Biblio "SEBO"
Em 1976, num dos meus cruzeiros pelo mundo, estive em Edimburgo, a capital da Escócia, onde tinha alguns amigos. Foi nessa ocasião que ouvi a história curiosa do castelo de Rockenburgh e do mistério, até hoje insolúvel, que cercou a estada de um pequeno grupo de pessoas naquele casarão de pedra, na noite Fatídica de 13 de agosto de 1946. Quem me contou os trágicos episódios — o velho Anthony Lee participou diretamente deles e, portanto, a sua palavra merece fé. Ainda que muitas passagens da narrativa se afigurem demasiadamente dramáticas. Dizem que os escoceses, na maioria, acordam cedo e morrem tarde. Realmente, Lee já tinha 80 anos de idade quando conversou comigo, num barzinho discreto de Edimburgo, mas a sua memória era excelente. Tenho a certeza do que ele não se esqueceu de nenhum detalhe dos acontecimentos. E se mentiu em algum ponto, agora será difícil restabelecer integralmente a verdade. De qualquer maneira, verdade ou mentira, o caso do "Castelo das Vozes" é um dos mais fascinantes do meu arquivo, pela sua aura de suspense, de ação e de mistério. E sempre emocionante lidar com o sobrenatural, vocês não acham? Espero que concordem comigo.
Corria o ano de 1943. A segunda grande guerra punha quase toda a Europa em polvorosa, mas os ecos do conflito não chegavam até o castelo de Rockemburgh, nas proximidades de Perth, na Escócia. O castelo datava de 1297 e erguia-se no alto de um penhasco, entre o mar e as montanhas, debruçado sobre o Firth Of Tay. Originalmente, fora composto por dez dependências conjugadas, distribuídas entre as torres Norte e Sul, mas a maior parte dessas construções tinha sido destruída com o correr dos tempos. Já não existiam, mais, a torre Sul, o Salão dos Cavalheiros, a residência do governador, o Bastião Este, o Celeiro, a Armaria e as Casas da Escola. Em 1943, o histórico monumento limitava-se a cinco prédios de pedra, ligados uns aos outros. A torre Norte, que se erguia acima das demais construções, comunicava diretamente com uma barbacã, a casa de Murray e um pequeno pátio que dava para o salão principal, onde também ficava a cozinha. Este salão, o Great Hall tinha uma entrada ao sul e ligava-se à Santa Capela (a oeste) e aos Aposentos de Leste, onde havia três ímpios dormitórios e um poço de escadas. Os banheiros ficavam no subsolo. A ponte levadiça (ao norte) Unha sido destruída e suas ferragens enferrujadas não funcionavam desde 1812; por isso a porta sob a Torre Norte, fechada e pregada com sarrafos, impedia a entrada por aquele lado. Desde 1812 que a única via do acesso ao castelo era a escadaria e a grande porta de carvalho do Great Hall.
Na noite de sexta-feira, 13 de agosto, os habitantes da vasta construção de pedra estavam dormindo e a mão do demônio desceu sobre as suas cabeças. Moravam nove pessoas na casa: o milionário norte-americano William Frazer, sua esposa Cinthia, sua filha Mildred(de 6 anos), a governanta Isabel Lee, o vigia noturno Anthony Lee (seu marido), Miss Rosemery (perceptora de Mildred), uma arrumadeira, uma copeira e uma cozinheira negra. A família Frazer e Miss Rosemery dormiam nos aposentos do Leste, ao passo que os outros empregados tinham seus quartos na casa de Murray.
O velho relógio de pêndulo do Great Hall bateu doze pancadas sonoras. Tudo estava em silêncio no Castelo de Rockemburgh. A única claridade do salão era proporcionada por um candelabro de seis velas, deixado aceso sobre a lareira. Sombras movediças dançavam nas paredes cobertas por valiosas tapeçarias medievais. Ao fundo do salão, entre outros ornamentos, via-se uma panóplia com uma acha-de-armas do século XIII — uma curiosa machadinha de ferro, reluzente e afiada.
Mal o eco das batidas do relógio se dissolveu nos corredores de pedra, uma sombra de contornos mais nítidos se destacou na penumbra do hall (à frente da porta principal, que acabara de abrir) e avançou, cautelosamente, para o interior do amplo recinto. As luzes trêmulas das velas revelaram uma silhueta esguia, embrulhada numa capa preta, calçando luvas da mesma cor. Por um breve instante, a figura se imobilizou, atenta, parecendo escutar o silêncio; depois, continuou a avançar, cruzando o salão de ponta a ponta, e estendeu uma das mãos enluvadas para a panóplia da parede. A machadinha estava bem firme nos seus encaixes e só se desprendeu após soltar um estalido metálico, que ecoou nas frias paredes do hall.
Agora com a machadinha na mão, a figura negra permaneceu outra vez imóvel, à escuta, receiosa de que o barulho tivesse despertado algum dos moradores do castelo. Nada mais quebrou o silêncio. Então, a sombra negra voltou a mover-se cautelosamente é atravessou o salão, da esquerda para a direita, saindo pela arcada do corredor dos Aposentos do Leste. Havia três portas nesse corredor, duas à esquerda e uma à direita. À direita também ficava o poço das escadas. A figura tinha um molho de chaves na mão; silenciosamente, enfiou uma delas na fechadura da primeira porta (à esquerda) e abriu-a devagarinho.
Era o quarto do casal.
Mr. e Mrs. Fazer dormiam tranqüilamente, na larga cama com dossel. A figura adiantou-se, na ponta dou pós, e contemplou o casal adormecido; em seguida, no mesmo silêncio, ergueu a machadinha por cima da cabeça do milionário americano. E deu o primeiro golpe "Crash"!
Logo depois da pancada, ouviu-se um grito aguda do Mrs. Frazer, que acordava sobressaltada. A machadinha saltou do crânio fendido do homem, girou no espaço e foi se abater, vertiginosamente, sobre os cabelos grisalhos da mulher. Outro baque surdo, um gemido de agonia e Mrs. Frazer também tombou sobre o leito, encharcando os lençóis de sangue.
A figura negra começou a agir com mais rapidez e menos precauções. Os gritos deviam ter acordado os outros moradores do castelo e ela não podia perder tempo, se quisesse que o seu crime escapasse ao castigo. Sua mão esquerda, enluvada e tinta de sangue, agarrou febrilmente nas jóias espalhadas sobre a penteadeira e enfiou-as num bolso da capa.
Ato contínuo, correu para fora do quarto. A porta do dormitório seguinte tinha se aberto e uma figurinha delgada, envolta numa camisola cor-de-rosa, apareceu no corredor, gritando e chamando pela mãe. Era a pequena Mildred. A mão negra, armada com a acha, voou atrás dela. A menina retrocedeu para o interior de seu quarto, mas não teve tempo de fechar a porta. A sombra humana entrou também.
Enquanto isso, nos dois quartos da barbacã, o vigia Anthony Lee, sua mulher, a arrumadeira, a copeira e a cozinheira também tinham acordado com os gritos de Mrs. Frazer. Rapidamente, o vigia saltou da cama e foi apanhar a espingarda. Ele não devia estar dormindo no serviço, mas facilitara um pouco, embalado pela quietude da noite; agora, cheio de apreensão, fez sinal à mulher para que não saísse do quarto e precipitou-se para o pátio. Depois dos gritos de Mildred tudo voltara ao silêncio.
Lee atravessou o pátio, numa disparada, e entrou no Great Hall, pela porta dos fundos. Não encontrou ninguém. Correu para a arcada dos Aposentos de Leste e viu a porta da alcova de seus patrões aberta de par em par. Uma rápida olhadela lançada para o interior do quarto mostrou-lhe a extensão da tragédia: os corpos de Mr. e Mrs. Frazer jaziam sobre a cama, mergulhados num lago de sangue. Um cheiro enjoativo, semelhante ao do acetileno, inundava o local.
Lee seguiu pelo corredor, com a espingarda nas mãos trêmulas, e abriu a porta do quarto de Mildred, que não estava fechada à chave. A menina também fora brutalmente assassinada. Seu corpinho cor-de-rosa jazia estirado no assoalho, a cabeça aberta por um golpe horrível, os grandes olhos azuis arregalados e vítreos. Parecia uma boneca quebrada.
"Pam-pam-pam"!
Alguém batia à porta da direita do corredor! Lee ouviu os gritos de socorro de Miss Rosemary, a preceptora da menina. Apavorado, o vigia tentou abrir a porta, que estremecia sob os murros da moça. Não conseguiu nada. Mas a chave estava caída no meio do corredor, apanhou-a e girou-a na fechadura da porta. Rosemary uma jovem de 26 anos, pálida e descabelada saiu do quarto, chorando desesperadamente, presa de um ataque de nervos.
- Você viu alguém? — indagou Lee, com voz esganiçada.
A moça estava nua, sob uma fina camisola, e ele sempre se sentia perturbado diante de uma mulher bonita nossas condições.
Não — respondeu Rosemary, tapando os Bolos com as mãos espalmadas. — Não vi ninguém. Mas ouvi os gritos e as pancadas. Que aconteceu? Por que me trancaram no quarto?
- Você teve sorte, menina! Mataram os dois velhos e a garotinha! E os assassinos ainda devem estar aqui dentro!
Mas, aparentemente, não estavam. Quando encontrou a porta principal aberta, em frente ao Great Hall, o vigia perdeu as esperanças de apanhar os assaltantes. Na sua opinião, eles tinham tido tempo suficiente para escapar.
A machadinha, tinta de sangue, estava caída no corredor, em frente à porta do quarto de Mildred.
Sem pensar no que fazia, Lee apanhou-a e foi depositá-la numa das mesas do hall. Depois, sentou-se numa cadeira e começou a chorar, juntando suas lágrimas às de Rosemary. Era um rapaz muito emotivo.
O que ele não sabia era que as suas luvas e a sua capa preta, com um punhado de jóias no bolso estavam escondidas no poço das escadas e seriam facilmente encontradas pela polícia, se soubesse, teria chorado muito mais.
Três anos se passaram. Nesse intervalo, foi assinado o armistício e os países da Europa, mais duramente atingidos pela guerra, puseram-se a curar as suas feridas. Na Escócia, a vida pouco se alterara, durante o conflito, e continuou calma e normal depois dele.
A partir do dia 12 de junho de 1946, e até o dia 12 de agosto do mesmo ano, os jornais de Perth publicaram um anúncio curioso, sem que aparecessem interessados, o anúncio dizia:
"Castelo — Vende-se"
"Proprietária de um castelo do século XIII, nas proximidades desta cidade, vende-o pela melhor oferta. Trata-se do famoso Castelo de Rockemburgh, sobre o Firth of Tay, propriedade de grande valor histórico, composta por cinco prédios, todos contendo móveis e decorações autênticas. Ideal para os fins de semana de pessoas de bom gosto. Também oferece os encantos de um parque e artísticas ruínas que datam do século XVIII. Os interessados devem procurar Mr. Robert Gaynor, em Saint John's Street, 32, sala 12, tel.: Perth 22 0627."
No dia 12 de agosto, uma senhora de meia-idade, acompanhada por uma linda moça de 25 anos, desceu de um táxi, em Saint John's, e procurou o escritório do jovem advogado Robert Gaynor. O rapaz já tinha perdido as esperanças de vender o Castelo da Rockemburgh; por isso, quando a visitante lhe falou no anúncio, tornou-se extremamente gentil:
— Sente-se, minha senhora. Fique à vontade, senhorita. Posso oferecer-lhes um aperitivo? Quero dizer... um chá, talvez?
A sala era modesta, mobiliada com um armário, um arquivo, uma escrivaninha e quatro cadeiras.
— Obrigada - disse Mrs. Mary Ann Saders, com forte sotaque Yankee. — Queremos, apenas, conhecer! detalhes sobre o Castelo que o senhor pôs à venda e espero não perder muito tempo com o assunto.
Era uma mulher alta, magra, de cabelos grisalhos, vestida com um tailleur cinzento, de corte discreto. Sua filha, Samantha, também era esguia, morena, muito bonita, e usava uma roupa-esporte, com blusa] justa e decote audacioso. Robert reparou que os seios da garota eram as coisas mais lindas que ele já vira naquela temporada de caça.
— Pois não, minha senhora — balbuciou o rapaz.
Farei o possível para não lhe roubar o seu precioso tempo. A senhora então, está interessada na compra do Castelo?
Sentaram-se de um e outro lado da escrivaninha
Sim — respondeu a mulher de cinza.— Chamo-me Mary Ann Sanders e sou viúva de um industrial americano, de origem escocesa. Esta é minha filha Samantha. Tenho grande simpatia pelas tradições da terra de meu falecido esposo. Chegamos há dias, a
Edimburgh, numa viagem de turismo, e lemos o anúncio sobre a venda do Castelo de Rockenburgh. Meu sonho, e o de minha filha, sempre foi possuir um Castelo na Escócia. Não desejamos morar aqui, evidentemente, mas passar alguns meses do ano num retiro medieval, promovendo festas típicas que talvez atraiam um os turistas ricos de minha terra ...
Compreendo — murmurou Robert, perguntando a si mesmo por que Mrs. Sanders dizia aquilo como se fosse uma lição decorada. — Compreendo perfeitamente. O Castelo de Rockemburgh, como a senhora talvez não ignore, presta-se admiravelmente para festinhas campestres, de um encantador refinamento...
Não conheço a propriedade — declarou Mrs. Sanders. - Nunca tinha ouvido falar nela, até ler o anúncio no jornal. Fica muito longe de Perth?
Nem por isso, minha senhora. É isolada, mas acessível. Fica exatamente dez quilômetros a leste do centro da cidade, pela estrada de rodagem que margina o Firth of Tay. Quinze minutos, apenas, de automóvel. Mrs. Sanders achou ótima a localização, e pediu mais detalhes. Robert mostrou-lhe documentos e fotografias, interessando cada vez mais a cliente.
Enquanto isso, Samantha Sanders sorria misteriosamente, apertando nos dedos brancos e longos uma bolsinha de palha. Os olhos dourados da jovem não podiam ocultar o interesse que lhe despertara a figura insinuante do advogado. Samantha era uma impulsiva. E Robert era um rapaz alto, e forte, de sorriso fácil, os cabelos castanhos, ondulados, formando uma cortina acetinada sobre a nuca. Seus olhos verdes e seus lábios grossos davam-lhe uma aparência de educada sensualidade.
— E agora — concluiu ele, sorrindo para Mrs. Sanders — terei prazer em levá-la à presença da atual proprietária do Castelo. Miss Carter poderá lhe dar maiores informações sobre o negócio. Eu sou apenas um intermediário. Quando lhe convém entrar em contato com Miss Carter?
— Agora mesmo — respondeu a mulher. Robert não perdeu o sorriso.
— Excelente, Mrs. Sanders! Tenho o meu carro na porta. Mrs. Carter está hospedada no Regents Hotel, aqui em Perth. Ela chegou, no mês passado, de uma longa viagem pelo Oriente Médio.
— Meu Deus! — suspirou Samantha. — Como mamãe é apressada!
Robert pediu licença e usou o telefone, falando, durante alguns minutos, com o quarto 40 do Regents Hotel; em seguida, pousou o fone e voltou a sorrir para as clientes.
- Miss Carter nos espera, Mrs Sanders. Poderemos ir quando desejarem.
Desceram à rua e tomaram o pequeno Austin do advogado. O carro os levou, em menos de cinco minutos ao luxuoso hotel de Regents Street, em frente ao palácio do Scom. Miss Carter recebeu-os na sua suíte do quarto andar. Era uma senhora alta e robusta, aparentando 30 anos, entalada num austero costume castanho. Sob os cabelos cortados a la homem, seu rosto anguloso mantinha uma permanente expressão de fadiga. Robert fez as apresentações. Mrs. Sanders iniciou logo o diálogo que lhe interessava, enquanto o jovem advogado e Samantha iam até a varanda, espiar do alto o resto da antiga abadia de Scom, fundada no século V.
Miss Carter mandou subir o chá, pelo telefone interno do hotel, sem parar de falar nas excelências do castelo de Rockenburgh.
Sim — disse Mrs. Sanders, pousando as fotografias da propriedade sobre a mesinha da sala.
— O castelo me parece muito pitoresco, bem de acordo com aquilo que se espera de um castelo na Escócia. É amplo e isolado, prestando-se admiravelmente ao tipo de festinhas sofisticadas que tenho em mente, É um castelo assim que desejo comprar.
— A senhora gostará muito do lugar, Mrs Sanders. — A voz de Miss Carter era baixa e áspera.
— Tem uma linda vista sobre o estreito e os Highlands. Fica, por assim dizer, entre as montanhas e o mar.
— Sobre um penhasco?
— Sobre um evidentemente.
— Sim — repetiu a americana, encantada. — Talvez cheguemos a um acordo, Miss Carter. Depende do preço. Não sou exatamente uma multimilionária, embora meu falecido esposo tenha me deixado o suficiente para viver com conforto. A compra desse castelo para mim, representa apenas a satisfação de um desejo há muitos anos acarinhado. Sempre sonhei em ter um castelo histórico para receber os meus amigos Qual é o preço?
Miss Carter mordeu os lábios, pensativa. Depois:
— Estou pedindo uma base de duzentas mil! libras pela propriedade, tudo incluído. Mas posso facilitar o pagamento.
— O preço também não, me parece exagerado tratando-se de um castelo autêntico, no alto de um penhasco... Rockemburgh é o nome da localidade?
— Não — disse Miss Carter, sem sorrir.— É o nome da família que construiu a fortaleza, no ano da 1297. O castelo de Rockenburgh tem uma história curiosa, que muito se assemelha a do não menos famoso castelo de Edimburgh. A senhora nunca ouviu falar...?
- Nunca — asseverou a americana.
-A propriedade esteve em poder dos ingleses pelo espaço de 17 anos, enquanto os patriotas Wallace e Robert Bruce levavam avante a sua luta, vitoriosa em Bannockburn, no ano de 1314. Mais tarde, quando Perth ainda era a capital dos reis da Escócia, o castelo passou para a casa dos Stuarts. Em 1452, durante o reinado de Jaime III, a capital se transferiu para Edimburgo e o castelo perdeu um pouco do seu antigo esplendor. Foi residência de um primo da Rainha Mary e, depois de um protegido de Jaime VII, que era o Governador da província. Durante o levante jacobita 1745, parte da propriedade foi destruída por um incêndio. Na guerra contra Napoleão, os subterrâneos do castelo serviram de calabouço para os prisioneiros. Nessa oportunidade uma explosão acabou de destruir metade dos prédios. Oito anos depois de Waterloo, o Rei Jorge IV ofereceu o castelo a um descendente vivo de Lord Rockemburgh, Sir John Murray, que nele permaneceu até vendê-lo, em 1891, ao milionário norte-americano Joshua Patterson, que era viúvo e sem filhos, morreu em 1930, num acidente de caça.
Em 1940, seus herdeiros venderam a propriedade a outra família americana, composta por William Fraser, industrial em Detroit, sua mulher e uma filhinha de 6 anos. Eu sou a filha mais velha de William Fraser.
— Ah! — exclamou Mrs. Sanders, interessada.
— Sim, compreendo. E não acho caro um castelo tão cheio de romance. É possível que ainda encontremos, nas paredes dos calabouços, alguns palavrões; em francês, deixados pelos prisioneiros do tempo de Napoleão.
— É possível — disse Miss Carter secamente. — Duzentas mil libras não pagam, sequer, o valor dos móveis e das tapeçarias. Eu lhe venderei tudo, tal como se encontra há três anos.
— Por quê? — perguntou Mrs. Sanders.
A outra piscou os olhos cinzentos.
— Por quê?
— Sim. Porque a senhorita quer se desfazer do castelo... dos móveis... de tudo quanto pertenceu a seus pais?
— Motivos particulares — disse a mulher, mordendo os lábios.
— Não posso conhecer esses motivos? — volveu a americana, com um sorriso inocente.
Uma pausa. Miss Carter soltou um sorriso.
— Bem... pensei que meu advogado lhe tivesse
dito...
— Não — asseverou Mrs. Sanders, com outro sorriso encorajador. — Mr. Gaynor não me disse nada. Ele me parece um rapaz muito reservado.
E as duas olharam, ao mesmo tempo, para o jovem casal, na varanda. Nesse momento, Robert procurava ocultar o grande interesse que lhe despertava a figura graciosa da linda americana. Samantha inclinava-se sobre a balaustrada, para ver melhor as ruínas da abadia, e metade de seus seios brancos, com pequeninas veias azuis, avultava sobre o decote generoso, Robert não queria que seus olhos traíssem a inquietação de seus desejos.
— Lindo panorama — gemeu o rapaz, apontando para o palácio de Scom. — A coisa mais linda do mundo! Gostou de Perth, Miss Sanders?
— Muito. É uma das cidades mais antigas da Escócia. Eu e mamãe temos os mesmos gostos. Há muito tempo que o senhor é o advogado de Miss Carter?
— Dois meses, apenas. Desde que ela voltou do Oriente Médio.
— Ah! Então, não a conhece bem?
— Não, não a conheço bem. Espero que a senhora sua mãe compre o castelo. Pretendem morar lá?
Era uma pergunta estúpida, mas ele tinha dificuldade em raciocinar com aquele decote palpitando a dois palmos de sua boca.
— Oh, não! — disse Samantha, sorrindo encantadoramente. — Mamãe já falou, lembra-se? Ela pretende fazer do castelo uma espécie de hospedaria de luxo para atrair turistas endinheirados. E eu... eu só quero passar lá as minhas férias...
— É estudante, Miss Sanders?
— Terminei os estudos superiores, na América.
Atualmente, penso apenas em me divertir. Quantos anos me dá?
— Uns dezenove, talvez.
Ela deu uma risada cristalina.
— Já tenho vinte e cinco. E sou livre e independente. Adorei a Escócia, Mr. Gaynor! E adorei os escoceses!
— O castelo de Rockemburgh — murmurou o rapaz, sem pensar no que dizia fica num lugar muito triste.
— É mesmo? Pois mamãe parece que ficou apaixonada pela propriedade.
— Eu? — Ela deu outra risada. — Oh, eu não me apaixono facilmente!
Ele sentiu um calafrio. A anca roliça e quente da garota tinha tocado, sem querer no seu corpo, dando lhe um choque delicioso.
— Faço votos — balbuciou, recuando um passo
— Para que as senhoras cheguem a um acordo.
E os dois olharam, ao mesmo tempo, para as mulheres, que conversavam na sala. Ao se virar, Samantha desequilibrou-se e procurou apoio no pulso dc rapaz. Discretamente, a mão dele pousou na cintura como que procurando ampará-la. A garota deixou de sorrir, suas narinas se dilataram e seu olhos ganharam uma expressão de profunda sensualidade; dessa vez era ela que sentia choques deliciosos.
"Meu Deus! — pensou Robert, intimamente encantado. — Estamos procedendo como dois animais no cio!"
Sentada no sofá da sala, Mrs. Sanders e Miss Carter continuavam a sua palestra.
— Mais tarde ou mais cedo — dizia a proprietária do castelo — a senhora irá saber o que aconteceu. Prefiro contar-lhe tudo de uma vez. A família que morava naquele castelo morreu há três anos.
— Os Patterson? — perguntou Mrs. Sanders, com um sorriso estúpido.
— Não. Os Fraser. Minha família, Mrs Sanders! Meu pai, minha mãe e minha irmãzinha, de seis anos, que se chamava Mildred! Foram assassinados, brutalmente, por uma quadrilha de ladrões!
— Que horror! — gemeu Mrs.Sanders. — E, depois disso, a senhorita mudou de nome?
Miss Carter mordeu os lábios. Seus olhos tornaram-se duros.
— Bem... Eu não era, exatamente, filha de Mr. Fraser. Era sua... protegida. O casal me tratava como uma filha de criação. Na verdade, eu fazia às vezes de preceptora da pequena Mildred. Os assaltantes penetraram nos aposentos de Leste, durante a noite, e... nem quero me lembrar! Foi pavoroso!
Só escapei eu, a governanta, o marido dela, a cozinheira, a arrumadeira e a copeira. Os serviçais dormiam nos quartos da barbacã, até onde não foram os assassinos.
— Foram muitos, os assassinos?
— Dois ou três, segundo a polícia.
— E foram presos?
— Não — respondeu Miss Rosemary Carter, com voz sombria. — Até hoje, a polícia não descobriu a identidade dos autores do terrível massacre. O crime ficou impune, Mrs. Sanders!
Outra pausa. Depois, a americana arriscou, num fio de voz:
— E o que foi que eles roubaram?
— Jóias, Não tiveram tempo de roubar mais nada, devido à rápida intervenção do vigia Anthony Lee. A polícia ainda recuperou parte das jóias, no bolso de uma capa deixada por um dos assaltantes, mas o dinheiro e as outras jóias... as jóias mais fáceis de negociar...
— Compreendo. É uma coisa lógica.
— Eu não pude fazer nada — prosseguiu Rosemary, com voz aguda.— Trancaram-me no meu quarto, jogando a chave no corredor! Foi Lee quem me resgatou. Ele tinha ouvido os gritos de Mrs. Fraser e acorreu, com uma espingarda, afugentando os assaltantes. Quando fomos ver, Mr. Fraser, a mulher e a filhinha estavam mortos! Todos mortos! Foi pavoroso! Nunca mais me esqueci daquela cena dantesca!
— Então, é por isso que um castelo no valor de meio milhão de libras está sendo oferecido pela metade do preço...
Rosemary acenou, limpando os olhos num lencinho de cambraia.
— Quero me desfazer dele o mais depressa possível. Com a morte de Mildred, morte que não estava prevista no testamento de Mr. Fraser, eu herdei o castelo sozinha... mas estive viajando pelo Oriente e só agora posso pô-lo à venda. A senhora é supersticiosa, Mrs Sanders?
A americana meneou a cabeça grisalha.
— Mais ou menos. Como foi que eles morreram?
— Por favor...
— Desculpe, Miss Carter. Vejo que a senhorita é muito emotiva.
— Nunca poderei esquecer aquele espetáculo! - Exclamou a ex-preceptora, estremecendo. — Meus patrões... meus pais... foram massacrados, quando dormiam! Os ladrões usaram uma acha-de-armas, que estava pendurada numa panóplia!
Na varanda, Robert também acabara de contar a Samantha alguns detalhes da tragédia que se abateu sobre a família Fraser.
— Uma machadinha? — gemeu a garota, agarrando-lhe a mão gelada.
Ele respirou fundo, para pôr os hormônios no lugar.
— Foi o que me disseram. Uma acha-de armas, que ficava numa panóplia da parede do hall. Eu não listava em Perth, na ocasião, nem li nada a respeito.
Mas, durante um ano, não se falou noutra coisa. O crime abalou a cidade, devido às características de frieza e premeditação. Por isso, Miss Carter resolveu vender a propriedade por qualquer preço. É uma solteirona muito impressionável e não quer ter tristes recordações... Afinal, também ela quase foi assassinada pelos ladrões!
— Que história horrível! — murmurou Samantha, apertando-lhe nervosamente a mão. — Não sei se, depois de conhecê-la, mamãe ainda vai querer comprar o castelo!
— O lugar é triste — admitiu Robert — Mas muito bonito. Há um certo encanto na nostalgia...
Tenho certeza de que vocês vão gostar de lá. A caminho do penhasco, passa-se por dentro de um bosque de pinheiros, ideal para quem gosta de passear a pé...
— Adoro passear a pé — disse a garota, impulsivamente. — Mas deve ser perigoso andar sozinha por um bosque de pinheiros...
Ele baixou os olhos para a mãozinha que ela apertava nas suas.
— Pensei que você fosse noiva...
Também ela olhou para o anel de ouro, cravejado de brilhantes que tinha no dedo. E sorriu.
— Oh, não! Não sou noiva! Nem sequer tenho namorado. Na América, quero dizer...
Então, o rapaz perdeu o resto da timidez e terror o seu olhar ardente nos olhos risonhos da perturbadora moreninha. Seu apelo foi tão dramático que Samantha não pôde evitar um calafrio. E os dois permaneceram imóveis, muito acima das ruínas do palácio de Scom, fitando-se no fundo das pupilas e ouvindo .apenas o bater de seus próprios corações.
Nesse momento, chegou o chá, trazido por um garçom do hotel.
— Não poderei lhe dar a última palavra — dizia Mrs. Sanders sem ver o Castelo de Rockemburgh.
As duas mulheres levantaram-se e o garçom estava pondo a mesa para quatro pessoas.
— Claro — disse a herdeira de Mr. Fraser. — tem minha permissão para visitá-lo, quando achar conveniente. Robert poderá levá-la, no seu carro.
Isabel Lee, a governanta, ainda mora lá, ao lado do castelo, na vertente do penhasco. Basta que lhe dê um bilhete e ela...
— Não — atalhou a americana. — Quero que a senhorita vá conosco.
— Eu?
— Sim. Ninguém melhor do que a proprietária para nos servir de cicerone.
— Mas...
A mulher de cinza encarou-a, muito séria.
— Tem algum inconveniente em voltar ao local? Não — respondeu Rosemary, contrariada. — Claro
Que não. Não há nenhum motivo especial para que eu não volte ao local. Agora — acrescentou, com um sorriso forçado — Vamos tomar o chá.
Robert e Samantha aproximaram-se, de mãos dadas como dois colegiais.
— Então, mamãe? — perguntou a moça. — compramos o castelo?
Mrs. Sanders olhou, espantada, para as mãos deles. Os dois jovens, sobressaltados, soltaram-se e deram a mesma risadinha encabulada.
— Em princípio — disse Mrs. Sanders, com voz severa — ficaremos com as propriedade. Mas Miss Carter irá até lá, para nos mostrar tudo. Quero que ela me dê algumas explicações sobre os objetos históricos que encontrarmos.
— Quando iremos ao local?
— Quando quiserem — acudiu Rosemary. — Amanhã, por exemplo. Não tenho nada que fazer amanhã. Samantha olhou o rosto sério de Robert.
— Você também irá?
Ele estava pálido e tenso, lutando contra os seus hormônios.
— Se assim for o seu desejo, Miss Sanders, irei.
— Podemos ir amanhã à tarde — resolveu Mrs. Sanders. — Convém-lhe, Miss Carter? Aí por volta das duas horas da tarde.
A ex-preceptora voltou a forçar um sorriso.
— Perfeitamente. Amanhã, por volta das duas da tarde. Meu chofer irá buscá-las, no hotel. Você vai conosco, Bob?
O jovem advogado olhou o rostinho sorridente de Samantha e respondeu com voz triunfante:
— Com todo o prazer, Miss Carter, com todo o prazer! Adoro andar a pé, por entre os pinheirais!
Depois, sentaram-se ao redor da mesa e deram início à cerimônia do chá. Mrs. Mary Ann Sanders estava muito pensativa, fazendo seus cálculos. Precisava ir a Edimburgh, nessa noite mesmo, e combinar tudo com um certo Mr. Jim Jones, que viajara em sua companhia desde os Estados Unidos. E Mr. Jones dispunha apenas de algumas horas, na manhã seguinte, para preparar o ambiente, no castelo de Rockemburgh, a fim de que as almas dos mortos descessem sobre o local da tragédia. Ia ser uma experiência muito interessante.
No dia seguinte, às duas horas da tarde, um Jaguar preto foi apanhar Mrs Sanders e Samantha no hotel em que elas estavam hospedadas. Dentro do carro estavam apenas Rosemary Carter e Robert Gaynor.
— Resolvi não levar o meu chofer — Explicou a proprietária do castelo, quando a americana e a filha se sentaram no banco traseiro.— Às vezes, gosto de dirigir um pouco... E conheço o caminho melhor do que Gérard. Meu chofer nunca esteve no castelo de Rockemburgh.
O carro partiu e atravessou vertiginosamente metade da cidade, enterrando-se na rodovia que bordejava o Firth of Tay. Percorreram dez quilômetros de estrada e dobraram à esquerda, indo parar pouco adiante, na entrada de um bosque de pinheiros. O sol escondia-se atrás de uma nuvem, quando Rosemary desligou o motor e puxou o freio de mão.
— Aqui estamos. Agora, é preciso seguir a pé, por entre os pinheiros. A casa de Isabel e Anthony Lee ficava no fundo do bosque, na vertente do penhasco.
— Parece que vai chover — observou Robert, olhando para o céu.
Todos seguiram o seu olhar. E viram as nuvens escuras que se amontoavam no espaço.
— É verdade — disse Mrs. Sanders. — Que imprudência! Nenhum de nós trouxe guarda-chuva!
— Não é longe — volveu Rosemary. — Chegaremos lá num minuto.
Fechou o carro e pôs-se a andar, decididamente, pelo caminho de terra batida. Os outros a seguiram.
Robert e Samantha atrasaram propositalmente a marcha, até que se distanciaram de Mrs. Sanders.
— É este o seu bosque de pinheiros? — perguntou Samantha, sorrindo.
O rapaz lambeu os lábios.
— É. Mas não esperava que o sol nos fizesse essa desfeita... O dia ficou muito triste.
Realmente, o céu nublado despejava sobre a terra um montão de sombras. Samantha agarrou na mão do jovem advogado.
— Gosto de dias tristes, Bob. Principalmente, quando estou em boa companhia...
Ele a encarou, emocionado, mas não pôde dizer nada. Foi ela quem estendeu os lábios e fechou os Olhos. O rapaz beijou-a de leve, quase com medo; então, ela passou os.braços em volta de seu pescoço e sugou-lhe os lábios como uma ventosa. Seu corpo fremia, entre as mãos dele.
— Querido!. Nunca esperei que isso fosse tão maravilhoso! Você está sentindo o mesmo que eu?
— Sim — balbuciou ele, estreitando-a contra o peito. — Estou sentindo o bimbalhar das campainhas, de prata... Creio que é o amor.
— Oh, sim! Claro que é o amor! Agora, deixe-me respirar!
Ele soltou-a, indeciso, e olhou ao redor.
— Que fazemos?
— Nada — disse Samantha mordendo o lábio.
— Infelizmente, não podemos fazer nada. Mas já sabemos do principal. O resto, é simples questão de oportunidade. Eu gosto de você, Bob.
— E eu de você Samantha. Não será melhor falarmos com sua mãe e...?
— Não, ainda não. Por favor! Mamãe talvez não compreendesse... É amor à primeira vista, não é?
— Tenho todos os motivos para crer que sim. Você é ótima, Samantha! Na medida do meu manequim!
— E você é formidável! Exatamente igual a rapaz com quem eu sonhava casar!
— Casar? — perguntou ele, na dúvida. Casar — disse ela, firmemente.
E trocaram outro beijo de amor. Na mesma hora, ouviram um "psiu" impaciente e tiveram que correr para alcançar Mrs. Sanders.
— Que é que vocês estavam fazendo? — quis saber a americana, desconfiada.
— Andando — respondeu Samantha feliz. — Que é que poderíamos fazer, neste descampado?
Atravessaram o bosque e começaram a subir uma vereda, que ia dar no alto de um penhasco à beira-mar. Mrs. Sanders olhou para cima e viu a silhueta austera do velho castelo de Rockemburgh. O céu linha escurecido ainda mais e as paredes de pedra do casarão, cinzentas e frias, destacavam-se fantasmagoricamente contra as nuvens baixas. O perfil esguio da torre Norte parecia querer furar o céu.
— Impressionante — suspirou a americana. — tal como eu imaginava!
Rosemary Carter não fez comentários. Continuaram a subir o atalho, até atingirem um pequeno bangalô de pedra e cal, com um jardinzinho, onde um cachorro latia.
— Espero que Isabel esteja em casa — disse Rosemary. — As chaves estão com ela.
À aproximação do grupo, um estranho indivíduo saiu do bangalô, postando-se à porta. Era corcunda e arrastava a perna direita. Sua face macilenta estava vinculada por fundas rugas verticais e seus cabelos, prematuramente embranquecidos, davam-lhe o aspecto de um velho demônio.
— Alô, Lee! — exclamou Rosemary, acenando para ele. — Isabel está em casa?
O homem apertou os olhos raiados de sangue.
— Está, Miss Carter. Prazer em vê-la com saúde.
Isabel está acabando de lavar os pratos.
— Este — anunciou Rosemary, voltando-se para os seus convidados — é o antigo vigia noturno do castelo. Anthony Lee. Já lhe falei a respeito dele Mrs. Sanders.
— Oh, sim! — murmurou a americana. — Claro! como vai, Lee?
O corcunda não demonstrou grande cordialidade.
— A senhora veio ver o castelo, madame?
— Sim. Estou disposta a comprá-lo.
— Faz bem — ruminou o homem, fugindo com os olhos. — É preciso que alguém o compre, e lhe dê uma limpeza completa. Aqui está Isabel.
A ex-governanta dos Fraser era alta, magra e: vestia-se inteiramente de preto. Seu rosto assemelhava-se a uma máscara de cinza.
— Boa tarde, miss Carter. Fez boa viagem? Ela surgira, na porta, tão silenciosamente que Samantha teve um sobressalto. Rosemary sorriu friamente.
— Como vai, Isabel? Trouxe comigo Mrs Sanders e sua filha. Elas querem visitar o castelo. É muito possível que o comprem.
— Isso é ótimo — disse Isabel Lee, sem mover um músculo da face. — Depois da venda da casa, suponho que eu receba uma indenização e...
— Claro — disse Rosemary. — Depois da venda, acertarei todas as contas com você.
Isabel assentiu gravemente e virou-se para o marido.
— Vai buscar as chaves, Lee. Tu sabes onde elas estão. Vamos mostrar o castelo a esta senhora. Entendeste?
O corcunda balançou a cabeça e desapareceu no interior do bangalô. Cinco minutos depois, o grupo acabou de subir a vereda e desembocou na escadaria principal do castelo. Mrs. Sanders ergueu outra vez os olhos e contemplou a grande porta de carvalho, crave-jada de cobre, e as janelas quadradas (como grades) que deviam pertencer ao Great Hall.
— Impressionante — repetiu, em voz baixa, como se falasse consigo mesma.
O corcunda tinha dado as chaves à mulher e atrasara-se na subida, arrastando a perna quebrada; Isabel assumiu a liderança da expedição, subiu as escadas e foi abrir a grande porta do hall. Quando as dobradiças rangeram, um cheiro de mofo veio até as narinas de Mrs Sanders.
— Há muito tempo que não entram aqui? — perguntou ela, franzindo o cenho.
— Três anos — respondeu Isabel. — Desde que os patrões morreram. Às vezes, eu venho tirar um pouco de pó, mas ninguém pode fazer uma limpeza perfeita. É tudo muito grande. E muito triste também.
Fez um gesto, franqueando a entrada. Não havia luzes, lá dentro. Mrs. Sanders, Samantha, Robert e Rosemary entraram para o hall às escuras e aguardaram, sem se moverem. Isabel também entrou e apanhou um candelabro, em cima de uma mesinha coberta por um pano branco, acendendo as seis velas que o decoravam. O cheiro de mofo tornava a cena ainda mais medieval.
— Não há luz elétrica — explicou a ex-governanta. —Tínhamos um dínamo, mas estragou-se, com o tempo; não sei se ainda pode funcionar.
Está aqui, no Great Hall, temos, até, meia dúzia deles. A questão é acostumar a vista.
Dizendo isto, avançou pelo amplo salão e acendeu outras velas, entaladas em novos candelabros de bronze, iluminando razoavelmente o ambiente.
Assim mesmo tudo era triste e sombrio, naquele casarão desabitado. Todos os móveis jaziam envoltos em capas brancas, cobertas de poeira, como estranhos fantasmas adormecidos nas mais incríveis posições. Isabel ergueu o candelabro, para clarear melhor o aposento.
— Está tudo conforme estava, há três anos, quando Miss Carter viajou para o Oriente. Como lhes disse, nós quase não entramos aqui...
Todos olharam ao redor, impressionados. Mrs Sanders adiantou-se, em silêncio, e ergueu a ponta de um dos panos brancos. Por baixo, havia uma mesa de madeira, escura e pesada.
— Móveis coloniais, se não me engano...
— Sim — disse Rosemary. — São os melhores.
Junto da porta, ainda aberta para a paisagem, Samantha agarrou na mão de Robert.
— Veja! O céu, de repente, escureceu!
— Já vinha escurecendo — retrucou o rapaz. Parece que, agora, vai chover de verdade.
De qualquer maneira — volveu a garota, sorrindo — Aqui dentro não chove. E eu adoro o barulhinho da chuva batendo nas vidraças...
O jovem advogado já não a ouvia. Estava examinando, com o olhar levemente preocupado, o aspecto fantasmagórico do Great Hall. Aqueles móveis amortalhados em panos brancos davam à sala a aparência desagradável de um necrotério.
— Está tudo precisando de uma boa faxina — continuou Isabel, dirigindo-se a Mrs. Sanders. — Eu e meu marido trataremos disso. Se não me engano, há uma vassoura e um espanador no poço das escadas...
Olhou para a porta e ergueu a voz:
— Lee? Podes entrar, homem!
Depois de uma pausa, o corcunda apareceu na abertura da porta, olhando receosamente ao redor.
Sua voz estava abafada pelo pânico:
— Eu disse que não queria...
— Deixe de ser estúpido! — atalhou a ex-governanta. — Miss Carter mandou limpar os aposentos do Leste! Depois de vender o castelo, nós poderemos ir embora para Edimburgh! Compreende?
— Embora para Edimburgh! Quero ir embora para bem longe daqui!
— Vai buscar a vassoura e o espanador — ordenou Isabel. — No poço das escadas. Vamos fazer uma boa faxina no castelo, para que Mrs Sanders tenha uma boa impressão da propriedade
Lee hesitou, olhando medrosamente para a escuridão da arcada, à direita do Great Hall.
— Temos outra vassoura lá em casa — disse ele, depois. — Vou buscar num instante. A outra vassoura é melhor.
E saiu, capengando, pela entrada principal. A porta gemeu nos gonzos e fechou-se vagarosamente atrás dele. Rosemary não pôde evitar um pequeno sobressalto, ao ouvir o baque. Sempre se assustava, cada vez que uma porta batia. Mas, logo, sorriu e encarou a ex-governanta.
— Seu marido sempre foi um homem esquisito, Isabel, mas eu o achei ainda mais diferente do que era.
Que aconteceu com ele, neste três anos em que estive fora?
— A senhora ainda estava aqui quando ele ficou aleijado. Lee sofreu aquela queda, em Perth, e quebrou a espinha. Também quebrou a perna. A senhora deve se lembrar disso, Miss Carter.
— Não me refiro à corcunda, nem à perna. Ele está diferente. Seu espírito parece confuso. Dir-se-ia que ficou afetado das faculdades mentais.
— Por favor! —gemeu Isabel. —Não falemos nisso, Miss Carter! por todos os motivos, é melhor não falarmos nisso.
— Falemos, sim — obtemperou a outra, secamente. — Quero saber! Por que ele está com medo?
— Bem... Lee viu alguma coisa, neste castelo, faz dois anos... Não soube explicar direito, mas deve ter sido uma coisa horrível, pavorosa. Desde esse dia, ficou mais maluco do que antes. A senhorita sabe que meu marido nunca foi muito forte da cabeça.
— Que tolice! — rosnou Rosemary. — Que é que ele podia ter visto, numa casa abandonada?
Aqui nem sequer existem ratos!
— Também acho uma tolice — retrucou Isabel, com a voz grave. — Quem não deve, não teme!
Caiu um grande silêncio sobre o hall, iluminado pelo resplendor amarelo e trêmulo das velas. Depois, Mrs. Sanders ergueu a voz nervosa:
— Escutem!
Um calafrio percorreu a espinha de Samantha, fazendo com que ela apertasse com mais força a mão de Robert.
Que foi? — perguntou o rapaz.
Mrs. Sanders olhava, de soslaio, para o rosto pálido de Rosemary Carter.
— Ouvi qualquer coisa... estranha! Parecia... um gemido!
— Um gemido? — esganiçou Samantha. — Onde, mamãe?
— Não sei! Em qualquer parte do hall! Deve ser impressão.
Na verdade, ela ainda não ouvira nada. Aquilo fazia parte dos seus planos.
— Claro que é impressão — rosnou Rosemary, apertando os olhos desconfiados. — Não há ninguém nesta casa. Vamos até os Aposentos Leste?
Dê-me um candelabro, Isabel. Eu irei na frente.
Conheço o caminho tão bem quanto você.
A voz firme e um pouco sarcástica da antiga preceptora aliviou a tensão. O grupo encaminhou-se para a arcada. Mas, no meio do caminho, Samantha voltou a apertar fortemente a mão de Robert. Dessa vez, foi ela quem soltou um gemido. Todo os olhares se voltaram para seu rosto.
— Que sensação estranha! — exclamou a garota. — Vocês não estão sentindo?
— O quê? — perguntou Robert, devolvendo-lhe o aperto na mão.
— Não sei... não estão sentindo frio? Uma pausa. O rapaz forçou um sorriso.
— Sim. Também sinto. A tarde esfriou bastante.
— Vamos — acudiu Rosemary. — Vamos conhecer o resto do castelo! Não podemos ficar a tarde toda nesta agonia!
Começava a ficar um pouco irritada. Mrs. Sanders acenou, em silêncio, recomeçou a marcha.
Mas Samantha não deu mais um passo. Já estavam quase sob a arcada e do outro lado, viam-se apenas trevas.
— A senhorita não vem? — perguntou Rosemary, aborrecida.
Samantha ensaiou um sorriso envergonhado.
— Não. Eu... eu vou ficar aqui, em companhia de Robert. Perdi todo interesse em conhecer o resto do castelo. Afinal, é a mamãe quem vai comprá-lo e não eu.
Rosemary encolheu os ombros e sorriu friamente para Mrs Sanders. Estava também sorrindo, sem vontade. Em silêncio, o grupo atravessou a arcada e embrenhou-se na escuridão dos Aposentos do Leste.
Samantha puxou Robert pela mão e foi abrir uma das amplas janelas do hall. Afastou os reposteiro de veludo e escancarou as duas folhas de madeira, recebendo no rosto o bafo úmido, mas perfumado, do vento que percorria o litoral. As grades de ferro da janela, oxidadas, pareciam barrotes de uma prisão. Lá fora, a paisagem estendia-se, sombria, sob as nuvens negras e ameaçadoras. Não havia mais sinais do sol. A pouca luz natural que entrava no Hall não chegava para expulsar as trevas.
— Vai chover mesmo — comentou Robert, olhando para o céu. — Não escolhemos um dia muito bom para a visita.
A garota concordou com a cabeça. Depois, um pálido sorriso aflorou a seus lábios.
— É uma pena, não é? Não podemos conhecer todos os meandros do seu bosque de pinheiros...
Ele passou um braço em volta de sua cintura.
— Ainda sente frio?
Ela aconchegou-se a ele, deixando que seus corpos se colassem voluptuosamente.
— Não. Já passou. Foi como se uma lufada de vento gelado tivesse passado pelo salão, naquela hora! Senti o gelo até os ossos!
— Impressão — disse o rapaz, sorrindo. — Está tudo fechado. Há três anos que não mora ninguém neste castelo. Mas concordo em que o ambiente é depressivo. Principalmente, numa tarde escura como esta.
— Há três anos — murmurou Samantha, os olhos mortos pousados na paisagem. — Desde que os donos da casa morreram...
— Sim, desde que eles morreram.
Os olhos dos dois se encontraram. Seus corpos estavam colados como esparadrapo.
— Você conheceu a família Fraser, Bob? Ele sacudiu a cabeça.
— Não. só conheci Miss Carter, quando ela voltou do Oriente. Creio que já lhe disse isso. Eu não morava, ainda, em Perth, quando ocorreu a tragédia. Acabei de me formar no ano passado e vim para cá. Então, miss Carter me contratou como seu procurador. Ela herdou o castelo, logo depois da morte de seu patrão... ou pai adotivo, não sei bem. Ela me disse que era uma espécie de filha de criação do casal Fraser... e a preceptora de uma menina chamada Mildred. Na verdade, ela era amante do velho, o testamento de Mr. Fraser rezava que , no caso da morte de Mrs. Fraser, Miss Carter deveria herdar o castelo e administrar os seus bens até a maioridade de Mildred. Mas a menina também foi assassinada.
Samantha estremeceu.
— Não sei se mamãe ainda estará disposta a comprar a propriedade, depois de saber o que aconteceu. Não é muito agradável passar as férias num casarão medieval, onde cometeram crimes tão pavorosos!
— Tem razão. — E os lábios do rapaz roçaram levemente a face da garota. — Não é muito agradável. Principalmente, sabendo que os criminosos ainda não foram descobertos.
Samantha não conhecia esse detalhe. Virou subitamente o rosto.
— Como? A polícia não prendeu os culpados?
— Não —disse Robert, beijando-lhe nos lábios. — Até hoje, ninguém foi capaz de encontrá-los.
Ela retribuiu apaixonadamente o beijo. Seu corpo começou a mover-se cadenciadamente, como um pêndulo. O rapaz aperto-a nos braços.
— Querida!
— Devagar — suspirou ela, cerrando os olhos.
— Está me machucando! E mamãe pode entrar a qualquer momento... Vamos sair um pouco?
Ele olhou ao redor, para o hall sombrio e também soltou um suspiro.
— Sim. Há um caramanchão lá fora, no pátio.
— Não! Não quero...
— Por favor, Samantha!
— Está bem. Mas só um pouquinho. Não podemos perder a cabeça!
Ele sorriu, enquanto sua mão a acariciava de alto a baixo e puxou-a delicadamente para a porta principal. Samantha deixou-se levar, de olhos quase fechados, entregue à volúpia do amor. Robert largou-a, por um momento, e acionou a maçaneta da porta. Não funcionava. Examinou a fechadura e constatou que a lingüeta estava corrida.
— Que foi? — perguntou Samantha, ao vê-lo fazer um gesto de contrariedade.
— Engraçado... A porta emperrou. Não quer abrir. E a chave ficou do lado de fora. Temos que esperar a volta do marido da governanta...
A garota também se atirou contra a porta e tentou, inutilmente, girar a maçaneta. Depois, pálida de morte, encarou o rapaz. E, pelos seus olhares apreensivos, via-se que a porta fechada tinha acabado com a volúpia do amor que os unia. O medo falava mais forte.
O pequeno grupo, com Rosemary à frente, atravessou o corredor dos Aposentos do Leste e entrou pela porta direita, logo depois do poço das escadas. A luz das seis velas do candelabro que a proprietária do castelo empunhava, afugentou as trevas, mas não pôde evitar a dança fantástica das sombras, nas paredes de pedra. Isabel adiantou-se e entrou no quarto quase ao mesmo tempo que a patroa. Era uma alcova confortável, mobiliada com uma cama de casal, um armário e uma penteadeira, mas todos os móveis estavam cobertos por capas de linho branco. O cheiro de mofo, peculiar a uma casa fechada por muito tempo, persistia em todos os cantos.
A governanta acendeu outro candelabro de seis velas que se encontrava em cima de uma mesinha de cabeceira e ergueu-o acima da cabeça.
Todas as janelas têm grades — explicou. — Por isso, os ladrões não podem entrar por aqui. É muito seguro. Os estranhos só poderiam entrar neste castelo se alguém lhes abrisse a porta...
Ninguém fez comentários. Ela atravessou o quarto e abriu a janela, deixando que o pálido resplendor do dia penetrasse no aposento. Ainda assim, a luz dos candelabros era mais potente do que a do sol, encoberto pelas nuvens escuras e ameaçadoras.
— Há mais dois quarto iguais a este — disse Rosemary, pousando o candelabro em cima da penteadeira. — Alguns ainda com roupa de cama e tudo o mais. Também há toalhas no banheiro, lá embaixo. E nunca falta água.
Mrs. Sanders olhava ao redor, com ar de profundo respeito. Quando voltou a falar, sua voz estava represada pelo temor:
— Foi neste quarto...?
— Não — disse a ex-preceptora, apressadamente. — Este era o meu quarto.
— Com cama de casal?
Havia uma ponta de sarcasmo na sua voz.
— Sempre gostei de dormir à vontade — replicou a outra, friamente.
— Sim, compreendo. — Mrs Sanders engoliu em seco. — E onde foi...?
"Como todas as mulheres — pensou Rosemary - ela tem a curiosidade mórbida de saber e ver tudo com detalhes..."
— Do outro lado do corredor — respondeu em voz alta. — As portas estão fechadas e Lee não trouxe as chaves. Mais tarde, se a senhora adquirir o castelo... Ou faz questão de ver os locais?
— Oh, não! — gemeu a americana. — Não faço questão nenhuma! Se eu comprar a propriedade, terei muito tempo para visitar esses quartos. Mas está claro que não dormirei em nenhum deles!
— Aqueles dois quartos — acrescentou Isabel, com voz soturna — também nunca mais foram usados. Como viram, eu e meu marido moramos fora do castelo. Há dois anos que nos mudamos para aquele bangalô. As dependências da barbacã também estão vazias.
Mrs. Sanders acenou.
— É uma casa muito confortável, sem dúvida. Refiro-me aos Aposentos do Leste. É uma casa muito espaçosa, mas... acho-a um pouco sombria.
Isabel relanceou disfarçadamente os olhos pelo rosto cinzento de Rosemary. A luz das velas punha sombras surrealistas na alcova da solteirona.
— Assim — concordou esta. — O castelo parece sombrio porque não tem luz elétrica e está desabitado. Esses panos, sobre os móveis, também lhe dão uma aparência de museu. Mas, com dia claro... ou quando a senhora mandar consertar o gerador...
Foi interrompida por passos leves que se aproximavam. As três mulheres olharam, apreensivas, para a porta. A luz bruxuleante de outro candelabro penetrou no quarto antes de Robert e Samantha. Os dois jovens entraram, de mãos dadas, o rosto tenso e os olhos inquietos.
— Mamãe? — esganiçou a garota. — Como é comprido, esse corredor! Pensei que não ia mais encontrar vocês!
Mrs. Sanders sorriu, aliviada.
— Que tolice, Samantha! Veja este quarto. Talvez seja o nosso, se ficarmos com o castelo. Nesse caso, eu mandaria pôr outra ema.
Mas Samantha nem olhou ao redor; outra coisa mais séria a preocupava. Virou-se para Rosemary.
— Acontece uma coisa estranha, Miss Carter.
A porta da frente fechou-se sozinha! Nem eu nem Bob conseguimos abri-la!
— Eu devia esperar — murmurou Isabel Lee para si mesma. — Sim, eu devia esperar!
Robert, que estava pousando o candelabro em cima da penteadeira voltou-se e encarou-a.
— Como disse?
— Nada. — A governanta teve um sobressalto.
— Não estou dizendo nada! Às vezes, também falo sozinha...
Rosemary voltou a apanhar o candelabro, em cima da penteadeira. Sua face de pedra estava torcida pela irritação.
— Não compreendo! As portas não se fecham sozinhas! A chave, pelo menos! Um golpe de vento pode fechar uma porta, mas... Deve haver outra explicação para isso! Vamos até lá! Quero ver com meus próprios olhos!
E saiu, pisando duro, para o corredor. Isabel e Robert foram atrás dela, mas Samantha ficou no quarto, em companhia da mãe. Mrs. Sanders já estava levantando o pano da cama, para ver a qualidade do colchão. Agora, apenas um candelabro iluminava a alcova.
— Colchão barato — criticou a americana. — Mas, também, não podia ser um colchão de molas...
Não havia colchão de molas na Idade Média...
— Mamãe? — sussurrou Samantha, segurando-a por um braço. — A senhora está decidida, mesmo a comprar esta casa?
Mrs. Sanders olhou para ela com um sorriso nas pupilas azuis. Sua filha não sabia de nada; o segredo era só dela e de Mr. Jim Jones...
— Por que, Samantha? Por que não devo comprar o castelo?
A garota encolheu os ombros.
— Não sei... Depois que aqui entrei, senti uma sensação estranha! Uma espécie de... de rejeição!
Entende? Não sei explicar melhor!
— Entendo, querida. Eu também senti uma coisa parecida. Devem ser os nossos nervos. A atmosfera está muito carregada. E você sempre foi muito receptiva. Quanto a mim...
Samantha acenou gravemente.
— Pois é. A senhora, melhor do que ninguém, pode dizer se há, neste castelo, alguma coisa sobrenatural.
A verdade é que Mrs. Sanders era médium e durante grande parte de sua vida, dedicara-se a estudos espiritualistas. Ela exalou um suspiro.
— Há muito tempo que eu não pratico, mas... sim, talvez seja melhor procurarmos outra casa para as nossas férias. Desisto de montar um hotel sofisticado na Escócia. Este castelo tem qualquer coisa que não me agrada! Mas não diga nada a Miss Carter, por enquanto. É preciso que passemos mais algumas horas aqui. Não lhe diga, ainda, que desistimos da compra.
A garota olhou para ela com o sobrolho franzido.
— Que é que a senhora está planejando fazer?
— Você verá — disse Mrs.Sanders alegremente.
— Você verá minha filha. Só lhe peço que não se assuste, aconteça o que acontecer. E agora — concluiu, apanhando o candelabro em cima da penteadeira.
- Vamos ao encontro dos outros. Apesar de saber das coisas, também não me sinto muito tranqüila nesta casa onde entrou o demônio!
E as duas saíram do quarto, sem olhar para trás.
Se tivessem olhado, poderiam ter visto a coberta branca da cama mover-se, subindo e descendo duas vezes, como se o colchão estivesse respirando. Devia ser simples jogo de luzes, a claridade fosca da janela facilitava as ilusões de óptica, pois não havia ninguém deitado naquela cama.
Enquanto isso, no Great Hall, junto à porta principal do castelo, Isabel experimentava a fechadura, sem conseguir abri-la. Rosemary e Robert observavam-na, preocupados. Aquilo era inexplicável.
— Está fechada a chave — anunciou a governanta, desistindo.— Será que foi meu marido, quando saiu? Lembro-me de que a porta se fechou, atrás dele. Mas não podia ter-se fechado a chave!
— Nenhuma porta se fecha sozinha, a chave!
Rosemary adiantou-se e também forçou a maçaneta. Inutilmente. — Não abre! Maldita fechadura! Com certeza, a lingüeta correu, com a batida da porta! E a chave ficou do outro lado!
Nisso, todos ouviram distintamente um rangido, no interior da fechadura, seguido por três batidinhas, na grande porta de carvalho. Eles se entreolharam, atônitos. Afinal, Robert pigarreou e ergueu a voz:
— Quem é?
— Sou eu — respondeu uma voz soturna, do outro lado da porta.— A fechadura não quer abrir!
Era o corcunda. Isabel adiantou-se e colou a boca ao buraco da fechadura:
— Lee? A chave não está na fechadura?
Do lado de fora do castelo, no alpendre, Lee agachou-se, apoiando a mão esquerda no joelho.
Trazia uma vassoura, um espanador e duas velas apagadas na mão direita.
— Sim — respondeu, falando através das fendas da porta. — A chave está na fechadura. Mas não roda. Já tentei e não consegui. A chave não se mexe. Eu trouxe as velas, que estavam na gaveta da cômoda.
A voz nervosa de Isabel voltou a atravessar a fechadura da porta:
Que velas, homem? Não precisamos de velas!
Vê se abre a porta de uma vez! Estamos fechados aqui dentro!
Ele meneou a cabeça, desconsolado.
— Não posso! Já tentei e não consegui! A chave não roda! Emperrou, por falta de óleo. Range, range, mas não roda! E alguém me disse para trazer as velas. Ouvi perfeitamente uma voz me dizer:
"Traz as velas, Lee". Alguém me sussurrou isso, no ouvido, e, então, eu trouxe as duas velas que estavam na gaveta da cômoda. As almas gostam que a gente, uma vez por semana, acenda uma velazinha para elas...
— Está bem — volveu a voz da governanta, impaciente. — Trouxeste as velas. Mas, agora, vê se abres a porta! Senão, vai chamar alguém em Perth! Um serralheiro, a polícia, qualquer pessoa!
Tens que fazer alguma coisa, Lee!
O corcunda depositou a vassoura e o espanador no lajedo, mas ficou com as velas na mão.
— Vou esperar — anunciou, sorrindo para a chave, pendurada na fechadura.
— Se a porta se trancou sozinha, também tem que abrir sozinha! Vou esperar a hora que Deus mandar. E, depois, quando receber o sinal, também acenderei as velas. As almas gostam de luz!
Dito isto, sentou-se , no chão, de pernas cruzadas, pôs as velas no colo e começou a cantarolar uma velha canção de sua terra. Lee tinha nascido em Oykell Briddge, nos Highlands do Nordeste.
Do lado de dentro da porta, Isabel fez um gesto de irritação.
— Meu marido é maluco! Agora está cantando! Não podemos contar com ele!
— Não há outra saída? — perguntou Rosemary, mordendo os lábios.
Também ela não se sentia muito senhora de si:
— A senhorita bem sabe que não, Miss Carter.
— Isabel olhava para ela com uma expressão curiosa. — Todas as janelas têm grades. E ninguém consegue abrir aquela porta que dá para a antiga ponte levadiça. O único jeito de sair daqui, é pular de cima da casa de Murray ou da Torre Norte. Mas são oito a doze metros de altura!
Nesse momento, Mrs. Sanders e a filha entraram no hall, vindas dos Aposentos do Leste. Caminhavam cautelosamente, de mãos dadas.
— Oh, não! — gemeu Samantha. — Vamos ficar trancadas aqui dentro?
Robert correu ao encontro dela e agarrou-lhe as mãozinhas geladas.
— Não se assuste, Samantha. São apenas quatro horas da tarde. Temos muito tempo pela frente.
— Mas daqui a pouco — disse Isabel com voz aguda — Será noite! O dia está muito escuro! Nunca vi um dia tão escuro assim, no Firth of Tay! Daqui a pouco já será noite, estou lhe dizendo!
— E daí? — contrapôs Robert, impaciente. — Que importa que seja dia ou noite?
A governanta encarou-o com os olhos dilatados pelo pavor.
— Temos que sair, Mr. Gaynor! Não podemos ficar!
Mrs.Sanders parecia a mais calma de todos. E olhava de esguelha, para o rosto cinzento de Rosemary-
— Ora essa! Por que não podemos ficar?
— Por quê? — E Isabel baixou a voz, transformando-a num sibilo. — Perguntem ao Lee! Perguntem ao meu marido por que foi que ele perdeu o juízo! Perguntem-lhe o que foi que ele viu, depois da meia-noite!
— Que foi? — insistiu Robert, sério. — Você não quer dizer...?
A governanta não respondeu. Foi a voz calma e fria de Rosemary que soou em seguida:
— Superstições! Balelas! Não acredito em fantasma! Nunca acreditei nessas bobagens!
— Pois devia acreditar — esganiçou Isabel, fazendo o sinal da cruz. — Devia acreditar, Miss Carter! Este castelo está enfeitiçado! Foi amaldiçoado, depois da morte horrível dos patrões! Lee sabe de tudo! Lee viu tudo! Depois da meia-noite, os espíritos dos mortos tomam conta de todas as dependências do castelo! É depois da meia-noite que os espíritos baixam no local, onde foram trucidados seus corpos, e começam a exigir a punição dos culpados! Nenhum espírito alcança a paz enquanto o seu assassino permanecer impune! Lee sabe porque viu! Deus também sabe que não foi meu marido quem matou aquelas pobres criaturas!
Um trovão estalou no espaço e, depois, uma chuva forte e impetuosa começou a crepitar lá fora, inundando a paisagem de lágrimas. Encolhido contra a porta principal, o corcunda continuava a cantar lamentosamente, à espera do milagre. Ele sabia que a chave da porta, a chave pendurada por cima de sua cabeça giraria sozinha na fechadura, quando fosse dado o sinal. Ele sabia de muitas coisas que as outras pessoas ignoravam.
Porque ele tinha visto os espíritos.
De repente, Samantha rompeu num choro convulsivo e atirou-se contra a porta, pondo-se a esmurrar desesperadamente as almofadas de carvalho.
— Abram! Quero sair daqui! Abram essa porta!
Mrs.Sanders e Robert agarraram-na pelos braços e sacudiram-na, procurando acalmá-la. Todos estavam nervosos, preocupados, e um ataque histérico daqueles só poderia piorar a situação. Afinal, depois de ouvir o ímpeto dos soluços, olhou para Robert com expressão de pavor.
— Faça alguma coisa, Bob! Não posso ficar trancada aqui dentro! Eu... eu sofro de claustrofobia!
O rapaz suspirou.
— Calma. Não perca a cabeça. Vou tentar tirar os gonzos da porta. É a única alternativa.
— Boa idéia — aprovou Rosemary, com voz seca. — Faça isso, Robert. E o mais depressa possível. Também estou começando a sofrer de claustrofobia...
Ele despiu o paletó e arregaçou as mangas da camisa. Mas, quando procurou alguma coisa, no hall, que servisse de alicate ou chave de parafusos, não encontrou nada.
— Por estranho que pareça — informou Isabel Lee — não há nenhuma ferramenta no castelo. E a porta é resistente demais para ser demolida com pancadas. "Eles" sabem o que fazem!
Robert contentou-se com o seu canivete. E, enquanto as mulheres se sentavam nas cadeiras do Great Hall, começou a raspar pacientemente os caixilhos da grade da porta de carvalho, junto aos gonzos. Lá fora, a chuva caía pesadamente, como um dilúvio, enquanto relâmpagos e trovões abalavam a paisagem. Já não se ouvia o cântico do corcunda.
Lee devia ter pegado no sono.
O relógio de pêndulo, a esquerda do hall, bateu as cinco e as seis horas, sem que Robert conseguisse; levar avante o seu intento. Apesar de haver escalavrado a madeira, não pode retirar os parafusos que sujeitavam as placas de ferro dos gonzos. Também não pôde arrebentar a madeira, em torno da fechadura, para soltar o encaixe da lingüeta. Às sete horas, desistiu das tentativas e sentou-se, pesadamente, numa poltrona. Estava exausto e coberto de suor.
— Não consigo! Os gonzos estão muito enferrujados! E a madeira é muito dura! A única coisa que consegui foi quebrar o canivete!
— Descanse um pouco, Mr. Gaynor — disse Isabel, com voz grave. — Vou-lhe servir um pouco de chá.
A governanta tinha rebuscado os armários da cozinha e encontrara uma lata de chá verde, lacrada, milagrosamente respeitada pelo mofo. O chá foi servido às sete horas, sem nenhum biscoito por acompanhamento. Sentaram-se, os cinco, em volta da grande mesa do Great Hall e partilharam um bule de água quente, servida em velhas tigelas de porcelana. De qualquer maneira, a bebida os reconfortou. Já não sentiam tanto frio. E, ao terminar de ingerir a infusão dourada, também estavam mais calmos.
— Tive outra idéia — disse Robert, levantando-se. — Vou tentar abrir a porta do porão que dá para a ponte levadiça.
A governanta obtemperou que aquela passagem estava impedida há séculos, mas o rapaz queria fazer uma experiência. Armou-se com o ferro da lareira, único instrumento contundente que encontrou no hall e dispôs-se a descer ao subterrâneo.
— Alguém quer me acompanhar, para segurar o candelabro?
Nenhuma das mulheres respondeu. Sentiam-se acossadas pela dúvida, prisioneiras do medo. Robert sorriu e deu de ombros.
— Compreendo... não deve ser, realmente, uma viagem agradável... Irei sozinho.
E agarrou um dos candelabros da mesa.
— Espere! — exclamou Samantha, acabando de beber apressadamente a sua tigela de chá. — Vou com você! Prefiro morrer de susto em sua companhia!
Ele voltou a sorrir, dessa vez de puro deleite, e entregou-lhe o candelabro. De braço dado, atravessaram o hall, passaram por baixo da arcada e enfrentaram o poço negro das escadas. Os degraus de pedra, puídos pelo uso, desciam para a escuridão.
Lá de baixo vinha um bafo gélido e malcheiroso.
Mofo — explicou o rapaz, ao ver Samantha fazer uma careta. — Tudo, nesta casa, cheira a mofo. Mas o mofo não morder ninguém...
Apesar de levar o candelabro, ela deixou-se ficar para trás. Cautelosamente, Robert começou a descer, apalpando os degraus com os pés. Na mão direita empunhava o atiçador da lareira, como se fosse uma espada. Samantha foi atrás dele, pousando uma das mãos no seu ombro. A luz das velas iluminava parcamente a escada, afugentando as trevas apenas o bastante para que não pisassem em falso. Mas as sombras ameaçadoras que fugiam do fundo das escadas começavam a se aglomerar, outra vez, atrás deles.
Eram cerca de trinta degraus. Desembocaram num corredor largo e comprido, imerso no silêncio e na escuridão. Gotinhas de água escorriam pelas paredes de pedra, sem revestimento. À direita, viam-se duas portas, dando para os banheiros; à esquerda, outro corredor, que devia comunicar com os calabouços.
— Em frente — sussurrou Robert. — Ali adiante, o corredor deve virar para a direita. Estamos exatamente do salão principal.
Até ali não vinha o fragor da tempestade. Caminharam pelas lajes molhadas, pé ante pé, procurando varar a cortina de trevas. Quatro olhos, muito abertos, luzindo à claridade bruxuleante das velas.
Assim chegaram à esquina do corredor. Aí houve um contratempo. Inesperadamente, um sopro de vento gelado apagou as seis velas do candelabro que Samantha empunhava. A garota soltou um gritinho.
— Calma— sussurrou Robert, apertando-lhe a mão, que ela pousara no seu ombro. — Há uma corrente de ar neste ponto. Isso é ótimo, não é?
Quer dizer que deve haver uma saída aberta! Vou acender, outra vez, o candelabro.
Riscou um fósforo e protegeu a chama com a cova da mão. Daí a pouco, as seis velas estavam novamente acesas, as luzinhas dançando sob o bafo do vento. Samantha abaixou a candelabro, para proteger as chamas com seu próprio corpo. E recomeçaram a marcha, vagarosamente, rumo à extremidade de novo corredor subterrâneo. Pouco a pouco, a luz das velas se estabilizou, livre da influência da corrente de ar.
— Agora — sussurrou Robert — já estamos debaixo do pátio da barbacã. E ali está a porta! Ali, no fundo do corredor!
Não viram nada de extraordinário. O corredor terminava numa larga porta de mogno, também chapeada de metal, defendida por quatro grossos sarrafos, cruzados, pregados na madeira com tachas de grande tamanho. Samantha pousou o candelabro no chão e foi ajudar o companheiro. O rapaz examinou a porta, avaliando a resistência da madeira, e atacou os sarrafos com golpes de atiçador.
Era como pretender desmantelar uma fortaleza com uma picareta. O trabalho de demolição podia durar um mês.
É inútil! — gemeu Robert, depois de uma hora de vãs tentativas. — Os sarrafos estão muito bem pregados! E, se eu tentar cortá-los, com o que resta do meu canivete, posso ficar aqui a noite inteira!
— Que horas são? — perguntou Samantha, num fio de voz.
Ele olhou para o relógio de pulso, à luz das velas.
— Oito e cinco. Creio que o melhor é insistir na porta lá de cima. Lee precisa ser convencido a ir buscar alguém! Precisamos, apenas, de um serralheiro.
A garota tinha os olhos brilhantes, as narinas dilatadas e os lábios apertados. Sua mão, muito branca, pousou no braço do rapaz.
— Bob?
— Sim?
— Eu... eu gosto de você!
Ele se voltou e viu-lhe a expressão de fêmea ardente.
— E eu de você, meu bem. Foi amor à primeira vista, lembra-se? Você... não está com medo? Já lhe passou o nervoso?
— Ainda tenho medo. Mas com você junto de mim, estou disposta a tudo! A tudo, entendeu? Beije-me, querido! Na boca!
Ele atraiu-a para si e beijou-a violentamente nos lábios úmidos. A respiração ofegante dos dois se misturou num só hálito ardente. Galvanizados pelos mesmos pensamentos, olharam ao redor, em busca de um lugar onde pudessem se deitar. A mão do rapaz acariciava voluptuosamente o corpo da garota, fazendo-a suspirar de prazer.
— Onde? - murmurou ela, impaciente. — Não quero sujar o vestido nesse chão imundo! Não haverá Um colchão aqui embaixo? Não agüento mais, Bob! Quero você! Nada mais importa senão isso!
Quero você! Ele a encostou nervosamente à parede molhada e cobriu-a com seu corpo retesado pelo desejo.
Abraçaram-se com violência, com desespero. No mesmo momento, todas as velas se apagaram, cego de ansiedade, Robert ainda queria continuar, mas Samantha encolheu-se, recusando o assalto.
— Não! Tenho medo! Está escuro demais! E eu Quero ver... quero ver você!
Estava trêmula e gelada. Era impossível conseguir qualquer coisa naquelas circunstâncias. O rapaz também desanimou.
— Tá certo! Não adianta, meu bem! Temos que esperar! Há qualquer coisa malévola, neste castelo, que impede o amor! Temos que esperar outra oportunidade!
Tristemente, ela ajeitou a saia. Na escuridão, ele ouviu apenas o farfalhar dos tecidos que o separavam da suprema ventura. Os lábios trêmulos da garota procuraram os deles, roçando-lhe uma orelha, o nariz e a boca. Trocaram um beijo rápido e amargo; depois, ele voltou a riscar um fósforo, acendendo as velas. A frustração, depois de tê-lo irritado, tornara-o triste e abatido.
Vamos subir, Samantha. Os outros devem estar preocupados, à nossa espera. Ficará para outra ocasião.
Regressaram vagarosamente pelo corredor de pedra, seguidos pelas sombras ameaçadoras, e subiram os degraus do poço das escadas. Os outros prisioneiros do medo continuavam no Great Hall, sentados ao redor da mesa, ainda coberta pelo pano branco que; servia de toalha.
— Então? — perguntou Rosemary, impaciente.'
— Conseguiram?
— Nada! — Robert tirou o candelabro das mãos de Samantha e descansou-o em cima da mesa., — Desisti de tentar sair pela ponte levadiça. Temos que convencer Lee a chamar um serralheiro. Já passa das oitos horas e, daqui a pouco...
Calou-se, contrariado consigo mesmo. As mulheres se tinham posto de pé e entreolhavam-se com expressão de pavor.
— Meu Deus! — gemeu Samantha. — Será que temos de passar a noite aqui dentro? Este hall cada vez se torna mais estreito! É como se as paredes estivessem avançando e se fechando em cima de mim!
— Não de excite, querida — disse Mrs. Sanders, olhando de soslaio para Rosemary. — Não podemos perder a cabeça! Por enquanto, ainda não aconteceu nada de mais.
— É o que a senhora pensa — choramingou a garota. — Lá embaixo, no porão, as velas apagaram-se duas vezes!
A americana desviou os olhos para o rosto sério de Robert.
— Sim? E quem as teria soprado?
— Eu não fui — protestou o rapaz. — Havia uma corrente de ar no corredor do subterrâneo. Só não sei de onde vinha.
— Claro — escarneceu Mrs. Sanders. — Há sempre uma corrente de ar, nesses momentos. Quando eu era moça e bonita...
— Que tolice! — exclamou Rosemary, irritada.
— Tem que haver outra saída!
Isabel encarou-a com seus olhos de coruja.
— Não Miss Carter. A única saída é pela porta principal. E "eles" fecharam a porta. Temos que passar a noite aqui!
— Sim — acrescentou Mrs. Sanders. — Embora não seja nada agradável conviver com almas penadas...
Sensação geral de mal-estar. Ninguém percebeu que havia um acento de ironia nas palavras da americana. Depois de uma pausa, Rosemary soltou uma risada aguda, quase histérica.
— Tanto melhor! Por mim, estou tranqüila. Passaremos a noite aqui. Amanhã de manhã, meu chofer deve nos procurar. Eu combinei um encontro com ele esta noite, no hotel.
Lá fora, a chuva continuava a cair violentamente. Os trovões e os relâmpagos fustigavam a paisagem. E o vento sibilava nas arestas do castelo.
— Com esta tempestade— observou Robert — Não é muito provável que seu chofer se aventure a vir até o penhasco. Mas pode ser que, amanhã de manhã, a chuva tenha passado.
— Não! — gritou Samantha, abraçando-se à mãe. — Não quero ficar aqui! Esta casa é má!
Sinto que esta casa não presta! Não pode haver paz, nem amor, numa casa habitada pelo crime!
— Samantha! — ralhou Mrs. Sanders. — Que é isso? Você parece uma criança! Eu não lhe disse que, aconteça o que acontecer, você não deve ter medo?
Deus está conosco, minha filha! Não temos o que temer!
E olhou, com ar de desafio, para o rosto cinzento de Rosemary Carter. Mas a ex-preceptora não disse nada, engolfada noutros pensamentos.
— Só nos resta ter paciência — suspirou Robert, voltando a vestir o paletó. — Entretanto, vou ver se encontro alguma outra saída, pelo lado da capela.
Se não me engano, a capelinha tem uma porta que...
— Não! — gritou Samantha. Não vá! Não nos deixe sozinhas! É melhor ficarmos todos juntos!
E você é o único homem na casa!
— Não que ir comigo? — perguntou ele, lambendo os lábios.
Ela hesitou. Sentia arrepios na espinha. Mas seus olhos estavam marejados de lágrimas.
— Não, não posso! Esta casa é má! Não há lugar para o amor, nesta maldita!
E abraçou-se angustiadamente ao pescoço da mãe.
Mrs Sanders acariciou-lhe as costas, procurando acalmá-la, mas seus olhos desconfiados não se separavam de Robert.
— Mr. Gaynor — disse ela, afinal, com voz
seca,
— Peço-lhe que se componha, Mr. Gaynor! O senhor está desvairado!
Houve outra pausa de mal-estar. Confuso, o rapaz abotoou-se; depois, fez uma reverência e afastou-se, levando um dos candelabros do salão. Sua figura esbelta cruzou o Great Hall, da direita para a esquerda, e desapareceu pela porta da capela, que ficava ao lado das escadinhas que iam dar à casa de Murray.
— Não há outro remédio — suspirou Rosemary, virando-se para a governanta. — Arrume o meu antigo quarto, nos Aposentos do Leste. Mrs. Sanders e sua filha passarão a noite lá. Eu e você iremos para um dos dormitórios da barbacã. Mr. Robert pode ficar no outro.
Isabel encarou-a de frente.
— A senhorita não tem medo?
— Medo? De quê? Nunca tive medo, na minha vida!
Era verdade, Miss Rosemary Carter sempre fora bastante corajosa e decidida, até às últimas conseqüências.
— Miss Samantha tem razão — prosseguiu á governanta, com voz grave. Esta casa não presta!
Todo o castelo está enfeitiçado!
— Tolices! — E Rosemary cerrou ameaçadora-mente os punhos. — Ninguém me convencerá disso!
Não existem espíritos! O que existe é a sugestão, própria das pessoas ignorantes!
— Não sou muito ignorante — replicou Isabel, com firmeza. — Nem muito culta, nem muito ignorante.
Sou uma mulher igual às outras. Mas também ouvi as vozes!
Outra pausa. Nova onda de mal-estar.
— Você ouviu? — sussurrou Samantha, abraçada à mãe.
— Que vozes? — acudiu Rosemary, com a mesma expressão desafiadora.
A governanta tinha os olhos vidrados e os lábios trêmulos. Seu rosto foi se contorcendo, até se transformar numa máscara de pavor retrospectivo.
— As vozes deles, Miss Carter! As vozes de Mr. Fraser, de Mrs. Fraser e da menina! Sim, eu também as ouvi!
— Quando?
— Há dois anos. Depois que meu marido sofreu naquele abalo terrível. Lee foi internado num sanatório de Perth e eu fiquei sozinha, para tomar conta do castelo. A senhorita estava passeando pelo Oriente, então, numa noite de tempestade... numa noite igual a esta... precisei vir ao Great Hall apanhar uma vassoura, tudo estava deserto e silencioso. Mas, de repente, ri porta se fechou sozinha e eu ouvi... ouvi distintamente; as três vozes, soltando lamentos de cortar o coração! Gemiam e choravam... choravam e gemiam! Fiquei apavorada, Miss Carter, e fugi! Felizmente, a porta não tinha se fechado à chave e "eles" me deixaram sair. Os espíritos não tinham nada contra mim. Aquilo foi apenas um aviso. Um aviso do além, para que os crimes não fiquem sem castigo!
— Tolice! — gritou Rosemary, dando um soco na mesa.— Eles morreram! Mr. Fraser, Mrs. Fraser, Mildred... todos morreram! Foram assassinados por] uma quadrilha de ladrões! E as vozes dos mortos são enterradas com eles! Não acredito nessas bobeiras! O Demônio sabe que eu não acredito!
Coroando os seus gritos, um trovão mais forte ribombou no espaço e fez estremecer o velho casarão! As cortinas da janela do hall se estufaram, como se fossem por uma mão invisível. As outras mulheres se abraçaram, apavoradas, mas Rosemary manteve a mesma postura ereta, desafiadora, o rosto cinzento torcido num trejeito diabólico. Seria muito difícil assustar aquela mulher.
Era isso o que pensava Mrs. Sanders, enquanto alisava distraidamente os cabelos da filha. Seria muito difícil assustar aquela mulher... Talvez nem mesmo Mr. Jim Jones, com toda a sua experiência, conseguisse levar a bom termo a empreitada... com tudo, era preciso tentar. As vozes dos mortos deviam soar a qualquer momento.
A chuva continuava a cair sobre o Firth Of Tay, lavando a paisagem escura e deserta. Em cima do penhasco, amortalhada pelas lágrimas do céu, a silhueta cinzenta do castelo de Rockemburgh parecia querer furar as nuvens. Quem visse a enorme construção de pedra pela sua face oeste pensaria que ela continuava desabitada. Não havia luz em nenhuma janela. Mas, de repente, o pálido resplendor de um candelabro perpassou por uma das vidraças. Aquela janela, em forma de ogivas, pertencia à Saint Margaret Chapel, construída entre a barbacã e o Great Hall no ano de 1315, logo depois da vitória de Bannockburn. A capelinha, em estilo normando, tinha 36 metros quadrados; sua mobília resumia-se em um altar com a imagem de Santa Margarida e três filas de bancos de madeira. As cortinas das duas janelas estavam abertas, mostrando os grossos vitrais empoeirados.
Robert entrou pela porta do hall, deixando-a aberta e ergueu o candelabro acima da cabeça, para iluminar melhor o recinto. A luz das velas cintilou nos vidros coloridos das janelas e nos olhos de cristal da estatueta da Santa, que estava de pé, em cima do altar ornamentado com um pano bordado a ouro. A imagem de gesso também fora coberta com um pano, mas o vento devia tê-lo deslocado, pois a cabeça e o busto da estátua sobressaíam da mortalha empoeirada.
Não havia nenhuma saída na capela. As três paredes de pedra em frente e aos lados do altar eram lisas e iguais. Robert pousou o candelabro sobre oj altar, aos pés da imagem da Santa, e suspendeu uma| ponta do pano que cobria s armação de madeira. O altar não tinha nenhum nicho, nenhum buraco por onde se pudesse passar. Cautelosamente, o rapaz bateu em toda a superfície das paredes, esperando encontrar alguma passagem secreta, muito comum nos casarões do século XIV.
Não encontrou nada. Também não havia nenhum alçapão no solo. Então, foi experimentar as vidraças das janelas. Os vidros coloridos e sujos, quase opacos, eram bastante finos, mas, ainda que fossem quebrados, os caixilhos de ferro não permitiriam a passagem.
Robert postou-se no meio da capela e olhou ao redor, cocando a cabeça. Depois, suspendeu a vista para os ornamentos, em ziguezague, nas paredes. Seu olhar ansioso percorreu o teto, em busca de algum alçapão dissimulado no estuque.
Nada. Só lhe restava uma saída: a porta que dava para o barbacã. Foi até ela e experimentou o fecho.
Não estava trancada à chave. Porem, quando a abriu, teve que recuar precipitadamente. A chuva caía, como , uma cortina de vidrilhos. Um relâmpago iluminou a noite e um trovão ecoou no espaço.
Daquele lado, a casa de Murray não tinha cobertura e seria preciso atravessar um pátio desabrigado para atingir os dois quartos destinados à criadagem. De qualquer maneira, também não havia saída por ali. A barbacã ficava a oito metros de altura, sobre a beira do penhasco.
Robert voltou a fechar a porta expulsando a chuva que ameaçava invadir a capela e regressou ao meio do aposento. Ainda olhou ao redor, mas já sem esperança. Era inútil! Estava perdendo tempo! Eles tinham sido condenados a passar o resto da noite naquele castelo amaldiçoado!
Fez o sinal da cruz, ao passar em frente ao altar, foi apanhar o candelabro. Só então notou que havia um candeeiro de petróleo no canto esquerdo do altar. Por estranho que parecesse, o lampião ainda tinha metade do combustível. O rapaz riscou um fósforo e acendeu a tocha, inundando a capela de uma luz branca e fria. Depois, apanhou o candelabro e saiu pela porta do hall, fechando-a lentamente às suas costas. Sobre o altar, a chama do candeeiro tremeu e começou a diminuir. Logo que a porta se fechou de todo, a tocha do lampião apagou-se, fazendo com que as trevas voltassem a imperar no recinto. Somente os olhos de cristal da estatueta de Santa Margarida luziam estranhamente na escuridão...
As mulheres continuavam no Great Hall, sentadas ao redor da mesa. Não diziam nada, varadas de medo. Robert tentou alegrar o ambiente.
— Está tudo sossegado. Não encontrei nenhuma saída, na capela, mas também não encontrei motivos para preocupações. Estamos sob a proteção da imagem de Santa Margarida.
Ninguém disse nada. Ele tentou dar uma risadinha, mas não conseguiu. Rosemary fez um aceno para a governanta.
— Que está esperando, Isabel? Vá arrumar o quarto dos Aposentos do Leste, conforme determinei! Passaremos a noite aqui.
A governanta hesitou, mas acabou por apanhar! um dos candelabros e saiu silenciosamente pela arcada. Todos viram que ela agarrava, com a mão esquerda, um pequeno crucifixo de prata que usava pendurado ao pescoço.
O silêncio voltou a cair sobre o hall. Cada prisioneiro do medo discutia, consigo mesmo, a singular! situação. Apenas Mrs. Sanders parecia mais serena! Ela pensava em qual seria o primeiro sinal de Mr. Jim Jones...
Uma hora depois, o único quarto aberto dos Aposentos do Leste estava pronto para receber as novas hóspedes. Isabel encontrara lençóis e fronhas num armário do corredor e tornara o frio aposento mais ou menos habitável. Mrs. Sanders e Samantha foram para lá, enquanto Robert e Rosemary iam ver os dois quartos da casa de Murray, onde também esperavam passar a noite.
— Está tudo limpinho— afirmou Isabel, quando a americana e a filha entraram medrosamente na alcova que pertencera à preceptora da pequena Mildred. — As senhoras querem que lhes deixe uma moringa com água, e dois copos, em cima da mesinha? É sempre útil, não é?
— Sim — disse Mrs. Sanders, forçando um sorriso. — É sempre útil.
— Claro! — acrescentou Samantha, de olhos arregalados. — Não sairei daqui por nada deste mundo!
A governanta acenou e foi buscar a água. Ao regressar, Mrs. Sanders já tinha tirado os sapatos e sentara-se na beira da cama, ao lado da filha. Não fazia tenção de dormir cedo, pois queria estar presente quando Mr. Jim. Jones fizesse as suas demonstrações, mas sentia um peso invencível nas pálpebras. Era preciso lutar contra aquele sono inexplicável!
— Aqui está a água — disse Isabel, com voz opaca, pondo a moringa e os copos em cima da mesinha de cabeceira. — Agora, se me derem licença, vou arrumar os quartos da Casa de Murray.
Há um barbante pendurado ao lado da cama, que faz acionar uma sineta, na barbacã. Se precisarem de alguma coisa, durante a noite, puxem o barbante.
— Eu não vou me deitar— declarou Samantha, pondo-se de pé, pois nunca conseguirei dormir, numa casa como esta! Esta casa é má! Eu odeio esta maldita casa!
— Não tenha medo, Miss — retrucou Isabel, com a mesma voz pausada. — Os bons não devem ter medo das almas do outro mundo. Os inocentes nunca poderão ser castigados. Também há lógica no Além.
— Então — perguntou Mrs Sanders, curiosa — Por que seu marido ficou assim? Ele não era culpado, era?A governanta sacudiu a cabeça.
— Não. Lee era inocente. — Sua voz animou-se um pouco. — Mas ele bebia muito, naquele tempo.
Não era um perfeito cumpridor de seus deveres.
Naquela noite em que mataram os patrões, meu marido tinha bebido meia garrafa de uísque e foi se! deitar comigo, no quarto da barbacã. Se ele estivesse no seu posto, exercendo as atividades de vigia noturno, talvez nada daquilo acontecesse. Mas Lee foi dormir comigo, na barbacã. E deu-me uma surra, porque eu me recusei a satisfazer-lhe os vícios! Ele não era um homem bom. Não tinha nobres sentimentos. E, quando estava bêbado, batia-me e fazia-me sofrer. Não era um homem bom e os espíritos não gostam de maldades. Por isso, Lee viu alguma coisa terrível, que lhe transformou o juízo. Eu apenas ouvi as vozes, mas meu marido
viu os espíritos dos mortos! Ele deixou de beber, mas ficou fraco da cabeça. Nunca mais bateu em ninguém e passou a ter medo até de sua própria sombra. Agora, sou eu quem manda nele. Sou eu quem exige que ele me faça carinhos! Agora, eu me vingo de todo o mal que ele me fez!
O cobertor da cama estava esticado até em cima; enquanto falava, Isabel foi puxá-lo, a fim de pôr à mostra os alvos lençóis de linho.
— Não — disse Mrs. Sanders, bocejando — não precisa preparar a cama. Também não faço tenção de me deitar esta noite. Quero ficar alerta, para o caso de ouvir alguma coisa...
A governanta voltou-se, empertigada, e olhou para ela com expressão de suspeita. Começava a achar muito estranha a atitude daquela mulher... Por que a americana parecia mais corajosa do que a filha?
— Perdão, madame...
— Sim?
— A senhora é católica?
— Não — respondeu Mrs. Sanders, sorrindo.
— Sou espírita.
Nisso, bateram de leve à porta do quarto. As três mulheres entreolharam-se, assustadas. Antes que a governanta alcançasse a porta, esta se abriu e surgiu uma mão branca e comprida, com um anel de platina cravejado de brilhantes.
— Quem é? — perguntou Samantha, num fio de voz.
Mrs. Sanders respirou aliviada. Tinha reconhecido a mão de Miss Carter. A proprietária do castelo entrou, quase sem ruído, e sorriu friamente para as outras mulheres.
— Desculpem... Robert tentou encontrar uma saída, pela barbacã, mas também não conseguiu.
Não há mais nenhuma porta no castelo. Estamos, realmente, condenados a passar a noite aqui.
— Desagradável — comentou Mrs. Sanders, bocejando discretamente.
Rosemary mordeu os lábios. Via-se que queria dizer alguma coisa, mas não encontrava as palavras.
Afinal, mergulhou os olhos cinzentos no olhar azul e inocente da americana. —Eu... eu queria lhe perguntar uma coisa, Mrs. Sanders.
A outra ficou alerta. Pressentia as primeiras dificuldades.
— Pois não, Miss. Carter. De que se trata?
Samantha abraçou-se à mãe, a atitude da ex-preceptora não era nada cordial. E sua voz tomou-se ainda mais cortante:
— Mrs. Sanders, por que a senhora insistiu tanto para que eu viesse ao castelo de Rockemburgh?
Uma pausa. A americana franziu o cenho.
— Eu? Não compreendo, Miss. Carter! Que eu saiba, não insisti tanto assim! Apenas sugeri que a senhorita, como dona da casa...
— Não é verdade! — atalhou Rosemary, com voz aguda. — A senhora sabe que não é verdade!
Foi a senhora quem me fez vir aqui! Desde a morte deles que eu nunca mais me aproximei deste castelo maldito! Quem lhe pediu que me trouxesse aqui? Quem lhe pediu que me fizesse voltar a este local sinistro? Responda! Quem foi? Quero saber quem foi!
A americana adotou uma atitude formalizada.
— Ninguém me pediu, Miss. Carter. Não compreendo a sua indignação! Nós também estamos apreensivas, mas nem por isso perdemos a cabeça!
A senhorita não pode acreditar que os espíritos... ou as vozes...
— Não acredito mesmo! — esganiçou a outra, cerrando os punhos. Depois, caiu em si e seus olhos tornaram-se venenosos. — Que pretende insinuar com isso? Que foram os espíritos que a mandaram?
— Não costumo insinuar nada — replicou a americana, ofendida. — A senhorita está enganada a meu respeito, Miss Carter! Mas eu a perdôo, pois sei que se encontra tão nervosa quanto minha filha.
— Mamãe é uma estudiosa das ciências ocultas — acudiu Samantha, procurando aliviar a tensão.
—- Durante muitos anos, ela praticou o espiritismos, em nossa mansão de Detroit. Mamãe sempre sabe de tudo.
Rosemary ficou hirta, de boca aberta, os punhos ainda crispado pelo furor.
— Sim, minha querida — disse Mrs Sanders, alisando os cabelos da filha. — Você me conhece, mas Miss. Carter não acredita nos espíritos... — Voltou-se, outra vez, para a dona do castelo e enfrentou o seu olhar venenoso. — A verdade, Miss Carter, é que eu recebi uma ordem do alto! Sim, a senhorita acertou! Recebi uma ordem do alto! Eu tinha uma missão a cumprir, uma missão que me foi imposta pelos espíritos dos que morreram inocentes! Recebi a ordem de trazê-la até aqui!
Rosemary estava mais abalada do que furiosa. Toda a sua indignação se diluiu. Começava a ter um pouco de medo também.
— Mas a senhora não me conhecia! A senhora! nunca me viu!
— Deus sabe que é verdade — admitiu Mrs. Sanders, com expressão fanática. — Eu não a conhecia, Miss Carter. Mas recebi ordem do alto! Sou médium e tenho a suprema faculdade de me comunicar com os espíritos! Foi em cumprimento de uma ordem! do além que lhe pedi para nos acompanhar. Era preciso que a senhorita passasse esta noite no Castelo dei Rockemburgh!
A ex-preceptora cerrou os punhos. Suas mãos eram grandes e musculosas. E a saliva borbulhava nos cantos de seus lábios.
— Agora compreendo! Vocês estão todos combinados, para me fazer perder a cabeça! É um complô, um nojento complô! Queriam me atrair a esta castelo, para me enfurecer e me obrigar a falar! Sim, eu vejo! Eu compreendo! Mas, se pretendem me assustar, perderão seu tempo! Não acredito em almas do outro mundo! Não acredito em nada disso!
"Graças a Deus — pensou Mrs. Sanders. — Graças â Deus, não me enganei! Agora, Mr. Jim Jones já pode começar a sessão..."
Nesse momento, ouviram um ruído insólito, dentro do armário do quarto:
Não era um simples estalido, era o baque de um objeto metálico. Todos os olhares se concentraram na porta fechada do armário. Depois, no silêncio pesado que se seguiu, Isabel Lee atravessou o quarto, hesitou e Subiu vagarosamente a porta do móvel. As outras mulheres viram-na inclinar-se para dentro do armário e logo recuar, soltando um grito de surpresa. Rosemary avançou, com passos de pantera, e empurrou a governanta para um lado.
Mrs Sanders e Samantha entreolharam-se, apavoradas. A dona do castelo estendeu a mão para o interior do armário e retirou-a, empunhando qualquer coisa pesada, que cintilou à luz bruxuleante das velas.
— Maldição! — rugiu a mulher. — como é que isto veio parar aqui?
Era uma pequena acha-de-armas enferrujada, com grandes manchas castanhas na lâmina.
Aquilo não estava combinado com Mr. Jim Jones. — Pensou Mrs. Sanders — mas não deixava de ser um excelente elemento de terror... Uma machadinha medieval, idêntica àquela que fora usada nos três assassinatos. Decididamente, Mr. Jim Jones tinha idéias...
Depois que Rosemary foi-se embora, acompanhada pela governanta, Mrs. Sanders e a filha ficaram longo tempo sentadas na beira da cama, sem coragem para dizer nada. Em seguida, Samantha correu para a porta e fechou-a nervosamente, dando duas voltas à chave. A dona do castelo tinha levado a machadinha; mas isso, em vez de tranqüilizar as duas mulheres, fazia com que elas se sentissem ainda mais amedrontadas. Principalmente, Mrs. Sanders.
Apesar de tudo, ela não podia deixar de se assustar, pois sabia de mais coisas do que Samantha...
O tempo se passou e o relógio de pêndulo do hall bateu onze horas. Lá fora, a tempestade continuava bastante violenta. A chuva caía sem parar, isolando o castelo num mar de água fria e movediça.
Deitado no alpendre, com as duas velas apagadas no colo, Anthony Lee dormia a sono solto. Isabel tinha mentido, ao dizer que seu marido deixara de beber; na verdade,.o corcunda embebedava-se todos os dias e, naquele momento, seu sono era devido aos efeitos do álcool. Quando ele se moveu, para procurar uma posição mais confortável, uma pequena garrafa de uísque vazia escorregou do bolso de suas calças e retiniu no lajedo. Lee abriu um olho congestionado e deu uma risadinha. Depois, passou a mão pelo rosto onde a barba de três dias despontava, e ficou sério, contemplando a chuva que caía. Laboriosamente, seu cérebro começou a trabalhar, procurando uma explicação para o mistério. Já não se lembrava mais de ter vindo para o castelo, nem do episódio da porta fechada. Mas, logo, se lembrou. Seus olhos vermelhos se arregalaram e ele pôs-se de pé, com dificuldade. Apesar de ter dormido algumas horas, ainda se encontrava muito deprimido pelo álcool. Olhou para a grande chave de ferro, na fechadura da porta principal, e meneou a cabeça. Por coisa alguma do mundo seria capaz de girar aquela chave! Lembrava-se, com horror, daquilo que vira no interior do castelo, na ausência de Isabel. Por coisa alguma do mundo voltaria a enfrentar a visão dantesca daqueles três cadáveres ensangüentados, caminhando pelos corredores como se estivessem vivos! Fora isso, exatamente, o que ele vira naquela noite negra, antes de ser internado no hospício! Mr. Fraser, Mrs. Fraser e a pequena Mildred. Três cadáveres ensangüentados, andando pelo corredor!
Tudo estava quieto, no alpendre varrido pela tempestade. O corcunda agarrou na porta e começou a bater cadenciadamente, até pressentir um movimento do lado de dentro. A voz de Robert atravessou a porta:
— É você, Lee?
O jovem advogado não tinha ficado inativo. Enquanto Isabel arrumava os quartos da casa de Murray, ele percorrera todo o castelo, certificando-se de que não havia, mesmo, nenhum buraco por onde pudessem escapar. Depois, dessa vitória, ia passando pelo hall quando ouvira as batidas na porta.
— Sim — respondeu o corcunda, com voz pastosa. — Sou eu, Mr. Gaynor. Não quero entrar aí, não. Só queria saber se vocês ainda estavam vivos...
— Lee — implorou Robert, sacudindo a porta.
— Escute, velho! Você precisa fazer alguma coisa!
Estamos trancados aqui dentro, entende? Se você não consegue abrir a porta, chame outra pessoa! Está me ouvindo? Chame outra pessoa, em Perth!
Um serralheiro, um policial, qualquer pessoa! Entende?
Lee cocou a cabeça, procurando refletir. Depois da experiência daquela noite, há dois anos, tinha muita dificuldade em usar a massa cinzenta.
— Sim, senhor, Mr. Gaynor. Chamar outra pessoa... Um padre, talvez. Conheço um padre muito bom. em Perth.
— Não é preciso que seja um padre. Vá depressa, Lee! Agora mesmo! Já é quase meia-noite!
— Sim, senhor. É quase a hora das almas. Tenho que acender as velas para as almas. Elas gostam de luz. Elas gostam muito de luz.
— Vá buscar alguém para ajudá-lo — insistiu a voz impaciente de Robert. — Depressa, homem!
Vocês precisam abrir esta porta!
— Primeiro, as almas — disse o corcunda, sacudindo a cabeça. — Eu era um descrente, Mr. Gaynor, mas não sou mais. Eu vi! As vozes me ensinaram a crer no Reino dos Espíritos! Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
E enquanto Robert, do lado de dentro da castelo, protestava em alta voz, ele voltou a sentar-se no lajedo e riscou uma porção de fósforo, até conseguir acender uma das velas. Em seguida, com a vela acesa na mão, começou a rezar em voz baixa, misturando a Ave-Maria com Padre nosso:
— Ave-Maria, cheia de graça, que estais no céu, santificado seja o vosso nome, assim na terra como no céu! Amém!
Passou-se outra meia hora, sem que a situação se modificasse. Lee acabou adormecendo outra vez, com a vela acesa na mão. Robert, irritado, tinha se metido no seu quarto da barbacã, onde ainda estudava uma maneira de escapar do castelo. Mrs. Sanders e a filha, abraçadas, também esperavam, trancadas no quarto que havia sido da preceptora da pequena Mildred. A sonolência da americana aumentava e era com dificuldade que ela permanecia alerta, atenta a qualquer sinal no corredor. Quanto a Isabel Lee e Rosemary, conversavam em voz baixa, no segundo dormitório da barbacã. Mas nenhuma das duas tinha o espírito presente à conversa. Seus ouvidos também estavam atentos a todos os ruídos exteriores. Inclusive, ao crepitar da chuva no pátio, que se tornava cada vez mais débil.
A tempestade foi-se embora, com a mesma rapidez com que aparecera. Antes de meia-noite, o céu negro clareou, sobre o Firth Of Tay, e uma lua muito branca despontou por entre os últimos farrapos das nuvens. Rosemary, nervosa e impaciente, apanhou um dos dois candelabros do quarto e abriu a porta que dava para o pátio.
— Espere aqui, Isabel! Não me demoro!
— Onde vai, Miss Carter?
— Que é que você tem com isso? Espere aqui! Não posso passar a noite toda metida neste cubículo!
Na verdade, uma força misteriosa impelia-a para o interior do castelo. A governanta suspirou e voltou a pensar nas suas dúvidas. Uma suspeita horrível começava a germinar na sua mente. Quando a patroa saiu, ela foi apanhar a acha-de- armas enferrujada que pusera em cima da penteadeira e escondeu-a debaixo da cama.
Já não chovia. Rosemary atravessou o espaço aberto da barbacã e entrou no Great Hall, pela porta dos fundos. Não havia ninguém no salão.
Tudo estava deserto e silencioso. Dois candelabros um, sobre a lareira e, o outro, em cima da mesa iluminavam debilmente o amplo recinto. Rosemary adiantou-se, cautelosamente, e olhou ao redor.
"Tem que haver uma saída"
Nesse momento, o relógio de pêndulo começou a bater cadenciadamente a meia-noite. Seu mecanismo enferrujado gemia e tremelicava. Rosemary perguntou a si mesma quem teria dado corda no relógio.
"pam... pam...pam... pam..."
Foi como um sinal de combate. As velas trêmulas dos candelabros inclusive aquele que a ex-preceptora empunhava apagaram-se repentinamente, como se um sopro gelado lhes tivesse tirado o brilho. O hall mergulhou numa escuridão completa, que parecia ter a consistência de um nevoeiro. Rosemary abafou um gemido de espanto.
Seu coração batia descompassadamente. Mas não queria dar demonstrações de fraqueza. Ninguém, nem mesmo os espíritos dos mortos, ninguém devia perceber que ela também estava à beira de um colapso nervoso!
Foi até à mesa, as apalpadelas, e apanhou uma caixa de fósforo. Riscou um e tentou acender as velas do candelabro que empunhava. Não conseguiu. Talvez seus dedos estivessem muito trêmulos e entorpecidos pela ansiedade. Riscou outro fósforo, mas não foi mais feliz. As pequenas chamas se apagavam, inexplicavelmente, antes de atingirem as velas.
Então, no silêncio profundo do hall, soou uma espécie de estertor, semelhante ao rinchar de uma porta enferrujada. Rosemary largou o candelabro e recuou para junto da parede, cerrando os punhos, pronta para lutar Não via nenhum movimento, no grande salão, mas sentia que não estava só.
— Quem é?
Ninguém lhe respondeu. O silêncio perdurou, pesado, asfixiante. A mulher respirou fundo, procurando se acalmar. Provavelmente, sua própria garganta fizera aquele ruído, na ânsia de respirar em silêncio. Devia ter sido engano dos seus sentidos. Se alguém tivesse aberto alguma porta, e não havia ali nenhuma porta fechada, diria qualquer coisa. Só poderia ser Mrs. Sanders. Ou a sua filha. Ou não? Haveria mais alguém no castelo?
Ela estava fazendo essa pergunta a si mesma, quando uma risada fina e estridente ecoou nas paredes do hall. Uma risada sem alegria, lúgubre, pavorosa. Como se um esqueleto entrechocasse os dentes, numa dança macabra.
— Quem está aí? — gritou Rosemary.
Apenas a mesma risada lhe respondeu. Como se uma criança peralta estivesse se escondendo atrás de um móvel. Mas era impossível localizar a origem do som; ele parecia vir de todos os lugares ao mesmo tempo. Como se as próprias paredes do castelo estivessem gargalhando ferozmente, cheias da mais diabólica alegria. Rosemary riscou outro fósforo e ergueu a pequena chama vacilante, enquanto seus olhos rodavam na órbitas, procurando nervosamente o sinal de uma presença viva. Mas apenas as risadas soavam, cada vez mais altas e distintas.
Agora, já se podia perceber que era uma menina que estava rindo. Mas não era uma menina feliz.
No mesmo momento, os olhos cinzentos da ex-preceptora se fixaram numa das paredes do hall.
A mulher soltou um grito abafado.
— Não! Não é possível!
Do lado oposto à lareira havia um quadro na parede, que antes, estivera coberto por uma capa de linho branco; agora, metade do pano se descerrara, mostrando a parte superior da pintura a óleo. Era o retrato de uma menina de seis anos, loura e linda, com um sorriso indefinível nos lábios rosados. Seus olhos azuis pareciam brilhar maliciosamente.
Era o retrato de Mildred Fraser. E o retrato falava!
— Miss Carter — ciciou ele, sem que seus lábios pintados se movessem. — Tenho frio! Tenho muito frio, Miss Carter!
Rosemary destacou-se da parede, sem desfiar o retrato, e avançou impetuosamente, cruzando o hall.
O fósforo apagou-se e ela o jogou no chão. Atingiu o retrato e, mesmo no escuro, recolocou a capa branca por cima da moldura. O rostinho risonho de Mildred desapareceu,. Simultaneamente, a voz infantil também de desvaneceu, num estertor de agonia.
— Não, Miss Carter! Não faça isso, Miss. Carter!
Não faça isso... não... não... não...
Mas outra voz, mais grave, também ressoou no hall. Um homem falava, na escuridão, à direita da lareira. E sua voz tinha um forte sotaque yankee:
— Rosemary, eu gostava tanto de você! Você se lembra, minha querida Edelweiss? Eu gostava tanto de você!...
Era assim que ele a tratava: "querida Edelweiss".
Aquela só poderia ser a voz de Mr. Fraser! Rosemary saltou para o meio do hall e correu para a outra parede, onde se via um quadro maior, também coberto por uma capa branca. O pano começava a se descerrar lentamente, sem que ninguém lhe tocasse.
Já surgia uma cabeça de homem, de cabelos grisalhos, e metade de uma testa larga e rosada; daí a pouco, surgiram os olhos lascivos de Mr. Fraser! Rosemary chegou a tempo de agarrar o pano e recolocá-lo sobre o quadro a óleo, evitando que a retrato surgisse completamente. A voz do homem, lamentosa e fantástica, também foi sepultada no silêncio.
Mas o pesadelo continuou.
— Rosemary? Sou eu, Rosemary...
Agora, era uma voz de uma mulher, também com acento yankee. Ninguém poderia descobrir de onde ela vinha, pois parecia soar em todas as paredes.
Era como se todo o castelo falasse.
— Sou eu, Rosemary... Você foi muito ingrata para mim! Que foi que você fez com meu marido?
Não satisfeita de me fazer de boba...
Rosemary enclavinhou os dedos, como garras, olhando ao redor com expressão de ódio impotente.
Não havia mais nenhum quadro no hall. Os olhos da ex-preceptora caíram sobre o cabide, ao lado da porta principal, e se arregalaram de terror. Apesar da penumbra, os contornos dos objetos ressaltavam com nitidez; dir-se-ia que uma luz verde, espectral, envolvia as paredes. Rosemary tinha certeza de que o porta-chapéus estava vazio, ao entrarem no castelo. Mas, agora, ali se via um chapéu-coco e um guarda-chuva de biqueira fina! Esses objetos tinham pertencido a Mr. Fraser. E Mr. Fraser estava morto! Seu patrão, o homem com quem ela dormira tantas vezes, não pertencia mais a este mundo!
— Rosemary — volveu a voz masculina agora vinda do cabide correu para o cabide, mas, antes de lá chegar, viu que o chapéu-coco e o guarda-chuva tinham desaparecido. Tudo fora uma ilusão de óptica.
— Não! — gritou a voz aguda da falecida Mrs. Fraser. — Não faça isso Rosemary! Não faça isso, pelo amor de Deus!
A ex-preceptora desviou os olhos esgazeados para uma cadeira do hall, onde se via um par de luvas brancas e uma sombrinha vermelha. Quando era viva, Mrs. Cinthia Fraser gostava muito daquela sombrinha japonesa.
— Socorro!— gemeu a voz sepulcral!.— Não me mate, Rosemary!
Depois, soou uma pancada surda, semelhante ao baque de uma machadinha sobre um baú de madeira. A luvas e a sombrinha também já não estavam mais na cadeira, quando Rosemary tentou agarrá-las. Não havia mais nada, na cadeira coberta pela capa branca. Mas as vozes e as risadas voltaram a soar, aqui e ali, erguendo-se num coro cada vez mais forte e ameaçador. Era muito difícil calá-las. Nenhuma força humana seria capaz de abafar aquelas queixas. Rosemary girou pelo hall alucinada, tropeçando nos móveis, mas sempre esbarrava no vento. Não havia nada, que ela pudesse estraçalhar! Por fim, soltando um alarido de desespero, a mulher fugiu correndo pela porta da barbacã, deixando o hall em poder das vozes imponderáveis.
Um minuto depois, o silêncio voltou a reinar, no amplo recinto medieval. Um resplendor amarelado entrou pela porta da barbacã, antecedendo a figura negra e empertigada de Isabel Lee. A governanta trazia um candelabro erguido da cabeça e agarrava convulsiva-mente o crucifixo com a mão esquerda. Vagarosamente, olhou ao redor, para o enorme hall silencioso; depois, fez o sinal da cruz e continuou a marcha, saindo pela porta da capelinha de Santa Margarida. Isabel Lee não poderia se deitar sem rezar à santa de sua devoção.
Depois de sua desagradável experiência no hall, Rosemary regressou ao quarto da barbacã e aí se deixou ficar. Isabel não saía da capelinha. Às duas horas da madrugada, não havia mais sinais da tempestade. O céu do Firth Of Tay parecia lavado pela chuva como uma grande toalha azul-marino.
E a lua espiava, do alto, pelas janelas quadradas do Castelo de Rockemburgh.
No quarto dos Aposentos do Leste, Mrs. Sanders acabara sendo vencida pelo sono e dormia, completamente vestida, estendida na larga cama de casal.
Apenas Samantha permanecia alerta, sentada numa poltrona. À luz do candelabro de seis velas, a garota lia um livro, que levara na bolsa. Infelizmente, só faltavam algumas páginas para o romance acabar.
"Depois desses acontecimentos, seguiram-se as investigações judiciais, transcritas no manuscrito de Wardour. Por esse manuscrito, ficamos sabendo que Maurice de Bracy atravessou os mares e foi servir o rei Felipe de França; Philip de Malvoisin e seu irmão Al-bert, o preceptor de Templestowe, foram executados; quanto a Waldemar Fitzurse, o mentor da conspiração, foi apenas banido..."
O livro era "Ivanhoé", de Sir Walter Scott. De repente, Samantha interrompeu a leitura e ergueu vivamente a cabeça. Seus ouvidos atentos tinham acabado de perceber um leve estalido, no corredor, seguido de um ranger de madeira. Como se alguém se aproximas-se, pé ante pé, da porta do quarto...
A garota pousou o livro na mesinha de cabeceira e fitou ardentemente a maçaneta da porta. Esperava que ela se movesse, mas isso não aconteceu. A porta estava fechada a chave, com duas voltas, por ali não entraria ninguém. E o seu maior temor, depois do episódio da machadinha, já não eram os espíritos. Os espíritos não fazem mal aos inocentes. Ou será que os mortos também gostam de se divertir com o pavor dos vivos? Samantha não tinha muita certeza sobre o fato... Levantou-se, sem fazer barulho, e foi até à porta. Tinhas a impressão de ouvir alguém respirar pesadamente do outro lado. Mas podia ser apenas impressão.
— Quem está aí?
Não houve resposta. Seria Robert, em busca dos seus carinhos? Impossível! Ele não ousaria! Robert Gaynor era um gentleman!
— Quem é?
Ainda não responderam diretamente. Mas, dessa vez, houve uma reação. Uma voz cochichou, no corredor sem dizer nada compreensível. Era uma voz de homem, grave e rouca; depois de alguns cochichos, deu uma risada, que parecia entrar pelo buraco da fechadura e ecoar no quarto fechado. Assustada, Samantha recuou para o meio da alcova, os olhos arregalados presos à chave da porta. Aquela voz era tão fantástica que ela esperava ver a chave girar sozinha, franqueando a entrada aos espíritos do mal! Mas a chave não se moveu. Contudo, outras vozes vieram fazer coro à primeira. Uma voz de mulher também ciciou qualquer coisa e deu uma risada, E por fim, uma vozinha infantil, lamentosa, queixou-se de que estava com frio. Samantha ouviu perfeitamente os soluços da menina.
— Mamãe! Mamãe!
Despertada de um sono sem sonhos, Mrs. Sanders sentou-se na cama, piscando os olhos, aturdida.
— Hem? O que foi?
O quarto tinha ficado completamente silencioso. Presa de um ataque de nervos, Samantha abraçou-se à mãe.
— A senhora não ouviu, mamãe? As vozes! As vozes, cochichando e rindo, no corredor! Agora já não se escuta mais nada! Mas eu ouvi as vozes!
— As vozes? — repetiu Mrs. Sanders, despertando por completo. — Ah, sim! As vozes... Não tenha medo, minha filha. Eu disse para não ter medo.
— A senhora sabia? — perguntou Samantha, perplexa. — A senhora já esperava?
— Bem... Sim, talvez esperasse... não quis lhe dizer nada, querida, mas... É melhor que você só conheça o segredo depois de tudo resolvido. Este castelo, Samantha, tem uma história terrível! Você a ouviu. Três inocentes foram barbaramente assassinados e o assassino ficou impune. Pois bem: é possível que, pressionada pelos espíritos de suas vítimas, a criminosa acabe por se denunciar. Eu e Mr. Jim Jones aquele velho cavalheiro que você conheceu a bordo do navio que nos trouxe da América... Eu e Mr. Jones, temos uma teoria. É por isso que existem as vozes. Elas não lhe farão mal, minha querida. Mas, na verdade, não] compreendo por que vieram soar à porta do meu quarto! E muito estranho, isso! Você tem certeza de que ouviu as vozes?
Não foi preciso que a moça respondesse; nesse momento, as vozes voltaram a soar, num coro desafinado, cochichando e rindo como débeis mentais.
O som vinha do corredor e atravessava as paredes como se elas fossem de papel. Apesar de sua teoria, Mrs. Sanders sentiu os cabelos se arrepiarem.
— Está ouvindo, mamãe?
— Sim — sussurrou a mulher, levantando-se de repente. Ao mesmo tempo, ouviram-se passos pesados no corredor. Alguém bateu, de leve, à porta do quarto.
— Mrs. Sanders? Samantha? Precisam de alguma coisa?
Era Robert. Samantha precipitou-se para a porta girou a chave e abriu. O jovem advogado estava de pé, no corredor, empunhando um candelabro.
Também ele não se despira; tinha até a gravata.
— Que aconteceu? indagou, pareceu-me ouvir um grito!
A moça olhou, por cima de seu ombro, para o longo corredor escuro e deserto. Depois, com voz sombria:
— Não, não foi um grito. Nós ouvimos as vozes!
— Vozes?
— Sim! Cochichos e risadas! Aí, no corredor!
Agora mesmo, Bob! Bem aí, no corredor!
O rapaz adiantou dois passos e entrou no quarto.
— Não encontrei ninguém no corredor— declarou, olhando da cara de Samantha para a de sua mãe. — E, se alguém tivesse cochichado, não poderia ter ficado invisível.
— Depende — disse Mrs. Sanders gravemente.
— As vozes do outro mundo pertencem a seres invisíveis! Alguém invocou os espíritos, Mr. Gaynor, e talvez não tenha mão sobre ele! Lembra-se do aprendiz de feiticeiro?
Vagarosamente, a porta do quarto começou a fechar-se, às costas do rapaz. Não havia vento, mas a porta se movia. Samantha observou o fenômeno e arregalou os olhos, mas não teve forças para gritar. A porta se fechou com um baque surdo.
— A porta! — exclamou Mrs. Sanders, francamente alarmada. - Fechou-se sozinha!
Robert girou nos calcanhares, erguendo o candelabro, e a superfície igual da madeira.
— Foi o vento, com certeza. Não havia ninguém no corredor. Posso jurar que não havia ninguém.
Agarrou na maçaneta da porta e tentou torcê-la, sem conseguir. Com a pancada, a fechadura devia ter emperrado. O rapaz forcejou, irritado, mas a maçaneta não se moveu. Ao mesmo tempo, as vozes voltaram a soar, no corredor, cochichando e dando risadas de escárnio. A voz da menina, que antes choramingava, agora tinha um acento de raivoso triunfo.
— Estão fechados! Fechadinhos! Fechadões!
— Vocês estão ouvindo? — gemeu Samantha apavorada, Robert e Mrs. Sanders trocaram um olhar de apreensão. Sim, eles também estavam ouvindo. E as vozes, livres, do outro lado da porta trancada, percorreram o corredor, atravessaram o hall e foram soar na barbacã. Como se todo o castelo tivesse caído em poder das almas do outro mundo.
— Saia daí! Saia, que eu quero ver! Rosemary estava deitada, no quarto da casa de Murray. Isabel ainda não voltara da capela. Ao ouvir o apelo das vozes, a ex-preceptora sentou-se na cama, alerta. Não acreditava que as vozes entrassem no quarto, mas precisava tomar providências. Ela não se deixara intimidar.
— Miss Carter? — chamava a vozinha de Mildred. — Venha cá, Miss Carter! Quero brincar com você!
Rosemary saltou da cama, também estava completamente vestida e olhou ao redor, em busca de alguma coisa que servisse de arma. A machadinha não estava mais onde ela deixara, em cima da penteadeira. Deu uma busca no quarto e não tardou a encontrá-la, jogada embaixo da cama.
Então, com a arma em punho, saiu corajosamente do quarto. Na sua opinião aquilo era um truque grosseiro. Ela não se deixaria intimidar!
O pátio estava deserto, coberto de luar. Mas as vozes ainda cochichavam, na entrada do hall, Rosemary caminhou para lá, erguendo a machadinha. Não acreditava em espírito. E queria desmascarar os impostores que lhe tinham preparado aquela cilada.
Também não havia ninguém no hall. E as vozes tinham-se calado. A ex-preceptora olhou ao redor com expressão de ódio, e cuspiu para a frente.
— Onde estão vocês? — gritou! Apareçam!
Apenas o silêncio lhe respondeu. Mas, de repente, a porta que dava para barbacã moveu-se e fechou-se silenciosamente às suas costas. Ela voltou-se de um salto e golpeou-a com a machadinha.
A lâmina fendeu a madeira, com um baque surdo, como se penetrasse num crânio humano.
Rosemary arrancou a machadinha da porta e ficou olhando, galvanizada, para a ferida aberta na madeira. Um líquido castanho escorria da larga fenda provocada pelo golpe.
— Não é possível! Eu estou sonhando! Nada disto é possível!
Recuou, aos tropeções, para o meio do hall, amortalhado numa pálida claridade esverdeada. Os panos dos quadros tinham caído e os retratos a óleo de Mildred e de Mr. Fraser olhavam para ela, na meia penumbra. E os olhos dos retratos pareciam vivos.
— Parem com isso! — gritou Rosemary, brandindo a machadinha. - É um absurdo! Não acredito em fantasma!
As vozes recomeçaram a soar, vindas de vários lugares ao mesmo tempo:
— Rosemary, você voltou! Você voltou, Rosemary! E nós voltamos também!
Era como uma cantiga infantil, uma cantiga de roda, entoada em coro por três vozes alegres. Rosemary recuou pelo hall, procurando o apoio de uma parede. A machadinha, erguida em suas mãos grandes e brancas, cintilava ameaçadoramente à luz esverdeada. E, subitamente, os móveis se mexeram! Uma cadeira deslizou pelo tapete e foi bater, com estrépito, na parede da lareira. Os pequenos bibelôs, em cima do ressalto da lareira, começaram a dançar. E uma mesinha pé-de-galo, coberta por um pano branco, avançou fantasmagoricamente na direção da mulher armada.
— Aqui vou eu, Rosemary! Aqui vou eu!
Era a voz de Mrs. Fraser. Rosemary saltou, como uma fúria, e atirou-se em cima da mesinha, golpeando-a com a acha-da-arma. Três golpes violentos reduziram a madeira a estilhaços. O pano branco rasgou-se, tinto de vermelho. Mas, depois das machadadas, via-se apenas uma mesinha quebrada, amortalhada em trapos de um líquido que se assemelhava ao sangue.
— Isabel! — gritou Rosemary, ofegante, apoiando-se à parede da lareira. — Onde está você, Isabel?
A governanta acordou, na capelinha, e agarrou precipitadamente no candelabro. Tinha adormecido, diante do altar de Santa Margarida, deitada num dos duros bancos de madeira. Ao ouvir os gritos, correu de volta ao Great Hall. E ali encontrou a patroa, pálida, desgrenhada, com a machadinha na mão.
— Meu Deus! Que foi isso?
— É apenas uma mesa — disse Rosemary, começando a rir histericamente. — Nada mais do que uma mesa! Eu sabia que só podia ser isso.
A governanta iluminou melhor a cena, suspendendo o candelabro. Agora, todo o hall estava em silêncio; não se ouvia mais o eco das vozes.
— Sim, Miss Carter, é apenas uma mesa. Por que fez isso?
Sua voz estava repassada de desconfiança.
— Não sei— gemeu a ex-preceptora.— Eu... eu ouvi as vozes! Sim, eu também as ouvi! As vozes que cochichavam, e cantavam, e davam risadas de deboche! E aquelas vozes pareciam... pareciam as deles!
— São as vozes deles — afirmou a governanta gravemente. — As vozes de Mr. Fraser, de Mrs. Cinthia e da menina. Eu também já as ouvi. São as vozes dos mortos!
— Mentira! — rugiu Rosemary. — Isso não seria possível! Não acredito! Não acredito em nada disso!
— Eu também ouço, mas as vozes não me fazem mal. Os inocentes não devem temer. Apenas os culpados pagarão pelos seus crimes. Essa é a lei de Deus.
— Eu não sou culpada! — gritou Rosemary, brandindo a machadinha. — Juro que não sou!
A governanta recuou, prudentemente, alguns passos.
— Diga isso aos espíritos, Miss. Carter. Eles é que sabem. Os espíritos são os únicos que sabem da verdade. Se meu marido não tivesse bêbado, naquela noite... Não foi a senhorita que matou os patrões?
Depois de ter falado, arrependeu-se de seus procedimentos. Não era boa política, uma acusação daquelas, em tais circunstâncias. Devia ter freado a curiosidade, evitado por a outra em guarda.
— Mentira! — gritou Rosemary, avançando dois passos. — Eles foram mortos pelos ladrões! Seu marido estava bêbado e não viu nada! Eu sei, porque os assaltantes me trancaram no quarto! E usaram a capa de Lee! Seu marido sabe que não fui eu!
— Até agora — replicou Isabel, com voz mais aguda — a polícia de Perth não encontrou nenhuma pista desses ladrões. Qualquer pessoa poderia ter usado a capa e as luvas de Lee. Não foi a senhorita, para herdar o castelo? Não foi a senhorita, para roubar o dinheiro e as jóias? Lee sabe quem foi!
— Seu marido é maluco! — esganiçou a outra.
— E você... você não tem o direito de me falar
assim!
A acha-de-arma ergueu-se, ameaçadoramente, cintilando à luz do candelabro. Isabel recuou ainda mais, pálida de morte. Mas, de repente, a arma caiu da mão da ex-preceptora e cravou-se no assoalho. Rosemary deu um grito e agarrou o pulso direito com a mão esquerda. Sua mão ardia, como se tivesse sido cortada, e estava suja de sangue.
Ela olhou, horrorizada, para as mãos, abrindo-as diante do rosto contorcido pelo pavor. Suas duas mãos! como seria isso possível? Suas duas mãos estavam manchadas de sangue!
Logo que os cochichos e as risadas se afastaram, rumo à barbacã, Robert voltou a forçar a maçaneta da porta, sem conseguir abri-la. Não havia dúvida: a fechadura estava enferrujada e a lingüeta tinha emperrado.
— E agora? — gemeu Samantha. — Mesmo que quiséssemos, não poderíamos fugir daqui! E os espíritos estão soltos, lá fora, e poderão entrar a qualquer momento! Eles foram embora, mas voltarão! Eu sinto que voltarão!
— Tenha calma — disse Mrs. Sanders, procurando aparentar uma tranqüilidade que estava longe de sentir. — As vozes não nos farão mal.
Quem tem a consciência tranqüila, como nós.... que nunca fez mal a ninguém.
— Não sei — retrucou Robert, sombrio. — Acontecem coisas muitos estranhas, nas casas mal-assombradas! Lembro-me de um episódio, na fazenda de meu pai...
— Por favor! — gemeu Samantha.
— Desculpe. Pelo sim, pelo não, convém procurarmos um lugar seguro... um lugar até onde não forem as almas do outro mundo. Eu conheço um lugar assim.
— Onde? — inquiriu Mrs. Sanders.
— A capela de Santa Margarida. Se vocês tiverem coragem de atravessar o hall, logo estaremos em segurança. Poderemos esperar o amanhecer na cape-linha, sob a proteção da Santa. Ali, tenho certeza de que nada de ruim nos acontecerá.
— Tem razão, depois que amanhecer não haverá mais perigo. A luz do dia afugentará os espíritos.
— Tenho medo— queixou-se Samantha.— As vozes estão no corredor! Tenho medo de que elas nos ataquem e...
— Não — volveu Mrs. Sanders, abraçando-a.
— Ouvi perfeitamente que elas se afastaram. -olhou para Robert. — Mas, como vamos abrir a porta?
— Deixe por minha conta — disse o rapaz, tirando o canivete do bolso. — Já tenho prática.
Esta porta é mais fácil de abrir do que a outra.
E começou a desparafusar os gonzos da porta. Em menos de cinco minutos, conseguia separar a folha de madeira de seus encaixes, franqueando a passagem. O corredor parecia deserto. Ao longo, no hall, soou um grito de Rosemary Carter. Eles se entreolharam, atônitos.
— Vamos? — convidou o rapaz, dando a mão a Samantha.
Mrs. Sanders acenou e calçou os sapatos. Saíram, agrupados, para a escuridão do corredor. Robert levava o candelabro.
— Olhem! — exclamou Samantha, estremecendo.
Havia uma figura negra, empertigada, debaixo da arcada do Great Hall.
— Onde vão? - perguntou ela, com voz grave. Era Isabel Lee. Robert adiantou-se, protegendo as duas mulheres com o corpo.
— Você também ouviu?
— As vozes? — fez a governanta. — Oh, sim! Eu as ouço sempre. Mas não me fazem mal, porque eu estou inocente. Miss Carter refugiou-se, outra vez. no quarto da barbacã. Ela ficou ferida.
Tem as mãos sujas de sangue.
— Que aconteceu? — perguntou Mrs Sanders. Ouvimos o seu grito de dor.
— As vozes a atacaram, quando ela pretendia me agredir com a machadinha. Miss Carter está desesperada, porque as vozes descobriram o seu segredo. Foi ela que matou os patrões.
— Impossível! — exclamou Robert.— Tem certeza? Isso é ... é monstruoso! Ela confessou?
— Ainda não. Mas acabará confessando. As vozes não descansarão enquanto ela não confessar.
Meu marido sabia de tudo, mas não tinha provas.
As vozes conseguirão essas provas! A malícia dos vivos não engana o espírito dos mortos! — Vamos para a capela— implorou Samantha, agoniada.
— Sim— tornou Isabel, fitando-a profundamente. — A capela é o único lugar do castelo onde as vozes não entram. Se vocês alcançarem a capela, alcançarão a paz. Eu já rezei à Santa Margarida e não tenho medo dos ataques do além. Vocês devem ir para a capela. Eu ficarei aqui. Miss Carter voltará, atraída pelos espíritos. E eu quero estar presente, para ouvir a confissão da responsável pelo que aconteceu a meu marido! Lee não tinha aquela corcunda, quando se casou comigo!
Mrs Sanders olhou para ela com curiosidade.
Estaria a governanta combinada com Mr. Jim Jones, na experiência das vozes? Podia ser. Uma simples gravação magnética talvez não bastasse, como prova, nos tribunais. Mr. Jim. Jones haveria de querer testemunhas da confissão.
— Vamos para a capela— decidiu a americana, dando o braço a Robert. — Depois, saberemos do resultado. Por ora, temos que cuidar da nossa segurança. Vamos para a capela.
Enquanto eles se direcionavam para o hall, Isabel ficou parada, no corredor; depois, beijou o crucifixo que trazia pendurado ao pescoço e pediu a Deus para que os espíritos não se vingassem, também, naqueles três inocentes.
Robert estava preocupado. Encontraram o hall deserto e silencioso, mas havia qualquer coisa insólita no recinto. Uma tênue luz esverdeada pairava ao redor da lareira. Eles se encostaram uns aos outros, sob a arcada, sem coragem para avançar mais.
— Vejam! — sussurrou Samantha, apontando para frente.
Indicava o tapete, em frente à lareira. Ali se via uma impressionante mancha de sangue. E a machadinha estava fincada no assoalho.
— Isabel disse que Miss Carter ficou ferida — justificou o rapaz. — Vamos! Basta, apenas, atravessar o hall!
Dali já se podia ver a porta da capelinha, do outro lado do vasto salão deserto. Parecia fácil atravessá-lo. Mas, quando deram os primeiros passos dentro do hall, foi como se tivessem mergulhado no inferno.
— Intrusos! — gritou uma voz de homem, com sotaque yankee. — Aí vêm os intrusos!
— Abaixo os intrusos!
E estourou um coro de gargalhadas satânicas.
Samantha e a mãe abraçaram-se, apavoradas, enquanto Robert procurava protegê-las, rodeando-as com seu braço esquerdo. O candelabro se apagou, na mão direita do rapaz, e rachou-se de alto a baixo, dispersando as velas fumegantes pelo assoalho. A luz esverdeada cresceu de intensidade, criando formas fantásticas no espaço.
— Bob — choramingou Samantha — Estou sentindo frio!
Ele jogou os restos dos candelabros no chão e abraçou os ombros trêmulos da garota. Ela estava gelada. Ele começou a puxá-la, arrastando também Mrs. Sanders.
— Coragem! Vamos andado! Temos que alcançar a capela!
As gargalhadas rodeavam-nos por todos os lados, zunindo nos seus ouvidos. E os móveis começaram a trepidar e a dançar uma espécie de sarabanda.
Robert puxou as duas mulheres apavoradas, vencendo com dificuldade o espaço que os separava da lareira. Aí, Mrs. Sanders saltou um grito.
— Que foi? — perguntou Robert, gritando para se fazer ouvir entre o alarido das vozes.
— Minha perna! — queixou-se a americana. -Alguém está me puxando pela perna! Não posso me mexer!
Sua saia tinha se enganchado num dos ornamentos da lareira. Robert desembaraçou o tecido, ras-gando-o, e continuou a puxar as duas mulheres. Em volta deles, movia-se o invisível oceano das vozes enraivecidas.
— Abaixo os intrusos! Abaixo os intrusos!
— Vamos! — implorava o rapaz. — Coragem! Falta pouco!
Um bibelô do ressalto da lareira escorregou e caiu aos pés de Samantha, desfazendo-se em casos de porcelanas. Um dos pedaços saltou, como se tivesse vida, e cravou-se no tornozelo da garota. O sangue escorreu. Samantha gritou de dor e amparou-se à parede.
— Estou ferida! Não posso andar!
As vozes davam gargalhadas de escárnio e de vitória.
— Coragem! — insistiu Robert. — Faça um esforço, Samantha! Já estamos chegando!
— Não posso! Não posso!
As vozes também gritavam nomes feios, como uma turba de moleques de rua. E as gargalhadas fustigavam os fugitivos como chicotes invisíveis. Robert agarrou em Samantha e ergue-a no colo. Ela era leve como uma pluma. Mrs. Sanders, tremendo de medo, também se abraçou ao rapaz. E o estranho grupo continuou a marcha, furando o caminho pelo meio dos gritos ensurdecedores.
— Fora daqui! — bradava a voz de Mr. Fraser.
— Fora daqui, intrusos!
— Fora de nosso castelo! — acrescentava a voz de Mrs.Fraser. — Não queremos estranhos aqui!
— Fora! Fora!
Fustigado pelas vozes, Robert perdeu a direção e foi bater na parede. Mas logo readquiriu o equilíbrio e continuou a marcha, na direção da porta da capela.
Alguma coisa invisível dava-lhe pontapés nas nádegas, mas os golpes, apesar de dolorosos, apenas o ajudavam a caminhar mais depressa.
— Fora daqui! Fora!
Alcançou a porta da capela e entrou precipitadamente, com Samantha no colo e Mrs. Sanders pendurada no ombro. Mal cruzaram o umbral da porta da capela, as vozes se calaram, havia apenas paz e silêncio. A própria treva era suave e repousante.
— Conseguimos! — bradou Robert. — Aqui estaremos em seguranças. Vamos esperar o amanhecer.
Então, Samantha agarrou o seu rosto e beijou-o ardentemente nos lábios. Mrs. Sanders tirou os sapatos e deixou-se cair num dos bancos de madeira.
— Samantha! — falou Mrs. Sanders, olhando para a filha com o sobrolho franzido. — Você está maluca?
— Não mamãe — disse a garota, sorrindo. — Eu e Bob vamos nos casar. A senhora não acha maravilhoso?
Mrs. Sanders, aturdida, não respondeu. Aquela era outra coisa que ela não compreendia. Aliás, era difícil compreender a nova geração...
— Deixe-me ver o seu ferimento— pediu Robert, pousando a moça no chão.
Felizmente; o corte no tornozelo era superficial e já não sangrava. Samantha esfregou um pouco de saliva na contusão e deu uma risada.
— Pronto! Já passou! Não sinto mais nada, a não ser uma grande felicidade!
O rapaz também sorriu, pois sentia a mesma coisa. Depois daquela viagem tormentosa pelo hall, havia apenas alívio e felicidade em seus corações.
— Contudo — volveu Samantha — Alguém pode achar uma explicação para isto?
— Não — respondeu Robert. — Não acho nenhuma. Estou completamente às escuras! Até agora, não acreditava em almas do outro mundo!
— Pois eu tenho uma explicação — declarou Mrs. Sanders, com voz grave. — Mas ainda é cedo para falarmos no assunto. Temos que esperar as conclusões de Mr. Jim Jones.
— Quem é Mr. Jim Jones?— quis saber Robert, confuso.
— Amanhã de manhã lhe direi. A governanta afirmou que Miss Carter está prestes a confessar os crimes. Prefiro falar depois da confissão.
— Nesse caso — tornou o rapaz, abismado — a senhora conhece a origem das vozes?
— Conheço — afirmou a americana, exalando um suspiro. — Mas, agora, não tenho certeza de que saiba de tudo. Mr. Jim Jones foi longe demais!
E eles se sentaram, em silêncio, na penumbra macia da capelinha, à espera do amanhecer.
No alpendre, junto à porta principal do castelo, Athony Lee dormia a sono solto, curtindo o resto da bebedeira. Uma das velas que ele trouxera já se queimara, mas a outra continuava intacta, no seu colo. A noite estava serena e bonita, coalhada de estrelas. No interior do casarão também havia a mesma paz e o mesmo silêncio. Isabel tinha a certeza de que Rosemary voltaria ao hall; por isso, estava à sua espera, sob a arcada. As horas se passaram e o relógio de pêndulo bateu as quatro e meia. A luz esverdeada se diluíra na penumbra. Não havia mais vozes, nem ameaças, no Castelo de Rockemburgh.
Ainda se passaram mais alguns minutos; depois uma porta rangeu e Rosemary surgiu na entrada da barbacã. Trazia um candelabro na mão esquerda, pois sua mão direita estava enfaixada em gaze e caminhava furtivamente, olhando para todos os lados com expressão de desconfiança. O primeiro ataque das forças invisíveis não a tinha convencido de que estava tratando com seres sobrenaturais; a ex-preceptora preferia acreditar numa cilada.
Quem seria o seu adversário, o homem que estava por trás daquelas manifestações espíritas? Ela nunca poderia suspeitar da existência de Mr. Jim Jones, nem atribuir a Mrs. Sanders, a autoria intelectual da conspiração.
Cautelosamente, a mulher atravessou pela frente da lareira. A acha-de-armas e a mancha de sangue tinham desaparecido misteriosamente. A mesinha estilhaçada também se recompusera. Rosemary sorriu, certa de que seus inimigos preparavam outro espetáculo de horror. Embora não pudesse explicar como se machucara na mão, tinha a certeza de que tudo fora um truque, para intimidá-la e fazê-la falar. Agora, estava preparada para responder à altura! Nem mesmo as almas do outro mundo, se existissem conseguiriam vencê-la! Ela não falaria! Não tinha medo de nada!
Havia uma panóplia, com um punhal do século XVI, na parede da pedra, à esquerda da lareira; ela apanhou a arma com a mão enfaixada de branco e experimentou a lâmina. Fina e aguçada.
Servia otimamente para os seus propósitos. Era preciso que todos, naquele castelo, morressem apunhalados, antes de fazê-la cometer uma indiscrição!
Alguém sabia da verdade — Isabel, Robert, Mrs, Sanders ou Samantha — E precisava morrer! Matando todos, ficaria livre do inimigo! E os espíritos levariam a culpa...
Sabia que o advogado e as duas americanas tinham-se refugiado na capela; começaria por eles.
Talvez estivessem dormindo. Nada mais fácil do que degolar os três, liquidar a governanta e esperar socorro, para que o dia raiasse, alguém havia de aparecer, para abrir a porta emperrada. E ela também ferida na mão, contaria uma história fantástica, uma história do outro mundo....
Seus pensamentos foram interrompidos pelo baque da porta da barbacã. Olhou para lá. A porta tinha-se fechado, aparentemente sozinha! Outra vez!
Ela deu uma risada interior. "Eles" subestimavam a força de sua mente e pensavam que iam assustá-la com fenômenos espíritas forjados! Podia quase ver o fio de nylon, amarrado à porta, sendo puxado por um impostor, além da arcada dos Aposentos do Leste! "Eles" eram muito ingênuos, se acreditavam na submissão! Espíritos ou impostores de carne e osso, eles iam ver uma coisa!
Nisso, também a porta da capela se fechou, com um baque surdo. Rosemary ouviu os sussurros de Robert, Mrs. Sanders e Samantha, trancados no pequeno recinto. Irritada, a mulher correu para a porta e tentou abri-la, sem largar o punhal. A maçaneta não se moveu. Rosemary soltou um xingamento e foi depositar o candelabro em cima da mesa. No mesmo instante as seis velas sé apagaram.
Ela sentiu o sopro de vento gelado que cruzou o hall. Devia ter sido produzido por um ventilador.
Sim, era isso! "Eles" usavam um ventilador!
— Miss Carter? — gemeu uma vozinha infantil, lamentosa. — Tenho frio, Miss Carter! Tenho muito Frio!
Ia começar tudo de novo! A ex-preceptora ergueu o punhal, na mão coberta de gaze, e recuou para a parede. A luz esverdeada, espectral, começou a inundar o Great Hall. Focos de gambiarras, ocultos atrás do móveis; "eles" nem se quer tinham a inteligência de usar a luz negra, ideal para cenas da magia! Era por isso que os "fantasmas" não apareciam, limitando-se a imitar as vozes de Mr. Fraser, de Mrs. Fraser e de Mildred.
— Não adianta! — gritou Rosemary, rindo como uma hiena. — Vocês estão perdendo tempo! Não me vencerão! Nem o próprio demônio me vencerá!
Então, as vozes começaram a chorar e a implorar piedade. Depois de terem tentado assustá-la, queriam convencê-la apelando para os seus bons sentimentos. Mas Rosemary Carter não tinha bons sentimentos. Sua alma era feita de ódio e ambição.
— Ninguém me vencerá! — gritou desafiadora-mente. — Eu matarei o primeiro que se aproximar! Juro pelo demônio que matarei!
As vozes calaram-se. Mas outra voz, mais real, ergueu-se, vinda da arcada:
— Já são quase cinco horas, Miss. Carter... Era a voz grave, impessoal, de Isabel Lee. Ela entrou no hall, Empertigada, empunhando um candelabro. A luz amarela das velas expulsou o resplendor esverdeado do salão. Rosemary olhou para a governanta de boca aberta. Isabel procedia com toda à naturalidade, como se não notasse o seu estado de nervos, a sua atitude agressiva; como se não a visse ali, encurralada, com o punhal na mão e os olhos soltando centelhas de ódio. Sem se alterar, Isabel pousou o candelabro na mesa e sorriu friamente.
— Daqui a pouco amanhece. A noite está passando muito depressa.
— Sim! — regozijou-se a outra. — Falta pouco para o amanhecer! Eles não conseguirão! Está me ouvindo? Se você está mancomunada com eles, diga-lhes que não conseguirão! Eu vou matar vocês todos!
A governanta continuava sorrindo.
— Pouco me importa morrer, se puder provar a inocência de meu marido. Ainda há pessoas, em Perth, que estão na dúvida. Mas foi você quem matou os patrões! Agora, sei que foi! Por que voltou ao castelo?
— Maldita a hora em que concordei em voltar! Eu devia ter ficado no estrangeiro!
— Foi você, não foi? — insistiu Isabel, calmamente.
— Foi você quem matou Mr. Fraser, Mr. Cinthia e a menina! Diga que foi!
— Sim! — rouquejou Rosemary. — Fui eu! Mas ninguém pode provar! A polícia me interrogou, há três anos, e me deixou em paz! Ninguém sabe de nada! E nunca saberá!
Intimamente, jurava a si mesma que não deixaria a governanta sair viva daquela casa.
— Mas eles sabem — volveu Isabel, soltando um suspiro de alívio. — Eles sempre sabem de tudo!
— Os mortos não podem testemunhar contra os vivos! Nenhum tribunal aceitaria o testemunho de um espírito! Ainda que eles existam... ainda que tudo isto não seja uma farsa... não tenho medo deles! Não há provas! Eu não deixei nenhuma pista atrás de mim! Daqui a pouco vem o dia... e acabará este pesadelo! Agora, estou rica! chega de trabalhar para os outros! Chega de ser uma máquina de prazer nas mãos obscenas de Mr. Fraser!
— Você era amante dele?
— Claro! Ele me seduziu, quando tinha apenas dezessete anos! Depois empregou-me como preceptora de Mildred. Mas eu estava farta, farta!
Agora, fiquei livre! Os velhos não tinham parentes... e, com a morte da menina, eu era a única herdeira! A única! Fiquei rica, muito rica! Vendi as jóias mais valiosas no Oriente e fiquei milionária!
Agora, estou rica, livre e feliz! Estou muito feliz!
As lágrimas corriam pelo seu rosto convulsionado pelo desespero.
— Você quis complicar Lee — disse Isabel, com' voz magoada. — Usou a capa e suas luvas que ele tinha guardado no galpão.
— Pouco me importa aquele bêbado! Eu precisava de uma capa e duas luvas, e lancei mão das primeiras que encontrei! Foi um plano genial, Isabel! Tudo estudado, tudo cronometrado! Nem os espíritos poderão provar a minha culpa! Naquela noite, roubei o dinheiro e as jóias mais valiosas, escondendo tudo no jardim; depois, abri a porta principal do castelo, apanhei a acha-de-armas na panóplia e... Foi tão fácil, Isabel! Quando Lee acorreu, eu já tinha jogado a capa e as luvas no poço das escadas e me trancado no quarto, jogando a chave, por baixo da porta, para o corredor. E a polícia acreditou que tivessem sido os ladrões!
— Não, a polícia não acreditou. Mas, realmente, não tinha provas contra você. Não tinha prova contra nenhum de nós.
— Foi um crime perfeito, Isabel! E a verdade nunca será descoberta!
— Eles quebraram a perna de Lee...
— Os espíritos? — perguntou Rosemary, com ar de riso.
— Não. A polícia. Depois que você viajou para o Oriente, os detetives queriam que meu marido confessasse que era o culpado. Bateram nele... torturaram-no... quase o mataram... mas ele não confessou. Era um bêbado, mas não era um monstro. Num ataque de desespero, atirou-se de uma janela da delegacia. Foi aí
que quebrou a espinha... e ficou corcunda para o resto da vida! Agora, temos certeza de que não foi ele! Agora, sabemos quem é o monstro!
Só então Rosemary caiu em si e compreendeu tudo. Tinha cometido um erro imperdoável! Como fora tão idiota, a ponto de revelar todos os detalhes de seu crime perfeito? Agora, mais do que nunca, a governanta não podia ficar viva!
— Maldita! — gritou, erguendo o punhal. — Você me fez falar!
Isabel deu meia volta, aterrorizada, enquanto as vozes voltaram a soar escarninhamente:
— Não foi ela, fomos nós! Fomos nós que te fizemos falar! Não foi ela, fomos nós! Fomos nós!
As risadas abafaram o grito de dor da governanta. Atingida nas costas pela ponta aguçada do punhal, a pobre mulher cambaleou através do hall e foi cair junto da porta principal. Aí se deixou ficar encolhida com um dos braços estendido e o rosto oculto debaixo do outro. Rosemary avançou para ela, brandindo o punhal ensangüentado, mas as vozes fizeram-na parar. Eram as vozes de um homem, de uma mulher e de uma criança:
— Adeus Rosemary! Adeus, Rosemary! Adeus, Miss. Carter!
A luz do dia cresceu e entrou, gloriosamente pela janela aberta, expulsando as trevas. O relógio de pêndulo bateu alegremente cinco badaladas da noite. Era a manhã que nascia, afugentando os espíritos da noite.
— O sol! — bradou Rosemary, ofegante, cheia de esperança. — Eu venci! Eu venci, outra vez!
Um coro de soluços magoados ressoou nas paredes do hall e foi se afastando, até se diluir na distância. As vozes lamentavam o seu fracasso; o crime fora mais forte do que o castigo.
Enquanto isso, no alpendre, do lado de fora do castelo, Anthony Lee despertou, incomodado com a claridade que lhe batia no rosto. O corcunda piscou os olhos vermelhos. Alguém lhe sussurrava uma ordem imperiosa. Ele resmungou, acendeu a vela que lhe restava e olhou, sorrindo, para a grande chave metida na fechadura da porta.
Sim, tinha chegado a hora de abrir!
— Louvado seja o Senhor!
Torceu a chave, abriu a pesada porta de carvalho e entrou na hall, empunhando a vela acesa. Seus olhos piscaram duas vezes, quando deram com a figura de Isabel, inerte, caída no meio do caminho.
Mas não teve tempo para acudi-la. Rosemary avançou, como uma leoa ao ver aberta a saída da jaula, e saltou por cima do corpo da governanta.
— Venci! Venci! Venci!
Mas pisou no braço estendido de Isabel e perdeu o equilíbrio. Ainda tinha o punhal na mão; vendo que ia cair, tentou se livrar dele, jogando-o para frente, porém as faixas de gaze prenderam a arma firmemente, com a lâmina afiada apontando para cima. Rosemary soltou um grito de surpresa, logo transformado num berro de dor. O punhal cravara-se tão profundamente no seu peito que a ponta surgiu nas costas. Caída de bruços, a mulher rouquejou qualquer coisa, esperneou um pouco, cuspiu uma golfada de sangue e ficou imóvel.
Simultaneamente, a porta da capela se abriu e apareceu Robert, seguido por Samantha e Mrs. Sanders. Num rápido olhar compreendeu tudo. O rapaz virou o corpo da ex-preceptora e todos puderam ver o cabo do punhal espetado na altura do coração. Um pouco de sangue ainda pingava do ferimento.
— Agora, podemos descansar — disse uma voz alegre, no fundo do hall. — Agora, podemos dormir!
Era uma voz de homem e tinha sotaque yankee.
Sem esperar por mais nada, Robert agarrou nas mãos de Samantha e Mrs. Sanders e puxou-as para a porta, onde saíram para o sol. Lee, que assistira a tudo de boca aberta, pousou cuidadosamente a vela acesa ao lado da cabeça de Rosemary, iluminando o seu rosto contorcido pela agonia e fez o sinal da cruz. Isabel pôs-se de pé, com dificuldade, o braço torcido atrás das costas, tentando cocar o ferimento. Não tinha sido uma punhalada muito funda, mas ardia como pimenta.
— Ajude-me, idiota! — rosnou, lançando um olhar torvo para o marido. — Deixa para lá a alma desse demônio! Não está vendo que ela me machucou? Foi Miss. Carter quem matou os patrões, afinal! Nós sabíamos que tinha sido ela!
Lee acenou compreensivamente e foi ajudar a mulher. E os dois, encurvados, amparados um ao outro, saíram pela porta principal e desceram o penhasco, afastando-se vagarosamente do castelo das vozes.
Robert e as duas americanas esperavam por Isabel e o corcunda no bangalô do penhasco; aí, se despediram e regressaram a Perth, no jaguar preto da falecida Rosemary Carter. Depois de terem prevenido a polícia local, Mrs. Sanders sugeriu que o rapaz a levasse até Edimburgo, no seu carro. Na volta, disse ela, estaria em melhores condições de prestar seu depoimento às autoridades. O jovem advogado concordou. Por isso, na tarde daquele sábado, os três percorreram os 50 quilômetros da rodovia de Edimburgo, gozando o ar fresco e luminoso dos campos ensolarados. Robert e Samantha viajavam no banco dianteiro do Austin e Mrs. Sanders, atrás, numa posição que não lhe permitia ver as mãos dos dois namorados.
— A senhora me deve uma explicação — disse o rapaz, a meio do caminho, olhando por cima do ombro. — Miss. Carter morreu acidentalmente, espetando-se no punhal que segurava. Mas alguma coisa deve tê-la perturbado, a ponto da fazê-la perder a
serenidade. Foram as vozes, com certeza. Agora, eu lhe pergunto. Mrs. Sanders:
A quem pertenciam aquelas vozes que nos perseguiram? Aos espíritos dos mortos?
— Não — respondeu a americana, sorrindo. — Não houve nenhum fenômeno sobrenatural na história. Nossos nervos, em pânico, é que nos traíram, fazendo-nos acreditar em almas do outro mundo.
As vozes foram reais, embora transmitidas através de pequenos alto-falantes de teatro. Eu lhe conto tudo, Robert. Meu nome de solteira é Silvestre e sou prima do falecido William Fraser.
— Ah! — exclamou o rapaz, apertando com mais força a coxa direita de Samantha.
— Ui! — gemeu a moreninha, beliscando o rosto do namorado.
Mrs. Sanders continuou:
— Eu estava em Detroit quando os jornais noticiaram a morte misteriosa de meu primo. Soube, também, que a preceptora de Mildred herdara o Castelo de Rockemburgh e, livre de suspeitas, viajara para o Oriente. Aquilo me causou estranheza. Encarreguei üm detetive de investigar o caso, aqui na Escócia, mas não adiantou. Não havia provas contra Rosemary Carter. Contudo, se eu provasse a culpa da mulher, a herança de Bill viria ter às minhas mãos... Com o correr do tempo, abandonei as investigações e desisti de ter um castelo na Escócia... Até que Miss Carter regressou do Oriente e pôs o castelo à venda. Fui informada do fato e decidi vir pessoalmente à Escócia, conhecer a preceptora de Mildred. Não disse nada a Samantha, pois queria lhe fazer uma surpresa, no caso de poder provar a culpa de Miss Carter. Então, a bordo do navio que nos trouxe de Nova Iorque.
— A senhora viajou de navio?
Sim. Tenho medo de avião. A bordo, conheci Mr. Jim Jones...
— Um cavalheiro muito esquisito — comentou Samantha, afagando o rosto de Robert. — Mamãe e ele passaram a viagem toda em grandes confabulações... Pensei que o assunto fosse o espiritismo.
O pequeno Austin fazia ziguezague pela estrada.
— E foi — disse Mrs. Sanders — Mr. Jim Jones também entende um pouco de ciências ocultas. Conversamos sobre o massacre do Castelo de Rockemburgh e as vozes que ali teriam sido ouvidas. Mr. Jim Jones prontificou-se a ajudar-me no que estivesse ao seu alcance. Por coincidência, ele ia se exibir em Edimburgo, neta temporada teatral. Combinamos, então, forjar uma sessão de "vozes do além", afim de assustar Miss Carter e fazê-la confessar os crimes. Sua confissão seria gravada, através de microfones ocultos no Great Hall, num rolo de fita magnética. Mr. Jim Jones encarregou-se de imitar as vozes de meu primo, e da esposa e da filhinha. E, como vocês viram, saiu-se muito bem da prova. Até eu mesma acreditei que estávamos ouvindo as vozes dos espíritos!
— Mr. Jones — disse Samantha friamente — abusou do seu poder de mistificação! Não havia necessidade de tanto realismo! Ele me deixou simplesmente apavorada!
Nesse momento, Robert soltou um suspiro e disse que estava satisfeito. Pouco depois, atravessaram a ponte sobre o Firth of Tay e entraram em Edimburgo.
— Para o "Variety" — pediu Mrs. Sanders. — Mr. Jim Jones já deve estar lá.
Robert estacionou o cano numa rua lateral, próximo do teatro de variedades, e eles saltaram.
Um grande cartaz, à porta da casa de espetáculos, anunciava a estréia de "Mr. Jim Jones, o homem das mil vozes". Mr. Jones era um famoso ventríloquo norte-americano.
Encontraram o artista no palco, supervisionando o ensaio geral do show que complementava os seus números. Era um homem de meia-idade, dono de uma voz grave e uma impressionante barba branca.
Ao ver Mrs. Sanders e Samantha, correu a apertar-lhes a mão.
— Que prazer em vê-las, caras amigas! Ficam para assistir ao espetáculo, não é verdade? Faço questão de lhes arranjar um camarote!
— Obrigada — disse Mrs. Sanders. — Temo não poder ficar em Edimburgo esta noite. Miss Carter morreu, vítima de uma faca que ela própria empunhava. Como o senhor sabe, foi ela a assassina de meus primos. Vim aqui apenas para lhe agradecer a cooperação e pagar-lhe o combinado. Nenhum de nós pode ver os fios do sistema de amplificação que o senhor instalou, ontem de manhã no hall do castelo. O senhor está de parabéns, Mr. Jim Jones!
Seu espetáculo das vozes foi impressionante!
— Peço o seu perdão — retrucou o ventríloquo, coçando nervosamente a barba. — A verdade, cara amiga, é que meu empresário não me deixou retirar o material do teatro, por causa do ensaio geral.
Lamento muito. Eu não estive no Castelo de Rockemburgh.
Ell Sov
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