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O CASTELO DE LLYR / Lloyd Alexander
O CASTELO DE LLYR / Lloyd Alexander

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CASTELO DE LLYR

 

Nesta crônica de Prydain, seguindo o Livro dos Três e O Caldeirão Negro, o que sucede à heroína é tão importante e arriscado quanto o objetivo do próprio herói. A Princesa Eilonwy, dos cabelos vermelho-dourados, não se limita a en­frentar a inevitável (e, a seu ver, absolutamente desneces­sária) provação de se tornar uma jovem da corte. Dallben, o velho feiticeiro, adverte: “Para cada um de nós chega o momento em que precisamos ser mais do que somos.” E isso é verdadeiro, tanto para a princesa, quanto para os porqueiros-assistentes.

O Castelo de Llyr, de certo modo, é mais romântico do que as crônicas precedentes — percebe-se que Taran está ciente de seus sentimentos por Eilonwy. Também é, algumas vezes, mais engraçado — por exemplo, o total desespero dos companheiros ao lidar com o Príncipe Rhun, tão bem-intencionado quanto desventurado. A atmosfera da presente narrativa é, talvez, mais agridoce do que herói­ca. Mas a aventura deve conter algo que supere os ele­mentos inerentes aos contos de fadas, tais como a esfera dourada com poderes mágicos, a rainha vingadora, o castelo misterioso e rivais que disputam a mão de uma princesa. A essência da fantasia desencadeia acontecimentos que defi­nem melhor nossa própria fragilidade e nossa própria força. Os habitantes de Prydain são figuras fantásticas; espero que também se tornem bastante humanos.

Prydain, no entanto, é inteiramente imaginário. Mona, pano de fundo para O Castelo de Llyr, é o antigo nome galês da ilha de Anglesey. Mas esse pano de fundo não é desenha­do com a exatidão de um cartógrafo. Ao contrário, minha esperança é criar a atmosfera e não a realidade do País de Gales e suas lendas.

Alguns leitores podem ficar indignados e questionar o destino de vários vilões que fazem parte deste conto, especial­mente, no caso de um dos mais repreensíveis canalhas de Prydain. Devo assinalar que O Castelo de Llyr, assim como os livros anteriores, pode-se afirmar como uma crônica em si mesma, sendo que certos fatos podem ter conseqüências duradouras. Além disso, nada mais hei de sugerir, mas reco­mendaria uma das virtudes mais difíceis: a paciência.

Lhoyd Alexander

 

 

O Príncipe Rhun

Eilonwy dos cabelos vermelho-dourados, Prin­cesa Eilonwy, Filha de Angharad, Filha de Regat da Casa Real de Llyr, estava deixando Caer Dallben. O próprio Dallben havia determinado que fosse assim; e embora Taran sentisse, de repente, um peso estranho no coração, sabia que não poderia discor­dar das palavras do velho mago.

Na manhã de primavera em que Eilonwy devia partir, Taran arreou os cavalos e conduziu-os para fora do está­bulo. A princesa, demonstrando uma alegria fora do co­mum, tinha arrumado numa sacola, que agora levava ao ombro, os poucos objetos que lhe pertenciam. Em volta do pescoço usava uma corrente fina de onde pendia uma lua crescente de prata; no dedo, um anel antigo, artesanal; e no bolso de sua veste levava outro pertence valioso: a esfera de ouro que brilhava ao seu comando, emitindo uma luz mais intensa do que a de uma tocha acesa.

Dallben, cujo semblante estava mais tenso do que de costume, e cujas costas estavam arqueadas como se suportas­sem uma carga pesada, abraçou a menina à porta do chalé.

Sempre haverá lugar para você em Caer Dallben — disse ele —, e um lugar ainda maior no meu coração. Mas, infelizmente, criar uma jovem é um mistério que supera até mesmo o talento de um feiticeiro. Já tive — acrescentou com um leve sorriso — dificuldades suficientes para criar um Porqueiro-Assistente.

Desejo-lhe uma boa viagem à ilha de Mona — Dallben prosseguiu. — O Rei Rhuddlum e a Rainha Teleria são bon­dosos e gentis. Estão ansiosos por substituírem a sua família e ser seus protetores, e com a Rainha Teleria você aprenderá como deve se comportar uma princesa.

O quê? — exclamou Eilonwy. — Eu não faço a me­nor questão de ser uma princesa! E se já sou nobre, de que outro modo deveria agir? É como dizer a um peixe que apren­da a nadar!

Hum! — fez Dallben, parecendo duvidar. — Nunca vi um peixe de joelhos ossudos, vestes rasgadas e pés descal­ços. Tais elementos não condizem com um príncipe, assim como não condizem com você.

Pousou, suavemente, a mão curtida pelo tempo no ombro de Eilonwy.

Menina, menina, você não percebe? Para cada um de nós chega o momento em que precisamos ser mais do que somos.

E virou-se para Taran.

Cuide bem dela — disse. — Tenho certo receio de deixar você e Gurgi seguirem com ela, mas, se é para tornar mais fácil a partida, que seja.

A Princesa Eilonwy deve ir para Mona com toda a segurança — respondeu Taran.

E você — disse Dallben —, tome cuidado ao voltar. Meu coração não terá sossego até então.

Abraçou a menina e entrou, rapidamente, no chalé.

Haviam decidido que Coll os acompanharia até o porto do Grande Avren e traria de volta os cavalos. O velho e corpulento guerreiro, já montado, aguardava pacientemente. Gurgi, com os pêlos emaranhados, montado em seu pônei, de tão pesaroso que estava, até parecia uma coruja com dor de estômago. Kaw, o corvo adestrado, quieto como nunca, empoleirou-se na sela de Taran. Este ajudou Eilonwy a mon­tar Lluagor, o corcel preferido da jovem, e então montou Melynlas, o garanhão de crina prateada.

Deixando Caer Dallben para trás, o pequeno grupo pôs-se a caminho, atravessando as colinas suaves em direção ao Avren. Lado a lado, Taran e Coll seguiam à frente dos demais para mostrar o caminho, enquanto Kaw viajava, confortavel­mente, no ombro de Taran.

Ela jamais conseguiu parar de falar, nem por um ins­tante — disse Taran, tristonho. — Agora, finalmente, Caer Dallben será um lugar mais quieto.

Isso vai ser — disse Coll.

E não haverá tanto com o que se preocupar. Ela sempre se metia em apuros.

Isso, também — disse Coll.

Será melhor assim — disse Taran. — Afinal de con­tas, Eilonwy é uma princesa de Llyr. Não é como se fosse apenas uma Porqueira-Assistente.

É verdade — concordou Coll, olhando em direção às pálidas colinas.

Cavalgaram juntos, em silêncio, por algum tempo.

Sentirei saudades dela — enfim, extravasou Taran, meio contrariado.

O guerreiro experiente deu um sorriso largo e sua care­ca enrubesceu.

Você lhe disse isto?

Não... exatamente... não — hesitou Taran. — Supo­nho que deveria ter-lhe dito, mas sempre que começo a falar sobre esse assunto, sinto-me muito esquisito. Além do mais, nunca se sabe que tipo de comentário tolo ela há de fazer quando alguém tentar lhe falar a sério.

Pode ser que — Coll retrucou, sorrindo — pouco sai­bamos a respeito daquilo que para nós é mais valioso. No entan­to, teremos mais do que o suficiente para nos manter ocupados quando você voltar, e você vai aprender, meu garoto, não há nada como o trabalho para fazer o coração se aquietar.

Taran meneou a cabeça, tristemente.

Suponho que sim — disse.

Depois do meio-dia voltaram seus cavalos para o oeste, dando início a uma longa descida pelos morros, em direção ao vale do Avren. Quando chegaram à última colina, Kaw pulou do ombro de Taran, bateu as asas e, do alto, grasnou com entusiasmo. Taran apressou Melynlas. Lá embaixo, avis­tava-se o grande rio em seu curso, mais largo nessa região do que em outras por onde passara. A luz solar sarapintava a água do recanto abrigado onde ficava o porto. Uma embar­cação leve e comprida bamboleava próximo à praia. Taran podia distinguir figuras a bordo puxando os cabos para er­guerem a vela branca e quadrangular.

Eilonwy e Gurgi também tinham avançado. O coração de Taran disparou; para o grupo de amigos, a visão do porto e do veleiro à espera era como o vento do mar trazendo tristeza àquela cena. Eilonwy começou a tagarelar alegremente, e Gurgi agitou os braços com tanta força que por pouco não caiu da sela.

Sim, é claro que sim! — gritou. — Para o valente e destemido Gurgi, será uma alegria acompanhar o bondoso mestre e a nobre princesa, velejando e flutuando!

A meio galope desceram a colina e apearam à beira d’água. Ao vê-los, os marinheiros colocaram uma prancha entre a embarcação e a margem. Feito isso, um jovem subiu na pran­cha e, com passadas largas, apressou-se em direção aos com­panheiros. Mas, tinha dado apenas alguns passos, ao atravessar a prancha oscilante, quando se desequilibrou, tropeçou e, fa­zendo um estardalhaço, caiu de ponta-cabeça na água rasa.

Taran e Coll correram para ajudá-lo, mas o jovem já havia se erguido e chapinhava em direção à margem. Ele ti­nha a mesma idade de Taran, o rosto em forma de lua cheia, olhos em tom azul pálido e cabelos cor de palha. Trazia uma espada e, no cinto de elos prateados, um pequeno punhal ricamente ornamentado. Seu gibão e sobrecapa, bordados com linhas douradas e prateadas, agora estavam encharcados; no entanto, o estranho não demonstrava a menor apatia, apesar do mergulho e do estado de sua vestimenta. Ao con­trário, sorriu, animado, como se nada tivesse lhe ocorrido.

Olá, olá! — exclamou, acenando a mão molhada. — É a Princesa Eilonwy que estou vendo? Evidente! Só pode ser!

Sem mais alvoroço, e sem parar para torcer o gibão, o jovem inclinou-se tanto, que Taran receou que ele fosse per­der o equilíbrio; em seguida ergueu-se e, numa voz solene, declarou:

Em nome de Rhuddlum, filho de Rhudd e Teleria, filha de Tannwen, Rei e Rainha da ilha de Mona, saudações à Princesa Eilonwy da Casa Real de Llyr, e aos... bem, aos de­mais — acrescentou, piscando rapidamente quando lhe ocor­reu um pensamento. — Deveria ter perguntado seus nomes antes de começar.

Taran, perplexo e nada constrangido diante desse com­portamento estouvado, deu um passo à frente e apresentou os companheiros. Antes que pudesse perguntar o nome do estranho, foi interrompido pelo jovem.

Esplêndido! Todos vocês terão que se apresentar mais tarde, um de cada vez. Caso contrário, poderei esque­cer... ah, o capitão do navio está acenando para nós. Deve ser a respeito das marés, sem dúvida. Ele sempre se preocupa com as marés. Esta é a primeira vez que comando uma via­gem — continuou, demonstrando orgulho. — Impressionan­te! É tão fácil. O que se deve fazer é dizer aos marinheiros...

Mas, quem é você? — Taran perguntou, intrigado. O jovem piscou para ele.

Por acaso esqueci-me de dizer? Sou o Príncipe Rhun.

— Príncipe Rhun? — Taran repetiu, incrédulo.

Certo — respondeu Rhun, sorrindo com satisfação.

O Rei Rhuddlum é meu pai; e, é claro, a Rainha Teleria é minha mãe. Vamos embarcar? Não gostaria de aborrecer o capitão, pois ele está mesmo preocupado com essas marés.

Coll abraçou Eilonwy.

Da próxima vez que a encontrarmos — disse-lhe ele — duvido que a reconheçamos. Você será uma verdadeira princesa.

Eu quero ser reconhecida! — protestou Eilonwy. — Quero ser eu mesma!

Disso não tenha receio, jamais — disse Coll, dando uma piscadela. Voltou-se para Taran. — E você, meu menino, adeus. Quando chegar em casa, mande Kaw me avisar e eu o encontrarei no porto do Avren.

O Príncipe Rhun, oferecendo o braço a Eilonwy, aju­dou-a a atravessar a prancha. Gurgi e Taran seguiram-nos. Tendo formado a própria opinião a respeito da destreza de Rhun, Taran manteve o olhar atento no príncipe e em Eilonwy até que estivessem seguros, a bordo.

Ao contrário do que se pensava, a embarcação era es­paçosa e bem equipada. O convés era comprido, e em cada lado havia bancos para os remadores. Na popa erguia-se um galpão alto e quadrado encimado por uma plataforma.

Os remadores conduziram a embarcação até a parte central do rio. Coll trotava pela margem e acenava com toda a disposição. Não se avistava mais o guerreiro quando o bar­co percorreu uma curva do rio, cada vez mais largo. Kaw já estava no mastro e a brisa que assobiava por entre as suas penas fazia-o bater as asas com tanto orgulho, que mais pare­cia um galo negro e não um corvo. Ao longe viam-se as mar­gens, que agora pareciam acinzentadas, e a embarcação des­lizou velozmente em direção ao mar.

Se Rhun deixara-o perplexo e irritado no primeiro en­contro, agora Taran gostaria de jamais tê-lo visto. Taran pen­sara em falar com Eilonwy em particular, para lhe contar tudo o que se passava em seu coração. No entanto, cada vez que tentava fazê-lo, o Príncipe Rhun surgia do nada, sua face vi­brando de felicidade, gritando “Olá, olá!”, saudação que exas­perava Taran a cada vez que a ouvia.

Certa vez, o Príncipe de Mona chegou, ansioso, exibin­do aos companheiros um peixe grande que havia pescado, para a alegria de Eilonwy e Gurgi, mas não para Taran, pois, logo em seguida, Rhun desviou sua atenção para outro ponto e saiu apressado, deixando nos braços de Taran o peixe molhado e escorregadio. Em outra ocasião, quando se de­bruçava por cima da lateral da embarcação para apontar um cardume de golfinhos, o príncipe quase deixou cair a espada no mar. Por sorte, Taran pegou-a antes que ela se perdesse para sempre.

Depois que a embarcação estava em mar aberto, o Prín­cipe Rhun decidiu manejar o timão. No entanto, mal havia segurado o leme quando este escapou-lhe dos dedos. En­quanto Rhun agarrava-se à manivela de madeira, o barco jo­gou e se inclinou de tal maneira que Taran foi arremessado contra a amurada. Um barril de água desprendeu-se e rolou convés abaixo; a vela tremulava loucamente em virtude da mudança de curso repentina e um banco de remadores teria se quebrado, se o timoneiro não tivesse recuperado o con­trole do leme das mãos do intrépido príncipe. A pancada dolorosa na cabeça de Taran de nada serviu para melhorar o seu conceito sobre a destreza náutica do Príncipe Rhun.

Embora o príncipe tivesse desistido de qualquer tentati­va de conduzir a embarcação, subia na plataforma de onde, aos gritos, dava ordens à tripulação.

Amarrem a vela! — gritava Rhun, alegremente. — Firme no leme!

Apesar de não ser marinheiro, Taran percebeu que a vela já estava bem amarrada e o barco singrava as águas com firmeza; e logo percebeu também que os marinheiros, discre­tamente, empenhavam-se em manter o veleiro no rumo cer­to, sem prestar a menor atenção ao príncipe.

Depois da pancada, a cabeça de Taran ficou dolorida e, com a jaqueta molhada, cheirando a peixe, ele se sentia ainda mais desconfortável; quando, finalmente, teve a chance de falar com Eilonwy, estava em mau estado.

Príncipe de Mona, francamente! — murmurou. — Não passa de um... um projeto de príncipe, desajeitado e tonto. Comandar a viagem? Se os marinheiros dessem-lhe ouvidos, logo iríamos encalhar. Nunca velejei, mas não tenho a menor dúvida de que me sairia melhor do que ele. Nunca vi ninguém tão inútil.

Inútil? — retrucou Eilonwy. — Ele pode parecer um tolo, de modo geral. Mas tenho certeza de que suas inten­ções são boas, e percebo que tem bom coração. Para dizer a verdade, acho que ele é muito agradável.

Suponho que você pense assim — Taran retrucou, já exasperado pelas palavras de Eilonwy. — Foi porque ele ofe­receu o braço para você se apoiar? Gesto galante de um prín­cipe. Que sorte que ele não jogou você para fora da prancha.

Ao menos foi gentil — observou Eilonwy —, coisa que Porqueiros-Assistentes, às vezes, não são.

Porqueiro-Assistente — Taran revidou. — Sim, esse será o meu quinhão na vida. Nasci para ser um Porqueiro-Assistente, assim como o Príncipe de Mona nasceu para essa posição. Ele é o filho do rei e eu... eu nem ao menos sei o nome de meus pais.

Bom — disse Eilonwy —, você não pode culpar Rhun por ter nascido. Quero dizer, poderia, mas de nada adiantaria. É a mesma coisa que chutar uma pedra com o pé descalço.

Taran bufou.

Suponho que a espada que ele leva seja do pai, e suponho que jamais a tenha sacado, a não ser para assustar um coelho. Eu, pelo menos, conquistei o direito de usar a minha. E mesmo assim, ele se considera um príncipe. É a sua origem que o faz merecedor da sua posição? Tão merecedor quanto Gwydion, Filho de Don?

O Príncipe Gwydion é o maior guerreiro de Prydain — Eilonwy observou. — Você não pode esperar que todos sejam como ele. E na minha opinião, se um Porqueiro-Assis­tente faz o melhor possível, e se um príncipe faz o melhor possível, não há diferença entre eles.

Não há diferença! — exclamou Taran, com raiva. — Você já fez elogios demais a Rhun!

— Taran de Caer Dallben — declarou Eilonwy —, real­mente, parece-me que você está com inveja. Pobre de você! E isso é tão ridículo quanto... quanto pintar o nariz de verde!

Taran não falou mais, mas virou o rosto, fixando um olhar tristonho na água.

Para piorar tudo, o vento esfriou, o mar elevou-se à altura das laterais da embarcação e Taran mal conseguia man­ter-se de pé. Sua cabeça rodava e ele temia que o barco virasse. Eilonwy, com o rosto totalmente pálido, agarrava-se à amurada.

Gritando, Gurgi expressou um lamento.

Cabeça mimosa! Está cheia de voltas e reviravoltas! Gurgi não gosta mais deste barco. Gurgi quer ir para casa!

O Príncipe Rhun surgiu e não denotava a mínima aflição. Tinha se alimentado a valer e estava no melhor dos humores, enquanto Taran, com uma aparência miserável, aconchega­va-se no próprio gibão. O mar não se acalmou até o crepús­culo e, ao anoitecer, Taran ficou feliz quando o barco anco­rou nas águas tranqüilas de uma enseada. Eilonwy retirou da veste a esfera de ouro. Nas suas mãos o objeto começou a brilhar e os fachos de luz refletiram-se na água escura.

Eu pergunto: o que é isso? — indagou o Príncipe Rhun, que havia descido da plataforma.

É a minha bolinha — disse Eilonwy. — Trago-a sem­pre comigo. Nunca se sabe quando poderá ser útil.

Maravilhoso! — exclamou o príncipe. — Em toda a minha vida jamais vi algo assim.

Observou a pequena bola dourada, minuciosamente, mas, ao segurá-la, a luz se apagou. Rhun ergueu os olhos, espantado.

Parece que a estraguei.

Não — Eilonwy garantiu —, é que não funciona com todo mundo.

— Inacreditável! — disse Rhun. — Você precisa mos­trar isso aos meus pais. Gostaria de ter algumas dessas bugi­gangas espalhadas pelo castelo.

Após um último olhar curioso para a esfera, Rhun de­volveu-a a Eilonwy. Insistindo que a princesa dormisse no abrigo, onde seria confortável, Rhun acomodou-se sobre uma pilha de redes. Gurgi enroscou-se por ali, enquanto Kaw, ig­norando os pedidos de Taran para que abandonasse o polei­ro, ajeitou-se no mastro. Rhun adormeceu imediatamente e o som dos seus roncos era tão penetrante que Taran, já abor­recido além da conta, deitou-se no convés, o mais longe pos­sível do príncipe. Quando Taran finalmente adormeceu, so­nhou que ele e os amigos jamais haviam deixado Caer Dallben.


 

Dinas Rhydnant

Os dias seguintes foram mais animadores para Taran. Os companheiros acostumaram-se com o balanço da embarcação; o ar estava limpo, frio e saturado de sal, e Taran sentia o borrifo salgado nos lábios. Enquanto o Príncipe Rhun, do topo de sua plataforma, bradava comandos que a tripulação, como de costume, ignorava, os companheiros aproveitavam o tempo para realizar tarefas a bordo. O trabalho, Coll bem o dissera, acalmou o coração de Taran. Além disso, havia momentos em que ele, repentinamente, ao lembrar-se do propósito da viagem, desejava que esta jamais terminasse.

Tinha acabado de enrolar um cabo, quando Kaw des­ceu rapidamente do mastro e circulou ao redor dele, gras­nando com ansiedade. Logo em seguida, o vigia gritou que a terra fora avistada. Animados pelo príncipe, os compa­nheiros subiram depressa à plataforma. Na manhã ensola­rada Taran viu as colinas de Mona saltarem do horizonte. O barco aproximou-se velozmente do porto de Dinas Rhydnant, que se definia cada vez mais, mostrando os píeres e quebra-mares, o muro de pedra e várias embarcações.

Penhascos íngremes erguiam-se, praticamente, da beira d’água e, no mais alto deles, situava-se um castelo. De lá, as flâmulas da Casa de Rhuddlum tremulavam com a brisa.

O barco deslizou até o píer; os marinheiros arremessa­ram as cordas de atracação e desembarcaram. Os compa­nheiros, com o Príncipe Rhun marchando à frente, foram es­coltados ao castelo por fileiras de guerreiros que formaram uma guarda de honra com suas lanças.

No entanto, nem mesmo esse breve percurso terminou sem transtorno. O Príncipe de Mona, ao sacar a espada para saudar o Capitão da Guarda, fez um gesto tão impulsivo que a ponta da lâmina prendeu-se no gibão de Taran.

Sinto muito — exclamou Rhun, examinando o corte largo e extenso que a espada causara.

E eu também — murmurou Taran, aborrecido com Rhun e já constrangido ao pensar na impressão que sua vestimenta rasgada causaria ao rei e à rainha. Nada mais dis­se; cerrou os lábios e desejou, ardentemente, que o dano passasse despercebido.

O séquito passou pelos portões do palácio e chegou a um pátio amplo. Gritando um feliz “Olá, olá!” o Príncipe Rhun correu em direção aos seus pais. O Rei Rhuddlum tinha o mesmo rosto redondo e alegre do Príncipe Rhun. Cumpri­mentou os companheiros, cordialmente, repetindo-se inúme­ras vezes. Se percebeu o gibão rasgado de Taran, nada de­monstrou, o que fez Taran ficar ainda mais angustiado. Quan­do, afinal, o Rei Rhuddlum acabou de falar, a Rainha Teleria deu um passo à frente.

A rainha, mulher corpulenta e de aparência agradável, usava um vestido branco e esvoaçante; um diadema dourado coroava os cabelos trançados, que tinham o mesmo tom de pa­lha dos cabelos do Príncipe Rhun. Ela cobriu Eilonwy de bei­jos, abraçou Taran, que ainda estava envergonhado, e dete­ve-se de espanto ao se aproximar de Gurgi. Mas, apesar dis­so, abraçou-o.

Bem-vinda, Filha de Angharad — disse a Rainha Teleria, dirigindo-se a Eilonwy. — Sua presença honra... não se mexa, criança, e fique ereta... a nossa Casa Real.

A rainha parou, repentinamente, e pôs as mãos nos ombros de Eilonwy.

Boa Llyr! — exclamou. — Onde conseguiu essas rou­pas horrendas? Sim, estou vendo que estava mais do que na hora de Dallben deixá-la sair daquele buraco no meio da floresta.

Buraco! — protestou Eilonwy. — Eu adoro Caer Dallben. E Dallben é um grande feiticeiro.

— Exatamente — disse a Rainha Teleria. — De tão ocupado que esteve, fazendo feitiços e tudo mais, deixou você crescer como se fosse uma erva!

Voltando-se ao Rei Rhuddlum.

Não está de acordo, meu querido?

Bem semelhante a uma erva — concordou o rei, olhando interessado para Kaw.

O corvo abriu as asas, o bico, e grasnou “Rhuddlum!”, para a imensa satisfação do rei.

Nesse ínterim, a Rainha Teleria estivera examinando, ao mesmo tempo, Taran e Gurgi.

Veja esse gibão rasgado, que tristeza! Vocês dois pre­cisam de trajes novos — declarou. — Novos gibões, novas sandálias, tudo. Por sorte temos agora no castelo um sapatei­ro absolutamente maravilhoso. Ele estava... não morda os lá­bios assim, criança, você pode ficar com uma afta... de passa­gem. Mas nós o mantivemos ocupado e ele continua conser­tando sapatos. Nosso Camareiro-Chefe vai tomar as provi­dências necessárias, Magg! — chamou. — Magg! Onde ele está?

— Às suas ordens — respondeu o Camareiro-Chefe, que estivera o tempo todo ao lado da Rainha Teleria.

O gibão do camareiro era um dos mais bonitos que Taran tinha visto, bordado com tanto requinte que por pou­co não superava a vestimenta do Rei Rhuddlum. Magg segu­rava um longo cajado de madeira polida, mais alto do que ele mesmo, trazia em torno do pescoço um cordão de prata maciça e no cinto uma imensa argola de ferro, na qual tilintavam chaves de todos os tamanhos.

Tudo foi providenciado — disse Magg, fazendo uma reverência acentuada. — Sua ordem foi prevista. O sapatei­ro, os alfaiates e tecelões estão a postos.

Ótimo! — exclamou a Rainha Teleria. — Agora, para começar, eu e a princesa iremos às oficinas de tecelagem. E Magg vai mostrar os quartos aos demais.

Magg inclinou-se mais uma vez, ainda mais para baixo, e, com o cajado, sinalizou para os demais. Com Gurgi nos calca­nhares, Taran seguiu o Camareiro-Chefe. Atravessaram o pátio até chegarem a uma edificação alta, de pedra, e, em seguida, desceram por um corredor de teto arqueado. No final deste, Magg indicou uma porta aberta e retirou-se em silêncio.

Taran entrou. O quarto era pequeno, mas limpo e are­jado, iluminado pela luz do sol que penetrava pelo batente estreito da janela. Folhas aromáticas de junco cobriam o chão e no canto havia um banco baixo e uma cama com forro de palha. Taran mal havia tirado o gibão quando a porta se abriu bruscamente e uma cabeça pontuda e alourada surgiu.

Fflewddur Fflam! — gritou Taran, ao mesmo tempo surpreso e alegre, ao ver o companheiro que há muito esti­vera ausente. — Que prazer!

O bardo segurou a mão de Taran e começou a sacudi-la com toda a força, enquanto batia no seu ombro, fazendo barulho. Kaw bateu as asas, e Gurgi deu pulos, uivou o mais alto que pôde e abraçou Fflewddur cobrindo-o de gravetos, folhas e pêlos soltos.

Ora, ora, ora! — disse o trovador. — E já é tarde! Estava esperando vocês. Pensei que vocês nunca chegariam.

Como você veio? — exclamou Taran, recuperando o fôlego. — Como sabia que estaríamos em Dinas Rhydnant?

Como poderia ignorar? — respondeu o bardo, vi­brando de alegria. — Não se fala em outro assunto que não seja a Princesa Eilonwy. A propósito, onde ela está? Preciso vê-la e apresentar-lhe meus cumprimentos, imediatamente. Estava esperando que Dallben a mandasse com vocês. Como ela está? E Coll como está? Estou vendo que trouxeram Kaw. Grande Belin, faz tanto tempo que não vejo nenhum de vocês que fiquei meio perdido!

Mas, Fflewddur — Taran interrompeu —, o que o traz a Mona, um lugar desses?

Bem, é uma história curta — disse o bardo. — Deci­di, desta vez, tentar me tornar rei. E foi o que fiz, durante boa parte do ano. Então, veio a primavera e com ela o tempo de sair por aí e compor trovas. Todos os ambientes fechados tornaram-se sombrios, e tudo que se passava ao ar livre co­meçou, de certo modo, a me atrair; quando me dei conta, já estava a caminho. Jamais estive em Mona, então essa era a razão principal para vir. Faz uma semana que cheguei a Dinas Rhydnant. O barco já havia saído para encontrá-los, caso con­trário, eu estaria a bordo.

E pode ter certeza de que a sua companhia teria sido melhor para nós do que a do Príncipe de Mona — disse Taran. — Sorte que aquele nobre tolo não tenha jogado o barco contra um recife fazendo-nos afundar. Mas, e Doli? — continuou. — Queria tanto vê-lo assim como queria ver você.

Boa gente, o Doli.

O bardo deu uma boa risada, sacudindo a cabeça.

Tentei recrutá-lo quando saí de casa, mas havia se refugiado no reino do Povo Formoso, com seus parentes — Fflewddur suspirou. — Receio que nosso anão tenha perdido o gosto pela aventura. Consegui enviar-lhe uma mensagem, pensando que talvez ele viesse comigo, ao me­nos para se divertir. Mandou-me a resposta. Tudo que dizia era: “Hum!”

Você devia ter vindo nos encontrar no porto — dis­se Taran. — Teria me alegrado, saber que você estava aqui.

Ah... sim, eu pretendia ir — respondeu Fflewddur, com certa hesitação —, mas achei melhor esperar e fazer-lhes uma surpresa. Também, estava ocupado, aprontando uma canção a respeito da chegada da princesa. Uma canção comovente, se é que posso dizer assim. Todos nós somos mencionados na toada, que está repleta de feitos heróicos.

E Gurgi, também? — exclamou Gurgi.

É claro — disse o trovador. — Esta noite, pretendo cantá-la para todos vocês.

Gurgi deu gritos e bateu palmas.

Gurgi mal pode esperar para ouvir o cantarolar e o dedilhar!

Você vai ouvir, velho amigo — o bardo confirmou —, tudo no momento certo. Mas, podem imaginar que eu mal po­dia esperar a hora de participar do cortejo de boas-vindas...

Dito isso, uma corda da harpa rompeu-se, repentinamente. Fflewddur retirou o instrumento de cima dos ombros e fitou-o com pesar.

— É sempre assim — suspirou. — Essas cordas incon­venientes sempre se rompem toda vez que eu... hã... acres­cento algo mais à verdade. E, nesse caso, a verdade é a se­guinte: não fui convidado.

Mas o bardo da harpa é honrado em toda a corte de Prydain — retrucou Taran. — Como puderam eles ignorar...

Fflewddur ergueu a mão.

Verdade, verdade — disse. — Decerto, fui reveren­ciado aqui, e foi muito bonito, inclusive. Isso foi antes de sa­berem que eu não era um verdadeiro bardo. Em seguida, tive que me mudar para os estábulos.

Você deveria ter dito a eles que é um rei — disse Taran.

Não, não — disse Fflewddur, sacudindo a cabeça. — Quando sou um bardo, sou um bardo; quando sou rei, é outra história. Jamais confundo as duas coisas.

— O Rei Rhuddlum e a Rainha Teleria são honrados — continuou Fflewddur. — Foi o Camareiro-Chefe quem me expulsou.

Tem certeza de que não houve um engano? — Taran perguntou. — Pelo que pude observar, parece que ele cum­pre muito bem os seus deveres.

— Bem demais, se quer saber — disse Fflewddur. — De algum modo ele descobriu tudo sobre meus atributos e depois, foi o que me aconteceu... para os estábulos! Penso que, na verdade, ele detesta música. É espantoso, mas quantas pessoas conheci que, por uma razão ou outra, simplesmente, não suportam o som da harpa!

Taran ouviu uma batida forte na porta. Era o próprio Magg e, atrás dele, o sapateiro em atitude humilde.

Não que ele me perturbe — Fflewddur sussurrou. — Isto é — acrescentou, olhando para a harpa —, nada além do que eu possa suportar de forma honrosa.

E ajeitou o instrumento por cima do ombro.

Sim, está certo, como estava dizendo, preciso encontrar a Princesa Eilonwy. Nós nos veremos mais tarde. Nos estábulos, se não se incomodam. E cantarei minha nova canção.

Depois de encarar Magg, Fflewddur retirou-se do quar­to a passos largos.

O Camareiro-Chefe, sem prestar atenção ao olhar furi­oso do bardo, fez uma reverência a Taran.

— De acordo com as ordens da Rainha Teleria, você e seu companheiro terão trajes novos. O sapateiro estará à sua disposição.

Taran sentou-se num banco de madeira e, assim que Magg saiu, o sapateiro aproximou-se. O homem, curvado devido à idade, usava roupas gastas. Tinha um pano encardido amarrado na cabeça e uma mecha de cabelos grisalhos quase tocava os seus ombros. Pendendo do cinto largo havia facas arredondadas, furadores e agulhas. Ajoelhando-se diante de Taran, o homem abriu uma sacola e de lá retirou tiras de couro que dispôs ao seu lado, no chão. Firmou os olhos nos objetos que encontrava, segurando-os um após o outro, e então dis­tribuiu-os ao seu lado.

Precisamos usar o melhor, o melhor — disse numa voz rouca que mais se parecia com a de Kaw. — Só nos contentaremos com o melhor. Estar bem calçado já significa realizar metade da viagem — deu uma risada. — Não é as­sim, hein? Não é assim, Taran de Caer Dallben?

Taran deu um passo atrás, num sobressalto. De repen­te, o tom de voz do sapateiro soou diferente. Taran olhou atentamente para o idoso, que havia separado um pedaço de couro e, naquele momento, talhava-o, habilmente, com uma faca pequena e torta. O sapateiro, com o rosto tão bronzeado quanto seus próprios materiais, olhava para Taran fixamente.

Gurgi estava prestes a uivar bem alto. O homem levou o dedo aos lábios.

Taran, confuso, ajoelhou-se depressa diante do sapateiro.

Lorde Gwydion...

Os olhos de Gwydion brilharam de prazer, mas seu sor­riso era inexpressivo.

Escutem-me — disse rapidamente, sussurrando. — Se formos interrompidos, darei um jeito de lhes falar mais tarde. Não digam a ninguém quem sou eu. O que devem saber, acima de tudo, é isto: a vida da Princesa Eilonwy está em perigo. E também — acrescentou — a de vocês.


 

O Sapateiro

Taran empalideceu. Sua cabeça ainda rodopiava ao ver o Príncipe de Don disfarçado de sapatei­ro, e as palavras de Gwydion deixaram-no ain­da mais confuso.

Nossas vidas em perigo? — perguntou depressa. — Arawn de Annuvin procura por nós até mesmo em Dinas Rhydnant?

Gwydion fez um gesto indicando que Gurgi deve­ria montar guarda à porta e dirigiu-se mais uma vez a Taran.

Não — disse Gwydion, sacudindo, ligeiramente, a cabeça. — Embora a fúria de Arawn tenha aumentado desde que o Caldeirão Negro foi destruído, a ameaça não vem de Annuvin.

Taran franziu a testa.

Quem seria, então? Ninguém em Dinas Rhydnant nos quer mal. Você não quer dizer que o Rei Rhuddlum ou a Rainha Teleria...

A Casa de Rhuddlum sempre manteve a amizade com os filhos de Don e com nosso Grande Rei Math — respondeu Gwydion. — Procure em outro lugar, Taran de Caer Dallben.

Mas quem magoaria Eilonwy? — insistiu Taran. — Sabe-se que ela está sob a proteção de Dallben.

Existe alguém que ousaria enfrentar Dallben — disse Gwydion. — Para essa pessoa meus poderes seriam insufici­entes e temo-a mais do que ao próprio Arawn.

O rosto de Gwydion estava tenso e seus olhos verdes vibraram de tanta raiva quando ele pronunciou uma palavra áspera:

Achren.

Taran sentiu o coração gelar.

Não — sussurrou. — Não. Aquela feiticeira perversa está morta.

Eu também acreditava que sim — Gwydion respon­deu. — Não é verdade. Achren vive.

Mas ela não chegou a reconstruir o Castelo Espiralado! — exclamou Taran, cujos pensamentos vislumbravam a mas­morra onde Achren o mantivera preso.

O Castelo Espiralado está em ruínas, como você o deixou — disse Gwydion — e está coberto de mato. Oeth-Anoeth, onde Achren teria me executado, caiu por terra. Percorri toda aquela região e vi com meus próprios olhos.

Você deve saber que, por muito tempo, refleti sobre o destino de Achren — continuou Gwydion. — Nenhum sinal dela restou, como se a terra a tivesse engolido. Isso me perturbou, sobrecarregou meu coração, e jamais desisti de procurar algum sinal dela. Finalmente, encontrei esses sinais — disse Gwydion.

Estavam esmaecidos como palavras sussurradas ao ven­to, rumores intrigantes que, a princípio, não passariam de ilusões. Um enigma absurdo, sem resposta. Talvez — Gwydion prosseguiu —, deva dizer, uma resposta sem enig­ma. E somente depois de muita dificuldade e de uma difícil jornada, descobri parte da charada. Infelizmente, só uma parte.

A voz de Gwydion tornou-se mais baixa. A medida que falava, suas mãos não paravam de talhar a sandália inacabada.

O que descobri foi o seguinte. Depois que o Castelo Espiralado desmoronou, Achren desapareceu. No início fui levado a crer que ela tivesse procurado refúgio no reino de Annuvin, pois, durante muito tempo, ela foi cônjuge de Arawn. Na verdade, foi Achren que deu poder a Arawn nos dias do seu domínio sobre Prydain.

“Mas ela não foi para Annuvin. Pelo fato de ter deixado cair a espada Dyrnwyn, e não ter acabado com a minha vida, teria medo da ira de Arawn. Talvez não ousasse encará-lo, após ter sido burlada por uma jovem e um Porqueiro-Assis­tente. Disso não tenho certeza. Entretanto, ela desapareceu de Prydain. Desde então, ninguém sabe o que lhe aconteceu. Porém, o simples fato de saber que ela está viva é motivo suficiente para se temer.”

Você acha que ela está em Mona? — perguntou Taran. — Ela pretende vingar-se de nós? Mas Eilonwy não passava de uma criança quando escapou de Achren; nada entendeu a respeito do que fez.

Intencionalmente ou não, ao levar Dyrnwyn do Cas­telo Espiralado, Eilonwy causou a Achren a mais dolorosa derrota — disse Gwydion. — Achren não esquece nem per­doa — disse, contraindo a testa. — Meu medo é que ela esteja à procura de Eilonwy. Não apenas por vingança. Perce­bo que há algo além disso. Esse algo esconde-se de mim, no momento, mas preciso descobrir o que é, sem demora. Não é apenas a vida de Eilonwy que pode estar em jogo.

Se ao menos Dallben tivesse permitido que ela ficas­se conosco — disse Taran, atemorizado. — Pode ser que ele também soubesse que Achren estava viva. Será que não se deu conta de que Eilonwy estaria em perigo a partir do mo­mento em que não estivesse mais sob sua proteção?

Os métodos de Dallben são misteriosos, e nem sem­pre cabe a mim decifrá-los. Ele sabe muito, mas pressupõe mais do que decide contar.

Deixando no chão o furador, retirou da sacola uma lin­güeta de couro e começou a costurá-la na sandália.

Dallben mandou-me dizer que a Princesa Eilonwy viajaria para Mona e aconselhou-me a voltar minha atenção para este lugar. Falou-me também de outros assuntos. Mas, é melhor não mencioná-los agora.

Não posso descansar se Eilonwy corre perigo — Taran insistiu. — Não há um meio de ajudá-lo?

— Você poderá me servir melhor ficando em silêncio — Gwydion respondeu. — Fique alerta. Não fale de mim, nem do que conversamos, nem à Princesa Eilonwy, nem mesmo a Fflewddur — sorriu. — Nosso trovador impulsivo viu-me nos estábulos e, por sorte, não me reconheceu. Enquanto isso, preciso...

Olá, olá! — exclamou o Príncipe Rhun, entrando a passos largos no quarto. — Ah, aí está você, sapateiro. Termi­nou o trabalho? Eu digo, estão bonitas, não é mesmo? — disse, admirando as sandálias. — Muito bem-feitas, impressionante! Também gostaria de ter um par. Ah! Minha mãe espera por você no Salão Grande — acrescentou, dirigindo-se a Taran.

Repentinamente, o rosto de Gwydion voltou a ter rugas e marcas; os ombros se curvaram e a voz tornou-se trêmula, como se ele fosse um velho. Sem dirigir outro olhar a Taran, Gwydion voltou-se para Rhun.

Venha comigo, jovem príncipe — disse —, você terá sandálias apropriadas à sua condição.

Seguido por Kaw, Taran deixou o quarto, apressada­mente, e percorreu o corredor. Gurgi, com os olhos esbuga­lhados de medo, corria ao seu lado.

Oh, perigo assustador! — Gurgi queixou-se. — Gurgi lamenta que o grande feiticeiro manda-nos para lugar de pe­rigo. Gurgi quer esconder sua cabeça mimosa na palha macia, lá em Caer Dallben.

Taran avisou-o que ficasse em silêncio.

É evidente que Eilonwy está correndo maior perigo do que nós — sussurrou, apressando o passo em direção à Ala Nobre. — Não gosto nem de pensar que Achren vai surgir novamente. Mas Gwydion está aqui para proteger Eilonwy. E nós também.

Sim, sim! — vibrou Gurgi. — O bravo e leal Gurgi também vai zelar pela princesa dos cabelos vermelho-doura­dos, claro que sim; e ela estará a salvo, sob a sua proteção. Mas — fungou — ele queria mesmo era estar em Caer Dallben.

Coragem, meu amigo — disse Taran. Sorriu e pôs a mão no ombro trêmulo de Gurgi.

Nós, os companheiros, não deixaremos nenhum mal nos atingir. Mas, lembre-se, não diga a ninguém que Gwydion está aqui. Ele tem seus planos e nada faremos que possa frustrá-los.

Gurgi vai ficar quieto! — exclamou Gurgi, batendo as mãos na boca. — Claro que sim! Mas tome cuidado — acres­centou, agitando o dedo na direção de Kaw — para que esse pássaro preto fofoqueiro não revele nada, quando falar e grasnar!

Silêncio! — grasnou Kaw, sacudindo a cabeça. — Segredos!

Na Ala Nobre, cujo teto era bem alto e o piso de lajes tão vasto quanto o pomar de Caer Dallben, Taran avistou Eilonwy entre um grupo de damas da corte. Algumas, da ida­de de Eilonwy, ouviam a princesa, embevecidas; as outras, que mais se pareciam com a Rainha Teleria, franziam a testa e cochichavam por trás das mãos. Magg, de pé, próximo ao trono da rainha, observava, impassível.

...e lá estávamos — Eilonwy dizia, com os olhos bri­lhando — de costas um para o outro, espadas nas mãos! Os Caçadores de Annuvin surgiram repentinamente da floresta! Iriam nos alcançar num instante!

As jovens da corte perdiam o fôlego de tanta emoção, enquanto as mais velhas, horrorizadas, pareciam cacarejar e faziam Taran se lembrar da corrida de galinhas de Coll. Taran percebeu que Eilonwy usava uma veste nova; seu cabelo ti­nha sido escovado e penteado de modo diferente; entre as damas ela resplandecia como um pássaro de plumagem dou­rada; e, sentindo uma estranha pontada no coração, Taran teve de admitir que se não fosse o falatório, típico de Eilonwy, talvez ele não a tivesse reconhecido.

Boa Llyr! — exclamou a Rainha Teleria, que se levan­tou subitamente do trono enquanto Eilonwy continuava a contar a história da batalha. — Começo a pensar que você não teve... minha querida criança, não demonstre tanta alegria quando falar sobre golpear pessoas com espadas... um só mo­mento a salvo em sua vida.

Piscou, sacudiu a cabeça e abanou-se com um lenço.

Que alívio pensar que Dallben, afinal, resolveu agir com sensatez e mandá-la para nós. No mínimo, você estará fora de perigo.

Taran prendeu a respiração e precisou de toda a sua força para não gritar bem alto a advertência feita por Gwydion.

Ah, aí está você! — A Rainha Teleria disse em voz alta, espiando Taran. — Pensara em lhe falar sobre... está cer­to, jovem, aproxime-se rapidamente, incline-se mais um pou­co, se for possível e, boa Llyr, não contraia o rosto... o ban­quete real desta noite. Você deve se alegrar em saber que, em honra a todos vocês, pretendemos convidar um bardo perfeito, maravilhoso, isto é, que afirma ser um bardo, e que, a propósito, afirma conhecer vocês.

O pretenso bardo já recebeu ordens — disse Magg, mal conseguindo ocultar o desagrado ao referir-se a Fflewddur — para se apresentar no banquete.

Portanto, no que diz respeito aos novos trajes — continuou Teleria —, é melhor você acompanhar Magg, ime­diatamente, e escolher algum.

Isso também já foi providenciado, Lady Teleria — murmurou o Camareiro-Chefe, entregando a Taran um gibão e um colete, cuidadosamente dobrados.

Esplêndido! — exclamou Teleria. — O que resta fazer é... bem, acredito que tudo foi feito! Sugiro, então, Taran de Caer Dallben, que você vá... não enrugue a testa deste modo, vai envelhecer antes da hora... se aprontar.

Taran mal havia completado a reverência à Rainha Teleria, quando Eilonwy agarrou-o pelo braço, levando com ele Gurgi, para longe dali.

Vocês já viram Fflewddur, é claro — sussurrou. — Agora, as coisas já me fazem lembrar dos velhos tempos. É uma benção tê-lo aqui! Jamais conheci mulheres tão fúteis! Ora, acho que nenhuma delas jamais empunhou uma espada! Só se interessam em falar de costura, bordado, tecelagem e de como cuidar de um castelo. As que têm maridos es­tão sempre se queixando deles, e aquelas que não os têm estão sempre se queixando da falta que fazem. Jamais saíram de Dinas Rhydnant durante suas vidas! Contei-lhes uma coisa ou outra sobre algumas de nossas aventuras: não as melho­res, essas estou guardando para mais tarde, quando você es­tiver por perto para narrar a sua participação.

Eis o que faremos — Eilonwy apressou-se em dizer, com os olhos brilhando. — Após o banquete, quando ninguém estiver vigiando, vamos pegar Fflewddur e sair para explorar a região por alguns dias. Não irão sentir a nossa falta; por aqui há tanta gente que entra e sai. Provavelmente, há algumas aventu­ras em Mona, mas, é claro, não as encontraremos neste castelo tedioso. Agora, em primeiro lugar, você precisa conseguir uma espada para mim... quem dera eu tivesse trazido uma de Caer Dallben. Não que eu julgue que precisaremos de espadas, mas é melhor que eu tenha uma espada se houver necessidade. Gurgi, é claro, precisa trazer a sua mochila de comida...

Eilonwy — Taran interrompeu —, isso não é possível.

Como assim? — perguntou Eilonwy. — Ah, muito bem, então não se preocupe com as espadas. Nós sairemos em busca de aventuras assim mesmo. — Hesitou. — O que está acontecendo com você? Sinceramente, de tempos em tempos você faz as expressões mais estranhas. Agora mes­mo, parece que um morro está prestes a desmoronar na sua cabeça. Como eu ia dizendo...

Eilonwy — disse Taran com firmeza —, você não poderá sair de Dinas Rhydnant.

Pega de surpresa, Eilonwy parou de falar por um instan­te, e olhou-o fixamente, boquiaberta,

O quê? — gritou. — O que você disse? Não posso sair do castelo? Taran de Caer Dallben, acho que o ar salgado transformou o seu cérebro em picles!

Ouça-me — Taran disse, num tom grave, buscando na mente alguns meios de alertar a menina espantada, sem revelar o segredo de Gwydion. — Dinas Rhydnant é um lu­gar... desconhecido para nós. Nada sabemos sobre Mona. Deve haver... perigos que nós...

Perigos! — exclamou Eilonwy. — Pode ter certeza! E o maior de todos é que vou chorar de tanto tédio! Não pen­se, nem por um instante, que vou desperdiçar os meus dias neste castelo. Logo você, entre todas as pessoas, é quem me diz para não sair me aventurando! O que, realmente, está acontecendo com você? Estou prestes a me convencer de que você deixou cair a sua coragem com a âncora de pe­dra que foi atirada do barco de Rhun.

Não se trata de coragem — Taran começou a dizer. — Será mais sensato...

Agora você fala de sensatez! — Eilonwy exclamou. — Antes, seria a última coisa no mundo que você haveria de considerar!

Agora é diferente — disse Taran. — Será que você não entende? — implorou, embora pudesse ver, claramen­te, no rosto de Eilonwy, que suas palavras nada significa­vam para ela. Por um instante sentiu-se tentado a deixar a verdade escapar. Em vez disso, segurou a menina pelos ombros.

Você não vai pôr os pés para fora deste lugar — ordenou, zangado. — E se passar pela minha cabeça que você tem alguma intenção de fazê-lo, pedirei ao Rei Rhuddlum que mande um guarda vigiá-la.

O quê? — exclamou Eilonwy. — Como ousa! De repente, lágrimas encheram seus olhos.

Sim, entendo! Você está feliz que eu tenha sido man­dada para esta ilha infame, cheia de galinhas cacarejantes! Você não podia perder essa chance de se livrar de mim! Na verda­de, você quer que eu permaneça aqui e me perca neste cas­telo pavoroso. Isso é pior do que pôr a cabeça de alguém num saco cheio de penas!

Aos soluços, Eilonwy bateu o pé.

— Taran de Caer Dallben, não vou mais falar com você!


 

Sombras

A festa daquela noite, com certeza, foi a mais ale­gre de todas as que, até então, foram dadas no castelo. Kaw, pousado no encosto da cadeira de Taran, movimentava a cabeça para cima e para baixo, e até parecia que o banquete fora todo organi­zado em sua homenagem. O Rei Rhuddlum estava radian­te; a conversa e os risos dos convidados ecoavam na Ala Nobre. Atrás da mesa longa, repleta das damas da corte da Rainha Teleria, Magg corria de um lado para outro, estalan­do os dedos e sussurrando ordens aos criados que, sem cessar, traziam travessas de comida e jarras contendo bebi­das. No entender de Taran, tudo era como se fosse um pesadelo quando se está desperto; ficou sentado, apreen­sivo, sua refeição intacta.

— Não precisava ficar assim, tão tristonho — disse Eilonwy. — Afinal, não é você que precisa ficar aqui. Da minha parte, estou tentando ver o lado bom de tudo isso, mas devo admitir que você não está colaborando. Quero lembrá-lo de que ainda não estou falando com você, devi­do ao seu comportamento de hoje.

Evitando ouvir os protestos confusos de Taran, Eilonwy virou a cabeça e começou a conversar com o Príncipe Rhun. Taran mordeu o lábio. Sentiu como se lhe faltasse a voz ao tentar gritar e alertar Eilonwy, que, por sua vez, sem se dar conta, corria alegremente em direção à beira de um precipício.

No final do banquete, Fflewddur afinou a harpa, cami­nhou até o centro do Salão e cantou sua nova balada. Taran escutou sem sentir satisfação, embora admitisse que era a melhor canção que Fflewddur compusera. Depois que o bar­do terminou a apresentação e o Rei Rhuddlum começou a bocejar, os convidados ergueram-se da mesa. Taran deu um puxão na manga de Fflewddur e levou-o para um canto.

Estive pensando a respeito dos estábulos — disse Taran, ansiosamente. — Não importa o que Magg diga, não é um lugar conveniente para você dormir. Vou falar com o Rei Rhuddlum e, tenho certeza, ele ordenará que Magg lhe con­ceda de novo o quarto no castelo.

Taran hesitou.

Eu... eu acho que, de certo modo, seria melhor que nós todos ficássemos juntos. Somos estranhos aqui, e nada sabemos sobre os costumes deste lugar.

Grande Belin! Não perca o seu tempo preocupan­do-se com isso — argumentou o trovador. — Quanto a mim, prefiro os estábulos. Realmente, há uma razão para que eu saia por aí vagueando: para me afastar de castelos abafados e sombrios. Além do mais — falou com a mão por cima da boca —, teria problemas com Magg. E se ele abusar da minha paciência, vou desafiá-lo a um duelo de esgrima, um Fflam é uma pessoa esquentada, o que seria considera­do descortês por parte de um convidado. Não, não, é me­lhor para nós todos que tudo fique como está, e nos vere­mos de manhã.

Assim dizendo, Fflewddur levou a harpa ao ombro, fez um aceno de boa-noite e retirou-se do Salão.

Algo me diz que devemos ficar de olho no castelo — disse Taran a Gurgi. Pôs o dedo indicador por baixo da pata de Kaw e pousou o pássaro no ombro de Gurgi, onde o corvo, imediatamente, começou a esfregar o bico no pêlo embaraçado de Gurgi.

Fiquem perto do quarto de Eilonwy — continuou.

Daqui a pouco estarei lá com vocês. Fique sempre com o Kaw e mande-o me buscar se algo estranho acontecer.

Gurgi concordou com um movimento de cabeça.

Sim, sim — sussurrou —, o Leal Gurgi estará desper­to, à espera, vigiando. Ele há de guardar o repouso da nobre princesa, que terá muitos sonhos.

Despercebido entre os convidados que se retiravam, Taran foi até o pátio. Na esperança de encontrar Gwydion, dirigiu-se, rapidamente, aos estábulos. Estrelas enchiam o céu límpido da noite e uma lua brilhante pairava sobre os roche­dos de Mona. Nos estábulos Taran não descobriu nenhum vestígio do Príncipe de Don, mas encontrou Fflewddur, enro­lado no monte de palha, o braço por cima da harpa e já roncando, com tranqüilidade.

Taran voltou-se mais uma vez para o castelo, que agora estava imerso na escuridão. Por um momento parou, pen­sando em que outro lugar poderia encontrá-lo.

Olá, olá! — O Príncipe Rhun surgiu de um canto, tão apressado que, por pouco, não derrubou Taran.

Ainda acordado? Eu também! Minha mãe diz que me faz bem dar um giro antes de dormir. Suponho que é isso mesmo que você está fazendo. Muito bem! Podemos cami­nhar juntos.

Não podemos, não! — Taran retrucou. Naquele exato momento não desejava que o príncipe fútil o retardasse. — Eu... eu estou à procura dos alfaiates. Onde estão alojados?

Você está procurando os alfaiates? — Rhun pergun­tou. — Que estranho! Mas para quê?

Meu colete — Taran apressou-se em responder. — O colete... não me caiu bem. Preciso pedir-lhes que o consertem.

No meio da noite? — perguntou Rhun, com o rosto de lua cheia contraído. — Ora, com toda a certeza, isso é surpreendente!

Indicou um lado escuro do castelo.

— Os quartos deles são aqueles lá. Mas não acho que farão de boa vontade qualquer costura, caso você os acorde. Alfaiates, muitas vezes, são sensíveis, você entende. Aconse­lho-o a esperar até o amanhecer.

Não. Precisa ser feito agora — disse Taran, impa­ciente para se livrar de Rhun.

O príncipe deu de ombros, desejou-lhe boa-noite e re­tomou a caminhada. Taran seguiu na direção de um conjunto de chalés além do estábulo. Lá, a busca também foi em vão. Desanimado, decidiu reunir-se com Gurgi, mas, de súbito, deteve-se. Uma figura estava atravessando o pátio, rapida­mente, não em direção ao portão principal, e sim, ao canto mais afastado do muro de pedra.

Será que Eilonwy escapara de Gurgi? Taran estava pres­tes a gritar. Então, receoso de despertar o castelo, correu atrás do vulto. Um instante mais tarde parecia que a figura havia desaparecido completamente. Taran apressou-se. Ao se aproximar do muro, notou uma abertura estreita, com largura suficiente para se passar, comprimindo-se. Taran pas­sou através de uma cortina de era e viu-se do lado de fora do castelo, numa rampa voltada para o porto.

O vulto, Taran logo percebeu, não correspondia à figura de Eilonwy; era muito alto, e diferente no modo de andar. Taran prendeu a respiração quando a figura, coberta com um manto, voltou-se uma vez para lançar um olhar furtivo para o castelo e a luz da lua iluminou por um momento seus traços.

Era Magg.

Fazendo lembrar uma aranha, o Camareiro-Chefe, mais do que depressa, seguiu por uma trilha. Num surto de medo e suspeita, Taran escalou, cegamente, pedras pontudas, es­forçando-se para ser rápido e silencioso. Apesar de ser uma noite clara, o caminho era difícil de trilhar, seixos surgiam indistintamente e pegavam-no desprevenido, retardando-o. Sentiu falta da luz da esfera dourada de Eilonwy enquanto se arrastava, impetuosamente, atrás de Magg, em direção ao porto adormecido.

Magg chegou ao nível da praia bem antes de Taran, e correu ao longo do paredão à beira do mar até alcançar, finalmente, um monte enorme de pedras. Com agilidade sur­preendente, o Camareiro-Chefe subiu, rastejou e, mais uma vez, desapareceu. Com receio de perder a pista de Magg, Taran deixou de lado a prudência e começou a correr. Ao longo do paredão, o mar, iluminado pela lua, quebrava, sus­surrando. Uma sombra moveu-se por um instante entre as estacas do quebra-mar. Alarmado, Taran interrompeu os pas­sos e, em seguida, apressou-se. Seus olhos o enganavam. Até mesmo as pedras pareciam erguer-se diante dele, como se fossem feras ameaçadoras, prontas para pular.

Rangendo os dentes, Taran escalou a barreira escura. Embaixo, a água agitava-se num turbilhão resplandecente, espumando entre as pedras. A arrebentação ressoava em seus ouvidos enquanto ele se arrastava em direção ao cume. Lá chegando, agarrou-se, sem ousar ir adiante. Magg havia para­do alguns passos à frente, na extremidade de uma ponta es­treita de terra. Taran viu-o ajoelhar-se e fazer um movimento rápido. No instante seguinte, uma luz brilhou.

O Camareiro-Chefe tinha acendido uma tocha e ago­ra a segurava acima da cabeça, movendo lentamente a cha­ma trêmula, para trás e para a frente. Enquanto Taran ob­servava, assustado e pensativo, surgiu ao longe, no mar, um pequenino ponto de luz alaranjada. Esse sinal, que era uma resposta, pensou Taran, só poderia vir de um barco, embo­ra ele não pudesse distinguir nem a forma, nem a distância da embarcação. Magg agitou a tocha outra vez, fazendo um gesto diferente. A luz do barco repetiu o movimento e em seguida apagou-se. Magg mergulhou a tocha na água escura, fazendo-a crepitar e apagar-se; virou-se e andou rapidamente na direção do amontoado de pedras onde Taran se encon­trava. Taran piscou várias vezes devido à súbita escuridão, e logo começou a descer, antes que Magg se aproximasse, mas não encontrou apoio para os pés. Em pânico, tateou, à procura de uma pedra saliente, escorregou, e em vão pro­curou por outra. Ao ouvir Magg subindo pelo outro lado, deixou-se cair no meio das pedras. Estremecendo devido à dor aguda, procurou esconder-se na escuridão. A cabeça de Magg tinha acabado de surgir no topo quando Taran foi segurado, firmemente, pelas costas. Taran tentou pegar a espada. A mão que lhe tampava a boca abafava o seu grito, e ele, mais que depressa, foi arrastado por entre as peque­nas ondas espumantes, até ser deixado, silenciosamente, entre as pedras.

— Não faça nenhum ruído! — A voz de Gwydion sus­surrou a ordem.

Com o alívio, Taran sentiu o corpo amolecer. Magg, mais acima, abaixou-se perto do amontoado de pedras e passou a uma distância de apenas 12 passos das duas figuras agachadas. Gwydion, agarrando-se às pedras acima da arrebentação, fez um gesto indicando que Taran ficasse escondido. O Camareiro-Chefe, sem olhar para trás, percorreu mais uma vez, rapidamente, o caminho ao longo do quebra-mar, de volta ao castelo.

Agarre-o! — Taran instigou. — Há um barco ancora­do. Eu o vi sinalizar para a embarcação. Precisamos obrigá-lo a dizer o que está se passando.

Gwydion sacudiu a cabeça. Seus olhos verdes seguiram Magg, que se afastava, e seus lábios alongaram-se junto aos dentes formando o tipo de sorriso discreto de um lobo que vigia a sua presa. Ainda usava os trajes maltrapilhos do sapa­teiro, mas Dyrnwyn, a espada negra, agora estava presa no seu cinto.

Deixe-o ir — murmurou. — O jogo ainda não terminou.

Mas o sinal... — Taran começou a dizer. Gwydion meneou a cabeça.

Eu também o vi. Estive vigiando o castelo desde que nos encontramos. Embora, um momento atrás — acrescen­tou, com alguma severidade —, temi que um Porqueiro-As­sistente, na tentativa de agarrar um traidor, fosse cair numa armadilha para pegar traidor. Quer ser útil a mim? Então vol­te logo ao castelo e fique perto da princesa.

Não será uma temeridade deixar Magg continuar a agir livremente? — Taran perguntou.

Ele pode, ao menos uma vez, seguir sem ser impedi­do — respondeu Gwydion. — Em breve, o sapateiro deixará de lado o furador e empunhará a espada. Até esse momento, fique quieto. Eu não atrapalharia o plano de Magg até saber mais a respeito.

Os pescadores de Mona já contaram a um sapateiro curioso e inofensivo parte do que ele precisa saber — conti­nuou Gwydion. — O suficiente para ter certeza de uma coi­sa: Achren está a bordo daquele barco.

Sim — Gwydion prosseguiu, enquanto Taran respi­rava rapidamente —, disso eu suspeitava. A própria Achren não ousaria investir, diretamente, contra Eilonwy. O castelo é sólido e bem guardado, e somente a traição poderia abrir seus portões. Achren precisava de ajuda para levar a termo sua ação. Agora sei de quem virá a ajuda.

Gwydion franziu bem a testa e continuou a falar.

Mas, por quê? — murmurou quase para si mesmo.

Muito ainda se esconde. Se é o que receio...

Sacudiu a cabeça, rapidamente.

Não me agrada usar Eilonwy como se fosse isca involuntária para uma cilada, mas não tenho outra saída.

Magg pode ser vigiado — disse Taran — mas, e Achren?

Preciso encontrar os meios de descobrir quais são os seus planos e também os de Magg — Gwydion respondeu.

Agora vá, rápido — ordenou. — Em breve tudo vai se esclarecer. Assim espero, pois não suportaria ver a Princesa Eilonwy em perigo, por muito tempo.

Taran apressou-se, obedecendo à ordem de Gwydion. Deixando o Príncipe de Don no porto, percorreu a toda velocidade a trilha sinuosa até o castelo, encontrou a passa­gem no muro e atravessou-a até chegar ao pátio. Eilonwy, ele bem o sabia, não estaria a salvo, uma vez que Magg tinha livre acesso ao castelo. Porém, Magg, ao menos, podia ser vigiado. O terror que fez gelar o coração de Taran veio daquele bar­co à espera, à noite. A lembrança de Achren, bela e impiedosa, mais uma vez, veio-lhe à mente. Do passado distante resga­tou sua face lívida, a voz que falara, suavemente, de tormento e morte. Era a sua sombra que pairava detrás do traiçoeiro Camareiro-Chefe.

Correu, em silêncio, através do pátio. Uma luz esmaecida brilhava em um dos quartos. Furtivamente, Taran dirigiu-se para o local, ergueu-se na ponta dos pés e deu uma olhada pelo batente da janela. Iluminado por uma lamparina a óleo, lá estava o Camareiro-Chefe. Magg empunhava um longo punhal e brandia-o no ar, ao mesmo tempo que fazia caretas assustadoras. Passado algum tempo, escondeu a arma na sua vestimenta, e em seguida pegou um espelho pequeno para o qual olhou, sorrindo, franziu os lábios, e olhou para si mesmo, demonstrando profunda satisfação. Taran observava, sentin­do raiva e horror, e, com dificuldade, controlava-se para não avançar nele. Por fim, com um sorriso malicioso, o Camareiro-Chefe apagou a lamparina. Taran cerrou os punhos, virou-se e entrou no castelo.

No quarto de Eilonwy encontrou Gurgi agachado no chão de pedra. Desgrenhado e meio adormecido, Gurgi pis­cou e levantou-se rapidamente. Kaw, tão desarrumado quan­to o próprio Gurgi, retirou, de repente, a cabeça que estava sob a asa.

Tudo está calmo — sussurrou Gurgi. — Sim, sim, o vigilante Gurgi não se afastou da porta! Gurgi, valente e sono­lento, protege a princesa de quaisquer danos. A cabeça mi­mosa de Gurgi está pesada mas não cai, ah, não!

Bom trabalho — disse Taran. — Durma, meu amigo. Vá e descanse essa cabeça mimosa que você tem e, quanto a mim, ficarei aqui até o raiar do dia.

Gurgi, bocejando e esfregando os olhos, percorria, len­tamente, o corredor, enquanto Taran o substituía à porta do quarto. Este, abaixou-se no piso de lajes e, com a mão na espada, descansou a cabeça nos joelhos, lutando contra a própria exaustão. Uma ou duas vezes, apesar dos esforços, cochilou e, em seguida, acordou com sobressaltos. O corre­dor arqueado, aos poucos, iluminou-se com o alvorecer. Os primeiros raios da manhã foram um alívio para Taran, que, afinal, pôde fechar os olhos.

Taran de Caer Dallben!

Taran ergueu-se, um tanto trôpego, e segurou a espada. Eilonwy, com a aparência fresca e bem descansada, estava de pé, à porta.

Taran de Caer Dallben — declarou. — Quase tro­pecei em você! Mas o que se passa?

Estonteado, Taran conseguiu apenas balbuciar que o corredor era local mais confortável para se dormir do que seu quarto.

Eilonwy meneou a cabeça, demonstrando indignação.

Isso — observou — é a coisa mais tola que ouvi hoje de manhã. Pode ser que eu ouça algo mais tolo ainda, porque ainda é cedo, mas duvido. Começo a acreditar que Porqueiros-Assistentes têm atitudes que estão muito além do meu entendimento.

Deu de ombros.

Em todo caso, vou tomar meu café. Depois que você lavar o rosto e desembaraçar os cabelos, deveria fazer o mesmo. Seria bom para você. Parece tenso como um sapo, pronto para atacar uma mosca!

Sem esperar que Taran espantasse o sono, e antes que ele pudesse detê-la, Eilonwy desapareceu no corredor. Taran correu atrás dela. Mesmo naquela manhã ensolarada sentia as sombras agarrando-o como se fossem teias de aranhas negras. Nesse ínterim, assim esperava, Gwydion descobriria o plano de Achren. Mas Magg ainda estava livre. Ao se lembrar do punhal que o Camareiro-Chefe levava escondido, Taran não admitia a idéia de perder Eilonwy de vista, nem por um instante.

Olá, olá! — Com o rosto redondo brilhando, como se tivesse acabado de ser esfregado, o Príncipe Rhun saiu, de repente, de seu quarto, no momento em que Taran passava.

Vai tomar café? — exclamou o príncipe, espalmando a mão no ombro de Taran. — Bom! Eu também.

Então nos encontraremos na Ala Nobre — respon­deu Taran, rapidamente, lutando para se soltar do abraço amigável de Rhun.

É impressionante! Como o apetite aumenta durante a noite — o Príncipe Rhun continuou a dizer. — Ah, a pro­pósito, conseguiu despertar os alfaiates?

Alfaiates? — Taran respondeu, impaciente. — Que alfaiates? Oh... sim, é claro, eles fizeram o que lhes pedi — acrescentou depressa, observando atentamente o corredor.

Esplêndido! — exclamou Rhun. — Gostaria de ter a mesma sorte. Sabe, aquele sapateiro ainda não terminou as minhas sandálias. Tinha começado o trabalho, mas foi-se e, até agora, nada de sandálias.

Pode ser que ele tivesse tarefa mais importante a fazer — Taran argumentou. — Assim como eu...

O que poderia ser mais importante para um sapatei­ro do que fazer sapatos? — Rhun perguntou.

No entanto... — estalou os dedos. — Ah! Sabia que havia alguma coisa. Esqueci meu gibão. Espere, é só um momento.

Príncipe Rhun — Taran exclamou. — Preciso acom­panhar a Princesa Eilonwy.

Já vamos lá — gritou Rhun do quarto. — Oh, droga! O cordão da minha sandália arrebentou! Espero, realmente, que o sapateiro termine logo o trabalho!

Deixando o Príncipe de Mona ainda atrapalhado no quarto, Taran correu, ansioso, até a Ala Nobre, O Rei Rhuddlum e a Rainha Teleria já estavam à mesa; a rainha, como sempre, cercada pelas damas. Taran olhou, depressa, à sua volta. Magg, que, normalmente, estaria a serviço, não se encontrava.

E nem sinal de Eilonwy.


 

O Juramento

— Onde está Eilonwy? — Taran gritou e em seguida o Rei Rhuddlum e a Rainha Teleria, atônitos, olharam para ele. — Onde está Magg? Ele fugiu com ela! Senhor, eu lhe imploro. Chame seus guardas. Ajude-me a encontrá-los. Eilonwy está correndo perigo de vida!

— O quê, o quê? — A Rainha Teleria perguntou em tom de desaprovação. — Magg? A princesa? Você está exte­nuado, meu jovem. Talvez o ar marítimo — não se sacuda nem agite os braços para todos os lados — tenha afetado o seu raciocínio. Só porque alguém não está aqui para o café da manhã não quer dizer que esteja em perigo. Não é mes­mo, meu querido? — perguntou, voltando-se para o rei.

— Concordo plenamente, minha querida — respon­deu Rhuddlum. — É uma acusação grave contra um fiel serviçal — acrescentou, dirigindo um olhar grave a Taran. — Por que você o acusa?

Por um momento, Taran ficou perplexo e indeciso. Gwydion tinha exigido segredo. Mas agora que Magg havia atacado, o segredo deveria ser mantido? Tomando a deci­são, deixou as palavras rolarem de seus lábios. Procurando falar depressa e com um discurso quase sempre confuso, nar­rou tudo o que acontecera desde que os companheiros che­garam a Dinas Rhydnant.

A Rainha Teleria sacudiu a cabeça.

Este sapateiro disfarçado de Príncipe Gwydion, ou foi o contrário, e barcos e sinais de tochas para feiticeiras parecem compor o conto mais extravagante que já ouvi, rapaz.

De fato, extravagante — disse o Rei Rhuddlum. — Mas, será bem fácil descobrirmos a verdade. Vá buscar o sa­pateiro e logo saberemos se ele é o Príncipe de Don.

O Príncipe Gwydion está à procura de Achren — clamou Taran. — Já lhes revelei a verdade. Se não for como estou dizendo, podem dispor da minha vida. Querem confe­rir o que digo? Procurem seu Camareiro-Chefe.

O Rei Rhuddlum franziu a testa.

É curioso que Magg não esteja aqui — admitiu. — Muito bem, Taran de Caer Dallben. Ele deverá ser encontra­do e você repetirá a sua história na presença dele.

Bateu palmas e ordenou a um criado que chamasse o Camareiro-Chefe.

Desvairado de ansiedade, sabendo que o tempo estava correndo e a demora poderia custar a vida de Eilonwy, Taran estava prestes a perder o controle quando o criado, afinal, retornou trazendo informações de que Magg, aparentemen­te, não se encontrava em nenhum local do castelo e que Eilonwy também não fora encontrada. Enquanto o Rei Rhuddlum hesitava, ainda intrigado com as palavras de Taran, Gurgi, Kaw e Fflewddur entraram na Ala Nobre. Taran cor­reu na direção deles.

Magg! Aquela aranha abominável! — bradou o bar­do, assim que Taran contou-lhe o que acontecera. — Gran­de Belin, ela foi embora com ele! Eu os vi atravessar o portão a galope. Chamei-a, mas não me ouviu. Parecia contente. Eu não imaginei que algo estava errado. Mas foram-se, e a essa hora já estão bem longe.

A Rainha Teleria empalideceu. As damas da corte ofe­gavam, temerosas. O Rei Rhuddlum levantou-se.

Você disse a verdade, Taran de Caer Dallben.

O rei chamou a guarda e retirou-se, rapidamente, da Ala Nobre. Os companheiros, apressados, seguiram-no. Sob as ordens imediatas do Rei Rhuddlum, os estábulos foram abertos às pressas. Em instantes o pátio encheu-se de guer­reiros e cavalos que relinchavam. Nesse ínterim, o Príncipe Rhun chegou ao pátio e observou a aglomeração.

Olá, olá! — disse, dirigindo-se a Taran. — É um des­tacamento para uma caçada? Esplêndida idéia. Vou apreciar uma cavalgada nesta manhã fresca.

Uma caçada ao seu camareiro traidor — Taran re­trucou, empurrando Rhun para o lado e indo ao encontro do Rei Rhuddlum. — Senhor, onde está o seu comandante? Dê-nos permissão para servi-lo.

Meu comandante, lamento informar, é o próprio Magg — respondeu o rei. — Considerando que jamais tivemos uma guerra em Mona, jamais precisamos de um comandante e parecia apropriado dar a Magg o título honorário. Eu mes­mo devo formar o destacamento de busca. Quanto a você... sim... sem dúvida, ajude no que for necessário.

Enquanto o Rei Rhuddlum cuidava do posicionamento dos guerreiros, Taran e os parceiros trabalhavam a toda velo­cidade, apertando as cintas das selas e distribuindo as armas do arsenal. O Príncipe Rhun, Taran observou, havia montado uma égua malhada, enselada, que não parava de girar, apesar dos esforços do príncipe para controlá-la. Fflewddur e Gurgi trouxeram três cavalos. Um olhar para os animais encheu Taran de desânimo, pois pareciam não ter vivacidade, nem muito vigor, e pensou em Melynlas, que nesse momento pas­tava em Caer Dallben, calmamente.

O Rei Rhuddlum, segurando Taran pelo braço, levou-o depressa a um estábulo vazio.

Eu e você precisamos conversar — disse o rei, rapi­damente. — Os guerreiros estão prontos e divididos em dois pelotões. Um deles será liderado por mim através das terras ao sul do Rio Alaw. Você e seus amigos devem cavalgar com meu filho que deverá comandar a busca nos Montes de Par/s, ao norte do Alaw. É sobre ele que desejo falar.

O Príncipe Rhun no comando? — Taran irrompeu.

O que se passa, Taran de Caer Dallben? — o rei perguntou com veemência. — Você questiona a competên­cia do Príncipe Rhun?

Competência! — Taran exclamou. — Ele não tem nenhuma! A vida de Eilonwy está em jogo; nossa tarefa tem de ser feita sem demora. Deixar o comando nas mãos de uma pessoa tola e fútil? Ele mal consegue dar um laço na sandália, muito menos guiar um cavalo ou empunhar uma espada. A viagem a Mona demonstrou-me mais do que o suficiente. Escolha um dos seus vassalos, um guer­reiro ou um couteiro, qualquer um, menos Rhun... — pa­rou bruscamente. — Fiz um juramento diante de Dallben e devo proteger Eilonwy; o que digo é o que se passa no meu coração. Se falasse menos, teria faltado ao meu de­ver. Se tiver que sofrer em conseqüência de minhas pala­vras, que seja.

Mais uma vez você diz a verdade — o Rei Rhuddlum respondeu. — Não é você que sofre por isso, e sim, eu.

Apoiou a mão no ombro de Taran.

Pensa que não conheço meu próprio filho? Seu julga­mento está certo. Mas, sei também que Rhun precisa crescer para ser, ao mesmo tempo, um homem e um rei. Você carre­ga o peso de um juramento que fez a Dallben. Rogo-lhe que tire o peso de outrem.

Notícias de seus feitos chegaram a Mona — o Rei Rhuddlum prosseguiu — e vi por mim mesmo que você é um jovem corajoso, e honrado. Confio-lhe esta informação: meu Mestre de Cavalaria é um perseguidor experiente; ele vai acompanhar o seu grupo e, na verdade, será ele que con­duzirá a busca. O Príncipe Rhun comanda apenas nominal­mente, pois os guerreiros contam com a liderança da Casa Real. Confio meu filho a você, e suplico-lhe que não deixe nenhum mal o atingir. Nem — acrescentou o rei, com um sorriso triste — permita que ele faça papel de bobo. Muito ele tem a aprender, e muita coisa talvez possa aprender com você. Um dia, Rhun deverá ser o Rei de Mona e minha espe­rança é que ele governe, com honradez e sabedoria, ao lado de Eilonwy, sua rainha.

Eilonwy? — Taran exclamou. — Casada com Rhun?

Sim — respondeu o Rei Rhuddlum. — Quando a princesa atingir a idade certa para se casar, é nosso desejo que eles se unam.

A Princesa Eilonwy — Taran murmurou, confuso —, ela sabe disso?

Ainda não. Nem meu filho o sabe — disse o rei. — Eilonwy precisa de tempo para se acostumar a Mona e aos nossos costumes. Mas estou certo de que chegaremos a um acordo, para a satisfação de todos. Afinal, ela é uma princesa e Rhun tem sangue real.

Taran baixou a cabeça. A tristeza em seu coração impe­dia-o de falar.

O que tem a dizer, Taran de Caer Dallben? — o Rei Rhuddlum perguntou. — Dá-me sua palavra?

Do pátio chegava aos ouvidos de Taran o clamor dos guerreiros e a voz de Fflewddur chamando por ele. Mesmo assim, eram sons que pareciam vir de muito longe. Manteve-se em silêncio, os olhos baixos.

Nessa questão não falo como o soberano que se dirige ao súdito — o Rei Rhuddlum acrescentou. — Minhas palavras são de um pai que ama o filho — pausou, observan­do Taran, de perto.

Afinal o olhar de Taran encontrou o do rei.

Farei este juramento — disse devagar. — Seu filho nada sofrerá se depender da minha capacidade de protegê-lo. — Taran pôs a mão na espada. — Por isso comprometo a minha vida.

Vá, com os meus agradecimentos, Taran de Caer Dallben — disse o Rei Rhuddlum. — E ajude-nos a trazer para casa, a salvo, a Princesa Eilonwy.

O trovador e Gurgi já estavam montados quando Taran saiu apressado do estábulo. Com o coração apertado, saltou sobre a sela. Voando, Kaw juntou-se a ele. O Príncipe Rhun, que, finalmente, conseguira fazer a égua parar de girar, estava dando ordens em voz alta, sendo ignorado, como sempre.

Logo que os destacamentos de busca passaram a galo­pe pelos portões, Taran ergueu Kaw de seu ombro.

Pode encontrá-la? Procure bem, meu amigo — mur­murou, enquanto o corvo empertigava-se e olhava para Taran com o olhar perspicaz. Taran deu um impulso com o braço. Kaw lançou-se no espaço, chegando rapidamente às alturas. Batendo as asas, o corvo circulou no ar, voou mais para cima e então desapareceu.

— Sim, sim! — gritou Gurgi, agitando os braços. — Siga voando e espiando! Leve-nos ao camareiro mau, perverso!

O quanto antes! — bradou Fflewddur. — Não vejo a hora de pôr as mãos naquela aranha sarcástica. Ele há de conhecer a fúria de um Fflam!

Olhando para trás, Taran viu o grupo do Rei Rhuddlum deixar o castelo e tomar a direção sul. A frente, o Mestre de Cavalaria guiava o contingente de guerreiros para a região mais alta, além de Dinas Rhydnant e, por meio de sinais, de­terminou aos que seguiam à frente que procurassem pistas. O rosto de Taran estava sério e inflexível quando ele se apro­ximou de Fflewddur.

Não tenha receio — o bardo assegurou-lhe —, tra­remos Eilonwy de volta, sã e salva, antes do anoitecer, e essa aventura terá sido para nós motivo de alegria. Prometo a você uma canção nova para celebrar!

Seria melhor compor uma canção de noivado — disse Taran, irônico — para celebrar as bodas do Príncipe de Mona.

Rhun? — exclamou Fflewddur, espantado. — Casar-se? Não fazia a menor idéia! Essa é uma das desvantagens de estar acomodado nos estábulos e não no castelo; não se sabe das notícias, nem das fofocas. Quem diria, o Príncipe Rhun! Quem é a noiva?

Com dificuldade, Taran contou ao bardo sobre os pla­nos do Rei Rhuddlum e de seu próprio juramento de manter Rhun a salvo.

Ah — disse Fflewddur, quando Taran terminou o relato —, então é essa a direção do vento! Estranho — acres­centou com uma olhadela para Taran —, sempre desejei que, se Eilonwy ficasse noiva de alguém seria... sim, bem, o que quero dizer é que, apesar de todas essas brigas e implicâncias entre vocês dois, eu preferia que..

Não zombe — Taran explodiu, enrubescendo. — Eilonwy é uma princesa da Casa de Llyr. Quanto a mim, você conhece a minha posição. Jamais alimentei tal esperança. É compreensível que Eilonwy fique noiva de alguém que lhe seja condizente.

Com raiva, afastou-se do bardo e saiu a galope.

— É isso que você diz, é o que diz — murmurou Fflewddur, correndo atrás dele. — Examine bem o seu cora­ção. Vai concluir que, na verdade, você não pensa assim.

Sem querer ouvir, Taran instigou seu cavalo a reunir-se aos guerreiros.

Voltando-se para o norte, ao longo dos declives mais baixos dos Montes de Parys, o grupo de busca dividiu-se em grupos menores, cada qual cobrindo uma área específica. Os guerreiros, agora separados, moviam-se em fileiras longas, va­riáveis, examinando com toda a atenção cada canto onde alguém pudesse se esconder. Mesmo assim, a manhã e o meio-dia passaram sem que se encontrasse qualquer sinal do Camareiro-Chefe ou de Eilonwy.

Entre as colinas verdes e suaves encontraram trilhas de seixos quebrados, por onde Magg, provavelmente, fugira e onde os vestígios seriam invisíveis até mesmo aos olhos do perseguidor mais experiente. Taran sentiu-se sucumbir; em sua mente pairava o temor de estar seguindo uma pista falsa e de Eilonwy ter sido levada na direção contrária. De vez em quando, seus olhos percorriam o céu esperando ver Kaw, de relance, retornando com notícias da princesa.

Gwydion, Taran sabia muito bem, era o único que pode­ria descobrir o plano de Achren. Magg era a chave, mas o Camareiro-Chefe agira com tal rapidez que, provavelmente, já estaria fora do alcance do grupo de busca. Taran redobrou seus esforços para encontrar um graveto quebrado, uma pe­dra solta... qualquer detalhe que os levasse para perto de Eilonwy antes que o anoitecer pusesse um fim ao dia de busca. Gurgi, seguindo de perto, avisou-o:

Veja, veja! O nobre príncipe já vai longe, muito longe pelo bosque! Vai se perder. Então, alegres olás serão tristes gemidos e suspiros!

Taran, que havia desmontado para examinar uma possí­vel pista, ergueu os olhos a tempo de ver o Príncipe Rhun galopando no ponto mais alto de uma colina. Gritou naquela direção, mas Rhun já estava muito distante e não poderia ouvir, ou, provavelmente, pensou Taran, não prestou aten­ção. Taran montou no cavalo e saiu em busca do príncipe. Por algum tempo, não o perdeu de vista, mas, quando Taran chegou à colina, Rhun desaparecera por entre as sombras de um bosque de amieiros. Mais abaixo, num prado que escure­cia rapidamente, Fflewddur surgira em sua montaria e o cha­mava. Taran gritou o nome de Rhun mais uma vez e, com um aceno, pediu que o bardo e Gurgi o acompanhassem.

Aquela aranha repugnante livrou-se de nós, por hoje — exclamou Fflewddur, com raiva, enquanto seu cavalo ve­lho subia a colina com dificuldade. — Mas nós o encontrare­mos amanhã, e Eilonwy estará sã e salva. Se bem conheço a princesa, Magg já está se lamentando de tê-la raptado. Ela vale por uma dúzia de guerreiros, mesmo que esteja de pés e mãos atadas!

Apesar das palavras corajosas do trovador, seu rosto demonstrava profunda preocupação.

Venha — disse Fflewddur —, o Mestre de Cavalaria está chamando os guerreiros. Vamos acampar com eles du­rante a noite.

Enquanto o bardo falava, Taran ouviu as notas indistin­tas de um toque de corneta. Franziu a testa.

— Não ousaria deixar o Príncipe Rhun, sozinho, vagan­do na floresta.

Nesse caso — argumentou Fflewddur, dando uma olhada para o sol poente — é melhor que o alcancemos sem demora. Um Fflam tem a vista aguçada! Mas prefiro não sair tropeçando pelo campo após o anoitecer, se isso puder ser evitado.

Rápido, sim, sim, apressando e acelerando! — excla­mou Gurgi. — Sombras apavorantes aparecem e Gurgi, va­lente, mas cauteloso, não conhece as maldades que nelas se escondem!

Os parceiros seguiram rapidamente até o bosque, onde Taran tinha certeza de que encontrariam o príncipe. Entre­tanto, ao ultrapassarem o círculo de amieiros e, sem sinal dele, Taran ficou mais alarmado. Em vão chamou pelo prínci­pe. Somente o eco respondia.

Ele não pode ter ido longe — disse ao bardo. — Até mesmo Rhun teria o bom senso de descansar ao cair da noite.

A escuridão cobriu o bosque. Os cavalos, mais acostu­mados a seus estábulos quietos em Dinas Rhydnant do que às florestas de Mona, seguiam amedrontados, detendo-se e contraindo-se a cada arbusto agitado pelo vento. Os parcei­ros foram obrigados a apear e continuar a pé, puxando os animais relutantes. A essa altura, Taran estava bastante pre­ocupado. O que fora um simples incidente tornara-se grave.

Talvez tenha caído do cavalo — disse Taran. — Neste momento, pode estar deitado, ferido ou inconsciente.

Se é assim, sugiro que encontremos o caminho de volta ao resto do grupo — disse Fflewddur — e pediremos a eles que nos ajudem. Nesta escuridão, mais olhos enxergam melhor.

Perderíamos muito tempo — Taran retrucou, for­çando a passagem por uma vegetação rasteira.

Gurgi seguiu-o, lamuriando-se em voz baixa. O solo em elevação indicava que estavam chegando à base da co­lina. Não se ouvia nenhum som, a não ser o assobio dos arbustos que balançavam de volta, depois que eles passa­vam, e o estalar dos cascos dos cavalos nos seixos pálidos. Taran parou, de repente, com o coração na boca. Com um canto do olho percebeu o movimento de algo em fuga. A visão durou pouco mais que um instante, uma sombra numa sombra. Lutando contra o medo, seguiu em frente, tateando. Os animais ficaram mais nervosos do que antes, e o cavalo de Taran moveu as orelhas para trás, emitindo um relincho assustado.

Gurgi também sentiu a presença sombria. O pêlo da criatura aterrorizada ergueu-se em volta do pescoço e ele começou a gritar, lamentando-se.

Coisas ruins, malvadas, vêm perseguir inofensivo Gurgi! Oh, bom mestre, salve a cabeça mimosa de Gurgi dos peri­gos danosos!

Taran sacou a espada, e os companheiros, olhando várias vezes para trás, na escuridão, apressaram-se. Desta vez os cavalos não se demoraram; ao contrário, em desespero, lan­çaram-se à frente, e quase arrastaram o bardo.

Grande Belin! — protestou Fflewddur, que batera numa árvore e lutava para desprender de um arbusto a harpa que fazia um ruído estridente. — Segurem-se! O que nos falta acontecer agora é sair à procura dos nossos cavalos, além do Príncipe Rhun.

Com dificuldade Taran conseguiu acalmar os animais, que não queriam mais se mover. A despeito de toda a persu­asão, apelo e puxões, os cavalos ficaram parados com as per­nas enrijecidas, os olhos arregalados, os flancos tremendo. O próprio Taran, exausto, caiu por terra.

— Nossa busca é cega e inútil — disse. — Vocês ti­nham razão — continuou, virando-se para Fflewddur. — Devíamos ter voltado. O tempo que eu desejaria ter poupa­do já redobrou, e a cada momento que nos demoramos au­menta o perigo para Eilonwy. Agora o Príncipe Rhun está perdido... e Kaw, também, ao que parece.

— Você está certo — suspirou Fflewddur. — E a não ser que você e Gurgi saibam onde estamos, sou levado a crer que nós também estamos perdidos.


 

As Poções de Glew

Ouvindo isso, Gurgi deu um gemido e balançou-se para a frente e para trás, apertando a cabeça com as mãos. Taran conteve o próprio deses­pero, da melhor maneira possível, e tentou reconfortar a criatura assustada.

Agora só nos resta aguardar até a madrugada — disse Taran. — O Mestre da Cavalaria não deve estar muito distante. Encontrem-no o mais depressa que puderem. E aci­ma de tudo, não retardem a busca a Eilonwy. Vou procurar o Príncipe Rhun — acrescentou, com amargura. — Jurei protegê-lo de todo o mal e vou manter a minha palavra. Mas, depois que o encontrar, de alguma forma, reencontrarei vocês.

Então silenciou, e baixou a cabeça. Fflewddur observava-o.

Não deixe a tristeza minar o seu coração — disse o bardo, em voz baixa. — Magg não conseguirá escapar de nós por muito tempo. Não acredito que ele pretenda ferir Eilonwy; quer apenas entregá-la a Achren. E nós o pegare­mos muito antes que ele faça tal coisa. Agora, descanse. Eu e o Gurgi vamos revezar durante a vigília.

Cansado demais para contestar, Taran estendeu-se no solo e cobriu-se com o gibão. Assim que seus olhos se fecha­ram, a visão de Achren voltou a atormentá-lo. Impelida pela fúria e vingança, a rainha tirânica matava qualquer um dos companheiros que caísse em suas mãos. E Eilonwy? Não ou­sava imaginá-la nas garras de Achren. Finalmente, adorme­ceu, e, durante o sono inconstante, parecia estar debaixo de um fardo pesado.

O sol acabara de nascer quando Taran abriu os olhos, assustado. Fflewddur sacudia-o. O cabelo amarelo do trova­dor estava de pé, espetado para todos os lados, e o rosto pálido, devido à fadiga, exibia um sorriso amplo.

Boas notícias! — bradou. — Eu e o Gurgi saímos a procurar e espiar, por nossa conta. Não estamos tão perdi­dos como você pensa. A verdade é que estávamos cami­nhando em círculo. Confira você mesmo.

Taran levantou-se e seguiu o bardo até uma elevação baixa.

Você está certo. Lá está o bosque de amieiros. Deve ser! E lá... lembro-me da árvore caída onde perdi Rhun de vista. Venha — acrescentou —, vamos juntos até lá, a cavalo. Depois vocês seguirão adiante para alcançar os demais.

Imediatamente os companheiros montaram e apressa­ram os cavalos rumo ao bosque. Antes de chegarem lá, o cavalo de Taran estancou de repente, e em seguida virou à esquerda. Ouviu-se um relincho alto dentre as árvores, pró­ximo ao declive da colina. Perplexo, Taran soltou as rédeas e deixou o cavalo seguir a meio galope na direção do som. Alguns instantes depois, viu, de relance, uma forma pálida do outro lado da folhagem. A medida que o cavalo o leva­va para mais perto, Taran reconheceu a égua malhada de Rhun.

Veja lá! — gritou para Fflewddur. — Rhun não deve estar longe daqui. Talvez a gente tenha passado por ele du­rante a noite.

Puxou as rédeas e pulou da sela. O coração de Taran esfriou. A égua estava sem montaria. Ao ver os outros cavalos, ela ergueu a cabeça, agitou a crina e relinchou ansiosamente.

Temendo o pior, Taran passou depressa pela égua, en­quanto Fflewddur e Gurgi desmontavam e corriam atrás dele. Taran parou, de súbito. Diante dele, numa clareira, erguia-se algo que parecia, à primeira vista, uma imensa colmeia feita de palha. Naquele momento, Fflewddur já se aproximara. Taran fez um sinal, erguendo a mão, e caminhou com cautela até o estranho chalé.

De perto pôde ver que várias partes do telhado cônico de sapé tinham desabado. Pedras brutas, empilhadas umas so­bre as outras, formavam uma parede lateral, baixa, sendo que um dos cantos havia ruído e formado um monte de entulho. Não havia janelas, e a única porta, que era pesada, estava torta, presa por dobradiças de couro, prestes a se romper. Os bura­cos no sapé encaravam-no como se fossem olhos vazios.

Fflewddur olhou-o de relance.

Não é do meu agrado ir até lá, bater à porta — sussurrou — e perguntar a quem quer que esteja lá dentro se, por acaso, viu o Príncipe de Mona. De qualquer maneira, parece o tipo do lugar que até mesmo o Príncipe Rhun evita­ria. Mas, suponho que não haja outra forma de descobrir.

Nesse momento a porta foi escancarada. Gurgi, com um grito, escalou uma árvore, procurando segurança. A mão de Taran tocou a espada.

Olá, olá! — parado à porta estava o Príncipe Rhun, sorridente. Fora a aparência um tanto sonolenta, estava no seu normal, e intacto. — Espero que tenham algo que sirva de café da manhã — acrescentou, esfregando as mãos com disposição. — Estou quase morto de fome. Já notaram que o ar fresco aumenta o apetite? Impressionante!

Entrem, entrem — Rhun continuou, enquanto Taran o olhava fixamente, sem palavras. — É de se surpreender de tão confortável que é. Não imaginam como é agradável e aconchegante. Onde vocês passaram a noite? Espero que te­nham dormido tão bem quanto eu. Não avaliam...

Taran não conseguiu mais se controlar.

O que você fez? — explodiu. — Por que se afastou do destacamento de busca? Considere-se uma pessoa de sorte por ter-se perdido, apenas.

O Príncipe Rhun piscou e parecia intrigado.

Afastei-me do destacamento? — perguntou. — Ora, na verdade, não me afastei. Não, de propósito, você enten­de. Aconteceu quando caí da sela e tive que perseguir a égua, até que a encontrei perto desta cabana. Naquele momento já estava escurecendo e fui dormir. Simplesmente, foi uma questão de bom senso, não diria você? Quero dizer, por que dormir ao relento, se é possível proteger a cabeça sob um teto?

Por falar em estar perdido — Rhun continuou a di­zer —, parece-me que vocês é que estão perdidos. Onde quer que eu esteja, a busca vai se realizar, se é que me faço entender. Afinal, quem está no comando...

Sim, você comanda — Taran retrucou veemente­mente —, porque nasceu para fazê-lo, sendo o filho do rei.

Parou bruscamente. Mais um instante e teria revelado em voz alta a promessa que fizera ao Rei Rhuddlum e seu juramento de proteger o príncipe irresponsável. Taran trin­cou os dentes.

Príncipe Rhun — disse friamente —, não precisa nos lembrar que estamos sob suas ordens. Mas, para sua própria segurança, insisto que fique perto de nós.

E eu o previno que fique longe de chalés esquisitos — acrescentou Fflewddur. — A última vez que estive em um deles, quase fui transformado em sapo — o bardo sacudiu a cabeça. — Afaste-se desses... digamos... chalés — acrescen­tou. — Nunca se sabe o tipo de coisa desagradável que se pode encontrar... e quando se descobre, já é tarde.

Transformado em sapo? — exclamou Rhun, nem um pouco espantado. — Eu digo, deve ser interessante. Gostaria de experimentar, um dia. Mas, não há por que se preocupar com isso agora. Ninguém mora aqui. E ninguém esteve por aqui, há muito tempo.

Então, depressa — disse Taran, decidindo nunca mais tirar os olhos do príncipe. — Precisamos nos reunir aos de­mais. Temos uma longa e difícil cavalgada até alcançá-los.

Imediatamente! — disse Rhun, que usava apenas a camisa. — Vou recolher meus pertences.

Enquanto isso, Gurgi descera da árvore. Deixando a curio­sidade vencer a prudência, atravessou a clareira e empurrou a cabeça através da porta, finalmente arriscando-se a entrar com Rhun. Fflewddur e o impaciente Taran seguiram-no.

Taran constatou que o lugar era como o príncipe lhes contara. Uma camada espessa de poeira cobria as mesas e bancos. Havia uma enorme teia de aranha no canto, mas até mesmo a aranha havia desertado. Numa lareira quebrada encontravam-se vestígios chamuscados de um fogo que há muito se extinguira. Próximo à lareira, várias panelas, agora secas e vazias, tinham sido viradas. Recipientes de barro e jarros compridos, aos pedaços, estavam espalhados pelo chão. Através dos buracos do telhado, folhas de mais de um outo­ no tinham caído, quase enterrando uma banqueta, cujos pés estavam rachados. O casebre estava silencioso; os ruídos da floresta não entravam. Taran ficou de pé, apreensivo enquan­to Rhun manuseava seu armamento.

Gurgi, fascinado ao ver tantas bugigangas esquisitas, não perdeu tempo e começou a remexer. Subitamente, excla­mou, surpreso.

Vejam, vejam! — gritou, segurando um punhado de pergaminhos desgastados.

Taran ajoelhou-se ao lado de Gurgi e examinou o pacote danificado. Constatou que o rato-do-campo há muito tempo descobrira a pilha de pergaminhos. Muitas folhas haviam sido roídas; outras, encharcadas pela chuva, estavam borradas. Nas poucas páginas não danificadas a escrita era ilegível. Somente no final da pilha Taran encontrou páginas em bom estado. Essas foram cuidadosamente encadernadas em couro, formando um pequeno volume, cujas páginas estavam claras e sem marcas.

O Príncipe Rhun, que ainda estava afivelando a espada à cintura, foi espiar por cima do ombro de Taran.

Digo eu! — exclamou. — O que você encontrou? Não faço idéia do que seja, mas deve ser interessante. Ora, ora, vejam que livrinho bonito! Gostaria de ter um desses para anotar coisas que preciso me lembrar de fazer.

Príncipe Rhun — disse Taran, entregando o volume intacto ao Príncipe de Mona, que o colocou dentro do cole­te —, acredite-me. Se existe algo que possa ajudá-lo a fazer algo, que seja seu, então.

E Taran voltou a refletir a respeito dos pergaminhos.

Depois dos ratos e da ação do tempo — continuou a dizer — não há muito o que fazer com esses rabiscos. Pare­cem não ter começo nem fim, mas, tudo leva a crer que são receitas de poções mágicas.

Poções! — exclamou Fflewddur. — Grande Belin, pouca utilidade têm para nós!

Taran, no entanto, continuou a examinar e separar as páginas.

Esperem, acho que descobri o nome de quem as anotou. Glew, é o que parece. E as poções, segundo diz aqui, servem para — sua voz falhou e ele virou-se, ansioso, para Fflewddur — torná-lo maior. O que significa isso?

Como é? — perguntou o bardo. — Maior? Tem cer­teza de que não leu errado?

Ele tomou as páginas da mão de Taran e examinou-as cuidadosamente. Quando terminou, deu um assobio baixo.

Nas minhas andanças — disse Fflewddur —, aprendi muitas coisas, e entre elas, o seguinte: não lide com magia. Receio que foi, exatamente, o que esse sujeito, Glew, fez. Decerto, o que ele procurava era uma poção que o tornasse mais forte e maior. Se aquelas lá são as botas de Glew — acrescentou, apontando para o canto —, é evidente que pre­cisava de uma poção dessas, porque era um sujeito baixinho.

Do lado deles, meio escondido pelas folhas, achava-se um par de botas bem gastas. Mal caberiam nos pés de uma criança, pensava Taran, lamentando a pequenez e o vazio das botas.

Deve ter sido uma pessoa detalhista — Fflewddur prosseguiu. — É o que posso deduzir. Descreve tudo o que fez, e anota as receitas, com bastante cuidado e método. E quanto aos ingredientes — disse o bardo, fazendo uma care­ta —, prefiro nem pensar.

Eu digo — interrompeu o Príncipe Rhun, ansioso —, talvez nós mesmos devêssemos experimentá-la. Seria inte­ressante ver o que acontece.

Não, não — gritou Gurgi. — Gurgi não quer provar loções e poções horríveis!

Nem eu — disse Fflewddur. — E nem Glew, a pro­pósito. Ele não queria tomar suas poções até que tivesse a certeza de que funcionariam... e quanto a isso tinha toda a ra­zão. Conduziu o assunto com sabedoria.

Segundo posso apreender do que escreveu aqui — continuou o bardo —, ele saiu, capturou uma gata montesa pequena, presumo, considerando-se que o próprio Glew era uma pessoa pequena. Trouxe o animal para casa, deixou-a numa gaiola e alimentou-a com as poções, o mais depressa possível, à medida que as preparava.

Finalmente aconteceu — Fflewddur continuou. — Pode-se notar pela escrita, como Glew ficou agitado. Llyan começou a crescer. Glew menciona que foi obrigado a fazer uma gaiola nova para ela. E mais outra. Deve ter ficado muito satisfeito. Posso imaginar o sujeito pequenino rindo e traba­lhando com afinco nas poções.

Fflewddur virou a última página.

— E assim termina o relato — disse —, no ponto em que os ratos comeram o pergaminho. Acabaram com a últi­ma receita de Glew. Quanto a Glew e Llyan... assim como a receita, desapareceram.

Taran estava em silêncio, olhando para as botas e as panelas viradas.

Certamente, Glew foi-se embora — disse, pensati­vo —, mas tenho a impressão de que não foi para longe.

Como assim? — perguntou o bardo. — Oh, com­preendo o que quer dizer — disse, estremecendo. — Sim, parece muito... como dizer, repentino? Do modo que vejo Glew, ele era do tipo asseado e organizado. Dificilmente sai­ria deixando a cabana do jeito que está agora. E além do mais, sem as botas. Pobre sujeito — suspirou. — Isso serve para mostrar os perigos de se meter com magia. Apesar de todo o seu esforço, Glew deve ter sido engolido. E se quer saber, o melhor é sair daqui imediatamente!

Taran balançou a cabeça em sinal afirmativo e ergueu-se. Ao fazê-lo, relinchos assustadores e o som de cascos galo­pando encheram o ar.

— Os cavalos! — gritou, correndo em direção à porta.

Antes que pudesse alcançar a saída, a porta voou pelos ares. Taran empunhou a espada e cambaleou para trás, quan­do uma gigantesca forma pulou diante dele.


 

A Toca de Llyan

A lâmina de Taran soltou-se de sua mão e rodo­piou, e ele atirou-se no chão para escapar do ataque. Num salto poderoso, a criatura passou por cima da cabeça de Taran. A fera enorme rugiu furiosa, quando os companheiros se espalharam, ater­rorizados, por todos os cantos do casebre.

Na confusão de banquetas e bancos tombando, e atra­vés das folhas secas erguidas no ar formando um redemo­inho, Taran viu que Fflewddur pulara no tampo de uma mesa e, ao fazê-lo, mergulhara na teia de aranha que agora o cobria dos pés à cabeça. O Príncipe Rhun, que tentara, em vão, escalar a chaminé, agora estava agachado nas cinzas da lareira. Gurgi tentou se encolher tanto quanto possível e se comprimiu num canto, onde guinchava e gritava.

Socorro! Ah! Socorro! Salve a cabeça mimosa de Gurgi das patadas e unhadas!

É Llyan! — gritou Taran.

Pode ter certeza! — Fflewddur gritou. — Agora que a vejo, não duvido que Glew foi engolido e digerido muito tempo atrás.

Um rugido longo surgiu da garganta da criatura que va­cilou por um momento como se não soubesse onde atacar. Taran, sentado no chão, viu, pela primeira vez, como era aquele animal feroz.

Embora Glew tivesse escrito a respeito do crescimento de Llyan, Taran jamais imaginara uma gata montesa tão gran­de. Era tão alta quanto um cavalo, porém, mais magra e alongada; a cauda, mais espessa que o braço de Taran, ocu­pava quase todo o espaço da cabana. O pêlo farto e macio era cor de ouro velho, com manchas pretas e alaranjadas. Na barriga branca viam-se alguns pontos pretos. Tufos encaracola­dos cresciam das pontas de suas orelhas e punhados de pêlo circundavam as mandíbulas. Seus bigodes longos moviam-se bruscamente; os terríveis olhos amarelos corriam de um com­panheiro para o outro. A julgar pelas pontas brancas dos den­tes, que brilhavam quando sua boca se esticava para trás com um rosnado, Taran teve a certeza de que Llyan podia engolir qualquer coisa que lhe agradasse.

A gata gigantesca virou a cabeça na direção de Taran e, agilmente, atravessou o piso do casebre. Naquele momento, Fflewddur desembainhou a espada; cheio de teias de aranha e tudo mais, deu um salto da mesa, gritou o mais alto que pôde, e bramiu a arma. Num instante Llyan voltou-se. A chico­tada de seu rabo, mais uma vez, arremessou Taran de ponta-cabeça; antes que Fflewddur pudesse atacar, a pata pesada de Llyan agitou-se no ar. O movimento foi tão rápido que os olhos de Taran não puderam acompanhar; foi o tempo de ver o bardo ser surpreendido e sua arma sair pelos ares até cair no batente da porta, fazendo um barulho estridente, en­quanto Fflewddur foi parar de cabeça para baixo.

Com um rosnado e, o que parecia ser um sacudir de ombros, Llyan virou-se novamente para Taran. O animal aga­chou-se, esticou o pescoço, e seus bigodes tremiam à medi­da que se aproximava dele. Taran, sem ousar mover um músculo sequer, prendeu a respiração. Llyan andou à sua volta, bufando. Do canto do olho, Taran entreviu o bardo tentando ficar de pé e advertiu Fflewddur a ficar imóvel.

Ela está mais curiosa do que zangada — Taran sus­surrou. — Caso contrário, já teria nos feito em pedaços com suas garras. Não se mexa. Pode ser que ela se afaste.

Fico feliz em saber — replicou Fflewddur, com a voz sufocada. — Lembrarei disso enquanto estiver sendo engoli­do. Será um consolo para mim.

Acho que ela não está com fome — disse Taran. — Se passou a noite caçando, deve ter comido o suficiente.

Pior para nós — disse Fflewddur. — Vai nos manter aqui até que recupere o apetite. Tenho certeza de que esta é a primeira vez que tem a sorte de encontrar quatro refeições prontas, esperando por ela, na toca.

O trovador suspirou e sacudiu a cabeça.

No reino onde moro sempre jogava fora sobras de pássaros e outras criaturas, no entanto, jamais me ocorreu que chegaria o dia em que eu sobraria, se é que me fiz entender.

Finalmente, Llyan acomodou-se à porta. Molhou, com a língua, uma das imensas patas e começou a esfregá-la por cima da orelha. Absorta em sua tarefa, parecia ter-se esqueci­do que os parceiros estavam lá. Apesar do medo, Taran, fas­cinado, não podia deixar de observá-la. Até mesmo os movi­mentos mais suaves de Llyan eram poderosos; através do pêlo dourado, brilhando à luz do sol que penetrava pela por­ta aberta, Taran podia ver seus músculos potentes. Llyan, ele tinha certeza, era tão rápida quanto Melynlas. Mas, também sabia que um ataque seu poderia ser fatal; e embora o animal ainda não demonstrasse más intenções quanto aos compa­nheiros, seu humor poderia mudar a qualquer momento. Taran pensou, desesperadamente, num meio de fugir, ou, ao me­nos, de recuperar as armas.

Fflewddur — sussurrou —, faça algum barulho. Não muito, mas o suficiente para fazer Llyan olhar para você.

O quê? — perguntou o bardo, intrigado. — Olhar para mim? Ela já vai olhar. Sou grato só de pensar que ela ainda não se decidiu a fazê-lo.

Mesmo assim, Fflewddur esfregou as botas no chão. Imediatamente, Llyan empinou as orelhas e voltou os olhos para o bardo.

Abaixando-se, Taran moveu-se, silenciosamente, na di­reção de Llyan, com a mão estendida. Com todo o cuidado, os dedos tentavam alcançar sua espada que se encontrava próxima às patas de Llyan. Rápido como um relâmpago, a gata montesa golpeou-o e ele caiu para trás. Se as garras do felino estivessem à mostra, pensou Taran, desanimado, Llyan teria agora a cabeça dele, além da espada.

Não tem jeito, amigo — disse Fflewddur —, ela é mais rápida do que qualquer um de nós.

Não podemos nos demorar mais! — Taran excla­mou. — O tempo é precioso!

Ah, de fato, é — respondeu o bardo —, e quanto menos tempo temos mais precioso ele se torna. Começo a invejar a Princesa Eilonwy. Magg pode ser uma aranha odiosa e desprezível e tudo mais, mas quando o assunto é dentes e garras... eu preferia mil vezes enfrentá-lo à Llyan. Não, não — suspirou —, estou bem satisfeito de poder prolongar ao má­ximo meus últimos momentos.

Taran, desesperado, pressionou as mãos contra a testa.

Príncipe Rhun — chamou em voz baixa, um instante depois, quando Llyan começou a passar a pata pelos bigo­des —, fique de pé, devagar. Tente chegar àquele canto que desmoronou. Se conseguir, pule para fora e corra para salvar sua vida.

O Príncipe de Mona concordou, com um movimento de cabeça, mas, assim que ele se levantou, Llyan rosnou, alertando. O Príncipe Rhun piscou e sentou-se de novo, rapi­damente. Llyan encarou os companheiros.

Grande Belin! — sussurrou Fflewddur. — Não a ins­tigue mais. Fará com que ela recupere o apetite. Ela não vai nos deixar sair daqui, isso é certo.

Mas nós precisamos sair — Taran argumentou. — E se todos nós corrêssemos ao mesmo tempo? Ao menos um de nós conseguiria passar.

Fflewddur sacudiu a cabeça.

Depois que ela acabasse com a maioria de nós — retrucou —, não teria dificuldade de apanhar o sobrevivente isolado. Deixe-me pensar, deixe-me pensar.

Fazendo uma careta, alcançou a harpa que levava a tira­colo. Llyan, ainda rosnando, olhava atentamente, mas não se moveu.

Sempre me acalma. — Fflewddur explicou, retirando o instrumento do ombro e passando as mãos pelas cordas da harpa. — Não sei se vai suscitar algumas idéias; mas, quando toco, ao menos, nem tudo parece tão sombrio.

Quando a melodia suave surgiu da harpa, Llyan fez um ruído fora do comum.

— Grande Belin! — exclamou Fflewddur, parando subi­tamente. — Quase me esqueci dela! Pode me acalmar, mas, sabe-se lá que efeito causaria a uma gata montesa?

Agora, Llyan emitiu um uivo estranho, suplicante. No entanto, ao ver Fflewddur preparar-se para recolocar a harpa por cima do ombro, mudou o tom, que pareceu mais agudo. Urrou em tom ameaçador.

Fflewddur! — Taran sussurrou. — Toque!

Você não está achando que a música a distrai — disse o bardo, questionando. — Para mim, é difícil acreditar. Porque mesmo os seres humanos dizem palavras rudes a res­peito da minha música. Não se espera que uma gata montesa tenha melhor apreciação.

Mesmo assim, dedilhou, de novo, as cordas.

Desta vez, Taran não tinha nenhuma dúvida de que Llyan estava fascinada pela harpa. O corpo enorme da gata des­contraiu-se, os músculos pareciam ter-se soltado e Llyan pis­cou calmamente. Para se certificar, Taran pediu Fflewddur que parasse. Assim que o bardo o fez, Llyan tornou-se irre­quieta. Sua cauda agitou-se e os bigodes tremeram, o que demonstrava frustração. Assim que o bardo recomeçou a tocar, Llyan inclinou a cabeça para o lado, as orelhas para a frente e olhou para ele com ternura.

Sim, sim! — exclamou Gurgi. — Não pare de canta­rolar e dedilhar!

Acredite em mim — o bardo respondeu ardente­mente —, não foi a minha intenção.

Llyan dobrou as patas por baixo do profundo peito malhado e começou a fazer um ruído semelhante ao de um enxame de abelhas sonolentas. Em sua boca delineou-se um sorriso e a cauda fazia um movimento suave acompanhando a música.

Essa é a resposta! — gritou Fflewddur, levantando-se bruscamente. — Fujam, amigos, enquanto ela está quieta!

Ao se erguer, Llyan também deu um salto, furiosa, e o bardo caiu para trás, continuando a tocar para garantir a vida preciosa.

Sua música a acalma — gritou Taran, alarmado —, mas, ainda assim, ela não nos deixará sair.

Não é bem assim — disse o bardo, passando, rapida­mente, os dedos pelas cordas. — Duvido que vocês tenham qualquer dificuldade. Ai de mim! — acrescentou, pesaroso. — Receio que sou eu quem ela quer manter preso!


 

A Harpa de Fflewddur

— Fujam daqui! — instigou o bardo, sem parar de tanger as cordas de sua harpa. — Vão embora! Não sei dizer por quanto tempo ela vai querer me ouvir... ou por quanto tempo conseguirei tocar!

Deve haver outra maneira! — Taran gritou. — Não podemos deixá-lo.

Também não estou gostando disso — replicou o bardo. — Mas essa é a chance que vocês têm. Agarrem-na agora.

Taran hesitou. O rosto de Fflewddur estava sério e abatido e ele já demonstrava estar cansado.

Vão embora! — Fflewddur repetiu. — Vou tocar o quanto puder. Então, se ela resolver não me engolir, tal­vez saia para caçar. Não se preocupem. Se a harpa falhar, pensarei em outra coisa.

Desolado, Taran deu as costas. Llyan estava deitada de lado, na soleira da porta, uma pata esticada, a outra dobrada junto ao corpo malhado. Seu pescoço arqueou-se e a cabeça enorme voltou-se para Fflewddur. A criatura feroz parecia totalmente à vontade e em paz. Com os olhos amarelos, meio fechados, olhava apenas para o bardo, en­quanto Taran saiu para se encontrar com Gurgi e o Príncipe Rhun. A espada de Taran ficou junto às outras armas, debai­xo da pata do animal, e ele não ousou retirá-la, receando quebrar o encanto da harpa de Fflewddur.

As pedras que haviam caído do canto do chalé deixa­ram uma passagem estreita para a clareira. Taran fez um ges­to, apressando o príncipe. Gurgi seguiu-o na ponta dos pés, olhos arregalados de medo; segurava o queixo com as mãos para que os dentes não batessem.

Taran ainda se deteve e virou-se mais uma vez para o bardo, que gesticulava loucamente.

— Fora, fora! — ordenou Fflewddur. — Eu o encontra­rei assim que puder. Não lhe prometi uma nova canção? Você a ouvirá dos meus lábios. Até lá... adeus!

O jeito de falar e o olhar de Fflewddur não deixavam dúvida. Taran lançou-se pela abertura. No momento seguin­te, estava fora do chalé.

Conforme receava, os cavalos tinham se soltado e fugido ao ver Llyan. Gurgi e o Príncipe Rhun, tendo atravessado a clareira, desapareceram na floresta. Correndo a toda velocida­de, Taran logo os alcançou. O ritmo de Rhun já começara a decair, a respiração estava ofegante e parecia que as pernas iam ceder a qualquer momento. Taran e Gurgi seguraram o príncipe cambaleante e levaram-no o mais depressa possível.

Durante algum tempo, os três se empenharam em atra­vessar a vegetação rasteira. A floresta tornou-se esparsa e Taran avistou um descampado. Ao se aproximar do terreno plano, interrompeu a marcha. O Príncipe Rhun, Taran já sa­bia, atingira o limite de sua resistência e desejava apenas que estivessem longe, o bastante, de Llyan.

O Príncipe de Mona, dando graças, caiu no relvado.

Estarei de pé daqui a um instante — insistiu, delica­damente. Seu rosto estava pálido e contraído sob a camada de fuligem; ainda assim, tentou com bravura assumir o sorriso de sempre. — Impressionante, correr deixa uma pessoa tão cansada! Vou ficar feliz quando encontrarmos o Mestre de Cavalaria e eu tiver condições de cavalgar outra vez.

Taran não respondeu imediatamente mas olhou para Rhun, bem de perto. O Príncipe de Mona baixou a cabeça.

Imagino o que você esteja pensando — disse Rhun, em voz baixa. — Não fosse por minha causa, vocês não esta­riam nessa situação. E admito que você está certo. É por minha culpa que tudo isso aconteceu. Só me resta pedir per­dão. Não sou a pessoa mais esperta do mundo — Rhun acres­centou, com um sorriso tristonho. — Até mesmo minha an­tiga babá costumava dizer que eu era desajeitado. Mas não me conformo de ser um desastrado. Não é isso que se espe­ra de um príncipe. Não pedi para nascer na Casa Real, por isso, ao menos, não posso me responsabilizar. Mas, se nasci, quero... quero muito merecê-lo.

Querer é poder — Taran afirmou. Era estranho que, de uma hora para outra, estivesse sensibilizado pela sinceri­dade do Príncipe de Mona, e envergonhado dos próprios pensamentos maldosos a respeito de Rhun. — Eu é que lhe peço perdão. Se invejei sua posição, foi porque acreditava que você a considerava um presente da sorte, o qual não valorizava. Você diz a verdade. Para que um homem seja merecedor de qualquer posto, precisa, em primeiro lugar, esforçar-se para ser um homem.

Sim, é o que quero dizer — disse Rhun, com vee­mência. — Por isso precisamos nos reunir ao Mestre de Ca­valaria, o quanto antes. Está vendo? Nisso eu não gostaria de falhar. Quero... bem... eu mesmo quero encontrar a Princesa Eilonwy. Afinal, estou destinado a ser o seu noivo. Taran olhou-o, perplexo.

Como você sabe? Pensei que apenas os seus pais...

Ah, os boatos circularam pelo palácio — retrucou Rhun — e, algumas vezes, ouço mais do que deveria. Sabia que havia um noivado no ar mesmo antes de me mandarem trazer a Princesa Eilonwy a Mona.

Trazer Eilonwy de volta, a salvo, é o que importa agora — Taran começou a dizer.

Falou pausadamente, sabendo que no íntimo desejava que ele, e não Rhun, resgatasse Eilonwy. Mas compreen­deu que se tratava de uma decisão que precisava tomar sem vacilar.

Os que estão à sua procura já vão longe — disse Taran. E cada palavra sua exigia um esforço, e cada palavra o forçava a fazer uma escolha tão difícil quanto definitiva. — Sem cavalos, não podemos ter a esperança de alcançá-los. Levar adiante nossa própria busca, a pé, seria muito difícil e perigoso. Temos somente um caminho a seguir: aquele que nos leva de volta a Dinas Rhydnant.

Não, não! — gritou Rhun. — Não me importo com o perigo. Preciso encontrar Eilonwy.

Príncipe Rhun — disse Taran, gentilmente —, tam­bém devo lhe dizer isto. Seu pai pediu-me que fizesse um juramento, e eu o fiz: evitar que algum mal lhe aconteça.

O rosto de Rhun desmoronou.

Eu já devia ter imaginado. Decerto, sabia desde o começo, que a despeito do que meu pai dissera sobre a mi­nha posição no comando, eu não estava liderando, efetiva­mente. Estou sob ordens. Seja lá o que deve ser feito, é a você que cabe a decisão.

Existem outros que podem completar a tarefa — disse Taran. — Quanto a nós...

Olhem só! — irrompeu Gurgi, que estivera abaixa­do, perto de uma árvore tombada. — Olhem! Vem chegan­do disparado e desabalado!

Exultante, a criatura agitava os braços e indicava uma colina baixa. Taran avistou uma figura comendo a toda velocidade.

Com a harpa balançando no ombro, o gibão enrolado e preso debaixo do braço, e as pernas magricelas esforçando-se ao máximo, o bardo precipitava-se morro abaixo. Atirou-se no chão e enxugou o suor do rosto.

Grande Belin! — disse Fflewddur, ofegante. — Estou feliz de vê-los novamente.

Retirou do gibão as espadas perdidas e entregou-as aos amigos.

E imagino que nós todos estejamos felizes de vê-las.

Você está ferido? — Taran perguntou. — Como es­capou? Como nos encontrou?

Ainda arquejando, o bardo ergueu a mão.

Dê-me um instante para recuperar o fôlego, porque o perdi lá longe. Ferido? Sim, de certo modo — acrescentou, dando uma olhadela nos dedos calejados. — Mas, não tive dificuldade de lhes encontrar. Rhun deve ter levado todas as cinzas da lareira de Glew. Dificilmente eu perderia a trilha.

Quanto a Llyan — Fflewddur continuou —, os tro­vadores hão de cantar o que se passou, podem ter certeza. Devo ter tocado, cantado e assobiado tudo que conhecia, e mais o dobro. Cheguei a crer que precisaria continuar a tan­ger e dedilhar pelo resto da minha vida, mesmo que essa vida fosse curta. Lembrem-se da minha situação! — gritou, levan­tando-se. — Sozinho com um monstro feroz. Bardo contra fera! Fera contra bardo!

Você a matou! — Taran exclamou. — Um golpe co­rajoso... embora lamentável, pois era uma beleza, a seu modo.

Ah... bem, a verdade é a seguinte — disse Fflewddur rapidamente, pois as cordas da harpa esticaram-se como se fossem se romper de uma vez por todas —: ela, finalmente, adormeceu. Recuperei nossas espadas e fugi para salvar mi­nha vida preciosa.

Fflewddur recostou-se na relva e começou a mastigar a comida que Gurgi lhe ofereceu.

Mas não posso garantir que Llyan estará de bom humor quando acordar — prosseguiu o bardo. — Com cer­teza virá no meu encalço. Esses gatos monteses nasceram para seguir pistas; e, levando-se em conta que Llyan é dez vezes maior que uma criatura normal, decerto é dez vezes mais astuta. Não vai desistir facilmente. Tenho a impressão de que sua paciência é tão grande quanto sua cauda. Mas, estou surpreso de ver que vocês não se distanciaram mais. Pensei que estariam prestes a se reunir ao grupo de busca.

Taran sacudiu a cabeça. Contou ao bardo a respeito da decisão de voltar a Dinas Rhydnant.

Suponho que seja o melhor a fazer. Especialmente agora, que Llyan deve estar à espreita.

Taran passou os olhos pelas colinas, procurando o cami­nho mais fácil e mais seguro para seguir. Prendeu a respira­ção. Uma figura escura passava depressa, bem no alto. Girou, circulou, e seguiu na sua direção.

É Kaw! — Taran correu à frente e estendeu o braço. O corvo desceu suavemente e pousou-lhe no punho. O pás­saro mostrava sinais de um vôo exaustivo; as penas estavam tortas e ele parecia um trapo, mas, cheio de entusiasmo, esta­lou o bico e tagarelou.

Eilonwy! — grasnou Kaw. — Eilonwy!


 

A Sorte de Rhun

— Ele a encontrou! — gritou Taran, no mo­mento em que os companheiros cerca­ram o alegre corvo. — Aonde Magg a levou?

Alaw! — grasnou Kaw. — Alaw!

O rio! — exclamou Taran. — Onde fica?

Perto! Perto! — respondeu Kaw.

— Está fora de questão voltar a Dinas Rhydnant ago­ra — disse o Príncipe Rhun. — Magg está nas nossas mãos. Em pouco tempo teremos a princesa de volta.

Se antes disso Llyan não puser as patas em nós — Fflewddur murmurou. E voltando-se para Taran: — Kaw poderia levar uma palavra ao Mestre de Cavalaria? Para ser sincero, bem que me sentiria mais seguro se tivesse a com­panhia de alguns guerreiros.

Não podemos perder tempo — Taran respon­deu. — O Príncipe Rhun tem razão. Precisamos agir agora, senão Magg vai escapar por entre nossos dedos. Rápido, amigão — disse a Kaw, dando-lhe impulso para subir —, guie-nos até o Alaw.

Partiram, rapidamente. O corvo voava de uma árvore a outra, grasnando com impaciência até que os companheiros se aproximassem. Em seguida, projetando-se mais uma vez no espaço, Kaw tomou a direção que desejava indicar aos companheiros. Taran sabia que o corvo estava se esforçando para retirá-los das colinas o mais rápido possível; mas, muitas vezes, a floresta e a vegetação rasteira formavam uma barrei­ra tão entrelaçada que os companheiros eram forçados a abrir caminho com as espadas.

Já passava do meio-dia e o grupo de amigos ainda per­corria com dificuldade a trilha, quando Kaw os conduziu a um prado ondulante que logo terminou num despenhadeiro pe­dregoso. A relva era curta e áspera, com muitas áreas de solo descoberto onde se espalhavam seixos arredondados e bran­cos, fazendo lembrar granizo em tamanho aumentado.

Com todos os guerreiros de Rhuddlum esquadri­nhando Mona — disse Fflewddur, com raiva, ao iniciarem a descida para o rio —, como é possível que aquela aranha tenha escapado de nós?

Magg tem sido mais hábil do que imaginamos — disse Taran, amargamente. — Estou certo de que levou Eilonwy para os Montes de Parys. Mas, provavelmente es­condeu-se, e não se moveu até se certificar de que a busca já passara por ele.

Miserável! — rosnou Fflewddur. — Deve ter sido isso. Enquanto estávamos trilhando caminhos, e nos afastan­do mais e mais do castelo, esse sórdido Magg esperou, cal­mamente, até que estivéssemos bem à frente, e ele atrás! Não importa. Em breve o agarraremos, e ele vai pagar por essa trapaça.

Kaw, dando grandes voltas acima dos parceiros, ficou mais agitado e seu grasnido tornou-se rouco. Taran viu, de relance, o Alaw cintilando mais abaixo. O corvo, numa ex­plosão de velocidade, voou diretamente para lá. Seguidos pelo Príncipe Rhun que arfava e suspirava, o grupo seguiu rapida­mente pelo declive. Kaw, pousado num galho, bateu as asas com grande entusiasmo.

Taran sentiu o coração comprimir-se. Não havia sinal de Eilonwy ou Magg. Em seguida abaixou-se, pondo no chão um dos joelhos.

— Fflewddur! — gritou. — Depressa! Aqui têm marcas de cascos. Dois cavalos.

Deu alguns passos seguindo o rasto, e então parou, intrigado.

Veja isso — disse ao bardo e Gurgi, que se aproxi­maram dele. — Os rastos seguem caminhos diferentes. Não entendo o que poderia ter acontecido. Príncipe Rhun! — chamou. — Encontrou algum sinal dos cavalos?

Nenhuma resposta veio do Príncipe de Mona. Taran ficou de pé e olhou em redor.

Rhun! — gritou. Mas nenhum sinal do príncipe. — Ele se perdeu mais uma vez! — gritou Taran, furioso. — Tolo, imprestável! Para onde foi?

Ansiosos, e chamando por Rhun, os três correram até o barranco. Taran estava disposto a sair sozinho à procura dele quando o Príncipe de Mona surgiu dentre os salgueiros.

Olá, olá! — Rhun aproximou-se, correndo, vibrando de alegria. Antes que Taran, aliviado, mas zangado, o repre­endesse, o príncipe exclamou: — Veja isto! Surpreendente! Decerto, espantoso!

O Príncipe Rhun estendeu a mão. Nela estava a esfera de Eilonwy.

Com o coração disparado, Taran olhou fixamente para a esfera dourada.

Onde encontrou isso?

Ora! Lá — respondeu Rhun, indicando uma pedra coberta de limo. — Enquanto você procurava por marcas de cascos, tive a idéia de procurar algo mais, para ganharmos tempo. E foi isso que encontrei.

Entregou a bolinha a Taran, que a guardou, com cuida­do, no colete.

Ele nos conduziu a pistas frescas — disse Fflewddur, examinando a relva. — Alguma coisa bem grande e achatada foi arrastada deste local.

Coçou o queixo, pensativo.

Imagino que fosse... um barco? Poderia ser? Será que aquela aranha debochada tinha um barco aqui, pronto, à es­pera? Não me surpreenderia se soubesse que ele planejara tudo antes de Eilonwy chegar a Mona.

Dando passadas largas, Taran desceu o barranco.

Estou vendo pegadas — clamou. — O solo está re­volvido. Eilonwy deve ter lutado com ele... sim, bem ali. E ali deixou cair a bolinha.

Angustiado, olhou para o rio largo e veloz.

Você interpretou bem os sinais, Fflewddur — disse ele. — Magg deixara um barco neste local. Soltou os cavalos e deixou-os correr à vontade.

Taran ficou parado por um momento, olhando a água turbulenta, e então sacou a espada.

Venha, dê-me uma ajuda — chamou Gurgi, o bardo, e correu até os salgueiros.

Eu digo, o que pretende fazer? — gritou Rhun, en­quanto Taran, apressado, cortava os galhos mais baixos. — Fogo? Não há necessidade alguma.

Podemos construir uma balsa — respondeu Taran, atirando os galhos cortados no chão. — O rio ajudou Magg. Agora vai nos ajudar.

Os companheiros arrancaram cipós dos troncos das ár­vores e amarraram os galhos cortados, tornando mais longas as cordas improvisadas com tiras rasgadas de suas próprias vestes. Embora desajeitada e mais parecendo um feixe de lenha, em pouco tempo a balsa estava pronta. Mas, quando Taran dava os últimos nós no entrançado de cipós e trapos, Gurgi deu um guincho de medo. Taran levantou-se num salto e olhou ao redor, enquanto Gurgi, desesperado, gesticulava na direção das árvores mais distantes do barranco.

Llyan surgiu, repentinamente, saindo do bosque. A enor­me gata montesa parou por um momento, com uma das patas erguidas, a cauda balançando e os olhos brilhando, fixos nos companheiros que caíram para trás aterrorizados.

A balsa! — Taran gritou. — Direto para o rio, com ela!

Segurou uma extremidade da embarcação desengonça­da e esforçou-se para arrastá-la até a água. Ainda aos gritos, Gurgi correu para ajudá-lo. O Príncipe Rhun fez o melhor que pôde para ajudar. O bardo já havia se atirado no rio, onde, erguido pelos galhos, procurava resistir à correnteza, com a água pela cintura.

As orelhas peludas de Llyan, em forma de conchas, vira­ram-se para a frente e os bigodes contraíram-se quando seu olhar pousou no bardo. De sua garganta surgiu um rugido que não era selvagem, e sim, fazia lembrar o repicar de um sino, um lamento. Com um brilho estranho nos olhos, saiu trotando. Ronronando alto, a gata montesa seguiu em dire­ção ao bardo desvairado.

Grande Belin! — gritou Fflewddur. — Ela me quer de volta!

Naquele momento, Kaw, pousado num galho baixo, ba­teu as asas e investiu contra Llyan. Grasnando o mais alto pos­sível, o corvo precipitou-se sobre a fera assustada. Llyan inter­rompeu o percurso e rugiu com raiva. Voando em alta veloci­dade, Kaw passou à distância de um fio de cabelo da cabeçorra de Llyan, usando as asas e o bico afiado para atacá-la.

Surpreendida, Llyan caiu sobre as ancas e virou-se para enfrentar o corvo. Kaw fez a volta e desceu novamente. Llyan saltou no ar, garras cortantes à mostra. Taran gritou de aflição quando uma nuvem de penas desceu, flutuando, mas, logo depois, viu o corvo ainda no alto, precipitando-se mais uma vez na direção de Llyan. Voando à sua frente tal qual um vespão preto, Kaw grasnou impudentemente, como se desa­fiasse a fera, bateu-lhe com as asas na cara e se afastou, a toda velocidade, mais uma vez. Na investida seguinte, que o apro­ximou tanto de Llyan que os dentes da gata trincaram numa das penas de sua cauda, Kaw agarrou e arrancou um bigode da bichana.

Urrando furiosamente, e esquecendo-se do bardo e dos companheiros, Llyan perseguiu o corvo, que se afastou do barranco e voou até o bosque. Llyan seguiu-o, e seus rugidos ecoaram entre as árvores.

Com um impulso final, os companheiros lançaram a bal­sa no rio e subiram a bordo. A correnteza arrebatou e fez girar a embarcação, que por pouco não afundou, antes mes­mo que Taran conseguisse mergulhar uma estaca na água. Fflewddur e Gurgi desviaram a balsa de uma pedra enorme e perigosa. O Príncipe Rhun, molhado até os ossos, remava, desesperadamente, com os braços. Pouco depois, a balsa acer­tou o rumo e o grupo de amigos deslizou rio abaixo.

Fflewddur, cujo rosto empalidecera, deu um suspiro de alívio.

— Temi que ela tivesse me pegado de uma vez por todas! Acredite, eu não agüentaria outra rodada de músicas, igual à última! Espero que o Kaw esteja bem — acrescentou, ansioso.

Kaw vai nos reencontrar — Taran garantiu-lhe. — Esperto como é, vai ficar fora do alcance de Llyan até se certificar de que estamos a salvo. Se ela continuar a persegui-lo, decerto vai levar a pior.

Fflewddur meneou a cabeça e, em seguida, virou-se e olhou por cima do ombro.

De certo modo — disse, com um tom de remorso na voz —, essa é a primeira vez que minha música foi real­mente... ah... por assim dizer, requisitada. Nesse caso, excluin­do-se o perigo, eu poderia dizer que me sinto, absolutamen­te, lisonjeado!

Eu digo! — exclamou o Príncipe Rhun, agachado na parte dianteira da balsa. — Não tenho a intenção de me queixar, depois de todo o trabalho que tiveram, mas acho que alguma coisa está se desprendendo.

Taran, ocupado em manter a direção, deu uma olhada para baixo e ficou alarmado. Os cipós, amarrados às pressas, começavam a se soltar. Taran empurrou a vara até o fundo do rio tentando deter a embarcação. A corrente levou-a para diante e os galhos vergavam e torciam-se à medida que a água vertia pelas aberturas. Um dos cipós partiu-se, um galho rachou de cima a baixo, e depois, outro. Jogando para o lado a vara inútil, Taran gritou para os amigos pularem fora. Agar­rando o Príncipe Rhun pelo colete, atirou-se no rio.

Com a água cobrindo-lhe a cabeça, o Príncipe Rhun pas­sou a dar chutes e a se debater desesperadamente. Taran segurou-o com mais força e nadou até a superfície. Com uma das mãos livres, agarrou-se a um pedregulho e apoiou os pés no meio dos seixos soltos. Empregando toda a sua força, arrastou Rhun até a margem, onde o deixou.

Gurgi e Fflewddur conseguiram se manter no que resta­ra da balsa e a rebocaram até a parte mais rasa do rio. O Príncipe Rhun sentou-se e olhou ao redor.

Desta vez quase me afoguei — disse, quase sem fôlego. — Sempre me perguntei que tipo de experiência se­ria afogar-se, mas, agora, penso que seria melhor não o saber.

Afogar-se? — disse Fflewddur, olhando fixamente para os destroços da embarcação. — Pior ainda! Todo o nosso trabalho deu em nada.

Embora exausto, Taran levantou-se.

A maior parte dos galhos pode ser reaproveitada. Vamos cortar mais cipós e recomeçar.

Sem muito ânimo, o grupo de amigos passou à tarefa de refazer a balsa, agora reduzida a pedaços espalhados pela ribanceira. O trabalho foi mais lento do que antes, pois na­quele local, árvores e cipós eram esparsos.

O Príncipe de Mona dirigiu-se a um arvoredo de sal­gueiros-brancos, e Taran viu-o puxando e tentando arrancar os galhos flexíveis. No instante seguinte, Rhun tinha sumido de vista.

Com um grito de alarme, Taran deixou cair uma braça­da de cipós e correu na direção do local, chamando por Rhun. O bardo olhou para cima.

De novo, não! — exclamou. — Se houvesse um campo com apenas uma pedra, ele tropeçaria nela! Fflams são pacientes, mas tudo tem limite!

Não obstante, correu para perto de Taran, que já estava ajoelhado junto aos salgueiros.

No local onde Rhun estivera havia um buraco. O Prínci­pe de Mona havia desaparecido.


 

A Caverna

Sem se preocupar com o grito de advertência de Fflewddur, Taran pulou no buraco e escorregou rapidamente por uma rede de raízes arrancadas. O buraco alargou-se um pouco e então se aprofundou. Gritando para o bardo atirar um cipó, Taran dei­xou-se cair, e em seguida levantou-se com dificuldade, fazen­do esforço para erguer Rhun, que estava inconsciente e san­grando bastante devido a um corte na parte lateral da cabeça.

A ponta do cipó estava dependurada. Taran amar­rou-o com firmeza por baixo dos braços do príncipe, gri­tando para que Fflewddur e Gurgi puxassem. O cipó esti­cou-se... e rompeu-se. Terra e pedras choveram dos lados lisos da grota.

Cuidado! — gritou Taran. — O chão está cedendo!

É, tem razão — gritou Fflewddur, de volta. — Nesse caso, é melhor lhe darmos uma ajuda aí embaixo.

Taran viu as solas das botas de Fflewddur descendo na sua direção. O bardo pousou com um resmungo, e Gurgi, cujo pêlo parecia ter acumulado toda a terra do buraco, caiu em seguida.

Os cílios do Príncipe Rhun tremularam.

Olá, olá! — murmurou. — O que aconteceu? Aque­las raízes eram profundas demais!

O solo deve ter sido dragado ao longo do barranco — Taran falou. — Quando você puxou as raízes, a tensão e o peso abriram esse buraco. Não tenha receio — acrescen­tou depressa —, já vamos tirá-lo daqui. Ajude-nos, vamos virá-lo de lado. Consegue se mexer?

O príncipe meneou a cabeça em sinal afirmativo, cerrou os dentes, e, erguido pelos companheiros, começou a escalar, dolorosamente, a lateral da cratera. Porém, mal atravessara a metade do caminho quando perdeu o equilíbrio. Taran fez o possível para impedir que ele caísse. Desesperado, Rhun agar­rou-se a uma raiz e, por um momento, ficou pendurado no ar.

A raiz partiu-se e Rhun caiu. Com um estrondo, a pare­de de terra desmoronou em cima deles. Taran ergueu os braços para se proteger da torrente de terra e xisto. Foi atira­do para o fundo, o solo rachou sob seus pés e cedeu, fazen­do-o girar no vazio.

O choque violento deixou-o atordoado. Seu nariz e sua boca estavam cheios de terra. Com os pulmões estourando, lutou contra o peso que lhe impedia de respirar. Foi então que ele percebeu que parara de cair. Sua cabeça ainda girava, mas, retorcendo-se, ele transpôs a camada de terra e pedriscos. Ergueu-se e respirou outra vez.

Ofegante e tremendo, caiu, estendido, num declive pe­dregoso, e a escuridão profunda sufocava-o. Finalmente, re­cuperando força suficiente para levantar a cabeça, tentou em vão olhar através das sombras que lhe embaçavam os olhos. Chamou os parceiros, mas não houve resposta. Sua voz res­soou por meio de um eco estranho e vazio. Desesperado, gritou mais uma vez.

Olá, olá! — a outra voz chamou.

Príncipe Rhun! — Taran gritou. — Onde está você? Está a salvo?

— Não sei — respondeu o príncipe. — Se pudesse ver melhor, poderia lhe dar uma resposta melhor.

Taran ficou de quatro e engatinhou para a frente. Tateando, encontrou uma forma peluda que se agitava e se lamuriava.

— Terrível! Oh, terrível! — Gurgi choramingou. — Ru­ídos e resíduos atiraram o infeliz Gurgi na negritude assusta­dora. Ele não enxerga nada!

— Grande Belin! — surgiu do escuro a voz de Fflewddur.

Que prazer ouvir isso. Por um momento pensei que esta­va cego. Juro que consigo ver melhor de olhos fechados!

Mandando Gurgi segurar no seu cinto, Taran rastejou na direção da voz do bardo. Os companheiros logo estavam reunidos, outra vez, e também o Príncipe Rhun, que conse­guira arrastar-se para perto deles.

Fflewddur — disse Taran com a voz ansiosa —, re­ceio que o deslizamento de terra tenha bloqueado o buraco. Vamos tentar cavar até encontrarmos a saída?

Não sei se é, de fato, uma questão de cavar ou de encontrar, se me faço entender — replicou o bardo. — Se temos condições de escavar através de toda essa terra é, no mínimo, duvidoso. Até mesmo uma toupeira teria dificulda­de, embora eu esteja querendo fazer uma tentativa. Um Fflam é destemido! Mas — acrescentou —, sem uma luz que nos guie, poderemos passar o resto de nossos dias procurando o lugar certo para começar a cavar.

Taran concordou e franziu as sobrancelhas.

É verdade. A luz é tão valiosa para nós quanto o ar.

Voltou-se para Gurgi. — Faça uma tentativa com as suas pedras-de-fogo. Não temos palha aqui, mas se conseguirmos uma fagulha, talvez o meu gibão sirva para acender o fogo.

Taran ouviu o barulho de mãos apalpando e roçando a roupa, enquanto Gurgi procurava as pedras, e em seguida ouviu um lamento.

As pedras-de-fogo desapareceram! — Gurgi lamuriou-se. — Infeliz Gurgi não pode fazer chama brilhante! Ele as per­deu, oh, desgraça e tristeza! Gurgi vai, sozinho, procurá-las.

Taran afagou o ombro da criatura.

Fique conosco — disse. — Dou mais valor à sua vida do que às pedras-de-fogo. Vamos encontrar alguma outra solução. Espere! — exclamou. — A esfera de Eilonwy! Se ao menos ela acendesse para nós!

Rapidamente levou a mão ao colete e retirou a esfera. Por um instante segurou-a, coberta, nas mãos, receando de­cepcionar-se, caso a bugiganga não brilhasse.

Prendendo a respiração, afastou, devagar, uma das mãos. A esfera dourada estava na palma de sua mão; podia sentir a superfície lisa e fria, e também o peso, que, praticamente, não existia. Taran sentiu os olhos dos amigos voltados para ele e pôde imaginar seus olhares esperançosos. Mas a escuridão tornou-se mais densa e mais sufocante do que nunca. A bo­linha não produziu nem a mais fraca luminosidade.

Não consigo — murmurou Taran. — Receio que não é dado a um Porqueiro-Assistente comandar um objeto de rara beleza e encantamento.

Comigo, nem adianta tentar — disse o Príncipe Rhun. — Já sei que não consigo fazê-la funcionar. Assim que a segu­rei, pela primeira vez, logo apagou-se. Surpreendente! Para a Princesa Eilonwy, era muito fácil acendê-la.

Taran tateou o caminho até Fflewddur e pôs a esfera na mão dele.

Você conhece a ciência dos bardos e os segredos da magia — argumentou. — Talvez ela lhe obedeça. Tente, Fflewddur. Nossas vidas dependem disso.

Sim, bem — disse Fflewddur —, admito que não tenho grande aptidão para essas coisas. A verdadeira ciência dos bardos sempre esteve muito além do meu alcance. Exis­te tanto para se saber que não foi possível, para mim, compri­mir mais do que uma ou duas gotas na minha mente. Mas um Fflam é determinado!

Minutos se passaram, e Taran ouviu Fflewddur suspirar, desanimado.

Não consigo entender a essência da coisa — mur­murou o bardo. — Esfreguei-a no chão, mas nada aconteceu. Aqui está. Nosso amigo Gurgi vai fazer uma tentativa.

Aflição e desolação! — resmungou Gurgi, depois que o bardo passou-lhe a esfera e ele a segurou por algum tem­po. — Nem mesmo provocando e apertando, nem surrando e afagando, infeliz Gurgi não consegue os sinais dourados.

Um Fflam nunca se desespera! — gritou Fflewddur. Mas — acrescentou, desolado — começo logo a acreditar que esse buraco será nosso túmulo, sem ao menos um montículo apresentável marcando o local. Um Fflam é ale­gre... mas essa situação é desanimadora, seja lá qual for o nosso ponto de vista.

Em silêncio Gurgi entregou a esfera a Taran, e este, com o coração oprimido, tomou-a nas mãos outra vez. Desta vez, segurou-a sentindo saudade, e seu pensamento desviou-se de sua própria situação e seguiu na direção de Eilonwy. Viu o rosto dela e mais uma vez ouviu a sua risada ecoar, com mais clareza que as notas da harpa de Fflewddur. Sorriu para si mesmo, até quando se lembrou da tagarelice e das palavras ásperas de Eilonwy.

Já estava se preparando para recolocar a bolinha no co­lete, quando parou, de súbito, e olhou fixamente para a sua mão. Um ponto de luz tinha começado a vibrar na parte interna da esfera. Enquanto olhava, evitando respirar, a luz tornou-se mais intensa e tremulou.

Taran levantou-se com um grito que não era de triunfo mas de espanto. Raios dourados brilhavam à sua volta, tê­nues mas firmes. Com a mão trêmula, ergueu a esfera acima da sua cabeça.

Gentil mestre nos salva! — gritou Gurgi. — Sim, sim! Ele nos tira da assombração e escuridão! Júbilo e felicidade! Escuridão pavorosa se acabou! Gurgi enxerga novamente!

Impressionante! — exclamou o Príncipe Rhun. — Espantoso! Olhe só essa gruta! Nunca imaginei que houvesse um lugar como este em Mona!

Outra vez, Taran deu um grito de surpresa. Até aquele momento pensara que eles haviam caído num tipo de cova. O brilho da esfera de Eilonwy mostrava que tinham chegado a um canto de uma enorme caverna. Estendia-se diante deles como uma floresta após uma tempestade de gelo. Colunas de pedra erguiam-se como troncos de árvores, formando arcos junto ao teto, de onde pendiam estalactites. Nas paredes som­brias, afloramentos gigantescos sobressaíam como brotos de espinheiros brilhando à luz dourada da esfera. Fios em tons fortes de verde e escarlate torciam-se em colunas de pedras luminosas. Elos brancos de cristal enrolavam-se nas paredes recortadas, que os riachos de água faziam brilhar. Ainda havia outras grutas além dessa, e Taran avistou grandes lagos, pla­nos e resplandecentes como espelhos. Alguns refletiam um brilho verde fosco, outros, azul pálido.

O que encontramos? — Taran sussurrou. — Seria uma parte do reino do Povo Formoso?

Fflewddur balançou a cabeça.

Decerto, o Povo Formoso possui túneis e cavernas onde menos se espera, mas duvido que esta seja uma delas. Não há nenhum sinal de vida.

Gurgi não falava, mas observava a caverna com os olhos arregalados. O Príncipe Rhun, demonstrando grande satisfa­ção, deu um passo à frente.

Digo eu, é realmente surpreendente — falou. — Devo contar a meu pai, a respeito deste lugar e ver se ele quer abri-lo à visitação. Seria lamentável manter um local as­sim escondido.

É um lugar de grande beleza — disse Taran, sussurrando.

E um lugar fatal para nós... — retrucou Fflewddur. — Um Fflam sabe apreciar paisagens, esta é uma vantagem de ser um bardo viajante, mas, do... hã... lado de fora, se me faço enten­der, que é onde, acredito, deveríamos estar, o quanto antes.

O grupo de amigos voltou pelo mesmo caminho, em direção ao ponto em que o deslizamento de terra os havia arrastado. Conforme Taran temia, com a luz da esfera doura­da ficou demonstrado que seria inútil cavar uma passagem, pois as pedras pesadas haviam preenchido a abertura, blo­queando-a completamente. Enquanto o Príncipe Rhun des­cansava numa das pedras em formato de mesa, e Gurgi pro­curava por comida na sua mochila, Taran e Fflewddur con­versavam apressadamente.

Precisamos encontrar, logo, outra passagem — disse Taran. — Agora, o Rei Rhuddlum e seus homens jamais en­contrarão Eilonwy. Somos os únicos que sabemos qual a di­reção seguida por Magg.

Tudo isso é verdadeiro — respondeu Fflewddur, me­lancólico. — No entanto, receio que tal constatação vá ficar trancada conosco neste lugar. A própria Achren não teria con­seguido nos atirar numa prisão mais reforçada que esta.

Decerto, há outras entradas e saídas — continuou o bardo —, mas essas cavernas podem nos levar, sabe-se lá, até onde? No subsolo podem ser imensas... e sua entrada, pouco maior que um buraco de coelho.

Entretanto, concordaram que não tinham escolha, a não ser continuar a procurar uma passagem que os levasse para fora da caverna. Mantendo o Príncipe de Mona sob sua pro­teção, Taran e o bardo saíram pelo bosque de pedra, com Gurgi atrás, trotando e segurando-se no cinto de Taran.

Sem avisar, o Príncipe Rhun, repentinamente, levou as mãos em torno da boca e gritou:

Alô! Alô! — no máximo volume de sua voz. — Há alguém aqui? Alô!

— Rhun! — Taran exclamou. — Fique quieto! Você vai atrair mais perigo para nós.

— Duvido muito — respondeu Rhun, inocentemente. — Parece-me que encontrar alguém ou alguma coisa é me­lhor do que não encontrar nada.

E assim arriscar nossos pescoços? — rebateu Taran. Ficaram parados até que os ecos terminassem. Nenhum outro som veio dos confins da caverna, e Taran, prudente­mente, fez sinal para os companheiros continuarem.

O solo aprofundou-se e eles se viram no meio de pe­dras que sobressaíam como dentes imensos. Mais adiante, o chão da caverna ondulava-se formando ondas altas e vales profundos, parecendo um mar revolto, congelado. Noutra gruta erguiam-se pilhas maciças de pedra e morros altos que tomaram formas extravagantes de nuvens estáticas.

Naquele local os companheiros, exaustos, descansaram um momento, pois a trilha estava estreita e mais difícil. O ar era pesado, estagnado como água de pântano, e os fazia sen­tir frio nos ossos. Taran incentivou-os a se levantarem nova­mente, ansioso por encontrar um túnel que os levasse para cima, mas temendo, cada vez mais, que a procura fosse longa e sofrida. Ao olhar para o rosto do bardo, Taran percebeu que Fflewddur tinha os mesmos temores.

Eu digo, há algo estranho — observou Rhun, indican­do uma pedra tombada.

Era, de fato, uma das mais estranhas formas que Taran tinha visto na caverna, pois parecia um ovo de galinha cuja metade estava para fora de um ninho. A pedra era branca, lisa e pontuda na parte superior, com umas crostas esparsas de líquen, e era quase tão alta quanto o próprio Taran. O que, à primeira vista, assemelhava-se a um ninho, era uma franja embaraçada e descolorida de fios ásperos que pareci­am se balançar na ponta de um declive acentuado.

Impressionante! — exclamou Rhun, que insistia em se aproximar para ver melhor. — Isto não é uma pedra, de jeito nenhum!

Surpreso, voltou-se para os amigos.

É inacreditável, mas é quase...

Taran agarrou Rhun, que estava estupefato, e puxou-o para trás num gesto tão brusco que o príncipe quase caiu de cabeça para baixo. Gurgi gritou aterrorizado. A forma come­çou a se mexer.

Dois olhos descoloridos surgiram numa face pálida como a de um peixe morto; as sobrancelhas tinham partículas de cristal e brilhavam; musgo e bolor circundavam as orelhas longas e caídas e se espalhavam na barba que crescia embai­xo de um nariz protuberante.

Espadas em punho, os companheiros acotovelaram-se contra a parede denteada. A cabeça enorme continuou a surgir e Taran a viu oscilar num pescoço magro. Um ruído borbulhou na garganta da criatura que gritou:

— Coisinhas insignificantes! Estremeçam diante de mim! Estremeçam, é o que lhes digo! Eu sou o Glew! Eu sou o Glew!


 

O Rei das Pedras

Gurgi atirou-se no chão, cobriu a cabeça com as mãos e começou a choramingar. A criatura gi­gantesca passou a perna longa e magra por cima do rochedo e, lentamente, começou a se erguer. Era três vezes mais alto do que Taran e seus braços flácidos, pendurados, ultrapassavam os joelhos ossudos, cobertos de musgo. Com um andar desconjuntado, apro­ximou-se do grupo.

Glew! — Taran falou, ofegante. — Mas eu tinha certeza...

Não pode ser — sussurrou Fflewddur. — Impossí­vel! Não o pequeno Glew! Se é ele, com certeza fiz uma idéia errada a seu respeito.

Estremeçam! — gritou a voz trêmula, novamente.

Vocês devem estremecer!

Grande Belin! — murmurou o bardo, que, de fato, tremia tanto que, por pouco, não deixou cair sua espada.

Nem precisa dizer!

O gigante curvou-se, cerrou um pouco os olhos ao ver a luz da esfera dourada, e observou atentamente o grupo.

Vocês estão mesmo tremendo? — perguntou, ansio­so. — Não estão fazendo isso por obrigação?

Nesse ínterim, Gurgi arriscou uma espiadela, mas ao ver a criatura acima dele tal qual uma torre, espalmou, de novo, as mãos no rosto e choramingou mais alto do que nunca. O Prín­cipe Rhun, no entanto, recuperando-se do primeiro impacto, examinou o monstro com grande curiosidade.

Eu digo, esta é a primeira vez que vejo cogumelos brotando na barba de alguém — observou. — Ele faz isso de propósito ou acontece por acaso?

Se esse é o Glew que conhecemos — disse o bar­do —, mudou muito.

Os olhos pálidos do gigante arregalaram-se. O que se­ria, num rosto comum, uma expressão ligeiramente risonha, transformou-se num sorriso mais comprido que o braço de Taran. Glew piscou e inclinou-se mais para perto.

— Então vocês ouviram falar de mim? — perguntou ansioso.

— Sim, de verdade — afirmou Rhun. — É impressio­nante, mas pensamos que Llyan...

Príncipe Rhun! — advertiu Taran.

Glew, até aquele momento, parecia não ter a intenção de causar-lhes mal. Ao contrário, era evidente que estava satisfeito por ter amedrontado os companheiros, e sua ex­pressão de contentamento era ainda mais intensa devido ao seu tamanho. Mas, até que avaliasse melhor a estranha criatu­ra, Taran pensou que seria mais prudente nada dizer a respei­to da busca.

Llyan? — Glew perguntou rapidamente. — O que sabem a respeito de Llyan?

Uma vez que Rhun já havia contado, Taran não teve escolha e admitiu que o grupo de amigos encontrou, por acaso, o chalé de Glew. Revelando apenas o essencial, Taran narrou a descoberta das receitas de poções. Se Glew aceita­ria bem a idéia de estranhos revirarem seus pertences, Taran não sabia; para seu alívio, o gigante parecia menos preocupa­do com esse fato do que em relação ao destino da gata montesa.

Ah, Llyan! — exclamou Glew. — Se ao menos ela estivesse aqui! Qualquer coisa para me fazer companhia! — dizendo isso, cobriu o rosto com as mãos e o som de seus soluços ecoaram na caverna.

Ora, ora — disse Fflewddur —, não se desespere. Você tem sorte de não ter sido engolido.

Engolido? — fungou Glew, erguendo a cabeça. — Melhor se isso tivesse me acontecido! Qualquer destino seria preferível a esta caverna desgraçada. Aqui há morcegos, sa­bem? Sempre me assustam os vôos rasantes e os guinchos horríveis, próprios deles. Minhocas brancas põem a cabeça para fora das pedras e ficam me encarando. E os diversos tipos de aranhas! E coisas que não passam de... de coisas! Essas são as piores. São de azedar o sangue de alguém, pode acreditar! Outro dia, se é que posso dizer dia, porque a única diferença que existe aqui...

O gigante inclinou-se para a frente. O volume de sua voz tornou-se mais baixo, o que significava um sussurro es­trondoso, e parecia que ele estava aflito por recontar esses acontecimentos.

Glew — Taran interrompeu —, lamentamos a sua situação mas, eu lhe imploro, mostre-nos a saída da caverna.

Glew balançou sua cabeça imensa e disforme de um lado ao outro.

Saída? Sempre procurei por uma. Não há nenhuma saída. Não para mim.

Deve haver — insistiu Taran. — Em primeiro lugar, como foi que você encontrou o caminho que o trouxe à caverna? Mostre-nos, por favor.

Como encontrei o caminho? — Glew retrucou. — Eu não diria, propriamente, que o encontrei. Foi culpa de Llyan. Se ela não tivesse fugido da gaiola, justo quando minha poção esta­va funcionando tão bem. Ao fugir do chalé a gata comeu atrás de mim. Foi ingratidão, mas eu a perdôo. O frasco ainda estava na minha mão. Oh, quem me dera ter jogado fora a poção desgra­çada! Corri o máximo que pude, e Llyan no meu encalço.

Glew bateu de leve na testa, com a mão trêmula, e pis­cou tristemente.

Foi o dia que corri mais rápido em toda a minha vida — disse ele. — Ainda sonho com isso, quando não sonho coisa pior. Finalmente, deparei-me com a caverna e nela entrei.

Não tive um minuto a perder — Glew prosseguiu, dando um suspiro profundo. — Engoli a poção. Depois que tive tempo para pensar, concluí que não deveria tê-la tomado. Mas, se a poção fez Llyan crescer, pensei que faria o mesmo comigo, então eu teria a chance de enfrentá-la. E assim aconte­ceu — acrescentou. — Na verdade, o efeito foi tão rápido que quase quebrei a minha cabeça no teto. E continuei a crescer. Tive que me esticar o mais depressa possível, afastando-me cada vez mais para o interior da caverna, procurando grutas maiores até chegar aqui. A essa altura, infelizmente, nenhuma passagem seria grande o suficiente para mim.

Tenho pensado um bocado a respeito disso desde aquele dia infeliz. Penso, com freqüência, no que aconteceu. — Glew continuou a dizer com os olhos semicerrados, olhar distante, perdido em suas lembranças.

Agora, fico pensando — murmurou —, agora, fico pensando se...

Fflewddur — Taran sussurrou no ouvido do bar­do —, não há um meio de fazê-lo parar de falar e mostrar-nos uma das passagens? Ou devemos tentar escapar dele e tentar encontrar a saída sozinhos?

Não sei — Fflewddur respondeu. — De todos os gigantes que já conheci... sim, bem, a verdade é que jamais vi algum, embora tenha ouvido falar deles. Glew parece bem... como posso dizer... pequeno! Não sei se estou sendo claro, mas, para começar, ele era um sujeito pequeno e fraco, e agora é um gigante pequeno e fraco! E provavelmente um covarde. Tenho certeza de que poderíamos enfrentá-lo, se pudéssemos alcançá-lo. Nosso maior risco seria sermos pisoteados ou esmagados.

Sinceramente, tenho pena dele — Taran começou a dizer —, mas não sei como ajudá-lo, e não podemos retardar a busca.

Vocês não estão ouvindo! — gritou Glew, que es­teve falando por algum tempo até perceber que se dirigia a si mesmo. — Sim, tudo se repete — soluçou. — Mesmo sendo um gigante, ninguém me dá crédito! Ah, posso lhes contar que existem gigantes que quebrariam os seus ossos e os apertariam até que os seus olhos pulassem. Vocês os escutariam, podem ter certeza. Mas não prestam atenção em Glew! Ah, se é ele, não importa, seja gigante ou não! Glew o gigante, confinado numa caverna infame, e quem se importa?

Agora preste a atenção — respondeu Fflewddur, um pouco impaciente, pois o gigante começara a soluçar e mo­lhar os companheiros com as lágrimas. — Você é o único responsável por estar metido nessa confusão. Foi mexer com magia, e, conforme eu já disse mais de uma vez, isso leva a resultados desastrosos.

Não queria ser um gigante — protestou Glew —, não no começo, pelo menos. Certa ocasião, cheguei a pensar que seria um guerreiro famoso. Ingressei no grupo do Lorde Goryon quando este investiu contra o Lorde Gast. Mas não suportava ver sangue. Fazia-me ficar pálido, pálido como um cadáver. E aquelas batalhas! O suficiente para fazer a cabeça de alguém dar voltas! Todo aquele confronto! Só a barulheira já era mais do que se podia suportar! Não, não! Era inteira­mente inviável.

Vida de guerreiro é sofrida — disse Taran — e, para segui-la, é preciso ter um coração forte. Decerto, haveria outros meios de você fazer um nome.

Pensei, então, que poderia me tornar um bardo — Glew continuou. — Também não deu certo. A experiência que se deve adquirir, o saber a ser conquistado...

Concordo com você, camarada — murmurou Fflewd­dur, dando um suspiro de ressentimento. — Eu também pas­sei por isso.

Não era uma questão do tempo necessário ao apren­dizado — Glew explicou, com um tom de voz que poderia ser triste, se não fosse tão alto. — Sei que poderia ter aprendido se tivesse me dedicado. Não. Foram os meus pés. Não supor­tava todas as caminhadas e perambulações, de um canto de Prydain ao outro. E sempre dormindo num lugar diferente. E a diferença da água. E a harpa fazendo calos no ombro...

Lamentamos muito — interrompeu Taran, inquieto, devido à ansiedade —, mas não podemos nos demorar.

Glew agachou-se diante do grupo de amigos enquanto Taran tentava pensar, desesperadamente, no melhor meio de se livrar dele.

Por favor, não vão embora! — Glew suplicou, como se lesse os pensamentos de Taran, os olhos piscando sem parar. — Ainda não! Mostrarei a passagem a vocês, daqui a pouco, prometo.

Sim, sim! — gritou Gurgi, conseguindo, afinal, abrir os olhos e levantar-se com dificuldade. — Gurgi não gosta de cavernas. E sua cabeça mimosa está cheia de alaridos e ruídos!

Foi então que decidi ser um herói — Glew conti­nuou, avidamente, ignorando a impaciência dos companhei­ros —, sair matando dragões e coisa e tal. Mas, não podem imaginar como isso é difícil. Ora! Encontrar um dragão é qua­se impossível! Mas achei um em Cantrev Mawr.

Era um dragão pequeno — Glew admitiu. — Do tamanho de uma doninha. Os camponeses haviam-no pren­dido numa gaiola de coelho, e as crianças, quando não ti­nham mais nada para fazer, iam lá, espiá-lo. Mas, afinal, era um dragão. Eu podia tê-lo matado — acrescentou, dando um enorme e estrondoso suspiro. — Bem que tentei. Mas a coi­sa odiosa me mordeu. Ainda tenho as marcas.

Taran segurou com força a espada.

Glew — disse com firmeza —, eu lhe imploro, mais uma vez, que nos mostre a passagem. Caso contrário...

Então pensei em me tornar rei — disse Glew, de­pressa, antes que Taran completasse a frase. — Pensei que poderia me casar com uma princesa... mas, não, eles me fize­ram voltar do portão do castelo.

O que mais eu poderia fazer? — lamentou-se Glew, sacudindo a cabeça, tristemente. — Só me restava experi­mentar as poções mágicas. Finalmente, fui ter com um mago que dizia possuir um livro de feitiços. Ele não me disse como o livro foi parar nas suas mãos, mas assegurou-me que a ma­gia que ele dominava era poderosa. Pertencera, certa vez, à Casa de Llyr.

Ao ouvir essas palavras, Taran prendeu a respiração.

Eilonwy é uma princesa da Casa de Llyr — cochi­chou no ouvido do bardo. — Que história é essa que o Glew está nos contando? É verdade o que está dizendo?

Viera — Glew continuou — do próprio Caer Colur. Eu, naturalmente...

Glew, diga-me depressa — gritou Taran —, o que é Caer Colur? O que tem a ver com a Casa de Llyr?

Ora! Tudo — respondeu Glew, embora surpreso com a pergunta de Taran. — Caer Colur é a antiga sede da Casa de Llyr. Suponho que todo mundo tenha conhecimen­to disso. Uma casa preciosa, repleta de magia e encantamento. Isso mesmo! Então, como ia dizendo, acreditei que, finalmen­te, encontrara alguma coisa que pudesse me ajudar. O mago estava ansioso para se livrar do livro, assim como ansioso estava eu para consegui-lo.

As mãos de Taran começaram a tremer.

Onde fica Caer Colur? — perguntou. — Como po­deremos encontrá-lo?

Encontrar? — disse Glew. — Acho que não restou muito para ser encontrado. Dizem que o castelo está em ruínas, há anos. Encantado, também, como podem imaginar. E vocês vão ter de remar muito.

Remar na terra? — disse Fflewddur. — Não espere que acreditemos nisso.

Remar — Glew repetiu, meneando a cabeça, triste­mente. — Muito tempo atrás, Caer Colur fazia parte de Mona. Mas separou-se do continente, durante uma inundação. Agora não passa de um cisco de ilha. Seja como for — Glew prosse­guiu —, trouxe comigo o pequeno tesouro que pude salvar...

Onde é a ilha? — Taran pressionou. — Glew, você precisa nos contar. É importante para nós.

— Na foz do Alaw — respondeu Glew, um pouco abor­recido por ter sido interrompido mais uma vez. — Mas isso não tem nada a ver com o que aconteceu comigo. Vejam só, o mago...

O pensamento de Taran disparou. Magg havia levado Eilonwy ao Alaw. Ele precisara de um barco. O destino seria a casa ancestral de Eilonwy? O olhar de Taran encontrou o de Fflewddur, e a expressão do bardo mostrou que ele esti­vera seguindo o mesmo raciocínio.

...o mago — continuou Glew — estava com tanta pressa que não me deu tempo de ver o livro. Até que fosse tarde demais. Ele me enganou. Era um livro... um livro de nada! De páginas em branco!

Surpreendente! O mesmo livro que encontramos!

Não vale nada — suspirou Glew —, mas se você o encontrou, pode ficar com ele. É seu. Um presente. Algo para se lembrar de mim. Assim não se esquecerá do infeliz Glew.

Pouco provável que isso aconteça — murmurou Fflewddur.

Finalmente, voltei-me para as minhas poções — dis­se Glew. — Queria ser perverso! Queria ser forte e fazer Mona, inteira, tremer! Ah, foi um longo trabalho, podem acre­ditar. Infelizmente, vejam o resultado. E o final de todas as minhas esperanças — continuou o gigante, melancólico. — Até que vocês chegaram. Precisam ajudar-me a sair dessa caverna assustadora. É demais, podem acreditar, demais! É desagradável, horrenda, pegajosa e úmida — gritou em de­sespero. — Não suporto fungo e cogumelos! Fungo e cogu­melos! Já chega!

E recomeçou a chorar, e seus gemidos lamentáveis sa­cudiram a caverna.

Dallben, meu mestre, é o feiticeiro mais poderoso de Prydain — disse Taran. — Pode ser que ele descubra um meio de ajudá-lo. Mas agora, é da sua ajuda que precisamos. Quanto mais cedo estivermos livres, mais cedo estarei com meu mestre.

Tempo demais para esperar — Glew lamentou-se.

Até lá, eu mesmo serei um cogumelo.

Ajude-nos — Taran implorou. — Ajude-nos e tenta­remos resolver o seu problema.

Por um momento Glew não disse nada. Sua testa enru­gou-se e os lábios contraíram-se de nervoso.

Muito bem, muito bem — suspirou, ficando de pé.

Sigam-me. Ah!... Vocês precisam fazer uma coisa, se não se importam. Ao menos terei alguma satisfação, embora pas­sageira. Um pequenino favor. Poderiam me chamar de... Rei Glew?

Grande Belin! — gritou Fflewddur. — Eu o chamarei de rei, príncipe ou do que você quiser. Apenas mostre-nos a saída, senhor!

Parecia que o humor de Glew tinha melhorado enquan­to ele bamboleava em direção aos cantos escuros da caver­na. Arrastando-se pela superfície rochosa, os amigos desciam, apressando-se para acompanhar as passadas imensas. Glew, que não conversara com ninguém desde o cativeiro, não pa­rou de falar. Explicou que havia tentado preparar novas po­ções... dessa vez para torná-lo menor. Em uma das grutas chegara a montar um tipo de laboratório, onde um depósito de água fervente e borbulhante servia para ele cozinhar os ingredientes. O talento de Glew em projetar pilões e cadinhos, panelas e bacias, feitos, com muita dificuldade, a partir de pedras escavadas, surpreendeu Taran, que passou a admirar e, ao mesmo tempo, sentir pena do gigante desesperado.

Mas seu pensamento girava em torno de si mesmo, procu­rando uma explicação que lhe escapava como um fogo-fá­tuo, cada vez que dele se aproximava. Estava certo de que a resposta estava nos salões arruinados de Caer Colur, e certo de que os companheiros lá encontrariam Eilonwy.

Quando Glew parou perto de uma escavação vertical em forma de chaminé, Taran, impaciente para sair, correu à frente. Próximo ao solo, abria-se a boca escura de um túnel.

Adeus — fungou Glew, pesaroso, indicando o túnel. — Sigam em frente. Vocês encontrarão o caminho.

Tem a minha palavra — disse Taran, enquanto Gurgi, Fflewddur e o Príncipe Rhun passavam pela abertura. — Se depender do poder de Dallben, ele o ajudará.

Segurando a esfera dourada, Taran inclinou-se e trans­pôs o arco recortado. Morcegos surgiram numa nuvem estri­dente. Taran ouviu Gurgi gritar de medo e seguiu em frente, depressa. No momento seguinte colidiu com uma parede de pedra e caiu para trás; a esfera escorregou-lhe da mão e foi parar entre as pedras do solo irregular. Com um grito, Taran virou-se a tempo de ver uma pedra enorme ser empurrada para a abertura e jogou-se naquela direção.

Glew fechara a passagem.


 

O Túmulo

O bardo, do mesmo modo que Taran, batera de cabeça contra a parede, e agora tinha dificulda­de para se levantar. Os gritos de Gurgi eram mais fortes que os guinchos dos morcegos. O Príncipe Rhun cambaleou até se aproximar de Taran e jo­gou o peso do seu corpo contra a pedra imóvel. A esfera havia rolado para um canto, mas bastou um olhar, à luz por ela emitida, para que Taran concluísse que não havia outra entrada ou saída da gruta.

Glew! — Taran chamou, empurrando, com toda força, a passagem bloqueada. — Deixe-nos sair! Veja bem o que você fez!

Enquanto Gurgi, furioso, tagarelava e esmurrava a pedra estática, Taran atirou-se contra ela, mais uma vez. Podia ouvir o Príncipe Rhun, ao seu lado, ofegante, fazen­do todo o esforço possível. Fflewddur empurrou e, com toda a força, tentou deslocar a pedra, mas perdeu o equi­líbrio e caiu estatelado no chão.

Verme! — gritou o bardo o mais alto que pôde. — Mentiroso! Você nos traiu!

Do outro lado da pedra surgiu a voz abafada de Glew.

Sinto muito. Perdoem-me. Mas, o que me resta fazer?

Deixe-nos sair! — Taran exigiu mais uma vez, ainda lutando para mover a pedra. Com um soluço de raiva e de­sespero, caiu no chão, arranhando-se nos pedriscos soltos.

Retire a pedra pesada, gigantezinho ruim, perverso! — gritou Gurgi. — Retire as trancas e travas! Ou então Gurgi furioso vai dar uma pancada na sua cabeça fraca!

Queríamos ajudá-lo — Taran gritou — e você nos retribui com traição.

Eu digo, é verdade — falou o Príncipe Rhun. — Como espera que alguém o ajude se formos enterrados aqui?

Por mais indistinto que fosse, o som de um soluço atra­vessou a passagem bloqueada.

Tarde demais! — lamentou a voz de Glew. — Tarde demais! Não posso mais esperar nesta caverna medonha! Quem pode garantir que Dallben se importaria com o meu destino? Provavelmente, não. Tem que ser feito agora. Agora!

Glew — disse Taran, fazendo esforço para se manter o mais calmo e paciente possível, pois estava convencido de que o gigante havia perdido o bom senso —, se existisse algo que pudéssemos fazer por você, já teríamos feito antes.

Mas existe! Existe sim! — gritou Glew. — Vocês po­dem me ajudar a preparar minhas poções. Tenho certeza de que posso fazer outra para recuperar o meu tamanho. É tu­do que peço. É pedir demais?

Se você quer que o ajudemos a preparar mais mistu­ras terríveis iguais àquela que você deu a Llyan — gritou Fflewddur —, está escolhendo um caminho esquisito para conquistar a nossa amizade. — O bardo hesitou e seus olhos se arregalaram, atemorizados. — Grande Belin! — murmu­rou. — Do mesmo modo que agiu com Llyan...!

Enquanto o bardo falava, as pernas de Taran começa­ram a tremer, pois a mesma idéia lhe ocorrera.

Fflewddur — sussurrou —, ele está, realmente, fora de si. Esta caverna o enlouqueceu.

Nada disso — retrucou o bardo. — Tudo faz senti­do, de um modo torpe e horrível. Ele não tem ninguém mais que lhe sirva de cobaia para testar suas poções!

Aproximou-se da pedra e pôs as mãos curvadas em tor­no da boca.

— Você não pode fazer isso, seu verme desgraçado, cho­rão! — gritou. — Nós não vamos engolir seus caldos maléfi­cos! Nem que você nos deixe famintos! E se você tentar empurrar as poções por nossa garganta abaixo, você vai ver que um Fflam morde!

Eu prometo — suplicou Glew —, vocês não vão precisar engolir nada. Eu mesmo correrei todos os riscos. São riscos terríveis, também. Suponhamos que eu me transforme numa nuvem de fumaça e desapareça. Nunca se sabe, quan­do se lida com receitas desse tipo. Pode acontecer.

Gostaria que acontecesse — murmurou Fflewddur.

Não, não — Glew continuou —, isso não vai afetar vocês, nem um pouco, podem ter certeza. Só um instante do seu tempo será necessário. Meio instante! E só precisarei de um de vocês. Um só! Não podem dizer que estou pedindo muito, não podem ser tão egoístas...

Pelo tom de sua voz, Glew parecia delirar, e começou a gritar e lamuriar-se, falando tão alto e depressa que Taran mal conseguia entender as palavras; mas, enquanto ouvia, Ta­ran sentiu o sangue escoar-lhe do coração e um calafrio o fez estremecer.

Glew — gritou, sentindo o desespero dominá-lo —, o que pretende fazer conosco?

Por favor, por favor, tentem entender — a voz de Glew retornou. — É minha única chance. Tenho certeza de que vai funcionar. Já pensei muito nisso, desde que cheguei a este buraco medonho. Sei que posso preparar a poção certa; tenho tudo que preciso. Exceto uma coisa. Um pequenino ingrediente. Não vai doer; ninguém vai sentir nada. Juro.

Taran perdeu o fôlego, horrorizado.

Você quer dizer, matar um de nós?

Houve um longo silêncio. Finalmente, a voz de Glew chegou, mais uma vez, até os companheiros; a julgar pelo tom da voz, o gigante ficara magoado.

Do jeito que você fala, parece tão... tão frio!

Grande Belin! — gritou Fflewddur. — Deixe-me pôr as mãos no seu pescoço esquelético e vou fazer você ficar frio!

Houve outro silêncio.

Por favor — disse Glew, timidamente —, tentem ver as coisas sob o meu ponto de vista.

Com toda satisfação — disse Fflewddur. — Então afaste esta pedra.

Não pense que é fácil para mim — Glew prosseguiu. — Gosto de todos vocês, especialmente do peludinho; e sinto-me muito mal por tudo isso. Mas, não há chance de mais alguém aparecer por aqui. Vocês entendem, não é? Não estão zangados? Eu nunca me perdoaria se estivessem.

Neste exato momento — acrescentou, melancólico — não sei se conseguiria escolher um de vocês. Não, não posso. Não tenho coragem. Não me peçam para me subme­ter a esse tormento. Não! Vocês têm que decidir, entre vocês. Será melhor assim.

Acreditem-me — Glew prosseguiu —, vai ser pior para mim do que para vocês. Mas fecharei os olhos; assim, não poderei ver quem é. Então, depois que terminar, tenta­remos esquecer o que se passou. Seremos grandes amigos... isto é, os que restaram. Eu os tirarei daqui, prometo. Encon­traremos Llyan... ah, vai ser bom vê-la de novo... e tudo vai se ajeitar.

Não se afastem daqui — disse Glew. — Vou aprontar umas coisas. Não vou deixá-los esperando por muito tempo.

Glew, escute-me! — Taran gritou. — É maldade o que você pretende fazer. Deixe-nos sair!

Nenhuma resposta. A pedra não se moveu.

Cavem, amigos! — gritou Fflewddur, puxando a es­pada. — Cavem para salvar suas vidas!

Taran e Gurgi desembainharam as armas e, lado a lado, atacaram o solo sob a pedra pesada. Com toda a força, gol­pearam a superfície pedregosa e rígida. Ao chocarem-se com os pedriscos, as pontas das espadas vibraram; porém, por mais que tentassem, mal conseguiam cavar um buraco raso. O Príncipe Rhun tentou forçar a espada por baixo da pedra, mas o que conseguiu foi quebrar a ponta da lâmina.

Taran pegou a esfera luminosa. Engatinhando, exami­nou cada pedaço daquela prisão, esperando encontrar algu­ma rachadura ou abertura mínima que pudesse ser aumenta­da. As paredes erguiam-se íngremes e compactas.

Ele nos pegou numa boa armadilha — disse Taran, caindo no chão. — Só existe uma saída. A saída que Glew nos oferece.

Segundo entendi — disse Rhun —, ele exigiu apenas um de nós. Assim, restariam três para sair em busca da princesa.

Taran ficou pensativo, por um momento.

Pela primeira vez — disse com amargura — pensei ter descoberto o local aonde Magg pretendeu levar Eilonwy. Para Caer Colur. Foi o indício mais forte que consegui. Ago­ra, é inútil para nós.

Inútil? — disse Rhun. — De maneira alguma. Precisa­mos apenas fazer o que Glew sugere e os demais seguirão o caminho.

Espera que esse verme desprezível mantenha a pala­vra? — disse Fflewddur, enraivecido. — Confio tanto nele quanto em Magg.

Entretanto — disse Rhun —, não teremos certeza, antes de tentar.

Os companheiros calaram-se ao ouvir as palavras do Príncipe de Mona. Gurgi, agachado no chão e abraçando os joelhos com os braços peludos, olhou, tristonho, para Taran.

Gurgi é que vai — a criatura sussurrou sem ânimo, embora tremesse tanto que mal conseguia falar. — Sim, sim, dará sua pobre cabeça mimosa para misturas e fervuras.

Valente Gurgi — murmurou Taran. — De fato, sei que você ofereceria sua pobre cabeça mimosa.

Taran afagou o apavorado Gurgi.

Mas está fora de questão. Precisamos nos manter unidos. Se Glew quer uma vida, vai pagar caro por ela.

Fflewddur, mais uma vez, começou a cavar e desbastar a superfície em torno da pedra.

Concordo, inteiramente, com você — disse. — Pre­cisamos ficar juntos, como se fôssemos um só... a fim de que tenhamos ao menos uma chance. Assim que o sujeito baixi­nho voltar... ora, droga! Não sei por que continuo a pensar nele como um sujeito baixinho, mas é essa a impressão que tenho dele, apesar da sua altura. Provavelmente, vai pegar um de nós. Não tem sequer a honra de uma mosca, nem o coração de um mosquito, e está desesperado. Se lutarmos com ele, é bem provável que todos nós sejamos mortos.

Você não está dizendo que devemos aceitar a barga­nha que Glew nos propõe — disse Taran.

Claro que não — respondeu Fflewddur. — Vou se­gurar bem a espada e golpear o baixinho na altura dos joe­lhos, visto que não alcanço a sua cabeça. Quero só apontar os riscos. Quanto a essa idéia ridícula de dizer que cabe a nós fazer a escolha, acho que não deveríamos nem considerá-la.

Eu considero — disse o Príncipe Rhun.

Taran voltou-se, surpreso, para Rhun, sem entender bem as suas palavras. O Príncipe de Mona sorriu para ele, com certa timidez.

Só isso vai contentar Glew — disse Rhun —, e se é assim, penso que ele esteja exigindo bem pouco.

Nenhuma vida vale tão pouco — Taran começou a dizer.

Quero lhe dizer que está enganado — respondeu Rhun. O príncipe sorriu e sacudiu a cabeça. — Pensei muito desde que viemos parar nesta caverna, e é preciso encarar os fatos. Não acredito que eu... tenha sido útil, até agora. Ao contrário, o que acarretei foi má sorte. Não que tivesse a intenção, mas parece que é sempre assim comigo. Por isso, se algum de nós pode ser dispensado, ora, devo dizer que essa pessoa sou eu.

É verdade — Rhun continuou rapidamente, ignoran­do os protestos de Taran. — Para mim é uma satisfação po­der ser útil, ao menos uma vez, se for para salvar Eilonwy. Garanto-lhes que não vou me importar, nem um pouco. Como disse o Glew, é só um instante.

Nenhum de vocês deixaria de dar a vida pelo com­panheiro — Rhun acrescentou. — Fflewddur Fflam ofereceu a vida por nós na toca de Llyr. Agora mesmo, pobre Gurgi, quis oferecer a dele.

O príncipe ergueu a cabeça.

Um trovador, uma humilde criatura da floresta, um Porqueiro-Assistente.

Os olhos de Rhun encontraram os de Taran e, em voz baixa, ele disse.

Um príncipe pode fazer menos? Duvido que eu pu­desse ser, de fato, comparado a um verdadeiro príncipe. A não ser nesta situação.

Taran olhou para Rhun por um longo momento.

Você fala com sensatez — ele disse. — Julguei que você não passasse de um príncipe fútil. Estava errado. Você é um príncipe mais verdadeiro e um homem de mais valor do que eu pensava. Mas esse sacrifício não lhe cabe. Você sabe do juramento que fiz ao seu pai.

O Príncipe Rhun sorriu ironicamente, outra vez.

De fato, um juramento que lhe pesa muito — disse. — Muito bem, devo retirar de você esse peso. Digo eu — acrescentou —, é espantoso, mas me pergunto: o que acon­teceu a todos aqueles morcegos?


 

A Escada

— Ora... foram-se! — Taran dirigiu o facho de luz dourada em torno da gruta. — Todos!

— Sim, sim — exclamou Gurgi. — Basta de morcegos guinchando e chiando!

Tenho que admitir que estou contente — acres­centou o bardo. — Consigo lidar com ratos, e sempre gostei de pássaros, mas, quando as duas coisas se unem, procuro evitá-las, o mais depressa possível.

Os morcegos podem se revelar nossos melhores amigos e os guias mais confiáveis — disse Taran. — Rhun descobriu uma coisa. Os morcegos encontraram uma saí­da. Se nós a descobrirmos, faremos o mesmo caminho deles.

Sim, concordo — disse o bardo, fazendo uma ca­reta. — A primeira providência seria nos transformarmos em morcegos. Depois, suponho, não haveria problema.

Taran correu de uma extremidade da gruta à outra. Passou a luz da esfera pelas paredes da gruta, emitindo raios em direção ao teto inclinado, esquadrinhando cada fissura e saliência, mas viu apenas alguns nichos superficiais, de onde algumas pedras antigas haviam se desprendido.

Uma vez mais e outra ainda, ele passou a luz dourada em redor da gruta. Um risco indefinido e sombreado parecia ter sido traçado entre as pedras acima dele. Deu um passo atrás e examinou o local, com atenção. A sombra tornava-se mais profunda, e Taran concluiu que assinalava uma borda estreita, uma fenda na pedra.

Aí está! — exclamou, fazendo o possível para man­ter a esfera firme e estável, uma vez que suas mãos tremiam. — Lá... quase não se percebe; a parede forma uma curva e a esconde. Mas veja onde a pedra parece afundar e rachar...

Impressionante! — gritou Rhun. — Espantoso! É uma passagem, sem dúvida. Os morcegos passaram por ali. Acha que nós vamos conseguir?

Deixando a esfera dourada no chão, Taran aproximou-se da pedra e procurou erguer-se agarrando-se às discretas ondulações da rocha; mas a parede era muito íngreme, suas mãos escorregavam, tentavam em vão se agarrar, e ele caiu antes mesmo que conseguisse chegar ao ponto equivalente à sua própria altura. Gurgi também tentou escalar a superfície lisa. Mesmo com toda a sua agilidade, não se saiu melhor do que Taran e despencou, arfando e lamentando-se.

Foi o que eu disse — Fflewddur observou, desani­mado. — Tudo de que precisamos é um par de asas.

Taran continuou a olhar fixamente para a passagem, que do alto provocava-o com a promessa de uma liberdade que estava além do seu alcance.

Não podemos escalar a parede — disse, franzindo a testa —, mas deve haver uma solução.

Seus olhos, que não se desviavam da saliência distante, voltaram-se aos amigos, e, novamente, ao mesmo ponto.

Mesmo que tivéssemos uma corda, não adiantaria. Não há como fixá-la. Mas uma escada...

É exatamente o que precisamos — disse Fflewddur.

Mas, desde que não temos os meios para construir uma aqui mesmo, não deveríamos perder tempo lamentando o que não temos.

Podemos construir uma escada — disse Taran, em tom baixo. — Sim. Já devia ter visto logo.

O quê, o quê? — indagou o bardo. — Um Fflam é esperto, mas você está muito à frente de mim.

Vamos conseguir — respondeu Taran —, e não pre­cisamos procurar mais. Nós mesmos somos a escada.

Grande Belin! — gritou Fflewddur, batendo palmas.

É óbvio! Sim, sim, cada um de nós vai subir no ombro do outro.

O bardo correu até a parede e com um golpe de vista mediu-a.

Mesmo assim, é muito alta — disse, sacudindo a ca­beça. — Até o homem mais alto que se conhece teria dificul­dade em alcançar a passagem.

Mas ele alcançaria, afinal — insistiu Taran. — É a nossa única saída.

A única saída dele — corrigiu o bardo. — Depois que uma pessoa conseguir passar, a escada ficará mais baixa um tanto assim. Nossa alternativa pouca diferença faz daque­la que Glew nos deu — acrescentou. — Somente um de nós poderá se salvar.

Taran discordou meneando a cabeça.

Aquele que escapar pode jogar um cipó para os ou­tros — disse. — Desse modo... — parou.

A voz de Glew infiltrou-se na gruta.

Tudo bem aí? — chamou o gigante. — Aqui fora está maravilhoso. Já preparei tudo. Espero que vocês não es­tejam muito contrariados. Um de vocês se importaria de se aproximar? Não me digam quem é; não quero saber. Estou tão sentido quanto vocês.

Taran dirigiu-se rapidamente ao Príncipe de Mona.

Conheço o que se passa no íntimo deles e falo por meus companheiros. Nossa decisão foi tomada. É tarde de­mais para esperar que nos salvemos. Tente chegar a Caer Colur. Se Kaw o encontrar, ele o guiará.

Não pretendo deixar ninguém para trás — respon­deu Rhun. — Pode ser a sua escolha, mas não é a minha. Não devo...

Príncipe Rhun — Taran disse com segurança. — Você não se submeteu às minhas ordens?

A pedra já estava sendo arrastada na passagem e Taran podia escutar Glew bufando sem cessar.

Leve isto, também — disse, pressionando a esfera na mão relutante de Rhun. — Por direito, pertence a Eilonwy e cabe a você devolvê-la.

Taran desviou o olhar.

Que ela brilhe intensamente no dia do seu casamento. Gurgi havia subido nos ombros do bardo, que apoiava os braços contra a parede. Rhun ainda hesitava. Taran agar­rou-o pela gola do casaco e puxou-o para a frente.

Taran subiu nas costas de Fflewddur, e depois em Gurgi. A escada humana oscilava, perigosamente. Sob o peso dos companheiros, o bardo gritou para Rhun se apressar. Taran sentiu as mãos de Rhun o agarrarem e, em seguida, se solta­rem. Abaixo ouvia-se a respiração ofegante de Gurgi. Taran segurou o cinto de Rhun e puxou-o para cima até que um joelho e, depois, outro estivessem por cima dos seus ombros.

A passagem ainda está muito distante — disse Rhun, sem fôlego.

Fique em pé — gritou Taran. — Continue. Firme. Está quase chegando.

Com um último esforço, Taran ergueu-se o máximo que pôde. Rhun agarrou-se à saliência da rocha. De repente, Taran deixou de sentir o peso que suportava.

Adeus, Príncipe de Mona — exclamou, assim que Rhun precipitou-se pelo ressalto estreito de pedra e transpôs a passagem.

Fflewddur deu um grito de advertência e Taran sentiu que estava caindo. Tonto, sem fôlego, e caído entre as pe­dras, tentou levantar-se. A escuridão era total. Cambaleou até o bardo que tentava afastá-lo da entrada da gruta, segun­do deduziu. Uma golfada de ar frio significou para Taran que Glew havia empurrado a pedra para o lado, e ele sentiu, ao invés de ver, uma sombra mais densa penetrar pela abertura. Taran desembainhou a espada e brandiu-a aleatoriamente. A lâmina atingiu alguma coisa sólida.

Ah! Ai! — gritou Glew. — Você não deve fazer isso! De repente, o braço retraiu-se. Taran ouviu Fflewddur desembainhar a espada. Gurgi tinha corrido para perto de Taran e começou a atirar pedras, tão logo as encontrava.

Precisamos enfrentá-lo agora! — Taran gritou. — Veremos se ele é tão covarde quanto mentiroso. Depressa! Não lhe dêem chance de nos trancar outra vez.

Espadas erguidas, os companheiros pularam para fora da gruta. Em algum lugar, Taran sabia, Glew estaria acima deles, como uma torre; mas, na escuridão ele não ousaria dar golpes de espada, temeroso de ferir Gurgi ou Fflewddur que andavam ao seu lado, aos tropeços.

Vocês estão estragando tudo! — Glew lamuriou-se. — Eu mesmo vou ter que pegar um de vocês. Por que estão fazendo isso comigo? Pensei que houvessem compreendido! Pensei que quisessem me ajudar!

O vento assobiou por cima da cabeça de Taran quando Glew tentou apanhá-lo. Taran jogou-se no meio das pedras pontudas. De um lado ouviu Fflewddur gritar “Grande Belin! O monstrinho vê melhor no escuro do que nós”. Até aquele momento os companheiros estiveram juntos, mas o movi­mento súbito de Taran afastou-o dos demais. Tateava no es­curo para reencontrá-los e, ao mesmo tempo, escapar dos golpes enlouquecidos de Glew.

Tropeçou num amontoado de pedras que cederam fa­zendo barulho, e saiu deslizando na correnteza de um líquido fétido.

Glew lamentou-se produzindo um estrondo.

Agora, veja o que você fez! Você arruinou minhas poções! Pare! Pare! Está estragando tudo!

Talvez fosse o pé de Glew que veio pisando quase por cima dele, enquanto Taran fazia movimentos bruscos com a espada. Na sua mão, a lâmina ressoava, e Glew dava gritos terríveis. Acima de Taran, uma sombra quase invisível parecia estar pulando numa perna. O bardo tinha razão, Taran pen­sou, estarrecido; o maior risco era ser pisoteado por Glew. O chão sacudia-se sob os pés do gigante e Taran saltava, cega­mente, orientando-se pelo som.

Em seguida, percebeu que tinha caído dentro de um dos lagos da caverna. Desesperado, debateu-se e esticou os braços para fora, procurando um apoio na beirada da pedra. A água brilhava, emitindo uma luz fria e pálida. Assim que Taran saiu, arrastando-se, gotículas claras, luminosas, aderi­ram às suas roupas encharcadas, rosto, mãos e cabelos. Fugir agora seria impossível; o brilho o trairia onde quer que pro­curasse abrigo.

Corram! — Taran gritou aos amigos. — Deixem Glew me seguir!

Com uma passada, o gigante chegou ao lago. Através do reflexo do próprio corpo molhado, Taran pôde visualizar a forma gigantesca. Ele avançou, brandindo a espada. A mão impetuosa de Glew afastou-a para o lado.

Por favor! Por favor! Eu lhe imploro! — suplicou Glew. — Não torne as coisas piores do que já são! Veja, agora preciso preparar a minha poção outra vez. Será que você não tem a mínima consideração? Não pensa em mais ninguém?

O gigante tentou agarrá-lo. Taran ergueu a espada aci­ma da cabeça num derradeiro e inútil gesto de defesa.

Raios dourados brilharam à sua volta, brilhantes como a luz do meio-dia.

Com um grito de dor, Glew espalmou as mãos sobre os olhos.

A luz! — grunhiu. — Tire essa luz!

Gritando e rugindo, o gigante cobriu a cabeça com os braços. Urros de estourar ouvidos ecoaram por toda a caver­na. As estalactites estremeceram e quebraram-se no chão; os cristais partiram-se e os fragmentos caíram sobre Taran. De repente, Glew não estava mais de pé, mas, estendido no chão, com a metade do corpo coberto de estilhaços, imóvel, em conseqüência de um cristal que lhe atingira a cabeça. Taran, ainda ofuscado pela luz, levantou-se depressa.

A entrada da gruta estava o Príncipe Rhun, e, na sua mão, a esfera, brilhando intensamente.


 

O Livro em Branco

— Olá, olá! — saudou Rhun, correndo em direção aos companheiros. — Foi a maior surpresa que tive na minha vida. Não pretendia desobedecer ordens, mas, depois que passei pela abertura e me achei do lado de fora, eu... em hipótese alguma, poderia deixar vocês na caverna, para serem cozidos; não poderia, mesmo. Pensa­va, o tempo todo, que nenhum de vocês teria ido embora, às pressas... Hesitou e olhou, ansioso, para Taran. — Você não está zangado, está?

Você salvou nossas vidas — Taran refutou. Aper­tou a mão de Rhun. — Só o repreendo por ter arriscado a sua própria.

Júbilo e felicidade! — gritou Gurgi. — Pobre cabe­ça mimosa, está livre de tantas pisadas e passadas! E o gen­til mestre está salvo de caldos e ensopados!

Mas, a coisa mais impressionante foi a esfera — o Príncipe Rhun continuou, sorrindo com orgulho. — A luz não se apagou, mesmo depois que a segurei. Espantoso!

Fixou o olhar na esfera dourada, cujos raios tinham co­meçado a se desvanecer, e a devolveu a Taran.

Não sei o que aconteceu. De repente tornou-se mais e mais brilhante, por si mesma. Inacreditável!

— Foi o que o deteve — disse Fflewddur. Mãos nos quadris, o bardo olhava para a forma prostrada de Glew. — O vermezinho repulsivo esteve aqui por tanto tempo que não pôde suportar o brilho. Puxa! Ainda o chamo de verme­zinho — acrescentou. — Mas posso afirmar que, para um gigante, ele tem uma natureza pequena, o que é fora do comum.

O bardo ajoelhou-se e olhou de perto o rosto de Glew.

Ele está com um corte dos bons na cabeça, mas ainda está vivo.

Fflewddur levou a mão à espada. — É melhor sermos sensatos e... hã... nos certificar de que ele não vai despertar.

Deixe-o — disse Taran, prendendo o braço de Fflewddur. — Eu sei que ele tentou nos fazer mal, mas ainda sinto pena dessa criatura desgraçada e pretendo pedir a Dallben que o ajude.

Muito bem — disse Fflewddur, com alguma relutân­cia. — Ele não teria feito o mesmo por nós. Mas, um Fflam é piedoso! Rápido, vamos sair daqui.

Como foi que você desceu? — Taran perguntou a Rhun. — Encontrou cipós que fossem bem longos para che­garem até aqui?

O queixo do Príncipe Rhun caiu e ele piscou, alarmado.

Eu... receio que falhei mais uma vez — murmurou.

Eu não desci, propriamente. Eu pulei. Não sei por quê, não me ocorreu sair novamente. Espantoso, mas, simples­mente, não me ocorreu. Sinto muito, mas sou responsável por estarmos na mesma situação em que estávamos.

A mesma, não — Taran refutou o príncipe desespera­do. — Podemos erguê-lo como fizemos antes, e desta vez você pode nos atirar algo que nos sirva. Mas temos que nos apressar.

Não precisamos ficar de pé na cabeça dos outros — Fflewddur gritou, de repente. — Vejo um caminho mais fácil. Olhe lá! — disse, indicando um local mais acima, onde uma grande rachadura abria-se na parede da caverna. Um raio de luz solar caiu sobre as pedras e o ar fresco assobiou através da fenda. — Podemos agradecer a Glew por isso. Com todo o estrondo e os gritos, ele sacudiu as pedras soltas. Em pouco tempo estaremos do lado de fora! Graças ao monstrinho re­pulsivo! Ele disse que queria ver Mona tremer e — acrescen­tou —, Grande Belin, de certo modo... conseguiu.

Os companheiros correram em direção à parede da caverna e começaram a abrir caminho através do monte de pe­dras quebradas. O Príncipe Rhun, no entanto, parou de súbi­to e começou a apalpar seu colete.

Eu digo, é surpreendente — exclamou. — Sei que o coloquei aqui. — Com o cenho franzido de ansiedade, reco­meçou a procurar o objeto, na vestimenta.

Corra — chamou Taran. — Que a gente não ouse estar por aqui quando Glew recuperar os sentidos. O que está procurando?

Meu livro — respondeu Rhun. — Onde poderia es­tar? Deve ter caído quando eu engatinhava naquele buraco. Ou talvez...

Deixe! — disse Taran, apressando-o. — Não vale a pena. Você arriscou a sua vida uma vez. Não se arrisque de novo por um livro de páginas em branco!

Era uma bela lembrança — disse Rhun —, e seria útil. Não deve estar longe. Vá em frente, eu o encontrarei. Não vou me demorar mais que um minuto.

Deu as costas e voltou ao túnel, às pressas.

Rhun! — gritou Taran, correndo atrás dele.

O Príncipe de Mona desapareceu dentro da gruta. Taran encontrou-o de cócoras, tateando o solo irregular.

Esplêndido! — exclamou Rhun, olhando por cima do ombro. — Um pouco de luz é o que eu precisava. Agora, decerto, tem que estar aqui. Deixe-me ver, primeiro, por onde eu estava subindo. Se caiu, com toda a certeza deve ter sido próximo à parede.

Taran estava decidido, se necessário, a agarrar o príncipe e arrastá-lo da gruta que, por pouco, não se tornou um túmulo. Já avançara na direção de Rhun quando ouviu o grito de triunfo.

Aqui está! — gritou o príncipe. Segurou o livro e examinou-o cuidadosamente. — Espero que não esteja dani­ficado — comentou. — Quando me arrastei pela abertura, as páginas poderiam ter-se rasgado. Não, parece... — Ele pa­rou e sacudiu a cabeça, decepcionado. — Eu digo, é lamentá­vel! Acabou-se. Todo coberto de arranhões e marcas. O que poderia ter acontecido?

Pôs o volume encadernado na mão de Taran.

Veja — disse —, que pena! Todas as páginas estão destruídas. Agora, é evidente, não serve para nada.

Taran estava prestes a deixar o livro de lado e levar adiante sua intenção de arrastar o príncipe pela gola do casa­co, mas seus olhos arregalaram-se ao ver as páginas.

Rhun — sussurrou —, não são simples arranhões. Está minuciosamente anotado. E eu havia pensado que as páginas estavam em branco.

Eu também — disse Rhun. — O que poderia... Fflewddur gritou, exigindo que se apressassem. Taran e o Príncipe Rhun deixaram a gruta. Gurgi já alcançara a aber­tura no teto da caverna e acenava.

É o livro que encontramos na cabana de Glew — Taran começou a dizer,

Não se preocupe com os pertences de Glew, preo­cupe-se com o próprio Glew — disse Fflewddur. — Ele já começou a se movimentar. Mexam-se ou acabaremos numa de suas poções.

O sol apenas despontara mas, para o grupo de amigos que saía da caverna úmida, já brilhava e aquecia. Sentindo-se recompensados, os companheiros respiraram o ar fresco da primavera. Gurgi gritou de alegria e se afastou correndo. Vol­tou logo, com boas notícias: o rio não estava muito distante. O grupo de amigos pôs-se a caminho o mais rápido possível.

Enquanto caminhavam a passos largos, Taran entregou o volume a Fflewddur.

Há um profundo mistério aqui. Não consigo ler; a escrita é antiga. Mas de que maneira surgiu...

Depois de tudo que passamos — retrucou o bardo, olhando as páginas, por alto —, compreendo que você queira caçoar. Mas, decididamente, este não é o momento apropriado.

Caçoar? Eu não caçôo! — Taran espantou-se quando apontou para o volume outra vez. As páginas estavam em bran­co, novamente. — Os escritos — gaguejou — desapareceram!

Meu amigo — disse-lhe o bardo, sendo gentil —, seus olhos o enganaram. Quando chegarmos ao rio poremos panos molhados e água fresca sobre sua testa e você vai se sentir bem melhor. É perfeitamente compreensível, conside­rando-se a escuridão e o choque de ser quase cozido...

Eu sei o que vi — Taran protestou. — Mesmo na caverna, mesmo com a luz fraca da esfera...

É verdade. — Rhun, que estivera acompanhando a conversa, interveio. — Eu também vi. Não há engano. A esfe­ra estava iluminando as páginas, diretamente.

A bolinha! — Taran exclamou. — Espere aí! Pode ser? — Tirou, depressa, a esfera de dentro da jaqueta, en­quanto os companheiros pararam e o observaram em silên­cio. Assim que a luz se acendeu na sua mão, Taran segurou o objeto de modo que os raios banhassem as páginas com um brilho dourado.

Os escritos saltaram à vista, nítidos e claros.

Espantoso! — exclamou Rhun. — A coisa mais im­pressionante que já vi na minha vida!

Taran agachou-se na relva, segurou a esfera próxima ao livro e, com os dedos trêmulos, virou página por página. Os traços curiosos cobriam cada página. O bardo deu um asso­bio longo e baixo.

O que significa isso, Fflewddur? — Taran perguntou. Ele ergueu a cabeça e olhou preocupado para o bardo.

O rosto do bardo empalideceu.

O que significa, na minha opinião — disse Fflewd­dur — é que devíamos nos livrar deste livro imediatamente. Jogá-lo no rio. Lamento dizer que não consigo entender o que está escrito nele. jamais consegui aprender a decifrar es­ses manuscritos secretos e letras antigas. Mas posso reconhe­cer magia quando a vejo.

Deu de ombros e afastou-se.

Se não se importa, prefiro nem ver. Não que me assuste. Sim, me deixa bastante inseguro; e você conhece minha opinião sobre lidar com feitiçaria.

Se Glew falou a verdade, o livro vem de um lugar encantado — disse Taran. — Mas o que pode nos dizer? Não devo destruí-lo — acrescentou, pondo de volta o livro no colete. — Não sei explicar; sinto-me como se tivesse tocado num segredo. É estranho como a sensação que se tem quan­do a mariposa passa raspando na sua mão e se vai.

Arram — pigarreou Fflewddur, lançando um olhar agitado para Taran. — Se você insiste em levar a coisa com você, permitiria que eu, nada pessoal, você entende, mas eu ficaria satisfeito se você ficasse a alguns passos de distância de mim.

Já passava muito do meio-dia quando os companheiros chegaram às margens do rio; mesmo assim, comemoraram a boa sorte. As sobras da embarcação ainda estavam lá e o grupo deu início ao trabalho de recuperá-la. O Príncipe Rhun, mais animado do que nunca, trabalhava sem parar. Por algum tempo, Taran havia esquecido que o Príncipe de Mona esta­va destinado a ser o noivo de Eilonwy. Agora, a idéia triste voltou-lhe enquanto ajudava Rhun a amarrar os novos cipós à balsa.

Você deve estar orgulhoso de si mesmo — Taran falou-lhe em voz baixa. — Queria provar a si mesmo que era um príncipe verdadeiro? Você conseguiu, Rhun, Filho de Rhuddlum.

Ora, talvez — respondeu Rhun, como se a idéia ja­mais tivesse lhe ocorrido. — Mas, é curioso. Não parece nem um pouco importante como parecia antes. Espantoso, mas, verdadeiro!

O sol tinha começado a se pôr quando a balsa ficou pronta. Taran, que ficara cada vez mais impaciente à medida que o dia se encerrava, incentivou os amigos a seguirem em frente ao invés de aguardarem, em terra, até a noite passar, e eles embarcaram.

Logo o crepúsculo caiu sobre o vale, e o Alaw corria formando rápidas ondulações prateadas sob a lua ascenden­te. A margem estava quieta, ladeada por montes sombrios. No centro da balsa Gurgi aninhou-se como um bolo de fo­lhas lamacentas; ao lado dele, o Príncipe de Mona dormiu e roncou em paz, com um sorriso de contentamento no rosto redondo. Montando a primeira guarda, Taran e Fflewddur conduziram a embarcação desajeitada que flutuava rapida­mente na direção do mar.

Falaram pouco. Fflewddur não tinha superado, de todo, a sua ansiedade em relação ao estranho livro. Os pensamen­tos de Taran estavam direcionados ao dia seguinte, o qual, esperava, aproximaria os companheiros da fase final da bus­ca. Mais uma vez, medo e dúvida fizeram-no perguntar-se se havia feito a escolha certa. Mesmo que Eilonwy tivesse sido levada a Caer Colur, não havia motivo para se acreditar que Magg, ou Achren, ainda a estivessem mantendo naquele lo­cal. Era tão pouco o que se sabia, com certeza. O livro e seu significado, até mesmo a natureza da esfera de Eilonwy, eram novos enigmas adicionados a tantos outros.

Por quê? — murmurou. — Por que os escritos são visíveis somente quando a esfera os ilumina? E por que a esfera iluminou-se para Rhun, se isso jamais acontecera? Por que brilhou para mim?

Na condição de bardo — respondeu Fflewddur —, conheço muito a respeito desses objetos encantados, e pos­so lhe dizer...

Na extremidade delgada da harpa, uma corda tiniu como se fosse romper em duas.

Ah, sim — disse Fflewddur —, o fato é o seguinte: não conheço muito a respeito desses objetos. Eilonwy, é claro, tem o dom de fazer a esfera brilhar sempre que qui­ser. Ela é meio feiticeira, você sabe, e a esfera pertence a ela. Quanto a outra pessoa, eu me pergunto, e estou ape­nas supondo, note bem, imagino que tenha a ver, digamos, com o fato de não dirigir o pensamento àquilo que se quer. Ou a si mesmo.

Quero dizer que — Fflewddur prosseguiu —, na ca­verna, quando tentei fazê-la brilhar, estava dizendo a mim mesmo: Se eu puder fazer isso, se eu puder encontrar a saída para nós...

Talvez — disse Taran, em voz baixa, vendo passar por eles a lua branca à margem do rio — você tenha descoberto a verdade. No início pensei do mesmo modo que você. Depois, lembrei-me de pensar em Eilonwy, somente nela; e a esfera iluminou-se. O Príncipe Rhun estava disposto a abrir mão de sua vida; seus pensamentos voltaram-se para a nossa segurança e não para a sua própria. E por ter oferecido o maior sacrifício de todos, a esfera mostrou-lhe a luz mais intensa. Será este o segredo? Pensar mais nos outros do que em nós mesmos?

Ao menos, esse deve ser um dos segredos — res­pondeu Fflewddur. — Se você descobriu isso, com ou sem esfera, decerto descobriu um grande segredo.

Os morros haviam se aplainado e cedido lugar aos bam­buais. Um aroma de água salobra chegou às narinas de Taran. À frente, o rio alargou-se, desaguando numa baía e, mais além, numa extensão maior de água. A sua direita, ao longe, onde estavam as pedras altas, Taran ouviu o murmúrio da arreben­tação. Relutante, decidiu não avançar mais. Até o amanhecer. Enquanto Fflewddur acordava Gurgi e o Príncipe Rhun, Taran, usando a vara, impeliu a balsa até a margem.

Os companheiros acomodaram-se em meio aos bam­bus e Gurgi abriu sua mochila de comida. Taran, ainda aflito, caminhou até um pequeno monte e lançou um olhar atento ao mar.

Fique à sombra — disse a voz de Gwydion. — Os olhos de Achren são aguçados.


 

A Ilha

O Príncipe de Don surgiu como uma sombra, por detrás do bambual. Embora tivesse descartado o pano que usava na cabeça e as ferramentas, ainda vestia a roupa esfarrapada do seu disfarce. Pousado no ombro de Gwydion, Kaw piscava e eriçava as penas, amuado por ter sido desperto; no entanto, ao ver Taran, sacudiu a cabeça, entusiasmado.

Surpreendido, Taran deu um grito. O Príncipe Rhun, brandindo a espada com grande vigor, e tentando, a todo custo, mostrar-se enfurecido, correu para perto de Taran.

Ora, parece que é o sapateiro! — Rhun disse em voz alta, baixando a arma, assim que avistou a figura alta. — Mas, é mesmo? O que fez com as sandálias que você me prometeu?

Infelizmente, Príncipe Rhun — Gwydion respon­deu —, suas sandálias devem esperar até que outros assun­tos se resolvam.

Ele não é o sapateiro, e sim, Gwydion, Príncipe de Don — Taran sussurrou depressa.

Gurgi e Fflewddur haviam se aproximado, correndo. O bardo ficou boquiaberto.

Grande Belin! — Fflewddur balbuciou. — E pensar que dividimos um estábulo em Dinas Rhydnant! Lorde Gwy­dion, se ao menos tivesse se revelado a mim...

Perdoe-me por tê-lo enganado — respondeu Gwydion. — Não ousaria agir de modo diferente. Naquele momento, o silêncio era o meu melhor escudo.

Eu o teria procurado em Dinas Rhydnant — disse Taran —, mas Magg não nos deu tempo. Ele raptou Eilonwy. Ouvimos falar de um lugar chamado Caer Colur aonde ele a teria levado e temos tentado chegar lá.

Graças a Kaw, estou, até certo ponto, ciente do que lhes aconteceu — disse Gwydion. — Disse-me que vocês preferiram seguir o rio. Ele os perdeu de vista quando Llyan o perseguiu, mas encontrou-me aqui.

Achren também foi para Caer Colur — Gwydion continuou a dizer rapidamente. — Quando soube, empe­nhei-me em seguir o seu barco. Um dos pescadores navegou comigo até o litoral norte. O povo de sua ilha é corajoso — acrescentou, dirigindo o olhar a Rhun. — Lembre-se de honrá-los quando você for o Rei de Mona. O pescador teria me levado diretamente a Caer Colur. Esse favor eu não poderia aceitar, pois não poderia revelar-lhe minha missão. Mesmo assim, antes de retornar a Mona Haven, deu-me de bom gra­do o bote, e não aceitou nenhuma recompensa pelo risco que correu e por sua generosidade.

Você já esteve em Caer Colur? — Taran perguntou. — Algum sinal de Eilonwy?

Gwydion acenou afirmativamente.

Sim. Mas não pude salvar a princesa — disse com pesar. — Ela é prisioneira de Achren. Magg foi mais rápido do que todos nós.

Aquela aranha! — gritou o bardo, tão inflamado que assustou Kaw. — Aranha desprezível, sorrateira! Imploro-lhe, deixe-o por minha conta. Eu e ele temos muitas contas a acertar e, a cada momento, essas contas tornam-se maiores

— Fflewddur ergueu a espada. — Não vou precisar disto! Quando o encontrar, vou usar as mãos para esmagá-lo.

Espere, espere — determinou Gwydion. — Aranha ele pode ser, e seu ferrão é fatal. Por sua vaidade e ambição passou a servir a Achren. Cuidaremos dele e de Achren tam­bém. Mas agora nossa preocupação é Eilonwy.

Não podemos libertá-la? — Taran perguntou. — Em que tipo de prisão está?

Ontem à noite remei até a ilha — disse Gwydion. — Durante o pouco tempo que lá permaneci não consegui des­cobrir onde a princesa estava sendo mantida. No entanto, pude ver que Achren conta apenas com um grupo insignifi­cante de guerreiros: mercenários e bandidos que se compro­meteram com ela. Nenhum dos imortais Nascidos do Cal­deirão estão entre eles. — Deu um sorriso mordaz. — Sem a proteção do Lorde de Annuvin, a arrogante Achren tem ape­nas lacaios sob seu comando.

Então podemos atacar agora — Taran gritou, a mão na espada. — Somos suficientes para dominá-los.

Essa tarefa exige força de natureza diferente, e espa­das não representam tudo o que devemos temer — Gwydion retrucou. — Há muito que lhes contar sobre esse assunto e muito que eu mesmo desconhecia. Até agora, o enigma não está inteiramente desvendado. Mas descobri que os planos de Achren vão mais além do que imaginei e a situação de Eilonwy é mais grave. Ela precisa ser retirada de Caer Colur antes que seja tarde demais.

Gwydion jogou o gibão por cima dos ombros e cami­nhou na direção da margem. Taran segurou seu braço.

Deixe-nos ir com você — insistiu. — Nós o apoiare­mos quando for necessário e defenderemos a fuga de Eilonwy.

O guerreiro alto deteve-se e olhou para os companhei­ros, que aguardavam. Dirigiu os olhos esverdeados para Taran e observou-o atentamente.

Não duvido da coragem de nenhum de vocês. Mas, o perigo em Caer Colur é maior do que aquele que vocês conhecem.

Eilonwy é muito especial para mim, para todos nós — disse Taran.

Gwydion ficou em silêncio por um instante, e seu rosto marcado e curtido pelo sol e o vento contraiu-se. Então con­cordou, com um aceno de cabeça.

Será como quiserem. Sigam-me.

O Príncipe de Don guiou o grupo de amigos por terre­nos pantanosos até chegarem a uma ponta estreita da praia. De lá, percorreram a orla marítima até uma enseada coberta, onde um bote ancorado oscilava. Gwydion acenou para que os companheiros embarcassem, segurou os remos e, com movimentos silenciosos e rápidos, conduziu a pequena em­barcação em direção ao mar.

Vendo a água brilhante e negra correndo abaixo, Taran agachou-se na proa e firmou os olhos para ver um sinal de Caer Colur. O Príncipe Rhun e os companheiros amontoa­vam-se na popa, enquanto Gwydion vergava os ombros for­tes nos remos. As estrelas começaram a esmaecer e faixas de névoa marítima eram levadas pelas nuvens frias.

Nossa tarefa deve ser concluída rapidamente e antes do amanhecer — disse Gwydion. — A maioria dos guerrei­ros de Achren foi determinada a guardar o lado da ilha volta­ do para o continente. Vamos desembarcar no lado afastado do castelo, junto ao muro externo. No escuro poderemos escapar dos olhos deles.

Glew contou-nos que Caer Colur separou-se do con­tinente — disse Taran —, mas eu não havia imaginado que seria tão distante.

Gwydion franziu a testa.

Glew? Kaw não me disse nada a respeito de Glew.

Foi quando Kaw se afastou de nós — Taran explicou. — Não é de admirar que ele não nos encontrasse outra vez, pois estávamos muito abaixo do solo.

Ele contou a Gwydion a respeito de como encontraram a esfera de Eilonwy, da traição de Glew e do estranho livro. Gwydion, que escutara com toda atenção, firmou os remos e deixou o bote seguir solto.

Pena que você não tenha falado sobre isso mais cedo. Eu teria encontrado meios mais seguros de guardá-la — dis­se, assim que Taran entregou-lhe a esfera dourada que co­meçou a brilhar intensamente. Gwydion estendeu o gibão e cobriu a luz. Depressa tomou o livro das mãos de Taran, abriu-o, e aproximou o objeto luminoso das páginas em bran­co. A escrita antiga saltou à vista. O rosto de Gwydion tor­nou-se tenso e pálido.

Ler o que está aqui implica poder maior do que o meu — disse Gwydion —, mas sei do que se trata: o maior tesouro da Casa de Llyr.

Um tesouro de Llyr? — Taran sussurrou. — Qual é a sua natureza? Pertence a Eilonwy?

Gwydion indicou que sim.

Ela é a última princesa de Llyr, e o livro pertence a ela, de direito. Porém, ainda há mais que você precisa enten­der. Durante gerações, as filhas da Casa de Llyr estavam en­tre as feiticeiras mais talentosas de Prydain, fazendo uso de seus poderes com sabedoria e bondade. Na fortaleza de Caer Colur foram guardados todos os seus tesouros, dispositivos mágicos e utensílios encantados, cujas propriedades nem eu mesmo conheço.

“As crônicas da Casa de Llyr apenas sugerem como es­ses mistérios foram guardados. A tradição nos fala de um feitiço conhecido apenas como o Pelydryn Dourado, passa­do de mãe para filha, e de um livro contendo todos os segre­dos desses acessórios mágicos e muitos feitiços poderosos.”

“Mas, Caer Colur foi abandonada e acabou em ruínas depois que Angharad, Filha de Regat, fugiu do castelo e ca­sou-se contra a vontade da mãe. Acreditava-se que o livro de fórmulas mágicas que ela levou estava desaparecido. Sobre o Pelydryn Dourado, nada se soube.”

Gwydion olhou para a esfera.

— O Pelydryn Dourado não se perdeu. Haveria melhor maneira de escondê-lo a não ser sob a forma de um brinque­do brilhante nas mãos de uma criança?

— Eilonwy acreditava que fora entregue a Achren, com quem aprenderia a ser feiticeira — Gwydion prosseguiu. — Não é verdade. Achren raptou Eilonwy, ainda criança, e a trouxe para o Castelo Espiralado.

— Achren não reconheceu o Pelydryn Dourado? — perguntou Taran. — Se ela sabia qual era a sua essência, por que o deixou com Eilonwy?

— Achren não poderia agir de outra forma — respon­deu Gwydion. — Sim, ela conhecia a herança de Eilonwy. Reconheceu o Pelydryn, mas também sabia que ele perderia o poder se retirado à força da verdadeira dona. E, além disso, o livro de feitiços desapareceu. Achren não poderia fazer nada até que fosse reencontrado.

E mesmo sem o saber — disse Taran —, Glew foi quem ganhou o livro de feitiços. Pobre e tola criatura que pensava ter sido ludibriada!

E foi mesmo — replicou Gwydion. — Não poderia ter visto os escritos escondidos sem a luz do Pelydryn Doura­do. E mesmo que os tivesse visto, de nada lhe serviriam. Os feitiços só obedecem a uma filha da Casa de Llyr. Somente Eilonwy tem o talento inato para fazer a leitura, mas não antes de se tornar adulta. Agora ela está em Caer Colur e os feitiços estão ao seu alcance. Por essa razão, Achren a procu­rou, desesperadamente.

Então, Eilonwy está salva — Taran exclamou. — Se ela é a única pessoa que pode despertar os feitiços, Achren não ousará magoá-la. Nem a nós Achren fará mal algum, uma vez que o Pelydryn e o livro de feitiços estão em nossas mãos.

Pode ser que — Gwydion respondeu em tom grave — Eilonwy esteja correndo maior perigo do que antes.

Com todo o cuidado Gwydion guardou o livro e a esfe­ra dourada no seu colete e remou com esforço redobrado. Taran, agarrando-se à lateral do bote, viu uma elevação alta e escura surgir à frente. Gwydion desviou a embarcação na di­reção do mar e agora remava firme, percorrendo um amplo meio círculo. As ondas do mar levantavam o barco pequeno e empurravam-no com velocidade crescente. O impacto das ondas ressoou nos ouvidos de Taran. Gwydion concentrou toda a sua força em um dos remos, e em seguida no outro, e Gurgi choramingou a valer quando o bote foi arremessado à frente, entrando em um canal estreito e espumante.

Os pináculos de Caer Colur erguiam-se, enegrecidos, contra o céu escuro. O nevoeiro envolvia as colunas de pe­dra que um dia, Taran supôs, foram torres altivas e imponen­tes, mas agora não passavam de um amontoado de ruínas que se projetavam para o alto como espadas quebradas. Quando se aproximaram, ele viu os portais pesados, de ferro, resquícios do tempo em que Caer Colur fora uma fortifica­ção encravada no continente. Os portais eram voltados para o mar e, desde que o castelo começara a afundar, ficaram parcialmente cobertos pelas águas agitadas. As ondas revolvi­am-se e batiam contra eles como se fossem invadir as ruínas e levar a termo a destruição final.

Próximo aos portais maciços, o vento e a água tinham lavrado uma cavidade que fazia lembrar uma gruta e, naquele local, Gwydion atracou o bote e acenou para que os compa­nheiros desembarcassem. Assim que se apinharam nas pedras, Taran ouviu o rangido atormentador dos portais, como se ti­vessem voz própria e protestassem contra o ataque das ondas. Gwydion iniciou a subida. Buscando apoio entre as rochas pon­tudas, Rhun esforçou-se para acompanhá-lo. Taran e Gurgi seguiram-no, preparados para segurar o Príncipe de Mona, caso ele caísse. Fflewddur empenhava-se no trajeto, em silêncio.

Kaw já havia alcançado os muros do castelo, e Taran invejou as asas do corvo ao ver a muralha íngreme de pedra e, mais acima, os parapeitos quebrados. Da base da muralha Gwydion guiou-os às pesadas vigas dos portais. O paredão estava rachado como se fora atingido por um golpe de espa­da, e o cascalho precipitara-se na fenda. O Príncipe de Don fez um gesto indicando-lhes que parassem.

— Fiquem aqui — ordenou em voz baixa. — Devo ir primeiro para saber onde os guardas de Achren estão de vigia.

Em silêncio, ele desapareceu pela fenda. Os companhei­ros agacharam-se entre as pedras e não ousaram falar.

Taran apoiou a cabeça nos braços. Seus pensamentos sempre se voltavam a Eilonwy e às palavras de Gwydion; mal podia acreditar que a jovem delicada e risonha possuía pode­res tão fortes quanto aqueles de Achren. Logo, logo, Eilonwy estaria livre. Mas, à medida que sua impaciência aumentava, e também o medo, Taran olhava para cima, aguçando olhos e ouvidos à espera de um sinal de Gwydion.

Sentiu-se tentado, então, a seguir o Príncipe de Don, mas, no momento seguinte, Gwydion surgiu das sombras.

Achren paga por uma vigília insuficiente — disse Gwydion com um sorriso irônico. — Uma sentinela vigia o lado do continente, outro, sonolento, apóia-se na espada. Os demais dormem.

Os companheiros atravessaram a fenda. O objetivo agora era descobrir onde Eilonwy estava presa, e o coração de Taran parecia encolher-se. Do lado de dentro dos muros, as ruínas de Caer Colur alongavam-se como um enorme esqueleto. O trambolhão que um dia constituíra torres e alas reais estava diante do grupo de amigos, e Taran lançou um olhar ansioso para Gwydion. O guerreiro alto acenou para que os compa­nheiros empunhassem as espadas, e indicou onde cada um deles deveria fazer a busca.

Fflewddur estava prestes a se dirigir às construções mais afastadas quando Taran quase deu um grito. Kaw passou por uma das torres e precipitou-se, pousando no braço estendi­do do rapaz. O corvo bateu asas, voou para o alto, mais uma vez, e circundou a torre.

Ele a encontrou! — Taran sussurrou. — Nossa busca terminou!

Apenas começou — Gwydion advertiu. — Um de nós deverá subir e ver se é possível libertá-la. Os outros vão tomar posições mais distantes da muralha e proteger-se de qualquer ataque de surpresa dos guerreiros de Achren.

Devo... — Taran começou a dizer, e então hesitou, voltando-se para o Príncipe Rhun. Baixou a cabeça.

— Ela será sua noiva, O que você desejava era...

— Demonstrar minha bravura à princesa? Sim — disse Rhun, pausadamente. — Mas, não é mais o meu desejo. Es­tou bem satisfeito de tê-la demonstrado a mim mesmo. E suponho que seja você, realmente, a pessoa que Eilonwy queira ver, em primeiro lugar.

Taran deu uma olhada para Gwydion, que concordou e determinou que os outros se dirigissem para o lado do caste­lo voltado ao continente. Assim que Rhun juntou-se a Gurgi e Fflewddur, Gwydion ajoelhou-se e retirou da sua jaqueta o livro e a esfera dourada.

— Se algo der errado, não deverão cair nas mãos de Achren — disse, depositando, cuidadosamente, os objetos embaixo de pedras soltas. Com habilidade, repôs os casca-lhos e alisou o solo ao redor.

— Assim vão estar protegidos até a nossa volta.

Kaw já retornara, com Taran. Gwydion ergueu-se e do cinto retirou um rolo de corda fina, deu um laço na ponta e entregou-o a Kaw, dizendo-lhe algo em voz baixa. O pássaro pegou a corda com o bico e em silêncio bateu asas em dire­ção à torre íngreme; pairou sobre uma pedra pontuda e en­tão deixou cair o laço por cima dela.

Gwydion virou-se para Taran.

— Sei o que se passa no seu coração — disse, com amabilidade. — Suba, Porqueiro-Assistente. Deixo esta mis­são para você.

Taran correu até a base da torre. A corda se esticava sob seu peso e o nevoeiro o envolvia enquanto ele procura­va apoio para os pés na muralha irregular. Segurou mais forte a corda e começou a subir. Uma forte rajada de vento do mar golpeou-o repentinamente. Por um momento ele ficou balançando, afastado da torre. Abaixo, as ondas arremessa­vam-se contra as pedras. Não ousou olhar naquela direção, e lutou para interromper o movimento nauseante. Seus pés firmaram-se na pedra outra vez. Agarrando-se à corda com toda a força, subiu mais alto.

Uma janela de batente abria-se logo acima dele e Taran alçou-se à borda da mesma. No pequeno quarto a luz de uma candeia oscilava. Seu coração quase saltou. Lá estava Eilonwy.

A princesa estava imóvel, deitada em um leito baixo. Ainda usava o vestido que Teleria havia lhe dado, embora agora estivesse rasgado e respingado de lama. O cabelo ver­melho-dourado tombava por cima dos ombros e sua fisionomia estava pálida e cansada.

Mais que depressa, Taran passou por cima do batente, deixou-se cair no chão de pedra e correu para o lado de Eilonwy. Tocou o seu ombro. A jovem agitou-se, virou o ros­to e balbuciou, ainda dormindo.

— Depressa! — Taran sussurrou. — Gwydion está à nossa espera.

Eilonwy ergueu-se, passou a mão na testa e abriu os olhos. Ao ver Taran, deu um grito de surpresa.

— Gurgi também está aqui — disse Taran. — Fflewddur, Príncipe Rhun... nós todos. Você está salva. Apresse-se!

— É muito interessante — disse Eilonwy, sonolenta. — Mas, quem são eles? E, a propósito — acrescentou —, quem é você?


 

Encontro de Estranhos

— Sou Eilonwy, Filha de Angharad, Filha de Regat — prosseguiu Eilonwy, tocando a lua crescente presa ao seu pescoço. — Mas, quem é você? — repetiu. — Não tenho a mínima idéia do que você está falando.

Acorde — Taran exclamou, sacudindo-a. — Você está sonhando.

Ora, sim, de fato, estava — respondeu Eilonwy, com um sorriso indefinido e sonolento. — Mas, como você chegou a essa conclusão? Creio que não se percebe quan­do alguém está sonhando. — Fez uma pausa, franzindo a testa. — Ou será que se percebe? Algum dia descobrirei. A única maneira será, suponho, olhar para mim mesma quan­do estiver dormindo. E como vou fazer isso, nem imagino.

Sua voz falhou e se apagou; de repente, parecia ter-se esquecido de que Taran estava lá e deitou-se novamente.

Difícil, difícil — balbuciou. — É como tentar virar-se de dentro para fora. Ou seria de fora para dentro?

Eilonwy, olhe para mim! — Taran tentou erguê-la, mas Eilonwy, com uma exclamação de aborrecimento, afas­tou-se. — Você precisa me ouvir — Taran insistiu.

Até agora não fiz outra coisa — ela respondeu. — E nada do que você disse fez sentido. Eu estava bem melhor enquanto dormia. Antes sonhar do que escutar gritos. Mas, eu estava sonhando? Um sonho agradável... havia um porco nesse sonho... e alguém que... não, já se foi, mais rápido que uma borboleta. Você atrapalhou tudo.

Taran forçou a menina a sentar-se mais uma vez. Apa­vorado, olhou bem para ela. Apesar da vestimenta manchada e dos cabelos desalinhados, parecia ilesa. Mas seu olhar era estranho e profundo. Não era sono que a afetava, e as mãos dele tremeram quando constatou que Eilonwy tinha sido dro­gada ou... seu coração esfriou ao pensar... enfeitiçada.

Ouça bem — implorou. — Não há tempo...

Acho que as pessoas não deveriam invadir os sonhos das outras sem permissão — disse Eilonwy, ligeiramente in­dignada. — Há algo de indelicado nessa atitude. Assim como arrebentar uma teia de aranha enquanto o aranha ainda está presente.

Taran correu até o batente da janela. Abaixo, não viu nenhum dos companheiros, nem sinal de Kaw. A lua estava baixa e o céu iria logo clarear. Voltou, rapidamente, para per­to de Eilonwy.

Depressa, eu lhe imploro! — disse, exaltado. — Des­ça comigo. A corda é bem resistente e suportará o nosso peso.

Corda? — exclamou Eilonwy. — Eu? Escorregar para baixo com você? Só lhe conheço há alguns minutos, mas pa­rece-me que você está fazendo a sugestão mais tola que existe. Não, obrigada.

A princesa reprimiu um bocejo.

É melhor você tentar descer pela corda sozinho — acrescentou com certa rispidez — e me deixar dormir. Espe­ro poder me lembrar em que ponto parei. É o pior que pode acontecer quando um sonho é interrompido. Nunca mais é possível encontrá-lo.

Taran, sentindo-se mal de tanto temor, ajoelhou-se ao lado dela.

O que a prende? — sussurrou. — Resista. Não se lembra de mim? Taran, Porqueiro-Assistente...

Que interessante — comentou Eilonwy. — Em al­gum momento você precisa me contar mais sobre você. Mas, não agora.

Pense — Taran insistiu. — Lembre-se de Caer Dall­ben, Coll, Hen Wen...

Do lado de fora da janela o vento marítimo carregava rastos de névoa como se fossem cipós entrelaçados. Taran mencionou os nomes outra vez e também os dos amigos.

O olhar de Eilonwy era tão distante, que ela mesma pa­recia estar longe do quarto.

Caer Dallben — ela murmurou. — Curioso, parece que isso também fez parte do meu sonho. Havia um pomar; as árvores estavam desabrochando. Eu estava subindo, o mais alto possível...

Sim, foi o que aconteceu — Taran pressionou, ansi­oso. — Eu também me lembro desse dia. Você disse que ia subir no topo da macieira. Eu a avisei que não o fizesse, mas você foi, assim mesmo.

Eu queria aprender a distinguir as árvores — Eilonwy continuou. — É preciso analisá-las a cada ano — disse —, pois sempre se modificam. E no sonho eu subi até o último galho.

Não era sonho — Taran persistiu —, mas a vida que você conhece; sua própria vida e não uma sombra que desa­parece diante do sol. De fato, você chegou ao último galho. E ele se quebrou, como eu temia.

Como pode alguém conhecer o sonho de outra pes­soa? — disse Eilonwy, falando consigo mesma. — Sim, que­brou-se e eu caí. Havia alguém embaixo para me segurar. Seria um Porqueiro-Assistente? Pergunto-me o que terá acon­tecido a ele?

Está aqui, agora — Taran disse, calmamente. — Pro­curou muito por você e percorreu caminhos que nem ele mesmo conhecia. Agora que a encontrou, você não pode achar o atalho de volta até ele?

Eilonwy ficou de pé. Seus olhos temeluziram e, pela pri­meira vez, uma luz brilhou no interior deles. Taran estendeu-lhe as mãos. Ela hesitou, então deu um passo à frente.

Mas, no momento em que fez menção de se aproximar dele, o olhar dela tornou-se superficial e a luz extinguiu-se.

É um sonho, nada mais — sussurrou, e voltou-se.

Achren fez isto com você! — disse Taran, exaltado. — Ela não vai mais lhe causar nenhum dano.

Ele agarrou o braço da menina e puxou-a na direção da janela.

Ao ouvir o nome de Achren, Eilonwy enrijeceu-se e afastou-se dele, bruscamente. Girou a cabeça para olhá-lo.

Você se atreve a tocar na Princesa da Casa de Llyr? Sua voz era ríspida; os olhos tinham perdido a ternura; e

Taran percebeu que o breve momento de lembrança havia desaparecido. Sabia que Eilonwy, a todo custo, devia ser reti­rada daquele lugar apavorante. O temor e o desalento au­mentaram quando ele pensou que nem mesmo naquele momento ela poderia ser ajudada. Tentou segurá-la pela cin­tura e colocá-la por cima do ombro.

Eilonwy golpeou-lhe direto no rosto, com tal força que Taran cambaleou para trás. Ainda assim, a dor que sentiu não foi pelo soco, mas pelo olhar de desprezo que ela lhe dirigiu.

Nos seus lábios, agora havia um sorriso debochado e malici­oso. Ele era um estranho para ela e Taran receou que seu coração fosse partir.

Mais uma vez tentou agarrá-la. Eilonwy, com um grito de raiva, debateu-se e escapou.

Achren! — chamou. — Achren! Socorro!

Correu até a porta do quarto e seguiu pelo corredor. Taran apanhou a candeia e saiu atrás da princesa. As sandálias da jovem ressoavam pelo corredor sombreado, e ele viu de relance a ponta do seu vestido desaparecer por trás de um canto. Ela não parava de chamar o nome de Achren. Em pouco tempo o castelo seria despertado e os companheiros descobertos. Taran amaldiçoou-se por ter cometido um erro tão grave. Restava-lhe apenas alcançar a jovem enfeitiçada antes que todas as chances de escapar se perdessem. Ouviu um grito atravessando a parede e o som metálico de lâminas.

A candeia chamuscava sua mão e ele largou-a. No escuro, correu até o final do corredor e desceu as escadas, correndo. A Ala Nobre de Caer Colur estendia-se diante dele, a nebli­na avermelhada do amanhecer enchendo as janelas destruídas. Eilonwy seguiu rapidamente por um longo caminho de lajes gastas e despedaçadas e, mais uma vez, desapareceu. Taran sentiu a mão de alguém agarrá-lo e girá-lo. Uma tocha tremu­lou em seus olhos.

O Porcariço! — Magg sibilou.

De uma prega de sua vestimenta, o Camareiro-Chefe puxou um punhal e atacou Taran, que ergueu o braço para se proteger do golpe. O punhal caiu. Magg praguejou e bran­diu a tocha como se fosse uma espada. Taran caiu para trás e procurou a própria arma. Os gritos dos guardas que haviam sido despertos encheram a Ala Nobre. No momento seguin­te Taran avistou Gwydion, seguido pelos companheiros.

Magg virou-se. Fflewddur corria a toda velocidade na direção do Camareiro-Chefe. Os cabelos amarelos e espeta­dos do bardo ondeavam às suas costas e seu rosto reluzia de fúria e triunfo.

— A aranha é minha! — gritou Fflewddur, a espada as­sobiando por cima da sua cabeça.

Magg, ao ver o bardo enlouquecido, deu um grito de terror e tentou fugir. Em questão de segundos Fflewddur par­tiu para cima dele, desferindo golpes à esquerda e à direita com a parte plana da espada num ataque tão violento que a maioria de suas investidas falhou. Magg, impulsionado pelo desespero, pulou no pescoço do bardo numa luta corpo-a-corpo.

Antes que Taran pudesse ajudar Fflewddur, um guerrei­ro atacou-o com um machado e, apesar de defender-se com brio, Taran acabou cercado em um dos cantos do salão. No meio da confusão do combate, ele viu Gwydion e Rhun lu­tando contra outros guerreiros. O Príncipe de Mona desferia golpes a esmo, com sua espada quebrada, e foi em conseqüên­cia de uma dessas estocadas bruscas de Rhun que o atacante de Taran caiu.

Fflewddur e Magg ainda estavam lutando. No momento em que Taran correu para o lado do bardo, a forma escura e peluda de Gurgi ultrapassou-o. Com um grito de raiva, Gurgi saltou no ar e agarrou-se aos ombros de Magg. O Camareiro-Chefe ainda usava a corrente de prata, que era o distintivo do seu cargo; Gurgi segurou-a e pendurou-se nela. Quase sem fôlego, Magg inclinou-se para trás, tossindo e sibilando quando Gurgi, que havia se pendurado à corrente, largou-a de súbito, fazendo Magg tombar no chão. Na velocidade de um relâm­pago, o bardo avançou sobre Magg, que estava prostrado. Sem se preocupar com os chutes de Magg, Gurgi prendeu-o pelos calcanhares, com toda a força, enquanto Fflewddur, sentado sobre a cabeça de Magg, parecia, de fato, levar adian­te sua ameaça de esmagar o traiçoeiro Camareiro-Chefe.

Gwydion, empunhando a espada Dyrnwyn em chamas, havia derrubado dois guerreiros agora prostrados, imóveis no chão de pedra.

Ao verem a arma em fogo, os guardas restantes fugiram, aterrorizados. Com largas passadas Gwydion correu ao en­contro dos amigos.

— Eilonwy está enfeitiçada! — Taran gritou. — Eu a perdi.

Os olhos de Gwydion voltaram-se à extremidade do recinto onde tecidos de cor escarlate esvoaçavam de uma alcova. Eilonwy estava lá e, ao seu lado, Achren.


 

Os feitiços de Caer Colur

Taran sentiu o coração congelar, e na sua me­mória ecoou o antigo pesadelo, no qual se via, apavorado, diante de Achren. Como se fosse o mesmo menino assustado de antes, estremeceu mais uma vez ao ver a rainha do manto negro. Os cabe­los, soltos, caíam-lhe nos ombros em cachos prateados e brilhantes; a beleza de seus traços não havia se alterado, embora o rosto mostrasse uma palidez mortal. No Castelo Espiralado, muito tempo atrás, cobrira-se de jóias; agora, nem anéis, nem pulseiras adornavam as suas mãos esguias e os braços brancos. Mas seus olhos, duros como pedras precio­sas, atraíram o olhar de Taran e o prenderam.

Gwydion deu um salto à frente. Com um grito, Taran o seguiu, espada erguida. Eilonwy retraiu-se e agarrou-se a Achren.

— Baixem suas armas — ordenou Achren. — A vida da jovem depende da minha. Vocês eliminariam a minha vida? Se isso acontecer ela há de compartilhar a minha morte.

Ao ver a espada negra, Achren contraiu-se, mas não fez nenhum movimento para fugir. Ao contrário, seus lá­bios ondularam-se à sombra de um sorriso. Gwydion estan­cou e olhou para ela como se procurasse saber o que lhe passava na mente. Aos poucos, a raiva fez o rosto do guerrei­ro tornar-se sombrio e ele embainhou Dyrnwyn.

Obedeça-lhe — murmurou a Taran. — Temo que Achren esteja falando a verdade. Mesmo depois de morta ela pode ser letal.

Demonstra sabedoria, Lorde Gwydion — disse Achren, em voz baixa. — Você não me esqueceu, nem eu o esqueci. Vejo também o Porqueiro-Assistente e o tolo bardo que há muito tempo deveriam ter servido de alimento para os abutres. Os outros, talvez, não me conheçam tão bem como vocês, mas logo saberão.

Liberte a Princesa Eilonwy do seu feitiço — disse Gwydion. — Devolva-nos a princesa e poderá partir, sem empecilhos.

Lorde Gwydion é generoso — retrucou Achren com um sorriso sarcástico. — Oferece-me segurança quando o perigo que corre é bem maior. Foi imprudente ao pôr os pés em Caer Colur. E agora, quanto mais desesperadora a sua situação, mais atrevidas são as suas palavras.

Seu olhar deteve-se nele.

É lamentável que alguém como você tenha rejeitado ser meu consorte e governar comigo quando lhe foi ofereci­da a chance.

Você a está forçando a tudo isso! — Taran irrompeu. — Eilonwy não veio a Caer Colur por vontade própria. Ela não permanece aqui por vontade própria.

O desespero anulava o bom senso de Taran e ele não conseguia tirar os olhos de Eilonwy, que o olhava com curio­sidade. A mão de Gwydion segurou-o pelas costas e puxou-o para trás.

Será que ela está mesmo contra a vontade? Achren ergueu o braço em direção à alcova onde havia uma antiga cômoda, da altura de Eilonwy.

Mostrei-lhe o que está ali — disse Achren. — Todos os utensílios de mágica guardados para ela. O poder que ela ja­mais conheceu está ao alcance de sua mão. Você pede a ela que descarte isso? Deixe que ela responda por si mesma.

Ao ouvir as palavras de Achren, Eilonwy ergueu a cabe­ça. Seus lábios se separaram, mas ela não falou. Hesitando, brincou com a corrente de prata em torno do pescoço.

Ouça, princesa — Achren disse rapidamente, em voz baixa. — Eles poderiam privá-la de sua herança, da magia que é sua por nascimento.

Eu sou uma Princesa de Llyr — Eilonwy disse, fria­mente. — Exijo o que é meu. Quem são estes que o tirariam de mim? Estou vendo aquele que me assustou no quarto. Um guardador de porcos, foi o que ele disse que era. Os demais, não conheço.

O lamento de Gurgi, cujo coração estava lacerado, en­cheu a Ala Nobre.

Sim, sim, você nos conhece! Não diga palavras rudes aos tristes amigos. Não pode esquecer! Eu sou o Gurgi! Hu­milde e leal Gurgi! Espera servir sábia princesa, como sempre!

Taran desviou o rosto. A aflição do pobre coitado mago­ava-o mais do que a sua própria dor. Achren, olhando atenta­mente para Eilonwy, meneou a cabeça, dando-se por satisfeita.

E o destino deles? — Achren perguntou-lhe. — Qual será o destino daqueles que buscam destituir uma princesa de sua herança?

Eilonwy franziu as sobrancelhas. Seu olhar vagueou pelo grupo de amigos. Embora perplexa e relutante, virou-se para Achren.

Eles... eles devem ser punidos.

Ela fala com a sua voz — Taran gritou, com raiva. — Com as suas palavras! No íntimo, ela não nos quer mal.

Você acha? — respondeu Achren, segurando o bra­ço de Eilonwy e apontando para Magg, prostrado no chão de pedra e seguro firmemente pelo bardo. — Princesa, um de seus fiéis serviçais ainda está cativo desses intrusos. Ordene que ele seja libertado.

Fflewddur, montado nos ombros de Magg, apertou ain­da mais o pescoço do Camareiro-Chefe. Magg cuspia e pra­guejava enquanto o bardo o sacudia, furiosamente.

Sua aranha adestrada agora é minha prisioneira! — Fflewddur exclamou, dirigindo-se a Achren. — Eu e ele te­mos um assunto antigo a resolver. Você o quer de volta, inteiro? Então deixe a Princesa Eilonwy vir conosco.

Não preciso negociar — Achren respondeu. Fez um gesto brusco para Eilonwy.

O rosto da jovem, Taran observou, assumiu uma ex­pressão cruel e séria; ela levantou o braço e esticou a mão, com os dedos apontados.

Qual deles será? — Achren indagou. — A criatura desfavorecida que ousa chamar-se seu serviçal?

Gurgi ergueu a cabeça, pensativo e temeroso, enquanto Achren sussurrou a Eilonwy palavras num idioma estranho. Os dedos da menina moveram-se ligeiramente. Os olhos de Gurgi arregalaram-se de surpresa e indignação. Por um ins­tante ficou imóvel, boquiaberto, olhando fixamente para a princesa. A mão dela, que indicava o perplexo Gurgi, de re­pente tensionou. Com um grito lancinante de dor, Gurgi enrijeceu-se e segurou a cabeça.

Os olhos de Achren faiscaram de prazer. Mais uma vez, cochichou depressa algumas palavras para Eilonwy. Gurgi deu um grito agudo. Rodou desesperadamente, os braços agitan­do-se como para se proteger de algozes invisíveis. Aos berros, atirou-se no chão, curvou-se e rolou para trás e para a frente. Taran e Gwydion correram para perto dele; mas a criatura torturada, como um animal ferido, atacou-os e debateu-se cegamente, angustiado.

Fflewddur levantou-se de súbito.

Chega! — gritou. — Não atormente mais o Gurgi! Você terá Magg de volta. Tome-o!

Sob o comando de Achren, Eilonwy baixou a mão. Gurgi ficou no chão ofegante. Seu corpo sacudia-se de tanto solu­çar. Com o pêlo todo desgrenhado, ergueu a cabeça; Taran viu seu rosto banhado em lágrimas que não foram derrama­das apenas devido ao sofrimento físico. Com muita dificulda­de, a criatura exausta pôs-se de quatro.

Gurgi arrastou-se um pouco, para a frente. Seus olhos chorosos voltaram-se para Eilonwy.

Sábia princesa — murmurou — não pretende en­cher a pobre cabeça mimosa de mágoas. Gurgi sabe. Ele a perdoa.

Nesse ínterim, Magg, livre do bardo, não perdeu tempo; levantou-se com dificuldade e correu para perto de Achren. O embate com Fflewddur deixou o Camareiro-Chefe em mau estado. Os belos trajes tinham rasgões e fendas à mos­tra, os cabelos lisos e úmidos, caíam-lhe pela testa, e a cor­rente estava danificada. Entretanto, uma vez ao lado de Achren, Magg cruzou os braços e, com arrogância, ergueu a cabeça; seus olhos estavam repletos de ódio e rancor, e Taran perce­beu que, se Achren tivesse concedido poderes ao Camareiro-Chefe, aquele olhar bastaria para fazer Fflewddur rolar de tormentos piores que os de Gurgi.

Você vai pagar caro por isso, harpista — Magg ros­nou. — Alegro-me por não tê-lo espancado e afugentado da primeira vez que o vi, pois agora tenho a chance de deixá-lo pendurado pelas cordas da sua harpa na torre mais alta do castelo de Rhuddlum. E assim farei quando me tornar o Lorde de Dinas Rhydnant.

Lorde de Dinas Rhydnant! — Fflewddur exclamou. — Uma corrente de camareiro já é muita honra para você.

Estremeça, harpista! — disse Magg, com desdém. — Dinas Rhydnant é meu. Foi a mim prometido. E todo o reino. Rei Magg! Magg, o Magnífico!

Rei Magg, o Magano — o bardo rebateu. — Achren promete-lhe um reino? Uma área de serviço é o que você merecia!

As promessas de Achren são falsas — gritou Taran. — Aprenda isso, para sua infelicidade, Magg!

A rainha do manto negro sorriu.

Achren sabe recompensar aqueles que a servem, assim como sabe punir aqueles que atraem. O reino de Magg há de se situar entre os mais poderosos de toda a região. E Caer Colur se erguerá mais glorioso do que nunca. Sua Ala Nobre será a sede de poder de toda Prydain. O próprio Lorde de Annuvin há de se ajoelhar em minha homenagem.

Achren passou a sussurrar; um fogo frio ardia em suas feições pálidas. Seu olhar não se detinha mais nos compa­nheiros, pairava muito além deles.

Arawn de Annuvin vai se acovardar e suplicar miseri­córdia. Mas seu trono há de ser derrubado. Fui eu, Achren, quem lhe mostrou os caminhos secretos do poder. Ele me traiu e agora sofrerá a minha vingança. Fui eu, antes dele, quem dominou Prydain, e ninguém questiona minha sobera­nia. Assim será mais uma vez. Assim será para todo o sempre.

— A lenda nos fala de seu poder antigo — disse Gwydion num tom mordaz — e de como tentou escravizar corações e mentes. Atormentou aqueles que não a veneraram; e para aqueles que a você se submeteram, a vida foi pouco melhor que a morte lenta. Sei também dos sacrifícios de sangue que você exigia e de como exultava ao ouvir os gritos das vítimas. Não, Achren, isso não vai se repetir. Pensa você que esta menina vai ajudá-la a concretizar seus planos?

— Ela me obedecerá — Achren retrucou —, disso eu sei, pois o coração da princesa está nas minhas mãos.

Os olhos de Gwydion faiscaram.

— Suas palavras são inúteis, Achren. Não me enganam. Você pretende governar através da Princesa Eilonwy? Os fei­tiços que ela domina ainda estão adormecidos. Você não tem os meios de despertá-los.

O rosto de Achren ficou lívido e ela deu um passo atrás como se tivesse recebido um golpe.

— Você fala além do seu conhecimento.

— Ah, não, de jeito nenhum! — irrompeu Rhun, que estivera escutando, maravilhado.

O Príncipe de Mona, com uma atitude triunfal, enfren­tou Achren.

— O livro! A luz dourada! Estão conosco e jamais os entregaremos.


 

O Pelydryn Dourado

— Príncipe Rhun! Quieto! — O aviso de Taran chegou tarde demais. Rhun percebeu o erro grave que come­tera e, com a mão, tapou a boca; seu rosto redondo encheu-se de temor e ele, confuso, olhou ao redor. Gwydion silenciou, a fisionomia marcada pelas intempéries tornou-se inflexível e pálida; mesmo assim, o olhar que voltou ao infeliz Príncipe de Mona não foi de re­provação, mas de tristeza. Os ombros do Príncipe Rhun cur­varam-se; baixou a cabeça e virou-se, sentindo-se arrasado.

Antes das palavras súbitas de Rhun, no momento em que Gwydion falara, Taran percebera uma sombra de medo pairando sobre Achren. Agora a situação era outra e seus lábios entreabriram-se num sorriso sutil.

— Pensa que eu queria esconder a verdade de você, Lorde Gwydion? — ela disse. — Eu sabia que o livro de feitiços havia desaparecido de Caer Colur e durante muito tempo o procurei. Quanto ao Pelydryn Dourado, a pró­pria princesa jogou-o fora ou perdeu-o. De fato, para que meu plano se realize, faltam-me somente esses objetos.

Aceite meus agradecimentos, Lorde Gwydion — Achren pros­seguiu. — Poupa-me o trabalho de uma busca entediante. Livre-se de muito sofrimento pondo-os em minhas mãos. Agora! — ordenou, rispidamente. — Entregue-os a mim.

A voz de Gwydion estava firme quando proferiu suas palavras, lentas e cautelosas.

Como disse o Príncipe de Mona, encontramos o li­vro de feitiços e a luz que revela os escritos. Mas também é como ele diz; você jamais os terá.

Ah, não? — retrucou Achren. — É tão simples quan­to esticar o braço.

Eles não se encontram em nosso poder — Gwydion respondeu — mas bem guardados e fora do seu alcance.

Isso também é fácil de se resolver — disse Achren. — Há meios de fazer línguas se soltarem e os segredos mais profundos serem revelados em voz alta.

Ela olhou para o Príncipe Rhun.

O Príncipe de Mona fala mesmo sem que eu insista. Ele falará novamente.

Rhun piscou e engoliu em seco, mas, resoluto, olhou para Achren.

Se você está pensando em me torturar — disse —, esteja à vontade. Seria interessante saber o quanto você vai descobrir, uma vez que eu mesmo não tenho a mais remota idéia de onde se encontra o Pelydryn.

Respirou fundo e fechou os olhos.

Pronto! Vá em frente.

Dê-me a harpa, Lady Achren — Magg disse, ansioso, ao mesmo tempo em que Fflewddur arrepiou-se e lançou-lhe um olhar desafiador.

Ele vai cantar melhor ao ouvir a minha música do que ao som de sua harpa.

Controle sua língua, Camareiro-Chefe — vociferou Achren. — Haverão de falar de bom grado antes que eu acabe com eles.

A mão de Gwydion alcançou o cabo da espada negra.

Não magoe nenhum dos meus parceiros — excla­mou. — Se o fizer, prometo derrubá-la a qualquer custo.

Assim prometo eu! — Achren rebateu. — Tente me desafiar e a menina morrerá!

E sua voz tornou-se mais baixa.

E assim ficamos, Lorde Gwydion, vida contra vida e morte contra morte. O que você escolhe?

Se eles pegaram minha esfera — disse Eilonwy, apro­ximando-se de Achren —, devem devolvê-la. Não é conve­niente que fique nas mãos de estranhos.

Taran não conseguiu conter um grito de tristeza diante das palavras de Eilonwy. Achren, que esteve analisando o rosto de cada companheiro, voltou-se, rapidamente, a ele.

Isso não lhe agrada, Porqueiro-Assistente — mur­murou. — Dói-lhe ser chamado de estranho por ela. É mais cruel do que ser cortado por uma faca, não é? Mais dolorido que os tormentos da criatura desgraçada aos seus pés. A prin­cesa assim permanecerá porque assim ordenei. Mas eu pode­ria devolver-lhe a lembrança que tem de você. Uma bugigan­ga dourada é um preço muito alto? Ou um livro de feitiços, sem significado para você?

Achren chegou mais perto de Taran, prendendo-o com o olhar. Sua voz não passava de um sussurro; as palavras pa­reciam atingi-lo no íntimo, envolvendo-lhe o coração.

O que importa a um Porqueiro-Assistente se eu ou alguém mais dominar Prydain? O próprio Lorde Gwydion não pode recuperar-lhe aquilo que você mais preza; na verdade, ele só poderá acarretar a sua morte. Mas eu posso lhe dar a vida da princesa. Sim, um dom que somente eu posso conceder.

E mais, muito mais — Achren disse, sussurrando. — Comigo, a Princesa Eilonwy será rainha. Mas quem será o rei? Você vai deixar que eu a liberte para que se case com um príncipe insensato? Sim, Magg contou-me que ela está pro­metida ao filho de Rhuddlum.

“Então, qual será o destino do Porqueiro-Assistente? Salvar a princesa e depois perdê-la para outro? Não são estes os seus pensamentos, Taran de Caer Dallben? Pense nisso também: Achren troca favor por favor. “

Os olhos de Achren trespassaram-no como punhais e a mente de Taran girava. Quase soluçando, tentou em vão blo­quear as palavras sussurradas e enterrou o rosto nas mãos.

Fale agora — continuou a voz de Achren. — O Pelydryn Dourado, seu esconderijo...

Você terá o que pede!

Por um momento Taran pensou ouvir o grito da pró­pria voz, ignorando a sua vontade de silenciar. Em seguida perdeu o fôlego, incrédulo.

As palavras eram de Gwydion.

O Príncipe de Don, de pé, inclinou a cabeça para trás, e, com seus cabelos grisalhos, fazia lembrar um lobo cinzento; seus olhos faiscavam e o rosto expressava uma fúria que Taran jamais vira. A voz do guerreiro soou áspera e fria por toda a Ala Nobre, terrível de se ouvir, e Taran estremeceu. Achren fez um movimento súbito, sobressaltada.

Você terá o que pede! — Gwydion exclamou outra vez. — O Pelydryn Dourado e o livro de feitiços estão enter­rados perto do muro quebrado ao lado do portão, onde eu mesmo os deixei.

Achren ficou em silêncio, por um instante; então seus olhos estreitaram-se.

Você está mentindo para mim, Gwydion? — mur­murou entredentes. — Se não for verdade, a Princesa Eilonwy não viverá.

Estão ao seu alcance — Gwydion respondeu. — Vai desistir de resgatá-los?

Achren fez um gesto brusco para Magg.

Busque-os — ordenou.

O Camareiro-Chefe deixou rapidamente a ala e Achren, mais uma vez, dirigiu-se a Gwydion.

Tome cuidado, Príncipe de Don — murmurou com a voz rouca. — Não toque a sua espada. Não se aproxime.

Gwydion nada respondeu. Taran e os amigos permane­ceram imóveis e calados.

Magg retomara à Ala Nobre. Seu rosto macilento con­torcia-se de satisfação enquanto ele erguia o Pelydryn Dou­rado. Mal podendo respirar, correu para o lado de Achren.

Finalmente! — exclamou — São nossos!

Achren arrebatou-lhe os objetos. A esfera dourada estava embaçada como chumbo, sua beleza desaparecera. Achren se­gurou-a avidamente; seus olhos brilhavam, e, ao sorrir, mostrava as pontas brancas de dentes pontudos. Por um momento, dete­ve-se como se relutasse em se separar dos tesouros tão procu­rados e, em seguida, pressionou-os nas mãos de Eilonwy.

Magg estava fora de si, de tanta impaciência e ansiedade. Com os dedos na posição de garras, segurava a sua corrente de prata, enquanto as maçãs do rosto tremiam e a ambição reluzia em seus olhos grandes e redondos.

Meu reino! — bradou, com a voz esganiçada. — Meu! Logo será meu!

Achren virou-se e encarou-o com desprezo.

Silêncio! Um reino, seu idiota? Dê-se por satisfeito se tiver a chance de viver.

Em virtude das palavras de Achren, o queixo de Magg caiu e seu rosto assumiu a cor de queijo mofado. Engasgan­do, tanto de pavor quanto de ódio, acovardou-se diante do olhar ameaçador de Achren.

O livro de feitiços estava aberto na mão estendida de Eilonwy. Tendo recebido o Pelydryn Dourado, olhava para ele, intrigada. No interior da esfera dourada uma luz pequenina, como um floco de neve brilhando e rodopian­do, começou a tomar forma. Ela franziu a testa e seu rosto assumiu uma expressão estranha. Taran, horrorizado, viu Eilonwy sacudir-se, violentamente, e balançar a cabeça de um lado ao outro, como se sentisse dor. Por um instante seus olhos se abriram, e parecia que ela iria falar. Sua voz não passou de um suspiro. Mesmo assim, naquele momen­to fugidio, ocorreu a Taran que ela havia recuperado uma vaga lembrança de si mesma. Seria o nome dele que ela tentara, em vão, chamar? A jovem hesitou, como se estives­se dividida entre duas forças poderosas que se debatiam no seu íntimo.

Leia em voz alta os feitiços! — Achren ordenou. Pouco a pouco, a luz do Pelydryn Dourado tornou-se mais forte. Por toda a Ala Nobre surgiu um murmúrio confu­so, vago, como se o vento tivesse fala, persuadindo, insistin­do, ordenando. As próprias pedras de Caer Colur pareciam ter adquirido voz.

Rápido! Rápido! — gritou Achren.

Eilonwy, assim Taran deduziu num ímpeto de esperan­ça, estava lutando contra tudo o que a prendia. A menina angustiada estava fora do alcance de todas as ameaças de Achren, de toda a ajuda dos companheiros.

Então, repentinamente, o combate solitário que travava terminou. Taran gritou, desesperado, quando Eilonwy ergueu a esfera dourada e, com um movimento rápido, aproximou-a das páginas em branco.

O Pelydryn Dourado brilhou mais do que nunca e Taran ergueu a mão para proteger os olhos. A luz inundou a ala. Gurgi atirou-se no chão e cobriu a cabeça com os braços peludos. Os companheiros, assustados, retrocederam.

Inesperadamente, Eilonwy atirou o livro no chão de pe­dra. Das páginas eclodiu uma nuvem vermelha que se esten­deu num lençol de fogo, erguendo-se até o teto arqueado da Ala Nobre. Mesmo depois que o livro de feitiços tinha se consumido nas próprias chamas, o fogo não esmoreceu, ao contrário, elevou-se mais, rugindo e crepitando, e já não era carmesim, mas tão branco que chegava a ofuscar. As páginas enrugadas giravam num redemoinho abrasador para, em se­guida, dançarem no coração cintilante da chama e, naquele instante, as vozes de Caer Colur, sentindo-se derrotadas, ge­meram. As cortinas vermelhas da alcova, impelidas pelo ven­to, esvoaçaram e foram engolidas pela coluna de fogo. O livro tinha se extinguido, por completo, mas as chamas ainda se avolumavam, insaciáveis.

Achren dava gritos estridentes de ódio e seu rosto esta­va contorcido pela fúria inútil. Ainda segurando o Pelydryn Dourado, Eilonwy cambaleou e caiu.


 

A Inundação

Gwydion deu um salto à frente.

— Seu poder terminou, Achren! — exclamou. Pálida, a rainha vacilou por um instante, virou-se e saiu gritando pela Ala Nobre. Taran correu para perto de Eilonwy e, sem se preocupar com as chamas, lutou para erguer o corpo da jovem desfalecida. Gwydion correu atrás de Achren. O bardo seguiu-os, es­pada em punho. Magg desaparecera. Em alguns instantes Fflewddur retornou. Estava lívido.

— A aranha quer nos afogar! — gritou. — Magg abriu as comportas que continham o mar!

Assim que o bardo deu o aviso em voz alta, Taran ouviu um estrondo da rebentação. Caer Colur estreme­ceu. Levando nos ombros Eilonwy, ainda inconsciente, se­guiu trôpego até uma janela, danificada. Kaw, desnorteado, voava em círculos acima das torres. Fflewddur determinava que os amigos se dirigissem às comportas, onde espera­vam encontrar o bote. Taran seguiu-o mas, desesperado, viu as imensas comportas de ferro soltarem-se das dobra­diças sob a força das águas. Despedaçadas, tombaram para o lado de dentro e a maré espumosa investia contra a ilha como se fosse uma fera voraz.

Fora dos muros do castelo, na crista de uma onda, se­guia o barco de Achren, com o mastro inclinado e as velas batendo. Os guerreiros sobreviventes agarravam-se às late­rais da embarcação e lutavam para subir a bordo. Na proa estava Magg, seu rosto deformado de ódio, sacudindo o pu­nho na direção à fortaleza que ia abaixo. Os destroços do bote de Gwydion giravam na inundação e Taran viu todas as chances de escapar perderem-se com o bote.

Os muros externos quebraram-se sob o primeiro impacto do mar. Blocos de pedra estremeciam e partiam-se. As tomes de Caer Colur oscilaram, e o chão movia-se sob os pés de Taran.

A voz de Gwydion ressoava acima do tumulto.

— Salvem-se! Caer Colur está destruído! Afastem-se dos muros ou serão esmagados!

Taran viu o Príncipe de Don subir até as pedras mais altas do aterro para onde Achren tinha fugido. Lá, Gwydion lutou para retirá-la das pedras que ruíam, mas ela o atacou e feriu-lhe o rosto com as unhas. Seus gritos estridentes e mal­dições atravessavam o bramido das ondas devastadoras. Quan­do o aterro cedeu, Gwydion pisou em falso e caiu.

A última divisória do muro em ruínas tombou. Um len­çol d’água sibilante encobriu o céu. Taran agarrou-se a Eilonwy. Com a inundação, os dois jovens submergiram. A espuma salgada sufocou-o e a maré impiedosa quase arrancou-lhe dos braços a jovem inconsciente. A ilha começava a se partir enquanto Taran lutava para subir à tona; um redemoinho agarrou-o, levando-o para o fundo. Segurando Eilonwy, liber­tou-se do redemoinho, mas acabou no meio das ondas re­voltas que o sacudiam como garanhões selvagens.

Girou na vala enquanto o mar subtraía-lhe força e respi­ração. Mesmo assim, mantinha a esperança, pois parecia que a ressaca o estava levando, com sua frágil carga, para mais perto da praia. Atordoado e quase cego em conseqüência das ondas verde-escuras, Taran teve uma visão confusa da praia e da rebentação. Com o braço livre dava braçadas fra­cas. Mas, em conseqüência desse esforço final, seu corpo de­bilitado traiu-o e ele precipitou-se na escuridão.

Taran acordou sob um céu cinzento. O rugido nos seus ouvidos não era das ondas. Dois olhos enormes, amarelos, olhavam nos seus. O rugido ficou mais forte. No rosto sentiu o bafo quente. Quando a visão tornou-se mais nítida, Taran pôde ver dentes afiados e um par de orelhas peludas. Perce­beu, ainda confuso, que estava deitado de costas e, por cima dele, estava Llyan com a enorme pata sobre seu tórax. Ele gritou de susto e debateu-se para se libertar.

Olá, olá! — era o Príncipe Rhun que agora inclinava-se para vê-lo, mostrando um sorriso largo. Ao seu lado estava Fflewddur. O bardo, assim como Rhun, estava encharcado, e dos seus cabelos pendiam algas molhadas,

Agora, calma — disse Fflewddur. — Llyan não pre­tende fazer-lhe mal algum. Quer apenas ser amiga, apesar de ter, às vezes, maneiras estranhas de demonstrar isso.

Afagou a cabeçorra da gata e roçou os dedos por baixo dos seus poderosos maxilares.

Vamos, Llyan — disse, tentando agradá-la —, boa menina. Não fique por cima do meu amigo. Ele ainda está se recuperando. Comporte-se e eu lhe compensarei com uma canção, assim que minha harpa secar.

Fflewddur dirigiu-se novamente a Taran.

Temos muito que agradecer a Llyan. Tudo, de fato. Ela nos pescou na rebentação, depois que o mar nos arras­tou. Se não fosse por ela, receio que ainda estaríamos lá.

Foi mesmo surpreendente — acrescentou o Prínci­pe Rhun. — Pensei que tivesse me afogado. E o curioso é que eu não me dava conta!

Tomei um grande susto quando recuperei os senti­dos e vi Llyan sentada ao meu lado — disse Fflewddur, — Ela estava segurando a harpa com as patas, como se mal pudesse esperar que eu acordasse e recomeçasse a tocar. A criatura é louca por minha música! Por isso ela nos perseguiu até aqui. E, Grande Belin, ainda bem! Mas, penso que ela, afinal, enten­deu que há tempo e lugar para cada coisa. Ela tem sido, sem dúvida, muito gentil — acrescentou, ao mesmo tempo que Llyan começou a roçar a cabeça nele, com tanta força que o bardo quase se desequilibrou.

Onde estão os outros? — Taran interrompeu, ansioso.

Kaw, receio, está desaparecido. Gurgi foi pegar gravetos para fazer fogo — respondeu o bardo. — Pobre criatura, ainda está morrendo de medo de Llyan. Mas vai se acostumar a ela. Eu mesmo já me afeiçoei. Não é sempre que alguém encontra uma ouvinte tão boa, e acho que devo adotá-la. Ou — acrescentou, enquanto Llyan roçava os bigodes no pescoço dele e abraçava o bardo com suas patas poderosas — talvez seja o oposto.

E o que houve com Eilonwy? E Gwydion? — Taran insistiu.

O bardo voltou o olhar para baixo.

Sim, bem — murmurou —, estão ali. Gwydion fez todo o possível.

Cada vez mais ansioso, Taran ergueu-se, vacilante. Ao abrigo de uma pedra tombada, Gwydion estava ajoelhado ao lado de duas figuras. Taran atravessou a praia aos tropeços. Gwydion, com a fisionomia carregada de preocupação, olhou para ele.

Eilonwy vive — disse ele, respondendo à pergunta contida nos olhos de Taran. — Mais do que isso não posso dizer. O que sei é o seguinte: Achren não tem mais domínio sobre ela.

— Achren... Achren está morta, então? — Taran per­guntou. E olhou fixamente para a figura coberta de negro.

Achren também vive — respondeu Gwydion —, embora tenha lutado entre a vida e a morte. Mas seu poder agora extinguiu-se. Esta é a resposta ao enigma, embora eu não o soubesse até encontrar Achren na Ala Nobre. No co­meço, eu tive dúvidas. Quando entendi que ela, com certeza, preferia morrer a desistir de Eilonwy, percebi que Achren havia perdido o controle de tudo, à exceção do menor de seus próprios feitiços. Li nos seus olhos e na sua voz. Ela começou a perder a guerra no momento em que rompeu com o Lorde de Annuvin.

— Os feitiços de Caer Colur eram sua última esperan­ça. Agora foram-se e Caer Colur está no fundo do mar — Gwydion acrescentou. — Não precisamos mais temer Achren.

— Ainda a temo — disse Taran —, e não poderei me esquecer de Caer Colur. Achren disse-me a verdade — pros­seguiu, em voz baixa. — Não tive mais forças para ouvi-la. Temi revelar o local onde o Pelydryn estava escondido... e esperava que vocês me matassem antes que eu o fizesse. Mesmo assim — Taran acrescentou, intrigado — foi você quem falou.

Foi um risco necessário — Gwydion respondeu. — Eu havia feito suposições a respeito da natureza da esfera; se, por si mesma, podia revelar os feitiços, por si mesma poderia destruí-los. Somente desse modo Eilonwy poderia se libertar. Que preço ela teria que pagar, eu não saberia dizer. Infeliz­mente, ela sofreu muito, talvez demais.

Devemos acordá-la? — Taran sussurrou.

Deixe-a — disse Gwydion. — Ela deve despertar por si mesma. Só podemos aguardar e ter esperança.

Taran baixou a cabeça.

Teria dado a minha vida para mantê-la fora de peri­go, e poderia morrer agora para poupá-la disso.

Sorriu com amargura.

Achren quis saber qual era a sina de um Porqueiro-Assistente? É o tipo de pergunta que sempre fiz a mim mes­mo. Vejo agora que a vida de um Porqueiro-Assistente tem pouco valor ou importância. Até mesmo oferecê-la por al­guém nada significa.

O Príncipe Rhun discordaria de você — respondeu Gwydion. — Sem você, ele teria andado a esmo, perdido, e em perigo mortal.

Fiz um juramento ao Rei Rhuddlum — Taran argu­mentou. — Não o rompi.

E se não tivesse feito um juramento — Gwydion perguntou —, não teria agido da mesma maneira?

Taran ficou em silêncio por alguns instantes e, concordou.

Sim, teria. Foi mais que o meu juramento que me obrigou a agir assim. Rhun precisava da minha ajuda, e eu da sua. — E dirigindo-se a Gwydion. — Lembro-me também, quando certo Príncipe de Don ajudou um tolo Porqueiro-Assistente. Não é justo, agora, que o Porqueiro-Assistente ajude um príncipe?

Seja príncipe, ou Porqueiro-Assistente — disse Gwydion —, eis o caminho de um homem. Os destinos dos homens são tecidos uns com os outros, e uma pessoa não pode se desviar dos destinos de outra mais do que dos seus próprios.

E você, Lorde Gwydion — surgiu a voz de Achren —, traçou um triste destino para mim.

A figura de manto negro levantara-se. Achren segurou-se nas pedras para se manter ereta. Seu rosto, meio coberto pelo capuz, estava contraído e exaurido e os lábios descorados.

Morrer teria sido um benefício. Por que me negou a morte?

Taran assustou-se e recuou quando a rainha, que até pouco tempo fora arrogante, ergueu a cabeça. Por um ins­tante viu os olhos dela incendiarem-se, mais uma vez, de or­gulho e furor.

Você me destruiu, Gwydion — disse em voz alta. — Espera que eu rasteje aos seus pés? Será que meus poderes, de fato, foram anulados?

Achren riu de maneira rude.

O último ainda possuo.

Foi quando Taran viu que ela segurava um galho seco encontrado na praia. Ergueu-o no alto e Taran sentiu-se sufo­car quando, nas mãos de Achren, o galho ficou turvo e fais­cou. De repente, no seu lugar havia um punhal.

Com um grito de triunfo, Achren baixou-o contra o pró­prio peito. Gwydion deu um salto na sua direção e segurou-lhe os punhos. Achren debateu-se mas ele arrancou-lhe a arma da mão. E o punhal voltou a ser um galho, que Gwydion partiu em dois pedaços e atirou para longe. Achren caiu na areia, soluçando.

Seus feitiços sempre foram feitiços de morte — dis­se Gwydion. Ajoelhou-se e, gentilmente, pôs a mão no seu ombro.

Busque a vida, Achren.

Nenhum tipo de vida me resta a não ser a de uma rejei­tada — gritou Achren, voltando-se para ele. — Deixe-me só.

Gwydion concordou com um aceno de cabeça.

Encontre seu próprio caminho, Achren — disse sua­vemente. — Se for para Caer Dallben, pode ter certeza que Dallben não a mandará embora.

O céu ficou pesado, repleto de nuvens, e, embora já passasse um pouco do meio-dia, os rochedos altos que se erguiam na praia pareciam arroxeados como nos instantes do crepúsculo. Gurgi havia acendido o fogo com os gravetos, e o grupo de amigos sentou-se em silêncio, perto de Eilonwy, adormecida. Mais abaixo, na praia, Achren, embrulhada em seu manto, estava agachada, só e imóvel.

Durante toda a manhã, Taran não se afastou de Eilonwy. Temeroso que ela nunca mais despertasse e receando tam­bém que ao acordar ela ainda se sentisse uma estranha para ele, não desistiu de sua vigília cansativa. Nem mesmo Gwydion pôde predizer quanto tempo duraria o mal que a ela fora feito.

Não se desespere — disse Gwydion. — É bom que ela durma, e mais benéfico ao seu espírito do que qualquer poção que eu lhe dê.

Eilonwy agitou-se, impaciente. Taran teve um sobressal­to. Gwydion pôs a mão no seu braço e, com gentileza, pu­xou-o para trás. Os cílios de Eilonwy vibraram. Gwydion ob­servava-a de perto, com a fisionomia séria, quando os olhos dela se abriram e, lentamente, Eilonwy ergueu a cabeça.


 

A Garantia

A princesa sentou-se e dirigiu um olhar curioso aos companheiros.

— Eilonwy — sussurrou Taran —, você nos conhece?

— Taran de Caer Dallben — disse Eilonwy — essa pergunta só poderia ser de um Porqueiro-Assistente. É cla­ro que conheço vocês. O que não sei é o que estou fazen­do aqui, encharcada e coberta de areia, nesta praia. Gwydion sorriu.

A Princesa Eilonwy voltou para nós.

Gurgi gritou de alegria e, naquele instante, Taran, Fflewddur e o Príncipe Rhun começaram a falar ao mesmo tempo. Eilonwy tapou os ouvidos com as mãos.

Parem, parem! — gritou. — Estão fazendo a mi­nha cabeça rodar. Ouvir vocês é mais confuso que tentar contar os dedos do pé e da mão ao mesmo tempo!

Os companheiros tentavam ficar em silêncio enquan­to Gwydion, rapidamente, contava-lhe tudo o que havia acontecido. Quando ele terminou, Eilonwy sacudiu a cabeça.

Posso ver que vocês se divertiram muito mais do que eu — disse, coçando o queixo de Llyan, que ronronava de satisfação. — Especialmente porque não me lembro de quase nada.

Que pena que Magg escapou — Eilonwy prosseguiu. — Quem dera ele estivesse aqui agora. Eu teria algumas coi­sas a discutir com ele. Naquela manhã, quando me dirigia para tomar o café, ele surgiu de um dos corredores. Disse-me que algo muito sério tinha acontecido e que eu deveria acompanhá-lo imediatamente.

Se ao menos pudéssemos tê-la alertado — Taran começou a dizer.

Me alertado? — Eilonwy retrucou. — A respeito de Magg? Eu logo vi, pelo seu simples olhar, que ele estava tra­mando alguma coisa.

Taran olhou-a espantado.

E mesmo assim você foi com ele?

Naturalmente — disse Eilonwy. — De que outro modo eu poderia descobrir o que se passava? Você estava muito ocupado, sentado em frente ao meu quarto, e ainda ameaçava chamar um guarda para tomar conta de mim. Sabia que não adiantaria pedir-lhe que agisse com sensatez.

Não o julgue severamente — disse Gwydion, sorrin­do. — Ele só pensou em protegê-la. Além disso, estava sob minhas ordens.

Sim, compreendo — disse Eilonwy —, e logo desejei que todos vocês estivessem comigo. Mas era tarde demais. Assim que deixamos o castelo, Magg amarrou-me. E me amor­daçou! Isso foi o pior! Eu não podia falar uma palavra!

Mas ele arruinou seu próprio plano — ela prosse­guiu. — De fato, Magg ficou aguardando nas colinas até que o grupo de busca se distanciasse bastante. Então arrastou-me para o barco. Seus tornozelos vão ficar roxos por um tempo, garanto. Mas deixei cair minha bolinha. Amordaçada, não pude fazê-lo entender que a queria de volta.

“Foi bem feito para ele. Achren ficou furiosa quando viu que a esfera não estava comigo. Culpou Magg, e ainda me surpreende que ela não tenha cortado a cabeça dele naquele momento e lugar. A meu ver, ela estava muito amável e aten­ciosa; então, logo percebi que alguma coisa desagradável es­tava para acontecer.”

Depois disso — Eilonwy continuou — Achren enfei­tiçou-me e quase não me lembro de nada. Até o momento em que a esfera veio parar nas minhas mãos outra vez. En­tão... então foi muito estranho. Com a luz da esfera, pude ver todos vocês. Não com meus olhos, mas com o meu coração. Sabia que vocês queriam que eu destruísse os feitiços. E era o que eu queria fazer, também.

“No entanto, era como se existissem duas pessoas iguais a mim. Uma queria e outra não queria desistir dos feitiços. Sabia que era a minha única chance de me tomar uma feiticeira e, se desistisse dos meus poderes, tudo estaria encerrado. Suponho — disse a Taran, em voz baixa — que me senti do mesmo modo que você, há muito tempo, nos Pântanos de Morva, quando você decidiu abrir mão do broche mágico de Adaon.

O restante não foi agradável. A voz de Eilonwy fa­lhou. — Prefiro... prefiro não falar sobre isso.

Ficou em silêncio, por um momento.

Nunca mais serei uma feiticeira. Tudo que me resta é ser uma menina.

Isso é mais do que suficiente para se orgulhar — disse Gwydion, sendo gentil. — Você precisou sacrificar mui­tas coisas para evitar que Achren dominasse Prydain. Deve­mos mais do que nossas vidas a você.

— Ainda bem que o livro de feitiços se queimou — disse Eilonwy —, mas estou aborrecida por ter perdido minha esfe­ra. A essa altura deve estar flutuando no mar — suspirou. — Quanto a isso, não há nada a fazer. Mas vou sentir falta dela.

Dito isso, Taran percebeu um movimento ligeiro no céu escuro e cinzento. Levantou-se bruscamente. Era Kaw, preci­pitando-se em direção ao solo, a toda velocidade.

— O último que estava perdido! — exclamou Fflewddur. As orelhas de Llyan empinaram-se. Seus bigodes longos contraíram-se, mas a gata não tentou dar um bote no corvo. Ao invés disso, ergueu-se e, apoiando-se nas ancas, ronronou ao ver o antigo oponente.

Com as penas molhadas e eriçadas para todos os lados, Kaw pairou acima de Eilonwy. Sem se importar com a sua aparência infame, grasnou e bateu o bico demonstrando enor­me satisfação.

— Bola! Bola!

De suas garras caiu o Pelydryn Dourado nas mãos es­tendidas de Eilonwy.

A princípio Gwydion decidira que o grupo de amigos deveria descansar até o amanhecer, mas o Príncipe Rhun es­tava ansioso por retornar a Dinas Rhydnant.

— Há muito o que fazer — disse. — Receio termos deixado ao encargo de Magg tarefas que nós mesmos devía­mos ter realizado. Ser um príncipe é muito mais do que eu pensava. Foi o que aprendi com um Porqueiro-Assistente — acrescentou, cumprimentando Taran — e com todos vocês. E ainda há muito que ver em Mona. Se o meu destino é ser rei, preciso conhecer toda a região. Embora, assim espero, de uma forma bem diferente. Portanto, se estão de acordo, gos­taria de partir agora.

Gurgi não pretendia ficar em lugar algum próximo a Caer Colur, e Fflewddur mal podia esperar o momento de voltar ao seu próprio reino e mostrara Llyan a nova moradia. Eilonwy insistiu que estava bem-disposta para viajar e, finalmente, Gwydion concordou que deveriam se pôr a caminho, sem demora. Concordou também que passariam pela caverna para ver como estava Glew, pois Taran ainda mantinha a promes­sa de ajudar o gigante mal-aventurado.

O grupo andrajoso aprontou-se para deixar o litoral. Achren, que, finalmente, consentira em viajar para Caer Dallben, seguia devagar, imersa em seus pensamentos, ao passo que Llyan saltitava ao lado do bardo, e Kaw divertia-se no ar.

Eilonwy caminhara até a beira d’água. Taran seguiu-a e ficou por perto enquanto ela observava a dança das ondas.

Achei melhor dar uma última olhada em Caer Colur

disse Eilonwy — para me lembrar onde fica. Ou melhor, onde não fica. De certo modo, lamento que tenha se acaba­do. Além de Caer Dallben, era o único lar que eu tinha.

Assim que você estiver a salvo em Dinas Rhydnant

disse Taran — não permanecerei em Mona. Cheguei a pensar que, depois de tudo que lhe ocorrera, você fosse... fosse voltar conosco. Mas Gwydion afirma que a vontade de Dallben é que você fique por lá. Dallben deve estar certo. Posso até ouvi-lo dizer: Ser resgatada não significa ser educada.

Eilonwy nada disse por alguns instantes. Então voltou-se para Taran.

Há mais uma coisa de que me lembrei em Caer Colur Dallben dizendo que haveria um momento em que precisaría­mos ser mais do que somos. Será verdade que ser uma donzela é mais importante que ser uma feiticeira? Talvez tenha sido isso que ele quis dizer. Vou ter que descobrir por mim mesma.

Então, se preciso aprender a ser uma donzela, mes­mo que isso resulte em ser diferente do que sou — Eilonwy prosseguiu —, então farei o possível para aprender duas ve­zes mais rápido do que aquelas matracas tolas de Dinas Rhydnant e voltar para casa duas vezes mais cedo. Pois agora, Caer Dallben é meu único e verdadeiro lar.

Ora, o que é isso? — Eilonwy exclamou, de repente. — O mar nos deu um presente!

Ajoelhou-se e retirou da onda espumante um objeto em mau estado, e passou a mão sobre o mesmo para tirar a alga que dele pendia. Taran observou a cometa antiga, das que se usam em batalhas, toda de prata, inclusive o bocal.

Eilonwy virou-a nas mãos e examinou-a cuidadosamen­te. Deu um sorriso triste.

É tudo que restou de Caer Colur. Qual uso terá, não sei e talvez jamais o saiba. Mas se você promete não me esquecer até o nosso reencontro, prometo não esquecê-lo. E essa é a minha garantia.

Prometo, de coração — disse Taran. Hesitou. — Mas, qual garantia darei eu a você? Não tenho nenhuma, a não ser a minha palavra.

A palavra de um Porqueiro-Assistente? — Eilonwy retrucou. — Será suficiente, sem dúvida. Aqui está, pegue-a. Dar presentes é bem melhor do que dizer adeus.

Mesmo assim — Taran argumentou — precisamos dizer adeus. Você sabe que o Rei Rhuddlum e a Rainha Teleria pretendem casá-la com o Príncipe Rhun.

Não diga! — Eilonwy exclamou. — Bom, posso lhe assegurar que isso eles não farão. Há um limite em relação ao que as pessoas podem decidir por nós. Rhun, decerto, me­lhorou; considero que esta viagem foi a melhor coisa que já lhe aconteceu e, algum dia, ele poderá até se tornar um rei digno de respeito. Mas, quanto a ficar noiva... Parou de repente e olhou para Taran.

— Por um momento, você pensou, seriamente, que eu poderia... ? Taran de Caer Dallben — exclamou com raiva, os olhos faiscando —, não falo mais com você!

— Ao menos — Eilonwy acrescentou, depressa — por um tempinho.

 

                                                                                            Lloyd Alexander  

 

                      

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