão o merecido valor. E foi só hoje que ele disse que vai ter um aumento de salário. Mas receia que seu patrão também não lhe dê o devido valor.
— E que é que seu irmão faz aqui? — indagou Vance.
— Trabalha na cozinha. E lavador de pratos. É por isso que seu trabalho é tão importante. Imagine, se um restaurante grande como este não tivesse um lavador de pratos! Não seria horrível? Ora, nem sequer se poderia fazer uma refeição. Como poderiam servir a comida à gente, se os pratos estivessem imundos?
— Devo confessar que a senhorita tem razão — admitiu Vance. — Seria uma situação muito embaraçosa. Como você diz, o trabalho do seu irmão é muito importante. E, de passagem, diga-se que a senhorita é a jovem mais deliciosamente espantosa e mais perfeitamente natural que já conheci na minha vida.
Ficou evidente que o elogio foi desperdiçado com ela, pois a moça voltou imediatamente ao assunto do seu irmão.
— Mas talvez ele deixe o emprego hoje. Disse que deixaria, se não obtivesse aumento. Mas acho que, na verdade, ele não devia deixar o emprego, o senhor não acha? E vou dizer isto a ele... Aposto que o senhor não sabe aonde eu vou agora.
— Espero que não vá à cozinha.
— Ora, o senhor é mesmo um bom detetive. — Os olhos da moça, pestanejando, arregalaram-se. — É para lá que eu iria, mas Philip, meu irmão, afirmou que eles não me deixariam entrar na cozinha. Mas vou-me encontrar com ele na escada da cozinha. Philip disse que eu estava apenas fazendo-me de importante quando lhe disse que viria aqui esta noite. Imagine! Ele não quis acreditar em mim. Portanto, eu disse: — Então, você vai ver. — E ele retrucou: — Se você for mesmo ao Domdaniel, vá ao meu encontro na escada da cozinha, às dez horas da noite. — E é para lá que eu vou agora. Meu irmão tinha tanta certeza de que eu não viria aqui, que prometeu que, se eu lhe provasse que estava aqui, indo ao seu encontro, não sairia do emprego, mesmo que não lhe dessem aumento de salário. E sei que a mamãe quer que ele continue no emprego. Portanto, tudo sairá bem... Oh, que horas são, Senhor Vance? Vance consultou de relance o seu relógio.
— Faltam cinco minutos para as dez horas.
A jovem levantou-se tão de repente quanto se sentara.
— Não me importo muito com o bobo do Philip — falou ela. — Mas quero fazer mamãe feliz.
Enquanto Gracie se apressava rumo à distante passagem em arco, Burns, o rapaz solitário, se levantou e a seguiu rapidamente para o corredor. Quase simultaneamente, os dois passaram pela tapeçaria de damasco que havia na soleira da porta e desapareceram de vista.
Vance notara o jovem correr atrás da Senhorita Allen e fez um aceno benevolente de satisfação.
— Pobre e infeliz rapaz! — observou ele. — Agarrou a sua única oportunidade fugidia de falar a sós com sua amada. Espero que ele não cometa a imprudência de ralhar com ela... Mas, seja o que for que ele fizer, a deusa Afrodite já lhe está sorrindo de forma favorável, embora ele não lhe reconheça a fisionomia sorridente.
Voltei minha atenção, com indiferença, para a mesa onde Mirche e a Senhorita Del Marr tinham estado sentados. No entanto, a cantora havia desaparecido, e Mirche perscrutava de forma complacente o salão de refeições. Depois, ele seguiu pelo corredor, rumo à entrada principal.
Ao chegar à nossa mesa, parou um instante, fez uma mesura pomposa, para se certificar de que não nos faltava nada, e Vance convidou-o para sentar-se conosco.
Não havia nenhuma característica que distinguisse Daniel Mirche de forma especial. O homem era do tipo comum, esse misto de político e de dono de restaurante, grande e um tanto exibicionista. Era, ao mesmo tempo, agressivo e bajulador, com maneiras de polidez superficial. Seus cabelos ralos eram ligeiramente grisalhos e seus olhos tinham um peculiar matiz esverdeado.
Vance conduziu a conversa com facilidade, abordando vários aspectos relacionados com o interesse de Mirche no restaurante e sua gerência. Seguiu-se uma discussão a respeito de vinhos e suas safras. Momentos depois, Vance lançara-se a um dos seus assuntos prediletos: isto é, os conhaques raros do distrito oeste central da França, os distritos de Grande Champagne e Pequeno Champagne e os vinhedos em torno de Mainxe e Archiac.
Enquanto eu perpassava os olhos pelo salão, a esmo, notei que o jovem Burns voltara para sua mesa. E pouco depois a moça reaparecia no arco da porta do lado oposto, indo diretamente rumo ao Senhor Puttle. Nem sequer olhou de relance na nossa direção; e, pela expressão de desanimo do seu rosto, só pude supor que ela falhara no seu objetivo.
No entanto, não me ocupei demasiado tempo com essas reflexões. Minha atenção foi atraída pela entrada furtiva e quase felina de um homem magro e alto, que seguiu, como se não quisesse atrair atenção, para uma pequena mesa no canto oposto do salão. Essa mesa, não muito distante daquela em que se encontrava sentado o desalentado jovem Burns, já estava ocupada por dois homens, que se achavam de costas para o salão; e, quando o recém-chegado ocupou a cadeira vaga diante dos dois, eles se limitaram a fazer um aceno de cabeça.
Meu interesse por esse personagem alto e magro baseava-se no fato de que ele me fazia lembrar de fotografias que eu tinha visto de um dos facínoras mais notórios da época, um tal Owen. Corriam os boatos mais desagradáveis a respeito do tal homem, e houvera rumores de que ele era o planejador — ou, como se diz vulgarmente na gíria jornalística desse tipo de reportagens, ”o cérebro” por trás de certas organizações, de vulto considerável, de meliantes. Acreditava-se que ele representava um papel de direção entre os fora-da-lei, e que esse papel era tão importante que o homem conquistara o apelido de ”Coruja”.
Havia uma característica notável implícita nas suas feições super-refinadas. Uma característica maligna, sem dúvida, mas que deixava entrever potencialidades muito vastas e talvez até heróicas. O homem se formara com louvor em uma grande universidade e me trouxe à mente um lindo retrato de Robespierre que eu vira um dia: lá estava a mesma expressão maquiavélica de inteligência e de sagacidade. O homem tinha cabelos e olhos escuros, mas uma pele sem cor, como se fosse de cera. A impressão dominante que ele dava era de uma dureza inflexível: era fácil imaginá-lo desempenhando as funções de um carrasco com um sorriso indiferente e cruel nos lábios finos.
Estou descrevendo este homem de maneira tão minuciosa porque ele deverá representar um papel de vital importância no estranho desenrolar do caso que estou contando. Mas, naquela noite, eu não podia mesmo por um salto fantástico de imaginação, tê-lo ligado, fosse como fosse, com a quase incrível e descuidada Gracie Allen. E, contudo, esses dois caracteres tão diferentes deveriam cruzar o caminho um do outro, em breve, da maneira mais espantosa.
Eu já estava para afastar esse homem da minha mente, quando notei um tom de voz fora do comum na fala de Vance, enquanto ele batia papo com Mirche. Com aquela fleuma peculiar e ao mesmo tempo alerta, Vance estava olhando fixamente para a mesa situada no canto mais distante, onde os três homens se achavam sentados.
— A propósito — falou ele a Mirche, um tanto abruptamente. — Aquele, sentado lá, perto da coluna do canto, não é o famoso ”Coruja” Owen?
— Não conheço o Senhor Owen — respondeu Mirche, suavemente. No entanto, virou-se ligeiramente, com natural curiosidade, na direção apontada por Vance. — Mas poderia ser — acrescentou ele, depois de um instante de exame. — Até que é parecido com as fotografias que tenho visto do Senhor Owen... Se quiser, posso ir-me certificar.
— Oh, não, não é preciso — falou Vance. — Mas é muita amabilidade sua. Mas não é coisa importante, sabe?
Os componentes da orquestra iam voltando aos seus lugares, e Vance empurrou sua cadeira para trás.
— Tive uma noitada muito agradável e edificante — disse ele a Mirche. — Mas, agora, preciso mesmo ir andando.
Os protestos delicados de Mirche pareceram bastante legítimos, quando ele nos sugeriu que ficássemos pelo menos até depois do número de Dixie Del Marr, que seria o próximo.
— É uma excelente cantora — acrescentou Mirche, com entusiasmo. — E uma mulher de raro encanto pessoal. Ela faz seu número às onze da noite, e já está quase na hora.
Mas Vance alegou assuntos urgentes que ainda lhe exigiam a atenção naquela noite e pôs-se de pé.
Mirche exprimiu seu profundo pesar e nos acompanhou até à entrada principal, onde nos deu um efusivo boa noite.

CAPITULO VI
O CADÁVER
(Sábado, 18 de maio — 23:00 horas)

Descemos a escada de degraus largos de pedra, até à rua, e seguimos para leste. Na Sétima Avenida, repentinamente, Vance fez sinal para um táxi e deu ao motorista o endereço da residência do procurador distrital.
— Nesta altura, Markham já deve ter voltado da sua ronda de tarefas políticas — disse Vance, enquanto seguíamos para o centro da cidade. — Sem dúvida, ele me criticará impiedosamente pela minha aventura noturna oca. Mas, não sei por que, senti uma inquietação estranha esta noite nos salões espaçosos do Domdaniel, depois de ouvir as observações pouco recomendáveis do sargento a respeito do restaurante. O restaurante continua sendo como sempre foi. No entanto, por que minha mente era assombrada por pensamentos sinistros e de mau agouro, enquanto eu remexia no Meando e bebericava o Château Haut-Brion. Acho que, com o correr dos anos, os tentáculos envolventes da desconfiança estão-se fechando sobre minha natureza, outrora confiante. Ai de mim...!
O táxi parou de chofre diante de um pequeno prédio e fomos imediatamente para o apartamento do procurador distrital.
Markham, usando paletó esporte e chinelos, recebeu-nos com divertida surpresa.
— Espero que não seja outro mensageiro afobado com más notícias.
— Nada de Hermes nem de caduceus. Você está sendo acossado pelos arautos?
— Mais ou menos isso — retorquiu Markham, com uma careta. — O sargento aqui acaba de me trazer uma mensagem.
Eu não notara a presença de Heath, mas agora o vi, de pé, perto de uma janela, na sombra. O sargento avançou com um aceno amigável de cabeça.
— Caramba, sargento — falou Vance. — Que veio fazer aqui?
— Vim por causa da mensagem de que o Senhor Markham estava falando, Senhor Vance. Uma mensagem de Pittsburgh.
— São más notícias?
— Bem, não são exatamente o que se poderia chamar de boas — queixou-se Heath. — Acho que são até bem ruins.
— Não diga...
— Acho que não errei muito nas deduções e previsões que fiz ontem à noite a respeito do caso... O capitão Chesholm, de Pittsburgh, acaba de mandar-me a notícia de que um dos seus motociclistas localizara um carro viajando sem luzes em uma estrada secundária, e que, quando o carro diminuiu a marcha para fazer um curva apertada, um sujeito que viajava no banco traseiro deu dois tiros contra o policial. O carro fugiu, seguindo para leste, rumo à estrada principal.
— Mas, sargento, por que esse pequeno tiroteio na Pennsylvania perturbaria a sua excelente voz de tenor?
— Vou-lhe dizer por que. — Heath tirou o charuto da boca. — O guarda pensou ter reconhecido Benny, o Abutre!
Vance não se deixou impressionar.
— Nas circunstâncias em que se deu o fato, ele pode ter-se enganado redondamente.
— Foi exatamente o que eu disse ao sargento. — Markham fez um aceno de cabeça, aprovando. — Nas próximas semanas, vamos receber comunicados de que Pellinzi foi visto em todos os Estados deste país.
— Talvez — insistiu Heath. — Mas o modo como o tal carro estava viajando encaixa exatamente na minha idéia. O Abutre já poderia ter chegado a Nova York hoje cedo, se ele tivesse vindo diretamente de Nomenica. Mas, fazendo um círculo até a Pennsylvania e vindo de lá rumo oeste, talvez ele pretendesse, com isso, evitar muitas dificuldades.
— Pessoalmente — falou Markham — estou convencido de que aquele sujeito se manterá afastado de Nova York. — Seu tom de voz era equivalente a uma crítica à ansiedade do sargento.
Heath sentiu a repulsa.
— Espero que não o tenha importunado, vindo aqui esta noite, chefe. Eu sabia que o senhor tinha dois compromissos hoje, e pensei que ainda estivesse de pé.
Markham suavizou o tom de voz.
— O fato de você ter vindo aqui não tem importância — falou ele, para tranqüilizar o defensor da lei. — Tenho sempre prazer em vê-lo, sargento. Sente-se e sirva-se da garrafa... Talvez o próprio Senhor Vance esteja à procura de uma platéia para contar a ela a respeito das sobrancelhas arqueadas de Mirche e de outros pormenores horrendos da sua estada no Domdaniel... Então, Vance? Você tem alguma história de duendes com que nos regalar antes de irmos para a cama?
Heath instalara-se em uma cadeira e serviu-se de uma bebida. Vance também estendera a mão para pegar o seu conhaque predileto.
— Sinto muito, Markham, velho amigo — disse ele, na sua voz arrastada. — Não tenho nenhuma fantasia para contar... Nem mesmo uma a respeito de um carro misterioso em fuga. Mas tentarei igualar a história inspirada do sargento com um conto sobre uma ninfa dos bosques e um experimentador de perfumes; de uma Lorelei que canta de um pódio em vez de cantar de um penhasco rochoso. De um dono esperto de um restaurante e de um escritório vazio, cercado de grades misteriosas; de uma sacada coberta de trepadeiras e de uma coruja sem penas... Você poderia suportar ouvir o cântico do meu poema?
Estou com resistência baixa.
Vance estendeu as pernas diante de si.
— Bem, com licença, então — começou ele. — Nesta noite, uma encantadora jovem, uma garota espantosa, nos fez companhia à nossa mesa, durante alguns minutos. Uma criança, cujo cérebro é uma roda-viva e gira como um pião, irradiou as fagulhas mais coloridas; porém, seu espírito, é tão ingênuo quanto o de uma criança.
— A tal ninfa dos bosques de quem você tagarelou no preâmbulo?
— Sim... Ela mesma. Eu a vi pela primeira vez hoje à tarde em um bosque sombrio em Riverdale. E ela estava no Domdaniel hoje à noite, acompanhada por um sujeito chamado Puttle, que ela estava usando como isca para fisgar o verdadeiro queridinho do seu coração, um rapaz de nome Burns. Este também se achava presente esta noite, mas longe da moça, e sozinho... e muito infeliz.
— Seu encontro com ela hoje à tarde sugere possibilidades mais interessantes — comentou Markham, com indiferença.
— Talvez você tenha razão, meu caro. A verdade é que a moça se achava sozinha quando me introduzi no seu reino florestal. Mas ela aceitou minha intromissão sem dificuldades. Até se ofereceu para ler a palma da minha mão.
— Delpha? — interrompeu Heath, em tom agudo. — Refere-se àquela cartomante que negocia com a profissão sob esse nome falso?
— Talvez seja — falou Vance. — Essa Delpha, ao que me consta, lida com leitura das linhas da mão, com astrologia, com numerologia e com outras coisas semelhantes. Você conhece essa pitonisa, sargento?
— Claro que conheço. E conheço também o marido dela, de nome Tony. Os dois são ligados de estranha maneira com um punhado de malfeitores do submundo. Esse casal atua como informante e como observador para assaltos a joalharias... São o que se poderia chamar de espiões para assaltos. Mas não conseguimos pilhá-los em flagrante. O sobrenome deles é Tofana e os dois têm uma loja para enganar os trouxas... ”Delpha” — bufou ele. — Para os vizinhos, ela é apenas Rosie. Talvez ela fique livre das grades durante algum tempo, mas algum dia eu a agarrarei.
— Você me deixa atônito, sargento. Simplesmente, não posso imaginar que minha linda fada dos bosques — que, a propósito, trabalha em uma fábrica de perfumes a semana inteira — tenha algo a ver com a megera sombria da sua descrição.
— Mas eu posso — falou Heath. — Esse é um dos truques mais batidos da velha Rosa Tofana: cercar-se de jovens inocentes. E, enquanto ela finge ser uma comerciante inofensiva e imaculada, o velho Tony está talvez tramando alguma patifaria, ou batendo carteiras, bancando o gigolô ou então vendendo entorpecentes do outro lado da cidade. Esperto, o Tony... Sabe fazer quase de tudo.
— Bem — murmurou Vance. — Talvez estejamos falando de duas mulheres diferentes, não é? ”Delpha” pode ser um nome popular da irmandade mística. Talvez uma sugestão fonética para o oráculo de Delfos...
— Coragem, Vance — interrompeu Markham, em tom agradável. — Não deixe que o sargento o afaste do seu conto da carochinha.
— E o pormenor mais espantoso — prosseguiu Vance — foi o cheiro de cidra que havia ao redor do duende. O perfume fora feito especialmente para ela, e não tinha nome. Muito misterioso, hem? Fora preparado pelo cavalheiro chamado Burns, uma espécie de mago das essências, empregado na mesma fábrica em que a moça trabalha. Burns, que ficou tão aborrecido com a aparente preferência que ela resolvera passar a dar a um rival dele.
Markham deu um sorriso torto.
— Não consigo entender onde é que entra o mistério da situação.
— Nem eu — confessou Vance. — Mas deixe seu cérebro obtuso demorar sobre o fato de que a tal jovem foi escolher exatamente esta noite para visitar o restaurante de Mirche.
— Talvez ela tenha seguido os seus passos, desde Riverdale, até você chegar ao Domdaniel.
— Ora, isso não resolveria nada. Ela já se achava lá quando eu cheguei.
— Então, talvez a moça estivesse com fome.
— Eu já pensara nisso. — Os olhos de Vance brilharam alegremente. — Talvez você tenha solvido o mistério! Mas... — prosseguiu ele — isso não explica o fato de que o próprio Mirche estivesse no Domdaniel.
— Ora, e onde é que você queria que ele estivesse? Mas talvez você agora vá dizer-me que ele é o pai da sua heroína, de quem se separara há muito tempo, não é?
— Não — suspirou Vance. — Mirche, ao que temo, é de uma sublime ignorância da existência da jovem. Que maçada. E eu, que estava tentando inventar uma história divertida para você se entreter...
— Aprecio o esforço. — O charuto de Markham precisava ser aceso novamente, e ele cuidou disso. — Mas diga-me o que achou de Mirche. Lembro-me de que seu objetivo principal, ao ir hoje ao Domdaniel, foi o de estudar o homem mais de perto.
— Ah, sim. — Vance mexeu-se e afundou mais na sua poltrona. — Você é sempre tão prático, Markham... Bem, não gosto de Mirche. É um cavalheiro correto, mas não admirável. No entanto, fez esforços enormes para me agradar. Não sei o motivo disso... Talvez ele estivesse tramando alguma sujeira, embora tenha-me dado a impressão de que é do tipo de homem que precisaria de alguém para fazer planos para ele. Não, Mirche não é um líder de homens, mas, sem dúvida, é um assecla fiel e capaz. Um sujeito sombrio e perverso... Bem, aí tem você o vilão da peça.
— E que farei com ele? Seu conto está fracassando a cada instante que passa.
— Receio que você tenha razão — confessou Vance. — Deixe-me ver... Examinei detidamente o escritório de Mirche, mas, infelizmente, a sala achava-se desprovida de qualquer coisa comprometedora. Apenas uma sala de tamanho razoável, sem nenhum ocupante. E depois olhei com muito gosto para a velha porta e para as janelas que ficam além do alpendre, dentro da alameda por onde entram os carros. Mas, apesar de todo o exame minucioso que fiz, não consegui descobrir nada que ajudasse. Mas as trepadeiras que havia por lá eram muito agradáveis. Trepadeiras inglesas.
— Agora, você passou para a Botânica — disse Markham. — Devo dizer que prefiro a narrativa, feita pelo sargento, do tiroteio de Pittsburgh... Mas você não falou de uma Lorelei?
— Ah, sim. E bem loura... como convém a uma sereia do Reno. Mas o nome dela tem um elo gaulês: Del Marr. Uma Lorelei impressionante. Mais inteligente, creio eu, do que Mirche. Mas houve uma conversa séria entre ela e Mirche. Os dois sentaram-se a uma mesa, durante um intervalo de descanso da orquestra, e tenho certeza de que a conversa não se limitou a assuntos musicais ou profissionais de empregador e cantora. Havia uma atmosfera de intimidade entre os dois. Liberdade, igualdade, fraternidade... Assim. Não era uma simples contratada conversando com seu empregador.
— Eu também imaginei isso, há alguns anos — intrometeu-se Heath. — Além disso, ela tem um carro de luxo e motorista. Sua profissão de cantora certamente não lhe dá dinheiro para tanta coisa. E a cara do tal motorista também não me agrada: é um tipo mal-encarado, como um desses leões-de-chácara que trabalham nas casas de jogatina.
— Pelo menos, Vance, — falou Markham, esperançoso — você descobriu uma ligação em potencial entre os componentes do seu drama, quase totalmente desorganizados e sem relações entre si. Talvez você possa desenvolver a estrutura da sua narrativa tendo isso como base.
Vance sacudiu a cabeça, desanimado.
— Não, acho que, infelizmente, não estou à altura da tarefa.
— E que há a respeito da ”coruja sem penas” de que você falou há pouco?
— Ah! — E Vance bebericou o seu conhaque. — Eu me referia ao sombrio e misterioso Senhor Owen, de lembrança detestável e má reputação.
— Compreendo. ”Coruja” Owen, hem? Eu tinha uma idéia vaga de que ele se estivesse torrando ao sol da Califórnia. Há algum tempo atrás, correu o boato de que ele estava morrendo, talvez por efeito dos seus pecados.
— Oh, estava bem vivo lá no Domdaniel, sentado do outro lado do salão, junto com dois outros homens.
— Aqueles dois sujeitos — adiantou Heath — eram, talvez, seus guarda-costas. Ele não anda sem a companhia dos dois.
— Acho que você não vai conseguir nada com ele, Vance — falou Markham. — Certa ocasião, o FBI se preocupou com ele, mas, depois de efetuar investigações, declararam o homem isento de culpa. Ou, pelo menos, disseram que não havia provas da sua culpa.
— Confesso que estou derrotado. — Vance sorriu, tristonho. — Cheguei até a tentar atrair Mirche para que este confessasse que conhecia Owen. Mas o homem negou o mínimo conhecimento com o ”Coruja”...
Após mais uma hora de conversa sem objetivo, fomos interrompidos pelo tilintar do telefone. Markham franziu o cenho, aborrecido, enquanto atendia. Depois, pondo o receptor no lugar, virou-se para Heath.
É para você, sargento. É Hennessey.
Heath também ficou aborrecido.
— Desculpe, chefe. Não deixei este número com ninguém quando vim para cá.
Enquanto saudava Hennessey pelo telefone, sua voz era belicosa. Escutou vários minutos, a expressão fisionômica mudando rapidamente da beligerância para outra de quem está profundamente confuso. De repente, berrou para o fone: ”Não desligue, espere um instante!” — E, segurando o receptor do telefone de lado, virou-se para nós:
— Parece-me uma loucura, chefe, mas Hennessey está telefonando lá do Domdaniel, e preciso ir falar com ele imediatamente...
— Esplêndido! — disse Vance, num impulso. — Por que não manda Hennessey vir aqui? Tenho certeza de que Markham não se oporia.
Markham dirigiu a Vance um olhar de espanto.
— Está bem, sargento — disse ele, de mau humor. Heath recolocou novamente o fone ao ouvido, com rapidez.
— Escute, Hennessey — disse ele, em voz áspera. — Venha aqui à casa do procurador.
— Que agitação é essa, sargento? — indagou Vance. — Terá o Mirche se escondido com seu próprio dinheiro e fugido com a Senhorita Del Marr para casar-se com ela?
— É muito esquisito — murmurou Heath, ignorando a pergunta. — Os rapazes encontraram um cadáver de homem no restaurante.
— Espero, nesse caso, que tenha sido achado no escritório de Mirche — disse Vance, em tom leve.
— O senhor acertou. — E Heath olhou fixamente para o soalho.
— E de quem seria o cadáver?
— É justamente isso que torna a coisa esquisita. O cadáver é de um empregado que trabalhava na cozinha do restaurante.
— Esse fato o ajudará a reviver o seu conto fracassado? — perguntou Markham a Vance.
— Céus, não! Isso fulmina completamente toda a minha história. — Vance tornou a se virar para Heath. — Você já sabe o nome do morto, sargento?
— Não prestei muita atenção ao nome quando Hennessey disse que era apenas um empregado de cozinha. Mas me pareceu algo como Philip Allen.
As pálpebras de Vance bateram ligeiramente.
— Philip Allen, hem? Muito interessante!

CAPITULO VII
ESTRANHAS COINCIDÊNCIAS
(Domingo, 19 de maio — 0:45 horas)

Hennessey chegou em menos de quinze minutos. Era um homem corpulento e sério, de feições severas e maneiras desajeitadas.
Heath foi diretamente ao assunto que interessava.
— Conte sua história, Hennessey. Depois, eu lhe farei perguntas. Mas, primeiro, quero saber por que você me telefonou para cá a estas horas da noite.
— Diacho, sargento! — retrucou Hennessey. — Havia mais de uma hora que eu estava tentando encontrá-lo. Eu sabia que o senhor fazia ligação de idéias entre o Senhor Markham e o Domdaniel, e imaginei que o senhor quereria saber de uma morte inesperada acontecida lá. Por isso, telefonei para sua casa e para inúmeros outros lugares em que eu pensava que o senhor poderia estar, mas em vão. Depois, arrisquei-me a ligar para cá. Eu não queria que o senhor gritasse comigo amanhã, para me passar um carão.
— Bem, o que você sabe? — resmungou Heath.
— A história parece um tanto maluca, sargento. Mas, por volta das onze horas, vi o Senhor Vance sair do restaurante. Antes disso, já o vira rondando o escritório de Mirche...
— Às oito horas — interrompeu Vance, com um sorriso.
Hennessey tirou seu caderno de anotações e virou algumas
páginas.
— Às sete e cinqüenta e seis, Senhor Vance.
Céus, que observação meticulosa!
Hennessey sorriu.
— Bem... Uns quinze ou vinte minutos depois que o Senhor Vance saiu, dois homens do Departamento de Homicídios chegaram com o Dr. Mendel, e os três entraram no escritório de Mirche. Achei aquilo esquisito, e por isso deixei Burke de vigia, em companhia de Snitkin, e fui ver o que estava acontecendo. Quando estávamos subindo a escada, o próprio Mirche chegou correndo, todo agitado, passou por nós e entrou na sala. Acho que o porteiro, que o senhor conhece, Joe Hanley, deve ter-lhe dito que alguma coisa estranha estava acontecendo...
— Não tente adivinhar coisas.
— Pois bem — prosseguiu Hennessey. — Dentro da sala havia um sujeito de terno preto, estendido no chão, com meio corpo embaixo da escrivaninha. Mirche foi até junto dele, cambaleando um pouco e mortalmente pálido. Inclinou-se bem perto, por cima do homem, ao lado do médico, que estava abrindo a camisa do cadáver e encostando-lhe ao peito uma dessas cornetas acústicas...
— Um estetoscópio! Céus! — Vance olhou para Markham.
Eu não sabia que um médico oficial levava um desses fiéis instrumentos consigo.
— Geralmente, não leva — falou Markham. — Mendel é um médico jovem e acaba de ser nomeado para o corpo médico; por isso, não me surpreenderia se ele levasse também consigo um espirômetro por onde anda, e também o seu diploma.
— Prossiga, Hennessey — grunhiu Heath. — E depois? Guilfoyle perguntou a Mirche quem era o sujeito. Não sei se o que aconteceu em seguida foi antes ou depois que Mirche respondeu à pergunta; só sei que mais ou menos nessa altura Dixie Del Marr entrou correndo. E Mirche disse, num cochicho, que a vítima era um dos lavadores de pratos do restaurante um tal Philip Allen. Eu mesmo poderia ter contado isso a Guilfoyle. Eu conhecia Allen, e o tinha visto pessoalmente naquela tarde. Depois, Guilfoyle perguntou a Mirche por que o rapaz estava no escritório, onde ele vivia e o que Mirche sabia sobre sua morte. O sapo velho declarou que não sabia de nada a respeito do morto, nem de como ele fora parar ali, ou onde ele morava. De que era tudo um mistério para ele. E parecia ser sincero, ou estava fingindo muito bem.
— Tem certeza de que ele não estava enganando a todos vocês? — indagou Heath, desconfiado.
— Ahn? A mim, não — garantiu Hennessey. — Nenhum sujeito pode fingir tão bem estar abalado.
— Que aconteceu depois?
Hennessey prosseguiu, agora mais depressa.
— O médico começou a examinar o homem, levantando-lhe as pálpebras, espiando a sua garganta, movendo suas pernas e braços... Todos os exames de praxe. E, enquanto ele estava ocupado em mexer no sujeito, a tal Dixie Del Marr abriu a porta de um armário embutido e tirou um livro de registro da firma. Virou algumas páginas, e depois disse: ”Aqui está, Mirche. Philip Allen mora na rua Leste, 37, número 198, com a mãe dele”.
Markham olhou para cima e virou-se para Vance.
— Vejo que sua dedução, não muito profunda, está sendo apoiada de leve. Sua Lorelei é, evidentemente, a guarda-livros de Mirche.
Hennessey ficou impaciente com a interrupção.
— Depois, Guilfoyle perguntou ao médico qual fora a causa da morte do homem. ”Não sei” — foi a resposta do médico. ”Talvez ele tenha morrido de morte natural, mas não posso dizer, apenas com o exame superficial feito. Ele apresenta queimaduras nos lábios e sua garganta parece ter alguma coisa. Vocês vão ter de levá-lo ao necrotério para uma autópsia completa.” — O médico nem sequer sabia há quanto tempo a vítima estava morta.
— E que fez a cantora Del Marr? — indagou Heath.
— Recolocou o livro na prateleira do armário embutido e sentou-se em uma cadeira, com uma expressão dura e indiferente, até que Mirche a mandou voltar para o restaurante.
— E então vocês mandaram o cadáver para o necrotério. — Heath estava tirando baforadas no seu charuto, sombriamente.
— Isso mesmo, sargento. Guilfoyle se encarregou de chamar o carro fúnebre. Ele e o outro investigador do Departamento de Homicídios, de nome Sullivan, encarregaram-se das investigações... É uma história boba, mas sei que o senhor sempre desconfiou daquele tal Mirche... Principalmente agora, com o Abutre à solta.
Heath franziu o cenho e dirigiu a Hennessey um olhar fixo e frio.
— Está bem! — berrou ele. — Quem entrou no escritório, depois que o Senhor Vance chegou lá, às oito da noite?
— Ah, isso é fácil. — E o policial riu, desconsolado. — A cantora Del Marr entrou no escritório por volta das oito e meia e saiu logo depois. Pouco mais tarde, o porteiro entrou lá também. Mas creio que ele costuma fazer isso sempre. Acho que Hanley apenas foi lá para tomar um gole de uísque, pois saiu esfregando a boca com a manga do paletó...
— A que horas aconteceu tudo isso? — indagou Heath.
— No início da noite, uma hora depois que o Senhor Vance esteve lá.
— Suponho que você investigou para saber se algum deles viu o cadáver, não é?
— Claro que sim. Mas nenhum deles o viu. O porteiro foi lá depois da cantora, e pode apostar sua vida em que, se houvesse um cadáver lá dentro, Hanley teria soltado um grito. Ele é um sujeito honesto, sargento.
— Claro. Conheço Joe Hanley há muito tempo. — Heath pensou um momento. — Nada disso faz sentido... Mas, agora, quero saber de uma coisa: a que horas você tirou a sua soneca, esta noite?
De repente, compreendi a significância da pergunta de Heath.
- Juro por Deus, sargento, não tirei nenhuma soneca.
Mas não sei como o tal Allen entrou no escritório. Não o vi entrar lá.
— Ahn! — E havia um mundo de sarcasmo no grunhido do sargento. — Você não dormiu, mas Allen entrou no escritório, teve um ataque cardíaco, ou coisa semelhante, e morreu enrodilhado embaixo da escrivaninha de Mirche! Esta é a última piada para os anais da polícia.
Hennessey ficou vermelho como um camarão.
— Eu não o culpo por estrilar, sargento. Mas, sinceramente, não afastei os olhos daquela porta nem por uma fração de segundo...
— Então, a vítima se tornou invisível e entrou lá sem quo você a visse, num passe de mágica. Ou talvez tenha descido pela chaminé, como o Papai Noel... Se é que há chaminé. — A ironia do sargento pareceu desnecessariamente brutal.
— Escute, sargento — interrompeu Vance. — O verdadeiro objetivo da vigilância de Hennessey era ficar alerta ao aparecimento de Benny Pellinzi, não se esqueça disso. Sem dúvida, você não postou três marmanjos na pensão apenas para vigiarem um pobre lavador de pratos.
Heath abordou outra faceta do assunto.
— Quem foi que telefonou para a chefatura de polícia, Hennessey?
— Essa é outra coisa engraçada, sargento. O telefonema chegou, por vias normais, às dez e cinquenta... não mais de dez minutos depois que o senhor saiu. Quem telefonou foi uma mulher. Ela não quis dar o nome; bancou a misteriosa e desligou.
— Sim. Se foi engraçado... Podia muito bem ter sido essa megera dessa cantora, Del Marr.
— Também pensei nela, e a interroguei a respeito do assunto. Mas ela parecia ignorar tanto o fato como Mirche o ignorava. Mas poderia ter sido alguma das velhas empregadas que trabalham na cozinha. Grande parte dos empregados entra e sai por aquela alameda que dá para o escritório. E, se um deles quisesse bisbilhotar, bastar-lhe-ia levantar-se na ponta dos pés e espiar pela janela.
— E o edifício de escritórios que fica ao lado da alameda? — indagou Vance.
Foi Heath quem respondeu à pergunta.
— Não há janelas ali, senhor. Os primeiros três andares são fechados por uma parede maciça de tijolos...
O cigarro de Vance se acabara e ele acendeu outro.
— Juntando tudo isso — comentou ele — não pareço muito promissor para um crime misterioso. É muito triste. Tive esperanças tão grandes quando Hennessey telefonou a essa hora mais ou menos de bruxaria.
— Tenho de confessar — disse Heath — que eu também não consigo vislumbrar nada de especial no relatório de Hennessey. Mas há outra coisa que eu desejo saber. — E tornou a virar-se para Hennessey. — Você disse que conhecia esse lavador de pratos, o Allen, e que o viu mais cedo, no mesmo dia. Fale-nos a esse respeito.
— Eu fiquei conhecendo-o por acaso — retrucou o policial. — Uma noite, no inverno passado, ele saiu correndo da alameda, por volta das três horas da madrugada, e quase me derrubou no chão. Eu o agarrei e levei-o à presença de Hanley, para ver quem ele era. Depois o soltei. Hoje à tarde, eu o vi rondando o escritório de Mirche. Entrou e saiu de lá três ou quatro vezes, entre uma e cinco horas da tarde. Depois por volta das seis, quando Murche chegara ao escritório, o rapaz tornou a entrar lá e ficou uns dez minutos, dessa vez. Quando saiu, foi a última vez que o vi.
— Para onde foi ele?
— Sei lá... Não sei ler os pensamentos dos outros. Ele não voltou para a cozinha, se é isso que o senhor deseja saber. Foi para a rua.
— Tem certeza de que foi Allen quem você viu? — indagou o sargento, desanimado.
— Claro que tenho! — riu Hennessey. — Mas é muito engraçado o senhor me perguntar isso. Na primeira vez em que vi Allen, esta tarde, tive a idéia maluca de que poderia ser Benny, o Abutre: são ambos da mesma estatura, com o mesmo rosto redondo e pálido, macilento. E Allen trajava um terno simples e preto, como já lhe disse... e é assim que o Abutre estaria vestido, se ele quisesse entrar aqui, furtivamente, e desejasse evitar que o vissem com facilidade. O senhor se lembra das roupas elegantes que ele usava nos velhos tempos. Em todo caso, resolvi certificar-me. Eu sabia que estava agindo como um tolo, mas fui até o restaurante e disse olá ao sujeito. Era mesmo Allen. Ele me disse que estava por ali a fim de conseguir um aumento de salário com o velho Mirche. Pura perda de tempo!
Heath coçou a cabeça.
— Mais alguma coisa a respeito do tal Allen lhe vem à idéia?
— Eu estava pensando — disse Hennessey. — Sim... Ele se encontrou com um sujeito por volta da metade da tarde, aproximadamente às quatro horas. Era um homem miúdo, como Allen. Os dois foram para o lado oeste do restaurante e pouco depois se empenharam em animada discussão. Parecia que a qualquer instante iriam sair para os sopapos. Mas não lhes prestei muita atenção, e finalmente o tal sujeito foi embora. Tem mais alguma pergunta, sargento?
Vance chamou Heath de lado e lhe cochichou algumas palavras ao ouvido. Finalmente, o sargento fez um movimento indiferente de ombros e confirmou de cabeça. Depois, tornou a se virar para Hennessey.
— É só isto — falou ele. — Vá para casa e durma um pouco. Mas esteja de volta ao trabalho ao meio-dia.
Quando Hennessey se retirara, Markham, notando uma mudança repentina na maneira de se portar de Vance, franziu a cenho e inclinou-se para diante.
— Em que é que você está pensando, Vance? — perguntou ele.
— Na história de Hennessey. No meu conto de fadas de hoje à noite, não mencionei o nome da ninfa dos bosques. Ela se chama Gracie Allen. E Philip Allen é seu irmão. Ela me contou, muito francamente, que ele era lavador de pratos no Domdaniel. Ela até me contou que ele ia encurralar Mirche, hoje à tarde, no covil deste, para lhe pedir aumento de salário. E, quando a Senhorita Allen parou junto à minha mesa, esta noite, estava indo ao encontro do irmão, em alguma parte das dependências do restaurante.
Markham tornou a recostar-se no espaldar da poltrona, com uma risada curta.
— Talvez você possa encaixar tudo isso na fantasia que estava tecendo hoje cedo.
— É como você diz, meu velho amigo. — Vance não estava mais disposto a gracejar. — Sem dúvida, vou tentar fazer isso. Não me conformo com o fato de tantas coisas irrelevantes acontecerem em um lugar só e ao mesmo tempo. Deve haver alguma coisa unindo esses acontecimentos. Em todo caso, não estou disposto a continuar acordado, e por isso vou para casa dormir.
Vance caminhou até o fim da sala, no sentido do comprimento, depois voltou, de cabeça baixa. Em seguida, parou de chofre e sorriu, com um misto de seriedade e embaraço, mas bem resoluto.
— Escute aqui, Markham — falou ele. — Confesso que minhas idéias são muito vagas e que aquela bruxazinha em Riverdale pode ter-me enfeitiçado. Mas me sinto inclinado a descobrir o que puder a respeito da morte prematura de Philip Allen, e talvez assim amenizar o choque para a jovem. E preciso da sua ajuda para isso. Você não quer apoiar minhas excentricidades mais uma vez?
Markham suspirou, resignado.
— Farei tudo para me livrar de você a estas horas avançadas e impróprias.
— Já que é assim, encarregue-me do caso Allen, para eu brincar com ele como bem entender, mas, naturalmente, tendo a meu lado o eficiente sargento.
Markham hesitou.
— Que tal acha disso, sargento?
— Se o Senhor Vance tiver algumas idéias extravagantes — retrucou Heath, vigorosamente — prefiro trabalhar com ele.
— Está bem, sargento, então vá trabalhar com o nosso dramaturgo amador. — Depois, Markham virou-se novamente para Vance. — E, quanto a você — falou ele, com uma franqueza brincalhona — acho que é doido varrido.
— Vá lá. Mas não se esqueça de que o grande louco de hoje é o Prêmio Nobel de amanhã...

CAPITULO VIII
NO NECROTÉRIO
(Domingo, 19 de maio — 1:30 horas)

Vance, Heath e eu fomos primeiro ao apartamento de Vance. Lá, enquanto Vance trocava de roupas, vestindo um terno folgado, Heath deu alguns telefonemas necessários.
Interrogou Guilfoyle, durante algum tempo, a respeito de quaisquer pormenores pertinentes que Hennessey pudesse ter omitido, e deu ordens a Sullivan para ficar no Domdaniel até o meio-dia. Em seguida, telefonou para o Dr. Mendel. Achei, tanto pela sua expressão como pelas perguntas que fez, que Heath ficou intrigado e aborrecido com as informações que estava obtendo do jovem médico. Quando Vance voltou para junto de nós, o sargento, ao que parecia, continuava pensando no assunto.
— Este caso — falou ele — está começando a parecer ainda mais maluco do que a princípio, a história de Hennessey mostraria. O Dr. Mendel ainda acha que Allen poderia ter morrido de morte natural, mas descobriu um punhado de indícios de que ele poderia ter sido assassinado. Ele está transferindo a responsabilidade para outro, e mandou o cadáver sem demora para o necrotério, onde Doremus fará a autópsia. Mendel não se quer envolver no caso. Quando lhe perguntei a que horas ele achava que o sujeito morreu, procurou ganhar tempo, falando de rigidez de morte e de certa forma de espasmo.
— Espasmo cadavérico — contribuiu Vance.
— Sim, é isso. E, depois, começou a dizer que há muita coisa, em medicina, que ainda é desconhecida. Como se isso fosse novidade para mim!
— Sim, nós já sabemos isso de cor e salteado — suspirou Vance. — Mas, enquanto isso, você já avisou a mãe do rapaz que morreu?
— Sim, é preciso avisá-la. Pensei em mandar o Martin, que é muito jeitoso para essas coisas.
— Não... Oh, não, sargento — falou Vance. — Já estou vendo a careta que a pobre senhora fará se você mandar Martin. Nós vamos avisá-la pessoalmente.
— Está bem, chefe. — O sargento piscou um olho e sorriu. — O senhor pediu o caso, e agora ele é seu. Em todo caso, esse trabalho de identificação não levará muito tempo.
Descobrimos a residência da Senhora Allen na rua Leste, número 37, uma habitação modesta: um velho prédio de frente de tijolos à vista, que fora dividido em pequenos apartamentos. A própria Senhora Allen atendeu, quando tocamos a campainha. Achava-se completamente vestida e todas as luzes estavam acesas na sala mobiliada com simplicidade.
Era uma pessoa franzina, cuja presença lembrava a de uma ratinha, e muito mais idosa do que eu esperara que fosse a mãe da Senhorita Allen. Havia na sua expressão uma suavidade e algo muito vago — quase uma melancolia — como a de uma pessoa que envelhecera antes do tempo, ou em virtude de uma dor repentina ou de vicissitudes prolongadas.
A mulherzinha mostrou-se muito nervosa e assustada com nossa presença à sua porta; mas, quando o sargento lhe contou quem ele era, a mulher nos convidou imediatamente para entrarmos. Sentou-se muito rígida, como se para poder enfrentar algum golpe duro. Suas mãos achavam-se entrelaçadas com tanta força, que os nós dos dedos ficaram brancos.
Heath pigarreou forte. Apesar de toda a dureza da sua natureza de homem habituado a ver dramas, parecia muito condoído da situação da velhinha.
— Estou falando com a Senhora Allen? — começou ele. Em parte era uma interrogação, em parte uma afirmação.
A mulher fez um aceno de cabeça, trêmula.
— A senhora tem um filho chamado Philip?
A mulher limitou-se novamente a confirmar, com um aceno de cabeça. Mas as pupilas dos seus olhos se dilataram.
Heath mudou o peso para o outro lado do corpo e olhou um instante ao seu redor. Seu rosto tornou-se visivelmente mais suave. Até então, eu só vira o sargento profundamente comovido uma vez na vida: fora quando ele olhara dentro do armário vazio e deparara com o corpo inerte da pequena Madeleine Moffat, durante sua investigação do caso do Bispo Preto.
— A senhora tem ficado acordada até muito tarde da noite, não é, Senhora Allen? — perguntou ele, como se ainda não tivesse encontrado as palavras para amenizar o golpe que ia causar com a notícia.
— Sim, senhor detetive — disse a mulher, num fio de vox trêmula. — Sempre fico acordada, esperando minha filha, quando ela está fora. Mas não me importo com isso.
Heath assentiu com um aceno de cabeça e, com uma súbita torrente de palavras, abordou o assunto que nos levara ali.
— Bem... Sinto muito, mas tenho más notícias para a senhora — disse ele, em um repente. — O seu filho, Philip, sofreu um acidente. — Fez uma pausa, durante alguns instantes. — Sim, Senhora Allen, preciso contar-lhe... Ele está morto. Foi encontrado esta noite, no restaurante onde trabalhava.
A mulher agarrou a sua cadeira com força. Seus olhos se arregalaram e seu corpo oscilou um pouco. Vance foi rapidamente até junto dela e, segurando-a pelos ombros, firmou-a.
— Oh, meu pobre filho! — gemeu ela, várias vezes. Depois, olhou de um de nós para o outro, como se tonta. — Contem-me o que aconteceu.
— Ainda não sabemos ao certo, senhora — disse Vance, baixinho.
— Mas quando? — indagou ela, em voz sem inflexão. — Quando foi que isso aconteceu?
— Recebemos o telefonema por volta das onze horas, esta noite — contou-lhe Heath.
— Eu não sei o que fazer. — Ela ergueu o olhar, com uma súplica. — Os senhores me levarão para vê-lo?
— Foi justamente para isso que viemos aqui, Senhora Allon. Nós queremos que a senhora vá conosco — apenas por alguns minutos — à cidade, para identificá-lo. O Senhor Mirche já fez isso, naturalmente, mas nós pedimos à senhora para reconhecê-lo, apenas por formalidade legal. Depois, ajeitaremos tudo... Agora, foi Vance quem falou com a mulher.
— Sei que é uma tarefa muito triste para a senhora. Mas, como o sargento explicou, é uma formalidade necessária, e mais tarde isso facilitará tudo para a senhora e para sua filha. A senhora tentará ser forte, não é?
A velhinha fez um aceno afirmativo de cabeça, vagamente.
— Sim, preciso ser forte, a bem da Gracie.
Não pude deixar de admirar a fortaleza de espírito dessa mulherzinha frágil. E, quando ela se levantou, resolutamente, para vestir o casaco e colocar o chapéu, minha admiração por ela aumentou mais ainda.
— Vou demorar apenas o tempo necessário para deixar um bilhete para minha filha — falou ela, desculpando-se, quando estava pronta para sair conosco. — Ela ficaria preocupada, se chegasse em casa e não me encontrasse aqui.
Ficamos esperando, enquanto ela arranjava um pedaço de papel. Vance lhe ofereceu o seu lápis. Então, com mão trémula, ela descreveu algumas palavras e deixou o papel bem à vista, em cima da mesa.
A caminho da cidade, a mulher não falou, mas ficou ouvindo mansamente as instruções e sugestões do sargento.
Quando entramos pela porta do elevador do necrotério municipal, na rua 29, a mulher levou as duas mãos ao rosto e murmurou algumas palavras, como uma oração, acrescentando, em voz mais alta:
— Oh, meu pobre Philip! No fundo, ele era um rapaz tão bonzinho...
Heath pegou-a pelo braço, de forma protetora, e levou-a solicitamente para a sala nua do porão. A cena acabou não sendo tão medonha quanto eu imaginara que fosse. A dolorosa obrigação da mãe de Gracie Allen terminou no instante em que Heath a fez parar diante da forma inerte que fora tirada de uma gaveta do refrigerador. Seu sofrimento terminou depressa e de modo misericordioso.
Após um olhar momentâneo, ela se virou para o outro lado, com um soluço abafado, perdeu os sentidos e escorregou para o chão.
O sargento, que estivera observando a mulher atentamente, desde a hora em que saíramos do elevador, pegou-a rapidamente nos braços, carregando-a para a sala de recepção, mal iluminada, onde a depositou em um sofá de vime. O rosto da mãe de Gracie apresentava-se lívido e sua respiração era fraca, mas, depois de alguns minutos, ela começou a se mover debilmente. Depois, com a onda de sangue às faces e com o umedecimento da pele, que acompanham a reação de quem desmaia, veio uma torrente de lágrimas.
Enquanto ela chorava livremente por alguns instantes, Heath puxou uma cadeira e sentou-se diante da mulher.
— Eu sei, Senhora Allen, — disse ele — que isso deve ser muito doloroso para a senhora, mas nós precisamos ter cuidado em casos como este. É a lei. Não poderíamos deixar que se cometessem erros a respeito. E a senhora não quereria que nós cometêssemos erros, não é?
— Oh, isso seria horrível. — Sua mão moveu-se lentamente sobre seus olhos, como se para afastar alguma visão horripilante.
— Claro, eu sei... — murmurou o sargento. — É por isso que a senhora tem de nos perdoar por sermos um tanto desumanos.
— Quando — perguntou ela, como alguém que não lhe tivesse ouvido as palavras — quando foi que o pobre rapaz...?
— Isso é outra coisa que tenho de lhe contar, Senhora Allen. — Heath interrompeu sua pergunta inacabada. — É que não poderemos deixar que a senhora leve imediatamente seu filho. O médico ainda não tem certeza de que foi que ele morreu, e o médico precisa certificar-se. Isso é tanto em seu benefício como no nosso. Portanto, temos de ficar com ele ainda por um dia ou talvez dois.
A mulher moveu a cabeça para cima e para baixo, tristemente.
— Sei o que o senhor quer dizer — falou ela. — Um dia, um sobrinho meu morreu em um hospital... — E ela deixou a frase incompleta e acrescentou: — Sei que posso confiar nos senhores.
— Sim, Senhora Allen — garantiu-lhe Vance. -— O sargento não demorará mais tempo do que o necessário. É preciso cuidar desses assuntos de forma legal e com todo cuidado. Prometo comunicar-lhe pessoalmente logo que o assunto fique resolvido... Além disso, terei muito prazer em ajudá-la e à sua filha de todas as outras formas que eu puder.
A mulher virou-se lentamente para Vance e estudou-o um instante. Uma expressão de confiança lhe transpareceu nos olhos.
— Minha filha — começou ela, baixinho. — Quero pedir-lhe uma coisa, em benefício dela. Isso significará tanto para ela e para mim, no momento. Por favor, eu lhe peço, não conte a minha filha ainda, o que houve com Philip. Vamos deixar para quando ela precisar mesmo saber, e então quero ser eu a lhe contar... Ela ficaria preocupada com coisas que, talvez, não sejam nem um pouco verdadeiras. Ela tem uma imaginação muito viva — herdada de mim — creio eu. Por que não deixar que ela tenha mais um dia, talvez mais dois dias, de felicidade? Só até que saibam o que realmente houve com meu filho...
Era evidente que o pedido da mulher fundava-se na desconfiança de que seu filho tivesse sido assassinado, e ela temia que uma dúvida semelhante pudesse torturar também à sua filha.
— Mas, Senhora Allen, — perguntou Vance — se guardarmos segredo deste assunto durante algum tempo, como é que a senhora vai explicar à sua filha a ausência prolongada do irmão dela? Sem dúvida, ela ficará preocupada com isso.
A Senhora Allen sacudiu a cabeça.
— Não. Philip costuma ficar fora de casa, com freqüência, e às vezes durante vários dias. Hoje ele disse que talvez saísse do emprego do restaurante e talvez fosse embora da cidade. Não, Gracie não suspeitará de nada.
Vance olhou para Heath, com uma indagação no olhar.
— Acredito, sargento, — falou ele — que seria humano e prudente atender ao pedido da Senhora Allen.
Heath concordou com um aceno vigoroso de cabeça.
— Sim, também acho, Senhor Vance. Creio que se pode dar um jeito nisso.
Um olhar de compreensão passou entre os dois e então Vance tornou a se dirigir à Senhora Allen.
— Nós temos muito prazer em lhe fazer essa promessa, senhora.
— E não aparecerá nenhuma notícia a respeito nos jornais? — indagou ela.
— Acho que isso também se pode arranjar — prometeu Vance.
— Obrigada — disse a Senhora Allen, com simplicidade. Nesse instante, um auxiliar entrou na sala e fez um sinal ao sargento, que se levantou e dirigiu-se para onde ele se achava. Os dois conversaram um pouco e saíram juntos por uma porta lateral. Alguns minutos depois, o sargento voltava e enfiava alguma coisa no bolso.
A Senhora Allen recuperara um pouco o seu autodomínio, e, quando o sargento veio novamente para junto de nós, ele sorriu para ela, para encorajá-la.
— Acho que já podemos levá-la de volta à sua casa. Levamos a Senhora Allen de volta ao seu apartamentozinho, de carro, e lhe demos boa noite.
Alguns minutos depois, nós três fomos à biblioteca de Vance. Eram duas horas e meia da madrugada.
— É uma mulherzinha estranha — murmurou Vance, enquanto servia um copo de conhaque para cada um de nós. — E é, também, de uma notável bravura. Não tive nenhuma preocupação pelo fato de a deixarmos sozinha na casa dela. Resistiu melhor do que eu esperava, depois de receber uma notícia tão chocante.
— Tenho conhecido muitas mulheres miúdas como aquela — comentou Heath — que são capazes de suportar golpes duros muito melhor do que um marmanjo de dois metros de altura.
— Sim, realmente... Não sei se seu esforço para poupar a filha será tão bem sucedido quanto ela espera. Gracie Allen não é nenhuma jovem comum... É sagaz, apesar da sua vivacidade estonteante.
— A velhinha facilitou tudo para nós — observou o sargento.
Vance confirmou, com um aceno de cabeça, enquanto bebericava o seu conhaque.
— Exatamente. Era justamente nisso que eu estava pensando, sargento. Não precisamos ter nenhuma preocupação a respeito de interferências até que o relatório do Dr. Doremus sobre a morte de Philip fique pronto. A Senhora Allen, sem dúvida, não nos apressará, pois acho que ela ficará agradecida pelo fato de termos poupado uma dor mais prolongada à sua filha. E, sem dúvida, Mirche achará preferível guardar sigilo sobre o acontecido... Ele não deseja nenhuma publicidade negativa relacionada com o seu restaurante... Quer fazer tudo que puder para manter o caso em segredo o tempo máximo que puder, sargento?
— Finalmente, o senhor está-me pedindo para fazer alguma coisa fácil — sorriu Heath. — Direi aos rapazes lá do Departamento de Homicídios para guardarem sigilo; e o senhor poderá investigar dois dias inteiros, sem que ninguém o importune.
Vance sorriu, aparentemente tranqüilo, mas ainda estava preocupado.
Heath acabou de tomar o seu conhaque e acendeu um charuto comprido e preto.
— A propósito, Senhor Vance, aqui está uma coisa que talvez lhe interesse. — Enfiou a mão no bolso do paletó e tirou uma pequena cigarreira de madeira, com uma granulação peculiar e com quadrados alternados de verniz claro e escuro, que lhe dava um desenho destacado de xadrez. — Encontrei-a entre os pertences de Allen, no necrotério.
— Mas por que, meu caro sargento, este objeto me interessaria?
— Bem, não sei ao certo, senhor. — Heath falava quase em tom de desculpa. — Mas sei que o senhor tem idéias sobre o que ocorreu esta noite, e eu não tenho.
— Mas não há nada de extraordinário no fato de que a vítima fumava cigarros.
— Não é isso, senhor. — Heath abriu a cigarreira e apontou para o canto interno da tampa da mesma. — Há um nome gravado a fogo ali dentro... Parece trabalho de amador. E acontece que o nome é ”George”. E esse não é o nome da vítima.
De repente, a expressão do rosto de Vance mudou. Ele se inclinou para diante e, tirando a cigarreira da mão de Heath, examinou a gravação tosca feita a fogo.
— As coisas não deviam acontecer assim... Não deviam, mesmo, sargento. O homem que Gracie Allen realmente ama se chama George. George Burns, para ser mais exato. O mesmo rapaz de quem falei hoje na casa de Markham. E o tal Burns estava no Domdaniel na noite de hoje. E Gracie também se encontrava lá. Junto com seu vistoso acompanhante o tal Senhor Puttle. E também Philip Allen e o untuoso Mirche. E a misteriosa Dixie Del Marr. E o sinistro ”Coruja” Owen. E a sombra ameaçadora de um abutre.
— Que acha disso, Senhor Vance?
— Sargento... Oh, meu sargento! — suspirou Vance. — Que é que se pode deduzir de tudo isso? Exatamente nada. É por isso que estou envelhecendo de maneira tão visível diante dos seus olhos. É por isso que os meus cachos de cabelo estão ficando brancos.
— Como acha que aquela cigarreira foi parar no bolso de Philip Allen, Senhor Vance? — E Heath continuava obstinadamente a abordar o problema.
— Pare de me torturar! — implorou Vance.
Heath pegou a cigarreira, fechou-a, com um estalido, e a recolocou no próprio bolso.
— Vou descobrir — disse ele, resolutamente. — Se Philip Allen não morreu de morte natural, e se esta cigarreira pertence ao tal Burns, juro que lhe arrancarei a verdade, mesmo que tenha de inventar um recurso novo para conseguir isso. Este caso está-me deixando torturado também, Senhor Vance. Tudo nele é desencontrado; e não gosto de nada que não faça sentido... Hei de encontrar o tal rapaz, e vou achá-lo esta noite. Nesta altura o Domdaniel já está fechado e, portanto, talvez ele já tenha ido para casa... se é que tem casa. Irei primeiro à fábrica. Como foi que disse que era o nome da fábrica, Senhor Vance?
— Fábrica de Perfumes In-O-Scent — disse Vance, sorrindo. — É um nome um tanto desalentador para dar início à procura de um suspeito... Não é, sargento? Mas espero que esse nome seja simbólico.
— Suas palavras são profundas demais para mim, senhor — queixou-se Heath, seguindo rumo à porta. — No momento, só tenho de me preocupar em encontrar o tal Burns.
Bem, sargento, quando você encurralar o Senhor Burns, podemos ou eliminar parte do enigma ou então pô-lo em algum lugar onde a peça do quebra-cabeças encaixe. — Suspirou fundo. — Estarei à espera da sua perfumada comunicação amanhã cedo.


CAPITULO IX
PRESO SOB SUSPEITA
(Domingo, 19 de maio — 10:30 horas)


Já eram quase dez e meia, na manhã de domingo, quando Heath chegou ao apartamento de Vance. Este se levantara pouco antes e achava-se sentado na biblioteca, envergando um roupão de mandarim, tomando sua refeição matinal, bastante frugal, com café turco. Acabara de acender o segundo cigarro, quando o sargento foi introduzido lá, com uma aparência um tanto cansada mas triunfante.
— Finalmente, eu o agarrei! — anunciou ele, sem parar a fim de cumprimentar.
— Arre, sargento! — Vance saudou-o. — Sente-se e descanse um pouco. Precisa tomar um pouco de café, para recuperar as forças. Sem dúvida, você se refere a Burns. Mas não me diga que você ficou a noite inteira acordado, investigando.
Heath sentou-se pesadamente.
— Sim, a verdade é que eu fiquei. E, se não se importa, Senhor Vance, quer colocar mais alguma coisa nesse café? Preciso reanimar-me.
Vance atendeu-o, sorridente.
— Fale-me a respeito das suas andanças noturnas, sargento.
— Bem, a verdade, senhor, é que ainda não o agarrei — corrigiu Heath. — Mas estou à espera de um telefonema para cá a qualquer instante, a ser dado por Emery... Eu o deixei vigiando a casa da Senhora Allen, e...
— A casa da Senhora Allen?
— Sim! É para lá que o sujeito vai.
— Sabe de uma coisa? Essa história parece tremendamente complicada.
— Não foi tão complicada assim, Senhor Vance — respondeu Heath. — Foi só muito trabalhosa... Quando saí daqui, ontem à noite, fui diretamente à Fábrica In-O-Scent e agarrei o vigia noturno da firma. Ele me levou pessoalmente para dentro do escritório, com sua chave-mestra, encontrou o livro de registro de empregados e me mostrou o nome de Burns com o endereço de um hotel de segunda classe que ficava a poucos quarteirões de lá. Fui até o hotel. Mas parece que Burns já estivera lá, trocara de roupas e saíra novamente. O recepcionista noturno me deu essa informação. Aí, mostrei-lhe a cigarreira, e foi então que tive um pouco de sorte. O sujeito estava disposto a jurar que Burns tem uma cigarreira igual a ela. Muitas vezes Burns pára a fim de bater papo com ele, quando chega tarde ao hotel.
— E — intrometeu-se Vance — é muito provável que lhe ofereça um cigarro durante as caçoadas.
— É isso, senhor... Depois, telefonei a Emery, lá no Departamento de Homicídios, para ele ir até o hotel e ficar de vigia, no caso de Burns pretender voltar. Depois que Emery chegou lá, fui à minha casa, onde dormi umas duas horas.
— E acaso o seu auxiliar interrompeu o seu sono com a notícia do desaparecido experimentador de perfumes?
— Não. Burns não voltou para o hotel. Por isso, às oito horas fui pessoalmente até lá, a fim de ver se conseguia descobrir mais alguma coisa com o recepcionista de serviço. E fiquei sabendo que ele e Burns, e mais dois outros sujeitos, amigos de Burns, algumas vezes sentam-se à mesa, jogando cartas no saguão do hotel, à noite. Um deles mora do outro lado da rua, mas disse que não vê Burns há vários dias. Mas ele me disse para procurar o outro sujeito, um tal Robbin, de Brooklyn, pois muitas vezes Burns passa a noite na casa de Robbin, principalmente as noites de sábado. Por isso, fui a Brooklyn. Não telefonei para a casa de Robbin, porque não desejava alarmar Burns. Levei mais de uma hora a encontrar a casa, que fica a meia dúzia de quarteirões fora da linha principal, em Bensonhurst, um local afastado.
— Que horrível odisséia matinal, sargento! — E Vance estremeceu, pesaroso. — E que aconteceu quando finalmente você chegou à choupana de Emaú?
— Como já disse, o nome do sujeito é Robbin. E ele não mora em uma choupana... Bem, perguntei-lhe por Burns, e ele me disse que Burns fora lá às três horas da madrugada, dizendo que estava deprimido e precisava de companhia. Robbin também me contou que Burns estava nervoso e não dormiu muito bem. Levantou-se cedo e já fora embora antes de eu chegar lá... Que acha de tudo isso, Senhor Vance?
— Acho que isso é muito parecido com o amor florescente em estado de suspense — falou Vance. — Ah, a doce crueldade da mulher!
— Não sei a que ponto o senhor quer chegar — replicou o sargento. — Mas parece-me que o homem tem peso na consciência. Principalmente pelo fato de Burns não ficar em casa... De fugir, por assim dizer... e por se ocultar lá no fim do mundo que se chama Bensonhurst... Em todo caso, quando mostrei a Robbin a cigarreira, ele a reconheceu imediatamente. Não se lembrava bem se ela estivera em poder de Burns na noite anterior. Perguntei a Robbin se ele tinha alguma idéia do lugar para onde Burns teria ido. O homem riu e disse que sabia para onde Burns fora, mas que não estaria lá antes das onze horas. Portanto, vendo que ele ainda não podia ter voltado para Nova York, telefonei para Emery, no hotel onde Burns mora, para ele ir vigiar a casa dela...
— A casa da Senhora Allen?
— Sim. Robbin disse que era lá que Burns estaria às onze horas da manhã. E ele não tinha nenhuma dúvida a respeito disso. Achei que isto era razoável. O senhor mesmo me disse que Burns era namorado da moça. E ele poderia ter a idéia de pedir a Gràcie e à mãe desta que o ajudassem, antes que o descobrissem. Por isso, voltei para Nova York, o mais depressa que pude. E aqui estou, fazendo meu relatório ao senhor e esperando o telefonema de Emery.
— Extraordinário! — murmurou Vance. — Que zelo! Você encaixou muitos fatos, e até com habilidade, enquanto estive apenas cochilando. E suponho que você faça mais progressos quando receber o chamado de Emery e acosse o jovem Burns.
— Claro que farei isso! — E então o sargento acrescentou: — Estou começando a pensar que o senhor realmente teve uma boa idéia ontem à noite, na casa do procurador distrital.
— Não sei... Em todo caso, vou junto com você, sargento.
— E Vance seguiu rumo à porta do quarto de vestir.
— Imaginei que o senhor quereria ir. Mas há uma coisa que lhe preciso pedir: deixe que eu resolva este caso à minha maneira.
— Oh, perfeitamente, sargento. — E Vance deixou a biblioteca.
Vance acabara de voltar para a sala, completamente vestido, quando o telefone tocou. Heath saltou da sua cadeira e já estava com o fone ao ouvido antes que Currie, o velho mordomo de Vance, pudesse alcançar o aparelho.
Era esperado o telefonema de Emery, e, depois de ouvir alguns instantes, Heath respondeu ansiosamente.
— Sim, estarei aí dentro de cinco minutos. — Bateu o receptor do telefone no descanso e, esfregando as mãos, satisfeito, seguiu rumo à porta. — Vamos, Senhor Vance. Finalmente, estamos fazendo progressos...
Quando dobramos a esquina da avenida Lexington, vimos Emery de pé do outro lado da rua, defronte à casa da mãe de Gràcie. O homem deu alguns passos na nossa direção e fez um aceno significativo de cabeça.
Heath grunhiu para denotar que já vira o sinal e deu ordens a Emery para entrar lá conosco.
Foi Gràcie Allen quem atendeu à porta, desta vez, quando tocamos a campainha. Avistou logo Vance e jogou as mãos para o alto, em um exuberante gesto de encantamento.
— Oh, olá, Senhor Vance! Sua presença aqui é maravilhosa! — disse ela, com voz musical, aparentemente quase flutuando.
— Como foi que descobriu onde moro? O senhor deve ser um detetive muito hábil...
Ao notar a presença dos dois homens sérios que nos acompanhavam, ela parou subitamente de falar.
— Estes dois senhores são da polícia, Senhorita Allen — informou-lhe Vance. — E viemos aqui para...
— Ah, coitado! Eles o agarraram, não é? — exclamou ela, muito desalentada. — Não é horrível? — E seus olhos se arregalaram. — Mas, sinceramente, Senhor Vance, não fui eu quem o denunciou. Eu não faria uma coisa dessas, de forma alguma. Não foi à toa que lhe dei minha palavra de honra...
Heath e Emery foram entrando na sala, passando por ela, e Vance lhe estendeu a mão.
— Por favor, minha querida — disse ele, ansiosamente. — Só um instante. Viemos aqui tratar de um assunto bem diferente.
Gracie afastou-se e recuou, impressionada pelos seus modos sérios; e Vance seguiu os dois policiais sala adentro.
Sentado em um sofá na parede oposta estava o jovem George Burns, visivelmente aborrecido com nossa intromissão. Heath já atravessara a sala rapidamente, na sua direção.
— Seu nome é George Burns, não é? — perguntou ele, em tom áspero.
— Sempre foi — retrucou Burns, com um ressentimento sombrio. — Quem quer saber?
— Espertinho, hem? — E Heath remexeu nos bolsos e depois perguntou, em tom conciliatório: — Tem um cigarro aí, Burns?
Burns tirou do bolso automaticamente um maço de cigarros.
— Quê? — exclamou o sargento. — Você fuma e não tem cigarreira?
— Ora, claro que ele tem! — afirmou Gracie Allen, toda orgulhosa. — Eu própria lhe dei uma de presente, no Natal passado... E era muito bonita, toda enxadrezada...
Vance a fez silenciar, com um gesto peremptório.
— Sim — confessou Burns. — Eu tinha uma, porém eu... eu a perdi ontem. — Parecia confuso com a maneira como estava sendo interrogado.
— Talvez seja esta aqui. — Heath disse isso com ênfase ameaçadora, enquanto colocava a pequena cigarreira debaixo do nariz de Burns.
Este, assustado e intimidado, fez um aceno de cabeça, de modo débil. Pegando a cigarreira, segurou-a contra as narinas e cheirou-a várias vezes. Depois, ergueu o olhar para o sargento.
— Beije-me depressa!
— Quê?! — explodiu Heath.
— Oh — murmurou Burns, embaraçado. — Esse é apenas o nome de um perfume bem conhecido para lenços. A fórmula leva erva-cidreira, almíscar, junquilho e...
— Ah, e eu sei o que mais — ajudou a Senhorita Allen, ansiosamente. — Jasmim e angélica...
Burns ficou zangado.
— Ora, essa é a fórmula do Ano Bissextox.
— Alto lá! — berrou Heath. — Afinal de contas, o que está acontecendo aqui?
Vance estava rindo tranqüilamente, no íntimo. O sargento arrancou a cigarreira da mão de Burns e a recolocou no bolso.
— Onde foi que você perdeu a cigarreira, ontem? Burns remexeu-se no sofá, inquieto.
— Bem, eu não a perdi, exatamente. Eu apenas... Bem, eu apenas a emprestei a alguém.
— Então, você emprestou um presente de Natal que lhe foi dado pela sua namorada, hem?
— Bem, também não a emprestei. — Burns ficou confuso. — Encontrei-me com um sujeito, a quem ofereci um cigarro. Depois, tivemos uma pequena discussão e acho que ele se esqueceu de...
— Claro! Ele foi embora e levou a cigarreira — retorquiu Heath, com enorme sarcasmo. — E você se esqueceu de lhe pedir que a devolvesse e deixou que ele a guardasse... como um presentinho seu a ele. Ótimo... E quem era esse sujeito?
Burns remexeu-se uma vez mais.
— Bem, já que insiste em saber... Foi o irmão de Gracie.
— Claro que foi! Você é muito esperto, não é? — E então uma nova idéia surgiu na cabeça do sargento. — Isso deve ter acontecido nas proximidades do restaurante Domdaniel, e por volta das quatro horas da tarde.
— Mas como foi que o senhor soube? — perguntou Burns, espantado.
— Quem faz as perguntas sou eu — cortou Heath, em tom ríspido. — E não foi uma discussãozinha, como você disse. A coisa quase chegou às vias de fato, não foi mesmo? Você estava muito zangado por algum motivo, não estava?
Burns olhou fixamente para o sargento, desalentado, e depois para Gracie Allen.
— Oh, meu Deus, George! — exclamou a moça. — Você e Philip estavam brigando novamente. Vocês dois não passam de dois moleques brigões.
Heath rilhou os dentes.
— Não se envolva nisto, boneca.
— Oh! — riu a moça, acanhada. — Foi disto que o Senhor Puttle me chamou, ontem à noite.
Heath voltou-se novamente para Burns, que estava muito aborrecido.
— Por que você e Allen estavam discutindo?
O homem rolou os olhos, numa expressão vaga, como se tivesse medo de responder e como se receasse não responder. Finalmente, gaguejou:
— Era por causa de Gracie... por causa da Senhorita Allen. Parece que Philip não gosta de mim. Ele me disse para me afastar desta casa. E depois disse que eu não sabia vestir-me... Que eu não era elegante como o tal Puttle...
— Bem, eu também tenho alguma coisa a lhe dizer. E é uma coisa elegante...
Vance deu uma palmadinha rápida em um dos ombros do sargento e lhe cochichou alguma coisa.
Heath endireitou o corpo e, girando nos calcanhares, apontou para a moça.
— Vá para a outra sala, senhorita. Tenho algo a dizer a este rapaz a sós... Entende? A sós.
— Isso mesmo, Gracie. — Fiquei surpreso por ouvir a voz tranqüila da Senhora Allen. Ela estava de pé, timidamente, alojada em uma pequena abertura entre as portas corrediças, ao fundo da sala. Eu não sabia quanto tempo ela estivera ali. — Venha comigo, Gracie, e deixe estes senhores com George.
A moça não discutiu, e foi com a mãe para o quarto dos fundos, e as duas fecharam as portas ao passar.
— E agora, vamos às más notícias, meu jovem — recomeçou Heath, avançando ameaçadoramente rumo ao confuso Burns. Mas Vance tornou a interrompê-lo.
— Um instante, sargento. Senhor Burns... Por que ficou tão surpreso com o cheiro que havia na sua cigarreira?
— Eu não... Eu não sei, na verdade. — Burns franziu o cenho. — Não é um perfume comum, e há muito tempo não o tenho encontrado. Mas no restaurante, ontem à noite, eu o notei, e muito forte, no saguão da frente, quando eu ia entrando no salão do restaurante.
— Quem o estava usando?
— Oh, eu não poderia saber. Havia tanta gente lá... Vance pareceu satisfeito e, com um gesto, entregou o rapaz novamente ao sargento.
— Bem, aqui está a notícia ruim — disse Heath a Burns, em tom áspero e de excesso de autoridade. — Nós encontramos um sujeito morto, ontem à noite... e a sua cigarreira achava-se no bolso da vítima.
A cabeça de Burns saltou para cima, com um puxão, e uma luz de espanto e susto lhe apareceu nos olhos.
— Meu Deus! — disse ele, sem fôlego. — Quem... Quem fez isso?
Heath deu um sorriso cruel.
— Eu nem posso imaginar. Talvez você possa.
— Não foi... Philip! — e Burns ficou sem voz. — Oh, meu Deus... Sei que não está aqui hoje. Mas ele saiu da cidade... Juro que ele saiu. Ontem, disse-me que ia para outra cidade.
— Você é esperto, mas não o bastante, embora tenha sido bem habilidoso, tentando jogar a culpa em outra pessoa, com aquela história de perfume. — Heath fez uma pausa e depois tomou subitamente uma decisão. Fez um breve sinal a Emery. — Nós vamos levar este rapaz conosco — anunciou ele. — Vamos deixá-lo onde possamos alcançá-lo com facilidade.
Vance tossiu discretamente.
— Então, você vai prendê-lo sob suspeita, não é, sargento? Ou, talvez, como testemunha material.
— Não me importa que nome se dê a isso, Senhor Vance. Ele vai ficar quietinho em um lugar de onde não possa sair, pensando muito na vida, até que tenhamos o relatório do Dr. Doremus... É melhor pôr-lhe as pulseiras, Emery, até chegarmos à esquina e chamar o tintureiro.
Heath e Emery estavam levando o atônito Burns para a porta, quando Gracie Allen voltou correndo para a sala, depois de se libertar das mãos da sua mãe, que tentava segurá-la.
— Oh, George, George! Que aconteceu? Para onde eles vão levá-lo? Tive um pressentimento... Como quando uso minha mediunidade...
Vance chegou até junto dela e colocou as duas mãos nos seus ombros.
— Minha querida menina — falou ele, em tom consolador. — Por favor, creia em mim quando digo que você não precisa preocupar-se com coisa alguma. Não torne a coisa mais difícil para o Burns... Não quer confiar em mim?
A jovem deixou pender a cabeça e virou-se para a mãe. Os dois policiais, com Burns entre eles, já haviam saído da sala; e, quando Vance se virou e tornou a abrir a porta, a voz delicada da Senhora Allen se fez ouvir novamente.
— Obrigada, Senhor Vance. Tenho certeza de que Gracie confia no senhor... como eu confio.
A cabeça da moça estava apoiada no ombro da mãe.
Oh, mamãe — disse ela, fungando. — Não me importa nem um pouco o fato de
George não se vestir com tanta elegância quanto o Senhor Puttle.


CAPITULO X
UMA VISITA INESPERADA
(Domingo, 19 de maio — 12:00 horas)

Quando o carro da polícia chegou e o infeliz Burns ia entrando no veículo para ser levado, Vance lhe sorriu de maneira a encorajá-lo.
— Ânimo — falou ele, e depois ficou vendo o tintureiro afastar-se. Logo que o veículo sumiu de vista, Vance tomou um táxi e foi imediatamente para o apartamento do procurador distrital.
— Realmente, Markham — começou ele. — O sargento Heath é lógico demais. Em condições normais, eu receberia de bom grado a providência dele, mas neste caso preciso pedir a sua intervenção.
Em seguida, fez um resumo a Markham de todos os acontecimentos que tinham ocorrido desde que nós saíramos do seu apartamento, na noite anterior. A visita ao necrotério e a promessa à Senhora Allen; o fato de Heath ter descoberto a cigarreira e a sua busca a Burns, a noite inteira; a entrevista com o estarrecido jovem, quando ele foi encontrado; e, finalmente, a decisão de Heath de deixar Burns preso até chegar o relatório de Doremus.
Markham ouviu atentamente, mas sem entusiasmo.
— Acho que, no todo, Heath fez um serviço muito inteligente. Não compreendo onde ou por que você deseja que eu intervenha.
— Burns é inocente — garantiu Vance. — E sou inflexível na minha crença. Portanto, desejo que você telefone para o distrito policial e diga a Heath para libertá-lo. Na verdade, Markham, insisto em que você faça isso. Mas, primeiro, desejo que o sargento traga o rapaz aqui, se você não se opuser a que ele venha à sua casa. Desejo que ele entenda claramente que uma das condições para a sua libertação é o sigilo absoluto, por enquanto, a respeito do fato de que Philip Allen está morto no necrotério. Foi isso que prometemos à Senhora Allen, e Burns precisa cooperar conosco, ao ser libertado. Por favor, faça logo isto, meu caro amigo.
— Você conhece o tal Burns? — indagou Markham.
— Eu só o vi duas vezes. Mas tenho meus caprichos, sabe?
— O que é um eufemismo como outro qualquer para o seu atual desequilíbrio mental... Por que deseja que esse rapaz seja libertado?
— Estou encantado pela ninfa dos bosques — sorriu Vance Markham uniu os lábios, aborrecido.
— Se eu não o conhecesse, diria que...
Ora, vamos, seja bonzinho e telefone logo ao Heath.
Markham levantou-se, resignado: ele conhecia Vance há muito tempo e sabia que, por trás dos seus gracejos, havia muitas vezes seriedade. Depois, foi rumo ao telefone.
— O caso é seu — falou ele — se é que há um caso, e você pode dirigi-lo à sua vontade. Já tenho minhas próprias dificuldades.
O sargento mal havia chegado ao distrito policial, quando Markham telefonou e lhe deu ordens de acordo com o pedido de Vance.
Quinze minutos depois, Heath entrava escoltando Burns na biblioteca do procurador distrital. Vance descreveu cuidadosamente as circunstâncias a Burns e lhe exigiu uma promessa formal de não revelar a ninguém a morte de Philip Allen, impressionando-o com relação à própria Gracie Allen dentro do assunto.
George Burns, com inconfundível sinceridade, prontamente concordou com a exigência, e o sargento lhe disse que estava livre para se retirar.
Mas, quando ficamos a sós, Heath desabafou.
— E depois de todo o trabalho que tive ontem à noite! — queixou-se ele, amargamente. — Encontrar a cigarreira; perder meu sono e fazer um trabalho difícil hoje cedo; amarrar aquele sujeito e levá-lo para onde eu o queria... E foi tudo idéia sua, Senhor Vance. E, agora, quando lhe encontro alguma coisa palpável, que faz o senhor? Manda soltar o passarinho!
E mascou furiosamente seu charuto.
— Mas, se pensa que não vou mandar vigiar aquele sujeito, então não é muito esperto, Senhor Vance. Mandei o Tracy para cá, antes de vir, e ele vai seguir o Burns a partir do instante em que ele sair deste prédio.
— Ora, mas é claro que eu esperava que você fizesse exatamente isso. — E Vance deu de ombros, de maneira agradável.
— Mas, por favor, sargento, não fique com uma impressão errônea do meu capricho de libertar o jovem misturador de perfumes. Vou-me empregar a fundo no sentido de resolver este caso intricado. E esperarei o relatório do médico legista, ansiosamente... A propósito, em meio à sua roda-viva de atividade, você ficou sabendo de alguma coisa a respeito da autópsia?
— Claro que fiquei — falou Heath. — Telefonei ao Dr. Doremus pouco antes de sair do posto policial. Ele brigou comigo, como sempre, mas disse que iniciaria a autópsia logo depois do almoço, e que logo à noite o relatório estaria pronto.
— Ótimo — suspirou Vance. — Eu o cumprimento, sargento, e peço desculpas por ter atrapalhado o seu plano, admirável mas inútil, de privar o Senhor Burns da sua liberdade. Mas espero que isso não distraia sua atenção do trabalho de proteção da vida de Markham contra a ameaça de Pellinzi.
— Nada me vai distrair nem me impedir que me preocupe com o Abutre e com o Senhor Markham — garantiu Heath. — Não se preocupe! Aquele escritório está sendo vigiado dia e noite, e há auxiliares valentes meus, prontos para agarrarem aquele facínora se ele aparecer.
O sargento retirou-se alguns minutos depois, e Vance e eu aceitamos o convite de Markham para ficar para o almoço.
Eram quase três horas quando nós voltamos para o apartamento de Vance. Currie veio ao nosso encontro na porta, mostrando-se muito preocupado.
— Estou horrivelmente perturbado, patrão — disse ele, em voz baixa. — Há uma jovem incrível aqui à sua espera. Tentei firmemente mandá-la embora, senhor, mas não consegui fazê-la compreender. Ela era muito resoluta e muito ousada, patrão. — Deu uma rápida olhada para trás. — Eu a tenho estado observando muito cuidadosamente, e tenho certeza de que ela não tocou em nada. Espero, senhor...
— Você está perdoado, Currie — Vance interrompeu as desculpas do preocupado velhote e, entregando-lhe o chapéu e a bengala, foi diretamente para a biblioteca.
Gracie Allen estava sentada na enorme espreguiçadeira de Vance, e estava sumida no imenso estofamento de veludo. Quando saltou de pé a fim de saudar Vance, foi sem a exuberância de antes.
— Olá, Senhor Vance — disse ela, em tom solene. — Aposto que não me esperava ver. E também que o senhor não sabe como descobri o seu endereço. E o velhote rabugento que me recebeu na porta também não me esperava ver. Mas ainda não lhe contei como descobri seu endereço. Foi da mesma forma usada para descobrir seu nome... Lendo-o no seu cartão de visitas. Embora na verdade eu não tenha vontade de ir buscar aquele vestido novo, amanhã. Talvez eu não vá. Isto é, talvez eu espere até saber que não aconteceu nada ao George...
— Alegra-me muito que você tenha sido esperta e tenha descoberto meu endereço. — E o tom de voz de Vance era suave. — E também estou encantado pelo fato de você continuar usando o perfume de cidra.
— Ah, sim! — E ela olhou para Vance, agradecida. — A princípio, eu não gostava muito deste perfume, mas, agora, não sei por que... eu o adoro! Não é engraçado? Mas creio na mudança de idéia dos outros. Suponha que...
— Sim — disse Vance, com um movimento de cabeça e um sorriso leve. — Só a fantasia tem consistência: os duendes e as fadas existem mesmo...
— Mas eu não creio em duendes... Isto é, não tenho acreditado desde meus tempos de criança.
— Não, claro que não.
— E, quando descobri que o senhor morava tão perto de mim, achei isso muito conveniente, pois eu tinha de lhe fazer um punhado de perguntas importantes. — Ela olhou para Vance, de baixo para cima, como se para ver qual a reação dele às suas palavras. — E, ah... eu descobri algo mais a seu respeito! Seu nome tem cinco letras... como o meu e o do George.
É o destino, não é? Se o senhor tivesse seis letras, talvez eu não tivesse vindo. Mas, agora, sei que tudo vai acabar bem, não vai?
— Sim, minha cara — disse Vance, com um aceno afirmativo de cabeça. — Tenho certeza de que vai.
De repente, ela deixou escapar o fôlego, como se tivesse afastado com sucesso um ponto controvertido.
— E, agora, quero que o senhor me conte exatamente por que aqueles policiais levaram o George. Estou muito assustada, preocupada e aborrecida, embora o George tenha-me telefonado, dizendo que estava bem.
Vance sentou-se de frente para a moça.
— Você não precisa se preocupar por causa do Senhor Burns — começou ele. — Os homens que o levaram hoje cedo cometeram a tolice de achar que havia circunstâncias suspeitas ligadas com a pessoa dele. Mas tudo se esclarecerá dentro de um dia ou dois. Por favor, confie em mim.
Havia completa confiança no olhar franco da jovem.
— Mas deve ter sido alguma coisa muito séria o que fez aqueles homens irem hoje à minha casa e aborrecerem tanto o George.
— Mas — explicou Vance — eles apenas pensavam que era séria. A verdade, minha amiga, é que um homem foi encontrado morto, ontem à noite, no Domdaniel e...
— Mas que é que o George poderia ter tido a ver com isso, Senhor Vance?
— Ora... Na verdade, tenho certeza de que ele não teve nada a ver com isso.
— Então, por que os policiais agiram de maneira tão esquisita a respeito da cigarreira que dei a George? Afinal, como foi ela parar nas mãos deles?
Vance hesitou vários instantes. Depois, pareceu ter tomado uma decisão quanto até que ponto esclareceria a moça.
— Para ser franco — explicou ele, com paciência — a cigarreira do Senhor Burns foi encontrada no bolso do homem morto.
— Oh! Mas o George não daria a outra pessoa um objeto que eu lhe dei de presente...
— Como eu já disse, acho que foi tudo um engano lamentável.
A jovem olhou para Vance durante longo tempo, com um olhar perscrutador.
— Mas suponha, Senhor Vance... Suponha que o tal homem não tenha morrido de morte natural. Imaginemos que ele tenha sido... bem, que tenha sido assassinado, como o senhor disse que matou aquele homem em Riverdale, ontem. E suponha que a cigarreira do George tenha sido encontrada no bolso dele. Tenho lido, nos jornais, que algumas vezes a polícia prende inocentes, julgando-os culpados de certos crimes, e de como... — ela parou, de repente, e levou as mãos à boca, horrorizada.
Vance inclinou-se e pousou a mão no braço da moça.
— Por favor, minha querida criança! — disse ele. — Você está recomeçando a acreditar em duendes. E não deve. Duende é coisa que não existe, é pura imaginação. Nada vai acontecer ao Senhor Burns.
— Mas podia acontecer! — E com isso mostrou que seus temores estavam apenas ligeiramente amenizados. — Não compreende? Podia! E o senhor tem de ser um detetive muito bom, se alguma coisa assim acontecer!
Havia uma expressão amedrontada e suplicante nos olhos
da moça.
— Hoje de manhã, depois da saída de George, fiquei terrivelmente preocupada. E sabe o que foi que fiz? Fui à casa de Delpha, conversar com ela. Eu sempre procuro Delpha quando estou em apuros... e algumas vezes até quando não estou. E ela sempre diz que se alegra em me ver, pois gosta da minha presença. Acho que é porque eu sou médium, uma médium forte. E a presença de médiuns faculta a concentração, sabe? A casa de Delpha é exótica. A princípio, dá arrepios na gente. Há cortinas pretas e compridas, penduradas por toda a casa, e a gente não vê janelas. E existe só uma porta. E, quando as cortinas pretas são puxadas, fechando a porta, a pessoa sente como se estivesse em algum lugar muito distante, em companhia de Delpha e dos espíritos que lhe contam coisas.
Gracie olhou ao seu redor e estremeceu ligeiramente.
— Além disso, nas cortinas pretas de Delpha existem grandes gravuras de mãos, com inúmeras linhas. E há também sinais esquisitos, que Delpha chama de símbolos. Em cima de uma mesa, existe uma bola grande de vidro e outra, pequena. E mapas dos astros, com palavras engraçadas ao redor, que significam alguma coisa, quando a gente é um caranguejo, um peixe ou uma cabra, ou coisas assim.
— E que foi que Delpha lhe disse? — perguntou Vance, com bondoso interesse.
— Ah! Eu não lhe contei, contei? — E o rosto da jovem se iluminou. — Delpha mostrou-se muito misteriosa e pareceu terrivelmente surpresa quando eu lhe falei a respeito de George. Ela me fez as perguntas mais esquisitas: todas sobre os homens que foram à minha casa e a respeito da cigarreira... Era como se ela estivesse tentando arrancar-me revelações. Acho que ela estava procurando ler meu pensamento, porque minha mente vibrava. E Delpha sempre diz que ajuda muito quando uma pessoa está bem concentrada ao consultá-la. Em todo caso, ela disse que nada vai acontecer ao George... como o senhor mesmo disse. Só que ela falou que eu preciso ajudá-lo...
A moça olhou ansiosamente para Vance.
— O senhor me ajudará a tirar o George de apuros, não ajudará? Mamãe falou que o senhor lhe disse que ia fazer tudo que pudesse por nós. Sei que posso trabalhar de detetive, se o senhor me ensinar. É que... Preciso ajudar o George, entende?
Intrigado e perturbado pelo pedido sincero da jovem, Vance levantou-se, pensativo, e caminhou até à janela. Finalmente, voltou para junto da sua cadeira e tornou a sentar-se.
— Então, você quer ser detetive! — disse ele, alegremente.
— Acho que é uma excelente idéia, e vou dar-lhe toda a ajuda que puder. Nós dois vamos trabalhar juntos; você será minha assistente, por assim dizer. Mas você precisa trabalhar muito. E precisa não deixar ninguém suspeitar que você está fazendo serviço de detetive... Essa é a primeira regra.
— Oh, é maravilhoso, Senhor Vance! É exatamente como em um romance policial. — E a moça ficou imediatamente animada.
— Mas, agora, diga-me o que preciso fazer para ser detetive.
— Muito bem — começou Vance. — Vejamos... Primeiro, é claro, você precisa anotar tudo que possa ajudar o seu trabalho. Pegadas em lugares suspeitos são um bom ponto de partida. Quando alguém caminha pisando em terreno macio, naturalmente deixa pegadas. E então, medindo essas pegadas, pode-se dizer que número de sapatos a pessoa usa...
— Mas suponha — interrompeu a jovem — que a pessoa estivesse usando sapatos de número maior, apenas para nos enganar?
Vance sorriu com admiração.
— Esta, minha criança — disse ele — é uma observação muito hábil. Já houve quem fizesse exatamente isso. No entanto, não creio que nos precisemos preocupar com essa questão, por enquanto... Agora, prosseguindo, o detetive deve sempre examinar os blocos de escrivaninha, à procura de pistas. Geralmente, o que é escrito em um bloco, na folha de cima, pode ser lido quando se leva a folha a um espelho.
Vance demonstrou isso para ela, e a jovem ficou tão fascinada como se estivesse vendo um mágico trabalhar.
— Além disso, outro ponto muito importante são os cigarros. Se o detetive encontra uma ponta de cigarro, talvez consiga dizer quem o fumou. Deve começar procurando uma pessoa que fuma a tal marca de cigarro. E algumas vezes a ponta de cigarro costuma revelar o fumante. Quando há batom na ponta de cigarro, então já se sabe que ele foi fumado por uma mulher que usava batom.
— Ah! — E de repente a moça ficou desolada. — Talvez, se eu tivesse examinado cuidadosamente o cigarro que queimou meu vestido, ontem, eu pudesse dizer quem o jogou.
— É possível — retrucou Vance, alegremente. — Mas há muitas outras maneiras de tirar a limpo as suspeitas que a gente tenha a respeito das pessoas. Por exemplo, se alguém tivesse ido cometer um crime em uma casa onde houvesse um cão vigia, e se o detetive soubesse que o cão não latiu com esse alguém, então poderia concluir que o criminoso era amigo do cachorro. Como é sabido, os cães não latem para as pessoas amigas.
— Mas suponha — interrompeu a jovem — que a futura vítima tivesse em casa não um cão, mas sim um gato, ou mesmo ... ou mesmo um canário. Que é que o detetive deve fazer, nesse caso?
Vance não pôde deixar de rir.
— Nesse caso, o detetive tem de procurar outras coisas que identifiquem o culpado...
— É aí que as pegadas vêm a calhar, não é? Mas há muita gente que usa o mesmo número de sapatos. Os meus servem perfeitamente nos pés da minha mãe. E, além disso, os dela servem em mim.
— Ainda há outras maneiras...
— Conheço uma! — interrompeu ela, triunfante. — Que tal o perfume? Por exemplo, se encontrássemos no local do crime uma bolsa de mulher, e essa bolsa cheirasse Frangipanni... e não uma que usasse Gardênia... Mas eu não seria muito hábil nisso, o senhor seria? Estou sempre confundindo os cheiros de perfumes. Isso deixa o George furioso. Mas ele seria simplesmente maravilhoso na hora de reconhecer o perfume de um criminoso. George é capaz de reconhecer imediatamente qualquer espécie de perfume e dizer de onde é que ele vem, e de falar tudo a respeito do mesmo... Mesmo quando não consigo sentir o cheiro de nada. Ele tem uma espécie de dom inato... Como quando ele cheirou a cigarreira, hoje de manhã... Mas, por favor, prossiga, Senhor Vance.
Realmente, Vance prosseguiu, durante mais de meia hora, ensinando-lhe cuidadosamente as coisas que, segundo ele sabia, interessariam à moça. Não havia nenhuma dúvida quanto à sua compreensão e simpatia, quando, na hora em que a jovem estava para ir embora, ele telefonou para Currie e lhe deu instruções bem claras.
— Esta moça, Currie, — falou ele — deve ser recebida sempre que vier aqui. Se eu estiver fora e ela quiser esperar-me, dê-lhe as boas vindas e ponha-a à vontade aqui.
Quando a Senhorita Allen se retirou, Vance me disse:
— A impressão de ter em quem se apoiar fará muito bem àquela pobre mocinha, no momento. Ela está muito infeliz e bastante assustada. A nova ocupação que ela imagina ter será para ela um tônico provisório, mas necessário... Desconfio, Van, de que estou ficando um tanto sentimental com o correr dos anos. Estou amolecendo com a idade, como as uvas da França.
E bebericou lentamente o seu conhaque.


CAPITULO XI
FOLCLORE E VENENOS
(Domingo, 19 de maio — 21:00 horas)

Naquela noite, Markham telefonou a Vance, às nove horas. Este ouviu atentamente durante vários minutos, e enquanto ouvia ia franzindo profundamente a testa, com uma expressão intrigada. Finalmente, pendurou o fone e virou-se para mim.
— Nós vamos ao apartamento de Markham. Doremus está lá. Isso não me agrada... Isso não me agrada nem um pouco, Van. Doremus telefonou a Markham, há poucos instantes, cheio de novidades e de mistério. Não sabia onde Heath se achava e, em todo caso, queria mesmo antes falar com Markham. Este deve ter localizado o mal-humorado sargento, e agora deseja que eu também vá até lá. Só um desastre cataclísmico poderia agitar o irascível Doremus o bastante para que ele fosse ao encontro do procurador distrital, em vez de apenas entregar seu relatório oficial. É muito intrigante...
Uns quinze ou vinte minutos depois, um táxi nos deixava bem defronte à casa de Markham. Um chamado em voz áspera nos fez parar no instante exato em que íamos entrando no prédio, e o sargento Heath surgiu, andando depressa.
— Acabo de receber o recado do procurador distrital, lá em casa, e vim correndo para cá — disse Heath, ofegante. — Acho que é uma coisa esquisita, Senhor Vance.
O mordomo abriu-nos a porta, e depois nós o seguimos para a biblioteca, onde Markham e o Dr. Doremus nos aguardavam.
O médico apertou os olhos e olhou para Heath com expressão malévola.
— Só poderia, mesmo, ser um dos seus casos — roncou ele, sacudindo um dedo na direção do sargento, com ar acusador. - Por que você nunca pode arranjar um assassinato simples e fácil, em vez de me trazer esses casos cabulosos? — E depois acenou a Vance, em uma fraca tentativa de parecer alegre.
Doremus era um homem pequeno e ardente, que dava mais a impressão de ser um rabugento corretor da Bolsa de Valores do que um cientista altamente eficiente.
— Estou ficando farto desses seus assassinos complicados — prosseguiu ele, falando com o sargento. — Além disso, desde o meio-dia que eu não como. Não posso comer direito nem aos domingos. Você e os seus cadáveres malucos!
O sargento sorriu e ficou calado. Ele conhecia Doremus há muito tempo, e desde então habituara-se a aceitar suas maneiras excêntricas e algumas vezes ranzinzas.
— Não, doutor — interrompeu Vance, em tom apaziguador. — O pobre do sargento é apenas um espectador inocente... Afinal de contas, qual é a dificuldade?
— O senhor também está trabalhando neste caso, hem? — retorquiu Doremus. — Eu já devia saber! Êi, o senhor não gosta de ver pessoas mortas a tiros ou a punhaladas, em um crime limpo e bonito, em vez de serem envenenadas, para que eu tenha de trabalhar o tempo todo?
— Envenenadas? — perguntou Vance, curioso. — Quem foi envenenado?
— O cadáver de que estou falando — gritou Doremus. — O sujeito que Heath me entregou para autopsiar. Esqueci o nome dele.
— Philip Allen — informou o sargento.
Pois bem, não importa. Ele estaria tão morto quanto está, qualquer que fosse o seu nome. E o que me deixa mais furioso é que não sei mais, sobre o que o matou, do que se ele fosse um zulu morto em Isipingo.
— O senhor falou em veneno, doutor — disse Vance, calmamente.
— Falei, sim — disse Doremus, em tom áspero. — Mas não sei que espécie de veneno. Não confere com nenhum dos meus livros sobre Toxicologia.
— Na verdade, isso não parece exatamente científico, sabe? — sorriu Vance. — Espero que não estejamos retrocedendo ao misticismo.
— Oh, é bastante científico — insistiu Doremus. — O veneno — seja qual for — foi, sem dúvida, absorvido pela derme ou pela membrana mucosa. Poderia ter sido um sem-número de venenos. Mas não consegui nenhuma reação clara com as provas de laboratório que geralmente dão resultados evidentes. Poderia ser uma combinação de drogas. — O médico grunhiu. — Contudo eu descobrirei o que é. Mas não esta noite. Talvez leve um dia. Nunca deparei com uma autópsia tão complicada.
— É fácil crer nisso de imediato — falou Vance. — Do contrário, o senhor não estaria aqui esta noite.
— Talvez eu não devesse estar. Mas este sujeito cacete — e apontou para Heath — não cessou de dizer que o caso era muito importante e que talvez tivesse relações com a segurança do Senhor Markham. Pareceu-me um logro, mas achei melhor dizer a ele que não podia fornecer um relatório definitivo esta noite. Ele que se preocupe... Tenho fome.
— Que é que tenho eu a ver com isto, sargento? — E o tom de voz de Markham continha uma censura aguda.
— O cadáver não estava no escritório de Mirche, chefe? — defendeu-se Heath, de forma agressiva. — E é lá que tenho estado alerta ao aparecimento de uma ameaça à sua vida... E Hennessey está de vigia lá, e tudo — concluiu ele, desajeitadamente, enquanto Vance o interrompia de chofre com um aceno de mão.
— Nós agradecemos o seu trabalho e a sua gentileza, doutor — falou Vance. — O senhor tem certeza absoluta de que Philip Allen não podia ter morrido de morte natural?
— Não, a não ser que a ciência médica tenha ficado completamente maluca — retrucou Doremus, de forma enfática. — Aquele sujeito foi envenenado... Disso tenho certeza. Não admira que o jovem Mendel tenha ficado desanimado com o caso. O que provocou a morte da vítima foi não só um veneno, mas ainda um veneno rápido e poderoso, capaz de produzir efeito imediato. Mas a droga atuou de maneira totalmente diferente daquelas cujo efeito estou habituado a ver nas vítimas cuja autópsia tenho feito.
— Mas, doutor — insistiu Vance. — O senhor deve ter alguma idéia do que tenha sido.
— Ora, tenho muitas idéias. É justamente essa a minha dificuldade: tenho idéias demais a respeito.
— Por exemplo?
— Bem, há o nosso velho amigo, o cianeto de potássio. Há muitos indícios de que seja ácido cianídrico. Acho que ele cheirou algumas vezes o gás cianeto e perdeu os sentidos. Os olhos esbugalhados e a cor da pele podem significar cianeto... e também podem significar outra coisa. E percebi um pouco do cheiro nos pulmões e na mucosa estomacal. Mas nada na boca, nem quando abri a cavidade craniana. Mas isso também não significa nada, principalmente pelo fato de terem aparecido muitas outras coisas que não significavam a presença de ácido prússico, de trás para diante ou de diante para trás, ou nos dois sentidos, a partir do meio.
— Acho que o Dr. Mendel falou em queimaduras, talvez uma reação local, nos lábios e na garganta. Que me diz disso?
— Sei lá... — E Doremus parecia aborrecido com o mundo inteiro. — O cheiro que senti nos pulmões dele indicava uma provável inalação de algum gás, conforme eu já disse.
— Poderia ter sido nitrobenzeno? — sugeriu Vance.
— Não sei... Sou apenas médico.
— Ora, vamos, doutor — falou Vance, bem-humorado. — Estou apenas tentando afastá-lo dos tóxicos antigos.
Doremus sentou-se com um movimento rápido e sorriu, à guisa de desculpa.
— Não o culpo, Senhor Vance. Estou aborrecido e com raiva. Talvez eu esteja falando como se tivesse andado metido com egípcios antigos, com mandrágora e venenos de víboras... Com poções ciganas secretas, com unguentos de bruxas com seus meimendros negros, com os venenos dos Bórgias, com água Perugia e com água Tofana...
— O senhor disse Tofana, doutor? — interrompeu Heath. — Esse é o nome da tal cartomante chamada Delpha, Senhor Vance. E acho que ela e o marido são perfeitamente capazes de envenenar uma pessoa.
— Não, sargento, não — corrigiu Vance. — A Tofana de que o doutor está falando morreu na Sicília no século dezessete. E não era cartomante. Longe disso. Ela dedicava seu talento a misturar um líquido que desde então ficou sendo conhecido pelo seu nome. Água Tofana era um veneno mortífero. E a tal mulher vendeu seu veneno em escala tão grande, que o nome do seu preparado nunca mais foi esquecido. Embora talvez sua mistura não passasse de uma solução forte de arsênico, ainda hoje há muito mistério ligado a esse preparado. E era a essa mulher, morta há vários séculos, que o Dr. Doremus estava se referindo.
— Ainda assim, digo que Rosa Tofana seria capaz de cometer a mesma infâmia —insistiu Heath, obstinadamente.
— Você parece espantosamente cheio de ódios e de desconfianças, sargento.
— Na minha profissão, eu tenho de ser assim — murmurou Heath.
Vance virou-se para Doremus.
Desculpe-nos por interrompermos, doutor. Parece que o caso que estamos atualmente investigando nos deixou a todos amargurados... Mas que me diz dos venenos tirados de flores? Seria difícil identificá-los, não seria?
— Não! Seria até bem fácil, mas levaria tempo. E eu os conheço todos. Acho que o senhor se refere: à colquicina, tirada do açafrão do campo; à heleborina, extraída da rosa-de-natal, à narcisina, tirada do narciso do prato, e à convalarina, extraída do lírio do vale... Coisas assim. Mas garanto-lhe que o veneno que deu cabo da vida de Philip não foi nenhuma droga suave como essas... Ou talvez... — E piscou um olho para Vance, astutamente. — Agora, é o senhor quem está falando a respeito dos assim chamados venenos do romance medieval. Bolas! A ciência moderna ri deles.
— Não... Oh, não. Não me extraviei até tão longe — riu Vance. — Estava apenas pensando no mascate ambulante de Londres, que vendia perfumes, e que perdeu os sentidos quando cheirou o óleo de mirbana que pusera nas flores para tornar o cheiro delas mais forte.
— Não é nada parecido com isso. — Doremus sacudiu a cabeça, desdenhosamente. — Estou apenas dizendo que ainda não sei o que foi que o tal Allen cheirou... Mas me dêem um pouco de tempo e amanhã descobrirei. E, além disso, não será uma coisa tão maluca quanto agora quer parecer.
— O senhor é capaz de dizer quando foi que ele morreu, doutor? — indagou Heath.
Doremus olhou furioso para o sargento.
— Ora, como iria eu saber? Não sou nenhum adivinho. Foi só hoje à tarde que vi o cadáver. — Sua raiva diminuiu quando ele viu a decepção de Heath. — Falei com o Dr. Mendel, mas ele não quis arriscar um palpite. Disse que não havia a rigidez de morte quando viu o cadáver pela primeira vez. Mas ninguém pode acompanhar o enrijecimento dos músculos com um cronômetro. O começo desse fenômeno é altamente variável e depende de vários fatores que incidem sobre ele. Pelo que pude saber, o homem podia ter morrido umas duas horas antes de ter sido encontrado, ou podia ter morrido até dez horas antes... Não sei, Mendel não sabe e nem os senhores sabem...
Depois que Doremus desabafou um pouco mais, deixou-nos, com um alegre aceno de mão.
— Bem, Vance — disse o procurador distrital. — Agora, como é que você pretende encaixar essa situação absurda na sua história?
Vance sacudiu a cabeça, pensativo.
— Não sei, Markham. Mas fique sossegado, que ela tem de encaixar em algum lugar, e ainda estou confuso diante dos diversos fatores convergentes do meu conto... E a sua referência aos Tofanas foi muito curiosa, sargento. Rosa Tofana, a sua amiga, está demonstrando uma estranha curiosidade a respeito do cavalheiro morto...
Vance levantou-se e caminhou várias vezes de um lado para outro.
— Ainda não confesso que estou derrotado, Markham. Existem muitas perguntas na minha mente, que clamam por respostas. Por exemplo, como foi que a vítima tornou a entrar na sala de Mirche, depois que Hennessey o viu lá, às seis horas?
— Hennessey devia estar olhando para outro lado — falou Heath, impassível.
— Isso não é provável, sargento. Aconteceu alguma coisa muito esquisita lá.
Vance ficou fumando algum tempo, em silêncio.
— Gostaria de ver as plantas da reforma do velho casarão, quando Mirche resolveu instalar o restaurante. Deve haver algo sugestivo nelas. Confesso que é um desejo estranho, mas eu gostaria de examiná-las.
— Não vejo o que adiantaria ver as tais plantas — falou Heath. — Mas, se quer mesmo vê-las, posso arranjá-las com facilidade para o senhor. Doyle e Schuster foi a firma que fez a reforma, e eu já tive negócios com o desenhista-chefe deles.
— Acho que isso ajudaria muito, sargento. Quando é que você poderia conseguir essas plantas para mim?
— Antes que o senhor se levante, de manhã — retrucou o outro, confiante. — Digamos, por volta das dez horas.
Markham parecia divertido.
— Por que não espera até Doremus mandar o relatório final?
— Tem toda razão — admitiu Vance, com relutância. — Gosto das coisas simples. Além disso, tenho de pensar em uma jovem muito suplicante.
— Eu lhe garanto — falou Markham, sem nenhuma pena — que depois de examinar as plantas, amanhã, você terá tempo de sobra para pensar na tal jovem suplicante.
— Não... Não, Markham — disse Vance sério. — Não é uma questão de leviandade...
Depois, ele contou, com pormenores, a visita patética feita a ele naquela tarde por Gracie Allen. Seu pedido de ajuda, sua preocupação por Burns, e as sugestões que ele, compadecido, dera para que a jovem mantivesse a mente ocupada.
— Eu e o sargento — concluiu ele — fizemos uma promessa à mãe dela. E, depois da visita inesperada da moça, hoje, quero encarecer a vocês dois a necessidade de mostrarmos consideração para com a jovem, sempre que ela resolver intrometer-se no nosso trabalho.
— Considero um prazer, para não dizer uma coisa rara, elogiar a sua meticulosidade sentimental — observou Markham. — Mas talvez eu não seja chamado a ajudar nesse logro caridoso. Acho que a situação cairá com violência sobre você e o sargento.
— Para mim, isso não tem importância, chefe — falou Heath. — A Senhora Gracie Allen é muito amável. E sua filha é muito bonita.
Vance sorriu, agradecido.
— Você terá de ser um tanto cuidadoso, sargento. O melhor modo de enfrentar a situação é não mostrar nenhuma pena, aparentemente. Isso poderia deixar a moça desconfiada. Devemos agir, em qualquer tempo, como se não soubéssemos mais,
a respeito da morte do seu irmão, do que ela própria. É preciso ser ator, sargento. Você seria capaz de representar?
— Claro que representarei! — E a voz de Heath era decidida e sincera. — Mas ainda não sou tão insensível que possa prometer não sentir um nó na garganta de vez em quando...
E o sargento parecia um tanto envergonhado da extravasação de sentimentos, tão inadequada para ele.
— Raios! — acrescentou ele, depressa. — Vou acabar sendo um daqueles ídolos de filmes infantis.

CAPITULO XII
UMA ESTRANHA DESCOBERTA
(Segunda-feira, 20 de maio — 9:00 horas)

Vance relutara em deixar o apartamento de Markham, na noite de domingo, e ficara lá até tarde. Mas, na manhã seguinte, levantou-se mais cedo do que o costume. Por volta das oito e meia, ele já estava completamente vestido e já tomara seu café. Pouco depois das nove horas, o sargento Heath chegou e entrou na biblioteca em passos largos e triunfantes.
— Aqui estão elas, Senhor Vance — anunciou ele, colocando um rolo comprido de papelão em cima da escrivaninha. — Se todos os meus trabalhos fossem tão fáceis de fazer como obter estas plantas para o senhor, eu jamais morreria de excesso de serviço.
— Céus, que eficiência!
Vance tirou as plantas do invólucro e estendeu-as em cima da escrivaninha. Estudou-as todas, minuciosamente, examinando separadamente a planta de cada piso. No entanto, dedicou mais tempo à planta do andar térreo, que incluía o salão do restaurante, o saguão de entrada e as salas onde eram guardados os abrigos dos fregueses, onde ficava a cozinha e onde estava instalado o escritório. O sargento ficou observando-o com uma expectativa divertida.
— Muito convencional — murmurou Vance, tamborilando nas folhas com o dedo. — Umas plantas muito boas. Feitas com inteligência. Nada mais, nada menos. Triste... Muito triste.
Nesse instante, Gracie Allen chegou, inesperadamente. Entrou na bibblioteca antes de Currie, tornando supérfluo que ele a anunciasse.
— Oh, eu tinha de vê-lo, Senhor Vance! Não sei por que, mas parece que não estou fazendo nenhum progresso, e trabalhei com tanto afinco. Sinceramente, eu trabalhei!
— Caramba! Minha jovem... — Vance falou em tom agradável. — Por que não está trabalhando na fábrica, hoje?
— Não pude ir ao trabalho — retorquiu ela. — Por enquanto, não posso. Estou pensando em tanta coisa ao mesmo tempo... Isto é, em coisas terrivelmente importantes. E tenho certeza de que o Senhor Doolson não se importará... George também não foi trabalhar. Telefonou-me, ontem à noite, e disse que não podia fazer nada na fábrica. Está muito transtornado.
— Bem, talvez, afinal de contas, Senhorita Allen, alguns dias de descanso...
— Oh, mas eu não estou descansando. — Ela pareceu magoada. — Estou terrivelmente ocupada o tempo todo. O senhor mesmo disse que preciso manter-me ocupada, lembra-se? — Ela avistou Heath, e uma expressão de medo lhe veio aos olhos grandes, ao reconhecer o sargento.
Vance amenizou a situação, apresentando Heath em tom indiferente.
— Ele também está trabalhando conosco no caso — acrescentou Vance. — Você pode confiar no sargento. Expliquei-lhe o seu engano de ontem e agora ele está do nosso lado... Além disso — prosseguiu Vance, alegremente — ele também tem cinco letras no nome.
— Oh! — E seus temores foram um tanto diminuídos por essa informação, embora ela olhasse novamente para Heath com ar incerto antes de romper em um sorriso leve. Depois, a jovem apontou para a escrivaninha. — Que são aqueles papéis azuis, Senhor Vance? Não estavam ali ontem. Talvez sejam uma pista ou algo parecido. São mesmo?
— Não, receio que não. São apenas plantas do Domdaniel, onde você esteve na noite de sábado...
Oh, posso dar uma olhada?
— Sem dúvida — respondeu Vance, e se curvou sobre a escrivaninha ao lado dela. — Veja, este é o grande salão de refeições e a porta de entrada que vem do corredor. E aqui fica a cozinha, além da porta lateral. E nesta parte fica a alameda que passa embaixo do arco. E neste canto fica o escritório, com a porta que dá para o terraço. E...
— Espere um instante — interrompeu a moça. — Na verdade, isto não é um escritório.
Gracie curvou-se mais perto, sobre a planta, e acompanhou o traçado dos corredores com um dedo, eliminando-os à medida que os acompanhava. Acabou seguindo o contorno do pequeno aposento. Depois, ergueu o olhar.
— Ora, mas esse é o quarto particular de Dixie Del Marr. Ela própria me contou isso... Não acha que ela é linda, Senhor Vance? E como canta bem... Gostaria de poder cantar como Dixie. Canta canções clássicas...
— Tenho certeza de que a senhorita canta muito melhor do que ela — disse-lhe Vance, de maneira galante. — Mas acho que está enganada ao afirmar que esse é o quarto de Dixie. Na verdade, é o escritório de Mirche, não é, sargento?
— Claro que é!
Gracie Allen curvou-se ainda mais sobre as plantas.
— Oh, mas é o quarto em que eu estive — garantiu ela, de maneira terminante. — Vou-lhes mostrar: aquela janela dá para a alameda. E aqui fica a rua, para onde dão aquelas janelinhas. Aqui na planta até diz ”rua Cinquenta”. Ora, tem de ser o quarto da Senhorita Del Marr. E a gente não pode ter dois quartos no mesmo lugar, mesmo em uma planta... Pode?
— Não, seria absurdo...
— E as paredes não são todas pintadas de lilás? E não há três ou quatro cadeiras grandes de couro ao longo desta parede? E não há um enorme peixe morto, em uma tábua, pendurado aqui? — E ela ia apontando para a localização dos objetos, enquanto falava. — E não há um candelabro pequeno, de vidro, muito engraçado, pendurado no... Oh, onde fica o teto, Senhor Vance? Não vejo nenhum teto nesta planta.
Heath tornara-se altamente interessado nas análises da jovem.
— Claro — falou ele. — As paredes são de uma espécie de cor de púrpura, e Mirche diz que pescou aquele peixe lá na Flórida. Ela tem toda razão, Senhor Vance... Mas escute aqui, moça, quando foi que esteve naquele cômodo?
— Ora, eu estive lá ainda na noite de sábado.
— Quê?! — berrou Heath. Gracie ficou assustada.
— Será que eu disse alguma coisa errada? Não tive intenção de entrar lá. Foi por acaso...
Agora, foi Vance quem falou.
— A que horas, durante a noite, você entrou lá, Gracie?
— Ora, Senhor Vance. Foi quando fui à procura de Philip, às dez horas da noite... Mas não o encontrei. Ele não estava em parte alguma. E também não veio ontem para casa. Acho que foi tirar umas férias fora da cidade. E prometeu que não deixaria o emprego.
Vance acabou com a tagarelice sem objetivo da jovem.
— Não vamos falar em Philip agora. Diga-me apenas como foi que você se dirigiu ao terraço à procura do seu irmão, quando, na realidade, o que você queria era ir para os fundos do restaurante.
— Não fui para o terraço. — Gracie sacudiu a cabeça, de maneira enfática. — Afinal de contas, para que eu desejaria ir ao terraço? Eu me resfriaria, pois estava trajando um vestido muito fino. Não acha que era um vestido lindo, Senhor Vance? Foi a mamãe também que o fez.
— Sim, você estava encantadora nele... Mas deve ter-se esquecido, pois o único jeito de entrar naquele quarto é pelo terraço.
— Oh, mas eu entrei por outro caminho... Entrei pela porta dos fundos. — Ela apontou para a parede que ficava diretamente em frente à porta da rua do escritório de Mirche; depois, seus olhos se arregalaram, quando ela examinou a planta. — Há alguma coisa muito estranha aqui, Senhor Vance. Quem fez esta planta não teve muito cuidado.
Vance aproximou-se mais dela. O sargento também chegou mais para perto, e ficou ao lado dos dois, com um ar de expectativa e curiosidade, com o charuto erguido no alto.
— A senhorita acha que deveria aparecer outra porta nesse lugar? — indagou Vance, baixinho.
- Ora, é claro! Porque há uma porta ali mesmo. Do contrário, como poderia eu ter entrado no quarto de Dixie Del
Marr? Mas o que não posso imaginar é por que ela conserva aquele peixe lá no seu quarto. Não vejo nenhuma beleza nisso. . .

— Não se preocupe com o peixe. Olhe aqui para a planta um instante. . . Agora, aqui está o arco pelo qual você deixou o salão de refeições.. .

— Sim. O que tem a grande escada trabalhada defronte.

— E agora, vejamos, você deve ter entrado por aqui, no corredor. . .

— Isso mesmo. George queria que eu ficasse para falar com ele, mas eu tinha pressa. Por isso, voltei direto, até passar por outro corredor pequeno. E então fiquei sem saber em que direção seguir.

— Você deve ter entrado nessa passagem estreita e caminhado até este ponto aqui. — Vance parou o lápis com o qual estivera acompanhando, na planta, o roteiro seguido pela moça.

— Foi exatamente o que fiz! Como foi que o senhor soube? Estava-me observando?

— Não, Gracie — respondeu Vance, com paciência. — Mas talvez você esteja um tanto confusa. Há uma porta aqui, na extremidade desta estreita passagem, onde você diz que desceu.

— Sim, eu vi a tal porta. Cheguei até a abri-la. Mas não havia nada lá, apenas a alameda de entrada de carros. Nesse momento compreendi que estava perdida. E então, quando eu estava lá, de pé, encostada à parede e imaginando como iria encontrar Philip, essa outra porta de que eu lhe estava falando — a que leva para dentro do quarto de Dixie Del Marr — abriu-se atrás de mim. — A jovem deu um riso abafado, como se estivesse pensando em alguma piada que fosse contar em seguida. — E eu caí dentro do quarto! Foi muito embaraçoso, mas não estraguei meu vestido. E poderia tê-lo rasgado, caindo daquela maneira. .. Mas acho que a culpa foi apenas minha, por não ter olhado onde me estava encostando. Mas eu não sabia que havia uma porta ali. Não vi porta nenhuma. Em todo caso, lá estava eu, dentro do quarto. Não é uma tolice? Não ver uma porta e apoiar-se nela, e depois cair através dela dentro do quarto de Dixie? — Ela riu de maneira encantadora, ao lembrar-se do que lhe acontecera.

Vance levou a moça para uma cadeira e arrumou um travesseiro para ela.

— Sente-se ali, minha querida — falou ele. — E contenos tudo a respeito do que aconteceu com você.

— Mas eu já lhes contei — falou ela, ajeitando-se de maneira confortável. — Foi muito engraçado, e fiquei muito embaraçada. A Srta. Del Marr também ficou embaraçada. Ela me disse que aquele era seu quarto particular. Por isso, eu lhe disse que lamentava muito o acontecido e lhe expliquei que estava procurando meu irmão. Ela até conhecia Philip. Acho que era porque ambos trabalhavam no mesmo lugar, como eu e George. . . E depois ela me levou de volta ao corredor e apontou o caminho certo para o patamar da escada da cozinha. Foi muito boazinha para comigo. Bem. . . Esperei muito tempo, mas Philip não apareceu. Por isto, voltei para junto do Sr. Puttle. Eu sabia encontrar o caminho de volta. . . E agora, Sr. Vance, quero fazer-lhe mais algumas perguntas a respeito do que o senhor disse ontem. . .

— Eu teria muito prazer em responder a elas, Srta. Allen

— disse Vance. — Mas, na verdade, não tenho tempo, esta manhã. Talvez depois, à tarde. Não se importará, não é?

— Oh, claro que não. — A jovem saltou de pé, agilmente.

— Também tenho algo muito importante a fazer. E talvez George vá à casa da minha mãe, passar alguns minutos conosco.

— Ela apertou a mão de Vance, fez um movimento de cabeça na direção de Heath, arisca e um instante depois se retirara.

— Com mil gafanhotos! — explodiu Heath, quase antes que a porta se fechasse atrás de Gracie Allen. — Eu não lhe disse que o tal Mirche era um sujeito esperto? Então, ele tem uma porta secreta! Mas aquela boneca tonta não a viu... Claro que não a viu! Alguém deve ter sido descuidado.. . Ela se encostar a uma porta invisível e cair dentro do quarto.. . E exatamente dentro do quarto onde mataram seu irmão! É a maior!

Vance deu um sorriso leve.

— Mas, afinal de contas, sargento, não há nenhuma lei que proíba um homem de ter uma porta secreta para o seu escritório. E essa, sem dúvida, é a nossa resposta a como teria o morto ido parar lá dentro sem que fosse visto por Hennessey. Mas alguém deve ter estado lá dentro com ele. Não foi Mirche, que estava à minha mesa entre dez e onze horas da noite. E, sem dúvida, não havia nenhum morto lá dentro às dez horas da noite.

— Mas o senhor não pensa...

— Faça silêncio algum tempo, sargento. — E Vance andava de um lado para outro.
— Gostaria de ir ao Domdaniel e arrombar aquela porta falsa! — declarou Heath, violentamente.
— Não... Oh, não — aconselhou Vance. — Você não deve ser tão impetuoso. Precisa ser fino. Que essa seja a nossa palavra de ordem, por enquanto.
— Ainda assim — disse Heath, resolutamente — se o Domdaniel for o quartel-general de uma quadrilha de meliantes, como sempre desconfiei, nada me daria mais prazer do que esmagar todo aquele prédio, e Mirche também, junto com o resto.
— Tem uma natureza impulsiva demais, sargento — censurou Vance. — Ninguém pode rebentar a casa dos outros sem provas da culpa da pessoa.
— Estou apenas dizendo o que eu gostaria de fazer.
— E outra coisa, sargento: Mirche seria apenas um elo secundário na sua imaginária cadeia criminosa. Como eu disse, ele está longe de ser um líder de homens.
— Pois ele me parece bastante esperto — insistiu Heath, mansamente. — Em todo caso, o tal de ”Coruja” Owen, com quem o senhor estava preocupado, deve ser um dos chefes.
— É verdade — disse Vance, pensativo. — Mas ele era apenas um companheiro de jantar, quando o vi. Muito correto e comedido. Embora eu confesse que sua presença lá, naquela noite, não me agradou, com tantas outras coisas esquisitas juntando-se sem significarem nada. — Vance fez um gesto vago. — Acho que podemos esquecê-lo, por enquanto, para nos concentrar em estabelecer quem matou o pobre sujeito.
— Mas como? Investigando um pouco mais de perto a respeito de Mirche?
— Exatamente, sargento. E também não deixarei de investigar a respeito de Dixie Del Marr, depois daquela espantosa informação sobre a porta falsa que dá para seu quarto particular.
— E como pretende fazer isso, Senhor Vance?
— Bem abertamente, sargento. Vou até lá bater um papo. Por falar nisso, onde é que Mirche mora?
— Isso é fácil — informou Heath. — Mora no primeiro andar do Domdaniel.
— Foi o que imaginei... E você poderia responder com igual facilidade, se eu lhe perguntasse onde mora a Senhorita Del Marr?
— Claro — grunhiu Heath. — Eu não teria durado tanto tempo no Departamento de Homicídios, se não soubesse onde moram as pessoas que considero suspeitas de estarem tomando parte em patifarias ou em crimes. O senhor a encontrará no Hotel Antler, na Rua Cincoenta e Três.
— Você é um fundo de informações, sargento — elogiou Vance.
— Quando pretende ir falar com eles, Senhor Vance? E que faremos, depois?
— Tentarei comunicar-me com Mirche e com Dixie Del Marr hoje de manhã. Em seguida, esforçar-me-ei para conseguir que Markham almoce comigo. Depois, ficaria encantado em me encontrar novamente com você, aqui, às três horas da tarde.
— O caso continua sendo seu, Senhor Vance — murmurou Heath. — E eu não lhe direi como conduzi-lo. — E ele ficou mais meia hora antes de se retirar.
Depois, Vance telefonou para Markham, e em seguida sentou-se e acendeu um cigarro, de maneira mais deliberada do que de costume.
Mais outra faceta espantosa na pedra preciosa, Van — falou ele. — Markham estava para me telefonar quando me ligaram com seu gabinete. O Senhor Doolson — o tal da fábrica de perfumes In-O-Scent — estivera lá e fora embora. Markham prometeu contar-me a história da sua visita mais tarde, quando nos encontrarmos, e parecia muito divertido. Devemos encontrar-nos no seu gabinete por volta da uma hora da tarde. Eu disse a ele que, se não estivéssemos lá até as duas horas, ele deveria mandar uma pelotão dos nossos bravos rapazes dar uma batida no Domdaniel.

CAPITULO XIII
NOTÍCIAS DE UMA CORUJA
(Segunda-feira, 20 de maio — 11:00 horas)

Às onze horas, Vance foi ao Domdaniel. Não teve nenhuma dificuldade em falar com Mirche. Após uma espera de apenas cinco minutos, o proprietário do restaurante entrou na sala de recepções onde estávamos esperando. Cumprimentou Vance de maneira efusiva, embora me desse a impressão de que estava representando um papel bem ensaiado.
— A que devo esta visita inesperada, Senhor Vance? — indagou ele, amavelmente.
— Eu queria apenas conversar com o senhor a respeito do pobre coitado que foi encontrado morto aqui na noite de sábado. — Vance falou com indiferença, embora em tom agradável.
— Ah, sim. — Se Mirche ficou surpreso, disfarçou muito bem. — Claro, se for a respeito da família dele, teremos prazer em ver o que pode ser feito. Naturalmente, eu gostaria de evitar escândalos, pois isso prejudicaria a freqüência ao nosso restaurante. Foi um acidente lamentável. Mas... É melhor irmos para o meu escritório.
O homem foi na frente ao longo da sacada e, abrindo a porta, afastou-se para um lado a fim de que entrássemos na sua frente. Vance sentou-se em uma das grandes cadeiras de
couro e Mirche sentou-se em outra, mais ou menos de frente — para Vance.
— A polícia tem feito muitas perguntas a respeito do caso — começou Mirche. — Mas eu esperava que, nesta altura, todo esse assunto já estivesse sido resolvido.
— Sei que estas coisas são muito importunas — falou Vance. — Mas há um ou dois pontos, nessa situação, que me interessam um pouco.
— Pois me surpreende muito que se interesse por esse caso, Senhor Vance. — Mirche falava em tom frio e delicado. — Afinal de contas, o homem era apenas um lavador de pratos. Eu o mandara embora antes da hora do jantar. Ele reclamou que seu salário era muito baixo e não chegamos a um acordo a respeito do assunto. Não entendo por que ele teria voltado, a não ser que houvesse pensado melhor e quisesse ser readmitido. Foi lamentável ele morrer no meu escritório. Mas não parecia ser um sujeito particularmente robusto, e acho que nunca se pode saber quando o coração vai estourar... A propósito, Senhor Vance, já foi determinada a causa da morte?
— Não, acho que não — respondeu Vance, sem se comprometer. — No entanto, não é isso que interessa, no momento. O fato, Senhor Mirche, é que havia um policial na rua, lá fora, na noite de sábado, e ele insiste em que não viu esse seu lavador de pratos entrar aqui no seu escritório, depois que foi visto saindo dele, por volta das seis horas.
— Talvez ele não o tenha notado — falou Mirche, com indiferença.
— Não, não... O policial, que, a propósito, conhecia Philip Allen, tem certeza absoluta de que a jovem vítima não entrou no seu escritório, pelo lado da sacada, a noite inteira.
Mirche ergueu o olhar e estendeu as mãos.
— Mas, assim mesmo, insisto, Senhor Vance...
— Seria possível que o tal Philip tivesse alcançado este aposento por outra entrada? — Vance fez uma pausa momentânea e olhou ao redor. — Talvez tivesse entrado por aquela pequena porta que há na parede dos fundos.
Mirche ficou um instante calado. Olhou fixamente para Vance, com expressão astuta, e os músculos do seu corpo pareceram retesar-se. Se algum dia vi uma fotografia viva de um homem pensando depressa, Mirche era o retrato vivo desse homem.
De repente, o homem soltou uma risada curta.
— E eu pensava que havia guardado tão bem o meu segredinho... Aquela porta é invenção minha, apenas para meu uso particular, o senhor compreende. — Levantou-se e foi até o fundo da sala. — Vou-lhe mostrar como ela funciona. — Apertou um pequeno medalhão, no lambril, e uma folha de porta, que não teria nem meio metro de largura, girou sem ruído para dentro do aposento. Do outro lado ficava o estreito corredor no qual Gracie Allen perdera o rumo.
Vance olhou para as dobradiças ocultas da porta secreta e depois se afastou, como se a revelação não fosse nenhuma novidade para ele.
— Muito hábil — disse ele, em sua voz arrastada.
— É muito conveniente — falou Mirche, fechando a porta. — Uma entrada particular que liga o restaurante ao meu escritório. Como vê, Senhor Vance...
— Ah, sim, sem dúvida. É muito útil quando a gente quer-se isolar um pouco do resto do mundo. Sei que certos corretores de Wall-Street têm portas assim. E acho que com razão... Mas como é que o seu lavador de pratos teria tomado conhecimento da existência de tal porta?
Mirche coçou o queixo, pensativo.
— Ora, não sei... Embora seja perfeitamente possível, é claro, que algum empregado do restaurante haja visto quando abri a porta... Ou talvez tenha descoberto casualmente o segredo.
— A Senhorita Del Marr sabia dele, não sabia?
— Oh, sim — confessou Mirche. — Ela, às vezes, me ajuda aqui um pouco no trabalho. Não vejo nenhum motivo para não a deixar usar a porta, quando ela quer.
Era evidente que Vance fora colhido de surpresa pela franqueza de Mirche, e logo mudou a conversa para outros assuntos. Fez inúmeras perguntas a respeito de Allen e depois voltou aos acontecimentos da noite de sábado.
No meio de uma das perguntas de Vance, a porta da frente abriu-se e Dixie Del Marr apareceu na soleira da porta. Mirche convidou-a para entrar e imediatamente nos apresentou.
— Eu estava justamente falando a estes senhores — disse ele, rapidamente — a respeito da entrada secreta que existe para este aposento. — E forçou uma risadinha. — O Senhor Vance parecia pensar que devia haver alguma ligação misteriosa entre isso e...
Vance ergueu a mão, protestante em tom agradável.
— Infelizmente, acho que o senhor imaginou significados ocultos nas minhas palavras, Senhor Mirche. — Depois, sorriu para Dixie Del Marr. — A senhorita deve achar aquela porta muito útil.
— Ah, sim... Principalmente quando o tempo está ruim. Na verdade, ela tem sido muito útil. — Ela falou em tom de voz indiferente, mas havia uma dureza, quase amargura, na expressão do seu rosto.
Vance a estava examinando atentamente. Eu esperava que ele a interrogasse a respeito da morte de Allen, pois sabia que fora essa a sua intenção. Mas, realmente, ele tagarelou descuidadamente a respeito de coisas banais, completamente sem relação com o assunto que nos levara ali.
Pouco antes de despedir-se, ele disse à Senhorita Dixie Del Marr, em tom de voz conciliatório:
— Desculpe-me se pareço pessoal, mas não posso deixar de admirar o perfume que a senhorita está usando. Eu arriscaria um palpite... Seria, acaso, uma mistura de narciso e rosa?
Se a mulher ficou atônita com o comentário de Vance, não deu nenhuma demonstração.
— Sim — respondeu ela, com indiferença. — Tem um nome ridículo... Completamente indigno dele, creio eu. O Senhor Mirche também usa o perfume... Tenho certeza de que por influência minha. — Dirigiu um sorriso convencional ao homem, e novamente notei a dureza e a amargura das suas maneiras.
Nós nos retiramos pouco depois disso e, enquanto caminhávamos ao longo da Sétima Avenida, Vance mostrava-se de uma seriedade fora do comum.
— O nosso Senhor Mirche é muito esperto — murmurou Vance. — Não compreendo por que não ficou mais preocupado a respeito da porta secreta. Mas ele está preocupado. Oh, e muito. É muito esquisito... Não precisei interrogar Dixie. Mudei de idéia a esse respeito no instante em que ela falou tão suavemente e olhou para Mirche. Havia ódio, Van. Ódio cruel e apaixonado, e ambos usavam Beije-me Depressa. Oh, que tem esse perfume a ver com o nosso caso? É curioso...!
Markham nos falou, em seu gabinete, acerca da visita de Doolson, acontecida naquela manhã.
-— O homem está desesperadamente preocupado, Vance, e pelo motivo mais incrível. Parece que tem uma opinião muito elevada a respeito da habilidade do jovem Burns. Acha que sua fábrica de perfumes não poderia funcionar sem o rapaz. Está convencido de que Burns é quem tem a chave do sucesso contínuo da sua empresa. E falou mais coisas assim, de espantosa tagarelice.
— Não foi tagarelice, de forma alguma, Markham — interrompeu Vance. — Doolson talvez tenha toda razão de considerar muito Burns. Foi este quem preparou as fórmulas para a In-O-Scent e salvou Doolson da falência. Compreendo exatamente o que ele quis dizer.
— Bem... Parece, também, que as vendas da firma só são efetuadas em determinadas épocas, e que se aproxima, agora, a fase de vendas mais altas. Doolson investiu uma fortuna em uma campanha de vendas, e precisa imediatamente de vários e novos perfumes populares. E acha que só Burns pode preparar-lhe tais perfumes.
— Isso é interessante e plausível. Mas por que a visita dele ao seu gabinete?
— Parece que Burns não compareceu ao emprego e que não irá mais lá até que fique livre de suspeitas no caso Allen. Burns está nervoso e, creio eu, bastante amedrontado. Não pode trabalhar, não pode pensar, não pode experimentar perfumes ... Está completamente desorientado. E Doolson está muito aflito. Hoje cedo, conversou com o rapaz e ficou sabendo dos motivos da sua recusa obstinada em voltar para o trabalho. Burns lhe disse que o caso estava sendo abafado temporariamente, e não forneceu nomes. Mas explicou que ele estava implicado, de alguma forma, e, portanto, transtornado. Tendo confiança completa em Burns, Doolson veio correndo para cá, em desespero de causa. Talvez tenha achado que meu departamento está trabalhando demasiado lentamente.
— Que foi que ele disse?
— Doolson insiste em oferecer um prêmio em dinheiro pela solução do caso, na esperança desesperada de me incentivar, e ao meu pessoal, a resolvermos o assunto imediatamente, para que seu precioso Burns possa voltar ao trabalho. Pessoalmente, acho que o homem está doido.
— Talvez esteja, Markham, mas não o desiluda.
— Já tentei, mas ele insistiu.
— E quanto é que ele acha que valem os serviços imediatos e tranqüilos do Senhor Burns?
— Cinco mil dólares!
— É uma loucura — riu Vance.
— Concordo com você. Eu também não acreditaria, se não tivesse um cheque dessa importância, assinado por Doolson e visado, neste momento, guardado no meu cofre. E, por falar nisso, esse cheque só é válido por quarenta e oito horas...
Depois que Vance absorvera essas informações fantásticas, contou suas atividades da manhã. Falou da porta secreta que dava para o escritório de Mirche e frisou o ponto da desconfiança insistente do sargento de que o Domdaniel era a sede de uma poderosa quadrilha de criminosos.
Sobre este último ponto, Markham fez um aceno lento e pensativo de cabeça.
— Não tenho certeza — observou ele — de que as suspeitas do sargento sejam infundadas. Aquele lugar sempre me preocupou um pouco, mas nunca veio à luz nada concreto.
— O sargento mencionou Owen como um possível chefe — falou Vance. — E acho a idéia interessante. Estou um tanto inclinado a procurar o ”Coruja” e tentar fazê-lo arrepiar as penas. A propósito, Markham, se meu impulso vencer minha discrição, qual é o nome verdadeiro de Owen? Você entende, não posso andar por aí perguntando por uma ave noturna de rapina.
— Acho que é Dominic.
— Dominic, Dominic... — De repente, Vance se levantou, com os olhos fixos no espaço à sua frente. — Dominic Owen! E Daniel Mirche! — E segurou o cigarro, suspenso no alto. — Agora, tudo se tornou fantasia. Você tem razão, Markham... Estou tendo visões: estou envolto em um conto misterioso. Uma coisa fantástica!
— Ora em nome dos céus... — começou Markham.
— Ora, mas você ainda não compreendeu? — E depois, disse: — Dominic... Daniel. Que engenhoso... Daí saiu DOMDANIEL!
Markham ergueu o cenho, incrédulo.
— Pura coincidência, Vance. Embora haja nisso certa dose de fantasia, coisa que eu confesso. Se bem me lembro da leitura que fiz das Mil e Uma Noites, o Domdaniel original ficava no fundo do mar, em algum ponto perto de Túnis, e era uma curiosa morada de espíritos malignos. Mesmo que Mirche tenha ouvido falar daquele palácio submarino e fosse realmente sócio de Owen no restaurante, ele jamais teria coragem ou iniciativa suficientes para isso.
— Mirche não teria, Markham, mas Owen teria. Owen teria a suteliza, a ousadia e o humor sombrio para isso. A idéia teria sido magnífica, creio eu. Oferecendo ao mundo a chave do seu segredo e depois rindo sozinho, muito à semelhança dos demônios que originalmente habitavam aquela cidadela submarina do pecado...
Juntamente com Markham, condoeu-se das complicações da vida e deixou-o sozinho para tirar suas próprias conclusões.
Quando voltamos para o apartamento de Vance, pouco antes das três horas da tarde, não era Heath quem estava à nossa espera. Era Gracie Allen, que parecia estar sempre em toda parte e, como de costume, saudou Vance com alegria e exuberância.
— O senhor me disse para voltar hoje à tarde. Ou não disse? Seja como for, o senhor disse alguma coisa a respeito de logo mais à tarde. E, como eu não sabia a que horas deveria vir, vim cedo. Já reuni muitas pistas... Isto é, umas três ou quatro. Mas acho que elas não servem para nada. O senhor arranjou alguma pista?
— Ainda não — falou ele, sorridente. — Isto é, não tenho pistas definidas. Mas tenho várias idéias.
— Oh, fale-me das suas idéias, Senhor Vance — pediu ela, insistente. — Talvez elas sejam úteis. Nunca se sabe o que pode resultar quando se começa a pensar. Ainda na semana passada, pensei que ia haver uma tempestade violenta, e houve mesmo!
— Bem, vejamos... — E Vance, um tanto levado pelo espírito da brincadeira, e contudo com evidente benignidade, falou-lhe das suas suposições com relação ao significado da palavra ”Domdaniel”. Demorou-se sobre o mistério e o romance da lenda original de Domdaniel, contida nas Mil e Uma Noites, para divertir a jovem: falou dos califas sírios, das ”raízes do mar”, das quatro entradas e dos quatro mil degraus, citou Magharabi e os outros mágicos e feiticeiros.
Heath chegara no começo da história, e ficou de pé, ouvindo, tão encantado quanto o estava a moça. Quando Vance terminou, Gracie Allen relaxou os nervos e músculos, durante alguns instantes.
— Isso é simplesmente maravilhoso, Senhor Vance. Gostaria de poder ajudar a encontrar o tal Dominic. Temos um empregado gorducho, na fábrica, um homem corpulento, que se chama também Dominic. Mas ele não pode ser quem o senhor procura.
— Não, tenho certeza de que não é. O que estou procurando é um homem pequeno, de olhos muito escuros e penetrantes e rosto muito branco, e tem cabelos quase pretos.
— Oh! Talvez seja o homem que eu vi no quarto de Dixie Del Marr.
— Quê?! — E a exclamação do sargento assustou a jovem.
— Meu Deus! Será que tornei a dizer alguma coisa errada, seu Heath?
Vance fez um aceno para o sargento se afastar, e havia censura no gesto. Depois, falou calmamente com a moça.
— Quer dizer, Gracie, que você viu alguém no quarto, além de Dixie Del Marr, quando caiu casualmente dentro dele, na noite de sábado passado?
— Sim. Um homem exatamente igual ao que você descreveu.
— Mas por que — indagou Vance — você não me contou isso, hoje de manhã?
— Ora, o senhor não me perguntou! Se me houvesse perguntado, eu lhe teria contado. E, em todo caso, achei que isso não tinha nenhuma importância... Isto é, o fato de aquele homem estar no quarto de Dixie Del Marr. Ele não teve nada que ver com a minha queda.
— E você tem certeza — prosseguiu Vance — de que ele era parecido com o homem que acabo de lhe descrever?
— Sim, certeza absoluta.
— E suponho que foi a primeira vez que você o viu, não foi?
— Sim, isso mesmo. E, se o tivesse visto antes, ter-me-ia lembrado. Eu sempre me recordo de fisionomias, mas não consigo é lembrar-me de nomes. Mas eu o vi depois daquilo.
— Depois? Onde foi isso?
— Ora, ele estava sentado no salão de refeições do restaurante, bem a um canto, não muito longe do George. Não posso imaginar como foi que olhei casualmente naquela direção, pois me achava em companhia do Senhor Puttle naquela noite.
— Havia mais alguém com o homem, quando você o viu no restaurante? — prosseguiu Vance.
— Sim, mas eu não os podia ver, já que se achavam de costas para mim.
— A quem está-se referindo?
— Ora, aos outros dois homens sentados à mesa do sujeito que o senhor está procurando.
Vance tirou uma fumaça profunda do cigarro.
— Diga-me, Gracie... Que é que o homem estava fazendo, quando você o viu no quarto de Dixie Del Marr?
— Deixe-me pensar... Acho que ele é um amigo muito íntimo da Senhorita Del Marr, pois estava guardando uma caderneta grande de anotações em uma das gavetas. E deve mesmo ser amigo muito íntimo de Dixie, do contrário não saberia qual o lugar do tal caderno, não é? Depois Dixie Del Marr veio até junto de mim e pousou uma das mãos no meu braço, levando-me depressa para fora. Acho que ela estava apressada. Mas foi muito amável comigo...
— Bem... Foi uma aventura muito divertida, minha querida.
Pouco depois dessa espantosa informação, Gracie Allen despediu-se de nós, muito alegremente, com um ar cômico de mistério, dizendo que precisava cuidar de muitas coisas importantes. Confidencialmente, disse-nos que talvez até fosse encontrar-se com Burns.
Quando a jovem se retirou, Vance olhou para o outro lado, para o sargento, como se esperasse algum comentário.
Heath esparramou-se em uma cadeira, aparentemente atordoado.
— Não tenho nada que dizer, Senhor Vance. Vou ficar maluco!
— Até eu estou um pouco tonto — falou Vance. — Mas, agora, tenho de falar com Owen. Francamente, eu não estava muito animado a ir falar com ele, e só vagamente acreditava na minha charada a respeito de Owen e Mirche. No entanto, o tempo todo Gracie Allen conhecia a ligação. Sim, agora é indispensável que eu encontre ”o Coruja”... Você pode ajudar-me, sargento?
Heath apertou os lábios.
— Não sei onde ele se hospeda, em Nova York, se é a isso que se refere. Mas talvez um dos agentes federais que eu conheço me dê essa informação. Espere um instante...
Heath foi ao telefone, no corredor, enquanto Vance fumava, silencioso e pensativo.
— Finalmente, consegui — anunciou Heath, ao voltar para a sala, meia hora depois. — Nenhum dos agentes federais sabia que Owen se achava na cidade, mas um deles examinou o arquivo e me disse que Owen costumava morar no hotel St. Carlton, na época em que foram feitas investigações a respeito dele. Resolvi ligar para o hotel. Ele está hospedado lá, realmente... Chegou na quinta-feira...
— Obrigado, sargento. Vou telefonar para você amanhã cedo. Enquanto isso, não pense muito no assunto.
O sargento retirou-se e Vance telefonou imediatamente para Markham.
— Você vai fazer a refeição matinal comigo amanhã — disse o detetive ao procurador distrital. — Hoje à noite, esforçar-me-ei para visitar o erudito Senhor Owen. Tenho muitas coisas a contar a você, e talvez amanhã cedo tenha mais. Lembre-se, Markham: refeição matinal amanhã... É uma imposição, e não um convite banal...

CAPÍTULO XIV
UM LOUCO MORIBUNDO
(Segunda-feira, 20 de maio — 20:00 horas)

Naquela noite, às oito horas, Vance foi ao Hotel St. Carlton. Ao invés de telefonar da mesa da recepção, escreveu as palavras ”visita não profissional” no seu cartão e mandou-o a Owen. Alguns minutos depois, o mensageiro voltou e nos levou até os aposentos de Owen.
Havia dois homens sentados perto de uma janela, quando nós entramos, e o próprio Owen achava-se sentado, inerte, em uma cadeira baixa, contra a parede, virando lentamente o cartão de visitas de Vance nos dedos finos, que tamborilavam. Olhou para Vance e jogou o cartão no tamborete fixo ao seu lado. Depois, disse, em tom de voz suave mas imperioso:
— É só isto, por esta noite.
— Os dois homens saíram imediatamente do quarto e fecharam a porta.
— Desculpe-me — falou ele, com um sorriso melancólico, à guisa de desculpa. — O homem é um animal desconfiado. — Moveu a mão, em um gesto vago: era o seu convite para nos sentarmos. — Sim, desconfiado. Mas para que se importar com isso? — A voz de Owen era baixa e de mau agouro, mas continha um tom intenso de queixa, como um pio de pássaro ao crepúsculo. — Sei por que vieram e tenho prazer em vê-los. Alguma coisa poderia ter sucedido nesse intervalo.
Ao examinar mais detidamente o homem, tive a impressão de que ele se achava tomado por uma doença grave. Sua fisionomia era marcada por uma profunda letargia íntima. Tinha uma expressão aquosa nos olhos; seu rosto era quase roxo, indício de graves distúrbios circulatórios, e sua voz era monótona. Deu-me a impressão de um morto-vivo.
— Durante vários anos — prosseguiu ele — tem havido a esperança vaga de que algum dia... Necessidade de consciência, de bondade, de identidade de pensamentos... — E a voz lhe faltou.
— A solidão do isolamento psíquico... — murmurou Vance. — Exatamente. Talvez seja eu a pessoa.
— Ninguém é a pessoa, claro. Perdoe minha presunção.
— Owen sorriu languidamente e acendeu um cigarro. — O senhor acha que algum de nós dois quis este encontro? Mas o homem não faz escolhas. Sua escolha é seu temperamento. Somos sugados por um redemoinho, e até escaparmos dele lutamos para justificar essa ”escolha”.
— Mas isso não importa, não é? — falou Vance. — Alguma coisa vital sempre nos foge e a mente jamais pode responder a perguntas que faz a si mesma. Dizer uma coisa ou não a dizer e pensá-la, dá na mesma.
— Exatamente. — O homem dirigiu um olhar de indagação.
— Em que é que o senhor está pensando?
— Estava imaginando que foi que o senhor veio fazer em Nova York. Eu o vi no Domdaniel, no sábado. — O tom de voz de Vance mudara.
— Eu também o vi, embora não tivesse certeza. Pensei, na ocasião, que talvez o senhor entrasse em contato comigo. Sua presença naquela noite não foi pura coincidência. Coincidência é coisa que não existe. É uma palavra falsa para mascarar nossa nauseabunda ignorância. Só existe um padrão em todo o universo do tempo.
— Mas a sua visita à cidade... Estar-me-ei intrometendo em algum segredo?
Owen rosnou e senti um calafrio descer-me pela espinha. Depois, sua expressão mudou e passou a ser de tristeza.
— Vim consultar um especialista... Enrick Hofmann.
— Sim. É um dos maiores cardiologistas do mundo. O senhor o consultou?
— Sim, há dois dias. — Owen deu uma risada amarga.
— Condenado! Ao contrário de Alexandre, uma vida breve mas sem glórias!
Vance limitou-se a erguer ligeiramente as sobrancelhas, e puxou uma baforada profunda do seu cigarro.
— Obrigado — falou Owen — por me poupar os lugares comuns sem significado. — Depois, perguntou, de repente: — Seu nome é Daniel?
— Acaso Belshazzar precisa de um profeta? — E Vance olhou diretamente para o homem. — Não, nada disso! Não sou Daniel. E também não me chamo Dominic.
Owen deu uma risada diabólica.
— Eu tinha certeza de que o senhor sabia! — E sacudiu a cabeça, satisfeito. — Mirche morrerá sem suspeitar, nem de leve, da brincadeira. Ignora tanto As Mil e Uma Noites como Southey e Carlyle. É um patife analfabeto!
— Foi uma idéia hábil — falou Vance.
— Oh, hábil, não. Apenas uma boa piada. — A letargia pareceu novamente dominá-lo. Sua expressão tornou-se uma pobre máscara e suas mãos jaziam inertes sobre os braços da cadeira que ele ocupava. Parecia um cadáver. Houve um longo silêncio, e então Vance falou.
— A escrita na parede, feita à mão. O senhor se sentiria consolado, se eu sugerisse que talvez todos os anos, por todo o infinito, estejam contados e divididos?
— Não — cortou Owen, em tom ríspido. — Consolo... Outra palavra falsa. — Depois, prosseguiu, ansiosamente: — A eterna volta... Ressurreição. A tortura perfeita. — E começou a murmurar. — O mar começará a secar... Um planeta extinto... absorvido pelo Sol... Estrelas maiores... O último instante... Dispersão eterna das coisas... Bilhões de anos daqui... Neste mesmo quarto... — Sacudiu-se, fracamente, e olhou fixamente para Vance. — Moore tinha razão: é como a loucura.
Vance fez um aceno de cabeça, condoído.
— Sim. Loucura. Completa. Aquilo que é finito e atual é só o que ousamos enfrentar. Mas coisa finita não existe.
— Não, é claro que não existe. — Owen falava com voz sepulcral. — Mas aqueles bilhões de anos além, quando a mente volta ao que é infinito... como as ondas intermináveis feitas por uma pedra que se joga na água. E precisamos também ser limpos de espírito. Não agora, mas nessa época. Não devemos provocar ondas intermináveis... Graças a Deus que eu posso falar-lhe. O senhor me entende.
Vance fez um aceno afirmativo de cabeça.
— Sim, compreendo perfeitamente. ”Limpeza”... Sei o que o senhor quer dizer. O que é finito se equilibra... Isto é, nós podemos equilibrá-lo, mesmo até o fim. Podemos voltar limpos até um tempo interminável. Sim. ”Limpeza de espírito”, uma frase adequada. Nenhuma onda. Concordo plenamente.
— Mas não por meio da indenização — disse Owen, rapidamente. — Não por meio de confessionários absurdos.
Vance fez um aceno de mão, em sinal negativo.
— Eu não quis dizer isso. Apenas uma inexistência. Depois do que é finito, quando não houver mais lutas, quando pararmos de tentar eliminar os impulsos colocados em nós pelo mesmo ser que nos impede cedermos a eles...
— É isso! — E apareceu uma centelha de animação na voz de Owen. Depois, ele recaiu no seu langor. O leve gesto da sua mão foi tão gracioso quanto o de uma mulher. Mas a dureza de aço do seu olhar permaneceu. — o senhor me impedirá de provocar ondas na água, caso...?
— Sim — retrucou Vance, com simplicidade. — Se um dia chegar a hora, e eu puder ajudá-lo, pode contar comigo.
— Confio no senhor... E, agora, posso falar um instante? Eu sempre quis dizer estas coisas a alguém que me compreendesse … 1234
Vance limitou-se a esperar, e Owen prosseguiu.
— Nada tem a mínima importância... Nem mesmo a própria vida. Nós próprios podemos criar ou esmagar a vida de seres humanos... Façamos o que fizermos, o resultado será sempre o mesmo. — Owen sorriu, desalentado. — A futilidade podre de todas as coisas... A futilidade de fazer seja o que for, até de pensar. Raios levem a agoniante sucessão de dias que chamamos de vida! Meu temperamento sempre me atraiu em diversas direções ao mesmo tempo... Sempre entre o espeto e a brasa. Talvez, afinal de contas, seja manchar almas.
E ele pareceu encolher-se, como se fugisse ao contato de um fantasma, e Vance intercalou:
— Sei a inquietação que decorre de demasiada atividade inútil, com todos os seus múltiplos desejos.
— A luta sem objetivo! Sim, sim. A luta para se enquadrar em um molde que é diferente daquele que a gente tinha antes. Essa é a maldição derradeira. O instinto de alcançar... Bolas! Nós só descobrimos que não vale a pena quando já fomos devorados por ele. Fui atingido por instintos diferentes, em épocas diversas. Era tudo mentira... Mentiras astutas e corrosivas. E nós pensamos que podemos submeter nossos instintos ao domínio da mente. A mente! — E ele riu baixinho. — O único valor da mente é alcançado quando ela nos ensina que ela é inútil.
O homem moveu-se um pouco, como se abalado por um ligeiro espasmo involuntário.
— Nem podemos atribuir nossos instintos destorcidos à memória racial. Não há raças: existe apenas uma caudal enorme e imunda de vida, que flui do limo primitivo. A sensualidade abortiva da vida animal primitiva jaz adormecida dentro de nós. Se a suprimimos, ela se manifesta em forma de crueldade e de sadismos: se a libertamos, ela produz perversões e loucura. Não há solução... Algumas vezes, o homem se esforça para combater esses horrores libertando um ideal íntimo da sua concepção abstrata, através de símbolos visuais. Os próprios símbolos não passam de abstrações. — Veio o tom monótono e mordaz de Owen. — E também a Lógica não pode ajudar. A Lógica não leva nenhum homem à verdade: conduz apenas a decepções e à loucura. A apoteose da Lógica: anjos dançando na ponta de uma agulha... Mas por que sequer me preocupo, nesta sombra entre dois infinitos? Só posso dar uma resposta: a ansiedade obscena de comer bem e de viver de maneira confortável... que, por sua vez, são instintos e, portanto, mentiras.
— Talvez isso seja mais profundo do que simples instinto — sugeriu Vance. — Pode ser uma ansiedade trazida para cá quando a sombra da vida caiu na senda do infinito pela primeira vez... A ansiedade cósmica de fazer um jogo com a vida, a fim de fugir às tensões e às pressões do que é finito.
Eu sabia que Vance tinha uma finalidade muito definida em mente, embora, para mim, obscura, enquanto falava com este homem estranho e nada natural diante dele.
— Aqui, neste mundo de sonhos esgotados — falou Owen, confusamente — nenhuma forma de ação é melhor do que outra; uma pessoa ou uma coisa não é mais importante do que qualquer outra pessoa ou outra coisa. Todas as coisas opostas são passíveis de trocas entre si: criação ou destruição, serenidade ou tortura. No entanto, a vaidade goteja através da crosta sarnenta da minha metafísica congelada. Bolas! — E encolheu o corpo e olhou fixamente para Vance. — Aqui não existem nem tempo nem existência.
— É como o senhor diz. Na verdade, o infinito não é divisível.
— Mas há a possibilidade terrificante de que possamos acrescentar algum fator ao tempo diante de nós. E, se o fizermos, esse fator continuará eternamente... É preciso não se jogar nenhuma pedrinha. Temos de atravessar completamente essa sombra.
Owen fechara os olhos e Vance o examinava sem expressão, Depois, disse, em tom de voz quase consolador:
— Isto é sabedoria... Sim, limpeza de espírito.
Owen fez um aceno afirmativo de cabeça, muito langoroso.
— Amanhã à noite, vou partir de navio para a América do Sul. Calor... O mar... Um entorpecente, talvez. Estarei ocupado amanhã o dia inteiro. Coisas a fazer: contas, uma limpeza de casa, cuidar de certas coisas... Não quero ondas de superfície da água a me seguirem o tempo todo. Limpeza... Além... O senhor compreende?
— Sim. — Vance não baixou o olhar. — Compreendo. É preciso cessar aqui, para que não haja um castigo dos céus...
Os olhos do homem abriram-se lentamente. Endireitou o corpo e acendeu outro cigarro. Sua disposição estranha se dissipou, e outra expressão lhe apareceu nos olhos. Durante toda essa discussão, ele não erguera a voz nem uma vez sequer; nem houvera mais do que uma leve inflexão nas palavras. No entanto, eu sentia como se estivesse ouvindo uma tirada apaixonada.
Agora, Owen começou a falar dos seus velhos livros, dos seus dias em Cambridge, da sua juventude cheia de cultura e de ambição, dos estudos de música, feitos na sua infância. Era bem versado em conhecimentos das civilizações antigas e, para meu espanto, entendia, com paixão e fanatismo, do Livro dos Mortos Tibetano. Mas, por estranho que pareça, falava sempre em si mesmo com uma impressão de dualismo, como se estivesse falando de outra pessoa. Havia uma sensível cortesia no homem,
mas, não sei por que, ele me inspirava um sentimento próximo do medo. Havia sempre uma aura invisível ao seu redor, como a de uma fera primitiva e fumegante. Fiquei preso ao fascínio diabólico daquele homem, e senti uma inconfundível sensação de alívio quando Vance se levantou para ir embora.
Quando nos separamos dele, à porta, o homem disse a Vance, com uma indiferença aparente:
— Contado, pesado, dividido... O senhor me prometeu. Vance enfrentou seu olhar, diretamente, por um breve instante.
— Obrigado — disse Owen, sem fôlego, curvando-se profundamente.

CAPITULO XV
UMA ACUSAÇÃO PAVOROSA
(Terça-feira, 21 de maio — 9:30 horas)

— Sim, Markham, completamente louco. — Foi assim que Vance resumiu, enquanto acabávamos de fazer a refeição matinal no seu apartamento, na manhã seguinte. — Totalmente maluco. Um louco venenoso, como algum bicho rasteiro e traiçoeiro. O seu fim está chegando rapidamente, e um medo hediondo lhe está destruindo o cérebro. A súbita certeza da morte lhe cortou a ligação com a sanidade mental. Owen está procurando uma toca, onde se esconder para fugir ao inevitável. Mas ele não tem onde se esconder: apenas o sepulcro fétido que seu cérebro destorcido construiu. Essa é a única realidade que lhe resta. Uma criatura vil, que deveria ser esmagada como nós destruímos um germe mortífero. Um leproso mental, moral e espiritual. Sujo, poluído. E eu... Eu tenho de salvá-lo dos horrores que o infinito contém para ele.
— Você deve ter tido uma noite agradável em companhia dele — comentou Markham, com aversão.
O sargento Heath, tendo chegado, em resposta a chamados telefônicos repetidos feitos por Vance, ouvira atentamente a conversa. Mas ele parecia estar recolhido em si mesmo, quando, alguns instantes depois, Gracie Allen entrou saltitando alegremente na biblioteca. Carregava uma pequena caixa de madeira, apertada de encontro ao corpo. E atrás dela vinha George Burns, desconfiado e hesitante. Gracie explicou as coisas, com a habitual vivacidade.
— Eu tinha de vir, Senhor Vance, para lhe mostrar as minhas pistas. E George tinha acabado de chegar para falar comigo. Por isto, eu o trouxe. Acho que ele deve ficar sabendo como nós nos damos bem, não é, Senhor Vance? E a mamãe também chegará aqui dentro de poucos minutos. Ela disse que deseja falar com o senhor, embora eu não possa imaginar qual o motivo.
A jovem fez uma pausa suficiente para Vance apresentá-la a Markham. Aceitou-o sem a desconfiança dedicada antes a Heath; e Markham ficou ao mesmo tempo fascinado e divertido pela tagarelice viva e leve da moça.
— E agora, Senhor Vance, — prosseguiu ela, indo até à escrivaninha e tirando a capa rígida da pequena caixa que ela trouxera — tenho de lhe mostrar as minhas pistas. Mas, na verdade, não creio que sirvam para nada, porque eu não sabia exatamente onde as devia procurar. Em todo caso...
E começou a exibir os seus preciosos tesouros. Vance fingiu estar profundamente interessado, para agradar à jovem. Markham, intrigado e sorridente, avançou alguns passos; e Burns ficou de pé, pouco à vontade, do outro lado da escrivaninha. Heath, aborrecido pela interrupção frívola, acendeu um charuto, caceteado, e caminhou até à janela.
— Veja, Senhor Vance, aqui está o tamanho exato de uma pegada humana. — Gracie Allen tirou uma tira de papei onde havia alguns números escritos. — A pegada mede vinte e um centímetros de comprimento, e o homem da sapataria disse que esse era o comprimento de um sapato número trinta e cinco, a não ser que fosse um sapato inglês, e que nesse caso seria o de um sapato trinta e quatro. Acho que ele era grego, pois era um dos garçons lá do Domdaniel. Fui até lá, porque foi lá que o senhor disse que o morto foi encontrado. E esperei muito tempo para que alguém viesse à cozinha e deixasse uma pegada. E então, quando ninguém estava olhando, eu medi a pegada...
Ela colocou a folha de papel de lado.
— E agora, aqui está um pedaço de bloco que tirei da escrivaninha do Senhor Puttle, ontem, na hora do almoço, quando ele não se achava lá. E levei a um espelho, mas consegui ler apenas ”4 d. S. Sá.”, como tornei a escrever aqui. E tudo isso significa apenas: ”quatro dúzias de caixas de sabonete de sândalo...”

Gracie extraiu da bolsa mais dois ou três objetos inúteis, que explicou, com pormenores, de forma divertida, enquanto os colocava ao lado dos outros.
Vance não a interrompeu durante essa exibição divertida mas patética. Mas Burns, que estava ficando nervoso e exasperado com a desnecessária perda de tempo da moça, finalmente pareceu perder a paciência e desabafou:
— Por que não mostra a estes senhores as amêndoas que traz aí e acaba logo com esta coisa tola?
— Não tenho nenhuma amêndoa, George. Resta só uma coisa na caixa, e isso não tem nada a ver com o caso. Eu estava treinando quando arranjei aquela pista...
— Mas alguma coisa me cheira como amêndoa amarga. De repente, Vance ficou seriamente interessado.
— Que é que ainda tem na caixa, Senhorita Allen? — indagou ele.
A jovem riu baixinho, ao tirar a última pista: um envelope ligeiramente volumoso e totalmente selado.
— É apenas um cigarro velho — falou ela. — E é uma boa brincadeira com o George. Ele está sempre sentindo os cheiros mais esquisitos. Acho que não pode evitar fazer isso.
Rasgou o canto do envelope e deixou um cigarro achatado e parcialmente partido deslizar para sua mão. À primeira vista, eu teria dito que aquele cigarro nunca fora aceso, mas depois notei-lhe a ponta carbonizada, como se tivessem começado a fumá-lo. Vance pegou o cigarro e levou-o ao nariz, com aversão.
— Aqui está o seu cheiro de amêndoa amarga, Senhor Burns. — Seus olhos estavam focalizados em alguma coisa no espaço, longe dali. Depois, tornou a colocar o cigarro em um dos seus envelopes e deixou-o em cima da lareira.
— Onde foi que encontrou esse cigarro, Senhorita Allen? — indagou Vance.
A moça tornou a dar uma risadinha musical.
— Ora, foi esse cigarro que fez um buraco no meu vestido, no sábado passado, em Riverdale. Lembra-se? E então, quando o senhor me falou da importância dos cigarros, resolvi ir lá imediatamente. Desejava tentar encontrar o cigarro que foi jogado em mim. Na verdade, eu não acreditava que fosse o senhor que o houvesse jogado... Tive muita dificuldade em encontrá-lo, porque eu o pisara e ele se achava meio coberto.
Em todo caso, não descobri nada ao encontrá-lo, e fiquei novamente fula de raiva. Mas achei que seria melhor guardá-lo, pois era a primeira pista que eu obtivera, embora na verdade ele não tivesse nada a ver com o caso em que eu o estava ajudando.
— Minha querida menina — disse Vance, lentamente. — Talvez ele não tenha nada a ver com o nosso caso, mas pode ter relação com algum outro caso.
— Oh, não seria maravilhoso se tivesse? — exclamou a moça, encantada. — Assim, teríamos dois casos, e eu seria realmente um detetive, não é?
Markham avançara.
— Que foi que você quis dizer com essa última observavão, Vance?
— Talvez tenha havido cianeto nesse cigarro. — Ele olhou para Markham, de forma significativa. — Quanto à possível ação desta droga, bem como ao possível modo de administrá-la, tenho apenas de me referir às observações feitas por Doremus, na noite de domingo.
Markham fez um gesto de impaciência.
— Por Deus, Vance! Sua atitude para com este caso torna-se mais louca a cada instante que passa.
O detetive ignorou o comentário do outro e prosseguiu.
— Supondo acertada a minha suposição de que este agarro é realmente a arma mortífera que estamos ansiosamente procurando, vale lembrar que muitas outras coisas, igualmente fantásticas, ligadas ao caso, tornaram-se racionais. Assim, poderíamos ligar vários dos nossos dados desconhecidos e de pesadelo e assim estabelecer uma teoria que — pelo menos dentro das suas próprias limitações — brilharia, cheia de sentido. A saber: já conseguimos explicar o fato de Hennessey não ter conseguido ver a vítima entrar no escritório, na noite de sábado. Pudemos limitar o conhecimento da porta secreta a Mirche e a mais uma pessoa íntima sua — o que, como você deve admitir, seria lógico. Poderíamos supor que o crime tenha sido cometido em outro lugar, que não o escritório de Mirche — em Riverdale, para ser específico — e que o cadáver tenha sido levado para o escritório por algum motivo definido. Tal suposição poderia fornecer uma explicação da maneira peculiar como a polícia foi avisada; e poderia também esclarecer a dificuldade que o Dr. Mendel teve em determinar a hora da morte. Pois, se o crime tivesse acontecido no escritório, não o poderia ter sido antes das dez horas, uma vez que Gracie Allen esteve lá por volta daquela hora. Enquanto que, se o crime tivesse acontecido em outro lugar qualquer, poderia ter sido praticado a qualquer hora, num período de dez horas antes de o cadáver ser encontrado. Vance caminhou até junto à lareira e tamborilou, pensativamente, no envelope que continha o cigarro.
— Se o cigarro que está no envelope tiver mesmo estado impregnado de veneno, e se tivesse sido usado, como Doremus disse, que tal recurso pode ser usado, então estaríamos diante de uma coincidência completamente impossível. Isto é: teríamos o fato de que, em duas partes separadas da cidade, duas pessoas teriam sido assassinadas pelo mesmo sistema misterioso, no mesmo dia. E, além disso, temos um só cadáver.
Markham fez um aceno afirmativo de cabeça, lentamente, sem entusiasmo.
— É remotamente capcioso. Mas...
— Conheço suas objeções, Markham — interrompeu Vance. — E elas são também as que eu tenho. Todas as minhas suposições caprichosas podem não passar de simples fantasias... Mas são minhas e, no momento, eu as adoro.
Markham começou a falar, mas Vance prosseguiu.
— Deixe-me falar mais um instante, antes que você rne ponha uma camisa-de-força... Contemplo, em um sonho, as pastagens refrescantes a que minha estranha suposição poderia levar. Poderia até ligar os fatores aborrecidos que me têm roubado o doce sono... A pronta confissão de Mirche com relação à existência da sua porta secreta; o ódio que vi de relance nos olhos de Dixie Del Marr; a saga mística dos Tofanas; e a presença do ”Coruja” no Domdaniel, na noite de sábado. Poderia explicar as implicações sutis que há no nome do restaurante. Poderia até justificar a hipótese insistente, formulada pelo sargento, sobre a existência de uma quadrilha de criminosos. Poderia, também, esclarecer a presença da nômade cigarreira com cheiro de perfume de narciso. E há outras coisas, que agora me deixam confuso, mas que poderiam juntar-se em um todo consistente... Céus, Markham! Isso tem as possibilidades mais espantosas. Deixe-me com o meu sonho tão doce. Afinal, forma-se um quadro no meu cérebro torturado, e é o primeiro desenho coerente que invadiu minha imaginação febril desde a véspera de sábado. Baseado na singular premissa de que o cigarro estivesse convenientemente envenenado, posso forçar um punhado de elementos, até agora recalcitrantes, a entrar na linha, ou, melhor, eles irão entrando sozinhos na linha, como as partículas coloridas de um caleidoscópio.
— Vance, pelo amor de Deus! Você está apenas criando uma nova fantasia absurda, para explicar a sua primeira fantasia. — O severo tom de voz de Markham logo fez Vance voltar a si.
— Sim, tem toda razão — falou ele. — Naturalmente, mandarei o cigarro imediatamente para ser analisado por Doremus. E talvez ele não revele nada. Você é quem manda. Francamente, não compreendo como o cheiro poderia ter ficado em um cigarro tanto tempo, a não ser que um dos venenos misturados tenha atuado como fixador e tivesse retardado a volatilização... Mas, Markham, eu quero — eu preciso — do cadáver de um homem que foi assassinado em Riverdale no sábado passado.
Gracie Allen estivera olhando de um para outro dos homens, confusa e tonta.
— Oh, agora eu aposto em que eu compreendo! — exclamou ela, exultante. — O senhor pensa mesmo que o cigano poderia ter matado alguém... Mas eu nunca ouvi dizer que alguém morresse só pelo fato de fumar um cigarro.
— Não é um cigarro comum, minha cara Gracie -— explicou Vance, com paciência. — É possível que o cigarro em questão tenha sido imerso em algum veneno terrível.
— Ora, isso é horrível, se for mesmo verdade — disse ela, pensativa. — E logo em Riverdale, com tantos outros lugares! Lá é tão lindo e tão sossegado...
Seus olhos começaram a arregalar-se, e finalmente ela exclamou:
— Mas aposto em que sei quem era o morto! Aposto!
— Ora, mas de que você está falando? — Vance riu e olhou para a jovem, com um olhar intrigado. — Quem você pensa que foi?
Gracie olhou para Vance, com olhar perscrutador, durante alguns instantes, e depois disse:
— Ora, foi Benny, o Abutre!
O sargento Heath ficou de repente rígido, com a boca aberta.
— Onde foi que você ouviu esse nome, moça? — disse ele, quase gritando.
— Ora, ora... — gaguejou ela, surpreendida pela veemência do sargento. — O Senhor Vance me contou tudo a respeito dele.
— O Senhor Vance contou a você... ?
- Claro que contou! — disse a jovem, em tom de desafio. É assim que agora eu sei que Benny, o Abutre, foi morto em Riverdale.
- Morto em Riverdale? — e o sargento pareceu confuso. - E talvez você saiba, também, quem foi que o matou, não é?
Claro que sei... Foi o próprio Senhor Vance!


CAPITULO XVI
OUTRO CHOQUE
(Terça-feira, 21 de maio — 10:30 horas)


A espantosa acusação caiu como uma bomba entre os presentes, que ficaram todos paralisados. Passaram-se vários momentos antes que me pudesse controlar o bastante para ver a lógica que havia por trás daquilo. A declaração da moça era o desfecho natural da história que Vance inventara para ela na tarde em que nós a conhecemos.
Markham, que sabia apenas de poucos pormenores do rústico encontro e que não sabia de nada da história inventada por Vance, deve ter-se lembrado imediatamente da conversa tida com o detetive no Bellwood Country Club, na qual Vance exprimira suas idéias quanto à forma de eliminarem Pellinzi.
Heath, também, atônito pela comunicação da moça, deve ter-se lembrado do que houvera no jantar de sexta-feira; e tinha muita razão para supor que ele possuía alguma suspeita nevoenta a respeito da culpa de Vance.
O próprio Vance ficou temporariamente aturdido. No momento, sua cabeça devia estar ocupada com assuntos de maior monta, que suplantavam totalmente o episódio de Riverdale. Mas, agora, de repente ele compreendeu que a acusação de Gracie Allen adquiria foros de plausibilidade.
Markham aproximou-se da moça, sério e com a testa franzida.

— A acusação que acaba de fazer é muito grave, Senhorita Allen — falou ele. Seu tom de voz grave indicava as dúvidas intangíveis que havia no íntimo da sua mente.
— Caramba, Markham! — interrompeu Vance, muito aborrecido. — Faça o favor de olhar ao seu redor. Não estamos em um tribunal.
— Sei exatamente onde estou — retorquiu Markham, obstinadamente. — Deixe-me cuidar deste assunto. Ele é cheio de dinamite. — E virou-se para a moça. — Diga-me, por que você afirma que foi o Senhor Vance quem matou Benny, o Abutre?
— Ora, eu não disse isso... Isto é, eu não inventei isso. Apenas repeti o que ouvi.
Embora fosse evidente que Gracie não considerava a situação séria, era óbvio que a maneira grave de falar de Markham a deixara perturbada.
— Foi o Senhor Vance quem o disse. Ele falou isso quando o conheci em Riverdale, ao lado da estrada que segue ao longo de um grande muro branco, na tarde da sexta-feira passada, quando eu estava com... isto é, quando eu fui lá com...
Markham, notando o nervosismo da moça, sorriu, para tranqüilizá-la, e começou a falar de outra maneira.
— Não tem nenhum motivo para se preocupar, Senhorita Allen — disse ele. — Basta que me conte toda a história, exatamente como aconteceu.
— Oh! — exclamou ela, enquanto uma nota mais alegre lhe voltava à voz. — Por que não me disse logo que era isso que o senhor queria? Está bem, vou-lhe contar. Bem, fui a Riverdale na tarde do sábado passado... Nós não trabalhamos na fábrica aos sábados, pois o Senhor Doolson é muito bondoso nesse ponto. Fui até lá com o jovem Puttle, que é um dos nossos vendedores. Mas não creio que ele seja tão bom vendedor quanto alguns dos outros da In-O-Scent. Que é que você acha, George?
Ela virou-se um instante para Burns, mas não esperou resposta.
— Bem... Em todo caso, George queria que eu fosse com ele a outro lugar. Mas achei que seria melhor ir a Riverdale com Puttle, principalmente porque ele ia-me levar para jantar naquela noite. E achei que podia ficar zangado se eu não fosse com ele a Riverdale, e assim não me levaria para jantar. Por isso, não fui com George, mas fui a Riverdale com Puttle. Bem, nós chegamos a Riverdale, lugar aonde eu sempre vou, porque acho que aquilo lá é lindo. Mas é uma caminhada muito longa da Broadway, e então o Senhor Puttle foi procurar um convento de freiras...
— Por favor, Senhorita Allen — interrompeu Markham, com admirável controle. — Conte-me como foi que a senhorita encontrou o Senhor Vance e o que ele lhe disse.
— Oh, eu já ia chegar lá... O Senhor Vance apareceu depois de saltar o muro. E eu lhe perguntei o que ele tinha andado fazendo. Declarou que estivera matando um homem. E eu perguntei o nome do homem. Ele disse que era Benny, o Abutre.
Markham suspirou, impaciente.
— Pode-me dizer mais algumas coisas, Senhorita Allen, a respeito desse incidente?
— Pois não. Como eu já lhe disse, o Senhor Vance saltou o muro e caiu, pouco atrás do lugar onde eu estava sentada... Não, desculpe, eu não estava sentada, porque alguém acabara de jogar um cigarro em mim... esse cigarro que se acha agora cm cima da prateleira da lareira... Só que ele estava aceso e queimava ... E eu me achava de pé, sacudindo meu vestido, quando vi o Senhor Vance cair. Ele parecia estar com muita pressa, também. Eu lhe falei a respeito do cigarro e ele disse que talvez ele mesmo o tivesse jogado. Mas eu achava que o cigarro fora jogado de um carro grande que passara velozmente pelo ponto onde me encontrava. Seja como for, o Senhor Vance disse-me para ir à loja buscar um vestido novo, que ele pagaria, pois lamentava muito o ocorrido. E então ele sentou-se e fumou mais cigarros.
Gracie respirou fundo e prosseguiu apressadamente.
— E foi então que perguntei a ele o que estava fazendo do outro lado do muro, e ele disse que acabara de matar um facínora chamado Benny, o Abutre. Disse que fez isso porque o tal Senhor Abutre fugira da cadeia e pretendia matar um amigo dele... isto é, um amigo do Senhor Vance. Ele se apresentava com as roupas em completo desalinho e o chapéu amassado e virado de fado, e realmente tinha toda aparência de quem acabara de matar alguém. Até eu fiquei com medo dele, algum tempo. Mas venci o medo...
Ela parou um instante, a fim de contemplar Vance atentamente, como se estivesse fazendo uma comparação de roupas.
— Agora, vejamos... Onde é que eu estava? Ah, sim... Ele estava afastando-se de carreira, muito apressado, porque disse que não queria que ninguém soubesse que ele matara o tal homem. Mas ele me contou. Acho que viu logo que podia confiar em mim. Mas não sei por que motivo estava preocupado, porque ele disse que achava que agira direito, para salvar seu amigo do perigo. Em todo caso, ele me pediu para não contar a ninguém, e eu prometi. Mas agora ele acaba de me pedir para contar o que eu queria dizer a respeito do morto de Riverdale, e por isso acho que ele quis dizer que eu não precisava mais guardar sigilo. E é por isso que lhes estou contando.
O espanto de Markham foi aumentando, à medida que a jovem falava em disparada. Quando ela terminou a narrativa e olhou ao redor, à procura de aprovação, o procurador distrital virou-se para Vance.
— Céus, Vance! Essa história é realmente verdadeira?
— Infelizmente, é — confessou Vance, dando de ombros.
— Mas por quê... Por que você lhe contou tal história?
— Talvez por causa do tempo suave. Estamos na primavera, você sabe...
— Mas — perguntou a moça. — O senhor não vai prendê-lo?
— Não, eu... — E Markham ficou indeciso.
— Por que não? — insistiu a jovem. — Aposto que sei o motivo! Aposto que o senhor pensa que não se pode prender um detetive. Eu também pensava assim, antes. Mas no domingo perguntei a um policial, e ele me disse que claro que se pode prender um detetive.
— Sim, pode-se prender um detetive — sorriu Markham — quando se sabe que ele infringiu a lei. Mas tenho sérias dúvidas de que o Senhor Vance tenha realmente matado um homem.
— Mas ele mesmo afirmou isso. Do contrário, como iria ele saber? Eu também não o julgava culpado, a princípio. Pensei que ele apenas estava-me contando uma história romântica porque eu gosto muito de histórias românticas! Mas, depois, o Senhor Vance mesmo declarou — aqui nesta mesma sala, e todos ouviram — que no sábado passado mataram um homem em Riverdale com o cigarro. E ele falou muito sério... Notei isso, pela maneira como ele agiu e falou. Não foi, de forma alguma, como se ele estivesse inventando outra história romântica...
Gracie parou de chofre e olhou para o confuso Senhor Burns. A julgar pela sua expressão, outra idéia lhe surgira na cabeça. Ela tornou a se virar para Markham, com renovada seriedade.
— Mas o senhor devia prender o Senhor Vance — disse ela, em tom decisivo. — Mesmo que ele não seja culpado. Acho que, na verdade, não creio que ele seja mesmo culpado. Ele tem sido tão bonzinho para mim... Mas, assim mesmo, acho que o senhor devia prendê-lo. O que eu quero dizer é que o senhor pode fingir que acredita que ele matou o tal homem em Riverdale. E assim o George ficaria livre de acusações. E o Senhor Vance não se importaria nem um pouco... Sei que ele não se importaria. Não é, Senhor Vance?
— Em nome dos céus, a que ponto você quer chegar agora? — indagou Markham.
Vance sorriu.
— Sei exatamente o que ela quer dizer, Markham. — E virou-se para Gracie. — Mas, na verdade, minha prisão não ajudaria o jovem Burns.
— Oh, ajudaria, sim — insistiu Gracie. — Sei que ajudaria. Porque há alguém seguindo-o para onde ele vá. E George diz que deve ser algum detetive. E todos os policiais que rondam o hotel de George o olham de uma forma esquisita. Aposto que deve haver muita gente que pensa que George é culpado... porque a polícia foi à casa e o levou de tintureiro, e tudo o mais. George me contou tudo, e isso o deixa terrivelmente preocupado. George já não é o mesmo de antes. Não pode dormir muito bem e perdeu a capacidade de sentir essências. Portanto, como pode trabalhar? Não imagina o quanto isso é horrível, Senhor Vance. Mas, se o senhor fosse preso, então todos pensariam que o senhor era o culpado e deixariam de importunar o George. E ele poderia voltar ao trabalho e ser como era antes. E então, depois de algum tempo, o verdadeiro culpado seria encontrado e tudo acabaria bem para todos.
Gracie parou um instante, a fim de recuperar o fôlego, e em seguida tornou a disparar, com feroz determinação.
— E é por isso que acho que o senhor deveria prender o Senhor Vance. E, se o senhor não o fizer, chamarei os jornais e lhes contarei tudo que o Senhor Vance disse e tudo a respeito de Benny, o Abutre, e direi que ele não foi morto no Domdaniel, e sim em outro lugar qualquer. E aposto que eles publicarão essa reportagem. Principalmente porque o Senhor Puttle estava de pé atrás da árvore, quando o Senhor Vance estava falando comigo, e ele ouviu tudo. E, se eles não acreditarem em mim, terão de acreditar em mim e no Senhor Puttle juntos. E tenho certeza de que assim publicarão a história. E todos ficarão tão interessados no fato de um homem tão famoso quanto o Senhor Vance ser culpado de homicídio, que não se importarão mais com George. Não compreendem o que quero dizer?
Havia a resolução zelosa de uma cruzada nos olhos da moça, e suas frases desordenadas achavam-se cheias de paixão vibrante para ajudar o homem amado.
— Céus, chefe! — gritou Heath. — O que ela diz é dinamite. Bem que o senhor disse!
Vance moveu-se sonolento na sua cadeira e olhou para Heath com um sorriso irônico.
— Está vendo em que encrenca você e o fato de Tracy ter seguido o Senhor Burns me deixaram, sargento?
— Claro que estou! — E Heath deu um passo na direção da Senhorita Allen. A perturbação dele era quase cômica. — Escute aqui, moça — disse ele, furioso. — Ouça-me um instante. Você está totalmente enganada. Confundiu tudo. Não sabemos que tenha havido um homicídio em Riverdale. Não sabemos de nada a esse respeito, entende? Só sabemos que apareceu um morto no restaurante. E ele não era o Abutre, e sim seu irmão...
O sargento parou de chofre, com um tremor, e ficou todo ruborizado.
— Mil raios! Desculpe-me, Senhor Vance. Sinto muito. Vance levantou-se depressa e foi postar-se ao lado de Gracie. Esta achava-se com as mãos no rosto, com um ataque de riso incontrolável.
— Meu irmão? Meu irmão? — E depois, com a mesma rapidez com que começara a rir, ficou séria. — O senhor não me pode enganar assim, sargento.
Vance recuou.
— Diga-me — e uma nota subitamente nova lhe apareceu na voz. — Que quer dizer com isso, Senhorita Allen?
Meu irmão está na cadeia!


CAPITULO XVII
IMPRESSÕES DIGITAIS
(Terça-feira, 21 de maio — 11:30 horas)

Foi neste momento que a Senhora Allen, serena e discreta, foi introduzida na sala por Currie.
Vance virou-se depressa e lhe deu as boas-vindas com uma breve saudação.
— É verdade, Senhora Allen, — perguntou ele — que seu filho não está morto?
— Sim, Senhor Vance, é verdade. Foi por isso que vim até aqui. Vance acenou a cabeça, com um sorriso compreensivo, e, guiando a senhora até uma cadeira, pediu-lhe explicações mais completas.
— Acontece, Senhor Vance, — começou ela, em voz sem inflexão que Philip foi preso perto de Hackensack, naquela noite terrível, depois de deixar o emprego no restaurante. Ele se achava com outro rapaz em um automóvel, e um policial entrou e disse ao outro rapaz — que se chama Stanley Smith e que o amigo de Philip — para seguir para o distrito policial. Acusou-os de roubarem o carro, e então, quando estavam a caminho da cadeia, o policial lhes disse que era o mesmo carro que acabara de matar um ancião e de fugir. Foi um desses atropelamentos em que a vítima morre e o motorista foge. E isso deixou Philip muito assustado, pois ele não sabia o que o tal Stanley podia ter feito antes do encontro dos dois. E então, quando o carro parou a fim de esperar um sinal abrir, Philip saltou e fugiu. O policial atirou contra ele, mas meu filho não foi agarrado.
Vance fez um aceno afirmativo de cabeça.
— Depois, Philip telefonou para mim. Notei que estava muito assustado, e disse que a polícia estava à sua procura e que ele ia-se esconder em certo lugar. Oh, fiquei tão preocupada, Senhor Vance, com o meu pobre e infeliz filho tão assustado, e escondido da polícia... O senhor sabe, um fugitivo da justiça. E então, quando o senhor veio, naquela noite, pensei que estava à procura dele. Mas, quando o senhor me disse que meu filho estava morto, pode imaginar...
Heath saltou para diante.
— Mas a senhora disse que era o seu filho que estava lá no necrotério! — Heath lhe atirou as palavras, como uma chicotada.
— Não, eu não disse, senhor policial — disse a mulher, com simplicidade.
— Não disse, uma conversa fiada! — gritou Heath.
— Sargento! — E Vance ergueu a mão. — A Senhora Allen tem razão... Se você relembrar, verá que ela não disse, nenhuma vez, que o morto era o filho dela. Receio que fomos nós que dissemos isto por ela, porque pensávamos que fosse verdade. — E sorriu, melancólico.
— Mas ela desmaiou, não é? — insistiu Heath.
— Desmaiei de alegria, senhor policial, — explicou a mulher — quando vi que não era o meu Philip.
Mas Heath não se deu por satisfeito.
— Mas... Mas a senhora não disse que o morto não era seu filho. E nos deixou pensar...
Vance teve de contê-lo novamente.
— Acho que entendo perfeitamente por que a Senhora Allen nos deixou pensar que o morto era seu filho. Ela sabia que nós representávamos a polícia, e sabia, também, que seu filho estava fugido da polícia. E, ao notar que pensávamos que seu filho estava morto, ficou muito contente de nos deixar com essa idéia, imaginando que assim poria fim à perseguição de Philip... Não é verdade, Senhora Allen?
— Sim, Senhor Vance, — a mulher confirmou, calmamente, de cabeça. — E, naturalmente, eu não queria que os senhores contassem a Gracie que Philip estava morto, pois então eu teria de lhe contar que ele estava escondido da polícia, e isso a teria tornado infeliz. Mas achei que dentro de poucos dias tudo se esclareceria, e então eu contaria aos senhores. Em todo caso, pensei que dentro em breve vocês descobririam que o morto não era o meu filho.
A mulher ergueu o olhar, com um leve sorriso triste.
— E tudo saiu direito, como eu esperava e rezava para sair, e como eu sabia que sairia.
— E estamos todos muito felizes por ter saído assim — falou Vance. — Mas diga-nos como foi que tudo acabou direito.
— Ora, hoje cedo — recomeçou a Senhora Allen — Stanley Smith chegou à minha casa para perguntar por Philip. E quando eu lhe disse que Philip continuava escondido da polícia, ele informou que fora tudo um engano, e como seu tio foi à polícia e provou que o carro não fora roubado, e que fora outro carro que atropelara e matara o tal ancião... Portanto, contei imediatamente tudo a Gracie e fui levar a notícia maravilhosa a meu filho e trazê-lo de volta para casa...
— Então, como foi, — prosseguiu o sargento, evidentemente furioso — se a senhora contou tudo à sua filha, que ela acaba de nos dizer que seu irmão estava na cadeia?
A Senhora Allen sorriu timidamente.
— Está, sim. Na noite de sábado fazia muito calor e por isso Philip deixara seu paletó no carro. Foi assim que a polícia ficou sabendo quem ele era, pois ele esqueceu o cheque do pagamento no bolso do paletó. Por isso, ele foi à cadeia em Hackeasack, hoje cedo, buscar o paletó, e vai chegar a tempo de almoçar.
Vance riu, a contragosto, e dirigiu um olhar maroto a Gracie Allen.
— E garanto que era um paletó preto.
— Oh, Senhor Vance! — exclamou a moça, extasiada. — Que detetive maravilhoso o senhor é! Como pôde ver a cor do paletó do Philip, do outro lado do rio?
Vance riu baixinho e depois de repente ficou sério.
— E, agora, devo pedir a todos vocês para irem — falou ele — e se preparar para a volta de Philip à casa materna.
Nessa altura, Markham interveio.
— Mas e as declarações que a senhorita pretendia fazer aos jornais, Gracie? Eu não poderia permitir uma coisa dessas.
George Burns, com um sorriso largo no rosto, respondeu ao procurador distrital.

— Gracie não fará isso, Senhor Markham. É que eu agora já estou completamente feliz e vou voltar para o trabalho amanhã cedo. Na verdade, eu não estava preocupado com a possibilidade de ser culpado ou de que alguém me seguisse. Mas eu tinha de contar isso a Gracie e ao Senhor Doolson, porque o senhor me fizera prometer que não diria uma palavra a respeito de Philip. E era o fato de ele estar morto, e de Gracie não saber, e tudo o mais, que me fazia sentir tão mal, não me deixando dormir nem trabalhar.
— Não é maravilhoso? — E Gracie Allen bateu palmas, e depois olhou astutamente para Vance. — Eu não queria realmente que o senhor fosse para a cadeia, Senhor Vance... Era só para ajudar George. Por isso, dei ao senhor minha palavra de que não contaria nada a ninguém a respeito da sua confissão. Ê o senhor sabe que eu sempre cumpro as promessas que faço.
Quando a Senhora Allen ia-se retirando em companhia da filha e de Burns, dirigiu a Vance um olhar de acanhada desculpa.
— Espero, senhor, — falou ela — que não pense que agi mal enganando-o a respeito daquele pobre morto.
Vance pegou a mão da velhinha.
— Sem dúvida, não penso nada disso. A senhora agiu como qualquer outra mãe teria agido, se ela tivesse sido tão inteligente e tivesse um raciocínio tão vivo quanto o seu.
Beijou-lhe a mão e depois fechou a porta atrás dos três.
— E agora, sargento, — toda a sua maneira de ser mudou — mãos à obra! Chame Tracy aqui e depois mande identificar o morto pelas impressões digitais.
— Não me precisa dizer para por mãos à obra, chefe — retrucou Heath, correndo para a janela. Fez acenos frenéticos para o homem que se achava do outro lado da rua. Depois, voltou para dentro do aposento e, a caminho do telefone, parou de repente, como se um pensamento súbito o houvesse imobilizado.
— Ei, Senhor Vance — perguntou ele. — Por que acha que nosso arquivo tem as impressões digitais do morto?
Vance lançou-lhe um olhar perscrutador e significativo.
— Talvez você vá ter uma grande surpresa, sargento.
— Mãe de Deus! — disse Heath, em tom de espanto, enquanto corria para o telefone, que ficava no corredor.
Enquanto o sargento falava com a polícia, tão afobado que quase não conseguia se fazer entender, Tracy entrou. Vance mandou-o logo levar o envelope fechado, que se achava em cima da lareira, ao Dr. Doremus, para ser analisado.
Alguns minutos depois, Heath voltou para a biblioteca.
— Pronto, os rapazes já começaram a trabalhar! — E esfregou as mãos, energicamente. — Tirarão logo as impressões digitais do homem e procurarão nos arquivos. E, se eles não me telefonarem dentro de uma hora, irei até lá e lhes torcerei os pescoços grossos! — Deixou-se cair em uma cadeira, como se esgotado pelo simples pensamento da rapidez que ele exigira.
Vance telefonou em seguida a Doremus, explicando que era muito importante um relatório imediato sobre o cigarro.
Era quase meio-dia, e nós conversamos sobre coisas banais durante mais uma hora. Havia tensão na atmosfera, e a conversa foi como uma capa jogada propositadamente sobre os pensamentos íntimos desses três homens diferentes.
Quando o relógio que havia em cima da lareira apontou para as treze horas, o telefone tocou e Vance atendeu.
— Não houve nenhuma dificuldade na análise — informou-nos ele, quando pendurou o receptor do telefone. — O eficiente Doremus descobriu no cigarro aquela mesma mistura de venenos misteriosos que o deixou tão aborrecido na noite de domingo... Minha história fantástica, Markham, finalmente está começando a se concretizar.
Mal Vance acabara de falar, quando o telefone tocou novamente, e foi a vez de Heath correr para o corredor. Quando ele voltou para a biblioteca, depois de alguns momentos, tropeçou em uma pequena mesa estilo renascentista, que havia perto da porta, e jogou-a longe.
— Pois bem, estou agitado. E daí? — Os olhos do sargento brilhavam de entusiasmo. — Quem vocês pensam que o sujeito era? Raios! O senhor já sabia, Senhor Vance. É nosso velho amigo, Benny, o Abutre! E talvez aqueles rapazes lá em Pittsburgh não estivessem doidos! E pode ser que o Abutre não tenha saltado direto de Nomenica para Nova York, como eu disse que ele faria... Está livre dessa ameaça, Senhor Markham.
A agitação de Heath era tão grande que, por alguns instantes, foi até mais forte do que o seu respeito para com o procurador distrital.
— Que faremos agora, Senhor Vance?
— Eu diria, sargento, que a primeira coisa a fazer é sentar-se. Tenha calma. É uma virtude muito necessária.
Heath obedeceu prontamente, e Vance virou-se para Markham.
— Acho que o caso continua sendo meu, por assim dizer. Você mo presenteou, num gesto magnânimo, para se livrar da minha tagarelice, na noite do sábado passado. Portanto, agora devo pedir mais uma concessão da sua parte.
Markham esperou, em silêncio.
— Chegou a hora em que tenho de agir com rapidez — prosseguiu Vance. — O caso todo, Markham, já se tornou claro. Os vários fragmentos do quebra-cabeças já encaixaram nos devidos lugares e formaram um mosaico espantoso. Mas ainda falta preencher um ou dois espaços em branco, e acho que Mirche, se for abordado de maneira adequada, poderá fornecer os pedaços que faltam...
Heath intrometeu-se.
— Estou começando a compreender, senhor. Acha que a identificação que Mirche fez do Abutre foi deliberadamente falsa?
— Não, sargento, nada disso. Mirche foi totalmente sincero e com um motivo muito bom. Ele ficou legitimamente atordoado com o aparecimento do cadáver na sua sala, naquela noite.
— Então, não o compreendo, senhor — disse Heath, em tom de desalento.
— Qual é a concessão que você deseja, Vance? — indagou Markham, impaciente.
— Quero só efetuar uma prisão.
— Mas, sem dúvida, não pretendo deixar que você ponha o gabinete do procurador distrital em maus lençóis. Precisamos esperar até que o caso seja solvido.
— Ah! Mas ele já está esclarecido — retorquiu Vance, à queima-roupa. — E você poderá ir comigo, para proteger o bom nome do seu gabinete. Na verdade, sua companhia me encantaria.
— Vá direto ao ponto — falou Markham, irritado. — O que pretende fazer?
Vance inclinou-se para diante e falou com precisão.
— Desejo muito ir ao Domdaniel logo que possível, hoje à tarde. Quero levar dois homens — digamos, Hennessey e Burke — que ficarão de guarda, na passagem do lado de fora da porta secreta. Depois, seguirei com você e com o sargento até à porta da frente que dá para a sacada e pedirei para entrar. Em seguida, agirei, sob o seu olhar controlador, é claro.
— Mas... Céus, Vance! Mirche pode não estar à espera da sua visita no escritório dele. Pode ter outros planos para se divertir esta tarde.
— Esse — declarou Vance — é um risco que precisamos correr. Mas tenho motivos suficientes para crer que o escritório de Mirche, hoje, está uma colmeia de atividade. E muito me espantaria se Dixie e Owen, também, não estivessem lá. Owen vai partir de navio, logo à noite, para a América do Sul, e hoje é o dia para liquidar seus negócios mundanos aqui. Você e o sargento têm suspeitado, há muito tempo, de que o Domdaniel é a sede de toda espécie de patifarias que vem acontecendo na cidade. Pois não precisa mais duvidar disso, Markham.
O procurador distrital pensou um instante.
— Parece-me absurdo e inútil — declarou ele. — A não ser que você tenha fundamentos sérios para tal ação... No entanto, como você diz, eu mesmo estarei lá a fim de me proteger contra qualquer indiscrição da sua parte... Muito bem — capitulou ele.
Vance confirmou de cabeça, com satisfação, e olhou para o espantado Heath.
— E, a propósito, sargento, talvez tenhamos notícias dos seus Rosa e Tony.
— Os Tofanas! — E Heath ergueu-se no sofá, alerta. — Eu já sabia. Aquele trabalho do cigarro é especialidade de Tony...
Vance descreveu seu plano ao sargento. Heath deveria combinar com Joe Hanley, o porteiro, para dar um sinal se Mirche saísse do salão de refeições pelos fundos. Hennessey e Burke deveriam receber instruções quanto ao lugar onde se postar e o que fazer. E Markham, Vance e Heath deveriam esperar na pensão fronteira ao restaurante, de onde podiam ver ou o sinal de Hanley ou Mirche entrar no seu escritório pela sacada.
Contudo, ficou demonstrado que grande parte dos preparativos complicados era desnecessária; pois a teoria e previsões de Vance com referência à situação, naquela tarde, eram inteiramente acertadas.


CAPITULO XVIII
NARCISO E ROSA
(Terça-feira, 21 de maio — 15:00 horas)

Às três horas daquela tarde, Joe Hanley, que estivera de vigia para nós, chegou à esquina da Sétima Avenida e nos informou que Mirche entrara no seu escritório pouco depois do meio-dia, e que nem ele nem Dixie Del Marr tinham sido vistos no restaurante desde então.
Encontramos as persianas das janelas estreitas baixadas e a porta do escritório achava-se trancada à chave. Além disso, não atenderam, embora batêssemos com insistência.
— Abram! — gritou Heath, ferozmente. — Do contrário, terei de arrombar a porta. — Depois, observou para nós: Acho que isso os assustará, se houver alguém lá dentro.
Pouco depois, ouvimos o ruído de passos apressados e vozes furiosas lá dentro. E, alguns momentos mais tarde, a porta nos foi aberta por Hennessey.
— Agora, tudo está bem, chefe — disse ele a Markham. — Eles tentaram fugir pela porta da parede, mas eu e Burke os obrigamos a voltar.
Quando atravessamos a porta, deparei com um quadro estranho. Burke achava-se de costas contra a pequena porta secreta, com o revólver apontado de maneira significativa para o espantado Mirche, que se achava a poucos passos dele. Dixie Del Marr, também coberta pela arma de fogo de Burke, achava-se encostada à escrivaninha, olhando para nós com uma expressão de fria resignação. Em uma das cadeiras de couro estava sentado Owen, sorrindo debilmente, com calma e cinismo. Parecia inteiramente desligado de todo o quadro geral, como um espectador que estivesse contemplando uma cena teatral que lhe ofendesse o intelecto pelo absurdo. Não olhava nem para a direita nem para a esquerda, e foi só depois que estávamos bem ao alcance do seu olhar sonolento que ele fez um leve movimento.
Mas, quando avistou Vance, levantou-se, cansadamente, e se curvou, em uma saudação formal.
— Que esforço inútil — queixou-se ele. Depois, sentou-se novamente, com um leve suspiro, como alguém que acha que tem de ficar até o fim para assistir ao resto de um drama desagradável.
Hennessey fechou a porta e ficou de pé, alerta, vigiando os ocupantes do aposento. Burke, a um sinal de Heath, deixou a mão cair para o lado do corpo, mas manteve uma vigilância severa.
— Sente-se, Senhor Mirche — disse Vance. — É apenas uma pequena discussão.
Quando o homem, lívido e assustado, deixou-se cair em uma cadeira junto à escrivaninha, Vance se curvou delicadamente, cumprimentando Dixie Del Marr.
— Não é preciso a senhorita ficar de pé.
— Prefiro ficar assim — disse a mulher, em tom de voz duro. — Há três anos que venho esperando sentada...
Vance aceitou sem comentário a sua observação misteriosa e voltou novamente sua atenção para Mirche.
— Nós estávamos conversando a respeito de preferências no tocante a vinhos e comidas — falou ele, em tom indiferente. — E eu estava imaginando qual seria a marca de cigarros que o senhor fuma.
O homem pareceu paralisado de medo. Mas logo se recuperou; um simulacro de sua antiga suavidade voltou a seu rosto. O homem fez um ruído como o de um sapo coaxando, que pretendia ser uma risada.
— Não tenho preferência por nenhuma marca — declarou ele. — Eu sempre fumo...
— Não, não — interrompeu Vance. — Refiro-me à sua marca muito especial, reservada para os eleitos.

Mirche tornou a rir e gesticulou largamente com as palmas das mãos viradas para cima, para indicar que não compreendera em nada o significado da pergunta.
— A propósito — prosseguiu Vance — nos tempos medievais, quando Madame Tofana e outros envenenadores famosos prosperaram, havia muitas flores, hoje lendas românticas para nós, que provocavam a morte com uma simples cheirada. É esquisito como essas lendas persistem e como surgem tantos exemplos da sua aparente autenticidade nos tempos modernos. É de se admirar como os velhos segredos da alquimia foram preservados até os tempos atuais. Naturalmente, tais especulações são absurdas à luz da ciência moderna.
— Não compreendo o que o senhor quer dizer com isso. — Mirche falava com uma tentativa de mostrar dignidade ferida.
— E também não entendo esta invasão ultrajante dos meus aposentos particulares.
Vance ignorou o homem um instante e dirigiu-se à Senhorita Del Marr.
— Acaso a senhorita perdeu uma cigarreira especial, com desenhos enxadrezados? Quando ela foi encontrada, tinha o cheiro de narcisos e rosa. Uma combinação excêntrica, Senhorita Del Marr, e lembra a sua pessoa.
Não se notou nenhuma mudança na expressão fisionômica da mulher, que continuou dura, embora ela hesitasse de forma evidente antes de responder.
— Não é minha. Mas creio, no entanto, que conheço a cigarreira a que o senhor se refere. Eu a vi no sábado passado neste escritório, e naquela noite ela me foi mostrada pelo Senhor Mirche. Ele a carregara durante várias horas no bolso... Talvez tenha sido assim que ela adquiriu o perfume. Onde foi que a encontrou, Senhor Vance? Disseram-me que foi esquecida aqui por um dos empregados do restaurante... Talvez o Senhor Mirche pudesse...
— Não sei de nada a respeito de tal cigarreira — disse Mirche, sem delongas. Havia energia e susto nas suas palavras. Jogou um olhar de desafio a Dixie, mas esta se achava de costas para o homem.
— Isso não importa, não é mesmo? — disse Vance. — É apenas uma referência de passagem.
Seus olhos continuavam pousados em Dixie Del Marr, e ele tornou a lhe dirigir a palavra.
— A senhorita sabe, naturalmente, que Benny Pellinzi está morto.
— Sim... Eu sei. — E suas palavras não denotavam nenhuma emoção.
— Há uma estranha coincidência nisso. Ou, talvez, apenas um capricho meu. — Vance falava como se estivesse apenas fazendo uma observação sem importância. — Pellinzi morreu na tarde do sábado passado, pouco depois de ter tido tempo de chegar a Nova York. Mais ou menos nessa altura, acontece que fui casualmente às matas de Riverdale. E, quando começava a voltar para casa, um carro grande passou velozmente pelo local onde me achava. Mais tarde, fiquei sabendo que um cigarro aceso fora jogado do carro, perto do lugar onde eu me achava de pé. Era um cigarro muito diferente dos outros, Senhorita Del Marr. Apenas tinha começado a ser fumado. Mas não era essa a única peculiaridade do tal cigarro. Além disso, havia também um veneno mortífero nele. O equivalente moderno das fabulosas flores envenenadas que figuravam nas tragédias medievais. E, contudo, fora jogado descuidadamente em uma rodovia pública...
— Uma ação imbecil — disse Owen, em tom de voz suave mas cheio de censura.
— Casual, digamos assim... do ponto de vista finito. Mas, na verdade, inevitável. — Vance também falava em tom suave. Só existe um modo de agir em todo o universo.
— Sim — falou Owen, em tom vago e sonhador. A imbecilidade humana é um dos fatores que concorrem para a fatalidade dos acontecimentos.
Vance não se virou. Estava observando atentamente a expressão fisionômica de Dixie Del Marr.
— Posso prosseguir, Senhorita Del Marr, ou minha história a importuna.
Dixie não deu nenhum sinal de ter ouvido a pergunta.
— A cigarreira a que me referi — prosseguiu Vance — foi encontrada no cadáver de Pellinzi. Mas não havia cigarros dentro dela. E ela não continha nenhum cheiro picante de amêndoas amargas... Só o cheiro doce de narciso e rosa... Mas Pellinzi foi envenenado pelo cheiro desse perfume. E, novamente, entra em ação o mortífero agente do romance antigo... É estranho, não é? Como a fantasia evoca associações tão remotas. O pobre Pellinzi deve ter confiado e acreditado em quem o assassinou. Mas sua fé encontrou apenas traição e morte.
Vance fez uma pausa. Havia grande tensão no pequeno aposento. Só Owen parecia despreocupado. Olhava diretamente para diante, com uma expressão fisionômica sem esperanças e distante e a boca torcida por uma expressão cruel.
Quando Vance tornou a falar, suas maneiras tinham mudado: havia uma repentina severidade na sua voz.
— Mas talvez, afinal de contas, eu não esteja sendo lá muito imaginoso. A quem, senão a Senhorita Del Marr, teria Pellinzi comunicado em primeiro lugar a sua chegada a Nova York? E como poderia ele ter sabido, nesses últimos anos, que outro homem conquistara o coração da mulher que outrora lhe pertencera? Possui um carro grande e fechado, Senhorita Del Marr. Uma viagem secreta a Riverdale teria sido coisa fácil para a senhorita. A cigarreira, com o seu perfume sutil, foi encontrada com o cadáver. O amor muda e é cruel...
Owen deixou escapar uma risadinha gélida. Suas sobrancelhas arquearam-se ligeiramente. A expressão cruel da sua boca se transformou em um arremedo de sorriso.
— Muito hábil, Senhor Vance — murmurou ele. Na verdade, admirável. Padrões dentro de padrões. Como o homem se deixa enganar facilmente por fantasmas!
— É a enganosa ordem que existe no caos — falou Vance. Owen fez um aceno de cabeça, quase imperceptível. Seu rosto voltou a ser uma satírica máscara.
— Sim — disse ele, em tom suave. — O senhor também tem um senso exotérico de humor.
— Duvido — murmurou Vance — que a Senhorita Del Marr aprecie o humor da morte.
Um gemido estrangulado irrompeu da garganta da mulher. Ela deixou-se cair em uma cadeira e cobriu o rosto com as mãos.
— Oh, meu Deus! — Foi o primeiro rompimento do seu controle rígido.
Seguiu-se longo silêncio. Mirche olhou um instante para Vance e novamente para a mulher. Seu rosto recuperara parte da sua cor, mas um medo intenso lhe brilhava nos olhos: um medo de um fantasma maligno, cuja forma ele não sabia determinar. Compreendi que se iam acumulando na sua mente perguntas que ele não ousava formular.
A mulher ergueu lentamente a cabeça; as mãos lhe caíram no colo e ficaram lá, em atitude de completo desânimo: A dureza venenosa da sua natureza recuperou o controle. Dixie esteve para falar, mas também ela conteve o impulso, como se a pressão das suas emoções ainda não tivesse alcançado o ponto de libertação.
Vance acendeu lentamente um dos seus cigarros. Depois de tirar duas baforadas, falou novamente com Dixie, e suas palavras pareceram indiferentes, como se ele estivesse fazendo uma pergunta que não contivesse nenhuma importância particular.
— Ainda há uma coisa que me intriga, Senhorita Del Marr... Por que trouxe Pellinzi, morto, para este escritório?
A mulher sentou-se como uma estátua de mármore, enquanto um cacarejo desdenhoso escapou dos lábios de Mirche.
— Está-se referindo, Senhor Vance, — perguntou ele, à sua antiga maneira pomposa — ao homem encontrado morto neste escritório? Estou começando a compreender o seu interesse no lamentável episódio que se passou aqui na noite de sábado. Mas receio que tenha permitido à sua imaginação levá-lo completamente de roldão. O cadáver encontrado aqui era o de um dos empregados do restaurante.
— Sim. Sei a quem se refere, Senhor Mirche. A Philip Allen. Vance falava em tom de voz macio. — Como o senhor disse naquela noite. E não tenho dúvidas de que o senhor acreditava nisso, e de que ainda acredita. Mas, às vezes, os fatos aparentes atuam de forma esquisita. Um padrão está sujeito a mudar o seu desenho da maneira mais incrível... Não é verdade, Senhor Owen?
— É sempre verdade — replicou o espectador silencioso da cadeira. — Confusão. E nós somos as vítimas...
— A que ponto vocês dois querem chegar? — indagou Mirche, levantando-se a meio na sua cadeira, enquanto o medo lhe transparecia nos olhos.
— A verdade, Sr, Mirche, é — falou Vance — que Philip Allen está bem vivo. Depois que o senhor o mandou embora do emprego e que ele, casualmente, deixou uma cigarreira aqui, que realmente não lhe pertencia, Philip Allen não voltou a este escritório.
— Ora, isto é ridículo! — E Mirche perdera a suavidade da fala. — Do contrário, como poderia ele...?
— Era Benny Pellinzi quem estava caído no soalho, naquela noite, morto!
A esta notícia, Mirche tornou a se deixar cair de repente na sua cadeira e ficou olhando, com ar de desafio sem esperanças, para o homem que estava diante de si. Mas os fatos ainda não se tinham organizado na sua mente, e ele recomeçou a protestar.
— Isso é absurdo... Completamente absurdo! Eu próprio vi o cadáver de Allen. E o identifiquei.
— Oh, não discuto a sinceridade da sua identificação. — Vance aproximou-se mais do homem perplexo. Seu tom de voz era quase meloso. — O senhor estava com todas as razões para supor que o morto fosse Philip Allen. Ele é do mesmo tamanho que Pellinzi. Tem a mesma forma de rosto e a mesma cor de pele, e naquele dia ele estava vestindo um terno preto igual ao que Pellinzi usava quando o mataram. O senhor acabara de falar com Philip Allen, no seu escritório, algumas horas antes, e, conforme me disse ontem, o senhor não se surpreendeu pelo fato de ele ter voltado aqui. Além disso, a morte pelo envenenamento muda a expressão dos olhos e todo o aspecto geral do rosto. Acresce, ainda, que Pellinzi era a última pessoa no mundo que o senhor teria esperado encontrar no seu escritório, principalmente naquela noite. Sim, a última pessoa no mundo...
— Mas por que — gaguejou Mirche — por que Pellinzi devia ter sido a última pessoa no mundo que eu teria esperado? Eu sabia, pelos jornais, que o homem fugira da cadeia. E era bem possível que ele tivesse cometido a tolice de me procurar para pedir ajuda.
— Não... Oh, não. Não me refiro a isso, Senhor Mirche — retrucou Vance, tranqüilamente. — Eu tinha outro motivo, mais convincente, para saber que o senhor não esperaria encontrar Pellinzi aqui naquela noite... O senhor sabia que Pellinzi estava morto em Riverdale.
— Ora, como poderia eu ter sabido que ele estava morto? — gritou o homem, freneticamente, saltando de pé. — O senhor mesmo disse que seria Dixie Del Marr a quem ele teria apelado primeiro, e o carro dela, sua viagem a Riverdale... Bolas... O senhor não me pode intimidar!
— Tenha mais calma, Dan — falou Owen, com petulância. — Já existe tumulto de sobra neste mundo pobre. A confusão me cansa.
— Novamente, receio que me tenha entendido mal, Senhor Mirche. — Vance ignorou a queixa de Owen a seu assecla amedrontado. — Quis dizer, apenas, que a Senhorita Del Marr deve tê-lo informado a respeito do fato. Tenho certeza de que vocês dois não ocultam segredos um do outro. Têm uma confiança mútua completa, mesmo no crime. E, sabendo que Pellinzi estava morto em Riverdale, e que a sua digamos assim, sócia? — dificilmente traria o cadáver para cá, como poderia o senhor imaginar que o homem encontrado morto neste escritório, naquela noite, era Pellinzi? Como teria sido natural cometer um erro de identificação! E, já que não poderia ser Pellinzi, deveria ser outra pessoa qualquer. E com que presteza — e com que lógica — Philip Allen lhe veio à idéia... Mas era Pellinzi.
— Como é que o senhor sabe que era Benny? — E Mirche estava atrapalhado, perturbado por alguma visão mental íntima. — O senhor está tentando enganar-me. — Depois, ele quase gritou: — Repito... Não poderia ter sido o Abutre!
— Ah, poderia, sim. É um engano da sua parte. — Vance falava tranqüilamente e com autoridade. — Não há dúvidas possíveis. As impressões digitais não mentem. Pergunte ao sargento Heath ou ao procurador distrital. Ou pode telefonar para a polícia e certificar-se.
— Imbecil! — cortou Owen, com os olhos sonolentos pousados em Mirche, com uma expressão de indizível aborrecimento. Virou-se para Vance. — Afinal de contas, como é fútil... este sonho diabólico... Esta sombra que nos cobre... — E a voz lhe faltou.
Mirche estava olhando fixamente para algum ponto distante além dos limites do cômodo, sozinho com seus pensamentos, lutando para juntar um punhado de fatos isolados.
— Mas — murmurou ele, como se protestando debilmente contra algum vingador inevitável e sem forma — a Senhorita Dell Marr viu o cadáver aqui e...
O homem tornou a cair no silêncio, pensando no assunto. E então um profundo rubor lhe foi aumentando nas feições e aos poucos foi ficando de cor mais intensa, até que pareceu que o sangue ia sufocá-lo. Os músculos do seu pescoço enrigeceram e gotículas de suor lhe apareceram de repente na testa.
Rigidamente e com esforço, o homem virou-se para Dixie Del Marr e, em uma voz de ódio fremente, descarregou contra ela uma saraivada de palavrões.


CAPITULO XIX
ATRAVÉS DA SOMBRA
(Terça-feira, 21 de maio — 16:00 horas)

Outra onda de emoções fortes rompeu a calma de pedra de Dixie Del Marr. Uma paixão violenta e primitiva a consumia por dentro. Ela se levantou e encarou Mirche, e suas palavras saíram em uma torrente incontrolável.
— Claro, sua criatura suja, que eu os deixei pensar que o morto encontrado neste escritório — o homem que você matou — era Philip Allen. Mais alguns dias de dúvida e de tortura para você... Que importava isso? Eu já esperara vários anos para vingar Benny. Oh, eu sabia muito bem que a sua traição o mandara para a cadeia para cumprir vinte anos de prisão. E eu não pude dizer nada para salvá-lo. Havia só um jeito de eu vingar essa injustiça. Eu tinha de esperar com paciência, pois sabia que um dia chegaria a hora... Você gostava de mim... Você me queria. Esse pensamento de me possuir já estava na sua mente inferior quando você deixou que mandassem Benny para a cadeia. Por isso, fingi que estava do seu lado e o ajudei nos seus planos ilegais. Eu o lisonjeei. Fiz o que você mandava. E durante o tempo todo eu amava Benny. Mas eu soube esperar...
Dixie deu uma risada amarga.
— Três anos são muito tempo. E o instante que eu esperara veio tarde demais. Mas eu me consolo com o pensamento de que a morte de Benny foi um fim misericordioso. Ele não podia ter esperanças de uma vida normal, embora tivesse conseguido fugir da prisão. Benny passara a vida inteira sendo perseguido pela polícia. Mas ele foi furioso para a sua cela. Tão furioso a ponto de pensar que podia encontrar a verdadeira liberdade da prisão, para onde a sua traição o havia mandado. Uma fúria irresistível tomou conta da mulher.
— Mas Benny nunca soube da sua traição. Pensava que você era amigo dele. E veio à sua procura para pedir ajuda. Mas, graças a Deus, ele telefonou também para mim quando voltou, no sábado passado. Contou-me que havia telefonado para você antes de chegar à cidade. Que você dissera que o ajudaria. E eu sabia que isso era mentira. Mas que podia eu fazer? Tentei preveni-lo. Mas Benny não me quis dar ouvidos. Pensou que, talvez, depois de tanto tempo, eu tivesse algum motivo forte para querer evitar um encontro entre vocês dois. Não me quis dar ouvidos. Não me contou nada dos seus planos, exceto que você ia ajudá-lo...
— Você está doida — conseguiu dizer Mirche.
— Cale-se, idiota — suspirou Owen. — Você não pode mudar o curso do destino.
— Por isso, eu o segui, Dan, no carro que você me deu, e com o motorista que você me forneceu e que fazia parte da sua quadrilha. — Dixie tornou a rir, com a mesma amargura. — Ele o odeia tanto quanto eu... Mas ele tem medo de você, pois sabe que você pode ser muito perigoso... Eu o segui, desde a hora em que você saiu daqui, na tarde de sábado. Eu sabia que você não deixaria Benny ir até onde você se achava, pois, apesar da sua crueldade, você é um covarde. E eu o segui a um bairro afastado e vi quando você entrou na casa de Tony... Pena que Rosa não tivesse olhado na sua bola de cristal para preveni-lo... E então compreendi o plano torpe que você estava armando para se livrar do Benny. Mas não imaginei que você tivesse coragem de executá-lo, como o fez. Pensei que Benny só deveria morrer quando você estivesse a salvo novamente no seu escritório. Como iria eu saber que você escolheria os cigarros do Tony para fazer o serviço? Pensei que eu ainda podia avisar Benny, antes que fosse tarde de mais... Pensei que eu ainda podia salvá-lo. Por isso, segui você. Vi quando você o apanhou, no lugar onde ele se achava escondido, bem no interior do parque; vi quando você seguiu com o carro rumo ao norte,
atravessando Riverdale; vi quando você parou em um ponto isolado, depois de uma curva, onde pensava que ninguém podia vê-lo. E então, eu o vi colocar o cadáver de Benny rapidamente ao lado da estrada e afastar-se velozmente de carro. A mulher nos varreu com um olhar ardente.
— Oh! Não estou mentindo! — gritou ela. — Nada mais me interessa... exceto o castigo deste homem.
Mirche parecia paralisado, incapaz de falar. Owen, ainda com seu sorriso céptico e distante, não se movera.
— Queira prosseguir, Senhorita Del Marr — pediu Vance.
— Levei o corpo de Benny para meu carro e trouxe-o para aqui, quando sabia que Mirche estaria lá em cima. Cheguei à alameda de entrada de carros, como sempre faço, e parei perto da porta lateral, na extremidade da passagem. — Ela apontou para os fundos do aposento. — Ninguém me podia ver da rua... com a porta do carro aberta. E as trepadeiras também ajudaram a me encobrir. Depois, entrei para me certificar de que não havia ninguém no corredor mais além, e dei o sinal. Meu motorista carregou o pobre Benny e o colocou aos pés do homem que o matara...! Você não sabia, não é, ”Coruja”, que havia um morto naquele armário, quando esteve sentado aqui, conversando comigo, naquela noite?
— E daí? — Houve uma mudança na expressão de Owen.
— E, quando você saiu, ”Coruja”, eu trouxe Benny para baixo da escrivaninha e telefonei para a polícia.
Agora, compreendi que Vance provocara deliberadamente o desabafo frenético da mulher. Enquanto ela falava, ele fizera um sinal ao sargento, e Heath e Hennessey se aproximaram de Mirche sem que este percebesse, e agora o homem se achava com um guarda de cada lado.
— Mas como é, Senhorita Del Marr, — perguntou Vance — que a sua história explica o fato de a cigarreira com perfume de narciso e rosa ter sido encontrada no bolso de Pellinzi?
— Foi medo! Foi a consciência deste patife — retorquiu ela, apontando para Mirche com ar de desafio. — Quando viu o que julgava ser o cadáver de Allen, seu cérebro assustado e enevoado se lembrou de que a cigarreira de Philip Allen ainda estava no seu bolso. E eu o vi, ajoelhado ao lado do cadáver, enfiar a cigarreira no bolso do paletó do morto. O ato impulsivo de um covarde, com o qual ele pretendia livrar-se de toda associação com o que ele julgava ser um segundo assassinato. Mirche queria evitar qualquer possível relacionamento de sua pessoa com outro cadáver.
— É uma versão razoável — murmurou Vance. — Sim. Uma análise bem sutil... E a senhorita se contentou em deixar que a verdade com referência ao morto aparecesse por meio das investigações?
— Sim! Depois de informar à polícia o endereço de Philip Allen, eu sabia que mais cedo ou mais tarde a justiça acabaria descobrindo a verdade. E, enquanto isto, este meliante, Mirche, ficaria preocupado e sofreria... E eu teria meios de sobra para torturá-lo.
— A ética de uma mulher... — começou Owen. Depois, voltou a ficar em silêncio.
— Tem alguma coisa a dizer antes de o prendermos, Mirche? — o tom de voz de Vance era baixo, mas cortante como uma chicotada.
Mirche ficou olhando, de um modo terrível, e sua figura gorducha pareceu encolher-se. De repente, contudo, ele se levantou e apontou um dedo trêmulo contra Owen. As veias do seu rosto estufaram-se como cordéis.
Owen fez um ruído gutural de desprezo.
— Cuidado com a pressão sangüínea, idiota — zombou Owen. — Não vá poupar esse trabalho ao carrasco.
Duvido que Mirche tenha ouvido essas palavras mordazes. Os vitupérios e os palavrões entornaram dos seus lábios. Sua ira parecia ultrapassar todas as fronteiras humanas. Seu veneno transformou-o em um mero autômato: insensato, contorcido, repelente.
— Não pense que levarei a culpa em seu lugar, sem dizer nada! Já cedi demasiado tempo sob a sua influência. Executei os seus planos sujos. Fechei a boca sempre que eles tentavam arrancar de mim a verdade a seu respeito. Posso ir para a cadeira elétrica, ”Coruja”, mas não sozinho! Levarei comigo você com seu cérebro hipnótico e envenenado!
Dirigiu um olhar rápido a Vance e apontou novamente para Owen.
— Ali está o cérebro tortuoso que planejou tudo isto... Eu o avisei da chegada do Abutre, e Owen me mandou buscar os cigarros. Ele me disse o que eu devia fazer. Tive medo de recusar... Achava-me em seu poder...
Owen olhou para o homem com calma zombaria: continuava distante e desdenhoso. A peça estava chegando ao fim, e o seu desprezo e a monotonia da situação ainda não o tinham abandonado.
— Você é um espetáculo triste, Dan. — Seus lábios mal se moveram.
— Se pensa que não estou preparado para este momento, o tolo é você, e não eu. Guardei todos os registros e dados: nomes, lugares... tudo! Durante vários anos, tenho guardado, essas coisas. Eu as ocultei onde ninguém as pode encontrar. Mas eu sei onde as encontrar! E o mundo inteiro saberá...
Essas foram as últimas palavras que Mirche disse em sua vida.
Ouviu-se um tiro. Um pequeno orifício preto apareceu na testa de Mirche, entre os olhos. O sangue gotejou do orifício e o homem tombou para diante, em cima da escrivaninha.
Heath e os dois detetives, com as automáticas empunhadas, começaram rapidamente a atravessar o aposento, para chegar até junto ao imóvel Owen, que continuou sentado, sem se mover, uma das mãos apoiada no colo, empunhando um revólver fumegante.
Mas Vance interveio rapidamente. De costas para a figura silenciosa na cadeira, fez um gesto imperioso para Heath. Virou-se lentamente, depois, e estendeu a mão. Owen ergueu o olhar na sua direção e depois, como se por uma cortesia instintiva, virou o revólver, com o cabo voltado para Vance, e estendeu-o com mansa indiferença. Vance jogou a arma em cima de uma cadeira vazia e, olhando para o homem, esperou.
Os olhos de Owen achavam-se semicerrados e sonhadores. ”O Coruja” não parecia mais notar o que o cercava, nem o corpo de Mirche, que ele acabara de matar, esparramado no chão. Finalmente, ele falou, em um tom de voz que parecia estar vindo de muito longe.
— Isso teria significado as vagas na superfície da água. Vance assentiu de cabeça.
— Sim. Limpeza de espírito... Mas, agora, haverá o julgamento, a cadeira elétrica, o escândalo, que ficarão gravados indelevelmente...
Um tremor sacudiu o débil corpo de Owen. Sua voz se ergueu, até se transformar em um grito agudo.
— Mas como se pode escapar ao finito? Como atravessar a sombra, limpo?
Vance tirou do bolso a cigarreira e segurou-a um instante na mão, mas não a abriu.
— Quer fumar um cigarro, Senhor Owen? — indagou ele. Os olhos do homem contraíram-se. Vance tornou a enfiar sua cigarreira no bolso.
— Sim... — E Owen respirou aliviado, afinal. — Acho que vou mesmo fumar um cigarro. — Enfiou a mão em um bolso interno e de lá tirou uma pequena cigarreira de couro, luxuosa...
— Escute aqui, Vance! — cortou Markham. — O caso deixou de ser da sua alçada. Foi cometido um homicídio diante dos meus olhos, e eu próprio ordeno a prisão deste homem.
— Perfeitamente — disse Vance, em voz arrastada. — Mas, infelizmente, acho que já é tarde demais para isso.
Enquanto Vance falava, Owen afundou mais na sua cadeira; o cigarro que ele acabara de acender lhe escorregou dos lábios e caiu no soalho. Vance esmagou-o rapidamente com o pé.
A cabeça de Owen pendeu para diante, caindo sobre o peito: os músculos do seu pescoço tinham-se relaxado repentinamente.


CAPITULO XX
FELIZ ATERRAGEM
(Quarta-feira, 22 de maio — 10:30 horas)

Na manhã seguinte, Vance achava-se sentado no gabinete do procurador distrital, conversando com Markham. Heath estivera lá, antes, com a notícia da prisão dos Tofanas. No porão da casa deles tinham sido encontradas provas suficientes para condenar ambos, ou pelo menos assim esperava o sargento.
Dixie Del Marr também comparecera, a pedido de Markham, para fornecer pormenores necessários para os registros oficiais. Como não havia nenhum motivo para lhe fazer acusações pelo papel que ela tivera nos negócios de Mirche, Dixie mostrava-se relativamente satisfeita quando nos deixou.
— Realmente, Markham — observou Vance. — Em vista do antigo amor dessa mulher por Benny Pellinzi, sua conduta, como sabemos, é perfeitamente compreensível e perdoável... Quanto a Mirche, teve um fim muito melhor do que merecia... E Owen! Um louco doente. Felizmente, para o mundo, ele escolheu um jeito tão rápido de sair de cena! Sabia que estava morrendo e foi o temor do castigo que lhe inspirou o ato... Podemos dar-nos por satisfeitos em encerrar o assunto. E, afinal de contas, realmente eu fiz ao lunático uma promessa vaga de zelar pelas conseqüências do caso, para que não houvesse ”ondas”, como ele mesmo disse, a segui-lo.
Vance riu melancolicamente.
— Mas, na verdade, que importa isso? Um facínora de importância, é encontrado morto, um acontecimento bem vulgar; um meliante de importância maior é morto com um tiro, também um episódio corriqueiro; e o chefão de uma quadrilha de criminosos se suicida... Bem, talvez isto seja um acontecimento raro, mas, sem dúvida, sem importância... Em todo caso, estamos em plena primavera; a cotovia está esvoaçando, contente, até o caramujo se movimenta... Ei! Que tal irmos comer uns camarões com um bom vinho, depois?
Enquanto Vance falava, a campainha da porta soou e uma voz anunciou a presença do Senhor Amos Doolson na sala de espera. Markham olhou para Vance.
— Suponho que seja a respeito daquele prêmio absurdo. Mas não posso receber o homem agora...
Vance levantou-se rapidamente.
— Deixe-o esperar, Markham! Tive uma idéia.
Depois, foi ao telefone e falou com a Fábrica de Perfumes In-O-Scent. Quando desligou, sorriu para Markham.
— Gracie Allen e George Burns estarão aqui dentro de quinze minutos. — Riu baixinho, realmente muito satisfeito. — Se alguém merece o prêmio, é aquela garota incrível, e vou tomar providências para que ela o receba.
— Ora, você está doido? — disse Markham, surpreso.
— Nada disso. Estou no meu juízo perfeito. E... embora talvez você duvide, sou apaixonadamente dedicado à justiça.
Pouco depois, Gracie Allen e George Burns chegavam.
— Oh, que lugar horrível! — falou ela. — Ainda bem que não tenho de viver aqui, Senhor Markham. — Ela virou os olhos preocupados para Vance. — Tenho de continuar com meu trabalho de detetive? Prefiro trabalhar na fábrica, agora que George voltou e que tudo está bem.
— Não, minha querida — falou Vance, em tom de voz bondoso. — Você já trabalhou até demais. E os resultados que alcançou são soberbos. Na verdade, pedi que você viesse aqui, esta manhã, apenas para receber a sua recompensa. Foi oferecido um prêmio de cinco mil dólares à pessoa que resolvesse o assassinato do homem no Domdaniel. Quem fez o oferecimento foi o Senhor Doolson; e ele está na outra sala, neste instante.
— Oh! — E desta vez Gracie Allen ficou tão intrigada e atônita, que perdeu a fala.
Quando Doolson foi introduzido, dirigiu um olhar de espanto aos seus dois empregados e foi diretamente para a escrivaninha de Markham.
— Quero retirar imediatamente o prêmio, Senhor Markham — disse ele. — Burns voltou para o trabalho, hoje cedo, com excelente disposição, e portanto não há mais necessidade de...
Markham, que já se ajustara ao ponto de vista de Vance, jocoso mas justo, falou na sua maneira mais judiciosa.
— Lamento extremamente, Senhor. Doolson, mas tal retirada está inteiramente fora de cogitações. O caso foi encerrado e arquivado ontem à tarde... Bem dentro do limite de prazo estipulado pelo senhor. Agora, sou obrigado a entregar o prêmio à pessoa que o mereceu.
O homem arregalou os olhos e gaguejou:
— Mas!... — começou ele a argumentar.
— Sentimos tremendamente, Senhor Doolson — intrometeu-se Vance, em tom conciliatório. — Mas tenho certeza de que o senhor ficará satisfeito com sua generosidade impulsiva, quando eu o informar de que é Gracie Allen quem vai receber o prêmio.
— Quê! — explodiu Doolson, como se fosse ter uma apoplexia. — Que é que Gracie Allen tem a ver com isso! É um absurdo!
— Não é, não — retrucou Vance. — É a simples declaração de um fato. Gracie Allen foi a principal colaboradora na solução do caso. Foi ela quem forneceu todas as pistas importantes... E afinal de contas, o senhor recuperou os serviços do Senhor Burns hoje.
— Não consentirei nisso — gritou o homem. — É uma tramóia! Uma farsa! Vocês não me podem obrigar legalmente a fazer isso!
— Pelo contrário, Senhor Doolson — disse Markham. — Sou obrigado a considerar esse dinheiro propriedade da moça. As próprias instruções quanto à concessão do prêmio — ditadas aqui pelo senhor mesmo — não lhe dariam nenhuma arma se o senhor resolvesse impedir legalmente o seu pagamento.
Doolson ficou boquiaberto.
— Oh, Senhor Doolson — exclamou Gracie Allen. — Que lindo prêmio! E o senhor realmente fez isso para que George voltasse para o trabalho voando? Nunca pensei nisso. Mas o senhor precisa terrivelmente dele, não é? E isso me dá outra idéia. Que tal um aumento de salário para George?
— Raios! Isso eu não faço! — E, por um instante, pensei que Doolson estava à beira de um colapso cardíaco.
— Mas suponha, Senhor. Doolson, — prosseguiu Gracie Allen
— que George tornasse a ficar preocupado e não pudesse ir trabalhar! Que seria da sua firma?
O homem controlou-se e estudou George Burns sombriamente, pensativo, durante alguns momentos.
— Sabe, Burns, — disse ele, em tom quase conciliatório — estive pensando, há algum tempo, e achei que você merecia um aumento. Você tem sido um empregado muito leal e muito valioso para a firma. Volte para o seu laboratório imediatamente e discutiremos amigavelmente o assunto. — Depois, virou-se e apontou um dedo para a jovem. — E você, menina, está despedida!
— Oh, não tem importância, Senhor Doolson — retrucou a moça, sorridente e indiferente. — Aposto que o aumento que o senhor vai dar a George fará o salário dele subir e igualar a quantia que o meu e o dele juntos dariam... entende o que eu digo?
— Raios me partam se me importo um pouco, sequer, com o que você diz. — E Doolson saiu pisando duro da sala.
— Creio — disse Vance, amavelmente — que a observação seguinte deve vir de George Burns. — E sorriu para o jovem, de maneira significativa.
George Burns, embora claramente atônito com os acontecimentos da última meia hora, ainda assim estava com a cabeça suficientemente clara para entender o significado das palavras de Vance. Agarrando a sugestão feita, dirigiu-se resolutamente para onde se achava a moça.
— Que tal aquela proposta que fiz a você, na manhã em que me prenderam?
Nossa presença, longe de deixá-lo embaraçado, deu-lhe coragem.
— Ora, que proposta? — perguntou a jovem, maliciosamente.
— Você sabe a que me refiro! — E seu tom de voz era rouco e resoluto. — Que tal nós dois nos casarmos.
Gracie Allen caiu para trás em uma cadeira, com uma risada musical.
— Oh, George! Era isso que você estava tentando dizer!
Pouco mais falta a falar a respeito do que Vance sempre insistiu em chamar de o caso Gracie Allen.
O Domdaniel, como todos sabem, foi fechado há muito tempo, e há poucos anos foi demolido e no seu lugar construído um prédio moderno. Tony e Rosa Tofana resolveram confessar seus crimes e agora estão cumprindo sentença na penitenciária. Não sei o que foi feito de Dixie Del Marr. Talvez tenha adotado novo nome e ido para outra parte do país, para viver tranqüilamente longe dos locais dos seus passados triunfos e sofrimentos.
Gracie Allen e George Burns casaram-se pouco depois daquela proposta de casamento inesperada e divertida, feita no gabinete de Markham.
Em certa tarde de sábado, alguns meses depois, eu e Vance encontramos o jovem casal dando um passeio a pé na Quinta Avenida. Os dois pareciam radiantes de felicidade, e a moça, como sempre, tagarelava muito animadamente.
Paramos alguns minutos para falar com eles. Soubemos que George Burns fora promovido no seu emprego na fábrica de perfumes. E, para gáudio de Vance, veio à baila o fato de que Gracie Allen, por motivos sentimentais, apresentara seu cartão ao Senhor Lyons, da loja Chareau e Lyons, de roupas feitas, quando fora escolher seu vestido de noiva.
Caminhamos ao lado deles durante um curto trecho, e George Burns, no meio de uma frase, parou de repente e notei que suas narinas se dilataram ligeiramente, enquanto ele se inclinava na direção de Vance.
— A fórmula original de Farina para a água-de-colônia! Vance riu.
— Sim. Eu sempre trago água-de-colônia, quando vou à Europa. E isso me faz lembrar: hoje cedo, vi, em uma revista francesa, o nome de um perfume que, depois da colaboração indispensável da Senhora. Burns no nosso caso, você poderia dar, muito apropriadamente, à delicada mistura que você fez para ela. Chamava-se La Femme Triomphant.
Burns sorriu, todo orgulhoso.
— Acho que Gracie o ajudou bastante, Senhor Vance.
A jovem olhou de um para outro, franzindo o cenho, intrigada, e depois riu, acanhada.
— Não compreendo...

O caso chamado Gracie Allen foi sem dúvida o que mais agradou a Philo Vance entre todos aqueles de que participou. Podemos acrescentar que foi talvez o mais divertido de todos.
É verdade que um crime de morte nada tem de divertido e o mistério narrado neste livro tem aspectos sinistros, sombrios e intensamente dramáticos. Mas isso não impediu que o caso, talvez pela intervenção e pelo auxílio de Gracie Allen, tenha um fermento quase constaste de humor e divertimento.
Foi, entretanto, um caso quase incrível de muitos ângulos, mostrando-se extremamente fora do comum e imprevisível. O mistério e o encantamento do perfume impregnam todo o quadro. A magia das previsões comerciais do destino das pessoas se relacionou intimamente com a sua decifração. E houve em todo ele um forte elemento romântico.
Como se vê, O Caso Gracie Allen tem todos os elementos para ser um grande romance policial, pois, além de todos esses ingredientes ótimos, ainda apresenta a personalidade magnífica do grande detetive que é Philo Vance, criação magistral de S. S. Van Dine, que foi um dos grandes autores policiais do mundo.

 

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CAPITULO I
FOGE O ABUTRE

(Sexta-feira, 17 de maio — 20:00 horas)
Por estranho que pareça, Philo Vance sempre gostou mais do caso Gracie Allen do que de qualquer dos outros em que tomou parte ativa.
Talvez esse caso não tenha sido tão sério como alguns dos outros; mas, pensando melhor, não tenho certeza absoluta de que isso seja estritamente verdadeiro. Para ser exato, potencialmente o caso Gracie Allen continha um sem-número de maus agouros. E agora, passando-o mentalmente em revista, relembro que seus elementos básicos eram intensamente dramáticos e sinistros, apesar do seu quase constante tempero de humor.
Nas várias vezes em que perguntei a Vance por que ele gostava tanto desse caso, ele sempre me respondeu, com ar indiferente, que o mesmo constituiu o seu único fracasso flagrante como investigador dos inúmeros crimes que lhe foram apresentados pelo procurador distrital John F.-X. Markham.
— Não... Oh, não, Van; o caso não foi meu, você não sabe? — falou Vance, em tom arrastado, enquanto nós dois estávamos sentados diante do fogo da sua lareira, em certa noite de inverno, muito depois dos acontecimentos. — Na verdade, não mereço nenhum elogio por ele. Eu teria ficado completamente confuso e perdido, não fora a encantadora Gracie Allen, que sempre aparecia na hora do aperto para me salvar do desastre. Se algum dia você publicar esse caso, peço que atribua o mérito a quem realmente o conquistou. Arre, que pequena fenomenal! As deusas do lar olímpico de Zeus jamais atormentaram tanto os velhos Príamo e Agamenon com o esplendor exibido por Gracie Allen ao apoquentar os personagens daquele caso altamente perfumado. Espantoso!...
Foi um caso quase incrível sob vários aspectos, extremamente fora do comum e imprevisível. O mistério e o fascínio do perfume impregnavam todo o quadro. A magia da adivinhação, da cartomancia e da quiromancia comercial estava intimamente envolvida na sua decifração. E havia um elemento humano romântico que lhe emprestou uma cor-de-rosa toda especial.
Para início de conversa, era primavera — o décimo sétimo dia de maio — e o tempo apresentava-se extremamente agradável. Vance, Markham e eu jantáramos na espaçosa varanda do Bellwood Country Club, de onde se dominava o Hudson. Nós três tagareláramos sobre assuntos banais, pois aquela devia ser uma hora de completo relaxamento e prazer, sem nenhuma intromissão dos ásperos interlúdios de crimes que haviam marcado tantas de nossas palestras em anos recentes.
No entanto, até neste momento de serenidade, iam-se alongando feios ângulos de crime, embora nenhum de nós o soubesse; e sua sombra se aproximava sorrateiramente de nós.
Acabáramos de tomar nosso café e estávamos bebericando um delicioso licor fabricado por frades, quando o sargento Heath, com um aspecto sério e espantado, apareceu na porta que levava da sala de jantar principal para a varanda e caminhou em passos largos e rápidos para a nossa mesa.
— Olá, Senhor Vance. — Seu tom de voz era de pressa. — Olá, chefe. Desculpe importuná-lo, mas isto chegou à delegacia meia hora depois da sua partida, e, como eu sabia onde o senhor estava, achei melhor trazê-lo sem demora. — Puxou uma folha dobrada de papel amarelo do bolso e, abrindo-a, colocou-a de maneira enfática diante do procurador distrital.
Markham leu cuidadosamente, fez um movimento de indiferença com os ombros e devolveu o papel a Heath.

— Não entendo — falou ele, sem emoção alguma — por que uma informação rotineira como esta lhe exigia uma viagem até aqui.
As faces de Heath inflamaram-se de exasperação.
— Ora, chefe, esse foi o sujeito que ameaçou sua vida.
— Sei perfeitamente disso — observou Markham, friamente. E depois acrescentou, em tom de voz mais suave: — Sente-se, sargento. Considere-se de folga por alguns instantes e tome um gole do seu uísque predileto.
Depois que Heath se instalara em uma cadeira, Markham prosseguiu.
— Claro que você não espera que eu, depois de tanto tempo, comece a levar a sério as ameaças histéricas de criminosos que condenei no cumprimento dos meus deveres.
— Mas esse sujeito é perigoso, chefe, e não é dos que esquecem ou perdoam.
— Em todo caso — riu Markham, despreocupado —, ele demorará, no mínimo, até amanhã para chegar a Nova York.
Enquanto Heath e Markham falavam, as sobrancelhas de Vance se ergueram, desmonstrando leve curiosidade.
— Escute, Markham... Ao que me parece, o seu sargento teme pela sua existência cerceada, e vejo que você mesmo está um tanto aborrecido com a preocupação zelosa dele.
— Ora, Senhor Vance, não estou preocupado — disse Heath, em um desabafo. — Estou só pensando nas possibilidades, digamos assim.
— Sim, sim, eu sei — sorriu Vance. — Sempre cuidadoso. Cosendo costuras que nem sequer ainda foram rebentadas. Capaz e admirável como sempre, sargento. Mas de onde vem a sua apreensão?
— Sinto muito, Vance. — Markham pediu desculpas pelo seu fracasso de explicação. — Na verdade, não tem nenhuma importância. É apenas um aviso telegráfico de rotina de uma fuga comum em Nomenica. Três homens, condenados a sentenças longas, tentaram a fuga, e dois deles foram baleados pelos guardas...

— Não estou preocupado com os sujeitos que foram baleados — interrompeu Heath. — Minha preocupação está com o outro, com o sujeito que conseguiu escapar...
— E quem seria esse personagem que lhe dá tanto que pensar, sargento? — indagou Vance.
— Benny, o Abutre! — murmurou Heath, com ênfase melodramática.
— Ah! — E Vance sorriu. — Um espécime ornitológico... Buteo borealis. Talvez ele tenha fugido voando...
— Ora, Senhor Vance, não é assunto para brincadeira. — E Heath ficou ainda mais sério. — Benny, o Abutre, ou Benny Pellinzi, para lhe dar o nome de batismo, é um sujeito bastante perigoso, apesar da aparência inofensiva de rapazola de rosto bonito. Apenas há alguns anos, andava por aí dizendo a quem quisesse ouvir que ele era o Inimigo Público Número Um. É um sujeito assim. Mas ele não passava de peixe miúdo, e dele se pode apenas dizer que era um tipo duro e perverso... Na verdade, não passa de um rato imbecil e tolo...
— Rato? Abutre? Diacho... Você não está misturando a sua História Natural, sargento?
— E há apenas três anos — prosseguiu Heath, obstinadamente — o Senhor Markham mandou-o para a penitenciária com uma pena de vinte anos para cumprir. E ele tenta fugir da cadeia, hoje à tarde, e consegue. Não é motivo para preocupação?
— Contudo — observou Vance —, sem dúvida, esse não é o primeiro preso que foge de uma cadeia.
— Sem dúvida. — E Heath resolveu esticar mais um pouco a folga que o procurador lhe dera e pediu outro uísque. — Mas o senhor deve ter lido o que aquele sujeito fez no tribunal quando foi condenado. Mal o juiz acabara de condená-lo a vinte anos de prisão, e ele explodiu. Apontou para o Senhor Markham e, a plenos pulmões, jurou que haveria de voltar para vingar-se dele, mesmo que isso lhe custasse a própria vida. E parecia estar falando sério. O homem achava-se tão furioso e agitado, que foram necessários dois guardas fortes para arrastá-lo para fora do tribunal. Geralmente, é contra o juiz que as ameaças são feitas, mas esse sujeito escolhera como alvo das suas o procurador distrital, e de certa forma isso fez mais sentido.
Vance assentiu de cabeça, lentamente.
— Sim, muito mais. Compreendo o que você quer dizer, sargento. O homem é diferente e, portanto, perigoso.

— E o motivo que me trouxe aqui esta noite — prosseguiu Heath — foi o de dizer ao Senhor Markham o que eu pretendia fazer. Naturalmente, estaremos à procura do Abutre. Ele poderia vir diretamente para cá, ou talvez resolvesse seguir rumo oeste, para tentar alcançar os Dakotas... que, para ele, são um refúgio seguro, se é que ele tem inteligência.
— Exatamente — observou Markham. — Talvez você tenha razão ao dizer que possivelmente o fugitivo seguirá para Oeste. E, sem dúvida, não pretendo fazer nenhuma excursão imediata aos Montes Negros.
— Seja como for, chefe — insistiu o sargento, teimosamente —, não me vou arriscar nem um pouco com o Abutre... ainda mais pelo fato de ele contar com apoio decisivo dos seus velhos amigos desta cidade.
— E que amigos íntimos são esses, sargento?
— Mirch, do Restaurante Domdaniel, e a antiga namorada de Benny, que é a cantora do restaurante... Chama-se Dixie Del Marr.
— Não tenho certeza de que Mirche e Pellinzi são amigos íntimos — disse Markham. — É um assunto discutível.
— Mas, para mim não é, chefe. E, se o Abutre voltar às ocultas para Nova York, tenho um palpite de que irá diretamente a Mirche pedir ajuda.
Markham não discutiu mais as possibilidades. Em vez disso, limitou-se a perguntar:
— Qual é o seu plano de ação, sargento? Heath inclinou-se para o outro lado da mesa.
— Acho que vai ser da seguinte maneira, chefe. Se o Abutre realmente pretende voltar aos lugares por onde andava antes, fará isso com esperteza. Virá depressa, com a rapidez do relâmpago, pensando que não estamos preparados. Se ele não aparecer nos próximos dias, desistirei da minha hipótese e então os rapazes trabalharão no caso à moda rotineira. Mas, a começar de amanhã cedo, pretendo deixar Hennessey de guarda na velha pensão que fica defronte ao Domdaniel, vigiando a pequena porta que leva para o escritório particular de MircTie. E Burke e Snitkin ficarão com Hennessey, para a eventualidade de que o fugitivo apareça.
— Você não está sendo um pouco otimista, sargento? — indagou Vance. — Três anos de prisão podem produzir muitas modificações na aparência física de um homem, principalmente sendo, ele ainda jovem e não muito robusto.
Heath afastou o ceticismo de Vance com um gesto de impaciência.
— Confio em Hennessey... Ele é muito bom fisionomista.
— Oh, não estou pondo em dúvida a habilidade de Hennessey em reconhecer fisionomias — garantiu-lhe Vance. — Contando que o seu Abutre, que adora a liberdade, seja tolo a ponto de escolher a porta da frente para entrar no escritório de Mirche. Mas você não acha, meu caro sargento, que mestre Pellinzi pode achar mais prudente entrar pela porta dos fundos?
— Não há nenhuma porta dos fundos — explicou Heath.
— E não há, também, portas laterais. Existe só uma sala particular, tendo apenas uma entrada, que dá para a rua. É assim que trabalha o tal Mirche... Com tudo às claras. É um sujeito bem esperto...
— Esse escritório fica em um prédio separado? — indagou Vance. — Ou é um anexo do restaurante? Não me lembra bem...
— Nada disso. E quem não o estivesse procurando não o encontraria. É como um cômodo de fim de prédio que tivesse sido separado no canto do edifício, como fazem para separar um consultório médico ou uma pequena loja, em um prédio grande de apartamentos. Mas, se a pessoa quiser encontrar Mirche, aquele é o lugar mais provável para isso. A sala parece tão inocente quanto a casa de uma senhora idosa.
Heath olhou para nós, de maneira significativa, enquanto prosseguia.
— E, contudo, acontece muita coisa comprometedora naquela saleta. Se eu conseguisse ocultar um gravador lá, o gabinete do procurador distrital teria trabalho de julgamentos para manter-se em ação de agora em diante.
O sargento fez uma pausa e piscou um olho na direção de Markham, maliciosamente.
— Que tal acha da minha idéia para amanhã?
— Não pode fazer nenhum mal, sargento — respondeu Markham, sem nenhum entusiasmo. — Mas continuo achando que é perder tempo e energia.
— Talvez seja. — E Heath acabou de tomar o seu uísque.
— Mas, ainda assim, acho que preciso seguir o meu palpite.

Vance colocou na mesa o seu copo de licor e uma expressão extravagante lhe surgiu nos olhos.
— Escute, Markham — disse ele, em voz arrastada. — Seria mesmo perder tempo e energia, não importa qual seja o resultado. Ah, a sua preciosa lei, e seus processos meticulosos! Mesmo que esse falcão de cauda vermelha e nome de ópera aparecesse nos antigos lugares por onde costumava andar e caísse na arapuca do sargento, você ainda o trataria com bondade e ternura, sob a frase eufemística ”nos moldes da lei”. Você lhe afagaria a cabeça. Você faria tudo para prendê-lo vivo, embora ele próprio talvez estourasse os miolos de uns dois auxiliares do sargento. Depois, você lhe daria boa casa e comida; você o levaria pela cidade em um carro de luxo bem possante e, para finalizar, lhe daria uma viagem panorâmica de volta a Nomenica, uma viagem agradável. E tudo para que, meu caro? Em troca do discutível privilégio de sustentá-lo pelo resto da vida, em um gesto muito elegante.
Era evidente que Markham ficara irritado.
— Suponho que você poderia resolver tudo isso com um tiro.
— Bem que poderia. — Vance estava em um daqueles dias em que gostava de provocar os outros. — Esse sujeito é um patife inútil, que de há muito vem apoquentando a lei; que, você muito bem sabe, matou um homem e foi condenado segundo a justiça. Um meliante que planejou uma fuga da prisão, o que custou mais duas vidas humanas; que ameaçou matá-lo a sangue-frio, e que neste exato momento está privando o sargento do seu direito de tirar uma soneca. Não é uma boa pessoa, Markham. E todas essas irregularidades poderiam ser resolvidas com tanta facilidade e rapidez, matando-se o patife sem mais delongas, ou livrando-se dele de outra maneira qualquer, sem mais trabalho nem cerimónia.
— E suponho eu — Markham falou quase com raiva — que você mesmo estaria disposto a executar esse expurgo ilegal.
— Disposto? — Havia um tom provocante na voz de Vance. — Eu ficaria positivamente encantado em fazer isso. Seria a minha boa ação do dia.
Markham tirou baforadas vigorosas do seu charuto. Ficava sempre irritado quando as caçoadas de Vance enveredavam por esse caminho.
— Escute, Vance. Tirar deliberadamente uma vida humana é...
— Por favor, poupe-me o sermão, seu vigário. Já sei o que vai dizer. É uma arenga a respeito de sociedade, lei e ordem e direitos humanos. Mas você tem de confessar que a solução que eu sugeri é lógica, prática e justa.
— Já discutimos esse sofisma várias vezes — cortou Markham. — E, além do mais, não vou deixar que você estrague meu jantar com asneiras desse quilate.

CAPÍTULO II
UM INTERLÚDIO RÚSTICO

(Sábado, 18 de maio — à tarde)
No dia seguinte, pouco depois do meio-dia, encontramo-nos com Markham na sua modesta sala particular de onde se dominava o cemitério. Geralmente, aos sábados, a sala do procurador distrital já estava fechada a estas horas, mas Markham achava-se nas malhas de uma difícil complicação política e desejava ver o caso resolvido o mais rápido possível.
— Lamento muito — falou Vance — que você tenha de trabalhar em uma tarde como esta. Eu tinha esperanças de que talvez pudesse convencê-lo a dar um passeio de carro nos arrabaldes da cidade.
— Quê?! — exclamou Markham, com fingida surpresa. — Você está sucumbindo aos seus impulsos naturais? Não me diga que a Mãe Natureza conseguiu abalar um sibarita ferrenho como você com o seu canto de sereia! Por que não pede a Van para amarrá-lo ao mastro, como manda o figurino da Odisséia?
— Não. Descobri que anseio realmente pela magia de uma ilha paradisíaca cheirando a cidra e a cedros...
— E talvez com uma ninfa dos bosques, como Calipso.
— Ora, meu caro Markham! Nada disso! — E Vance fingiu indignação. — Não, meu caro! Pretendo apenas fazer algumas travessuras no cenário verde do Bronx.
— Vejo que você caiu nas malhas das sereias cor-de-rosa dos campos floridos. — O sorriso de Markham era brincalhão e zombeteiro. — Se o sonho de mau agouro de Heath se realizar, mais tarde navegaremos por uma rota tempestuosa entre a cruz e a caldeirinha.
— Ora, a gente nunca sabe... Mas, se isso acontecer, espero que nenhum homem seja arrancado do nosso navio oco pelas ondas revoltas.
— Ora, por Deus, Vance, não seja tão sombrio. O que você está dizendo é uma tolice completa.
(Lembro-me particularmente dessa resposta clássica e espirituosa, que, sem dúvida, não teria vindo parar nestas páginas, não fora o caso de se ter ela transformado em uma observação curiosamente profética, mesmo quanto ao cheiro de cidra e à caverna do monstro de Messina.)
— E suponho — sugeriu Markham — que você vai dar o seu passeio vestido a rigor. Não sei por que, mas não o consigo imaginar trajado com roupas de excursionista.
— Você está redondamente enganado — disse Vance. — Vou vestir um terno velho de algodão, de tecido riscado, o mais antigo que tenho... Mas diga-me, Markham, que é feito do zeloso sargento e dos maus agouros dele?
— Oh, creio que ele está executando o seu plano inútil — Markham falou com indiferença. — Mas, se o pobre Hannessey tiver de ficar esperando durante muito tempo, terei mais a temer dele, em forma de represália, do que do ilustre Senhor Beniamino Pellinzi. Não consigo entender direito a súbita preocupação de Heath pela minha segurança.
— Bravo sujeito, o Heath. — Vance estudou a cinza do seu cigarro, com um sorriso hesitante. — Na verdade, Markham, pretendo partilhar da hospitalidade cara de Mirche logo à noite.
— Você também! Você vai mesmo ao Domdaniel, logo à noite?
— Não na esperança de encontrar seu amigo, o Abutre — replicou Vance. — Mas Heath despertou minha curiosidade. Gostaria de ver mais de perto o incrível Senhor Mirche. Eu já o vi, é claro, no restaurante, mas, na verdade, sem lhe prestar muita atenção às feições. E quero também dar uma espiada — pelo lado de fora, é lógico — nesse escritório misterioso que tanto agitou a imaginação do sargento... E há sempre a possibilidade de que apareça alguma aventura emocionante quando as sombras portentosas do crepúsculo anunciarem a noite misteriosa que chega e...
— Ora, Vance, pare com isso. Você está parecendo um desses escritores medíocres de novela superbarata. Que pensamento secreto se oculta por trás dessa cortina de fumaça de palavras?
— Se você quer mesmo saber, Markham, a comida lá no Domdaniel é excelente. Eu estava apenas tentando ocultar uma ansiedade de gastrônomo...
Markham bufou e a conversa mudou para outros assuntos, interrompida, de vez em quando, por telefonemas. Quando Markham acabou de cuidar dos preparativos para a tarde e a noite, nos fez passar pelos gabinetes dos juizes e descer para a rua.
Após um rápido almoço, levamos Markham de carro para o seu escritório novamente, e depois seguimos para o apartamento de Vance, um tanto afastado do centro da cidade. Lá, Vance mudou de roupa, envergando agora um velho terno de algodão riscado, muito surrado, e calçou botas mais pesadas e um chapéu macio e bem surrado, tipo Homburg. Depois, saímos novamente até o seu carro e uma hora depois seguíamos de automóvel, muito calmamente, pela avenida Palisade, na parte do Bronx chamada Riverdale.
Nos dois lados da rua havia arvoredo e arbustos densos. O ar apresentava-se impregnado da fragrância de flores da primavera, e de vez em quando surgiam pontos coloridos de verdura. À nossa esquerda, para além de um contínuo muro de concreto, uma ladeira suave levava para o Hudson. À direita, o terreno erguia-se mais abruptamente, e assim o muro de pedra rústica não nos impedia de ver a paisagem.
No alto de uma inclinação ligeira, no exato lugar em que a estrada seguia para o interior, Vance saiu com o carro da estrada principal, parando-o de maneira suave.
— Acho que este aqui é um ponto ideal para nos misturarmos com a flora e comungarmos com a natureza.
Com exceção da cerca do lado do rio e da parede de pedra, que teria, talvez, um metro e oitenta de altura, ao longo da orla interna da estrada, estávamos, segundo tudo indicava, em uma estrada deserta do interior. Vance atravessou a faixa larga e coberta de sombras e capim, que se estendia como um tapete verde entre a rodovia e o muro. Escalou com dificuldade o muro de pedra, fazendo-me um sinal para o seguir, enquanto desaparecia na folhagem rústica e rica que havia do outro lado.
Durante mais de uma hora, andamos para trás e para diante, no meio do mato, e então, repentinamente, quando deparamos novamente com o muro de pedra, Vance olhou com relutância para seu relógio.
— Quase cinco horas — informou ele. — É melhor irmos para casa, Van. Já estamos cansados.
Segui na frente dele para a rodovia, e começamos a voltar lentamente para o carro. Um automóvel grande, rodando quase sem ruído, apareceu de repente na curva. Parei, enquanto ele passava velozmente, e fiquei vendo-o desaparecer no alto da subida. Depois, continuei andando na direção do nosso carro.
Depois de dar alguns passos, notei uma jovem, de pé, perto do muro, bem afastada da rodovia, em um caramanchão isolado e de chão coberto de capim. A moça estava sacudindo nervosamente a frente da sua saia, o que fazia com visível agitação, e batia um pé sobre o chão macio da terra. Parecia perturbada e aborrecida, e quando me aproximei um pouco mais vi que havia um buraco de queimadura na parte dianteira do seu vestido leve de verão. O orifício queimado devia ter uns três centímetros de diâmetro.
Enquanto a moça soltava uma exclamação de aborrecimento, Vance saltava — ou, melhor dizendo, caía — do muro atrás dela. O seu calcanhar ficou agarrado no muro mal feito e, enquanto ele lutava para recuperar o equilíbrio, uma saliência aguda de massa lhe rasgou a manga do paletó. O barulho inesperado assustou novamente a jovem, que se virou, alerta, para ver o que era.
Era pequena e de movimentos graciosos, dona de um rosto oval, provocante, e de feições sensíveis e regulares. Os olhos, grandes e castanhos, eram recobertos por pestanas extremamente compridas. Um nariz reto e fino conferia dignidade e caráter a uma boca feita para sorrir. Era esguia e ágil e parecia combinar perfeitamente com o ambiente rústico que a cercava.
— Caramba! — murmurou Vance, olhando para ela. — Não foi uma entrada muito graciosa no seu caramanchão. Desculpe se eu a assustei.
A moça continuou olhando desconfiada para Vance, e quando tornei a olhar para este compreendi muito bem o que lhe causava essa reação. Vance estava completamente despenteado. Além disso, seus sapatos e suas calças apresentavam-se generosamente cobertos de lama; o chapéu, todo amassado, estava grotescamente torto na sua cabeça, e a manga do paletó, rasgada, dava-lhe a aparência de um mendigo ambulante. A moça logo sorriu.
— Oh, não estou assustada — garantiu ela, em uma voz musical que possuía um timbre muito jovial e muito atraente. — Estou apenas zangada. Terrivelmente zangada. O senhor já ficou zangado? Mas não é com o senhor que estou aborrecida, pois nem sequer o conheço... Talvez eu ficasse zangada com o senhor se eu o conhecesse... Já pensou nisso?
— Sim, sim... Tenho pensado nisso muitas vezes. — Vance riu e tirou o chapéu, com o que ficou imediatamente mais apresentável. — E tenho certeza de que a senhorita teria mais do que motivo para ficar zangada... A propósito, posso sentar-me? Estou exausto...
A moça olhou rapidamente ao longo da estrada e depois se assentou um tanto abruptamente, como uma criança que se deixa cair descuidadamente no chão.
— Isso seria maravilhoso. Vou ler a palma da sua mão. O senhor já mandou ler a palma da sua mão? Sei ler muito bem a palma da mão das pessoas. Delpha me ensinou a ler todas as linhas. Ela sabe tudo referente à leitura de mãos e tudo sobre os astros, e também a respeito dos números da sorte. Ela é cartomante. Além disso, Delpha é médium. Como eu também. Sou médium. O senhor é médium? Mas talvez eu não me possa concentrar hoje. — Sua voz adquiriu um tom místico. — Alguns dias, quando me sinto disposta, eu seria capaz de lhe dizer qual a sua idade e quantos filhos o senhor tem...
Vance riu e sentou-se ao lado da jovem.
— Mas sabe de uma coisa? Acho que eu não poderia suportar saber de fatos tão atordoantes a meu respeito, neste instante ...
Vance tirou do bolso a cigarreira e abriu-a lentamente.
— Tenho certeza de que a senhorita não se importaria se eu fumasse — disse ele, de modo cativante, estendendo-lho a cigarreira. Mas, recebendo em resposta apenas uma risadinha e uma sacudida de cabeça, acendeu um dos seus Régios para si mesmo.
Mas muito me alegra que o senhor tenha falado em cigarros — disse a moça. — Isso me faz lembrar do quanto eu estava furiosa.
Ah, sim. — Vance sorriu, indulgente. — Mas não quer
me dizer com quem estava tão zangada?
A jovem apertou os olhos ao mirar o cigarro que se achava entre os dedos de Vance.
Agora, não sei — respondeu ela, ligeiramente confusa.
Mas que pena... Talvez fosse comigo que a senhorita estava zangada o tempo todo, hem?
Não, não era com o senhor... Pelo menos, eu não achava que era. Agora, não tenho tanta certeza. A princípio, pensei que fosse alguém num carro grande que passou e...
— E por que estava zangada?
— Ah, isso... Bem, olhe aqui para a frente do meu vestido. — Ela estendeu a saia ao seu redor. — Está vendo esse furo enorme de queimadura? Meu vestido está estragado. E eu o adoro. O senhor não gosta dele? Isto é, se ele não estivesse queimado? Fui eu própria quem o fez... Bem, seja como for, eu disse a mamãe como é que eu queria que ela o fizesse. Ele me fez ficar muito bonitinha. E, agora, não o posso mais usar. — Havia um pesar legítimo na sua voz. — Foi o senhor quem jogou aquele cigarro aceso?
— Que cigarro? — indagou Vance.
.— Ora, o cigarro que queimou meu vestido. Deve estar aqui por perto... Bem, em todo caso, a pontaria foi muito boa, já que não podia ver-me para mirar. E talvez o senhor nem soubesse que eu estava aqui. E isso teria dificultado muito atingir-me, não acha?
— Sim, compreendo aonde a senhorita quer chegar. — Vance estava tão interessado quanto divertido. — Mas, na verdade, minha querida, deve ter sido algum vilão que passou no tal carro... Se é que passou mesmo algum carro.
A moça suspirou.
— Bem, então — murmurou ela, resignada —, acho que não era com o senhor que eu estava furiosa. E, agora, não sei com quem era. E isso me deixa mais furiosa do que nunca. Tenho certeza de que, se fosse com o senhor que eu estivesse furiosa, o senhor procuraria reparar o malfeito.
Digamos, então, que lamento tanto o que houve como se eu tivesse jogado o cigarro... — sugeriu Vance.
— Mas, agora, não sei se o senhor o jogou ou não. Se o senhor não podia ver-me através do muro, como é que poderia eu vê-lo?
— Uma lógica incontestável! — retorquiu Vance, adaptando-se à disposição aparentemente fantasiosa da jovem. — Portanto, é preciso que a senhorita me permita reparar o malfeito ... não importa quem tenha sido o culpado.
— Ora... — falou ela. — Não sei o que quer dizer com isso. — Mas havia em seus olhos um brilho que parecia desmentir-lhe as palavras.
— Quero dizer o seguinte: desejo que a senhorita vá à loja Chareau e Lyons e escolha um dos vestidos mais bonitos que eles tiverem. Um vestido que a faça ficar tão bonitinha como este.
— Oh, não tenho dinheiro para comprar um vestido assim!
Vance tirou do bolso a carteira de cartões de visita e, rabiscando algumas palavras em um deles, enfiou-o por baixo da tampa da bolsa de mão da jovem, que estava caída no capim.
— Leve esse cartão ao Senhor Lyon em pessoa e lhe diga que fui eu quem a mandou lá.
Os olhos da moça brilharam de gratidão e ela não protestou mais.
— Como a senhorita diz, muito acertadamente — prosseguiu Vance —, não podia ver através do muro e, portanto, não há meios de provar que não fui eu quem jogou o cigarro.
— Bem, então isso resolve o assunto, não é? — disse ela, rindo novamente baixinho. — Estou tão contente por ter sido com o senhor que eu estava furiosa por ter jogado o cigarro...
— Eu também estou — garantiu Vance. — E, por falar nisso, espero que a senhorita ponha novamente o mesmo perfume, ao usar o seu vestido novo. Esse perfume é como a primavera... ”Um delicioso cheiro de cidra e laranjeiras”, conforme disse Longfellow em um de seus livros famosos.
— Ah, ele disse isso?
— A propósito, que perfume a senhorita usa? Não o reconheço como nenhum dos perfumes mais populares que há por aí.
— Não sei — replicou a moça. — Acho que ninguém sabe. Não tem nome. Imagine, não se ter nome! Se nós não tivéssemos nome, ficaria tudo uma confusão, não é? O perfume foi feito especialmente para mim pelo George... Mas acho que não devo referir-me a ele como George, falando a desconhecidos. Ele é o Senhor Burns. Sou auxiliar dele na Fábrica de Perfumes In-O-Scente. É uma firma grande. Ele está sempre misturando ingredientes diferentes e experimentando-os. É a profissão dele. E é muito hábil. Só tem o defeito de ser sério demais. Mas não creio que ele tenha misturado cidra neste perfume. Na verdade, não sei como é o cheiro de cidra. Pensei que isso fosse uma coisa que a gente põe no bolo.
— O que se põe no bolo é a casca da cidra, em conserva — explicou Vance. — O óleo de cidra é muito diferente disso. Tem cheiro de erva-cidreira e limão. E, quando tratado com ácido sulfúrico, adquire até o cheiro de violetas.
— Não é maravilhoso? — disse ela. — Ora, o senhor fala igualzinho a George. Ele está sempre dizendo coisas assim. Tenho certeza de que o Senhor Burns sabe de tudo a respeito disso. Algumas vezes, fico muito confusa, na hora de lhe levar os vidros certos de extratos e essências. E ele é tão exigente nesse particular... Algumas vezes, ele chega até a dizer que não sei ferver os seus velhos tubos de ensaio e pipetas. Imagine.
— Mas tenho certeza — garantiu Vance — de que a senhorita lhe levou os frascos certos quando ele preparou este perfume que está usando. E tenho certeza de que um deles continha cidra, embora pudesse ter estado com outro nome... E, por falar em nomes, por acaso o seu é Calipso?
A moça sacudiu a cabeça.
— Não, mas é coisa muito parecida com isso. É Gracie Allen...
Vance sorriu e a conversa da jovem assumiu outra direção.
— Mas o senhor não me vai contar o que estava fazendo do outro lado do muro? Isso é propriedade particular, e eu não entraria ali por nada deste mundo. Não seria direito, seria? E, seja como for, não sei onde há um portão. Mas isto aqui é agradável. Já vim aqui várias vezes, e no entanto é a primeira vez que alguém me atira um cigarro, embora eu tivesse estado diversas vezes neste mesmo lugar. Mas acho que um dia sempre as coisas acontecem pela primeira vez. O senhor já pensou nisso?
— Sim, oh, sim. É uma pergunta profunda. — E Vance riu baixinho. — Mas a senhorita não tem medo de vir sozinha a um lugar tão deserto?
— Sozinha? — e novamente a jovem olhou para a estrada. — Não venho sozinha. Geralmente, venho com um amigo que mora lá para as bandas da Broadway. Chama-se Puttle e trabalha na mesma firma que eu. O Senhor Puttle é vendedor. E o Senhor Burns... Já lhe contei tudo a respeito dele. Ficou muito zangado comigo pelo fato de eu ter vindo aqui esta tarde com Puttle. Mas ele fica sempre zangado quando vou a algum lugar com alguém, principalmente se esse alguém é o Senhor Puttle. Não acha que isso é tolice? — E ela fez um muxoxo de contentamento.
— E onde estaria o Senhor Puttle, no momento? — perguntou Vance. — Não me diga que ele está tentando vender perfumes ao longo das estradas de Riverdale.
— Oh, meu Deus, não! Ele nunca trabalha nas tardes de sábado, nem eu. Acho realmente que o cérebro deve descansar de vez em quando, não acha? Oh, o senhor me perguntou onde está o Senhor Puttle. Bem, vou lhe contar, porque tenho certeza de que ele não se importaria. Ele foi procurar um convento de freiras.
— Um convento de freiras? Céus! Para quê?
— Ele disse que de lá se tem uma vista linda, com bancos, flores e tudo o mais. Mas não sabia se ficava para cima da estrada ou para baixo. Por isso, mandei-o procurar primeiro. Não tive vontade de ir a um convento de freiras, sem saber onde ele ficava. O senhor iria a um convento se não soubesse onde ele fica, principalmente se estivesse com os pés doendo?
Não, acho que a senhorita foi muito sensata. Mas acontece que sei onde o convento fica: é do outro lado, bem longe daqui.
Bem, então, o Jimmy... isto é, o Senhor Puttle, seguiu na direção errada. Ele está sempre se enganando. Ainda bem que eu o mandei procurar primeiro...


CAPITULO III
A ESPANTOSA AVENTURA

(Sábado, 18 de maio — 17:30 horas)
A jovem inclinou-se para diante e olhou para Vance, ansiosa e impulsiva.
— Mas eu me esqueci: estou morrendo de vontade de saber o que os senhores estavam fazendo do outro lado do muro. Espero que tenha sido emocionante. Sou muito romântica, sabe? O senhor é romântico? Isto é, adoro as emoções e o perigo. E isto aqui é tão emocionante e misterioso, principalmente com esse muro alto... Sei que os senhores devem ter vivido alguma aventura especial lá. Toda sorte de emoções e aventuras acontece dentro das paredes. Não é à toa que a gente manda construir muros, não é mesmo?
— Realmente.., — Vance sacudiu a cabeça, com fingida ansiedade. — Geralmente, só se faz um muro quando há um motivo muito bom para isso... Para impedir a entrada de alguém ou para manter pessoas dentro dos muros.
— Vê? Eu tinha razão... E, agora, diga-me — implorou ela —, que aventura emocionante os senhores viveram do outro lado do muro?
Vance tirou uma baforada profunda do seu cigarro.
— Sabe de uma coisa? — disse ele, com fingida seriedade. — Tenho medo de deixar alguém saber do que houve...
A propósito, a senhorita gosta de viver aventuras muito ou pouco emocionantes?
— Oh, elas têm de ser terrivelmente emocionantes, perigosas e sombrias, e cheias de espírito de vingança. Sabe, como um homicídio... Talvez um assassinato passional...
— É isso! — E Vance deu uma palmada no joelho. — Agora, posso contar-lhe tudo... Sei que a senhorita compreenderá. Baixou a voz, transformando-a em um cochicho íntimo e cavernoso. — Quando saltei o muro de maneira tão pouco elegante, eu... eu tinha acabado de cometer um homicídio.
— Maravilhoso! Simplesmente maravilhoso! — Mas notei que a moça se afastou um pouco de Vance.
— Era por isso que eu estava fugindo numa carreira desabalada — prosseguiu Vance.
— Acho que o senhor está gracejando — e a jovem ficou novamente calma. — Mas prossiga...
— Na verdade, foi um ato de altruísmo — prosseguiu Vance, que parecia estar-se divertindo realmente com o conto fantástico inventado. — Fiz isso por um amigo... para salvar um amigo do perigo... por causa de uma vingança.
— Ele deve ter sido um patife. Tenho certeza de que ele merecia morrer e de que o senhor praticou uma ação nobre... como os heróis dos tempos antigos. Eles não esperavam a polícia, a justiça e todas essas coisas. Avançavam, a cavalo, e resolviam a parada, num abrir e fechar de olhos. — A jovem estalou os dedos e não pude deixar de pensar na alusão sarcástica de Markham à solução simplista dada por Vance, na noite anterior, para resolver o caso do preso fugido.
Vance estudou a moça, atônito e sério.
— Ora, de uma criança a gente só pode esperar... — começou ele.
— Quê? — fez ela, e franziu o cenho.
— Nada, nada... — E Vance riu baixinho... — Bem, continuando esta sombria confissão: eu sabia que o tal sujeito era um homem muito perigoso e que a vida do meu amigo estava em perigo. Por isso, vim aqui, esta tarde, e lá, no mato sombrio, onde ninguém podia ver, eu o matei... Alegra-me imensamente a senhorita achar que agi corretamente.
Sua história inventada, baseada na sua conversa com Markham na noite anterior, correspondia bem ao desejo inesperado de uma aventura emocionante, expresso pela jovem.
— E qual era o nome do assassinado? — perguntou ela. — Gostaria que fosse um nome horrível. Eu sempre digo que as pessoas têm os nomes que merecem. É como na numerologia... só que é diferente. Quando a gente tem certo número de letras no nome, não é como ter outro número de letras, é? Significa, também, alguma coisa. Delpha me disse.
— Que nomes lhe agradam mais? — indagou Vance.
— Bem, vejamos... Burns é um nome bonito, não acha?
— Sim, acho — E Vance sorriu de maneira agradável. — Por falar nisso, é um nome escocês...
— Mas George não é escocês — protestou a moça, indignada. — Ele é até muito generoso.
— Não, não — apressou-se Vance a tranqüilizá-la. — Quando disse escocês, eu não quis dizer usurário. Em escocês, essa palavra significa ”riacho” ou ”córrego”...
— Ah, água! Isso é diferente. Eu tinha razão! — disse ela, num chilreio. Depois, confirmou, com um movimento de cabeça. — Água! É só o que George consome! Ele nunca toma bebidas alcoólicas. Diz que a bebida alcoólica lhe atrapalha o olfato e o impede de distinguir bem os perfumes.
— Distinguir perfumes?
— Aahn. George está sempre às voltas com perfumes... É a profissão dele. Experimenta perfumes para saber qual será bem vendido, qual será capaz de fazer uma mulher virar uma conquistadora e qual é tão ruim que só serve para sabonete de hotel, Ele é terrivelmente hábil nesse campo. Chegou até a inventar um perfume novo, misturado apenas por ele. E o Senhor Doolson — o nosso patrão — deu nome ao novo produto para George. Bem, não exatamente para George, mas o senhor sabe o que quero dizer.
O orgulho lhe brilhava nos olhos.
— E... oh! — prosseguiu ela, depressa. — George tem cinco letras no sobrenome... Falo sério, basta contá-las... B-U-R-N-S. E eu também tenho cinco letras no meu sobrenome. Não é engraçado? Mas isso significa algo muito importante. É... É ciência. Vibro com o número cinco. Mas o seis me traz muito azar. Sou alérgica — é assim que Delpha diz — ao número seis. Isso é muito científico, sabe?
— O sobrenome do Senhor Puttle tem seis letras — disse Vance, com um olhar maroto para a jovem.
— Ê verdade. Já pensei nisso... Oh, bem... Mas me esqueci... Qual era o nome do homem que o senhor matou tão valentemente?
— O sujeito tinha um nome muito desagradável. Chamavam-no de Benny Buzzard (Abutre).
A cabeça da moça subiu e desceu vigorosamente, demonstrando completa compreensão.
— Sim, é um nome horrível. Tem... deixe ver... sete letras. Oh! É um número místico. Isso é quase destino!
— Bem, ele foi mandado para a prisão, para cumprir uma pena de vinte anos de cadeia. — E Vance reiniciou a sua engenhosa história. — Mas tramou uma fuga e conseguiu escapar ontem, e voltou para Nova York a fim de matar esse meu amigo.
— Oh, então amanhã vão aparecer manchetes em todos os jornais sobre o fato de o senhor o ter assassinado
— Céus! Espero que não apareçam — E Vance fingiu-se dominado por uma grande preocupação. — Sinto que pratiquei uma boa ação, mas espero também, é claro, que não descubram o que fiz. E tenho certeza de que a senhorita não contaria a ninguém, não é mesmo?
— Oh, claro que não — garantiu a moça.
Vance soltou um suspiro exagerado e levantou-se lentamente.
— Bem, agora preciso ir me esconder — falou ele — antes que a polícia venha a saber do meu crime. Mais uma hora e quem sabe? Talvez eles saiam à minha procura.
— Oh, os policiais são uns trouxas — disse ela, com um beicinho — Estão sempre pondo os outros em apuros. Sabe? Se todos fossem bons, não precisaríamos de policiais, não é?
— É...
— E, se não houvesse policiais, não precisaríamos dar-nos ao trabalho de ser bons, não é?
— Céus! — murmurou Vance. — A senhorita, por acaso, é algum filósofo disfarçado?
A jovem pareceu atônita.
— Ora, isto não é um disfarce. Eu só usei disfarce quando... Quando era menina. Fui a uma festa fantasiada de fada.
Vance sorriu em tom de admiração.
— Tenho certeza — disse ele — de que foi uma fantasia completamente dispensável. A senhorita jamais precisará fantasiar-se, minha querida, para passar como uma fada encantadora... Quer apertar os ossos de um vilão barato?
Ela colocou a mãozinha na dele.
— O senhor, na verdade, não é um vilão. Ora, limitou-se a matar um facínora. E muitíssimo obrigada pelo lindo vestido novo — acrescentou ela. — O senhor falou sério quando me mandou buscá-lo?
— Falei seriíssimo. — E a sinceridade da voz de Vance dissipou qualquer dúvida que pudesse restar no espírito da jovem. — E boa sorte com o Senhor Puttle... e com o Senhor Burns.
A moça fez um aceno solene enquanto caminhávamos ao longo da estrada poeirenta na direção do nosso carro. Vance estava ocupado em acender outro cigarro, e quando íamos fazendo a curva da estrada olhei para trás. Havia um rapaz guapo diante da jovem, e compreendi que o tal Puttle, o vendedor de perfumes, voltara da sua busca infrutífera ao convento de freiras.
— Que criatura espantosa! — murmurou Vance, enquanto subíamos no carro e partíamos. — Acho mesmo que ela acreditou, em parte, na minha dramatização dos temores do sargento e nas minhas zombarias contra Markham. Ela é muito ingênua, Van. Ou, talvez, de uma natureza basicamente astuta, superabundante em romance, lutando para viver nas nuvens, neste mundo sórdido. E vivendo do fabrico de perfumes. Que combinação incrível de circunstâncias! Tudo misturado com a primavera... e visões de heroísmo e de amor jovem!
Olhei para ele, com ar indagador.
— Completamente — repetiu ele. — Isso estava indicado de forma definitiva. Mas, infelizmente, acho que os esforços de conquista do Senhor Puttle, da Broadway, vão ser baldados Como você notou, ela usava o perfume sem nome do Senhor Burns, mesmo quando passeando por breves instantes, no interior, com o Senhor Puttle. Levando em conta todos os sinais, considero o misturador e experimentador dos aromas sutis das arábias como favorito disparado para conquistar a Taça do Amor.

CAPITULO IV
O KESTAURANTE DOMDANIEL
(Sábado, 18 de maio — 20:00 horas)

O restaurante Domdaniel, localizado na rua 50, Oeste, perto da Sétima Avenida, atraíra uma freguesia geral e variada durante muitos anos. A reforma do velho casarão no qual o restaurante era instalado fora feita com muito gosto, e grande parte do velho ar de solidez e de durabilidade tinha sido mantida.
De cada lado da larga entrada até às extremidades do prédio corria um terraço estreito e descoberto, onde se viam vasos pseudogregos de alfenas bem aparadas. Na extremidade oeste da casa um beco de serviço separava o restaurante do prédio vizinho. Do lado leste havia uma alameda pavimentada, de aproximadamente três metros de largura, passando sob um alpendre coberto de trepadeiras para a garagem, que ficava nos fundos. Um arranha-céu comercial, na esquina da Sétima Avenida, terminava nessa alameda.
Eram quase oito horas da noite quando chegamos, naquela noite suave de maio. Acendendo um cigarro, Vance espiou para as sombras do alpendre e para a área mal iluminada que ficava mais além. Depois, caminhou com passo apressado alguns metros, pela estreita passagem, e contemplou as janelas cobertas de trepadeiras e a porta lateral, quase oculta da rua. Alguns momentos depois, retornou para junto de mim, no passeio, e voltou sua atenção, aparentemente com indiferença, para a frente do prédio.
— Ah — murmurou ele. — Lá está a entrada do escritório misterioso do Senhor Mirche, que despertou tanta atenção no sargento. Talvez uma janela ampliada, quando o casarão foi reformado. Simplesmente utilitário...
Era, como Vance observou, uma abertura de porta despretensiosa, dando diretamente para o terraço estreito. E duas escadas de madeira, reforçadas, levavam para o passeio. Em cada lado da porta via-se uma pequena janela — ou, diria eu, uma abertura semelhante a uma sacada —, seguramente fechada por uma grade de ferro batido.
— O escritório tem uma janela maior na parte lateral, da qual se domina a alameda forrada de mosaicos — falou Vance. — E também essa janela é fechada por uma grade. A luz que vem de fora deve ser um tanto insuficiente, quando, como o sargento parece pensar, o Senhor Mirche está lá dentro dedicado às suas tramas nefastas.
Para surpresa minha, Vance subiu pela escada de madeira até o terraço e espiou com ar indiferente, por uma das estreitas janelas, para dentro do escritório.
— Por dentro, o escritório parece ser tão honesto e em ordem quanto se apresenta aqui de fora — informou ele. — Acho que o nosso desconfiado sargento tem sido vítima de pesadelos...
Virou-se e olhou para a pensão, que ficava do outro lado da rua. Duas janelas próximas, no segundo andar, localizadas diretamente em frente à pequena porta de canto do Domdaniel, achavam-se às escuras.
— Pobre Hennessey! — suspirou Vance. — Atrás de um daqueles quadrados sombrios de trevas ele está vigiando e tendo esperanças. Ele simboliza toda a humanidade... Bem, vamos deixar de perder tempo. Tenho visões amorosas de um Meando de vitela à Macedônia. Espero que o mestre-cuca não tenha perdido nada da sua habilidade desde a última vez em que estive aqui. Naquela época, esse prato, feito por ele, era sublime...
Caminhamos até à entrada principal e fomos recebidos no luxuoso saguão de recepção pelo untuoso Senhor Mirche, em pessoa. O homem pareceu muito contente de ver Vance, ao qual se dirigiu pelo nome, e nos entregou ao chefe dos garçons, recomendando pomposamente ao nosso acompanhante que nos dispensasse o máximo de consideração e de atenção.
O interior redecorado do Domdaniel possuía uma aparência muito mais moderna do que o exterior. Apesar disso, grande parte do encanto do passado ainda transparecia nos painéis de madeira entalhada, nos corrimões trabalhados da escada e em uma lareira larga que fora deixada intacta em um dos lados da enorme sala principal.
Não podíamos ter escolhido uma mesa melhor do que aquela à qual fomos levados. Ficava perto da lareira, e, como as mesas ao longo das paredes eram ligeiramente elevadas, tínhamos uma vista livre de todo o salão. Mais para a nossa direita, um tanto distante, ficava a entrada principal, e à nossa esquerda situava-se o estrado da orquestra. Defronte a nós, do outro lado do salão, um arco levava ao corredor; e para além dele, quase como que recortada na soleira da porta, podíamos ver a escada larga e atapetada que levava para o andar de cima.
Vance olhou de relance por todo o salão, sem fixar muito o olhar, e depois voltou a atenção para o trabalho de encomendar o jantar. Feito isso, meu companheiro se recostou na sua cadeira e, acendendo um cigarro, relaxou todo o corpo, instalado confortavelmente. Mas notei que, por baixo das pálpebras semicerradas, Vance perscrutando todas as pessoas que se se achavam ao nosso redor. De repente, endireitou o corpo na cadeira e, inclinando-se na minha direção, murmurou:
— Arre! Acho que estou ficando velho e que meus olhos estão-me enganando. Olhe à minha direita, perto da entrada. É a espantosa jovem do cheiro de cidra. E está-se divertindo muito. Acha-se na companhia de um namorado muito bem vestido. Não sei se o jovem é o que a acompanhava na excursão a Riverdale ou se é o tal Burns, o rapaz sério e abstêmio. Seja quem for, está sendo muito atencioso para com ela, e acha-se tremendamente satisfeito consigo mesmo.
Reconheci imediatamente o elegante rapaz que eu vim do relance quando íamos fazendo a curva da avenida Palisade, quando voltávamos para o carro. Informei Vance do que, sem dúvida nenhuma, era o jovem Puttle.
— Isso não me surpreende nem um pouco — foi sua resposta. — É evidente que a moça está seguindo a técnica milenar e sobejamente comprovada como eficaz. Puttle receberá uma porcentagem esmagadora dos seus favores, até chegar o momento realmente importante da decisão final. Aí, creio eu que o eleito será Burns, que hoje é desprezado. — E riu baixinho. — Os truques do amor são sempre os mesmos. Oh, se o próprio Burns estivesse em cena aqui esta noite, afastado dela, roendo-se de ciúmes e estourando de raiva! — E sorriu, divertido.
O olhar de Vance tornou a vagar pelo salão, enquanto ele puxava preguiçosamente fumaça do seu cigarro. Dentro em pouco, seu olhar pousou em um homem que se achava sozinho a uma pequena mesa, no canto mais distante.
— Sabe, acho que encontrei o nosso jovem Burns, a hipotenusa dolorosa do meu triângulo imaginário. Ele está sozinho. A idade confere com a dele. É um rapaz sério. Senta-se a uma mesa colocada no ângulo exato que lhe permita observar a sua fujona ninfa das matas e seu companheiro. Observa-a atentamente, e parece aborrecido e tão enciumado, que chega até a pensar em assassinato. Não tem apetite para comer o que tem diante de si. Sobre sua mesa não há vinho nem bebidas alcoólicas. E está... fulo de raiva!
Deixei meu olhar seguir o de Vance, enquanto este falava, e observei o jovem solitário. Tinha o rosto sério e um tanto agressivo. Apesar do senso de humor denotado pelas suas sobrancelhas, viradas em um ângulo para cima, sua testa larga dava a impressão de considerável profundeza de pensamentos e de capacidade de julgamento acurado. Seus olhos cinzentos eram bem afastados um do outro e de cativante candura, e tinha o queixo sensível, embora firme. Trajava-se com apuro, embora com simplicidade, em forte contraste com a grandeza exibicionista da forma de trajar do Senhor Puttle.
Durante um intervalo do espetáculo de pista, o jovem solitário levantou-se um tanto hesitante da sua cadeira e encaminhou-se, com passos largos e resolutos, até à mesa ocupada pela Senhorita Allen e seu companheiro. Os dois o cumprimentaram sem entusiasmo. O recém-chegado, franzindo a testa de modo desagradável, não fez nenhuma tentativa para ser cordial.
A jovem levantou o cenho com uma altivez teatral, totalmente em desacordo com a expressão maliciosa das suas feições. Os modos do seu acompanhante eram indiferentes e dotados de palpável condescendência. Seu papel era o de um homem vitorioso que trata com o inimigo vencido e atormentado. Seu efeito sobre Burns — se é que era Burns — deve ter sido tremendamente agradável para ele. Isto, juntamente com o falso desdém da jovem, intensificou ainda mais o mau humor do Intruso. Este fez um gesto desajeitado de derrota e, virando-se, voltou desanimado para sua mesa. No entanto, notei que a Senhorita Allen lançou vários olhares abertamente na sua direção, o que deixava entrever que ela estava longe de ser indiferente para com o rapaz, como fingia ser.
Vance observava o pequeno drama, entre interessado e encantado.
— E agora, Van, — falou ele — o quadro do amor jovem está completo. Ah, o coração feminino, eternamente sádico e, no entanto, leal...!
Quinze ou vinte minutos depois, Mirch, sorrindo de canto a canto da boca e fazendo mesuras, entrou no refeitório, vindo do corredor da entrada principal, e seguiu adiante, rumo aos fundos do salão, até uma pequena mesa que ficava atrás do estrado da orquestra, onde uma das artistas se achava sentada. Tratava-se de uma mulher loura e de uma beleza berrante, que, segundo eu sabia, era a famosa cantora Dixie Del Marr.
Dixie saudou Mirche com um sorriso que parecia mais íntimo do que seria de se esperar que o fosse entre empregada e empregador. Mirche puxou a cadeira que se achava diante da mulher e sentou-se à mesa. Fiquei um tanto surpreso ao notar que Vance os observava atentamente, e senti que não se tratava apenas de mera curiosidade inconseqüente da sua parte.
Tornei a voltar o olhar para a mesa da cantora. Dixie Del Marr e Mirche tinham dado início ao que parecia ser um bate-papo confidencial. Achavam-se inclinados para diante, na direção um do outro, e era evidente que desejavam evitar serem ouvidos pelos que se achavam perto deles. Mirche frisava algum ponto, e Dixie Del Marr concordava, com um aceno afirmativo de cabeça. Depois, a Senhorita Del Marr fez uma pergunta, à qual o outro, por sua vez, respondeu com um aceno compreensivo de cabeça.
Depois de alguns minutos dessa conversa aberta e, no entanto, sigilosa, ambos recostaram-se em suas cadeiras e Mirche deu uma ordem a um garçom que passava. Alguns momentos depois, o garçom voltava com dois copos finos e compridos de um líquido cor-de-rosa.
Muito interessante — murmurou Vance. — Fiquei curioso...


CAPITULO V
UM ENCONTRO
(Sábado, 18 de maio — 21:30 horas)

Foi pouco depois disto que notei que a jovem Gracie Allen se levantava alegremente da sua cadeira, ao lado do radiante Senhor Puttle. Fez-lhe um aceno acanhado enquanto deslizava ao longo do restaurante, como uma gazela cheia de graça.
Céus! — falou Vance, rindo baixinho. — A espantosa ninfa dos bosques está vindo na nossa direção. Se ela me reconhecer, a história que inventei esta tarde vai cair em pedaços sobre minha cabeça mentirosa...
Enquanto meu companheiro falava, ela o observava. Depois, jogou as mãos para o alto, em um gesto de surpresa e encantamento, e veio rumo à nossa mesa.
— Que surpresa agradável — falou ela. Depois, censurou Vance, em voz mais baixa: — O senhor é um assassino muito atrevido. Terrivelmente ousado. Não sabe que alguém pode vê-lo aqui? Um garçom, por exemplo, ou outra pessoa qualquer.
— Ou a senhorita — sorriu Vance.
— Oh, mas eu não contaria a ninguém. Não se lembra? Eu prometi não contar. — A moça sentou-se com espantosa rapidez e riu baixinho, em tom musical. — E eu sempre digo que as pessoas devem cumprir as promessas feitas, se é que sabe a que me refiro... Mas meu irmão é esquisito nesse particular. Ele jamais cumpre as promessas que faz, embora cumpra muitas das outras coisas que se propõe a fazer. E algumas vezes ele se mete em sérios apuros por não cumprir aquilo que combina. Está sempre encrencado. Talvez seja porque é tão ambicioso. O senhor é ambicioso?
— Por falar em promessas — falou Vance — a senhorita cumpre todas as promessas que faz ao Senhor Burns?
— Nunca fiz nenhuma promessa ao George — garantiu ela a Vance, com um rubor de confusão aumentando em suas feições maliciosas. — Que foi que o fez pensar isso? Mas ele tem feito tudo para me fazer prometer-lhe alguma coisa. E fica terrivelmente zangado comigo. Está zangado esta noite. Mas, é claro, ele não demonstraria isso diante de tanta gente. George é tão cavalheiresco... Jamais se sabe em que ele está realmente pensando. Mas ninguém sabe, também, em que eu estou pensando. Só que não sou cavalheiresca. Ó Senhor Puttle diz que sou apenas bonitinha e atraente. E ele me conhece há muito tempo. E acho que é muito melhor ser bonitinha e atraente do que ser cavalheiresca. O senhor não concorda comigo?
Vance não fez nenhum esforço para ocultar sua hilaridade.
— Claro que concordo — respondeu ele. — E, a propósito, onde está o cavalheiresco Senhor Burns esta noite?
A moça deu uma risadinha abafada, embaraçada.
— Está sentado do outro lado do salão. — Virou graciosamente a cabeça, para indicar o jovem solitário que antes já nos atraíra a atenção. — E parece, também, sentir-se muito infeliz. Não consigo imaginar por que ele veio aqui esta noite... Sei que George nunca veio a este restaurante. Quer saber de um segredo? Pois vou-lhe contar, mesmo que o senhor não queira ouvir. Eu também estou vindo aqui hoje pela primeira vez. Mas isto aqui está-me agradando. O senhor não está gostando? Isto é muito grande e barulhento. E há tanta gente... O senhor não gosta de ver muita gente em um lugar só? Acho que aquela gente é muito agradável. Mas receio que George não esteja gostando do ambiente. Talvez seja por isso que está com aquele ar tão infeliz.
Vance não a interrompeu. Meu companheiro parecia estar-se divertindo com a inconseqüente saraivada de palavras da jovem.
— E... oh! — exclamou ela, como se lhe tivesse ocorrido algum pensamento de importância transcendental. — Esqueci-me de dizer-lhe: sei quem o senhor é! Que acha disso? O senhor é Philo Vance, não é? Não acha que sou terrivelmente esperta por saber disso? Aposto que o senhor não sabe como foi que descobri. Olhei no cartão de visitas que o senhor me deu hoje à tarde e lá estava o seu nome! Isto é, o Senhor Puttle olhou no seu cartão e disse que aquele devia ser o seu nome. E também ficou zangado um instante, quando lhe contei o caso do vestido novo que vou buscar na segunda-feira. Mas logo se acalmou novamente. Disse que, se o senhor era tão trouxa, ele não tinha nada com isso, e que gente como o senhor nasce a todo instante. Não sei o que quis dizer com isso. Mas foi assim que descobri o seu nome.
A moça mal fazia pausas para respirar.
— E... ohl O Senhor Puttle me contou mais alguma coisa a seu respeito. Uma coisa muito emocionante. Disse que o senhor era uma espécie de detetive e que era o senhor quem era elogiado por todo o trabalho duro que os pobres policiais fazem. Isso é mesmo verdade?
E ela nem esperou resposta.
— Em certa ocasião, meu irmão quis entrar para a polícia, porém não entrou. Mas não importa, pois acho que ele não tem altura suficiente para ser um polícia de verdade. Não é alto como o Senhor Puttle. É pequeno, como eu e George. E nunca vi um policial pequeno. O senhor já viu? Mas talvez ele pudesse ter sido detetive. Aposto em que ele nunca pensou nisso. Ou talvez também não haja detetives de baixa estatura. Alguém pode ser detetive, sendo pequeno demais? Ou talvez o senhor não saiba.
Vance riu, muito divertido, olhando dentro dos olhos da moça, como se desconcertado pelas suas confusas divagações.
— Tenho conhecido alguns detetives de baixa estatura — disse-lhe Vance.
— Bem... Em todo caso, acho que meu irmão não sabia disso. Ou talvez não quisesse ser detetive. Pode ser que ele desejasse ser policial apenas porque os policiais usam uniforme... Oh, senhor Vance? Acaba de me ocorrer outra coisa. Aposto em que sei que o senhor não tem medo de estar aqui esta noite. Eles não podem prender um detetive! E também não podem prender um policial, podem? Se pudessem, quem ficaria para prender os homens fora da lei? E, por falar no meu irmão, ele também está aqui esta noite. Está aqui toda noite...
— Ah! — murmurou Vance. — E onde é que ele está sentado?
— Oh, não quero dizer que ele esteja aqui no restaurante — declarou a moça, ingenuamente. — Ele trabalha aqui.
— Não diga! Que é que ele faz?
— O serviço dele é muito importante.
— Ele trabalha no Domdaniel há muito tempo?
— Ora, trabalha aqui há mais de seis meses! É muito tempo, em se tratando do meu irmão. Parece que ele nunca foi muito de trabalhar. Acho que é um sonhador. Em todo caso, alega que nunca lhe dão o merecido valor. E foi só hoje que ele disse que vai ter um aumento de salário. Mas receia que seu patrão também não lhe dê o devido valor.
— E que é que seu irmão faz aqui? — indagou Vance.
— Trabalha na cozinha. E lavador de pratos. É por isso que seu trabalho é tão importante. Imagine, se um restaurante grande como este não tivesse um lavador de pratos! Não seria horrível? Ora, nem sequer se poderia fazer uma refeição. Como poderiam servir a comida à gente, se os pratos estivessem imundos?
— Devo confessar que a senhorita tem razão — admitiu Vance. — Seria uma situação muito embaraçosa. Como você diz, o trabalho do seu irmão é muito importante. E, de passagem, diga-se que a senhorita é a jovem mais deliciosamente espantosa e mais perfeitamente natural que já conheci na minha vida.
Ficou evidente que o elogio foi desperdiçado com ela, pois a moça voltou imediatamente ao assunto do seu irmão.
— Mas talvez ele deixe o emprego hoje. Disse que deixaria, se não obtivesse aumento. Mas acho que, na verdade, ele não devia deixar o emprego, o senhor não acha? E vou dizer isto a ele... Aposto que o senhor não sabe aonde eu vou agora.
— Espero que não vá à cozinha.
— Ora, o senhor é mesmo um bom detetive. — Os olhos da moça, pestanejando, arregalaram-se. — É para lá que eu iria, mas Philip, meu irmão, afirmou que eles não me deixariam entrar na cozinha. Mas vou-me encontrar com ele na escada da cozinha. Philip disse que eu estava apenas fazendo-me de importante quando lhe disse que viria aqui esta noite. Imagine! Ele não quis acreditar em mim. Portanto, eu disse: — Então, você vai ver. — E ele retrucou: — Se você for mesmo ao Domdaniel, vá ao meu encontro na escada da cozinha, às dez horas da noite. — E é para lá que eu vou agora. Meu irmão tinha tanta certeza de que eu não viria aqui, que prometeu que, se eu lhe provasse que estava aqui, indo ao seu encontro, não sairia do emprego, mesmo que não lhe dessem aumento de salário. E sei que a mamãe quer que ele continue no emprego. Portanto, tudo sairá bem... Oh, que horas são, Senhor Vance? Vance consultou de relance o seu relógio.
— Faltam cinco minutos para as dez horas.
A jovem levantou-se tão de repente quanto se sentara.
— Não me importo muito com o bobo do Philip — falou ela. — Mas quero fazer mamãe feliz.
Enquanto Gracie se apressava rumo à distante passagem em arco, Burns, o rapaz solitário, se levantou e a seguiu rapidamente para o corredor. Quase simultaneamente, os dois passaram pela tapeçaria de damasco que havia na soleira da porta e desapareceram de vista.
Vance notara o jovem correr atrás da Senhorita Allen e fez um aceno benevolente de satisfação.
— Pobre e infeliz rapaz! — observou ele. — Agarrou a sua única oportunidade fugidia de falar a sós com sua amada. Espero que ele não cometa a imprudência de ralhar com ela... Mas, seja o que for que ele fizer, a deusa Afrodite já lhe está sorrindo de forma favorável, embora ele não lhe reconheça a fisionomia sorridente.
Voltei minha atenção, com indiferença, para a mesa onde Mirche e a Senhorita Del Marr tinham estado sentados. No entanto, a cantora havia desaparecido, e Mirche perscrutava de forma complacente o salão de refeições. Depois, ele seguiu pelo corredor, rumo à entrada principal.
Ao chegar à nossa mesa, parou um instante, fez uma mesura pomposa, para se certificar de que não nos faltava nada, e Vance convidou-o para sentar-se conosco.
Não havia nenhuma característica que distinguisse Daniel Mirche de forma especial. O homem era do tipo comum, esse misto de político e de dono de restaurante, grande e um tanto exibicionista. Era, ao mesmo tempo, agressivo e bajulador, com maneiras de polidez superficial. Seus cabelos ralos eram ligeiramente grisalhos e seus olhos tinham um peculiar matiz esverdeado.
Vance conduziu a conversa com facilidade, abordando vários aspectos relacionados com o interesse de Mirche no restaurante e sua gerência. Seguiu-se uma discussão a respeito de vinhos e suas safras. Momentos depois, Vance lançara-se a um dos seus assuntos prediletos: isto é, os conhaques raros do distrito oeste central da França, os distritos de Grande Champagne e Pequeno Champagne e os vinhedos em torno de Mainxe e Archiac.
Enquanto eu perpassava os olhos pelo salão, a esmo, notei que o jovem Burns voltara para sua mesa. E pouco depois a moça reaparecia no arco da porta do lado oposto, indo diretamente rumo ao Senhor Puttle. Nem sequer olhou de relance na nossa direção; e, pela expressão de desanimo do seu rosto, só pude supor que ela falhara no seu objetivo.
No entanto, não me ocupei demasiado tempo com essas reflexões. Minha atenção foi atraída pela entrada furtiva e quase felina de um homem magro e alto, que seguiu, como se não quisesse atrair atenção, para uma pequena mesa no canto oposto do salão. Essa mesa, não muito distante daquela em que se encontrava sentado o desalentado jovem Burns, já estava ocupada por dois homens, que se achavam de costas para o salão; e, quando o recém-chegado ocupou a cadeira vaga diante dos dois, eles se limitaram a fazer um aceno de cabeça.
Meu interesse por esse personagem alto e magro baseava-se no fato de que ele me fazia lembrar de fotografias que eu tinha visto de um dos facínoras mais notórios da época, um tal Owen. Corriam os boatos mais desagradáveis a respeito do tal homem, e houvera rumores de que ele era o planejador — ou, como se diz vulgarmente na gíria jornalística desse tipo de reportagens, ”o cérebro” por trás de certas organizações, de vulto considerável, de meliantes. Acreditava-se que ele representava um papel de direção entre os fora-da-lei, e que esse papel era tão importante que o homem conquistara o apelido de ”Coruja”.
Havia uma característica notável implícita nas suas feições super-refinadas. Uma característica maligna, sem dúvida, mas que deixava entrever potencialidades muito vastas e talvez até heróicas. O homem se formara com louvor em uma grande universidade e me trouxe à mente um lindo retrato de Robespierre que eu vira um dia: lá estava a mesma expressão maquiavélica de inteligência e de sagacidade. O homem tinha cabelos e olhos escuros, mas uma pele sem cor, como se fosse de cera. A impressão dominante que ele dava era de uma dureza inflexível: era fácil imaginá-lo desempenhando as funções de um carrasco com um sorriso indiferente e cruel nos lábios finos.
Estou descrevendo este homem de maneira tão minuciosa porque ele deverá representar um papel de vital importância no estranho desenrolar do caso que estou contando. Mas, naquela noite, eu não podia mesmo por um salto fantástico de imaginação, tê-lo ligado, fosse como fosse, com a quase incrível e descuidada Gracie Allen. E, contudo, esses dois caracteres tão diferentes deveriam cruzar o caminho um do outro, em breve, da maneira mais espantosa.
Eu já estava para afastar esse homem da minha mente, quando notei um tom de voz fora do comum na fala de Vance, enquanto ele batia papo com Mirche. Com aquela fleuma peculiar e ao mesmo tempo alerta, Vance estava olhando fixamente para a mesa situada no canto mais distante, onde os três homens se achavam sentados.
— A propósito — falou ele a Mirche, um tanto abruptamente. — Aquele, sentado lá, perto da coluna do canto, não é o famoso ”Coruja” Owen?
— Não conheço o Senhor Owen — respondeu Mirche, suavemente. No entanto, virou-se ligeiramente, com natural curiosidade, na direção apontada por Vance. — Mas poderia ser — acrescentou ele, depois de um instante de exame. — Até que é parecido com as fotografias que tenho visto do Senhor Owen... Se quiser, posso ir-me certificar.
— Oh, não, não é preciso — falou Vance. — Mas é muita amabilidade sua. Mas não é coisa importante, sabe?
Os componentes da orquestra iam voltando aos seus lugares, e Vance empurrou sua cadeira para trás.
— Tive uma noitada muito agradável e edificante — disse ele a Mirche. — Mas, agora, preciso mesmo ir andando.
Os protestos delicados de Mirche pareceram bastante legítimos, quando ele nos sugeriu que ficássemos pelo menos até depois do número de Dixie Del Marr, que seria o próximo.
— É uma excelente cantora — acrescentou Mirche, com entusiasmo. — E uma mulher de raro encanto pessoal. Ela faz seu número às onze da noite, e já está quase na hora.
Mas Vance alegou assuntos urgentes que ainda lhe exigiam a atenção naquela noite e pôs-se de pé.
Mirche exprimiu seu profundo pesar e nos acompanhou até à entrada principal, onde nos deu um efusivo boa noite.

CAPITULO VI
O CADÁVER
(Sábado, 18 de maio — 23:00 horas)

Descemos a escada de degraus largos de pedra, até à rua, e seguimos para leste. Na Sétima Avenida, repentinamente, Vance fez sinal para um táxi e deu ao motorista o endereço da residência do procurador distrital.
— Nesta altura, Markham já deve ter voltado da sua ronda de tarefas políticas — disse Vance, enquanto seguíamos para o centro da cidade. — Sem dúvida, ele me criticará impiedosamente pela minha aventura noturna oca. Mas, não sei por que, senti uma inquietação estranha esta noite nos salões espaçosos do Domdaniel, depois de ouvir as observações pouco recomendáveis do sargento a respeito do restaurante. O restaurante continua sendo como sempre foi. No entanto, por que minha mente era assombrada por pensamentos sinistros e de mau agouro, enquanto eu remexia no Meando e bebericava o Château Haut-Brion. Acho que, com o correr dos anos, os tentáculos envolventes da desconfiança estão-se fechando sobre minha natureza, outrora confiante. Ai de mim...!
O táxi parou de chofre diante de um pequeno prédio e fomos imediatamente para o apartamento do procurador distrital.
Markham, usando paletó esporte e chinelos, recebeu-nos com divertida surpresa.
— Espero que não seja outro mensageiro afobado com más notícias.
— Nada de Hermes nem de caduceus. Você está sendo acossado pelos arautos?
— Mais ou menos isso — retorquiu Markham, com uma careta. — O sargento aqui acaba de me trazer uma mensagem.
Eu não notara a presença de Heath, mas agora o vi, de pé, perto de uma janela, na sombra. O sargento avançou com um aceno amigável de cabeça.
— Caramba, sargento — falou Vance. — Que veio fazer aqui?
— Vim por causa da mensagem de que o Senhor Markham estava falando, Senhor Vance. Uma mensagem de Pittsburgh.
— São más notícias?
— Bem, não são exatamente o que se poderia chamar de boas — queixou-se Heath. — Acho que são até bem ruins.
— Não diga...
— Acho que não errei muito nas deduções e previsões que fiz ontem à noite a respeito do caso... O capitão Chesholm, de Pittsburgh, acaba de mandar-me a notícia de que um dos seus motociclistas localizara um carro viajando sem luzes em uma estrada secundária, e que, quando o carro diminuiu a marcha para fazer um curva apertada, um sujeito que viajava no banco traseiro deu dois tiros contra o policial. O carro fugiu, seguindo para leste, rumo à estrada principal.
— Mas, sargento, por que esse pequeno tiroteio na Pennsylvania perturbaria a sua excelente voz de tenor?
— Vou-lhe dizer por que. — Heath tirou o charuto da boca. — O guarda pensou ter reconhecido Benny, o Abutre!
Vance não se deixou impressionar.
— Nas circunstâncias em que se deu o fato, ele pode ter-se enganado redondamente.
— Foi exatamente o que eu disse ao sargento. — Markham fez um aceno de cabeça, aprovando. — Nas próximas semanas, vamos receber comunicados de que Pellinzi foi visto em todos os Estados deste país.
— Talvez — insistiu Heath. — Mas o modo como o tal carro estava viajando encaixa exatamente na minha idéia. O Abutre já poderia ter chegado a Nova York hoje cedo, se ele tivesse vindo diretamente de Nomenica. Mas, fazendo um círculo até a Pennsylvania e vindo de lá rumo oeste, talvez ele pretendesse, com isso, evitar muitas dificuldades.
— Pessoalmente — falou Markham — estou convencido de que aquele sujeito se manterá afastado de Nova York. — Seu tom de voz era equivalente a uma crítica à ansiedade do sargento.
Heath sentiu a repulsa.
— Espero que não o tenha importunado, vindo aqui esta noite, chefe. Eu sabia que o senhor tinha dois compromissos hoje, e pensei que ainda estivesse de pé.
Markham suavizou o tom de voz.
— O fato de você ter vindo aqui não tem importância — falou ele, para tranqüilizar o defensor da lei. — Tenho sempre prazer em vê-lo, sargento. Sente-se e sirva-se da garrafa... Talvez o próprio Senhor Vance esteja à procura de uma platéia para contar a ela a respeito das sobrancelhas arqueadas de Mirche e de outros pormenores horrendos da sua estada no Domdaniel... Então, Vance? Você tem alguma história de duendes com que nos regalar antes de irmos para a cama?
Heath instalara-se em uma cadeira e serviu-se de uma bebida. Vance também estendera a mão para pegar o seu conhaque predileto.
— Sinto muito, Markham, velho amigo — disse ele, na sua voz arrastada. — Não tenho nenhuma fantasia para contar... Nem mesmo uma a respeito de um carro misterioso em fuga. Mas tentarei igualar a história inspirada do sargento com um conto sobre uma ninfa dos bosques e um experimentador de perfumes; de uma Lorelei que canta de um pódio em vez de cantar de um penhasco rochoso. De um dono esperto de um restaurante e de um escritório vazio, cercado de grades misteriosas; de uma sacada coberta de trepadeiras e de uma coruja sem penas... Você poderia suportar ouvir o cântico do meu poema?
Estou com resistência baixa.
Vance estendeu as pernas diante de si.
— Bem, com licença, então — começou ele. — Nesta noite, uma encantadora jovem, uma garota espantosa, nos fez companhia à nossa mesa, durante alguns minutos. Uma criança, cujo cérebro é uma roda-viva e gira como um pião, irradiou as fagulhas mais coloridas; porém, seu espírito, é tão ingênuo quanto o de uma criança.
— A tal ninfa dos bosques de quem você tagarelou no preâmbulo?
— Sim... Ela mesma. Eu a vi pela primeira vez hoje à tarde em um bosque sombrio em Riverdale. E ela estava no Domdaniel hoje à noite, acompanhada por um sujeito chamado Puttle, que ela estava usando como isca para fisgar o verdadeiro queridinho do seu coração, um rapaz de nome Burns. Este também se achava presente esta noite, mas longe da moça, e sozinho... e muito infeliz.
— Seu encontro com ela hoje à tarde sugere possibilidades mais interessantes — comentou Markham, com indiferença.
— Talvez você tenha razão, meu caro. A verdade é que a moça se achava sozinha quando me introduzi no seu reino florestal. Mas ela aceitou minha intromissão sem dificuldades. Até se ofereceu para ler a palma da minha mão.
— Delpha? — interrompeu Heath, em tom agudo. — Refere-se àquela cartomante que negocia com a profissão sob esse nome falso?
— Talvez seja — falou Vance. — Essa Delpha, ao que me consta, lida com leitura das linhas da mão, com astrologia, com numerologia e com outras coisas semelhantes. Você conhece essa pitonisa, sargento?
— Claro que conheço. E conheço também o marido dela, de nome Tony. Os dois são ligados de estranha maneira com um punhado de malfeitores do submundo. Esse casal atua como informante e como observador para assaltos a joalharias... São o que se poderia chamar de espiões para assaltos. Mas não conseguimos pilhá-los em flagrante. O sobrenome deles é Tofana e os dois têm uma loja para enganar os trouxas... ”Delpha” — bufou ele. — Para os vizinhos, ela é apenas Rosie. Talvez ela fique livre das grades durante algum tempo, mas algum dia eu a agarrarei.
— Você me deixa atônito, sargento. Simplesmente, não posso imaginar que minha linda fada dos bosques — que, a propósito, trabalha em uma fábrica de perfumes a semana inteira — tenha algo a ver com a megera sombria da sua descrição.
— Mas eu posso — falou Heath. — Esse é um dos truques mais batidos da velha Rosa Tofana: cercar-se de jovens inocentes. E, enquanto ela finge ser uma comerciante inofensiva e imaculada, o velho Tony está talvez tramando alguma patifaria, ou batendo carteiras, bancando o gigolô ou então vendendo entorpecentes do outro lado da cidade. Esperto, o Tony... Sabe fazer quase de tudo.
— Bem — murmurou Vance. — Talvez estejamos falando de duas mulheres diferentes, não é? ”Delpha” pode ser um nome popular da irmandade mística. Talvez uma sugestão fonética para o oráculo de Delfos...
— Coragem, Vance — interrompeu Markham, em tom agradável. — Não deixe que o sargento o afaste do seu conto da carochinha.
— E o pormenor mais espantoso — prosseguiu Vance — foi o cheiro de cidra que havia ao redor do duende. O perfume fora feito especialmente para ela, e não tinha nome. Muito misterioso, hem? Fora preparado pelo cavalheiro chamado Burns, uma espécie de mago das essências, empregado na mesma fábrica em que a moça trabalha. Burns, que ficou tão aborrecido com a aparente preferência que ela resolvera passar a dar a um rival dele.
Markham deu um sorriso torto.
— Não consigo entender onde é que entra o mistério da situação.
— Nem eu — confessou Vance. — Mas deixe seu cérebro obtuso demorar sobre o fato de que a tal jovem foi escolher exatamente esta noite para visitar o restaurante de Mirche.
— Talvez ela tenha seguido os seus passos, desde Riverdale, até você chegar ao Domdaniel.
— Ora, isso não resolveria nada. Ela já se achava lá quando eu cheguei.
— Então, talvez a moça estivesse com fome.
— Eu já pensara nisso. — Os olhos de Vance brilharam alegremente. — Talvez você tenha solvido o mistério! Mas... — prosseguiu ele — isso não explica o fato de que o próprio Mirche estivesse no Domdaniel.
— Ora, e onde é que você queria que ele estivesse? Mas talvez você agora vá dizer-me que ele é o pai da sua heroína, de quem se separara há muito tempo, não é?
— Não — suspirou Vance. — Mirche, ao que temo, é de uma sublime ignorância da existência da jovem. Que maçada. E eu, que estava tentando inventar uma história divertida para você se entreter...
— Aprecio o esforço. — O charuto de Markham precisava ser aceso novamente, e ele cuidou disso. — Mas diga-me o que achou de Mirche. Lembro-me de que seu objetivo principal, ao ir hoje ao Domdaniel, foi o de estudar o homem mais de perto.
— Ah, sim. — Vance mexeu-se e afundou mais na sua poltrona. — Você é sempre tão prático, Markham... Bem, não gosto de Mirche. É um cavalheiro correto, mas não admirável. No entanto, fez esforços enormes para me agradar. Não sei o motivo disso... Talvez ele estivesse tramando alguma sujeira, embora tenha-me dado a impressão de que é do tipo de homem que precisaria de alguém para fazer planos para ele. Não, Mirche não é um líder de homens, mas, sem dúvida, é um assecla fiel e capaz. Um sujeito sombrio e perverso... Bem, aí tem você o vilão da peça.
— E que farei com ele? Seu conto está fracassando a cada instante que passa.
— Receio que você tenha razão — confessou Vance. — Deixe-me ver... Examinei detidamente o escritório de Mirche, mas, infelizmente, a sala achava-se desprovida de qualquer coisa comprometedora. Apenas uma sala de tamanho razoável, sem nenhum ocupante. E depois olhei com muito gosto para a velha porta e para as janelas que ficam além do alpendre, dentro da alameda por onde entram os carros. Mas, apesar de todo o exame minucioso que fiz, não consegui descobrir nada que ajudasse. Mas as trepadeiras que havia por lá eram muito agradáveis. Trepadeiras inglesas.
— Agora, você passou para a Botânica — disse Markham. — Devo dizer que prefiro a narrativa, feita pelo sargento, do tiroteio de Pittsburgh... Mas você não falou de uma Lorelei?
— Ah, sim. E bem loura... como convém a uma sereia do Reno. Mas o nome dela tem um elo gaulês: Del Marr. Uma Lorelei impressionante. Mais inteligente, creio eu, do que Mirche. Mas houve uma conversa séria entre ela e Mirche. Os dois sentaram-se a uma mesa, durante um intervalo de descanso da orquestra, e tenho certeza de que a conversa não se limitou a assuntos musicais ou profissionais de empregador e cantora. Havia uma atmosfera de intimidade entre os dois. Liberdade, igualdade, fraternidade... Assim. Não era uma simples contratada conversando com seu empregador.
— Eu também imaginei isso, há alguns anos — intrometeu-se Heath. — Além disso, ela tem um carro de luxo e motorista. Sua profissão de cantora certamente não lhe dá dinheiro para tanta coisa. E a cara do tal motorista também não me agrada: é um tipo mal-encarado, como um desses leões-de-chácara que trabalham nas casas de jogatina.
— Pelo menos, Vance, — falou Markham, esperançoso — você descobriu uma ligação em potencial entre os componentes do seu drama, quase totalmente desorganizados e sem relações entre si. Talvez você possa desenvolver a estrutura da sua narrativa tendo isso como base.
Vance sacudiu a cabeça, desanimado.
— Não, acho que, infelizmente, não estou à altura da tarefa.
— E que há a respeito da ”coruja sem penas” de que você falou há pouco?
— Ah! — E Vance bebericou o seu conhaque. — Eu me referia ao sombrio e misterioso Senhor Owen, de lembrança detestável e má reputação.
— Compreendo. ”Coruja” Owen, hem? Eu tinha uma idéia vaga de que ele se estivesse torrando ao sol da Califórnia. Há algum tempo atrás, correu o boato de que ele estava morrendo, talvez por efeito dos seus pecados.
— Oh, estava bem vivo lá no Domdaniel, sentado do outro lado do salão, junto com dois outros homens.
— Aqueles dois sujeitos — adiantou Heath — eram, talvez, seus guarda-costas. Ele não anda sem a companhia dos dois.
— Acho que você não vai conseguir nada com ele, Vance — falou Markham. — Certa ocasião, o FBI se preocupou com ele, mas, depois de efetuar investigações, declararam o homem isento de culpa. Ou, pelo menos, disseram que não havia provas da sua culpa.
— Confesso que estou derrotado. — Vance sorriu, tristonho. — Cheguei até a tentar atrair Mirche para que este confessasse que conhecia Owen. Mas o homem negou o mínimo conhecimento com o ”Coruja”...
Após mais uma hora de conversa sem objetivo, fomos interrompidos pelo tilintar do telefone. Markham franziu o cenho, aborrecido, enquanto atendia. Depois, pondo o receptor no lugar, virou-se para Heath.
É para você, sargento. É Hennessey.
Heath também ficou aborrecido.
— Desculpe, chefe. Não deixei este número com ninguém quando vim para cá.
Enquanto saudava Hennessey pelo telefone, sua voz era belicosa. Escutou vários minutos, a expressão fisionômica mudando rapidamente da beligerância para outra de quem está profundamente confuso. De repente, berrou para o fone: ”Não desligue, espere um instante!” — E, segurando o receptor do telefone de lado, virou-se para nós:
— Parece-me uma loucura, chefe, mas Hennessey está telefonando lá do Domdaniel, e preciso ir falar com ele imediatamente...
— Esplêndido! — disse Vance, num impulso. — Por que não manda Hennessey vir aqui? Tenho certeza de que Markham não se oporia.
Markham dirigiu a Vance um olhar de espanto.
— Está bem, sargento — disse ele, de mau humor. Heath recolocou novamente o fone ao ouvido, com rapidez.
— Escute, Hennessey — disse ele, em voz áspera. — Venha aqui à casa do procurador.
— Que agitação é essa, sargento? — indagou Vance. — Terá o Mirche se escondido com seu próprio dinheiro e fugido com a Senhorita Del Marr para casar-se com ela?
— É muito esquisito — murmurou Heath, ignorando a pergunta. — Os rapazes encontraram um cadáver de homem no restaurante.
— Espero, nesse caso, que tenha sido achado no escritório de Mirche — disse Vance, em tom leve.
— O senhor acertou. — E Heath olhou fixamente para o soalho.
— E de quem seria o cadáver?
— É justamente isso que torna a coisa esquisita. O cadáver é de um empregado que trabalhava na cozinha do restaurante.
— Esse fato o ajudará a reviver o seu conto fracassado? — perguntou Markham a Vance.
— Céus, não! Isso fulmina completamente toda a minha história. — Vance tornou a se virar para Heath. — Você já sabe o nome do morto, sargento?
— Não prestei muita atenção ao nome quando Hennessey disse que era apenas um empregado de cozinha. Mas me pareceu algo como Philip Allen.
As pálpebras de Vance bateram ligeiramente.
— Philip Allen, hem? Muito interessante!

CAPITULO VII
ESTRANHAS COINCIDÊNCIAS
(Domingo, 19 de maio — 0:45 horas)

Hennessey chegou em menos de quinze minutos. Era um homem corpulento e sério, de feições severas e maneiras desajeitadas.
Heath foi diretamente ao assunto que interessava.
— Conte sua história, Hennessey. Depois, eu lhe farei perguntas. Mas, primeiro, quero saber por que você me telefonou para cá a estas horas da noite.
— Diacho, sargento! — retrucou Hennessey. — Havia mais de uma hora que eu estava tentando encontrá-lo. Eu sabia que o senhor fazia ligação de idéias entre o Senhor Markham e o Domdaniel, e imaginei que o senhor quereria saber de uma morte inesperada acontecida lá. Por isso, telefonei para sua casa e para inúmeros outros lugares em que eu pensava que o senhor poderia estar, mas em vão. Depois, arrisquei-me a ligar para cá. Eu não queria que o senhor gritasse comigo amanhã, para me passar um carão.
— Bem, o que você sabe? — resmungou Heath.
— A história parece um tanto maluca, sargento. Mas, por volta das onze horas, vi o Senhor Vance sair do restaurante. Antes disso, já o vira rondando o escritório de Mirche...
— Às oito horas — interrompeu Vance, com um sorriso.
Hennessey tirou seu caderno de anotações e virou algumas
páginas.
— Às sete e cinqüenta e seis, Senhor Vance.
Céus, que observação meticulosa!
Hennessey sorriu.
— Bem... Uns quinze ou vinte minutos depois que o Senhor Vance saiu, dois homens do Departamento de Homicídios chegaram com o Dr. Mendel, e os três entraram no escritório de Mirche. Achei aquilo esquisito, e por isso deixei Burke de vigia, em companhia de Snitkin, e fui ver o que estava acontecendo. Quando estávamos subindo a escada, o próprio Mirche chegou correndo, todo agitado, passou por nós e entrou na sala. Acho que o porteiro, que o senhor conhece, Joe Hanley, deve ter-lhe dito que alguma coisa estranha estava acontecendo...
— Não tente adivinhar coisas.
— Pois bem — prosseguiu Hennessey. — Dentro da sala havia um sujeito de terno preto, estendido no chão, com meio corpo embaixo da escrivaninha. Mirche foi até junto dele, cambaleando um pouco e mortalmente pálido. Inclinou-se bem perto, por cima do homem, ao lado do médico, que estava abrindo a camisa do cadáver e encostando-lhe ao peito uma dessas cornetas acústicas...
— Um estetoscópio! Céus! — Vance olhou para Markham.
Eu não sabia que um médico oficial levava um desses fiéis instrumentos consigo.
— Geralmente, não leva — falou Markham. — Mendel é um médico jovem e acaba de ser nomeado para o corpo médico; por isso, não me surpreenderia se ele levasse também consigo um espirômetro por onde anda, e também o seu diploma.
— Prossiga, Hennessey — grunhiu Heath. — E depois? Guilfoyle perguntou a Mirche quem era o sujeito. Não sei se o que aconteceu em seguida foi antes ou depois que Mirche respondeu à pergunta; só sei que mais ou menos nessa altura Dixie Del Marr entrou correndo. E Mirche disse, num cochicho, que a vítima era um dos lavadores de pratos do restaurante um tal Philip Allen. Eu mesmo poderia ter contado isso a Guilfoyle. Eu conhecia Allen, e o tinha visto pessoalmente naquela tarde. Depois, Guilfoyle perguntou a Mirche por que o rapaz estava no escritório, onde ele vivia e o que Mirche sabia sobre sua morte. O sapo velho declarou que não sabia de nada a respeito do morto, nem de como ele fora parar ali, ou onde ele morava. De que era tudo um mistério para ele. E parecia ser sincero, ou estava fingindo muito bem.
— Tem certeza de que ele não estava enganando a todos vocês? — indagou Heath, desconfiado.
— Ahn? A mim, não — garantiu Hennessey. — Nenhum sujeito pode fingir tão bem estar abalado.
— Que aconteceu depois?
Hennessey prosseguiu, agora mais depressa.
— O médico começou a examinar o homem, levantando-lhe as pálpebras, espiando a sua garganta, movendo suas pernas e braços... Todos os exames de praxe. E, enquanto ele estava ocupado em mexer no sujeito, a tal Dixie Del Marr abriu a porta de um armário embutido e tirou um livro de registro da firma. Virou algumas páginas, e depois disse: ”Aqui está, Mirche. Philip Allen mora na rua Leste, 37, número 198, com a mãe dele”.
Markham olhou para cima e virou-se para Vance.
— Vejo que sua dedução, não muito profunda, está sendo apoiada de leve. Sua Lorelei é, evidentemente, a guarda-livros de Mirche.
Hennessey ficou impaciente com a interrupção.
— Depois, Guilfoyle perguntou ao médico qual fora a causa da morte do homem. ”Não sei” — foi a resposta do médico. ”Talvez ele tenha morrido de morte natural, mas não posso dizer, apenas com o exame superficial feito. Ele apresenta queimaduras nos lábios e sua garganta parece ter alguma coisa. Vocês vão ter de levá-lo ao necrotério para uma autópsia completa.” — O médico nem sequer sabia há quanto tempo a vítima estava morta.
— E que fez a cantora Del Marr? — indagou Heath.
— Recolocou o livro na prateleira do armário embutido e sentou-se em uma cadeira, com uma expressão dura e indiferente, até que Mirche a mandou voltar para o restaurante.
— E então vocês mandaram o cadáver para o necrotério. — Heath estava tirando baforadas no seu charuto, sombriamente.
— Isso mesmo, sargento. Guilfoyle se encarregou de chamar o carro fúnebre. Ele e o outro investigador do Departamento de Homicídios, de nome Sullivan, encarregaram-se das investigações... É uma história boba, mas sei que o senhor sempre desconfiou daquele tal Mirche... Principalmente agora, com o Abutre à solta.
Heath franziu o cenho e dirigiu a Hennessey um olhar fixo e frio.
— Está bem! — berrou ele. — Quem entrou no escritório, depois que o Senhor Vance chegou lá, às oito da noite?
— Ah, isso é fácil. — E o policial riu, desconsolado. — A cantora Del Marr entrou no escritório por volta das oito e meia e saiu logo depois. Pouco mais tarde, o porteiro entrou lá também. Mas creio que ele costuma fazer isso sempre. Acho que Hanley apenas foi lá para tomar um gole de uísque, pois saiu esfregando a boca com a manga do paletó...
— A que horas aconteceu tudo isso? — indagou Heath.
— No início da noite, uma hora depois que o Senhor Vance esteve lá.
— Suponho que você investigou para saber se algum deles viu o cadáver, não é?
— Claro que sim. Mas nenhum deles o viu. O porteiro foi lá depois da cantora, e pode apostar sua vida em que, se houvesse um cadáver lá dentro, Hanley teria soltado um grito. Ele é um sujeito honesto, sargento.
— Claro. Conheço Joe Hanley há muito tempo. — Heath pensou um momento. — Nada disso faz sentido... Mas, agora, quero saber de uma coisa: a que horas você tirou a sua soneca, esta noite?
De repente, compreendi a significância da pergunta de Heath.
- Juro por Deus, sargento, não tirei nenhuma soneca.
Mas não sei como o tal Allen entrou no escritório. Não o vi entrar lá.
— Ahn! — E havia um mundo de sarcasmo no grunhido do sargento. — Você não dormiu, mas Allen entrou no escritório, teve um ataque cardíaco, ou coisa semelhante, e morreu enrodilhado embaixo da escrivaninha de Mirche! Esta é a última piada para os anais da polícia.
Hennessey ficou vermelho como um camarão.
— Eu não o culpo por estrilar, sargento. Mas, sinceramente, não afastei os olhos daquela porta nem por uma fração de segundo...
— Então, a vítima se tornou invisível e entrou lá sem quo você a visse, num passe de mágica. Ou talvez tenha descido pela chaminé, como o Papai Noel... Se é que há chaminé. — A ironia do sargento pareceu desnecessariamente brutal.
— Escute, sargento — interrompeu Vance. — O verdadeiro objetivo da vigilância de Hennessey era ficar alerta ao aparecimento de Benny Pellinzi, não se esqueça disso. Sem dúvida, você não postou três marmanjos na pensão apenas para vigiarem um pobre lavador de pratos.
Heath abordou outra faceta do assunto.
— Quem foi que telefonou para a chefatura de polícia, Hennessey?
— Essa é outra coisa engraçada, sargento. O telefonema chegou, por vias normais, às dez e cinquenta... não mais de dez minutos depois que o senhor saiu. Quem telefonou foi uma mulher. Ela não quis dar o nome; bancou a misteriosa e desligou.
— Sim. Se foi engraçado... Podia muito bem ter sido essa megera dessa cantora, Del Marr.
— Também pensei nela, e a interroguei a respeito do assunto. Mas ela parecia ignorar tanto o fato como Mirche o ignorava. Mas poderia ter sido alguma das velhas empregadas que trabalham na cozinha. Grande parte dos empregados entra e sai por aquela alameda que dá para o escritório. E, se um deles quisesse bisbilhotar, bastar-lhe-ia levantar-se na ponta dos pés e espiar pela janela.
— E o edifício de escritórios que fica ao lado da alameda? — indagou Vance.
Foi Heath quem respondeu à pergunta.
— Não há janelas ali, senhor. Os primeiros três andares são fechados por uma parede maciça de tijolos...
O cigarro de Vance se acabara e ele acendeu outro.
— Juntando tudo isso — comentou ele — não pareço muito promissor para um crime misterioso. É muito triste. Tive esperanças tão grandes quando Hennessey telefonou a essa hora mais ou menos de bruxaria.
— Tenho de confessar — disse Heath — que eu também não consigo vislumbrar nada de especial no relatório de Hennessey. Mas há outra coisa que eu desejo saber. — E tornou a virar-se para Hennessey. — Você disse que conhecia esse lavador de pratos, o Allen, e que o viu mais cedo, no mesmo dia. Fale-nos a esse respeito.
— Eu fiquei conhecendo-o por acaso — retrucou o policial. — Uma noite, no inverno passado, ele saiu correndo da alameda, por volta das três horas da madrugada, e quase me derrubou no chão. Eu o agarrei e levei-o à presença de Hanley, para ver quem ele era. Depois o soltei. Hoje à tarde, eu o vi rondando o escritório de Mirche. Entrou e saiu de lá três ou quatro vezes, entre uma e cinco horas da tarde. Depois por volta das seis, quando Murche chegara ao escritório, o rapaz tornou a entrar lá e ficou uns dez minutos, dessa vez. Quando saiu, foi a última vez que o vi.
— Para onde foi ele?
— Sei lá... Não sei ler os pensamentos dos outros. Ele não voltou para a cozinha, se é isso que o senhor deseja saber. Foi para a rua.
— Tem certeza de que foi Allen quem você viu? — indagou o sargento, desanimado.
— Claro que tenho! — riu Hennessey. — Mas é muito engraçado o senhor me perguntar isso. Na primeira vez em que vi Allen, esta tarde, tive a idéia maluca de que poderia ser Benny, o Abutre: são ambos da mesma estatura, com o mesmo rosto redondo e pálido, macilento. E Allen trajava um terno simples e preto, como já lhe disse... e é assim que o Abutre estaria vestido, se ele quisesse entrar aqui, furtivamente, e desejasse evitar que o vissem com facilidade. O senhor se lembra das roupas elegantes que ele usava nos velhos tempos. Em todo caso, resolvi certificar-me. Eu sabia que estava agindo como um tolo, mas fui até o restaurante e disse olá ao sujeito. Era mesmo Allen. Ele me disse que estava por ali a fim de conseguir um aumento de salário com o velho Mirche. Pura perda de tempo!
Heath coçou a cabeça.
— Mais alguma coisa a respeito do tal Allen lhe vem à idéia?
— Eu estava pensando — disse Hennessey. — Sim... Ele se encontrou com um sujeito por volta da metade da tarde, aproximadamente às quatro horas. Era um homem miúdo, como Allen. Os dois foram para o lado oeste do restaurante e pouco depois se empenharam em animada discussão. Parecia que a qualquer instante iriam sair para os sopapos. Mas não lhes prestei muita atenção, e finalmente o tal sujeito foi embora. Tem mais alguma pergunta, sargento?
Vance chamou Heath de lado e lhe cochichou algumas palavras ao ouvido. Finalmente, o sargento fez um movimento indiferente de ombros e confirmou de cabeça. Depois, tornou a se virar para Hennessey.
— É só isto — falou ele. — Vá para casa e durma um pouco. Mas esteja de volta ao trabalho ao meio-dia.
Quando Hennessey se retirara, Markham, notando uma mudança repentina na maneira de se portar de Vance, franziu a cenho e inclinou-se para diante.
— Em que é que você está pensando, Vance? — perguntou ele.
— Na história de Hennessey. No meu conto de fadas de hoje à noite, não mencionei o nome da ninfa dos bosques. Ela se chama Gracie Allen. E Philip Allen é seu irmão. Ela me contou, muito francamente, que ele era lavador de pratos no Domdaniel. Ela até me contou que ele ia encurralar Mirche, hoje à tarde, no covil deste, para lhe pedir aumento de salário. E, quando a Senhorita Allen parou junto à minha mesa, esta noite, estava indo ao encontro do irmão, em alguma parte das dependências do restaurante.
Markham tornou a recostar-se no espaldar da poltrona, com uma risada curta.
— Talvez você possa encaixar tudo isso na fantasia que estava tecendo hoje cedo.
— É como você diz, meu velho amigo. — Vance não estava mais disposto a gracejar. — Sem dúvida, vou tentar fazer isso. Não me conformo com o fato de tantas coisas irrelevantes acontecerem em um lugar só e ao mesmo tempo. Deve haver alguma coisa unindo esses acontecimentos. Em todo caso, não estou disposto a continuar acordado, e por isso vou para casa dormir.
Vance caminhou até o fim da sala, no sentido do comprimento, depois voltou, de cabeça baixa. Em seguida, parou de chofre e sorriu, com um misto de seriedade e embaraço, mas bem resoluto.
— Escute aqui, Markham — falou ele. — Confesso que minhas idéias são muito vagas e que aquela bruxazinha em Riverdale pode ter-me enfeitiçado. Mas me sinto inclinado a descobrir o que puder a respeito da morte prematura de Philip Allen, e talvez assim amenizar o choque para a jovem. E preciso da sua ajuda para isso. Você não quer apoiar minhas excentricidades mais uma vez?
Markham suspirou, resignado.
— Farei tudo para me livrar de você a estas horas avançadas e impróprias.
— Já que é assim, encarregue-me do caso Allen, para eu brincar com ele como bem entender, mas, naturalmente, tendo a meu lado o eficiente sargento.
Markham hesitou.
— Que tal acha disso, sargento?
— Se o Senhor Vance tiver algumas idéias extravagantes — retrucou Heath, vigorosamente — prefiro trabalhar com ele.
— Está bem, sargento, então vá trabalhar com o nosso dramaturgo amador. — Depois, Markham virou-se novamente para Vance. — E, quanto a você — falou ele, com uma franqueza brincalhona — acho que é doido varrido.
— Vá lá. Mas não se esqueça de que o grande louco de hoje é o Prêmio Nobel de amanhã...

CAPITULO VIII
NO NECROTÉRIO
(Domingo, 19 de maio — 1:30 horas)

Vance, Heath e eu fomos primeiro ao apartamento de Vance. Lá, enquanto Vance trocava de roupas, vestindo um terno folgado, Heath deu alguns telefonemas necessários.
Interrogou Guilfoyle, durante algum tempo, a respeito de quaisquer pormenores pertinentes que Hennessey pudesse ter omitido, e deu ordens a Sullivan para ficar no Domdaniel até o meio-dia. Em seguida, telefonou para o Dr. Mendel. Achei, tanto pela sua expressão como pelas perguntas que fez, que Heath ficou intrigado e aborrecido com as informações que estava obtendo do jovem médico. Quando Vance voltou para junto de nós, o sargento, ao que parecia, continuava pensando no assunto.
— Este caso — falou ele — está começando a parecer ainda mais maluco do que a princípio, a história de Hennessey mostraria. O Dr. Mendel ainda acha que Allen poderia ter morrido de morte natural, mas descobriu um punhado de indícios de que ele poderia ter sido assassinado. Ele está transferindo a responsabilidade para outro, e mandou o cadáver sem demora para o necrotério, onde Doremus fará a autópsia. Mendel não se quer envolver no caso. Quando lhe perguntei a que horas ele achava que o sujeito morreu, procurou ganhar tempo, falando de rigidez de morte e de certa forma de espasmo.
— Espasmo cadavérico — contribuiu Vance.
— Sim, é isso. E, depois, começou a dizer que há muita coisa, em medicina, que ainda é desconhecida. Como se isso fosse novidade para mim!
— Sim, nós já sabemos isso de cor e salteado — suspirou Vance. — Mas, enquanto isso, você já avisou a mãe do rapaz que morreu?
— Sim, é preciso avisá-la. Pensei em mandar o Martin, que é muito jeitoso para essas coisas.
— Não... Oh, não, sargento — falou Vance. — Já estou vendo a careta que a pobre senhora fará se você mandar Martin. Nós vamos avisá-la pessoalmente.
— Está bem, chefe. — O sargento piscou um olho e sorriu. — O senhor pediu o caso, e agora ele é seu. Em todo caso, esse trabalho de identificação não levará muito tempo.
Descobrimos a residência da Senhora Allen na rua Leste, número 37, uma habitação modesta: um velho prédio de frente de tijolos à vista, que fora dividido em pequenos apartamentos. A própria Senhora Allen atendeu, quando tocamos a campainha. Achava-se completamente vestida e todas as luzes estavam acesas na sala mobiliada com simplicidade.
Era uma pessoa franzina, cuja presença lembrava a de uma ratinha, e muito mais idosa do que eu esperara que fosse a mãe da Senhorita Allen. Havia na sua expressão uma suavidade e algo muito vago — quase uma melancolia — como a de uma pessoa que envelhecera antes do tempo, ou em virtude de uma dor repentina ou de vicissitudes prolongadas.
A mulherzinha mostrou-se muito nervosa e assustada com nossa presença à sua porta; mas, quando o sargento lhe contou quem ele era, a mulher nos convidou imediatamente para entrarmos. Sentou-se muito rígida, como se para poder enfrentar algum golpe duro. Suas mãos achavam-se entrelaçadas com tanta força, que os nós dos dedos ficaram brancos.
Heath pigarreou forte. Apesar de toda a dureza da sua natureza de homem habituado a ver dramas, parecia muito condoído da situação da velhinha.
— Estou falando com a Senhora Allen? — começou ele. Em parte era uma interrogação, em parte uma afirmação.
A mulher fez um aceno de cabeça, trêmula.
— A senhora tem um filho chamado Philip?
A mulher limitou-se novamente a confirmar, com um aceno de cabeça. Mas as pupilas dos seus olhos se dilataram.
Heath mudou o peso para o outro lado do corpo e olhou um instante ao seu redor. Seu rosto tornou-se visivelmente mais suave. Até então, eu só vira o sargento profundamente comovido uma vez na vida: fora quando ele olhara dentro do armário vazio e deparara com o corpo inerte da pequena Madeleine Moffat, durante sua investigação do caso do Bispo Preto.
— A senhora tem ficado acordada até muito tarde da noite, não é, Senhora Allen? — perguntou ele, como se ainda não tivesse encontrado as palavras para amenizar o golpe que ia causar com a notícia.
— Sim, senhor detetive — disse a mulher, num fio de vox trêmula. — Sempre fico acordada, esperando minha filha, quando ela está fora. Mas não me importo com isso.
Heath assentiu com um aceno de cabeça e, com uma súbita torrente de palavras, abordou o assunto que nos levara ali.
— Bem... Sinto muito, mas tenho más notícias para a senhora — disse ele, em um repente. — O seu filho, Philip, sofreu um acidente. — Fez uma pausa, durante alguns instantes. — Sim, Senhora Allen, preciso contar-lhe... Ele está morto. Foi encontrado esta noite, no restaurante onde trabalhava.
A mulher agarrou a sua cadeira com força. Seus olhos se arregalaram e seu corpo oscilou um pouco. Vance foi rapidamente até junto dela e, segurando-a pelos ombros, firmou-a.
— Oh, meu pobre filho! — gemeu ela, várias vezes. Depois, olhou de um de nós para o outro, como se tonta. — Contem-me o que aconteceu.
— Ainda não sabemos ao certo, senhora — disse Vance, baixinho.
— Mas quando? — indagou ela, em voz sem inflexão. — Quando foi que isso aconteceu?
— Recebemos o telefonema por volta das onze horas, esta noite — contou-lhe Heath.
— Eu não sei o que fazer. — Ela ergueu o olhar, com uma súplica. — Os senhores me levarão para vê-lo?
— Foi justamente para isso que viemos aqui, Senhora Allon. Nós queremos que a senhora vá conosco — apenas por alguns minutos — à cidade, para identificá-lo. O Senhor Mirche já fez isso, naturalmente, mas nós pedimos à senhora para reconhecê-lo, apenas por formalidade legal. Depois, ajeitaremos tudo... Agora, foi Vance quem falou com a mulher.
— Sei que é uma tarefa muito triste para a senhora. Mas, como o sargento explicou, é uma formalidade necessária, e mais tarde isso facilitará tudo para a senhora e para sua filha. A senhora tentará ser forte, não é?
A velhinha fez um aceno afirmativo de cabeça, vagamente.
— Sim, preciso ser forte, a bem da Gracie.
Não pude deixar de admirar a fortaleza de espírito dessa mulherzinha frágil. E, quando ela se levantou, resolutamente, para vestir o casaco e colocar o chapéu, minha admiração por ela aumentou mais ainda.
— Vou demorar apenas o tempo necessário para deixar um bilhete para minha filha — falou ela, desculpando-se, quando estava pronta para sair conosco. — Ela ficaria preocupada, se chegasse em casa e não me encontrasse aqui.
Ficamos esperando, enquanto ela arranjava um pedaço de papel. Vance lhe ofereceu o seu lápis. Então, com mão trémula, ela descreveu algumas palavras e deixou o papel bem à vista, em cima da mesa.
A caminho da cidade, a mulher não falou, mas ficou ouvindo mansamente as instruções e sugestões do sargento.
Quando entramos pela porta do elevador do necrotério municipal, na rua 29, a mulher levou as duas mãos ao rosto e murmurou algumas palavras, como uma oração, acrescentando, em voz mais alta:
— Oh, meu pobre Philip! No fundo, ele era um rapaz tão bonzinho...
Heath pegou-a pelo braço, de forma protetora, e levou-a solicitamente para a sala nua do porão. A cena acabou não sendo tão medonha quanto eu imaginara que fosse. A dolorosa obrigação da mãe de Gracie Allen terminou no instante em que Heath a fez parar diante da forma inerte que fora tirada de uma gaveta do refrigerador. Seu sofrimento terminou depressa e de modo misericordioso.
Após um olhar momentâneo, ela se virou para o outro lado, com um soluço abafado, perdeu os sentidos e escorregou para o chão.
O sargento, que estivera observando a mulher atentamente, desde a hora em que saíramos do elevador, pegou-a rapidamente nos braços, carregando-a para a sala de recepção, mal iluminada, onde a depositou em um sofá de vime. O rosto da mãe de Gracie apresentava-se lívido e sua respiração era fraca, mas, depois de alguns minutos, ela começou a se mover debilmente. Depois, com a onda de sangue às faces e com o umedecimento da pele, que acompanham a reação de quem desmaia, veio uma torrente de lágrimas.
Enquanto ela chorava livremente por alguns instantes, Heath puxou uma cadeira e sentou-se diante da mulher.
— Eu sei, Senhora Allen, — disse ele — que isso deve ser muito doloroso para a senhora, mas nós precisamos ter cuidado em casos como este. É a lei. Não poderíamos deixar que se cometessem erros a respeito. E a senhora não quereria que nós cometêssemos erros, não é?
— Oh, isso seria horrível. — Sua mão moveu-se lentamente sobre seus olhos, como se para afastar alguma visão horripilante.
— Claro, eu sei... — murmurou o sargento. — É por isso que a senhora tem de nos perdoar por sermos um tanto desumanos.
— Quando — perguntou ela, como alguém que não lhe tivesse ouvido as palavras — quando foi que o pobre rapaz...?
— Isso é outra coisa que tenho de lhe contar, Senhora Allen. — Heath interrompeu sua pergunta inacabada. — É que não poderemos deixar que a senhora leve imediatamente seu filho. O médico ainda não tem certeza de que foi que ele morreu, e o médico precisa certificar-se. Isso é tanto em seu benefício como no nosso. Portanto, temos de ficar com ele ainda por um dia ou talvez dois.
A mulher moveu a cabeça para cima e para baixo, tristemente.
— Sei o que o senhor quer dizer — falou ela. — Um dia, um sobrinho meu morreu em um hospital... — E ela deixou a frase incompleta e acrescentou: — Sei que posso confiar nos senhores.
— Sim, Senhora Allen — garantiu-lhe Vance. -— O sargento não demorará mais tempo do que o necessário. É preciso cuidar desses assuntos de forma legal e com todo cuidado. Prometo comunicar-lhe pessoalmente logo que o assunto fique resolvido... Além disso, terei muito prazer em ajudá-la e à sua filha de todas as outras formas que eu puder.
A mulher virou-se lentamente para Vance e estudou-o um instante. Uma expressão de confiança lhe transpareceu nos olhos.
— Minha filha — começou ela, baixinho. — Quero pedir-lhe uma coisa, em benefício dela. Isso significará tanto para ela e para mim, no momento. Por favor, eu lhe peço, não conte a minha filha ainda, o que houve com Philip. Vamos deixar para quando ela precisar mesmo saber, e então quero ser eu a lhe contar... Ela ficaria preocupada com coisas que, talvez, não sejam nem um pouco verdadeiras. Ela tem uma imaginação muito viva — herdada de mim — creio eu. Por que não deixar que ela tenha mais um dia, talvez mais dois dias, de felicidade? Só até que saibam o que realmente houve com meu filho...
Era evidente que o pedido da mulher fundava-se na desconfiança de que seu filho tivesse sido assassinado, e ela temia que uma dúvida semelhante pudesse torturar também à sua filha.
— Mas, Senhora Allen, — perguntou Vance — se guardarmos segredo deste assunto durante algum tempo, como é que a senhora vai explicar à sua filha a ausência prolongada do irmão dela? Sem dúvida, ela ficará preocupada com isso.
A Senhora Allen sacudiu a cabeça.
— Não. Philip costuma ficar fora de casa, com freqüência, e às vezes durante vários dias. Hoje ele disse que talvez saísse do emprego do restaurante e talvez fosse embora da cidade. Não, Gracie não suspeitará de nada.
Vance olhou para Heath, com uma indagação no olhar.
— Acredito, sargento, — falou ele — que seria humano e prudente atender ao pedido da Senhora Allen.
Heath concordou com um aceno vigoroso de cabeça.
— Sim, também acho, Senhor Vance. Creio que se pode dar um jeito nisso.
Um olhar de compreensão passou entre os dois e então Vance tornou a se dirigir à Senhora Allen.
— Nós temos muito prazer em lhe fazer essa promessa, senhora.
— E não aparecerá nenhuma notícia a respeito nos jornais? — indagou ela.
— Acho que isso também se pode arranjar — prometeu Vance.
— Obrigada — disse a Senhora Allen, com simplicidade. Nesse instante, um auxiliar entrou na sala e fez um sinal ao sargento, que se levantou e dirigiu-se para onde ele se achava. Os dois conversaram um pouco e saíram juntos por uma porta lateral. Alguns minutos depois, o sargento voltava e enfiava alguma coisa no bolso.
A Senhora Allen recuperara um pouco o seu autodomínio, e, quando o sargento veio novamente para junto de nós, ele sorriu para ela, para encorajá-la.
— Acho que já podemos levá-la de volta à sua casa. Levamos a Senhora Allen de volta ao seu apartamentozinho, de carro, e lhe demos boa noite.
Alguns minutos depois, nós três fomos à biblioteca de Vance. Eram duas horas e meia da madrugada.
— É uma mulherzinha estranha — murmurou Vance, enquanto servia um copo de conhaque para cada um de nós. — E é, também, de uma notável bravura. Não tive nenhuma preocupação pelo fato de a deixarmos sozinha na casa dela. Resistiu melhor do que eu esperava, depois de receber uma notícia tão chocante.
— Tenho conhecido muitas mulheres miúdas como aquela — comentou Heath — que são capazes de suportar golpes duros muito melhor do que um marmanjo de dois metros de altura.
— Sim, realmente... Não sei se seu esforço para poupar a filha será tão bem sucedido quanto ela espera. Gracie Allen não é nenhuma jovem comum... É sagaz, apesar da sua vivacidade estonteante.
— A velhinha facilitou tudo para nós — observou o sargento.
Vance confirmou, com um aceno de cabeça, enquanto bebericava o seu conhaque.
— Exatamente. Era justamente nisso que eu estava pensando, sargento. Não precisamos ter nenhuma preocupação a respeito de interferências até que o relatório do Dr. Doremus sobre a morte de Philip fique pronto. A Senhora Allen, sem dúvida, não nos apressará, pois acho que ela ficará agradecida pelo fato de termos poupado uma dor mais prolongada à sua filha. E, sem dúvida, Mirche achará preferível guardar sigilo sobre o acontecido... Ele não deseja nenhuma publicidade negativa relacionada com o seu restaurante... Quer fazer tudo que puder para manter o caso em segredo o tempo máximo que puder, sargento?
— Finalmente, o senhor está-me pedindo para fazer alguma coisa fácil — sorriu Heath. — Direi aos rapazes lá do Departamento de Homicídios para guardarem sigilo; e o senhor poderá investigar dois dias inteiros, sem que ninguém o importune.
Vance sorriu, aparentemente tranqüilo, mas ainda estava preocupado.
Heath acabou de tomar o seu conhaque e acendeu um charuto comprido e preto.
— A propósito, Senhor Vance, aqui está uma coisa que talvez lhe interesse. — Enfiou a mão no bolso do paletó e tirou uma pequena cigarreira de madeira, com uma granulação peculiar e com quadrados alternados de verniz claro e escuro, que lhe dava um desenho destacado de xadrez. — Encontrei-a entre os pertences de Allen, no necrotério.
— Mas por que, meu caro sargento, este objeto me interessaria?
— Bem, não sei ao certo, senhor. — Heath falava quase em tom de desculpa. — Mas sei que o senhor tem idéias sobre o que ocorreu esta noite, e eu não tenho.
— Mas não há nada de extraordinário no fato de que a vítima fumava cigarros.
— Não é isso, senhor. — Heath abriu a cigarreira e apontou para o canto interno da tampa da mesma. — Há um nome gravado a fogo ali dentro... Parece trabalho de amador. E acontece que o nome é ”George”. E esse não é o nome da vítima.
De repente, a expressão do rosto de Vance mudou. Ele se inclinou para diante e, tirando a cigarreira da mão de Heath, examinou a gravação tosca feita a fogo.
— As coisas não deviam acontecer assim... Não deviam, mesmo, sargento. O homem que Gracie Allen realmente ama se chama George. George Burns, para ser mais exato. O mesmo rapaz de quem falei hoje na casa de Markham. E o tal Burns estava no Domdaniel na noite de hoje. E Gracie também se encontrava lá. Junto com seu vistoso acompanhante o tal Senhor Puttle. E também Philip Allen e o untuoso Mirche. E a misteriosa Dixie Del Marr. E o sinistro ”Coruja” Owen. E a sombra ameaçadora de um abutre.
— Que acha disso, Senhor Vance?
— Sargento... Oh, meu sargento! — suspirou Vance. — Que é que se pode deduzir de tudo isso? Exatamente nada. É por isso que estou envelhecendo de maneira tão visível diante dos seus olhos. É por isso que os meus cachos de cabelo estão ficando brancos.
— Como acha que aquela cigarreira foi parar no bolso de Philip Allen, Senhor Vance? — E Heath continuava obstinadamente a abordar o problema.
— Pare de me torturar! — implorou Vance.
Heath pegou a cigarreira, fechou-a, com um estalido, e a recolocou no próprio bolso.
— Vou descobrir — disse ele, resolutamente. — Se Philip Allen não morreu de morte natural, e se esta cigarreira pertence ao tal Burns, juro que lhe arrancarei a verdade, mesmo que tenha de inventar um recurso novo para conseguir isso. Este caso está-me deixando torturado também, Senhor Vance. Tudo nele é desencontrado; e não gosto de nada que não faça sentido... Hei de encontrar o tal rapaz, e vou achá-lo esta noite. Nesta altura o Domdaniel já está fechado e, portanto, talvez ele já tenha ido para casa... se é que tem casa. Irei primeiro à fábrica. Como foi que disse que era o nome da fábrica, Senhor Vance?
— Fábrica de Perfumes In-O-Scent — disse Vance, sorrindo. — É um nome um tanto desalentador para dar início à procura de um suspeito... Não é, sargento? Mas espero que esse nome seja simbólico.
— Suas palavras são profundas demais para mim, senhor — queixou-se Heath, seguindo rumo à porta. — No momento, só tenho de me preocupar em encontrar o tal Burns.
Bem, sargento, quando você encurralar o Senhor Burns, podemos ou eliminar parte do enigma ou então pô-lo em algum lugar onde a peça do quebra-cabeças encaixe. — Suspirou fundo. — Estarei à espera da sua perfumada comunicação amanhã cedo.


CAPITULO IX
PRESO SOB SUSPEITA
(Domingo, 19 de maio — 10:30 horas)


Já eram quase dez e meia, na manhã de domingo, quando Heath chegou ao apartamento de Vance. Este se levantara pouco antes e achava-se sentado na biblioteca, envergando um roupão de mandarim, tomando sua refeição matinal, bastante frugal, com café turco. Acabara de acender o segundo cigarro, quando o sargento foi introduzido lá, com uma aparência um tanto cansada mas triunfante.
— Finalmente, eu o agarrei! — anunciou ele, sem parar a fim de cumprimentar.
— Arre, sargento! — Vance saudou-o. — Sente-se e descanse um pouco. Precisa tomar um pouco de café, para recuperar as forças. Sem dúvida, você se refere a Burns. Mas não me diga que você ficou a noite inteira acordado, investigando.
Heath sentou-se pesadamente.
— Sim, a verdade é que eu fiquei. E, se não se importa, Senhor Vance, quer colocar mais alguma coisa nesse café? Preciso reanimar-me.
Vance atendeu-o, sorridente.
— Fale-me a respeito das suas andanças noturnas, sargento.
— Bem, a verdade, senhor, é que ainda não o agarrei — corrigiu Heath. — Mas estou à espera de um telefonema para cá a qualquer instante, a ser dado por Emery... Eu o deixei vigiando a casa da Senhora Allen, e...
— A casa da Senhora Allen?
— Sim! É para lá que o sujeito vai.
— Sabe de uma coisa? Essa história parece tremendamente complicada.
— Não foi tão complicada assim, Senhor Vance — respondeu Heath. — Foi só muito trabalhosa... Quando saí daqui, ontem à noite, fui diretamente à Fábrica In-O-Scent e agarrei o vigia noturno da firma. Ele me levou pessoalmente para dentro do escritório, com sua chave-mestra, encontrou o livro de registro de empregados e me mostrou o nome de Burns com o endereço de um hotel de segunda classe que ficava a poucos quarteirões de lá. Fui até o hotel. Mas parece que Burns já estivera lá, trocara de roupas e saíra novamente. O recepcionista noturno me deu essa informação. Aí, mostrei-lhe a cigarreira, e foi então que tive um pouco de sorte. O sujeito estava disposto a jurar que Burns tem uma cigarreira igual a ela. Muitas vezes Burns pára a fim de bater papo com ele, quando chega tarde ao hotel.
— E — intrometeu-se Vance — é muito provável que lhe ofereça um cigarro durante as caçoadas.
— É isso, senhor... Depois, telefonei a Emery, lá no Departamento de Homicídios, para ele ir até o hotel e ficar de vigia, no caso de Burns pretender voltar. Depois que Emery chegou lá, fui à minha casa, onde dormi umas duas horas.
— E acaso o seu auxiliar interrompeu o seu sono com a notícia do desaparecido experimentador de perfumes?
— Não. Burns não voltou para o hotel. Por isso, às oito horas fui pessoalmente até lá, a fim de ver se conseguia descobrir mais alguma coisa com o recepcionista de serviço. E fiquei sabendo que ele e Burns, e mais dois outros sujeitos, amigos de Burns, algumas vezes sentam-se à mesa, jogando cartas no saguão do hotel, à noite. Um deles mora do outro lado da rua, mas disse que não vê Burns há vários dias. Mas ele me disse para procurar o outro sujeito, um tal Robbin, de Brooklyn, pois muitas vezes Burns passa a noite na casa de Robbin, principalmente as noites de sábado. Por isso, fui a Brooklyn. Não telefonei para a casa de Robbin, porque não desejava alarmar Burns. Levei mais de uma hora a encontrar a casa, que fica a meia dúzia de quarteirões fora da linha principal, em Bensonhurst, um local afastado.
— Que horrível odisséia matinal, sargento! — E Vance estremeceu, pesaroso. — E que aconteceu quando finalmente você chegou à choupana de Emaú?
— Como já disse, o nome do sujeito é Robbin. E ele não mora em uma choupana... Bem, perguntei-lhe por Burns, e ele me disse que Burns fora lá às três horas da madrugada, dizendo que estava deprimido e precisava de companhia. Robbin também me contou que Burns estava nervoso e não dormiu muito bem. Levantou-se cedo e já fora embora antes de eu chegar lá... Que acha de tudo isso, Senhor Vance?
— Acho que isso é muito parecido com o amor florescente em estado de suspense — falou Vance. — Ah, a doce crueldade da mulher!
— Não sei a que ponto o senhor quer chegar — replicou o sargento. — Mas parece-me que o homem tem peso na consciência. Principalmente pelo fato de Burns não ficar em casa... De fugir, por assim dizer... e por se ocultar lá no fim do mundo que se chama Bensonhurst... Em todo caso, quando mostrei a Robbin a cigarreira, ele a reconheceu imediatamente. Não se lembrava bem se ela estivera em poder de Burns na noite anterior. Perguntei a Robbin se ele tinha alguma idéia do lugar para onde Burns teria ido. O homem riu e disse que sabia para onde Burns fora, mas que não estaria lá antes das onze horas. Portanto, vendo que ele ainda não podia ter voltado para Nova York, telefonei para Emery, no hotel onde Burns mora, para ele ir vigiar a casa dela...
— A casa da Senhora Allen?
— Sim. Robbin disse que era lá que Burns estaria às onze horas da manhã. E ele não tinha nenhuma dúvida a respeito disso. Achei que isto era razoável. O senhor mesmo me disse que Burns era namorado da moça. E ele poderia ter a idéia de pedir a Gràcie e à mãe desta que o ajudassem, antes que o descobrissem. Por isso, voltei para Nova York, o mais depressa que pude. E aqui estou, fazendo meu relatório ao senhor e esperando o telefonema de Emery.
— Extraordinário! — murmurou Vance. — Que zelo! Você encaixou muitos fatos, e até com habilidade, enquanto estive apenas cochilando. E suponho que você faça mais progressos quando receber o chamado de Emery e acosse o jovem Burns.
— Claro que farei isso! — E então o sargento acrescentou: — Estou começando a pensar que o senhor realmente teve uma boa idéia ontem à noite, na casa do procurador distrital.
— Não sei... Em todo caso, vou junto com você, sargento.
— E Vance seguiu rumo à porta do quarto de vestir.
— Imaginei que o senhor quereria ir. Mas há uma coisa que lhe preciso pedir: deixe que eu resolva este caso à minha maneira.
— Oh, perfeitamente, sargento. — E Vance deixou a biblioteca.
Vance acabara de voltar para a sala, completamente vestido, quando o telefone tocou. Heath saltou da sua cadeira e já estava com o fone ao ouvido antes que Currie, o velho mordomo de Vance, pudesse alcançar o aparelho.
Era esperado o telefonema de Emery, e, depois de ouvir alguns instantes, Heath respondeu ansiosamente.
— Sim, estarei aí dentro de cinco minutos. — Bateu o receptor do telefone no descanso e, esfregando as mãos, satisfeito, seguiu rumo à porta. — Vamos, Senhor Vance. Finalmente, estamos fazendo progressos...
Quando dobramos a esquina da avenida Lexington, vimos Emery de pé do outro lado da rua, defronte à casa da mãe de Gràcie. O homem deu alguns passos na nossa direção e fez um aceno significativo de cabeça.
Heath grunhiu para denotar que já vira o sinal e deu ordens a Emery para entrar lá conosco.
Foi Gràcie Allen quem atendeu à porta, desta vez, quando tocamos a campainha. Avistou logo Vance e jogou as mãos para o alto, em um exuberante gesto de encantamento.
— Oh, olá, Senhor Vance! Sua presença aqui é maravilhosa! — disse ela, com voz musical, aparentemente quase flutuando.
— Como foi que descobriu onde moro? O senhor deve ser um detetive muito hábil...
Ao notar a presença dos dois homens sérios que nos acompanhavam, ela parou subitamente de falar.
— Estes dois senhores são da polícia, Senhorita Allen — informou-lhe Vance. — E viemos aqui para...
— Ah, coitado! Eles o agarraram, não é? — exclamou ela, muito desalentada. — Não é horrível? — E seus olhos se arregalaram. — Mas, sinceramente, Senhor Vance, não fui eu quem o denunciou. Eu não faria uma coisa dessas, de forma alguma. Não foi à toa que lhe dei minha palavra de honra...
Heath e Emery foram entrando na sala, passando por ela, e Vance lhe estendeu a mão.
— Por favor, minha querida — disse ele, ansiosamente. — Só um instante. Viemos aqui tratar de um assunto bem diferente.
Gracie afastou-se e recuou, impressionada pelos seus modos sérios; e Vance seguiu os dois policiais sala adentro.
Sentado em um sofá na parede oposta estava o jovem George Burns, visivelmente aborrecido com nossa intromissão. Heath já atravessara a sala rapidamente, na sua direção.
— Seu nome é George Burns, não é? — perguntou ele, em tom áspero.
— Sempre foi — retrucou Burns, com um ressentimento sombrio. — Quem quer saber?
— Espertinho, hem? — E Heath remexeu nos bolsos e depois perguntou, em tom conciliatório: — Tem um cigarro aí, Burns?
Burns tirou do bolso automaticamente um maço de cigarros.
— Quê? — exclamou o sargento. — Você fuma e não tem cigarreira?
— Ora, claro que ele tem! — afirmou Gracie Allen, toda orgulhosa. — Eu própria lhe dei uma de presente, no Natal passado... E era muito bonita, toda enxadrezada...
Vance a fez silenciar, com um gesto peremptório.
— Sim — confessou Burns. — Eu tinha uma, porém eu... eu a perdi ontem. — Parecia confuso com a maneira como estava sendo interrogado.
— Talvez seja esta aqui. — Heath disse isso com ênfase ameaçadora, enquanto colocava a pequena cigarreira debaixo do nariz de Burns.
Este, assustado e intimidado, fez um aceno de cabeça, de modo débil. Pegando a cigarreira, segurou-a contra as narinas e cheirou-a várias vezes. Depois, ergueu o olhar para o sargento.
— Beije-me depressa!
— Quê?! — explodiu Heath.
— Oh — murmurou Burns, embaraçado. — Esse é apenas o nome de um perfume bem conhecido para lenços. A fórmula leva erva-cidreira, almíscar, junquilho e...
— Ah, e eu sei o que mais — ajudou a Senhorita Allen, ansiosamente. — Jasmim e angélica...
Burns ficou zangado.
— Ora, essa é a fórmula do Ano Bissextox.
— Alto lá! — berrou Heath. — Afinal de contas, o que está acontecendo aqui?
Vance estava rindo tranqüilamente, no íntimo. O sargento arrancou a cigarreira da mão de Burns e a recolocou no bolso.
— Onde foi que você perdeu a cigarreira, ontem? Burns remexeu-se no sofá, inquieto.
— Bem, eu não a perdi, exatamente. Eu apenas... Bem, eu apenas a emprestei a alguém.
— Então, você emprestou um presente de Natal que lhe foi dado pela sua namorada, hem?
— Bem, também não a emprestei. — Burns ficou confuso. — Encontrei-me com um sujeito, a quem ofereci um cigarro. Depois, tivemos uma pequena discussão e acho que ele se esqueceu de...
— Claro! Ele foi embora e levou a cigarreira — retorquiu Heath, com enorme sarcasmo. — E você se esqueceu de lhe pedir que a devolvesse e deixou que ele a guardasse... como um presentinho seu a ele. Ótimo... E quem era esse sujeito?
Burns remexeu-se uma vez mais.
— Bem, já que insiste em saber... Foi o irmão de Gracie.
— Claro que foi! Você é muito esperto, não é? — E então uma nova idéia surgiu na cabeça do sargento. — Isso deve ter acontecido nas proximidades do restaurante Domdaniel, e por volta das quatro horas da tarde.
— Mas como foi que o senhor soube? — perguntou Burns, espantado.
— Quem faz as perguntas sou eu — cortou Heath, em tom ríspido. — E não foi uma discussãozinha, como você disse. A coisa quase chegou às vias de fato, não foi mesmo? Você estava muito zangado por algum motivo, não estava?
Burns olhou fixamente para o sargento, desalentado, e depois para Gracie Allen.
— Oh, meu Deus, George! — exclamou a moça. — Você e Philip estavam brigando novamente. Vocês dois não passam de dois moleques brigões.
Heath rilhou os dentes.
— Não se envolva nisto, boneca.
— Oh! — riu a moça, acanhada. — Foi disto que o Senhor Puttle me chamou, ontem à noite.
Heath voltou-se novamente para Burns, que estava muito aborrecido.
— Por que você e Allen estavam discutindo?
O homem rolou os olhos, numa expressão vaga, como se tivesse medo de responder e como se receasse não responder. Finalmente, gaguejou:
— Era por causa de Gracie... por causa da Senhorita Allen. Parece que Philip não gosta de mim. Ele me disse para me afastar desta casa. E depois disse que eu não sabia vestir-me... Que eu não era elegante como o tal Puttle...
— Bem, eu também tenho alguma coisa a lhe dizer. E é uma coisa elegante...
Vance deu uma palmadinha rápida em um dos ombros do sargento e lhe cochichou alguma coisa.
Heath endireitou o corpo e, girando nos calcanhares, apontou para a moça.
— Vá para a outra sala, senhorita. Tenho algo a dizer a este rapaz a sós... Entende? A sós.
— Isso mesmo, Gracie. — Fiquei surpreso por ouvir a voz tranqüila da Senhora Allen. Ela estava de pé, timidamente, alojada em uma pequena abertura entre as portas corrediças, ao fundo da sala. Eu não sabia quanto tempo ela estivera ali. — Venha comigo, Gracie, e deixe estes senhores com George.
A moça não discutiu, e foi com a mãe para o quarto dos fundos, e as duas fecharam as portas ao passar.
— E agora, vamos às más notícias, meu jovem — recomeçou Heath, avançando ameaçadoramente rumo ao confuso Burns. Mas Vance tornou a interrompê-lo.
— Um instante, sargento. Senhor Burns... Por que ficou tão surpreso com o cheiro que havia na sua cigarreira?
— Eu não... Eu não sei, na verdade. — Burns franziu o cenho. — Não é um perfume comum, e há muito tempo não o tenho encontrado. Mas no restaurante, ontem à noite, eu o notei, e muito forte, no saguão da frente, quando eu ia entrando no salão do restaurante.
— Quem o estava usando?
— Oh, eu não poderia saber. Havia tanta gente lá... Vance pareceu satisfeito e, com um gesto, entregou o rapaz novamente ao sargento.
— Bem, aqui está a notícia ruim — disse Heath a Burns, em tom áspero e de excesso de autoridade. — Nós encontramos um sujeito morto, ontem à noite... e a sua cigarreira achava-se no bolso da vítima.
A cabeça de Burns saltou para cima, com um puxão, e uma luz de espanto e susto lhe apareceu nos olhos.
— Meu Deus! — disse ele, sem fôlego. — Quem... Quem fez isso?
Heath deu um sorriso cruel.
— Eu nem posso imaginar. Talvez você possa.
— Não foi... Philip! — e Burns ficou sem voz. — Oh, meu Deus... Sei que não está aqui hoje. Mas ele saiu da cidade... Juro que ele saiu. Ontem, disse-me que ia para outra cidade.
— Você é esperto, mas não o bastante, embora tenha sido bem habilidoso, tentando jogar a culpa em outra pessoa, com aquela história de perfume. — Heath fez uma pausa e depois tomou subitamente uma decisão. Fez um breve sinal a Emery. — Nós vamos levar este rapaz conosco — anunciou ele. — Vamos deixá-lo onde possamos alcançá-lo com facilidade.
Vance tossiu discretamente.
— Então, você vai prendê-lo sob suspeita, não é, sargento? Ou, talvez, como testemunha material.
— Não me importa que nome se dê a isso, Senhor Vance. Ele vai ficar quietinho em um lugar de onde não possa sair, pensando muito na vida, até que tenhamos o relatório do Dr. Doremus... É melhor pôr-lhe as pulseiras, Emery, até chegarmos à esquina e chamar o tintureiro.
Heath e Emery estavam levando o atônito Burns para a porta, quando Gracie Allen voltou correndo para a sala, depois de se libertar das mãos da sua mãe, que tentava segurá-la.
— Oh, George, George! Que aconteceu? Para onde eles vão levá-lo? Tive um pressentimento... Como quando uso minha mediunidade...
Vance chegou até junto dela e colocou as duas mãos nos seus ombros.
— Minha querida menina — falou ele, em tom consolador. — Por favor, creia em mim quando digo que você não precisa preocupar-se com coisa alguma. Não torne a coisa mais difícil para o Burns... Não quer confiar em mim?
A jovem deixou pender a cabeça e virou-se para a mãe. Os dois policiais, com Burns entre eles, já haviam saído da sala; e, quando Vance se virou e tornou a abrir a porta, a voz delicada da Senhora Allen se fez ouvir novamente.
— Obrigada, Senhor Vance. Tenho certeza de que Gracie confia no senhor... como eu confio.
A cabeça da moça estava apoiada no ombro da mãe.
Oh, mamãe — disse ela, fungando. — Não me importa nem um pouco o fato de
George não se vestir com tanta elegância quanto o Senhor Puttle.


CAPITULO X
UMA VISITA INESPERADA
(Domingo, 19 de maio — 12:00 horas)

Quando o carro da polícia chegou e o infeliz Burns ia entrando no veículo para ser levado, Vance lhe sorriu de maneira a encorajá-lo.
— Ânimo — falou ele, e depois ficou vendo o tintureiro afastar-se. Logo que o veículo sumiu de vista, Vance tomou um táxi e foi imediatamente para o apartamento do procurador distrital.
— Realmente, Markham — começou ele. — O sargento Heath é lógico demais. Em condições normais, eu receberia de bom grado a providência dele, mas neste caso preciso pedir a sua intervenção.
Em seguida, fez um resumo a Markham de todos os acontecimentos que tinham ocorrido desde que nós saíramos do seu apartamento, na noite anterior. A visita ao necrotério e a promessa à Senhora Allen; o fato de Heath ter descoberto a cigarreira e a sua busca a Burns, a noite inteira; a entrevista com o estarrecido jovem, quando ele foi encontrado; e, finalmente, a decisão de Heath de deixar Burns preso até chegar o relatório de Doremus.
Markham ouviu atentamente, mas sem entusiasmo.
— Acho que, no todo, Heath fez um serviço muito inteligente. Não compreendo onde ou por que você deseja que eu intervenha.
— Burns é inocente — garantiu Vance. — E sou inflexível na minha crença. Portanto, desejo que você telefone para o distrito policial e diga a Heath para libertá-lo. Na verdade, Markham, insisto em que você faça isso. Mas, primeiro, desejo que o sargento traga o rapaz aqui, se você não se opuser a que ele venha à sua casa. Desejo que ele entenda claramente que uma das condições para a sua libertação é o sigilo absoluto, por enquanto, a respeito do fato de que Philip Allen está morto no necrotério. Foi isso que prometemos à Senhora Allen, e Burns precisa cooperar conosco, ao ser libertado. Por favor, faça logo isto, meu caro amigo.
— Você conhece o tal Burns? — indagou Markham.
— Eu só o vi duas vezes. Mas tenho meus caprichos, sabe?
— O que é um eufemismo como outro qualquer para o seu atual desequilíbrio mental... Por que deseja que esse rapaz seja libertado?
— Estou encantado pela ninfa dos bosques — sorriu Vance Markham uniu os lábios, aborrecido.
— Se eu não o conhecesse, diria que...
Ora, vamos, seja bonzinho e telefone logo ao Heath.
Markham levantou-se, resignado: ele conhecia Vance há muito tempo e sabia que, por trás dos seus gracejos, havia muitas vezes seriedade. Depois, foi rumo ao telefone.
— O caso é seu — falou ele — se é que há um caso, e você pode dirigi-lo à sua vontade. Já tenho minhas próprias dificuldades.
O sargento mal havia chegado ao distrito policial, quando Markham telefonou e lhe deu ordens de acordo com o pedido de Vance.
Quinze minutos depois, Heath entrava escoltando Burns na biblioteca do procurador distrital. Vance descreveu cuidadosamente as circunstâncias a Burns e lhe exigiu uma promessa formal de não revelar a ninguém a morte de Philip Allen, impressionando-o com relação à própria Gracie Allen dentro do assunto.
George Burns, com inconfundível sinceridade, prontamente concordou com a exigência, e o sargento lhe disse que estava livre para se retirar.
Mas, quando ficamos a sós, Heath desabafou.
— E depois de todo o trabalho que tive ontem à noite! — queixou-se ele, amargamente. — Encontrar a cigarreira; perder meu sono e fazer um trabalho difícil hoje cedo; amarrar aquele sujeito e levá-lo para onde eu o queria... E foi tudo idéia sua, Senhor Vance. E, agora, quando lhe encontro alguma coisa palpável, que faz o senhor? Manda soltar o passarinho!
E mascou furiosamente seu charuto.
— Mas, se pensa que não vou mandar vigiar aquele sujeito, então não é muito esperto, Senhor Vance. Mandei o Tracy para cá, antes de vir, e ele vai seguir o Burns a partir do instante em que ele sair deste prédio.
— Ora, mas é claro que eu esperava que você fizesse exatamente isso. — E Vance deu de ombros, de maneira agradável.
— Mas, por favor, sargento, não fique com uma impressão errônea do meu capricho de libertar o jovem misturador de perfumes. Vou-me empregar a fundo no sentido de resolver este caso intricado. E esperarei o relatório do médico legista, ansiosamente... A propósito, em meio à sua roda-viva de atividade, você ficou sabendo de alguma coisa a respeito da autópsia?
— Claro que fiquei — falou Heath. — Telefonei ao Dr. Doremus pouco antes de sair do posto policial. Ele brigou comigo, como sempre, mas disse que iniciaria a autópsia logo depois do almoço, e que logo à noite o relatório estaria pronto.
— Ótimo — suspirou Vance. — Eu o cumprimento, sargento, e peço desculpas por ter atrapalhado o seu plano, admirável mas inútil, de privar o Senhor Burns da sua liberdade. Mas espero que isso não distraia sua atenção do trabalho de proteção da vida de Markham contra a ameaça de Pellinzi.
— Nada me vai distrair nem me impedir que me preocupe com o Abutre e com o Senhor Markham — garantiu Heath. — Não se preocupe! Aquele escritório está sendo vigiado dia e noite, e há auxiliares valentes meus, prontos para agarrarem aquele facínora se ele aparecer.
O sargento retirou-se alguns minutos depois, e Vance e eu aceitamos o convite de Markham para ficar para o almoço.
Eram quase três horas quando nós voltamos para o apartamento de Vance. Currie veio ao nosso encontro na porta, mostrando-se muito preocupado.
— Estou horrivelmente perturbado, patrão — disse ele, em voz baixa. — Há uma jovem incrível aqui à sua espera. Tentei firmemente mandá-la embora, senhor, mas não consegui fazê-la compreender. Ela era muito resoluta e muito ousada, patrão. — Deu uma rápida olhada para trás. — Eu a tenho estado observando muito cuidadosamente, e tenho certeza de que ela não tocou em nada. Espero, senhor...
— Você está perdoado, Currie — Vance interrompeu as desculpas do preocupado velhote e, entregando-lhe o chapéu e a bengala, foi diretamente para a biblioteca.
Gracie Allen estava sentada na enorme espreguiçadeira de Vance, e estava sumida no imenso estofamento de veludo. Quando saltou de pé a fim de saudar Vance, foi sem a exuberância de antes.
— Olá, Senhor Vance — disse ela, em tom solene. — Aposto que não me esperava ver. E também que o senhor não sabe como descobri o seu endereço. E o velhote rabugento que me recebeu na porta também não me esperava ver. Mas ainda não lhe contei como descobri seu endereço. Foi da mesma forma usada para descobrir seu nome... Lendo-o no seu cartão de visitas. Embora na verdade eu não tenha vontade de ir buscar aquele vestido novo, amanhã. Talvez eu não vá. Isto é, talvez eu espere até saber que não aconteceu nada ao George...
— Alegra-me muito que você tenha sido esperta e tenha descoberto meu endereço. — E o tom de voz de Vance era suave. — E também estou encantado pelo fato de você continuar usando o perfume de cidra.
— Ah, sim! — E ela olhou para Vance, agradecida. — A princípio, eu não gostava muito deste perfume, mas, agora, não sei por que... eu o adoro! Não é engraçado? Mas creio na mudança de idéia dos outros. Suponha que...
— Sim — disse Vance, com um movimento de cabeça e um sorriso leve. — Só a fantasia tem consistência: os duendes e as fadas existem mesmo...
— Mas eu não creio em duendes... Isto é, não tenho acreditado desde meus tempos de criança.
— Não, claro que não.
— E, quando descobri que o senhor morava tão perto de mim, achei isso muito conveniente, pois eu tinha de lhe fazer um punhado de perguntas importantes. — Ela olhou para Vance, de baixo para cima, como se para ver qual a reação dele às suas palavras. — E, ah... eu descobri algo mais a seu respeito! Seu nome tem cinco letras... como o meu e o do George.
É o destino, não é? Se o senhor tivesse seis letras, talvez eu não tivesse vindo. Mas, agora, sei que tudo vai acabar bem, não vai?
— Sim, minha cara — disse Vance, com um aceno afirmativo de cabeça. — Tenho certeza de que vai.
De repente, ela deixou escapar o fôlego, como se tivesse afastado com sucesso um ponto controvertido.
— E, agora, quero que o senhor me conte exatamente por que aqueles policiais levaram o George. Estou muito assustada, preocupada e aborrecida, embora o George tenha-me telefonado, dizendo que estava bem.
Vance sentou-se de frente para a moça.
— Você não precisa se preocupar por causa do Senhor Burns — começou ele. — Os homens que o levaram hoje cedo cometeram a tolice de achar que havia circunstâncias suspeitas ligadas com a pessoa dele. Mas tudo se esclarecerá dentro de um dia ou dois. Por favor, confie em mim.
Havia completa confiança no olhar franco da jovem.
— Mas deve ter sido alguma coisa muito séria o que fez aqueles homens irem hoje à minha casa e aborrecerem tanto o George.
— Mas — explicou Vance — eles apenas pensavam que era séria. A verdade, minha amiga, é que um homem foi encontrado morto, ontem à noite, no Domdaniel e...
— Mas que é que o George poderia ter tido a ver com isso, Senhor Vance?
— Ora... Na verdade, tenho certeza de que ele não teve nada a ver com isso.
— Então, por que os policiais agiram de maneira tão esquisita a respeito da cigarreira que dei a George? Afinal, como foi ela parar nas mãos deles?
Vance hesitou vários instantes. Depois, pareceu ter tomado uma decisão quanto até que ponto esclareceria a moça.
— Para ser franco — explicou ele, com paciência — a cigarreira do Senhor Burns foi encontrada no bolso do homem morto.
— Oh! Mas o George não daria a outra pessoa um objeto que eu lhe dei de presente...
— Como eu já disse, acho que foi tudo um engano lamentável.
A jovem olhou para Vance durante longo tempo, com um olhar perscrutador.
— Mas suponha, Senhor Vance... Suponha que o tal homem não tenha morrido de morte natural. Imaginemos que ele tenha sido... bem, que tenha sido assassinado, como o senhor disse que matou aquele homem em Riverdale, ontem. E suponha que a cigarreira do George tenha sido encontrada no bolso dele. Tenho lido, nos jornais, que algumas vezes a polícia prende inocentes, julgando-os culpados de certos crimes, e de como... — ela parou, de repente, e levou as mãos à boca, horrorizada.
Vance inclinou-se e pousou a mão no braço da moça.
— Por favor, minha querida criança! — disse ele. — Você está recomeçando a acreditar em duendes. E não deve. Duende é coisa que não existe, é pura imaginação. Nada vai acontecer ao Senhor Burns.
— Mas podia acontecer! — E com isso mostrou que seus temores estavam apenas ligeiramente amenizados. — Não compreende? Podia! E o senhor tem de ser um detetive muito bom, se alguma coisa assim acontecer!
Havia uma expressão amedrontada e suplicante nos olhos
da moça.
— Hoje de manhã, depois da saída de George, fiquei terrivelmente preocupada. E sabe o que foi que fiz? Fui à casa de Delpha, conversar com ela. Eu sempre procuro Delpha quando estou em apuros... e algumas vezes até quando não estou. E ela sempre diz que se alegra em me ver, pois gosta da minha presença. Acho que é porque eu sou médium, uma médium forte. E a presença de médiuns faculta a concentração, sabe? A casa de Delpha é exótica. A princípio, dá arrepios na gente. Há cortinas pretas e compridas, penduradas por toda a casa, e a gente não vê janelas. E existe só uma porta. E, quando as cortinas pretas são puxadas, fechando a porta, a pessoa sente como se estivesse em algum lugar muito distante, em companhia de Delpha e dos espíritos que lhe contam coisas.
Gracie olhou ao seu redor e estremeceu ligeiramente.
— Além disso, nas cortinas pretas de Delpha existem grandes gravuras de mãos, com inúmeras linhas. E há também sinais esquisitos, que Delpha chama de símbolos. Em cima de uma mesa, existe uma bola grande de vidro e outra, pequena. E mapas dos astros, com palavras engraçadas ao redor, que significam alguma coisa, quando a gente é um caranguejo, um peixe ou uma cabra, ou coisas assim.
— E que foi que Delpha lhe disse? — perguntou Vance, com bondoso interesse.
— Ah! Eu não lhe contei, contei? — E o rosto da jovem se iluminou. — Delpha mostrou-se muito misteriosa e pareceu terrivelmente surpresa quando eu lhe falei a respeito de George. Ela me fez as perguntas mais esquisitas: todas sobre os homens que foram à minha casa e a respeito da cigarreira... Era como se ela estivesse tentando arrancar-me revelações. Acho que ela estava procurando ler meu pensamento, porque minha mente vibrava. E Delpha sempre diz que ajuda muito quando uma pessoa está bem concentrada ao consultá-la. Em todo caso, ela disse que nada vai acontecer ao George... como o senhor mesmo disse. Só que ela falou que eu preciso ajudá-lo...
A moça olhou ansiosamente para Vance.
— O senhor me ajudará a tirar o George de apuros, não ajudará? Mamãe falou que o senhor lhe disse que ia fazer tudo que pudesse por nós. Sei que posso trabalhar de detetive, se o senhor me ensinar. É que... Preciso ajudar o George, entende?
Intrigado e perturbado pelo pedido sincero da jovem, Vance levantou-se, pensativo, e caminhou até à janela. Finalmente, voltou para junto da sua cadeira e tornou a sentar-se.
— Então, você quer ser detetive! — disse ele, alegremente.
— Acho que é uma excelente idéia, e vou dar-lhe toda a ajuda que puder. Nós dois vamos trabalhar juntos; você será minha assistente, por assim dizer. Mas você precisa trabalhar muito. E precisa não deixar ninguém suspeitar que você está fazendo serviço de detetive... Essa é a primeira regra.
— Oh, é maravilhoso, Senhor Vance! É exatamente como em um romance policial. — E a moça ficou imediatamente animada.
— Mas, agora, diga-me o que preciso fazer para ser detetive.
— Muito bem — começou Vance. — Vejamos... Primeiro, é claro, você precisa anotar tudo que possa ajudar o seu trabalho. Pegadas em lugares suspeitos são um bom ponto de partida. Quando alguém caminha pisando em terreno macio, naturalmente deixa pegadas. E então, medindo essas pegadas, pode-se dizer que número de sapatos a pessoa usa...
— Mas suponha — interrompeu a jovem — que a pessoa estivesse usando sapatos de número maior, apenas para nos enganar?
Vance sorriu com admiração.
— Esta, minha criança — disse ele — é uma observação muito hábil. Já houve quem fizesse exatamente isso. No entanto, não creio que nos precisemos preocupar com essa questão, por enquanto... Agora, prosseguindo, o detetive deve sempre examinar os blocos de escrivaninha, à procura de pistas. Geralmente, o que é escrito em um bloco, na folha de cima, pode ser lido quando se leva a folha a um espelho.
Vance demonstrou isso para ela, e a jovem ficou tão fascinada como se estivesse vendo um mágico trabalhar.
— Além disso, outro ponto muito importante são os cigarros. Se o detetive encontra uma ponta de cigarro, talvez consiga dizer quem o fumou. Deve começar procurando uma pessoa que fuma a tal marca de cigarro. E algumas vezes a ponta de cigarro costuma revelar o fumante. Quando há batom na ponta de cigarro, então já se sabe que ele foi fumado por uma mulher que usava batom.
— Ah! — E de repente a moça ficou desolada. — Talvez, se eu tivesse examinado cuidadosamente o cigarro que queimou meu vestido, ontem, eu pudesse dizer quem o jogou.
— É possível — retrucou Vance, alegremente. — Mas há muitas outras maneiras de tirar a limpo as suspeitas que a gente tenha a respeito das pessoas. Por exemplo, se alguém tivesse ido cometer um crime em uma casa onde houvesse um cão vigia, e se o detetive soubesse que o cão não latiu com esse alguém, então poderia concluir que o criminoso era amigo do cachorro. Como é sabido, os cães não latem para as pessoas amigas.
— Mas suponha — interrompeu a jovem — que a futura vítima tivesse em casa não um cão, mas sim um gato, ou mesmo ... ou mesmo um canário. Que é que o detetive deve fazer, nesse caso?
Vance não pôde deixar de rir.
— Nesse caso, o detetive tem de procurar outras coisas que identifiquem o culpado...
— É aí que as pegadas vêm a calhar, não é? Mas há muita gente que usa o mesmo número de sapatos. Os meus servem perfeitamente nos pés da minha mãe. E, além disso, os dela servem em mim.
— Ainda há outras maneiras...
— Conheço uma! — interrompeu ela, triunfante. — Que tal o perfume? Por exemplo, se encontrássemos no local do crime uma bolsa de mulher, e essa bolsa cheirasse Frangipanni... e não uma que usasse Gardênia... Mas eu não seria muito hábil nisso, o senhor seria? Estou sempre confundindo os cheiros de perfumes. Isso deixa o George furioso. Mas ele seria simplesmente maravilhoso na hora de reconhecer o perfume de um criminoso. George é capaz de reconhecer imediatamente qualquer espécie de perfume e dizer de onde é que ele vem, e de falar tudo a respeito do mesmo... Mesmo quando não consigo sentir o cheiro de nada. Ele tem uma espécie de dom inato... Como quando ele cheirou a cigarreira, hoje de manhã... Mas, por favor, prossiga, Senhor Vance.
Realmente, Vance prosseguiu, durante mais de meia hora, ensinando-lhe cuidadosamente as coisas que, segundo ele sabia, interessariam à moça. Não havia nenhuma dúvida quanto à sua compreensão e simpatia, quando, na hora em que a jovem estava para ir embora, ele telefonou para Currie e lhe deu instruções bem claras.
— Esta moça, Currie, — falou ele — deve ser recebida sempre que vier aqui. Se eu estiver fora e ela quiser esperar-me, dê-lhe as boas vindas e ponha-a à vontade aqui.
Quando a Senhorita Allen se retirou, Vance me disse:
— A impressão de ter em quem se apoiar fará muito bem àquela pobre mocinha, no momento. Ela está muito infeliz e bastante assustada. A nova ocupação que ela imagina ter será para ela um tônico provisório, mas necessário... Desconfio, Van, de que estou ficando um tanto sentimental com o correr dos anos. Estou amolecendo com a idade, como as uvas da França.
E bebericou lentamente o seu conhaque.


CAPITULO XI
FOLCLORE E VENENOS
(Domingo, 19 de maio — 21:00 horas)

Naquela noite, Markham telefonou a Vance, às nove horas. Este ouviu atentamente durante vários minutos, e enquanto ouvia ia franzindo profundamente a testa, com uma expressão intrigada. Finalmente, pendurou o fone e virou-se para mim.
— Nós vamos ao apartamento de Markham. Doremus está lá. Isso não me agrada... Isso não me agrada nem um pouco, Van. Doremus telefonou a Markham, há poucos instantes, cheio de novidades e de mistério. Não sabia onde Heath se achava e, em todo caso, queria mesmo antes falar com Markham. Este deve ter localizado o mal-humorado sargento, e agora deseja que eu também vá até lá. Só um desastre cataclísmico poderia agitar o irascível Doremus o bastante para que ele fosse ao encontro do procurador distrital, em vez de apenas entregar seu relatório oficial. É muito intrigante...
Uns quinze ou vinte minutos depois, um táxi nos deixava bem defronte à casa de Markham. Um chamado em voz áspera nos fez parar no instante exato em que íamos entrando no prédio, e o sargento Heath surgiu, andando depressa.
— Acabo de receber o recado do procurador distrital, lá em casa, e vim correndo para cá — disse Heath, ofegante. — Acho que é uma coisa esquisita, Senhor Vance.
O mordomo abriu-nos a porta, e depois nós o seguimos para a biblioteca, onde Markham e o Dr. Doremus nos aguardavam.
O médico apertou os olhos e olhou para Heath com expressão malévola.
— Só poderia, mesmo, ser um dos seus casos — roncou ele, sacudindo um dedo na direção do sargento, com ar acusador. - Por que você nunca pode arranjar um assassinato simples e fácil, em vez de me trazer esses casos cabulosos? — E depois acenou a Vance, em uma fraca tentativa de parecer alegre.
Doremus era um homem pequeno e ardente, que dava mais a impressão de ser um rabugento corretor da Bolsa de Valores do que um cientista altamente eficiente.
— Estou ficando farto desses seus assassinos complicados — prosseguiu ele, falando com o sargento. — Além disso, desde o meio-dia que eu não como. Não posso comer direito nem aos domingos. Você e os seus cadáveres malucos!
O sargento sorriu e ficou calado. Ele conhecia Doremus há muito tempo, e desde então habituara-se a aceitar suas maneiras excêntricas e algumas vezes ranzinzas.
— Não, doutor — interrompeu Vance, em tom apaziguador. — O pobre do sargento é apenas um espectador inocente... Afinal de contas, qual é a dificuldade?
— O senhor também está trabalhando neste caso, hem? — retorquiu Doremus. — Eu já devia saber! Êi, o senhor não gosta de ver pessoas mortas a tiros ou a punhaladas, em um crime limpo e bonito, em vez de serem envenenadas, para que eu tenha de trabalhar o tempo todo?
— Envenenadas? — perguntou Vance, curioso. — Quem foi envenenado?
— O cadáver de que estou falando — gritou Doremus. — O sujeito que Heath me entregou para autopsiar. Esqueci o nome dele.
— Philip Allen — informou o sargento.
Pois bem, não importa. Ele estaria tão morto quanto está, qualquer que fosse o seu nome. E o que me deixa mais furioso é que não sei mais, sobre o que o matou, do que se ele fosse um zulu morto em Isipingo.
— O senhor falou em veneno, doutor — disse Vance, calmamente.
— Falei, sim — disse Doremus, em tom áspero. — Mas não sei que espécie de veneno. Não confere com nenhum dos meus livros sobre Toxicologia.
— Na verdade, isso não parece exatamente científico, sabe? — sorriu Vance. — Espero que não estejamos retrocedendo ao misticismo.
— Oh, é bastante científico — insistiu Doremus. — O veneno — seja qual for — foi, sem dúvida, absorvido pela derme ou pela membrana mucosa. Poderia ter sido um sem-número de venenos. Mas não consegui nenhuma reação clara com as provas de laboratório que geralmente dão resultados evidentes. Poderia ser uma combinação de drogas. — O médico grunhiu. — Contudo eu descobrirei o que é. Mas não esta noite. Talvez leve um dia. Nunca deparei com uma autópsia tão complicada.
— É fácil crer nisso de imediato — falou Vance. — Do contrário, o senhor não estaria aqui esta noite.
— Talvez eu não devesse estar. Mas este sujeito cacete — e apontou para Heath — não cessou de dizer que o caso era muito importante e que talvez tivesse relações com a segurança do Senhor Markham. Pareceu-me um logro, mas achei melhor dizer a ele que não podia fornecer um relatório definitivo esta noite. Ele que se preocupe... Tenho fome.
— Que é que tenho eu a ver com isto, sargento? — E o tom de voz de Markham continha uma censura aguda.
— O cadáver não estava no escritório de Mirche, chefe? — defendeu-se Heath, de forma agressiva. — E é lá que tenho estado alerta ao aparecimento de uma ameaça à sua vida... E Hennessey está de vigia lá, e tudo — concluiu ele, desajeitadamente, enquanto Vance o interrompia de chofre com um aceno de mão.
— Nós agradecemos o seu trabalho e a sua gentileza, doutor — falou Vance. — O senhor tem certeza absoluta de que Philip Allen não podia ter morrido de morte natural?
— Não, a não ser que a ciência médica tenha ficado completamente maluca — retrucou Doremus, de forma enfática. — Aquele sujeito foi envenenado... Disso tenho certeza. Não admira que o jovem Mendel tenha ficado desanimado com o caso. O que provocou a morte da vítima foi não só um veneno, mas ainda um veneno rápido e poderoso, capaz de produzir efeito imediato. Mas a droga atuou de maneira totalmente diferente daquelas cujo efeito estou habituado a ver nas vítimas cuja autópsia tenho feito.
— Mas, doutor — insistiu Vance. — O senhor deve ter alguma idéia do que tenha sido.
— Ora, tenho muitas idéias. É justamente essa a minha dificuldade: tenho idéias demais a respeito.
— Por exemplo?
— Bem, há o nosso velho amigo, o cianeto de potássio. Há muitos indícios de que seja ácido cianídrico. Acho que ele cheirou algumas vezes o gás cianeto e perdeu os sentidos. Os olhos esbugalhados e a cor da pele podem significar cianeto... e também podem significar outra coisa. E percebi um pouco do cheiro nos pulmões e na mucosa estomacal. Mas nada na boca, nem quando abri a cavidade craniana. Mas isso também não significa nada, principalmente pelo fato de terem aparecido muitas outras coisas que não significavam a presença de ácido prússico, de trás para diante ou de diante para trás, ou nos dois sentidos, a partir do meio.
— Acho que o Dr. Mendel falou em queimaduras, talvez uma reação local, nos lábios e na garganta. Que me diz disso?
— Sei lá... — E Doremus parecia aborrecido com o mundo inteiro. — O cheiro que senti nos pulmões dele indicava uma provável inalação de algum gás, conforme eu já disse.
— Poderia ter sido nitrobenzeno? — sugeriu Vance.
— Não sei... Sou apenas médico.
— Ora, vamos, doutor — falou Vance, bem-humorado. — Estou apenas tentando afastá-lo dos tóxicos antigos.
Doremus sentou-se com um movimento rápido e sorriu, à guisa de desculpa.
— Não o culpo, Senhor Vance. Estou aborrecido e com raiva. Talvez eu esteja falando como se tivesse andado metido com egípcios antigos, com mandrágora e venenos de víboras... Com poções ciganas secretas, com unguentos de bruxas com seus meimendros negros, com os venenos dos Bórgias, com água Perugia e com água Tofana...
— O senhor disse Tofana, doutor? — interrompeu Heath. — Esse é o nome da tal cartomante chamada Delpha, Senhor Vance. E acho que ela e o marido são perfeitamente capazes de envenenar uma pessoa.
— Não, sargento, não — corrigiu Vance. — A Tofana de que o doutor está falando morreu na Sicília no século dezessete. E não era cartomante. Longe disso. Ela dedicava seu talento a misturar um líquido que desde então ficou sendo conhecido pelo seu nome. Água Tofana era um veneno mortífero. E a tal mulher vendeu seu veneno em escala tão grande, que o nome do seu preparado nunca mais foi esquecido. Embora talvez sua mistura não passasse de uma solução forte de arsênico, ainda hoje há muito mistério ligado a esse preparado. E era a essa mulher, morta há vários séculos, que o Dr. Doremus estava se referindo.
— Ainda assim, digo que Rosa Tofana seria capaz de cometer a mesma infâmia —insistiu Heath, obstinadamente.
— Você parece espantosamente cheio de ódios e de desconfianças, sargento.
— Na minha profissão, eu tenho de ser assim — murmurou Heath.
Vance virou-se para Doremus.
Desculpe-nos por interrompermos, doutor. Parece que o caso que estamos atualmente investigando nos deixou a todos amargurados... Mas que me diz dos venenos tirados de flores? Seria difícil identificá-los, não seria?
— Não! Seria até bem fácil, mas levaria tempo. E eu os conheço todos. Acho que o senhor se refere: à colquicina, tirada do açafrão do campo; à heleborina, extraída da rosa-de-natal, à narcisina, tirada do narciso do prato, e à convalarina, extraída do lírio do vale... Coisas assim. Mas garanto-lhe que o veneno que deu cabo da vida de Philip não foi nenhuma droga suave como essas... Ou talvez... — E piscou um olho para Vance, astutamente. — Agora, é o senhor quem está falando a respeito dos assim chamados venenos do romance medieval. Bolas! A ciência moderna ri deles.
— Não... Oh, não. Não me extraviei até tão longe — riu Vance. — Estava apenas pensando no mascate ambulante de Londres, que vendia perfumes, e que perdeu os sentidos quando cheirou o óleo de mirbana que pusera nas flores para tornar o cheiro delas mais forte.
— Não é nada parecido com isso. — Doremus sacudiu a cabeça, desdenhosamente. — Estou apenas dizendo que ainda não sei o que foi que o tal Allen cheirou... Mas me dêem um pouco de tempo e amanhã descobrirei. E, além disso, não será uma coisa tão maluca quanto agora quer parecer.
— O senhor é capaz de dizer quando foi que ele morreu, doutor? — indagou Heath.
Doremus olhou furioso para o sargento.
— Ora, como iria eu saber? Não sou nenhum adivinho. Foi só hoje à tarde que vi o cadáver. — Sua raiva diminuiu quando ele viu a decepção de Heath. — Falei com o Dr. Mendel, mas ele não quis arriscar um palpite. Disse que não havia a rigidez de morte quando viu o cadáver pela primeira vez. Mas ninguém pode acompanhar o enrijecimento dos músculos com um cronômetro. O começo desse fenômeno é altamente variável e depende de vários fatores que incidem sobre ele. Pelo que pude saber, o homem podia ter morrido umas duas horas antes de ter sido encontrado, ou podia ter morrido até dez horas antes... Não sei, Mendel não sabe e nem os senhores sabem...
Depois que Doremus desabafou um pouco mais, deixou-nos, com um alegre aceno de mão.
— Bem, Vance — disse o procurador distrital. — Agora, como é que você pretende encaixar essa situação absurda na sua história?
Vance sacudiu a cabeça, pensativo.
— Não sei, Markham. Mas fique sossegado, que ela tem de encaixar em algum lugar, e ainda estou confuso diante dos diversos fatores convergentes do meu conto... E a sua referência aos Tofanas foi muito curiosa, sargento. Rosa Tofana, a sua amiga, está demonstrando uma estranha curiosidade a respeito do cavalheiro morto...
Vance levantou-se e caminhou várias vezes de um lado para outro.
— Ainda não confesso que estou derrotado, Markham. Existem muitas perguntas na minha mente, que clamam por respostas. Por exemplo, como foi que a vítima tornou a entrar na sala de Mirche, depois que Hennessey o viu lá, às seis horas?
— Hennessey devia estar olhando para outro lado — falou Heath, impassível.
— Isso não é provável, sargento. Aconteceu alguma coisa muito esquisita lá.
Vance ficou fumando algum tempo, em silêncio.
— Gostaria de ver as plantas da reforma do velho casarão, quando Mirche resolveu instalar o restaurante. Deve haver algo sugestivo nelas. Confesso que é um desejo estranho, mas eu gostaria de examiná-las.
— Não vejo o que adiantaria ver as tais plantas — falou Heath. — Mas, se quer mesmo vê-las, posso arranjá-las com facilidade para o senhor. Doyle e Schuster foi a firma que fez a reforma, e eu já tive negócios com o desenhista-chefe deles.
— Acho que isso ajudaria muito, sargento. Quando é que você poderia conseguir essas plantas para mim?
— Antes que o senhor se levante, de manhã — retrucou o outro, confiante. — Digamos, por volta das dez horas.
Markham parecia divertido.
— Por que não espera até Doremus mandar o relatório final?
— Tem toda razão — admitiu Vance, com relutância. — Gosto das coisas simples. Além disso, tenho de pensar em uma jovem muito suplicante.
— Eu lhe garanto — falou Markham, sem nenhuma pena — que depois de examinar as plantas, amanhã, você terá tempo de sobra para pensar na tal jovem suplicante.
— Não... Não, Markham — disse Vance sério. — Não é uma questão de leviandade...
Depois, ele contou, com pormenores, a visita patética feita a ele naquela tarde por Gracie Allen. Seu pedido de ajuda, sua preocupação por Burns, e as sugestões que ele, compadecido, dera para que a jovem mantivesse a mente ocupada.
— Eu e o sargento — concluiu ele — fizemos uma promessa à mãe dela. E, depois da visita inesperada da moça, hoje, quero encarecer a vocês dois a necessidade de mostrarmos consideração para com a jovem, sempre que ela resolver intrometer-se no nosso trabalho.
— Considero um prazer, para não dizer uma coisa rara, elogiar a sua meticulosidade sentimental — observou Markham. — Mas talvez eu não seja chamado a ajudar nesse logro caridoso. Acho que a situação cairá com violência sobre você e o sargento.
— Para mim, isso não tem importância, chefe — falou Heath. — A Senhora Gracie Allen é muito amável. E sua filha é muito bonita.
Vance sorriu, agradecido.
— Você terá de ser um tanto cuidadoso, sargento. O melhor modo de enfrentar a situação é não mostrar nenhuma pena, aparentemente. Isso poderia deixar a moça desconfiada. Devemos agir, em qualquer tempo, como se não soubéssemos mais,
a respeito da morte do seu irmão, do que ela própria. É preciso ser ator, sargento. Você seria capaz de representar?
— Claro que representarei! — E a voz de Heath era decidida e sincera. — Mas ainda não sou tão insensível que possa prometer não sentir um nó na garganta de vez em quando...
E o sargento parecia um tanto envergonhado da extravasação de sentimentos, tão inadequada para ele.
— Raios! — acrescentou ele, depressa. — Vou acabar sendo um daqueles ídolos de filmes infantis.

CAPITULO XII
UMA ESTRANHA DESCOBERTA
(Segunda-feira, 20 de maio — 9:00 horas)

Vance relutara em deixar o apartamento de Markham, na noite de domingo, e ficara lá até tarde. Mas, na manhã seguinte, levantou-se mais cedo do que o costume. Por volta das oito e meia, ele já estava completamente vestido e já tomara seu café. Pouco depois das nove horas, o sargento Heath chegou e entrou na biblioteca em passos largos e triunfantes.
— Aqui estão elas, Senhor Vance — anunciou ele, colocando um rolo comprido de papelão em cima da escrivaninha. — Se todos os meus trabalhos fossem tão fáceis de fazer como obter estas plantas para o senhor, eu jamais morreria de excesso de serviço.
— Céus, que eficiência!
Vance tirou as plantas do invólucro e estendeu-as em cima da escrivaninha. Estudou-as todas, minuciosamente, examinando separadamente a planta de cada piso. No entanto, dedicou mais tempo à planta do andar térreo, que incluía o salão do restaurante, o saguão de entrada e as salas onde eram guardados os abrigos dos fregueses, onde ficava a cozinha e onde estava instalado o escritório. O sargento ficou observando-o com uma expectativa divertida.
— Muito convencional — murmurou Vance, tamborilando nas folhas com o dedo. — Umas plantas muito boas. Feitas com inteligência. Nada mais, nada menos. Triste... Muito triste.
Nesse instante, Gracie Allen chegou, inesperadamente. Entrou na bibblioteca antes de Currie, tornando supérfluo que ele a anunciasse.
— Oh, eu tinha de vê-lo, Senhor Vance! Não sei por que, mas parece que não estou fazendo nenhum progresso, e trabalhei com tanto afinco. Sinceramente, eu trabalhei!
— Caramba! Minha jovem... — Vance falou em tom agradável. — Por que não está trabalhando na fábrica, hoje?
— Não pude ir ao trabalho — retorquiu ela. — Por enquanto, não posso. Estou pensando em tanta coisa ao mesmo tempo... Isto é, em coisas terrivelmente importantes. E tenho certeza de que o Senhor Doolson não se importará... George também não foi trabalhar. Telefonou-me, ontem à noite, e disse que não podia fazer nada na fábrica. Está muito transtornado.
— Bem, talvez, afinal de contas, Senhorita Allen, alguns dias de descanso...
— Oh, mas eu não estou descansando. — Ela pareceu magoada. — Estou terrivelmente ocupada o tempo todo. O senhor mesmo disse que preciso manter-me ocupada, lembra-se? — Ela avistou Heath, e uma expressão de medo lhe veio aos olhos grandes, ao reconhecer o sargento.
Vance amenizou a situação, apresentando Heath em tom indiferente.
— Ele também está trabalhando conosco no caso — acrescentou Vance. — Você pode confiar no sargento. Expliquei-lhe o seu engano de ontem e agora ele está do nosso lado... Além disso — prosseguiu Vance, alegremente — ele também tem cinco letras no nome.
— Oh! — E seus temores foram um tanto diminuídos por essa informação, embora ela olhasse novamente para Heath com ar incerto antes de romper em um sorriso leve. Depois, a jovem apontou para a escrivaninha. — Que são aqueles papéis azuis, Senhor Vance? Não estavam ali ontem. Talvez sejam uma pista ou algo parecido. São mesmo?
— Não, receio que não. São apenas plantas do Domdaniel, onde você esteve na noite de sábado...
Oh, posso dar uma olhada?
— Sem dúvida — respondeu Vance, e se curvou sobre a escrivaninha ao lado dela. — Veja, este é o grande salão de refeições e a porta de entrada que vem do corredor. E aqui fica a cozinha, além da porta lateral. E nesta parte fica a alameda que passa embaixo do arco. E neste canto fica o escritório, com a porta que dá para o terraço. E...
— Espere um instante — interrompeu a moça. — Na verdade, isto não é um escritório.
Gracie curvou-se mais perto, sobre a planta, e acompanhou o traçado dos corredores com um dedo, eliminando-os à medida que os acompanhava. Acabou seguindo o contorno do pequeno aposento. Depois, ergueu o olhar.
— Ora, mas esse é o quarto particular de Dixie Del Marr. Ela própria me contou isso... Não acha que ela é linda, Senhor Vance? E como canta bem... Gostaria de poder cantar como Dixie. Canta canções clássicas...
— Tenho certeza de que a senhorita canta muito melhor do que ela — disse-lhe Vance, de maneira galante. — Mas acho que está enganada ao afirmar que esse é o quarto de Dixie. Na verdade, é o escritório de Mirche, não é, sargento?
— Claro que é!
Gracie Allen curvou-se ainda mais sobre as plantas.
— Oh, mas é o quarto em que eu estive — garantiu ela, de maneira terminante. — Vou-lhes mostrar: aquela janela dá para a alameda. E aqui fica a rua, para onde dão aquelas janelinhas. Aqui na planta até diz ”rua Cinquenta”. Ora, tem de ser o quarto da Senhorita Del Marr. E a gente não pode ter dois quartos no mesmo lugar, mesmo em uma planta... Pode?
— Não, seria absurdo...
— E as paredes não são todas pintadas de lilás? E não há três ou quatro cadeiras grandes de couro ao longo desta parede? E não há um enorme peixe morto, em uma tábua, pendurado aqui? — E ela ia apontando para a localização dos objetos, enquanto falava. — E não há um candelabro pequeno, de vidro, muito engraçado, pendurado no... Oh, onde fica o teto, Senhor Vance? Não vejo nenhum teto nesta planta.
Heath tornara-se altamente interessado nas análises da jovem.
— Claro — falou ele. — As paredes são de uma espécie de cor de púrpura, e Mirche diz que pescou aquele peixe lá na Flórida. Ela tem toda razão, Senhor Vance... Mas escute aqui, moça, quando foi que esteve naquele cômodo?
— Ora, eu estive lá ainda na noite de sábado.
— Quê?! — berrou Heath. Gracie ficou assustada.
— Será que eu disse alguma coisa errada? Não tive intenção de entrar lá. Foi por acaso...
Agora, foi Vance quem falou.
— A que horas, durante a noite, você entrou lá, Gracie?
— Ora, Senhor Vance. Foi quando fui à procura de Philip, às dez horas da noite... Mas não o encontrei. Ele não estava em parte alguma. E também não veio ontem para casa. Acho que foi tirar umas férias fora da cidade. E prometeu que não deixaria o emprego.
Vance acabou com a tagarelice sem objetivo da jovem.
— Não vamos falar em Philip agora. Diga-me apenas como foi que você se dirigiu ao terraço à procura do seu irmão, quando, na realidade, o que você queria era ir para os fundos do restaurante.
— Não fui para o terraço. — Gracie sacudiu a cabeça, de maneira enfática. — Afinal de contas, para que eu desejaria ir ao terraço? Eu me resfriaria, pois estava trajando um vestido muito fino. Não acha que era um vestido lindo, Senhor Vance? Foi a mamãe também que o fez.
— Sim, você estava encantadora nele... Mas deve ter-se esquecido, pois o único jeito de entrar naquele quarto é pelo terraço.
— Oh, mas eu entrei por outro caminho... Entrei pela porta dos fundos. — Ela apontou para a parede que ficava diretamente em frente à porta da rua do escritório de Mirche; depois, seus olhos se arregalaram, quando ela examinou a planta. — Há alguma coisa muito estranha aqui, Senhor Vance. Quem fez esta planta não teve muito cuidado.
Vance aproximou-se mais dela. O sargento também chegou mais para perto, e ficou ao lado dos dois, com um ar de expectativa e curiosidade, com o charuto erguido no alto.
— A senhorita acha que deveria aparecer outra porta nesse lugar? — indagou Vance, baixinho.
- Ora, é claro! Porque há uma porta ali mesmo. Do contrário, como poderia eu ter entrado no quarto de Dixie Del
Marr? Mas o que não posso imaginar é por que ela conserva aquele peixe lá no seu quarto. Não vejo nenhuma beleza nisso. . .

— Não se preocupe com o peixe. Olhe aqui para a planta um instante. . . Agora, aqui está o arco pelo qual você deixou o salão de refeições.. .

— Sim. O que tem a grande escada trabalhada defronte.

— E agora, vejamos, você deve ter entrado por aqui, no corredor. . .

— Isso mesmo. George queria que eu ficasse para falar com ele, mas eu tinha pressa. Por isso, voltei direto, até passar por outro corredor pequeno. E então fiquei sem saber em que direção seguir.

— Você deve ter entrado nessa passagem estreita e caminhado até este ponto aqui. — Vance parou o lápis com o qual estivera acompanhando, na planta, o roteiro seguido pela moça.

— Foi exatamente o que fiz! Como foi que o senhor soube? Estava-me observando?

— Não, Gracie — respondeu Vance, com paciência. — Mas talvez você esteja um tanto confusa. Há uma porta aqui, na extremidade desta estreita passagem, onde você diz que desceu.

— Sim, eu vi a tal porta. Cheguei até a abri-la. Mas não havia nada lá, apenas a alameda de entrada de carros. Nesse momento compreendi que estava perdida. E então, quando eu estava lá, de pé, encostada à parede e imaginando como iria encontrar Philip, essa outra porta de que eu lhe estava falando — a que leva para dentro do quarto de Dixie Del Marr — abriu-se atrás de mim. — A jovem deu um riso abafado, como se estivesse pensando em alguma piada que fosse contar em seguida. — E eu caí dentro do quarto! Foi muito embaraçoso, mas não estraguei meu vestido. E poderia tê-lo rasgado, caindo daquela maneira. .. Mas acho que a culpa foi apenas minha, por não ter olhado onde me estava encostando. Mas eu não sabia que havia uma porta ali. Não vi porta nenhuma. Em todo caso, lá estava eu, dentro do quarto. Não é uma tolice? Não ver uma porta e apoiar-se nela, e depois cair através dela dentro do quarto de Dixie? — Ela riu de maneira encantadora, ao lembrar-se do que lhe acontecera.

Vance levou a moça para uma cadeira e arrumou um travesseiro para ela.

— Sente-se ali, minha querida — falou ele. — E contenos tudo a respeito do que aconteceu com você.

— Mas eu já lhes contei — falou ela, ajeitando-se de maneira confortável. — Foi muito engraçado, e fiquei muito embaraçada. A Srta. Del Marr também ficou embaraçada. Ela me disse que aquele era seu quarto particular. Por isso, eu lhe disse que lamentava muito o acontecido e lhe expliquei que estava procurando meu irmão. Ela até conhecia Philip. Acho que era porque ambos trabalhavam no mesmo lugar, como eu e George. . . E depois ela me levou de volta ao corredor e apontou o caminho certo para o patamar da escada da cozinha. Foi muito boazinha para comigo. Bem. . . Esperei muito tempo, mas Philip não apareceu. Por isto, voltei para junto do Sr. Puttle. Eu sabia encontrar o caminho de volta. . . E agora, Sr. Vance, quero fazer-lhe mais algumas perguntas a respeito do que o senhor disse ontem. . .

— Eu teria muito prazer em responder a elas, Srta. Allen

— disse Vance. — Mas, na verdade, não tenho tempo, esta manhã. Talvez depois, à tarde. Não se importará, não é?

— Oh, claro que não. — A jovem saltou de pé, agilmente.

— Também tenho algo muito importante a fazer. E talvez George vá à casa da minha mãe, passar alguns minutos conosco.

— Ela apertou a mão de Vance, fez um movimento de cabeça na direção de Heath, arisca e um instante depois se retirara.

— Com mil gafanhotos! — explodiu Heath, quase antes que a porta se fechasse atrás de Gracie Allen. — Eu não lhe disse que o tal Mirche era um sujeito esperto? Então, ele tem uma porta secreta! Mas aquela boneca tonta não a viu... Claro que não a viu! Alguém deve ter sido descuidado.. . Ela se encostar a uma porta invisível e cair dentro do quarto.. . E exatamente dentro do quarto onde mataram seu irmão! É a maior!

Vance deu um sorriso leve.

— Mas, afinal de contas, sargento, não há nenhuma lei que proíba um homem de ter uma porta secreta para o seu escritório. E essa, sem dúvida, é a nossa resposta a como teria o morto ido parar lá dentro sem que fosse visto por Hennessey. Mas alguém deve ter estado lá dentro com ele. Não foi Mirche, que estava à minha mesa entre dez e onze horas da noite. E, sem dúvida, não havia nenhum morto lá dentro às dez horas da noite.

— Mas o senhor não pensa...

— Faça silêncio algum tempo, sargento. — E Vance andava de um lado para outro.
— Gostaria de ir ao Domdaniel e arrombar aquela porta falsa! — declarou Heath, violentamente.
— Não... Oh, não — aconselhou Vance. — Você não deve ser tão impetuoso. Precisa ser fino. Que essa seja a nossa palavra de ordem, por enquanto.
— Ainda assim — disse Heath, resolutamente — se o Domdaniel for o quartel-general de uma quadrilha de meliantes, como sempre desconfiei, nada me daria mais prazer do que esmagar todo aquele prédio, e Mirche também, junto com o resto.
— Tem uma natureza impulsiva demais, sargento — censurou Vance. — Ninguém pode rebentar a casa dos outros sem provas da culpa da pessoa.
— Estou apenas dizendo o que eu gostaria de fazer.
— E outra coisa, sargento: Mirche seria apenas um elo secundário na sua imaginária cadeia criminosa. Como eu disse, ele está longe de ser um líder de homens.
— Pois ele me parece bastante esperto — insistiu Heath, mansamente. — Em todo caso, o tal de ”Coruja” Owen, com quem o senhor estava preocupado, deve ser um dos chefes.
— É verdade — disse Vance, pensativo. — Mas ele era apenas um companheiro de jantar, quando o vi. Muito correto e comedido. Embora eu confesse que sua presença lá, naquela noite, não me agradou, com tantas outras coisas esquisitas juntando-se sem significarem nada. — Vance fez um gesto vago. — Acho que podemos esquecê-lo, por enquanto, para nos concentrar em estabelecer quem matou o pobre sujeito.
— Mas como? Investigando um pouco mais de perto a respeito de Mirche?
— Exatamente, sargento. E também não deixarei de investigar a respeito de Dixie Del Marr, depois daquela espantosa informação sobre a porta falsa que dá para seu quarto particular.
— E como pretende fazer isso, Senhor Vance?
— Bem abertamente, sargento. Vou até lá bater um papo. Por falar nisso, onde é que Mirche mora?
— Isso é fácil — informou Heath. — Mora no primeiro andar do Domdaniel.
— Foi o que imaginei... E você poderia responder com igual facilidade, se eu lhe perguntasse onde mora a Senhorita Del Marr?
— Claro — grunhiu Heath. — Eu não teria durado tanto tempo no Departamento de Homicídios, se não soubesse onde moram as pessoas que considero suspeitas de estarem tomando parte em patifarias ou em crimes. O senhor a encontrará no Hotel Antler, na Rua Cincoenta e Três.
— Você é um fundo de informações, sargento — elogiou Vance.
— Quando pretende ir falar com eles, Senhor Vance? E que faremos, depois?
— Tentarei comunicar-me com Mirche e com Dixie Del Marr hoje de manhã. Em seguida, esforçar-me-ei para conseguir que Markham almoce comigo. Depois, ficaria encantado em me encontrar novamente com você, aqui, às três horas da tarde.
— O caso continua sendo seu, Senhor Vance — murmurou Heath. — E eu não lhe direi como conduzi-lo. — E ele ficou mais meia hora antes de se retirar.
Depois, Vance telefonou para Markham, e em seguida sentou-se e acendeu um cigarro, de maneira mais deliberada do que de costume.
Mais outra faceta espantosa na pedra preciosa, Van — falou ele. — Markham estava para me telefonar quando me ligaram com seu gabinete. O Senhor Doolson — o tal da fábrica de perfumes In-O-Scent — estivera lá e fora embora. Markham prometeu contar-me a história da sua visita mais tarde, quando nos encontrarmos, e parecia muito divertido. Devemos encontrar-nos no seu gabinete por volta da uma hora da tarde. Eu disse a ele que, se não estivéssemos lá até as duas horas, ele deveria mandar uma pelotão dos nossos bravos rapazes dar uma batida no Domdaniel.

CAPITULO XIII
NOTÍCIAS DE UMA CORUJA
(Segunda-feira, 20 de maio — 11:00 horas)

Às onze horas, Vance foi ao Domdaniel. Não teve nenhuma dificuldade em falar com Mirche. Após uma espera de apenas cinco minutos, o proprietário do restaurante entrou na sala de recepções onde estávamos esperando. Cumprimentou Vance de maneira efusiva, embora me desse a impressão de que estava representando um papel bem ensaiado.
— A que devo esta visita inesperada, Senhor Vance? — indagou ele, amavelmente.
— Eu queria apenas conversar com o senhor a respeito do pobre coitado que foi encontrado morto aqui na noite de sábado. — Vance falou com indiferença, embora em tom agradável.
— Ah, sim. — Se Mirche ficou surpreso, disfarçou muito bem. — Claro, se for a respeito da família dele, teremos prazer em ver o que pode ser feito. Naturalmente, eu gostaria de evitar escândalos, pois isso prejudicaria a freqüência ao nosso restaurante. Foi um acidente lamentável. Mas... É melhor irmos para o meu escritório.
O homem foi na frente ao longo da sacada e, abrindo a porta, afastou-se para um lado a fim de que entrássemos na sua frente. Vance sentou-se em uma das grandes cadeiras de
couro e Mirche sentou-se em outra, mais ou menos de frente — para Vance.
— A polícia tem feito muitas perguntas a respeito do caso — começou Mirche. — Mas eu esperava que, nesta altura, todo esse assunto já estivesse sido resolvido.
— Sei que estas coisas são muito importunas — falou Vance. — Mas há um ou dois pontos, nessa situação, que me interessam um pouco.
— Pois me surpreende muito que se interesse por esse caso, Senhor Vance. — Mirche falava em tom frio e delicado. — Afinal de contas, o homem era apenas um lavador de pratos. Eu o mandara embora antes da hora do jantar. Ele reclamou que seu salário era muito baixo e não chegamos a um acordo a respeito do assunto. Não entendo por que ele teria voltado, a não ser que houvesse pensado melhor e quisesse ser readmitido. Foi lamentável ele morrer no meu escritório. Mas não parecia ser um sujeito particularmente robusto, e acho que nunca se pode saber quando o coração vai estourar... A propósito, Senhor Vance, já foi determinada a causa da morte?
— Não, acho que não — respondeu Vance, sem se comprometer. — No entanto, não é isso que interessa, no momento. O fato, Senhor Mirche, é que havia um policial na rua, lá fora, na noite de sábado, e ele insiste em que não viu esse seu lavador de pratos entrar aqui no seu escritório, depois que foi visto saindo dele, por volta das seis horas.
— Talvez ele não o tenha notado — falou Mirche, com indiferença.
— Não, não... O policial, que, a propósito, conhecia Philip Allen, tem certeza absoluta de que a jovem vítima não entrou no seu escritório, pelo lado da sacada, a noite inteira.
Mirche ergueu o olhar e estendeu as mãos.
— Mas, assim mesmo, insisto, Senhor Vance...
— Seria possível que o tal Philip tivesse alcançado este aposento por outra entrada? — Vance fez uma pausa momentânea e olhou ao redor. — Talvez tivesse entrado por aquela pequena porta que há na parede dos fundos.
Mirche ficou um instante calado. Olhou fixamente para Vance, com expressão astuta, e os músculos do seu corpo pareceram retesar-se. Se algum dia vi uma fotografia viva de um homem pensando depressa, Mirche era o retrato vivo desse homem.
De repente, o homem soltou uma risada curta.
— E eu pensava que havia guardado tão bem o meu segredinho... Aquela porta é invenção minha, apenas para meu uso particular, o senhor compreende. — Levantou-se e foi até o fundo da sala. — Vou-lhe mostrar como ela funciona. — Apertou um pequeno medalhão, no lambril, e uma folha de porta, que não teria nem meio metro de largura, girou sem ruído para dentro do aposento. Do outro lado ficava o estreito corredor no qual Gracie Allen perdera o rumo.
Vance olhou para as dobradiças ocultas da porta secreta e depois se afastou, como se a revelação não fosse nenhuma novidade para ele.
— Muito hábil — disse ele, em sua voz arrastada.
— É muito conveniente — falou Mirche, fechando a porta. — Uma entrada particular que liga o restaurante ao meu escritório. Como vê, Senhor Vance...
— Ah, sim, sem dúvida. É muito útil quando a gente quer-se isolar um pouco do resto do mundo. Sei que certos corretores de Wall-Street têm portas assim. E acho que com razão... Mas como é que o seu lavador de pratos teria tomado conhecimento da existência de tal porta?
Mirche coçou o queixo, pensativo.
— Ora, não sei... Embora seja perfeitamente possível, é claro, que algum empregado do restaurante haja visto quando abri a porta... Ou talvez tenha descoberto casualmente o segredo.
— A Senhorita Del Marr sabia dele, não sabia?
— Oh, sim — confessou Mirche. — Ela, às vezes, me ajuda aqui um pouco no trabalho. Não vejo nenhum motivo para não a deixar usar a porta, quando ela quer.
Era evidente que Vance fora colhido de surpresa pela franqueza de Mirche, e logo mudou a conversa para outros assuntos. Fez inúmeras perguntas a respeito de Allen e depois voltou aos acontecimentos da noite de sábado.
No meio de uma das perguntas de Vance, a porta da frente abriu-se e Dixie Del Marr apareceu na soleira da porta. Mirche convidou-a para entrar e imediatamente nos apresentou.
— Eu estava justamente falando a estes senhores — disse ele, rapidamente — a respeito da entrada secreta que existe para este aposento. — E forçou uma risadinha. — O Senhor Vance parecia pensar que devia haver alguma ligação misteriosa entre isso e...
Vance ergueu a mão, protestante em tom agradável.
— Infelizmente, acho que o senhor imaginou significados ocultos nas minhas palavras, Senhor Mirche. — Depois, sorriu para Dixie Del Marr. — A senhorita deve achar aquela porta muito útil.
— Ah, sim... Principalmente quando o tempo está ruim. Na verdade, ela tem sido muito útil. — Ela falou em tom de voz indiferente, mas havia uma dureza, quase amargura, na expressão do seu rosto.
Vance a estava examinando atentamente. Eu esperava que ele a interrogasse a respeito da morte de Allen, pois sabia que fora essa a sua intenção. Mas, realmente, ele tagarelou descuidadamente a respeito de coisas banais, completamente sem relação com o assunto que nos levara ali.
Pouco antes de despedir-se, ele disse à Senhorita Dixie Del Marr, em tom de voz conciliatório:
— Desculpe-me se pareço pessoal, mas não posso deixar de admirar o perfume que a senhorita está usando. Eu arriscaria um palpite... Seria, acaso, uma mistura de narciso e rosa?
Se a mulher ficou atônita com o comentário de Vance, não deu nenhuma demonstração.
— Sim — respondeu ela, com indiferença. — Tem um nome ridículo... Completamente indigno dele, creio eu. O Senhor Mirche também usa o perfume... Tenho certeza de que por influência minha. — Dirigiu um sorriso convencional ao homem, e novamente notei a dureza e a amargura das suas maneiras.
Nós nos retiramos pouco depois disso e, enquanto caminhávamos ao longo da Sétima Avenida, Vance mostrava-se de uma seriedade fora do comum.
— O nosso Senhor Mirche é muito esperto — murmurou Vance. — Não compreendo por que não ficou mais preocupado a respeito da porta secreta. Mas ele está preocupado. Oh, e muito. É muito esquisito... Não precisei interrogar Dixie. Mudei de idéia a esse respeito no instante em que ela falou tão suavemente e olhou para Mirche. Havia ódio, Van. Ódio cruel e apaixonado, e ambos usavam Beije-me Depressa. Oh, que tem esse perfume a ver com o nosso caso? É curioso...!
Markham nos falou, em seu gabinete, acerca da visita de Doolson, acontecida naquela manhã.
-— O homem está desesperadamente preocupado, Vance, e pelo motivo mais incrível. Parece que tem uma opinião muito elevada a respeito da habilidade do jovem Burns. Acha que sua fábrica de perfumes não poderia funcionar sem o rapaz. Está convencido de que Burns é quem tem a chave do sucesso contínuo da sua empresa. E falou mais coisas assim, de espantosa tagarelice.
— Não foi tagarelice, de forma alguma, Markham — interrompeu Vance. — Doolson talvez tenha toda razão de considerar muito Burns. Foi este quem preparou as fórmulas para a In-O-Scent e salvou Doolson da falência. Compreendo exatamente o que ele quis dizer.
— Bem... Parece, também, que as vendas da firma só são efetuadas em determinadas épocas, e que se aproxima, agora, a fase de vendas mais altas. Doolson investiu uma fortuna em uma campanha de vendas, e precisa imediatamente de vários e novos perfumes populares. E acha que só Burns pode preparar-lhe tais perfumes.
— Isso é interessante e plausível. Mas por que a visita dele ao seu gabinete?
— Parece que Burns não compareceu ao emprego e que não irá mais lá até que fique livre de suspeitas no caso Allen. Burns está nervoso e, creio eu, bastante amedrontado. Não pode trabalhar, não pode pensar, não pode experimentar perfumes ... Está completamente desorientado. E Doolson está muito aflito. Hoje cedo, conversou com o rapaz e ficou sabendo dos motivos da sua recusa obstinada em voltar para o trabalho. Burns lhe disse que o caso estava sendo abafado temporariamente, e não forneceu nomes. Mas explicou que ele estava implicado, de alguma forma, e, portanto, transtornado. Tendo confiança completa em Burns, Doolson veio correndo para cá, em desespero de causa. Talvez tenha achado que meu departamento está trabalhando demasiado lentamente.
— Que foi que ele disse?
— Doolson insiste em oferecer um prêmio em dinheiro pela solução do caso, na esperança desesperada de me incentivar, e ao meu pessoal, a resolvermos o assunto imediatamente, para que seu precioso Burns possa voltar ao trabalho. Pessoalmente, acho que o homem está doido.
— Talvez esteja, Markham, mas não o desiluda.
— Já tentei, mas ele insistiu.
— E quanto é que ele acha que valem os serviços imediatos e tranqüilos do Senhor Burns?
— Cinco mil dólares!
— É uma loucura — riu Vance.
— Concordo com você. Eu também não acreditaria, se não tivesse um cheque dessa importância, assinado por Doolson e visado, neste momento, guardado no meu cofre. E, por falar nisso, esse cheque só é válido por quarenta e oito horas...
Depois que Vance absorvera essas informações fantásticas, contou suas atividades da manhã. Falou da porta secreta que dava para o escritório de Mirche e frisou o ponto da desconfiança insistente do sargento de que o Domdaniel era a sede de uma poderosa quadrilha de criminosos.
Sobre este último ponto, Markham fez um aceno lento e pensativo de cabeça.
— Não tenho certeza — observou ele — de que as suspeitas do sargento sejam infundadas. Aquele lugar sempre me preocupou um pouco, mas nunca veio à luz nada concreto.
— O sargento mencionou Owen como um possível chefe — falou Vance. — E acho a idéia interessante. Estou um tanto inclinado a procurar o ”Coruja” e tentar fazê-lo arrepiar as penas. A propósito, Markham, se meu impulso vencer minha discrição, qual é o nome verdadeiro de Owen? Você entende, não posso andar por aí perguntando por uma ave noturna de rapina.
— Acho que é Dominic.
— Dominic, Dominic... — De repente, Vance se levantou, com os olhos fixos no espaço à sua frente. — Dominic Owen! E Daniel Mirche! — E segurou o cigarro, suspenso no alto. — Agora, tudo se tornou fantasia. Você tem razão, Markham... Estou tendo visões: estou envolto em um conto misterioso. Uma coisa fantástica!
— Ora em nome dos céus... — começou Markham.
— Ora, mas você ainda não compreendeu? — E depois, disse: — Dominic... Daniel. Que engenhoso... Daí saiu DOMDANIEL!
Markham ergueu o cenho, incrédulo.
— Pura coincidência, Vance. Embora haja nisso certa dose de fantasia, coisa que eu confesso. Se bem me lembro da leitura que fiz das Mil e Uma Noites, o Domdaniel original ficava no fundo do mar, em algum ponto perto de Túnis, e era uma curiosa morada de espíritos malignos. Mesmo que Mirche tenha ouvido falar daquele palácio submarino e fosse realmente sócio de Owen no restaurante, ele jamais teria coragem ou iniciativa suficientes para isso.
— Mirche não teria, Markham, mas Owen teria. Owen teria a suteliza, a ousadia e o humor sombrio para isso. A idéia teria sido magnífica, creio eu. Oferecendo ao mundo a chave do seu segredo e depois rindo sozinho, muito à semelhança dos demônios que originalmente habitavam aquela cidadela submarina do pecado...
Juntamente com Markham, condoeu-se das complicações da vida e deixou-o sozinho para tirar suas próprias conclusões.
Quando voltamos para o apartamento de Vance, pouco antes das três horas da tarde, não era Heath quem estava à nossa espera. Era Gracie Allen, que parecia estar sempre em toda parte e, como de costume, saudou Vance com alegria e exuberância.
— O senhor me disse para voltar hoje à tarde. Ou não disse? Seja como for, o senhor disse alguma coisa a respeito de logo mais à tarde. E, como eu não sabia a que horas deveria vir, vim cedo. Já reuni muitas pistas... Isto é, umas três ou quatro. Mas acho que elas não servem para nada. O senhor arranjou alguma pista?
— Ainda não — falou ele, sorridente. — Isto é, não tenho pistas definidas. Mas tenho várias idéias.
— Oh, fale-me das suas idéias, Senhor Vance — pediu ela, insistente. — Talvez elas sejam úteis. Nunca se sabe o que pode resultar quando se começa a pensar. Ainda na semana passada, pensei que ia haver uma tempestade violenta, e houve mesmo!
— Bem, vejamos... — E Vance, um tanto levado pelo espírito da brincadeira, e contudo com evidente benignidade, falou-lhe das suas suposições com relação ao significado da palavra ”Domdaniel”. Demorou-se sobre o mistério e o romance da lenda original de Domdaniel, contida nas Mil e Uma Noites, para divertir a jovem: falou dos califas sírios, das ”raízes do mar”, das quatro entradas e dos quatro mil degraus, citou Magharabi e os outros mágicos e feiticeiros.
Heath chegara no começo da história, e ficou de pé, ouvindo, tão encantado quanto o estava a moça. Quando Vance terminou, Gracie Allen relaxou os nervos e músculos, durante alguns instantes.
— Isso é simplesmente maravilhoso, Senhor Vance. Gostaria de poder ajudar a encontrar o tal Dominic. Temos um empregado gorducho, na fábrica, um homem corpulento, que se chama também Dominic. Mas ele não pode ser quem o senhor procura.
— Não, tenho certeza de que não é. O que estou procurando é um homem pequeno, de olhos muito escuros e penetrantes e rosto muito branco, e tem cabelos quase pretos.
— Oh! Talvez seja o homem que eu vi no quarto de Dixie Del Marr.
— Quê?! — E a exclamação do sargento assustou a jovem.
— Meu Deus! Será que tornei a dizer alguma coisa errada, seu Heath?
Vance fez um aceno para o sargento se afastar, e havia censura no gesto. Depois, falou calmamente com a moça.
— Quer dizer, Gracie, que você viu alguém no quarto, além de Dixie Del Marr, quando caiu casualmente dentro dele, na noite de sábado passado?
— Sim. Um homem exatamente igual ao que você descreveu.
— Mas por que — indagou Vance — você não me contou isso, hoje de manhã?
— Ora, o senhor não me perguntou! Se me houvesse perguntado, eu lhe teria contado. E, em todo caso, achei que isso não tinha nenhuma importância... Isto é, o fato de aquele homem estar no quarto de Dixie Del Marr. Ele não teve nada que ver com a minha queda.
— E você tem certeza — prosseguiu Vance — de que ele era parecido com o homem que acabo de lhe descrever?
— Sim, certeza absoluta.
— E suponho que foi a primeira vez que você o viu, não foi?
— Sim, isso mesmo. E, se o tivesse visto antes, ter-me-ia lembrado. Eu sempre me recordo de fisionomias, mas não consigo é lembrar-me de nomes. Mas eu o vi depois daquilo.
— Depois? Onde foi isso?
— Ora, ele estava sentado no salão de refeições do restaurante, bem a um canto, não muito longe do George. Não posso imaginar como foi que olhei casualmente naquela direção, pois me achava em companhia do Senhor Puttle naquela noite.
— Havia mais alguém com o homem, quando você o viu no restaurante? — prosseguiu Vance.
— Sim, mas eu não os podia ver, já que se achavam de costas para mim.
— A quem está-se referindo?
— Ora, aos outros dois homens sentados à mesa do sujeito que o senhor está procurando.
Vance tirou uma fumaça profunda do cigarro.
— Diga-me, Gracie... Que é que o homem estava fazendo, quando você o viu no quarto de Dixie Del Marr?
— Deixe-me pensar... Acho que ele é um amigo muito íntimo da Senhorita Del Marr, pois estava guardando uma caderneta grande de anotações em uma das gavetas. E deve mesmo ser amigo muito íntimo de Dixie, do contrário não saberia qual o lugar do tal caderno, não é? Depois Dixie Del Marr veio até junto de mim e pousou uma das mãos no meu braço, levando-me depressa para fora. Acho que ela estava apressada. Mas foi muito amável comigo...
— Bem... Foi uma aventura muito divertida, minha querida.
Pouco depois dessa espantosa informação, Gracie Allen despediu-se de nós, muito alegremente, com um ar cômico de mistério, dizendo que precisava cuidar de muitas coisas importantes. Confidencialmente, disse-nos que talvez até fosse encontrar-se com Burns.
Quando a jovem se retirou, Vance olhou para o outro lado, para o sargento, como se esperasse algum comentário.
Heath esparramou-se em uma cadeira, aparentemente atordoado.
— Não tenho nada que dizer, Senhor Vance. Vou ficar maluco!
— Até eu estou um pouco tonto — falou Vance. — Mas, agora, tenho de falar com Owen. Francamente, eu não estava muito animado a ir falar com ele, e só vagamente acreditava na minha charada a respeito de Owen e Mirche. No entanto, o tempo todo Gracie Allen conhecia a ligação. Sim, agora é indispensável que eu encontre ”o Coruja”... Você pode ajudar-me, sargento?
Heath apertou os lábios.
— Não sei onde ele se hospeda, em Nova York, se é a isso que se refere. Mas talvez um dos agentes federais que eu conheço me dê essa informação. Espere um instante...
Heath foi ao telefone, no corredor, enquanto Vance fumava, silencioso e pensativo.
— Finalmente, consegui — anunciou Heath, ao voltar para a sala, meia hora depois. — Nenhum dos agentes federais sabia que Owen se achava na cidade, mas um deles examinou o arquivo e me disse que Owen costumava morar no hotel St. Carlton, na época em que foram feitas investigações a respeito dele. Resolvi ligar para o hotel. Ele está hospedado lá, realmente... Chegou na quinta-feira...
— Obrigado, sargento. Vou telefonar para você amanhã cedo. Enquanto isso, não pense muito no assunto.
O sargento retirou-se e Vance telefonou imediatamente para Markham.
— Você vai fazer a refeição matinal comigo amanhã — disse o detetive ao procurador distrital. — Hoje à noite, esforçar-me-ei para visitar o erudito Senhor Owen. Tenho muitas coisas a contar a você, e talvez amanhã cedo tenha mais. Lembre-se, Markham: refeição matinal amanhã... É uma imposição, e não um convite banal...

CAPÍTULO XIV
UM LOUCO MORIBUNDO
(Segunda-feira, 20 de maio — 20:00 horas)

Naquela noite, às oito horas, Vance foi ao Hotel St. Carlton. Ao invés de telefonar da mesa da recepção, escreveu as palavras ”visita não profissional” no seu cartão e mandou-o a Owen. Alguns minutos depois, o mensageiro voltou e nos levou até os aposentos de Owen.
Havia dois homens sentados perto de uma janela, quando nós entramos, e o próprio Owen achava-se sentado, inerte, em uma cadeira baixa, contra a parede, virando lentamente o cartão de visitas de Vance nos dedos finos, que tamborilavam. Olhou para Vance e jogou o cartão no tamborete fixo ao seu lado. Depois, disse, em tom de voz suave mas imperioso:
— É só isto, por esta noite.
— Os dois homens saíram imediatamente do quarto e fecharam a porta.
— Desculpe-me — falou ele, com um sorriso melancólico, à guisa de desculpa. — O homem é um animal desconfiado. — Moveu a mão, em um gesto vago: era o seu convite para nos sentarmos. — Sim, desconfiado. Mas para que se importar com isso? — A voz de Owen era baixa e de mau agouro, mas continha um tom intenso de queixa, como um pio de pássaro ao crepúsculo. — Sei por que vieram e tenho prazer em vê-los. Alguma coisa poderia ter sucedido nesse intervalo.
Ao examinar mais detidamente o homem, tive a impressão de que ele se achava tomado por uma doença grave. Sua fisionomia era marcada por uma profunda letargia íntima. Tinha uma expressão aquosa nos olhos; seu rosto era quase roxo, indício de graves distúrbios circulatórios, e sua voz era monótona. Deu-me a impressão de um morto-vivo.
— Durante vários anos — prosseguiu ele — tem havido a esperança vaga de que algum dia... Necessidade de consciência, de bondade, de identidade de pensamentos... — E a voz lhe faltou.
— A solidão do isolamento psíquico... — murmurou Vance. — Exatamente. Talvez seja eu a pessoa.
— Ninguém é a pessoa, claro. Perdoe minha presunção.
— Owen sorriu languidamente e acendeu um cigarro. — O senhor acha que algum de nós dois quis este encontro? Mas o homem não faz escolhas. Sua escolha é seu temperamento. Somos sugados por um redemoinho, e até escaparmos dele lutamos para justificar essa ”escolha”.
— Mas isso não importa, não é? — falou Vance. — Alguma coisa vital sempre nos foge e a mente jamais pode responder a perguntas que faz a si mesma. Dizer uma coisa ou não a dizer e pensá-la, dá na mesma.
— Exatamente. — O homem dirigiu um olhar de indagação.
— Em que é que o senhor está pensando?
— Estava imaginando que foi que o senhor veio fazer em Nova York. Eu o vi no Domdaniel, no sábado. — O tom de voz de Vance mudara.
— Eu também o vi, embora não tivesse certeza. Pensei, na ocasião, que talvez o senhor entrasse em contato comigo. Sua presença naquela noite não foi pura coincidência. Coincidência é coisa que não existe. É uma palavra falsa para mascarar nossa nauseabunda ignorância. Só existe um padrão em todo o universo do tempo.
— Mas a sua visita à cidade... Estar-me-ei intrometendo em algum segredo?
Owen rosnou e senti um calafrio descer-me pela espinha. Depois, sua expressão mudou e passou a ser de tristeza.
— Vim consultar um especialista... Enrick Hofmann.
— Sim. É um dos maiores cardiologistas do mundo. O senhor o consultou?
— Sim, há dois dias. — Owen deu uma risada amarga.
— Condenado! Ao contrário de Alexandre, uma vida breve mas sem glórias!
Vance limitou-se a erguer ligeiramente as sobrancelhas, e puxou uma baforada profunda do seu cigarro.
— Obrigado — falou Owen — por me poupar os lugares comuns sem significado. — Depois, perguntou, de repente: — Seu nome é Daniel?
— Acaso Belshazzar precisa de um profeta? — E Vance olhou diretamente para o homem. — Não, nada disso! Não sou Daniel. E também não me chamo Dominic.
Owen deu uma risada diabólica.
— Eu tinha certeza de que o senhor sabia! — E sacudiu a cabeça, satisfeito. — Mirche morrerá sem suspeitar, nem de leve, da brincadeira. Ignora tanto As Mil e Uma Noites como Southey e Carlyle. É um patife analfabeto!
— Foi uma idéia hábil — falou Vance.
— Oh, hábil, não. Apenas uma boa piada. — A letargia pareceu novamente dominá-lo. Sua expressão tornou-se uma pobre máscara e suas mãos jaziam inertes sobre os braços da cadeira que ele ocupava. Parecia um cadáver. Houve um longo silêncio, e então Vance falou.
— A escrita na parede, feita à mão. O senhor se sentiria consolado, se eu sugerisse que talvez todos os anos, por todo o infinito, estejam contados e divididos?
— Não — cortou Owen, em tom ríspido. — Consolo... Outra palavra falsa. — Depois, prosseguiu, ansiosamente: — A eterna volta... Ressurreição. A tortura perfeita. — E começou a murmurar. — O mar começará a secar... Um planeta extinto... absorvido pelo Sol... Estrelas maiores... O último instante... Dispersão eterna das coisas... Bilhões de anos daqui... Neste mesmo quarto... — Sacudiu-se, fracamente, e olhou fixamente para Vance. — Moore tinha razão: é como a loucura.
Vance fez um aceno de cabeça, condoído.
— Sim. Loucura. Completa. Aquilo que é finito e atual é só o que ousamos enfrentar. Mas coisa finita não existe.
— Não, é claro que não existe. — Owen falava com voz sepulcral. — Mas aqueles bilhões de anos além, quando a mente volta ao que é infinito... como as ondas intermináveis feitas por uma pedra que se joga na água. E precisamos também ser limpos de espírito. Não agora, mas nessa época. Não devemos provocar ondas intermináveis... Graças a Deus que eu posso falar-lhe. O senhor me entende.
Vance fez um aceno afirmativo de cabeça.
— Sim, compreendo perfeitamente. ”Limpeza”... Sei o que o senhor quer dizer. O que é finito se equilibra... Isto é, nós podemos equilibrá-lo, mesmo até o fim. Podemos voltar limpos até um tempo interminável. Sim. ”Limpeza de espírito”, uma frase adequada. Nenhuma onda. Concordo plenamente.
— Mas não por meio da indenização — disse Owen, rapidamente. — Não por meio de confessionários absurdos.
Vance fez um aceno de mão, em sinal negativo.
— Eu não quis dizer isso. Apenas uma inexistência. Depois do que é finito, quando não houver mais lutas, quando pararmos de tentar eliminar os impulsos colocados em nós pelo mesmo ser que nos impede cedermos a eles...
— É isso! — E apareceu uma centelha de animação na voz de Owen. Depois, ele recaiu no seu langor. O leve gesto da sua mão foi tão gracioso quanto o de uma mulher. Mas a dureza de aço do seu olhar permaneceu. — o senhor me impedirá de provocar ondas na água, caso...?
— Sim — retrucou Vance, com simplicidade. — Se um dia chegar a hora, e eu puder ajudá-lo, pode contar comigo.
— Confio no senhor... E, agora, posso falar um instante? Eu sempre quis dizer estas coisas a alguém que me compreendesse … 1234
Vance limitou-se a esperar, e Owen prosseguiu.
— Nada tem a mínima importância... Nem mesmo a própria vida. Nós próprios podemos criar ou esmagar a vida de seres humanos... Façamos o que fizermos, o resultado será sempre o mesmo. — Owen sorriu, desalentado. — A futilidade podre de todas as coisas... A futilidade de fazer seja o que for, até de pensar. Raios levem a agoniante sucessão de dias que chamamos de vida! Meu temperamento sempre me atraiu em diversas direções ao mesmo tempo... Sempre entre o espeto e a brasa. Talvez, afinal de contas, seja manchar almas.
E ele pareceu encolher-se, como se fugisse ao contato de um fantasma, e Vance intercalou:
— Sei a inquietação que decorre de demasiada atividade inútil, com todos os seus múltiplos desejos.
— A luta sem objetivo! Sim, sim. A luta para se enquadrar em um molde que é diferente daquele que a gente tinha antes. Essa é a maldição derradeira. O instinto de alcançar... Bolas! Nós só descobrimos que não vale a pena quando já fomos devorados por ele. Fui atingido por instintos diferentes, em épocas diversas. Era tudo mentira... Mentiras astutas e corrosivas. E nós pensamos que podemos submeter nossos instintos ao domínio da mente. A mente! — E ele riu baixinho. — O único valor da mente é alcançado quando ela nos ensina que ela é inútil.
O homem moveu-se um pouco, como se abalado por um ligeiro espasmo involuntário.
— Nem podemos atribuir nossos instintos destorcidos à memória racial. Não há raças: existe apenas uma caudal enorme e imunda de vida, que flui do limo primitivo. A sensualidade abortiva da vida animal primitiva jaz adormecida dentro de nós. Se a suprimimos, ela se manifesta em forma de crueldade e de sadismos: se a libertamos, ela produz perversões e loucura. Não há solução... Algumas vezes, o homem se esforça para combater esses horrores libertando um ideal íntimo da sua concepção abstrata, através de símbolos visuais. Os próprios símbolos não passam de abstrações. — Veio o tom monótono e mordaz de Owen. — E também a Lógica não pode ajudar. A Lógica não leva nenhum homem à verdade: conduz apenas a decepções e à loucura. A apoteose da Lógica: anjos dançando na ponta de uma agulha... Mas por que sequer me preocupo, nesta sombra entre dois infinitos? Só posso dar uma resposta: a ansiedade obscena de comer bem e de viver de maneira confortável... que, por sua vez, são instintos e, portanto, mentiras.
— Talvez isso seja mais profundo do que simples instinto — sugeriu Vance. — Pode ser uma ansiedade trazida para cá quando a sombra da vida caiu na senda do infinito pela primeira vez... A ansiedade cósmica de fazer um jogo com a vida, a fim de fugir às tensões e às pressões do que é finito.
Eu sabia que Vance tinha uma finalidade muito definida em mente, embora, para mim, obscura, enquanto falava com este homem estranho e nada natural diante dele.
— Aqui, neste mundo de sonhos esgotados — falou Owen, confusamente — nenhuma forma de ação é melhor do que outra; uma pessoa ou uma coisa não é mais importante do que qualquer outra pessoa ou outra coisa. Todas as coisas opostas são passíveis de trocas entre si: criação ou destruição, serenidade ou tortura. No entanto, a vaidade goteja através da crosta sarnenta da minha metafísica congelada. Bolas! — E encolheu o corpo e olhou fixamente para Vance. — Aqui não existem nem tempo nem existência.
— É como o senhor diz. Na verdade, o infinito não é divisível.
— Mas há a possibilidade terrificante de que possamos acrescentar algum fator ao tempo diante de nós. E, se o fizermos, esse fator continuará eternamente... É preciso não se jogar nenhuma pedrinha. Temos de atravessar completamente essa sombra.
Owen fechara os olhos e Vance o examinava sem expressão, Depois, disse, em tom de voz quase consolador:
— Isto é sabedoria... Sim, limpeza de espírito.
Owen fez um aceno afirmativo de cabeça, muito langoroso.
— Amanhã à noite, vou partir de navio para a América do Sul. Calor... O mar... Um entorpecente, talvez. Estarei ocupado amanhã o dia inteiro. Coisas a fazer: contas, uma limpeza de casa, cuidar de certas coisas... Não quero ondas de superfície da água a me seguirem o tempo todo. Limpeza... Além... O senhor compreende?
— Sim. — Vance não baixou o olhar. — Compreendo. É preciso cessar aqui, para que não haja um castigo dos céus...
Os olhos do homem abriram-se lentamente. Endireitou o corpo e acendeu outro cigarro. Sua disposição estranha se dissipou, e outra expressão lhe apareceu nos olhos. Durante toda essa discussão, ele não erguera a voz nem uma vez sequer; nem houvera mais do que uma leve inflexão nas palavras. No entanto, eu sentia como se estivesse ouvindo uma tirada apaixonada.
Agora, Owen começou a falar dos seus velhos livros, dos seus dias em Cambridge, da sua juventude cheia de cultura e de ambição, dos estudos de música, feitos na sua infância. Era bem versado em conhecimentos das civilizações antigas e, para meu espanto, entendia, com paixão e fanatismo, do Livro dos Mortos Tibetano. Mas, por estranho que pareça, falava sempre em si mesmo com uma impressão de dualismo, como se estivesse falando de outra pessoa. Havia uma sensível cortesia no homem,
mas, não sei por que, ele me inspirava um sentimento próximo do medo. Havia sempre uma aura invisível ao seu redor, como a de uma fera primitiva e fumegante. Fiquei preso ao fascínio diabólico daquele homem, e senti uma inconfundível sensação de alívio quando Vance se levantou para ir embora.
Quando nos separamos dele, à porta, o homem disse a Vance, com uma indiferença aparente:
— Contado, pesado, dividido... O senhor me prometeu. Vance enfrentou seu olhar, diretamente, por um breve instante.
— Obrigado — disse Owen, sem fôlego, curvando-se profundamente.

CAPITULO XV
UMA ACUSAÇÃO PAVOROSA
(Terça-feira, 21 de maio — 9:30 horas)

— Sim, Markham, completamente louco. — Foi assim que Vance resumiu, enquanto acabávamos de fazer a refeição matinal no seu apartamento, na manhã seguinte. — Totalmente maluco. Um louco venenoso, como algum bicho rasteiro e traiçoeiro. O seu fim está chegando rapidamente, e um medo hediondo lhe está destruindo o cérebro. A súbita certeza da morte lhe cortou a ligação com a sanidade mental. Owen está procurando uma toca, onde se esconder para fugir ao inevitável. Mas ele não tem onde se esconder: apenas o sepulcro fétido que seu cérebro destorcido construiu. Essa é a única realidade que lhe resta. Uma criatura vil, que deveria ser esmagada como nós destruímos um germe mortífero. Um leproso mental, moral e espiritual. Sujo, poluído. E eu... Eu tenho de salvá-lo dos horrores que o infinito contém para ele.
— Você deve ter tido uma noite agradável em companhia dele — comentou Markham, com aversão.
O sargento Heath, tendo chegado, em resposta a chamados telefônicos repetidos feitos por Vance, ouvira atentamente a conversa. Mas ele parecia estar recolhido em si mesmo, quando, alguns instantes depois, Gracie Allen entrou saltitando alegremente na biblioteca. Carregava uma pequena caixa de madeira, apertada de encontro ao corpo. E atrás dela vinha George Burns, desconfiado e hesitante. Gracie explicou as coisas, com a habitual vivacidade.
— Eu tinha de vir, Senhor Vance, para lhe mostrar as minhas pistas. E George tinha acabado de chegar para falar comigo. Por isto, eu o trouxe. Acho que ele deve ficar sabendo como nós nos damos bem, não é, Senhor Vance? E a mamãe também chegará aqui dentro de poucos minutos. Ela disse que deseja falar com o senhor, embora eu não possa imaginar qual o motivo.
A jovem fez uma pausa suficiente para Vance apresentá-la a Markham. Aceitou-o sem a desconfiança dedicada antes a Heath; e Markham ficou ao mesmo tempo fascinado e divertido pela tagarelice viva e leve da moça.
— E agora, Senhor Vance, — prosseguiu ela, indo até à escrivaninha e tirando a capa rígida da pequena caixa que ela trouxera — tenho de lhe mostrar as minhas pistas. Mas, na verdade, não creio que sirvam para nada, porque eu não sabia exatamente onde as devia procurar. Em todo caso...
E começou a exibir os seus preciosos tesouros. Vance fingiu estar profundamente interessado, para agradar à jovem. Markham, intrigado e sorridente, avançou alguns passos; e Burns ficou de pé, pouco à vontade, do outro lado da escrivaninha. Heath, aborrecido pela interrupção frívola, acendeu um charuto, caceteado, e caminhou até à janela.
— Veja, Senhor Vance, aqui está o tamanho exato de uma pegada humana. — Gracie Allen tirou uma tira de papei onde havia alguns números escritos. — A pegada mede vinte e um centímetros de comprimento, e o homem da sapataria disse que esse era o comprimento de um sapato número trinta e cinco, a não ser que fosse um sapato inglês, e que nesse caso seria o de um sapato trinta e quatro. Acho que ele era grego, pois era um dos garçons lá do Domdaniel. Fui até lá, porque foi lá que o senhor disse que o morto foi encontrado. E esperei muito tempo para que alguém viesse à cozinha e deixasse uma pegada. E então, quando ninguém estava olhando, eu medi a pegada...
Ela colocou a folha de papel de lado.
— E agora, aqui está um pedaço de bloco que tirei da escrivaninha do Senhor Puttle, ontem, na hora do almoço, quando ele não se achava lá. E levei a um espelho, mas consegui ler apenas ”4 d. S. Sá.”, como tornei a escrever aqui. E tudo isso significa apenas: ”quatro dúzias de caixas de sabonete de sândalo...”

Gracie extraiu da bolsa mais dois ou três objetos inúteis, que explicou, com pormenores, de forma divertida, enquanto os colocava ao lado dos outros.
Vance não a interrompeu durante essa exibição divertida mas patética. Mas Burns, que estava ficando nervoso e exasperado com a desnecessária perda de tempo da moça, finalmente pareceu perder a paciência e desabafou:
— Por que não mostra a estes senhores as amêndoas que traz aí e acaba logo com esta coisa tola?
— Não tenho nenhuma amêndoa, George. Resta só uma coisa na caixa, e isso não tem nada a ver com o caso. Eu estava treinando quando arranjei aquela pista...
— Mas alguma coisa me cheira como amêndoa amarga. De repente, Vance ficou seriamente interessado.
— Que é que ainda tem na caixa, Senhorita Allen? — indagou ele.
A jovem riu baixinho, ao tirar a última pista: um envelope ligeiramente volumoso e totalmente selado.
— É apenas um cigarro velho — falou ela. — E é uma boa brincadeira com o George. Ele está sempre sentindo os cheiros mais esquisitos. Acho que não pode evitar fazer isso.
Rasgou o canto do envelope e deixou um cigarro achatado e parcialmente partido deslizar para sua mão. À primeira vista, eu teria dito que aquele cigarro nunca fora aceso, mas depois notei-lhe a ponta carbonizada, como se tivessem começado a fumá-lo. Vance pegou o cigarro e levou-o ao nariz, com aversão.
— Aqui está o seu cheiro de amêndoa amarga, Senhor Burns. — Seus olhos estavam focalizados em alguma coisa no espaço, longe dali. Depois, tornou a colocar o cigarro em um dos seus envelopes e deixou-o em cima da lareira.
— Onde foi que encontrou esse cigarro, Senhorita Allen? — indagou Vance.
A moça tornou a dar uma risadinha musical.
— Ora, foi esse cigarro que fez um buraco no meu vestido, no sábado passado, em Riverdale. Lembra-se? E então, quando o senhor me falou da importância dos cigarros, resolvi ir lá imediatamente. Desejava tentar encontrar o cigarro que foi jogado em mim. Na verdade, eu não acreditava que fosse o senhor que o houvesse jogado... Tive muita dificuldade em encontrá-lo, porque eu o pisara e ele se achava meio coberto.
Em todo caso, não descobri nada ao encontrá-lo, e fiquei novamente fula de raiva. Mas achei que seria melhor guardá-lo, pois era a primeira pista que eu obtivera, embora na verdade ele não tivesse nada a ver com o caso em que eu o estava ajudando.
— Minha querida menina — disse Vance, lentamente. — Talvez ele não tenha nada a ver com o nosso caso, mas pode ter relação com algum outro caso.
— Oh, não seria maravilhoso se tivesse? — exclamou a moça, encantada. — Assim, teríamos dois casos, e eu seria realmente um detetive, não é?
Markham avançara.
— Que foi que você quis dizer com essa última observavão, Vance?
— Talvez tenha havido cianeto nesse cigarro. — Ele olhou para Markham, de forma significativa. — Quanto à possível ação desta droga, bem como ao possível modo de administrá-la, tenho apenas de me referir às observações feitas por Doremus, na noite de domingo.
Markham fez um gesto de impaciência.
— Por Deus, Vance! Sua atitude para com este caso torna-se mais louca a cada instante que passa.
O detetive ignorou o comentário do outro e prosseguiu.
— Supondo acertada a minha suposição de que este agarro é realmente a arma mortífera que estamos ansiosamente procurando, vale lembrar que muitas outras coisas, igualmente fantásticas, ligadas ao caso, tornaram-se racionais. Assim, poderíamos ligar vários dos nossos dados desconhecidos e de pesadelo e assim estabelecer uma teoria que — pelo menos dentro das suas próprias limitações — brilharia, cheia de sentido. A saber: já conseguimos explicar o fato de Hennessey não ter conseguido ver a vítima entrar no escritório, na noite de sábado. Pudemos limitar o conhecimento da porta secreta a Mirche e a mais uma pessoa íntima sua — o que, como você deve admitir, seria lógico. Poderíamos supor que o crime tenha sido cometido em outro lugar, que não o escritório de Mirche — em Riverdale, para ser específico — e que o cadáver tenha sido levado para o escritório por algum motivo definido. Tal suposição poderia fornecer uma explicação da maneira peculiar como a polícia foi avisada; e poderia também esclarecer a dificuldade que o Dr. Mendel teve em determinar a hora da morte. Pois, se o crime tivesse acontecido no escritório, não o poderia ter sido antes das dez horas, uma vez que Gracie Allen esteve lá por volta daquela hora. Enquanto que, se o crime tivesse acontecido em outro lugar qualquer, poderia ter sido praticado a qualquer hora, num período de dez horas antes de o cadáver ser encontrado. Vance caminhou até junto à lareira e tamborilou, pensativamente, no envelope que continha o cigarro.
— Se o cigarro que está no envelope tiver mesmo estado impregnado de veneno, e se tivesse sido usado, como Doremus disse, que tal recurso pode ser usado, então estaríamos diante de uma coincidência completamente impossível. Isto é: teríamos o fato de que, em duas partes separadas da cidade, duas pessoas teriam sido assassinadas pelo mesmo sistema misterioso, no mesmo dia. E, além disso, temos um só cadáver.
Markham fez um aceno afirmativo de cabeça, lentamente, sem entusiasmo.
— É remotamente capcioso. Mas...
— Conheço suas objeções, Markham — interrompeu Vance. — E elas são também as que eu tenho. Todas as minhas suposições caprichosas podem não passar de simples fantasias... Mas são minhas e, no momento, eu as adoro.
Markham começou a falar, mas Vance prosseguiu.
— Deixe-me falar mais um instante, antes que você rne ponha uma camisa-de-força... Contemplo, em um sonho, as pastagens refrescantes a que minha estranha suposição poderia levar. Poderia até ligar os fatores aborrecidos que me têm roubado o doce sono... A pronta confissão de Mirche com relação à existência da sua porta secreta; o ódio que vi de relance nos olhos de Dixie Del Marr; a saga mística dos Tofanas; e a presença do ”Coruja” no Domdaniel, na noite de sábado. Poderia explicar as implicações sutis que há no nome do restaurante. Poderia até justificar a hipótese insistente, formulada pelo sargento, sobre a existência de uma quadrilha de criminosos. Poderia, também, esclarecer a presença da nômade cigarreira com cheiro de perfume de narciso. E há outras coisas, que agora me deixam confuso, mas que poderiam juntar-se em um todo consistente... Céus, Markham! Isso tem as possibilidades mais espantosas. Deixe-me com o meu sonho tão doce. Afinal, forma-se um quadro no meu cérebro torturado, e é o primeiro desenho coerente que invadiu minha imaginação febril desde a véspera de sábado. Baseado na singular premissa de que o cigarro estivesse convenientemente envenenado, posso forçar um punhado de elementos, até agora recalcitrantes, a entrar na linha, ou, melhor, eles irão entrando sozinhos na linha, como as partículas coloridas de um caleidoscópio.
— Vance, pelo amor de Deus! Você está apenas criando uma nova fantasia absurda, para explicar a sua primeira fantasia. — O severo tom de voz de Markham logo fez Vance voltar a si.
— Sim, tem toda razão — falou ele. — Naturalmente, mandarei o cigarro imediatamente para ser analisado por Doremus. E talvez ele não revele nada. Você é quem manda. Francamente, não compreendo como o cheiro poderia ter ficado em um cigarro tanto tempo, a não ser que um dos venenos misturados tenha atuado como fixador e tivesse retardado a volatilização... Mas, Markham, eu quero — eu preciso — do cadáver de um homem que foi assassinado em Riverdale no sábado passado.
Gracie Allen estivera olhando de um para outro dos homens, confusa e tonta.
— Oh, agora eu aposto em que eu compreendo! — exclamou ela, exultante. — O senhor pensa mesmo que o cigano poderia ter matado alguém... Mas eu nunca ouvi dizer que alguém morresse só pelo fato de fumar um cigarro.
— Não é um cigarro comum, minha cara Gracie -— explicou Vance, com paciência. — É possível que o cigarro em questão tenha sido imerso em algum veneno terrível.
— Ora, isso é horrível, se for mesmo verdade — disse ela, pensativa. — E logo em Riverdale, com tantos outros lugares! Lá é tão lindo e tão sossegado...
Seus olhos começaram a arregalar-se, e finalmente ela exclamou:
— Mas aposto em que sei quem era o morto! Aposto!
— Ora, mas de que você está falando? — Vance riu e olhou para a jovem, com um olhar intrigado. — Quem você pensa que foi?
Gracie olhou para Vance, com olhar perscrutador, durante alguns instantes, e depois disse:
— Ora, foi Benny, o Abutre!
O sargento Heath ficou de repente rígido, com a boca aberta.
— Onde foi que você ouviu esse nome, moça? — disse ele, quase gritando.
— Ora, ora... — gaguejou ela, surpreendida pela veemência do sargento. — O Senhor Vance me contou tudo a respeito dele.
— O Senhor Vance contou a você... ?
- Claro que contou! — disse a jovem, em tom de desafio. É assim que agora eu sei que Benny, o Abutre, foi morto em Riverdale.
- Morto em Riverdale? — e o sargento pareceu confuso. - E talvez você saiba, também, quem foi que o matou, não é?
Claro que sei... Foi o próprio Senhor Vance!


CAPITULO XVI
OUTRO CHOQUE
(Terça-feira, 21 de maio — 10:30 horas)


A espantosa acusação caiu como uma bomba entre os presentes, que ficaram todos paralisados. Passaram-se vários momentos antes que me pudesse controlar o bastante para ver a lógica que havia por trás daquilo. A declaração da moça era o desfecho natural da história que Vance inventara para ela na tarde em que nós a conhecemos.
Markham, que sabia apenas de poucos pormenores do rústico encontro e que não sabia de nada da história inventada por Vance, deve ter-se lembrado imediatamente da conversa tida com o detetive no Bellwood Country Club, na qual Vance exprimira suas idéias quanto à forma de eliminarem Pellinzi.
Heath, também, atônito pela comunicação da moça, deve ter-se lembrado do que houvera no jantar de sexta-feira; e tinha muita razão para supor que ele possuía alguma suspeita nevoenta a respeito da culpa de Vance.
O próprio Vance ficou temporariamente aturdido. No momento, sua cabeça devia estar ocupada com assuntos de maior monta, que suplantavam totalmente o episódio de Riverdale. Mas, agora, de repente ele compreendeu que a acusação de Gracie Allen adquiria foros de plausibilidade.
Markham aproximou-se da moça, sério e com a testa franzida.

— A acusação que acaba de fazer é muito grave, Senhorita Allen — falou ele. Seu tom de voz grave indicava as dúvidas intangíveis que havia no íntimo da sua mente.
— Caramba, Markham! — interrompeu Vance, muito aborrecido. — Faça o favor de olhar ao seu redor. Não estamos em um tribunal.
— Sei exatamente onde estou — retorquiu Markham, obstinadamente. — Deixe-me cuidar deste assunto. Ele é cheio de dinamite. — E virou-se para a moça. — Diga-me, por que você afirma que foi o Senhor Vance quem matou Benny, o Abutre?
— Ora, eu não disse isso... Isto é, eu não inventei isso. Apenas repeti o que ouvi.
Embora fosse evidente que Gracie não considerava a situação séria, era óbvio que a maneira grave de falar de Markham a deixara perturbada.
— Foi o Senhor Vance quem o disse. Ele falou isso quando o conheci em Riverdale, ao lado da estrada que segue ao longo de um grande muro branco, na tarde da sexta-feira passada, quando eu estava com... isto é, quando eu fui lá com...
Markham, notando o nervosismo da moça, sorriu, para tranqüilizá-la, e começou a falar de outra maneira.
— Não tem nenhum motivo para se preocupar, Senhorita Allen — disse ele. — Basta que me conte toda a história, exatamente como aconteceu.
— Oh! — exclamou ela, enquanto uma nota mais alegre lhe voltava à voz. — Por que não me disse logo que era isso que o senhor queria? Está bem, vou-lhe contar. Bem, fui a Riverdale na tarde do sábado passado... Nós não trabalhamos na fábrica aos sábados, pois o Senhor Doolson é muito bondoso nesse ponto. Fui até lá com o jovem Puttle, que é um dos nossos vendedores. Mas não creio que ele seja tão bom vendedor quanto alguns dos outros da In-O-Scent. Que é que você acha, George?
Ela virou-se um instante para Burns, mas não esperou resposta.
— Bem... Em todo caso, George queria que eu fosse com ele a outro lugar. Mas achei que seria melhor ir a Riverdale com Puttle, principalmente porque ele ia-me levar para jantar naquela noite. E achei que podia ficar zangado se eu não fosse com ele a Riverdale, e assim não me levaria para jantar. Por isso, não fui com George, mas fui a Riverdale com Puttle. Bem, nós chegamos a Riverdale, lugar aonde eu sempre vou, porque acho que aquilo lá é lindo. Mas é uma caminhada muito longa da Broadway, e então o Senhor Puttle foi procurar um convento de freiras...
— Por favor, Senhorita Allen — interrompeu Markham, com admirável controle. — Conte-me como foi que a senhorita encontrou o Senhor Vance e o que ele lhe disse.
— Oh, eu já ia chegar lá... O Senhor Vance apareceu depois de saltar o muro. E eu lhe perguntei o que ele tinha andado fazendo. Declarou que estivera matando um homem. E eu perguntei o nome do homem. Ele disse que era Benny, o Abutre.
Markham suspirou, impaciente.
— Pode-me dizer mais algumas coisas, Senhorita Allen, a respeito desse incidente?
— Pois não. Como eu já lhe disse, o Senhor Vance saltou o muro e caiu, pouco atrás do lugar onde eu estava sentada... Não, desculpe, eu não estava sentada, porque alguém acabara de jogar um cigarro em mim... esse cigarro que se acha agora cm cima da prateleira da lareira... Só que ele estava aceso e queimava ... E eu me achava de pé, sacudindo meu vestido, quando vi o Senhor Vance cair. Ele parecia estar com muita pressa, também. Eu lhe falei a respeito do cigarro e ele disse que talvez ele mesmo o tivesse jogado. Mas eu achava que o cigarro fora jogado de um carro grande que passara velozmente pelo ponto onde me encontrava. Seja como for, o Senhor Vance disse-me para ir à loja buscar um vestido novo, que ele pagaria, pois lamentava muito o ocorrido. E então ele sentou-se e fumou mais cigarros.
Gracie respirou fundo e prosseguiu apressadamente.
— E foi então que perguntei a ele o que estava fazendo do outro lado do muro, e ele disse que acabara de matar um facínora chamado Benny, o Abutre. Disse que fez isso porque o tal Senhor Abutre fugira da cadeia e pretendia matar um amigo dele... isto é, um amigo do Senhor Vance. Ele se apresentava com as roupas em completo desalinho e o chapéu amassado e virado de fado, e realmente tinha toda aparência de quem acabara de matar alguém. Até eu fiquei com medo dele, algum tempo. Mas venci o medo...
Ela parou um instante, a fim de contemplar Vance atentamente, como se estivesse fazendo uma comparação de roupas.
— Agora, vejamos... Onde é que eu estava? Ah, sim... Ele estava afastando-se de carreira, muito apressado, porque disse que não queria que ninguém soubesse que ele matara o tal homem. Mas ele me contou. Acho que viu logo que podia confiar em mim. Mas não sei por que motivo estava preocupado, porque ele disse que achava que agira direito, para salvar seu amigo do perigo. Em todo caso, ele me pediu para não contar a ninguém, e eu prometi. Mas agora ele acaba de me pedir para contar o que eu queria dizer a respeito do morto de Riverdale, e por isso acho que ele quis dizer que eu não precisava mais guardar sigilo. E é por isso que lhes estou contando.
O espanto de Markham foi aumentando, à medida que a jovem falava em disparada. Quando ela terminou a narrativa e olhou ao redor, à procura de aprovação, o procurador distrital virou-se para Vance.
— Céus, Vance! Essa história é realmente verdadeira?
— Infelizmente, é — confessou Vance, dando de ombros.
— Mas por quê... Por que você lhe contou tal história?
— Talvez por causa do tempo suave. Estamos na primavera, você sabe...
— Mas — perguntou a moça. — O senhor não vai prendê-lo?
— Não, eu... — E Markham ficou indeciso.
— Por que não? — insistiu a jovem. — Aposto que sei o motivo! Aposto que o senhor pensa que não se pode prender um detetive. Eu também pensava assim, antes. Mas no domingo perguntei a um policial, e ele me disse que claro que se pode prender um detetive.
— Sim, pode-se prender um detetive — sorriu Markham — quando se sabe que ele infringiu a lei. Mas tenho sérias dúvidas de que o Senhor Vance tenha realmente matado um homem.
— Mas ele mesmo afirmou isso. Do contrário, como iria ele saber? Eu também não o julgava culpado, a princípio. Pensei que ele apenas estava-me contando uma história romântica porque eu gosto muito de histórias românticas! Mas, depois, o Senhor Vance mesmo declarou — aqui nesta mesma sala, e todos ouviram — que no sábado passado mataram um homem em Riverdale com o cigarro. E ele falou muito sério... Notei isso, pela maneira como ele agiu e falou. Não foi, de forma alguma, como se ele estivesse inventando outra história romântica...
Gracie parou de chofre e olhou para o confuso Senhor Burns. A julgar pela sua expressão, outra idéia lhe surgira na cabeça. Ela tornou a se virar para Markham, com renovada seriedade.
— Mas o senhor devia prender o Senhor Vance — disse ela, em tom decisivo. — Mesmo que ele não seja culpado. Acho que, na verdade, não creio que ele seja mesmo culpado. Ele tem sido tão bonzinho para mim... Mas, assim mesmo, acho que o senhor devia prendê-lo. O que eu quero dizer é que o senhor pode fingir que acredita que ele matou o tal homem em Riverdale. E assim o George ficaria livre de acusações. E o Senhor Vance não se importaria nem um pouco... Sei que ele não se importaria. Não é, Senhor Vance?
— Em nome dos céus, a que ponto você quer chegar agora? — indagou Markham.
Vance sorriu.
— Sei exatamente o que ela quer dizer, Markham. — E virou-se para Gracie. — Mas, na verdade, minha prisão não ajudaria o jovem Burns.
— Oh, ajudaria, sim — insistiu Gracie. — Sei que ajudaria. Porque há alguém seguindo-o para onde ele vá. E George diz que deve ser algum detetive. E todos os policiais que rondam o hotel de George o olham de uma forma esquisita. Aposto que deve haver muita gente que pensa que George é culpado... porque a polícia foi à casa e o levou de tintureiro, e tudo o mais. George me contou tudo, e isso o deixa terrivelmente preocupado. George já não é o mesmo de antes. Não pode dormir muito bem e perdeu a capacidade de sentir essências. Portanto, como pode trabalhar? Não imagina o quanto isso é horrível, Senhor Vance. Mas, se o senhor fosse preso, então todos pensariam que o senhor era o culpado e deixariam de importunar o George. E ele poderia voltar ao trabalho e ser como era antes. E então, depois de algum tempo, o verdadeiro culpado seria encontrado e tudo acabaria bem para todos.
Gracie parou um instante, a fim de recuperar o fôlego, e em seguida tornou a disparar, com feroz determinação.
— E é por isso que acho que o senhor deveria prender o Senhor Vance. E, se o senhor não o fizer, chamarei os jornais e lhes contarei tudo que o Senhor Vance disse e tudo a respeito de Benny, o Abutre, e direi que ele não foi morto no Domdaniel, e sim em outro lugar qualquer. E aposto que eles publicarão essa reportagem. Principalmente porque o Senhor Puttle estava de pé atrás da árvore, quando o Senhor Vance estava falando comigo, e ele ouviu tudo. E, se eles não acreditarem em mim, terão de acreditar em mim e no Senhor Puttle juntos. E tenho certeza de que assim publicarão a história. E todos ficarão tão interessados no fato de um homem tão famoso quanto o Senhor Vance ser culpado de homicídio, que não se importarão mais com George. Não compreendem o que quero dizer?
Havia a resolução zelosa de uma cruzada nos olhos da moça, e suas frases desordenadas achavam-se cheias de paixão vibrante para ajudar o homem amado.
— Céus, chefe! — gritou Heath. — O que ela diz é dinamite. Bem que o senhor disse!
Vance moveu-se sonolento na sua cadeira e olhou para Heath com um sorriso irônico.
— Está vendo em que encrenca você e o fato de Tracy ter seguido o Senhor Burns me deixaram, sargento?
— Claro que estou! — E Heath deu um passo na direção da Senhorita Allen. A perturbação dele era quase cômica. — Escute aqui, moça — disse ele, furioso. — Ouça-me um instante. Você está totalmente enganada. Confundiu tudo. Não sabemos que tenha havido um homicídio em Riverdale. Não sabemos de nada a esse respeito, entende? Só sabemos que apareceu um morto no restaurante. E ele não era o Abutre, e sim seu irmão...
O sargento parou de chofre, com um tremor, e ficou todo ruborizado.
— Mil raios! Desculpe-me, Senhor Vance. Sinto muito. Vance levantou-se depressa e foi postar-se ao lado de Gracie. Esta achava-se com as mãos no rosto, com um ataque de riso incontrolável.
— Meu irmão? Meu irmão? — E depois, com a mesma rapidez com que começara a rir, ficou séria. — O senhor não me pode enganar assim, sargento.
Vance recuou.
— Diga-me — e uma nota subitamente nova lhe apareceu na voz. — Que quer dizer com isso, Senhorita Allen?
Meu irmão está na cadeia!


CAPITULO XVII
IMPRESSÕES DIGITAIS
(Terça-feira, 21 de maio — 11:30 horas)

Foi neste momento que a Senhora Allen, serena e discreta, foi introduzida na sala por Currie.
Vance virou-se depressa e lhe deu as boas-vindas com uma breve saudação.
— É verdade, Senhora Allen, — perguntou ele — que seu filho não está morto?
— Sim, Senhor Vance, é verdade. Foi por isso que vim até aqui. Vance acenou a cabeça, com um sorriso compreensivo, e, guiando a senhora até uma cadeira, pediu-lhe explicações mais completas.
— Acontece, Senhor Vance, — começou ela, em voz sem inflexão que Philip foi preso perto de Hackensack, naquela noite terrível, depois de deixar o emprego no restaurante. Ele se achava com outro rapaz em um automóvel, e um policial entrou e disse ao outro rapaz — que se chama Stanley Smith e que o amigo de Philip — para seguir para o distrito policial. Acusou-os de roubarem o carro, e então, quando estavam a caminho da cadeia, o policial lhes disse que era o mesmo carro que acabara de matar um ancião e de fugir. Foi um desses atropelamentos em que a vítima morre e o motorista foge. E isso deixou Philip muito assustado, pois ele não sabia o que o tal Stanley podia ter feito antes do encontro dos dois. E então, quando o carro parou a fim de esperar um sinal abrir, Philip saltou e fugiu. O policial atirou contra ele, mas meu filho não foi agarrado.
Vance fez um aceno afirmativo de cabeça.
— Depois, Philip telefonou para mim. Notei que estava muito assustado, e disse que a polícia estava à sua procura e que ele ia-se esconder em certo lugar. Oh, fiquei tão preocupada, Senhor Vance, com o meu pobre e infeliz filho tão assustado, e escondido da polícia... O senhor sabe, um fugitivo da justiça. E então, quando o senhor veio, naquela noite, pensei que estava à procura dele. Mas, quando o senhor me disse que meu filho estava morto, pode imaginar...
Heath saltou para diante.
— Mas a senhora disse que era o seu filho que estava lá no necrotério! — Heath lhe atirou as palavras, como uma chicotada.
— Não, eu não disse, senhor policial — disse a mulher, com simplicidade.
— Não disse, uma conversa fiada! — gritou Heath.
— Sargento! — E Vance ergueu a mão. — A Senhora Allen tem razão... Se você relembrar, verá que ela não disse, nenhuma vez, que o morto era o filho dela. Receio que fomos nós que dissemos isto por ela, porque pensávamos que fosse verdade. — E sorriu, melancólico.
— Mas ela desmaiou, não é? — insistiu Heath.
— Desmaiei de alegria, senhor policial, — explicou a mulher — quando vi que não era o meu Philip.
Mas Heath não se deu por satisfeito.
— Mas... Mas a senhora não disse que o morto não era seu filho. E nos deixou pensar...
Vance teve de contê-lo novamente.
— Acho que entendo perfeitamente por que a Senhora Allen nos deixou pensar que o morto era seu filho. Ela sabia que nós representávamos a polícia, e sabia, também, que seu filho estava fugido da polícia. E, ao notar que pensávamos que seu filho estava morto, ficou muito contente de nos deixar com essa idéia, imaginando que assim poria fim à perseguição de Philip... Não é verdade, Senhora Allen?
— Sim, Senhor Vance, — a mulher confirmou, calmamente, de cabeça. — E, naturalmente, eu não queria que os senhores contassem a Gracie que Philip estava morto, pois então eu teria de lhe contar que ele estava escondido da polícia, e isso a teria tornado infeliz. Mas achei que dentro de poucos dias tudo se esclareceria, e então eu contaria aos senhores. Em todo caso, pensei que dentro em breve vocês descobririam que o morto não era o meu filho.
A mulher ergueu o olhar, com um leve sorriso triste.
— E tudo saiu direito, como eu esperava e rezava para sair, e como eu sabia que sairia.
— E estamos todos muito felizes por ter saído assim — falou Vance. — Mas diga-nos como foi que tudo acabou direito.
— Ora, hoje cedo — recomeçou a Senhora Allen — Stanley Smith chegou à minha casa para perguntar por Philip. E quando eu lhe disse que Philip continuava escondido da polícia, ele informou que fora tudo um engano, e como seu tio foi à polícia e provou que o carro não fora roubado, e que fora outro carro que atropelara e matara o tal ancião... Portanto, contei imediatamente tudo a Gracie e fui levar a notícia maravilhosa a meu filho e trazê-lo de volta para casa...
— Então, como foi, — prosseguiu o sargento, evidentemente furioso — se a senhora contou tudo à sua filha, que ela acaba de nos dizer que seu irmão estava na cadeia?
A Senhora Allen sorriu timidamente.
— Está, sim. Na noite de sábado fazia muito calor e por isso Philip deixara seu paletó no carro. Foi assim que a polícia ficou sabendo quem ele era, pois ele esqueceu o cheque do pagamento no bolso do paletó. Por isso, ele foi à cadeia em Hackeasack, hoje cedo, buscar o paletó, e vai chegar a tempo de almoçar.
Vance riu, a contragosto, e dirigiu um olhar maroto a Gracie Allen.
— E garanto que era um paletó preto.
— Oh, Senhor Vance! — exclamou a moça, extasiada. — Que detetive maravilhoso o senhor é! Como pôde ver a cor do paletó do Philip, do outro lado do rio?
Vance riu baixinho e depois de repente ficou sério.
— E, agora, devo pedir a todos vocês para irem — falou ele — e se preparar para a volta de Philip à casa materna.
Nessa altura, Markham interveio.
— Mas e as declarações que a senhorita pretendia fazer aos jornais, Gracie? Eu não poderia permitir uma coisa dessas.
George Burns, com um sorriso largo no rosto, respondeu ao procurador distrital.

— Gracie não fará isso, Senhor Markham. É que eu agora já estou completamente feliz e vou voltar para o trabalho amanhã cedo. Na verdade, eu não estava preocupado com a possibilidade de ser culpado ou de que alguém me seguisse. Mas eu tinha de contar isso a Gracie e ao Senhor Doolson, porque o senhor me fizera prometer que não diria uma palavra a respeito de Philip. E era o fato de ele estar morto, e de Gracie não saber, e tudo o mais, que me fazia sentir tão mal, não me deixando dormir nem trabalhar.
— Não é maravilhoso? — E Gracie Allen bateu palmas, e depois olhou astutamente para Vance. — Eu não queria realmente que o senhor fosse para a cadeia, Senhor Vance... Era só para ajudar George. Por isso, dei ao senhor minha palavra de que não contaria nada a ninguém a respeito da sua confissão. Ê o senhor sabe que eu sempre cumpro as promessas que faço.
Quando a Senhora Allen ia-se retirando em companhia da filha e de Burns, dirigiu a Vance um olhar de acanhada desculpa.
— Espero, senhor, — falou ela — que não pense que agi mal enganando-o a respeito daquele pobre morto.
Vance pegou a mão da velhinha.
— Sem dúvida, não penso nada disso. A senhora agiu como qualquer outra mãe teria agido, se ela tivesse sido tão inteligente e tivesse um raciocínio tão vivo quanto o seu.
Beijou-lhe a mão e depois fechou a porta atrás dos três.
— E agora, sargento, — toda a sua maneira de ser mudou — mãos à obra! Chame Tracy aqui e depois mande identificar o morto pelas impressões digitais.
— Não me precisa dizer para por mãos à obra, chefe — retrucou Heath, correndo para a janela. Fez acenos frenéticos para o homem que se achava do outro lado da rua. Depois, voltou para dentro do aposento e, a caminho do telefone, parou de repente, como se um pensamento súbito o houvesse imobilizado.
— Ei, Senhor Vance — perguntou ele. — Por que acha que nosso arquivo tem as impressões digitais do morto?
Vance lançou-lhe um olhar perscrutador e significativo.
— Talvez você vá ter uma grande surpresa, sargento.
— Mãe de Deus! — disse Heath, em tom de espanto, enquanto corria para o telefone, que ficava no corredor.
Enquanto o sargento falava com a polícia, tão afobado que quase não conseguia se fazer entender, Tracy entrou. Vance mandou-o logo levar o envelope fechado, que se achava em cima da lareira, ao Dr. Doremus, para ser analisado.
Alguns minutos depois, Heath voltou para a biblioteca.
— Pronto, os rapazes já começaram a trabalhar! — E esfregou as mãos, energicamente. — Tirarão logo as impressões digitais do homem e procurarão nos arquivos. E, se eles não me telefonarem dentro de uma hora, irei até lá e lhes torcerei os pescoços grossos! — Deixou-se cair em uma cadeira, como se esgotado pelo simples pensamento da rapidez que ele exigira.
Vance telefonou em seguida a Doremus, explicando que era muito importante um relatório imediato sobre o cigarro.
Era quase meio-dia, e nós conversamos sobre coisas banais durante mais uma hora. Havia tensão na atmosfera, e a conversa foi como uma capa jogada propositadamente sobre os pensamentos íntimos desses três homens diferentes.
Quando o relógio que havia em cima da lareira apontou para as treze horas, o telefone tocou e Vance atendeu.
— Não houve nenhuma dificuldade na análise — informou-nos ele, quando pendurou o receptor do telefone. — O eficiente Doremus descobriu no cigarro aquela mesma mistura de venenos misteriosos que o deixou tão aborrecido na noite de domingo... Minha história fantástica, Markham, finalmente está começando a se concretizar.
Mal Vance acabara de falar, quando o telefone tocou novamente, e foi a vez de Heath correr para o corredor. Quando ele voltou para a biblioteca, depois de alguns momentos, tropeçou em uma pequena mesa estilo renascentista, que havia perto da porta, e jogou-a longe.
— Pois bem, estou agitado. E daí? — Os olhos do sargento brilhavam de entusiasmo. — Quem vocês pensam que o sujeito era? Raios! O senhor já sabia, Senhor Vance. É nosso velho amigo, Benny, o Abutre! E talvez aqueles rapazes lá em Pittsburgh não estivessem doidos! E pode ser que o Abutre não tenha saltado direto de Nomenica para Nova York, como eu disse que ele faria... Está livre dessa ameaça, Senhor Markham.
A agitação de Heath era tão grande que, por alguns instantes, foi até mais forte do que o seu respeito para com o procurador distrital.
— Que faremos agora, Senhor Vance?
— Eu diria, sargento, que a primeira coisa a fazer é sentar-se. Tenha calma. É uma virtude muito necessária.
Heath obedeceu prontamente, e Vance virou-se para Markham.
— Acho que o caso continua sendo meu, por assim dizer. Você mo presenteou, num gesto magnânimo, para se livrar da minha tagarelice, na noite do sábado passado. Portanto, agora devo pedir mais uma concessão da sua parte.
Markham esperou, em silêncio.
— Chegou a hora em que tenho de agir com rapidez — prosseguiu Vance. — O caso todo, Markham, já se tornou claro. Os vários fragmentos do quebra-cabeças já encaixaram nos devidos lugares e formaram um mosaico espantoso. Mas ainda falta preencher um ou dois espaços em branco, e acho que Mirche, se for abordado de maneira adequada, poderá fornecer os pedaços que faltam...
Heath intrometeu-se.
— Estou começando a compreender, senhor. Acha que a identificação que Mirche fez do Abutre foi deliberadamente falsa?
— Não, sargento, nada disso. Mirche foi totalmente sincero e com um motivo muito bom. Ele ficou legitimamente atordoado com o aparecimento do cadáver na sua sala, naquela noite.
— Então, não o compreendo, senhor — disse Heath, em tom de desalento.
— Qual é a concessão que você deseja, Vance? — indagou Markham, impaciente.
— Quero só efetuar uma prisão.
— Mas, sem dúvida, não pretendo deixar que você ponha o gabinete do procurador distrital em maus lençóis. Precisamos esperar até que o caso seja solvido.
— Ah! Mas ele já está esclarecido — retorquiu Vance, à queima-roupa. — E você poderá ir comigo, para proteger o bom nome do seu gabinete. Na verdade, sua companhia me encantaria.
— Vá direto ao ponto — falou Markham, irritado. — O que pretende fazer?
Vance inclinou-se para diante e falou com precisão.
— Desejo muito ir ao Domdaniel logo que possível, hoje à tarde. Quero levar dois homens — digamos, Hennessey e Burke — que ficarão de guarda, na passagem do lado de fora da porta secreta. Depois, seguirei com você e com o sargento até à porta da frente que dá para a sacada e pedirei para entrar. Em seguida, agirei, sob o seu olhar controlador, é claro.
— Mas... Céus, Vance! Mirche pode não estar à espera da sua visita no escritório dele. Pode ter outros planos para se divertir esta tarde.
— Esse — declarou Vance — é um risco que precisamos correr. Mas tenho motivos suficientes para crer que o escritório de Mirche, hoje, está uma colmeia de atividade. E muito me espantaria se Dixie e Owen, também, não estivessem lá. Owen vai partir de navio, logo à noite, para a América do Sul, e hoje é o dia para liquidar seus negócios mundanos aqui. Você e o sargento têm suspeitado, há muito tempo, de que o Domdaniel é a sede de toda espécie de patifarias que vem acontecendo na cidade. Pois não precisa mais duvidar disso, Markham.
O procurador distrital pensou um instante.
— Parece-me absurdo e inútil — declarou ele. — A não ser que você tenha fundamentos sérios para tal ação... No entanto, como você diz, eu mesmo estarei lá a fim de me proteger contra qualquer indiscrição da sua parte... Muito bem — capitulou ele.
Vance confirmou de cabeça, com satisfação, e olhou para o espantado Heath.
— E, a propósito, sargento, talvez tenhamos notícias dos seus Rosa e Tony.
— Os Tofanas! — E Heath ergueu-se no sofá, alerta. — Eu já sabia. Aquele trabalho do cigarro é especialidade de Tony...
Vance descreveu seu plano ao sargento. Heath deveria combinar com Joe Hanley, o porteiro, para dar um sinal se Mirche saísse do salão de refeições pelos fundos. Hennessey e Burke deveriam receber instruções quanto ao lugar onde se postar e o que fazer. E Markham, Vance e Heath deveriam esperar na pensão fronteira ao restaurante, de onde podiam ver ou o sinal de Hanley ou Mirche entrar no seu escritório pela sacada.
Contudo, ficou demonstrado que grande parte dos preparativos complicados era desnecessária; pois a teoria e previsões de Vance com referência à situação, naquela tarde, eram inteiramente acertadas.


CAPITULO XVIII
NARCISO E ROSA
(Terça-feira, 21 de maio — 15:00 horas)

Às três horas daquela tarde, Joe Hanley, que estivera de vigia para nós, chegou à esquina da Sétima Avenida e nos informou que Mirche entrara no seu escritório pouco depois do meio-dia, e que nem ele nem Dixie Del Marr tinham sido vistos no restaurante desde então.
Encontramos as persianas das janelas estreitas baixadas e a porta do escritório achava-se trancada à chave. Além disso, não atenderam, embora batêssemos com insistência.
— Abram! — gritou Heath, ferozmente. — Do contrário, terei de arrombar a porta. — Depois, observou para nós: Acho que isso os assustará, se houver alguém lá dentro.
Pouco depois, ouvimos o ruído de passos apressados e vozes furiosas lá dentro. E, alguns momentos mais tarde, a porta nos foi aberta por Hennessey.
— Agora, tudo está bem, chefe — disse ele a Markham. — Eles tentaram fugir pela porta da parede, mas eu e Burke os obrigamos a voltar.
Quando atravessamos a porta, deparei com um quadro estranho. Burke achava-se de costas contra a pequena porta secreta, com o revólver apontado de maneira significativa para o espantado Mirche, que se achava a poucos passos dele. Dixie Del Marr, também coberta pela arma de fogo de Burke, achava-se encostada à escrivaninha, olhando para nós com uma expressão de fria resignação. Em uma das cadeiras de couro estava sentado Owen, sorrindo debilmente, com calma e cinismo. Parecia inteiramente desligado de todo o quadro geral, como um espectador que estivesse contemplando uma cena teatral que lhe ofendesse o intelecto pelo absurdo. Não olhava nem para a direita nem para a esquerda, e foi só depois que estávamos bem ao alcance do seu olhar sonolento que ele fez um leve movimento.
Mas, quando avistou Vance, levantou-se, cansadamente, e se curvou, em uma saudação formal.
— Que esforço inútil — queixou-se ele. Depois, sentou-se novamente, com um leve suspiro, como alguém que acha que tem de ficar até o fim para assistir ao resto de um drama desagradável.
Hennessey fechou a porta e ficou de pé, alerta, vigiando os ocupantes do aposento. Burke, a um sinal de Heath, deixou a mão cair para o lado do corpo, mas manteve uma vigilância severa.
— Sente-se, Senhor Mirche — disse Vance. — É apenas uma pequena discussão.
Quando o homem, lívido e assustado, deixou-se cair em uma cadeira junto à escrivaninha, Vance se curvou delicadamente, cumprimentando Dixie Del Marr.
— Não é preciso a senhorita ficar de pé.
— Prefiro ficar assim — disse a mulher, em tom de voz duro. — Há três anos que venho esperando sentada...
Vance aceitou sem comentário a sua observação misteriosa e voltou novamente sua atenção para Mirche.
— Nós estávamos conversando a respeito de preferências no tocante a vinhos e comidas — falou ele, em tom indiferente. — E eu estava imaginando qual seria a marca de cigarros que o senhor fuma.
O homem pareceu paralisado de medo. Mas logo se recuperou; um simulacro de sua antiga suavidade voltou a seu rosto. O homem fez um ruído como o de um sapo coaxando, que pretendia ser uma risada.
— Não tenho preferência por nenhuma marca — declarou ele. — Eu sempre fumo...
— Não, não — interrompeu Vance. — Refiro-me à sua marca muito especial, reservada para os eleitos.

Mirche tornou a rir e gesticulou largamente com as palmas das mãos viradas para cima, para indicar que não compreendera em nada o significado da pergunta.
— A propósito — prosseguiu Vance — nos tempos medievais, quando Madame Tofana e outros envenenadores famosos prosperaram, havia muitas flores, hoje lendas românticas para nós, que provocavam a morte com uma simples cheirada. É esquisito como essas lendas persistem e como surgem tantos exemplos da sua aparente autenticidade nos tempos modernos. É de se admirar como os velhos segredos da alquimia foram preservados até os tempos atuais. Naturalmente, tais especulações são absurdas à luz da ciência moderna.
— Não compreendo o que o senhor quer dizer com isso. — Mirche falava com uma tentativa de mostrar dignidade ferida.
— E também não entendo esta invasão ultrajante dos meus aposentos particulares.
Vance ignorou o homem um instante e dirigiu-se à Senhorita Del Marr.
— Acaso a senhorita perdeu uma cigarreira especial, com desenhos enxadrezados? Quando ela foi encontrada, tinha o cheiro de narcisos e rosa. Uma combinação excêntrica, Senhorita Del Marr, e lembra a sua pessoa.
Não se notou nenhuma mudança na expressão fisionômica da mulher, que continuou dura, embora ela hesitasse de forma evidente antes de responder.
— Não é minha. Mas creio, no entanto, que conheço a cigarreira a que o senhor se refere. Eu a vi no sábado passado neste escritório, e naquela noite ela me foi mostrada pelo Senhor Mirche. Ele a carregara durante várias horas no bolso... Talvez tenha sido assim que ela adquiriu o perfume. Onde foi que a encontrou, Senhor Vance? Disseram-me que foi esquecida aqui por um dos empregados do restaurante... Talvez o Senhor Mirche pudesse...
— Não sei de nada a respeito de tal cigarreira — disse Mirche, sem delongas. Havia energia e susto nas suas palavras. Jogou um olhar de desafio a Dixie, mas esta se achava de costas para o homem.
— Isso não importa, não é mesmo? — disse Vance. — É apenas uma referência de passagem.
Seus olhos continuavam pousados em Dixie Del Marr, e ele tornou a lhe dirigir a palavra.
— A senhorita sabe, naturalmente, que Benny Pellinzi está morto.
— Sim... Eu sei. — E suas palavras não denotavam nenhuma emoção.
— Há uma estranha coincidência nisso. Ou, talvez, apenas um capricho meu. — Vance falava como se estivesse apenas fazendo uma observação sem importância. — Pellinzi morreu na tarde do sábado passado, pouco depois de ter tido tempo de chegar a Nova York. Mais ou menos nessa altura, acontece que fui casualmente às matas de Riverdale. E, quando começava a voltar para casa, um carro grande passou velozmente pelo local onde me achava. Mais tarde, fiquei sabendo que um cigarro aceso fora jogado do carro, perto do lugar onde eu me achava de pé. Era um cigarro muito diferente dos outros, Senhorita Del Marr. Apenas tinha começado a ser fumado. Mas não era essa a única peculiaridade do tal cigarro. Além disso, havia também um veneno mortífero nele. O equivalente moderno das fabulosas flores envenenadas que figuravam nas tragédias medievais. E, contudo, fora jogado descuidadamente em uma rodovia pública...
— Uma ação imbecil — disse Owen, em tom de voz suave mas cheio de censura.
— Casual, digamos assim... do ponto de vista finito. Mas, na verdade, inevitável. — Vance também falava em tom suave. Só existe um modo de agir em todo o universo.
— Sim — falou Owen, em tom vago e sonhador. A imbecilidade humana é um dos fatores que concorrem para a fatalidade dos acontecimentos.
Vance não se virou. Estava observando atentamente a expressão fisionômica de Dixie Del Marr.
— Posso prosseguir, Senhorita Del Marr, ou minha história a importuna.
Dixie não deu nenhum sinal de ter ouvido a pergunta.
— A cigarreira a que me referi — prosseguiu Vance — foi encontrada no cadáver de Pellinzi. Mas não havia cigarros dentro dela. E ela não continha nenhum cheiro picante de amêndoas amargas... Só o cheiro doce de narciso e rosa... Mas Pellinzi foi envenenado pelo cheiro desse perfume. E, novamente, entra em ação o mortífero agente do romance antigo... É estranho, não é? Como a fantasia evoca associações tão remotas. O pobre Pellinzi deve ter confiado e acreditado em quem o assassinou. Mas sua fé encontrou apenas traição e morte.
Vance fez uma pausa. Havia grande tensão no pequeno aposento. Só Owen parecia despreocupado. Olhava diretamente para diante, com uma expressão fisionômica sem esperanças e distante e a boca torcida por uma expressão cruel.
Quando Vance tornou a falar, suas maneiras tinham mudado: havia uma repentina severidade na sua voz.
— Mas talvez, afinal de contas, eu não esteja sendo lá muito imaginoso. A quem, senão a Senhorita Del Marr, teria Pellinzi comunicado em primeiro lugar a sua chegada a Nova York? E como poderia ele ter sabido, nesses últimos anos, que outro homem conquistara o coração da mulher que outrora lhe pertencera? Possui um carro grande e fechado, Senhorita Del Marr. Uma viagem secreta a Riverdale teria sido coisa fácil para a senhorita. A cigarreira, com o seu perfume sutil, foi encontrada com o cadáver. O amor muda e é cruel...
Owen deixou escapar uma risadinha gélida. Suas sobrancelhas arquearam-se ligeiramente. A expressão cruel da sua boca se transformou em um arremedo de sorriso.
— Muito hábil, Senhor Vance — murmurou ele. Na verdade, admirável. Padrões dentro de padrões. Como o homem se deixa enganar facilmente por fantasmas!
— É a enganosa ordem que existe no caos — falou Vance. Owen fez um aceno de cabeça, quase imperceptível. Seu rosto voltou a ser uma satírica máscara.
— Sim — disse ele, em tom suave. — O senhor também tem um senso exotérico de humor.
— Duvido — murmurou Vance — que a Senhorita Del Marr aprecie o humor da morte.
Um gemido estrangulado irrompeu da garganta da mulher. Ela deixou-se cair em uma cadeira e cobriu o rosto com as mãos.
— Oh, meu Deus! — Foi o primeiro rompimento do seu controle rígido.
Seguiu-se longo silêncio. Mirche olhou um instante para Vance e novamente para a mulher. Seu rosto recuperara parte da sua cor, mas um medo intenso lhe brilhava nos olhos: um medo de um fantasma maligno, cuja forma ele não sabia determinar. Compreendi que se iam acumulando na sua mente perguntas que ele não ousava formular.
A mulher ergueu lentamente a cabeça; as mãos lhe caíram no colo e ficaram lá, em atitude de completo desânimo: A dureza venenosa da sua natureza recuperou o controle. Dixie esteve para falar, mas também ela conteve o impulso, como se a pressão das suas emoções ainda não tivesse alcançado o ponto de libertação.
Vance acendeu lentamente um dos seus cigarros. Depois de tirar duas baforadas, falou novamente com Dixie, e suas palavras pareceram indiferentes, como se ele estivesse fazendo uma pergunta que não contivesse nenhuma importância particular.
— Ainda há uma coisa que me intriga, Senhorita Del Marr... Por que trouxe Pellinzi, morto, para este escritório?
A mulher sentou-se como uma estátua de mármore, enquanto um cacarejo desdenhoso escapou dos lábios de Mirche.
— Está-se referindo, Senhor Vance, — perguntou ele, à sua antiga maneira pomposa — ao homem encontrado morto neste escritório? Estou começando a compreender o seu interesse no lamentável episódio que se passou aqui na noite de sábado. Mas receio que tenha permitido à sua imaginação levá-lo completamente de roldão. O cadáver encontrado aqui era o de um dos empregados do restaurante.
— Sim. Sei a quem se refere, Senhor Mirche. A Philip Allen. Vance falava em tom de voz macio. — Como o senhor disse naquela noite. E não tenho dúvidas de que o senhor acreditava nisso, e de que ainda acredita. Mas, às vezes, os fatos aparentes atuam de forma esquisita. Um padrão está sujeito a mudar o seu desenho da maneira mais incrível... Não é verdade, Senhor Owen?
— É sempre verdade — replicou o espectador silencioso da cadeira. — Confusão. E nós somos as vítimas...
— A que ponto vocês dois querem chegar? — indagou Mirche, levantando-se a meio na sua cadeira, enquanto o medo lhe transparecia nos olhos.
— A verdade, Sr, Mirche, é — falou Vance — que Philip Allen está bem vivo. Depois que o senhor o mandou embora do emprego e que ele, casualmente, deixou uma cigarreira aqui, que realmente não lhe pertencia, Philip Allen não voltou a este escritório.
— Ora, isto é ridículo! — E Mirche perdera a suavidade da fala. — Do contrário, como poderia ele...?
— Era Benny Pellinzi quem estava caído no soalho, naquela noite, morto!
A esta notícia, Mirche tornou a se deixar cair de repente na sua cadeira e ficou olhando, com ar de desafio sem esperanças, para o homem que estava diante de si. Mas os fatos ainda não se tinham organizado na sua mente, e ele recomeçou a protestar.
— Isso é absurdo... Completamente absurdo! Eu próprio vi o cadáver de Allen. E o identifiquei.
— Oh, não discuto a sinceridade da sua identificação. — Vance aproximou-se mais do homem perplexo. Seu tom de voz era quase meloso. — O senhor estava com todas as razões para supor que o morto fosse Philip Allen. Ele é do mesmo tamanho que Pellinzi. Tem a mesma forma de rosto e a mesma cor de pele, e naquele dia ele estava vestindo um terno preto igual ao que Pellinzi usava quando o mataram. O senhor acabara de falar com Philip Allen, no seu escritório, algumas horas antes, e, conforme me disse ontem, o senhor não se surpreendeu pelo fato de ele ter voltado aqui. Além disso, a morte pelo envenenamento muda a expressão dos olhos e todo o aspecto geral do rosto. Acresce, ainda, que Pellinzi era a última pessoa no mundo que o senhor teria esperado encontrar no seu escritório, principalmente naquela noite. Sim, a última pessoa no mundo...
— Mas por que — gaguejou Mirche — por que Pellinzi devia ter sido a última pessoa no mundo que eu teria esperado? Eu sabia, pelos jornais, que o homem fugira da cadeia. E era bem possível que ele tivesse cometido a tolice de me procurar para pedir ajuda.
— Não... Oh, não. Não me refiro a isso, Senhor Mirche — retrucou Vance, tranqüilamente. — Eu tinha outro motivo, mais convincente, para saber que o senhor não esperaria encontrar Pellinzi aqui naquela noite... O senhor sabia que Pellinzi estava morto em Riverdale.
— Ora, como poderia eu ter sabido que ele estava morto? — gritou o homem, freneticamente, saltando de pé. — O senhor mesmo disse que seria Dixie Del Marr a quem ele teria apelado primeiro, e o carro dela, sua viagem a Riverdale... Bolas... O senhor não me pode intimidar!
— Tenha mais calma, Dan — falou Owen, com petulância. — Já existe tumulto de sobra neste mundo pobre. A confusão me cansa.
— Novamente, receio que me tenha entendido mal, Senhor Mirche. — Vance ignorou a queixa de Owen a seu assecla amedrontado. — Quis dizer, apenas, que a Senhorita Del Marr deve tê-lo informado a respeito do fato. Tenho certeza de que vocês dois não ocultam segredos um do outro. Têm uma confiança mútua completa, mesmo no crime. E, sabendo que Pellinzi estava morto em Riverdale, e que a sua digamos assim, sócia? — dificilmente traria o cadáver para cá, como poderia o senhor imaginar que o homem encontrado morto neste escritório, naquela noite, era Pellinzi? Como teria sido natural cometer um erro de identificação! E, já que não poderia ser Pellinzi, deveria ser outra pessoa qualquer. E com que presteza — e com que lógica — Philip Allen lhe veio à idéia... Mas era Pellinzi.
— Como é que o senhor sabe que era Benny? — E Mirche estava atrapalhado, perturbado por alguma visão mental íntima. — O senhor está tentando enganar-me. — Depois, ele quase gritou: — Repito... Não poderia ter sido o Abutre!
— Ah, poderia, sim. É um engano da sua parte. — Vance falava tranqüilamente e com autoridade. — Não há dúvidas possíveis. As impressões digitais não mentem. Pergunte ao sargento Heath ou ao procurador distrital. Ou pode telefonar para a polícia e certificar-se.
— Imbecil! — cortou Owen, com os olhos sonolentos pousados em Mirche, com uma expressão de indizível aborrecimento. Virou-se para Vance. — Afinal de contas, como é fútil... este sonho diabólico... Esta sombra que nos cobre... — E a voz lhe faltou.
Mirche estava olhando fixamente para algum ponto distante além dos limites do cômodo, sozinho com seus pensamentos, lutando para juntar um punhado de fatos isolados.
— Mas — murmurou ele, como se protestando debilmente contra algum vingador inevitável e sem forma — a Senhorita Dell Marr viu o cadáver aqui e...
O homem tornou a cair no silêncio, pensando no assunto. E então um profundo rubor lhe foi aumentando nas feições e aos poucos foi ficando de cor mais intensa, até que pareceu que o sangue ia sufocá-lo. Os músculos do seu pescoço enrigeceram e gotículas de suor lhe apareceram de repente na testa.
Rigidamente e com esforço, o homem virou-se para Dixie Del Marr e, em uma voz de ódio fremente, descarregou contra ela uma saraivada de palavrões.


CAPITULO XIX
ATRAVÉS DA SOMBRA
(Terça-feira, 21 de maio — 16:00 horas)

Outra onda de emoções fortes rompeu a calma de pedra de Dixie Del Marr. Uma paixão violenta e primitiva a consumia por dentro. Ela se levantou e encarou Mirche, e suas palavras saíram em uma torrente incontrolável.
— Claro, sua criatura suja, que eu os deixei pensar que o morto encontrado neste escritório — o homem que você matou — era Philip Allen. Mais alguns dias de dúvida e de tortura para você... Que importava isso? Eu já esperara vários anos para vingar Benny. Oh, eu sabia muito bem que a sua traição o mandara para a cadeia para cumprir vinte anos de prisão. E eu não pude dizer nada para salvá-lo. Havia só um jeito de eu vingar essa injustiça. Eu tinha de esperar com paciência, pois sabia que um dia chegaria a hora... Você gostava de mim... Você me queria. Esse pensamento de me possuir já estava na sua mente inferior quando você deixou que mandassem Benny para a cadeia. Por isso, fingi que estava do seu lado e o ajudei nos seus planos ilegais. Eu o lisonjeei. Fiz o que você mandava. E durante o tempo todo eu amava Benny. Mas eu soube esperar...
Dixie deu uma risada amarga.
— Três anos são muito tempo. E o instante que eu esperara veio tarde demais. Mas eu me consolo com o pensamento de que a morte de Benny foi um fim misericordioso. Ele não podia ter esperanças de uma vida normal, embora tivesse conseguido fugir da prisão. Benny passara a vida inteira sendo perseguido pela polícia. Mas ele foi furioso para a sua cela. Tão furioso a ponto de pensar que podia encontrar a verdadeira liberdade da prisão, para onde a sua traição o havia mandado. Uma fúria irresistível tomou conta da mulher.
— Mas Benny nunca soube da sua traição. Pensava que você era amigo dele. E veio à sua procura para pedir ajuda. Mas, graças a Deus, ele telefonou também para mim quando voltou, no sábado passado. Contou-me que havia telefonado para você antes de chegar à cidade. Que você dissera que o ajudaria. E eu sabia que isso era mentira. Mas que podia eu fazer? Tentei preveni-lo. Mas Benny não me quis dar ouvidos. Pensou que, talvez, depois de tanto tempo, eu tivesse algum motivo forte para querer evitar um encontro entre vocês dois. Não me quis dar ouvidos. Não me contou nada dos seus planos, exceto que você ia ajudá-lo...
— Você está doida — conseguiu dizer Mirche.
— Cale-se, idiota — suspirou Owen. — Você não pode mudar o curso do destino.
— Por isso, eu o segui, Dan, no carro que você me deu, e com o motorista que você me forneceu e que fazia parte da sua quadrilha. — Dixie tornou a rir, com a mesma amargura. — Ele o odeia tanto quanto eu... Mas ele tem medo de você, pois sabe que você pode ser muito perigoso... Eu o segui, desde a hora em que você saiu daqui, na tarde de sábado. Eu sabia que você não deixaria Benny ir até onde você se achava, pois, apesar da sua crueldade, você é um covarde. E eu o segui a um bairro afastado e vi quando você entrou na casa de Tony... Pena que Rosa não tivesse olhado na sua bola de cristal para preveni-lo... E então compreendi o plano torpe que você estava armando para se livrar do Benny. Mas não imaginei que você tivesse coragem de executá-lo, como o fez. Pensei que Benny só deveria morrer quando você estivesse a salvo novamente no seu escritório. Como iria eu saber que você escolheria os cigarros do Tony para fazer o serviço? Pensei que eu ainda podia avisar Benny, antes que fosse tarde de mais... Pensei que eu ainda podia salvá-lo. Por isso, segui você. Vi quando você o apanhou, no lugar onde ele se achava escondido, bem no interior do parque; vi quando você seguiu com o carro rumo ao norte,
atravessando Riverdale; vi quando você parou em um ponto isolado, depois de uma curva, onde pensava que ninguém podia vê-lo. E então, eu o vi colocar o cadáver de Benny rapidamente ao lado da estrada e afastar-se velozmente de carro. A mulher nos varreu com um olhar ardente.
— Oh! Não estou mentindo! — gritou ela. — Nada mais me interessa... exceto o castigo deste homem.
Mirche parecia paralisado, incapaz de falar. Owen, ainda com seu sorriso céptico e distante, não se movera.
— Queira prosseguir, Senhorita Del Marr — pediu Vance.
— Levei o corpo de Benny para meu carro e trouxe-o para aqui, quando sabia que Mirche estaria lá em cima. Cheguei à alameda de entrada de carros, como sempre faço, e parei perto da porta lateral, na extremidade da passagem. — Ela apontou para os fundos do aposento. — Ninguém me podia ver da rua... com a porta do carro aberta. E as trepadeiras também ajudaram a me encobrir. Depois, entrei para me certificar de que não havia ninguém no corredor mais além, e dei o sinal. Meu motorista carregou o pobre Benny e o colocou aos pés do homem que o matara...! Você não sabia, não é, ”Coruja”, que havia um morto naquele armário, quando esteve sentado aqui, conversando comigo, naquela noite?
— E daí? — Houve uma mudança na expressão de Owen.
— E, quando você saiu, ”Coruja”, eu trouxe Benny para baixo da escrivaninha e telefonei para a polícia.
Agora, compreendi que Vance provocara deliberadamente o desabafo frenético da mulher. Enquanto ela falava, ele fizera um sinal ao sargento, e Heath e Hennessey se aproximaram de Mirche sem que este percebesse, e agora o homem se achava com um guarda de cada lado.
— Mas como é, Senhorita Del Marr, — perguntou Vance — que a sua história explica o fato de a cigarreira com perfume de narciso e rosa ter sido encontrada no bolso de Pellinzi?
— Foi medo! Foi a consciência deste patife — retorquiu ela, apontando para Mirche com ar de desafio. — Quando viu o que julgava ser o cadáver de Allen, seu cérebro assustado e enevoado se lembrou de que a cigarreira de Philip Allen ainda estava no seu bolso. E eu o vi, ajoelhado ao lado do cadáver, enfiar a cigarreira no bolso do paletó do morto. O ato impulsivo de um covarde, com o qual ele pretendia livrar-se de toda associação com o que ele julgava ser um segundo assassinato. Mirche queria evitar qualquer possível relacionamento de sua pessoa com outro cadáver.
— É uma versão razoável — murmurou Vance. — Sim. Uma análise bem sutil... E a senhorita se contentou em deixar que a verdade com referência ao morto aparecesse por meio das investigações?
— Sim! Depois de informar à polícia o endereço de Philip Allen, eu sabia que mais cedo ou mais tarde a justiça acabaria descobrindo a verdade. E, enquanto isto, este meliante, Mirche, ficaria preocupado e sofreria... E eu teria meios de sobra para torturá-lo.
— A ética de uma mulher... — começou Owen. Depois, voltou a ficar em silêncio.
— Tem alguma coisa a dizer antes de o prendermos, Mirche? — o tom de voz de Vance era baixo, mas cortante como uma chicotada.
Mirche ficou olhando, de um modo terrível, e sua figura gorducha pareceu encolher-se. De repente, contudo, ele se levantou e apontou um dedo trêmulo contra Owen. As veias do seu rosto estufaram-se como cordéis.
Owen fez um ruído gutural de desprezo.
— Cuidado com a pressão sangüínea, idiota — zombou Owen. — Não vá poupar esse trabalho ao carrasco.
Duvido que Mirche tenha ouvido essas palavras mordazes. Os vitupérios e os palavrões entornaram dos seus lábios. Sua ira parecia ultrapassar todas as fronteiras humanas. Seu veneno transformou-o em um mero autômato: insensato, contorcido, repelente.
— Não pense que levarei a culpa em seu lugar, sem dizer nada! Já cedi demasiado tempo sob a sua influência. Executei os seus planos sujos. Fechei a boca sempre que eles tentavam arrancar de mim a verdade a seu respeito. Posso ir para a cadeira elétrica, ”Coruja”, mas não sozinho! Levarei comigo você com seu cérebro hipnótico e envenenado!
Dirigiu um olhar rápido a Vance e apontou novamente para Owen.
— Ali está o cérebro tortuoso que planejou tudo isto... Eu o avisei da chegada do Abutre, e Owen me mandou buscar os cigarros. Ele me disse o que eu devia fazer. Tive medo de recusar... Achava-me em seu poder...
Owen olhou para o homem com calma zombaria: continuava distante e desdenhoso. A peça estava chegando ao fim, e o seu desprezo e a monotonia da situação ainda não o tinham abandonado.
— Você é um espetáculo triste, Dan. — Seus lábios mal se moveram.
— Se pensa que não estou preparado para este momento, o tolo é você, e não eu. Guardei todos os registros e dados: nomes, lugares... tudo! Durante vários anos, tenho guardado, essas coisas. Eu as ocultei onde ninguém as pode encontrar. Mas eu sei onde as encontrar! E o mundo inteiro saberá...
Essas foram as últimas palavras que Mirche disse em sua vida.
Ouviu-se um tiro. Um pequeno orifício preto apareceu na testa de Mirche, entre os olhos. O sangue gotejou do orifício e o homem tombou para diante, em cima da escrivaninha.
Heath e os dois detetives, com as automáticas empunhadas, começaram rapidamente a atravessar o aposento, para chegar até junto ao imóvel Owen, que continuou sentado, sem se mover, uma das mãos apoiada no colo, empunhando um revólver fumegante.
Mas Vance interveio rapidamente. De costas para a figura silenciosa na cadeira, fez um gesto imperioso para Heath. Virou-se lentamente, depois, e estendeu a mão. Owen ergueu o olhar na sua direção e depois, como se por uma cortesia instintiva, virou o revólver, com o cabo voltado para Vance, e estendeu-o com mansa indiferença. Vance jogou a arma em cima de uma cadeira vazia e, olhando para o homem, esperou.
Os olhos de Owen achavam-se semicerrados e sonhadores. ”O Coruja” não parecia mais notar o que o cercava, nem o corpo de Mirche, que ele acabara de matar, esparramado no chão. Finalmente, ele falou, em um tom de voz que parecia estar vindo de muito longe.
— Isso teria significado as vagas na superfície da água. Vance assentiu de cabeça.
— Sim. Limpeza de espírito... Mas, agora, haverá o julgamento, a cadeira elétrica, o escândalo, que ficarão gravados indelevelmente...
Um tremor sacudiu o débil corpo de Owen. Sua voz se ergueu, até se transformar em um grito agudo.
— Mas como se pode escapar ao finito? Como atravessar a sombra, limpo?
Vance tirou do bolso a cigarreira e segurou-a um instante na mão, mas não a abriu.
— Quer fumar um cigarro, Senhor Owen? — indagou ele. Os olhos do homem contraíram-se. Vance tornou a enfiar sua cigarreira no bolso.
— Sim... — E Owen respirou aliviado, afinal. — Acho que vou mesmo fumar um cigarro. — Enfiou a mão em um bolso interno e de lá tirou uma pequena cigarreira de couro, luxuosa...
— Escute aqui, Vance! — cortou Markham. — O caso deixou de ser da sua alçada. Foi cometido um homicídio diante dos meus olhos, e eu próprio ordeno a prisão deste homem.
— Perfeitamente — disse Vance, em voz arrastada. — Mas, infelizmente, acho que já é tarde demais para isso.
Enquanto Vance falava, Owen afundou mais na sua cadeira; o cigarro que ele acabara de acender lhe escorregou dos lábios e caiu no soalho. Vance esmagou-o rapidamente com o pé.
A cabeça de Owen pendeu para diante, caindo sobre o peito: os músculos do seu pescoço tinham-se relaxado repentinamente.


CAPITULO XX
FELIZ ATERRAGEM
(Quarta-feira, 22 de maio — 10:30 horas)

Na manhã seguinte, Vance achava-se sentado no gabinete do procurador distrital, conversando com Markham. Heath estivera lá, antes, com a notícia da prisão dos Tofanas. No porão da casa deles tinham sido encontradas provas suficientes para condenar ambos, ou pelo menos assim esperava o sargento.
Dixie Del Marr também comparecera, a pedido de Markham, para fornecer pormenores necessários para os registros oficiais. Como não havia nenhum motivo para lhe fazer acusações pelo papel que ela tivera nos negócios de Mirche, Dixie mostrava-se relativamente satisfeita quando nos deixou.
— Realmente, Markham — observou Vance. — Em vista do antigo amor dessa mulher por Benny Pellinzi, sua conduta, como sabemos, é perfeitamente compreensível e perdoável... Quanto a Mirche, teve um fim muito melhor do que merecia... E Owen! Um louco doente. Felizmente, para o mundo, ele escolheu um jeito tão rápido de sair de cena! Sabia que estava morrendo e foi o temor do castigo que lhe inspirou o ato... Podemos dar-nos por satisfeitos em encerrar o assunto. E, afinal de contas, realmente eu fiz ao lunático uma promessa vaga de zelar pelas conseqüências do caso, para que não houvesse ”ondas”, como ele mesmo disse, a segui-lo.
Vance riu melancolicamente.
— Mas, na verdade, que importa isso? Um facínora de importância, é encontrado morto, um acontecimento bem vulgar; um meliante de importância maior é morto com um tiro, também um episódio corriqueiro; e o chefão de uma quadrilha de criminosos se suicida... Bem, talvez isto seja um acontecimento raro, mas, sem dúvida, sem importância... Em todo caso, estamos em plena primavera; a cotovia está esvoaçando, contente, até o caramujo se movimenta... Ei! Que tal irmos comer uns camarões com um bom vinho, depois?
Enquanto Vance falava, a campainha da porta soou e uma voz anunciou a presença do Senhor Amos Doolson na sala de espera. Markham olhou para Vance.
— Suponho que seja a respeito daquele prêmio absurdo. Mas não posso receber o homem agora...
Vance levantou-se rapidamente.
— Deixe-o esperar, Markham! Tive uma idéia.
Depois, foi ao telefone e falou com a Fábrica de Perfumes In-O-Scent. Quando desligou, sorriu para Markham.
— Gracie Allen e George Burns estarão aqui dentro de quinze minutos. — Riu baixinho, realmente muito satisfeito. — Se alguém merece o prêmio, é aquela garota incrível, e vou tomar providências para que ela o receba.
— Ora, você está doido? — disse Markham, surpreso.
— Nada disso. Estou no meu juízo perfeito. E... embora talvez você duvide, sou apaixonadamente dedicado à justiça.
Pouco depois, Gracie Allen e George Burns chegavam.
— Oh, que lugar horrível! — falou ela. — Ainda bem que não tenho de viver aqui, Senhor Markham. — Ela virou os olhos preocupados para Vance. — Tenho de continuar com meu trabalho de detetive? Prefiro trabalhar na fábrica, agora que George voltou e que tudo está bem.
— Não, minha querida — falou Vance, em tom de voz bondoso. — Você já trabalhou até demais. E os resultados que alcançou são soberbos. Na verdade, pedi que você viesse aqui, esta manhã, apenas para receber a sua recompensa. Foi oferecido um prêmio de cinco mil dólares à pessoa que resolvesse o assassinato do homem no Domdaniel. Quem fez o oferecimento foi o Senhor Doolson; e ele está na outra sala, neste instante.
— Oh! — E desta vez Gracie Allen ficou tão intrigada e atônita, que perdeu a fala.
Quando Doolson foi introduzido, dirigiu um olhar de espanto aos seus dois empregados e foi diretamente para a escrivaninha de Markham.
— Quero retirar imediatamente o prêmio, Senhor Markham — disse ele. — Burns voltou para o trabalho, hoje cedo, com excelente disposição, e portanto não há mais necessidade de...
Markham, que já se ajustara ao ponto de vista de Vance, jocoso mas justo, falou na sua maneira mais judiciosa.
— Lamento extremamente, Senhor. Doolson, mas tal retirada está inteiramente fora de cogitações. O caso foi encerrado e arquivado ontem à tarde... Bem dentro do limite de prazo estipulado pelo senhor. Agora, sou obrigado a entregar o prêmio à pessoa que o mereceu.
O homem arregalou os olhos e gaguejou:
— Mas!... — começou ele a argumentar.
— Sentimos tremendamente, Senhor Doolson — intrometeu-se Vance, em tom conciliatório. — Mas tenho certeza de que o senhor ficará satisfeito com sua generosidade impulsiva, quando eu o informar de que é Gracie Allen quem vai receber o prêmio.
— Quê! — explodiu Doolson, como se fosse ter uma apoplexia. — Que é que Gracie Allen tem a ver com isso! É um absurdo!
— Não é, não — retrucou Vance. — É a simples declaração de um fato. Gracie Allen foi a principal colaboradora na solução do caso. Foi ela quem forneceu todas as pistas importantes... E afinal de contas, o senhor recuperou os serviços do Senhor Burns hoje.
— Não consentirei nisso — gritou o homem. — É uma tramóia! Uma farsa! Vocês não me podem obrigar legalmente a fazer isso!
— Pelo contrário, Senhor Doolson — disse Markham. — Sou obrigado a considerar esse dinheiro propriedade da moça. As próprias instruções quanto à concessão do prêmio — ditadas aqui pelo senhor mesmo — não lhe dariam nenhuma arma se o senhor resolvesse impedir legalmente o seu pagamento.
Doolson ficou boquiaberto.
— Oh, Senhor Doolson — exclamou Gracie Allen. — Que lindo prêmio! E o senhor realmente fez isso para que George voltasse para o trabalho voando? Nunca pensei nisso. Mas o senhor precisa terrivelmente dele, não é? E isso me dá outra idéia. Que tal um aumento de salário para George?
— Raios! Isso eu não faço! — E, por um instante, pensei que Doolson estava à beira de um colapso cardíaco.
— Mas suponha, Senhor. Doolson, — prosseguiu Gracie Allen
— que George tornasse a ficar preocupado e não pudesse ir trabalhar! Que seria da sua firma?
O homem controlou-se e estudou George Burns sombriamente, pensativo, durante alguns momentos.
— Sabe, Burns, — disse ele, em tom quase conciliatório — estive pensando, há algum tempo, e achei que você merecia um aumento. Você tem sido um empregado muito leal e muito valioso para a firma. Volte para o seu laboratório imediatamente e discutiremos amigavelmente o assunto. — Depois, virou-se e apontou um dedo para a jovem. — E você, menina, está despedida!
— Oh, não tem importância, Senhor Doolson — retrucou a moça, sorridente e indiferente. — Aposto que o aumento que o senhor vai dar a George fará o salário dele subir e igualar a quantia que o meu e o dele juntos dariam... entende o que eu digo?
— Raios me partam se me importo um pouco, sequer, com o que você diz. — E Doolson saiu pisando duro da sala.
— Creio — disse Vance, amavelmente — que a observação seguinte deve vir de George Burns. — E sorriu para o jovem, de maneira significativa.
George Burns, embora claramente atônito com os acontecimentos da última meia hora, ainda assim estava com a cabeça suficientemente clara para entender o significado das palavras de Vance. Agarrando a sugestão feita, dirigiu-se resolutamente para onde se achava a moça.
— Que tal aquela proposta que fiz a você, na manhã em que me prenderam?
Nossa presença, longe de deixá-lo embaraçado, deu-lhe coragem.
— Ora, que proposta? — perguntou a jovem, maliciosamente.
— Você sabe a que me refiro! — E seu tom de voz era rouco e resoluto. — Que tal nós dois nos casarmos.
Gracie Allen caiu para trás em uma cadeira, com uma risada musical.
— Oh, George! Era isso que você estava tentando dizer!
Pouco mais falta a falar a respeito do que Vance sempre insistiu em chamar de o caso Gracie Allen.
O Domdaniel, como todos sabem, foi fechado há muito tempo, e há poucos anos foi demolido e no seu lugar construído um prédio moderno. Tony e Rosa Tofana resolveram confessar seus crimes e agora estão cumprindo sentença na penitenciária. Não sei o que foi feito de Dixie Del Marr. Talvez tenha adotado novo nome e ido para outra parte do país, para viver tranqüilamente longe dos locais dos seus passados triunfos e sofrimentos.
Gracie Allen e George Burns casaram-se pouco depois daquela proposta de casamento inesperada e divertida, feita no gabinete de Markham.
Em certa tarde de sábado, alguns meses depois, eu e Vance encontramos o jovem casal dando um passeio a pé na Quinta Avenida. Os dois pareciam radiantes de felicidade, e a moça, como sempre, tagarelava muito animadamente.
Paramos alguns minutos para falar com eles. Soubemos que George Burns fora promovido no seu emprego na fábrica de perfumes. E, para gáudio de Vance, veio à baila o fato de que Gracie Allen, por motivos sentimentais, apresentara seu cartão ao Senhor Lyons, da loja Chareau e Lyons, de roupas feitas, quando fora escolher seu vestido de noiva.
Caminhamos ao lado deles durante um curto trecho, e George Burns, no meio de uma frase, parou de repente e notei que suas narinas se dilataram ligeiramente, enquanto ele se inclinava na direção de Vance.
— A fórmula original de Farina para a água-de-colônia! Vance riu.
— Sim. Eu sempre trago água-de-colônia, quando vou à Europa. E isso me faz lembrar: hoje cedo, vi, em uma revista francesa, o nome de um perfume que, depois da colaboração indispensável da Senhora. Burns no nosso caso, você poderia dar, muito apropriadamente, à delicada mistura que você fez para ela. Chamava-se La Femme Triomphant.
Burns sorriu, todo orgulhoso.
— Acho que Gracie o ajudou bastante, Senhor Vance.
A jovem olhou de um para outro, franzindo o cenho, intrigada, e depois riu, acanhada.
— Não compreendo...

O caso chamado Gracie Allen foi sem dúvida o que mais agradou a Philo Vance entre todos aqueles de que participou. Podemos acrescentar que foi talvez o mais divertido de todos.
É verdade que um crime de morte nada tem de divertido e o mistério narrado neste livro tem aspectos sinistros, sombrios e intensamente dramáticos. Mas isso não impediu que o caso, talvez pela intervenção e pelo auxílio de Gracie Allen, tenha um fermento quase constaste de humor e divertimento.
Foi, entretanto, um caso quase incrível de muitos ângulos, mostrando-se extremamente fora do comum e imprevisível. O mistério e o encantamento do perfume impregnam todo o quadro. A magia das previsões comerciais do destino das pessoas se relacionou intimamente com a sua decifração. E houve em todo ele um forte elemento romântico.
Como se vê, O Caso Gracie Allen tem todos os elementos para ser um grande romance policial, pois, além de todos esses ingredientes ótimos, ainda apresenta a personalidade magnífica do grande detetive que é Philo Vance, criação magistral de S. S. Van Dine, que foi um dos grandes autores policiais do mundo.

 

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CAPITULO I
FOGE O ABUTRE

(Sexta-feira, 17 de maio — 20:00 horas)
Por estranho que pareça, Philo Vance sempre gostou mais do caso Gracie Allen do que de qualquer dos outros em que tomou parte ativa.
Talvez esse caso não tenha sido tão sério como alguns dos outros; mas, pensando melhor, não tenho certeza absoluta de que isso seja estritamente verdadeiro. Para ser exato, potencialmente o caso Gracie Allen continha um sem-número de maus agouros. E agora, passando-o mentalmente em revista, relembro que seus elementos básicos eram intensamente dramáticos e sinistros, apesar do seu quase constante tempero de humor.
Nas várias vezes em que perguntei a Vance por que ele gostava tanto desse caso, ele sempre me respondeu, com ar indiferente, que o mesmo constituiu o seu único fracasso flagrante como investigador dos inúmeros crimes que lhe foram apresentados pelo procurador distrital John F.-X. Markham.
— Não... Oh, não, Van; o caso não foi meu, você não sabe? — falou Vance, em tom arrastado, enquanto nós dois estávamos sentados diante do fogo da sua lareira, em certa noite de inverno, muito depois dos acontecimentos. — Na verdade, não mereço nenhum elogio por ele. Eu teria ficado completamente confuso e perdido, não fora a encantadora Gracie Allen, que sempre aparecia na hora do aperto para me salvar do desastre. Se algum dia você publicar esse caso, peço que atribua o mérito a quem realmente o conquistou. Arre, que pequena fenomenal! As deusas do lar olímpico de Zeus jamais atormentaram tanto os velhos Príamo e Agamenon com o esplendor exibido por Gracie Allen ao apoquentar os personagens daquele caso altamente perfumado. Espantoso!...
Foi um caso quase incrível sob vários aspectos, extremamente fora do comum e imprevisível. O mistério e o fascínio do perfume impregnavam todo o quadro. A magia da adivinhação, da cartomancia e da quiromancia comercial estava intimamente envolvida na sua decifração. E havia um elemento humano romântico que lhe emprestou uma cor-de-rosa toda especial.
Para início de conversa, era primavera — o décimo sétimo dia de maio — e o tempo apresentava-se extremamente agradável. Vance, Markham e eu jantáramos na espaçosa varanda do Bellwood Country Club, de onde se dominava o Hudson. Nós três tagareláramos sobre assuntos banais, pois aquela devia ser uma hora de completo relaxamento e prazer, sem nenhuma intromissão dos ásperos interlúdios de crimes que haviam marcado tantas de nossas palestras em anos recentes.
No entanto, até neste momento de serenidade, iam-se alongando feios ângulos de crime, embora nenhum de nós o soubesse; e sua sombra se aproximava sorrateiramente de nós.
Acabáramos de tomar nosso café e estávamos bebericando um delicioso licor fabricado por frades, quando o sargento Heath, com um aspecto sério e espantado, apareceu na porta que levava da sala de jantar principal para a varanda e caminhou em passos largos e rápidos para a nossa mesa.
— Olá, Senhor Vance. — Seu tom de voz era de pressa. — Olá, chefe. Desculpe importuná-lo, mas isto chegou à delegacia meia hora depois da sua partida, e, como eu sabia onde o senhor estava, achei melhor trazê-lo sem demora. — Puxou uma folha dobrada de papel amarelo do bolso e, abrindo-a, colocou-a de maneira enfática diante do procurador distrital.
Markham leu cuidadosamente, fez um movimento de indiferença com os ombros e devolveu o papel a Heath.

— Não entendo — falou ele, sem emoção alguma — por que uma informação rotineira como esta lhe exigia uma viagem até aqui.
As faces de Heath inflamaram-se de exasperação.
— Ora, chefe, esse foi o sujeito que ameaçou sua vida.
— Sei perfeitamente disso — observou Markham, friamente. E depois acrescentou, em tom de voz mais suave: — Sente-se, sargento. Considere-se de folga por alguns instantes e tome um gole do seu uísque predileto.
Depois que Heath se instalara em uma cadeira, Markham prosseguiu.
— Claro que você não espera que eu, depois de tanto tempo, comece a levar a sério as ameaças histéricas de criminosos que condenei no cumprimento dos meus deveres.
— Mas esse sujeito é perigoso, chefe, e não é dos que esquecem ou perdoam.
— Em todo caso — riu Markham, despreocupado —, ele demorará, no mínimo, até amanhã para chegar a Nova York.
Enquanto Heath e Markham falavam, as sobrancelhas de Vance se ergueram, desmonstrando leve curiosidade.
— Escute, Markham... Ao que me parece, o seu sargento teme pela sua existência cerceada, e vejo que você mesmo está um tanto aborrecido com a preocupação zelosa dele.
— Ora, Senhor Vance, não estou preocupado — disse Heath, em um desabafo. — Estou só pensando nas possibilidades, digamos assim.
— Sim, sim, eu sei — sorriu Vance. — Sempre cuidadoso. Cosendo costuras que nem sequer ainda foram rebentadas. Capaz e admirável como sempre, sargento. Mas de onde vem a sua apreensão?
— Sinto muito, Vance. — Markham pediu desculpas pelo seu fracasso de explicação. — Na verdade, não tem nenhuma importância. É apenas um aviso telegráfico de rotina de uma fuga comum em Nomenica. Três homens, condenados a sentenças longas, tentaram a fuga, e dois deles foram baleados pelos guardas...

— Não estou preocupado com os sujeitos que foram baleados — interrompeu Heath. — Minha preocupação está com o outro, com o sujeito que conseguiu escapar...
— E quem seria esse personagem que lhe dá tanto que pensar, sargento? — indagou Vance.
— Benny, o Abutre! — murmurou Heath, com ênfase melodramática.
— Ah! — E Vance sorriu. — Um espécime ornitológico... Buteo borealis. Talvez ele tenha fugido voando...
— Ora, Senhor Vance, não é assunto para brincadeira. — E Heath ficou ainda mais sério. — Benny, o Abutre, ou Benny Pellinzi, para lhe dar o nome de batismo, é um sujeito bastante perigoso, apesar da aparência inofensiva de rapazola de rosto bonito. Apenas há alguns anos, andava por aí dizendo a quem quisesse ouvir que ele era o Inimigo Público Número Um. É um sujeito assim. Mas ele não passava de peixe miúdo, e dele se pode apenas dizer que era um tipo duro e perverso... Na verdade, não passa de um rato imbecil e tolo...
— Rato? Abutre? Diacho... Você não está misturando a sua História Natural, sargento?
— E há apenas três anos — prosseguiu Heath, obstinadamente — o Senhor Markham mandou-o para a penitenciária com uma pena de vinte anos para cumprir. E ele tenta fugir da cadeia, hoje à tarde, e consegue. Não é motivo para preocupação?
— Contudo — observou Vance —, sem dúvida, esse não é o primeiro preso que foge de uma cadeia.
— Sem dúvida. — E Heath resolveu esticar mais um pouco a folga que o procurador lhe dera e pediu outro uísque. — Mas o senhor deve ter lido o que aquele sujeito fez no tribunal quando foi condenado. Mal o juiz acabara de condená-lo a vinte anos de prisão, e ele explodiu. Apontou para o Senhor Markham e, a plenos pulmões, jurou que haveria de voltar para vingar-se dele, mesmo que isso lhe custasse a própria vida. E parecia estar falando sério. O homem achava-se tão furioso e agitado, que foram necessários dois guardas fortes para arrastá-lo para fora do tribunal. Geralmente, é contra o juiz que as ameaças são feitas, mas esse sujeito escolhera como alvo das suas o procurador distrital, e de certa forma isso fez mais sentido.
Vance assentiu de cabeça, lentamente.
— Sim, muito mais. Compreendo o que você quer dizer, sargento. O homem é diferente e, portanto, perigoso.

— E o motivo que me trouxe aqui esta noite — prosseguiu Heath — foi o de dizer ao Senhor Markham o que eu pretendia fazer. Naturalmente, estaremos à procura do Abutre. Ele poderia vir diretamente para cá, ou talvez resolvesse seguir rumo oeste, para tentar alcançar os Dakotas... que, para ele, são um refúgio seguro, se é que ele tem inteligência.
— Exatamente — observou Markham. — Talvez você tenha razão ao dizer que possivelmente o fugitivo seguirá para Oeste. E, sem dúvida, não pretendo fazer nenhuma excursão imediata aos Montes Negros.
— Seja como for, chefe — insistiu o sargento, teimosamente —, não me vou arriscar nem um pouco com o Abutre... ainda mais pelo fato de ele contar com apoio decisivo dos seus velhos amigos desta cidade.
— E que amigos íntimos são esses, sargento?
— Mirch, do Restaurante Domdaniel, e a antiga namorada de Benny, que é a cantora do restaurante... Chama-se Dixie Del Marr.
— Não tenho certeza de que Mirche e Pellinzi são amigos íntimos — disse Markham. — É um assunto discutível.
— Mas, para mim não é, chefe. E, se o Abutre voltar às ocultas para Nova York, tenho um palpite de que irá diretamente a Mirche pedir ajuda.
Markham não discutiu mais as possibilidades. Em vez disso, limitou-se a perguntar:
— Qual é o seu plano de ação, sargento? Heath inclinou-se para o outro lado da mesa.
— Acho que vai ser da seguinte maneira, chefe. Se o Abutre realmente pretende voltar aos lugares por onde andava antes, fará isso com esperteza. Virá depressa, com a rapidez do relâmpago, pensando que não estamos preparados. Se ele não aparecer nos próximos dias, desistirei da minha hipótese e então os rapazes trabalharão no caso à moda rotineira. Mas, a começar de amanhã cedo, pretendo deixar Hennessey de guarda na velha pensão que fica defronte ao Domdaniel, vigiando a pequena porta que leva para o escritório particular de MircTie. E Burke e Snitkin ficarão com Hennessey, para a eventualidade de que o fugitivo apareça.
— Você não está sendo um pouco otimista, sargento? — indagou Vance. — Três anos de prisão podem produzir muitas modificações na aparência física de um homem, principalmente sendo, ele ainda jovem e não muito robusto.
Heath afastou o ceticismo de Vance com um gesto de impaciência.
— Confio em Hennessey... Ele é muito bom fisionomista.
— Oh, não estou pondo em dúvida a habilidade de Hennessey em reconhecer fisionomias — garantiu-lhe Vance. — Contando que o seu Abutre, que adora a liberdade, seja tolo a ponto de escolher a porta da frente para entrar no escritório de Mirche. Mas você não acha, meu caro sargento, que mestre Pellinzi pode achar mais prudente entrar pela porta dos fundos?
— Não há nenhuma porta dos fundos — explicou Heath.
— E não há, também, portas laterais. Existe só uma sala particular, tendo apenas uma entrada, que dá para a rua. É assim que trabalha o tal Mirche... Com tudo às claras. É um sujeito bem esperto...
— Esse escritório fica em um prédio separado? — indagou Vance. — Ou é um anexo do restaurante? Não me lembra bem...
— Nada disso. E quem não o estivesse procurando não o encontraria. É como um cômodo de fim de prédio que tivesse sido separado no canto do edifício, como fazem para separar um consultório médico ou uma pequena loja, em um prédio grande de apartamentos. Mas, se a pessoa quiser encontrar Mirche, aquele é o lugar mais provável para isso. A sala parece tão inocente quanto a casa de uma senhora idosa.
Heath olhou para nós, de maneira significativa, enquanto prosseguia.
— E, contudo, acontece muita coisa comprometedora naquela saleta. Se eu conseguisse ocultar um gravador lá, o gabinete do procurador distrital teria trabalho de julgamentos para manter-se em ação de agora em diante.
O sargento fez uma pausa e piscou um olho na direção de Markham, maliciosamente.
— Que tal acha da minha idéia para amanhã?
— Não pode fazer nenhum mal, sargento — respondeu Markham, sem nenhum entusiasmo. — Mas continuo achando que é perder tempo e energia.
— Talvez seja. — E Heath acabou de tomar o seu uísque.
— Mas, ainda assim, acho que preciso seguir o meu palpite.

Vance colocou na mesa o seu copo de licor e uma expressão extravagante lhe surgiu nos olhos.
— Escute, Markham — disse ele, em voz arrastada. — Seria mesmo perder tempo e energia, não importa qual seja o resultado. Ah, a sua preciosa lei, e seus processos meticulosos! Mesmo que esse falcão de cauda vermelha e nome de ópera aparecesse nos antigos lugares por onde costumava andar e caísse na arapuca do sargento, você ainda o trataria com bondade e ternura, sob a frase eufemística ”nos moldes da lei”. Você lhe afagaria a cabeça. Você faria tudo para prendê-lo vivo, embora ele próprio talvez estourasse os miolos de uns dois auxiliares do sargento. Depois, você lhe daria boa casa e comida; você o levaria pela cidade em um carro de luxo bem possante e, para finalizar, lhe daria uma viagem panorâmica de volta a Nomenica, uma viagem agradável. E tudo para que, meu caro? Em troca do discutível privilégio de sustentá-lo pelo resto da vida, em um gesto muito elegante.
Era evidente que Markham ficara irritado.
— Suponho que você poderia resolver tudo isso com um tiro.
— Bem que poderia. — Vance estava em um daqueles dias em que gostava de provocar os outros. — Esse sujeito é um patife inútil, que de há muito vem apoquentando a lei; que, você muito bem sabe, matou um homem e foi condenado segundo a justiça. Um meliante que planejou uma fuga da prisão, o que custou mais duas vidas humanas; que ameaçou matá-lo a sangue-frio, e que neste exato momento está privando o sargento do seu direito de tirar uma soneca. Não é uma boa pessoa, Markham. E todas essas irregularidades poderiam ser resolvidas com tanta facilidade e rapidez, matando-se o patife sem mais delongas, ou livrando-se dele de outra maneira qualquer, sem mais trabalho nem cerimónia.
— E suponho eu — Markham falou quase com raiva — que você mesmo estaria disposto a executar esse expurgo ilegal.
— Disposto? — Havia um tom provocante na voz de Vance. — Eu ficaria positivamente encantado em fazer isso. Seria a minha boa ação do dia.
Markham tirou baforadas vigorosas do seu charuto. Ficava sempre irritado quando as caçoadas de Vance enveredavam por esse caminho.
— Escute, Vance. Tirar deliberadamente uma vida humana é...
— Por favor, poupe-me o sermão, seu vigário. Já sei o que vai dizer. É uma arenga a respeito de sociedade, lei e ordem e direitos humanos. Mas você tem de confessar que a solução que eu sugeri é lógica, prática e justa.
— Já discutimos esse sofisma várias vezes — cortou Markham. — E, além do mais, não vou deixar que você estrague meu jantar com asneiras desse quilate.

CAPÍTULO II
UM INTERLÚDIO RÚSTICO

(Sábado, 18 de maio — à tarde)
No dia seguinte, pouco depois do meio-dia, encontramo-nos com Markham na sua modesta sala particular de onde se dominava o cemitério. Geralmente, aos sábados, a sala do procurador distrital já estava fechada a estas horas, mas Markham achava-se nas malhas de uma difícil complicação política e desejava ver o caso resolvido o mais rápido possível.
— Lamento muito — falou Vance — que você tenha de trabalhar em uma tarde como esta. Eu tinha esperanças de que talvez pudesse convencê-lo a dar um passeio de carro nos arrabaldes da cidade.
— Quê?! — exclamou Markham, com fingida surpresa. — Você está sucumbindo aos seus impulsos naturais? Não me diga que a Mãe Natureza conseguiu abalar um sibarita ferrenho como você com o seu canto de sereia! Por que não pede a Van para amarrá-lo ao mastro, como manda o figurino da Odisséia?
— Não. Descobri que anseio realmente pela magia de uma ilha paradisíaca cheirando a cidra e a cedros...
— E talvez com uma ninfa dos bosques, como Calipso.
— Ora, meu caro Markham! Nada disso! — E Vance fingiu indignação. — Não, meu caro! Pretendo apenas fazer algumas travessuras no cenário verde do Bronx.
— Vejo que você caiu nas malhas das sereias cor-de-rosa dos campos floridos. — O sorriso de Markham era brincalhão e zombeteiro. — Se o sonho de mau agouro de Heath se realizar, mais tarde navegaremos por uma rota tempestuosa entre a cruz e a caldeirinha.
— Ora, a gente nunca sabe... Mas, se isso acontecer, espero que nenhum homem seja arrancado do nosso navio oco pelas ondas revoltas.
— Ora, por Deus, Vance, não seja tão sombrio. O que você está dizendo é uma tolice completa.
(Lembro-me particularmente dessa resposta clássica e espirituosa, que, sem dúvida, não teria vindo parar nestas páginas, não fora o caso de se ter ela transformado em uma observação curiosamente profética, mesmo quanto ao cheiro de cidra e à caverna do monstro de Messina.)
— E suponho — sugeriu Markham — que você vai dar o seu passeio vestido a rigor. Não sei por que, mas não o consigo imaginar trajado com roupas de excursionista.
— Você está redondamente enganado — disse Vance. — Vou vestir um terno velho de algodão, de tecido riscado, o mais antigo que tenho... Mas diga-me, Markham, que é feito do zeloso sargento e dos maus agouros dele?
— Oh, creio que ele está executando o seu plano inútil — Markham falou com indiferença. — Mas, se o pobre Hannessey tiver de ficar esperando durante muito tempo, terei mais a temer dele, em forma de represália, do que do ilustre Senhor Beniamino Pellinzi. Não consigo entender direito a súbita preocupação de Heath pela minha segurança.
— Bravo sujeito, o Heath. — Vance estudou a cinza do seu cigarro, com um sorriso hesitante. — Na verdade, Markham, pretendo partilhar da hospitalidade cara de Mirche logo à noite.
— Você também! Você vai mesmo ao Domdaniel, logo à noite?
— Não na esperança de encontrar seu amigo, o Abutre — replicou Vance. — Mas Heath despertou minha curiosidade. Gostaria de ver mais de perto o incrível Senhor Mirche. Eu já o vi, é claro, no restaurante, mas, na verdade, sem lhe prestar muita atenção às feições. E quero também dar uma espiada — pelo lado de fora, é lógico — nesse escritório misterioso que tanto agitou a imaginação do sargento... E há sempre a possibilidade de que apareça alguma aventura emocionante quando as sombras portentosas do crepúsculo anunciarem a noite misteriosa que chega e...
— Ora, Vance, pare com isso. Você está parecendo um desses escritores medíocres de novela superbarata. Que pensamento secreto se oculta por trás dessa cortina de fumaça de palavras?
— Se você quer mesmo saber, Markham, a comida lá no Domdaniel é excelente. Eu estava apenas tentando ocultar uma ansiedade de gastrônomo...
Markham bufou e a conversa mudou para outros assuntos, interrompida, de vez em quando, por telefonemas. Quando Markham acabou de cuidar dos preparativos para a tarde e a noite, nos fez passar pelos gabinetes dos juizes e descer para a rua.
Após um rápido almoço, levamos Markham de carro para o seu escritório novamente, e depois seguimos para o apartamento de Vance, um tanto afastado do centro da cidade. Lá, Vance mudou de roupa, envergando agora um velho terno de algodão riscado, muito surrado, e calçou botas mais pesadas e um chapéu macio e bem surrado, tipo Homburg. Depois, saímos novamente até o seu carro e uma hora depois seguíamos de automóvel, muito calmamente, pela avenida Palisade, na parte do Bronx chamada Riverdale.
Nos dois lados da rua havia arvoredo e arbustos densos. O ar apresentava-se impregnado da fragrância de flores da primavera, e de vez em quando surgiam pontos coloridos de verdura. À nossa esquerda, para além de um contínuo muro de concreto, uma ladeira suave levava para o Hudson. À direita, o terreno erguia-se mais abruptamente, e assim o muro de pedra rústica não nos impedia de ver a paisagem.
No alto de uma inclinação ligeira, no exato lugar em que a estrada seguia para o interior, Vance saiu com o carro da estrada principal, parando-o de maneira suave.
— Acho que este aqui é um ponto ideal para nos misturarmos com a flora e comungarmos com a natureza.
Com exceção da cerca do lado do rio e da parede de pedra, que teria, talvez, um metro e oitenta de altura, ao longo da orla interna da estrada, estávamos, segundo tudo indicava, em uma estrada deserta do interior. Vance atravessou a faixa larga e coberta de sombras e capim, que se estendia como um tapete verde entre a rodovia e o muro. Escalou com dificuldade o muro de pedra, fazendo-me um sinal para o seguir, enquanto desaparecia na folhagem rústica e rica que havia do outro lado.
Durante mais de uma hora, andamos para trás e para diante, no meio do mato, e então, repentinamente, quando deparamos novamente com o muro de pedra, Vance olhou com relutância para seu relógio.
— Quase cinco horas — informou ele. — É melhor irmos para casa, Van. Já estamos cansados.
Segui na frente dele para a rodovia, e começamos a voltar lentamente para o carro. Um automóvel grande, rodando quase sem ruído, apareceu de repente na curva. Parei, enquanto ele passava velozmente, e fiquei vendo-o desaparecer no alto da subida. Depois, continuei andando na direção do nosso carro.
Depois de dar alguns passos, notei uma jovem, de pé, perto do muro, bem afastada da rodovia, em um caramanchão isolado e de chão coberto de capim. A moça estava sacudindo nervosamente a frente da sua saia, o que fazia com visível agitação, e batia um pé sobre o chão macio da terra. Parecia perturbada e aborrecida, e quando me aproximei um pouco mais vi que havia um buraco de queimadura na parte dianteira do seu vestido leve de verão. O orifício queimado devia ter uns três centímetros de diâmetro.
Enquanto a moça soltava uma exclamação de aborrecimento, Vance saltava — ou, melhor dizendo, caía — do muro atrás dela. O seu calcanhar ficou agarrado no muro mal feito e, enquanto ele lutava para recuperar o equilíbrio, uma saliência aguda de massa lhe rasgou a manga do paletó. O barulho inesperado assustou novamente a jovem, que se virou, alerta, para ver o que era.
Era pequena e de movimentos graciosos, dona de um rosto oval, provocante, e de feições sensíveis e regulares. Os olhos, grandes e castanhos, eram recobertos por pestanas extremamente compridas. Um nariz reto e fino conferia dignidade e caráter a uma boca feita para sorrir. Era esguia e ágil e parecia combinar perfeitamente com o ambiente rústico que a cercava.
— Caramba! — murmurou Vance, olhando para ela. — Não foi uma entrada muito graciosa no seu caramanchão. Desculpe se eu a assustei.
A moça continuou olhando desconfiada para Vance, e quando tornei a olhar para este compreendi muito bem o que lhe causava essa reação. Vance estava completamente despenteado. Além disso, seus sapatos e suas calças apresentavam-se generosamente cobertos de lama; o chapéu, todo amassado, estava grotescamente torto na sua cabeça, e a manga do paletó, rasgada, dava-lhe a aparência de um mendigo ambulante. A moça logo sorriu.
— Oh, não estou assustada — garantiu ela, em uma voz musical que possuía um timbre muito jovial e muito atraente. — Estou apenas zangada. Terrivelmente zangada. O senhor já ficou zangado? Mas não é com o senhor que estou aborrecida, pois nem sequer o conheço... Talvez eu ficasse zangada com o senhor se eu o conhecesse... Já pensou nisso?
— Sim, sim... Tenho pensado nisso muitas vezes. — Vance riu e tirou o chapéu, com o que ficou imediatamente mais apresentável. — E tenho certeza de que a senhorita teria mais do que motivo para ficar zangada... A propósito, posso sentar-me? Estou exausto...
A moça olhou rapidamente ao longo da estrada e depois se assentou um tanto abruptamente, como uma criança que se deixa cair descuidadamente no chão.
— Isso seria maravilhoso. Vou ler a palma da sua mão. O senhor já mandou ler a palma da sua mão? Sei ler muito bem a palma da mão das pessoas. Delpha me ensinou a ler todas as linhas. Ela sabe tudo referente à leitura de mãos e tudo sobre os astros, e também a respeito dos números da sorte. Ela é cartomante. Além disso, Delpha é médium. Como eu também. Sou médium. O senhor é médium? Mas talvez eu não me possa concentrar hoje. — Sua voz adquiriu um tom místico. — Alguns dias, quando me sinto disposta, eu seria capaz de lhe dizer qual a sua idade e quantos filhos o senhor tem...
Vance riu e sentou-se ao lado da jovem.
— Mas sabe de uma coisa? Acho que eu não poderia suportar saber de fatos tão atordoantes a meu respeito, neste instante ...
Vance tirou do bolso a cigarreira e abriu-a lentamente.
— Tenho certeza de que a senhorita não se importaria se eu fumasse — disse ele, de modo cativante, estendendo-lho a cigarreira. Mas, recebendo em resposta apenas uma risadinha e uma sacudida de cabeça, acendeu um dos seus Régios para si mesmo.
Mas muito me alegra que o senhor tenha falado em cigarros — disse a moça. — Isso me faz lembrar do quanto eu estava furiosa.
Ah, sim. — Vance sorriu, indulgente. — Mas não quer
me dizer com quem estava tão zangada?
A jovem apertou os olhos ao mirar o cigarro que se achava entre os dedos de Vance.
Agora, não sei — respondeu ela, ligeiramente confusa.
Mas que pena... Talvez fosse comigo que a senhorita estava zangada o tempo todo, hem?
Não, não era com o senhor... Pelo menos, eu não achava que era. Agora, não tenho tanta certeza. A princípio, pensei que fosse alguém num carro grande que passou e...
— E por que estava zangada?
— Ah, isso... Bem, olhe aqui para a frente do meu vestido. — Ela estendeu a saia ao seu redor. — Está vendo esse furo enorme de queimadura? Meu vestido está estragado. E eu o adoro. O senhor não gosta dele? Isto é, se ele não estivesse queimado? Fui eu própria quem o fez... Bem, seja como for, eu disse a mamãe como é que eu queria que ela o fizesse. Ele me fez ficar muito bonitinha. E, agora, não o posso mais usar. — Havia um pesar legítimo na sua voz. — Foi o senhor quem jogou aquele cigarro aceso?
— Que cigarro? — indagou Vance.
.— Ora, o cigarro que queimou meu vestido. Deve estar aqui por perto... Bem, em todo caso, a pontaria foi muito boa, já que não podia ver-me para mirar. E talvez o senhor nem soubesse que eu estava aqui. E isso teria dificultado muito atingir-me, não acha?
— Sim, compreendo aonde a senhorita quer chegar. — Vance estava tão interessado quanto divertido. — Mas, na verdade, minha querida, deve ter sido algum vilão que passou no tal carro... Se é que passou mesmo algum carro.
A moça suspirou.
— Bem, então — murmurou ela, resignada —, acho que não era com o senhor que eu estava furiosa. E, agora, não sei com quem era. E isso me deixa mais furiosa do que nunca. Tenho certeza de que, se fosse com o senhor que eu estivesse furiosa, o senhor procuraria reparar o malfeito.
Digamos, então, que lamento tanto o que houve como se eu tivesse jogado o cigarro... — sugeriu Vance.
— Mas, agora, não sei se o senhor o jogou ou não. Se o senhor não podia ver-me através do muro, como é que poderia eu vê-lo?
— Uma lógica incontestável! — retorquiu Vance, adaptando-se à disposição aparentemente fantasiosa da jovem. — Portanto, é preciso que a senhorita me permita reparar o malfeito ... não importa quem tenha sido o culpado.
— Ora... — falou ela. — Não sei o que quer dizer com isso. — Mas havia em seus olhos um brilho que parecia desmentir-lhe as palavras.
— Quero dizer o seguinte: desejo que a senhorita vá à loja Chareau e Lyons e escolha um dos vestidos mais bonitos que eles tiverem. Um vestido que a faça ficar tão bonitinha como este.
— Oh, não tenho dinheiro para comprar um vestido assim!
Vance tirou do bolso a carteira de cartões de visita e, rabiscando algumas palavras em um deles, enfiou-o por baixo da tampa da bolsa de mão da jovem, que estava caída no capim.
— Leve esse cartão ao Senhor Lyon em pessoa e lhe diga que fui eu quem a mandou lá.
Os olhos da moça brilharam de gratidão e ela não protestou mais.
— Como a senhorita diz, muito acertadamente — prosseguiu Vance —, não podia ver através do muro e, portanto, não há meios de provar que não fui eu quem jogou o cigarro.
— Bem, então isso resolve o assunto, não é? — disse ela, rindo novamente baixinho. — Estou tão contente por ter sido com o senhor que eu estava furiosa por ter jogado o cigarro...
— Eu também estou — garantiu Vance. — E, por falar nisso, espero que a senhorita ponha novamente o mesmo perfume, ao usar o seu vestido novo. Esse perfume é como a primavera... ”Um delicioso cheiro de cidra e laranjeiras”, conforme disse Longfellow em um de seus livros famosos.
— Ah, ele disse isso?
— A propósito, que perfume a senhorita usa? Não o reconheço como nenhum dos perfumes mais populares que há por aí.
— Não sei — replicou a moça. — Acho que ninguém sabe. Não tem nome. Imagine, não se ter nome! Se nós não tivéssemos nome, ficaria tudo uma confusão, não é? O perfume foi feito especialmente para mim pelo George... Mas acho que não devo referir-me a ele como George, falando a desconhecidos. Ele é o Senhor Burns. Sou auxiliar dele na Fábrica de Perfumes In-O-Scente. É uma firma grande. Ele está sempre misturando ingredientes diferentes e experimentando-os. É a profissão dele. E é muito hábil. Só tem o defeito de ser sério demais. Mas não creio que ele tenha misturado cidra neste perfume. Na verdade, não sei como é o cheiro de cidra. Pensei que isso fosse uma coisa que a gente põe no bolo.
— O que se põe no bolo é a casca da cidra, em conserva — explicou Vance. — O óleo de cidra é muito diferente disso. Tem cheiro de erva-cidreira e limão. E, quando tratado com ácido sulfúrico, adquire até o cheiro de violetas.
— Não é maravilhoso? — disse ela. — Ora, o senhor fala igualzinho a George. Ele está sempre dizendo coisas assim. Tenho certeza de que o Senhor Burns sabe de tudo a respeito disso. Algumas vezes, fico muito confusa, na hora de lhe levar os vidros certos de extratos e essências. E ele é tão exigente nesse particular... Algumas vezes, ele chega até a dizer que não sei ferver os seus velhos tubos de ensaio e pipetas. Imagine.
— Mas tenho certeza — garantiu Vance — de que a senhorita lhe levou os frascos certos quando ele preparou este perfume que está usando. E tenho certeza de que um deles continha cidra, embora pudesse ter estado com outro nome... E, por falar em nomes, por acaso o seu é Calipso?
A moça sacudiu a cabeça.
— Não, mas é coisa muito parecida com isso. É Gracie Allen...
Vance sorriu e a conversa da jovem assumiu outra direção.
— Mas o senhor não me vai contar o que estava fazendo do outro lado do muro? Isso é propriedade particular, e eu não entraria ali por nada deste mundo. Não seria direito, seria? E, seja como for, não sei onde há um portão. Mas isto aqui é agradável. Já vim aqui várias vezes, e no entanto é a primeira vez que alguém me atira um cigarro, embora eu tivesse estado diversas vezes neste mesmo lugar. Mas acho que um dia sempre as coisas acontecem pela primeira vez. O senhor já pensou nisso?
— Sim, oh, sim. É uma pergunta profunda. — E Vance riu baixinho. — Mas a senhorita não tem medo de vir sozinha a um lugar tão deserto?
— Sozinha? — e novamente a jovem olhou para a estrada. — Não venho sozinha. Geralmente, venho com um amigo que mora lá para as bandas da Broadway. Chama-se Puttle e trabalha na mesma firma que eu. O Senhor Puttle é vendedor. E o Senhor Burns... Já lhe contei tudo a respeito dele. Ficou muito zangado comigo pelo fato de eu ter vindo aqui esta tarde com Puttle. Mas ele fica sempre zangado quando vou a algum lugar com alguém, principalmente se esse alguém é o Senhor Puttle. Não acha que isso é tolice? — E ela fez um muxoxo de contentamento.
— E onde estaria o Senhor Puttle, no momento? — perguntou Vance. — Não me diga que ele está tentando vender perfumes ao longo das estradas de Riverdale.
— Oh, meu Deus, não! Ele nunca trabalha nas tardes de sábado, nem eu. Acho realmente que o cérebro deve descansar de vez em quando, não acha? Oh, o senhor me perguntou onde está o Senhor Puttle. Bem, vou lhe contar, porque tenho certeza de que ele não se importaria. Ele foi procurar um convento de freiras.
— Um convento de freiras? Céus! Para quê?
— Ele disse que de lá se tem uma vista linda, com bancos, flores e tudo o mais. Mas não sabia se ficava para cima da estrada ou para baixo. Por isso, mandei-o procurar primeiro. Não tive vontade de ir a um convento de freiras, sem saber onde ele ficava. O senhor iria a um convento se não soubesse onde ele fica, principalmente se estivesse com os pés doendo?
Não, acho que a senhorita foi muito sensata. Mas acontece que sei onde o convento fica: é do outro lado, bem longe daqui.
Bem, então, o Jimmy... isto é, o Senhor Puttle, seguiu na direção errada. Ele está sempre se enganando. Ainda bem que eu o mandei procurar primeiro...


CAPITULO III
A ESPANTOSA AVENTURA

(Sábado, 18 de maio — 17:30 horas)
A jovem inclinou-se para diante e olhou para Vance, ansiosa e impulsiva.
— Mas eu me esqueci: estou morrendo de vontade de saber o que os senhores estavam fazendo do outro lado do muro. Espero que tenha sido emocionante. Sou muito romântica, sabe? O senhor é romântico? Isto é, adoro as emoções e o perigo. E isto aqui é tão emocionante e misterioso, principalmente com esse muro alto... Sei que os senhores devem ter vivido alguma aventura especial lá. Toda sorte de emoções e aventuras acontece dentro das paredes. Não é à toa que a gente manda construir muros, não é mesmo?
— Realmente.., — Vance sacudiu a cabeça, com fingida ansiedade. — Geralmente, só se faz um muro quando há um motivo muito bom para isso... Para impedir a entrada de alguém ou para manter pessoas dentro dos muros.
— Vê? Eu tinha razão... E, agora, diga-me — implorou ela —, que aventura emocionante os senhores viveram do outro lado do muro?
Vance tirou uma baforada profunda do seu cigarro.
— Sabe de uma coisa? — disse ele, com fingida seriedade. — Tenho medo de deixar alguém saber do que houve...
A propósito, a senhorita gosta de viver aventuras muito ou pouco emocionantes?
— Oh, elas têm de ser terrivelmente emocionantes, perigosas e sombrias, e cheias de espírito de vingança. Sabe, como um homicídio... Talvez um assassinato passional...
— É isso! — E Vance deu uma palmada no joelho. — Agora, posso contar-lhe tudo... Sei que a senhorita compreenderá. Baixou a voz, transformando-a em um cochicho íntimo e cavernoso. — Quando saltei o muro de maneira tão pouco elegante, eu... eu tinha acabado de cometer um homicídio.
— Maravilhoso! Simplesmente maravilhoso! — Mas notei que a moça se afastou um pouco de Vance.
— Era por isso que eu estava fugindo numa carreira desabalada — prosseguiu Vance.
— Acho que o senhor está gracejando — e a jovem ficou novamente calma. — Mas prossiga...
— Na verdade, foi um ato de altruísmo — prosseguiu Vance, que parecia estar-se divertindo realmente com o conto fantástico inventado. — Fiz isso por um amigo... para salvar um amigo do perigo... por causa de uma vingança.
— Ele deve ter sido um patife. Tenho certeza de que ele merecia morrer e de que o senhor praticou uma ação nobre... como os heróis dos tempos antigos. Eles não esperavam a polícia, a justiça e todas essas coisas. Avançavam, a cavalo, e resolviam a parada, num abrir e fechar de olhos. — A jovem estalou os dedos e não pude deixar de pensar na alusão sarcástica de Markham à solução simplista dada por Vance, na noite anterior, para resolver o caso do preso fugido.
Vance estudou a moça, atônito e sério.
— Ora, de uma criança a gente só pode esperar... — começou ele.
— Quê? — fez ela, e franziu o cenho.
— Nada, nada... — E Vance riu baixinho... — Bem, continuando esta sombria confissão: eu sabia que o tal sujeito era um homem muito perigoso e que a vida do meu amigo estava em perigo. Por isso, vim aqui, esta tarde, e lá, no mato sombrio, onde ninguém podia ver, eu o matei... Alegra-me imensamente a senhorita achar que agi corretamente.
Sua história inventada, baseada na sua conversa com Markham na noite anterior, correspondia bem ao desejo inesperado de uma aventura emocionante, expresso pela jovem.
— E qual era o nome do assassinado? — perguntou ela. — Gostaria que fosse um nome horrível. Eu sempre digo que as pessoas têm os nomes que merecem. É como na numerologia... só que é diferente. Quando a gente tem certo número de letras no nome, não é como ter outro número de letras, é? Significa, também, alguma coisa. Delpha me disse.
— Que nomes lhe agradam mais? — indagou Vance.
— Bem, vejamos... Burns é um nome bonito, não acha?
— Sim, acho — E Vance sorriu de maneira agradável. — Por falar nisso, é um nome escocês...
— Mas George não é escocês — protestou a moça, indignada. — Ele é até muito generoso.
— Não, não — apressou-se Vance a tranqüilizá-la. — Quando disse escocês, eu não quis dizer usurário. Em escocês, essa palavra significa ”riacho” ou ”córrego”...
— Ah, água! Isso é diferente. Eu tinha razão! — disse ela, num chilreio. Depois, confirmou, com um movimento de cabeça. — Água! É só o que George consome! Ele nunca toma bebidas alcoólicas. Diz que a bebida alcoólica lhe atrapalha o olfato e o impede de distinguir bem os perfumes.
— Distinguir perfumes?
— Aahn. George está sempre às voltas com perfumes... É a profissão dele. Experimenta perfumes para saber qual será bem vendido, qual será capaz de fazer uma mulher virar uma conquistadora e qual é tão ruim que só serve para sabonete de hotel, Ele é terrivelmente hábil nesse campo. Chegou até a inventar um perfume novo, misturado apenas por ele. E o Senhor Doolson — o nosso patrão — deu nome ao novo produto para George. Bem, não exatamente para George, mas o senhor sabe o que quero dizer.
O orgulho lhe brilhava nos olhos.
— E... oh! — prosseguiu ela, depressa. — George tem cinco letras no sobrenome... Falo sério, basta contá-las... B-U-R-N-S. E eu também tenho cinco letras no meu sobrenome. Não é engraçado? Mas isso significa algo muito importante. É... É ciência. Vibro com o número cinco. Mas o seis me traz muito azar. Sou alérgica — é assim que Delpha diz — ao número seis. Isso é muito científico, sabe?
— O sobrenome do Senhor Puttle tem seis letras — disse Vance, com um olhar maroto para a jovem.
— Ê verdade. Já pensei nisso... Oh, bem... Mas me esqueci... Qual era o nome do homem que o senhor matou tão valentemente?
— O sujeito tinha um nome muito desagradável. Chamavam-no de Benny Buzzard (Abutre).
A cabeça da moça subiu e desceu vigorosamente, demonstrando completa compreensão.
— Sim, é um nome horrível. Tem... deixe ver... sete letras. Oh! É um número místico. Isso é quase destino!
— Bem, ele foi mandado para a prisão, para cumprir uma pena de vinte anos de cadeia. — E Vance reiniciou a sua engenhosa história. — Mas tramou uma fuga e conseguiu escapar ontem, e voltou para Nova York a fim de matar esse meu amigo.
— Oh, então amanhã vão aparecer manchetes em todos os jornais sobre o fato de o senhor o ter assassinado
— Céus! Espero que não apareçam — E Vance fingiu-se dominado por uma grande preocupação. — Sinto que pratiquei uma boa ação, mas espero também, é claro, que não descubram o que fiz. E tenho certeza de que a senhorita não contaria a ninguém, não é mesmo?
— Oh, claro que não — garantiu a moça.
Vance soltou um suspiro exagerado e levantou-se lentamente.
— Bem, agora preciso ir me esconder — falou ele — antes que a polícia venha a saber do meu crime. Mais uma hora e quem sabe? Talvez eles saiam à minha procura.
— Oh, os policiais são uns trouxas — disse ela, com um beicinho — Estão sempre pondo os outros em apuros. Sabe? Se todos fossem bons, não precisaríamos de policiais, não é?
— É...
— E, se não houvesse policiais, não precisaríamos dar-nos ao trabalho de ser bons, não é?
— Céus! — murmurou Vance. — A senhorita, por acaso, é algum filósofo disfarçado?
A jovem pareceu atônita.
— Ora, isto não é um disfarce. Eu só usei disfarce quando... Quando era menina. Fui a uma festa fantasiada de fada.
Vance sorriu em tom de admiração.
— Tenho certeza — disse ele — de que foi uma fantasia completamente dispensável. A senhorita jamais precisará fantasiar-se, minha querida, para passar como uma fada encantadora... Quer apertar os ossos de um vilão barato?
Ela colocou a mãozinha na dele.
— O senhor, na verdade, não é um vilão. Ora, limitou-se a matar um facínora. E muitíssimo obrigada pelo lindo vestido novo — acrescentou ela. — O senhor falou sério quando me mandou buscá-lo?
— Falei seriíssimo. — E a sinceridade da voz de Vance dissipou qualquer dúvida que pudesse restar no espírito da jovem. — E boa sorte com o Senhor Puttle... e com o Senhor Burns.
A moça fez um aceno solene enquanto caminhávamos ao longo da estrada poeirenta na direção do nosso carro. Vance estava ocupado em acender outro cigarro, e quando íamos fazendo a curva da estrada olhei para trás. Havia um rapaz guapo diante da jovem, e compreendi que o tal Puttle, o vendedor de perfumes, voltara da sua busca infrutífera ao convento de freiras.
— Que criatura espantosa! — murmurou Vance, enquanto subíamos no carro e partíamos. — Acho mesmo que ela acreditou, em parte, na minha dramatização dos temores do sargento e nas minhas zombarias contra Markham. Ela é muito ingênua, Van. Ou, talvez, de uma natureza basicamente astuta, superabundante em romance, lutando para viver nas nuvens, neste mundo sórdido. E vivendo do fabrico de perfumes. Que combinação incrível de circunstâncias! Tudo misturado com a primavera... e visões de heroísmo e de amor jovem!
Olhei para ele, com ar indagador.
— Completamente — repetiu ele. — Isso estava indicado de forma definitiva. Mas, infelizmente, acho que os esforços de conquista do Senhor Puttle, da Broadway, vão ser baldados Como você notou, ela usava o perfume sem nome do Senhor Burns, mesmo quando passeando por breves instantes, no interior, com o Senhor Puttle. Levando em conta todos os sinais, considero o misturador e experimentador dos aromas sutis das arábias como favorito disparado para conquistar a Taça do Amor.

CAPITULO IV
O KESTAURANTE DOMDANIEL
(Sábado, 18 de maio — 20:00 horas)

O restaurante Domdaniel, localizado na rua 50, Oeste, perto da Sétima Avenida, atraíra uma freguesia geral e variada durante muitos anos. A reforma do velho casarão no qual o restaurante era instalado fora feita com muito gosto, e grande parte do velho ar de solidez e de durabilidade tinha sido mantida.
De cada lado da larga entrada até às extremidades do prédio corria um terraço estreito e descoberto, onde se viam vasos pseudogregos de alfenas bem aparadas. Na extremidade oeste da casa um beco de serviço separava o restaurante do prédio vizinho. Do lado leste havia uma alameda pavimentada, de aproximadamente três metros de largura, passando sob um alpendre coberto de trepadeiras para a garagem, que ficava nos fundos. Um arranha-céu comercial, na esquina da Sétima Avenida, terminava nessa alameda.
Eram quase oito horas da noite quando chegamos, naquela noite suave de maio. Acendendo um cigarro, Vance espiou para as sombras do alpendre e para a área mal iluminada que ficava mais além. Depois, caminhou com passo apressado alguns metros, pela estreita passagem, e contemplou as janelas cobertas de trepadeiras e a porta lateral, quase oculta da rua. Alguns momentos depois, retornou para junto de mim, no passeio, e voltou sua atenção, aparentemente com indiferença, para a frente do prédio.
— Ah — murmurou ele. — Lá está a entrada do escritório misterioso do Senhor Mirche, que despertou tanta atenção no sargento. Talvez uma janela ampliada, quando o casarão foi reformado. Simplesmente utilitário...
Era, como Vance observou, uma abertura de porta despretensiosa, dando diretamente para o terraço estreito. E duas escadas de madeira, reforçadas, levavam para o passeio. Em cada lado da porta via-se uma pequena janela — ou, diria eu, uma abertura semelhante a uma sacada —, seguramente fechada por uma grade de ferro batido.
— O escritório tem uma janela maior na parte lateral, da qual se domina a alameda forrada de mosaicos — falou Vance. — E também essa janela é fechada por uma grade. A luz que vem de fora deve ser um tanto insuficiente, quando, como o sargento parece pensar, o Senhor Mirche está lá dentro dedicado às suas tramas nefastas.
Para surpresa minha, Vance subiu pela escada de madeira até o terraço e espiou com ar indiferente, por uma das estreitas janelas, para dentro do escritório.
— Por dentro, o escritório parece ser tão honesto e em ordem quanto se apresenta aqui de fora — informou ele. — Acho que o nosso desconfiado sargento tem sido vítima de pesadelos...
Virou-se e olhou para a pensão, que ficava do outro lado da rua. Duas janelas próximas, no segundo andar, localizadas diretamente em frente à pequena porta de canto do Domdaniel, achavam-se às escuras.
— Pobre Hennessey! — suspirou Vance. — Atrás de um daqueles quadrados sombrios de trevas ele está vigiando e tendo esperanças. Ele simboliza toda a humanidade... Bem, vamos deixar de perder tempo. Tenho visões amorosas de um Meando de vitela à Macedônia. Espero que o mestre-cuca não tenha perdido nada da sua habilidade desde a última vez em que estive aqui. Naquela época, esse prato, feito por ele, era sublime...
Caminhamos até à entrada principal e fomos recebidos no luxuoso saguão de recepção pelo untuoso Senhor Mirche, em pessoa. O homem pareceu muito contente de ver Vance, ao qual se dirigiu pelo nome, e nos entregou ao chefe dos garçons, recomendando pomposamente ao nosso acompanhante que nos dispensasse o máximo de consideração e de atenção.
O interior redecorado do Domdaniel possuía uma aparência muito mais moderna do que o exterior. Apesar disso, grande parte do encanto do passado ainda transparecia nos painéis de madeira entalhada, nos corrimões trabalhados da escada e em uma lareira larga que fora deixada intacta em um dos lados da enorme sala principal.
Não podíamos ter escolhido uma mesa melhor do que aquela à qual fomos levados. Ficava perto da lareira, e, como as mesas ao longo das paredes eram ligeiramente elevadas, tínhamos uma vista livre de todo o salão. Mais para a nossa direita, um tanto distante, ficava a entrada principal, e à nossa esquerda situava-se o estrado da orquestra. Defronte a nós, do outro lado do salão, um arco levava ao corredor; e para além dele, quase como que recortada na soleira da porta, podíamos ver a escada larga e atapetada que levava para o andar de cima.
Vance olhou de relance por todo o salão, sem fixar muito o olhar, e depois voltou a atenção para o trabalho de encomendar o jantar. Feito isso, meu companheiro se recostou na sua cadeira e, acendendo um cigarro, relaxou todo o corpo, instalado confortavelmente. Mas notei que, por baixo das pálpebras semicerradas, Vance perscrutando todas as pessoas que se se achavam ao nosso redor. De repente, endireitou o corpo na cadeira e, inclinando-se na minha direção, murmurou:
— Arre! Acho que estou ficando velho e que meus olhos estão-me enganando. Olhe à minha direita, perto da entrada. É a espantosa jovem do cheiro de cidra. E está-se divertindo muito. Acha-se na companhia de um namorado muito bem vestido. Não sei se o jovem é o que a acompanhava na excursão a Riverdale ou se é o tal Burns, o rapaz sério e abstêmio. Seja quem for, está sendo muito atencioso para com ela, e acha-se tremendamente satisfeito consigo mesmo.
Reconheci imediatamente o elegante rapaz que eu vim do relance quando íamos fazendo a curva da avenida Palisade, quando voltávamos para o carro. Informei Vance do que, sem dúvida nenhuma, era o jovem Puttle.
— Isso não me surpreende nem um pouco — foi sua resposta. — É evidente que a moça está seguindo a técnica milenar e sobejamente comprovada como eficaz. Puttle receberá uma porcentagem esmagadora dos seus favores, até chegar o momento realmente importante da decisão final. Aí, creio eu que o eleito será Burns, que hoje é desprezado. — E riu baixinho. — Os truques do amor são sempre os mesmos. Oh, se o próprio Burns estivesse em cena aqui esta noite, afastado dela, roendo-se de ciúmes e estourando de raiva! — E sorriu, divertido.
O olhar de Vance tornou a vagar pelo salão, enquanto ele puxava preguiçosamente fumaça do seu cigarro. Dentro em pouco, seu olhar pousou em um homem que se achava sozinho a uma pequena mesa, no canto mais distante.
— Sabe, acho que encontrei o nosso jovem Burns, a hipotenusa dolorosa do meu triângulo imaginário. Ele está sozinho. A idade confere com a dele. É um rapaz sério. Senta-se a uma mesa colocada no ângulo exato que lhe permita observar a sua fujona ninfa das matas e seu companheiro. Observa-a atentamente, e parece aborrecido e tão enciumado, que chega até a pensar em assassinato. Não tem apetite para comer o que tem diante de si. Sobre sua mesa não há vinho nem bebidas alcoólicas. E está... fulo de raiva!
Deixei meu olhar seguir o de Vance, enquanto este falava, e observei o jovem solitário. Tinha o rosto sério e um tanto agressivo. Apesar do senso de humor denotado pelas suas sobrancelhas, viradas em um ângulo para cima, sua testa larga dava a impressão de considerável profundeza de pensamentos e de capacidade de julgamento acurado. Seus olhos cinzentos eram bem afastados um do outro e de cativante candura, e tinha o queixo sensível, embora firme. Trajava-se com apuro, embora com simplicidade, em forte contraste com a grandeza exibicionista da forma de trajar do Senhor Puttle.
Durante um intervalo do espetáculo de pista, o jovem solitário levantou-se um tanto hesitante da sua cadeira e encaminhou-se, com passos largos e resolutos, até à mesa ocupada pela Senhorita Allen e seu companheiro. Os dois o cumprimentaram sem entusiasmo. O recém-chegado, franzindo a testa de modo desagradável, não fez nenhuma tentativa para ser cordial.
A jovem levantou o cenho com uma altivez teatral, totalmente em desacordo com a expressão maliciosa das suas feições. Os modos do seu acompanhante eram indiferentes e dotados de palpável condescendência. Seu papel era o de um homem vitorioso que trata com o inimigo vencido e atormentado. Seu efeito sobre Burns — se é que era Burns — deve ter sido tremendamente agradável para ele. Isto, juntamente com o falso desdém da jovem, intensificou ainda mais o mau humor do Intruso. Este fez um gesto desajeitado de derrota e, virando-se, voltou desanimado para sua mesa. No entanto, notei que a Senhorita Allen lançou vários olhares abertamente na sua direção, o que deixava entrever que ela estava longe de ser indiferente para com o rapaz, como fingia ser.
Vance observava o pequeno drama, entre interessado e encantado.
— E agora, Van, — falou ele — o quadro do amor jovem está completo. Ah, o coração feminino, eternamente sádico e, no entanto, leal...!
Quinze ou vinte minutos depois, Mirch, sorrindo de canto a canto da boca e fazendo mesuras, entrou no refeitório, vindo do corredor da entrada principal, e seguiu adiante, rumo aos fundos do salão, até uma pequena mesa que ficava atrás do estrado da orquestra, onde uma das artistas se achava sentada. Tratava-se de uma mulher loura e de uma beleza berrante, que, segundo eu sabia, era a famosa cantora Dixie Del Marr.
Dixie saudou Mirche com um sorriso que parecia mais íntimo do que seria de se esperar que o fosse entre empregada e empregador. Mirche puxou a cadeira que se achava diante da mulher e sentou-se à mesa. Fiquei um tanto surpreso ao notar que Vance os observava atentamente, e senti que não se tratava apenas de mera curiosidade inconseqüente da sua parte.
Tornei a voltar o olhar para a mesa da cantora. Dixie Del Marr e Mirche tinham dado início ao que parecia ser um bate-papo confidencial. Achavam-se inclinados para diante, na direção um do outro, e era evidente que desejavam evitar serem ouvidos pelos que se achavam perto deles. Mirche frisava algum ponto, e Dixie Del Marr concordava, com um aceno afirmativo de cabeça. Depois, a Senhorita Del Marr fez uma pergunta, à qual o outro, por sua vez, respondeu com um aceno compreensivo de cabeça.
Depois de alguns minutos dessa conversa aberta e, no entanto, sigilosa, ambos recostaram-se em suas cadeiras e Mirche deu uma ordem a um garçom que passava. Alguns momentos depois, o garçom voltava com dois copos finos e compridos de um líquido cor-de-rosa.
Muito interessante — murmurou Vance. — Fiquei curioso...


CAPITULO V
UM ENCONTRO
(Sábado, 18 de maio — 21:30 horas)

Foi pouco depois disto que notei que a jovem Gracie Allen se levantava alegremente da sua cadeira, ao lado do radiante Senhor Puttle. Fez-lhe um aceno acanhado enquanto deslizava ao longo do restaurante, como uma gazela cheia de graça.
Céus! — falou Vance, rindo baixinho. — A espantosa ninfa dos bosques está vindo na nossa direção. Se ela me reconhecer, a história que inventei esta tarde vai cair em pedaços sobre minha cabeça mentirosa...
Enquanto meu companheiro falava, ela o observava. Depois, jogou as mãos para o alto, em um gesto de surpresa e encantamento, e veio rumo à nossa mesa.
— Que surpresa agradável — falou ela. Depois, censurou Vance, em voz mais baixa: — O senhor é um assassino muito atrevido. Terrivelmente ousado. Não sabe que alguém pode vê-lo aqui? Um garçom, por exemplo, ou outra pessoa qualquer.
— Ou a senhorita — sorriu Vance.
— Oh, mas eu não contaria a ninguém. Não se lembra? Eu prometi não contar. — A moça sentou-se com espantosa rapidez e riu baixinho, em tom musical. — E eu sempre digo que as pessoas devem cumprir as promessas feitas, se é que sabe a que me refiro... Mas meu irmão é esquisito nesse particular. Ele jamais cumpre as promessas que faz, embora cumpra muitas das outras coisas que se propõe a fazer. E algumas vezes ele se mete em sérios apuros por não cumprir aquilo que combina. Está sempre encrencado. Talvez seja porque é tão ambicioso. O senhor é ambicioso?
— Por falar em promessas — falou Vance — a senhorita cumpre todas as promessas que faz ao Senhor Burns?
— Nunca fiz nenhuma promessa ao George — garantiu ela a Vance, com um rubor de confusão aumentando em suas feições maliciosas. — Que foi que o fez pensar isso? Mas ele tem feito tudo para me fazer prometer-lhe alguma coisa. E fica terrivelmente zangado comigo. Está zangado esta noite. Mas, é claro, ele não demonstraria isso diante de tanta gente. George é tão cavalheiresco... Jamais se sabe em que ele está realmente pensando. Mas ninguém sabe, também, em que eu estou pensando. Só que não sou cavalheiresca. Ó Senhor Puttle diz que sou apenas bonitinha e atraente. E ele me conhece há muito tempo. E acho que é muito melhor ser bonitinha e atraente do que ser cavalheiresca. O senhor não concorda comigo?
Vance não fez nenhum esforço para ocultar sua hilaridade.
— Claro que concordo — respondeu ele. — E, a propósito, onde está o cavalheiresco Senhor Burns esta noite?
A moça deu uma risadinha abafada, embaraçada.
— Está sentado do outro lado do salão. — Virou graciosamente a cabeça, para indicar o jovem solitário que antes já nos atraíra a atenção. — E parece, também, sentir-se muito infeliz. Não consigo imaginar por que ele veio aqui esta noite... Sei que George nunca veio a este restaurante. Quer saber de um segredo? Pois vou-lhe contar, mesmo que o senhor não queira ouvir. Eu também estou vindo aqui hoje pela primeira vez. Mas isto aqui está-me agradando. O senhor não está gostando? Isto é muito grande e barulhento. E há tanta gente... O senhor não gosta de ver muita gente em um lugar só? Acho que aquela gente é muito agradável. Mas receio que George não esteja gostando do ambiente. Talvez seja por isso que está com aquele ar tão infeliz.
Vance não a interrompeu. Meu companheiro parecia estar-se divertindo com a inconseqüente saraivada de palavras da jovem.
— E... oh! — exclamou ela, como se lhe tivesse ocorrido algum pensamento de importância transcendental. — Esqueci-me de dizer-lhe: sei quem o senhor é! Que acha disso? O senhor é Philo Vance, não é? Não acha que sou terrivelmente esperta por saber disso? Aposto que o senhor não sabe como foi que descobri. Olhei no cartão de visitas que o senhor me deu hoje à tarde e lá estava o seu nome! Isto é, o Senhor Puttle olhou no seu cartão e disse que aquele devia ser o seu nome. E também ficou zangado um instante, quando lhe contei o caso do vestido novo que vou buscar na segunda-feira. Mas logo se acalmou novamente. Disse que, se o senhor era tão trouxa, ele não tinha nada com isso, e que gente como o senhor nasce a todo instante. Não sei o que quis dizer com isso. Mas foi assim que descobri o seu nome.
A moça mal fazia pausas para respirar.
— E... ohl O Senhor Puttle me contou mais alguma coisa a seu respeito. Uma coisa muito emocionante. Disse que o senhor era uma espécie de detetive e que era o senhor quem era elogiado por todo o trabalho duro que os pobres policiais fazem. Isso é mesmo verdade?
E ela nem esperou resposta.
— Em certa ocasião, meu irmão quis entrar para a polícia, porém não entrou. Mas não importa, pois acho que ele não tem altura suficiente para ser um polícia de verdade. Não é alto como o Senhor Puttle. É pequeno, como eu e George. E nunca vi um policial pequeno. O senhor já viu? Mas talvez ele pudesse ter sido detetive. Aposto em que ele nunca pensou nisso. Ou talvez também não haja detetives de baixa estatura. Alguém pode ser detetive, sendo pequeno demais? Ou talvez o senhor não saiba.
Vance riu, muito divertido, olhando dentro dos olhos da moça, como se desconcertado pelas suas confusas divagações.
— Tenho conhecido alguns detetives de baixa estatura — disse-lhe Vance.
— Bem... Em todo caso, acho que meu irmão não sabia disso. Ou talvez não quisesse ser detetive. Pode ser que ele desejasse ser policial apenas porque os policiais usam uniforme... Oh, senhor Vance? Acaba de me ocorrer outra coisa. Aposto em que sei que o senhor não tem medo de estar aqui esta noite. Eles não podem prender um detetive! E também não podem prender um policial, podem? Se pudessem, quem ficaria para prender os homens fora da lei? E, por falar no meu irmão, ele também está aqui esta noite. Está aqui toda noite...
— Ah! — murmurou Vance. — E onde é que ele está sentado?
— Oh, não quero dizer que ele esteja aqui no restaurante — declarou a moça, ingenuamente. — Ele trabalha aqui.
— Não diga! Que é que ele faz?
— O serviço dele é muito importante.
— Ele trabalha no Domdaniel há muito tempo?
— Ora, trabalha aqui há mais de seis meses! É muito tempo, em se tratando do meu irmão. Parece que ele nunca foi muito de trabalhar. Acho que é um sonhador. Em todo caso, alega que nunca lhe dão o merecido valor. E foi só hoje que ele disse que vai ter um aumento de salário. Mas receia que seu patrão também não lhe dê o devido valor.
— E que é que seu irmão faz aqui? — indagou Vance.
— Trabalha na cozinha. E lavador de pratos. É por isso que seu trabalho é tão importante. Imagine, se um restaurante grande como este não tivesse um lavador de pratos! Não seria horrível? Ora, nem sequer se poderia fazer uma refeição. Como poderiam servir a comida à gente, se os pratos estivessem imundos?
— Devo confessar que a senhorita tem razão — admitiu Vance. — Seria uma situação muito embaraçosa. Como você diz, o trabalho do seu irmão é muito importante. E, de passagem, diga-se que a senhorita é a jovem mais deliciosamente espantosa e mais perfeitamente natural que já conheci na minha vida.
Ficou evidente que o elogio foi desperdiçado com ela, pois a moça voltou imediatamente ao assunto do seu irmão.
— Mas talvez ele deixe o emprego hoje. Disse que deixaria, se não obtivesse aumento. Mas acho que, na verdade, ele não devia deixar o emprego, o senhor não acha? E vou dizer isto a ele... Aposto que o senhor não sabe aonde eu vou agora.
— Espero que não vá à cozinha.
— Ora, o senhor é mesmo um bom detetive. — Os olhos da moça, pestanejando, arregalaram-se. — É para lá que eu iria, mas Philip, meu irmão, afirmou que eles não me deixariam entrar na cozinha. Mas vou-me encontrar com ele na escada da cozinha. Philip disse que eu estava apenas fazendo-me de importante quando lhe disse que viria aqui esta noite. Imagine! Ele não quis acreditar em mim. Portanto, eu disse: — Então, você vai ver. — E ele retrucou: — Se você for mesmo ao Domdaniel, vá ao meu encontro na escada da cozinha, às dez horas da noite. — E é para lá que eu vou agora. Meu irmão tinha tanta certeza de que eu não viria aqui, que prometeu que, se eu lhe provasse que estava aqui, indo ao seu encontro, não sairia do emprego, mesmo que não lhe dessem aumento de salário. E sei que a mamãe quer que ele continue no emprego. Portanto, tudo sairá bem... Oh, que horas são, Senhor Vance? Vance consultou de relance o seu relógio.
— Faltam cinco minutos para as dez horas.
A jovem levantou-se tão de repente quanto se sentara.
— Não me importo muito com o bobo do Philip — falou ela. — Mas quero fazer mamãe feliz.
Enquanto Gracie se apressava rumo à distante passagem em arco, Burns, o rapaz solitário, se levantou e a seguiu rapidamente para o corredor. Quase simultaneamente, os dois passaram pela tapeçaria de damasco que havia na soleira da porta e desapareceram de vista.
Vance notara o jovem correr atrás da Senhorita Allen e fez um aceno benevolente de satisfação.
— Pobre e infeliz rapaz! — observou ele. — Agarrou a sua única oportunidade fugidia de falar a sós com sua amada. Espero que ele não cometa a imprudência de ralhar com ela... Mas, seja o que for que ele fizer, a deusa Afrodite já lhe está sorrindo de forma favorável, embora ele não lhe reconheça a fisionomia sorridente.
Voltei minha atenção, com indiferença, para a mesa onde Mirche e a Senhorita Del Marr tinham estado sentados. No entanto, a cantora havia desaparecido, e Mirche perscrutava de forma complacente o salão de refeições. Depois, ele seguiu pelo corredor, rumo à entrada principal.
Ao chegar à nossa mesa, parou um instante, fez uma mesura pomposa, para se certificar de que não nos faltava nada, e Vance convidou-o para sentar-se conosco.
Não havia nenhuma característica que distinguisse Daniel Mirche de forma especial. O homem era do tipo comum, esse misto de político e de dono de restaurante, grande e um tanto exibicionista. Era, ao mesmo tempo, agressivo e bajulador, com maneiras de polidez superficial. Seus cabelos ralos eram ligeiramente grisalhos e seus olhos tinham um peculiar matiz esverdeado.
Vance conduziu a conversa com facilidade, abordando vários aspectos relacionados com o interesse de Mirche no restaurante e sua gerência. Seguiu-se uma discussão a respeito de vinhos e suas safras. Momentos depois, Vance lançara-se a um dos seus assuntos prediletos: isto é, os conhaques raros do distrito oeste central da França, os distritos de Grande Champagne e Pequeno Champagne e os vinhedos em torno de Mainxe e Archiac.
Enquanto eu perpassava os olhos pelo salão, a esmo, notei que o jovem Burns voltara para sua mesa. E pouco depois a moça reaparecia no arco da porta do lado oposto, indo diretamente rumo ao Senhor Puttle. Nem sequer olhou de relance na nossa direção; e, pela expressão de desanimo do seu rosto, só pude supor que ela falhara no seu objetivo.
No entanto, não me ocupei demasiado tempo com essas reflexões. Minha atenção foi atraída pela entrada furtiva e quase felina de um homem magro e alto, que seguiu, como se não quisesse atrair atenção, para uma pequena mesa no canto oposto do salão. Essa mesa, não muito distante daquela em que se encontrava sentado o desalentado jovem Burns, já estava ocupada por dois homens, que se achavam de costas para o salão; e, quando o recém-chegado ocupou a cadeira vaga diante dos dois, eles se limitaram a fazer um aceno de cabeça.
Meu interesse por esse personagem alto e magro baseava-se no fato de que ele me fazia lembrar de fotografias que eu tinha visto de um dos facínoras mais notórios da época, um tal Owen. Corriam os boatos mais desagradáveis a respeito do tal homem, e houvera rumores de que ele era o planejador — ou, como se diz vulgarmente na gíria jornalística desse tipo de reportagens, ”o cérebro” por trás de certas organizações, de vulto considerável, de meliantes. Acreditava-se que ele representava um papel de direção entre os fora-da-lei, e que esse papel era tão importante que o homem conquistara o apelido de ”Coruja”.
Havia uma característica notável implícita nas suas feições super-refinadas. Uma característica maligna, sem dúvida, mas que deixava entrever potencialidades muito vastas e talvez até heróicas. O homem se formara com louvor em uma grande universidade e me trouxe à mente um lindo retrato de Robespierre que eu vira um dia: lá estava a mesma expressão maquiavélica de inteligência e de sagacidade. O homem tinha cabelos e olhos escuros, mas uma pele sem cor, como se fosse de cera. A impressão dominante que ele dava era de uma dureza inflexível: era fácil imaginá-lo desempenhando as funções de um carrasco com um sorriso indiferente e cruel nos lábios finos.
Estou descrevendo este homem de maneira tão minuciosa porque ele deverá representar um papel de vital importância no estranho desenrolar do caso que estou contando. Mas, naquela noite, eu não podia mesmo por um salto fantástico de imaginação, tê-lo ligado, fosse como fosse, com a quase incrível e descuidada Gracie Allen. E, contudo, esses dois caracteres tão diferentes deveriam cruzar o caminho um do outro, em breve, da maneira mais espantosa.
Eu já estava para afastar esse homem da minha mente, quando notei um tom de voz fora do comum na fala de Vance, enquanto ele batia papo com Mirche. Com aquela fleuma peculiar e ao mesmo tempo alerta, Vance estava olhando fixamente para a mesa situada no canto mais distante, onde os três homens se achavam sentados.
— A propósito — falou ele a Mirche, um tanto abruptamente. — Aquele, sentado lá, perto da coluna do canto, não é o famoso ”Coruja” Owen?
— Não conheço o Senhor Owen — respondeu Mirche, suavemente. No entanto, virou-se ligeiramente, com natural curiosidade, na direção apontada por Vance. — Mas poderia ser — acrescentou ele, depois de um instante de exame. — Até que é parecido com as fotografias que tenho visto do Senhor Owen... Se quiser, posso ir-me certificar.
— Oh, não, não é preciso — falou Vance. — Mas é muita amabilidade sua. Mas não é coisa importante, sabe?
Os componentes da orquestra iam voltando aos seus lugares, e Vance empurrou sua cadeira para trás.
— Tive uma noitada muito agradável e edificante — disse ele a Mirche. — Mas, agora, preciso mesmo ir andando.
Os protestos delicados de Mirche pareceram bastante legítimos, quando ele nos sugeriu que ficássemos pelo menos até depois do número de Dixie Del Marr, que seria o próximo.
— É uma excelente cantora — acrescentou Mirche, com entusiasmo. — E uma mulher de raro encanto pessoal. Ela faz seu número às onze da noite, e já está quase na hora.
Mas Vance alegou assuntos urgentes que ainda lhe exigiam a atenção naquela noite e pôs-se de pé.
Mirche exprimiu seu profundo pesar e nos acompanhou até à entrada principal, onde nos deu um efusivo boa noite.

CAPITULO VI
O CADÁVER
(Sábado, 18 de maio — 23:00 horas)

Descemos a escada de degraus largos de pedra, até à rua, e seguimos para leste. Na Sétima Avenida, repentinamente, Vance fez sinal para um táxi e deu ao motorista o endereço da residência do procurador distrital.
— Nesta altura, Markham já deve ter voltado da sua ronda de tarefas políticas — disse Vance, enquanto seguíamos para o centro da cidade. — Sem dúvida, ele me criticará impiedosamente pela minha aventura noturna oca. Mas, não sei por que, senti uma inquietação estranha esta noite nos salões espaçosos do Domdaniel, depois de ouvir as observações pouco recomendáveis do sargento a respeito do restaurante. O restaurante continua sendo como sempre foi. No entanto, por que minha mente era assombrada por pensamentos sinistros e de mau agouro, enquanto eu remexia no Meando e bebericava o Château Haut-Brion. Acho que, com o correr dos anos, os tentáculos envolventes da desconfiança estão-se fechando sobre minha natureza, outrora confiante. Ai de mim...!
O táxi parou de chofre diante de um pequeno prédio e fomos imediatamente para o apartamento do procurador distrital.
Markham, usando paletó esporte e chinelos, recebeu-nos com divertida surpresa.
— Espero que não seja outro mensageiro afobado com más notícias.
— Nada de Hermes nem de caduceus. Você está sendo acossado pelos arautos?
— Mais ou menos isso — retorquiu Markham, com uma careta. — O sargento aqui acaba de me trazer uma mensagem.
Eu não notara a presença de Heath, mas agora o vi, de pé, perto de uma janela, na sombra. O sargento avançou com um aceno amigável de cabeça.
— Caramba, sargento — falou Vance. — Que veio fazer aqui?
— Vim por causa da mensagem de que o Senhor Markham estava falando, Senhor Vance. Uma mensagem de Pittsburgh.
— São más notícias?
— Bem, não são exatamente o que se poderia chamar de boas — queixou-se Heath. — Acho que são até bem ruins.
— Não diga...
— Acho que não errei muito nas deduções e previsões que fiz ontem à noite a respeito do caso... O capitão Chesholm, de Pittsburgh, acaba de mandar-me a notícia de que um dos seus motociclistas localizara um carro viajando sem luzes em uma estrada secundária, e que, quando o carro diminuiu a marcha para fazer um curva apertada, um sujeito que viajava no banco traseiro deu dois tiros contra o policial. O carro fugiu, seguindo para leste, rumo à estrada principal.
— Mas, sargento, por que esse pequeno tiroteio na Pennsylvania perturbaria a sua excelente voz de tenor?
— Vou-lhe dizer por que. — Heath tirou o charuto da boca. — O guarda pensou ter reconhecido Benny, o Abutre!
Vance não se deixou impressionar.
— Nas circunstâncias em que se deu o fato, ele pode ter-se enganado redondamente.
— Foi exatamente o que eu disse ao sargento. — Markham fez um aceno de cabeça, aprovando. — Nas próximas semanas, vamos receber comunicados de que Pellinzi foi visto em todos os Estados deste país.
— Talvez — insistiu Heath. — Mas o modo como o tal carro estava viajando encaixa exatamente na minha idéia. O Abutre já poderia ter chegado a Nova York hoje cedo, se ele tivesse vindo diretamente de Nomenica. Mas, fazendo um círculo até a Pennsylvania e vindo de lá rumo oeste, talvez ele pretendesse, com isso, evitar muitas dificuldades.
— Pessoalmente — falou Markham — estou convencido de que aquele sujeito se manterá afastado de Nova York. — Seu tom de voz era equivalente a uma crítica à ansiedade do sargento.
Heath sentiu a repulsa.
— Espero que não o tenha importunado, vindo aqui esta noite, chefe. Eu sabia que o senhor tinha dois compromissos hoje, e pensei que ainda estivesse de pé.
Markham suavizou o tom de voz.
— O fato de você ter vindo aqui não tem importância — falou ele, para tranqüilizar o defensor da lei. — Tenho sempre prazer em vê-lo, sargento. Sente-se e sirva-se da garrafa... Talvez o próprio Senhor Vance esteja à procura de uma platéia para contar a ela a respeito das sobrancelhas arqueadas de Mirche e de outros pormenores horrendos da sua estada no Domdaniel... Então, Vance? Você tem alguma história de duendes com que nos regalar antes de irmos para a cama?
Heath instalara-se em uma cadeira e serviu-se de uma bebida. Vance também estendera a mão para pegar o seu conhaque predileto.
— Sinto muito, Markham, velho amigo — disse ele, na sua voz arrastada. — Não tenho nenhuma fantasia para contar... Nem mesmo uma a respeito de um carro misterioso em fuga. Mas tentarei igualar a história inspirada do sargento com um conto sobre uma ninfa dos bosques e um experimentador de perfumes; de uma Lorelei que canta de um pódio em vez de cantar de um penhasco rochoso. De um dono esperto de um restaurante e de um escritório vazio, cercado de grades misteriosas; de uma sacada coberta de trepadeiras e de uma coruja sem penas... Você poderia suportar ouvir o cântico do meu poema?
Estou com resistência baixa.
Vance estendeu as pernas diante de si.
— Bem, com licença, então — começou ele. — Nesta noite, uma encantadora jovem, uma garota espantosa, nos fez companhia à nossa mesa, durante alguns minutos. Uma criança, cujo cérebro é uma roda-viva e gira como um pião, irradiou as fagulhas mais coloridas; porém, seu espírito, é tão ingênuo quanto o de uma criança.
— A tal ninfa dos bosques de quem você tagarelou no preâmbulo?
— Sim... Ela mesma. Eu a vi pela primeira vez hoje à tarde em um bosque sombrio em Riverdale. E ela estava no Domdaniel hoje à noite, acompanhada por um sujeito chamado Puttle, que ela estava usando como isca para fisgar o verdadeiro queridinho do seu coração, um rapaz de nome Burns. Este também se achava presente esta noite, mas longe da moça, e sozinho... e muito infeliz.
— Seu encontro com ela hoje à tarde sugere possibilidades mais interessantes — comentou Markham, com indiferença.
— Talvez você tenha razão, meu caro. A verdade é que a moça se achava sozinha quando me introduzi no seu reino florestal. Mas ela aceitou minha intromissão sem dificuldades. Até se ofereceu para ler a palma da minha mão.
— Delpha? — interrompeu Heath, em tom agudo. — Refere-se àquela cartomante que negocia com a profissão sob esse nome falso?
— Talvez seja — falou Vance. — Essa Delpha, ao que me consta, lida com leitura das linhas da mão, com astrologia, com numerologia e com outras coisas semelhantes. Você conhece essa pitonisa, sargento?
— Claro que conheço. E conheço também o marido dela, de nome Tony. Os dois são ligados de estranha maneira com um punhado de malfeitores do submundo. Esse casal atua como informante e como observador para assaltos a joalharias... São o que se poderia chamar de espiões para assaltos. Mas não conseguimos pilhá-los em flagrante. O sobrenome deles é Tofana e os dois têm uma loja para enganar os trouxas... ”Delpha” — bufou ele. — Para os vizinhos, ela é apenas Rosie. Talvez ela fique livre das grades durante algum tempo, mas algum dia eu a agarrarei.
— Você me deixa atônito, sargento. Simplesmente, não posso imaginar que minha linda fada dos bosques — que, a propósito, trabalha em uma fábrica de perfumes a semana inteira — tenha algo a ver com a megera sombria da sua descrição.
— Mas eu posso — falou Heath. — Esse é um dos truques mais batidos da velha Rosa Tofana: cercar-se de jovens inocentes. E, enquanto ela finge ser uma comerciante inofensiva e imaculada, o velho Tony está talvez tramando alguma patifaria, ou batendo carteiras, bancando o gigolô ou então vendendo entorpecentes do outro lado da cidade. Esperto, o Tony... Sabe fazer quase de tudo.
— Bem — murmurou Vance. — Talvez estejamos falando de duas mulheres diferentes, não é? ”Delpha” pode ser um nome popular da irmandade mística. Talvez uma sugestão fonética para o oráculo de Delfos...
— Coragem, Vance — interrompeu Markham, em tom agradável. — Não deixe que o sargento o afaste do seu conto da carochinha.
— E o pormenor mais espantoso — prosseguiu Vance — foi o cheiro de cidra que havia ao redor do duende. O perfume fora feito especialmente para ela, e não tinha nome. Muito misterioso, hem? Fora preparado pelo cavalheiro chamado Burns, uma espécie de mago das essências, empregado na mesma fábrica em que a moça trabalha. Burns, que ficou tão aborrecido com a aparente preferência que ela resolvera passar a dar a um rival dele.
Markham deu um sorriso torto.
— Não consigo entender onde é que entra o mistério da situação.
— Nem eu — confessou Vance. — Mas deixe seu cérebro obtuso demorar sobre o fato de que a tal jovem foi escolher exatamente esta noite para visitar o restaurante de Mirche.
— Talvez ela tenha seguido os seus passos, desde Riverdale, até você chegar ao Domdaniel.
— Ora, isso não resolveria nada. Ela já se achava lá quando eu cheguei.
— Então, talvez a moça estivesse com fome.
— Eu já pensara nisso. — Os olhos de Vance brilharam alegremente. — Talvez você tenha solvido o mistério! Mas... — prosseguiu ele — isso não explica o fato de que o próprio Mirche estivesse no Domdaniel.
— Ora, e onde é que você queria que ele estivesse? Mas talvez você agora vá dizer-me que ele é o pai da sua heroína, de quem se separara há muito tempo, não é?
— Não — suspirou Vance. — Mirche, ao que temo, é de uma sublime ignorância da existência da jovem. Que maçada. E eu, que estava tentando inventar uma história divertida para você se entreter...
— Aprecio o esforço. — O charuto de Markham precisava ser aceso novamente, e ele cuidou disso. — Mas diga-me o que achou de Mirche. Lembro-me de que seu objetivo principal, ao ir hoje ao Domdaniel, foi o de estudar o homem mais de perto.
— Ah, sim. — Vance mexeu-se e afundou mais na sua poltrona. — Você é sempre tão prático, Markham... Bem, não gosto de Mirche. É um cavalheiro correto, mas não admirável. No entanto, fez esforços enormes para me agradar. Não sei o motivo disso... Talvez ele estivesse tramando alguma sujeira, embora tenha-me dado a impressão de que é do tipo de homem que precisaria de alguém para fazer planos para ele. Não, Mirche não é um líder de homens, mas, sem dúvida, é um assecla fiel e capaz. Um sujeito sombrio e perverso... Bem, aí tem você o vilão da peça.
— E que farei com ele? Seu conto está fracassando a cada instante que passa.
— Receio que você tenha razão — confessou Vance. — Deixe-me ver... Examinei detidamente o escritório de Mirche, mas, infelizmente, a sala achava-se desprovida de qualquer coisa comprometedora. Apenas uma sala de tamanho razoável, sem nenhum ocupante. E depois olhei com muito gosto para a velha porta e para as janelas que ficam além do alpendre, dentro da alameda por onde entram os carros. Mas, apesar de todo o exame minucioso que fiz, não consegui descobrir nada que ajudasse. Mas as trepadeiras que havia por lá eram muito agradáveis. Trepadeiras inglesas.
— Agora, você passou para a Botânica — disse Markham. — Devo dizer que prefiro a narrativa, feita pelo sargento, do tiroteio de Pittsburgh... Mas você não falou de uma Lorelei?
— Ah, sim. E bem loura... como convém a uma sereia do Reno. Mas o nome dela tem um elo gaulês: Del Marr. Uma Lorelei impressionante. Mais inteligente, creio eu, do que Mirche. Mas houve uma conversa séria entre ela e Mirche. Os dois sentaram-se a uma mesa, durante um intervalo de descanso da orquestra, e tenho certeza de que a conversa não se limitou a assuntos musicais ou profissionais de empregador e cantora. Havia uma atmosfera de intimidade entre os dois. Liberdade, igualdade, fraternidade... Assim. Não era uma simples contratada conversando com seu empregador.
— Eu também imaginei isso, há alguns anos — intrometeu-se Heath. — Além disso, ela tem um carro de luxo e motorista. Sua profissão de cantora certamente não lhe dá dinheiro para tanta coisa. E a cara do tal motorista também não me agrada: é um tipo mal-encarado, como um desses leões-de-chácara que trabalham nas casas de jogatina.
— Pelo menos, Vance, — falou Markham, esperançoso — você descobriu uma ligação em potencial entre os componentes do seu drama, quase totalmente desorganizados e sem relações entre si. Talvez você possa desenvolver a estrutura da sua narrativa tendo isso como base.
Vance sacudiu a cabeça, desanimado.
— Não, acho que, infelizmente, não estou à altura da tarefa.
— E que há a respeito da ”coruja sem penas” de que você falou há pouco?
— Ah! — E Vance bebericou o seu conhaque. — Eu me referia ao sombrio e misterioso Senhor Owen, de lembrança detestável e má reputação.
— Compreendo. ”Coruja” Owen, hem? Eu tinha uma idéia vaga de que ele se estivesse torrando ao sol da Califórnia. Há algum tempo atrás, correu o boato de que ele estava morrendo, talvez por efeito dos seus pecados.
— Oh, estava bem vivo lá no Domdaniel, sentado do outro lado do salão, junto com dois outros homens.
— Aqueles dois sujeitos — adiantou Heath — eram, talvez, seus guarda-costas. Ele não anda sem a companhia dos dois.
— Acho que você não vai conseguir nada com ele, Vance — falou Markham. — Certa ocasião, o FBI se preocupou com ele, mas, depois de efetuar investigações, declararam o homem isento de culpa. Ou, pelo menos, disseram que não havia provas da sua culpa.
— Confesso que estou derrotado. — Vance sorriu, tristonho. — Cheguei até a tentar atrair Mirche para que este confessasse que conhecia Owen. Mas o homem negou o mínimo conhecimento com o ”Coruja”...
Após mais uma hora de conversa sem objetivo, fomos interrompidos pelo tilintar do telefone. Markham franziu o cenho, aborrecido, enquanto atendia. Depois, pondo o receptor no lugar, virou-se para Heath.
É para você, sargento. É Hennessey.
Heath também ficou aborrecido.
— Desculpe, chefe. Não deixei este número com ninguém quando vim para cá.
Enquanto saudava Hennessey pelo telefone, sua voz era belicosa. Escutou vários minutos, a expressão fisionômica mudando rapidamente da beligerância para outra de quem está profundamente confuso. De repente, berrou para o fone: ”Não desligue, espere um instante!” — E, segurando o receptor do telefone de lado, virou-se para nós:
— Parece-me uma loucura, chefe, mas Hennessey está telefonando lá do Domdaniel, e preciso ir falar com ele imediatamente...
— Esplêndido! — disse Vance, num impulso. — Por que não manda Hennessey vir aqui? Tenho certeza de que Markham não se oporia.
Markham dirigiu a Vance um olhar de espanto.
— Está bem, sargento — disse ele, de mau humor. Heath recolocou novamente o fone ao ouvido, com rapidez.
— Escute, Hennessey — disse ele, em voz áspera. — Venha aqui à casa do procurador.
— Que agitação é essa, sargento? — indagou Vance. — Terá o Mirche se escondido com seu próprio dinheiro e fugido com a Senhorita Del Marr para casar-se com ela?
— É muito esquisito — murmurou Heath, ignorando a pergunta. — Os rapazes encontraram um cadáver de homem no restaurante.
— Espero, nesse caso, que tenha sido achado no escritório de Mirche — disse Vance, em tom leve.
— O senhor acertou. — E Heath olhou fixamente para o soalho.
— E de quem seria o cadáver?
— É justamente isso que torna a coisa esquisita. O cadáver é de um empregado que trabalhava na cozinha do restaurante.
— Esse fato o ajudará a reviver o seu conto fracassado? — perguntou Markham a Vance.
— Céus, não! Isso fulmina completamente toda a minha história. — Vance tornou a se virar para Heath. — Você já sabe o nome do morto, sargento?
— Não prestei muita atenção ao nome quando Hennessey disse que era apenas um empregado de cozinha. Mas me pareceu algo como Philip Allen.
As pálpebras de Vance bateram ligeiramente.
— Philip Allen, hem? Muito interessante!

CAPITULO VII
ESTRANHAS COINCIDÊNCIAS
(Domingo, 19 de maio — 0:45 horas)

Hennessey chegou em menos de quinze minutos. Era um homem corpulento e sério, de feições severas e maneiras desajeitadas.
Heath foi diretamente ao assunto que interessava.
— Conte sua história, Hennessey. Depois, eu lhe farei perguntas. Mas, primeiro, quero saber por que você me telefonou para cá a estas horas da noite.
— Diacho, sargento! — retrucou Hennessey. — Havia mais de uma hora que eu estava tentando encontrá-lo. Eu sabia que o senhor fazia ligação de idéias entre o Senhor Markham e o Domdaniel, e imaginei que o senhor quereria saber de uma morte inesperada acontecida lá. Por isso, telefonei para sua casa e para inúmeros outros lugares em que eu pensava que o senhor poderia estar, mas em vão. Depois, arrisquei-me a ligar para cá. Eu não queria que o senhor gritasse comigo amanhã, para me passar um carão.
— Bem, o que você sabe? — resmungou Heath.
— A história parece um tanto maluca, sargento. Mas, por volta das onze horas, vi o Senhor Vance sair do restaurante. Antes disso, já o vira rondando o escritório de Mirche...
— Às oito horas — interrompeu Vance, com um sorriso.
Hennessey tirou seu caderno de anotações e virou algumas
páginas.
— Às sete e cinqüenta e seis, Senhor Vance.
Céus, que observação meticulosa!
Hennessey sorriu.
— Bem... Uns quinze ou vinte minutos depois que o Senhor Vance saiu, dois homens do Departamento de Homicídios chegaram com o Dr. Mendel, e os três entraram no escritório de Mirche. Achei aquilo esquisito, e por isso deixei Burke de vigia, em companhia de Snitkin, e fui ver o que estava acontecendo. Quando estávamos subindo a escada, o próprio Mirche chegou correndo, todo agitado, passou por nós e entrou na sala. Acho que o porteiro, que o senhor conhece, Joe Hanley, deve ter-lhe dito que alguma coisa estranha estava acontecendo...
— Não tente adivinhar coisas.
— Pois bem — prosseguiu Hennessey. — Dentro da sala havia um sujeito de terno preto, estendido no chão, com meio corpo embaixo da escrivaninha. Mirche foi até junto dele, cambaleando um pouco e mortalmente pálido. Inclinou-se bem perto, por cima do homem, ao lado do médico, que estava abrindo a camisa do cadáver e encostando-lhe ao peito uma dessas cornetas acústicas...
— Um estetoscópio! Céus! — Vance olhou para Markham.
Eu não sabia que um médico oficial levava um desses fiéis instrumentos consigo.
— Geralmente, não leva — falou Markham. — Mendel é um médico jovem e acaba de ser nomeado para o corpo médico; por isso, não me surpreenderia se ele levasse também consigo um espirômetro por onde anda, e também o seu diploma.
— Prossiga, Hennessey — grunhiu Heath. — E depois? Guilfoyle perguntou a Mirche quem era o sujeito. Não sei se o que aconteceu em seguida foi antes ou depois que Mirche respondeu à pergunta; só sei que mais ou menos nessa altura Dixie Del Marr entrou correndo. E Mirche disse, num cochicho, que a vítima era um dos lavadores de pratos do restaurante um tal Philip Allen. Eu mesmo poderia ter contado isso a Guilfoyle. Eu conhecia Allen, e o tinha visto pessoalmente naquela tarde. Depois, Guilfoyle perguntou a Mirche por que o rapaz estava no escritório, onde ele vivia e o que Mirche sabia sobre sua morte. O sapo velho declarou que não sabia de nada a respeito do morto, nem de como ele fora parar ali, ou onde ele morava. De que era tudo um mistério para ele. E parecia ser sincero, ou estava fingindo muito bem.
— Tem certeza de que ele não estava enganando a todos vocês? — indagou Heath, desconfiado.
— Ahn? A mim, não — garantiu Hennessey. — Nenhum sujeito pode fingir tão bem estar abalado.
— Que aconteceu depois?
Hennessey prosseguiu, agora mais depressa.
— O médico começou a examinar o homem, levantando-lhe as pálpebras, espiando a sua garganta, movendo suas pernas e braços... Todos os exames de praxe. E, enquanto ele estava ocupado em mexer no sujeito, a tal Dixie Del Marr abriu a porta de um armário embutido e tirou um livro de registro da firma. Virou algumas páginas, e depois disse: ”Aqui está, Mirche. Philip Allen mora na rua Leste, 37, número 198, com a mãe dele”.
Markham olhou para cima e virou-se para Vance.
— Vejo que sua dedução, não muito profunda, está sendo apoiada de leve. Sua Lorelei é, evidentemente, a guarda-livros de Mirche.
Hennessey ficou impaciente com a interrupção.
— Depois, Guilfoyle perguntou ao médico qual fora a causa da morte do homem. ”Não sei” — foi a resposta do médico. ”Talvez ele tenha morrido de morte natural, mas não posso dizer, apenas com o exame superficial feito. Ele apresenta queimaduras nos lábios e sua garganta parece ter alguma coisa. Vocês vão ter de levá-lo ao necrotério para uma autópsia completa.” — O médico nem sequer sabia há quanto tempo a vítima estava morta.
— E que fez a cantora Del Marr? — indagou Heath.
— Recolocou o livro na prateleira do armário embutido e sentou-se em uma cadeira, com uma expressão dura e indiferente, até que Mirche a mandou voltar para o restaurante.
— E então vocês mandaram o cadáver para o necrotério. — Heath estava tirando baforadas no seu charuto, sombriamente.
— Isso mesmo, sargento. Guilfoyle se encarregou de chamar o carro fúnebre. Ele e o outro investigador do Departamento de Homicídios, de nome Sullivan, encarregaram-se das investigações... É uma história boba, mas sei que o senhor sempre desconfiou daquele tal Mirche... Principalmente agora, com o Abutre à solta.
Heath franziu o cenho e dirigiu a Hennessey um olhar fixo e frio.
— Está bem! — berrou ele. — Quem entrou no escritório, depois que o Senhor Vance chegou lá, às oito da noite?
— Ah, isso é fácil. — E o policial riu, desconsolado. — A cantora Del Marr entrou no escritório por volta das oito e meia e saiu logo depois. Pouco mais tarde, o porteiro entrou lá também. Mas creio que ele costuma fazer isso sempre. Acho que Hanley apenas foi lá para tomar um gole de uísque, pois saiu esfregando a boca com a manga do paletó...
— A que horas aconteceu tudo isso? — indagou Heath.
— No início da noite, uma hora depois que o Senhor Vance esteve lá.
— Suponho que você investigou para saber se algum deles viu o cadáver, não é?
— Claro que sim. Mas nenhum deles o viu. O porteiro foi lá depois da cantora, e pode apostar sua vida em que, se houvesse um cadáver lá dentro, Hanley teria soltado um grito. Ele é um sujeito honesto, sargento.
— Claro. Conheço Joe Hanley há muito tempo. — Heath pensou um momento. — Nada disso faz sentido... Mas, agora, quero saber de uma coisa: a que horas você tirou a sua soneca, esta noite?
De repente, compreendi a significância da pergunta de Heath.
- Juro por Deus, sargento, não tirei nenhuma soneca.
Mas não sei como o tal Allen entrou no escritório. Não o vi entrar lá.
— Ahn! — E havia um mundo de sarcasmo no grunhido do sargento. — Você não dormiu, mas Allen entrou no escritório, teve um ataque cardíaco, ou coisa semelhante, e morreu enrodilhado embaixo da escrivaninha de Mirche! Esta é a última piada para os anais da polícia.
Hennessey ficou vermelho como um camarão.
— Eu não o culpo por estrilar, sargento. Mas, sinceramente, não afastei os olhos daquela porta nem por uma fração de segundo...
— Então, a vítima se tornou invisível e entrou lá sem quo você a visse, num passe de mágica. Ou talvez tenha descido pela chaminé, como o Papai Noel... Se é que há chaminé. — A ironia do sargento pareceu desnecessariamente brutal.
— Escute, sargento — interrompeu Vance. — O verdadeiro objetivo da vigilância de Hennessey era ficar alerta ao aparecimento de Benny Pellinzi, não se esqueça disso. Sem dúvida, você não postou três marmanjos na pensão apenas para vigiarem um pobre lavador de pratos.
Heath abordou outra faceta do assunto.
— Quem foi que telefonou para a chefatura de polícia, Hennessey?
— Essa é outra coisa engraçada, sargento. O telefonema chegou, por vias normais, às dez e cinquenta... não mais de dez minutos depois que o senhor saiu. Quem telefonou foi uma mulher. Ela não quis dar o nome; bancou a misteriosa e desligou.
— Sim. Se foi engraçado... Podia muito bem ter sido essa megera dessa cantora, Del Marr.
— Também pensei nela, e a interroguei a respeito do assunto. Mas ela parecia ignorar tanto o fato como Mirche o ignorava. Mas poderia ter sido alguma das velhas empregadas que trabalham na cozinha. Grande parte dos empregados entra e sai por aquela alameda que dá para o escritório. E, se um deles quisesse bisbilhotar, bastar-lhe-ia levantar-se na ponta dos pés e espiar pela janela.
— E o edifício de escritórios que fica ao lado da alameda? — indagou Vance.
Foi Heath quem respondeu à pergunta.
— Não há janelas ali, senhor. Os primeiros três andares são fechados por uma parede maciça de tijolos...
O cigarro de Vance se acabara e ele acendeu outro.
— Juntando tudo isso — comentou ele — não pareço muito promissor para um crime misterioso. É muito triste. Tive esperanças tão grandes quando Hennessey telefonou a essa hora mais ou menos de bruxaria.
— Tenho de confessar — disse Heath — que eu também não consigo vislumbrar nada de especial no relatório de Hennessey. Mas há outra coisa que eu desejo saber. — E tornou a virar-se para Hennessey. — Você disse que conhecia esse lavador de pratos, o Allen, e que o viu mais cedo, no mesmo dia. Fale-nos a esse respeito.
— Eu fiquei conhecendo-o por acaso — retrucou o policial. — Uma noite, no inverno passado, ele saiu correndo da alameda, por volta das três horas da madrugada, e quase me derrubou no chão. Eu o agarrei e levei-o à presença de Hanley, para ver quem ele era. Depois o soltei. Hoje à tarde, eu o vi rondando o escritório de Mirche. Entrou e saiu de lá três ou quatro vezes, entre uma e cinco horas da tarde. Depois por volta das seis, quando Murche chegara ao escritório, o rapaz tornou a entrar lá e ficou uns dez minutos, dessa vez. Quando saiu, foi a última vez que o vi.
— Para onde foi ele?
— Sei lá... Não sei ler os pensamentos dos outros. Ele não voltou para a cozinha, se é isso que o senhor deseja saber. Foi para a rua.
— Tem certeza de que foi Allen quem você viu? — indagou o sargento, desanimado.
— Claro que tenho! — riu Hennessey. — Mas é muito engraçado o senhor me perguntar isso. Na primeira vez em que vi Allen, esta tarde, tive a idéia maluca de que poderia ser Benny, o Abutre: são ambos da mesma estatura, com o mesmo rosto redondo e pálido, macilento. E Allen trajava um terno simples e preto, como já lhe disse... e é assim que o Abutre estaria vestido, se ele quisesse entrar aqui, furtivamente, e desejasse evitar que o vissem com facilidade. O senhor se lembra das roupas elegantes que ele usava nos velhos tempos. Em todo caso, resolvi certificar-me. Eu sabia que estava agindo como um tolo, mas fui até o restaurante e disse olá ao sujeito. Era mesmo Allen. Ele me disse que estava por ali a fim de conseguir um aumento de salário com o velho Mirche. Pura perda de tempo!
Heath coçou a cabeça.
— Mais alguma coisa a respeito do tal Allen lhe vem à idéia?
— Eu estava pensando — disse Hennessey. — Sim... Ele se encontrou com um sujeito por volta da metade da tarde, aproximadamente às quatro horas. Era um homem miúdo, como Allen. Os dois foram para o lado oeste do restaurante e pouco depois se empenharam em animada discussão. Parecia que a qualquer instante iriam sair para os sopapos. Mas não lhes prestei muita atenção, e finalmente o tal sujeito foi embora. Tem mais alguma pergunta, sargento?
Vance chamou Heath de lado e lhe cochichou algumas palavras ao ouvido. Finalmente, o sargento fez um movimento indiferente de ombros e confirmou de cabeça. Depois, tornou a se virar para Hennessey.
— É só isto — falou ele. — Vá para casa e durma um pouco. Mas esteja de volta ao trabalho ao meio-dia.
Quando Hennessey se retirara, Markham, notando uma mudança repentina na maneira de se portar de Vance, franziu a cenho e inclinou-se para diante.
— Em que é que você está pensando, Vance? — perguntou ele.
— Na história de Hennessey. No meu conto de fadas de hoje à noite, não mencionei o nome da ninfa dos bosques. Ela se chama Gracie Allen. E Philip Allen é seu irmão. Ela me contou, muito francamente, que ele era lavador de pratos no Domdaniel. Ela até me contou que ele ia encurralar Mirche, hoje à tarde, no covil deste, para lhe pedir aumento de salário. E, quando a Senhorita Allen parou junto à minha mesa, esta noite, estava indo ao encontro do irmão, em alguma parte das dependências do restaurante.
Markham tornou a recostar-se no espaldar da poltrona, com uma risada curta.
— Talvez você possa encaixar tudo isso na fantasia que estava tecendo hoje cedo.
— É como você diz, meu velho amigo. — Vance não estava mais disposto a gracejar. — Sem dúvida, vou tentar fazer isso. Não me conformo com o fato de tantas coisas irrelevantes acontecerem em um lugar só e ao mesmo tempo. Deve haver alguma coisa unindo esses acontecimentos. Em todo caso, não estou disposto a continuar acordado, e por isso vou para casa dormir.
Vance caminhou até o fim da sala, no sentido do comprimento, depois voltou, de cabeça baixa. Em seguida, parou de chofre e sorriu, com um misto de seriedade e embaraço, mas bem resoluto.
— Escute aqui, Markham — falou ele. — Confesso que minhas idéias são muito vagas e que aquela bruxazinha em Riverdale pode ter-me enfeitiçado. Mas me sinto inclinado a descobrir o que puder a respeito da morte prematura de Philip Allen, e talvez assim amenizar o choque para a jovem. E preciso da sua ajuda para isso. Você não quer apoiar minhas excentricidades mais uma vez?
Markham suspirou, resignado.
— Farei tudo para me livrar de você a estas horas avançadas e impróprias.
— Já que é assim, encarregue-me do caso Allen, para eu brincar com ele como bem entender, mas, naturalmente, tendo a meu lado o eficiente sargento.
Markham hesitou.
— Que tal acha disso, sargento?
— Se o Senhor Vance tiver algumas idéias extravagantes — retrucou Heath, vigorosamente — prefiro trabalhar com ele.
— Está bem, sargento, então vá trabalhar com o nosso dramaturgo amador. — Depois, Markham virou-se novamente para Vance. — E, quanto a você — falou ele, com uma franqueza brincalhona — acho que é doido varrido.
— Vá lá. Mas não se esqueça de que o grande louco de hoje é o Prêmio Nobel de amanhã...

CAPITULO VIII
NO NECROTÉRIO
(Domingo, 19 de maio — 1:30 horas)

Vance, Heath e eu fomos primeiro ao apartamento de Vance. Lá, enquanto Vance trocava de roupas, vestindo um terno folgado, Heath deu alguns telefonemas necessários.
Interrogou Guilfoyle, durante algum tempo, a respeito de quaisquer pormenores pertinentes que Hennessey pudesse ter omitido, e deu ordens a Sullivan para ficar no Domdaniel até o meio-dia. Em seguida, telefonou para o Dr. Mendel. Achei, tanto pela sua expressão como pelas perguntas que fez, que Heath ficou intrigado e aborrecido com as informações que estava obtendo do jovem médico. Quando Vance voltou para junto de nós, o sargento, ao que parecia, continuava pensando no assunto.
— Este caso — falou ele — está começando a parecer ainda mais maluco do que a princípio, a história de Hennessey mostraria. O Dr. Mendel ainda acha que Allen poderia ter morrido de morte natural, mas descobriu um punhado de indícios de que ele poderia ter sido assassinado. Ele está transferindo a responsabilidade para outro, e mandou o cadáver sem demora para o necrotério, onde Doremus fará a autópsia. Mendel não se quer envolver no caso. Quando lhe perguntei a que horas ele achava que o sujeito morreu, procurou ganhar tempo, falando de rigidez de morte e de certa forma de espasmo.
— Espasmo cadavérico — contribuiu Vance.
— Sim, é isso. E, depois, começou a dizer que há muita coisa, em medicina, que ainda é desconhecida. Como se isso fosse novidade para mim!
— Sim, nós já sabemos isso de cor e salteado — suspirou Vance. — Mas, enquanto isso, você já avisou a mãe do rapaz que morreu?
— Sim, é preciso avisá-la. Pensei em mandar o Martin, que é muito jeitoso para essas coisas.
— Não... Oh, não, sargento — falou Vance. — Já estou vendo a careta que a pobre senhora fará se você mandar Martin. Nós vamos avisá-la pessoalmente.
— Está bem, chefe. — O sargento piscou um olho e sorriu. — O senhor pediu o caso, e agora ele é seu. Em todo caso, esse trabalho de identificação não levará muito tempo.
Descobrimos a residência da Senhora Allen na rua Leste, número 37, uma habitação modesta: um velho prédio de frente de tijolos à vista, que fora dividido em pequenos apartamentos. A própria Senhora Allen atendeu, quando tocamos a campainha. Achava-se completamente vestida e todas as luzes estavam acesas na sala mobiliada com simplicidade.
Era uma pessoa franzina, cuja presença lembrava a de uma ratinha, e muito mais idosa do que eu esperara que fosse a mãe da Senhorita Allen. Havia na sua expressão uma suavidade e algo muito vago — quase uma melancolia — como a de uma pessoa que envelhecera antes do tempo, ou em virtude de uma dor repentina ou de vicissitudes prolongadas.
A mulherzinha mostrou-se muito nervosa e assustada com nossa presença à sua porta; mas, quando o sargento lhe contou quem ele era, a mulher nos convidou imediatamente para entrarmos. Sentou-se muito rígida, como se para poder enfrentar algum golpe duro. Suas mãos achavam-se entrelaçadas com tanta força, que os nós dos dedos ficaram brancos.
Heath pigarreou forte. Apesar de toda a dureza da sua natureza de homem habituado a ver dramas, parecia muito condoído da situação da velhinha.
— Estou falando com a Senhora Allen? — começou ele. Em parte era uma interrogação, em parte uma afirmação.
A mulher fez um aceno de cabeça, trêmula.
— A senhora tem um filho chamado Philip?
A mulher limitou-se novamente a confirmar, com um aceno de cabeça. Mas as pupilas dos seus olhos se dilataram.
Heath mudou o peso para o outro lado do corpo e olhou um instante ao seu redor. Seu rosto tornou-se visivelmente mais suave. Até então, eu só vira o sargento profundamente comovido uma vez na vida: fora quando ele olhara dentro do armário vazio e deparara com o corpo inerte da pequena Madeleine Moffat, durante sua investigação do caso do Bispo Preto.
— A senhora tem ficado acordada até muito tarde da noite, não é, Senhora Allen? — perguntou ele, como se ainda não tivesse encontrado as palavras para amenizar o golpe que ia causar com a notícia.
— Sim, senhor detetive — disse a mulher, num fio de vox trêmula. — Sempre fico acordada, esperando minha filha, quando ela está fora. Mas não me importo com isso.
Heath assentiu com um aceno de cabeça e, com uma súbita torrente de palavras, abordou o assunto que nos levara ali.
— Bem... Sinto muito, mas tenho más notícias para a senhora — disse ele, em um repente. — O seu filho, Philip, sofreu um acidente. — Fez uma pausa, durante alguns instantes. — Sim, Senhora Allen, preciso contar-lhe... Ele está morto. Foi encontrado esta noite, no restaurante onde trabalhava.
A mulher agarrou a sua cadeira com força. Seus olhos se arregalaram e seu corpo oscilou um pouco. Vance foi rapidamente até junto dela e, segurando-a pelos ombros, firmou-a.
— Oh, meu pobre filho! — gemeu ela, várias vezes. Depois, olhou de um de nós para o outro, como se tonta. — Contem-me o que aconteceu.
— Ainda não sabemos ao certo, senhora — disse Vance, baixinho.
— Mas quando? — indagou ela, em voz sem inflexão. — Quando foi que isso aconteceu?
— Recebemos o telefonema por volta das onze horas, esta noite — contou-lhe Heath.
— Eu não sei o que fazer. — Ela ergueu o olhar, com uma súplica. — Os senhores me levarão para vê-lo?
— Foi justamente para isso que viemos aqui, Senhora Allon. Nós queremos que a senhora vá conosco — apenas por alguns minutos — à cidade, para identificá-lo. O Senhor Mirche já fez isso, naturalmente, mas nós pedimos à senhora para reconhecê-lo, apenas por formalidade legal. Depois, ajeitaremos tudo... Agora, foi Vance quem falou com a mulher.
— Sei que é uma tarefa muito triste para a senhora. Mas, como o sargento explicou, é uma formalidade necessária, e mais tarde isso facilitará tudo para a senhora e para sua filha. A senhora tentará ser forte, não é?
A velhinha fez um aceno afirmativo de cabeça, vagamente.
— Sim, preciso ser forte, a bem da Gracie.
Não pude deixar de admirar a fortaleza de espírito dessa mulherzinha frágil. E, quando ela se levantou, resolutamente, para vestir o casaco e colocar o chapéu, minha admiração por ela aumentou mais ainda.
— Vou demorar apenas o tempo necessário para deixar um bilhete para minha filha — falou ela, desculpando-se, quando estava pronta para sair conosco. — Ela ficaria preocupada, se chegasse em casa e não me encontrasse aqui.
Ficamos esperando, enquanto ela arranjava um pedaço de papel. Vance lhe ofereceu o seu lápis. Então, com mão trémula, ela descreveu algumas palavras e deixou o papel bem à vista, em cima da mesa.
A caminho da cidade, a mulher não falou, mas ficou ouvindo mansamente as instruções e sugestões do sargento.
Quando entramos pela porta do elevador do necrotério municipal, na rua 29, a mulher levou as duas mãos ao rosto e murmurou algumas palavras, como uma oração, acrescentando, em voz mais alta:
— Oh, meu pobre Philip! No fundo, ele era um rapaz tão bonzinho...
Heath pegou-a pelo braço, de forma protetora, e levou-a solicitamente para a sala nua do porão. A cena acabou não sendo tão medonha quanto eu imaginara que fosse. A dolorosa obrigação da mãe de Gracie Allen terminou no instante em que Heath a fez parar diante da forma inerte que fora tirada de uma gaveta do refrigerador. Seu sofrimento terminou depressa e de modo misericordioso.
Após um olhar momentâneo, ela se virou para o outro lado, com um soluço abafado, perdeu os sentidos e escorregou para o chão.
O sargento, que estivera observando a mulher atentamente, desde a hora em que saíramos do elevador, pegou-a rapidamente nos braços, carregando-a para a sala de recepção, mal iluminada, onde a depositou em um sofá de vime. O rosto da mãe de Gracie apresentava-se lívido e sua respiração era fraca, mas, depois de alguns minutos, ela começou a se mover debilmente. Depois, com a onda de sangue às faces e com o umedecimento da pele, que acompanham a reação de quem desmaia, veio uma torrente de lágrimas.
Enquanto ela chorava livremente por alguns instantes, Heath puxou uma cadeira e sentou-se diante da mulher.
— Eu sei, Senhora Allen, — disse ele — que isso deve ser muito doloroso para a senhora, mas nós precisamos ter cuidado em casos como este. É a lei. Não poderíamos deixar que se cometessem erros a respeito. E a senhora não quereria que nós cometêssemos erros, não é?
— Oh, isso seria horrível. — Sua mão moveu-se lentamente sobre seus olhos, como se para afastar alguma visão horripilante.
— Claro, eu sei... — murmurou o sargento. — É por isso que a senhora tem de nos perdoar por sermos um tanto desumanos.
— Quando — perguntou ela, como alguém que não lhe tivesse ouvido as palavras — quando foi que o pobre rapaz...?
— Isso é outra coisa que tenho de lhe contar, Senhora Allen. — Heath interrompeu sua pergunta inacabada. — É que não poderemos deixar que a senhora leve imediatamente seu filho. O médico ainda não tem certeza de que foi que ele morreu, e o médico precisa certificar-se. Isso é tanto em seu benefício como no nosso. Portanto, temos de ficar com ele ainda por um dia ou talvez dois.
A mulher moveu a cabeça para cima e para baixo, tristemente.
— Sei o que o senhor quer dizer — falou ela. — Um dia, um sobrinho meu morreu em um hospital... — E ela deixou a frase incompleta e acrescentou: — Sei que posso confiar nos senhores.
— Sim, Senhora Allen — garantiu-lhe Vance. -— O sargento não demorará mais tempo do que o necessário. É preciso cuidar desses assuntos de forma legal e com todo cuidado. Prometo comunicar-lhe pessoalmente logo que o assunto fique resolvido... Além disso, terei muito prazer em ajudá-la e à sua filha de todas as outras formas que eu puder.
A mulher virou-se lentamente para Vance e estudou-o um instante. Uma expressão de confiança lhe transpareceu nos olhos.
— Minha filha — começou ela, baixinho. — Quero pedir-lhe uma coisa, em benefício dela. Isso significará tanto para ela e para mim, no momento. Por favor, eu lhe peço, não conte a minha filha ainda, o que houve com Philip. Vamos deixar para quando ela precisar mesmo saber, e então quero ser eu a lhe contar... Ela ficaria preocupada com coisas que, talvez, não sejam nem um pouco verdadeiras. Ela tem uma imaginação muito viva — herdada de mim — creio eu. Por que não deixar que ela tenha mais um dia, talvez mais dois dias, de felicidade? Só até que saibam o que realmente houve com meu filho...
Era evidente que o pedido da mulher fundava-se na desconfiança de que seu filho tivesse sido assassinado, e ela temia que uma dúvida semelhante pudesse torturar também à sua filha.
— Mas, Senhora Allen, — perguntou Vance — se guardarmos segredo deste assunto durante algum tempo, como é que a senhora vai explicar à sua filha a ausência prolongada do irmão dela? Sem dúvida, ela ficará preocupada com isso.
A Senhora Allen sacudiu a cabeça.
— Não. Philip costuma ficar fora de casa, com freqüência, e às vezes durante vários dias. Hoje ele disse que talvez saísse do emprego do restaurante e talvez fosse embora da cidade. Não, Gracie não suspeitará de nada.
Vance olhou para Heath, com uma indagação no olhar.
— Acredito, sargento, — falou ele — que seria humano e prudente atender ao pedido da Senhora Allen.
Heath concordou com um aceno vigoroso de cabeça.
— Sim, também acho, Senhor Vance. Creio que se pode dar um jeito nisso.
Um olhar de compreensão passou entre os dois e então Vance tornou a se dirigir à Senhora Allen.
— Nós temos muito prazer em lhe fazer essa promessa, senhora.
— E não aparecerá nenhuma notícia a respeito nos jornais? — indagou ela.
— Acho que isso também se pode arranjar — prometeu Vance.
— Obrigada — disse a Senhora Allen, com simplicidade. Nesse instante, um auxiliar entrou na sala e fez um sinal ao sargento, que se levantou e dirigiu-se para onde ele se achava. Os dois conversaram um pouco e saíram juntos por uma porta lateral. Alguns minutos depois, o sargento voltava e enfiava alguma coisa no bolso.
A Senhora Allen recuperara um pouco o seu autodomínio, e, quando o sargento veio novamente para junto de nós, ele sorriu para ela, para encorajá-la.
— Acho que já podemos levá-la de volta à sua casa. Levamos a Senhora Allen de volta ao seu apartamentozinho, de carro, e lhe demos boa noite.
Alguns minutos depois, nós três fomos à biblioteca de Vance. Eram duas horas e meia da madrugada.
— É uma mulherzinha estranha — murmurou Vance, enquanto servia um copo de conhaque para cada um de nós. — E é, também, de uma notável bravura. Não tive nenhuma preocupação pelo fato de a deixarmos sozinha na casa dela. Resistiu melhor do que eu esperava, depois de receber uma notícia tão chocante.
— Tenho conhecido muitas mulheres miúdas como aquela — comentou Heath — que são capazes de suportar golpes duros muito melhor do que um marmanjo de dois metros de altura.
— Sim, realmente... Não sei se seu esforço para poupar a filha será tão bem sucedido quanto ela espera. Gracie Allen não é nenhuma jovem comum... É sagaz, apesar da sua vivacidade estonteante.
— A velhinha facilitou tudo para nós — observou o sargento.
Vance confirmou, com um aceno de cabeça, enquanto bebericava o seu conhaque.
— Exatamente. Era justamente nisso que eu estava pensando, sargento. Não precisamos ter nenhuma preocupação a respeito de interferências até que o relatório do Dr. Doremus sobre a morte de Philip fique pronto. A Senhora Allen, sem dúvida, não nos apressará, pois acho que ela ficará agradecida pelo fato de termos poupado uma dor mais prolongada à sua filha. E, sem dúvida, Mirche achará preferível guardar sigilo sobre o acontecido... Ele não deseja nenhuma publicidade negativa relacionada com o seu restaurante... Quer fazer tudo que puder para manter o caso em segredo o tempo máximo que puder, sargento?
— Finalmente, o senhor está-me pedindo para fazer alguma coisa fácil — sorriu Heath. — Direi aos rapazes lá do Departamento de Homicídios para guardarem sigilo; e o senhor poderá investigar dois dias inteiros, sem que ninguém o importune.
Vance sorriu, aparentemente tranqüilo, mas ainda estava preocupado.
Heath acabou de tomar o seu conhaque e acendeu um charuto comprido e preto.
— A propósito, Senhor Vance, aqui está uma coisa que talvez lhe interesse. — Enfiou a mão no bolso do paletó e tirou uma pequena cigarreira de madeira, com uma granulação peculiar e com quadrados alternados de verniz claro e escuro, que lhe dava um desenho destacado de xadrez. — Encontrei-a entre os pertences de Allen, no necrotério.
— Mas por que, meu caro sargento, este objeto me interessaria?
— Bem, não sei ao certo, senhor. — Heath falava quase em tom de desculpa. — Mas sei que o senhor tem idéias sobre o que ocorreu esta noite, e eu não tenho.
— Mas não há nada de extraordinário no fato de que a vítima fumava cigarros.
— Não é isso, senhor. — Heath abriu a cigarreira e apontou para o canto interno da tampa da mesma. — Há um nome gravado a fogo ali dentro... Parece trabalho de amador. E acontece que o nome é ”George”. E esse não é o nome da vítima.
De repente, a expressão do rosto de Vance mudou. Ele se inclinou para diante e, tirando a cigarreira da mão de Heath, examinou a gravação tosca feita a fogo.
— As coisas não deviam acontecer assim... Não deviam, mesmo, sargento. O homem que Gracie Allen realmente ama se chama George. George Burns, para ser mais exato. O mesmo rapaz de quem falei hoje na casa de Markham. E o tal Burns estava no Domdaniel na noite de hoje. E Gracie também se encontrava lá. Junto com seu vistoso acompanhante o tal Senhor Puttle. E também Philip Allen e o untuoso Mirche. E a misteriosa Dixie Del Marr. E o sinistro ”Coruja” Owen. E a sombra ameaçadora de um abutre.
— Que acha disso, Senhor Vance?
— Sargento... Oh, meu sargento! — suspirou Vance. — Que é que se pode deduzir de tudo isso? Exatamente nada. É por isso que estou envelhecendo de maneira tão visível diante dos seus olhos. É por isso que os meus cachos de cabelo estão ficando brancos.
— Como acha que aquela cigarreira foi parar no bolso de Philip Allen, Senhor Vance? — E Heath continuava obstinadamente a abordar o problema.
— Pare de me torturar! — implorou Vance.
Heath pegou a cigarreira, fechou-a, com um estalido, e a recolocou no próprio bolso.
— Vou descobrir — disse ele, resolutamente. — Se Philip Allen não morreu de morte natural, e se esta cigarreira pertence ao tal Burns, juro que lhe arrancarei a verdade, mesmo que tenha de inventar um recurso novo para conseguir isso. Este caso está-me deixando torturado também, Senhor Vance. Tudo nele é desencontrado; e não gosto de nada que não faça sentido... Hei de encontrar o tal rapaz, e vou achá-lo esta noite. Nesta altura o Domdaniel já está fechado e, portanto, talvez ele já tenha ido para casa... se é que tem casa. Irei primeiro à fábrica. Como foi que disse que era o nome da fábrica, Senhor Vance?
— Fábrica de Perfumes In-O-Scent — disse Vance, sorrindo. — É um nome um tanto desalentador para dar início à procura de um suspeito... Não é, sargento? Mas espero que esse nome seja simbólico.
— Suas palavras são profundas demais para mim, senhor — queixou-se Heath, seguindo rumo à porta. — No momento, só tenho de me preocupar em encontrar o tal Burns.
Bem, sargento, quando você encurralar o Senhor Burns, podemos ou eliminar parte do enigma ou então pô-lo em algum lugar onde a peça do quebra-cabeças encaixe. — Suspirou fundo. — Estarei à espera da sua perfumada comunicação amanhã cedo.


CAPITULO IX
PRESO SOB SUSPEITA
(Domingo, 19 de maio — 10:30 horas)


Já eram quase dez e meia, na manhã de domingo, quando Heath chegou ao apartamento de Vance. Este se levantara pouco antes e achava-se sentado na biblioteca, envergando um roupão de mandarim, tomando sua refeição matinal, bastante frugal, com café turco. Acabara de acender o segundo cigarro, quando o sargento foi introduzido lá, com uma aparência um tanto cansada mas triunfante.
— Finalmente, eu o agarrei! — anunciou ele, sem parar a fim de cumprimentar.
— Arre, sargento! — Vance saudou-o. — Sente-se e descanse um pouco. Precisa tomar um pouco de café, para recuperar as forças. Sem dúvida, você se refere a Burns. Mas não me diga que você ficou a noite inteira acordado, investigando.
Heath sentou-se pesadamente.
— Sim, a verdade é que eu fiquei. E, se não se importa, Senhor Vance, quer colocar mais alguma coisa nesse café? Preciso reanimar-me.
Vance atendeu-o, sorridente.
— Fale-me a respeito das suas andanças noturnas, sargento.
— Bem, a verdade, senhor, é que ainda não o agarrei — corrigiu Heath. — Mas estou à espera de um telefonema para cá a qualquer instante, a ser dado por Emery... Eu o deixei vigiando a casa da Senhora Allen, e...
— A casa da Senhora Allen?
— Sim! É para lá que o sujeito vai.
— Sabe de uma coisa? Essa história parece tremendamente complicada.
— Não foi tão complicada assim, Senhor Vance — respondeu Heath. — Foi só muito trabalhosa... Quando saí daqui, ontem à noite, fui diretamente à Fábrica In-O-Scent e agarrei o vigia noturno da firma. Ele me levou pessoalmente para dentro do escritório, com sua chave-mestra, encontrou o livro de registro de empregados e me mostrou o nome de Burns com o endereço de um hotel de segunda classe que ficava a poucos quarteirões de lá. Fui até o hotel. Mas parece que Burns já estivera lá, trocara de roupas e saíra novamente. O recepcionista noturno me deu essa informação. Aí, mostrei-lhe a cigarreira, e foi então que tive um pouco de sorte. O sujeito estava disposto a jurar que Burns tem uma cigarreira igual a ela. Muitas vezes Burns pára a fim de bater papo com ele, quando chega tarde ao hotel.
— E — intrometeu-se Vance — é muito provável que lhe ofereça um cigarro durante as caçoadas.
— É isso, senhor... Depois, telefonei a Emery, lá no Departamento de Homicídios, para ele ir até o hotel e ficar de vigia, no caso de Burns pretender voltar. Depois que Emery chegou lá, fui à minha casa, onde dormi umas duas horas.
— E acaso o seu auxiliar interrompeu o seu sono com a notícia do desaparecido experimentador de perfumes?
— Não. Burns não voltou para o hotel. Por isso, às oito horas fui pessoalmente até lá, a fim de ver se conseguia descobrir mais alguma coisa com o recepcionista de serviço. E fiquei sabendo que ele e Burns, e mais dois outros sujeitos, amigos de Burns, algumas vezes sentam-se à mesa, jogando cartas no saguão do hotel, à noite. Um deles mora do outro lado da rua, mas disse que não vê Burns há vários dias. Mas ele me disse para procurar o outro sujeito, um tal Robbin, de Brooklyn, pois muitas vezes Burns passa a noite na casa de Robbin, principalmente as noites de sábado. Por isso, fui a Brooklyn. Não telefonei para a casa de Robbin, porque não desejava alarmar Burns. Levei mais de uma hora a encontrar a casa, que fica a meia dúzia de quarteirões fora da linha principal, em Bensonhurst, um local afastado.
— Que horrível odisséia matinal, sargento! — E Vance estremeceu, pesaroso. — E que aconteceu quando finalmente você chegou à choupana de Emaú?
— Como já disse, o nome do sujeito é Robbin. E ele não mora em uma choupana... Bem, perguntei-lhe por Burns, e ele me disse que Burns fora lá às três horas da madrugada, dizendo que estava deprimido e precisava de companhia. Robbin também me contou que Burns estava nervoso e não dormiu muito bem. Levantou-se cedo e já fora embora antes de eu chegar lá... Que acha de tudo isso, Senhor Vance?
— Acho que isso é muito parecido com o amor florescente em estado de suspense — falou Vance. — Ah, a doce crueldade da mulher!
— Não sei a que ponto o senhor quer chegar — replicou o sargento. — Mas parece-me que o homem tem peso na consciência. Principalmente pelo fato de Burns não ficar em casa... De fugir, por assim dizer... e por se ocultar lá no fim do mundo que se chama Bensonhurst... Em todo caso, quando mostrei a Robbin a cigarreira, ele a reconheceu imediatamente. Não se lembrava bem se ela estivera em poder de Burns na noite anterior. Perguntei a Robbin se ele tinha alguma idéia do lugar para onde Burns teria ido. O homem riu e disse que sabia para onde Burns fora, mas que não estaria lá antes das onze horas. Portanto, vendo que ele ainda não podia ter voltado para Nova York, telefonei para Emery, no hotel onde Burns mora, para ele ir vigiar a casa dela...
— A casa da Senhora Allen?
— Sim. Robbin disse que era lá que Burns estaria às onze horas da manhã. E ele não tinha nenhuma dúvida a respeito disso. Achei que isto era razoável. O senhor mesmo me disse que Burns era namorado da moça. E ele poderia ter a idéia de pedir a Gràcie e à mãe desta que o ajudassem, antes que o descobrissem. Por isso, voltei para Nova York, o mais depressa que pude. E aqui estou, fazendo meu relatório ao senhor e esperando o telefonema de Emery.
— Extraordinário! — murmurou Vance. — Que zelo! Você encaixou muitos fatos, e até com habilidade, enquanto estive apenas cochilando. E suponho que você faça mais progressos quando receber o chamado de Emery e acosse o jovem Burns.
— Claro que farei isso! — E então o sargento acrescentou: — Estou começando a pensar que o senhor realmente teve uma boa idéia ontem à noite, na casa do procurador distrital.
— Não sei... Em todo caso, vou junto com você, sargento.
— E Vance seguiu rumo à porta do quarto de vestir.
— Imaginei que o senhor quereria ir. Mas há uma coisa que lhe preciso pedir: deixe que eu resolva este caso à minha maneira.
— Oh, perfeitamente, sargento. — E Vance deixou a biblioteca.
Vance acabara de voltar para a sala, completamente vestido, quando o telefone tocou. Heath saltou da sua cadeira e já estava com o fone ao ouvido antes que Currie, o velho mordomo de Vance, pudesse alcançar o aparelho.
Era esperado o telefonema de Emery, e, depois de ouvir alguns instantes, Heath respondeu ansiosamente.
— Sim, estarei aí dentro de cinco minutos. — Bateu o receptor do telefone no descanso e, esfregando as mãos, satisfeito, seguiu rumo à porta. — Vamos, Senhor Vance. Finalmente, estamos fazendo progressos...
Quando dobramos a esquina da avenida Lexington, vimos Emery de pé do outro lado da rua, defronte à casa da mãe de Gràcie. O homem deu alguns passos na nossa direção e fez um aceno significativo de cabeça.
Heath grunhiu para denotar que já vira o sinal e deu ordens a Emery para entrar lá conosco.
Foi Gràcie Allen quem atendeu à porta, desta vez, quando tocamos a campainha. Avistou logo Vance e jogou as mãos para o alto, em um exuberante gesto de encantamento.
— Oh, olá, Senhor Vance! Sua presença aqui é maravilhosa! — disse ela, com voz musical, aparentemente quase flutuando.
— Como foi que descobriu onde moro? O senhor deve ser um detetive muito hábil...
Ao notar a presença dos dois homens sérios que nos acompanhavam, ela parou subitamente de falar.
— Estes dois senhores são da polícia, Senhorita Allen — informou-lhe Vance. — E viemos aqui para...
— Ah, coitado! Eles o agarraram, não é? — exclamou ela, muito desalentada. — Não é horrível? — E seus olhos se arregalaram. — Mas, sinceramente, Senhor Vance, não fui eu quem o denunciou. Eu não faria uma coisa dessas, de forma alguma. Não foi à toa que lhe dei minha palavra de honra...
Heath e Emery foram entrando na sala, passando por ela, e Vance lhe estendeu a mão.
— Por favor, minha querida — disse ele, ansiosamente. — Só um instante. Viemos aqui tratar de um assunto bem diferente.
Gracie afastou-se e recuou, impressionada pelos seus modos sérios; e Vance seguiu os dois policiais sala adentro.
Sentado em um sofá na parede oposta estava o jovem George Burns, visivelmente aborrecido com nossa intromissão. Heath já atravessara a sala rapidamente, na sua direção.
— Seu nome é George Burns, não é? — perguntou ele, em tom áspero.
— Sempre foi — retrucou Burns, com um ressentimento sombrio. — Quem quer saber?
— Espertinho, hem? — E Heath remexeu nos bolsos e depois perguntou, em tom conciliatório: — Tem um cigarro aí, Burns?
Burns tirou do bolso automaticamente um maço de cigarros.
— Quê? — exclamou o sargento. — Você fuma e não tem cigarreira?
— Ora, claro que ele tem! — afirmou Gracie Allen, toda orgulhosa. — Eu própria lhe dei uma de presente, no Natal passado... E era muito bonita, toda enxadrezada...
Vance a fez silenciar, com um gesto peremptório.
— Sim — confessou Burns. — Eu tinha uma, porém eu... eu a perdi ontem. — Parecia confuso com a maneira como estava sendo interrogado.
— Talvez seja esta aqui. — Heath disse isso com ênfase ameaçadora, enquanto colocava a pequena cigarreira debaixo do nariz de Burns.
Este, assustado e intimidado, fez um aceno de cabeça, de modo débil. Pegando a cigarreira, segurou-a contra as narinas e cheirou-a várias vezes. Depois, ergueu o olhar para o sargento.
— Beije-me depressa!
— Quê?! — explodiu Heath.
— Oh — murmurou Burns, embaraçado. — Esse é apenas o nome de um perfume bem conhecido para lenços. A fórmula leva erva-cidreira, almíscar, junquilho e...
— Ah, e eu sei o que mais — ajudou a Senhorita Allen, ansiosamente. — Jasmim e angélica...
Burns ficou zangado.
— Ora, essa é a fórmula do Ano Bissextox.
— Alto lá! — berrou Heath. — Afinal de contas, o que está acontecendo aqui?
Vance estava rindo tranqüilamente, no íntimo. O sargento arrancou a cigarreira da mão de Burns e a recolocou no bolso.
— Onde foi que você perdeu a cigarreira, ontem? Burns remexeu-se no sofá, inquieto.
— Bem, eu não a perdi, exatamente. Eu apenas... Bem, eu apenas a emprestei a alguém.
— Então, você emprestou um presente de Natal que lhe foi dado pela sua namorada, hem?
— Bem, também não a emprestei. — Burns ficou confuso. — Encontrei-me com um sujeito, a quem ofereci um cigarro. Depois, tivemos uma pequena discussão e acho que ele se esqueceu de...
— Claro! Ele foi embora e levou a cigarreira — retorquiu Heath, com enorme sarcasmo. — E você se esqueceu de lhe pedir que a devolvesse e deixou que ele a guardasse... como um presentinho seu a ele. Ótimo... E quem era esse sujeito?
Burns remexeu-se uma vez mais.
— Bem, já que insiste em saber... Foi o irmão de Gracie.
— Claro que foi! Você é muito esperto, não é? — E então uma nova idéia surgiu na cabeça do sargento. — Isso deve ter acontecido nas proximidades do restaurante Domdaniel, e por volta das quatro horas da tarde.
— Mas como foi que o senhor soube? — perguntou Burns, espantado.
— Quem faz as perguntas sou eu — cortou Heath, em tom ríspido. — E não foi uma discussãozinha, como você disse. A coisa quase chegou às vias de fato, não foi mesmo? Você estava muito zangado por algum motivo, não estava?
Burns olhou fixamente para o sargento, desalentado, e depois para Gracie Allen.
— Oh, meu Deus, George! — exclamou a moça. — Você e Philip estavam brigando novamente. Vocês dois não passam de dois moleques brigões.
Heath rilhou os dentes.
— Não se envolva nisto, boneca.
— Oh! — riu a moça, acanhada. — Foi disto que o Senhor Puttle me chamou, ontem à noite.
Heath voltou-se novamente para Burns, que estava muito aborrecido.
— Por que você e Allen estavam discutindo?
O homem rolou os olhos, numa expressão vaga, como se tivesse medo de responder e como se receasse não responder. Finalmente, gaguejou:
— Era por causa de Gracie... por causa da Senhorita Allen. Parece que Philip não gosta de mim. Ele me disse para me afastar desta casa. E depois disse que eu não sabia vestir-me... Que eu não era elegante como o tal Puttle...
— Bem, eu também tenho alguma coisa a lhe dizer. E é uma coisa elegante...
Vance deu uma palmadinha rápida em um dos ombros do sargento e lhe cochichou alguma coisa.
Heath endireitou o corpo e, girando nos calcanhares, apontou para a moça.
— Vá para a outra sala, senhorita. Tenho algo a dizer a este rapaz a sós... Entende? A sós.
— Isso mesmo, Gracie. — Fiquei surpreso por ouvir a voz tranqüila da Senhora Allen. Ela estava de pé, timidamente, alojada em uma pequena abertura entre as portas corrediças, ao fundo da sala. Eu não sabia quanto tempo ela estivera ali. — Venha comigo, Gracie, e deixe estes senhores com George.
A moça não discutiu, e foi com a mãe para o quarto dos fundos, e as duas fecharam as portas ao passar.
— E agora, vamos às más notícias, meu jovem — recomeçou Heath, avançando ameaçadoramente rumo ao confuso Burns. Mas Vance tornou a interrompê-lo.
— Um instante, sargento. Senhor Burns... Por que ficou tão surpreso com o cheiro que havia na sua cigarreira?
— Eu não... Eu não sei, na verdade. — Burns franziu o cenho. — Não é um perfume comum, e há muito tempo não o tenho encontrado. Mas no restaurante, ontem à noite, eu o notei, e muito forte, no saguão da frente, quando eu ia entrando no salão do restaurante.
— Quem o estava usando?
— Oh, eu não poderia saber. Havia tanta gente lá... Vance pareceu satisfeito e, com um gesto, entregou o rapaz novamente ao sargento.
— Bem, aqui está a notícia ruim — disse Heath a Burns, em tom áspero e de excesso de autoridade. — Nós encontramos um sujeito morto, ontem à noite... e a sua cigarreira achava-se no bolso da vítima.
A cabeça de Burns saltou para cima, com um puxão, e uma luz de espanto e susto lhe apareceu nos olhos.
— Meu Deus! — disse ele, sem fôlego. — Quem... Quem fez isso?
Heath deu um sorriso cruel.
— Eu nem posso imaginar. Talvez você possa.
— Não foi... Philip! — e Burns ficou sem voz. — Oh, meu Deus... Sei que não está aqui hoje. Mas ele saiu da cidade... Juro que ele saiu. Ontem, disse-me que ia para outra cidade.
— Você é esperto, mas não o bastante, embora tenha sido bem habilidoso, tentando jogar a culpa em outra pessoa, com aquela história de perfume. — Heath fez uma pausa e depois tomou subitamente uma decisão. Fez um breve sinal a Emery. — Nós vamos levar este rapaz conosco — anunciou ele. — Vamos deixá-lo onde possamos alcançá-lo com facilidade.
Vance tossiu discretamente.
— Então, você vai prendê-lo sob suspeita, não é, sargento? Ou, talvez, como testemunha material.
— Não me importa que nome se dê a isso, Senhor Vance. Ele vai ficar quietinho em um lugar de onde não possa sair, pensando muito na vida, até que tenhamos o relatório do Dr. Doremus... É melhor pôr-lhe as pulseiras, Emery, até chegarmos à esquina e chamar o tintureiro.
Heath e Emery estavam levando o atônito Burns para a porta, quando Gracie Allen voltou correndo para a sala, depois de se libertar das mãos da sua mãe, que tentava segurá-la.
— Oh, George, George! Que aconteceu? Para onde eles vão levá-lo? Tive um pressentimento... Como quando uso minha mediunidade...
Vance chegou até junto dela e colocou as duas mãos nos seus ombros.
— Minha querida menina — falou ele, em tom consolador. — Por favor, creia em mim quando digo que você não precisa preocupar-se com coisa alguma. Não torne a coisa mais difícil para o Burns... Não quer confiar em mim?
A jovem deixou pender a cabeça e virou-se para a mãe. Os dois policiais, com Burns entre eles, já haviam saído da sala; e, quando Vance se virou e tornou a abrir a porta, a voz delicada da Senhora Allen se fez ouvir novamente.
— Obrigada, Senhor Vance. Tenho certeza de que Gracie confia no senhor... como eu confio.
A cabeça da moça estava apoiada no ombro da mãe.
Oh, mamãe — disse ela, fungando. — Não me importa nem um pouco o fato de
George não se vestir com tanta elegância quanto o Senhor Puttle.


CAPITULO X
UMA VISITA INESPERADA
(Domingo, 19 de maio — 12:00 horas)

Quando o carro da polícia chegou e o infeliz Burns ia entrando no veículo para ser levado, Vance lhe sorriu de maneira a encorajá-lo.
— Ânimo — falou ele, e depois ficou vendo o tintureiro afastar-se. Logo que o veículo sumiu de vista, Vance tomou um táxi e foi imediatamente para o apartamento do procurador distrital.
— Realmente, Markham — começou ele. — O sargento Heath é lógico demais. Em condições normais, eu receberia de bom grado a providência dele, mas neste caso preciso pedir a sua intervenção.
Em seguida, fez um resumo a Markham de todos os acontecimentos que tinham ocorrido desde que nós saíramos do seu apartamento, na noite anterior. A visita ao necrotério e a promessa à Senhora Allen; o fato de Heath ter descoberto a cigarreira e a sua busca a Burns, a noite inteira; a entrevista com o estarrecido jovem, quando ele foi encontrado; e, finalmente, a decisão de Heath de deixar Burns preso até chegar o relatório de Doremus.
Markham ouviu atentamente, mas sem entusiasmo.
— Acho que, no todo, Heath fez um serviço muito inteligente. Não compreendo onde ou por que você deseja que eu intervenha.
— Burns é inocente — garantiu Vance. — E sou inflexível na minha crença. Portanto, desejo que você telefone para o distrito policial e diga a Heath para libertá-lo. Na verdade, Markham, insisto em que você faça isso. Mas, primeiro, desejo que o sargento traga o rapaz aqui, se você não se opuser a que ele venha à sua casa. Desejo que ele entenda claramente que uma das condições para a sua libertação é o sigilo absoluto, por enquanto, a respeito do fato de que Philip Allen está morto no necrotério. Foi isso que prometemos à Senhora Allen, e Burns precisa cooperar conosco, ao ser libertado. Por favor, faça logo isto, meu caro amigo.
— Você conhece o tal Burns? — indagou Markham.
— Eu só o vi duas vezes. Mas tenho meus caprichos, sabe?
— O que é um eufemismo como outro qualquer para o seu atual desequilíbrio mental... Por que deseja que esse rapaz seja libertado?
— Estou encantado pela ninfa dos bosques — sorriu Vance Markham uniu os lábios, aborrecido.
— Se eu não o conhecesse, diria que...
Ora, vamos, seja bonzinho e telefone logo ao Heath.
Markham levantou-se, resignado: ele conhecia Vance há muito tempo e sabia que, por trás dos seus gracejos, havia muitas vezes seriedade. Depois, foi rumo ao telefone.
— O caso é seu — falou ele — se é que há um caso, e você pode dirigi-lo à sua vontade. Já tenho minhas próprias dificuldades.
O sargento mal havia chegado ao distrito policial, quando Markham telefonou e lhe deu ordens de acordo com o pedido de Vance.
Quinze minutos depois, Heath entrava escoltando Burns na biblioteca do procurador distrital. Vance descreveu cuidadosamente as circunstâncias a Burns e lhe exigiu uma promessa formal de não revelar a ninguém a morte de Philip Allen, impressionando-o com relação à própria Gracie Allen dentro do assunto.
George Burns, com inconfundível sinceridade, prontamente concordou com a exigência, e o sargento lhe disse que estava livre para se retirar.
Mas, quando ficamos a sós, Heath desabafou.
— E depois de todo o trabalho que tive ontem à noite! — queixou-se ele, amargamente. — Encontrar a cigarreira; perder meu sono e fazer um trabalho difícil hoje cedo; amarrar aquele sujeito e levá-lo para onde eu o queria... E foi tudo idéia sua, Senhor Vance. E, agora, quando lhe encontro alguma coisa palpável, que faz o senhor? Manda soltar o passarinho!
E mascou furiosamente seu charuto.
— Mas, se pensa que não vou mandar vigiar aquele sujeito, então não é muito esperto, Senhor Vance. Mandei o Tracy para cá, antes de vir, e ele vai seguir o Burns a partir do instante em que ele sair deste prédio.
— Ora, mas é claro que eu esperava que você fizesse exatamente isso. — E Vance deu de ombros, de maneira agradável.
— Mas, por favor, sargento, não fique com uma impressão errônea do meu capricho de libertar o jovem misturador de perfumes. Vou-me empregar a fundo no sentido de resolver este caso intricado. E esperarei o relatório do médico legista, ansiosamente... A propósito, em meio à sua roda-viva de atividade, você ficou sabendo de alguma coisa a respeito da autópsia?
— Claro que fiquei — falou Heath. — Telefonei ao Dr. Doremus pouco antes de sair do posto policial. Ele brigou comigo, como sempre, mas disse que iniciaria a autópsia logo depois do almoço, e que logo à noite o relatório estaria pronto.
— Ótimo — suspirou Vance. — Eu o cumprimento, sargento, e peço desculpas por ter atrapalhado o seu plano, admirável mas inútil, de privar o Senhor Burns da sua liberdade. Mas espero que isso não distraia sua atenção do trabalho de proteção da vida de Markham contra a ameaça de Pellinzi.
— Nada me vai distrair nem me impedir que me preocupe com o Abutre e com o Senhor Markham — garantiu Heath. — Não se preocupe! Aquele escritório está sendo vigiado dia e noite, e há auxiliares valentes meus, prontos para agarrarem aquele facínora se ele aparecer.
O sargento retirou-se alguns minutos depois, e Vance e eu aceitamos o convite de Markham para ficar para o almoço.
Eram quase três horas quando nós voltamos para o apartamento de Vance. Currie veio ao nosso encontro na porta, mostrando-se muito preocupado.
— Estou horrivelmente perturbado, patrão — disse ele, em voz baixa. — Há uma jovem incrível aqui à sua espera. Tentei firmemente mandá-la embora, senhor, mas não consegui fazê-la compreender. Ela era muito resoluta e muito ousada, patrão. — Deu uma rápida olhada para trás. — Eu a tenho estado observando muito cuidadosamente, e tenho certeza de que ela não tocou em nada. Espero, senhor...
— Você está perdoado, Currie — Vance interrompeu as desculpas do preocupado velhote e, entregando-lhe o chapéu e a bengala, foi diretamente para a biblioteca.
Gracie Allen estava sentada na enorme espreguiçadeira de Vance, e estava sumida no imenso estofamento de veludo. Quando saltou de pé a fim de saudar Vance, foi sem a exuberância de antes.
— Olá, Senhor Vance — disse ela, em tom solene. — Aposto que não me esperava ver. E também que o senhor não sabe como descobri o seu endereço. E o velhote rabugento que me recebeu na porta também não me esperava ver. Mas ainda não lhe contei como descobri seu endereço. Foi da mesma forma usada para descobrir seu nome... Lendo-o no seu cartão de visitas. Embora na verdade eu não tenha vontade de ir buscar aquele vestido novo, amanhã. Talvez eu não vá. Isto é, talvez eu espere até saber que não aconteceu nada ao George...
— Alegra-me muito que você tenha sido esperta e tenha descoberto meu endereço. — E o tom de voz de Vance era suave. — E também estou encantado pelo fato de você continuar usando o perfume de cidra.
— Ah, sim! — E ela olhou para Vance, agradecida. — A princípio, eu não gostava muito deste perfume, mas, agora, não sei por que... eu o adoro! Não é engraçado? Mas creio na mudança de idéia dos outros. Suponha que...
— Sim — disse Vance, com um movimento de cabeça e um sorriso leve. — Só a fantasia tem consistência: os duendes e as fadas existem mesmo...
— Mas eu não creio em duendes... Isto é, não tenho acreditado desde meus tempos de criança.
— Não, claro que não.
— E, quando descobri que o senhor morava tão perto de mim, achei isso muito conveniente, pois eu tinha de lhe fazer um punhado de perguntas importantes. — Ela olhou para Vance, de baixo para cima, como se para ver qual a reação dele às suas palavras. — E, ah... eu descobri algo mais a seu respeito! Seu nome tem cinco letras... como o meu e o do George.
É o destino, não é? Se o senhor tivesse seis letras, talvez eu não tivesse vindo. Mas, agora, sei que tudo vai acabar bem, não vai?
— Sim, minha cara — disse Vance, com um aceno afirmativo de cabeça. — Tenho certeza de que vai.
De repente, ela deixou escapar o fôlego, como se tivesse afastado com sucesso um ponto controvertido.
— E, agora, quero que o senhor me conte exatamente por que aqueles policiais levaram o George. Estou muito assustada, preocupada e aborrecida, embora o George tenha-me telefonado, dizendo que estava bem.
Vance sentou-se de frente para a moça.
— Você não precisa se preocupar por causa do Senhor Burns — começou ele. — Os homens que o levaram hoje cedo cometeram a tolice de achar que havia circunstâncias suspeitas ligadas com a pessoa dele. Mas tudo se esclarecerá dentro de um dia ou dois. Por favor, confie em mim.
Havia completa confiança no olhar franco da jovem.
— Mas deve ter sido alguma coisa muito séria o que fez aqueles homens irem hoje à minha casa e aborrecerem tanto o George.
— Mas — explicou Vance — eles apenas pensavam que era séria. A verdade, minha amiga, é que um homem foi encontrado morto, ontem à noite, no Domdaniel e...
— Mas que é que o George poderia ter tido a ver com isso, Senhor Vance?
— Ora... Na verdade, tenho certeza de que ele não teve nada a ver com isso.
— Então, por que os policiais agiram de maneira tão esquisita a respeito da cigarreira que dei a George? Afinal, como foi ela parar nas mãos deles?
Vance hesitou vários instantes. Depois, pareceu ter tomado uma decisão quanto até que ponto esclareceria a moça.
— Para ser franco — explicou ele, com paciência — a cigarreira do Senhor Burns foi encontrada no bolso do homem morto.
— Oh! Mas o George não daria a outra pessoa um objeto que eu lhe dei de presente...
— Como eu já disse, acho que foi tudo um engano lamentável.
A jovem olhou para Vance durante longo tempo, com um olhar perscrutador.
— Mas suponha, Senhor Vance... Suponha que o tal homem não tenha morrido de morte natural. Imaginemos que ele tenha sido... bem, que tenha sido assassinado, como o senhor disse que matou aquele homem em Riverdale, ontem. E suponha que a cigarreira do George tenha sido encontrada no bolso dele. Tenho lido, nos jornais, que algumas vezes a polícia prende inocentes, julgando-os culpados de certos crimes, e de como... — ela parou, de repente, e levou as mãos à boca, horrorizada.
Vance inclinou-se e pousou a mão no braço da moça.
— Por favor, minha querida criança! — disse ele. — Você está recomeçando a acreditar em duendes. E não deve. Duende é coisa que não existe, é pura imaginação. Nada vai acontecer ao Senhor Burns.
— Mas podia acontecer! — E com isso mostrou que seus temores estavam apenas ligeiramente amenizados. — Não compreende? Podia! E o senhor tem de ser um detetive muito bom, se alguma coisa assim acontecer!
Havia uma expressão amedrontada e suplicante nos olhos
da moça.
— Hoje de manhã, depois da saída de George, fiquei terrivelmente preocupada. E sabe o que foi que fiz? Fui à casa de Delpha, conversar com ela. Eu sempre procuro Delpha quando estou em apuros... e algumas vezes até quando não estou. E ela sempre diz que se alegra em me ver, pois gosta da minha presença. Acho que é porque eu sou médium, uma médium forte. E a presença de médiuns faculta a concentração, sabe? A casa de Delpha é exótica. A princípio, dá arrepios na gente. Há cortinas pretas e compridas, penduradas por toda a casa, e a gente não vê janelas. E existe só uma porta. E, quando as cortinas pretas são puxadas, fechando a porta, a pessoa sente como se estivesse em algum lugar muito distante, em companhia de Delpha e dos espíritos que lhe contam coisas.
Gracie olhou ao seu redor e estremeceu ligeiramente.
— Além disso, nas cortinas pretas de Delpha existem grandes gravuras de mãos, com inúmeras linhas. E há também sinais esquisitos, que Delpha chama de símbolos. Em cima de uma mesa, existe uma bola grande de vidro e outra, pequena. E mapas dos astros, com palavras engraçadas ao redor, que significam alguma coisa, quando a gente é um caranguejo, um peixe ou uma cabra, ou coisas assim.
— E que foi que Delpha lhe disse? — perguntou Vance, com bondoso interesse.
— Ah! Eu não lhe contei, contei? — E o rosto da jovem se iluminou. — Delpha mostrou-se muito misteriosa e pareceu terrivelmente surpresa quando eu lhe falei a respeito de George. Ela me fez as perguntas mais esquisitas: todas sobre os homens que foram à minha casa e a respeito da cigarreira... Era como se ela estivesse tentando arrancar-me revelações. Acho que ela estava procurando ler meu pensamento, porque minha mente vibrava. E Delpha sempre diz que ajuda muito quando uma pessoa está bem concentrada ao consultá-la. Em todo caso, ela disse que nada vai acontecer ao George... como o senhor mesmo disse. Só que ela falou que eu preciso ajudá-lo...
A moça olhou ansiosamente para Vance.
— O senhor me ajudará a tirar o George de apuros, não ajudará? Mamãe falou que o senhor lhe disse que ia fazer tudo que pudesse por nós. Sei que posso trabalhar de detetive, se o senhor me ensinar. É que... Preciso ajudar o George, entende?
Intrigado e perturbado pelo pedido sincero da jovem, Vance levantou-se, pensativo, e caminhou até à janela. Finalmente, voltou para junto da sua cadeira e tornou a sentar-se.
— Então, você quer ser detetive! — disse ele, alegremente.
— Acho que é uma excelente idéia, e vou dar-lhe toda a ajuda que puder. Nós dois vamos trabalhar juntos; você será minha assistente, por assim dizer. Mas você precisa trabalhar muito. E precisa não deixar ninguém suspeitar que você está fazendo serviço de detetive... Essa é a primeira regra.
— Oh, é maravilhoso, Senhor Vance! É exatamente como em um romance policial. — E a moça ficou imediatamente animada.
— Mas, agora, diga-me o que preciso fazer para ser detetive.
— Muito bem — começou Vance. — Vejamos... Primeiro, é claro, você precisa anotar tudo que possa ajudar o seu trabalho. Pegadas em lugares suspeitos são um bom ponto de partida. Quando alguém caminha pisando em terreno macio, naturalmente deixa pegadas. E então, medindo essas pegadas, pode-se dizer que número de sapatos a pessoa usa...
— Mas suponha — interrompeu a jovem — que a pessoa estivesse usando sapatos de número maior, apenas para nos enganar?
Vance sorriu com admiração.
— Esta, minha criança — disse ele — é uma observação muito hábil. Já houve quem fizesse exatamente isso. No entanto, não creio que nos precisemos preocupar com essa questão, por enquanto... Agora, prosseguindo, o detetive deve sempre examinar os blocos de escrivaninha, à procura de pistas. Geralmente, o que é escrito em um bloco, na folha de cima, pode ser lido quando se leva a folha a um espelho.
Vance demonstrou isso para ela, e a jovem ficou tão fascinada como se estivesse vendo um mágico trabalhar.
— Além disso, outro ponto muito importante são os cigarros. Se o detetive encontra uma ponta de cigarro, talvez consiga dizer quem o fumou. Deve começar procurando uma pessoa que fuma a tal marca de cigarro. E algumas vezes a ponta de cigarro costuma revelar o fumante. Quando há batom na ponta de cigarro, então já se sabe que ele foi fumado por uma mulher que usava batom.
— Ah! — E de repente a moça ficou desolada. — Talvez, se eu tivesse examinado cuidadosamente o cigarro que queimou meu vestido, ontem, eu pudesse dizer quem o jogou.
— É possível — retrucou Vance, alegremente. — Mas há muitas outras maneiras de tirar a limpo as suspeitas que a gente tenha a respeito das pessoas. Por exemplo, se alguém tivesse ido cometer um crime em uma casa onde houvesse um cão vigia, e se o detetive soubesse que o cão não latiu com esse alguém, então poderia concluir que o criminoso era amigo do cachorro. Como é sabido, os cães não latem para as pessoas amigas.
— Mas suponha — interrompeu a jovem — que a futura vítima tivesse em casa não um cão, mas sim um gato, ou mesmo ... ou mesmo um canário. Que é que o detetive deve fazer, nesse caso?
Vance não pôde deixar de rir.
— Nesse caso, o detetive tem de procurar outras coisas que identifiquem o culpado...
— É aí que as pegadas vêm a calhar, não é? Mas há muita gente que usa o mesmo número de sapatos. Os meus servem perfeitamente nos pés da minha mãe. E, além disso, os dela servem em mim.
— Ainda há outras maneiras...
— Conheço uma! — interrompeu ela, triunfante. — Que tal o perfume? Por exemplo, se encontrássemos no local do crime uma bolsa de mulher, e essa bolsa cheirasse Frangipanni... e não uma que usasse Gardênia... Mas eu não seria muito hábil nisso, o senhor seria? Estou sempre confundindo os cheiros de perfumes. Isso deixa o George furioso. Mas ele seria simplesmente maravilhoso na hora de reconhecer o perfume de um criminoso. George é capaz de reconhecer imediatamente qualquer espécie de perfume e dizer de onde é que ele vem, e de falar tudo a respeito do mesmo... Mesmo quando não consigo sentir o cheiro de nada. Ele tem uma espécie de dom inato... Como quando ele cheirou a cigarreira, hoje de manhã... Mas, por favor, prossiga, Senhor Vance.
Realmente, Vance prosseguiu, durante mais de meia hora, ensinando-lhe cuidadosamente as coisas que, segundo ele sabia, interessariam à moça. Não havia nenhuma dúvida quanto à sua compreensão e simpatia, quando, na hora em que a jovem estava para ir embora, ele telefonou para Currie e lhe deu instruções bem claras.
— Esta moça, Currie, — falou ele — deve ser recebida sempre que vier aqui. Se eu estiver fora e ela quiser esperar-me, dê-lhe as boas vindas e ponha-a à vontade aqui.
Quando a Senhorita Allen se retirou, Vance me disse:
— A impressão de ter em quem se apoiar fará muito bem àquela pobre mocinha, no momento. Ela está muito infeliz e bastante assustada. A nova ocupação que ela imagina ter será para ela um tônico provisório, mas necessário... Desconfio, Van, de que estou ficando um tanto sentimental com o correr dos anos. Estou amolecendo com a idade, como as uvas da França.
E bebericou lentamente o seu conhaque.


CAPITULO XI
FOLCLORE E VENENOS
(Domingo, 19 de maio — 21:00 horas)

Naquela noite, Markham telefonou a Vance, às nove horas. Este ouviu atentamente durante vários minutos, e enquanto ouvia ia franzindo profundamente a testa, com uma expressão intrigada. Finalmente, pendurou o fone e virou-se para mim.
— Nós vamos ao apartamento de Markham. Doremus está lá. Isso não me agrada... Isso não me agrada nem um pouco, Van. Doremus telefonou a Markham, há poucos instantes, cheio de novidades e de mistério. Não sabia onde Heath se achava e, em todo caso, queria mesmo antes falar com Markham. Este deve ter localizado o mal-humorado sargento, e agora deseja que eu também vá até lá. Só um desastre cataclísmico poderia agitar o irascível Doremus o bastante para que ele fosse ao encontro do procurador distrital, em vez de apenas entregar seu relatório oficial. É muito intrigante...
Uns quinze ou vinte minutos depois, um táxi nos deixava bem defronte à casa de Markham. Um chamado em voz áspera nos fez parar no instante exato em que íamos entrando no prédio, e o sargento Heath surgiu, andando depressa.
— Acabo de receber o recado do procurador distrital, lá em casa, e vim correndo para cá — disse Heath, ofegante. — Acho que é uma coisa esquisita, Senhor Vance.
O mordomo abriu-nos a porta, e depois nós o seguimos para a biblioteca, onde Markham e o Dr. Doremus nos aguardavam.
O médico apertou os olhos e olhou para Heath com expressão malévola.
— Só poderia, mesmo, ser um dos seus casos — roncou ele, sacudindo um dedo na direção do sargento, com ar acusador. - Por que você nunca pode arranjar um assassinato simples e fácil, em vez de me trazer esses casos cabulosos? — E depois acenou a Vance, em uma fraca tentativa de parecer alegre.
Doremus era um homem pequeno e ardente, que dava mais a impressão de ser um rabugento corretor da Bolsa de Valores do que um cientista altamente eficiente.
— Estou ficando farto desses seus assassinos complicados — prosseguiu ele, falando com o sargento. — Além disso, desde o meio-dia que eu não como. Não posso comer direito nem aos domingos. Você e os seus cadáveres malucos!
O sargento sorriu e ficou calado. Ele conhecia Doremus há muito tempo, e desde então habituara-se a aceitar suas maneiras excêntricas e algumas vezes ranzinzas.
— Não, doutor — interrompeu Vance, em tom apaziguador. — O pobre do sargento é apenas um espectador inocente... Afinal de contas, qual é a dificuldade?
— O senhor também está trabalhando neste caso, hem? — retorquiu Doremus. — Eu já devia saber! Êi, o senhor não gosta de ver pessoas mortas a tiros ou a punhaladas, em um crime limpo e bonito, em vez de serem envenenadas, para que eu tenha de trabalhar o tempo todo?
— Envenenadas? — perguntou Vance, curioso. — Quem foi envenenado?
— O cadáver de que estou falando — gritou Doremus. — O sujeito que Heath me entregou para autopsiar. Esqueci o nome dele.
— Philip Allen — informou o sargento.
Pois bem, não importa. Ele estaria tão morto quanto está, qualquer que fosse o seu nome. E o que me deixa mais furioso é que não sei mais, sobre o que o matou, do que se ele fosse um zulu morto em Isipingo.
— O senhor falou em veneno, doutor — disse Vance, calmamente.
— Falei, sim — disse Doremus, em tom áspero. — Mas não sei que espécie de veneno. Não confere com nenhum dos meus livros sobre Toxicologia.
— Na verdade, isso não parece exatamente científico, sabe? — sorriu Vance. — Espero que não estejamos retrocedendo ao misticismo.
— Oh, é bastante científico — insistiu Doremus. — O veneno — seja qual for — foi, sem dúvida, absorvido pela derme ou pela membrana mucosa. Poderia ter sido um sem-número de venenos. Mas não consegui nenhuma reação clara com as provas de laboratório que geralmente dão resultados evidentes. Poderia ser uma combinação de drogas. — O médico grunhiu. — Contudo eu descobrirei o que é. Mas não esta noite. Talvez leve um dia. Nunca deparei com uma autópsia tão complicada.
— É fácil crer nisso de imediato — falou Vance. — Do contrário, o senhor não estaria aqui esta noite.
— Talvez eu não devesse estar. Mas este sujeito cacete — e apontou para Heath — não cessou de dizer que o caso era muito importante e que talvez tivesse relações com a segurança do Senhor Markham. Pareceu-me um logro, mas achei melhor dizer a ele que não podia fornecer um relatório definitivo esta noite. Ele que se preocupe... Tenho fome.
— Que é que tenho eu a ver com isto, sargento? — E o tom de voz de Markham continha uma censura aguda.
— O cadáver não estava no escritório de Mirche, chefe? — defendeu-se Heath, de forma agressiva. — E é lá que tenho estado alerta ao aparecimento de uma ameaça à sua vida... E Hennessey está de vigia lá, e tudo — concluiu ele, desajeitadamente, enquanto Vance o interrompia de chofre com um aceno de mão.
— Nós agradecemos o seu trabalho e a sua gentileza, doutor — falou Vance. — O senhor tem certeza absoluta de que Philip Allen não podia ter morrido de morte natural?
— Não, a não ser que a ciência médica tenha ficado completamente maluca — retrucou Doremus, de forma enfática. — Aquele sujeito foi envenenado... Disso tenho certeza. Não admira que o jovem Mendel tenha ficado desanimado com o caso. O que provocou a morte da vítima foi não só um veneno, mas ainda um veneno rápido e poderoso, capaz de produzir efeito imediato. Mas a droga atuou de maneira totalmente diferente daquelas cujo efeito estou habituado a ver nas vítimas cuja autópsia tenho feito.
— Mas, doutor — insistiu Vance. — O senhor deve ter alguma idéia do que tenha sido.
— Ora, tenho muitas idéias. É justamente essa a minha dificuldade: tenho idéias demais a respeito.
— Por exemplo?
— Bem, há o nosso velho amigo, o cianeto de potássio. Há muitos indícios de que seja ácido cianídrico. Acho que ele cheirou algumas vezes o gás cianeto e perdeu os sentidos. Os olhos esbugalhados e a cor da pele podem significar cianeto... e também podem significar outra coisa. E percebi um pouco do cheiro nos pulmões e na mucosa estomacal. Mas nada na boca, nem quando abri a cavidade craniana. Mas isso também não significa nada, principalmente pelo fato de terem aparecido muitas outras coisas que não significavam a presença de ácido prússico, de trás para diante ou de diante para trás, ou nos dois sentidos, a partir do meio.
— Acho que o Dr. Mendel falou em queimaduras, talvez uma reação local, nos lábios e na garganta. Que me diz disso?
— Sei lá... — E Doremus parecia aborrecido com o mundo inteiro. — O cheiro que senti nos pulmões dele indicava uma provável inalação de algum gás, conforme eu já disse.
— Poderia ter sido nitrobenzeno? — sugeriu Vance.
— Não sei... Sou apenas médico.
— Ora, vamos, doutor — falou Vance, bem-humorado. — Estou apenas tentando afastá-lo dos tóxicos antigos.
Doremus sentou-se com um movimento rápido e sorriu, à guisa de desculpa.
— Não o culpo, Senhor Vance. Estou aborrecido e com raiva. Talvez eu esteja falando como se tivesse andado metido com egípcios antigos, com mandrágora e venenos de víboras... Com poções ciganas secretas, com unguentos de bruxas com seus meimendros negros, com os venenos dos Bórgias, com água Perugia e com água Tofana...
— O senhor disse Tofana, doutor? — interrompeu Heath. — Esse é o nome da tal cartomante chamada Delpha, Senhor Vance. E acho que ela e o marido são perfeitamente capazes de envenenar uma pessoa.
— Não, sargento, não — corrigiu Vance. — A Tofana de que o doutor está falando morreu na Sicília no século dezessete. E não era cartomante. Longe disso. Ela dedicava seu talento a misturar um líquido que desde então ficou sendo conhecido pelo seu nome. Água Tofana era um veneno mortífero. E a tal mulher vendeu seu veneno em escala tão grande, que o nome do seu preparado nunca mais foi esquecido. Embora talvez sua mistura não passasse de uma solução forte de arsênico, ainda hoje há muito mistério ligado a esse preparado. E era a essa mulher, morta há vários séculos, que o Dr. Doremus estava se referindo.
— Ainda assim, digo que Rosa Tofana seria capaz de cometer a mesma infâmia —insistiu Heath, obstinadamente.
— Você parece espantosamente cheio de ódios e de desconfianças, sargento.
— Na minha profissão, eu tenho de ser assim — murmurou Heath.
Vance virou-se para Doremus.
Desculpe-nos por interrompermos, doutor. Parece que o caso que estamos atualmente investigando nos deixou a todos amargurados... Mas que me diz dos venenos tirados de flores? Seria difícil identificá-los, não seria?
— Não! Seria até bem fácil, mas levaria tempo. E eu os conheço todos. Acho que o senhor se refere: à colquicina, tirada do açafrão do campo; à heleborina, extraída da rosa-de-natal, à narcisina, tirada do narciso do prato, e à convalarina, extraída do lírio do vale... Coisas assim. Mas garanto-lhe que o veneno que deu cabo da vida de Philip não foi nenhuma droga suave como essas... Ou talvez... — E piscou um olho para Vance, astutamente. — Agora, é o senhor quem está falando a respeito dos assim chamados venenos do romance medieval. Bolas! A ciência moderna ri deles.
— Não... Oh, não. Não me extraviei até tão longe — riu Vance. — Estava apenas pensando no mascate ambulante de Londres, que vendia perfumes, e que perdeu os sentidos quando cheirou o óleo de mirbana que pusera nas flores para tornar o cheiro delas mais forte.
— Não é nada parecido com isso. — Doremus sacudiu a cabeça, desdenhosamente. — Estou apenas dizendo que ainda não sei o que foi que o tal Allen cheirou... Mas me dêem um pouco de tempo e amanhã descobrirei. E, além disso, não será uma coisa tão maluca quanto agora quer parecer.
— O senhor é capaz de dizer quando foi que ele morreu, doutor? — indagou Heath.
Doremus olhou furioso para o sargento.
— Ora, como iria eu saber? Não sou nenhum adivinho. Foi só hoje à tarde que vi o cadáver. — Sua raiva diminuiu quando ele viu a decepção de Heath. — Falei com o Dr. Mendel, mas ele não quis arriscar um palpite. Disse que não havia a rigidez de morte quando viu o cadáver pela primeira vez. Mas ninguém pode acompanhar o enrijecimento dos músculos com um cronômetro. O começo desse fenômeno é altamente variável e depende de vários fatores que incidem sobre ele. Pelo que pude saber, o homem podia ter morrido umas duas horas antes de ter sido encontrado, ou podia ter morrido até dez horas antes... Não sei, Mendel não sabe e nem os senhores sabem...
Depois que Doremus desabafou um pouco mais, deixou-nos, com um alegre aceno de mão.
— Bem, Vance — disse o procurador distrital. — Agora, como é que você pretende encaixar essa situação absurda na sua história?
Vance sacudiu a cabeça, pensativo.
— Não sei, Markham. Mas fique sossegado, que ela tem de encaixar em algum lugar, e ainda estou confuso diante dos diversos fatores convergentes do meu conto... E a sua referência aos Tofanas foi muito curiosa, sargento. Rosa Tofana, a sua amiga, está demonstrando uma estranha curiosidade a respeito do cavalheiro morto...
Vance levantou-se e caminhou várias vezes de um lado para outro.
— Ainda não confesso que estou derrotado, Markham. Existem muitas perguntas na minha mente, que clamam por respostas. Por exemplo, como foi que a vítima tornou a entrar na sala de Mirche, depois que Hennessey o viu lá, às seis horas?
— Hennessey devia estar olhando para outro lado — falou Heath, impassível.
— Isso não é provável, sargento. Aconteceu alguma coisa muito esquisita lá.
Vance ficou fumando algum tempo, em silêncio.
— Gostaria de ver as plantas da reforma do velho casarão, quando Mirche resolveu instalar o restaurante. Deve haver algo sugestivo nelas. Confesso que é um desejo estranho, mas eu gostaria de examiná-las.
— Não vejo o que adiantaria ver as tais plantas — falou Heath. — Mas, se quer mesmo vê-las, posso arranjá-las com facilidade para o senhor. Doyle e Schuster foi a firma que fez a reforma, e eu já tive negócios com o desenhista-chefe deles.
— Acho que isso ajudaria muito, sargento. Quando é que você poderia conseguir essas plantas para mim?
— Antes que o senhor se levante, de manhã — retrucou o outro, confiante. — Digamos, por volta das dez horas.
Markham parecia divertido.
— Por que não espera até Doremus mandar o relatório final?
— Tem toda razão — admitiu Vance, com relutância. — Gosto das coisas simples. Além disso, tenho de pensar em uma jovem muito suplicante.
— Eu lhe garanto — falou Markham, sem nenhuma pena — que depois de examinar as plantas, amanhã, você terá tempo de sobra para pensar na tal jovem suplicante.
— Não... Não, Markham — disse Vance sério. — Não é uma questão de leviandade...
Depois, ele contou, com pormenores, a visita patética feita a ele naquela tarde por Gracie Allen. Seu pedido de ajuda, sua preocupação por Burns, e as sugestões que ele, compadecido, dera para que a jovem mantivesse a mente ocupada.
— Eu e o sargento — concluiu ele — fizemos uma promessa à mãe dela. E, depois da visita inesperada da moça, hoje, quero encarecer a vocês dois a necessidade de mostrarmos consideração para com a jovem, sempre que ela resolver intrometer-se no nosso trabalho.
— Considero um prazer, para não dizer uma coisa rara, elogiar a sua meticulosidade sentimental — observou Markham. — Mas talvez eu não seja chamado a ajudar nesse logro caridoso. Acho que a situação cairá com violência sobre você e o sargento.
— Para mim, isso não tem importância, chefe — falou Heath. — A Senhora Gracie Allen é muito amável. E sua filha é muito bonita.
Vance sorriu, agradecido.
— Você terá de ser um tanto cuidadoso, sargento. O melhor modo de enfrentar a situação é não mostrar nenhuma pena, aparentemente. Isso poderia deixar a moça desconfiada. Devemos agir, em qualquer tempo, como se não soubéssemos mais,
a respeito da morte do seu irmão, do que ela própria. É preciso ser ator, sargento. Você seria capaz de representar?
— Claro que representarei! — E a voz de Heath era decidida e sincera. — Mas ainda não sou tão insensível que possa prometer não sentir um nó na garganta de vez em quando...
E o sargento parecia um tanto envergonhado da extravasação de sentimentos, tão inadequada para ele.
— Raios! — acrescentou ele, depressa. — Vou acabar sendo um daqueles ídolos de filmes infantis.

CAPITULO XII
UMA ESTRANHA DESCOBERTA
(Segunda-feira, 20 de maio — 9:00 horas)

Vance relutara em deixar o apartamento de Markham, na noite de domingo, e ficara lá até tarde. Mas, na manhã seguinte, levantou-se mais cedo do que o costume. Por volta das oito e meia, ele já estava completamente vestido e já tomara seu café. Pouco depois das nove horas, o sargento Heath chegou e entrou na biblioteca em passos largos e triunfantes.
— Aqui estão elas, Senhor Vance — anunciou ele, colocando um rolo comprido de papelão em cima da escrivaninha. — Se todos os meus trabalhos fossem tão fáceis de fazer como obter estas plantas para o senhor, eu jamais morreria de excesso de serviço.
— Céus, que eficiência!
Vance tirou as plantas do invólucro e estendeu-as em cima da escrivaninha. Estudou-as todas, minuciosamente, examinando separadamente a planta de cada piso. No entanto, dedicou mais tempo à planta do andar térreo, que incluía o salão do restaurante, o saguão de entrada e as salas onde eram guardados os abrigos dos fregueses, onde ficava a cozinha e onde estava instalado o escritório. O sargento ficou observando-o com uma expectativa divertida.
— Muito convencional — murmurou Vance, tamborilando nas folhas com o dedo. — Umas plantas muito boas. Feitas com inteligência. Nada mais, nada menos. Triste... Muito triste.
Nesse instante, Gracie Allen chegou, inesperadamente. Entrou na bibblioteca antes de Currie, tornando supérfluo que ele a anunciasse.
— Oh, eu tinha de vê-lo, Senhor Vance! Não sei por que, mas parece que não estou fazendo nenhum progresso, e trabalhei com tanto afinco. Sinceramente, eu trabalhei!
— Caramba! Minha jovem... — Vance falou em tom agradável. — Por que não está trabalhando na fábrica, hoje?
— Não pude ir ao trabalho — retorquiu ela. — Por enquanto, não posso. Estou pensando em tanta coisa ao mesmo tempo... Isto é, em coisas terrivelmente importantes. E tenho certeza de que o Senhor Doolson não se importará... George também não foi trabalhar. Telefonou-me, ontem à noite, e disse que não podia fazer nada na fábrica. Está muito transtornado.
— Bem, talvez, afinal de contas, Senhorita Allen, alguns dias de descanso...
— Oh, mas eu não estou descansando. — Ela pareceu magoada. — Estou terrivelmente ocupada o tempo todo. O senhor mesmo disse que preciso manter-me ocupada, lembra-se? — Ela avistou Heath, e uma expressão de medo lhe veio aos olhos grandes, ao reconhecer o sargento.
Vance amenizou a situação, apresentando Heath em tom indiferente.
— Ele também está trabalhando conosco no caso — acrescentou Vance. — Você pode confiar no sargento. Expliquei-lhe o seu engano de ontem e agora ele está do nosso lado... Além disso — prosseguiu Vance, alegremente — ele também tem cinco letras no nome.
— Oh! — E seus temores foram um tanto diminuídos por essa informação, embora ela olhasse novamente para Heath com ar incerto antes de romper em um sorriso leve. Depois, a jovem apontou para a escrivaninha. — Que são aqueles papéis azuis, Senhor Vance? Não estavam ali ontem. Talvez sejam uma pista ou algo parecido. São mesmo?
— Não, receio que não. São apenas plantas do Domdaniel, onde você esteve na noite de sábado...
Oh, posso dar uma olhada?
— Sem dúvida — respondeu Vance, e se curvou sobre a escrivaninha ao lado dela. — Veja, este é o grande salão de refeições e a porta de entrada que vem do corredor. E aqui fica a cozinha, além da porta lateral. E nesta parte fica a alameda que passa embaixo do arco. E neste canto fica o escritório, com a porta que dá para o terraço. E...
— Espere um instante — interrompeu a moça. — Na verdade, isto não é um escritório.
Gracie curvou-se mais perto, sobre a planta, e acompanhou o traçado dos corredores com um dedo, eliminando-os à medida que os acompanhava. Acabou seguindo o contorno do pequeno aposento. Depois, ergueu o olhar.
— Ora, mas esse é o quarto particular de Dixie Del Marr. Ela própria me contou isso... Não acha que ela é linda, Senhor Vance? E como canta bem... Gostaria de poder cantar como Dixie. Canta canções clássicas...
— Tenho certeza de que a senhorita canta muito melhor do que ela — disse-lhe Vance, de maneira galante. — Mas acho que está enganada ao afirmar que esse é o quarto de Dixie. Na verdade, é o escritório de Mirche, não é, sargento?
— Claro que é!
Gracie Allen curvou-se ainda mais sobre as plantas.
— Oh, mas é o quarto em que eu estive — garantiu ela, de maneira terminante. — Vou-lhes mostrar: aquela janela dá para a alameda. E aqui fica a rua, para onde dão aquelas janelinhas. Aqui na planta até diz ”rua Cinquenta”. Ora, tem de ser o quarto da Senhorita Del Marr. E a gente não pode ter dois quartos no mesmo lugar, mesmo em uma planta... Pode?
— Não, seria absurdo...
— E as paredes não são todas pintadas de lilás? E não há três ou quatro cadeiras grandes de couro ao longo desta parede? E não há um enorme peixe morto, em uma tábua, pendurado aqui? — E ela ia apontando para a localização dos objetos, enquanto falava. — E não há um candelabro pequeno, de vidro, muito engraçado, pendurado no... Oh, onde fica o teto, Senhor Vance? Não vejo nenhum teto nesta planta.
Heath tornara-se altamente interessado nas análises da jovem.
— Claro — falou ele. — As paredes são de uma espécie de cor de púrpura, e Mirche diz que pescou aquele peixe lá na Flórida. Ela tem toda razão, Senhor Vance... Mas escute aqui, moça, quando foi que esteve naquele cômodo?
— Ora, eu estive lá ainda na noite de sábado.
— Quê?! — berrou Heath. Gracie ficou assustada.
— Será que eu disse alguma coisa errada? Não tive intenção de entrar lá. Foi por acaso...
Agora, foi Vance quem falou.
— A que horas, durante a noite, você entrou lá, Gracie?
— Ora, Senhor Vance. Foi quando fui à procura de Philip, às dez horas da noite... Mas não o encontrei. Ele não estava em parte alguma. E também não veio ontem para casa. Acho que foi tirar umas férias fora da cidade. E prometeu que não deixaria o emprego.
Vance acabou com a tagarelice sem objetivo da jovem.
— Não vamos falar em Philip agora. Diga-me apenas como foi que você se dirigiu ao terraço à procura do seu irmão, quando, na realidade, o que você queria era ir para os fundos do restaurante.
— Não fui para o terraço. — Gracie sacudiu a cabeça, de maneira enfática. — Afinal de contas, para que eu desejaria ir ao terraço? Eu me resfriaria, pois estava trajando um vestido muito fino. Não acha que era um vestido lindo, Senhor Vance? Foi a mamãe também que o fez.
— Sim, você estava encantadora nele... Mas deve ter-se esquecido, pois o único jeito de entrar naquele quarto é pelo terraço.
— Oh, mas eu entrei por outro caminho... Entrei pela porta dos fundos. — Ela apontou para a parede que ficava diretamente em frente à porta da rua do escritório de Mirche; depois, seus olhos se arregalaram, quando ela examinou a planta. — Há alguma coisa muito estranha aqui, Senhor Vance. Quem fez esta planta não teve muito cuidado.
Vance aproximou-se mais dela. O sargento também chegou mais para perto, e ficou ao lado dos dois, com um ar de expectativa e curiosidade, com o charuto erguido no alto.
— A senhorita acha que deveria aparecer outra porta nesse lugar? — indagou Vance, baixinho.
- Ora, é claro! Porque há uma porta ali mesmo. Do contrário, como poderia eu ter entrado no quarto de Dixie Del
Marr? Mas o que não posso imaginar é por que ela conserva aquele peixe lá no seu quarto. Não vejo nenhuma beleza nisso. . .

— Não se preocupe com o peixe. Olhe aqui para a planta um instante. . . Agora, aqui está o arco pelo qual você deixou o salão de refeições.. .

— Sim. O que tem a grande escada trabalhada defronte.

— E agora, vejamos, você deve ter entrado por aqui, no corredor. . .

— Isso mesmo. George queria que eu ficasse para falar com ele, mas eu tinha pressa. Por isso, voltei direto, até passar por outro corredor pequeno. E então fiquei sem saber em que direção seguir.

— Você deve ter entrado nessa passagem estreita e caminhado até este ponto aqui. — Vance parou o lápis com o qual estivera acompanhando, na planta, o roteiro seguido pela moça.

— Foi exatamente o que fiz! Como foi que o senhor soube? Estava-me observando?

— Não, Gracie — respondeu Vance, com paciência. — Mas talvez você esteja um tanto confusa. Há uma porta aqui, na extremidade desta estreita passagem, onde você diz que desceu.

— Sim, eu vi a tal porta. Cheguei até a abri-la. Mas não havia nada lá, apenas a alameda de entrada de carros. Nesse momento compreendi que estava perdida. E então, quando eu estava lá, de pé, encostada à parede e imaginando como iria encontrar Philip, essa outra porta de que eu lhe estava falando — a que leva para dentro do quarto de Dixie Del Marr — abriu-se atrás de mim. — A jovem deu um riso abafado, como se estivesse pensando em alguma piada que fosse contar em seguida. — E eu caí dentro do quarto! Foi muito embaraçoso, mas não estraguei meu vestido. E poderia tê-lo rasgado, caindo daquela maneira. .. Mas acho que a culpa foi apenas minha, por não ter olhado onde me estava encostando. Mas eu não sabia que havia uma porta ali. Não vi porta nenhuma. Em todo caso, lá estava eu, dentro do quarto. Não é uma tolice? Não ver uma porta e apoiar-se nela, e depois cair através dela dentro do quarto de Dixie? — Ela riu de maneira encantadora, ao lembrar-se do que lhe acontecera.

Vance levou a moça para uma cadeira e arrumou um travesseiro para ela.

— Sente-se ali, minha querida — falou ele. — E contenos tudo a respeito do que aconteceu com você.

— Mas eu já lhes contei — falou ela, ajeitando-se de maneira confortável. — Foi muito engraçado, e fiquei muito embaraçada. A Srta. Del Marr também ficou embaraçada. Ela me disse que aquele era seu quarto particular. Por isso, eu lhe disse que lamentava muito o acontecido e lhe expliquei que estava procurando meu irmão. Ela até conhecia Philip. Acho que era porque ambos trabalhavam no mesmo lugar, como eu e George. . . E depois ela me levou de volta ao corredor e apontou o caminho certo para o patamar da escada da cozinha. Foi muito boazinha para comigo. Bem. . . Esperei muito tempo, mas Philip não apareceu. Por isto, voltei para junto do Sr. Puttle. Eu sabia encontrar o caminho de volta. . . E agora, Sr. Vance, quero fazer-lhe mais algumas perguntas a respeito do que o senhor disse ontem. . .

— Eu teria muito prazer em responder a elas, Srta. Allen

— disse Vance. — Mas, na verdade, não tenho tempo, esta manhã. Talvez depois, à tarde. Não se importará, não é?

— Oh, claro que não. — A jovem saltou de pé, agilmente.

— Também tenho algo muito importante a fazer. E talvez George vá à casa da minha mãe, passar alguns minutos conosco.

— Ela apertou a mão de Vance, fez um movimento de cabeça na direção de Heath, arisca e um instante depois se retirara.

— Com mil gafanhotos! — explodiu Heath, quase antes que a porta se fechasse atrás de Gracie Allen. — Eu não lhe disse que o tal Mirche era um sujeito esperto? Então, ele tem uma porta secreta! Mas aquela boneca tonta não a viu... Claro que não a viu! Alguém deve ter sido descuidado.. . Ela se encostar a uma porta invisível e cair dentro do quarto.. . E exatamente dentro do quarto onde mataram seu irmão! É a maior!

Vance deu um sorriso leve.

— Mas, afinal de contas, sargento, não há nenhuma lei que proíba um homem de ter uma porta secreta para o seu escritório. E essa, sem dúvida, é a nossa resposta a como teria o morto ido parar lá dentro sem que fosse visto por Hennessey. Mas alguém deve ter estado lá dentro com ele. Não foi Mirche, que estava à minha mesa entre dez e onze horas da noite. E, sem dúvida, não havia nenhum morto lá dentro às dez horas da noite.

— Mas o senhor não pensa...

— Faça silêncio algum tempo, sargento. — E Vance andava de um lado para outro.
— Gostaria de ir ao Domdaniel e arrombar aquela porta falsa! — declarou Heath, violentamente.
— Não... Oh, não — aconselhou Vance. — Você não deve ser tão impetuoso. Precisa ser fino. Que essa seja a nossa palavra de ordem, por enquanto.
— Ainda assim — disse Heath, resolutamente — se o Domdaniel for o quartel-general de uma quadrilha de meliantes, como sempre desconfiei, nada me daria mais prazer do que esmagar todo aquele prédio, e Mirche também, junto com o resto.
— Tem uma natureza impulsiva demais, sargento — censurou Vance. — Ninguém pode rebentar a casa dos outros sem provas da culpa da pessoa.
— Estou apenas dizendo o que eu gostaria de fazer.
— E outra coisa, sargento: Mirche seria apenas um elo secundário na sua imaginária cadeia criminosa. Como eu disse, ele está longe de ser um líder de homens.
— Pois ele me parece bastante esperto — insistiu Heath, mansamente. — Em todo caso, o tal de ”Coruja” Owen, com quem o senhor estava preocupado, deve ser um dos chefes.
— É verdade — disse Vance, pensativo. — Mas ele era apenas um companheiro de jantar, quando o vi. Muito correto e comedido. Embora eu confesse que sua presença lá, naquela noite, não me agradou, com tantas outras coisas esquisitas juntando-se sem significarem nada. — Vance fez um gesto vago. — Acho que podemos esquecê-lo, por enquanto, para nos concentrar em estabelecer quem matou o pobre sujeito.
— Mas como? Investigando um pouco mais de perto a respeito de Mirche?
— Exatamente, sargento. E também não deixarei de investigar a respeito de Dixie Del Marr, depois daquela espantosa informação sobre a porta falsa que dá para seu quarto particular.
— E como pretende fazer isso, Senhor Vance?
— Bem abertamente, sargento. Vou até lá bater um papo. Por falar nisso, onde é que Mirche mora?
— Isso é fácil — informou Heath. — Mora no primeiro andar do Domdaniel.
— Foi o que imaginei... E você poderia responder com igual facilidade, se eu lhe perguntasse onde mora a Senhorita Del Marr?
— Claro — grunhiu Heath. — Eu não teria durado tanto tempo no Departamento de Homicídios, se não soubesse onde moram as pessoas que considero suspeitas de estarem tomando parte em patifarias ou em crimes. O senhor a encontrará no Hotel Antler, na Rua Cincoenta e Três.
— Você é um fundo de informações, sargento — elogiou Vance.
— Quando pretende ir falar com eles, Senhor Vance? E que faremos, depois?
— Tentarei comunicar-me com Mirche e com Dixie Del Marr hoje de manhã. Em seguida, esforçar-me-ei para conseguir que Markham almoce comigo. Depois, ficaria encantado em me encontrar novamente com você, aqui, às três horas da tarde.
— O caso continua sendo seu, Senhor Vance — murmurou Heath. — E eu não lhe direi como conduzi-lo. — E ele ficou mais meia hora antes de se retirar.
Depois, Vance telefonou para Markham, e em seguida sentou-se e acendeu um cigarro, de maneira mais deliberada do que de costume.
Mais outra faceta espantosa na pedra preciosa, Van — falou ele. — Markham estava para me telefonar quando me ligaram com seu gabinete. O Senhor Doolson — o tal da fábrica de perfumes In-O-Scent — estivera lá e fora embora. Markham prometeu contar-me a história da sua visita mais tarde, quando nos encontrarmos, e parecia muito divertido. Devemos encontrar-nos no seu gabinete por volta da uma hora da tarde. Eu disse a ele que, se não estivéssemos lá até as duas horas, ele deveria mandar uma pelotão dos nossos bravos rapazes dar uma batida no Domdaniel.

CAPITULO XIII
NOTÍCIAS DE UMA CORUJA
(Segunda-feira, 20 de maio — 11:00 horas)

Às onze horas, Vance foi ao Domdaniel. Não teve nenhuma dificuldade em falar com Mirche. Após uma espera de apenas cinco minutos, o proprietário do restaurante entrou na sala de recepções onde estávamos esperando. Cumprimentou Vance de maneira efusiva, embora me desse a impressão de que estava representando um papel bem ensaiado.
— A que devo esta visita inesperada, Senhor Vance? — indagou ele, amavelmente.
— Eu queria apenas conversar com o senhor a respeito do pobre coitado que foi encontrado morto aqui na noite de sábado. — Vance falou com indiferença, embora em tom agradável.
— Ah, sim. — Se Mirche ficou surpreso, disfarçou muito bem. — Claro, se for a respeito da família dele, teremos prazer em ver o que pode ser feito. Naturalmente, eu gostaria de evitar escândalos, pois isso prejudicaria a freqüência ao nosso restaurante. Foi um acidente lamentável. Mas... É melhor irmos para o meu escritório.
O homem foi na frente ao longo da sacada e, abrindo a porta, afastou-se para um lado a fim de que entrássemos na sua frente. Vance sentou-se em uma das grandes cadeiras de
couro e Mirche sentou-se em outra, mais ou menos de frente — para Vance.
— A polícia tem feito muitas perguntas a respeito do caso — começou Mirche. — Mas eu esperava que, nesta altura, todo esse assunto já estivesse sido resolvido.
— Sei que estas coisas são muito importunas — falou Vance. — Mas há um ou dois pontos, nessa situação, que me interessam um pouco.
— Pois me surpreende muito que se interesse por esse caso, Senhor Vance. — Mirche falava em tom frio e delicado. — Afinal de contas, o homem era apenas um lavador de pratos. Eu o mandara embora antes da hora do jantar. Ele reclamou que seu salário era muito baixo e não chegamos a um acordo a respeito do assunto. Não entendo por que ele teria voltado, a não ser que houvesse pensado melhor e quisesse ser readmitido. Foi lamentável ele morrer no meu escritório. Mas não parecia ser um sujeito particularmente robusto, e acho que nunca se pode saber quando o coração vai estourar... A propósito, Senhor Vance, já foi determinada a causa da morte?
— Não, acho que não — respondeu Vance, sem se comprometer. — No entanto, não é isso que interessa, no momento. O fato, Senhor Mirche, é que havia um policial na rua, lá fora, na noite de sábado, e ele insiste em que não viu esse seu lavador de pratos entrar aqui no seu escritório, depois que foi visto saindo dele, por volta das seis horas.
— Talvez ele não o tenha notado — falou Mirche, com indiferença.
— Não, não... O policial, que, a propósito, conhecia Philip Allen, tem certeza absoluta de que a jovem vítima não entrou no seu escritório, pelo lado da sacada, a noite inteira.
Mirche ergueu o olhar e estendeu as mãos.
— Mas, assim mesmo, insisto, Senhor Vance...
— Seria possível que o tal Philip tivesse alcançado este aposento por outra entrada? — Vance fez uma pausa momentânea e olhou ao redor. — Talvez tivesse entrado por aquela pequena porta que há na parede dos fundos.
Mirche ficou um instante calado. Olhou fixamente para Vance, com expressão astuta, e os músculos do seu corpo pareceram retesar-se. Se algum dia vi uma fotografia viva de um homem pensando depressa, Mirche era o retrato vivo desse homem.
De repente, o homem soltou uma risada curta.
— E eu pensava que havia guardado tão bem o meu segredinho... Aquela porta é invenção minha, apenas para meu uso particular, o senhor compreende. — Levantou-se e foi até o fundo da sala. — Vou-lhe mostrar como ela funciona. — Apertou um pequeno medalhão, no lambril, e uma folha de porta, que não teria nem meio metro de largura, girou sem ruído para dentro do aposento. Do outro lado ficava o estreito corredor no qual Gracie Allen perdera o rumo.
Vance olhou para as dobradiças ocultas da porta secreta e depois se afastou, como se a revelação não fosse nenhuma novidade para ele.
— Muito hábil — disse ele, em sua voz arrastada.
— É muito conveniente — falou Mirche, fechando a porta. — Uma entrada particular que liga o restaurante ao meu escritório. Como vê, Senhor Vance...
— Ah, sim, sem dúvida. É muito útil quando a gente quer-se isolar um pouco do resto do mundo. Sei que certos corretores de Wall-Street têm portas assim. E acho que com razão... Mas como é que o seu lavador de pratos teria tomado conhecimento da existência de tal porta?
Mirche coçou o queixo, pensativo.
— Ora, não sei... Embora seja perfeitamente possível, é claro, que algum empregado do restaurante haja visto quando abri a porta... Ou talvez tenha descoberto casualmente o segredo.
— A Senhorita Del Marr sabia dele, não sabia?
— Oh, sim — confessou Mirche. — Ela, às vezes, me ajuda aqui um pouco no trabalho. Não vejo nenhum motivo para não a deixar usar a porta, quando ela quer.
Era evidente que Vance fora colhido de surpresa pela franqueza de Mirche, e logo mudou a conversa para outros assuntos. Fez inúmeras perguntas a respeito de Allen e depois voltou aos acontecimentos da noite de sábado.
No meio de uma das perguntas de Vance, a porta da frente abriu-se e Dixie Del Marr apareceu na soleira da porta. Mirche convidou-a para entrar e imediatamente nos apresentou.
— Eu estava justamente falando a estes senhores — disse ele, rapidamente — a respeito da entrada secreta que existe para este aposento. — E forçou uma risadinha. — O Senhor Vance parecia pensar que devia haver alguma ligação misteriosa entre isso e...
Vance ergueu a mão, protestante em tom agradável.
— Infelizmente, acho que o senhor imaginou significados ocultos nas minhas palavras, Senhor Mirche. — Depois, sorriu para Dixie Del Marr. — A senhorita deve achar aquela porta muito útil.
— Ah, sim... Principalmente quando o tempo está ruim. Na verdade, ela tem sido muito útil. — Ela falou em tom de voz indiferente, mas havia uma dureza, quase amargura, na expressão do seu rosto.
Vance a estava examinando atentamente. Eu esperava que ele a interrogasse a respeito da morte de Allen, pois sabia que fora essa a sua intenção. Mas, realmente, ele tagarelou descuidadamente a respeito de coisas banais, completamente sem relação com o assunto que nos levara ali.
Pouco antes de despedir-se, ele disse à Senhorita Dixie Del Marr, em tom de voz conciliatório:
— Desculpe-me se pareço pessoal, mas não posso deixar de admirar o perfume que a senhorita está usando. Eu arriscaria um palpite... Seria, acaso, uma mistura de narciso e rosa?
Se a mulher ficou atônita com o comentário de Vance, não deu nenhuma demonstração.
— Sim — respondeu ela, com indiferença. — Tem um nome ridículo... Completamente indigno dele, creio eu. O Senhor Mirche também usa o perfume... Tenho certeza de que por influência minha. — Dirigiu um sorriso convencional ao homem, e novamente notei a dureza e a amargura das suas maneiras.
Nós nos retiramos pouco depois disso e, enquanto caminhávamos ao longo da Sétima Avenida, Vance mostrava-se de uma seriedade fora do comum.
— O nosso Senhor Mirche é muito esperto — murmurou Vance. — Não compreendo por que não ficou mais preocupado a respeito da porta secreta. Mas ele está preocupado. Oh, e muito. É muito esquisito... Não precisei interrogar Dixie. Mudei de idéia a esse respeito no instante em que ela falou tão suavemente e olhou para Mirche. Havia ódio, Van. Ódio cruel e apaixonado, e ambos usavam Beije-me Depressa. Oh, que tem esse perfume a ver com o nosso caso? É curioso...!
Markham nos falou, em seu gabinete, acerca da visita de Doolson, acontecida naquela manhã.
-— O homem está desesperadamente preocupado, Vance, e pelo motivo mais incrível. Parece que tem uma opinião muito elevada a respeito da habilidade do jovem Burns. Acha que sua fábrica de perfumes não poderia funcionar sem o rapaz. Está convencido de que Burns é quem tem a chave do sucesso contínuo da sua empresa. E falou mais coisas assim, de espantosa tagarelice.
— Não foi tagarelice, de forma alguma, Markham — interrompeu Vance. — Doolson talvez tenha toda razão de considerar muito Burns. Foi este quem preparou as fórmulas para a In-O-Scent e salvou Doolson da falência. Compreendo exatamente o que ele quis dizer.
— Bem... Parece, também, que as vendas da firma só são efetuadas em determinadas épocas, e que se aproxima, agora, a fase de vendas mais altas. Doolson investiu uma fortuna em uma campanha de vendas, e precisa imediatamente de vários e novos perfumes populares. E acha que só Burns pode preparar-lhe tais perfumes.
— Isso é interessante e plausível. Mas por que a visita dele ao seu gabinete?
— Parece que Burns não compareceu ao emprego e que não irá mais lá até que fique livre de suspeitas no caso Allen. Burns está nervoso e, creio eu, bastante amedrontado. Não pode trabalhar, não pode pensar, não pode experimentar perfumes ... Está completamente desorientado. E Doolson está muito aflito. Hoje cedo, conversou com o rapaz e ficou sabendo dos motivos da sua recusa obstinada em voltar para o trabalho. Burns lhe disse que o caso estava sendo abafado temporariamente, e não forneceu nomes. Mas explicou que ele estava implicado, de alguma forma, e, portanto, transtornado. Tendo confiança completa em Burns, Doolson veio correndo para cá, em desespero de causa. Talvez tenha achado que meu departamento está trabalhando demasiado lentamente.
— Que foi que ele disse?
— Doolson insiste em oferecer um prêmio em dinheiro pela solução do caso, na esperança desesperada de me incentivar, e ao meu pessoal, a resolvermos o assunto imediatamente, para que seu precioso Burns possa voltar ao trabalho. Pessoalmente, acho que o homem está doido.
— Talvez esteja, Markham, mas não o desiluda.
— Já tentei, mas ele insistiu.
— E quanto é que ele acha que valem os serviços imediatos e tranqüilos do Senhor Burns?
— Cinco mil dólares!
— É uma loucura — riu Vance.
— Concordo com você. Eu também não acreditaria, se não tivesse um cheque dessa importância, assinado por Doolson e visado, neste momento, guardado no meu cofre. E, por falar nisso, esse cheque só é válido por quarenta e oito horas...
Depois que Vance absorvera essas informações fantásticas, contou suas atividades da manhã. Falou da porta secreta que dava para o escritório de Mirche e frisou o ponto da desconfiança insistente do sargento de que o Domdaniel era a sede de uma poderosa quadrilha de criminosos.
Sobre este último ponto, Markham fez um aceno lento e pensativo de cabeça.
— Não tenho certeza — observou ele — de que as suspeitas do sargento sejam infundadas. Aquele lugar sempre me preocupou um pouco, mas nunca veio à luz nada concreto.
— O sargento mencionou Owen como um possível chefe — falou Vance. — E acho a idéia interessante. Estou um tanto inclinado a procurar o ”Coruja” e tentar fazê-lo arrepiar as penas. A propósito, Markham, se meu impulso vencer minha discrição, qual é o nome verdadeiro de Owen? Você entende, não posso andar por aí perguntando por uma ave noturna de rapina.
— Acho que é Dominic.
— Dominic, Dominic... — De repente, Vance se levantou, com os olhos fixos no espaço à sua frente. — Dominic Owen! E Daniel Mirche! — E segurou o cigarro, suspenso no alto. — Agora, tudo se tornou fantasia. Você tem razão, Markham... Estou tendo visões: estou envolto em um conto misterioso. Uma coisa fantástica!
— Ora em nome dos céus... — começou Markham.
— Ora, mas você ainda não compreendeu? — E depois, disse: — Dominic... Daniel. Que engenhoso... Daí saiu DOMDANIEL!
Markham ergueu o cenho, incrédulo.
— Pura coincidência, Vance. Embora haja nisso certa dose de fantasia, coisa que eu confesso. Se bem me lembro da leitura que fiz das Mil e Uma Noites, o Domdaniel original ficava no fundo do mar, em algum ponto perto de Túnis, e era uma curiosa morada de espíritos malignos. Mesmo que Mirche tenha ouvido falar daquele palácio submarino e fosse realmente sócio de Owen no restaurante, ele jamais teria coragem ou iniciativa suficientes para isso.
— Mirche não teria, Markham, mas Owen teria. Owen teria a suteliza, a ousadia e o humor sombrio para isso. A idéia teria sido magnífica, creio eu. Oferecendo ao mundo a chave do seu segredo e depois rindo sozinho, muito à semelhança dos demônios que originalmente habitavam aquela cidadela submarina do pecado...
Juntamente com Markham, condoeu-se das complicações da vida e deixou-o sozinho para tirar suas próprias conclusões.
Quando voltamos para o apartamento de Vance, pouco antes das três horas da tarde, não era Heath quem estava à nossa espera. Era Gracie Allen, que parecia estar sempre em toda parte e, como de costume, saudou Vance com alegria e exuberância.
— O senhor me disse para voltar hoje à tarde. Ou não disse? Seja como for, o senhor disse alguma coisa a respeito de logo mais à tarde. E, como eu não sabia a que horas deveria vir, vim cedo. Já reuni muitas pistas... Isto é, umas três ou quatro. Mas acho que elas não servem para nada. O senhor arranjou alguma pista?
— Ainda não — falou ele, sorridente. — Isto é, não tenho pistas definidas. Mas tenho várias idéias.
— Oh, fale-me das suas idéias, Senhor Vance — pediu ela, insistente. — Talvez elas sejam úteis. Nunca se sabe o que pode resultar quando se começa a pensar. Ainda na semana passada, pensei que ia haver uma tempestade violenta, e houve mesmo!
— Bem, vejamos... — E Vance, um tanto levado pelo espírito da brincadeira, e contudo com evidente benignidade, falou-lhe das suas suposições com relação ao significado da palavra ”Domdaniel”. Demorou-se sobre o mistério e o romance da lenda original de Domdaniel, contida nas Mil e Uma Noites, para divertir a jovem: falou dos califas sírios, das ”raízes do mar”, das quatro entradas e dos quatro mil degraus, citou Magharabi e os outros mágicos e feiticeiros.
Heath chegara no começo da história, e ficou de pé, ouvindo, tão encantado quanto o estava a moça. Quando Vance terminou, Gracie Allen relaxou os nervos e músculos, durante alguns instantes.
— Isso é simplesmente maravilhoso, Senhor Vance. Gostaria de poder ajudar a encontrar o tal Dominic. Temos um empregado gorducho, na fábrica, um homem corpulento, que se chama também Dominic. Mas ele não pode ser quem o senhor procura.
— Não, tenho certeza de que não é. O que estou procurando é um homem pequeno, de olhos muito escuros e penetrantes e rosto muito branco, e tem cabelos quase pretos.
— Oh! Talvez seja o homem que eu vi no quarto de Dixie Del Marr.
— Quê?! — E a exclamação do sargento assustou a jovem.
— Meu Deus! Será que tornei a dizer alguma coisa errada, seu Heath?
Vance fez um aceno para o sargento se afastar, e havia censura no gesto. Depois, falou calmamente com a moça.
— Quer dizer, Gracie, que você viu alguém no quarto, além de Dixie Del Marr, quando caiu casualmente dentro dele, na noite de sábado passado?
— Sim. Um homem exatamente igual ao que você descreveu.
— Mas por que — indagou Vance — você não me contou isso, hoje de manhã?
— Ora, o senhor não me perguntou! Se me houvesse perguntado, eu lhe teria contado. E, em todo caso, achei que isso não tinha nenhuma importância... Isto é, o fato de aquele homem estar no quarto de Dixie Del Marr. Ele não teve nada que ver com a minha queda.
— E você tem certeza — prosseguiu Vance — de que ele era parecido com o homem que acabo de lhe descrever?
— Sim, certeza absoluta.
— E suponho que foi a primeira vez que você o viu, não foi?
— Sim, isso mesmo. E, se o tivesse visto antes, ter-me-ia lembrado. Eu sempre me recordo de fisionomias, mas não consigo é lembrar-me de nomes. Mas eu o vi depois daquilo.
— Depois? Onde foi isso?
— Ora, ele estava sentado no salão de refeições do restaurante, bem a um canto, não muito longe do George. Não posso imaginar como foi que olhei casualmente naquela direção, pois me achava em companhia do Senhor Puttle naquela noite.
— Havia mais alguém com o homem, quando você o viu no restaurante? — prosseguiu Vance.
— Sim, mas eu não os podia ver, já que se achavam de costas para mim.
— A quem está-se referindo?
— Ora, aos outros dois homens sentados à mesa do sujeito que o senhor está procurando.
Vance tirou uma fumaça profunda do cigarro.
— Diga-me, Gracie... Que é que o homem estava fazendo, quando você o viu no quarto de Dixie Del Marr?
— Deixe-me pensar... Acho que ele é um amigo muito íntimo da Senhorita Del Marr, pois estava guardando uma caderneta grande de anotações em uma das gavetas. E deve mesmo ser amigo muito íntimo de Dixie, do contrário não saberia qual o lugar do tal caderno, não é? Depois Dixie Del Marr veio até junto de mim e pousou uma das mãos no meu braço, levando-me depressa para fora. Acho que ela estava apressada. Mas foi muito amável comigo...
— Bem... Foi uma aventura muito divertida, minha querida.
Pouco depois dessa espantosa informação, Gracie Allen despediu-se de nós, muito alegremente, com um ar cômico de mistério, dizendo que precisava cuidar de muitas coisas importantes. Confidencialmente, disse-nos que talvez até fosse encontrar-se com Burns.
Quando a jovem se retirou, Vance olhou para o outro lado, para o sargento, como se esperasse algum comentário.
Heath esparramou-se em uma cadeira, aparentemente atordoado.
— Não tenho nada que dizer, Senhor Vance. Vou ficar maluco!
— Até eu estou um pouco tonto — falou Vance. — Mas, agora, tenho de falar com Owen. Francamente, eu não estava muito animado a ir falar com ele, e só vagamente acreditava na minha charada a respeito de Owen e Mirche. No entanto, o tempo todo Gracie Allen conhecia a ligação. Sim, agora é indispensável que eu encontre ”o Coruja”... Você pode ajudar-me, sargento?
Heath apertou os lábios.
— Não sei onde ele se hospeda, em Nova York, se é a isso que se refere. Mas talvez um dos agentes federais que eu conheço me dê essa informação. Espere um instante...
Heath foi ao telefone, no corredor, enquanto Vance fumava, silencioso e pensativo.
— Finalmente, consegui — anunciou Heath, ao voltar para a sala, meia hora depois. — Nenhum dos agentes federais sabia que Owen se achava na cidade, mas um deles examinou o arquivo e me disse que Owen costumava morar no hotel St. Carlton, na época em que foram feitas investigações a respeito dele. Resolvi ligar para o hotel. Ele está hospedado lá, realmente... Chegou na quinta-feira...
— Obrigado, sargento. Vou telefonar para você amanhã cedo. Enquanto isso, não pense muito no assunto.
O sargento retirou-se e Vance telefonou imediatamente para Markham.
— Você vai fazer a refeição matinal comigo amanhã — disse o detetive ao procurador distrital. — Hoje à noite, esforçar-me-ei para visitar o erudito Senhor Owen. Tenho muitas coisas a contar a você, e talvez amanhã cedo tenha mais. Lembre-se, Markham: refeição matinal amanhã... É uma imposição, e não um convite banal...

CAPÍTULO XIV
UM LOUCO MORIBUNDO
(Segunda-feira, 20 de maio — 20:00 horas)

Naquela noite, às oito horas, Vance foi ao Hotel St. Carlton. Ao invés de telefonar da mesa da recepção, escreveu as palavras ”visita não profissional” no seu cartão e mandou-o a Owen. Alguns minutos depois, o mensageiro voltou e nos levou até os aposentos de Owen.
Havia dois homens sentados perto de uma janela, quando nós entramos, e o próprio Owen achava-se sentado, inerte, em uma cadeira baixa, contra a parede, virando lentamente o cartão de visitas de Vance nos dedos finos, que tamborilavam. Olhou para Vance e jogou o cartão no tamborete fixo ao seu lado. Depois, disse, em tom de voz suave mas imperioso:
— É só isto, por esta noite.
— Os dois homens saíram imediatamente do quarto e fecharam a porta.
— Desculpe-me — falou ele, com um sorriso melancólico, à guisa de desculpa. — O homem é um animal desconfiado. — Moveu a mão, em um gesto vago: era o seu convite para nos sentarmos. — Sim, desconfiado. Mas para que se importar com isso? — A voz de Owen era baixa e de mau agouro, mas continha um tom intenso de queixa, como um pio de pássaro ao crepúsculo. — Sei por que vieram e tenho prazer em vê-los. Alguma coisa poderia ter sucedido nesse intervalo.
Ao examinar mais detidamente o homem, tive a impressão de que ele se achava tomado por uma doença grave. Sua fisionomia era marcada por uma profunda letargia íntima. Tinha uma expressão aquosa nos olhos; seu rosto era quase roxo, indício de graves distúrbios circulatórios, e sua voz era monótona. Deu-me a impressão de um morto-vivo.
— Durante vários anos — prosseguiu ele — tem havido a esperança vaga de que algum dia... Necessidade de consciência, de bondade, de identidade de pensamentos... — E a voz lhe faltou.
— A solidão do isolamento psíquico... — murmurou Vance. — Exatamente. Talvez seja eu a pessoa.
— Ninguém é a pessoa, claro. Perdoe minha presunção.
— Owen sorriu languidamente e acendeu um cigarro. — O senhor acha que algum de nós dois quis este encontro? Mas o homem não faz escolhas. Sua escolha é seu temperamento. Somos sugados por um redemoinho, e até escaparmos dele lutamos para justificar essa ”escolha”.
— Mas isso não importa, não é? — falou Vance. — Alguma coisa vital sempre nos foge e a mente jamais pode responder a perguntas que faz a si mesma. Dizer uma coisa ou não a dizer e pensá-la, dá na mesma.
— Exatamente. — O homem dirigiu um olhar de indagação.
— Em que é que o senhor está pensando?
— Estava imaginando que foi que o senhor veio fazer em Nova York. Eu o vi no Domdaniel, no sábado. — O tom de voz de Vance mudara.
— Eu também o vi, embora não tivesse certeza. Pensei, na ocasião, que talvez o senhor entrasse em contato comigo. Sua presença naquela noite não foi pura coincidência. Coincidência é coisa que não existe. É uma palavra falsa para mascarar nossa nauseabunda ignorância. Só existe um padrão em todo o universo do tempo.
— Mas a sua visita à cidade... Estar-me-ei intrometendo em algum segredo?
Owen rosnou e senti um calafrio descer-me pela espinha. Depois, sua expressão mudou e passou a ser de tristeza.
— Vim consultar um especialista... Enrick Hofmann.
— Sim. É um dos maiores cardiologistas do mundo. O senhor o consultou?
— Sim, há dois dias. — Owen deu uma risada amarga.
— Condenado! Ao contrário de Alexandre, uma vida breve mas sem glórias!
Vance limitou-se a erguer ligeiramente as sobrancelhas, e puxou uma baforada profunda do seu cigarro.
— Obrigado — falou Owen — por me poupar os lugares comuns sem significado. — Depois, perguntou, de repente: — Seu nome é Daniel?
— Acaso Belshazzar precisa de um profeta? — E Vance olhou diretamente para o homem. — Não, nada disso! Não sou Daniel. E também não me chamo Dominic.
Owen deu uma risada diabólica.
— Eu tinha certeza de que o senhor sabia! — E sacudiu a cabeça, satisfeito. — Mirche morrerá sem suspeitar, nem de leve, da brincadeira. Ignora tanto As Mil e Uma Noites como Southey e Carlyle. É um patife analfabeto!
— Foi uma idéia hábil — falou Vance.
— Oh, hábil, não. Apenas uma boa piada. — A letargia pareceu novamente dominá-lo. Sua expressão tornou-se uma pobre máscara e suas mãos jaziam inertes sobre os braços da cadeira que ele ocupava. Parecia um cadáver. Houve um longo silêncio, e então Vance falou.
— A escrita na parede, feita à mão. O senhor se sentiria consolado, se eu sugerisse que talvez todos os anos, por todo o infinito, estejam contados e divididos?
— Não — cortou Owen, em tom ríspido. — Consolo... Outra palavra falsa. — Depois, prosseguiu, ansiosamente: — A eterna volta... Ressurreição. A tortura perfeita. — E começou a murmurar. — O mar começará a secar... Um planeta extinto... absorvido pelo Sol... Estrelas maiores... O último instante... Dispersão eterna das coisas... Bilhões de anos daqui... Neste mesmo quarto... — Sacudiu-se, fracamente, e olhou fixamente para Vance. — Moore tinha razão: é como a loucura.
Vance fez um aceno de cabeça, condoído.
— Sim. Loucura. Completa. Aquilo que é finito e atual é só o que ousamos enfrentar. Mas coisa finita não existe.
— Não, é claro que não existe. — Owen falava com voz sepulcral. — Mas aqueles bilhões de anos além, quando a mente volta ao que é infinito... como as ondas intermináveis feitas por uma pedra que se joga na água. E precisamos também ser limpos de espírito. Não agora, mas nessa época. Não devemos provocar ondas intermináveis... Graças a Deus que eu posso falar-lhe. O senhor me entende.
Vance fez um aceno afirmativo de cabeça.
— Sim, compreendo perfeitamente. ”Limpeza”... Sei o que o senhor quer dizer. O que é finito se equilibra... Isto é, nós podemos equilibrá-lo, mesmo até o fim. Podemos voltar limpos até um tempo interminável. Sim. ”Limpeza de espírito”, uma frase adequada. Nenhuma onda. Concordo plenamente.
— Mas não por meio da indenização — disse Owen, rapidamente. — Não por meio de confessionários absurdos.
Vance fez um aceno de mão, em sinal negativo.
— Eu não quis dizer isso. Apenas uma inexistência. Depois do que é finito, quando não houver mais lutas, quando pararmos de tentar eliminar os impulsos colocados em nós pelo mesmo ser que nos impede cedermos a eles...
— É isso! — E apareceu uma centelha de animação na voz de Owen. Depois, ele recaiu no seu langor. O leve gesto da sua mão foi tão gracioso quanto o de uma mulher. Mas a dureza de aço do seu olhar permaneceu. — o senhor me impedirá de provocar ondas na água, caso...?
— Sim — retrucou Vance, com simplicidade. — Se um dia chegar a hora, e eu puder ajudá-lo, pode contar comigo.
— Confio no senhor... E, agora, posso falar um instante? Eu sempre quis dizer estas coisas a alguém que me compreendesse … 1234
Vance limitou-se a esperar, e Owen prosseguiu.
— Nada tem a mínima importância... Nem mesmo a própria vida. Nós próprios podemos criar ou esmagar a vida de seres humanos... Façamos o que fizermos, o resultado será sempre o mesmo. — Owen sorriu, desalentado. — A futilidade podre de todas as coisas... A futilidade de fazer seja o que for, até de pensar. Raios levem a agoniante sucessão de dias que chamamos de vida! Meu temperamento sempre me atraiu em diversas direções ao mesmo tempo... Sempre entre o espeto e a brasa. Talvez, afinal de contas, seja manchar almas.
E ele pareceu encolher-se, como se fugisse ao contato de um fantasma, e Vance intercalou:
— Sei a inquietação que decorre de demasiada atividade inútil, com todos os seus múltiplos desejos.
— A luta sem objetivo! Sim, sim. A luta para se enquadrar em um molde que é diferente daquele que a gente tinha antes. Essa é a maldição derradeira. O instinto de alcançar... Bolas! Nós só descobrimos que não vale a pena quando já fomos devorados por ele. Fui atingido por instintos diferentes, em épocas diversas. Era tudo mentira... Mentiras astutas e corrosivas. E nós pensamos que podemos submeter nossos instintos ao domínio da mente. A mente! — E ele riu baixinho. — O único valor da mente é alcançado quando ela nos ensina que ela é inútil.
O homem moveu-se um pouco, como se abalado por um ligeiro espasmo involuntário.
— Nem podemos atribuir nossos instintos destorcidos à memória racial. Não há raças: existe apenas uma caudal enorme e imunda de vida, que flui do limo primitivo. A sensualidade abortiva da vida animal primitiva jaz adormecida dentro de nós. Se a suprimimos, ela se manifesta em forma de crueldade e de sadismos: se a libertamos, ela produz perversões e loucura. Não há solução... Algumas vezes, o homem se esforça para combater esses horrores libertando um ideal íntimo da sua concepção abstrata, através de símbolos visuais. Os próprios símbolos não passam de abstrações. — Veio o tom monótono e mordaz de Owen. — E também a Lógica não pode ajudar. A Lógica não leva nenhum homem à verdade: conduz apenas a decepções e à loucura. A apoteose da Lógica: anjos dançando na ponta de uma agulha... Mas por que sequer me preocupo, nesta sombra entre dois infinitos? Só posso dar uma resposta: a ansiedade obscena de comer bem e de viver de maneira confortável... que, por sua vez, são instintos e, portanto, mentiras.
— Talvez isso seja mais profundo do que simples instinto — sugeriu Vance. — Pode ser uma ansiedade trazida para cá quando a sombra da vida caiu na senda do infinito pela primeira vez... A ansiedade cósmica de fazer um jogo com a vida, a fim de fugir às tensões e às pressões do que é finito.
Eu sabia que Vance tinha uma finalidade muito definida em mente, embora, para mim, obscura, enquanto falava com este homem estranho e nada natural diante dele.
— Aqui, neste mundo de sonhos esgotados — falou Owen, confusamente — nenhuma forma de ação é melhor do que outra; uma pessoa ou uma coisa não é mais importante do que qualquer outra pessoa ou outra coisa. Todas as coisas opostas são passíveis de trocas entre si: criação ou destruição, serenidade ou tortura. No entanto, a vaidade goteja através da crosta sarnenta da minha metafísica congelada. Bolas! — E encolheu o corpo e olhou fixamente para Vance. — Aqui não existem nem tempo nem existência.
— É como o senhor diz. Na verdade, o infinito não é divisível.
— Mas há a possibilidade terrificante de que possamos acrescentar algum fator ao tempo diante de nós. E, se o fizermos, esse fator continuará eternamente... É preciso não se jogar nenhuma pedrinha. Temos de atravessar completamente essa sombra.
Owen fechara os olhos e Vance o examinava sem expressão, Depois, disse, em tom de voz quase consolador:
— Isto é sabedoria... Sim, limpeza de espírito.
Owen fez um aceno afirmativo de cabeça, muito langoroso.
— Amanhã à noite, vou partir de navio para a América do Sul. Calor... O mar... Um entorpecente, talvez. Estarei ocupado amanhã o dia inteiro. Coisas a fazer: contas, uma limpeza de casa, cuidar de certas coisas... Não quero ondas de superfície da água a me seguirem o tempo todo. Limpeza... Além... O senhor compreende?
— Sim. — Vance não baixou o olhar. — Compreendo. É preciso cessar aqui, para que não haja um castigo dos céus...
Os olhos do homem abriram-se lentamente. Endireitou o corpo e acendeu outro cigarro. Sua disposição estranha se dissipou, e outra expressão lhe apareceu nos olhos. Durante toda essa discussão, ele não erguera a voz nem uma vez sequer; nem houvera mais do que uma leve inflexão nas palavras. No entanto, eu sentia como se estivesse ouvindo uma tirada apaixonada.
Agora, Owen começou a falar dos seus velhos livros, dos seus dias em Cambridge, da sua juventude cheia de cultura e de ambição, dos estudos de música, feitos na sua infância. Era bem versado em conhecimentos das civilizações antigas e, para meu espanto, entendia, com paixão e fanatismo, do Livro dos Mortos Tibetano. Mas, por estranho que pareça, falava sempre em si mesmo com uma impressão de dualismo, como se estivesse falando de outra pessoa. Havia uma sensível cortesia no homem,
mas, não sei por que, ele me inspirava um sentimento próximo do medo. Havia sempre uma aura invisível ao seu redor, como a de uma fera primitiva e fumegante. Fiquei preso ao fascínio diabólico daquele homem, e senti uma inconfundível sensação de alívio quando Vance se levantou para ir embora.
Quando nos separamos dele, à porta, o homem disse a Vance, com uma indiferença aparente:
— Contado, pesado, dividido... O senhor me prometeu. Vance enfrentou seu olhar, diretamente, por um breve instante.
— Obrigado — disse Owen, sem fôlego, curvando-se profundamente.

CAPITULO XV
UMA ACUSAÇÃO PAVOROSA
(Terça-feira, 21 de maio — 9:30 horas)

— Sim, Markham, completamente louco. — Foi assim que Vance resumiu, enquanto acabávamos de fazer a refeição matinal no seu apartamento, na manhã seguinte. — Totalmente maluco. Um louco venenoso, como algum bicho rasteiro e traiçoeiro. O seu fim está chegando rapidamente, e um medo hediondo lhe está destruindo o cérebro. A súbita certeza da morte lhe cortou a ligação com a sanidade mental. Owen está procurando uma toca, onde se esconder para fugir ao inevitável. Mas ele não tem onde se esconder: apenas o sepulcro fétido que seu cérebro destorcido construiu. Essa é a única realidade que lhe resta. Uma criatura vil, que deveria ser esmagada como nós destruímos um germe mortífero. Um leproso mental, moral e espiritual. Sujo, poluído. E eu... Eu tenho de salvá-lo dos horrores que o infinito contém para ele.
— Você deve ter tido uma noite agradável em companhia dele — comentou Markham, com aversão.
O sargento Heath, tendo chegado, em resposta a chamados telefônicos repetidos feitos por Vance, ouvira atentamente a conversa. Mas ele parecia estar recolhido em si mesmo, quando, alguns instantes depois, Gracie Allen entrou saltitando alegremente na biblioteca. Carregava uma pequena caixa de madeira, apertada de encontro ao corpo. E atrás dela vinha George Burns, desconfiado e hesitante. Gracie explicou as coisas, com a habitual vivacidade.
— Eu tinha de vir, Senhor Vance, para lhe mostrar as minhas pistas. E George tinha acabado de chegar para falar comigo. Por isto, eu o trouxe. Acho que ele deve ficar sabendo como nós nos damos bem, não é, Senhor Vance? E a mamãe também chegará aqui dentro de poucos minutos. Ela disse que deseja falar com o senhor, embora eu não possa imaginar qual o motivo.
A jovem fez uma pausa suficiente para Vance apresentá-la a Markham. Aceitou-o sem a desconfiança dedicada antes a Heath; e Markham ficou ao mesmo tempo fascinado e divertido pela tagarelice viva e leve da moça.
— E agora, Senhor Vance, — prosseguiu ela, indo até à escrivaninha e tirando a capa rígida da pequena caixa que ela trouxera — tenho de lhe mostrar as minhas pistas. Mas, na verdade, não creio que sirvam para nada, porque eu não sabia exatamente onde as devia procurar. Em todo caso...
E começou a exibir os seus preciosos tesouros. Vance fingiu estar profundamente interessado, para agradar à jovem. Markham, intrigado e sorridente, avançou alguns passos; e Burns ficou de pé, pouco à vontade, do outro lado da escrivaninha. Heath, aborrecido pela interrupção frívola, acendeu um charuto, caceteado, e caminhou até à janela.
— Veja, Senhor Vance, aqui está o tamanho exato de uma pegada humana. — Gracie Allen tirou uma tira de papei onde havia alguns números escritos. — A pegada mede vinte e um centímetros de comprimento, e o homem da sapataria disse que esse era o comprimento de um sapato número trinta e cinco, a não ser que fosse um sapato inglês, e que nesse caso seria o de um sapato trinta e quatro. Acho que ele era grego, pois era um dos garçons lá do Domdaniel. Fui até lá, porque foi lá que o senhor disse que o morto foi encontrado. E esperei muito tempo para que alguém viesse à cozinha e deixasse uma pegada. E então, quando ninguém estava olhando, eu medi a pegada...
Ela colocou a folha de papel de lado.
— E agora, aqui está um pedaço de bloco que tirei da escrivaninha do Senhor Puttle, ontem, na hora do almoço, quando ele não se achava lá. E levei a um espelho, mas consegui ler apenas ”4 d. S. Sá.”, como tornei a escrever aqui. E tudo isso significa apenas: ”quatro dúzias de caixas de sabonete de sândalo...”

Gracie extraiu da bolsa mais dois ou três objetos inúteis, que explicou, com pormenores, de forma divertida, enquanto os colocava ao lado dos outros.
Vance não a interrompeu durante essa exibição divertida mas patética. Mas Burns, que estava ficando nervoso e exasperado com a desnecessária perda de tempo da moça, finalmente pareceu perder a paciência e desabafou:
— Por que não mostra a estes senhores as amêndoas que traz aí e acaba logo com esta coisa tola?
— Não tenho nenhuma amêndoa, George. Resta só uma coisa na caixa, e isso não tem nada a ver com o caso. Eu estava treinando quando arranjei aquela pista...
— Mas alguma coisa me cheira como amêndoa amarga. De repente, Vance ficou seriamente interessado.
— Que é que ainda tem na caixa, Senhorita Allen? — indagou ele.
A jovem riu baixinho, ao tirar a última pista: um envelope ligeiramente volumoso e totalmente selado.
— É apenas um cigarro velho — falou ela. — E é uma boa brincadeira com o George. Ele está sempre sentindo os cheiros mais esquisitos. Acho que não pode evitar fazer isso.
Rasgou o canto do envelope e deixou um cigarro achatado e parcialmente partido deslizar para sua mão. À primeira vista, eu teria dito que aquele cigarro nunca fora aceso, mas depois notei-lhe a ponta carbonizada, como se tivessem começado a fumá-lo. Vance pegou o cigarro e levou-o ao nariz, com aversão.
— Aqui está o seu cheiro de amêndoa amarga, Senhor Burns. — Seus olhos estavam focalizados em alguma coisa no espaço, longe dali. Depois, tornou a colocar o cigarro em um dos seus envelopes e deixou-o em cima da lareira.
— Onde foi que encontrou esse cigarro, Senhorita Allen? — indagou Vance.
A moça tornou a dar uma risadinha musical.
— Ora, foi esse cigarro que fez um buraco no meu vestido, no sábado passado, em Riverdale. Lembra-se? E então, quando o senhor me falou da importância dos cigarros, resolvi ir lá imediatamente. Desejava tentar encontrar o cigarro que foi jogado em mim. Na verdade, eu não acreditava que fosse o senhor que o houvesse jogado... Tive muita dificuldade em encontrá-lo, porque eu o pisara e ele se achava meio coberto.
Em todo caso, não descobri nada ao encontrá-lo, e fiquei novamente fula de raiva. Mas achei que seria melhor guardá-lo, pois era a primeira pista que eu obtivera, embora na verdade ele não tivesse nada a ver com o caso em que eu o estava ajudando.
— Minha querida menina — disse Vance, lentamente. — Talvez ele não tenha nada a ver com o nosso caso, mas pode ter relação com algum outro caso.
— Oh, não seria maravilhoso se tivesse? — exclamou a moça, encantada. — Assim, teríamos dois casos, e eu seria realmente um detetive, não é?
Markham avançara.
— Que foi que você quis dizer com essa última observavão, Vance?
— Talvez tenha havido cianeto nesse cigarro. — Ele olhou para Markham, de forma significativa. — Quanto à possível ação desta droga, bem como ao possível modo de administrá-la, tenho apenas de me referir às observações feitas por Doremus, na noite de domingo.
Markham fez um gesto de impaciência.
— Por Deus, Vance! Sua atitude para com este caso torna-se mais louca a cada instante que passa.
O detetive ignorou o comentário do outro e prosseguiu.
— Supondo acertada a minha suposição de que este agarro é realmente a arma mortífera que estamos ansiosamente procurando, vale lembrar que muitas outras coisas, igualmente fantásticas, ligadas ao caso, tornaram-se racionais. Assim, poderíamos ligar vários dos nossos dados desconhecidos e de pesadelo e assim estabelecer uma teoria que — pelo menos dentro das suas próprias limitações — brilharia, cheia de sentido. A saber: já conseguimos explicar o fato de Hennessey não ter conseguido ver a vítima entrar no escritório, na noite de sábado. Pudemos limitar o conhecimento da porta secreta a Mirche e a mais uma pessoa íntima sua — o que, como você deve admitir, seria lógico. Poderíamos supor que o crime tenha sido cometido em outro lugar, que não o escritório de Mirche — em Riverdale, para ser específico — e que o cadáver tenha sido levado para o escritório por algum motivo definido. Tal suposição poderia fornecer uma explicação da maneira peculiar como a polícia foi avisada; e poderia também esclarecer a dificuldade que o Dr. Mendel teve em determinar a hora da morte. Pois, se o crime tivesse acontecido no escritório, não o poderia ter sido antes das dez horas, uma vez que Gracie Allen esteve lá por volta daquela hora. Enquanto que, se o crime tivesse acontecido em outro lugar qualquer, poderia ter sido praticado a qualquer hora, num período de dez horas antes de o cadáver ser encontrado. Vance caminhou até junto à lareira e tamborilou, pensativamente, no envelope que continha o cigarro.
— Se o cigarro que está no envelope tiver mesmo estado impregnado de veneno, e se tivesse sido usado, como Doremus disse, que tal recurso pode ser usado, então estaríamos diante de uma coincidência completamente impossível. Isto é: teríamos o fato de que, em duas partes separadas da cidade, duas pessoas teriam sido assassinadas pelo mesmo sistema misterioso, no mesmo dia. E, além disso, temos um só cadáver.
Markham fez um aceno afirmativo de cabeça, lentamente, sem entusiasmo.
— É remotamente capcioso. Mas...
— Conheço suas objeções, Markham — interrompeu Vance. — E elas são também as que eu tenho. Todas as minhas suposições caprichosas podem não passar de simples fantasias... Mas são minhas e, no momento, eu as adoro.
Markham começou a falar, mas Vance prosseguiu.
— Deixe-me falar mais um instante, antes que você rne ponha uma camisa-de-força... Contemplo, em um sonho, as pastagens refrescantes a que minha estranha suposição poderia levar. Poderia até ligar os fatores aborrecidos que me têm roubado o doce sono... A pronta confissão de Mirche com relação à existência da sua porta secreta; o ódio que vi de relance nos olhos de Dixie Del Marr; a saga mística dos Tofanas; e a presença do ”Coruja” no Domdaniel, na noite de sábado. Poderia explicar as implicações sutis que há no nome do restaurante. Poderia até justificar a hipótese insistente, formulada pelo sargento, sobre a existência de uma quadrilha de criminosos. Poderia, também, esclarecer a presença da nômade cigarreira com cheiro de perfume de narciso. E há outras coisas, que agora me deixam confuso, mas que poderiam juntar-se em um todo consistente... Céus, Markham! Isso tem as possibilidades mais espantosas. Deixe-me com o meu sonho tão doce. Afinal, forma-se um quadro no meu cérebro torturado, e é o primeiro desenho coerente que invadiu minha imaginação febril desde a véspera de sábado. Baseado na singular premissa de que o cigarro estivesse convenientemente envenenado, posso forçar um punhado de elementos, até agora recalcitrantes, a entrar na linha, ou, melhor, eles irão entrando sozinhos na linha, como as partículas coloridas de um caleidoscópio.
— Vance, pelo amor de Deus! Você está apenas criando uma nova fantasia absurda, para explicar a sua primeira fantasia. — O severo tom de voz de Markham logo fez Vance voltar a si.
— Sim, tem toda razão — falou ele. — Naturalmente, mandarei o cigarro imediatamente para ser analisado por Doremus. E talvez ele não revele nada. Você é quem manda. Francamente, não compreendo como o cheiro poderia ter ficado em um cigarro tanto tempo, a não ser que um dos venenos misturados tenha atuado como fixador e tivesse retardado a volatilização... Mas, Markham, eu quero — eu preciso — do cadáver de um homem que foi assassinado em Riverdale no sábado passado.
Gracie Allen estivera olhando de um para outro dos homens, confusa e tonta.
— Oh, agora eu aposto em que eu compreendo! — exclamou ela, exultante. — O senhor pensa mesmo que o cigano poderia ter matado alguém... Mas eu nunca ouvi dizer que alguém morresse só pelo fato de fumar um cigarro.
— Não é um cigarro comum, minha cara Gracie -— explicou Vance, com paciência. — É possível que o cigarro em questão tenha sido imerso em algum veneno terrível.
— Ora, isso é horrível, se for mesmo verdade — disse ela, pensativa. — E logo em Riverdale, com tantos outros lugares! Lá é tão lindo e tão sossegado...
Seus olhos começaram a arregalar-se, e finalmente ela exclamou:
— Mas aposto em que sei quem era o morto! Aposto!
— Ora, mas de que você está falando? — Vance riu e olhou para a jovem, com um olhar intrigado. — Quem você pensa que foi?
Gracie olhou para Vance, com olhar perscrutador, durante alguns instantes, e depois disse:
— Ora, foi Benny, o Abutre!
O sargento Heath ficou de repente rígido, com a boca aberta.
— Onde foi que você ouviu esse nome, moça? — disse ele, quase gritando.
— Ora, ora... — gaguejou ela, surpreendida pela veemência do sargento. — O Senhor Vance me contou tudo a respeito dele.
— O Senhor Vance contou a você... ?
- Claro que contou! — disse a jovem, em tom de desafio. É assim que agora eu sei que Benny, o Abutre, foi morto em Riverdale.
- Morto em Riverdale? — e o sargento pareceu confuso. - E talvez você saiba, também, quem foi que o matou, não é?
Claro que sei... Foi o próprio Senhor Vance!


CAPITULO XVI
OUTRO CHOQUE
(Terça-feira, 21 de maio — 10:30 horas)


A espantosa acusação caiu como uma bomba entre os presentes, que ficaram todos paralisados. Passaram-se vários momentos antes que me pudesse controlar o bastante para ver a lógica que havia por trás daquilo. A declaração da moça era o desfecho natural da história que Vance inventara para ela na tarde em que nós a conhecemos.
Markham, que sabia apenas de poucos pormenores do rústico encontro e que não sabia de nada da história inventada por Vance, deve ter-se lembrado imediatamente da conversa tida com o detetive no Bellwood Country Club, na qual Vance exprimira suas idéias quanto à forma de eliminarem Pellinzi.
Heath, também, atônito pela comunicação da moça, deve ter-se lembrado do que houvera no jantar de sexta-feira; e tinha muita razão para supor que ele possuía alguma suspeita nevoenta a respeito da culpa de Vance.
O próprio Vance ficou temporariamente aturdido. No momento, sua cabeça devia estar ocupada com assuntos de maior monta, que suplantavam totalmente o episódio de Riverdale. Mas, agora, de repente ele compreendeu que a acusação de Gracie Allen adquiria foros de plausibilidade.
Markham aproximou-se da moça, sério e com a testa franzida.

— A acusação que acaba de fazer é muito grave, Senhorita Allen — falou ele. Seu tom de voz grave indicava as dúvidas intangíveis que havia no íntimo da sua mente.
— Caramba, Markham! — interrompeu Vance, muito aborrecido. — Faça o favor de olhar ao seu redor. Não estamos em um tribunal.
— Sei exatamente onde estou — retorquiu Markham, obstinadamente. — Deixe-me cuidar deste assunto. Ele é cheio de dinamite. — E virou-se para a moça. — Diga-me, por que você afirma que foi o Senhor Vance quem matou Benny, o Abutre?
— Ora, eu não disse isso... Isto é, eu não inventei isso. Apenas repeti o que ouvi.
Embora fosse evidente que Gracie não considerava a situação séria, era óbvio que a maneira grave de falar de Markham a deixara perturbada.
— Foi o Senhor Vance quem o disse. Ele falou isso quando o conheci em Riverdale, ao lado da estrada que segue ao longo de um grande muro branco, na tarde da sexta-feira passada, quando eu estava com... isto é, quando eu fui lá com...
Markham, notando o nervosismo da moça, sorriu, para tranqüilizá-la, e começou a falar de outra maneira.
— Não tem nenhum motivo para se preocupar, Senhorita Allen — disse ele. — Basta que me conte toda a história, exatamente como aconteceu.
— Oh! — exclamou ela, enquanto uma nota mais alegre lhe voltava à voz. — Por que não me disse logo que era isso que o senhor queria? Está bem, vou-lhe contar. Bem, fui a Riverdale na tarde do sábado passado... Nós não trabalhamos na fábrica aos sábados, pois o Senhor Doolson é muito bondoso nesse ponto. Fui até lá com o jovem Puttle, que é um dos nossos vendedores. Mas não creio que ele seja tão bom vendedor quanto alguns dos outros da In-O-Scent. Que é que você acha, George?
Ela virou-se um instante para Burns, mas não esperou resposta.
— Bem... Em todo caso, George queria que eu fosse com ele a outro lugar. Mas achei que seria melhor ir a Riverdale com Puttle, principalmente porque ele ia-me levar para jantar naquela noite. E achei que podia ficar zangado se eu não fosse com ele a Riverdale, e assim não me levaria para jantar. Por isso, não fui com George, mas fui a Riverdale com Puttle. Bem, nós chegamos a Riverdale, lugar aonde eu sempre vou, porque acho que aquilo lá é lindo. Mas é uma caminhada muito longa da Broadway, e então o Senhor Puttle foi procurar um convento de freiras...
— Por favor, Senhorita Allen — interrompeu Markham, com admirável controle. — Conte-me como foi que a senhorita encontrou o Senhor Vance e o que ele lhe disse.
— Oh, eu já ia chegar lá... O Senhor Vance apareceu depois de saltar o muro. E eu lhe perguntei o que ele tinha andado fazendo. Declarou que estivera matando um homem. E eu perguntei o nome do homem. Ele disse que era Benny, o Abutre.
Markham suspirou, impaciente.
— Pode-me dizer mais algumas coisas, Senhorita Allen, a respeito desse incidente?
— Pois não. Como eu já lhe disse, o Senhor Vance saltou o muro e caiu, pouco atrás do lugar onde eu estava sentada... Não, desculpe, eu não estava sentada, porque alguém acabara de jogar um cigarro em mim... esse cigarro que se acha agora cm cima da prateleira da lareira... Só que ele estava aceso e queimava ... E eu me achava de pé, sacudindo meu vestido, quando vi o Senhor Vance cair. Ele parecia estar com muita pressa, também. Eu lhe falei a respeito do cigarro e ele disse que talvez ele mesmo o tivesse jogado. Mas eu achava que o cigarro fora jogado de um carro grande que passara velozmente pelo ponto onde me encontrava. Seja como for, o Senhor Vance disse-me para ir à loja buscar um vestido novo, que ele pagaria, pois lamentava muito o ocorrido. E então ele sentou-se e fumou mais cigarros.
Gracie respirou fundo e prosseguiu apressadamente.
— E foi então que perguntei a ele o que estava fazendo do outro lado do muro, e ele disse que acabara de matar um facínora chamado Benny, o Abutre. Disse que fez isso porque o tal Senhor Abutre fugira da cadeia e pretendia matar um amigo dele... isto é, um amigo do Senhor Vance. Ele se apresentava com as roupas em completo desalinho e o chapéu amassado e virado de fado, e realmente tinha toda aparência de quem acabara de matar alguém. Até eu fiquei com medo dele, algum tempo. Mas venci o medo...
Ela parou um instante, a fim de contemplar Vance atentamente, como se estivesse fazendo uma comparação de roupas.
— Agora, vejamos... Onde é que eu estava? Ah, sim... Ele estava afastando-se de carreira, muito apressado, porque disse que não queria que ninguém soubesse que ele matara o tal homem. Mas ele me contou. Acho que viu logo que podia confiar em mim. Mas não sei por que motivo estava preocupado, porque ele disse que achava que agira direito, para salvar seu amigo do perigo. Em todo caso, ele me pediu para não contar a ninguém, e eu prometi. Mas agora ele acaba de me pedir para contar o que eu queria dizer a respeito do morto de Riverdale, e por isso acho que ele quis dizer que eu não precisava mais guardar sigilo. E é por isso que lhes estou contando.
O espanto de Markham foi aumentando, à medida que a jovem falava em disparada. Quando ela terminou a narrativa e olhou ao redor, à procura de aprovação, o procurador distrital virou-se para Vance.
— Céus, Vance! Essa história é realmente verdadeira?
— Infelizmente, é — confessou Vance, dando de ombros.
— Mas por quê... Por que você lhe contou tal história?
— Talvez por causa do tempo suave. Estamos na primavera, você sabe...
— Mas — perguntou a moça. — O senhor não vai prendê-lo?
— Não, eu... — E Markham ficou indeciso.
— Por que não? — insistiu a jovem. — Aposto que sei o motivo! Aposto que o senhor pensa que não se pode prender um detetive. Eu também pensava assim, antes. Mas no domingo perguntei a um policial, e ele me disse que claro que se pode prender um detetive.
— Sim, pode-se prender um detetive — sorriu Markham — quando se sabe que ele infringiu a lei. Mas tenho sérias dúvidas de que o Senhor Vance tenha realmente matado um homem.
— Mas ele mesmo afirmou isso. Do contrário, como iria ele saber? Eu também não o julgava culpado, a princípio. Pensei que ele apenas estava-me contando uma história romântica porque eu gosto muito de histórias românticas! Mas, depois, o Senhor Vance mesmo declarou — aqui nesta mesma sala, e todos ouviram — que no sábado passado mataram um homem em Riverdale com o cigarro. E ele falou muito sério... Notei isso, pela maneira como ele agiu e falou. Não foi, de forma alguma, como se ele estivesse inventando outra história romântica...
Gracie parou de chofre e olhou para o confuso Senhor Burns. A julgar pela sua expressão, outra idéia lhe surgira na cabeça. Ela tornou a se virar para Markham, com renovada seriedade.
— Mas o senhor devia prender o Senhor Vance — disse ela, em tom decisivo. — Mesmo que ele não seja culpado. Acho que, na verdade, não creio que ele seja mesmo culpado. Ele tem sido tão bonzinho para mim... Mas, assim mesmo, acho que o senhor devia prendê-lo. O que eu quero dizer é que o senhor pode fingir que acredita que ele matou o tal homem em Riverdale. E assim o George ficaria livre de acusações. E o Senhor Vance não se importaria nem um pouco... Sei que ele não se importaria. Não é, Senhor Vance?
— Em nome dos céus, a que ponto você quer chegar agora? — indagou Markham.
Vance sorriu.
— Sei exatamente o que ela quer dizer, Markham. — E virou-se para Gracie. — Mas, na verdade, minha prisão não ajudaria o jovem Burns.
— Oh, ajudaria, sim — insistiu Gracie. — Sei que ajudaria. Porque há alguém seguindo-o para onde ele vá. E George diz que deve ser algum detetive. E todos os policiais que rondam o hotel de George o olham de uma forma esquisita. Aposto que deve haver muita gente que pensa que George é culpado... porque a polícia foi à casa e o levou de tintureiro, e tudo o mais. George me contou tudo, e isso o deixa terrivelmente preocupado. George já não é o mesmo de antes. Não pode dormir muito bem e perdeu a capacidade de sentir essências. Portanto, como pode trabalhar? Não imagina o quanto isso é horrível, Senhor Vance. Mas, se o senhor fosse preso, então todos pensariam que o senhor era o culpado e deixariam de importunar o George. E ele poderia voltar ao trabalho e ser como era antes. E então, depois de algum tempo, o verdadeiro culpado seria encontrado e tudo acabaria bem para todos.
Gracie parou um instante, a fim de recuperar o fôlego, e em seguida tornou a disparar, com feroz determinação.
— E é por isso que acho que o senhor deveria prender o Senhor Vance. E, se o senhor não o fizer, chamarei os jornais e lhes contarei tudo que o Senhor Vance disse e tudo a respeito de Benny, o Abutre, e direi que ele não foi morto no Domdaniel, e sim em outro lugar qualquer. E aposto que eles publicarão essa reportagem. Principalmente porque o Senhor Puttle estava de pé atrás da árvore, quando o Senhor Vance estava falando comigo, e ele ouviu tudo. E, se eles não acreditarem em mim, terão de acreditar em mim e no Senhor Puttle juntos. E tenho certeza de que assim publicarão a história. E todos ficarão tão interessados no fato de um homem tão famoso quanto o Senhor Vance ser culpado de homicídio, que não se importarão mais com George. Não compreendem o que quero dizer?
Havia a resolução zelosa de uma cruzada nos olhos da moça, e suas frases desordenadas achavam-se cheias de paixão vibrante para ajudar o homem amado.
— Céus, chefe! — gritou Heath. — O que ela diz é dinamite. Bem que o senhor disse!
Vance moveu-se sonolento na sua cadeira e olhou para Heath com um sorriso irônico.
— Está vendo em que encrenca você e o fato de Tracy ter seguido o Senhor Burns me deixaram, sargento?
— Claro que estou! — E Heath deu um passo na direção da Senhorita Allen. A perturbação dele era quase cômica. — Escute aqui, moça — disse ele, furioso. — Ouça-me um instante. Você está totalmente enganada. Confundiu tudo. Não sabemos que tenha havido um homicídio em Riverdale. Não sabemos de nada a esse respeito, entende? Só sabemos que apareceu um morto no restaurante. E ele não era o Abutre, e sim seu irmão...
O sargento parou de chofre, com um tremor, e ficou todo ruborizado.
— Mil raios! Desculpe-me, Senhor Vance. Sinto muito. Vance levantou-se depressa e foi postar-se ao lado de Gracie. Esta achava-se com as mãos no rosto, com um ataque de riso incontrolável.
— Meu irmão? Meu irmão? — E depois, com a mesma rapidez com que começara a rir, ficou séria. — O senhor não me pode enganar assim, sargento.
Vance recuou.
— Diga-me — e uma nota subitamente nova lhe apareceu na voz. — Que quer dizer com isso, Senhorita Allen?
Meu irmão está na cadeia!


CAPITULO XVII
IMPRESSÕES DIGITAIS
(Terça-feira, 21 de maio — 11:30 horas)

Foi neste momento que a Senhora Allen, serena e discreta, foi introduzida na sala por Currie.
Vance virou-se depressa e lhe deu as boas-vindas com uma breve saudação.
— É verdade, Senhora Allen, — perguntou ele — que seu filho não está morto?
— Sim, Senhor Vance, é verdade. Foi por isso que vim até aqui. Vance acenou a cabeça, com um sorriso compreensivo, e, guiando a senhora até uma cadeira, pediu-lhe explicações mais completas.
— Acontece, Senhor Vance, — começou ela, em voz sem inflexão que Philip foi preso perto de Hackensack, naquela noite terrível, depois de deixar o emprego no restaurante. Ele se achava com outro rapaz em um automóvel, e um policial entrou e disse ao outro rapaz — que se chama Stanley Smith e que o amigo de Philip — para seguir para o distrito policial. Acusou-os de roubarem o carro, e então, quando estavam a caminho da cadeia, o policial lhes disse que era o mesmo carro que acabara de matar um ancião e de fugir. Foi um desses atropelamentos em que a vítima morre e o motorista foge. E isso deixou Philip muito assustado, pois ele não sabia o que o tal Stanley podia ter feito antes do encontro dos dois. E então, quando o carro parou a fim de esperar um sinal abrir, Philip saltou e fugiu. O policial atirou contra ele, mas meu filho não foi agarrado.
Vance fez um aceno afirmativo de cabeça.
— Depois, Philip telefonou para mim. Notei que estava muito assustado, e disse que a polícia estava à sua procura e que ele ia-se esconder em certo lugar. Oh, fiquei tão preocupada, Senhor Vance, com o meu pobre e infeliz filho tão assustado, e escondido da polícia... O senhor sabe, um fugitivo da justiça. E então, quando o senhor veio, naquela noite, pensei que estava à procura dele. Mas, quando o senhor me disse que meu filho estava morto, pode imaginar...
Heath saltou para diante.
— Mas a senhora disse que era o seu filho que estava lá no necrotério! — Heath lhe atirou as palavras, como uma chicotada.
— Não, eu não disse, senhor policial — disse a mulher, com simplicidade.
— Não disse, uma conversa fiada! — gritou Heath.
— Sargento! — E Vance ergueu a mão. — A Senhora Allen tem razão... Se você relembrar, verá que ela não disse, nenhuma vez, que o morto era o filho dela. Receio que fomos nós que dissemos isto por ela, porque pensávamos que fosse verdade. — E sorriu, melancólico.
— Mas ela desmaiou, não é? — insistiu Heath.
— Desmaiei de alegria, senhor policial, — explicou a mulher — quando vi que não era o meu Philip.
Mas Heath não se deu por satisfeito.
— Mas... Mas a senhora não disse que o morto não era seu filho. E nos deixou pensar...
Vance teve de contê-lo novamente.
— Acho que entendo perfeitamente por que a Senhora Allen nos deixou pensar que o morto era seu filho. Ela sabia que nós representávamos a polícia, e sabia, também, que seu filho estava fugido da polícia. E, ao notar que pensávamos que seu filho estava morto, ficou muito contente de nos deixar com essa idéia, imaginando que assim poria fim à perseguição de Philip... Não é verdade, Senhora Allen?
— Sim, Senhor Vance, — a mulher confirmou, calmamente, de cabeça. — E, naturalmente, eu não queria que os senhores contassem a Gracie que Philip estava morto, pois então eu teria de lhe contar que ele estava escondido da polícia, e isso a teria tornado infeliz. Mas achei que dentro de poucos dias tudo se esclareceria, e então eu contaria aos senhores. Em todo caso, pensei que dentro em breve vocês descobririam que o morto não era o meu filho.
A mulher ergueu o olhar, com um leve sorriso triste.
— E tudo saiu direito, como eu esperava e rezava para sair, e como eu sabia que sairia.
— E estamos todos muito felizes por ter saído assim — falou Vance. — Mas diga-nos como foi que tudo acabou direito.
— Ora, hoje cedo — recomeçou a Senhora Allen — Stanley Smith chegou à minha casa para perguntar por Philip. E quando eu lhe disse que Philip continuava escondido da polícia, ele informou que fora tudo um engano, e como seu tio foi à polícia e provou que o carro não fora roubado, e que fora outro carro que atropelara e matara o tal ancião... Portanto, contei imediatamente tudo a Gracie e fui levar a notícia maravilhosa a meu filho e trazê-lo de volta para casa...
— Então, como foi, — prosseguiu o sargento, evidentemente furioso — se a senhora contou tudo à sua filha, que ela acaba de nos dizer que seu irmão estava na cadeia?
A Senhora Allen sorriu timidamente.
— Está, sim. Na noite de sábado fazia muito calor e por isso Philip deixara seu paletó no carro. Foi assim que a polícia ficou sabendo quem ele era, pois ele esqueceu o cheque do pagamento no bolso do paletó. Por isso, ele foi à cadeia em Hackeasack, hoje cedo, buscar o paletó, e vai chegar a tempo de almoçar.
Vance riu, a contragosto, e dirigiu um olhar maroto a Gracie Allen.
— E garanto que era um paletó preto.
— Oh, Senhor Vance! — exclamou a moça, extasiada. — Que detetive maravilhoso o senhor é! Como pôde ver a cor do paletó do Philip, do outro lado do rio?
Vance riu baixinho e depois de repente ficou sério.
— E, agora, devo pedir a todos vocês para irem — falou ele — e se preparar para a volta de Philip à casa materna.
Nessa altura, Markham interveio.
— Mas e as declarações que a senhorita pretendia fazer aos jornais, Gracie? Eu não poderia permitir uma coisa dessas.
George Burns, com um sorriso largo no rosto, respondeu ao procurador distrital.

— Gracie não fará isso, Senhor Markham. É que eu agora já estou completamente feliz e vou voltar para o trabalho amanhã cedo. Na verdade, eu não estava preocupado com a possibilidade de ser culpado ou de que alguém me seguisse. Mas eu tinha de contar isso a Gracie e ao Senhor Doolson, porque o senhor me fizera prometer que não diria uma palavra a respeito de Philip. E era o fato de ele estar morto, e de Gracie não saber, e tudo o mais, que me fazia sentir tão mal, não me deixando dormir nem trabalhar.
— Não é maravilhoso? — E Gracie Allen bateu palmas, e depois olhou astutamente para Vance. — Eu não queria realmente que o senhor fosse para a cadeia, Senhor Vance... Era só para ajudar George. Por isso, dei ao senhor minha palavra de que não contaria nada a ninguém a respeito da sua confissão. Ê o senhor sabe que eu sempre cumpro as promessas que faço.
Quando a Senhora Allen ia-se retirando em companhia da filha e de Burns, dirigiu a Vance um olhar de acanhada desculpa.
— Espero, senhor, — falou ela — que não pense que agi mal enganando-o a respeito daquele pobre morto.
Vance pegou a mão da velhinha.
— Sem dúvida, não penso nada disso. A senhora agiu como qualquer outra mãe teria agido, se ela tivesse sido tão inteligente e tivesse um raciocínio tão vivo quanto o seu.
Beijou-lhe a mão e depois fechou a porta atrás dos três.
— E agora, sargento, — toda a sua maneira de ser mudou — mãos à obra! Chame Tracy aqui e depois mande identificar o morto pelas impressões digitais.
— Não me precisa dizer para por mãos à obra, chefe — retrucou Heath, correndo para a janela. Fez acenos frenéticos para o homem que se achava do outro lado da rua. Depois, voltou para dentro do aposento e, a caminho do telefone, parou de repente, como se um pensamento súbito o houvesse imobilizado.
— Ei, Senhor Vance — perguntou ele. — Por que acha que nosso arquivo tem as impressões digitais do morto?
Vance lançou-lhe um olhar perscrutador e significativo.
— Talvez você vá ter uma grande surpresa, sargento.
— Mãe de Deus! — disse Heath, em tom de espanto, enquanto corria para o telefone, que ficava no corredor.
Enquanto o sargento falava com a polícia, tão afobado que quase não conseguia se fazer entender, Tracy entrou. Vance mandou-o logo levar o envelope fechado, que se achava em cima da lareira, ao Dr. Doremus, para ser analisado.
Alguns minutos depois, Heath voltou para a biblioteca.
— Pronto, os rapazes já começaram a trabalhar! — E esfregou as mãos, energicamente. — Tirarão logo as impressões digitais do homem e procurarão nos arquivos. E, se eles não me telefonarem dentro de uma hora, irei até lá e lhes torcerei os pescoços grossos! — Deixou-se cair em uma cadeira, como se esgotado pelo simples pensamento da rapidez que ele exigira.
Vance telefonou em seguida a Doremus, explicando que era muito importante um relatório imediato sobre o cigarro.
Era quase meio-dia, e nós conversamos sobre coisas banais durante mais uma hora. Havia tensão na atmosfera, e a conversa foi como uma capa jogada propositadamente sobre os pensamentos íntimos desses três homens diferentes.
Quando o relógio que havia em cima da lareira apontou para as treze horas, o telefone tocou e Vance atendeu.
— Não houve nenhuma dificuldade na análise — informou-nos ele, quando pendurou o receptor do telefone. — O eficiente Doremus descobriu no cigarro aquela mesma mistura de venenos misteriosos que o deixou tão aborrecido na noite de domingo... Minha história fantástica, Markham, finalmente está começando a se concretizar.
Mal Vance acabara de falar, quando o telefone tocou novamente, e foi a vez de Heath correr para o corredor. Quando ele voltou para a biblioteca, depois de alguns momentos, tropeçou em uma pequena mesa estilo renascentista, que havia perto da porta, e jogou-a longe.
— Pois bem, estou agitado. E daí? — Os olhos do sargento brilhavam de entusiasmo. — Quem vocês pensam que o sujeito era? Raios! O senhor já sabia, Senhor Vance. É nosso velho amigo, Benny, o Abutre! E talvez aqueles rapazes lá em Pittsburgh não estivessem doidos! E pode ser que o Abutre não tenha saltado direto de Nomenica para Nova York, como eu disse que ele faria... Está livre dessa ameaça, Senhor Markham.
A agitação de Heath era tão grande que, por alguns instantes, foi até mais forte do que o seu respeito para com o procurador distrital.
— Que faremos agora, Senhor Vance?
— Eu diria, sargento, que a primeira coisa a fazer é sentar-se. Tenha calma. É uma virtude muito necessária.
Heath obedeceu prontamente, e Vance virou-se para Markham.
— Acho que o caso continua sendo meu, por assim dizer. Você mo presenteou, num gesto magnânimo, para se livrar da minha tagarelice, na noite do sábado passado. Portanto, agora devo pedir mais uma concessão da sua parte.
Markham esperou, em silêncio.
— Chegou a hora em que tenho de agir com rapidez — prosseguiu Vance. — O caso todo, Markham, já se tornou claro. Os vários fragmentos do quebra-cabeças já encaixaram nos devidos lugares e formaram um mosaico espantoso. Mas ainda falta preencher um ou dois espaços em branco, e acho que Mirche, se for abordado de maneira adequada, poderá fornecer os pedaços que faltam...
Heath intrometeu-se.
— Estou começando a compreender, senhor. Acha que a identificação que Mirche fez do Abutre foi deliberadamente falsa?
— Não, sargento, nada disso. Mirche foi totalmente sincero e com um motivo muito bom. Ele ficou legitimamente atordoado com o aparecimento do cadáver na sua sala, naquela noite.
— Então, não o compreendo, senhor — disse Heath, em tom de desalento.
— Qual é a concessão que você deseja, Vance? — indagou Markham, impaciente.
— Quero só efetuar uma prisão.
— Mas, sem dúvida, não pretendo deixar que você ponha o gabinete do procurador distrital em maus lençóis. Precisamos esperar até que o caso seja solvido.
— Ah! Mas ele já está esclarecido — retorquiu Vance, à queima-roupa. — E você poderá ir comigo, para proteger o bom nome do seu gabinete. Na verdade, sua companhia me encantaria.
— Vá direto ao ponto — falou Markham, irritado. — O que pretende fazer?
Vance inclinou-se para diante e falou com precisão.
— Desejo muito ir ao Domdaniel logo que possível, hoje à tarde. Quero levar dois homens — digamos, Hennessey e Burke — que ficarão de guarda, na passagem do lado de fora da porta secreta. Depois, seguirei com você e com o sargento até à porta da frente que dá para a sacada e pedirei para entrar. Em seguida, agirei, sob o seu olhar controlador, é claro.
— Mas... Céus, Vance! Mirche pode não estar à espera da sua visita no escritório dele. Pode ter outros planos para se divertir esta tarde.
— Esse — declarou Vance — é um risco que precisamos correr. Mas tenho motivos suficientes para crer que o escritório de Mirche, hoje, está uma colmeia de atividade. E muito me espantaria se Dixie e Owen, também, não estivessem lá. Owen vai partir de navio, logo à noite, para a América do Sul, e hoje é o dia para liquidar seus negócios mundanos aqui. Você e o sargento têm suspeitado, há muito tempo, de que o Domdaniel é a sede de toda espécie de patifarias que vem acontecendo na cidade. Pois não precisa mais duvidar disso, Markham.
O procurador distrital pensou um instante.
— Parece-me absurdo e inútil — declarou ele. — A não ser que você tenha fundamentos sérios para tal ação... No entanto, como você diz, eu mesmo estarei lá a fim de me proteger contra qualquer indiscrição da sua parte... Muito bem — capitulou ele.
Vance confirmou de cabeça, com satisfação, e olhou para o espantado Heath.
— E, a propósito, sargento, talvez tenhamos notícias dos seus Rosa e Tony.
— Os Tofanas! — E Heath ergueu-se no sofá, alerta. — Eu já sabia. Aquele trabalho do cigarro é especialidade de Tony...
Vance descreveu seu plano ao sargento. Heath deveria combinar com Joe Hanley, o porteiro, para dar um sinal se Mirche saísse do salão de refeições pelos fundos. Hennessey e Burke deveriam receber instruções quanto ao lugar onde se postar e o que fazer. E Markham, Vance e Heath deveriam esperar na pensão fronteira ao restaurante, de onde podiam ver ou o sinal de Hanley ou Mirche entrar no seu escritório pela sacada.
Contudo, ficou demonstrado que grande parte dos preparativos complicados era desnecessária; pois a teoria e previsões de Vance com referência à situação, naquela tarde, eram inteiramente acertadas.


CAPITULO XVIII
NARCISO E ROSA
(Terça-feira, 21 de maio — 15:00 horas)

Às três horas daquela tarde, Joe Hanley, que estivera de vigia para nós, chegou à esquina da Sétima Avenida e nos informou que Mirche entrara no seu escritório pouco depois do meio-dia, e que nem ele nem Dixie Del Marr tinham sido vistos no restaurante desde então.
Encontramos as persianas das janelas estreitas baixadas e a porta do escritório achava-se trancada à chave. Além disso, não atenderam, embora batêssemos com insistência.
— Abram! — gritou Heath, ferozmente. — Do contrário, terei de arrombar a porta. — Depois, observou para nós: Acho que isso os assustará, se houver alguém lá dentro.
Pouco depois, ouvimos o ruído de passos apressados e vozes furiosas lá dentro. E, alguns momentos mais tarde, a porta nos foi aberta por Hennessey.
— Agora, tudo está bem, chefe — disse ele a Markham. — Eles tentaram fugir pela porta da parede, mas eu e Burke os obrigamos a voltar.
Quando atravessamos a porta, deparei com um quadro estranho. Burke achava-se de costas contra a pequena porta secreta, com o revólver apontado de maneira significativa para o espantado Mirche, que se achava a poucos passos dele. Dixie Del Marr, também coberta pela arma de fogo de Burke, achava-se encostada à escrivaninha, olhando para nós com uma expressão de fria resignação. Em uma das cadeiras de couro estava sentado Owen, sorrindo debilmente, com calma e cinismo. Parecia inteiramente desligado de todo o quadro geral, como um espectador que estivesse contemplando uma cena teatral que lhe ofendesse o intelecto pelo absurdo. Não olhava nem para a direita nem para a esquerda, e foi só depois que estávamos bem ao alcance do seu olhar sonolento que ele fez um leve movimento.
Mas, quando avistou Vance, levantou-se, cansadamente, e se curvou, em uma saudação formal.
— Que esforço inútil — queixou-se ele. Depois, sentou-se novamente, com um leve suspiro, como alguém que acha que tem de ficar até o fim para assistir ao resto de um drama desagradável.
Hennessey fechou a porta e ficou de pé, alerta, vigiando os ocupantes do aposento. Burke, a um sinal de Heath, deixou a mão cair para o lado do corpo, mas manteve uma vigilância severa.
— Sente-se, Senhor Mirche — disse Vance. — É apenas uma pequena discussão.
Quando o homem, lívido e assustado, deixou-se cair em uma cadeira junto à escrivaninha, Vance se curvou delicadamente, cumprimentando Dixie Del Marr.
— Não é preciso a senhorita ficar de pé.
— Prefiro ficar assim — disse a mulher, em tom de voz duro. — Há três anos que venho esperando sentada...
Vance aceitou sem comentário a sua observação misteriosa e voltou novamente sua atenção para Mirche.
— Nós estávamos conversando a respeito de preferências no tocante a vinhos e comidas — falou ele, em tom indiferente. — E eu estava imaginando qual seria a marca de cigarros que o senhor fuma.
O homem pareceu paralisado de medo. Mas logo se recuperou; um simulacro de sua antiga suavidade voltou a seu rosto. O homem fez um ruído como o de um sapo coaxando, que pretendia ser uma risada.
— Não tenho preferência por nenhuma marca — declarou ele. — Eu sempre fumo...
— Não, não — interrompeu Vance. — Refiro-me à sua marca muito especial, reservada para os eleitos.

Mirche tornou a rir e gesticulou largamente com as palmas das mãos viradas para cima, para indicar que não compreendera em nada o significado da pergunta.
— A propósito — prosseguiu Vance — nos tempos medievais, quando Madame Tofana e outros envenenadores famosos prosperaram, havia muitas flores, hoje lendas românticas para nós, que provocavam a morte com uma simples cheirada. É esquisito como essas lendas persistem e como surgem tantos exemplos da sua aparente autenticidade nos tempos modernos. É de se admirar como os velhos segredos da alquimia foram preservados até os tempos atuais. Naturalmente, tais especulações são absurdas à luz da ciência moderna.
— Não compreendo o que o senhor quer dizer com isso. — Mirche falava com uma tentativa de mostrar dignidade ferida.
— E também não entendo esta invasão ultrajante dos meus aposentos particulares.
Vance ignorou o homem um instante e dirigiu-se à Senhorita Del Marr.
— Acaso a senhorita perdeu uma cigarreira especial, com desenhos enxadrezados? Quando ela foi encontrada, tinha o cheiro de narcisos e rosa. Uma combinação excêntrica, Senhorita Del Marr, e lembra a sua pessoa.
Não se notou nenhuma mudança na expressão fisionômica da mulher, que continuou dura, embora ela hesitasse de forma evidente antes de responder.
— Não é minha. Mas creio, no entanto, que conheço a cigarreira a que o senhor se refere. Eu a vi no sábado passado neste escritório, e naquela noite ela me foi mostrada pelo Senhor Mirche. Ele a carregara durante várias horas no bolso... Talvez tenha sido assim que ela adquiriu o perfume. Onde foi que a encontrou, Senhor Vance? Disseram-me que foi esquecida aqui por um dos empregados do restaurante... Talvez o Senhor Mirche pudesse...
— Não sei de nada a respeito de tal cigarreira — disse Mirche, sem delongas. Havia energia e susto nas suas palavras. Jogou um olhar de desafio a Dixie, mas esta se achava de costas para o homem.
— Isso não importa, não é mesmo? — disse Vance. — É apenas uma referência de passagem.
Seus olhos continuavam pousados em Dixie Del Marr, e ele tornou a lhe dirigir a palavra.
— A senhorita sabe, naturalmente, que Benny Pellinzi está morto.
— Sim... Eu sei. — E suas palavras não denotavam nenhuma emoção.
— Há uma estranha coincidência nisso. Ou, talvez, apenas um capricho meu. — Vance falava como se estivesse apenas fazendo uma observação sem importância. — Pellinzi morreu na tarde do sábado passado, pouco depois de ter tido tempo de chegar a Nova York. Mais ou menos nessa altura, acontece que fui casualmente às matas de Riverdale. E, quando começava a voltar para casa, um carro grande passou velozmente pelo local onde me achava. Mais tarde, fiquei sabendo que um cigarro aceso fora jogado do carro, perto do lugar onde eu me achava de pé. Era um cigarro muito diferente dos outros, Senhorita Del Marr. Apenas tinha começado a ser fumado. Mas não era essa a única peculiaridade do tal cigarro. Além disso, havia também um veneno mortífero nele. O equivalente moderno das fabulosas flores envenenadas que figuravam nas tragédias medievais. E, contudo, fora jogado descuidadamente em uma rodovia pública...
— Uma ação imbecil — disse Owen, em tom de voz suave mas cheio de censura.
— Casual, digamos assim... do ponto de vista finito. Mas, na verdade, inevitável. — Vance também falava em tom suave. Só existe um modo de agir em todo o universo.
— Sim — falou Owen, em tom vago e sonhador. A imbecilidade humana é um dos fatores que concorrem para a fatalidade dos acontecimentos.
Vance não se virou. Estava observando atentamente a expressão fisionômica de Dixie Del Marr.
— Posso prosseguir, Senhorita Del Marr, ou minha história a importuna.
Dixie não deu nenhum sinal de ter ouvido a pergunta.
— A cigarreira a que me referi — prosseguiu Vance — foi encontrada no cadáver de Pellinzi. Mas não havia cigarros dentro dela. E ela não continha nenhum cheiro picante de amêndoas amargas... Só o cheiro doce de narciso e rosa... Mas Pellinzi foi envenenado pelo cheiro desse perfume. E, novamente, entra em ação o mortífero agente do romance antigo... É estranho, não é? Como a fantasia evoca associações tão remotas. O pobre Pellinzi deve ter confiado e acreditado em quem o assassinou. Mas sua fé encontrou apenas traição e morte.
Vance fez uma pausa. Havia grande tensão no pequeno aposento. Só Owen parecia despreocupado. Olhava diretamente para diante, com uma expressão fisionômica sem esperanças e distante e a boca torcida por uma expressão cruel.
Quando Vance tornou a falar, suas maneiras tinham mudado: havia uma repentina severidade na sua voz.
— Mas talvez, afinal de contas, eu não esteja sendo lá muito imaginoso. A quem, senão a Senhorita Del Marr, teria Pellinzi comunicado em primeiro lugar a sua chegada a Nova York? E como poderia ele ter sabido, nesses últimos anos, que outro homem conquistara o coração da mulher que outrora lhe pertencera? Possui um carro grande e fechado, Senhorita Del Marr. Uma viagem secreta a Riverdale teria sido coisa fácil para a senhorita. A cigarreira, com o seu perfume sutil, foi encontrada com o cadáver. O amor muda e é cruel...
Owen deixou escapar uma risadinha gélida. Suas sobrancelhas arquearam-se ligeiramente. A expressão cruel da sua boca se transformou em um arremedo de sorriso.
— Muito hábil, Senhor Vance — murmurou ele. Na verdade, admirável. Padrões dentro de padrões. Como o homem se deixa enganar facilmente por fantasmas!
— É a enganosa ordem que existe no caos — falou Vance. Owen fez um aceno de cabeça, quase imperceptível. Seu rosto voltou a ser uma satírica máscara.
— Sim — disse ele, em tom suave. — O senhor também tem um senso exotérico de humor.
— Duvido — murmurou Vance — que a Senhorita Del Marr aprecie o humor da morte.
Um gemido estrangulado irrompeu da garganta da mulher. Ela deixou-se cair em uma cadeira e cobriu o rosto com as mãos.
— Oh, meu Deus! — Foi o primeiro rompimento do seu controle rígido.
Seguiu-se longo silêncio. Mirche olhou um instante para Vance e novamente para a mulher. Seu rosto recuperara parte da sua cor, mas um medo intenso lhe brilhava nos olhos: um medo de um fantasma maligno, cuja forma ele não sabia determinar. Compreendi que se iam acumulando na sua mente perguntas que ele não ousava formular.
A mulher ergueu lentamente a cabeça; as mãos lhe caíram no colo e ficaram lá, em atitude de completo desânimo: A dureza venenosa da sua natureza recuperou o controle. Dixie esteve para falar, mas também ela conteve o impulso, como se a pressão das suas emoções ainda não tivesse alcançado o ponto de libertação.
Vance acendeu lentamente um dos seus cigarros. Depois de tirar duas baforadas, falou novamente com Dixie, e suas palavras pareceram indiferentes, como se ele estivesse fazendo uma pergunta que não contivesse nenhuma importância particular.
— Ainda há uma coisa que me intriga, Senhorita Del Marr... Por que trouxe Pellinzi, morto, para este escritório?
A mulher sentou-se como uma estátua de mármore, enquanto um cacarejo desdenhoso escapou dos lábios de Mirche.
— Está-se referindo, Senhor Vance, — perguntou ele, à sua antiga maneira pomposa — ao homem encontrado morto neste escritório? Estou começando a compreender o seu interesse no lamentável episódio que se passou aqui na noite de sábado. Mas receio que tenha permitido à sua imaginação levá-lo completamente de roldão. O cadáver encontrado aqui era o de um dos empregados do restaurante.
— Sim. Sei a quem se refere, Senhor Mirche. A Philip Allen. Vance falava em tom de voz macio. — Como o senhor disse naquela noite. E não tenho dúvidas de que o senhor acreditava nisso, e de que ainda acredita. Mas, às vezes, os fatos aparentes atuam de forma esquisita. Um padrão está sujeito a mudar o seu desenho da maneira mais incrível... Não é verdade, Senhor Owen?
— É sempre verdade — replicou o espectador silencioso da cadeira. — Confusão. E nós somos as vítimas...
— A que ponto vocês dois querem chegar? — indagou Mirche, levantando-se a meio na sua cadeira, enquanto o medo lhe transparecia nos olhos.
— A verdade, Sr, Mirche, é — falou Vance — que Philip Allen está bem vivo. Depois que o senhor o mandou embora do emprego e que ele, casualmente, deixou uma cigarreira aqui, que realmente não lhe pertencia, Philip Allen não voltou a este escritório.
— Ora, isto é ridículo! — E Mirche perdera a suavidade da fala. — Do contrário, como poderia ele...?
— Era Benny Pellinzi quem estava caído no soalho, naquela noite, morto!
A esta notícia, Mirche tornou a se deixar cair de repente na sua cadeira e ficou olhando, com ar de desafio sem esperanças, para o homem que estava diante de si. Mas os fatos ainda não se tinham organizado na sua mente, e ele recomeçou a protestar.
— Isso é absurdo... Completamente absurdo! Eu próprio vi o cadáver de Allen. E o identifiquei.
— Oh, não discuto a sinceridade da sua identificação. — Vance aproximou-se mais do homem perplexo. Seu tom de voz era quase meloso. — O senhor estava com todas as razões para supor que o morto fosse Philip Allen. Ele é do mesmo tamanho que Pellinzi. Tem a mesma forma de rosto e a mesma cor de pele, e naquele dia ele estava vestindo um terno preto igual ao que Pellinzi usava quando o mataram. O senhor acabara de falar com Philip Allen, no seu escritório, algumas horas antes, e, conforme me disse ontem, o senhor não se surpreendeu pelo fato de ele ter voltado aqui. Além disso, a morte pelo envenenamento muda a expressão dos olhos e todo o aspecto geral do rosto. Acresce, ainda, que Pellinzi era a última pessoa no mundo que o senhor teria esperado encontrar no seu escritório, principalmente naquela noite. Sim, a última pessoa no mundo...
— Mas por que — gaguejou Mirche — por que Pellinzi devia ter sido a última pessoa no mundo que eu teria esperado? Eu sabia, pelos jornais, que o homem fugira da cadeia. E era bem possível que ele tivesse cometido a tolice de me procurar para pedir ajuda.
— Não... Oh, não. Não me refiro a isso, Senhor Mirche — retrucou Vance, tranqüilamente. — Eu tinha outro motivo, mais convincente, para saber que o senhor não esperaria encontrar Pellinzi aqui naquela noite... O senhor sabia que Pellinzi estava morto em Riverdale.
— Ora, como poderia eu ter sabido que ele estava morto? — gritou o homem, freneticamente, saltando de pé. — O senhor mesmo disse que seria Dixie Del Marr a quem ele teria apelado primeiro, e o carro dela, sua viagem a Riverdale... Bolas... O senhor não me pode intimidar!
— Tenha mais calma, Dan — falou Owen, com petulância. — Já existe tumulto de sobra neste mundo pobre. A confusão me cansa.
— Novamente, receio que me tenha entendido mal, Senhor Mirche. — Vance ignorou a queixa de Owen a seu assecla amedrontado. — Quis dizer, apenas, que a Senhorita Del Marr deve tê-lo informado a respeito do fato. Tenho certeza de que vocês dois não ocultam segredos um do outro. Têm uma confiança mútua completa, mesmo no crime. E, sabendo que Pellinzi estava morto em Riverdale, e que a sua digamos assim, sócia? — dificilmente traria o cadáver para cá, como poderia o senhor imaginar que o homem encontrado morto neste escritório, naquela noite, era Pellinzi? Como teria sido natural cometer um erro de identificação! E, já que não poderia ser Pellinzi, deveria ser outra pessoa qualquer. E com que presteza — e com que lógica — Philip Allen lhe veio à idéia... Mas era Pellinzi.
— Como é que o senhor sabe que era Benny? — E Mirche estava atrapalhado, perturbado por alguma visão mental íntima. — O senhor está tentando enganar-me. — Depois, ele quase gritou: — Repito... Não poderia ter sido o Abutre!
— Ah, poderia, sim. É um engano da sua parte. — Vance falava tranqüilamente e com autoridade. — Não há dúvidas possíveis. As impressões digitais não mentem. Pergunte ao sargento Heath ou ao procurador distrital. Ou pode telefonar para a polícia e certificar-se.
— Imbecil! — cortou Owen, com os olhos sonolentos pousados em Mirche, com uma expressão de indizível aborrecimento. Virou-se para Vance. — Afinal de contas, como é fútil... este sonho diabólico... Esta sombra que nos cobre... — E a voz lhe faltou.
Mirche estava olhando fixamente para algum ponto distante além dos limites do cômodo, sozinho com seus pensamentos, lutando para juntar um punhado de fatos isolados.
— Mas — murmurou ele, como se protestando debilmente contra algum vingador inevitável e sem forma — a Senhorita Dell Marr viu o cadáver aqui e...
O homem tornou a cair no silêncio, pensando no assunto. E então um profundo rubor lhe foi aumentando nas feições e aos poucos foi ficando de cor mais intensa, até que pareceu que o sangue ia sufocá-lo. Os músculos do seu pescoço enrigeceram e gotículas de suor lhe apareceram de repente na testa.
Rigidamente e com esforço, o homem virou-se para Dixie Del Marr e, em uma voz de ódio fremente, descarregou contra ela uma saraivada de palavrões.


CAPITULO XIX
ATRAVÉS DA SOMBRA
(Terça-feira, 21 de maio — 16:00 horas)

Outra onda de emoções fortes rompeu a calma de pedra de Dixie Del Marr. Uma paixão violenta e primitiva a consumia por dentro. Ela se levantou e encarou Mirche, e suas palavras saíram em uma torrente incontrolável.
— Claro, sua criatura suja, que eu os deixei pensar que o morto encontrado neste escritório — o homem que você matou — era Philip Allen. Mais alguns dias de dúvida e de tortura para você... Que importava isso? Eu já esperara vários anos para vingar Benny. Oh, eu sabia muito bem que a sua traição o mandara para a cadeia para cumprir vinte anos de prisão. E eu não pude dizer nada para salvá-lo. Havia só um jeito de eu vingar essa injustiça. Eu tinha de esperar com paciência, pois sabia que um dia chegaria a hora... Você gostava de mim... Você me queria. Esse pensamento de me possuir já estava na sua mente inferior quando você deixou que mandassem Benny para a cadeia. Por isso, fingi que estava do seu lado e o ajudei nos seus planos ilegais. Eu o lisonjeei. Fiz o que você mandava. E durante o tempo todo eu amava Benny. Mas eu soube esperar...
Dixie deu uma risada amarga.
— Três anos são muito tempo. E o instante que eu esperara veio tarde demais. Mas eu me consolo com o pensamento de que a morte de Benny foi um fim misericordioso. Ele não podia ter esperanças de uma vida normal, embora tivesse conseguido fugir da prisão. Benny passara a vida inteira sendo perseguido pela polícia. Mas ele foi furioso para a sua cela. Tão furioso a ponto de pensar que podia encontrar a verdadeira liberdade da prisão, para onde a sua traição o havia mandado. Uma fúria irresistível tomou conta da mulher.
— Mas Benny nunca soube da sua traição. Pensava que você era amigo dele. E veio à sua procura para pedir ajuda. Mas, graças a Deus, ele telefonou também para mim quando voltou, no sábado passado. Contou-me que havia telefonado para você antes de chegar à cidade. Que você dissera que o ajudaria. E eu sabia que isso era mentira. Mas que podia eu fazer? Tentei preveni-lo. Mas Benny não me quis dar ouvidos. Pensou que, talvez, depois de tanto tempo, eu tivesse algum motivo forte para querer evitar um encontro entre vocês dois. Não me quis dar ouvidos. Não me contou nada dos seus planos, exceto que você ia ajudá-lo...
— Você está doida — conseguiu dizer Mirche.
— Cale-se, idiota — suspirou Owen. — Você não pode mudar o curso do destino.
— Por isso, eu o segui, Dan, no carro que você me deu, e com o motorista que você me forneceu e que fazia parte da sua quadrilha. — Dixie tornou a rir, com a mesma amargura. — Ele o odeia tanto quanto eu... Mas ele tem medo de você, pois sabe que você pode ser muito perigoso... Eu o segui, desde a hora em que você saiu daqui, na tarde de sábado. Eu sabia que você não deixaria Benny ir até onde você se achava, pois, apesar da sua crueldade, você é um covarde. E eu o segui a um bairro afastado e vi quando você entrou na casa de Tony... Pena que Rosa não tivesse olhado na sua bola de cristal para preveni-lo... E então compreendi o plano torpe que você estava armando para se livrar do Benny. Mas não imaginei que você tivesse coragem de executá-lo, como o fez. Pensei que Benny só deveria morrer quando você estivesse a salvo novamente no seu escritório. Como iria eu saber que você escolheria os cigarros do Tony para fazer o serviço? Pensei que eu ainda podia avisar Benny, antes que fosse tarde de mais... Pensei que eu ainda podia salvá-lo. Por isso, segui você. Vi quando você o apanhou, no lugar onde ele se achava escondido, bem no interior do parque; vi quando você seguiu com o carro rumo ao norte,
atravessando Riverdale; vi quando você parou em um ponto isolado, depois de uma curva, onde pensava que ninguém podia vê-lo. E então, eu o vi colocar o cadáver de Benny rapidamente ao lado da estrada e afastar-se velozmente de carro. A mulher nos varreu com um olhar ardente.
— Oh! Não estou mentindo! — gritou ela. — Nada mais me interessa... exceto o castigo deste homem.
Mirche parecia paralisado, incapaz de falar. Owen, ainda com seu sorriso céptico e distante, não se movera.
— Queira prosseguir, Senhorita Del Marr — pediu Vance.
— Levei o corpo de Benny para meu carro e trouxe-o para aqui, quando sabia que Mirche estaria lá em cima. Cheguei à alameda de entrada de carros, como sempre faço, e parei perto da porta lateral, na extremidade da passagem. — Ela apontou para os fundos do aposento. — Ninguém me podia ver da rua... com a porta do carro aberta. E as trepadeiras também ajudaram a me encobrir. Depois, entrei para me certificar de que não havia ninguém no corredor mais além, e dei o sinal. Meu motorista carregou o pobre Benny e o colocou aos pés do homem que o matara...! Você não sabia, não é, ”Coruja”, que havia um morto naquele armário, quando esteve sentado aqui, conversando comigo, naquela noite?
— E daí? — Houve uma mudança na expressão de Owen.
— E, quando você saiu, ”Coruja”, eu trouxe Benny para baixo da escrivaninha e telefonei para a polícia.
Agora, compreendi que Vance provocara deliberadamente o desabafo frenético da mulher. Enquanto ela falava, ele fizera um sinal ao sargento, e Heath e Hennessey se aproximaram de Mirche sem que este percebesse, e agora o homem se achava com um guarda de cada lado.
— Mas como é, Senhorita Del Marr, — perguntou Vance — que a sua história explica o fato de a cigarreira com perfume de narciso e rosa ter sido encontrada no bolso de Pellinzi?
— Foi medo! Foi a consciência deste patife — retorquiu ela, apontando para Mirche com ar de desafio. — Quando viu o que julgava ser o cadáver de Allen, seu cérebro assustado e enevoado se lembrou de que a cigarreira de Philip Allen ainda estava no seu bolso. E eu o vi, ajoelhado ao lado do cadáver, enfiar a cigarreira no bolso do paletó do morto. O ato impulsivo de um covarde, com o qual ele pretendia livrar-se de toda associação com o que ele julgava ser um segundo assassinato. Mirche queria evitar qualquer possível relacionamento de sua pessoa com outro cadáver.
— É uma versão razoável — murmurou Vance. — Sim. Uma análise bem sutil... E a senhorita se contentou em deixar que a verdade com referência ao morto aparecesse por meio das investigações?
— Sim! Depois de informar à polícia o endereço de Philip Allen, eu sabia que mais cedo ou mais tarde a justiça acabaria descobrindo a verdade. E, enquanto isto, este meliante, Mirche, ficaria preocupado e sofreria... E eu teria meios de sobra para torturá-lo.
— A ética de uma mulher... — começou Owen. Depois, voltou a ficar em silêncio.
— Tem alguma coisa a dizer antes de o prendermos, Mirche? — o tom de voz de Vance era baixo, mas cortante como uma chicotada.
Mirche ficou olhando, de um modo terrível, e sua figura gorducha pareceu encolher-se. De repente, contudo, ele se levantou e apontou um dedo trêmulo contra Owen. As veias do seu rosto estufaram-se como cordéis.
Owen fez um ruído gutural de desprezo.
— Cuidado com a pressão sangüínea, idiota — zombou Owen. — Não vá poupar esse trabalho ao carrasco.
Duvido que Mirche tenha ouvido essas palavras mordazes. Os vitupérios e os palavrões entornaram dos seus lábios. Sua ira parecia ultrapassar todas as fronteiras humanas. Seu veneno transformou-o em um mero autômato: insensato, contorcido, repelente.
— Não pense que levarei a culpa em seu lugar, sem dizer nada! Já cedi demasiado tempo sob a sua influência. Executei os seus planos sujos. Fechei a boca sempre que eles tentavam arrancar de mim a verdade a seu respeito. Posso ir para a cadeira elétrica, ”Coruja”, mas não sozinho! Levarei comigo você com seu cérebro hipnótico e envenenado!
Dirigiu um olhar rápido a Vance e apontou novamente para Owen.
— Ali está o cérebro tortuoso que planejou tudo isto... Eu o avisei da chegada do Abutre, e Owen me mandou buscar os cigarros. Ele me disse o que eu devia fazer. Tive medo de recusar... Achava-me em seu poder...
Owen olhou para o homem com calma zombaria: continuava distante e desdenhoso. A peça estava chegando ao fim, e o seu desprezo e a monotonia da situação ainda não o tinham abandonado.
— Você é um espetáculo triste, Dan. — Seus lábios mal se moveram.
— Se pensa que não estou preparado para este momento, o tolo é você, e não eu. Guardei todos os registros e dados: nomes, lugares... tudo! Durante vários anos, tenho guardado, essas coisas. Eu as ocultei onde ninguém as pode encontrar. Mas eu sei onde as encontrar! E o mundo inteiro saberá...
Essas foram as últimas palavras que Mirche disse em sua vida.
Ouviu-se um tiro. Um pequeno orifício preto apareceu na testa de Mirche, entre os olhos. O sangue gotejou do orifício e o homem tombou para diante, em cima da escrivaninha.
Heath e os dois detetives, com as automáticas empunhadas, começaram rapidamente a atravessar o aposento, para chegar até junto ao imóvel Owen, que continuou sentado, sem se mover, uma das mãos apoiada no colo, empunhando um revólver fumegante.
Mas Vance interveio rapidamente. De costas para a figura silenciosa na cadeira, fez um gesto imperioso para Heath. Virou-se lentamente, depois, e estendeu a mão. Owen ergueu o olhar na sua direção e depois, como se por uma cortesia instintiva, virou o revólver, com o cabo voltado para Vance, e estendeu-o com mansa indiferença. Vance jogou a arma em cima de uma cadeira vazia e, olhando para o homem, esperou.
Os olhos de Owen achavam-se semicerrados e sonhadores. ”O Coruja” não parecia mais notar o que o cercava, nem o corpo de Mirche, que ele acabara de matar, esparramado no chão. Finalmente, ele falou, em um tom de voz que parecia estar vindo de muito longe.
— Isso teria significado as vagas na superfície da água. Vance assentiu de cabeça.
— Sim. Limpeza de espírito... Mas, agora, haverá o julgamento, a cadeira elétrica, o escândalo, que ficarão gravados indelevelmente...
Um tremor sacudiu o débil corpo de Owen. Sua voz se ergueu, até se transformar em um grito agudo.
— Mas como se pode escapar ao finito? Como atravessar a sombra, limpo?
Vance tirou do bolso a cigarreira e segurou-a um instante na mão, mas não a abriu.
— Quer fumar um cigarro, Senhor Owen? — indagou ele. Os olhos do homem contraíram-se. Vance tornou a enfiar sua cigarreira no bolso.
— Sim... — E Owen respirou aliviado, afinal. — Acho que vou mesmo fumar um cigarro. — Enfiou a mão em um bolso interno e de lá tirou uma pequena cigarreira de couro, luxuosa...
— Escute aqui, Vance! — cortou Markham. — O caso deixou de ser da sua alçada. Foi cometido um homicídio diante dos meus olhos, e eu próprio ordeno a prisão deste homem.
— Perfeitamente — disse Vance, em voz arrastada. — Mas, infelizmente, acho que já é tarde demais para isso.
Enquanto Vance falava, Owen afundou mais na sua cadeira; o cigarro que ele acabara de acender lhe escorregou dos lábios e caiu no soalho. Vance esmagou-o rapidamente com o pé.
A cabeça de Owen pendeu para diante, caindo sobre o peito: os músculos do seu pescoço tinham-se relaxado repentinamente.


CAPITULO XX
FELIZ ATERRAGEM
(Quarta-feira, 22 de maio — 10:30 horas)

Na manhã seguinte, Vance achava-se sentado no gabinete do procurador distrital, conversando com Markham. Heath estivera lá, antes, com a notícia da prisão dos Tofanas. No porão da casa deles tinham sido encontradas provas suficientes para condenar ambos, ou pelo menos assim esperava o sargento.
Dixie Del Marr também comparecera, a pedido de Markham, para fornecer pormenores necessários para os registros oficiais. Como não havia nenhum motivo para lhe fazer acusações pelo papel que ela tivera nos negócios de Mirche, Dixie mostrava-se relativamente satisfeita quando nos deixou.
— Realmente, Markham — observou Vance. — Em vista do antigo amor dessa mulher por Benny Pellinzi, sua conduta, como sabemos, é perfeitamente compreensível e perdoável... Quanto a Mirche, teve um fim muito melhor do que merecia... E Owen! Um louco doente. Felizmente, para o mundo, ele escolheu um jeito tão rápido de sair de cena! Sabia que estava morrendo e foi o temor do castigo que lhe inspirou o ato... Podemos dar-nos por satisfeitos em encerrar o assunto. E, afinal de contas, realmente eu fiz ao lunático uma promessa vaga de zelar pelas conseqüências do caso, para que não houvesse ”ondas”, como ele mesmo disse, a segui-lo.
Vance riu melancolicamente.
— Mas, na verdade, que importa isso? Um facínora de importância, é encontrado morto, um acontecimento bem vulgar; um meliante de importância maior é morto com um tiro, também um episódio corriqueiro; e o chefão de uma quadrilha de criminosos se suicida... Bem, talvez isto seja um acontecimento raro, mas, sem dúvida, sem importância... Em todo caso, estamos em plena primavera; a cotovia está esvoaçando, contente, até o caramujo se movimenta... Ei! Que tal irmos comer uns camarões com um bom vinho, depois?
Enquanto Vance falava, a campainha da porta soou e uma voz anunciou a presença do Senhor Amos Doolson na sala de espera. Markham olhou para Vance.
— Suponho que seja a respeito daquele prêmio absurdo. Mas não posso receber o homem agora...
Vance levantou-se rapidamente.
— Deixe-o esperar, Markham! Tive uma idéia.
Depois, foi ao telefone e falou com a Fábrica de Perfumes In-O-Scent. Quando desligou, sorriu para Markham.
— Gracie Allen e George Burns estarão aqui dentro de quinze minutos. — Riu baixinho, realmente muito satisfeito. — Se alguém merece o prêmio, é aquela garota incrível, e vou tomar providências para que ela o receba.
— Ora, você está doido? — disse Markham, surpreso.
— Nada disso. Estou no meu juízo perfeito. E... embora talvez você duvide, sou apaixonadamente dedicado à justiça.
Pouco depois, Gracie Allen e George Burns chegavam.
— Oh, que lugar horrível! — falou ela. — Ainda bem que não tenho de viver aqui, Senhor Markham. — Ela virou os olhos preocupados para Vance. — Tenho de continuar com meu trabalho de detetive? Prefiro trabalhar na fábrica, agora que George voltou e que tudo está bem.
— Não, minha querida — falou Vance, em tom de voz bondoso. — Você já trabalhou até demais. E os resultados que alcançou são soberbos. Na verdade, pedi que você viesse aqui, esta manhã, apenas para receber a sua recompensa. Foi oferecido um prêmio de cinco mil dólares à pessoa que resolvesse o assassinato do homem no Domdaniel. Quem fez o oferecimento foi o Senhor Doolson; e ele está na outra sala, neste instante.
— Oh! — E desta vez Gracie Allen ficou tão intrigada e atônita, que perdeu a fala.
Quando Doolson foi introduzido, dirigiu um olhar de espanto aos seus dois empregados e foi diretamente para a escrivaninha de Markham.
— Quero retirar imediatamente o prêmio, Senhor Markham — disse ele. — Burns voltou para o trabalho, hoje cedo, com excelente disposição, e portanto não há mais necessidade de...
Markham, que já se ajustara ao ponto de vista de Vance, jocoso mas justo, falou na sua maneira mais judiciosa.
— Lamento extremamente, Senhor. Doolson, mas tal retirada está inteiramente fora de cogitações. O caso foi encerrado e arquivado ontem à tarde... Bem dentro do limite de prazo estipulado pelo senhor. Agora, sou obrigado a entregar o prêmio à pessoa que o mereceu.
O homem arregalou os olhos e gaguejou:
— Mas!... — começou ele a argumentar.
— Sentimos tremendamente, Senhor Doolson — intrometeu-se Vance, em tom conciliatório. — Mas tenho certeza de que o senhor ficará satisfeito com sua generosidade impulsiva, quando eu o informar de que é Gracie Allen quem vai receber o prêmio.
— Quê! — explodiu Doolson, como se fosse ter uma apoplexia. — Que é que Gracie Allen tem a ver com isso! É um absurdo!
— Não é, não — retrucou Vance. — É a simples declaração de um fato. Gracie Allen foi a principal colaboradora na solução do caso. Foi ela quem forneceu todas as pistas importantes... E afinal de contas, o senhor recuperou os serviços do Senhor Burns hoje.
— Não consentirei nisso — gritou o homem. — É uma tramóia! Uma farsa! Vocês não me podem obrigar legalmente a fazer isso!
— Pelo contrário, Senhor Doolson — disse Markham. — Sou obrigado a considerar esse dinheiro propriedade da moça. As próprias instruções quanto à concessão do prêmio — ditadas aqui pelo senhor mesmo — não lhe dariam nenhuma arma se o senhor resolvesse impedir legalmente o seu pagamento.
Doolson ficou boquiaberto.
— Oh, Senhor Doolson — exclamou Gracie Allen. — Que lindo prêmio! E o senhor realmente fez isso para que George voltasse para o trabalho voando? Nunca pensei nisso. Mas o senhor precisa terrivelmente dele, não é? E isso me dá outra idéia. Que tal um aumento de salário para George?
— Raios! Isso eu não faço! — E, por um instante, pensei que Doolson estava à beira de um colapso cardíaco.
— Mas suponha, Senhor. Doolson, — prosseguiu Gracie Allen
— que George tornasse a ficar preocupado e não pudesse ir trabalhar! Que seria da sua firma?
O homem controlou-se e estudou George Burns sombriamente, pensativo, durante alguns momentos.
— Sabe, Burns, — disse ele, em tom quase conciliatório — estive pensando, há algum tempo, e achei que você merecia um aumento. Você tem sido um empregado muito leal e muito valioso para a firma. Volte para o seu laboratório imediatamente e discutiremos amigavelmente o assunto. — Depois, virou-se e apontou um dedo para a jovem. — E você, menina, está despedida!
— Oh, não tem importância, Senhor Doolson — retrucou a moça, sorridente e indiferente. — Aposto que o aumento que o senhor vai dar a George fará o salário dele subir e igualar a quantia que o meu e o dele juntos dariam... entende o que eu digo?
— Raios me partam se me importo um pouco, sequer, com o que você diz. — E Doolson saiu pisando duro da sala.
— Creio — disse Vance, amavelmente — que a observação seguinte deve vir de George Burns. — E sorriu para o jovem, de maneira significativa.
George Burns, embora claramente atônito com os acontecimentos da última meia hora, ainda assim estava com a cabeça suficientemente clara para entender o significado das palavras de Vance. Agarrando a sugestão feita, dirigiu-se resolutamente para onde se achava a moça.
— Que tal aquela proposta que fiz a você, na manhã em que me prenderam?
Nossa presença, longe de deixá-lo embaraçado, deu-lhe coragem.
— Ora, que proposta? — perguntou a jovem, maliciosamente.
— Você sabe a que me refiro! — E seu tom de voz era rouco e resoluto. — Que tal nós dois nos casarmos.
Gracie Allen caiu para trás em uma cadeira, com uma risada musical.
— Oh, George! Era isso que você estava tentando dizer!
Pouco mais falta a falar a respeito do que Vance sempre insistiu em chamar de o caso Gracie Allen.
O Domdaniel, como todos sabem, foi fechado há muito tempo, e há poucos anos foi demolido e no seu lugar construído um prédio moderno. Tony e Rosa Tofana resolveram confessar seus crimes e agora estão cumprindo sentença na penitenciária. Não sei o que foi feito de Dixie Del Marr. Talvez tenha adotado novo nome e ido para outra parte do país, para viver tranqüilamente longe dos locais dos seus passados triunfos e sofrimentos.
Gracie Allen e George Burns casaram-se pouco depois daquela proposta de casamento inesperada e divertida, feita no gabinete de Markham.
Em certa tarde de sábado, alguns meses depois, eu e Vance encontramos o jovem casal dando um passeio a pé na Quinta Avenida. Os dois pareciam radiantes de felicidade, e a moça, como sempre, tagarelava muito animadamente.
Paramos alguns minutos para falar com eles. Soubemos que George Burns fora promovido no seu emprego na fábrica de perfumes. E, para gáudio de Vance, veio à baila o fato de que Gracie Allen, por motivos sentimentais, apresentara seu cartão ao Senhor Lyons, da loja Chareau e Lyons, de roupas feitas, quando fora escolher seu vestido de noiva.
Caminhamos ao lado deles durante um curto trecho, e George Burns, no meio de uma frase, parou de repente e notei que suas narinas se dilataram ligeiramente, enquanto ele se inclinava na direção de Vance.
— A fórmula original de Farina para a água-de-colônia! Vance riu.
— Sim. Eu sempre trago água-de-colônia, quando vou à Europa. E isso me faz lembrar: hoje cedo, vi, em uma revista francesa, o nome de um perfume que, depois da colaboração indispensável da Senhora. Burns no nosso caso, você poderia dar, muito apropriadamente, à delicada mistura que você fez para ela. Chamava-se La Femme Triomphant.
Burns sorriu, todo orgulhoso.
— Acho que Gracie o ajudou bastante, Senhor Vance.
A jovem olhou de um para outro, franzindo o cenho, intrigada, e depois riu, acanhada.
— Não compreendo...

O caso chamado Gracie Allen foi sem dúvida o que mais agradou a Philo Vance entre todos aqueles de que participou. Podemos acrescentar que foi talvez o mais divertido de todos.
É verdade que um crime de morte nada tem de divertido e o mistério narrado neste livro tem aspectos sinistros, sombrios e intensamente dramáticos. Mas isso não impediu que o caso, talvez pela intervenção e pelo auxílio de Gracie Allen, tenha um fermento quase constaste de humor e divertimento.
Foi, entretanto, um caso quase incrível de muitos ângulos, mostrando-se extremamente fora do comum e imprevisível. O mistério e o encantamento do perfume impregnam todo o quadro. A magia das previsões comerciais do destino das pessoas se relacionou intimamente com a sua decifração. E houve em todo ele um forte elemento romântico.
Como se vê, O Caso Gracie Allen tem todos os elementos para ser um grande romance policial, pois, além de todos esses ingredientes ótimos, ainda apresenta a personalidade magnífica do grande detetive que é Philo Vance, criação magistral de S. S. Van Dine, que foi um dos grandes autores policiais do mundo.

 

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CAPITULO I
FOGE O ABUTRE

(Sexta-feira, 17 de maio — 20:00 horas)
Por estranho que pareça, Philo Vance sempre gostou mais do caso Gracie Allen do que de qualquer dos outros em que tomou parte ativa.
Talvez esse caso não tenha sido tão sério como alguns dos outros; mas, pensando melhor, não tenho certeza absoluta de que isso seja estritamente verdadeiro. Para ser exato, potencialmente o caso Gracie Allen continha um sem-número de maus agouros. E agora, passando-o mentalmente em revista, relembro que seus elementos básicos eram intensamente dramáticos e sinistros, apesar do seu quase constante tempero de humor.
Nas várias vezes em que perguntei a Vance por que ele gostava tanto desse caso, ele sempre me respondeu, com ar indiferente, que o mesmo constituiu o seu único fracasso flagrante como investigador dos inúmeros crimes que lhe foram apresentados pelo procurador distrital John F.-X. Markham.
— Não... Oh, não, Van; o caso não foi meu, você não sabe? — falou Vance, em tom arrastado, enquanto nós dois estávamos sentados diante do fogo da sua lareira, em certa noite de inverno, muito depois dos acontecimentos. — Na verdade, não mereço nenhum elogio por ele. Eu teria ficado completamente confuso e perdido, não fora a encantadora Gracie Allen, que sempre aparecia na hora do aperto para me salvar do desastre. Se algum dia você publicar esse caso, peço que atribua o mérito a quem realmente o conquistou. Arre, que pequena fenomenal! As deusas do lar olímpico de Zeus jamais atormentaram tanto os velhos Príamo e Agamenon com o esplendor exibido por Gracie Allen ao apoquentar os personagens daquele caso altamente perfumado. Espantoso!...
Foi um caso quase incrível sob vários aspectos, extremamente fora do comum e imprevisível. O mistério e o fascínio do perfume impregnavam todo o quadro. A magia da adivinhação, da cartomancia e da quiromancia comercial estava intimamente envolvida na sua decifração. E havia um elemento humano romântico que lhe emprestou uma cor-de-rosa toda especial.
Para início de conversa, era primavera — o décimo sétimo dia de maio — e o tempo apresentava-se extremamente agradável. Vance, Markham e eu jantáramos na espaçosa varanda do Bellwood Country Club, de onde se dominava o Hudson. Nós três tagareláramos sobre assuntos banais, pois aquela devia ser uma hora de completo relaxamento e prazer, sem nenhuma intromissão dos ásperos interlúdios de crimes que haviam marcado tantas de nossas palestras em anos recentes.
No entanto, até neste momento de serenidade, iam-se alongando feios ângulos de crime, embora nenhum de nós o soubesse; e sua sombra se aproximava sorrateiramente de nós.
Acabáramos de tomar nosso café e estávamos bebericando um delicioso licor fabricado por frades, quando o sargento Heath, com um aspecto sério e espantado, apareceu na porta que levava da sala de jantar principal para a varanda e caminhou em passos largos e rápidos para a nossa mesa.
— Olá, Senhor Vance. — Seu tom de voz era de pressa. — Olá, chefe. Desculpe importuná-lo, mas isto chegou à delegacia meia hora depois da sua partida, e, como eu sabia onde o senhor estava, achei melhor trazê-lo sem demora. — Puxou uma folha dobrada de papel amarelo do bolso e, abrindo-a, colocou-a de maneira enfática diante do procurador distrital.
Markham leu cuidadosamente, fez um movimento de indiferença com os ombros e devolveu o papel a Heath.

— Não entendo — falou ele, sem emoção alguma — por que uma informação rotineira como esta lhe exigia uma viagem até aqui.
As faces de Heath inflamaram-se de exasperação.
— Ora, chefe, esse foi o sujeito que ameaçou sua vida.
— Sei perfeitamente disso — observou Markham, friamente. E depois acrescentou, em tom de voz mais suave: — Sente-se, sargento. Considere-se de folga por alguns instantes e tome um gole do seu uísque predileto.
Depois que Heath se instalara em uma cadeira, Markham prosseguiu.
— Claro que você não espera que eu, depois de tanto tempo, comece a levar a sério as ameaças histéricas de criminosos que condenei no cumprimento dos meus deveres.
— Mas esse sujeito é perigoso, chefe, e não é dos que esquecem ou perdoam.
— Em todo caso — riu Markham, despreocupado —, ele demorará, no mínimo, até amanhã para chegar a Nova York.
Enquanto Heath e Markham falavam, as sobrancelhas de Vance se ergueram, desmonstrando leve curiosidade.
— Escute, Markham... Ao que me parece, o seu sargento teme pela sua existência cerceada, e vejo que você mesmo está um tanto aborrecido com a preocupação zelosa dele.
— Ora, Senhor Vance, não estou preocupado — disse Heath, em um desabafo. — Estou só pensando nas possibilidades, digamos assim.
— Sim, sim, eu sei — sorriu Vance. — Sempre cuidadoso. Cosendo costuras que nem sequer ainda foram rebentadas. Capaz e admirável como sempre, sargento. Mas de onde vem a sua apreensão?
— Sinto muito, Vance. — Markham pediu desculpas pelo seu fracasso de explicação. — Na verdade, não tem nenhuma importância. É apenas um aviso telegráfico de rotina de uma fuga comum em Nomenica. Três homens, condenados a sentenças longas, tentaram a fuga, e dois deles foram baleados pelos guardas...

— Não estou preocupado com os sujeitos que foram baleados — interrompeu Heath. — Minha preocupação está com o outro, com o sujeito que conseguiu escapar...
— E quem seria esse personagem que lhe dá tanto que pensar, sargento? — indagou Vance.
— Benny, o Abutre! — murmurou Heath, com ênfase melodramática.
— Ah! — E Vance sorriu. — Um espécime ornitológico... Buteo borealis. Talvez ele tenha fugido voando...
— Ora, Senhor Vance, não é assunto para brincadeira. — E Heath ficou ainda mais sério. — Benny, o Abutre, ou Benny Pellinzi, para lhe dar o nome de batismo, é um sujeito bastante perigoso, apesar da aparência inofensiva de rapazola de rosto bonito. Apenas há alguns anos, andava por aí dizendo a quem quisesse ouvir que ele era o Inimigo Público Número Um. É um sujeito assim. Mas ele não passava de peixe miúdo, e dele se pode apenas dizer que era um tipo duro e perverso... Na verdade, não passa de um rato imbecil e tolo...
— Rato? Abutre? Diacho... Você não está misturando a sua História Natural, sargento?
— E há apenas três anos — prosseguiu Heath, obstinadamente — o Senhor Markham mandou-o para a penitenciária com uma pena de vinte anos para cumprir. E ele tenta fugir da cadeia, hoje à tarde, e consegue. Não é motivo para preocupação?
— Contudo — observou Vance —, sem dúvida, esse não é o primeiro preso que foge de uma cadeia.
— Sem dúvida. — E Heath resolveu esticar mais um pouco a folga que o procurador lhe dera e pediu outro uísque. — Mas o senhor deve ter lido o que aquele sujeito fez no tribunal quando foi condenado. Mal o juiz acabara de condená-lo a vinte anos de prisão, e ele explodiu. Apontou para o Senhor Markham e, a plenos pulmões, jurou que haveria de voltar para vingar-se dele, mesmo que isso lhe custasse a própria vida. E parecia estar falando sério. O homem achava-se tão furioso e agitado, que foram necessários dois guardas fortes para arrastá-lo para fora do tribunal. Geralmente, é contra o juiz que as ameaças são feitas, mas esse sujeito escolhera como alvo das suas o procurador distrital, e de certa forma isso fez mais sentido.
Vance assentiu de cabeça, lentamente.
— Sim, muito mais. Compreendo o que você quer dizer, sargento. O homem é diferente e, portanto, perigoso.

— E o motivo que me trouxe aqui esta noite — prosseguiu Heath — foi o de dizer ao Senhor Markham o que eu pretendia fazer. Naturalmente, estaremos à procura do Abutre. Ele poderia vir diretamente para cá, ou talvez resolvesse seguir rumo oeste, para tentar alcançar os Dakotas... que, para ele, são um refúgio seguro, se é que ele tem inteligência.
— Exatamente — observou Markham. — Talvez você tenha razão ao dizer que possivelmente o fugitivo seguirá para Oeste. E, sem dúvida, não pretendo fazer nenhuma excursão imediata aos Montes Negros.
— Seja como for, chefe — insistiu o sargento, teimosamente —, não me vou arriscar nem um pouco com o Abutre... ainda mais pelo fato de ele contar com apoio decisivo dos seus velhos amigos desta cidade.
— E que amigos íntimos são esses, sargento?
— Mirch, do Restaurante Domdaniel, e a antiga namorada de Benny, que é a cantora do restaurante... Chama-se Dixie Del Marr.
— Não tenho certeza de que Mirche e Pellinzi são amigos íntimos — disse Markham. — É um assunto discutível.
— Mas, para mim não é, chefe. E, se o Abutre voltar às ocultas para Nova York, tenho um palpite de que irá diretamente a Mirche pedir ajuda.
Markham não discutiu mais as possibilidades. Em vez disso, limitou-se a perguntar:
— Qual é o seu plano de ação, sargento? Heath inclinou-se para o outro lado da mesa.
— Acho que vai ser da seguinte maneira, chefe. Se o Abutre realmente pretende voltar aos lugares por onde andava antes, fará isso com esperteza. Virá depressa, com a rapidez do relâmpago, pensando que não estamos preparados. Se ele não aparecer nos próximos dias, desistirei da minha hipótese e então os rapazes trabalharão no caso à moda rotineira. Mas, a começar de amanhã cedo, pretendo deixar Hennessey de guarda na velha pensão que fica defronte ao Domdaniel, vigiando a pequena porta que leva para o escritório particular de MircTie. E Burke e Snitkin ficarão com Hennessey, para a eventualidade de que o fugitivo apareça.
— Você não está sendo um pouco otimista, sargento? — indagou Vance. — Três anos de prisão podem produzir muitas modificações na aparência física de um homem, principalmente sendo, ele ainda jovem e não muito robusto.
Heath afastou o ceticismo de Vance com um gesto de impaciência.
— Confio em Hennessey... Ele é muito bom fisionomista.
— Oh, não estou pondo em dúvida a habilidade de Hennessey em reconhecer fisionomias — garantiu-lhe Vance. — Contando que o seu Abutre, que adora a liberdade, seja tolo a ponto de escolher a porta da frente para entrar no escritório de Mirche. Mas você não acha, meu caro sargento, que mestre Pellinzi pode achar mais prudente entrar pela porta dos fundos?
— Não há nenhuma porta dos fundos — explicou Heath.
— E não há, também, portas laterais. Existe só uma sala particular, tendo apenas uma entrada, que dá para a rua. É assim que trabalha o tal Mirche... Com tudo às claras. É um sujeito bem esperto...
— Esse escritório fica em um prédio separado? — indagou Vance. — Ou é um anexo do restaurante? Não me lembra bem...
— Nada disso. E quem não o estivesse procurando não o encontraria. É como um cômodo de fim de prédio que tivesse sido separado no canto do edifício, como fazem para separar um consultório médico ou uma pequena loja, em um prédio grande de apartamentos. Mas, se a pessoa quiser encontrar Mirche, aquele é o lugar mais provável para isso. A sala parece tão inocente quanto a casa de uma senhora idosa.
Heath olhou para nós, de maneira significativa, enquanto prosseguia.
— E, contudo, acontece muita coisa comprometedora naquela saleta. Se eu conseguisse ocultar um gravador lá, o gabinete do procurador distrital teria trabalho de julgamentos para manter-se em ação de agora em diante.
O sargento fez uma pausa e piscou um olho na direção de Markham, maliciosamente.
— Que tal acha da minha idéia para amanhã?
— Não pode fazer nenhum mal, sargento — respondeu Markham, sem nenhum entusiasmo. — Mas continuo achando que é perder tempo e energia.
— Talvez seja. — E Heath acabou de tomar o seu uísque.
— Mas, ainda assim, acho que preciso seguir o meu palpite.

Vance colocou na mesa o seu copo de licor e uma expressão extravagante lhe surgiu nos olhos.
— Escute, Markham — disse ele, em voz arrastada. — Seria mesmo perder tempo e energia, não importa qual seja o resultado. Ah, a sua preciosa lei, e seus processos meticulosos! Mesmo que esse falcão de cauda vermelha e nome de ópera aparecesse nos antigos lugares por onde costumava andar e caísse na arapuca do sargento, você ainda o trataria com bondade e ternura, sob a frase eufemística ”nos moldes da lei”. Você lhe afagaria a cabeça. Você faria tudo para prendê-lo vivo, embora ele próprio talvez estourasse os miolos de uns dois auxiliares do sargento. Depois, você lhe daria boa casa e comida; você o levaria pela cidade em um carro de luxo bem possante e, para finalizar, lhe daria uma viagem panorâmica de volta a Nomenica, uma viagem agradável. E tudo para que, meu caro? Em troca do discutível privilégio de sustentá-lo pelo resto da vida, em um gesto muito elegante.
Era evidente que Markham ficara irritado.
— Suponho que você poderia resolver tudo isso com um tiro.
— Bem que poderia. — Vance estava em um daqueles dias em que gostava de provocar os outros. — Esse sujeito é um patife inútil, que de há muito vem apoquentando a lei; que, você muito bem sabe, matou um homem e foi condenado segundo a justiça. Um meliante que planejou uma fuga da prisão, o que custou mais duas vidas humanas; que ameaçou matá-lo a sangue-frio, e que neste exato momento está privando o sargento do seu direito de tirar uma soneca. Não é uma boa pessoa, Markham. E todas essas irregularidades poderiam ser resolvidas com tanta facilidade e rapidez, matando-se o patife sem mais delongas, ou livrando-se dele de outra maneira qualquer, sem mais trabalho nem cerimónia.
— E suponho eu — Markham falou quase com raiva — que você mesmo estaria disposto a executar esse expurgo ilegal.
— Disposto? — Havia um tom provocante na voz de Vance. — Eu ficaria positivamente encantado em fazer isso. Seria a minha boa ação do dia.
Markham tirou baforadas vigorosas do seu charuto. Ficava sempre irritado quando as caçoadas de Vance enveredavam por esse caminho.
— Escute, Vance. Tirar deliberadamente uma vida humana é...
— Por favor, poupe-me o sermão, seu vigário. Já sei o que vai dizer. É uma arenga a respeito de sociedade, lei e ordem e direitos humanos. Mas você tem de confessar que a solução que eu sugeri é lógica, prática e justa.
— Já discutimos esse sofisma várias vezes — cortou Markham. — E, além do mais, não vou deixar que você estrague meu jantar com asneiras desse quilate.

CAPÍTULO II
UM INTERLÚDIO RÚSTICO

(Sábado, 18 de maio — à tarde)
No dia seguinte, pouco depois do meio-dia, encontramo-nos com Markham na sua modesta sala particular de onde se dominava o cemitério. Geralmente, aos sábados, a sala do procurador distrital já estava fechada a estas horas, mas Markham achava-se nas malhas de uma difícil complicação política e desejava ver o caso resolvido o mais rápido possível.
— Lamento muito — falou Vance — que você tenha de trabalhar em uma tarde como esta. Eu tinha esperanças de que talvez pudesse convencê-lo a dar um passeio de carro nos arrabaldes da cidade.
— Quê?! — exclamou Markham, com fingida surpresa. — Você está sucumbindo aos seus impulsos naturais? Não me diga que a Mãe Natureza conseguiu abalar um sibarita ferrenho como você com o seu canto de sereia! Por que não pede a Van para amarrá-lo ao mastro, como manda o figurino da Odisséia?
— Não. Descobri que anseio realmente pela magia de uma ilha paradisíaca cheirando a cidra e a cedros...
— E talvez com uma ninfa dos bosques, como Calipso.
— Ora, meu caro Markham! Nada disso! — E Vance fingiu indignação. — Não, meu caro! Pretendo apenas fazer algumas travessuras no cenário verde do Bronx.
— Vejo que você caiu nas malhas das sereias cor-de-rosa dos campos floridos. — O sorriso de Markham era brincalhão e zombeteiro. — Se o sonho de mau agouro de Heath se realizar, mais tarde navegaremos por uma rota tempestuosa entre a cruz e a caldeirinha.
— Ora, a gente nunca sabe... Mas, se isso acontecer, espero que nenhum homem seja arrancado do nosso navio oco pelas ondas revoltas.
— Ora, por Deus, Vance, não seja tão sombrio. O que você está dizendo é uma tolice completa.
(Lembro-me particularmente dessa resposta clássica e espirituosa, que, sem dúvida, não teria vindo parar nestas páginas, não fora o caso de se ter ela transformado em uma observação curiosamente profética, mesmo quanto ao cheiro de cidra e à caverna do monstro de Messina.)
— E suponho — sugeriu Markham — que você vai dar o seu passeio vestido a rigor. Não sei por que, mas não o consigo imaginar trajado com roupas de excursionista.
— Você está redondamente enganado — disse Vance. — Vou vestir um terno velho de algodão, de tecido riscado, o mais antigo que tenho... Mas diga-me, Markham, que é feito do zeloso sargento e dos maus agouros dele?
— Oh, creio que ele está executando o seu plano inútil — Markham falou com indiferença. — Mas, se o pobre Hannessey tiver de ficar esperando durante muito tempo, terei mais a temer dele, em forma de represália, do que do ilustre Senhor Beniamino Pellinzi. Não consigo entender direito a súbita preocupação de Heath pela minha segurança.
— Bravo sujeito, o Heath. — Vance estudou a cinza do seu cigarro, com um sorriso hesitante. — Na verdade, Markham, pretendo partilhar da hospitalidade cara de Mirche logo à noite.
— Você também! Você vai mesmo ao Domdaniel, logo à noite?
— Não na esperança de encontrar seu amigo, o Abutre — replicou Vance. — Mas Heath despertou minha curiosidade. Gostaria de ver mais de perto o incrível Senhor Mirche. Eu já o vi, é claro, no restaurante, mas, na verdade, sem lhe prestar muita atenção às feições. E quero também dar uma espiada — pelo lado de fora, é lógico — nesse escritório misterioso que tanto agitou a imaginação do sargento... E há sempre a possibilidade de que apareça alguma aventura emocionante quando as sombras portentosas do crepúsculo anunciarem a noite misteriosa que chega e...
— Ora, Vance, pare com isso. Você está parecendo um desses escritores medíocres de novela superbarata. Que pensamento secreto se oculta por trás dessa cortina de fumaça de palavras?
— Se você quer mesmo saber, Markham, a comida lá no Domdaniel é excelente. Eu estava apenas tentando ocultar uma ansiedade de gastrônomo...
Markham bufou e a conversa mudou para outros assuntos, interrompida, de vez em quando, por telefonemas. Quando Markham acabou de cuidar dos preparativos para a tarde e a noite, nos fez passar pelos gabinetes dos juizes e descer para a rua.
Após um rápido almoço, levamos Markham de carro para o seu escritório novamente, e depois seguimos para o apartamento de Vance, um tanto afastado do centro da cidade. Lá, Vance mudou de roupa, envergando agora um velho terno de algodão riscado, muito surrado, e calçou botas mais pesadas e um chapéu macio e bem surrado, tipo Homburg. Depois, saímos novamente até o seu carro e uma hora depois seguíamos de automóvel, muito calmamente, pela avenida Palisade, na parte do Bronx chamada Riverdale.
Nos dois lados da rua havia arvoredo e arbustos densos. O ar apresentava-se impregnado da fragrância de flores da primavera, e de vez em quando surgiam pontos coloridos de verdura. À nossa esquerda, para além de um contínuo muro de concreto, uma ladeira suave levava para o Hudson. À direita, o terreno erguia-se mais abruptamente, e assim o muro de pedra rústica não nos impedia de ver a paisagem.
No alto de uma inclinação ligeira, no exato lugar em que a estrada seguia para o interior, Vance saiu com o carro da estrada principal, parando-o de maneira suave.
— Acho que este aqui é um ponto ideal para nos misturarmos com a flora e comungarmos com a natureza.
Com exceção da cerca do lado do rio e da parede de pedra, que teria, talvez, um metro e oitenta de altura, ao longo da orla interna da estrada, estávamos, segundo tudo indicava, em uma estrada deserta do interior. Vance atravessou a faixa larga e coberta de sombras e capim, que se estendia como um tapete verde entre a rodovia e o muro. Escalou com dificuldade o muro de pedra, fazendo-me um sinal para o seguir, enquanto desaparecia na folhagem rústica e rica que havia do outro lado.
Durante mais de uma hora, andamos para trás e para diante, no meio do mato, e então, repentinamente, quando deparamos novamente com o muro de pedra, Vance olhou com relutância para seu relógio.
— Quase cinco horas — informou ele. — É melhor irmos para casa, Van. Já estamos cansados.
Segui na frente dele para a rodovia, e começamos a voltar lentamente para o carro. Um automóvel grande, rodando quase sem ruído, apareceu de repente na curva. Parei, enquanto ele passava velozmente, e fiquei vendo-o desaparecer no alto da subida. Depois, continuei andando na direção do nosso carro.
Depois de dar alguns passos, notei uma jovem, de pé, perto do muro, bem afastada da rodovia, em um caramanchão isolado e de chão coberto de capim. A moça estava sacudindo nervosamente a frente da sua saia, o que fazia com visível agitação, e batia um pé sobre o chão macio da terra. Parecia perturbada e aborrecida, e quando me aproximei um pouco mais vi que havia um buraco de queimadura na parte dianteira do seu vestido leve de verão. O orifício queimado devia ter uns três centímetros de diâmetro.
Enquanto a moça soltava uma exclamação de aborrecimento, Vance saltava — ou, melhor dizendo, caía — do muro atrás dela. O seu calcanhar ficou agarrado no muro mal feito e, enquanto ele lutava para recuperar o equilíbrio, uma saliência aguda de massa lhe rasgou a manga do paletó. O barulho inesperado assustou novamente a jovem, que se virou, alerta, para ver o que era.
Era pequena e de movimentos graciosos, dona de um rosto oval, provocante, e de feições sensíveis e regulares. Os olhos, grandes e castanhos, eram recobertos por pestanas extremamente compridas. Um nariz reto e fino conferia dignidade e caráter a uma boca feita para sorrir. Era esguia e ágil e parecia combinar perfeitamente com o ambiente rústico que a cercava.
— Caramba! — murmurou Vance, olhando para ela. — Não foi uma entrada muito graciosa no seu caramanchão. Desculpe se eu a assustei.
A moça continuou olhando desconfiada para Vance, e quando tornei a olhar para este compreendi muito bem o que lhe causava essa reação. Vance estava completamente despenteado. Além disso, seus sapatos e suas calças apresentavam-se generosamente cobertos de lama; o chapéu, todo amassado, estava grotescamente torto na sua cabeça, e a manga do paletó, rasgada, dava-lhe a aparência de um mendigo ambulante. A moça logo sorriu.
— Oh, não estou assustada — garantiu ela, em uma voz musical que possuía um timbre muito jovial e muito atraente. — Estou apenas zangada. Terrivelmente zangada. O senhor já ficou zangado? Mas não é com o senhor que estou aborrecida, pois nem sequer o conheço... Talvez eu ficasse zangada com o senhor se eu o conhecesse... Já pensou nisso?
— Sim, sim... Tenho pensado nisso muitas vezes. — Vance riu e tirou o chapéu, com o que ficou imediatamente mais apresentável. — E tenho certeza de que a senhorita teria mais do que motivo para ficar zangada... A propósito, posso sentar-me? Estou exausto...
A moça olhou rapidamente ao longo da estrada e depois se assentou um tanto abruptamente, como uma criança que se deixa cair descuidadamente no chão.
— Isso seria maravilhoso. Vou ler a palma da sua mão. O senhor já mandou ler a palma da sua mão? Sei ler muito bem a palma da mão das pessoas. Delpha me ensinou a ler todas as linhas. Ela sabe tudo referente à leitura de mãos e tudo sobre os astros, e também a respeito dos números da sorte. Ela é cartomante. Além disso, Delpha é médium. Como eu também. Sou médium. O senhor é médium? Mas talvez eu não me possa concentrar hoje. — Sua voz adquiriu um tom místico. — Alguns dias, quando me sinto disposta, eu seria capaz de lhe dizer qual a sua idade e quantos filhos o senhor tem...
Vance riu e sentou-se ao lado da jovem.
— Mas sabe de uma coisa? Acho que eu não poderia suportar saber de fatos tão atordoantes a meu respeito, neste instante ...
Vance tirou do bolso a cigarreira e abriu-a lentamente.
— Tenho certeza de que a senhorita não se importaria se eu fumasse — disse ele, de modo cativante, estendendo-lho a cigarreira. Mas, recebendo em resposta apenas uma risadinha e uma sacudida de cabeça, acendeu um dos seus Régios para si mesmo.
Mas muito me alegra que o senhor tenha falado em cigarros — disse a moça. — Isso me faz lembrar do quanto eu estava furiosa.
Ah, sim. — Vance sorriu, indulgente. — Mas não quer
me dizer com quem estava tão zangada?
A jovem apertou os olhos ao mirar o cigarro que se achava entre os dedos de Vance.
Agora, não sei — respondeu ela, ligeiramente confusa.
Mas que pena... Talvez fosse comigo que a senhorita estava zangada o tempo todo, hem?
Não, não era com o senhor... Pelo menos, eu não achava que era. Agora, não tenho tanta certeza. A princípio, pensei que fosse alguém num carro grande que passou e...
— E por que estava zangada?
— Ah, isso... Bem, olhe aqui para a frente do meu vestido. — Ela estendeu a saia ao seu redor. — Está vendo esse furo enorme de queimadura? Meu vestido está estragado. E eu o adoro. O senhor não gosta dele? Isto é, se ele não estivesse queimado? Fui eu própria quem o fez... Bem, seja como for, eu disse a mamãe como é que eu queria que ela o fizesse. Ele me fez ficar muito bonitinha. E, agora, não o posso mais usar. — Havia um pesar legítimo na sua voz. — Foi o senhor quem jogou aquele cigarro aceso?
— Que cigarro? — indagou Vance.
.— Ora, o cigarro que queimou meu vestido. Deve estar aqui por perto... Bem, em todo caso, a pontaria foi muito boa, já que não podia ver-me para mirar. E talvez o senhor nem soubesse que eu estava aqui. E isso teria dificultado muito atingir-me, não acha?
— Sim, compreendo aonde a senhorita quer chegar. — Vance estava tão interessado quanto divertido. — Mas, na verdade, minha querida, deve ter sido algum vilão que passou no tal carro... Se é que passou mesmo algum carro.
A moça suspirou.
— Bem, então — murmurou ela, resignada —, acho que não era com o senhor que eu estava furiosa. E, agora, não sei com quem era. E isso me deixa mais furiosa do que nunca. Tenho certeza de que, se fosse com o senhor que eu estivesse furiosa, o senhor procuraria reparar o malfeito.
Digamos, então, que lamento tanto o que houve como se eu tivesse jogado o cigarro... — sugeriu Vance.
— Mas, agora, não sei se o senhor o jogou ou não. Se o senhor não podia ver-me através do muro, como é que poderia eu vê-lo?
— Uma lógica incontestável! — retorquiu Vance, adaptando-se à disposição aparentemente fantasiosa da jovem. — Portanto, é preciso que a senhorita me permita reparar o malfeito ... não importa quem tenha sido o culpado.
— Ora... — falou ela. — Não sei o que quer dizer com isso. — Mas havia em seus olhos um brilho que parecia desmentir-lhe as palavras.
— Quero dizer o seguinte: desejo que a senhorita vá à loja Chareau e Lyons e escolha um dos vestidos mais bonitos que eles tiverem. Um vestido que a faça ficar tão bonitinha como este.
— Oh, não tenho dinheiro para comprar um vestido assim!
Vance tirou do bolso a carteira de cartões de visita e, rabiscando algumas palavras em um deles, enfiou-o por baixo da tampa da bolsa de mão da jovem, que estava caída no capim.
— Leve esse cartão ao Senhor Lyon em pessoa e lhe diga que fui eu quem a mandou lá.
Os olhos da moça brilharam de gratidão e ela não protestou mais.
— Como a senhorita diz, muito acertadamente — prosseguiu Vance —, não podia ver através do muro e, portanto, não há meios de provar que não fui eu quem jogou o cigarro.
— Bem, então isso resolve o assunto, não é? — disse ela, rindo novamente baixinho. — Estou tão contente por ter sido com o senhor que eu estava furiosa por ter jogado o cigarro...
— Eu também estou — garantiu Vance. — E, por falar nisso, espero que a senhorita ponha novamente o mesmo perfume, ao usar o seu vestido novo. Esse perfume é como a primavera... ”Um delicioso cheiro de cidra e laranjeiras”, conforme disse Longfellow em um de seus livros famosos.
— Ah, ele disse isso?
— A propósito, que perfume a senhorita usa? Não o reconheço como nenhum dos perfumes mais populares que há por aí.
— Não sei — replicou a moça. — Acho que ninguém sabe. Não tem nome. Imagine, não se ter nome! Se nós não tivéssemos nome, ficaria tudo uma confusão, não é? O perfume foi feito especialmente para mim pelo George... Mas acho que não devo referir-me a ele como George, falando a desconhecidos. Ele é o Senhor Burns. Sou auxiliar dele na Fábrica de Perfumes In-O-Scente. É uma firma grande. Ele está sempre misturando ingredientes diferentes e experimentando-os. É a profissão dele. E é muito hábil. Só tem o defeito de ser sério demais. Mas não creio que ele tenha misturado cidra neste perfume. Na verdade, não sei como é o cheiro de cidra. Pensei que isso fosse uma coisa que a gente põe no bolo.
— O que se põe no bolo é a casca da cidra, em conserva — explicou Vance. — O óleo de cidra é muito diferente disso. Tem cheiro de erva-cidreira e limão. E, quando tratado com ácido sulfúrico, adquire até o cheiro de violetas.
— Não é maravilhoso? — disse ela. — Ora, o senhor fala igualzinho a George. Ele está sempre dizendo coisas assim. Tenho certeza de que o Senhor Burns sabe de tudo a respeito disso. Algumas vezes, fico muito confusa, na hora de lhe levar os vidros certos de extratos e essências. E ele é tão exigente nesse particular... Algumas vezes, ele chega até a dizer que não sei ferver os seus velhos tubos de ensaio e pipetas. Imagine.
— Mas tenho certeza — garantiu Vance — de que a senhorita lhe levou os frascos certos quando ele preparou este perfume que está usando. E tenho certeza de que um deles continha cidra, embora pudesse ter estado com outro nome... E, por falar em nomes, por acaso o seu é Calipso?
A moça sacudiu a cabeça.
— Não, mas é coisa muito parecida com isso. É Gracie Allen...
Vance sorriu e a conversa da jovem assumiu outra direção.
— Mas o senhor não me vai contar o que estava fazendo do outro lado do muro? Isso é propriedade particular, e eu não entraria ali por nada deste mundo. Não seria direito, seria? E, seja como for, não sei onde há um portão. Mas isto aqui é agradável. Já vim aqui várias vezes, e no entanto é a primeira vez que alguém me atira um cigarro, embora eu tivesse estado diversas vezes neste mesmo lugar. Mas acho que um dia sempre as coisas acontecem pela primeira vez. O senhor já pensou nisso?
— Sim, oh, sim. É uma pergunta profunda. — E Vance riu baixinho. — Mas a senhorita não tem medo de vir sozinha a um lugar tão deserto?
— Sozinha? — e novamente a jovem olhou para a estrada. — Não venho sozinha. Geralmente, venho com um amigo que mora lá para as bandas da Broadway. Chama-se Puttle e trabalha na mesma firma que eu. O Senhor Puttle é vendedor. E o Senhor Burns... Já lhe contei tudo a respeito dele. Ficou muito zangado comigo pelo fato de eu ter vindo aqui esta tarde com Puttle. Mas ele fica sempre zangado quando vou a algum lugar com alguém, principalmente se esse alguém é o Senhor Puttle. Não acha que isso é tolice? — E ela fez um muxoxo de contentamento.
— E onde estaria o Senhor Puttle, no momento? — perguntou Vance. — Não me diga que ele está tentando vender perfumes ao longo das estradas de Riverdale.
— Oh, meu Deus, não! Ele nunca trabalha nas tardes de sábado, nem eu. Acho realmente que o cérebro deve descansar de vez em quando, não acha? Oh, o senhor me perguntou onde está o Senhor Puttle. Bem, vou lhe contar, porque tenho certeza de que ele não se importaria. Ele foi procurar um convento de freiras.
— Um convento de freiras? Céus! Para quê?
— Ele disse que de lá se tem uma vista linda, com bancos, flores e tudo o mais. Mas não sabia se ficava para cima da estrada ou para baixo. Por isso, mandei-o procurar primeiro. Não tive vontade de ir a um convento de freiras, sem saber onde ele ficava. O senhor iria a um convento se não soubesse onde ele fica, principalmente se estivesse com os pés doendo?
Não, acho que a senhorita foi muito sensata. Mas acontece que sei onde o convento fica: é do outro lado, bem longe daqui.
Bem, então, o Jimmy... isto é, o Senhor Puttle, seguiu na direção errada. Ele está sempre se enganando. Ainda bem que eu o mandei procurar primeiro...


CAPITULO III
A ESPANTOSA AVENTURA

(Sábado, 18 de maio — 17:30 horas)
A jovem inclinou-se para diante e olhou para Vance, ansiosa e impulsiva.
— Mas eu me esqueci: estou morrendo de vontade de saber o que os senhores estavam fazendo do outro lado do muro. Espero que tenha sido emocionante. Sou muito romântica, sabe? O senhor é romântico? Isto é, adoro as emoções e o perigo. E isto aqui é tão emocionante e misterioso, principalmente com esse muro alto... Sei que os senhores devem ter vivido alguma aventura especial lá. Toda sorte de emoções e aventuras acontece dentro das paredes. Não é à toa que a gente manda construir muros, não é mesmo?
— Realmente.., — Vance sacudiu a cabeça, com fingida ansiedade. — Geralmente, só se faz um muro quando há um motivo muito bom para isso... Para impedir a entrada de alguém ou para manter pessoas dentro dos muros.
— Vê? Eu tinha razão... E, agora, diga-me — implorou ela —, que aventura emocionante os senhores viveram do outro lado do muro?
Vance tirou uma baforada profunda do seu cigarro.
— Sabe de uma coisa? — disse ele, com fingida seriedade. — Tenho medo de deixar alguém saber do que houve...
A propósito, a senhorita gosta de viver aventuras muito ou pouco emocionantes?
— Oh, elas têm de ser terrivelmente emocionantes, perigosas e sombrias, e cheias de espírito de vingança. Sabe, como um homicídio... Talvez um assassinato passional...
— É isso! — E Vance deu uma palmada no joelho. — Agora, posso contar-lhe tudo... Sei que a senhorita compreenderá. Baixou a voz, transformando-a em um cochicho íntimo e cavernoso. — Quando saltei o muro de maneira tão pouco elegante, eu... eu tinha acabado de cometer um homicídio.
— Maravilhoso! Simplesmente maravilhoso! — Mas notei que a moça se afastou um pouco de Vance.
— Era por isso que eu estava fugindo numa carreira desabalada — prosseguiu Vance.
— Acho que o senhor está gracejando — e a jovem ficou novamente calma. — Mas prossiga...
— Na verdade, foi um ato de altruísmo — prosseguiu Vance, que parecia estar-se divertindo realmente com o conto fantástico inventado. — Fiz isso por um amigo... para salvar um amigo do perigo... por causa de uma vingança.
— Ele deve ter sido um patife. Tenho certeza de que ele merecia morrer e de que o senhor praticou uma ação nobre... como os heróis dos tempos antigos. Eles não esperavam a polícia, a justiça e todas essas coisas. Avançavam, a cavalo, e resolviam a parada, num abrir e fechar de olhos. — A jovem estalou os dedos e não pude deixar de pensar na alusão sarcástica de Markham à solução simplista dada por Vance, na noite anterior, para resolver o caso do preso fugido.
Vance estudou a moça, atônito e sério.
— Ora, de uma criança a gente só pode esperar... — começou ele.
— Quê? — fez ela, e franziu o cenho.
— Nada, nada... — E Vance riu baixinho... — Bem, continuando esta sombria confissão: eu sabia que o tal sujeito era um homem muito perigoso e que a vida do meu amigo estava em perigo. Por isso, vim aqui, esta tarde, e lá, no mato sombrio, onde ninguém podia ver, eu o matei... Alegra-me imensamente a senhorita achar que agi corretamente.
Sua história inventada, baseada na sua conversa com Markham na noite anterior, correspondia bem ao desejo inesperado de uma aventura emocionante, expresso pela jovem.
— E qual era o nome do assassinado? — perguntou ela. — Gostaria que fosse um nome horrível. Eu sempre digo que as pessoas têm os nomes que merecem. É como na numerologia... só que é diferente. Quando a gente tem certo número de letras no nome, não é como ter outro número de letras, é? Significa, também, alguma coisa. Delpha me disse.
— Que nomes lhe agradam mais? — indagou Vance.
— Bem, vejamos... Burns é um nome bonito, não acha?
— Sim, acho — E Vance sorriu de maneira agradável. — Por falar nisso, é um nome escocês...
— Mas George não é escocês — protestou a moça, indignada. — Ele é até muito generoso.
— Não, não — apressou-se Vance a tranqüilizá-la. — Quando disse escocês, eu não quis dizer usurário. Em escocês, essa palavra significa ”riacho” ou ”córrego”...
— Ah, água! Isso é diferente. Eu tinha razão! — disse ela, num chilreio. Depois, confirmou, com um movimento de cabeça. — Água! É só o que George consome! Ele nunca toma bebidas alcoólicas. Diz que a bebida alcoólica lhe atrapalha o olfato e o impede de distinguir bem os perfumes.
— Distinguir perfumes?
— Aahn. George está sempre às voltas com perfumes... É a profissão dele. Experimenta perfumes para saber qual será bem vendido, qual será capaz de fazer uma mulher virar uma conquistadora e qual é tão ruim que só serve para sabonete de hotel, Ele é terrivelmente hábil nesse campo. Chegou até a inventar um perfume novo, misturado apenas por ele. E o Senhor Doolson — o nosso patrão — deu nome ao novo produto para George. Bem, não exatamente para George, mas o senhor sabe o que quero dizer.
O orgulho lhe brilhava nos olhos.
— E... oh! — prosseguiu ela, depressa. — George tem cinco letras no sobrenome... Falo sério, basta contá-las... B-U-R-N-S. E eu também tenho cinco letras no meu sobrenome. Não é engraçado? Mas isso significa algo muito importante. É... É ciência. Vibro com o número cinco. Mas o seis me traz muito azar. Sou alérgica — é assim que Delpha diz — ao número seis. Isso é muito científico, sabe?
— O sobrenome do Senhor Puttle tem seis letras — disse Vance, com um olhar maroto para a jovem.
— Ê verdade. Já pensei nisso... Oh, bem... Mas me esqueci... Qual era o nome do homem que o senhor matou tão valentemente?
— O sujeito tinha um nome muito desagradável. Chamavam-no de Benny Buzzard (Abutre).
A cabeça da moça subiu e desceu vigorosamente, demonstrando completa compreensão.
— Sim, é um nome horrível. Tem... deixe ver... sete letras. Oh! É um número místico. Isso é quase destino!
— Bem, ele foi mandado para a prisão, para cumprir uma pena de vinte anos de cadeia. — E Vance reiniciou a sua engenhosa história. — Mas tramou uma fuga e conseguiu escapar ontem, e voltou para Nova York a fim de matar esse meu amigo.
— Oh, então amanhã vão aparecer manchetes em todos os jornais sobre o fato de o senhor o ter assassinado
— Céus! Espero que não apareçam — E Vance fingiu-se dominado por uma grande preocupação. — Sinto que pratiquei uma boa ação, mas espero também, é claro, que não descubram o que fiz. E tenho certeza de que a senhorita não contaria a ninguém, não é mesmo?
— Oh, claro que não — garantiu a moça.
Vance soltou um suspiro exagerado e levantou-se lentamente.
— Bem, agora preciso ir me esconder — falou ele — antes que a polícia venha a saber do meu crime. Mais uma hora e quem sabe? Talvez eles saiam à minha procura.
— Oh, os policiais são uns trouxas — disse ela, com um beicinho — Estão sempre pondo os outros em apuros. Sabe? Se todos fossem bons, não precisaríamos de policiais, não é?
— É...
— E, se não houvesse policiais, não precisaríamos dar-nos ao trabalho de ser bons, não é?
— Céus! — murmurou Vance. — A senhorita, por acaso, é algum filósofo disfarçado?
A jovem pareceu atônita.
— Ora, isto não é um disfarce. Eu só usei disfarce quando... Quando era menina. Fui a uma festa fantasiada de fada.
Vance sorriu em tom de admiração.
— Tenho certeza — disse ele — de que foi uma fantasia completamente dispensável. A senhorita jamais precisará fantasiar-se, minha querida, para passar como uma fada encantadora... Quer apertar os ossos de um vilão barato?
Ela colocou a mãozinha na dele.
— O senhor, na verdade, não é um vilão. Ora, limitou-se a matar um facínora. E muitíssimo obrigada pelo lindo vestido novo — acrescentou ela. — O senhor falou sério quando me mandou buscá-lo?
— Falei seriíssimo. — E a sinceridade da voz de Vance dissipou qualquer dúvida que pudesse restar no espírito da jovem. — E boa sorte com o Senhor Puttle... e com o Senhor Burns.
A moça fez um aceno solene enquanto caminhávamos ao longo da estrada poeirenta na direção do nosso carro. Vance estava ocupado em acender outro cigarro, e quando íamos fazendo a curva da estrada olhei para trás. Havia um rapaz guapo diante da jovem, e compreendi que o tal Puttle, o vendedor de perfumes, voltara da sua busca infrutífera ao convento de freiras.
— Que criatura espantosa! — murmurou Vance, enquanto subíamos no carro e partíamos. — Acho mesmo que ela acreditou, em parte, na minha dramatização dos temores do sargento e nas minhas zombarias contra Markham. Ela é muito ingênua, Van. Ou, talvez, de uma natureza basicamente astuta, superabundante em romance, lutando para viver nas nuvens, neste mundo sórdido. E vivendo do fabrico de perfumes. Que combinação incrível de circunstâncias! Tudo misturado com a primavera... e visões de heroísmo e de amor jovem!
Olhei para ele, com ar indagador.
— Completamente — repetiu ele. — Isso estava indicado de forma definitiva. Mas, infelizmente, acho que os esforços de conquista do Senhor Puttle, da Broadway, vão ser baldados Como você notou, ela usava o perfume sem nome do Senhor Burns, mesmo quando passeando por breves instantes, no interior, com o Senhor Puttle. Levando em conta todos os sinais, considero o misturador e experimentador dos aromas sutis das arábias como favorito disparado para conquistar a Taça do Amor.

CAPITULO IV
O KESTAURANTE DOMDANIEL
(Sábado, 18 de maio — 20:00 horas)

O restaurante Domdaniel, localizado na rua 50, Oeste, perto da Sétima Avenida, atraíra uma freguesia geral e variada durante muitos anos. A reforma do velho casarão no qual o restaurante era instalado fora feita com muito gosto, e grande parte do velho ar de solidez e de durabilidade tinha sido mantida.
De cada lado da larga entrada até às extremidades do prédio corria um terraço estreito e descoberto, onde se viam vasos pseudogregos de alfenas bem aparadas. Na extremidade oeste da casa um beco de serviço separava o restaurante do prédio vizinho. Do lado leste havia uma alameda pavimentada, de aproximadamente três metros de largura, passando sob um alpendre coberto de trepadeiras para a garagem, que ficava nos fundos. Um arranha-céu comercial, na esquina da Sétima Avenida, terminava nessa alameda.
Eram quase oito horas da noite quando chegamos, naquela noite suave de maio. Acendendo um cigarro, Vance espiou para as sombras do alpendre e para a área mal iluminada que ficava mais além. Depois, caminhou com passo apressado alguns metros, pela estreita passagem, e contemplou as janelas cobertas de trepadeiras e a porta lateral, quase oculta da rua. Alguns momentos depois, retornou para junto de mim, no passeio, e voltou sua atenção, aparentemente com indiferença, para a frente do prédio.
— Ah — murmurou ele. — Lá está a entrada do escritório misterioso do Senhor Mirche, que despertou tanta atenção no sargento. Talvez uma janela ampliada, quando o casarão foi reformado. Simplesmente utilitário...
Era, como Vance observou, uma abertura de porta despretensiosa, dando diretamente para o terraço estreito. E duas escadas de madeira, reforçadas, levavam para o passeio. Em cada lado da porta via-se uma pequena janela — ou, diria eu, uma abertura semelhante a uma sacada —, seguramente fechada por uma grade de ferro batido.
— O escritório tem uma janela maior na parte lateral, da qual se domina a alameda forrada de mosaicos — falou Vance. — E também essa janela é fechada por uma grade. A luz que vem de fora deve ser um tanto insuficiente, quando, como o sargento parece pensar, o Senhor Mirche está lá dentro dedicado às suas tramas nefastas.
Para surpresa minha, Vance subiu pela escada de madeira até o terraço e espiou com ar indiferente, por uma das estreitas janelas, para dentro do escritório.
— Por dentro, o escritório parece ser tão honesto e em ordem quanto se apresenta aqui de fora — informou ele. — Acho que o nosso desconfiado sargento tem sido vítima de pesadelos...
Virou-se e olhou para a pensão, que ficava do outro lado da rua. Duas janelas próximas, no segundo andar, localizadas diretamente em frente à pequena porta de canto do Domdaniel, achavam-se às escuras.
— Pobre Hennessey! — suspirou Vance. — Atrás de um daqueles quadrados sombrios de trevas ele está vigiando e tendo esperanças. Ele simboliza toda a humanidade... Bem, vamos deixar de perder tempo. Tenho visões amorosas de um Meando de vitela à Macedônia. Espero que o mestre-cuca não tenha perdido nada da sua habilidade desde a última vez em que estive aqui. Naquela época, esse prato, feito por ele, era sublime...
Caminhamos até à entrada principal e fomos recebidos no luxuoso saguão de recepção pelo untuoso Senhor Mirche, em pessoa. O homem pareceu muito contente de ver Vance, ao qual se dirigiu pelo nome, e nos entregou ao chefe dos garçons, recomendando pomposamente ao nosso acompanhante que nos dispensasse o máximo de consideração e de atenção.
O interior redecorado do Domdaniel possuía uma aparência muito mais moderna do que o exterior. Apesar disso, grande parte do encanto do passado ainda transparecia nos painéis de madeira entalhada, nos corrimões trabalhados da escada e em uma lareira larga que fora deixada intacta em um dos lados da enorme sala principal.
Não podíamos ter escolhido uma mesa melhor do que aquela à qual fomos levados. Ficava perto da lareira, e, como as mesas ao longo das paredes eram ligeiramente elevadas, tínhamos uma vista livre de todo o salão. Mais para a nossa direita, um tanto distante, ficava a entrada principal, e à nossa esquerda situava-se o estrado da orquestra. Defronte a nós, do outro lado do salão, um arco levava ao corredor; e para além dele, quase como que recortada na soleira da porta, podíamos ver a escada larga e atapetada que levava para o andar de cima.
Vance olhou de relance por todo o salão, sem fixar muito o olhar, e depois voltou a atenção para o trabalho de encomendar o jantar. Feito isso, meu companheiro se recostou na sua cadeira e, acendendo um cigarro, relaxou todo o corpo, instalado confortavelmente. Mas notei que, por baixo das pálpebras semicerradas, Vance perscrutando todas as pessoas que se se achavam ao nosso redor. De repente, endireitou o corpo na cadeira e, inclinando-se na minha direção, murmurou:
— Arre! Acho que estou ficando velho e que meus olhos estão-me enganando. Olhe à minha direita, perto da entrada. É a espantosa jovem do cheiro de cidra. E está-se divertindo muito. Acha-se na companhia de um namorado muito bem vestido. Não sei se o jovem é o que a acompanhava na excursão a Riverdale ou se é o tal Burns, o rapaz sério e abstêmio. Seja quem for, está sendo muito atencioso para com ela, e acha-se tremendamente satisfeito consigo mesmo.
Reconheci imediatamente o elegante rapaz que eu vim do relance quando íamos fazendo a curva da avenida Palisade, quando voltávamos para o carro. Informei Vance do que, sem dúvida nenhuma, era o jovem Puttle.
— Isso não me surpreende nem um pouco — foi sua resposta. — É evidente que a moça está seguindo a técnica milenar e sobejamente comprovada como eficaz. Puttle receberá uma porcentagem esmagadora dos seus favores, até chegar o momento realmente importante da decisão final. Aí, creio eu que o eleito será Burns, que hoje é desprezado. — E riu baixinho. — Os truques do amor são sempre os mesmos. Oh, se o próprio Burns estivesse em cena aqui esta noite, afastado dela, roendo-se de ciúmes e estourando de raiva! — E sorriu, divertido.
O olhar de Vance tornou a vagar pelo salão, enquanto ele puxava preguiçosamente fumaça do seu cigarro. Dentro em pouco, seu olhar pousou em um homem que se achava sozinho a uma pequena mesa, no canto mais distante.
— Sabe, acho que encontrei o nosso jovem Burns, a hipotenusa dolorosa do meu triângulo imaginário. Ele está sozinho. A idade confere com a dele. É um rapaz sério. Senta-se a uma mesa colocada no ângulo exato que lhe permita observar a sua fujona ninfa das matas e seu companheiro. Observa-a atentamente, e parece aborrecido e tão enciumado, que chega até a pensar em assassinato. Não tem apetite para comer o que tem diante de si. Sobre sua mesa não há vinho nem bebidas alcoólicas. E está... fulo de raiva!
Deixei meu olhar seguir o de Vance, enquanto este falava, e observei o jovem solitário. Tinha o rosto sério e um tanto agressivo. Apesar do senso de humor denotado pelas suas sobrancelhas, viradas em um ângulo para cima, sua testa larga dava a impressão de considerável profundeza de pensamentos e de capacidade de julgamento acurado. Seus olhos cinzentos eram bem afastados um do outro e de cativante candura, e tinha o queixo sensível, embora firme. Trajava-se com apuro, embora com simplicidade, em forte contraste com a grandeza exibicionista da forma de trajar do Senhor Puttle.
Durante um intervalo do espetáculo de pista, o jovem solitário levantou-se um tanto hesitante da sua cadeira e encaminhou-se, com passos largos e resolutos, até à mesa ocupada pela Senhorita Allen e seu companheiro. Os dois o cumprimentaram sem entusiasmo. O recém-chegado, franzindo a testa de modo desagradável, não fez nenhuma tentativa para ser cordial.
A jovem levantou o cenho com uma altivez teatral, totalmente em desacordo com a expressão maliciosa das suas feições. Os modos do seu acompanhante eram indiferentes e dotados de palpável condescendência. Seu papel era o de um homem vitorioso que trata com o inimigo vencido e atormentado. Seu efeito sobre Burns — se é que era Burns — deve ter sido tremendamente agradável para ele. Isto, juntamente com o falso desdém da jovem, intensificou ainda mais o mau humor do Intruso. Este fez um gesto desajeitado de derrota e, virando-se, voltou desanimado para sua mesa. No entanto, notei que a Senhorita Allen lançou vários olhares abertamente na sua direção, o que deixava entrever que ela estava longe de ser indiferente para com o rapaz, como fingia ser.
Vance observava o pequeno drama, entre interessado e encantado.
— E agora, Van, — falou ele — o quadro do amor jovem está completo. Ah, o coração feminino, eternamente sádico e, no entanto, leal...!
Quinze ou vinte minutos depois, Mirch, sorrindo de canto a canto da boca e fazendo mesuras, entrou no refeitório, vindo do corredor da entrada principal, e seguiu adiante, rumo aos fundos do salão, até uma pequena mesa que ficava atrás do estrado da orquestra, onde uma das artistas se achava sentada. Tratava-se de uma mulher loura e de uma beleza berrante, que, segundo eu sabia, era a famosa cantora Dixie Del Marr.
Dixie saudou Mirche com um sorriso que parecia mais íntimo do que seria de se esperar que o fosse entre empregada e empregador. Mirche puxou a cadeira que se achava diante da mulher e sentou-se à mesa. Fiquei um tanto surpreso ao notar que Vance os observava atentamente, e senti que não se tratava apenas de mera curiosidade inconseqüente da sua parte.
Tornei a voltar o olhar para a mesa da cantora. Dixie Del Marr e Mirche tinham dado início ao que parecia ser um bate-papo confidencial. Achavam-se inclinados para diante, na direção um do outro, e era evidente que desejavam evitar serem ouvidos pelos que se achavam perto deles. Mirche frisava algum ponto, e Dixie Del Marr concordava, com um aceno afirmativo de cabeça. Depois, a Senhorita Del Marr fez uma pergunta, à qual o outro, por sua vez, respondeu com um aceno compreensivo de cabeça.
Depois de alguns minutos dessa conversa aberta e, no entanto, sigilosa, ambos recostaram-se em suas cadeiras e Mirche deu uma ordem a um garçom que passava. Alguns momentos depois, o garçom voltava com dois copos finos e compridos de um líquido cor-de-rosa.
Muito interessante — murmurou Vance. — Fiquei curioso...


CAPITULO V
UM ENCONTRO
(Sábado, 18 de maio — 21:30 horas)

Foi pouco depois disto que notei que a jovem Gracie Allen se levantava alegremente da sua cadeira, ao lado do radiante Senhor Puttle. Fez-lhe um aceno acanhado enquanto deslizava ao longo do restaurante, como uma gazela cheia de graça.
Céus! — falou Vance, rindo baixinho. — A espantosa ninfa dos bosques está vindo na nossa direção. Se ela me reconhecer, a história que inventei esta tarde vai cair em pedaços sobre minha cabeça mentirosa...
Enquanto meu companheiro falava, ela o observava. Depois, jogou as mãos para o alto, em um gesto de surpresa e encantamento, e veio rumo à nossa mesa.
— Que surpresa agradável — falou ela. Depois, censurou Vance, em voz mais baixa: — O senhor é um assassino muito atrevido. Terrivelmente ousado. Não sabe que alguém pode vê-lo aqui? Um garçom, por exemplo, ou outra pessoa qualquer.
— Ou a senhorita — sorriu Vance.
— Oh, mas eu não contaria a ninguém. Não se lembra? Eu prometi não contar. — A moça sentou-se com espantosa rapidez e riu baixinho, em tom musical. — E eu sempre digo que as pessoas devem cumprir as promessas feitas, se é que sabe a que me refiro... Mas meu irmão é esquisito nesse particular. Ele jamais cumpre as promessas que faz, embora cumpra muitas das outras coisas que se propõe a fazer. E algumas vezes ele se mete em sérios apuros por não cumprir aquilo que combina. Está sempre encrencado. Talvez seja porque é tão ambicioso. O senhor é ambicioso?
— Por falar em promessas — falou Vance — a senhorita cumpre todas as promessas que faz ao Senhor Burns?
— Nunca fiz nenhuma promessa ao George — garantiu ela a Vance, com um rubor de confusão aumentando em suas feições maliciosas. — Que foi que o fez pensar isso? Mas ele tem feito tudo para me fazer prometer-lhe alguma coisa. E fica terrivelmente zangado comigo. Está zangado esta noite. Mas, é claro, ele não demonstraria isso diante de tanta gente. George é tão cavalheiresco... Jamais se sabe em que ele está realmente pensando. Mas ninguém sabe, também, em que eu estou pensando. Só que não sou cavalheiresca. Ó Senhor Puttle diz que sou apenas bonitinha e atraente. E ele me conhece há muito tempo. E acho que é muito melhor ser bonitinha e atraente do que ser cavalheiresca. O senhor não concorda comigo?
Vance não fez nenhum esforço para ocultar sua hilaridade.
— Claro que concordo — respondeu ele. — E, a propósito, onde está o cavalheiresco Senhor Burns esta noite?
A moça deu uma risadinha abafada, embaraçada.
— Está sentado do outro lado do salão. — Virou graciosamente a cabeça, para indicar o jovem solitário que antes já nos atraíra a atenção. — E parece, também, sentir-se muito infeliz. Não consigo imaginar por que ele veio aqui esta noite... Sei que George nunca veio a este restaurante. Quer saber de um segredo? Pois vou-lhe contar, mesmo que o senhor não queira ouvir. Eu também estou vindo aqui hoje pela primeira vez. Mas isto aqui está-me agradando. O senhor não está gostando? Isto é muito grande e barulhento. E há tanta gente... O senhor não gosta de ver muita gente em um lugar só? Acho que aquela gente é muito agradável. Mas receio que George não esteja gostando do ambiente. Talvez seja por isso que está com aquele ar tão infeliz.
Vance não a interrompeu. Meu companheiro parecia estar-se divertindo com a inconseqüente saraivada de palavras da jovem.
— E... oh! — exclamou ela, como se lhe tivesse ocorrido algum pensamento de importância transcendental. — Esqueci-me de dizer-lhe: sei quem o senhor é! Que acha disso? O senhor é Philo Vance, não é? Não acha que sou terrivelmente esperta por saber disso? Aposto que o senhor não sabe como foi que descobri. Olhei no cartão de visitas que o senhor me deu hoje à tarde e lá estava o seu nome! Isto é, o Senhor Puttle olhou no seu cartão e disse que aquele devia ser o seu nome. E também ficou zangado um instante, quando lhe contei o caso do vestido novo que vou buscar na segunda-feira. Mas logo se acalmou novamente. Disse que, se o senhor era tão trouxa, ele não tinha nada com isso, e que gente como o senhor nasce a todo instante. Não sei o que quis dizer com isso. Mas foi assim que descobri o seu nome.
A moça mal fazia pausas para respirar.
— E... ohl O Senhor Puttle me contou mais alguma coisa a seu respeito. Uma coisa muito emocionante. Disse que o senhor era uma espécie de detetive e que era o senhor quem era elogiado por todo o trabalho duro que os pobres policiais fazem. Isso é mesmo verdade?
E ela nem esperou resposta.
— Em certa ocasião, meu irmão quis entrar para a polícia, porém não entrou. Mas não importa, pois acho que ele não tem altura suficiente para ser um polícia de verdade. Não é alto como o Senhor Puttle. É pequeno, como eu e George. E nunca vi um policial pequeno. O senhor já viu? Mas talvez ele pudesse ter sido detetive. Aposto em que ele nunca pensou nisso. Ou talvez também não haja detetives de baixa estatura. Alguém pode ser detetive, sendo pequeno demais? Ou talvez o senhor não saiba.
Vance riu, muito divertido, olhando dentro dos olhos da moça, como se desconcertado pelas suas confusas divagações.
— Tenho conhecido alguns detetives de baixa estatura — disse-lhe Vance.
— Bem... Em todo caso, acho que meu irmão não sabia disso. Ou talvez não quisesse ser detetive. Pode ser que ele desejasse ser policial apenas porque os policiais usam uniforme... Oh, senhor Vance? Acaba de me ocorrer outra coisa. Aposto em que sei que o senhor não tem medo de estar aqui esta noite. Eles não podem prender um detetive! E também não podem prender um policial, podem? Se pudessem, quem ficaria para prender os homens fora da lei? E, por falar no meu irmão, ele também está aqui esta noite. Está aqui toda noite...
— Ah! — murmurou Vance. — E onde é que ele está sentado?
— Oh, não quero dizer que ele esteja aqui no restaurante — declarou a moça, ingenuamente. — Ele trabalha aqui.
— Não diga! Que é que ele faz?
— O serviço dele é muito importante.
— Ele trabalha no Domdaniel há muito tempo?
— Ora, trabalha aqui há mais de seis meses! É muito tempo, em se tratando do meu irmão. Parece que ele nunca foi muito de trabalhar. Acho que é um sonhador. Em todo caso, alega que nunca lhe dão o merecido valor. E foi só hoje que ele disse que vai ter um aumento de salário. Mas receia que seu patrão também não lhe dê o devido valor.
— E que é que seu irmão faz aqui? — indagou Vance.
— Trabalha na cozinha. E lavador de pratos. É por isso que seu trabalho é tão importante. Imagine, se um restaurante grande como este não tivesse um lavador de pratos! Não seria horrível? Ora, nem sequer se poderia fazer uma refeição. Como poderiam servir a comida à gente, se os pratos estivessem imundos?
— Devo confessar que a senhorita tem razão — admitiu Vance. — Seria uma situação muito embaraçosa. Como você diz, o trabalho do seu irmão é muito importante. E, de passagem, diga-se que a senhorita é a jovem mais deliciosamente espantosa e mais perfeitamente natural que já conheci na minha vida.
Ficou evidente que o elogio foi desperdiçado com ela, pois a moça voltou imediatamente ao assunto do seu irmão.
— Mas talvez ele deixe o emprego hoje. Disse que deixaria, se não obtivesse aumento. Mas acho que, na verdade, ele não devia deixar o emprego, o senhor não acha? E vou dizer isto a ele... Aposto que o senhor não sabe aonde eu vou agora.
— Espero que não vá à cozinha.
— Ora, o senhor é mesmo um bom detetive. — Os olhos da moça, pestanejando, arregalaram-se. — É para lá que eu iria, mas Philip, meu irmão, afirmou que eles não me deixariam entrar na cozinha. Mas vou-me encontrar com ele na escada da cozinha. Philip disse que eu estava apenas fazendo-me de importante quando lhe disse que viria aqui esta noite. Imagine! Ele não quis acreditar em mim. Portanto, eu disse: — Então, você vai ver. — E ele retrucou: — Se você for mesmo ao Domdaniel, vá ao meu encontro na escada da cozinha, às dez horas da noite. — E é para lá que eu vou agora. Meu irmão tinha tanta certeza de que eu não viria aqui, que prometeu que, se eu lhe provasse que estava aqui, indo ao seu encontro, não sairia do emprego, mesmo que não lhe dessem aumento de salário. E sei que a mamãe quer que ele continue no emprego. Portanto, tudo sairá bem... Oh, que horas são, Senhor Vance? Vance consultou de relance o seu relógio.
— Faltam cinco minutos para as dez horas.
A jovem levantou-se tão de repente quanto se sentara.
— Não me importo muito com o bobo do Philip — falou ela. — Mas quero fazer mamãe feliz.
Enquanto Gracie se apressava rumo à distante passagem em arco, Burns, o rapaz solitário, se levantou e a seguiu rapidamente para o corredor. Quase simultaneamente, os dois passaram pela tapeçaria de damasco que havia na soleira da porta e desapareceram de vista.
Vance notara o jovem correr atrás da Senhorita Allen e fez um aceno benevolente de satisfação.
— Pobre e infeliz rapaz! — observou ele. — Agarrou a sua única oportunidade fugidia de falar a sós com sua amada. Espero que ele não cometa a imprudência de ralhar com ela... Mas, seja o que for que ele fizer, a deusa Afrodite já lhe está sorrindo de forma favorável, embora ele não lhe reconheça a fisionomia sorridente.
Voltei minha atenção, com indiferença, para a mesa onde Mirche e a Senhorita Del Marr tinham estado sentados. No entanto, a cantora havia desaparecido, e Mirche perscrutava de forma complacente o salão de refeições. Depois, ele seguiu pelo corredor, rumo à entrada principal.
Ao chegar à nossa mesa, parou um instante, fez uma mesura pomposa, para se certificar de que não nos faltava nada, e Vance convidou-o para sentar-se conosco.
Não havia nenhuma característica que distinguisse Daniel Mirche de forma especial. O homem era do tipo comum, esse misto de político e de dono de restaurante, grande e um tanto exibicionista. Era, ao mesmo tempo, agressivo e bajulador, com maneiras de polidez superficial. Seus cabelos ralos eram ligeiramente grisalhos e seus olhos tinham um peculiar matiz esverdeado.
Vance conduziu a conversa com facilidade, abordando vários aspectos relacionados com o interesse de Mirche no restaurante e sua gerência. Seguiu-se uma discussão a respeito de vinhos e suas safras. Momentos depois, Vance lançara-se a um dos seus assuntos prediletos: isto é, os conhaques raros do distrito oeste central da França, os distritos de Grande Champagne e Pequeno Champagne e os vinhedos em torno de Mainxe e Archiac.
Enquanto eu perpassava os olhos pelo salão, a esmo, notei que o jovem Burns voltara para sua mesa. E pouco depois a moça reaparecia no arco da porta do lado oposto, indo diretamente rumo ao Senhor Puttle. Nem sequer olhou de relance na nossa direção; e, pela expressão de desanimo do seu rosto, só pude supor que ela falhara no seu objetivo.
No entanto, não me ocupei demasiado tempo com essas reflexões. Minha atenção foi atraída pela entrada furtiva e quase felina de um homem magro e alto, que seguiu, como se não quisesse atrair atenção, para uma pequena mesa no canto oposto do salão. Essa mesa, não muito distante daquela em que se encontrava sentado o desalentado jovem Burns, já estava ocupada por dois homens, que se achavam de costas para o salão; e, quando o recém-chegado ocupou a cadeira vaga diante dos dois, eles se limitaram a fazer um aceno de cabeça.
Meu interesse por esse personagem alto e magro baseava-se no fato de que ele me fazia lembrar de fotografias que eu tinha visto de um dos facínoras mais notórios da época, um tal Owen. Corriam os boatos mais desagradáveis a respeito do tal homem, e houvera rumores de que ele era o planejador — ou, como se diz vulgarmente na gíria jornalística desse tipo de reportagens, ”o cérebro” por trás de certas organizações, de vulto considerável, de meliantes. Acreditava-se que ele representava um papel de direção entre os fora-da-lei, e que esse papel era tão importante que o homem conquistara o apelido de ”Coruja”.
Havia uma característica notável implícita nas suas feições super-refinadas. Uma característica maligna, sem dúvida, mas que deixava entrever potencialidades muito vastas e talvez até heróicas. O homem se formara com louvor em uma grande universidade e me trouxe à mente um lindo retrato de Robespierre que eu vira um dia: lá estava a mesma expressão maquiavélica de inteligência e de sagacidade. O homem tinha cabelos e olhos escuros, mas uma pele sem cor, como se fosse de cera. A impressão dominante que ele dava era de uma dureza inflexível: era fácil imaginá-lo desempenhando as funções de um carrasco com um sorriso indiferente e cruel nos lábios finos.
Estou descrevendo este homem de maneira tão minuciosa porque ele deverá representar um papel de vital importância no estranho desenrolar do caso que estou contando. Mas, naquela noite, eu não podia mesmo por um salto fantástico de imaginação, tê-lo ligado, fosse como fosse, com a quase incrível e descuidada Gracie Allen. E, contudo, esses dois caracteres tão diferentes deveriam cruzar o caminho um do outro, em breve, da maneira mais espantosa.
Eu já estava para afastar esse homem da minha mente, quando notei um tom de voz fora do comum na fala de Vance, enquanto ele batia papo com Mirche. Com aquela fleuma peculiar e ao mesmo tempo alerta, Vance estava olhando fixamente para a mesa situada no canto mais distante, onde os três homens se achavam sentados.
— A propósito — falou ele a Mirche, um tanto abruptamente. — Aquele, sentado lá, perto da coluna do canto, não é o famoso ”Coruja” Owen?
— Não conheço o Senhor Owen — respondeu Mirche, suavemente. No entanto, virou-se ligeiramente, com natural curiosidade, na direção apontada por Vance. — Mas poderia ser — acrescentou ele, depois de um instante de exame. — Até que é parecido com as fotografias que tenho visto do Senhor Owen... Se quiser, posso ir-me certificar.
— Oh, não, não é preciso — falou Vance. — Mas é muita amabilidade sua. Mas não é coisa importante, sabe?
Os componentes da orquestra iam voltando aos seus lugares, e Vance empurrou sua cadeira para trás.
— Tive uma noitada muito agradável e edificante — disse ele a Mirche. — Mas, agora, preciso mesmo ir andando.
Os protestos delicados de Mirche pareceram bastante legítimos, quando ele nos sugeriu que ficássemos pelo menos até depois do número de Dixie Del Marr, que seria o próximo.
— É uma excelente cantora — acrescentou Mirche, com entusiasmo. — E uma mulher de raro encanto pessoal. Ela faz seu número às onze da noite, e já está quase na hora.
Mas Vance alegou assuntos urgentes que ainda lhe exigiam a atenção naquela noite e pôs-se de pé.
Mirche exprimiu seu profundo pesar e nos acompanhou até à entrada principal, onde nos deu um efusivo boa noite.

CAPITULO VI
O CADÁVER
(Sábado, 18 de maio — 23:00 horas)

Descemos a escada de degraus largos de pedra, até à rua, e seguimos para leste. Na Sétima Avenida, repentinamente, Vance fez sinal para um táxi e deu ao motorista o endereço da residência do procurador distrital.
— Nesta altura, Markham já deve ter voltado da sua ronda de tarefas políticas — disse Vance, enquanto seguíamos para o centro da cidade. — Sem dúvida, ele me criticará impiedosamente pela minha aventura noturna oca. Mas, não sei por que, senti uma inquietação estranha esta noite nos salões espaçosos do Domdaniel, depois de ouvir as observações pouco recomendáveis do sargento a respeito do restaurante. O restaurante continua sendo como sempre foi. No entanto, por que minha mente era assombrada por pensamentos sinistros e de mau agouro, enquanto eu remexia no Meando e bebericava o Château Haut-Brion. Acho que, com o correr dos anos, os tentáculos envolventes da desconfiança estão-se fechando sobre minha natureza, outrora confiante. Ai de mim...!
O táxi parou de chofre diante de um pequeno prédio e fomos imediatamente para o apartamento do procurador distrital.
Markham, usando paletó esporte e chinelos, recebeu-nos com divertida surpresa.
— Espero que não seja outro mensageiro afobado com más notícias.
— Nada de Hermes nem de caduceus. Você está sendo acossado pelos arautos?
— Mais ou menos isso — retorquiu Markham, com uma careta. — O sargento aqui acaba de me trazer uma mensagem.
Eu não notara a presença de Heath, mas agora o vi, de pé, perto de uma janela, na sombra. O sargento avançou com um aceno amigável de cabeça.
— Caramba, sargento — falou Vance. — Que veio fazer aqui?
— Vim por causa da mensagem de que o Senhor Markham estava falando, Senhor Vance. Uma mensagem de Pittsburgh.
— São más notícias?
— Bem, não são exatamente o que se poderia chamar de boas — queixou-se Heath. — Acho que são até bem ruins.
— Não diga...
— Acho que não errei muito nas deduções e previsões que fiz ontem à noite a respeito do caso... O capitão Chesholm, de Pittsburgh, acaba de mandar-me a notícia de que um dos seus motociclistas localizara um carro viajando sem luzes em uma estrada secundária, e que, quando o carro diminuiu a marcha para fazer um curva apertada, um sujeito que viajava no banco traseiro deu dois tiros contra o policial. O carro fugiu, seguindo para leste, rumo à estrada principal.
— Mas, sargento, por que esse pequeno tiroteio na Pennsylvania perturbaria a sua excelente voz de tenor?
— Vou-lhe dizer por que. — Heath tirou o charuto da boca. — O guarda pensou ter reconhecido Benny, o Abutre!
Vance não se deixou impressionar.
— Nas circunstâncias em que se deu o fato, ele pode ter-se enganado redondamente.
— Foi exatamente o que eu disse ao sargento. — Markham fez um aceno de cabeça, aprovando. — Nas próximas semanas, vamos receber comunicados de que Pellinzi foi visto em todos os Estados deste país.
— Talvez — insistiu Heath. — Mas o modo como o tal carro estava viajando encaixa exatamente na minha idéia. O Abutre já poderia ter chegado a Nova York hoje cedo, se ele tivesse vindo diretamente de Nomenica. Mas, fazendo um círculo até a Pennsylvania e vindo de lá rumo oeste, talvez ele pretendesse, com isso, evitar muitas dificuldades.
— Pessoalmente — falou Markham — estou convencido de que aquele sujeito se manterá afastado de Nova York. — Seu tom de voz era equivalente a uma crítica à ansiedade do sargento.
Heath sentiu a repulsa.
— Espero que não o tenha importunado, vindo aqui esta noite, chefe. Eu sabia que o senhor tinha dois compromissos hoje, e pensei que ainda estivesse de pé.
Markham suavizou o tom de voz.
— O fato de você ter vindo aqui não tem importância — falou ele, para tranqüilizar o defensor da lei. — Tenho sempre prazer em vê-lo, sargento. Sente-se e sirva-se da garrafa... Talvez o próprio Senhor Vance esteja à procura de uma platéia para contar a ela a respeito das sobrancelhas arqueadas de Mirche e de outros pormenores horrendos da sua estada no Domdaniel... Então, Vance? Você tem alguma história de duendes com que nos regalar antes de irmos para a cama?
Heath instalara-se em uma cadeira e serviu-se de uma bebida. Vance também estendera a mão para pegar o seu conhaque predileto.
— Sinto muito, Markham, velho amigo — disse ele, na sua voz arrastada. — Não tenho nenhuma fantasia para contar... Nem mesmo uma a respeito de um carro misterioso em fuga. Mas tentarei igualar a história inspirada do sargento com um conto sobre uma ninfa dos bosques e um experimentador de perfumes; de uma Lorelei que canta de um pódio em vez de cantar de um penhasco rochoso. De um dono esperto de um restaurante e de um escritório vazio, cercado de grades misteriosas; de uma sacada coberta de trepadeiras e de uma coruja sem penas... Você poderia suportar ouvir o cântico do meu poema?
Estou com resistência baixa.
Vance estendeu as pernas diante de si.
— Bem, com licença, então — começou ele. — Nesta noite, uma encantadora jovem, uma garota espantosa, nos fez companhia à nossa mesa, durante alguns minutos. Uma criança, cujo cérebro é uma roda-viva e gira como um pião, irradiou as fagulhas mais coloridas; porém, seu espírito, é tão ingênuo quanto o de uma criança.
— A tal ninfa dos bosques de quem você tagarelou no preâmbulo?
— Sim... Ela mesma. Eu a vi pela primeira vez hoje à tarde em um bosque sombrio em Riverdale. E ela estava no Domdaniel hoje à noite, acompanhada por um sujeito chamado Puttle, que ela estava usando como isca para fisgar o verdadeiro queridinho do seu coração, um rapaz de nome Burns. Este também se achava presente esta noite, mas longe da moça, e sozinho... e muito infeliz.
— Seu encontro com ela hoje à tarde sugere possibilidades mais interessantes — comentou Markham, com indiferença.
— Talvez você tenha razão, meu caro. A verdade é que a moça se achava sozinha quando me introduzi no seu reino florestal. Mas ela aceitou minha intromissão sem dificuldades. Até se ofereceu para ler a palma da minha mão.
— Delpha? — interrompeu Heath, em tom agudo. — Refere-se àquela cartomante que negocia com a profissão sob esse nome falso?
— Talvez seja — falou Vance. — Essa Delpha, ao que me consta, lida com leitura das linhas da mão, com astrologia, com numerologia e com outras coisas semelhantes. Você conhece essa pitonisa, sargento?
— Claro que conheço. E conheço também o marido dela, de nome Tony. Os dois são ligados de estranha maneira com um punhado de malfeitores do submundo. Esse casal atua como informante e como observador para assaltos a joalharias... São o que se poderia chamar de espiões para assaltos. Mas não conseguimos pilhá-los em flagrante. O sobrenome deles é Tofana e os dois têm uma loja para enganar os trouxas... ”Delpha” — bufou ele. — Para os vizinhos, ela é apenas Rosie. Talvez ela fique livre das grades durante algum tempo, mas algum dia eu a agarrarei.
— Você me deixa atônito, sargento. Simplesmente, não posso imaginar que minha linda fada dos bosques — que, a propósito, trabalha em uma fábrica de perfumes a semana inteira — tenha algo a ver com a megera sombria da sua descrição.
— Mas eu posso — falou Heath. — Esse é um dos truques mais batidos da velha Rosa Tofana: cercar-se de jovens inocentes. E, enquanto ela finge ser uma comerciante inofensiva e imaculada, o velho Tony está talvez tramando alguma patifaria, ou batendo carteiras, bancando o gigolô ou então vendendo entorpecentes do outro lado da cidade. Esperto, o Tony... Sabe fazer quase de tudo.
— Bem — murmurou Vance. — Talvez estejamos falando de duas mulheres diferentes, não é? ”Delpha” pode ser um nome popular da irmandade mística. Talvez uma sugestão fonética para o oráculo de Delfos...
— Coragem, Vance — interrompeu Markham, em tom agradável. — Não deixe que o sargento o afaste do seu conto da carochinha.
— E o pormenor mais espantoso — prosseguiu Vance — foi o cheiro de cidra que havia ao redor do duende. O perfume fora feito especialmente para ela, e não tinha nome. Muito misterioso, hem? Fora preparado pelo cavalheiro chamado Burns, uma espécie de mago das essências, empregado na mesma fábrica em que a moça trabalha. Burns, que ficou tão aborrecido com a aparente preferência que ela resolvera passar a dar a um rival dele.
Markham deu um sorriso torto.
— Não consigo entender onde é que entra o mistério da situação.
— Nem eu — confessou Vance. — Mas deixe seu cérebro obtuso demorar sobre o fato de que a tal jovem foi escolher exatamente esta noite para visitar o restaurante de Mirche.
— Talvez ela tenha seguido os seus passos, desde Riverdale, até você chegar ao Domdaniel.
— Ora, isso não resolveria nada. Ela já se achava lá quando eu cheguei.
— Então, talvez a moça estivesse com fome.
— Eu já pensara nisso. — Os olhos de Vance brilharam alegremente. — Talvez você tenha solvido o mistério! Mas... — prosseguiu ele — isso não explica o fato de que o próprio Mirche estivesse no Domdaniel.
— Ora, e onde é que você queria que ele estivesse? Mas talvez você agora vá dizer-me que ele é o pai da sua heroína, de quem se separara há muito tempo, não é?
— Não — suspirou Vance. — Mirche, ao que temo, é de uma sublime ignorância da existência da jovem. Que maçada. E eu, que estava tentando inventar uma história divertida para você se entreter...
— Aprecio o esforço. — O charuto de Markham precisava ser aceso novamente, e ele cuidou disso. — Mas diga-me o que achou de Mirche. Lembro-me de que seu objetivo principal, ao ir hoje ao Domdaniel, foi o de estudar o homem mais de perto.
— Ah, sim. — Vance mexeu-se e afundou mais na sua poltrona. — Você é sempre tão prático, Markham... Bem, não gosto de Mirche. É um cavalheiro correto, mas não admirável. No entanto, fez esforços enormes para me agradar. Não sei o motivo disso... Talvez ele estivesse tramando alguma sujeira, embora tenha-me dado a impressão de que é do tipo de homem que precisaria de alguém para fazer planos para ele. Não, Mirche não é um líder de homens, mas, sem dúvida, é um assecla fiel e capaz. Um sujeito sombrio e perverso... Bem, aí tem você o vilão da peça.
— E que farei com ele? Seu conto está fracassando a cada instante que passa.
— Receio que você tenha razão — confessou Vance. — Deixe-me ver... Examinei detidamente o escritório de Mirche, mas, infelizmente, a sala achava-se desprovida de qualquer coisa comprometedora. Apenas uma sala de tamanho razoável, sem nenhum ocupante. E depois olhei com muito gosto para a velha porta e para as janelas que ficam além do alpendre, dentro da alameda por onde entram os carros. Mas, apesar de todo o exame minucioso que fiz, não consegui descobrir nada que ajudasse. Mas as trepadeiras que havia por lá eram muito agradáveis. Trepadeiras inglesas.
— Agora, você passou para a Botânica — disse Markham. — Devo dizer que prefiro a narrativa, feita pelo sargento, do tiroteio de Pittsburgh... Mas você não falou de uma Lorelei?
— Ah, sim. E bem loura... como convém a uma sereia do Reno. Mas o nome dela tem um elo gaulês: Del Marr. Uma Lorelei impressionante. Mais inteligente, creio eu, do que Mirche. Mas houve uma conversa séria entre ela e Mirche. Os dois sentaram-se a uma mesa, durante um intervalo de descanso da orquestra, e tenho certeza de que a conversa não se limitou a assuntos musicais ou profissionais de empregador e cantora. Havia uma atmosfera de intimidade entre os dois. Liberdade, igualdade, fraternidade... Assim. Não era uma simples contratada conversando com seu empregador.
— Eu também imaginei isso, há alguns anos — intrometeu-se Heath. — Além disso, ela tem um carro de luxo e motorista. Sua profissão de cantora certamente não lhe dá dinheiro para tanta coisa. E a cara do tal motorista também não me agrada: é um tipo mal-encarado, como um desses leões-de-chácara que trabalham nas casas de jogatina.
— Pelo menos, Vance, — falou Markham, esperançoso — você descobriu uma ligação em potencial entre os componentes do seu drama, quase totalmente desorganizados e sem relações entre si. Talvez você possa desenvolver a estrutura da sua narrativa tendo isso como base.
Vance sacudiu a cabeça, desanimado.
— Não, acho que, infelizmente, não estou à altura da tarefa.
— E que há a respeito da ”coruja sem penas” de que você falou há pouco?
— Ah! — E Vance bebericou o seu conhaque. — Eu me referia ao sombrio e misterioso Senhor Owen, de lembrança detestável e má reputação.
— Compreendo. ”Coruja” Owen, hem? Eu tinha uma idéia vaga de que ele se estivesse torrando ao sol da Califórnia. Há algum tempo atrás, correu o boato de que ele estava morrendo, talvez por efeito dos seus pecados.
— Oh, estava bem vivo lá no Domdaniel, sentado do outro lado do salão, junto com dois outros homens.
— Aqueles dois sujeitos — adiantou Heath — eram, talvez, seus guarda-costas. Ele não anda sem a companhia dos dois.
— Acho que você não vai conseguir nada com ele, Vance — falou Markham. — Certa ocasião, o FBI se preocupou com ele, mas, depois de efetuar investigações, declararam o homem isento de culpa. Ou, pelo menos, disseram que não havia provas da sua culpa.
— Confesso que estou derrotado. — Vance sorriu, tristonho. — Cheguei até a tentar atrair Mirche para que este confessasse que conhecia Owen. Mas o homem negou o mínimo conhecimento com o ”Coruja”...
Após mais uma hora de conversa sem objetivo, fomos interrompidos pelo tilintar do telefone. Markham franziu o cenho, aborrecido, enquanto atendia. Depois, pondo o receptor no lugar, virou-se para Heath.
É para você, sargento. É Hennessey.
Heath também ficou aborrecido.
— Desculpe, chefe. Não deixei este número com ninguém quando vim para cá.
Enquanto saudava Hennessey pelo telefone, sua voz era belicosa. Escutou vários minutos, a expressão fisionômica mudando rapidamente da beligerância para outra de quem está profundamente confuso. De repente, berrou para o fone: ”Não desligue, espere um instante!” — E, segurando o receptor do telefone de lado, virou-se para nós:
— Parece-me uma loucura, chefe, mas Hennessey está telefonando lá do Domdaniel, e preciso ir falar com ele imediatamente...
— Esplêndido! — disse Vance, num impulso. — Por que não manda Hennessey vir aqui? Tenho certeza de que Markham não se oporia.
Markham dirigiu a Vance um olhar de espanto.
— Está bem, sargento — disse ele, de mau humor. Heath recolocou novamente o fone ao ouvido, com rapidez.
— Escute, Hennessey — disse ele, em voz áspera. — Venha aqui à casa do procurador.
— Que agitação é essa, sargento? — indagou Vance. — Terá o Mirche se escondido com seu próprio dinheiro e fugido com a Senhorita Del Marr para casar-se com ela?
— É muito esquisito — murmurou Heath, ignorando a pergunta. — Os rapazes encontraram um cadáver de homem no restaurante.
— Espero, nesse caso, que tenha sido achado no escritório de Mirche — disse Vance, em tom leve.
— O senhor acertou. — E Heath olhou fixamente para o soalho.
— E de quem seria o cadáver?
— É justamente isso que torna a coisa esquisita. O cadáver é de um empregado que trabalhava na cozinha do restaurante.
— Esse fato o ajudará a reviver o seu conto fracassado? — perguntou Markham a Vance.
— Céus, não! Isso fulmina completamente toda a minha história. — Vance tornou a se virar para Heath. — Você já sabe o nome do morto, sargento?
— Não prestei muita atenção ao nome quando Hennessey disse que era apenas um empregado de cozinha. Mas me pareceu algo como Philip Allen.
As pálpebras de Vance bateram ligeiramente.
— Philip Allen, hem? Muito interessante!

CAPITULO VII
ESTRANHAS COINCIDÊNCIAS
(Domingo, 19 de maio — 0:45 horas)

Hennessey chegou em menos de quinze minutos. Era um homem corpulento e sério, de feições severas e maneiras desajeitadas.
Heath foi diretamente ao assunto que interessava.
— Conte sua história, Hennessey. Depois, eu lhe farei perguntas. Mas, primeiro, quero saber por que você me telefonou para cá a estas horas da noite.
— Diacho, sargento! — retrucou Hennessey. — Havia mais de uma hora que eu estava tentando encontrá-lo. Eu sabia que o senhor fazia ligação de idéias entre o Senhor Markham e o Domdaniel, e imaginei que o senhor quereria saber de uma morte inesperada acontecida lá. Por isso, telefonei para sua casa e para inúmeros outros lugares em que eu pensava que o senhor poderia estar, mas em vão. Depois, arrisquei-me a ligar para cá. Eu não queria que o senhor gritasse comigo amanhã, para me passar um carão.
— Bem, o que você sabe? — resmungou Heath.
— A história parece um tanto maluca, sargento. Mas, por volta das onze horas, vi o Senhor Vance sair do restaurante. Antes disso, já o vira rondando o escritório de Mirche...
— Às oito horas — interrompeu Vance, com um sorriso.
Hennessey tirou seu caderno de anotações e virou algumas
páginas.
— Às sete e cinqüenta e seis, Senhor Vance.
Céus, que observação meticulosa!
Hennessey sorriu.
— Bem... Uns quinze ou vinte minutos depois que o Senhor Vance saiu, dois homens do Departamento de Homicídios chegaram com o Dr. Mendel, e os três entraram no escritório de Mirche. Achei aquilo esquisito, e por isso deixei Burke de vigia, em companhia de Snitkin, e fui ver o que estava acontecendo. Quando estávamos subindo a escada, o próprio Mirche chegou correndo, todo agitado, passou por nós e entrou na sala. Acho que o porteiro, que o senhor conhece, Joe Hanley, deve ter-lhe dito que alguma coisa estranha estava acontecendo...
— Não tente adivinhar coisas.
— Pois bem — prosseguiu Hennessey. — Dentro da sala havia um sujeito de terno preto, estendido no chão, com meio corpo embaixo da escrivaninha. Mirche foi até junto dele, cambaleando um pouco e mortalmente pálido. Inclinou-se bem perto, por cima do homem, ao lado do médico, que estava abrindo a camisa do cadáver e encostando-lhe ao peito uma dessas cornetas acústicas...
— Um estetoscópio! Céus! — Vance olhou para Markham.
Eu não sabia que um médico oficial levava um desses fiéis instrumentos consigo.
— Geralmente, não leva — falou Markham. — Mendel é um médico jovem e acaba de ser nomeado para o corpo médico; por isso, não me surpreenderia se ele levasse também consigo um espirômetro por onde anda, e também o seu diploma.
— Prossiga, Hennessey — grunhiu Heath. — E depois? Guilfoyle perguntou a Mirche quem era o sujeito. Não sei se o que aconteceu em seguida foi antes ou depois que Mirche respondeu à pergunta; só sei que mais ou menos nessa altura Dixie Del Marr entrou correndo. E Mirche disse, num cochicho, que a vítima era um dos lavadores de pratos do restaurante um tal Philip Allen. Eu mesmo poderia ter contado isso a Guilfoyle. Eu conhecia Allen, e o tinha visto pessoalmente naquela tarde. Depois, Guilfoyle perguntou a Mirche por que o rapaz estava no escritório, onde ele vivia e o que Mirche sabia sobre sua morte. O sapo velho declarou que não sabia de nada a respeito do morto, nem de como ele fora parar ali, ou onde ele morava. De que era tudo um mistério para ele. E parecia ser sincero, ou estava fingindo muito bem.
— Tem certeza de que ele não estava enganando a todos vocês? — indagou Heath, desconfiado.
— Ahn? A mim, não — garantiu Hennessey. — Nenhum sujeito pode fingir tão bem estar abalado.
— Que aconteceu depois?
Hennessey prosseguiu, agora mais depressa.
— O médico começou a examinar o homem, levantando-lhe as pálpebras, espiando a sua garganta, movendo suas pernas e braços... Todos os exames de praxe. E, enquanto ele estava ocupado em mexer no sujeito, a tal Dixie Del Marr abriu a porta de um armário embutido e tirou um livro de registro da firma. Virou algumas páginas, e depois disse: ”Aqui está, Mirche. Philip Allen mora na rua Leste, 37, número 198, com a mãe dele”.
Markham olhou para cima e virou-se para Vance.
— Vejo que sua dedução, não muito profunda, está sendo apoiada de leve. Sua Lorelei é, evidentemente, a guarda-livros de Mirche.
Hennessey ficou impaciente com a interrupção.
— Depois, Guilfoyle perguntou ao médico qual fora a causa da morte do homem. ”Não sei” — foi a resposta do médico. ”Talvez ele tenha morrido de morte natural, mas não posso dizer, apenas com o exame superficial feito. Ele apresenta queimaduras nos lábios e sua garganta parece ter alguma coisa. Vocês vão ter de levá-lo ao necrotério para uma autópsia completa.” — O médico nem sequer sabia há quanto tempo a vítima estava morta.
— E que fez a cantora Del Marr? — indagou Heath.
— Recolocou o livro na prateleira do armário embutido e sentou-se em uma cadeira, com uma expressão dura e indiferente, até que Mirche a mandou voltar para o restaurante.
— E então vocês mandaram o cadáver para o necrotério. — Heath estava tirando baforadas no seu charuto, sombriamente.
— Isso mesmo, sargento. Guilfoyle se encarregou de chamar o carro fúnebre. Ele e o outro investigador do Departamento de Homicídios, de nome Sullivan, encarregaram-se das investigações... É uma história boba, mas sei que o senhor sempre desconfiou daquele tal Mirche... Principalmente agora, com o Abutre à solta.
Heath franziu o cenho e dirigiu a Hennessey um olhar fixo e frio.
— Está bem! — berrou ele. — Quem entrou no escritório, depois que o Senhor Vance chegou lá, às oito da noite?
— Ah, isso é fácil. — E o policial riu, desconsolado. — A cantora Del Marr entrou no escritório por volta das oito e meia e saiu logo depois. Pouco mais tarde, o porteiro entrou lá também. Mas creio que ele costuma fazer isso sempre. Acho que Hanley apenas foi lá para tomar um gole de uísque, pois saiu esfregando a boca com a manga do paletó...
— A que horas aconteceu tudo isso? — indagou Heath.
— No início da noite, uma hora depois que o Senhor Vance esteve lá.
— Suponho que você investigou para saber se algum deles viu o cadáver, não é?
— Claro que sim. Mas nenhum deles o viu. O porteiro foi lá depois da cantora, e pode apostar sua vida em que, se houvesse um cadáver lá dentro, Hanley teria soltado um grito. Ele é um sujeito honesto, sargento.
— Claro. Conheço Joe Hanley há muito tempo. — Heath pensou um momento. — Nada disso faz sentido... Mas, agora, quero saber de uma coisa: a que horas você tirou a sua soneca, esta noite?
De repente, compreendi a significância da pergunta de Heath.
- Juro por Deus, sargento, não tirei nenhuma soneca.
Mas não sei como o tal Allen entrou no escritório. Não o vi entrar lá.
— Ahn! — E havia um mundo de sarcasmo no grunhido do sargento. — Você não dormiu, mas Allen entrou no escritório, teve um ataque cardíaco, ou coisa semelhante, e morreu enrodilhado embaixo da escrivaninha de Mirche! Esta é a última piada para os anais da polícia.
Hennessey ficou vermelho como um camarão.
— Eu não o culpo por estrilar, sargento. Mas, sinceramente, não afastei os olhos daquela porta nem por uma fração de segundo...
— Então, a vítima se tornou invisível e entrou lá sem quo você a visse, num passe de mágica. Ou talvez tenha descido pela chaminé, como o Papai Noel... Se é que há chaminé. — A ironia do sargento pareceu desnecessariamente brutal.
— Escute, sargento — interrompeu Vance. — O verdadeiro objetivo da vigilância de Hennessey era ficar alerta ao aparecimento de Benny Pellinzi, não se esqueça disso. Sem dúvida, você não postou três marmanjos na pensão apenas para vigiarem um pobre lavador de pratos.
Heath abordou outra faceta do assunto.
— Quem foi que telefonou para a chefatura de polícia, Hennessey?
— Essa é outra coisa engraçada, sargento. O telefonema chegou, por vias normais, às dez e cinquenta... não mais de dez minutos depois que o senhor saiu. Quem telefonou foi uma mulher. Ela não quis dar o nome; bancou a misteriosa e desligou.
— Sim. Se foi engraçado... Podia muito bem ter sido essa megera dessa cantora, Del Marr.
— Também pensei nela, e a interroguei a respeito do assunto. Mas ela parecia ignorar tanto o fato como Mirche o ignorava. Mas poderia ter sido alguma das velhas empregadas que trabalham na cozinha. Grande parte dos empregados entra e sai por aquela alameda que dá para o escritório. E, se um deles quisesse bisbilhotar, bastar-lhe-ia levantar-se na ponta dos pés e espiar pela janela.
— E o edifício de escritórios que fica ao lado da alameda? — indagou Vance.
Foi Heath quem respondeu à pergunta.
— Não há janelas ali, senhor. Os primeiros três andares são fechados por uma parede maciça de tijolos...
O cigarro de Vance se acabara e ele acendeu outro.
— Juntando tudo isso — comentou ele — não pareço muito promissor para um crime misterioso. É muito triste. Tive esperanças tão grandes quando Hennessey telefonou a essa hora mais ou menos de bruxaria.
— Tenho de confessar — disse Heath — que eu também não consigo vislumbrar nada de especial no relatório de Hennessey. Mas há outra coisa que eu desejo saber. — E tornou a virar-se para Hennessey. — Você disse que conhecia esse lavador de pratos, o Allen, e que o viu mais cedo, no mesmo dia. Fale-nos a esse respeito.
— Eu fiquei conhecendo-o por acaso — retrucou o policial. — Uma noite, no inverno passado, ele saiu correndo da alameda, por volta das três horas da madrugada, e quase me derrubou no chão. Eu o agarrei e levei-o à presença de Hanley, para ver quem ele era. Depois o soltei. Hoje à tarde, eu o vi rondando o escritório de Mirche. Entrou e saiu de lá três ou quatro vezes, entre uma e cinco horas da tarde. Depois por volta das seis, quando Murche chegara ao escritório, o rapaz tornou a entrar lá e ficou uns dez minutos, dessa vez. Quando saiu, foi a última vez que o vi.
— Para onde foi ele?
— Sei lá... Não sei ler os pensamentos dos outros. Ele não voltou para a cozinha, se é isso que o senhor deseja saber. Foi para a rua.
— Tem certeza de que foi Allen quem você viu? — indagou o sargento, desanimado.
— Claro que tenho! — riu Hennessey. — Mas é muito engraçado o senhor me perguntar isso. Na primeira vez em que vi Allen, esta tarde, tive a idéia maluca de que poderia ser Benny, o Abutre: são ambos da mesma estatura, com o mesmo rosto redondo e pálido, macilento. E Allen trajava um terno simples e preto, como já lhe disse... e é assim que o Abutre estaria vestido, se ele quisesse entrar aqui, furtivamente, e desejasse evitar que o vissem com facilidade. O senhor se lembra das roupas elegantes que ele usava nos velhos tempos. Em todo caso, resolvi certificar-me. Eu sabia que estava agindo como um tolo, mas fui até o restaurante e disse olá ao sujeito. Era mesmo Allen. Ele me disse que estava por ali a fim de conseguir um aumento de salário com o velho Mirche. Pura perda de tempo!
Heath coçou a cabeça.
— Mais alguma coisa a respeito do tal Allen lhe vem à idéia?
— Eu estava pensando — disse Hennessey. — Sim... Ele se encontrou com um sujeito por volta da metade da tarde, aproximadamente às quatro horas. Era um homem miúdo, como Allen. Os dois foram para o lado oeste do restaurante e pouco depois se empenharam em animada discussão. Parecia que a qualquer instante iriam sair para os sopapos. Mas não lhes prestei muita atenção, e finalmente o tal sujeito foi embora. Tem mais alguma pergunta, sargento?
Vance chamou Heath de lado e lhe cochichou algumas palavras ao ouvido. Finalmente, o sargento fez um movimento indiferente de ombros e confirmou de cabeça. Depois, tornou a se virar para Hennessey.
— É só isto — falou ele. — Vá para casa e durma um pouco. Mas esteja de volta ao trabalho ao meio-dia.
Quando Hennessey se retirara, Markham, notando uma mudança repentina na maneira de se portar de Vance, franziu a cenho e inclinou-se para diante.
— Em que é que você está pensando, Vance? — perguntou ele.
— Na história de Hennessey. No meu conto de fadas de hoje à noite, não mencionei o nome da ninfa dos bosques. Ela se chama Gracie Allen. E Philip Allen é seu irmão. Ela me contou, muito francamente, que ele era lavador de pratos no Domdaniel. Ela até me contou que ele ia encurralar Mirche, hoje à tarde, no covil deste, para lhe pedir aumento de salário. E, quando a Senhorita Allen parou junto à minha mesa, esta noite, estava indo ao encontro do irmão, em alguma parte das dependências do restaurante.
Markham tornou a recostar-se no espaldar da poltrona, com uma risada curta.
— Talvez você possa encaixar tudo isso na fantasia que estava tecendo hoje cedo.
— É como você diz, meu velho amigo. — Vance não estava mais disposto a gracejar. — Sem dúvida, vou tentar fazer isso. Não me conformo com o fato de tantas coisas irrelevantes acontecerem em um lugar só e ao mesmo tempo. Deve haver alguma coisa unindo esses acontecimentos. Em todo caso, não estou disposto a continuar acordado, e por isso vou para casa dormir.
Vance caminhou até o fim da sala, no sentido do comprimento, depois voltou, de cabeça baixa. Em seguida, parou de chofre e sorriu, com um misto de seriedade e embaraço, mas bem resoluto.
— Escute aqui, Markham — falou ele. — Confesso que minhas idéias são muito vagas e que aquela bruxazinha em Riverdale pode ter-me enfeitiçado. Mas me sinto inclinado a descobrir o que puder a respeito da morte prematura de Philip Allen, e talvez assim amenizar o choque para a jovem. E preciso da sua ajuda para isso. Você não quer apoiar minhas excentricidades mais uma vez?
Markham suspirou, resignado.
— Farei tudo para me livrar de você a estas horas avançadas e impróprias.
— Já que é assim, encarregue-me do caso Allen, para eu brincar com ele como bem entender, mas, naturalmente, tendo a meu lado o eficiente sargento.
Markham hesitou.
— Que tal acha disso, sargento?
— Se o Senhor Vance tiver algumas idéias extravagantes — retrucou Heath, vigorosamente — prefiro trabalhar com ele.
— Está bem, sargento, então vá trabalhar com o nosso dramaturgo amador. — Depois, Markham virou-se novamente para Vance. — E, quanto a você — falou ele, com uma franqueza brincalhona — acho que é doido varrido.
— Vá lá. Mas não se esqueça de que o grande louco de hoje é o Prêmio Nobel de amanhã...

CAPITULO VIII
NO NECROTÉRIO
(Domingo, 19 de maio — 1:30 horas)

Vance, Heath e eu fomos primeiro ao apartamento de Vance. Lá, enquanto Vance trocava de roupas, vestindo um terno folgado, Heath deu alguns telefonemas necessários.
Interrogou Guilfoyle, durante algum tempo, a respeito de quaisquer pormenores pertinentes que Hennessey pudesse ter omitido, e deu ordens a Sullivan para ficar no Domdaniel até o meio-dia. Em seguida, telefonou para o Dr. Mendel. Achei, tanto pela sua expressão como pelas perguntas que fez, que Heath ficou intrigado e aborrecido com as informações que estava obtendo do jovem médico. Quando Vance voltou para junto de nós, o sargento, ao que parecia, continuava pensando no assunto.
— Este caso — falou ele — está começando a parecer ainda mais maluco do que a princípio, a história de Hennessey mostraria. O Dr. Mendel ainda acha que Allen poderia ter morrido de morte natural, mas descobriu um punhado de indícios de que ele poderia ter sido assassinado. Ele está transferindo a responsabilidade para outro, e mandou o cadáver sem demora para o necrotério, onde Doremus fará a autópsia. Mendel não se quer envolver no caso. Quando lhe perguntei a que horas ele achava que o sujeito morreu, procurou ganhar tempo, falando de rigidez de morte e de certa forma de espasmo.
— Espasmo cadavérico — contribuiu Vance.
— Sim, é isso. E, depois, começou a dizer que há muita coisa, em medicina, que ainda é desconhecida. Como se isso fosse novidade para mim!
— Sim, nós já sabemos isso de cor e salteado — suspirou Vance. — Mas, enquanto isso, você já avisou a mãe do rapaz que morreu?
— Sim, é preciso avisá-la. Pensei em mandar o Martin, que é muito jeitoso para essas coisas.
— Não... Oh, não, sargento — falou Vance. — Já estou vendo a careta que a pobre senhora fará se você mandar Martin. Nós vamos avisá-la pessoalmente.
— Está bem, chefe. — O sargento piscou um olho e sorriu. — O senhor pediu o caso, e agora ele é seu. Em todo caso, esse trabalho de identificação não levará muito tempo.
Descobrimos a residência da Senhora Allen na rua Leste, número 37, uma habitação modesta: um velho prédio de frente de tijolos à vista, que fora dividido em pequenos apartamentos. A própria Senhora Allen atendeu, quando tocamos a campainha. Achava-se completamente vestida e todas as luzes estavam acesas na sala mobiliada com simplicidade.
Era uma pessoa franzina, cuja presença lembrava a de uma ratinha, e muito mais idosa do que eu esperara que fosse a mãe da Senhorita Allen. Havia na sua expressão uma suavidade e algo muito vago — quase uma melancolia — como a de uma pessoa que envelhecera antes do tempo, ou em virtude de uma dor repentina ou de vicissitudes prolongadas.
A mulherzinha mostrou-se muito nervosa e assustada com nossa presença à sua porta; mas, quando o sargento lhe contou quem ele era, a mulher nos convidou imediatamente para entrarmos. Sentou-se muito rígida, como se para poder enfrentar algum golpe duro. Suas mãos achavam-se entrelaçadas com tanta força, que os nós dos dedos ficaram brancos.
Heath pigarreou forte. Apesar de toda a dureza da sua natureza de homem habituado a ver dramas, parecia muito condoído da situação da velhinha.
— Estou falando com a Senhora Allen? — começou ele. Em parte era uma interrogação, em parte uma afirmação.
A mulher fez um aceno de cabeça, trêmula.
— A senhora tem um filho chamado Philip?
A mulher limitou-se novamente a confirmar, com um aceno de cabeça. Mas as pupilas dos seus olhos se dilataram.
Heath mudou o peso para o outro lado do corpo e olhou um instante ao seu redor. Seu rosto tornou-se visivelmente mais suave. Até então, eu só vira o sargento profundamente comovido uma vez na vida: fora quando ele olhara dentro do armário vazio e deparara com o corpo inerte da pequena Madeleine Moffat, durante sua investigação do caso do Bispo Preto.
— A senhora tem ficado acordada até muito tarde da noite, não é, Senhora Allen? — perguntou ele, como se ainda não tivesse encontrado as palavras para amenizar o golpe que ia causar com a notícia.
— Sim, senhor detetive — disse a mulher, num fio de vox trêmula. — Sempre fico acordada, esperando minha filha, quando ela está fora. Mas não me importo com isso.
Heath assentiu com um aceno de cabeça e, com uma súbita torrente de palavras, abordou o assunto que nos levara ali.
— Bem... Sinto muito, mas tenho más notícias para a senhora — disse ele, em um repente. — O seu filho, Philip, sofreu um acidente. — Fez uma pausa, durante alguns instantes. — Sim, Senhora Allen, preciso contar-lhe... Ele está morto. Foi encontrado esta noite, no restaurante onde trabalhava.
A mulher agarrou a sua cadeira com força. Seus olhos se arregalaram e seu corpo oscilou um pouco. Vance foi rapidamente até junto dela e, segurando-a pelos ombros, firmou-a.
— Oh, meu pobre filho! — gemeu ela, várias vezes. Depois, olhou de um de nós para o outro, como se tonta. — Contem-me o que aconteceu.
— Ainda não sabemos ao certo, senhora — disse Vance, baixinho.
— Mas quando? — indagou ela, em voz sem inflexão. — Quando foi que isso aconteceu?
— Recebemos o telefonema por volta das onze horas, esta noite — contou-lhe Heath.
— Eu não sei o que fazer. — Ela ergueu o olhar, com uma súplica. — Os senhores me levarão para vê-lo?
— Foi justamente para isso que viemos aqui, Senhora Allon. Nós queremos que a senhora vá conosco — apenas por alguns minutos — à cidade, para identificá-lo. O Senhor Mirche já fez isso, naturalmente, mas nós pedimos à senhora para reconhecê-lo, apenas por formalidade legal. Depois, ajeitaremos tudo... Agora, foi Vance quem falou com a mulher.
— Sei que é uma tarefa muito triste para a senhora. Mas, como o sargento explicou, é uma formalidade necessária, e mais tarde isso facilitará tudo para a senhora e para sua filha. A senhora tentará ser forte, não é?
A velhinha fez um aceno afirmativo de cabeça, vagamente.
— Sim, preciso ser forte, a bem da Gracie.
Não pude deixar de admirar a fortaleza de espírito dessa mulherzinha frágil. E, quando ela se levantou, resolutamente, para vestir o casaco e colocar o chapéu, minha admiração por ela aumentou mais ainda.
— Vou demorar apenas o tempo necessário para deixar um bilhete para minha filha — falou ela, desculpando-se, quando estava pronta para sair conosco. — Ela ficaria preocupada, se chegasse em casa e não me encontrasse aqui.
Ficamos esperando, enquanto ela arranjava um pedaço de papel. Vance lhe ofereceu o seu lápis. Então, com mão trémula, ela descreveu algumas palavras e deixou o papel bem à vista, em cima da mesa.
A caminho da cidade, a mulher não falou, mas ficou ouvindo mansamente as instruções e sugestões do sargento.
Quando entramos pela porta do elevador do necrotério municipal, na rua 29, a mulher levou as duas mãos ao rosto e murmurou algumas palavras, como uma oração, acrescentando, em voz mais alta:
— Oh, meu pobre Philip! No fundo, ele era um rapaz tão bonzinho...
Heath pegou-a pelo braço, de forma protetora, e levou-a solicitamente para a sala nua do porão. A cena acabou não sendo tão medonha quanto eu imaginara que fosse. A dolorosa obrigação da mãe de Gracie Allen terminou no instante em que Heath a fez parar diante da forma inerte que fora tirada de uma gaveta do refrigerador. Seu sofrimento terminou depressa e de modo misericordioso.
Após um olhar momentâneo, ela se virou para o outro lado, com um soluço abafado, perdeu os sentidos e escorregou para o chão.
O sargento, que estivera observando a mulher atentamente, desde a hora em que saíramos do elevador, pegou-a rapidamente nos braços, carregando-a para a sala de recepção, mal iluminada, onde a depositou em um sofá de vime. O rosto da mãe de Gracie apresentava-se lívido e sua respiração era fraca, mas, depois de alguns minutos, ela começou a se mover debilmente. Depois, com a onda de sangue às faces e com o umedecimento da pele, que acompanham a reação de quem desmaia, veio uma torrente de lágrimas.
Enquanto ela chorava livremente por alguns instantes, Heath puxou uma cadeira e sentou-se diante da mulher.
— Eu sei, Senhora Allen, — disse ele — que isso deve ser muito doloroso para a senhora, mas nós precisamos ter cuidado em casos como este. É a lei. Não poderíamos deixar que se cometessem erros a respeito. E a senhora não quereria que nós cometêssemos erros, não é?
— Oh, isso seria horrível. — Sua mão moveu-se lentamente sobre seus olhos, como se para afastar alguma visão horripilante.
— Claro, eu sei... — murmurou o sargento. — É por isso que a senhora tem de nos perdoar por sermos um tanto desumanos.
— Quando — perguntou ela, como alguém que não lhe tivesse ouvido as palavras — quando foi que o pobre rapaz...?
— Isso é outra coisa que tenho de lhe contar, Senhora Allen. — Heath interrompeu sua pergunta inacabada. — É que não poderemos deixar que a senhora leve imediatamente seu filho. O médico ainda não tem certeza de que foi que ele morreu, e o médico precisa certificar-se. Isso é tanto em seu benefício como no nosso. Portanto, temos de ficar com ele ainda por um dia ou talvez dois.
A mulher moveu a cabeça para cima e para baixo, tristemente.
— Sei o que o senhor quer dizer — falou ela. — Um dia, um sobrinho meu morreu em um hospital... — E ela deixou a frase incompleta e acrescentou: — Sei que posso confiar nos senhores.
— Sim, Senhora Allen — garantiu-lhe Vance. -— O sargento não demorará mais tempo do que o necessário. É preciso cuidar desses assuntos de forma legal e com todo cuidado. Prometo comunicar-lhe pessoalmente logo que o assunto fique resolvido... Além disso, terei muito prazer em ajudá-la e à sua filha de todas as outras formas que eu puder.
A mulher virou-se lentamente para Vance e estudou-o um instante. Uma expressão de confiança lhe transpareceu nos olhos.
— Minha filha — começou ela, baixinho. — Quero pedir-lhe uma coisa, em benefício dela. Isso significará tanto para ela e para mim, no momento. Por favor, eu lhe peço, não conte a minha filha ainda, o que houve com Philip. Vamos deixar para quando ela precisar mesmo saber, e então quero ser eu a lhe contar... Ela ficaria preocupada com coisas que, talvez, não sejam nem um pouco verdadeiras. Ela tem uma imaginação muito viva — herdada de mim — creio eu. Por que não deixar que ela tenha mais um dia, talvez mais dois dias, de felicidade? Só até que saibam o que realmente houve com meu filho...
Era evidente que o pedido da mulher fundava-se na desconfiança de que seu filho tivesse sido assassinado, e ela temia que uma dúvida semelhante pudesse torturar também à sua filha.
— Mas, Senhora Allen, — perguntou Vance — se guardarmos segredo deste assunto durante algum tempo, como é que a senhora vai explicar à sua filha a ausência prolongada do irmão dela? Sem dúvida, ela ficará preocupada com isso.
A Senhora Allen sacudiu a cabeça.
— Não. Philip costuma ficar fora de casa, com freqüência, e às vezes durante vários dias. Hoje ele disse que talvez saísse do emprego do restaurante e talvez fosse embora da cidade. Não, Gracie não suspeitará de nada.
Vance olhou para Heath, com uma indagação no olhar.
— Acredito, sargento, — falou ele — que seria humano e prudente atender ao pedido da Senhora Allen.
Heath concordou com um aceno vigoroso de cabeça.
— Sim, também acho, Senhor Vance. Creio que se pode dar um jeito nisso.
Um olhar de compreensão passou entre os dois e então Vance tornou a se dirigir à Senhora Allen.
— Nós temos muito prazer em lhe fazer essa promessa, senhora.
— E não aparecerá nenhuma notícia a respeito nos jornais? — indagou ela.
— Acho que isso também se pode arranjar — prometeu Vance.
— Obrigada — disse a Senhora Allen, com simplicidade. Nesse instante, um auxiliar entrou na sala e fez um sinal ao sargento, que se levantou e dirigiu-se para onde ele se achava. Os dois conversaram um pouco e saíram juntos por uma porta lateral. Alguns minutos depois, o sargento voltava e enfiava alguma coisa no bolso.
A Senhora Allen recuperara um pouco o seu autodomínio, e, quando o sargento veio novamente para junto de nós, ele sorriu para ela, para encorajá-la.
— Acho que já podemos levá-la de volta à sua casa. Levamos a Senhora Allen de volta ao seu apartamentozinho, de carro, e lhe demos boa noite.
Alguns minutos depois, nós três fomos à biblioteca de Vance. Eram duas horas e meia da madrugada.
— É uma mulherzinha estranha — murmurou Vance, enquanto servia um copo de conhaque para cada um de nós. — E é, também, de uma notável bravura. Não tive nenhuma preocupação pelo fato de a deixarmos sozinha na casa dela. Resistiu melhor do que eu esperava, depois de receber uma notícia tão chocante.
— Tenho conhecido muitas mulheres miúdas como aquela — comentou Heath — que são capazes de suportar golpes duros muito melhor do que um marmanjo de dois metros de altura.
— Sim, realmente... Não sei se seu esforço para poupar a filha será tão bem sucedido quanto ela espera. Gracie Allen não é nenhuma jovem comum... É sagaz, apesar da sua vivacidade estonteante.
— A velhinha facilitou tudo para nós — observou o sargento.
Vance confirmou, com um aceno de cabeça, enquanto bebericava o seu conhaque.
— Exatamente. Era justamente nisso que eu estava pensando, sargento. Não precisamos ter nenhuma preocupação a respeito de interferências até que o relatório do Dr. Doremus sobre a morte de Philip fique pronto. A Senhora Allen, sem dúvida, não nos apressará, pois acho que ela ficará agradecida pelo fato de termos poupado uma dor mais prolongada à sua filha. E, sem dúvida, Mirche achará preferível guardar sigilo sobre o acontecido... Ele não deseja nenhuma publicidade negativa relacionada com o seu restaurante... Quer fazer tudo que puder para manter o caso em segredo o tempo máximo que puder, sargento?
— Finalmente, o senhor está-me pedindo para fazer alguma coisa fácil — sorriu Heath. — Direi aos rapazes lá do Departamento de Homicídios para guardarem sigilo; e o senhor poderá investigar dois dias inteiros, sem que ninguém o importune.
Vance sorriu, aparentemente tranqüilo, mas ainda estava preocupado.
Heath acabou de tomar o seu conhaque e acendeu um charuto comprido e preto.
— A propósito, Senhor Vance, aqui está uma coisa que talvez lhe interesse. — Enfiou a mão no bolso do paletó e tirou uma pequena cigarreira de madeira, com uma granulação peculiar e com quadrados alternados de verniz claro e escuro, que lhe dava um desenho destacado de xadrez. — Encontrei-a entre os pertences de Allen, no necrotério.
— Mas por que, meu caro sargento, este objeto me interessaria?
— Bem, não sei ao certo, senhor. — Heath falava quase em tom de desculpa. — Mas sei que o senhor tem idéias sobre o que ocorreu esta noite, e eu não tenho.
— Mas não há nada de extraordinário no fato de que a vítima fumava cigarros.
— Não é isso, senhor. — Heath abriu a cigarreira e apontou para o canto interno da tampa da mesma. — Há um nome gravado a fogo ali dentro... Parece trabalho de amador. E acontece que o nome é ”George”. E esse não é o nome da vítima.
De repente, a expressão do rosto de Vance mudou. Ele se inclinou para diante e, tirando a cigarreira da mão de Heath, examinou a gravação tosca feita a fogo.
— As coisas não deviam acontecer assim... Não deviam, mesmo, sargento. O homem que Gracie Allen realmente ama se chama George. George Burns, para ser mais exato. O mesmo rapaz de quem falei hoje na casa de Markham. E o tal Burns estava no Domdaniel na noite de hoje. E Gracie também se encontrava lá. Junto com seu vistoso acompanhante o tal Senhor Puttle. E também Philip Allen e o untuoso Mirche. E a misteriosa Dixie Del Marr. E o sinistro ”Coruja” Owen. E a sombra ameaçadora de um abutre.
— Que acha disso, Senhor Vance?
— Sargento... Oh, meu sargento! — suspirou Vance. — Que é que se pode deduzir de tudo isso? Exatamente nada. É por isso que estou envelhecendo de maneira tão visível diante dos seus olhos. É por isso que os meus cachos de cabelo estão ficando brancos.
— Como acha que aquela cigarreira foi parar no bolso de Philip Allen, Senhor Vance? — E Heath continuava obstinadamente a abordar o problema.
— Pare de me torturar! — implorou Vance.
Heath pegou a cigarreira, fechou-a, com um estalido, e a recolocou no próprio bolso.
— Vou descobrir — disse ele, resolutamente. — Se Philip Allen não morreu de morte natural, e se esta cigarreira pertence ao tal Burns, juro que lhe arrancarei a verdade, mesmo que tenha de inventar um recurso novo para conseguir isso. Este caso está-me deixando torturado também, Senhor Vance. Tudo nele é desencontrado; e não gosto de nada que não faça sentido... Hei de encontrar o tal rapaz, e vou achá-lo esta noite. Nesta altura o Domdaniel já está fechado e, portanto, talvez ele já tenha ido para casa... se é que tem casa. Irei primeiro à fábrica. Como foi que disse que era o nome da fábrica, Senhor Vance?
— Fábrica de Perfumes In-O-Scent — disse Vance, sorrindo. — É um nome um tanto desalentador para dar início à procura de um suspeito... Não é, sargento? Mas espero que esse nome seja simbólico.
— Suas palavras são profundas demais para mim, senhor — queixou-se Heath, seguindo rumo à porta. — No momento, só tenho de me preocupar em encontrar o tal Burns.
Bem, sargento, quando você encurralar o Senhor Burns, podemos ou eliminar parte do enigma ou então pô-lo em algum lugar onde a peça do quebra-cabeças encaixe. — Suspirou fundo. — Estarei à espera da sua perfumada comunicação amanhã cedo.


CAPITULO IX
PRESO SOB SUSPEITA
(Domingo, 19 de maio — 10:30 horas)


Já eram quase dez e meia, na manhã de domingo, quando Heath chegou ao apartamento de Vance. Este se levantara pouco antes e achava-se sentado na biblioteca, envergando um roupão de mandarim, tomando sua refeição matinal, bastante frugal, com café turco. Acabara de acender o segundo cigarro, quando o sargento foi introduzido lá, com uma aparência um tanto cansada mas triunfante.
— Finalmente, eu o agarrei! — anunciou ele, sem parar a fim de cumprimentar.
— Arre, sargento! — Vance saudou-o. — Sente-se e descanse um pouco. Precisa tomar um pouco de café, para recuperar as forças. Sem dúvida, você se refere a Burns. Mas não me diga que você ficou a noite inteira acordado, investigando.
Heath sentou-se pesadamente.
— Sim, a verdade é que eu fiquei. E, se não se importa, Senhor Vance, quer colocar mais alguma coisa nesse café? Preciso reanimar-me.
Vance atendeu-o, sorridente.
— Fale-me a respeito das suas andanças noturnas, sargento.
— Bem, a verdade, senhor, é que ainda não o agarrei — corrigiu Heath. — Mas estou à espera de um telefonema para cá a qualquer instante, a ser dado por Emery... Eu o deixei vigiando a casa da Senhora Allen, e...
— A casa da Senhora Allen?
— Sim! É para lá que o sujeito vai.
— Sabe de uma coisa? Essa história parece tremendamente complicada.
— Não foi tão complicada assim, Senhor Vance — respondeu Heath. — Foi só muito trabalhosa... Quando saí daqui, ontem à noite, fui diretamente à Fábrica In-O-Scent e agarrei o vigia noturno da firma. Ele me levou pessoalmente para dentro do escritório, com sua chave-mestra, encontrou o livro de registro de empregados e me mostrou o nome de Burns com o endereço de um hotel de segunda classe que ficava a poucos quarteirões de lá. Fui até o hotel. Mas parece que Burns já estivera lá, trocara de roupas e saíra novamente. O recepcionista noturno me deu essa informação. Aí, mostrei-lhe a cigarreira, e foi então que tive um pouco de sorte. O sujeito estava disposto a jurar que Burns tem uma cigarreira igual a ela. Muitas vezes Burns pára a fim de bater papo com ele, quando chega tarde ao hotel.
— E — intrometeu-se Vance — é muito provável que lhe ofereça um cigarro durante as caçoadas.
— É isso, senhor... Depois, telefonei a Emery, lá no Departamento de Homicídios, para ele ir até o hotel e ficar de vigia, no caso de Burns pretender voltar. Depois que Emery chegou lá, fui à minha casa, onde dormi umas duas horas.
— E acaso o seu auxiliar interrompeu o seu sono com a notícia do desaparecido experimentador de perfumes?
— Não. Burns não voltou para o hotel. Por isso, às oito horas fui pessoalmente até lá, a fim de ver se conseguia descobrir mais alguma coisa com o recepcionista de serviço. E fiquei sabendo que ele e Burns, e mais dois outros sujeitos, amigos de Burns, algumas vezes sentam-se à mesa, jogando cartas no saguão do hotel, à noite. Um deles mora do outro lado da rua, mas disse que não vê Burns há vários dias. Mas ele me disse para procurar o outro sujeito, um tal Robbin, de Brooklyn, pois muitas vezes Burns passa a noite na casa de Robbin, principalmente as noites de sábado. Por isso, fui a Brooklyn. Não telefonei para a casa de Robbin, porque não desejava alarmar Burns. Levei mais de uma hora a encontrar a casa, que fica a meia dúzia de quarteirões fora da linha principal, em Bensonhurst, um local afastado.
— Que horrível odisséia matinal, sargento! — E Vance estremeceu, pesaroso. — E que aconteceu quando finalmente você chegou à choupana de Emaú?
— Como já disse, o nome do sujeito é Robbin. E ele não mora em uma choupana... Bem, perguntei-lhe por Burns, e ele me disse que Burns fora lá às três horas da madrugada, dizendo que estava deprimido e precisava de companhia. Robbin também me contou que Burns estava nervoso e não dormiu muito bem. Levantou-se cedo e já fora embora antes de eu chegar lá... Que acha de tudo isso, Senhor Vance?
— Acho que isso é muito parecido com o amor florescente em estado de suspense — falou Vance. — Ah, a doce crueldade da mulher!
— Não sei a que ponto o senhor quer chegar — replicou o sargento. — Mas parece-me que o homem tem peso na consciência. Principalmente pelo fato de Burns não ficar em casa... De fugir, por assim dizer... e por se ocultar lá no fim do mundo que se chama Bensonhurst... Em todo caso, quando mostrei a Robbin a cigarreira, ele a reconheceu imediatamente. Não se lembrava bem se ela estivera em poder de Burns na noite anterior. Perguntei a Robbin se ele tinha alguma idéia do lugar para onde Burns teria ido. O homem riu e disse que sabia para onde Burns fora, mas que não estaria lá antes das onze horas. Portanto, vendo que ele ainda não podia ter voltado para Nova York, telefonei para Emery, no hotel onde Burns mora, para ele ir vigiar a casa dela...
— A casa da Senhora Allen?
— Sim. Robbin disse que era lá que Burns estaria às onze horas da manhã. E ele não tinha nenhuma dúvida a respeito disso. Achei que isto era razoável. O senhor mesmo me disse que Burns era namorado da moça. E ele poderia ter a idéia de pedir a Gràcie e à mãe desta que o ajudassem, antes que o descobrissem. Por isso, voltei para Nova York, o mais depressa que pude. E aqui estou, fazendo meu relatório ao senhor e esperando o telefonema de Emery.
— Extraordinário! — murmurou Vance. — Que zelo! Você encaixou muitos fatos, e até com habilidade, enquanto estive apenas cochilando. E suponho que você faça mais progressos quando receber o chamado de Emery e acosse o jovem Burns.
— Claro que farei isso! — E então o sargento acrescentou: — Estou começando a pensar que o senhor realmente teve uma boa idéia ontem à noite, na casa do procurador distrital.
— Não sei... Em todo caso, vou junto com você, sargento.
— E Vance seguiu rumo à porta do quarto de vestir.
— Imaginei que o senhor quereria ir. Mas há uma coisa que lhe preciso pedir: deixe que eu resolva este caso à minha maneira.
— Oh, perfeitamente, sargento. — E Vance deixou a biblioteca.
Vance acabara de voltar para a sala, completamente vestido, quando o telefone tocou. Heath saltou da sua cadeira e já estava com o fone ao ouvido antes que Currie, o velho mordomo de Vance, pudesse alcançar o aparelho.
Era esperado o telefonema de Emery, e, depois de ouvir alguns instantes, Heath respondeu ansiosamente.
— Sim, estarei aí dentro de cinco minutos. — Bateu o receptor do telefone no descanso e, esfregando as mãos, satisfeito, seguiu rumo à porta. — Vamos, Senhor Vance. Finalmente, estamos fazendo progressos...
Quando dobramos a esquina da avenida Lexington, vimos Emery de pé do outro lado da rua, defronte à casa da mãe de Gràcie. O homem deu alguns passos na nossa direção e fez um aceno significativo de cabeça.
Heath grunhiu para denotar que já vira o sinal e deu ordens a Emery para entrar lá conosco.
Foi Gràcie Allen quem atendeu à porta, desta vez, quando tocamos a campainha. Avistou logo Vance e jogou as mãos para o alto, em um exuberante gesto de encantamento.
— Oh, olá, Senhor Vance! Sua presença aqui é maravilhosa! — disse ela, com voz musical, aparentemente quase flutuando.
— Como foi que descobriu onde moro? O senhor deve ser um detetive muito hábil...
Ao notar a presença dos dois homens sérios que nos acompanhavam, ela parou subitamente de falar.
— Estes dois senhores são da polícia, Senhorita Allen — informou-lhe Vance. — E viemos aqui para...
— Ah, coitado! Eles o agarraram, não é? — exclamou ela, muito desalentada. — Não é horrível? — E seus olhos se arregalaram. — Mas, sinceramente, Senhor Vance, não fui eu quem o denunciou. Eu não faria uma coisa dessas, de forma alguma. Não foi à toa que lhe dei minha palavra de honra...
Heath e Emery foram entrando na sala, passando por ela, e Vance lhe estendeu a mão.
— Por favor, minha querida — disse ele, ansiosamente. — Só um instante. Viemos aqui tratar de um assunto bem diferente.
Gracie afastou-se e recuou, impressionada pelos seus modos sérios; e Vance seguiu os dois policiais sala adentro.
Sentado em um sofá na parede oposta estava o jovem George Burns, visivelmente aborrecido com nossa intromissão. Heath já atravessara a sala rapidamente, na sua direção.
— Seu nome é George Burns, não é? — perguntou ele, em tom áspero.
— Sempre foi — retrucou Burns, com um ressentimento sombrio. — Quem quer saber?
— Espertinho, hem? — E Heath remexeu nos bolsos e depois perguntou, em tom conciliatório: — Tem um cigarro aí, Burns?
Burns tirou do bolso automaticamente um maço de cigarros.
— Quê? — exclamou o sargento. — Você fuma e não tem cigarreira?
— Ora, claro que ele tem! — afirmou Gracie Allen, toda orgulhosa. — Eu própria lhe dei uma de presente, no Natal passado... E era muito bonita, toda enxadrezada...
Vance a fez silenciar, com um gesto peremptório.
— Sim — confessou Burns. — Eu tinha uma, porém eu... eu a perdi ontem. — Parecia confuso com a maneira como estava sendo interrogado.
— Talvez seja esta aqui. — Heath disse isso com ênfase ameaçadora, enquanto colocava a pequena cigarreira debaixo do nariz de Burns.
Este, assustado e intimidado, fez um aceno de cabeça, de modo débil. Pegando a cigarreira, segurou-a contra as narinas e cheirou-a várias vezes. Depois, ergueu o olhar para o sargento.
— Beije-me depressa!
— Quê?! — explodiu Heath.
— Oh — murmurou Burns, embaraçado. — Esse é apenas o nome de um perfume bem conhecido para lenços. A fórmula leva erva-cidreira, almíscar, junquilho e...
— Ah, e eu sei o que mais — ajudou a Senhorita Allen, ansiosamente. — Jasmim e angélica...
Burns ficou zangado.
— Ora, essa é a fórmula do Ano Bissextox.
— Alto lá! — berrou Heath. — Afinal de contas, o que está acontecendo aqui?
Vance estava rindo tranqüilamente, no íntimo. O sargento arrancou a cigarreira da mão de Burns e a recolocou no bolso.
— Onde foi que você perdeu a cigarreira, ontem? Burns remexeu-se no sofá, inquieto.
— Bem, eu não a perdi, exatamente. Eu apenas... Bem, eu apenas a emprestei a alguém.
— Então, você emprestou um presente de Natal que lhe foi dado pela sua namorada, hem?
— Bem, também não a emprestei. — Burns ficou confuso. — Encontrei-me com um sujeito, a quem ofereci um cigarro. Depois, tivemos uma pequena discussão e acho que ele se esqueceu de...
— Claro! Ele foi embora e levou a cigarreira — retorquiu Heath, com enorme sarcasmo. — E você se esqueceu de lhe pedir que a devolvesse e deixou que ele a guardasse... como um presentinho seu a ele. Ótimo... E quem era esse sujeito?
Burns remexeu-se uma vez mais.
— Bem, já que insiste em saber... Foi o irmão de Gracie.
— Claro que foi! Você é muito esperto, não é? — E então uma nova idéia surgiu na cabeça do sargento. — Isso deve ter acontecido nas proximidades do restaurante Domdaniel, e por volta das quatro horas da tarde.
— Mas como foi que o senhor soube? — perguntou Burns, espantado.
— Quem faz as perguntas sou eu — cortou Heath, em tom ríspido. — E não foi uma discussãozinha, como você disse. A coisa quase chegou às vias de fato, não foi mesmo? Você estava muito zangado por algum motivo, não estava?
Burns olhou fixamente para o sargento, desalentado, e depois para Gracie Allen.
— Oh, meu Deus, George! — exclamou a moça. — Você e Philip estavam brigando novamente. Vocês dois não passam de dois moleques brigões.
Heath rilhou os dentes.
— Não se envolva nisto, boneca.
— Oh! — riu a moça, acanhada. — Foi disto que o Senhor Puttle me chamou, ontem à noite.
Heath voltou-se novamente para Burns, que estava muito aborrecido.
— Por que você e Allen estavam discutindo?
O homem rolou os olhos, numa expressão vaga, como se tivesse medo de responder e como se receasse não responder. Finalmente, gaguejou:
— Era por causa de Gracie... por causa da Senhorita Allen. Parece que Philip não gosta de mim. Ele me disse para me afastar desta casa. E depois disse que eu não sabia vestir-me... Que eu não era elegante como o tal Puttle...
— Bem, eu também tenho alguma coisa a lhe dizer. E é uma coisa elegante...
Vance deu uma palmadinha rápida em um dos ombros do sargento e lhe cochichou alguma coisa.
Heath endireitou o corpo e, girando nos calcanhares, apontou para a moça.
— Vá para a outra sala, senhorita. Tenho algo a dizer a este rapaz a sós... Entende? A sós.
— Isso mesmo, Gracie. — Fiquei surpreso por ouvir a voz tranqüila da Senhora Allen. Ela estava de pé, timidamente, alojada em uma pequena abertura entre as portas corrediças, ao fundo da sala. Eu não sabia quanto tempo ela estivera ali. — Venha comigo, Gracie, e deixe estes senhores com George.
A moça não discutiu, e foi com a mãe para o quarto dos fundos, e as duas fecharam as portas ao passar.
— E agora, vamos às más notícias, meu jovem — recomeçou Heath, avançando ameaçadoramente rumo ao confuso Burns. Mas Vance tornou a interrompê-lo.
— Um instante, sargento. Senhor Burns... Por que ficou tão surpreso com o cheiro que havia na sua cigarreira?
— Eu não... Eu não sei, na verdade. — Burns franziu o cenho. — Não é um perfume comum, e há muito tempo não o tenho encontrado. Mas no restaurante, ontem à noite, eu o notei, e muito forte, no saguão da frente, quando eu ia entrando no salão do restaurante.
— Quem o estava usando?
— Oh, eu não poderia saber. Havia tanta gente lá... Vance pareceu satisfeito e, com um gesto, entregou o rapaz novamente ao sargento.
— Bem, aqui está a notícia ruim — disse Heath a Burns, em tom áspero e de excesso de autoridade. — Nós encontramos um sujeito morto, ontem à noite... e a sua cigarreira achava-se no bolso da vítima.
A cabeça de Burns saltou para cima, com um puxão, e uma luz de espanto e susto lhe apareceu nos olhos.
— Meu Deus! — disse ele, sem fôlego. — Quem... Quem fez isso?
Heath deu um sorriso cruel.
— Eu nem posso imaginar. Talvez você possa.
— Não foi... Philip! — e Burns ficou sem voz. — Oh, meu Deus... Sei que não está aqui hoje. Mas ele saiu da cidade... Juro que ele saiu. Ontem, disse-me que ia para outra cidade.
— Você é esperto, mas não o bastante, embora tenha sido bem habilidoso, tentando jogar a culpa em outra pessoa, com aquela história de perfume. — Heath fez uma pausa e depois tomou subitamente uma decisão. Fez um breve sinal a Emery. — Nós vamos levar este rapaz conosco — anunciou ele. — Vamos deixá-lo onde possamos alcançá-lo com facilidade.
Vance tossiu discretamente.
— Então, você vai prendê-lo sob suspeita, não é, sargento? Ou, talvez, como testemunha material.
— Não me importa que nome se dê a isso, Senhor Vance. Ele vai ficar quietinho em um lugar de onde não possa sair, pensando muito na vida, até que tenhamos o relatório do Dr. Doremus... É melhor pôr-lhe as pulseiras, Emery, até chegarmos à esquina e chamar o tintureiro.
Heath e Emery estavam levando o atônito Burns para a porta, quando Gracie Allen voltou correndo para a sala, depois de se libertar das mãos da sua mãe, que tentava segurá-la.
— Oh, George, George! Que aconteceu? Para onde eles vão levá-lo? Tive um pressentimento... Como quando uso minha mediunidade...
Vance chegou até junto dela e colocou as duas mãos nos seus ombros.
— Minha querida menina — falou ele, em tom consolador. — Por favor, creia em mim quando digo que você não precisa preocupar-se com coisa alguma. Não torne a coisa mais difícil para o Burns... Não quer confiar em mim?
A jovem deixou pender a cabeça e virou-se para a mãe. Os dois policiais, com Burns entre eles, já haviam saído da sala; e, quando Vance se virou e tornou a abrir a porta, a voz delicada da Senhora Allen se fez ouvir novamente.
— Obrigada, Senhor Vance. Tenho certeza de que Gracie confia no senhor... como eu confio.
A cabeça da moça estava apoiada no ombro da mãe.
Oh, mamãe — disse ela, fungando. — Não me importa nem um pouco o fato de
George não se vestir com tanta elegância quanto o Senhor Puttle.


CAPITULO X
UMA VISITA INESPERADA
(Domingo, 19 de maio — 12:00 horas)

Quando o carro da polícia chegou e o infeliz Burns ia entrando no veículo para ser levado, Vance lhe sorriu de maneira a encorajá-lo.
— Ânimo — falou ele, e depois ficou vendo o tintureiro afastar-se. Logo que o veículo sumiu de vista, Vance tomou um táxi e foi imediatamente para o apartamento do procurador distrital.
— Realmente, Markham — começou ele. — O sargento Heath é lógico demais. Em condições normais, eu receberia de bom grado a providência dele, mas neste caso preciso pedir a sua intervenção.
Em seguida, fez um resumo a Markham de todos os acontecimentos que tinham ocorrido desde que nós saíramos do seu apartamento, na noite anterior. A visita ao necrotério e a promessa à Senhora Allen; o fato de Heath ter descoberto a cigarreira e a sua busca a Burns, a noite inteira; a entrevista com o estarrecido jovem, quando ele foi encontrado; e, finalmente, a decisão de Heath de deixar Burns preso até chegar o relatório de Doremus.
Markham ouviu atentamente, mas sem entusiasmo.
— Acho que, no todo, Heath fez um serviço muito inteligente. Não compreendo onde ou por que você deseja que eu intervenha.
— Burns é inocente — garantiu Vance. — E sou inflexível na minha crença. Portanto, desejo que você telefone para o distrito policial e diga a Heath para libertá-lo. Na verdade, Markham, insisto em que você faça isso. Mas, primeiro, desejo que o sargento traga o rapaz aqui, se você não se opuser a que ele venha à sua casa. Desejo que ele entenda claramente que uma das condições para a sua libertação é o sigilo absoluto, por enquanto, a respeito do fato de que Philip Allen está morto no necrotério. Foi isso que prometemos à Senhora Allen, e Burns precisa cooperar conosco, ao ser libertado. Por favor, faça logo isto, meu caro amigo.
— Você conhece o tal Burns? — indagou Markham.
— Eu só o vi duas vezes. Mas tenho meus caprichos, sabe?
— O que é um eufemismo como outro qualquer para o seu atual desequilíbrio mental... Por que deseja que esse rapaz seja libertado?
— Estou encantado pela ninfa dos bosques — sorriu Vance Markham uniu os lábios, aborrecido.
— Se eu não o conhecesse, diria que...
Ora, vamos, seja bonzinho e telefone logo ao Heath.
Markham levantou-se, resignado: ele conhecia Vance há muito tempo e sabia que, por trás dos seus gracejos, havia muitas vezes seriedade. Depois, foi rumo ao telefone.
— O caso é seu — falou ele — se é que há um caso, e você pode dirigi-lo à sua vontade. Já tenho minhas próprias dificuldades.
O sargento mal havia chegado ao distrito policial, quando Markham telefonou e lhe deu ordens de acordo com o pedido de Vance.
Quinze minutos depois, Heath entrava escoltando Burns na biblioteca do procurador distrital. Vance descreveu cuidadosamente as circunstâncias a Burns e lhe exigiu uma promessa formal de não revelar a ninguém a morte de Philip Allen, impressionando-o com relação à própria Gracie Allen dentro do assunto.
George Burns, com inconfundível sinceridade, prontamente concordou com a exigência, e o sargento lhe disse que estava livre para se retirar.
Mas, quando ficamos a sós, Heath desabafou.
— E depois de todo o trabalho que tive ontem à noite! — queixou-se ele, amargamente. — Encontrar a cigarreira; perder meu sono e fazer um trabalho difícil hoje cedo; amarrar aquele sujeito e levá-lo para onde eu o queria... E foi tudo idéia sua, Senhor Vance. E, agora, quando lhe encontro alguma coisa palpável, que faz o senhor? Manda soltar o passarinho!
E mascou furiosamente seu charuto.
— Mas, se pensa que não vou mandar vigiar aquele sujeito, então não é muito esperto, Senhor Vance. Mandei o Tracy para cá, antes de vir, e ele vai seguir o Burns a partir do instante em que ele sair deste prédio.
— Ora, mas é claro que eu esperava que você fizesse exatamente isso. — E Vance deu de ombros, de maneira agradável.
— Mas, por favor, sargento, não fique com uma impressão errônea do meu capricho de libertar o jovem misturador de perfumes. Vou-me empregar a fundo no sentido de resolver este caso intricado. E esperarei o relatório do médico legista, ansiosamente... A propósito, em meio à sua roda-viva de atividade, você ficou sabendo de alguma coisa a respeito da autópsia?
— Claro que fiquei — falou Heath. — Telefonei ao Dr. Doremus pouco antes de sair do posto policial. Ele brigou comigo, como sempre, mas disse que iniciaria a autópsia logo depois do almoço, e que logo à noite o relatório estaria pronto.
— Ótimo — suspirou Vance. — Eu o cumprimento, sargento, e peço desculpas por ter atrapalhado o seu plano, admirável mas inútil, de privar o Senhor Burns da sua liberdade. Mas espero que isso não distraia sua atenção do trabalho de proteção da vida de Markham contra a ameaça de Pellinzi.
— Nada me vai distrair nem me impedir que me preocupe com o Abutre e com o Senhor Markham — garantiu Heath. — Não se preocupe! Aquele escritório está sendo vigiado dia e noite, e há auxiliares valentes meus, prontos para agarrarem aquele facínora se ele aparecer.
O sargento retirou-se alguns minutos depois, e Vance e eu aceitamos o convite de Markham para ficar para o almoço.
Eram quase três horas quando nós voltamos para o apartamento de Vance. Currie veio ao nosso encontro na porta, mostrando-se muito preocupado.
— Estou horrivelmente perturbado, patrão — disse ele, em voz baixa. — Há uma jovem incrível aqui à sua espera. Tentei firmemente mandá-la embora, senhor, mas não consegui fazê-la compreender. Ela era muito resoluta e muito ousada, patrão. — Deu uma rápida olhada para trás. — Eu a tenho estado observando muito cuidadosamente, e tenho certeza de que ela não tocou em nada. Espero, senhor...
— Você está perdoado, Currie — Vance interrompeu as desculpas do preocupado velhote e, entregando-lhe o chapéu e a bengala, foi diretamente para a biblioteca.
Gracie Allen estava sentada na enorme espreguiçadeira de Vance, e estava sumida no imenso estofamento de veludo. Quando saltou de pé a fim de saudar Vance, foi sem a exuberância de antes.
— Olá, Senhor Vance — disse ela, em tom solene. — Aposto que não me esperava ver. E também que o senhor não sabe como descobri o seu endereço. E o velhote rabugento que me recebeu na porta também não me esperava ver. Mas ainda não lhe contei como descobri seu endereço. Foi da mesma forma usada para descobrir seu nome... Lendo-o no seu cartão de visitas. Embora na verdade eu não tenha vontade de ir buscar aquele vestido novo, amanhã. Talvez eu não vá. Isto é, talvez eu espere até saber que não aconteceu nada ao George...
— Alegra-me muito que você tenha sido esperta e tenha descoberto meu endereço. — E o tom de voz de Vance era suave. — E também estou encantado pelo fato de você continuar usando o perfume de cidra.
— Ah, sim! — E ela olhou para Vance, agradecida. — A princípio, eu não gostava muito deste perfume, mas, agora, não sei por que... eu o adoro! Não é engraçado? Mas creio na mudança de idéia dos outros. Suponha que...
— Sim — disse Vance, com um movimento de cabeça e um sorriso leve. — Só a fantasia tem consistência: os duendes e as fadas existem mesmo...
— Mas eu não creio em duendes... Isto é, não tenho acreditado desde meus tempos de criança.
— Não, claro que não.
— E, quando descobri que o senhor morava tão perto de mim, achei isso muito conveniente, pois eu tinha de lhe fazer um punhado de perguntas importantes. — Ela olhou para Vance, de baixo para cima, como se para ver qual a reação dele às suas palavras. — E, ah... eu descobri algo mais a seu respeito! Seu nome tem cinco letras... como o meu e o do George.
É o destino, não é? Se o senhor tivesse seis letras, talvez eu não tivesse vindo. Mas, agora, sei que tudo vai acabar bem, não vai?
— Sim, minha cara — disse Vance, com um aceno afirmativo de cabeça. — Tenho certeza de que vai.
De repente, ela deixou escapar o fôlego, como se tivesse afastado com sucesso um ponto controvertido.
— E, agora, quero que o senhor me conte exatamente por que aqueles policiais levaram o George. Estou muito assustada, preocupada e aborrecida, embora o George tenha-me telefonado, dizendo que estava bem.
Vance sentou-se de frente para a moça.
— Você não precisa se preocupar por causa do Senhor Burns — começou ele. — Os homens que o levaram hoje cedo cometeram a tolice de achar que havia circunstâncias suspeitas ligadas com a pessoa dele. Mas tudo se esclarecerá dentro de um dia ou dois. Por favor, confie em mim.
Havia completa confiança no olhar franco da jovem.
— Mas deve ter sido alguma coisa muito séria o que fez aqueles homens irem hoje à minha casa e aborrecerem tanto o George.
— Mas — explicou Vance — eles apenas pensavam que era séria. A verdade, minha amiga, é que um homem foi encontrado morto, ontem à noite, no Domdaniel e...
— Mas que é que o George poderia ter tido a ver com isso, Senhor Vance?
— Ora... Na verdade, tenho certeza de que ele não teve nada a ver com isso.
— Então, por que os policiais agiram de maneira tão esquisita a respeito da cigarreira que dei a George? Afinal, como foi ela parar nas mãos deles?
Vance hesitou vários instantes. Depois, pareceu ter tomado uma decisão quanto até que ponto esclareceria a moça.
— Para ser franco — explicou ele, com paciência — a cigarreira do Senhor Burns foi encontrada no bolso do homem morto.
— Oh! Mas o George não daria a outra pessoa um objeto que eu lhe dei de presente...
— Como eu já disse, acho que foi tudo um engano lamentável.
A jovem olhou para Vance durante longo tempo, com um olhar perscrutador.
— Mas suponha, Senhor Vance... Suponha que o tal homem não tenha morrido de morte natural. Imaginemos que ele tenha sido... bem, que tenha sido assassinado, como o senhor disse que matou aquele homem em Riverdale, ontem. E suponha que a cigarreira do George tenha sido encontrada no bolso dele. Tenho lido, nos jornais, que algumas vezes a polícia prende inocentes, julgando-os culpados de certos crimes, e de como... — ela parou, de repente, e levou as mãos à boca, horrorizada.
Vance inclinou-se e pousou a mão no braço da moça.
— Por favor, minha querida criança! — disse ele. — Você está recomeçando a acreditar em duendes. E não deve. Duende é coisa que não existe, é pura imaginação. Nada vai acontecer ao Senhor Burns.
— Mas podia acontecer! — E com isso mostrou que seus temores estavam apenas ligeiramente amenizados. — Não compreende? Podia! E o senhor tem de ser um detetive muito bom, se alguma coisa assim acontecer!
Havia uma expressão amedrontada e suplicante nos olhos
da moça.
— Hoje de manhã, depois da saída de George, fiquei terrivelmente preocupada. E sabe o que foi que fiz? Fui à casa de Delpha, conversar com ela. Eu sempre procuro Delpha quando estou em apuros... e algumas vezes até quando não estou. E ela sempre diz que se alegra em me ver, pois gosta da minha presença. Acho que é porque eu sou médium, uma médium forte. E a presença de médiuns faculta a concentração, sabe? A casa de Delpha é exótica. A princípio, dá arrepios na gente. Há cortinas pretas e compridas, penduradas por toda a casa, e a gente não vê janelas. E existe só uma porta. E, quando as cortinas pretas são puxadas, fechando a porta, a pessoa sente como se estivesse em algum lugar muito distante, em companhia de Delpha e dos espíritos que lhe contam coisas.
Gracie olhou ao seu redor e estremeceu ligeiramente.
— Além disso, nas cortinas pretas de Delpha existem grandes gravuras de mãos, com inúmeras linhas. E há também sinais esquisitos, que Delpha chama de símbolos. Em cima de uma mesa, existe uma bola grande de vidro e outra, pequena. E mapas dos astros, com palavras engraçadas ao redor, que significam alguma coisa, quando a gente é um caranguejo, um peixe ou uma cabra, ou coisas assim.
— E que foi que Delpha lhe disse? — perguntou Vance, com bondoso interesse.
— Ah! Eu não lhe contei, contei? — E o rosto da jovem se iluminou. — Delpha mostrou-se muito misteriosa e pareceu terrivelmente surpresa quando eu lhe falei a respeito de George. Ela me fez as perguntas mais esquisitas: todas sobre os homens que foram à minha casa e a respeito da cigarreira... Era como se ela estivesse tentando arrancar-me revelações. Acho que ela estava procurando ler meu pensamento, porque minha mente vibrava. E Delpha sempre diz que ajuda muito quando uma pessoa está bem concentrada ao consultá-la. Em todo caso, ela disse que nada vai acontecer ao George... como o senhor mesmo disse. Só que ela falou que eu preciso ajudá-lo...
A moça olhou ansiosamente para Vance.
— O senhor me ajudará a tirar o George de apuros, não ajudará? Mamãe falou que o senhor lhe disse que ia fazer tudo que pudesse por nós. Sei que posso trabalhar de detetive, se o senhor me ensinar. É que... Preciso ajudar o George, entende?
Intrigado e perturbado pelo pedido sincero da jovem, Vance levantou-se, pensativo, e caminhou até à janela. Finalmente, voltou para junto da sua cadeira e tornou a sentar-se.
— Então, você quer ser detetive! — disse ele, alegremente.
— Acho que é uma excelente idéia, e vou dar-lhe toda a ajuda que puder. Nós dois vamos trabalhar juntos; você será minha assistente, por assim dizer. Mas você precisa trabalhar muito. E precisa não deixar ninguém suspeitar que você está fazendo serviço de detetive... Essa é a primeira regra.
— Oh, é maravilhoso, Senhor Vance! É exatamente como em um romance policial. — E a moça ficou imediatamente animada.
— Mas, agora, diga-me o que preciso fazer para ser detetive.
— Muito bem — começou Vance. — Vejamos... Primeiro, é claro, você precisa anotar tudo que possa ajudar o seu trabalho. Pegadas em lugares suspeitos são um bom ponto de partida. Quando alguém caminha pisando em terreno macio, naturalmente deixa pegadas. E então, medindo essas pegadas, pode-se dizer que número de sapatos a pessoa usa...
— Mas suponha — interrompeu a jovem — que a pessoa estivesse usando sapatos de número maior, apenas para nos enganar?
Vance sorriu com admiração.
— Esta, minha criança — disse ele — é uma observação muito hábil. Já houve quem fizesse exatamente isso. No entanto, não creio que nos precisemos preocupar com essa questão, por enquanto... Agora, prosseguindo, o detetive deve sempre examinar os blocos de escrivaninha, à procura de pistas. Geralmente, o que é escrito em um bloco, na folha de cima, pode ser lido quando se leva a folha a um espelho.
Vance demonstrou isso para ela, e a jovem ficou tão fascinada como se estivesse vendo um mágico trabalhar.
— Além disso, outro ponto muito importante são os cigarros. Se o detetive encontra uma ponta de cigarro, talvez consiga dizer quem o fumou. Deve começar procurando uma pessoa que fuma a tal marca de cigarro. E algumas vezes a ponta de cigarro costuma revelar o fumante. Quando há batom na ponta de cigarro, então já se sabe que ele foi fumado por uma mulher que usava batom.
— Ah! — E de repente a moça ficou desolada. — Talvez, se eu tivesse examinado cuidadosamente o cigarro que queimou meu vestido, ontem, eu pudesse dizer quem o jogou.
— É possível — retrucou Vance, alegremente. — Mas há muitas outras maneiras de tirar a limpo as suspeitas que a gente tenha a respeito das pessoas. Por exemplo, se alguém tivesse ido cometer um crime em uma casa onde houvesse um cão vigia, e se o detetive soubesse que o cão não latiu com esse alguém, então poderia concluir que o criminoso era amigo do cachorro. Como é sabido, os cães não latem para as pessoas amigas.
— Mas suponha — interrompeu a jovem — que a futura vítima tivesse em casa não um cão, mas sim um gato, ou mesmo ... ou mesmo um canário. Que é que o detetive deve fazer, nesse caso?
Vance não pôde deixar de rir.
— Nesse caso, o detetive tem de procurar outras coisas que identifiquem o culpado...
— É aí que as pegadas vêm a calhar, não é? Mas há muita gente que usa o mesmo número de sapatos. Os meus servem perfeitamente nos pés da minha mãe. E, além disso, os dela servem em mim.
— Ainda há outras maneiras...
— Conheço uma! — interrompeu ela, triunfante. — Que tal o perfume? Por exemplo, se encontrássemos no local do crime uma bolsa de mulher, e essa bolsa cheirasse Frangipanni... e não uma que usasse Gardênia... Mas eu não seria muito hábil nisso, o senhor seria? Estou sempre confundindo os cheiros de perfumes. Isso deixa o George furioso. Mas ele seria simplesmente maravilhoso na hora de reconhecer o perfume de um criminoso. George é capaz de reconhecer imediatamente qualquer espécie de perfume e dizer de onde é que ele vem, e de falar tudo a respeito do mesmo... Mesmo quando não consigo sentir o cheiro de nada. Ele tem uma espécie de dom inato... Como quando ele cheirou a cigarreira, hoje de manhã... Mas, por favor, prossiga, Senhor Vance.
Realmente, Vance prosseguiu, durante mais de meia hora, ensinando-lhe cuidadosamente as coisas que, segundo ele sabia, interessariam à moça. Não havia nenhuma dúvida quanto à sua compreensão e simpatia, quando, na hora em que a jovem estava para ir embora, ele telefonou para Currie e lhe deu instruções bem claras.
— Esta moça, Currie, — falou ele — deve ser recebida sempre que vier aqui. Se eu estiver fora e ela quiser esperar-me, dê-lhe as boas vindas e ponha-a à vontade aqui.
Quando a Senhorita Allen se retirou, Vance me disse:
— A impressão de ter em quem se apoiar fará muito bem àquela pobre mocinha, no momento. Ela está muito infeliz e bastante assustada. A nova ocupação que ela imagina ter será para ela um tônico provisório, mas necessário... Desconfio, Van, de que estou ficando um tanto sentimental com o correr dos anos. Estou amolecendo com a idade, como as uvas da França.
E bebericou lentamente o seu conhaque.


CAPITULO XI
FOLCLORE E VENENOS
(Domingo, 19 de maio — 21:00 horas)

Naquela noite, Markham telefonou a Vance, às nove horas. Este ouviu atentamente durante vários minutos, e enquanto ouvia ia franzindo profundamente a testa, com uma expressão intrigada. Finalmente, pendurou o fone e virou-se para mim.
— Nós vamos ao apartamento de Markham. Doremus está lá. Isso não me agrada... Isso não me agrada nem um pouco, Van. Doremus telefonou a Markham, há poucos instantes, cheio de novidades e de mistério. Não sabia onde Heath se achava e, em todo caso, queria mesmo antes falar com Markham. Este deve ter localizado o mal-humorado sargento, e agora deseja que eu também vá até lá. Só um desastre cataclísmico poderia agitar o irascível Doremus o bastante para que ele fosse ao encontro do procurador distrital, em vez de apenas entregar seu relatório oficial. É muito intrigante...
Uns quinze ou vinte minutos depois, um táxi nos deixava bem defronte à casa de Markham. Um chamado em voz áspera nos fez parar no instante exato em que íamos entrando no prédio, e o sargento Heath surgiu, andando depressa.
— Acabo de receber o recado do procurador distrital, lá em casa, e vim correndo para cá — disse Heath, ofegante. — Acho que é uma coisa esquisita, Senhor Vance.
O mordomo abriu-nos a porta, e depois nós o seguimos para a biblioteca, onde Markham e o Dr. Doremus nos aguardavam.
O médico apertou os olhos e olhou para Heath com expressão malévola.
— Só poderia, mesmo, ser um dos seus casos — roncou ele, sacudindo um dedo na direção do sargento, com ar acusador. - Por que você nunca pode arranjar um assassinato simples e fácil, em vez de me trazer esses casos cabulosos? — E depois acenou a Vance, em uma fraca tentativa de parecer alegre.
Doremus era um homem pequeno e ardente, que dava mais a impressão de ser um rabugento corretor da Bolsa de Valores do que um cientista altamente eficiente.
— Estou ficando farto desses seus assassinos complicados — prosseguiu ele, falando com o sargento. — Além disso, desde o meio-dia que eu não como. Não posso comer direito nem aos domingos. Você e os seus cadáveres malucos!
O sargento sorriu e ficou calado. Ele conhecia Doremus há muito tempo, e desde então habituara-se a aceitar suas maneiras excêntricas e algumas vezes ranzinzas.
— Não, doutor — interrompeu Vance, em tom apaziguador. — O pobre do sargento é apenas um espectador inocente... Afinal de contas, qual é a dificuldade?
— O senhor também está trabalhando neste caso, hem? — retorquiu Doremus. — Eu já devia saber! Êi, o senhor não gosta de ver pessoas mortas a tiros ou a punhaladas, em um crime limpo e bonito, em vez de serem envenenadas, para que eu tenha de trabalhar o tempo todo?
— Envenenadas? — perguntou Vance, curioso. — Quem foi envenenado?
— O cadáver de que estou falando — gritou Doremus. — O sujeito que Heath me entregou para autopsiar. Esqueci o nome dele.
— Philip Allen — informou o sargento.
Pois bem, não importa. Ele estaria tão morto quanto está, qualquer que fosse o seu nome. E o que me deixa mais furioso é que não sei mais, sobre o que o matou, do que se ele fosse um zulu morto em Isipingo.
— O senhor falou em veneno, doutor — disse Vance, calmamente.
— Falei, sim — disse Doremus, em tom áspero. — Mas não sei que espécie de veneno. Não confere com nenhum dos meus livros sobre Toxicologia.
— Na verdade, isso não parece exatamente científico, sabe? — sorriu Vance. — Espero que não estejamos retrocedendo ao misticismo.
— Oh, é bastante científico — insistiu Doremus. — O veneno — seja qual for — foi, sem dúvida, absorvido pela derme ou pela membrana mucosa. Poderia ter sido um sem-número de venenos. Mas não consegui nenhuma reação clara com as provas de laboratório que geralmente dão resultados evidentes. Poderia ser uma combinação de drogas. — O médico grunhiu. — Contudo eu descobrirei o que é. Mas não esta noite. Talvez leve um dia. Nunca deparei com uma autópsia tão complicada.
— É fácil crer nisso de imediato — falou Vance. — Do contrário, o senhor não estaria aqui esta noite.
— Talvez eu não devesse estar. Mas este sujeito cacete — e apontou para Heath — não cessou de dizer que o caso era muito importante e que talvez tivesse relações com a segurança do Senhor Markham. Pareceu-me um logro, mas achei melhor dizer a ele que não podia fornecer um relatório definitivo esta noite. Ele que se preocupe... Tenho fome.
— Que é que tenho eu a ver com isto, sargento? — E o tom de voz de Markham continha uma censura aguda.
— O cadáver não estava no escritório de Mirche, chefe? — defendeu-se Heath, de forma agressiva. — E é lá que tenho estado alerta ao aparecimento de uma ameaça à sua vida... E Hennessey está de vigia lá, e tudo — concluiu ele, desajeitadamente, enquanto Vance o interrompia de chofre com um aceno de mão.
— Nós agradecemos o seu trabalho e a sua gentileza, doutor — falou Vance. — O senhor tem certeza absoluta de que Philip Allen não podia ter morrido de morte natural?
— Não, a não ser que a ciência médica tenha ficado completamente maluca — retrucou Doremus, de forma enfática. — Aquele sujeito foi envenenado... Disso tenho certeza. Não admira que o jovem Mendel tenha ficado desanimado com o caso. O que provocou a morte da vítima foi não só um veneno, mas ainda um veneno rápido e poderoso, capaz de produzir efeito imediato. Mas a droga atuou de maneira totalmente diferente daquelas cujo efeito estou habituado a ver nas vítimas cuja autópsia tenho feito.
— Mas, doutor — insistiu Vance. — O senhor deve ter alguma idéia do que tenha sido.
— Ora, tenho muitas idéias. É justamente essa a minha dificuldade: tenho idéias demais a respeito.
— Por exemplo?
— Bem, há o nosso velho amigo, o cianeto de potássio. Há muitos indícios de que seja ácido cianídrico. Acho que ele cheirou algumas vezes o gás cianeto e perdeu os sentidos. Os olhos esbugalhados e a cor da pele podem significar cianeto... e também podem significar outra coisa. E percebi um pouco do cheiro nos pulmões e na mucosa estomacal. Mas nada na boca, nem quando abri a cavidade craniana. Mas isso também não significa nada, principalmente pelo fato de terem aparecido muitas outras coisas que não significavam a presença de ácido prússico, de trás para diante ou de diante para trás, ou nos dois sentidos, a partir do meio.
— Acho que o Dr. Mendel falou em queimaduras, talvez uma reação local, nos lábios e na garganta. Que me diz disso?
— Sei lá... — E Doremus parecia aborrecido com o mundo inteiro. — O cheiro que senti nos pulmões dele indicava uma provável inalação de algum gás, conforme eu já disse.
— Poderia ter sido nitrobenzeno? — sugeriu Vance.
— Não sei... Sou apenas médico.
— Ora, vamos, doutor — falou Vance, bem-humorado. — Estou apenas tentando afastá-lo dos tóxicos antigos.
Doremus sentou-se com um movimento rápido e sorriu, à guisa de desculpa.
— Não o culpo, Senhor Vance. Estou aborrecido e com raiva. Talvez eu esteja falando como se tivesse andado metido com egípcios antigos, com mandrágora e venenos de víboras... Com poções ciganas secretas, com unguentos de bruxas com seus meimendros negros, com os venenos dos Bórgias, com água Perugia e com água Tofana...
— O senhor disse Tofana, doutor? — interrompeu Heath. — Esse é o nome da tal cartomante chamada Delpha, Senhor Vance. E acho que ela e o marido são perfeitamente capazes de envenenar uma pessoa.
— Não, sargento, não — corrigiu Vance. — A Tofana de que o doutor está falando morreu na Sicília no século dezessete. E não era cartomante. Longe disso. Ela dedicava seu talento a misturar um líquido que desde então ficou sendo conhecido pelo seu nome. Água Tofana era um veneno mortífero. E a tal mulher vendeu seu veneno em escala tão grande, que o nome do seu preparado nunca mais foi esquecido. Embora talvez sua mistura não passasse de uma solução forte de arsênico, ainda hoje há muito mistério ligado a esse preparado. E era a essa mulher, morta há vários séculos, que o Dr. Doremus estava se referindo.
— Ainda assim, digo que Rosa Tofana seria capaz de cometer a mesma infâmia —insistiu Heath, obstinadamente.
— Você parece espantosamente cheio de ódios e de desconfianças, sargento.
— Na minha profissão, eu tenho de ser assim — murmurou Heath.
Vance virou-se para Doremus.
Desculpe-nos por interrompermos, doutor. Parece que o caso que estamos atualmente investigando nos deixou a todos amargurados... Mas que me diz dos venenos tirados de flores? Seria difícil identificá-los, não seria?
— Não! Seria até bem fácil, mas levaria tempo. E eu os conheço todos. Acho que o senhor se refere: à colquicina, tirada do açafrão do campo; à heleborina, extraída da rosa-de-natal, à narcisina, tirada do narciso do prato, e à convalarina, extraída do lírio do vale... Coisas assim. Mas garanto-lhe que o veneno que deu cabo da vida de Philip não foi nenhuma droga suave como essas... Ou talvez... — E piscou um olho para Vance, astutamente. — Agora, é o senhor quem está falando a respeito dos assim chamados venenos do romance medieval. Bolas! A ciência moderna ri deles.
— Não... Oh, não. Não me extraviei até tão longe — riu Vance. — Estava apenas pensando no mascate ambulante de Londres, que vendia perfumes, e que perdeu os sentidos quando cheirou o óleo de mirbana que pusera nas flores para tornar o cheiro delas mais forte.
— Não é nada parecido com isso. — Doremus sacudiu a cabeça, desdenhosamente. — Estou apenas dizendo que ainda não sei o que foi que o tal Allen cheirou... Mas me dêem um pouco de tempo e amanhã descobrirei. E, além disso, não será uma coisa tão maluca quanto agora quer parecer.
— O senhor é capaz de dizer quando foi que ele morreu, doutor? — indagou Heath.
Doremus olhou furioso para o sargento.
— Ora, como iria eu saber? Não sou nenhum adivinho. Foi só hoje à tarde que vi o cadáver. — Sua raiva diminuiu quando ele viu a decepção de Heath. — Falei com o Dr. Mendel, mas ele não quis arriscar um palpite. Disse que não havia a rigidez de morte quando viu o cadáver pela primeira vez. Mas ninguém pode acompanhar o enrijecimento dos músculos com um cronômetro. O começo desse fenômeno é altamente variável e depende de vários fatores que incidem sobre ele. Pelo que pude saber, o homem podia ter morrido umas duas horas antes de ter sido encontrado, ou podia ter morrido até dez horas antes... Não sei, Mendel não sabe e nem os senhores sabem...
Depois que Doremus desabafou um pouco mais, deixou-nos, com um alegre aceno de mão.
— Bem, Vance — disse o procurador distrital. — Agora, como é que você pretende encaixar essa situação absurda na sua história?
Vance sacudiu a cabeça, pensativo.
— Não sei, Markham. Mas fique sossegado, que ela tem de encaixar em algum lugar, e ainda estou confuso diante dos diversos fatores convergentes do meu conto... E a sua referência aos Tofanas foi muito curiosa, sargento. Rosa Tofana, a sua amiga, está demonstrando uma estranha curiosidade a respeito do cavalheiro morto...
Vance levantou-se e caminhou várias vezes de um lado para outro.
— Ainda não confesso que estou derrotado, Markham. Existem muitas perguntas na minha mente, que clamam por respostas. Por exemplo, como foi que a vítima tornou a entrar na sala de Mirche, depois que Hennessey o viu lá, às seis horas?
— Hennessey devia estar olhando para outro lado — falou Heath, impassível.
— Isso não é provável, sargento. Aconteceu alguma coisa muito esquisita lá.
Vance ficou fumando algum tempo, em silêncio.
— Gostaria de ver as plantas da reforma do velho casarão, quando Mirche resolveu instalar o restaurante. Deve haver algo sugestivo nelas. Confesso que é um desejo estranho, mas eu gostaria de examiná-las.
— Não vejo o que adiantaria ver as tais plantas — falou Heath. — Mas, se quer mesmo vê-las, posso arranjá-las com facilidade para o senhor. Doyle e Schuster foi a firma que fez a reforma, e eu já tive negócios com o desenhista-chefe deles.
— Acho que isso ajudaria muito, sargento. Quando é que você poderia conseguir essas plantas para mim?
— Antes que o senhor se levante, de manhã — retrucou o outro, confiante. — Digamos, por volta das dez horas.
Markham parecia divertido.
— Por que não espera até Doremus mandar o relatório final?
— Tem toda razão — admitiu Vance, com relutância. — Gosto das coisas simples. Além disso, tenho de pensar em uma jovem muito suplicante.
— Eu lhe garanto — falou Markham, sem nenhuma pena — que depois de examinar as plantas, amanhã, você terá tempo de sobra para pensar na tal jovem suplicante.
— Não... Não, Markham — disse Vance sério. — Não é uma questão de leviandade...
Depois, ele contou, com pormenores, a visita patética feita a ele naquela tarde por Gracie Allen. Seu pedido de ajuda, sua preocupação por Burns, e as sugestões que ele, compadecido, dera para que a jovem mantivesse a mente ocupada.
— Eu e o sargento — concluiu ele — fizemos uma promessa à mãe dela. E, depois da visita inesperada da moça, hoje, quero encarecer a vocês dois a necessidade de mostrarmos consideração para com a jovem, sempre que ela resolver intrometer-se no nosso trabalho.
— Considero um prazer, para não dizer uma coisa rara, elogiar a sua meticulosidade sentimental — observou Markham. — Mas talvez eu não seja chamado a ajudar nesse logro caridoso. Acho que a situação cairá com violência sobre você e o sargento.
— Para mim, isso não tem importância, chefe — falou Heath. — A Senhora Gracie Allen é muito amável. E sua filha é muito bonita.
Vance sorriu, agradecido.
— Você terá de ser um tanto cuidadoso, sargento. O melhor modo de enfrentar a situação é não mostrar nenhuma pena, aparentemente. Isso poderia deixar a moça desconfiada. Devemos agir, em qualquer tempo, como se não soubéssemos mais,
a respeito da morte do seu irmão, do que ela própria. É preciso ser ator, sargento. Você seria capaz de representar?
— Claro que representarei! — E a voz de Heath era decidida e sincera. — Mas ainda não sou tão insensível que possa prometer não sentir um nó na garganta de vez em quando...
E o sargento parecia um tanto envergonhado da extravasação de sentimentos, tão inadequada para ele.
— Raios! — acrescentou ele, depressa. — Vou acabar sendo um daqueles ídolos de filmes infantis.

CAPITULO XII
UMA ESTRANHA DESCOBERTA
(Segunda-feira, 20 de maio — 9:00 horas)

Vance relutara em deixar o apartamento de Markham, na noite de domingo, e ficara lá até tarde. Mas, na manhã seguinte, levantou-se mais cedo do que o costume. Por volta das oito e meia, ele já estava completamente vestido e já tomara seu café. Pouco depois das nove horas, o sargento Heath chegou e entrou na biblioteca em passos largos e triunfantes.
— Aqui estão elas, Senhor Vance — anunciou ele, colocando um rolo comprido de papelão em cima da escrivaninha. — Se todos os meus trabalhos fossem tão fáceis de fazer como obter estas plantas para o senhor, eu jamais morreria de excesso de serviço.
— Céus, que eficiência!
Vance tirou as plantas do invólucro e estendeu-as em cima da escrivaninha. Estudou-as todas, minuciosamente, examinando separadamente a planta de cada piso. No entanto, dedicou mais tempo à planta do andar térreo, que incluía o salão do restaurante, o saguão de entrada e as salas onde eram guardados os abrigos dos fregueses, onde ficava a cozinha e onde estava instalado o escritório. O sargento ficou observando-o com uma expectativa divertida.
— Muito convencional — murmurou Vance, tamborilando nas folhas com o dedo. — Umas plantas muito boas. Feitas com inteligência. Nada mais, nada menos. Triste... Muito triste.
Nesse instante, Gracie Allen chegou, inesperadamente. Entrou na bibblioteca antes de Currie, tornando supérfluo que ele a anunciasse.
— Oh, eu tinha de vê-lo, Senhor Vance! Não sei por que, mas parece que não estou fazendo nenhum progresso, e trabalhei com tanto afinco. Sinceramente, eu trabalhei!
— Caramba! Minha jovem... — Vance falou em tom agradável. — Por que não está trabalhando na fábrica, hoje?
— Não pude ir ao trabalho — retorquiu ela. — Por enquanto, não posso. Estou pensando em tanta coisa ao mesmo tempo... Isto é, em coisas terrivelmente importantes. E tenho certeza de que o Senhor Doolson não se importará... George também não foi trabalhar. Telefonou-me, ontem à noite, e disse que não podia fazer nada na fábrica. Está muito transtornado.
— Bem, talvez, afinal de contas, Senhorita Allen, alguns dias de descanso...
— Oh, mas eu não estou descansando. — Ela pareceu magoada. — Estou terrivelmente ocupada o tempo todo. O senhor mesmo disse que preciso manter-me ocupada, lembra-se? — Ela avistou Heath, e uma expressão de medo lhe veio aos olhos grandes, ao reconhecer o sargento.
Vance amenizou a situação, apresentando Heath em tom indiferente.
— Ele também está trabalhando conosco no caso — acrescentou Vance. — Você pode confiar no sargento. Expliquei-lhe o seu engano de ontem e agora ele está do nosso lado... Além disso — prosseguiu Vance, alegremente — ele também tem cinco letras no nome.
— Oh! — E seus temores foram um tanto diminuídos por essa informação, embora ela olhasse novamente para Heath com ar incerto antes de romper em um sorriso leve. Depois, a jovem apontou para a escrivaninha. — Que são aqueles papéis azuis, Senhor Vance? Não estavam ali ontem. Talvez sejam uma pista ou algo parecido. São mesmo?
— Não, receio que não. São apenas plantas do Domdaniel, onde você esteve na noite de sábado...
Oh, posso dar uma olhada?
— Sem dúvida — respondeu Vance, e se curvou sobre a escrivaninha ao lado dela. — Veja, este é o grande salão de refeições e a porta de entrada que vem do corredor. E aqui fica a cozinha, além da porta lateral. E nesta parte fica a alameda que passa embaixo do arco. E neste canto fica o escritório, com a porta que dá para o terraço. E...
— Espere um instante — interrompeu a moça. — Na verdade, isto não é um escritório.
Gracie curvou-se mais perto, sobre a planta, e acompanhou o traçado dos corredores com um dedo, eliminando-os à medida que os acompanhava. Acabou seguindo o contorno do pequeno aposento. Depois, ergueu o olhar.
— Ora, mas esse é o quarto particular de Dixie Del Marr. Ela própria me contou isso... Não acha que ela é linda, Senhor Vance? E como canta bem... Gostaria de poder cantar como Dixie. Canta canções clássicas...
— Tenho certeza de que a senhorita canta muito melhor do que ela — disse-lhe Vance, de maneira galante. — Mas acho que está enganada ao afirmar que esse é o quarto de Dixie. Na verdade, é o escritório de Mirche, não é, sargento?
— Claro que é!
Gracie Allen curvou-se ainda mais sobre as plantas.
— Oh, mas é o quarto em que eu estive — garantiu ela, de maneira terminante. — Vou-lhes mostrar: aquela janela dá para a alameda. E aqui fica a rua, para onde dão aquelas janelinhas. Aqui na planta até diz ”rua Cinquenta”. Ora, tem de ser o quarto da Senhorita Del Marr. E a gente não pode ter dois quartos no mesmo lugar, mesmo em uma planta... Pode?
— Não, seria absurdo...
— E as paredes não são todas pintadas de lilás? E não há três ou quatro cadeiras grandes de couro ao longo desta parede? E não há um enorme peixe morto, em uma tábua, pendurado aqui? — E ela ia apontando para a localização dos objetos, enquanto falava. — E não há um candelabro pequeno, de vidro, muito engraçado, pendurado no... Oh, onde fica o teto, Senhor Vance? Não vejo nenhum teto nesta planta.
Heath tornara-se altamente interessado nas análises da jovem.
— Claro — falou ele. — As paredes são de uma espécie de cor de púrpura, e Mirche diz que pescou aquele peixe lá na Flórida. Ela tem toda razão, Senhor Vance... Mas escute aqui, moça, quando foi que esteve naquele cômodo?
— Ora, eu estive lá ainda na noite de sábado.
— Quê?! — berrou Heath. Gracie ficou assustada.
— Será que eu disse alguma coisa errada? Não tive intenção de entrar lá. Foi por acaso...
Agora, foi Vance quem falou.
— A que horas, durante a noite, você entrou lá, Gracie?
— Ora, Senhor Vance. Foi quando fui à procura de Philip, às dez horas da noite... Mas não o encontrei. Ele não estava em parte alguma. E também não veio ontem para casa. Acho que foi tirar umas férias fora da cidade. E prometeu que não deixaria o emprego.
Vance acabou com a tagarelice sem objetivo da jovem.
— Não vamos falar em Philip agora. Diga-me apenas como foi que você se dirigiu ao terraço à procura do seu irmão, quando, na realidade, o que você queria era ir para os fundos do restaurante.
— Não fui para o terraço. — Gracie sacudiu a cabeça, de maneira enfática. — Afinal de contas, para que eu desejaria ir ao terraço? Eu me resfriaria, pois estava trajando um vestido muito fino. Não acha que era um vestido lindo, Senhor Vance? Foi a mamãe também que o fez.
— Sim, você estava encantadora nele... Mas deve ter-se esquecido, pois o único jeito de entrar naquele quarto é pelo terraço.
— Oh, mas eu entrei por outro caminho... Entrei pela porta dos fundos. — Ela apontou para a parede que ficava diretamente em frente à porta da rua do escritório de Mirche; depois, seus olhos se arregalaram, quando ela examinou a planta. — Há alguma coisa muito estranha aqui, Senhor Vance. Quem fez esta planta não teve muito cuidado.
Vance aproximou-se mais dela. O sargento também chegou mais para perto, e ficou ao lado dos dois, com um ar de expectativa e curiosidade, com o charuto erguido no alto.
— A senhorita acha que deveria aparecer outra porta nesse lugar? — indagou Vance, baixinho.
- Ora, é claro! Porque há uma porta ali mesmo. Do contrário, como poderia eu ter entrado no quarto de Dixie Del
Marr? Mas o que não posso imaginar é por que ela conserva aquele peixe lá no seu quarto. Não vejo nenhuma beleza nisso. . .

— Não se preocupe com o peixe. Olhe aqui para a planta um instante. . . Agora, aqui está o arco pelo qual você deixou o salão de refeições.. .

— Sim. O que tem a grande escada trabalhada defronte.

— E agora, vejamos, você deve ter entrado por aqui, no corredor. . .

— Isso mesmo. George queria que eu ficasse para falar com ele, mas eu tinha pressa. Por isso, voltei direto, até passar por outro corredor pequeno. E então fiquei sem saber em que direção seguir.

— Você deve ter entrado nessa passagem estreita e caminhado até este ponto aqui. — Vance parou o lápis com o qual estivera acompanhando, na planta, o roteiro seguido pela moça.

— Foi exatamente o que fiz! Como foi que o senhor soube? Estava-me observando?

— Não, Gracie — respondeu Vance, com paciência. — Mas talvez você esteja um tanto confusa. Há uma porta aqui, na extremidade desta estreita passagem, onde você diz que desceu.

— Sim, eu vi a tal porta. Cheguei até a abri-la. Mas não havia nada lá, apenas a alameda de entrada de carros. Nesse momento compreendi que estava perdida. E então, quando eu estava lá, de pé, encostada à parede e imaginando como iria encontrar Philip, essa outra porta de que eu lhe estava falando — a que leva para dentro do quarto de Dixie Del Marr — abriu-se atrás de mim. — A jovem deu um riso abafado, como se estivesse pensando em alguma piada que fosse contar em seguida. — E eu caí dentro do quarto! Foi muito embaraçoso, mas não estraguei meu vestido. E poderia tê-lo rasgado, caindo daquela maneira. .. Mas acho que a culpa foi apenas minha, por não ter olhado onde me estava encostando. Mas eu não sabia que havia uma porta ali. Não vi porta nenhuma. Em todo caso, lá estava eu, dentro do quarto. Não é uma tolice? Não ver uma porta e apoiar-se nela, e depois cair através dela dentro do quarto de Dixie? — Ela riu de maneira encantadora, ao lembrar-se do que lhe acontecera.

Vance levou a moça para uma cadeira e arrumou um travesseiro para ela.

— Sente-se ali, minha querida — falou ele. — E contenos tudo a respeito do que aconteceu com você.

— Mas eu já lhes contei — falou ela, ajeitando-se de maneira confortável. — Foi muito engraçado, e fiquei muito embaraçada. A Srta. Del Marr também ficou embaraçada. Ela me disse que aquele era seu quarto particular. Por isso, eu lhe disse que lamentava muito o acontecido e lhe expliquei que estava procurando meu irmão. Ela até conhecia Philip. Acho que era porque ambos trabalhavam no mesmo lugar, como eu e George. . . E depois ela me levou de volta ao corredor e apontou o caminho certo para o patamar da escada da cozinha. Foi muito boazinha para comigo. Bem. . . Esperei muito tempo, mas Philip não apareceu. Por isto, voltei para junto do Sr. Puttle. Eu sabia encontrar o caminho de volta. . . E agora, Sr. Vance, quero fazer-lhe mais algumas perguntas a respeito do que o senhor disse ontem. . .

— Eu teria muito prazer em responder a elas, Srta. Allen

— disse Vance. — Mas, na verdade, não tenho tempo, esta manhã. Talvez depois, à tarde. Não se importará, não é?

— Oh, claro que não. — A jovem saltou de pé, agilmente.

— Também tenho algo muito importante a fazer. E talvez George vá à casa da minha mãe, passar alguns minutos conosco.

— Ela apertou a mão de Vance, fez um movimento de cabeça na direção de Heath, arisca e um instante depois se retirara.

— Com mil gafanhotos! — explodiu Heath, quase antes que a porta se fechasse atrás de Gracie Allen. — Eu não lhe disse que o tal Mirche era um sujeito esperto? Então, ele tem uma porta secreta! Mas aquela boneca tonta não a viu... Claro que não a viu! Alguém deve ter sido descuidado.. . Ela se encostar a uma porta invisível e cair dentro do quarto.. . E exatamente dentro do quarto onde mataram seu irmão! É a maior!

Vance deu um sorriso leve.

— Mas, afinal de contas, sargento, não há nenhuma lei que proíba um homem de ter uma porta secreta para o seu escritório. E essa, sem dúvida, é a nossa resposta a como teria o morto ido parar lá dentro sem que fosse visto por Hennessey. Mas alguém deve ter estado lá dentro com ele. Não foi Mirche, que estava à minha mesa entre dez e onze horas da noite. E, sem dúvida, não havia nenhum morto lá dentro às dez horas da noite.

— Mas o senhor não pensa...

— Faça silêncio algum tempo, sargento. — E Vance andava de um lado para outro.
— Gostaria de ir ao Domdaniel e arrombar aquela porta falsa! — declarou Heath, violentamente.
— Não... Oh, não — aconselhou Vance. — Você não deve ser tão impetuoso. Precisa ser fino. Que essa seja a nossa palavra de ordem, por enquanto.
— Ainda assim — disse Heath, resolutamente — se o Domdaniel for o quartel-general de uma quadrilha de meliantes, como sempre desconfiei, nada me daria mais prazer do que esmagar todo aquele prédio, e Mirche também, junto com o resto.
— Tem uma natureza impulsiva demais, sargento — censurou Vance. — Ninguém pode rebentar a casa dos outros sem provas da culpa da pessoa.
— Estou apenas dizendo o que eu gostaria de fazer.
— E outra coisa, sargento: Mirche seria apenas um elo secundário na sua imaginária cadeia criminosa. Como eu disse, ele está longe de ser um líder de homens.
— Pois ele me parece bastante esperto — insistiu Heath, mansamente. — Em todo caso, o tal de ”Coruja” Owen, com quem o senhor estava preocupado, deve ser um dos chefes.
— É verdade — disse Vance, pensativo. — Mas ele era apenas um companheiro de jantar, quando o vi. Muito correto e comedido. Embora eu confesse que sua presença lá, naquela noite, não me agradou, com tantas outras coisas esquisitas juntando-se sem significarem nada. — Vance fez um gesto vago. — Acho que podemos esquecê-lo, por enquanto, para nos concentrar em estabelecer quem matou o pobre sujeito.
— Mas como? Investigando um pouco mais de perto a respeito de Mirche?
— Exatamente, sargento. E também não deixarei de investigar a respeito de Dixie Del Marr, depois daquela espantosa informação sobre a porta falsa que dá para seu quarto particular.
— E como pretende fazer isso, Senhor Vance?
— Bem abertamente, sargento. Vou até lá bater um papo. Por falar nisso, onde é que Mirche mora?
— Isso é fácil — informou Heath. — Mora no primeiro andar do Domdaniel.
— Foi o que imaginei... E você poderia responder com igual facilidade, se eu lhe perguntasse onde mora a Senhorita Del Marr?
— Claro — grunhiu Heath. — Eu não teria durado tanto tempo no Departamento de Homicídios, se não soubesse onde moram as pessoas que considero suspeitas de estarem tomando parte em patifarias ou em crimes. O senhor a encontrará no Hotel Antler, na Rua Cincoenta e Três.
— Você é um fundo de informações, sargento — elogiou Vance.
— Quando pretende ir falar com eles, Senhor Vance? E que faremos, depois?
— Tentarei comunicar-me com Mirche e com Dixie Del Marr hoje de manhã. Em seguida, esforçar-me-ei para conseguir que Markham almoce comigo. Depois, ficaria encantado em me encontrar novamente com você, aqui, às três horas da tarde.
— O caso continua sendo seu, Senhor Vance — murmurou Heath. — E eu não lhe direi como conduzi-lo. — E ele ficou mais meia hora antes de se retirar.
Depois, Vance telefonou para Markham, e em seguida sentou-se e acendeu um cigarro, de maneira mais deliberada do que de costume.
Mais outra faceta espantosa na pedra preciosa, Van — falou ele. — Markham estava para me telefonar quando me ligaram com seu gabinete. O Senhor Doolson — o tal da fábrica de perfumes In-O-Scent — estivera lá e fora embora. Markham prometeu contar-me a história da sua visita mais tarde, quando nos encontrarmos, e parecia muito divertido. Devemos encontrar-nos no seu gabinete por volta da uma hora da tarde. Eu disse a ele que, se não estivéssemos lá até as duas horas, ele deveria mandar uma pelotão dos nossos bravos rapazes dar uma batida no Domdaniel.

CAPITULO XIII
NOTÍCIAS DE UMA CORUJA
(Segunda-feira, 20 de maio — 11:00 horas)

Às onze horas, Vance foi ao Domdaniel. Não teve nenhuma dificuldade em falar com Mirche. Após uma espera de apenas cinco minutos, o proprietário do restaurante entrou na sala de recepções onde estávamos esperando. Cumprimentou Vance de maneira efusiva, embora me desse a impressão de que estava representando um papel bem ensaiado.
— A que devo esta visita inesperada, Senhor Vance? — indagou ele, amavelmente.
— Eu queria apenas conversar com o senhor a respeito do pobre coitado que foi encontrado morto aqui na noite de sábado. — Vance falou com indiferença, embora em tom agradável.
— Ah, sim. — Se Mirche ficou surpreso, disfarçou muito bem. — Claro, se for a respeito da família dele, teremos prazer em ver o que pode ser feito. Naturalmente, eu gostaria de evitar escândalos, pois isso prejudicaria a freqüência ao nosso restaurante. Foi um acidente lamentável. Mas... É melhor irmos para o meu escritório.
O homem foi na frente ao longo da sacada e, abrindo a porta, afastou-se para um lado a fim de que entrássemos na sua frente. Vance sentou-se em uma das grandes cadeiras de
couro e Mirche sentou-se em outra, mais ou menos de frente — para Vance.
— A polícia tem feito muitas perguntas a respeito do caso — começou Mirche. — Mas eu esperava que, nesta altura, todo esse assunto já estivesse sido resolvido.
— Sei que estas coisas são muito importunas — falou Vance. — Mas há um ou dois pontos, nessa situação, que me interessam um pouco.
— Pois me surpreende muito que se interesse por esse caso, Senhor Vance. — Mirche falava em tom frio e delicado. — Afinal de contas, o homem era apenas um lavador de pratos. Eu o mandara embora antes da hora do jantar. Ele reclamou que seu salário era muito baixo e não chegamos a um acordo a respeito do assunto. Não entendo por que ele teria voltado, a não ser que houvesse pensado melhor e quisesse ser readmitido. Foi lamentável ele morrer no meu escritório. Mas não parecia ser um sujeito particularmente robusto, e acho que nunca se pode saber quando o coração vai estourar... A propósito, Senhor Vance, já foi determinada a causa da morte?
— Não, acho que não — respondeu Vance, sem se comprometer. — No entanto, não é isso que interessa, no momento. O fato, Senhor Mirche, é que havia um policial na rua, lá fora, na noite de sábado, e ele insiste em que não viu esse seu lavador de pratos entrar aqui no seu escritório, depois que foi visto saindo dele, por volta das seis horas.
— Talvez ele não o tenha notado — falou Mirche, com indiferença.
— Não, não... O policial, que, a propósito, conhecia Philip Allen, tem certeza absoluta de que a jovem vítima não entrou no seu escritório, pelo lado da sacada, a noite inteira.
Mirche ergueu o olhar e estendeu as mãos.
— Mas, assim mesmo, insisto, Senhor Vance...
— Seria possível que o tal Philip tivesse alcançado este aposento por outra entrada? — Vance fez uma pausa momentânea e olhou ao redor. — Talvez tivesse entrado por aquela pequena porta que há na parede dos fundos.
Mirche ficou um instante calado. Olhou fixamente para Vance, com expressão astuta, e os músculos do seu corpo pareceram retesar-se. Se algum dia vi uma fotografia viva de um homem pensando depressa, Mirche era o retrato vivo desse homem.
De repente, o homem soltou uma risada curta.
— E eu pensava que havia guardado tão bem o meu segredinho... Aquela porta é invenção minha, apenas para meu uso particular, o senhor compreende. — Levantou-se e foi até o fundo da sala. — Vou-lhe mostrar como ela funciona. — Apertou um pequeno medalhão, no lambril, e uma folha de porta, que não teria nem meio metro de largura, girou sem ruído para dentro do aposento. Do outro lado ficava o estreito corredor no qual Gracie Allen perdera o rumo.
Vance olhou para as dobradiças ocultas da porta secreta e depois se afastou, como se a revelação não fosse nenhuma novidade para ele.
— Muito hábil — disse ele, em sua voz arrastada.
— É muito conveniente — falou Mirche, fechando a porta. — Uma entrada particular que liga o restaurante ao meu escritório. Como vê, Senhor Vance...
— Ah, sim, sem dúvida. É muito útil quando a gente quer-se isolar um pouco do resto do mundo. Sei que certos corretores de Wall-Street têm portas assim. E acho que com razão... Mas como é que o seu lavador de pratos teria tomado conhecimento da existência de tal porta?
Mirche coçou o queixo, pensativo.
— Ora, não sei... Embora seja perfeitamente possível, é claro, que algum empregado do restaurante haja visto quando abri a porta... Ou talvez tenha descoberto casualmente o segredo.
— A Senhorita Del Marr sabia dele, não sabia?
— Oh, sim — confessou Mirche. — Ela, às vezes, me ajuda aqui um pouco no trabalho. Não vejo nenhum motivo para não a deixar usar a porta, quando ela quer.
Era evidente que Vance fora colhido de surpresa pela franqueza de Mirche, e logo mudou a conversa para outros assuntos. Fez inúmeras perguntas a respeito de Allen e depois voltou aos acontecimentos da noite de sábado.
No meio de uma das perguntas de Vance, a porta da frente abriu-se e Dixie Del Marr apareceu na soleira da porta. Mirche convidou-a para entrar e imediatamente nos apresentou.
— Eu estava justamente falando a estes senhores — disse ele, rapidamente — a respeito da entrada secreta que existe para este aposento. — E forçou uma risadinha. — O Senhor Vance parecia pensar que devia haver alguma ligação misteriosa entre isso e...
Vance ergueu a mão, protestante em tom agradável.
— Infelizmente, acho que o senhor imaginou significados ocultos nas minhas palavras, Senhor Mirche. — Depois, sorriu para Dixie Del Marr. — A senhorita deve achar aquela porta muito útil.
— Ah, sim... Principalmente quando o tempo está ruim. Na verdade, ela tem sido muito útil. — Ela falou em tom de voz indiferente, mas havia uma dureza, quase amargura, na expressão do seu rosto.
Vance a estava examinando atentamente. Eu esperava que ele a interrogasse a respeito da morte de Allen, pois sabia que fora essa a sua intenção. Mas, realmente, ele tagarelou descuidadamente a respeito de coisas banais, completamente sem relação com o assunto que nos levara ali.
Pouco antes de despedir-se, ele disse à Senhorita Dixie Del Marr, em tom de voz conciliatório:
— Desculpe-me se pareço pessoal, mas não posso deixar de admirar o perfume que a senhorita está usando. Eu arriscaria um palpite... Seria, acaso, uma mistura de narciso e rosa?
Se a mulher ficou atônita com o comentário de Vance, não deu nenhuma demonstração.
— Sim — respondeu ela, com indiferença. — Tem um nome ridículo... Completamente indigno dele, creio eu. O Senhor Mirche também usa o perfume... Tenho certeza de que por influência minha. — Dirigiu um sorriso convencional ao homem, e novamente notei a dureza e a amargura das suas maneiras.
Nós nos retiramos pouco depois disso e, enquanto caminhávamos ao longo da Sétima Avenida, Vance mostrava-se de uma seriedade fora do comum.
— O nosso Senhor Mirche é muito esperto — murmurou Vance. — Não compreendo por que não ficou mais preocupado a respeito da porta secreta. Mas ele está preocupado. Oh, e muito. É muito esquisito... Não precisei interrogar Dixie. Mudei de idéia a esse respeito no instante em que ela falou tão suavemente e olhou para Mirche. Havia ódio, Van. Ódio cruel e apaixonado, e ambos usavam Beije-me Depressa. Oh, que tem esse perfume a ver com o nosso caso? É curioso...!
Markham nos falou, em seu gabinete, acerca da visita de Doolson, acontecida naquela manhã.
-— O homem está desesperadamente preocupado, Vance, e pelo motivo mais incrível. Parece que tem uma opinião muito elevada a respeito da habilidade do jovem Burns. Acha que sua fábrica de perfumes não poderia funcionar sem o rapaz. Está convencido de que Burns é quem tem a chave do sucesso contínuo da sua empresa. E falou mais coisas assim, de espantosa tagarelice.
— Não foi tagarelice, de forma alguma, Markham — interrompeu Vance. — Doolson talvez tenha toda razão de considerar muito Burns. Foi este quem preparou as fórmulas para a In-O-Scent e salvou Doolson da falência. Compreendo exatamente o que ele quis dizer.
— Bem... Parece, também, que as vendas da firma só são efetuadas em determinadas épocas, e que se aproxima, agora, a fase de vendas mais altas. Doolson investiu uma fortuna em uma campanha de vendas, e precisa imediatamente de vários e novos perfumes populares. E acha que só Burns pode preparar-lhe tais perfumes.
— Isso é interessante e plausível. Mas por que a visita dele ao seu gabinete?
— Parece que Burns não compareceu ao emprego e que não irá mais lá até que fique livre de suspeitas no caso Allen. Burns está nervoso e, creio eu, bastante amedrontado. Não pode trabalhar, não pode pensar, não pode experimentar perfumes ... Está completamente desorientado. E Doolson está muito aflito. Hoje cedo, conversou com o rapaz e ficou sabendo dos motivos da sua recusa obstinada em voltar para o trabalho. Burns lhe disse que o caso estava sendo abafado temporariamente, e não forneceu nomes. Mas explicou que ele estava implicado, de alguma forma, e, portanto, transtornado. Tendo confiança completa em Burns, Doolson veio correndo para cá, em desespero de causa. Talvez tenha achado que meu departamento está trabalhando demasiado lentamente.
— Que foi que ele disse?
— Doolson insiste em oferecer um prêmio em dinheiro pela solução do caso, na esperança desesperada de me incentivar, e ao meu pessoal, a resolvermos o assunto imediatamente, para que seu precioso Burns possa voltar ao trabalho. Pessoalmente, acho que o homem está doido.
— Talvez esteja, Markham, mas não o desiluda.
— Já tentei, mas ele insistiu.
— E quanto é que ele acha que valem os serviços imediatos e tranqüilos do Senhor Burns?
— Cinco mil dólares!
— É uma loucura — riu Vance.
— Concordo com você. Eu também não acreditaria, se não tivesse um cheque dessa importância, assinado por Doolson e visado, neste momento, guardado no meu cofre. E, por falar nisso, esse cheque só é válido por quarenta e oito horas...
Depois que Vance absorvera essas informações fantásticas, contou suas atividades da manhã. Falou da porta secreta que dava para o escritório de Mirche e frisou o ponto da desconfiança insistente do sargento de que o Domdaniel era a sede de uma poderosa quadrilha de criminosos.
Sobre este último ponto, Markham fez um aceno lento e pensativo de cabeça.
— Não tenho certeza — observou ele — de que as suspeitas do sargento sejam infundadas. Aquele lugar sempre me preocupou um pouco, mas nunca veio à luz nada concreto.
— O sargento mencionou Owen como um possível chefe — falou Vance. — E acho a idéia interessante. Estou um tanto inclinado a procurar o ”Coruja” e tentar fazê-lo arrepiar as penas. A propósito, Markham, se meu impulso vencer minha discrição, qual é o nome verdadeiro de Owen? Você entende, não posso andar por aí perguntando por uma ave noturna de rapina.
— Acho que é Dominic.
— Dominic, Dominic... — De repente, Vance se levantou, com os olhos fixos no espaço à sua frente. — Dominic Owen! E Daniel Mirche! — E segurou o cigarro, suspenso no alto. — Agora, tudo se tornou fantasia. Você tem razão, Markham... Estou tendo visões: estou envolto em um conto misterioso. Uma coisa fantástica!
— Ora em nome dos céus... — começou Markham.
— Ora, mas você ainda não compreendeu? — E depois, disse: — Dominic... Daniel. Que engenhoso... Daí saiu DOMDANIEL!
Markham ergueu o cenho, incrédulo.
— Pura coincidência, Vance. Embora haja nisso certa dose de fantasia, coisa que eu confesso. Se bem me lembro da leitura que fiz das Mil e Uma Noites, o Domdaniel original ficava no fundo do mar, em algum ponto perto de Túnis, e era uma curiosa morada de espíritos malignos. Mesmo que Mirche tenha ouvido falar daquele palácio submarino e fosse realmente sócio de Owen no restaurante, ele jamais teria coragem ou iniciativa suficientes para isso.
— Mirche não teria, Markham, mas Owen teria. Owen teria a suteliza, a ousadia e o humor sombrio para isso. A idéia teria sido magnífica, creio eu. Oferecendo ao mundo a chave do seu segredo e depois rindo sozinho, muito à semelhança dos demônios que originalmente habitavam aquela cidadela submarina do pecado...
Juntamente com Markham, condoeu-se das complicações da vida e deixou-o sozinho para tirar suas próprias conclusões.
Quando voltamos para o apartamento de Vance, pouco antes das três horas da tarde, não era Heath quem estava à nossa espera. Era Gracie Allen, que parecia estar sempre em toda parte e, como de costume, saudou Vance com alegria e exuberância.
— O senhor me disse para voltar hoje à tarde. Ou não disse? Seja como for, o senhor disse alguma coisa a respeito de logo mais à tarde. E, como eu não sabia a que horas deveria vir, vim cedo. Já reuni muitas pistas... Isto é, umas três ou quatro. Mas acho que elas não servem para nada. O senhor arranjou alguma pista?
— Ainda não — falou ele, sorridente. — Isto é, não tenho pistas definidas. Mas tenho várias idéias.
— Oh, fale-me das suas idéias, Senhor Vance — pediu ela, insistente. — Talvez elas sejam úteis. Nunca se sabe o que pode resultar quando se começa a pensar. Ainda na semana passada, pensei que ia haver uma tempestade violenta, e houve mesmo!
— Bem, vejamos... — E Vance, um tanto levado pelo espírito da brincadeira, e contudo com evidente benignidade, falou-lhe das suas suposições com relação ao significado da palavra ”Domdaniel”. Demorou-se sobre o mistério e o romance da lenda original de Domdaniel, contida nas Mil e Uma Noites, para divertir a jovem: falou dos califas sírios, das ”raízes do mar”, das quatro entradas e dos quatro mil degraus, citou Magharabi e os outros mágicos e feiticeiros.
Heath chegara no começo da história, e ficou de pé, ouvindo, tão encantado quanto o estava a moça. Quando Vance terminou, Gracie Allen relaxou os nervos e músculos, durante alguns instantes.
— Isso é simplesmente maravilhoso, Senhor Vance. Gostaria de poder ajudar a encontrar o tal Dominic. Temos um empregado gorducho, na fábrica, um homem corpulento, que se chama também Dominic. Mas ele não pode ser quem o senhor procura.
— Não, tenho certeza de que não é. O que estou procurando é um homem pequeno, de olhos muito escuros e penetrantes e rosto muito branco, e tem cabelos quase pretos.
— Oh! Talvez seja o homem que eu vi no quarto de Dixie Del Marr.
— Quê?! — E a exclamação do sargento assustou a jovem.
— Meu Deus! Será que tornei a dizer alguma coisa errada, seu Heath?
Vance fez um aceno para o sargento se afastar, e havia censura no gesto. Depois, falou calmamente com a moça.
— Quer dizer, Gracie, que você viu alguém no quarto, além de Dixie Del Marr, quando caiu casualmente dentro dele, na noite de sábado passado?
— Sim. Um homem exatamente igual ao que você descreveu.
— Mas por que — indagou Vance — você não me contou isso, hoje de manhã?
— Ora, o senhor não me perguntou! Se me houvesse perguntado, eu lhe teria contado. E, em todo caso, achei que isso não tinha nenhuma importância... Isto é, o fato de aquele homem estar no quarto de Dixie Del Marr. Ele não teve nada que ver com a minha queda.
— E você tem certeza — prosseguiu Vance — de que ele era parecido com o homem que acabo de lhe descrever?
— Sim, certeza absoluta.
— E suponho que foi a primeira vez que você o viu, não foi?
— Sim, isso mesmo. E, se o tivesse visto antes, ter-me-ia lembrado. Eu sempre me recordo de fisionomias, mas não consigo é lembrar-me de nomes. Mas eu o vi depois daquilo.
— Depois? Onde foi isso?
— Ora, ele estava sentado no salão de refeições do restaurante, bem a um canto, não muito longe do George. Não posso imaginar como foi que olhei casualmente naquela direção, pois me achava em companhia do Senhor Puttle naquela noite.
— Havia mais alguém com o homem, quando você o viu no restaurante? — prosseguiu Vance.
— Sim, mas eu não os podia ver, já que se achavam de costas para mim.
— A quem está-se referindo?
— Ora, aos outros dois homens sentados à mesa do sujeito que o senhor está procurando.
Vance tirou uma fumaça profunda do cigarro.
— Diga-me, Gracie... Que é que o homem estava fazendo, quando você o viu no quarto de Dixie Del Marr?
— Deixe-me pensar... Acho que ele é um amigo muito íntimo da Senhorita Del Marr, pois estava guardando uma caderneta grande de anotações em uma das gavetas. E deve mesmo ser amigo muito íntimo de Dixie, do contrário não saberia qual o lugar do tal caderno, não é? Depois Dixie Del Marr veio até junto de mim e pousou uma das mãos no meu braço, levando-me depressa para fora. Acho que ela estava apressada. Mas foi muito amável comigo...
— Bem... Foi uma aventura muito divertida, minha querida.
Pouco depois dessa espantosa informação, Gracie Allen despediu-se de nós, muito alegremente, com um ar cômico de mistério, dizendo que precisava cuidar de muitas coisas importantes. Confidencialmente, disse-nos que talvez até fosse encontrar-se com Burns.
Quando a jovem se retirou, Vance olhou para o outro lado, para o sargento, como se esperasse algum comentário.
Heath esparramou-se em uma cadeira, aparentemente atordoado.
— Não tenho nada que dizer, Senhor Vance. Vou ficar maluco!
— Até eu estou um pouco tonto — falou Vance. — Mas, agora, tenho de falar com Owen. Francamente, eu não estava muito animado a ir falar com ele, e só vagamente acreditava na minha charada a respeito de Owen e Mirche. No entanto, o tempo todo Gracie Allen conhecia a ligação. Sim, agora é indispensável que eu encontre ”o Coruja”... Você pode ajudar-me, sargento?
Heath apertou os lábios.
— Não sei onde ele se hospeda, em Nova York, se é a isso que se refere. Mas talvez um dos agentes federais que eu conheço me dê essa informação. Espere um instante...
Heath foi ao telefone, no corredor, enquanto Vance fumava, silencioso e pensativo.
— Finalmente, consegui — anunciou Heath, ao voltar para a sala, meia hora depois. — Nenhum dos agentes federais sabia que Owen se achava na cidade, mas um deles examinou o arquivo e me disse que Owen costumava morar no hotel St. Carlton, na época em que foram feitas investigações a respeito dele. Resolvi ligar para o hotel. Ele está hospedado lá, realmente... Chegou na quinta-feira...
— Obrigado, sargento. Vou telefonar para você amanhã cedo. Enquanto isso, não pense muito no assunto.
O sargento retirou-se e Vance telefonou imediatamente para Markham.
— Você vai fazer a refeição matinal comigo amanhã — disse o detetive ao procurador distrital. — Hoje à noite, esforçar-me-ei para visitar o erudito Senhor Owen. Tenho muitas coisas a contar a você, e talvez amanhã cedo tenha mais. Lembre-se, Markham: refeição matinal amanhã... É uma imposição, e não um convite banal...

CAPÍTULO XIV
UM LOUCO MORIBUNDO
(Segunda-feira, 20 de maio — 20:00 horas)

Naquela noite, às oito horas, Vance foi ao Hotel St. Carlton. Ao invés de telefonar da mesa da recepção, escreveu as palavras ”visita não profissional” no seu cartão e mandou-o a Owen. Alguns minutos depois, o mensageiro voltou e nos levou até os aposentos de Owen.
Havia dois homens sentados perto de uma janela, quando nós entramos, e o próprio Owen achava-se sentado, inerte, em uma cadeira baixa, contra a parede, virando lentamente o cartão de visitas de Vance nos dedos finos, que tamborilavam. Olhou para Vance e jogou o cartão no tamborete fixo ao seu lado. Depois, disse, em tom de voz suave mas imperioso:
— É só isto, por esta noite.
— Os dois homens saíram imediatamente do quarto e fecharam a porta.
— Desculpe-me — falou ele, com um sorriso melancólico, à guisa de desculpa. — O homem é um animal desconfiado. — Moveu a mão, em um gesto vago: era o seu convite para nos sentarmos. — Sim, desconfiado. Mas para que se importar com isso? — A voz de Owen era baixa e de mau agouro, mas continha um tom intenso de queixa, como um pio de pássaro ao crepúsculo. — Sei por que vieram e tenho prazer em vê-los. Alguma coisa poderia ter sucedido nesse intervalo.
Ao examinar mais detidamente o homem, tive a impressão de que ele se achava tomado por uma doença grave. Sua fisionomia era marcada por uma profunda letargia íntima. Tinha uma expressão aquosa nos olhos; seu rosto era quase roxo, indício de graves distúrbios circulatórios, e sua voz era monótona. Deu-me a impressão de um morto-vivo.
— Durante vários anos — prosseguiu ele — tem havido a esperança vaga de que algum dia... Necessidade de consciência, de bondade, de identidade de pensamentos... — E a voz lhe faltou.
— A solidão do isolamento psíquico... — murmurou Vance. — Exatamente. Talvez seja eu a pessoa.
— Ninguém é a pessoa, claro. Perdoe minha presunção.
— Owen sorriu languidamente e acendeu um cigarro. — O senhor acha que algum de nós dois quis este encontro? Mas o homem não faz escolhas. Sua escolha é seu temperamento. Somos sugados por um redemoinho, e até escaparmos dele lutamos para justificar essa ”escolha”.
— Mas isso não importa, não é? — falou Vance. — Alguma coisa vital sempre nos foge e a mente jamais pode responder a perguntas que faz a si mesma. Dizer uma coisa ou não a dizer e pensá-la, dá na mesma.
— Exatamente. — O homem dirigiu um olhar de indagação.
— Em que é que o senhor está pensando?
— Estava imaginando que foi que o senhor veio fazer em Nova York. Eu o vi no Domdaniel, no sábado. — O tom de voz de Vance mudara.
— Eu também o vi, embora não tivesse certeza. Pensei, na ocasião, que talvez o senhor entrasse em contato comigo. Sua presença naquela noite não foi pura coincidência. Coincidência é coisa que não existe. É uma palavra falsa para mascarar nossa nauseabunda ignorância. Só existe um padrão em todo o universo do tempo.
— Mas a sua visita à cidade... Estar-me-ei intrometendo em algum segredo?
Owen rosnou e senti um calafrio descer-me pela espinha. Depois, sua expressão mudou e passou a ser de tristeza.
— Vim consultar um especialista... Enrick Hofmann.
— Sim. É um dos maiores cardiologistas do mundo. O senhor o consultou?
— Sim, há dois dias. — Owen deu uma risada amarga.
— Condenado! Ao contrário de Alexandre, uma vida breve mas sem glórias!
Vance limitou-se a erguer ligeiramente as sobrancelhas, e puxou uma baforada profunda do seu cigarro.
— Obrigado — falou Owen — por me poupar os lugares comuns sem significado. — Depois, perguntou, de repente: — Seu nome é Daniel?
— Acaso Belshazzar precisa de um profeta? — E Vance olhou diretamente para o homem. — Não, nada disso! Não sou Daniel. E também não me chamo Dominic.
Owen deu uma risada diabólica.
— Eu tinha certeza de que o senhor sabia! — E sacudiu a cabeça, satisfeito. — Mirche morrerá sem suspeitar, nem de leve, da brincadeira. Ignora tanto As Mil e Uma Noites como Southey e Carlyle. É um patife analfabeto!
— Foi uma idéia hábil — falou Vance.
— Oh, hábil, não. Apenas uma boa piada. — A letargia pareceu novamente dominá-lo. Sua expressão tornou-se uma pobre máscara e suas mãos jaziam inertes sobre os braços da cadeira que ele ocupava. Parecia um cadáver. Houve um longo silêncio, e então Vance falou.
— A escrita na parede, feita à mão. O senhor se sentiria consolado, se eu sugerisse que talvez todos os anos, por todo o infinito, estejam contados e divididos?
— Não — cortou Owen, em tom ríspido. — Consolo... Outra palavra falsa. — Depois, prosseguiu, ansiosamente: — A eterna volta... Ressurreição. A tortura perfeita. — E começou a murmurar. — O mar começará a secar... Um planeta extinto... absorvido pelo Sol... Estrelas maiores... O último instante... Dispersão eterna das coisas... Bilhões de anos daqui... Neste mesmo quarto... — Sacudiu-se, fracamente, e olhou fixamente para Vance. — Moore tinha razão: é como a loucura.
Vance fez um aceno de cabeça, condoído.
— Sim. Loucura. Completa. Aquilo que é finito e atual é só o que ousamos enfrentar. Mas coisa finita não existe.
— Não, é claro que não existe. — Owen falava com voz sepulcral. — Mas aqueles bilhões de anos além, quando a mente volta ao que é infinito... como as ondas intermináveis feitas por uma pedra que se joga na água. E precisamos também ser limpos de espírito. Não agora, mas nessa época. Não devemos provocar ondas intermináveis... Graças a Deus que eu posso falar-lhe. O senhor me entende.
Vance fez um aceno afirmativo de cabeça.
— Sim, compreendo perfeitamente. ”Limpeza”... Sei o que o senhor quer dizer. O que é finito se equilibra... Isto é, nós podemos equilibrá-lo, mesmo até o fim. Podemos voltar limpos até um tempo interminável. Sim. ”Limpeza de espírito”, uma frase adequada. Nenhuma onda. Concordo plenamente.
— Mas não por meio da indenização — disse Owen, rapidamente. — Não por meio de confessionários absurdos.
Vance fez um aceno de mão, em sinal negativo.
— Eu não quis dizer isso. Apenas uma inexistência. Depois do que é finito, quando não houver mais lutas, quando pararmos de tentar eliminar os impulsos colocados em nós pelo mesmo ser que nos impede cedermos a eles...
— É isso! — E apareceu uma centelha de animação na voz de Owen. Depois, ele recaiu no seu langor. O leve gesto da sua mão foi tão gracioso quanto o de uma mulher. Mas a dureza de aço do seu olhar permaneceu. — o senhor me impedirá de provocar ondas na água, caso...?
— Sim — retrucou Vance, com simplicidade. — Se um dia chegar a hora, e eu puder ajudá-lo, pode contar comigo.
— Confio no senhor... E, agora, posso falar um instante? Eu sempre quis dizer estas coisas a alguém que me compreendesse … 1234
Vance limitou-se a esperar, e Owen prosseguiu.
— Nada tem a mínima importância... Nem mesmo a própria vida. Nós próprios podemos criar ou esmagar a vida de seres humanos... Façamos o que fizermos, o resultado será sempre o mesmo. — Owen sorriu, desalentado. — A futilidade podre de todas as coisas... A futilidade de fazer seja o que for, até de pensar. Raios levem a agoniante sucessão de dias que chamamos de vida! Meu temperamento sempre me atraiu em diversas direções ao mesmo tempo... Sempre entre o espeto e a brasa. Talvez, afinal de contas, seja manchar almas.
E ele pareceu encolher-se, como se fugisse ao contato de um fantasma, e Vance intercalou:
— Sei a inquietação que decorre de demasiada atividade inútil, com todos os seus múltiplos desejos.
— A luta sem objetivo! Sim, sim. A luta para se enquadrar em um molde que é diferente daquele que a gente tinha antes. Essa é a maldição derradeira. O instinto de alcançar... Bolas! Nós só descobrimos que não vale a pena quando já fomos devorados por ele. Fui atingido por instintos diferentes, em épocas diversas. Era tudo mentira... Mentiras astutas e corrosivas. E nós pensamos que podemos submeter nossos instintos ao domínio da mente. A mente! — E ele riu baixinho. — O único valor da mente é alcançado quando ela nos ensina que ela é inútil.
O homem moveu-se um pouco, como se abalado por um ligeiro espasmo involuntário.
— Nem podemos atribuir nossos instintos destorcidos à memória racial. Não há raças: existe apenas uma caudal enorme e imunda de vida, que flui do limo primitivo. A sensualidade abortiva da vida animal primitiva jaz adormecida dentro de nós. Se a suprimimos, ela se manifesta em forma de crueldade e de sadismos: se a libertamos, ela produz perversões e loucura. Não há solução... Algumas vezes, o homem se esforça para combater esses horrores libertando um ideal íntimo da sua concepção abstrata, através de símbolos visuais. Os próprios símbolos não passam de abstrações. — Veio o tom monótono e mordaz de Owen. — E também a Lógica não pode ajudar. A Lógica não leva nenhum homem à verdade: conduz apenas a decepções e à loucura. A apoteose da Lógica: anjos dançando na ponta de uma agulha... Mas por que sequer me preocupo, nesta sombra entre dois infinitos? Só posso dar uma resposta: a ansiedade obscena de comer bem e de viver de maneira confortável... que, por sua vez, são instintos e, portanto, mentiras.
— Talvez isso seja mais profundo do que simples instinto — sugeriu Vance. — Pode ser uma ansiedade trazida para cá quando a sombra da vida caiu na senda do infinito pela primeira vez... A ansiedade cósmica de fazer um jogo com a vida, a fim de fugir às tensões e às pressões do que é finito.
Eu sabia que Vance tinha uma finalidade muito definida em mente, embora, para mim, obscura, enquanto falava com este homem estranho e nada natural diante dele.
— Aqui, neste mundo de sonhos esgotados — falou Owen, confusamente — nenhuma forma de ação é melhor do que outra; uma pessoa ou uma coisa não é mais importante do que qualquer outra pessoa ou outra coisa. Todas as coisas opostas são passíveis de trocas entre si: criação ou destruição, serenidade ou tortura. No entanto, a vaidade goteja através da crosta sarnenta da minha metafísica congelada. Bolas! — E encolheu o corpo e olhou fixamente para Vance. — Aqui não existem nem tempo nem existência.
— É como o senhor diz. Na verdade, o infinito não é divisível.
— Mas há a possibilidade terrificante de que possamos acrescentar algum fator ao tempo diante de nós. E, se o fizermos, esse fator continuará eternamente... É preciso não se jogar nenhuma pedrinha. Temos de atravessar completamente essa sombra.
Owen fechara os olhos e Vance o examinava sem expressão, Depois, disse, em tom de voz quase consolador:
— Isto é sabedoria... Sim, limpeza de espírito.
Owen fez um aceno afirmativo de cabeça, muito langoroso.
— Amanhã à noite, vou partir de navio para a América do Sul. Calor... O mar... Um entorpecente, talvez. Estarei ocupado amanhã o dia inteiro. Coisas a fazer: contas, uma limpeza de casa, cuidar de certas coisas... Não quero ondas de superfície da água a me seguirem o tempo todo. Limpeza... Além... O senhor compreende?
— Sim. — Vance não baixou o olhar. — Compreendo. É preciso cessar aqui, para que não haja um castigo dos céus...
Os olhos do homem abriram-se lentamente. Endireitou o corpo e acendeu outro cigarro. Sua disposição estranha se dissipou, e outra expressão lhe apareceu nos olhos. Durante toda essa discussão, ele não erguera a voz nem uma vez sequer; nem houvera mais do que uma leve inflexão nas palavras. No entanto, eu sentia como se estivesse ouvindo uma tirada apaixonada.
Agora, Owen começou a falar dos seus velhos livros, dos seus dias em Cambridge, da sua juventude cheia de cultura e de ambição, dos estudos de música, feitos na sua infância. Era bem versado em conhecimentos das civilizações antigas e, para meu espanto, entendia, com paixão e fanatismo, do Livro dos Mortos Tibetano. Mas, por estranho que pareça, falava sempre em si mesmo com uma impressão de dualismo, como se estivesse falando de outra pessoa. Havia uma sensível cortesia no homem,
mas, não sei por que, ele me inspirava um sentimento próximo do medo. Havia sempre uma aura invisível ao seu redor, como a de uma fera primitiva e fumegante. Fiquei preso ao fascínio diabólico daquele homem, e senti uma inconfundível sensação de alívio quando Vance se levantou para ir embora.
Quando nos separamos dele, à porta, o homem disse a Vance, com uma indiferença aparente:
— Contado, pesado, dividido... O senhor me prometeu. Vance enfrentou seu olhar, diretamente, por um breve instante.
— Obrigado — disse Owen, sem fôlego, curvando-se profundamente.

CAPITULO XV
UMA ACUSAÇÃO PAVOROSA
(Terça-feira, 21 de maio — 9:30 horas)

— Sim, Markham, completamente louco. — Foi assim que Vance resumiu, enquanto acabávamos de fazer a refeição matinal no seu apartamento, na manhã seguinte. — Totalmente maluco. Um louco venenoso, como algum bicho rasteiro e traiçoeiro. O seu fim está chegando rapidamente, e um medo hediondo lhe está destruindo o cérebro. A súbita certeza da morte lhe cortou a ligação com a sanidade mental. Owen está procurando uma toca, onde se esconder para fugir ao inevitável. Mas ele não tem onde se esconder: apenas o sepulcro fétido que seu cérebro destorcido construiu. Essa é a única realidade que lhe resta. Uma criatura vil, que deveria ser esmagada como nós destruímos um germe mortífero. Um leproso mental, moral e espiritual. Sujo, poluído. E eu... Eu tenho de salvá-lo dos horrores que o infinito contém para ele.
— Você deve ter tido uma noite agradável em companhia dele — comentou Markham, com aversão.
O sargento Heath, tendo chegado, em resposta a chamados telefônicos repetidos feitos por Vance, ouvira atentamente a conversa. Mas ele parecia estar recolhido em si mesmo, quando, alguns instantes depois, Gracie Allen entrou saltitando alegremente na biblioteca. Carregava uma pequena caixa de madeira, apertada de encontro ao corpo. E atrás dela vinha George Burns, desconfiado e hesitante. Gracie explicou as coisas, com a habitual vivacidade.
— Eu tinha de vir, Senhor Vance, para lhe mostrar as minhas pistas. E George tinha acabado de chegar para falar comigo. Por isto, eu o trouxe. Acho que ele deve ficar sabendo como nós nos damos bem, não é, Senhor Vance? E a mamãe também chegará aqui dentro de poucos minutos. Ela disse que deseja falar com o senhor, embora eu não possa imaginar qual o motivo.
A jovem fez uma pausa suficiente para Vance apresentá-la a Markham. Aceitou-o sem a desconfiança dedicada antes a Heath; e Markham ficou ao mesmo tempo fascinado e divertido pela tagarelice viva e leve da moça.
— E agora, Senhor Vance, — prosseguiu ela, indo até à escrivaninha e tirando a capa rígida da pequena caixa que ela trouxera — tenho de lhe mostrar as minhas pistas. Mas, na verdade, não creio que sirvam para nada, porque eu não sabia exatamente onde as devia procurar. Em todo caso...
E começou a exibir os seus preciosos tesouros. Vance fingiu estar profundamente interessado, para agradar à jovem. Markham, intrigado e sorridente, avançou alguns passos; e Burns ficou de pé, pouco à vontade, do outro lado da escrivaninha. Heath, aborrecido pela interrupção frívola, acendeu um charuto, caceteado, e caminhou até à janela.
— Veja, Senhor Vance, aqui está o tamanho exato de uma pegada humana. — Gracie Allen tirou uma tira de papei onde havia alguns números escritos. — A pegada mede vinte e um centímetros de comprimento, e o homem da sapataria disse que esse era o comprimento de um sapato número trinta e cinco, a não ser que fosse um sapato inglês, e que nesse caso seria o de um sapato trinta e quatro. Acho que ele era grego, pois era um dos garçons lá do Domdaniel. Fui até lá, porque foi lá que o senhor disse que o morto foi encontrado. E esperei muito tempo para que alguém viesse à cozinha e deixasse uma pegada. E então, quando ninguém estava olhando, eu medi a pegada...
Ela colocou a folha de papel de lado.
— E agora, aqui está um pedaço de bloco que tirei da escrivaninha do Senhor Puttle, ontem, na hora do almoço, quando ele não se achava lá. E levei a um espelho, mas consegui ler apenas ”4 d. S. Sá.”, como tornei a escrever aqui. E tudo isso significa apenas: ”quatro dúzias de caixas de sabonete de sândalo...”

Gracie extraiu da bolsa mais dois ou três objetos inúteis, que explicou, com pormenores, de forma divertida, enquanto os colocava ao lado dos outros.
Vance não a interrompeu durante essa exibição divertida mas patética. Mas Burns, que estava ficando nervoso e exasperado com a desnecessária perda de tempo da moça, finalmente pareceu perder a paciência e desabafou:
— Por que não mostra a estes senhores as amêndoas que traz aí e acaba logo com esta coisa tola?
— Não tenho nenhuma amêndoa, George. Resta só uma coisa na caixa, e isso não tem nada a ver com o caso. Eu estava treinando quando arranjei aquela pista...
— Mas alguma coisa me cheira como amêndoa amarga. De repente, Vance ficou seriamente interessado.
— Que é que ainda tem na caixa, Senhorita Allen? — indagou ele.
A jovem riu baixinho, ao tirar a última pista: um envelope ligeiramente volumoso e totalmente selado.
— É apenas um cigarro velho — falou ela. — E é uma boa brincadeira com o George. Ele está sempre sentindo os cheiros mais esquisitos. Acho que não pode evitar fazer isso.
Rasgou o canto do envelope e deixou um cigarro achatado e parcialmente partido deslizar para sua mão. À primeira vista, eu teria dito que aquele cigarro nunca fora aceso, mas depois notei-lhe a ponta carbonizada, como se tivessem começado a fumá-lo. Vance pegou o cigarro e levou-o ao nariz, com aversão.
— Aqui está o seu cheiro de amêndoa amarga, Senhor Burns. — Seus olhos estavam focalizados em alguma coisa no espaço, longe dali. Depois, tornou a colocar o cigarro em um dos seus envelopes e deixou-o em cima da lareira.
— Onde foi que encontrou esse cigarro, Senhorita Allen? — indagou Vance.
A moça tornou a dar uma risadinha musical.
— Ora, foi esse cigarro que fez um buraco no meu vestido, no sábado passado, em Riverdale. Lembra-se? E então, quando o senhor me falou da importância dos cigarros, resolvi ir lá imediatamente. Desejava tentar encontrar o cigarro que foi jogado em mim. Na verdade, eu não acreditava que fosse o senhor que o houvesse jogado... Tive muita dificuldade em encontrá-lo, porque eu o pisara e ele se achava meio coberto.
Em todo caso, não descobri nada ao encontrá-lo, e fiquei novamente fula de raiva. Mas achei que seria melhor guardá-lo, pois era a primeira pista que eu obtivera, embora na verdade ele não tivesse nada a ver com o caso em que eu o estava ajudando.
— Minha querida menina — disse Vance, lentamente. — Talvez ele não tenha nada a ver com o nosso caso, mas pode ter relação com algum outro caso.
— Oh, não seria maravilhoso se tivesse? — exclamou a moça, encantada. — Assim, teríamos dois casos, e eu seria realmente um detetive, não é?
Markham avançara.
— Que foi que você quis dizer com essa última observavão, Vance?
— Talvez tenha havido cianeto nesse cigarro. — Ele olhou para Markham, de forma significativa. — Quanto à possível ação desta droga, bem como ao possível modo de administrá-la, tenho apenas de me referir às observações feitas por Doremus, na noite de domingo.
Markham fez um gesto de impaciência.
— Por Deus, Vance! Sua atitude para com este caso torna-se mais louca a cada instante que passa.
O detetive ignorou o comentário do outro e prosseguiu.
— Supondo acertada a minha suposição de que este agarro é realmente a arma mortífera que estamos ansiosamente procurando, vale lembrar que muitas outras coisas, igualmente fantásticas, ligadas ao caso, tornaram-se racionais. Assim, poderíamos ligar vários dos nossos dados desconhecidos e de pesadelo e assim estabelecer uma teoria que — pelo menos dentro das suas próprias limitações — brilharia, cheia de sentido. A saber: já conseguimos explicar o fato de Hennessey não ter conseguido ver a vítima entrar no escritório, na noite de sábado. Pudemos limitar o conhecimento da porta secreta a Mirche e a mais uma pessoa íntima sua — o que, como você deve admitir, seria lógico. Poderíamos supor que o crime tenha sido cometido em outro lugar, que não o escritório de Mirche — em Riverdale, para ser específico — e que o cadáver tenha sido levado para o escritório por algum motivo definido. Tal suposição poderia fornecer uma explicação da maneira peculiar como a polícia foi avisada; e poderia também esclarecer a dificuldade que o Dr. Mendel teve em determinar a hora da morte. Pois, se o crime tivesse acontecido no escritório, não o poderia ter sido antes das dez horas, uma vez que Gracie Allen esteve lá por volta daquela hora. Enquanto que, se o crime tivesse acontecido em outro lugar qualquer, poderia ter sido praticado a qualquer hora, num período de dez horas antes de o cadáver ser encontrado. Vance caminhou até junto à lareira e tamborilou, pensativamente, no envelope que continha o cigarro.
— Se o cigarro que está no envelope tiver mesmo estado impregnado de veneno, e se tivesse sido usado, como Doremus disse, que tal recurso pode ser usado, então estaríamos diante de uma coincidência completamente impossível. Isto é: teríamos o fato de que, em duas partes separadas da cidade, duas pessoas teriam sido assassinadas pelo mesmo sistema misterioso, no mesmo dia. E, além disso, temos um só cadáver.
Markham fez um aceno afirmativo de cabeça, lentamente, sem entusiasmo.
— É remotamente capcioso. Mas...
— Conheço suas objeções, Markham — interrompeu Vance. — E elas são também as que eu tenho. Todas as minhas suposições caprichosas podem não passar de simples fantasias... Mas são minhas e, no momento, eu as adoro.
Markham começou a falar, mas Vance prosseguiu.
— Deixe-me falar mais um instante, antes que você rne ponha uma camisa-de-força... Contemplo, em um sonho, as pastagens refrescantes a que minha estranha suposição poderia levar. Poderia até ligar os fatores aborrecidos que me têm roubado o doce sono... A pronta confissão de Mirche com relação à existência da sua porta secreta; o ódio que vi de relance nos olhos de Dixie Del Marr; a saga mística dos Tofanas; e a presença do ”Coruja” no Domdaniel, na noite de sábado. Poderia explicar as implicações sutis que há no nome do restaurante. Poderia até justificar a hipótese insistente, formulada pelo sargento, sobre a existência de uma quadrilha de criminosos. Poderia, também, esclarecer a presença da nômade cigarreira com cheiro de perfume de narciso. E há outras coisas, que agora me deixam confuso, mas que poderiam juntar-se em um todo consistente... Céus, Markham! Isso tem as possibilidades mais espantosas. Deixe-me com o meu sonho tão doce. Afinal, forma-se um quadro no meu cérebro torturado, e é o primeiro desenho coerente que invadiu minha imaginação febril desde a véspera de sábado. Baseado na singular premissa de que o cigarro estivesse convenientemente envenenado, posso forçar um punhado de elementos, até agora recalcitrantes, a entrar na linha, ou, melhor, eles irão entrando sozinhos na linha, como as partículas coloridas de um caleidoscópio.
— Vance, pelo amor de Deus! Você está apenas criando uma nova fantasia absurda, para explicar a sua primeira fantasia. — O severo tom de voz de Markham logo fez Vance voltar a si.
— Sim, tem toda razão — falou ele. — Naturalmente, mandarei o cigarro imediatamente para ser analisado por Doremus. E talvez ele não revele nada. Você é quem manda. Francamente, não compreendo como o cheiro poderia ter ficado em um cigarro tanto tempo, a não ser que um dos venenos misturados tenha atuado como fixador e tivesse retardado a volatilização... Mas, Markham, eu quero — eu preciso — do cadáver de um homem que foi assassinado em Riverdale no sábado passado.
Gracie Allen estivera olhando de um para outro dos homens, confusa e tonta.
— Oh, agora eu aposto em que eu compreendo! — exclamou ela, exultante. — O senhor pensa mesmo que o cigano poderia ter matado alguém... Mas eu nunca ouvi dizer que alguém morresse só pelo fato de fumar um cigarro.
— Não é um cigarro comum, minha cara Gracie -— explicou Vance, com paciência. — É possível que o cigarro em questão tenha sido imerso em algum veneno terrível.
— Ora, isso é horrível, se for mesmo verdade — disse ela, pensativa. — E logo em Riverdale, com tantos outros lugares! Lá é tão lindo e tão sossegado...
Seus olhos começaram a arregalar-se, e finalmente ela exclamou:
— Mas aposto em que sei quem era o morto! Aposto!
— Ora, mas de que você está falando? — Vance riu e olhou para a jovem, com um olhar intrigado. — Quem você pensa que foi?
Gracie olhou para Vance, com olhar perscrutador, durante alguns instantes, e depois disse:
— Ora, foi Benny, o Abutre!
O sargento Heath ficou de repente rígido, com a boca aberta.
— Onde foi que você ouviu esse nome, moça? — disse ele, quase gritando.
— Ora, ora... — gaguejou ela, surpreendida pela veemência do sargento. — O Senhor Vance me contou tudo a respeito dele.
— O Senhor Vance contou a você... ?
- Claro que contou! — disse a jovem, em tom de desafio. É assim que agora eu sei que Benny, o Abutre, foi morto em Riverdale.
- Morto em Riverdale? — e o sargento pareceu confuso. - E talvez você saiba, também, quem foi que o matou, não é?
Claro que sei... Foi o próprio Senhor Vance!


CAPITULO XVI
OUTRO CHOQUE
(Terça-feira, 21 de maio — 10:30 horas)


A espantosa acusação caiu como uma bomba entre os presentes, que ficaram todos paralisados. Passaram-se vários momentos antes que me pudesse controlar o bastante para ver a lógica que havia por trás daquilo. A declaração da moça era o desfecho natural da história que Vance inventara para ela na tarde em que nós a conhecemos.
Markham, que sabia apenas de poucos pormenores do rústico encontro e que não sabia de nada da história inventada por Vance, deve ter-se lembrado imediatamente da conversa tida com o detetive no Bellwood Country Club, na qual Vance exprimira suas idéias quanto à forma de eliminarem Pellinzi.
Heath, também, atônito pela comunicação da moça, deve ter-se lembrado do que houvera no jantar de sexta-feira; e tinha muita razão para supor que ele possuía alguma suspeita nevoenta a respeito da culpa de Vance.
O próprio Vance ficou temporariamente aturdido. No momento, sua cabeça devia estar ocupada com assuntos de maior monta, que suplantavam totalmente o episódio de Riverdale. Mas, agora, de repente ele compreendeu que a acusação de Gracie Allen adquiria foros de plausibilidade.
Markham aproximou-se da moça, sério e com a testa franzida.

— A acusação que acaba de fazer é muito grave, Senhorita Allen — falou ele. Seu tom de voz grave indicava as dúvidas intangíveis que havia no íntimo da sua mente.
— Caramba, Markham! — interrompeu Vance, muito aborrecido. — Faça o favor de olhar ao seu redor. Não estamos em um tribunal.
— Sei exatamente onde estou — retorquiu Markham, obstinadamente. — Deixe-me cuidar deste assunto. Ele é cheio de dinamite. — E virou-se para a moça. — Diga-me, por que você afirma que foi o Senhor Vance quem matou Benny, o Abutre?
— Ora, eu não disse isso... Isto é, eu não inventei isso. Apenas repeti o que ouvi.
Embora fosse evidente que Gracie não considerava a situação séria, era óbvio que a maneira grave de falar de Markham a deixara perturbada.
— Foi o Senhor Vance quem o disse. Ele falou isso quando o conheci em Riverdale, ao lado da estrada que segue ao longo de um grande muro branco, na tarde da sexta-feira passada, quando eu estava com... isto é, quando eu fui lá com...
Markham, notando o nervosismo da moça, sorriu, para tranqüilizá-la, e começou a falar de outra maneira.
— Não tem nenhum motivo para se preocupar, Senhorita Allen — disse ele. — Basta que me conte toda a história, exatamente como aconteceu.
— Oh! — exclamou ela, enquanto uma nota mais alegre lhe voltava à voz. — Por que não me disse logo que era isso que o senhor queria? Está bem, vou-lhe contar. Bem, fui a Riverdale na tarde do sábado passado... Nós não trabalhamos na fábrica aos sábados, pois o Senhor Doolson é muito bondoso nesse ponto. Fui até lá com o jovem Puttle, que é um dos nossos vendedores. Mas não creio que ele seja tão bom vendedor quanto alguns dos outros da In-O-Scent. Que é que você acha, George?
Ela virou-se um instante para Burns, mas não esperou resposta.
— Bem... Em todo caso, George queria que eu fosse com ele a outro lugar. Mas achei que seria melhor ir a Riverdale com Puttle, principalmente porque ele ia-me levar para jantar naquela noite. E achei que podia ficar zangado se eu não fosse com ele a Riverdale, e assim não me levaria para jantar. Por isso, não fui com George, mas fui a Riverdale com Puttle. Bem, nós chegamos a Riverdale, lugar aonde eu sempre vou, porque acho que aquilo lá é lindo. Mas é uma caminhada muito longa da Broadway, e então o Senhor Puttle foi procurar um convento de freiras...
— Por favor, Senhorita Allen — interrompeu Markham, com admirável controle. — Conte-me como foi que a senhorita encontrou o Senhor Vance e o que ele lhe disse.
— Oh, eu já ia chegar lá... O Senhor Vance apareceu depois de saltar o muro. E eu lhe perguntei o que ele tinha andado fazendo. Declarou que estivera matando um homem. E eu perguntei o nome do homem. Ele disse que era Benny, o Abutre.
Markham suspirou, impaciente.
— Pode-me dizer mais algumas coisas, Senhorita Allen, a respeito desse incidente?
— Pois não. Como eu já lhe disse, o Senhor Vance saltou o muro e caiu, pouco atrás do lugar onde eu estava sentada... Não, desculpe, eu não estava sentada, porque alguém acabara de jogar um cigarro em mim... esse cigarro que se acha agora cm cima da prateleira da lareira... Só que ele estava aceso e queimava ... E eu me achava de pé, sacudindo meu vestido, quando vi o Senhor Vance cair. Ele parecia estar com muita pressa, também. Eu lhe falei a respeito do cigarro e ele disse que talvez ele mesmo o tivesse jogado. Mas eu achava que o cigarro fora jogado de um carro grande que passara velozmente pelo ponto onde me encontrava. Seja como for, o Senhor Vance disse-me para ir à loja buscar um vestido novo, que ele pagaria, pois lamentava muito o ocorrido. E então ele sentou-se e fumou mais cigarros.
Gracie respirou fundo e prosseguiu apressadamente.
— E foi então que perguntei a ele o que estava fazendo do outro lado do muro, e ele disse que acabara de matar um facínora chamado Benny, o Abutre. Disse que fez isso porque o tal Senhor Abutre fugira da cadeia e pretendia matar um amigo dele... isto é, um amigo do Senhor Vance. Ele se apresentava com as roupas em completo desalinho e o chapéu amassado e virado de fado, e realmente tinha toda aparência de quem acabara de matar alguém. Até eu fiquei com medo dele, algum tempo. Mas venci o medo...
Ela parou um instante, a fim de contemplar Vance atentamente, como se estivesse fazendo uma comparação de roupas.
— Agora, vejamos... Onde é que eu estava? Ah, sim... Ele estava afastando-se de carreira, muito apressado, porque disse que não queria que ninguém soubesse que ele matara o tal homem. Mas ele me contou. Acho que viu logo que podia confiar em mim. Mas não sei por que motivo estava preocupado, porque ele disse que achava que agira direito, para salvar seu amigo do perigo. Em todo caso, ele me pediu para não contar a ninguém, e eu prometi. Mas agora ele acaba de me pedir para contar o que eu queria dizer a respeito do morto de Riverdale, e por isso acho que ele quis dizer que eu não precisava mais guardar sigilo. E é por isso que lhes estou contando.
O espanto de Markham foi aumentando, à medida que a jovem falava em disparada. Quando ela terminou a narrativa e olhou ao redor, à procura de aprovação, o procurador distrital virou-se para Vance.
— Céus, Vance! Essa história é realmente verdadeira?
— Infelizmente, é — confessou Vance, dando de ombros.
— Mas por quê... Por que você lhe contou tal história?
— Talvez por causa do tempo suave. Estamos na primavera, você sabe...
— Mas — perguntou a moça. — O senhor não vai prendê-lo?
— Não, eu... — E Markham ficou indeciso.
— Por que não? — insistiu a jovem. — Aposto que sei o motivo! Aposto que o senhor pensa que não se pode prender um detetive. Eu também pensava assim, antes. Mas no domingo perguntei a um policial, e ele me disse que claro que se pode prender um detetive.
— Sim, pode-se prender um detetive — sorriu Markham — quando se sabe que ele infringiu a lei. Mas tenho sérias dúvidas de que o Senhor Vance tenha realmente matado um homem.
— Mas ele mesmo afirmou isso. Do contrário, como iria ele saber? Eu também não o julgava culpado, a princípio. Pensei que ele apenas estava-me contando uma história romântica porque eu gosto muito de histórias românticas! Mas, depois, o Senhor Vance mesmo declarou — aqui nesta mesma sala, e todos ouviram — que no sábado passado mataram um homem em Riverdale com o cigarro. E ele falou muito sério... Notei isso, pela maneira como ele agiu e falou. Não foi, de forma alguma, como se ele estivesse inventando outra história romântica...
Gracie parou de chofre e olhou para o confuso Senhor Burns. A julgar pela sua expressão, outra idéia lhe surgira na cabeça. Ela tornou a se virar para Markham, com renovada seriedade.
— Mas o senhor devia prender o Senhor Vance — disse ela, em tom decisivo. — Mesmo que ele não seja culpado. Acho que, na verdade, não creio que ele seja mesmo culpado. Ele tem sido tão bonzinho para mim... Mas, assim mesmo, acho que o senhor devia prendê-lo. O que eu quero dizer é que o senhor pode fingir que acredita que ele matou o tal homem em Riverdale. E assim o George ficaria livre de acusações. E o Senhor Vance não se importaria nem um pouco... Sei que ele não se importaria. Não é, Senhor Vance?
— Em nome dos céus, a que ponto você quer chegar agora? — indagou Markham.
Vance sorriu.
— Sei exatamente o que ela quer dizer, Markham. — E virou-se para Gracie. — Mas, na verdade, minha prisão não ajudaria o jovem Burns.
— Oh, ajudaria, sim — insistiu Gracie. — Sei que ajudaria. Porque há alguém seguindo-o para onde ele vá. E George diz que deve ser algum detetive. E todos os policiais que rondam o hotel de George o olham de uma forma esquisita. Aposto que deve haver muita gente que pensa que George é culpado... porque a polícia foi à casa e o levou de tintureiro, e tudo o mais. George me contou tudo, e isso o deixa terrivelmente preocupado. George já não é o mesmo de antes. Não pode dormir muito bem e perdeu a capacidade de sentir essências. Portanto, como pode trabalhar? Não imagina o quanto isso é horrível, Senhor Vance. Mas, se o senhor fosse preso, então todos pensariam que o senhor era o culpado e deixariam de importunar o George. E ele poderia voltar ao trabalho e ser como era antes. E então, depois de algum tempo, o verdadeiro culpado seria encontrado e tudo acabaria bem para todos.
Gracie parou um instante, a fim de recuperar o fôlego, e em seguida tornou a disparar, com feroz determinação.
— E é por isso que acho que o senhor deveria prender o Senhor Vance. E, se o senhor não o fizer, chamarei os jornais e lhes contarei tudo que o Senhor Vance disse e tudo a respeito de Benny, o Abutre, e direi que ele não foi morto no Domdaniel, e sim em outro lugar qualquer. E aposto que eles publicarão essa reportagem. Principalmente porque o Senhor Puttle estava de pé atrás da árvore, quando o Senhor Vance estava falando comigo, e ele ouviu tudo. E, se eles não acreditarem em mim, terão de acreditar em mim e no Senhor Puttle juntos. E tenho certeza de que assim publicarão a história. E todos ficarão tão interessados no fato de um homem tão famoso quanto o Senhor Vance ser culpado de homicídio, que não se importarão mais com George. Não compreendem o que quero dizer?
Havia a resolução zelosa de uma cruzada nos olhos da moça, e suas frases desordenadas achavam-se cheias de paixão vibrante para ajudar o homem amado.
— Céus, chefe! — gritou Heath. — O que ela diz é dinamite. Bem que o senhor disse!
Vance moveu-se sonolento na sua cadeira e olhou para Heath com um sorriso irônico.
— Está vendo em que encrenca você e o fato de Tracy ter seguido o Senhor Burns me deixaram, sargento?
— Claro que estou! — E Heath deu um passo na direção da Senhorita Allen. A perturbação dele era quase cômica. — Escute aqui, moça — disse ele, furioso. — Ouça-me um instante. Você está totalmente enganada. Confundiu tudo. Não sabemos que tenha havido um homicídio em Riverdale. Não sabemos de nada a esse respeito, entende? Só sabemos que apareceu um morto no restaurante. E ele não era o Abutre, e sim seu irmão...
O sargento parou de chofre, com um tremor, e ficou todo ruborizado.
— Mil raios! Desculpe-me, Senhor Vance. Sinto muito. Vance levantou-se depressa e foi postar-se ao lado de Gracie. Esta achava-se com as mãos no rosto, com um ataque de riso incontrolável.
— Meu irmão? Meu irmão? — E depois, com a mesma rapidez com que começara a rir, ficou séria. — O senhor não me pode enganar assim, sargento.
Vance recuou.
— Diga-me — e uma nota subitamente nova lhe apareceu na voz. — Que quer dizer com isso, Senhorita Allen?
Meu irmão está na cadeia!


CAPITULO XVII
IMPRESSÕES DIGITAIS
(Terça-feira, 21 de maio — 11:30 horas)

Foi neste momento que a Senhora Allen, serena e discreta, foi introduzida na sala por Currie.
Vance virou-se depressa e lhe deu as boas-vindas com uma breve saudação.
— É verdade, Senhora Allen, — perguntou ele — que seu filho não está morto?
— Sim, Senhor Vance, é verdade. Foi por isso que vim até aqui. Vance acenou a cabeça, com um sorriso compreensivo, e, guiando a senhora até uma cadeira, pediu-lhe explicações mais completas.
— Acontece, Senhor Vance, — começou ela, em voz sem inflexão que Philip foi preso perto de Hackensack, naquela noite terrível, depois de deixar o emprego no restaurante. Ele se achava com outro rapaz em um automóvel, e um policial entrou e disse ao outro rapaz — que se chama Stanley Smith e que o amigo de Philip — para seguir para o distrito policial. Acusou-os de roubarem o carro, e então, quando estavam a caminho da cadeia, o policial lhes disse que era o mesmo carro que acabara de matar um ancião e de fugir. Foi um desses atropelamentos em que a vítima morre e o motorista foge. E isso deixou Philip muito assustado, pois ele não sabia o que o tal Stanley podia ter feito antes do encontro dos dois. E então, quando o carro parou a fim de esperar um sinal abrir, Philip saltou e fugiu. O policial atirou contra ele, mas meu filho não foi agarrado.
Vance fez um aceno afirmativo de cabeça.
— Depois, Philip telefonou para mim. Notei que estava muito assustado, e disse que a polícia estava à sua procura e que ele ia-se esconder em certo lugar. Oh, fiquei tão preocupada, Senhor Vance, com o meu pobre e infeliz filho tão assustado, e escondido da polícia... O senhor sabe, um fugitivo da justiça. E então, quando o senhor veio, naquela noite, pensei que estava à procura dele. Mas, quando o senhor me disse que meu filho estava morto, pode imaginar...
Heath saltou para diante.
— Mas a senhora disse que era o seu filho que estava lá no necrotério! — Heath lhe atirou as palavras, como uma chicotada.
— Não, eu não disse, senhor policial — disse a mulher, com simplicidade.
— Não disse, uma conversa fiada! — gritou Heath.
— Sargento! — E Vance ergueu a mão. — A Senhora Allen tem razão... Se você relembrar, verá que ela não disse, nenhuma vez, que o morto era o filho dela. Receio que fomos nós que dissemos isto por ela, porque pensávamos que fosse verdade. — E sorriu, melancólico.
— Mas ela desmaiou, não é? — insistiu Heath.
— Desmaiei de alegria, senhor policial, — explicou a mulher — quando vi que não era o meu Philip.
Mas Heath não se deu por satisfeito.
— Mas... Mas a senhora não disse que o morto não era seu filho. E nos deixou pensar...
Vance teve de contê-lo novamente.
— Acho que entendo perfeitamente por que a Senhora Allen nos deixou pensar que o morto era seu filho. Ela sabia que nós representávamos a polícia, e sabia, também, que seu filho estava fugido da polícia. E, ao notar que pensávamos que seu filho estava morto, ficou muito contente de nos deixar com essa idéia, imaginando que assim poria fim à perseguição de Philip... Não é verdade, Senhora Allen?
— Sim, Senhor Vance, — a mulher confirmou, calmamente, de cabeça. — E, naturalmente, eu não queria que os senhores contassem a Gracie que Philip estava morto, pois então eu teria de lhe contar que ele estava escondido da polícia, e isso a teria tornado infeliz. Mas achei que dentro de poucos dias tudo se esclareceria, e então eu contaria aos senhores. Em todo caso, pensei que dentro em breve vocês descobririam que o morto não era o meu filho.
A mulher ergueu o olhar, com um leve sorriso triste.
— E tudo saiu direito, como eu esperava e rezava para sair, e como eu sabia que sairia.
— E estamos todos muito felizes por ter saído assim — falou Vance. — Mas diga-nos como foi que tudo acabou direito.
— Ora, hoje cedo — recomeçou a Senhora Allen — Stanley Smith chegou à minha casa para perguntar por Philip. E quando eu lhe disse que Philip continuava escondido da polícia, ele informou que fora tudo um engano, e como seu tio foi à polícia e provou que o carro não fora roubado, e que fora outro carro que atropelara e matara o tal ancião... Portanto, contei imediatamente tudo a Gracie e fui levar a notícia maravilhosa a meu filho e trazê-lo de volta para casa...
— Então, como foi, — prosseguiu o sargento, evidentemente furioso — se a senhora contou tudo à sua filha, que ela acaba de nos dizer que seu irmão estava na cadeia?
A Senhora Allen sorriu timidamente.
— Está, sim. Na noite de sábado fazia muito calor e por isso Philip deixara seu paletó no carro. Foi assim que a polícia ficou sabendo quem ele era, pois ele esqueceu o cheque do pagamento no bolso do paletó. Por isso, ele foi à cadeia em Hackeasack, hoje cedo, buscar o paletó, e vai chegar a tempo de almoçar.
Vance riu, a contragosto, e dirigiu um olhar maroto a Gracie Allen.
— E garanto que era um paletó preto.
— Oh, Senhor Vance! — exclamou a moça, extasiada. — Que detetive maravilhoso o senhor é! Como pôde ver a cor do paletó do Philip, do outro lado do rio?
Vance riu baixinho e depois de repente ficou sério.
— E, agora, devo pedir a todos vocês para irem — falou ele — e se preparar para a volta de Philip à casa materna.
Nessa altura, Markham interveio.
— Mas e as declarações que a senhorita pretendia fazer aos jornais, Gracie? Eu não poderia permitir uma coisa dessas.
George Burns, com um sorriso largo no rosto, respondeu ao procurador distrital.

— Gracie não fará isso, Senhor Markham. É que eu agora já estou completamente feliz e vou voltar para o trabalho amanhã cedo. Na verdade, eu não estava preocupado com a possibilidade de ser culpado ou de que alguém me seguisse. Mas eu tinha de contar isso a Gracie e ao Senhor Doolson, porque o senhor me fizera prometer que não diria uma palavra a respeito de Philip. E era o fato de ele estar morto, e de Gracie não saber, e tudo o mais, que me fazia sentir tão mal, não me deixando dormir nem trabalhar.
— Não é maravilhoso? — E Gracie Allen bateu palmas, e depois olhou astutamente para Vance. — Eu não queria realmente que o senhor fosse para a cadeia, Senhor Vance... Era só para ajudar George. Por isso, dei ao senhor minha palavra de que não contaria nada a ninguém a respeito da sua confissão. Ê o senhor sabe que eu sempre cumpro as promessas que faço.
Quando a Senhora Allen ia-se retirando em companhia da filha e de Burns, dirigiu a Vance um olhar de acanhada desculpa.
— Espero, senhor, — falou ela — que não pense que agi mal enganando-o a respeito daquele pobre morto.
Vance pegou a mão da velhinha.
— Sem dúvida, não penso nada disso. A senhora agiu como qualquer outra mãe teria agido, se ela tivesse sido tão inteligente e tivesse um raciocínio tão vivo quanto o seu.
Beijou-lhe a mão e depois fechou a porta atrás dos três.
— E agora, sargento, — toda a sua maneira de ser mudou — mãos à obra! Chame Tracy aqui e depois mande identificar o morto pelas impressões digitais.
— Não me precisa dizer para por mãos à obra, chefe — retrucou Heath, correndo para a janela. Fez acenos frenéticos para o homem que se achava do outro lado da rua. Depois, voltou para dentro do aposento e, a caminho do telefone, parou de repente, como se um pensamento súbito o houvesse imobilizado.
— Ei, Senhor Vance — perguntou ele. — Por que acha que nosso arquivo tem as impressões digitais do morto?
Vance lançou-lhe um olhar perscrutador e significativo.
— Talvez você vá ter uma grande surpresa, sargento.
— Mãe de Deus! — disse Heath, em tom de espanto, enquanto corria para o telefone, que ficava no corredor.
Enquanto o sargento falava com a polícia, tão afobado que quase não conseguia se fazer entender, Tracy entrou. Vance mandou-o logo levar o envelope fechado, que se achava em cima da lareira, ao Dr. Doremus, para ser analisado.
Alguns minutos depois, Heath voltou para a biblioteca.
— Pronto, os rapazes já começaram a trabalhar! — E esfregou as mãos, energicamente. — Tirarão logo as impressões digitais do homem e procurarão nos arquivos. E, se eles não me telefonarem dentro de uma hora, irei até lá e lhes torcerei os pescoços grossos! — Deixou-se cair em uma cadeira, como se esgotado pelo simples pensamento da rapidez que ele exigira.
Vance telefonou em seguida a Doremus, explicando que era muito importante um relatório imediato sobre o cigarro.
Era quase meio-dia, e nós conversamos sobre coisas banais durante mais uma hora. Havia tensão na atmosfera, e a conversa foi como uma capa jogada propositadamente sobre os pensamentos íntimos desses três homens diferentes.
Quando o relógio que havia em cima da lareira apontou para as treze horas, o telefone tocou e Vance atendeu.
— Não houve nenhuma dificuldade na análise — informou-nos ele, quando pendurou o receptor do telefone. — O eficiente Doremus descobriu no cigarro aquela mesma mistura de venenos misteriosos que o deixou tão aborrecido na noite de domingo... Minha história fantástica, Markham, finalmente está começando a se concretizar.
Mal Vance acabara de falar, quando o telefone tocou novamente, e foi a vez de Heath correr para o corredor. Quando ele voltou para a biblioteca, depois de alguns momentos, tropeçou em uma pequena mesa estilo renascentista, que havia perto da porta, e jogou-a longe.
— Pois bem, estou agitado. E daí? — Os olhos do sargento brilhavam de entusiasmo. — Quem vocês pensam que o sujeito era? Raios! O senhor já sabia, Senhor Vance. É nosso velho amigo, Benny, o Abutre! E talvez aqueles rapazes lá em Pittsburgh não estivessem doidos! E pode ser que o Abutre não tenha saltado direto de Nomenica para Nova York, como eu disse que ele faria... Está livre dessa ameaça, Senhor Markham.
A agitação de Heath era tão grande que, por alguns instantes, foi até mais forte do que o seu respeito para com o procurador distrital.
— Que faremos agora, Senhor Vance?
— Eu diria, sargento, que a primeira coisa a fazer é sentar-se. Tenha calma. É uma virtude muito necessária.
Heath obedeceu prontamente, e Vance virou-se para Markham.
— Acho que o caso continua sendo meu, por assim dizer. Você mo presenteou, num gesto magnânimo, para se livrar da minha tagarelice, na noite do sábado passado. Portanto, agora devo pedir mais uma concessão da sua parte.
Markham esperou, em silêncio.
— Chegou a hora em que tenho de agir com rapidez — prosseguiu Vance. — O caso todo, Markham, já se tornou claro. Os vários fragmentos do quebra-cabeças já encaixaram nos devidos lugares e formaram um mosaico espantoso. Mas ainda falta preencher um ou dois espaços em branco, e acho que Mirche, se for abordado de maneira adequada, poderá fornecer os pedaços que faltam...
Heath intrometeu-se.
— Estou começando a compreender, senhor. Acha que a identificação que Mirche fez do Abutre foi deliberadamente falsa?
— Não, sargento, nada disso. Mirche foi totalmente sincero e com um motivo muito bom. Ele ficou legitimamente atordoado com o aparecimento do cadáver na sua sala, naquela noite.
— Então, não o compreendo, senhor — disse Heath, em tom de desalento.
— Qual é a concessão que você deseja, Vance? — indagou Markham, impaciente.
— Quero só efetuar uma prisão.
— Mas, sem dúvida, não pretendo deixar que você ponha o gabinete do procurador distrital em maus lençóis. Precisamos esperar até que o caso seja solvido.
— Ah! Mas ele já está esclarecido — retorquiu Vance, à queima-roupa. — E você poderá ir comigo, para proteger o bom nome do seu gabinete. Na verdade, sua companhia me encantaria.
— Vá direto ao ponto — falou Markham, irritado. — O que pretende fazer?
Vance inclinou-se para diante e falou com precisão.
— Desejo muito ir ao Domdaniel logo que possível, hoje à tarde. Quero levar dois homens — digamos, Hennessey e Burke — que ficarão de guarda, na passagem do lado de fora da porta secreta. Depois, seguirei com você e com o sargento até à porta da frente que dá para a sacada e pedirei para entrar. Em seguida, agirei, sob o seu olhar controlador, é claro.
— Mas... Céus, Vance! Mirche pode não estar à espera da sua visita no escritório dele. Pode ter outros planos para se divertir esta tarde.
— Esse — declarou Vance — é um risco que precisamos correr. Mas tenho motivos suficientes para crer que o escritório de Mirche, hoje, está uma colmeia de atividade. E muito me espantaria se Dixie e Owen, também, não estivessem lá. Owen vai partir de navio, logo à noite, para a América do Sul, e hoje é o dia para liquidar seus negócios mundanos aqui. Você e o sargento têm suspeitado, há muito tempo, de que o Domdaniel é a sede de toda espécie de patifarias que vem acontecendo na cidade. Pois não precisa mais duvidar disso, Markham.
O procurador distrital pensou um instante.
— Parece-me absurdo e inútil — declarou ele. — A não ser que você tenha fundamentos sérios para tal ação... No entanto, como você diz, eu mesmo estarei lá a fim de me proteger contra qualquer indiscrição da sua parte... Muito bem — capitulou ele.
Vance confirmou de cabeça, com satisfação, e olhou para o espantado Heath.
— E, a propósito, sargento, talvez tenhamos notícias dos seus Rosa e Tony.
— Os Tofanas! — E Heath ergueu-se no sofá, alerta. — Eu já sabia. Aquele trabalho do cigarro é especialidade de Tony...
Vance descreveu seu plano ao sargento. Heath deveria combinar com Joe Hanley, o porteiro, para dar um sinal se Mirche saísse do salão de refeições pelos fundos. Hennessey e Burke deveriam receber instruções quanto ao lugar onde se postar e o que fazer. E Markham, Vance e Heath deveriam esperar na pensão fronteira ao restaurante, de onde podiam ver ou o sinal de Hanley ou Mirche entrar no seu escritório pela sacada.
Contudo, ficou demonstrado que grande parte dos preparativos complicados era desnecessária; pois a teoria e previsões de Vance com referência à situação, naquela tarde, eram inteiramente acertadas.


CAPITULO XVIII
NARCISO E ROSA
(Terça-feira, 21 de maio — 15:00 horas)

Às três horas daquela tarde, Joe Hanley, que estivera de vigia para nós, chegou à esquina da Sétima Avenida e nos informou que Mirche entrara no seu escritório pouco depois do meio-dia, e que nem ele nem Dixie Del Marr tinham sido vistos no restaurante desde então.
Encontramos as persianas das janelas estreitas baixadas e a porta do escritório achava-se trancada à chave. Além disso, não atenderam, embora batêssemos com insistência.
— Abram! — gritou Heath, ferozmente. — Do contrário, terei de arrombar a porta. — Depois, observou para nós: Acho que isso os assustará, se houver alguém lá dentro.
Pouco depois, ouvimos o ruído de passos apressados e vozes furiosas lá dentro. E, alguns momentos mais tarde, a porta nos foi aberta por Hennessey.
— Agora, tudo está bem, chefe — disse ele a Markham. — Eles tentaram fugir pela porta da parede, mas eu e Burke os obrigamos a voltar.
Quando atravessamos a porta, deparei com um quadro estranho. Burke achava-se de costas contra a pequena porta secreta, com o revólver apontado de maneira significativa para o espantado Mirche, que se achava a poucos passos dele. Dixie Del Marr, também coberta pela arma de fogo de Burke, achava-se encostada à escrivaninha, olhando para nós com uma expressão de fria resignação. Em uma das cadeiras de couro estava sentado Owen, sorrindo debilmente, com calma e cinismo. Parecia inteiramente desligado de todo o quadro geral, como um espectador que estivesse contemplando uma cena teatral que lhe ofendesse o intelecto pelo absurdo. Não olhava nem para a direita nem para a esquerda, e foi só depois que estávamos bem ao alcance do seu olhar sonolento que ele fez um leve movimento.
Mas, quando avistou Vance, levantou-se, cansadamente, e se curvou, em uma saudação formal.
— Que esforço inútil — queixou-se ele. Depois, sentou-se novamente, com um leve suspiro, como alguém que acha que tem de ficar até o fim para assistir ao resto de um drama desagradável.
Hennessey fechou a porta e ficou de pé, alerta, vigiando os ocupantes do aposento. Burke, a um sinal de Heath, deixou a mão cair para o lado do corpo, mas manteve uma vigilância severa.
— Sente-se, Senhor Mirche — disse Vance. — É apenas uma pequena discussão.
Quando o homem, lívido e assustado, deixou-se cair em uma cadeira junto à escrivaninha, Vance se curvou delicadamente, cumprimentando Dixie Del Marr.
— Não é preciso a senhorita ficar de pé.
— Prefiro ficar assim — disse a mulher, em tom de voz duro. — Há três anos que venho esperando sentada...
Vance aceitou sem comentário a sua observação misteriosa e voltou novamente sua atenção para Mirche.
— Nós estávamos conversando a respeito de preferências no tocante a vinhos e comidas — falou ele, em tom indiferente. — E eu estava imaginando qual seria a marca de cigarros que o senhor fuma.
O homem pareceu paralisado de medo. Mas logo se recuperou; um simulacro de sua antiga suavidade voltou a seu rosto. O homem fez um ruído como o de um sapo coaxando, que pretendia ser uma risada.
— Não tenho preferência por nenhuma marca — declarou ele. — Eu sempre fumo...
— Não, não — interrompeu Vance. — Refiro-me à sua marca muito especial, reservada para os eleitos.

Mirche tornou a rir e gesticulou largamente com as palmas das mãos viradas para cima, para indicar que não compreendera em nada o significado da pergunta.
— A propósito — prosseguiu Vance — nos tempos medievais, quando Madame Tofana e outros envenenadores famosos prosperaram, havia muitas flores, hoje lendas românticas para nós, que provocavam a morte com uma simples cheirada. É esquisito como essas lendas persistem e como surgem tantos exemplos da sua aparente autenticidade nos tempos modernos. É de se admirar como os velhos segredos da alquimia foram preservados até os tempos atuais. Naturalmente, tais especulações são absurdas à luz da ciência moderna.
— Não compreendo o que o senhor quer dizer com isso. — Mirche falava com uma tentativa de mostrar dignidade ferida.
— E também não entendo esta invasão ultrajante dos meus aposentos particulares.
Vance ignorou o homem um instante e dirigiu-se à Senhorita Del Marr.
— Acaso a senhorita perdeu uma cigarreira especial, com desenhos enxadrezados? Quando ela foi encontrada, tinha o cheiro de narcisos e rosa. Uma combinação excêntrica, Senhorita Del Marr, e lembra a sua pessoa.
Não se notou nenhuma mudança na expressão fisionômica da mulher, que continuou dura, embora ela hesitasse de forma evidente antes de responder.
— Não é minha. Mas creio, no entanto, que conheço a cigarreira a que o senhor se refere. Eu a vi no sábado passado neste escritório, e naquela noite ela me foi mostrada pelo Senhor Mirche. Ele a carregara durante várias horas no bolso... Talvez tenha sido assim que ela adquiriu o perfume. Onde foi que a encontrou, Senhor Vance? Disseram-me que foi esquecida aqui por um dos empregados do restaurante... Talvez o Senhor Mirche pudesse...
— Não sei de nada a respeito de tal cigarreira — disse Mirche, sem delongas. Havia energia e susto nas suas palavras. Jogou um olhar de desafio a Dixie, mas esta se achava de costas para o homem.
— Isso não importa, não é mesmo? — disse Vance. — É apenas uma referência de passagem.
Seus olhos continuavam pousados em Dixie Del Marr, e ele tornou a lhe dirigir a palavra.
— A senhorita sabe, naturalmente, que Benny Pellinzi está morto.
— Sim... Eu sei. — E suas palavras não denotavam nenhuma emoção.
— Há uma estranha coincidência nisso. Ou, talvez, apenas um capricho meu. — Vance falava como se estivesse apenas fazendo uma observação sem importância. — Pellinzi morreu na tarde do sábado passado, pouco depois de ter tido tempo de chegar a Nova York. Mais ou menos nessa altura, acontece que fui casualmente às matas de Riverdale. E, quando começava a voltar para casa, um carro grande passou velozmente pelo local onde me achava. Mais tarde, fiquei sabendo que um cigarro aceso fora jogado do carro, perto do lugar onde eu me achava de pé. Era um cigarro muito diferente dos outros, Senhorita Del Marr. Apenas tinha começado a ser fumado. Mas não era essa a única peculiaridade do tal cigarro. Além disso, havia também um veneno mortífero nele. O equivalente moderno das fabulosas flores envenenadas que figuravam nas tragédias medievais. E, contudo, fora jogado descuidadamente em uma rodovia pública...
— Uma ação imbecil — disse Owen, em tom de voz suave mas cheio de censura.
— Casual, digamos assim... do ponto de vista finito. Mas, na verdade, inevitável. — Vance também falava em tom suave. Só existe um modo de agir em todo o universo.
— Sim — falou Owen, em tom vago e sonhador. A imbecilidade humana é um dos fatores que concorrem para a fatalidade dos acontecimentos.
Vance não se virou. Estava observando atentamente a expressão fisionômica de Dixie Del Marr.
— Posso prosseguir, Senhorita Del Marr, ou minha história a importuna.
Dixie não deu nenhum sinal de ter ouvido a pergunta.
— A cigarreira a que me referi — prosseguiu Vance — foi encontrada no cadáver de Pellinzi. Mas não havia cigarros dentro dela. E ela não continha nenhum cheiro picante de amêndoas amargas... Só o cheiro doce de narciso e rosa... Mas Pellinzi foi envenenado pelo cheiro desse perfume. E, novamente, entra em ação o mortífero agente do romance antigo... É estranho, não é? Como a fantasia evoca associações tão remotas. O pobre Pellinzi deve ter confiado e acreditado em quem o assassinou. Mas sua fé encontrou apenas traição e morte.
Vance fez uma pausa. Havia grande tensão no pequeno aposento. Só Owen parecia despreocupado. Olhava diretamente para diante, com uma expressão fisionômica sem esperanças e distante e a boca torcida por uma expressão cruel.
Quando Vance tornou a falar, suas maneiras tinham mudado: havia uma repentina severidade na sua voz.
— Mas talvez, afinal de contas, eu não esteja sendo lá muito imaginoso. A quem, senão a Senhorita Del Marr, teria Pellinzi comunicado em primeiro lugar a sua chegada a Nova York? E como poderia ele ter sabido, nesses últimos anos, que outro homem conquistara o coração da mulher que outrora lhe pertencera? Possui um carro grande e fechado, Senhorita Del Marr. Uma viagem secreta a Riverdale teria sido coisa fácil para a senhorita. A cigarreira, com o seu perfume sutil, foi encontrada com o cadáver. O amor muda e é cruel...
Owen deixou escapar uma risadinha gélida. Suas sobrancelhas arquearam-se ligeiramente. A expressão cruel da sua boca se transformou em um arremedo de sorriso.
— Muito hábil, Senhor Vance — murmurou ele. Na verdade, admirável. Padrões dentro de padrões. Como o homem se deixa enganar facilmente por fantasmas!
— É a enganosa ordem que existe no caos — falou Vance. Owen fez um aceno de cabeça, quase imperceptível. Seu rosto voltou a ser uma satírica máscara.
— Sim — disse ele, em tom suave. — O senhor também tem um senso exotérico de humor.
— Duvido — murmurou Vance — que a Senhorita Del Marr aprecie o humor da morte.
Um gemido estrangulado irrompeu da garganta da mulher. Ela deixou-se cair em uma cadeira e cobriu o rosto com as mãos.
— Oh, meu Deus! — Foi o primeiro rompimento do seu controle rígido.
Seguiu-se longo silêncio. Mirche olhou um instante para Vance e novamente para a mulher. Seu rosto recuperara parte da sua cor, mas um medo intenso lhe brilhava nos olhos: um medo de um fantasma maligno, cuja forma ele não sabia determinar. Compreendi que se iam acumulando na sua mente perguntas que ele não ousava formular.
A mulher ergueu lentamente a cabeça; as mãos lhe caíram no colo e ficaram lá, em atitude de completo desânimo: A dureza venenosa da sua natureza recuperou o controle. Dixie esteve para falar, mas também ela conteve o impulso, como se a pressão das suas emoções ainda não tivesse alcançado o ponto de libertação.
Vance acendeu lentamente um dos seus cigarros. Depois de tirar duas baforadas, falou novamente com Dixie, e suas palavras pareceram indiferentes, como se ele estivesse fazendo uma pergunta que não contivesse nenhuma importância particular.
— Ainda há uma coisa que me intriga, Senhorita Del Marr... Por que trouxe Pellinzi, morto, para este escritório?
A mulher sentou-se como uma estátua de mármore, enquanto um cacarejo desdenhoso escapou dos lábios de Mirche.
— Está-se referindo, Senhor Vance, — perguntou ele, à sua antiga maneira pomposa — ao homem encontrado morto neste escritório? Estou começando a compreender o seu interesse no lamentável episódio que se passou aqui na noite de sábado. Mas receio que tenha permitido à sua imaginação levá-lo completamente de roldão. O cadáver encontrado aqui era o de um dos empregados do restaurante.
— Sim. Sei a quem se refere, Senhor Mirche. A Philip Allen. Vance falava em tom de voz macio. — Como o senhor disse naquela noite. E não tenho dúvidas de que o senhor acreditava nisso, e de que ainda acredita. Mas, às vezes, os fatos aparentes atuam de forma esquisita. Um padrão está sujeito a mudar o seu desenho da maneira mais incrível... Não é verdade, Senhor Owen?
— É sempre verdade — replicou o espectador silencioso da cadeira. — Confusão. E nós somos as vítimas...
— A que ponto vocês dois querem chegar? — indagou Mirche, levantando-se a meio na sua cadeira, enquanto o medo lhe transparecia nos olhos.
— A verdade, Sr, Mirche, é — falou Vance — que Philip Allen está bem vivo. Depois que o senhor o mandou embora do emprego e que ele, casualmente, deixou uma cigarreira aqui, que realmente não lhe pertencia, Philip Allen não voltou a este escritório.
— Ora, isto é ridículo! — E Mirche perdera a suavidade da fala. — Do contrário, como poderia ele...?
— Era Benny Pellinzi quem estava caído no soalho, naquela noite, morto!
A esta notícia, Mirche tornou a se deixar cair de repente na sua cadeira e ficou olhando, com ar de desafio sem esperanças, para o homem que estava diante de si. Mas os fatos ainda não se tinham organizado na sua mente, e ele recomeçou a protestar.
— Isso é absurdo... Completamente absurdo! Eu próprio vi o cadáver de Allen. E o identifiquei.
— Oh, não discuto a sinceridade da sua identificação. — Vance aproximou-se mais do homem perplexo. Seu tom de voz era quase meloso. — O senhor estava com todas as razões para supor que o morto fosse Philip Allen. Ele é do mesmo tamanho que Pellinzi. Tem a mesma forma de rosto e a mesma cor de pele, e naquele dia ele estava vestindo um terno preto igual ao que Pellinzi usava quando o mataram. O senhor acabara de falar com Philip Allen, no seu escritório, algumas horas antes, e, conforme me disse ontem, o senhor não se surpreendeu pelo fato de ele ter voltado aqui. Além disso, a morte pelo envenenamento muda a expressão dos olhos e todo o aspecto geral do rosto. Acresce, ainda, que Pellinzi era a última pessoa no mundo que o senhor teria esperado encontrar no seu escritório, principalmente naquela noite. Sim, a última pessoa no mundo...
— Mas por que — gaguejou Mirche — por que Pellinzi devia ter sido a última pessoa no mundo que eu teria esperado? Eu sabia, pelos jornais, que o homem fugira da cadeia. E era bem possível que ele tivesse cometido a tolice de me procurar para pedir ajuda.
— Não... Oh, não. Não me refiro a isso, Senhor Mirche — retrucou Vance, tranqüilamente. — Eu tinha outro motivo, mais convincente, para saber que o senhor não esperaria encontrar Pellinzi aqui naquela noite... O senhor sabia que Pellinzi estava morto em Riverdale.
— Ora, como poderia eu ter sabido que ele estava morto? — gritou o homem, freneticamente, saltando de pé. — O senhor mesmo disse que seria Dixie Del Marr a quem ele teria apelado primeiro, e o carro dela, sua viagem a Riverdale... Bolas... O senhor não me pode intimidar!
— Tenha mais calma, Dan — falou Owen, com petulância. — Já existe tumulto de sobra neste mundo pobre. A confusão me cansa.
— Novamente, receio que me tenha entendido mal, Senhor Mirche. — Vance ignorou a queixa de Owen a seu assecla amedrontado. — Quis dizer, apenas, que a Senhorita Del Marr deve tê-lo informado a respeito do fato. Tenho certeza de que vocês dois não ocultam segredos um do outro. Têm uma confiança mútua completa, mesmo no crime. E, sabendo que Pellinzi estava morto em Riverdale, e que a sua digamos assim, sócia? — dificilmente traria o cadáver para cá, como poderia o senhor imaginar que o homem encontrado morto neste escritório, naquela noite, era Pellinzi? Como teria sido natural cometer um erro de identificação! E, já que não poderia ser Pellinzi, deveria ser outra pessoa qualquer. E com que presteza — e com que lógica — Philip Allen lhe veio à idéia... Mas era Pellinzi.
— Como é que o senhor sabe que era Benny? — E Mirche estava atrapalhado, perturbado por alguma visão mental íntima. — O senhor está tentando enganar-me. — Depois, ele quase gritou: — Repito... Não poderia ter sido o Abutre!
— Ah, poderia, sim. É um engano da sua parte. — Vance falava tranqüilamente e com autoridade. — Não há dúvidas possíveis. As impressões digitais não mentem. Pergunte ao sargento Heath ou ao procurador distrital. Ou pode telefonar para a polícia e certificar-se.
— Imbecil! — cortou Owen, com os olhos sonolentos pousados em Mirche, com uma expressão de indizível aborrecimento. Virou-se para Vance. — Afinal de contas, como é fútil... este sonho diabólico... Esta sombra que nos cobre... — E a voz lhe faltou.
Mirche estava olhando fixamente para algum ponto distante além dos limites do cômodo, sozinho com seus pensamentos, lutando para juntar um punhado de fatos isolados.
— Mas — murmurou ele, como se protestando debilmente contra algum vingador inevitável e sem forma — a Senhorita Dell Marr viu o cadáver aqui e...
O homem tornou a cair no silêncio, pensando no assunto. E então um profundo rubor lhe foi aumentando nas feições e aos poucos foi ficando de cor mais intensa, até que pareceu que o sangue ia sufocá-lo. Os músculos do seu pescoço enrigeceram e gotículas de suor lhe apareceram de repente na testa.
Rigidamente e com esforço, o homem virou-se para Dixie Del Marr e, em uma voz de ódio fremente, descarregou contra ela uma saraivada de palavrões.


CAPITULO XIX
ATRAVÉS DA SOMBRA
(Terça-feira, 21 de maio — 16:00 horas)

Outra onda de emoções fortes rompeu a calma de pedra de Dixie Del Marr. Uma paixão violenta e primitiva a consumia por dentro. Ela se levantou e encarou Mirche, e suas palavras saíram em uma torrente incontrolável.
— Claro, sua criatura suja, que eu os deixei pensar que o morto encontrado neste escritório — o homem que você matou — era Philip Allen. Mais alguns dias de dúvida e de tortura para você... Que importava isso? Eu já esperara vários anos para vingar Benny. Oh, eu sabia muito bem que a sua traição o mandara para a cadeia para cumprir vinte anos de prisão. E eu não pude dizer nada para salvá-lo. Havia só um jeito de eu vingar essa injustiça. Eu tinha de esperar com paciência, pois sabia que um dia chegaria a hora... Você gostava de mim... Você me queria. Esse pensamento de me possuir já estava na sua mente inferior quando você deixou que mandassem Benny para a cadeia. Por isso, fingi que estava do seu lado e o ajudei nos seus planos ilegais. Eu o lisonjeei. Fiz o que você mandava. E durante o tempo todo eu amava Benny. Mas eu soube esperar...
Dixie deu uma risada amarga.
— Três anos são muito tempo. E o instante que eu esperara veio tarde demais. Mas eu me consolo com o pensamento de que a morte de Benny foi um fim misericordioso. Ele não podia ter esperanças de uma vida normal, embora tivesse conseguido fugir da prisão. Benny passara a vida inteira sendo perseguido pela polícia. Mas ele foi furioso para a sua cela. Tão furioso a ponto de pensar que podia encontrar a verdadeira liberdade da prisão, para onde a sua traição o havia mandado. Uma fúria irresistível tomou conta da mulher.
— Mas Benny nunca soube da sua traição. Pensava que você era amigo dele. E veio à sua procura para pedir ajuda. Mas, graças a Deus, ele telefonou também para mim quando voltou, no sábado passado. Contou-me que havia telefonado para você antes de chegar à cidade. Que você dissera que o ajudaria. E eu sabia que isso era mentira. Mas que podia eu fazer? Tentei preveni-lo. Mas Benny não me quis dar ouvidos. Pensou que, talvez, depois de tanto tempo, eu tivesse algum motivo forte para querer evitar um encontro entre vocês dois. Não me quis dar ouvidos. Não me contou nada dos seus planos, exceto que você ia ajudá-lo...
— Você está doida — conseguiu dizer Mirche.
— Cale-se, idiota — suspirou Owen. — Você não pode mudar o curso do destino.
— Por isso, eu o segui, Dan, no carro que você me deu, e com o motorista que você me forneceu e que fazia parte da sua quadrilha. — Dixie tornou a rir, com a mesma amargura. — Ele o odeia tanto quanto eu... Mas ele tem medo de você, pois sabe que você pode ser muito perigoso... Eu o segui, desde a hora em que você saiu daqui, na tarde de sábado. Eu sabia que você não deixaria Benny ir até onde você se achava, pois, apesar da sua crueldade, você é um covarde. E eu o segui a um bairro afastado e vi quando você entrou na casa de Tony... Pena que Rosa não tivesse olhado na sua bola de cristal para preveni-lo... E então compreendi o plano torpe que você estava armando para se livrar do Benny. Mas não imaginei que você tivesse coragem de executá-lo, como o fez. Pensei que Benny só deveria morrer quando você estivesse a salvo novamente no seu escritório. Como iria eu saber que você escolheria os cigarros do Tony para fazer o serviço? Pensei que eu ainda podia avisar Benny, antes que fosse tarde de mais... Pensei que eu ainda podia salvá-lo. Por isso, segui você. Vi quando você o apanhou, no lugar onde ele se achava escondido, bem no interior do parque; vi quando você seguiu com o carro rumo ao norte,
atravessando Riverdale; vi quando você parou em um ponto isolado, depois de uma curva, onde pensava que ninguém podia vê-lo. E então, eu o vi colocar o cadáver de Benny rapidamente ao lado da estrada e afastar-se velozmente de carro. A mulher nos varreu com um olhar ardente.
— Oh! Não estou mentindo! — gritou ela. — Nada mais me interessa... exceto o castigo deste homem.
Mirche parecia paralisado, incapaz de falar. Owen, ainda com seu sorriso céptico e distante, não se movera.
— Queira prosseguir, Senhorita Del Marr — pediu Vance.
— Levei o corpo de Benny para meu carro e trouxe-o para aqui, quando sabia que Mirche estaria lá em cima. Cheguei à alameda de entrada de carros, como sempre faço, e parei perto da porta lateral, na extremidade da passagem. — Ela apontou para os fundos do aposento. — Ninguém me podia ver da rua... com a porta do carro aberta. E as trepadeiras também ajudaram a me encobrir. Depois, entrei para me certificar de que não havia ninguém no corredor mais além, e dei o sinal. Meu motorista carregou o pobre Benny e o colocou aos pés do homem que o matara...! Você não sabia, não é, ”Coruja”, que havia um morto naquele armário, quando esteve sentado aqui, conversando comigo, naquela noite?
— E daí? — Houve uma mudança na expressão de Owen.
— E, quando você saiu, ”Coruja”, eu trouxe Benny para baixo da escrivaninha e telefonei para a polícia.
Agora, compreendi que Vance provocara deliberadamente o desabafo frenético da mulher. Enquanto ela falava, ele fizera um sinal ao sargento, e Heath e Hennessey se aproximaram de Mirche sem que este percebesse, e agora o homem se achava com um guarda de cada lado.
— Mas como é, Senhorita Del Marr, — perguntou Vance — que a sua história explica o fato de a cigarreira com perfume de narciso e rosa ter sido encontrada no bolso de Pellinzi?
— Foi medo! Foi a consciência deste patife — retorquiu ela, apontando para Mirche com ar de desafio. — Quando viu o que julgava ser o cadáver de Allen, seu cérebro assustado e enevoado se lembrou de que a cigarreira de Philip Allen ainda estava no seu bolso. E eu o vi, ajoelhado ao lado do cadáver, enfiar a cigarreira no bolso do paletó do morto. O ato impulsivo de um covarde, com o qual ele pretendia livrar-se de toda associação com o que ele julgava ser um segundo assassinato. Mirche queria evitar qualquer possível relacionamento de sua pessoa com outro cadáver.
— É uma versão razoável — murmurou Vance. — Sim. Uma análise bem sutil... E a senhorita se contentou em deixar que a verdade com referência ao morto aparecesse por meio das investigações?
— Sim! Depois de informar à polícia o endereço de Philip Allen, eu sabia que mais cedo ou mais tarde a justiça acabaria descobrindo a verdade. E, enquanto isto, este meliante, Mirche, ficaria preocupado e sofreria... E eu teria meios de sobra para torturá-lo.
— A ética de uma mulher... — começou Owen. Depois, voltou a ficar em silêncio.
— Tem alguma coisa a dizer antes de o prendermos, Mirche? — o tom de voz de Vance era baixo, mas cortante como uma chicotada.
Mirche ficou olhando, de um modo terrível, e sua figura gorducha pareceu encolher-se. De repente, contudo, ele se levantou e apontou um dedo trêmulo contra Owen. As veias do seu rosto estufaram-se como cordéis.
Owen fez um ruído gutural de desprezo.
— Cuidado com a pressão sangüínea, idiota — zombou Owen. — Não vá poupar esse trabalho ao carrasco.
Duvido que Mirche tenha ouvido essas palavras mordazes. Os vitupérios e os palavrões entornaram dos seus lábios. Sua ira parecia ultrapassar todas as fronteiras humanas. Seu veneno transformou-o em um mero autômato: insensato, contorcido, repelente.
— Não pense que levarei a culpa em seu lugar, sem dizer nada! Já cedi demasiado tempo sob a sua influência. Executei os seus planos sujos. Fechei a boca sempre que eles tentavam arrancar de mim a verdade a seu respeito. Posso ir para a cadeira elétrica, ”Coruja”, mas não sozinho! Levarei comigo você com seu cérebro hipnótico e envenenado!
Dirigiu um olhar rápido a Vance e apontou novamente para Owen.
— Ali está o cérebro tortuoso que planejou tudo isto... Eu o avisei da chegada do Abutre, e Owen me mandou buscar os cigarros. Ele me disse o que eu devia fazer. Tive medo de recusar... Achava-me em seu poder...
Owen olhou para o homem com calma zombaria: continuava distante e desdenhoso. A peça estava chegando ao fim, e o seu desprezo e a monotonia da situação ainda não o tinham abandonado.
— Você é um espetáculo triste, Dan. — Seus lábios mal se moveram.
— Se pensa que não estou preparado para este momento, o tolo é você, e não eu. Guardei todos os registros e dados: nomes, lugares... tudo! Durante vários anos, tenho guardado, essas coisas. Eu as ocultei onde ninguém as pode encontrar. Mas eu sei onde as encontrar! E o mundo inteiro saberá...
Essas foram as últimas palavras que Mirche disse em sua vida.
Ouviu-se um tiro. Um pequeno orifício preto apareceu na testa de Mirche, entre os olhos. O sangue gotejou do orifício e o homem tombou para diante, em cima da escrivaninha.
Heath e os dois detetives, com as automáticas empunhadas, começaram rapidamente a atravessar o aposento, para chegar até junto ao imóvel Owen, que continuou sentado, sem se mover, uma das mãos apoiada no colo, empunhando um revólver fumegante.
Mas Vance interveio rapidamente. De costas para a figura silenciosa na cadeira, fez um gesto imperioso para Heath. Virou-se lentamente, depois, e estendeu a mão. Owen ergueu o olhar na sua direção e depois, como se por uma cortesia instintiva, virou o revólver, com o cabo voltado para Vance, e estendeu-o com mansa indiferença. Vance jogou a arma em cima de uma cadeira vazia e, olhando para o homem, esperou.
Os olhos de Owen achavam-se semicerrados e sonhadores. ”O Coruja” não parecia mais notar o que o cercava, nem o corpo de Mirche, que ele acabara de matar, esparramado no chão. Finalmente, ele falou, em um tom de voz que parecia estar vindo de muito longe.
— Isso teria significado as vagas na superfície da água. Vance assentiu de cabeça.
— Sim. Limpeza de espírito... Mas, agora, haverá o julgamento, a cadeira elétrica, o escândalo, que ficarão gravados indelevelmente...
Um tremor sacudiu o débil corpo de Owen. Sua voz se ergueu, até se transformar em um grito agudo.
— Mas como se pode escapar ao finito? Como atravessar a sombra, limpo?
Vance tirou do bolso a cigarreira e segurou-a um instante na mão, mas não a abriu.
— Quer fumar um cigarro, Senhor Owen? — indagou ele. Os olhos do homem contraíram-se. Vance tornou a enfiar sua cigarreira no bolso.
— Sim... — E Owen respirou aliviado, afinal. — Acho que vou mesmo fumar um cigarro. — Enfiou a mão em um bolso interno e de lá tirou uma pequena cigarreira de couro, luxuosa...
— Escute aqui, Vance! — cortou Markham. — O caso deixou de ser da sua alçada. Foi cometido um homicídio diante dos meus olhos, e eu próprio ordeno a prisão deste homem.
— Perfeitamente — disse Vance, em voz arrastada. — Mas, infelizmente, acho que já é tarde demais para isso.
Enquanto Vance falava, Owen afundou mais na sua cadeira; o cigarro que ele acabara de acender lhe escorregou dos lábios e caiu no soalho. Vance esmagou-o rapidamente com o pé.
A cabeça de Owen pendeu para diante, caindo sobre o peito: os músculos do seu pescoço tinham-se relaxado repentinamente.


CAPITULO XX
FELIZ ATERRAGEM
(Quarta-feira, 22 de maio — 10:30 horas)

Na manhã seguinte, Vance achava-se sentado no gabinete do procurador distrital, conversando com Markham. Heath estivera lá, antes, com a notícia da prisão dos Tofanas. No porão da casa deles tinham sido encontradas provas suficientes para condenar ambos, ou pelo menos assim esperava o sargento.
Dixie Del Marr também comparecera, a pedido de Markham, para fornecer pormenores necessários para os registros oficiais. Como não havia nenhum motivo para lhe fazer acusações pelo papel que ela tivera nos negócios de Mirche, Dixie mostrava-se relativamente satisfeita quando nos deixou.
— Realmente, Markham — observou Vance. — Em vista do antigo amor dessa mulher por Benny Pellinzi, sua conduta, como sabemos, é perfeitamente compreensível e perdoável... Quanto a Mirche, teve um fim muito melhor do que merecia... E Owen! Um louco doente. Felizmente, para o mundo, ele escolheu um jeito tão rápido de sair de cena! Sabia que estava morrendo e foi o temor do castigo que lhe inspirou o ato... Podemos dar-nos por satisfeitos em encerrar o assunto. E, afinal de contas, realmente eu fiz ao lunático uma promessa vaga de zelar pelas conseqüências do caso, para que não houvesse ”ondas”, como ele mesmo disse, a segui-lo.
Vance riu melancolicamente.
— Mas, na verdade, que importa isso? Um facínora de importância, é encontrado morto, um acontecimento bem vulgar; um meliante de importância maior é morto com um tiro, também um episódio corriqueiro; e o chefão de uma quadrilha de criminosos se suicida... Bem, talvez isto seja um acontecimento raro, mas, sem dúvida, sem importância... Em todo caso, estamos em plena primavera; a cotovia está esvoaçando, contente, até o caramujo se movimenta... Ei! Que tal irmos comer uns camarões com um bom vinho, depois?
Enquanto Vance falava, a campainha da porta soou e uma voz anunciou a presença do Senhor Amos Doolson na sala de espera. Markham olhou para Vance.
— Suponho que seja a respeito daquele prêmio absurdo. Mas não posso receber o homem agora...
Vance levantou-se rapidamente.
— Deixe-o esperar, Markham! Tive uma idéia.
Depois, foi ao telefone e falou com a Fábrica de Perfumes In-O-Scent. Quando desligou, sorriu para Markham.
— Gracie Allen e George Burns estarão aqui dentro de quinze minutos. — Riu baixinho, realmente muito satisfeito. — Se alguém merece o prêmio, é aquela garota incrível, e vou tomar providências para que ela o receba.
— Ora, você está doido? — disse Markham, surpreso.
— Nada disso. Estou no meu juízo perfeito. E... embora talvez você duvide, sou apaixonadamente dedicado à justiça.
Pouco depois, Gracie Allen e George Burns chegavam.
— Oh, que lugar horrível! — falou ela. — Ainda bem que não tenho de viver aqui, Senhor Markham. — Ela virou os olhos preocupados para Vance. — Tenho de continuar com meu trabalho de detetive? Prefiro trabalhar na fábrica, agora que George voltou e que tudo está bem.
— Não, minha querida — falou Vance, em tom de voz bondoso. — Você já trabalhou até demais. E os resultados que alcançou são soberbos. Na verdade, pedi que você viesse aqui, esta manhã, apenas para receber a sua recompensa. Foi oferecido um prêmio de cinco mil dólares à pessoa que resolvesse o assassinato do homem no Domdaniel. Quem fez o oferecimento foi o Senhor Doolson; e ele está na outra sala, neste instante.
— Oh! — E desta vez Gracie Allen ficou tão intrigada e atônita, que perdeu a fala.
Quando Doolson foi introduzido, dirigiu um olhar de espanto aos seus dois empregados e foi diretamente para a escrivaninha de Markham.
— Quero retirar imediatamente o prêmio, Senhor Markham — disse ele. — Burns voltou para o trabalho, hoje cedo, com excelente disposição, e portanto não há mais necessidade de...
Markham, que já se ajustara ao ponto de vista de Vance, jocoso mas justo, falou na sua maneira mais judiciosa.
— Lamento extremamente, Senhor. Doolson, mas tal retirada está inteiramente fora de cogitações. O caso foi encerrado e arquivado ontem à tarde... Bem dentro do limite de prazo estipulado pelo senhor. Agora, sou obrigado a entregar o prêmio à pessoa que o mereceu.
O homem arregalou os olhos e gaguejou:
— Mas!... — começou ele a argumentar.
— Sentimos tremendamente, Senhor Doolson — intrometeu-se Vance, em tom conciliatório. — Mas tenho certeza de que o senhor ficará satisfeito com sua generosidade impulsiva, quando eu o informar de que é Gracie Allen quem vai receber o prêmio.
— Quê! — explodiu Doolson, como se fosse ter uma apoplexia. — Que é que Gracie Allen tem a ver com isso! É um absurdo!
— Não é, não — retrucou Vance. — É a simples declaração de um fato. Gracie Allen foi a principal colaboradora na solução do caso. Foi ela quem forneceu todas as pistas importantes... E afinal de contas, o senhor recuperou os serviços do Senhor Burns hoje.
— Não consentirei nisso — gritou o homem. — É uma tramóia! Uma farsa! Vocês não me podem obrigar legalmente a fazer isso!
— Pelo contrário, Senhor Doolson — disse Markham. — Sou obrigado a considerar esse dinheiro propriedade da moça. As próprias instruções quanto à concessão do prêmio — ditadas aqui pelo senhor mesmo — não lhe dariam nenhuma arma se o senhor resolvesse impedir legalmente o seu pagamento.
Doolson ficou boquiaberto.
— Oh, Senhor Doolson — exclamou Gracie Allen. — Que lindo prêmio! E o senhor realmente fez isso para que George voltasse para o trabalho voando? Nunca pensei nisso. Mas o senhor precisa terrivelmente dele, não é? E isso me dá outra idéia. Que tal um aumento de salário para George?
— Raios! Isso eu não faço! — E, por um instante, pensei que Doolson estava à beira de um colapso cardíaco.
— Mas suponha, Senhor. Doolson, — prosseguiu Gracie Allen
— que George tornasse a ficar preocupado e não pudesse ir trabalhar! Que seria da sua firma?
O homem controlou-se e estudou George Burns sombriamente, pensativo, durante alguns momentos.
— Sabe, Burns, — disse ele, em tom quase conciliatório — estive pensando, há algum tempo, e achei que você merecia um aumento. Você tem sido um empregado muito leal e muito valioso para a firma. Volte para o seu laboratório imediatamente e discutiremos amigavelmente o assunto. — Depois, virou-se e apontou um dedo para a jovem. — E você, menina, está despedida!
— Oh, não tem importância, Senhor Doolson — retrucou a moça, sorridente e indiferente. — Aposto que o aumento que o senhor vai dar a George fará o salário dele subir e igualar a quantia que o meu e o dele juntos dariam... entende o que eu digo?
— Raios me partam se me importo um pouco, sequer, com o que você diz. — E Doolson saiu pisando duro da sala.
— Creio — disse Vance, amavelmente — que a observação seguinte deve vir de George Burns. — E sorriu para o jovem, de maneira significativa.
George Burns, embora claramente atônito com os acontecimentos da última meia hora, ainda assim estava com a cabeça suficientemente clara para entender o significado das palavras de Vance. Agarrando a sugestão feita, dirigiu-se resolutamente para onde se achava a moça.
— Que tal aquela proposta que fiz a você, na manhã em que me prenderam?
Nossa presença, longe de deixá-lo embaraçado, deu-lhe coragem.
— Ora, que proposta? — perguntou a jovem, maliciosamente.
— Você sabe a que me refiro! — E seu tom de voz era rouco e resoluto. — Que tal nós dois nos casarmos.
Gracie Allen caiu para trás em uma cadeira, com uma risada musical.
— Oh, George! Era isso que você estava tentando dizer!
Pouco mais falta a falar a respeito do que Vance sempre insistiu em chamar de o caso Gracie Allen.
O Domdaniel, como todos sabem, foi fechado há muito tempo, e há poucos anos foi demolido e no seu lugar construído um prédio moderno. Tony e Rosa Tofana resolveram confessar seus crimes e agora estão cumprindo sentença na penitenciária. Não sei o que foi feito de Dixie Del Marr. Talvez tenha adotado novo nome e ido para outra parte do país, para viver tranqüilamente longe dos locais dos seus passados triunfos e sofrimentos.
Gracie Allen e George Burns casaram-se pouco depois daquela proposta de casamento inesperada e divertida, feita no gabinete de Markham.
Em certa tarde de sábado, alguns meses depois, eu e Vance encontramos o jovem casal dando um passeio a pé na Quinta Avenida. Os dois pareciam radiantes de felicidade, e a moça, como sempre, tagarelava muito animadamente.
Paramos alguns minutos para falar com eles. Soubemos que George Burns fora promovido no seu emprego na fábrica de perfumes. E, para gáudio de Vance, veio à baila o fato de que Gracie Allen, por motivos sentimentais, apresentara seu cartão ao Senhor Lyons, da loja Chareau e Lyons, de roupas feitas, quando fora escolher seu vestido de noiva.
Caminhamos ao lado deles durante um curto trecho, e George Burns, no meio de uma frase, parou de repente e notei que suas narinas se dilataram ligeiramente, enquanto ele se inclinava na direção de Vance.
— A fórmula original de Farina para a água-de-colônia! Vance riu.
— Sim. Eu sempre trago água-de-colônia, quando vou à Europa. E isso me faz lembrar: hoje cedo, vi, em uma revista francesa, o nome de um perfume que, depois da colaboração indispensável da Senhora. Burns no nosso caso, você poderia dar, muito apropriadamente, à delicada mistura que você fez para ela. Chamava-se La Femme Triomphant.
Burns sorriu, todo orgulhoso.
— Acho que Gracie o ajudou bastante, Senhor Vance.
A jovem olhou de um para outro, franzindo o cenho, intrigada, e depois riu, acanhada.
— Não compreendo...

 

 

                                                   S. S. Van Dine         

 

 

 

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