Biblio VT
A dona do albergue não afirma que saiba o que você quer de Klamm; afirma apenas que, antes de me conhecer, você tentava chegar a Klamm tão freneticamente quanto depois. A única diferença era que antes você estava sem esperança, mas agora acreditava ter em mim um meio confiável para abrir caminho a Klamm de maneira real, rápida e até com vantagem. Como me assustei! Mas foi só por um instante, sem razão mais profunda do que hoje, quando você disse que, antes de me conhecer, teria se perdido aqui. Talvez sejam as mesmas palavras que a dona do albergue usou; ela disse também que, desde que me conheceu, você se tornou consciente do seu objetivo. Foi o resultado, afirmou ela, de você acreditar que conquistou, na minha pessoa, uma amante de Klamm e assim ter em sua posse um penhor que só poderia ser resgatado ao preço mais alto. Negociar esse preço com Klamm era sua única aspiração. Já que você não tem nenhum interesse por mim, que tudo o que importa é o preço, está disposto a aceitar tudo em relação a mim, mas se obstina em relação ao preço. Por isso é indiferente que eu perca o lugar na Hospedaria dos Senhores, indiferente que eu também tenha de deixar o Albergue da Ponte e indiferente que eu precise fazer o trabalho pesado de servente da escola; você não tem mais delicadeza, nem tempo para mim, me abandona aos ajudantes, não sabe o que é ciúme, meu único valor para você é que fui amante de Klamm; na sua ignorância se esforça para não deixar que Klamm me esqueça para que no final eu não resista tanto quando chegar a hora decisiva; no entanto, luta também contra a dona do albergue, a única pessoa que você acha capaz de me arrebatar de você; por esse motivo leva ao limite a disputa com ela para ter que deixar comigo o Albergue da Ponte; você não duvida que, em qualquer circunstância, eu seja sua propriedade, na medida em que isso dependa só de mim.
.
.
.
.
.
.
A entrevista com Klamm é vista por você como um negócio, moeda contra moeda. Você calcula todas as possibilidades; uma vez que alcance o preço, está pronto a fazer tudo; se Klamm me quiser, irá me entregar a ele; se ele quiser que fique comigo, você ficará; se ele quiser que você me rejeite, você vai me rejeitar. Mas você também está disposto a representar uma comédia: se for vantajoso vai fingir que me ama para tentar combater sua indiferença ressaltando sua nulidade e envergonhando-o com o fato de o ter sucedido; ou então comunicando-lhe as confissões de amor que eu fiz em relação à pessoa dele, o que realmente aconteceu, e pedindo-lhe que me acolha de novo, certamente pagando o preço por isso. E se tudo o mais não der certo, você irá simplesmente implorar em nome do casal K. Mas é aí que você vai ver — concluiu a dona do albergue — que se enganou em tudo, nas suas suposições e esperanças, na idéia que tem de Klamm e das relações dele comigo; nesse momento vai começar o meu inferno, pois só então serei realmente a única propriedade de que você depende, mas ao mesmo tempo uma propriedade que provou ser sem valor e que irá tratar de forma correspondente, já que você não tem nenhum outro sentimento por mim a não ser o de proprietário. Tenso, a boca cerrada, K. tinha ouvido com atenção, a lenha debaixo dele havia rolado, ele escorregara quase até o chão sem ter notado, só agora se levantou, sentou-se no estrado, pegou a mão de Frieda, que tentava fugir fragilmente dele, e disse: — No relato que fez, nem sempre fui capaz de distinguir a sua opinião da opinião da dona do albergue. — Era apenas a opinião da dona do albergue — disse Frieda. — Ouvi tudo com atenção porque a venero, mas foi a primeira vez em minha vida que rejeitei totalmente a opinião dela. Parecia tão lastimável tudo o que ela dizia, tão distante de uma compreensão de como são as coisas entre nós! O que ela falava me dava a impressão, antes de mais nada, de que o correto era completamente o oposto do que dizia. Pensei na manhã sombria depois de nossa primeira noite. Como você se ajoelhou ao meu lado com o olhar de que então estava tudo perdido. E como depois se configurou de fato, por mais que eu me esforçasse para ajudá-lo, só o atrapalhava. Por minha causa a dona do albergue se tornou sua inimiga, uma inimiga poderosa, que você ainda continuava a subestimar; por minha causa, sendo obrigado a cuidar de mim, precisou lutar pelo seu posto, ficou em desvantagem com o prefeito, teve de se submeter ao professor, colocouse à mercê dos ajudantes, mas o pior de tudo foi que, por minha causa, você talvez tenha ofendido Klamm. O fato de querer sempre chegar até ele era só a aspiração impotente de aplacar Klamm de algum modo. E eu pensei comigo mesma que a dona do albergue, que sabe de tudo isso certamente muito mais do que eu, quis com as suas insinuações apenas me proteger contra auto-recriminações demasiadamente ruins. Esforços bem-intencionados, mas supérfluos. Meu amor por você teria me ajudado a superar tudo, teria no fim feito você avançar, se não aqui na aldeia, então em alguma outra parte; uma prova de sua força esse amor já deu, foi ele que o salvou da família de Barnabás. — Era essa portanto sua opinião contrária na ocasião — disse K. — O que mudou a partir daí? — Não sei — disse Frieda olhando para a mão de K., que segurava a sua. — Talvez nada tenha mudado; quando você está tão perto de mim e faz perguntas com tanta calma, então acredito que nada mudou. Mas na realidade — ela retirou a mão de K., sentou-se ereta diante dele, e chorou sem cobrir o rosto; ofereceu abertamente esse rosto lavado de lágrimas para ele, como se não chorasse por ela mesma e por isso não tivesse nada a esconder, mas como se chorasse pela traição de K. e desse modo ele merecesse o espetáculo daquela desolação —, na realidade tudo mudou desde que eu o ouvi falando com Hans. Como você começou inocente, perguntando pelas relações na casa dele, por isso e aquilo, era como se acabasse de chegar ao balcão de bebidas, confiante, de coração aberto e buscasse meu olhar tão pueril e avidamente. Não havia então nenhuma diferença de antes, e eu desejava que a dona do albergue estivesse lá, escutasse o que você dizia e depois ainda procurasse aderir à opinião dela. Mas aí, de repente, não sei como isso aconteceu, percebi com que intenção você conversava com o jovem. Com as suas palavras cheias de simpatia conquistou a confiança dele, que não é fácil de alcançar, para então partir imperturbável para o seu objetivo, que eu percebia cada vez mais. Esse objetivo era a mãe do rapaz. Da sua fala aparentemente preocupada com ela emergia, totalmente descoberta, apenas a consideração pelos seus próprios negócios. Você estava enganando a mulher ainda antes de conquistá-la. Não só o meu passado, mas também o meu futuro, era o que eu ouvia através de suas palavras; era como se a dona do albergue estivesse sentada ao meu lado e me explicasse tudo; tento afastá-la de mim com todas as forças, porém estou bem consciente da falta de esperança desse esforço; naquele momento não era propriamente eu que tinha sido enganada, não estava nem mesmo sendo enganada — era aquela mulher desconhecida. E quando então me recompus e perguntei o que Hans queria se tornar e ele disse que queria se tornar como você, a quem já pertencia integralmente, em que consistia, naquela hora, a grande diferença entre ele, o bom menino, de quem ali se abusava, e eu, como o fui outrora no balcão de bebidas? — Tudo o que você diz — afirmou K., já restaurado da descompostura à medida que ia se acostumando — é correto num certo sentido, não é falso, apenas hostil. São pensamentos da dona do albergue, minha inimiga, mesmo que você pense que são seus, e isso me consola. Mas eles são instrutivos, pode-se ainda aprender muita coisa com a dona do albergue. Ela não o disse na minha cara, embora de resto não houvesse me poupado; é evidente que confiou a você essa arma na esperança de que iria usá-la numa hora particularmente difícil ou decisiva; se é verdade que abuso de você, então ela também o faz de forma semelhante. Mas agora pense no seguinte, Frieda: mesmo que tudo fosse exatamente como afirma a dona do albergue, só seria muito ruim num caso, ou seja, se você não gosta de mim. Então sim, a realidade seria que a conquistei com cálculo e malícia, para lucrar com essa posse. Talvez até já fizesse parte do meu plano que, naquela época, para atrair sua compaixão, eu aparecesse diante de você de braços dados com Olga, e foi apenas isso que a dona do albergue se esqueceu de incluir no meu débito. Mas se as coisas não forem tão más assim e um predador ladino não a tivesse apanhado, mas ao contrário você tivesse vindo ao meu encontro como eu fui ao seu e tivéssemos nos encontrado ambos esquecidos de si mesmos, como é que seria, diga, Frieda? Significa sem dúvida que defendo minha causa tanto quanto a sua, aqui não há distinção, e só uma inimiga, a dona do albergue, pode traçar uma. Isso vale para tudo, até em relação a Hans. Ao julgar minha conversa com Hans, aliás, você exagera muito na sua ternura, pois se as intenções de Hans e as minhas não batem uma com a outra, isso não chega ao ponto de que possa por acaso existir uma oposição entre elas; além do mais nosso desacordo não escapou à percepção de Hans; se você pensou isso, então subestimou muito esse cauteloso jovenzinho e, mesmo que tudo houvesse escapado a ele, ninguém vai sofrer por essa causa, espero. — É tão difícil se situar, K. — disse Frieda com um suspiro. — Eu certamente não tive nenhuma desconfiança de você e se algo desse sentimento passou da dona do albergue para mim, ficarei feliz em rejeitá-lo e pedir-lhe perdão de joelhos, como de fato faço o tempo todo, por piores que sejam as coisas que digo a você. Continua sendo verdade, porém, que você esconde de mim muita coisa; vem e vai não sei de onde e para onde. Quando Hans bateu à porta aquela vez, você chegou a chamar o nome de Barnabás. Se ao menos uma vez tivesse me chamado em tom tão afetuoso como então pronunciou, por um motivo incompreensível para mim, esse nome odiado! Se você não tem confiança em mim, como, pois, não deve surgir em mim a desconfiança? Fico portanto totalmente entregue à dona do albergue, a quem o seu comportamento parece dar razão. Não em tudo — não quero dizer que você concorda com ela em tudo o que ela diz; de qualquer modo não foi por minha causa que expulsou os ajudantes? Ah, se soubesse com que ânsia busco em tudo o que faz e fala, mesmo que me torture, um fundo bom para mim! — Frieda, acima de tudo — disse K. — não escondo absolutamente nada de você. Como a dona do albergue me odeia e como se empenha em retirá-la de mim e que métodos desprezíveis ela usa para tanto, e você cede, Frieda, como você cede! Diga: em que escondo alguma coisa de você? Que eu quero chegar até Klamm você sabe, sabe também que nisso não pode me ajudar e que eu, por conseqüência, preciso conseguir por conta própria e vê que até agora não tive êxito. Devo então, recontando as tentativas inúteis que na realidade já me humilham amplamente, me humilhar em dobro? Devo por acaso me gabar por ter esperado inutilmente, morto de frio, na porta do trenó de Klamm uma noite inteira? Contente por não ter mais de pensar nessas coisas, corro até você e agora tudo é atirado outra vez contra mim por você, de maneira ameaçadora? E Barnabás? Certamente espero por ele. Ele é o mensageiro de Klamm, não fui eu quem o transformou nisso. — Outra vez Barnabás — bradou Frieda. — Não posso acreditar que ele seja um bom mensageiro. — Talvez você tenha razão — disse K. — Mas é o único mensageiro que me foi enviado.
— Tanto pior — disse Frieda. — Tanto mais você deve se proteger dele. — Infelizmente até agora ele não me deu motivo para isso — disse K. sorrindo. — Vem raras vezes e o que traz é sem importância; é só o fato de que procede diretamente de Klamm que lhe dá valor. — Mas veja — disse Frieda —, Klamm já não é mais seu objetivo, talvez seja isso o que mais me inquieta; já era ruim que você sempre quisesse chegar até Klamm passando por mim; mas é muito pior que agora pareça recuar de Klamm; é algo que nem mesmo a dona do albergue previu. Segundo ela, minha felicidade, uma felicidade tão duvidosa e no entanto tão real, terminou no dia em que você finalmente percebeu que sua esperança de alcançar Klamm era inútil. Mas agora que não espera mais nem esse dia, aparece de repente um jovem e você começa a lutar com ele pela mãe, como se estivesse lutando pelo ar que respira. — Você entendeu direito minha conversa com Hans — disse K. — Foi realmente assim. Mas nesse caso toda a sua vida anterior está tão mergulhada no esquecimento (com exceção naturalmente da dona do albergue, que não pode ser jogada fora junto) que você não sabe mais como é preciso lutar para ir em frente, principalmente quando se vem de tão baixo. De que maneira tem que ser utilizado tudo que oferece alguma forma de esperança? E essa mulher vem do castelo, ela mesma o disse a mim, quando no primeiro dia acabei indo parar na casa de Lasemann. O que é mais natural do que pedir-lhe conselho ou até ajuda? Se a dona do albergue conhece com precisão todos os obstáculos que mantêm Klamm a distância, então essa mulher provavelmente conhece o caminho, pois ela mesma voltou por ele. — O caminho para Klamm? — perguntou Frieda. — Para Klamm, é claro; para onde mais? — disse ele. K. então levantou-se de um salto: — Está em cima da hora para ir buscar o almoço. Com uma urgência muito maior que a ocasião exigia, Frieda pediu que ele ficasse, como se apenas a sua permanência confirmasse as palavras de consolo que dissera a ela. K. porém lembrava a ela a respeito do professor, apontava para a porta, que a qualquer momento podia ser escancarada com o ruído de um trovão, prometeu também voltar logo, ela não precisava nem mesmo acender o aquecedor, ele cuidaria pessoalmente disso. Finalmente Frieda se submeteu em silêncio. Enquanto lá fora K. andava com dificuldade na neve — o caminho deveria ter sido limpo fazia muito tempo, era estranho como o trabalho progredia devagar —, ele viu junto à grade um dos ajudantes agarrado às barras, exaurido. Só um deles, onde estava o outro? Será que K. havia quebrado a resistência de pelo menos um? O que havia permanecido certamente mantinha o fervor, isso era visível porque ele, reavivado com a visão de K., começou a estender de novo os braços e revirar os olhos suplicantes. — Sua persistência é exemplar — disse K. consigo mesmo e teve no entanto de acrescentar: — a tal ponto que vai congelar na grade. Mas objetivamente tudo o que fez pelo ajudante não foi senão uma ameaça com o punho, que excluía qualquer aproximação; na verdade o ajudante recuou, com medo, um trecho considerável. Nesse momento Frieda abriu uma janela para arejar o aposento antes de aquecê-lo, conforme havia combinado com K. Imediatamente o ajudante deixou K. sozinho e se esgueirou, atraído de modo irresistível, para a janela. O rosto contraído de bondade para com o ajudante e um apelo de impotência em direção a K., ela balançou um pouco a mão em cima da janela, não era nítido se se tratava de um gesto de rejeição ou de saudação, e o ajudante não deixou de se aproximar. Então Frieda fechou rápido a janela externa, mas ficou por trás dela, a mão no trinco, com a cabeça inclinada de lado, os olhos abertos e um sorriso rígido. Será que ela sabia que com isso atraía mais o ajudante do que o afugentava? Mas K. não olhou mais para trás, queria se apressar o mais possível e voltar em breve.
FINALMENTE — JÁ ESTAVA ESCURO, fim de tarde — K. havia limpado o caminho do jardim, empilhado a neve dos dois lados e a socado solidamente, com o que o trabalho do dia chegava ao fim. Permaneceu em pé junto ao portão do jardim, não havia ninguém em parte alguma. Já tinha despachado o ajudante fazia horas, expulsando-o para muito longe, mas este havia se escondido em algum lugar entre os pequenos canteiros e cabanas, não podia mais ser encontrado e a partir desse momento não apareceu de novo. Frieda estava em casa, lavando a roupa ou continuando a lavar o gato de Gisa; tinha sido um sinal de grande confiança da parte de Gisa o fato de ter delegado a Frieda esse trabalho, que sem dúvida era pouco atraente e inadequado, incumbência que K. certamente não teria tolerado se não fosse muito aconselhável, após as diversas falhas no serviço, aproveitar toda oportunidade para ficar com crédito em relação a Gisa. Satisfeita, Gisa observara que K. havia trazido do sótão a banheira do bebê, como a água fora aquecida e finalmente o modo cuidadoso como o gato havia sido levantado até a banheira. Depois Gisa entregou o gato completamente aos cuidados de Frieda, pois Schwarzer, o conhecido de K. na primeira noite de sua chegada, o havia cumprimentado com uma mistura de timidez, explicável naquela noite, e incomensurável desprezo, como cabe a um servente de escola, e depois se dirigido com Gisa para a outra sala de aula. Os dois ainda permaneciam lá. Como tinham contado a K. no Albergue da Ponte, Schwarzer, apesar de ser filho de um castelão, fazia muito tempo vivia na aldeia por amor a Gisa; mediante suas ligações havia conseguido ser nomeado professor auxiliar da comunidade; exercia esse cargo de um modo tal que não perdia quase nenhuma aula de Gisa, sentado ou no banco escolar entre as crianças ou de preferência no estrado aos pés de Gisa. Não havia mais perturbação, as crianças já haviam se acostumado fazia muito tempo e isso talvez de uma maneira mais fácil do que Schwarzer, que não tinha nem afeição nem compreensão pelas crianças, mal falava com elas, só assumira de Gisa a aula de ginástica e no mais estava satisfeito por ficar nas proximidades de Gisa e de viver no ar e no calor dela. Seu grande prazer era ficar sentado ao lado de Gisa e corrigir com ela os cadernos escolares. Ainda hoje estavam ocupados com isso, Schwarzer havia trazido uma grande pilha de cadernos, o professor deu a eles também os seus e enquanto ainda estava claro K. tinha visto os dois trabalhando junto a uma mesinha perto da janela, cabeças encostadas, imóveis; mas agora se podia enxergar lá apenas duas velas tremeluzindo. Era um amor sério, taciturno, o que os unia; o tom era dado por Gisa, cujo temperamento pesado às vezes se tornava selvagem e rompia todas as fronteiras, mas que não toleraria nunca coisa semelhante em outros, numa outra ocasião; conseqüentemente até o vivaz Schwarzer tinha de se submeter, andar devagar, falar devagar, silenciar muito, mas por tudo isso se via que era regiamente recompensado pela presença simples e tranqüila de Gisa. No entanto ela talvez não o amasse absolutamente; seja como for, seus olhos redondos, cinzentos, literalmente nunca piscavam; em vez disso as pupilas pareciam se revolver sem dar resposta a essas perguntas, só se notava que ela tolerava Schwarzer sem objeções, mas sabia com certeza não levar em conta a honra de ser amada pelo filho de um castelão e levava em frente seu corpo amplo e opulento do mesmo modo inalteravelmente calmo, não importando se os olhares de Schwarzer a seguiam ou não. Schwarzer, por seu lado, fazia-lhe o sacrifício constante de permanecer na aldeia; os mensageiros do pai, que com freqüência vinham buscá-lo, ele os despachava com tanta indignação como se a breve lembrança causada por eles já fosse uma recordação do castelo e dos seus deveres filiais — uma perturbação sensível e irreparável da sua felicidade. Entretanto, tinha, na realidade, bastante tempo livre, pois Gisa só se mostrava a ele, em geral, durante as horas de aula e da correção dos cadernos; sem dúvida não se tratava de cálculo, e sim porque ela amava o conforto e por isso, acima de tudo, a solidão; provavelmente o mais feliz para ela era quando podia se esticar no canapé em casa, com plena liberdade, tendo ao lado o gato, que não perturbava porque quase não era mais capaz de se mover. Sendo assim, Schwarzer ia de um lado para o outro durante uma grande parte do dia sem fazer nada, mas isso o agradava, pois sempre dispunha da possibilidade — que também aproveitava com freqüência — de ir à rua do Leão, onde Gisa morava, subir até o seu quartinho de sótão, escutar junto à porta invariavelmente fechada e depois na verdade ir embora de novo, após ter notado no aposento, sem exceção, o mais completo e incompreensível silêncio. Mesmo no seu caso, contudo, se manifestavam às vezes as conseqüências desse modo de vida, nunca porém na presença de Gisa, que tomavam a forma de ridículas explosões em momentos de renovada arrogância oficial, que obviamente se ajustava suficientemente mal à sua posição atual; com efeito, na maioria das vezes as coisas não iam muito bem, como a experiência pessoal de K. comprovava. Espantoso era apenas o fato de que, ao menos no Albergue da Ponte, se falasse com um certo respeito de Schwarzer, mesmo quando se tratava de coisas mais ridículas do que estimáveis, e nesse aspecto Gisa estava incluída. No entanto não era correto que, como auxiliar de ensino, Schwarzer acreditasse que era imensamente superior a K.; essa superioridade não existia, um servente é uma pessoa importante para o corpo docente, sobretudo para um professor como Schwarzer, uma pessoa muito importante que não pode ser destratada impunemente; esse desrespeito, na medida em que se torna inevitável pelos interesses da hierarquia, tem de ser tolerável pelo menos com a contrapartida correspondente. K. queria conservar isso em mente naquela ocasião; Schwarzer também estava em débito com ele desde a primeira noite e não havia diminuído pelo fato de os dias subseqüentes terem em verdade justificado a recepção de Schwarzer. Pois nesse caso não devia ser esquecido que a recepção talvez houvesse estabelecido o curso daquilo que se seguiu. Através de Schwarzer, de modo inteiramente irracional, a atenção plena das autoridades tinha se voltado, logo na primeira hora, para K., quando ele, ainda inteiramente desconhecido na aldeia, sem relações, sem abrigo, exausto com a caminhada na neve, desamparado por completo, estava ali deitado no saco de palha, exposto a qualquer ação oficial. Apenas uma noite mais tarde e tudo teria ocorrido de maneira diferente, com calma, quase em segredo. Seja como for, ninguém teria sabido de nada a seu respeito, nenhuma suspeita teria sido levantada, no mínimo ninguém teria hesitado em deixar um viandante sozinho por um dia, teria visto sua utilidade e confiabilidade, as pessoas haveriam de comentar na vizinhança, provavelmente K. teria encontrado logo, como mão-de-obra, um alojamento em alguma parte. Naturalmente ele não teria escapado à administração. Mas havia uma diferença fundamental se, no meio da noite, a repartição central, ou quem quer que pudesse estar ao telefone, fosse abruptamente despertada por sua causa, se houvesse a exigência de uma decisão imediata — com aparente humildade, mas também com uma implacabilidade enfadonha —, e acima de tudo por Schwarzer, com certeza malquisto lá em cima; ou se, em vez de tudo isso, K. batesse à porta do prefeito no dia seguinte em horário de expediente e, segundo convinha, se apresentasse como caminhante estrangeiro, que já tinha um lugar para dormir na casa de um determinado membro da comunidade, devendo provavelmente retomar a viagem no dia seguinte, exceto na eventualidade altamente improvável de que encontrasse trabalho ali, obviamente por alguns dias, pois se fosse por mais tempo ele não poderia ficar de modo algum. Isso ou algo semelhante teria acontecido sem Schwarzer. A autoridade teria também continuado a se ocupar do seu caso, mas com tranqüilidade, conforme os trâmites oficiais, sem ser perturbada pela impaciência do interessado, o que lhe era particularmente detestável. Pois bem, K. era inocente de tudo isso, a culpa era de Schwarzer, mas Schwarzer era filho de um castelão e exteriormente havia se comportado corretamente, por essa razão portanto K. era obrigado a pagar. E o ridículo motivo de tudo? Talvez um humor inclemente de Gisa naquele dia em virtude do qual Schwarzer perambulou de um lado para outro, insone, naquela noite, para em seguida se desforrar da sua dor em K. Sem dúvida também se poderia dizer, por outro lado, que K. devia muito a esse comportamento de Schwarzer. Só por meio dele tinha sido possível, pelo menos um pouco, aquilo que K. nunca alcançou sozinho, nem teria ousado fazê-lo, o que também, por outro lado, a autoridade dificilmente teria admitido, ou seja, que ele desde o início a havia encarado sem rodeio, com fraqueza e olho no olho, na medida, evidentemente, em que isso era possível. Porém foi um péssimo presente que, na verdade, poupou a K. muita mentira e subterfúgio, mas também o tornou quase sem defesa; de qualquer maneira o prejudicou na luta e poderia, em relação a isso, desesperá-lo, caso não estivesse em condições de dizer que a diferença de forças entre a autoridade e ele era tão monstruosa que toda mentira e esperteza de que teria sido capaz não poderia atenuar essencialmente a diferença em seu favor, e sim precisaria permanecer relativamente imperceptível. Isso entretanto era apenas um pensamento com o qual K. consolava a si mesmo, Schwarzer continuava apesar disso sendo devedor seu; se naquela ocasião ele havia prejudicado K., talvez pudesse ajudá-lo da próxima vez; K. teria continuado a necessitar de ajuda no nível mais elementar em todas as condições prévias; até Barnabás, por exemplo, parecia estar outra vez falhando. Por causa de Frieda, K. havia hesitado o dia todo para ir à casa de Barnabás perguntar por notícias; para não ter de recebê-lo diante de Frieda, K. estivera trabalhando fora e depois do trabalho ainda havia permanecido ali, à espera de Barnabás, mas Barnabás não veio. Não restava outra coisa, então, a não ser ir atrás das irmãs, apenas por um momento; queria fazer as perguntas já na soleira da porta, voltaria em breve. E assim fincou a pá na neve e correu. Chegou à casa de Barnabás sem fôlego; depois de bater brevemente à porta, escancarou-a e, sem prestar atenção no que se passava na sala, perguntou: — Barnabás ainda não chegou? Só agora percebia que Olga não estava lá, os dois velhos sentavam-se como antes à mesa distante, numa espécie de torpor e sem clara consciência do que tinha acontecido na porta; foi só lentamente que voltaram os rostos para lá e que finalmente Amália, sob cobertas no banco junto ao aquecedor, levantou o corpo no primeiro susto com a aparição de K. e pôs a mão na testa para se recompor. Se Olga estivesse ali, teria respondido logo e K. teria podido ir embora, por isso teve ao menos de dar uns passos até Amália, estender-lhe a mão, que ela apertou em silêncio, e pedir-lhe que evitasse que os velhos, assustados, caminhassem para algum lugar, o que ela fez com algumas palavras. K. ficou sabendo que Olga estava no pátio cortando lenha e que Amália, exausta — não disse o motivo —, precisara deitar-se fazia pouco tempo; Barnabás de fato ainda não havia chegado, mas deveria aparecer em breve, pois nunca passava a noite no castelo. K. agradeceu pela informação, podia ir embora, mas Amália perguntou se ele não queria ainda esperar Olga, mas infelizmente ele não tinha mais tempo; depois Amália perguntou se K. havia conversado naquele dia com Olga, ele negou espantado e perguntou se Olga queria lhe comunicar algo especial. Amália franziu a boca como se estivesse levemente irritada, fez um aceno silencioso de cabeça para K., era claramente uma despedida, e deitou-se outra vez. Da sua posição de descanso mediu-o com os olhos, como se estivesse admirada pelo fato de ele ainda estar ali. Seu olhar era frio, claro, imóvel como sempre, não estava exatamente dirigido sobre aquilo que observava, mas passava um pouco ao largo do objeto, de uma maneira quase imperceptível, mas indubitável — o que era incômodo; não parecia ser fraqueza, embaraço ou desonestidade que o causava, mas uma exigência contínua, superior a qualquer outro sentimento, de ficar sozinha, o que talvez viesse à consciência dela mesma só dessa maneira. K. julgou se lembrar de que esse olhar já o havia ocupado na primeira noite: provavelmente toda a má impressão que essa família logo lhe causou remontava àquele olhar, que em si mesmo não era feio, mas altivo e honesto na sua impenetrabilidade. — Você está sempre tão triste, Amália — disse K. — Alguma coisa a atormenta? Não pode dizer? Ainda não vi uma moça do campo como você. Só hoje, só agora é que na verdade isso me ocorreu. Você é aqui da aldeia? Nasceu aqui? Amália fez sinal que sim, como se K. só tivesse feito a última pergunta, depois disse: — Você vai então esperar Olga? — Não sei por que você sempre me pergunta a mesma coisa — disse K. — Não posso ficar mais tempo porque minha noiva me espera em casa. Amália apoiou-se nos cotovelos, não sabia de nenhuma noiva. K. disse o nome, Amália não a conhecia. Perguntou se Olga sabia do noivado, K. acreditava que sim, Olga o havia visto com Frieda, além do que notícias como essa se espalhavam rápido pela aldeia. Mas Amália lhe garantiu que Olga não sabia e que isso iria fazê-la muito infeliz, pois ela parecia amar K. Ela não havia falado abertamente sobre o assunto, pois era muito discreta; o amor porém se traía sem querer. K. estava convencido de que Amália estava enganada. Amália sorriu e, apesar de triste, o sorriso iluminou o rosto sombrio e fechado, fez falar o que silenciava, tornou familiar o que era estranho: era a entrega de um segredo, de uma posse até então bem guardada, que na verdade podia ser tomada outra vez de volta, mas nunca por completo. Amália disse que certamente não se enganava, sabia com efeito de mais coisas ainda — sabia que K. também tinha uma inclinação por Olga e que as visitas dele, sob o pretexto de alguma mensagem de Barnabás, na realidade eram dirigidas a Olga. Agora que Amália sabia de tudo, ele não precisava mais ser tão severo e podia vir com freqüência. Era isso o que ela queria dizer a ele. K. sacudiu a cabeça e lembrou-lhe do seu noivado. Amália parecia não desperdiçar muitos pensamentos com esse noivado; a presença imediata de K. ali, sozinho diante dela, é que era decisiva, ela perguntou apenas quando K. havia conhecido aquela moça; ele estava fazia poucos dias na aldeia. K. narrou a noite na Hospedaria dos Senhores, ao que Amália replicou laconicamente que ela fora muito contrária a que o levassem à hospedaria. Ela invocou como testemunha disso Olga, que acabava de entrar com uma braçada de lenha, fresca, com o rosto picado pelo ar frio, viva e vigorosa, como que metamorfoseada pelo trabalho, em comparação com sua inércia anterior, tão pesada, ali no quarto. Atirou a madeira no chão, saudou K. com desembaraço e logo perguntou por Frieda. K. trocou um olhar de conivência com Amália, mas esta não dava a impressão de se considerar desmentida. Um pouco excitado com aquilo, K. contou, com mais detalhes do que o faria em outras circunstâncias, a respeito de Frieda, descreveu com que dificuldades ela de algum modo conduzia uma vida doméstica na escola e, na pressa de contar — queria ir logo para casa —, esqueceu-se de tal maneira que, na forma de uma despedida, convidou as duas irmãs a visitá-lo. Nesse ponto entretanto assustou-se e ficou bloqueado, enquanto Amália imediatamente declarou aceitar o convite, sem o deixar com tempo para pronunciar uma palavra; foi então que Olga precisou também fazê-lo e o fez. K., porém, pressionado sem parar pelo pensamento de necessidade de uma rápida despedida e se sentindo inquieto sob o olhar de Amália, não hesitou em admitir sem disfarce que o convite havia saído sem a menor reflexão e somente a partir do seu sentimento pessoal, que ele no entanto não podia sustentá-lo, uma vez que existia uma grande hostilidade entre Frieda e a família Barnabás, que aliás lhe era totalmente incompreensível. — Não é hostilidade — disse Amália, levantando-se do banco e atirando para trás o cobertor. — Não é grande coisa, simplesmente reproduz a opinião geral. Mas agora vá, vá para a sua noiva, eu vejo com que pressa está. Não tema também que nós iremos, eu o disse logo de início apenas brincando, de malvadeza. Mas você pode vir à nossa casa com freqüência, não há impedimento para isso; pode sempre usar o pretexto das mensagens de Barnabás. Eu facilito as coisas para você dizendo que ele, mesmo quando traz uma mensagem do castelo, não pode ir outra vez à escola, para se apresentar. Não pode ficar correndo tanto de um lado para outro, o pobre rapaz; ele se consome no ofício, você terá que vir pessoalmente para pegar as notícias que lhe são dirigidas. K. ainda não tinha ouvido Amália falar tanto daquele assunto, soava diferente da sua fala habitual, havia nela uma espécie de majestade que não só K. sentia, mas, com toda evidência, Olga também, sua irmã já acostumada com ela; estava em pé um pouco à parte, as mãos cruzadas no colo, outra vez na sua postura habitual, as pernas separadas, um pouco curvada, os olhos dirigidos para Amália, enquanto esta fitava K. — É um equívoco — disse K. —, um grande equívoco você julgar que minha espera por Barnabás não é séria; pôr em ordem meus assuntos com a autoridade é meu desejo mais alto, na verdade, meu único desejo. E Barnabás deve me ajudar nisso, muita esperança minha depende dele. Na realidade já me decepcionou muito uma vez, mas foi mais por culpa minha do que por culpa dele, aconteceu na confusão das primeiras horas, na época eu acreditava alcançar tudo com um passeio à noite, e o fato de que o impossível se mostrara impossível eu imputei a ele. Influenciou mesmo meu julgamento sobre sua família, sobre vocês. Mas isso já passou, eu creio conhecê-las agora melhor do que antes, vocês são até — K. procurou a palavra certa, não a encontrou logo e contentou-se com uma que ia passando —, vocês são talvez mais bondosas do que qualquer um entre os habitantes da aldeia, na medida em que os conheço até agora. Mas você, Amália, me confunde de novo, uma vez que rebaixa, se não o ofício de seu irmão, pelo menos o sentido que ele tem para mim. Talvez não esteja iniciada nos assuntos de Barnabás; então está bem e vou deixar as coisas ficarem como estão, mas talvez você seja iniciada — é essa, antes de qualquer outra, a impressão que tenho —, aí então é ruim, pois isso significaria que seu irmão me engana. — Não se preocupe — disse Amália. — Não sou iniciada, nada poderia me incitar a deixar que eu fosse iniciada, nada, nem mesmo a consideração por você, por quem eu com certeza teria feito muita coisa, pois, como diz, somos pessoas bondosas. Mas os assuntos do meu irmão são dele, não sei nada a esse respeito a não ser o que ouço por acaso, aqui e ali, contra a minha vontade. Olga, ao contrário, pode lhe dar uma informação completa, pois ela é confidente de Barnabás. E Amália foi embora, primeiro em direção aos pais, com os quais cochichou, depois para a cozinha; tinha saído sem se despedir de K., como se soubesse que ele permaneceria ainda por muito tempo e não fosse necessária nenhuma despedida.
K. FICOU ALI, o rosto um pouco espantado, Olga riu dele, puxou-o para o banco do aquecedor, parecia realmente feliz com o fato de que agora podia permanecer sozinha, ao lado dele, mas era uma felicidade pacífica, com certeza não turvada pelo ciúme. E exatamente essa distância do ciúme e portanto de qualquer austeridade fazia bem a K., ele olhava com prazer naqueles olhos azuis, não sedutores, não imperativos, mas que pousavam tímidos, olhos que sustentavam timidamente o seu olhar. Era como se as advertências de Frieda e da dona do albergue o tivessem tornado não mais receptivo, porém mais atento e mais alerta. E ele riu com Olga, quando esta se admirou por K. ter chamado justamente Amália de bondosa, pois Amália era muitas coisas, mas não propriamente bondosa. Ao que K. declarou que o elogio cabia naturalmente a ela, Olga, mas que Amália era tão dominadora que não só se apropriava de tudo o que era dito na sua presença, como também espontaneamente se atribuía tudo a ela. — É verdade — disse Olga, ficando mais séria —, mais verdade do que julga. Amália é mais jovem que eu, mais jovem também do que Barnabás, mas é ela que, na família, decide tanto no bem como no mal e obviamente carrega também, mais que todos, tanto o bem como o mal. K. considerou isso um exagero, tinha acabado de dizer a Amália que ela não se preocupava com os assuntos do irmão, por exemplo, e Olga, pelo contrário, sabia de tudo a esse respeito. — Como posso explicar? — perguntou Olga. — Amália não se preocupa nem com Barnabás nem comigo, não se importa com ninguém a não ser os pais, cuida deles dia e noite, agora mesmo perguntou outra vez o que desejavam e foi para a cozinha cozinhar para eles; por causa deles fez o esforço de se levantar, pois está mal desde meio-dia e deitada aqui no banco. Mas apesar de não se preocupar conosco, somos dependentes dela, como se ela fosse a mais velha de todos, e, se fosse dar conselhos em nossos assuntos, nós certamente os seguiríamos, mas Amália não o faz, somos estranhos a ela. Você tem muita experiência em relação às pessoas, vem do estrangeiro, ela não lhe parece especialmente inteligente? — É especialmente infeliz que ela me parece — disse K. — Mas como conciliar, por exemplo, o respeito de vocês por ela com o fato de Barnabás realizar esse serviço de mensageiro, que Amália desaprova, talvez até despreze?
— Se ele soubesse fazer outra coisa que não isso, abandonaria imediatamente o serviço de mensageiro, que não o agrada em absoluto. — Ele não é sapateiro de profissão? — perguntou K. — Sem dúvida — disse Olga. — Trabalha além disso para Brunswick e, se o quisesse, trabalharia noite e dia e ganharia muito. — Muito bem — disse K. — Teria então uma alternativa para o ofício de mensageiro. — Para o ofício de mensageiro? — perguntou Olga, espantada. — Ele o assumiu então por causa do dinheiro? — Pode ser que sim — disse K. — Você mencionou que o serviço não o satisfaz. — Não o satisfaz por diversos motivos — disse Olga. — Mas é um ofício do castelo, seja como for uma espécie de ofício do castelo, pelo menos é nisso que se devia acreditar. — Como? — disse K. — Até nisso vocês estão em dúvida? — Bem — disse Olga. — Na realidade, não; Barnabás entra nas repartições, trata com os servidores como seus iguais, vê da distância, também, alguns funcionários, recebe cartas relativamente importantes, confiam-lhe até mensagens a serem transmitidas oralmente, é muita coisa e poderíamos estar orgulhosos com o fato de já ter alcançado tanta coisa ainda tão jovem. K. acenou com a cabeça, agora não pensava mais em voltar para casa. — Ele tem uma libré própria? — perguntou. — Você se refere à jaqueta? — disse-lhe Olga. — Não, essa foi Amália quem fez para ele, ainda antes que ele fosse mensageiro. Mas você se aproxima do ponto doloroso. Faz muito tempo que ele devia receber, não uma libré, que não existe no castelo, mas um uniforme da repartição; isso lhe foi assegurado, mas nesse aspecto as pessoas são muito lentas no castelo, e o pior é que nunca se sabe o que significa essa lentidão; pode significar que a coisa está em andamento, mas pode também significar que o trâmite oficial ainda nem começou, que, por exemplo, querem primeiro pôr Barnabás à prova; pode significar também, afinal, que o trâmite já terminou, que por algum motivo a garantia foi retirada e que Barnabás nunca vai receber o uniforme. Mais detalhes a esse respeito não é possível saber, ou então só depois de muito tempo. Temos aqui um provérbio que talvez você conheça: “Decisões administrativas são tímidas como as jovens”. — É uma boa observação — disse K., que o levara mais a sério que Olga. — Uma boa observação, e as decisões podem ter ainda outras propriedades em comum com as jovens. — Talvez — disse Olga. — Certamente não sei como você o entende. Talvez você o entenda como um elogio. Mas no que diz respeito ao uniforme oficial, é essa justamente uma das preocupações de Barnabás e, uma vez que temos preocupações em comum, ela é minha também. Por que ele não recebe um uniforme oficial é uma pergunta que faremos inutilmente. Mas toda essa questão não é simples. Os funcionários, por exemplo, parecem não ter absolutamente nenhum uniforme oficial; até o ponto que sabemos aqui e pelo tanto que Barnabás conta, os funcionários circulam com roupas comuns, apesar de belas. Aliás, você já viu Klamm. Ora, naturalmente Barnabás não é um funcionário, nem um funcionário da categoria mais baixa, nem ele se atreve a querer sê-lo. Mas mesmo servidores de nível superior, que aqui na aldeia com certeza não se consegue em absoluto ver, não têm uniformes oficiais, segundo o relato de Barnabás; seria possível pensar de antemão que isso é um certo consolo, mas é um engano, pois Barnabás é um servidor de nível superior? Não, mesmo que se esteja muito inclinado a favor dele, não se pode dizer isso, ele não é um servidor de nível superior; já o fato de vir à aldeia, até de morar aqui, é uma prova em contrário, os servidores de nível superior são mais reservados do que os funcionários, talvez com razão estejam situados mais alto até do que certos funcionários; algumas coisas parecem indicá-lo, eles trabalham menos e, segundo Barnabás, deve ser uma visão maravilhosa enxergar esses homens fortes, grandes, seletos, caminharem lentamente pelos corredores; Barnabás sempre se esgueira junto a eles. Em suma, está fora de discussão que Barnabás é um servidor de nível superior. Poderia pois ser um dos serviçais subalternos, mas precisamente estes têm uniformes oficiais, pelo menos quando descem à aldeia, não é uma libré propriamente dita, existem também muitas variedades, mas de qualquer forma o servidor do castelo é reconhecido imediatamente pelas roupas, você já viu essa gente na Hospedaria dos Senhores. O que mais chama a atenção nas roupas é que elas, na maioria das vezes, são justas, não conviriam a um camponês ou artesão. Muito bem: esse tipo de roupa Barnabás não tem, isso não é apenas vergonhoso ou desonroso, seria possível suportá-lo, mas — principalmente em horas de tristeza e algumas vezes, não muito raramente, nós as temos, Barnabás e eu — faz duvidar de tudo. Afinal, é um serviço do castelo o que Barnabás faz?, perguntamo-nos então; certamente ele entra nas repartições, mas será que as repartições são o castelo propriamente dito? E mesmo que as repartições pertençam ao castelo, é nelas que Barnabás tem permissão para entrar? Ele vai às repartições, mas é apenas uma parte de todas elas, depois existem barreiras e atrás delas há ainda outras repartições. Não o proíbem de continuar andando pura e simplesmente, mas ele não pode prosseguir se já encontrou seus superiores, que despacharam com ele e o mandaram embora. Além disso, lá a pessoa é sempre observada, ao menos é o que se acredita. E mesmo que ele continuasse a caminhar, no que isso ajudaria, se lá ele não tem um trabalho administrativo e não passa de um intruso? Você não pode imaginar, também, essas barreiras como uma fronteira definida, Barnabás costuma sempre me chamar a atenção sobre isso. Existem barreiras também nas repartições onde ele entra, existem portanto até barreiras pelas quais passa e elas não parecem diferentes daquelas que ele ainda não ultrapassou e por essa razão não se deve assumir previamente que atrás dessas últimas barreiras se encontrem repartições essencialmente distintas daquelas nas quais Barnabás já esteve. Não se acredita nisso senão naquelas horas de tristeza. E assim persiste a dúvida, não é possível se defender. Barnabás conversa com funcionários, recebe mensagens. Mas que funcionários, que mensagens são essas? Agora, como diz, está à disposição de Klamm e recebe os encargos diretamente da parte dele. Ora, isso já seria muito, mesmo servidores de nível mais alto não conseguem ir tão longe; seria quase demais, e o angustiante está justamente aí. Pense só: estar à disposição imediata de Klamm, falar com ele em pessoa! Mas será que é de fato assim? Bem, é assim, mas por que então Barnabás duvida de que o funcionário que lá é designado como Klamm seja realmente Klamm? — Olga — disse K. —, você não está querendo fazer brincadeiras: como pode existir dúvida sobre a aparência física de Klamm? Sua aparência é conhecida, eu mesmo o vi. — Certamente não, K. — disse Olga. — Não são brincadeiras, mas minhas mais sérias preocupações. Portanto não o conto para aliviar meu coração e fazer o seu ficar pesado, mas porque você perguntou por Barnabás, porque Amália me deu a incumbência de contar e porque também julgo que é útil que saiba de coisas mais detalhadas. É também por Barnabás que eu o faço, a fim de que não deposite nele esperanças muito grandes, que ele não o decepcione e depois sofra pessoalmente com a sua decepção. Ele é muito sensível; hoje à noite, por exemplo, não dormiu porque ontem ao anoitecer você se mostrou insatisfeito com ele; parece que disse a ele que é muito ruim para você o fato de ter “apenas um mensageiro” como Barnabás. Essas palavras lhe tiraram o sono, mesmo você não terá notado muito a comoção dele, os mensageiros do castelo precisam se controlar muito. Mas não é fácil para ele, mesmo que seja com você. Sem dúvida, no seu modo de ser, você não exige muito dele, trouxe consigo certas noções sobre o ofício de um mensageiro e é por elas que mede suas exigências. Mas no castelo as pessoas têm outras noções sobre o ofício do mensageiro, elas não coincidem com as suas, mesmo que Barnabás se sacrificasse totalmente, para o que, por infelicidade, ele às vezes parece inclinado. É preciso se submeter, não se pode dizer nada contra, nem que fosse apenas a pergunta se é realmente serviço de mensageiro o que ele faz. Diante de você, naturalmente, Barnabás não tem permissão para expressar nenhuma dúvida a esse respeito, significaria minar sua própria existência se o fizesse, ferir grosseiramente leis sob as quais julga estar submetido; inclusive diante de mim ele não fala livremente, tenho de acariciá-lo, beijá-lo, para desembaraçá-lo de suas dúvidas e ainda assim evitar admitir que as dúvidas são de fato dúvidas. Ele tem algo de Amália no sangue. E com certeza não me diz tudo, embora eu seja sua única confidente. Mas conversamos às vezes sobre Klamm; nunca o vi, sabe, Frieda gosta pouco de mim e jamais me concedeu permissão para vê-lo; naturalmente, porém, seu aspecto físico é bem conhecido na aldeia, alguns o viram, todos ouviram falar dele e dessa aparência, desses rumores e também de segundas intenções, várias e falsas, se formou uma imagem de Klamm que certamente nos traços básicos deve ser verdadeira. Mas só nesses traços essenciais. De resto ela é mutável como a aparência real de Klamm e talvez nem mesmo tão mutável. Ele deve ter uma aparência completamente diferente quando vem à aldeia, outra quando a deixa, outra ainda antes de ter bebido cerveja, outra depois, outra acordado, outra dormindo, outra sozinho, outra durante uma conversa e, o que é compreensível, quase inteiramente outra lá em cima no castelo. Já no interior da aldeia há diferenças razoavelmente grandes, que são relatadas, diferenças de altura, de postura, de gordura, de barba; apenas em relação à roupa os relatos felizmente são os mesmos; ele veste sempre a mesma roupa, um casaco negro de abas longas. Naturalmente todas essas diferenças não se devem a nenhuma mágica, mas são muito compreensíveis, surgem do estado de ânimo do momento, do grau de excitação, das gradações inumeráveis de esperança ou desespero em que se encontra o espectador, que além disso só pode ver Klamm por instantes; conto tudo isso do modo como Barnabás esclareceu muitas vezes, e no geral, quando não está imediatamente envolvida na coisa, a pessoa pode se tranqüilizar. Nós não somos capazes disso, para Barnabás é uma questão vital se realmente está falando ou não com Klamm. — Para mim não fica por menos — disse K., e os dois se aproximaram mais no banco do aquecedor. Na realidade K. sentia-se atingido pelas notícias desfavoráveis de Olga, mas via em grande parte uma vantagem no fato de que ali havia pessoas, às quais, pelo menos exteriormente, as coisas eram as mesmas que para ele próprio, às quais portanto poderia aderir, com as quais ele podia se entender em muitos aspectos, não apenas em alguns como com Frieda. Perdeu, em verdade, aos poucos, a esperança de êxito na mensagem de Barnabás, mas quanto pior iam as coisas para Barnabás lá em cima, tanto mais próximo ficava dele aqui embaixo; K. nunca havia pensado que da aldeia podia emergir um desejo de tal modo infeliz como o de Barnabás e de suas irmãs. Certamente isso estava longe de ser esclarecido o suficiente e afinal podia ainda voltar-se para o seu contrário, era necessário não se deixar seduzir logo pelo modo de ser sem dúvida inocente de Olga e acreditar na sinceridade de Barnabás. — Os relatos sobre a aparência física de Klamm — continuou Olga — Barnabás conhece muito bem, reuniu e comparou muita coisa, talvez demais; viu certa vez Klamm na aldeia através da janela de uma viatura, ou acreditou ver; estava portanto suficientemente preparado para reconhecê-lo e — como é que você explica isso a si mesmo? —, quando chegou a uma repartição do castelo e lhe mostraram um entre vários funcionários, dizendo que aquele era Klamm, não o reconheceu e durante muito tempo depois não foi capaz de se habituar ao fato de que devia ser Klamm. Mas se perguntar a Barnabás no que aquele homem se distingue da noção usual que se tem de Klamm, ele não pode responder, talvez responda e descreva o funcionário no castelo, mas essa descrição não bate exatamente com a de Klamm, tal como o conhecemos. “Então, Barnabás”, digo eu, “por que duvida, por que se atormenta?” Ao que ele, então, num embaraço visível, começa a enumerar as peculiaridades do funcionário no castelo, que parece mais inventar que relatar, mas que além disso são tão insignificantes — referem-se, por exemplo, a um aceno especial da cabeça ou apenas ao colete desabotoado — que é impossível levá-las a sério. Mais importante é o modo como Klamm se comporta com Barnabás. Ele o descreveu para mim com freqüência, até desenhou. Comumente Barnabás é levado a uma grande sala da repartição, mas não é a de Klamm, não é nem mesmo o escritório de um funcionário só. Essa sala está dividida em duas por uma escrivaninha que vai de uma parede lateral a outra; o espaço dos funcionários é estreito, onde duas pessoas só podem passar uma pela outra se espremendo, e um espaço amplo, que é o das partes, dos espectadores, dos servidores, dos mensageiros. Sobre a escrivaninha estão abertos livros grandes, um ao lado do outro, e ao lado da maioria deles há funcionários em pé, que os lêem. Mas eles não permanecem no mesmo livro, embora não troquem de livros, mas de lugares; para Barnabás o mais espantoso é como eles, nessa troca de lugares, precisam prensar uns aos outros ao passar, por causa justamente da estreiteza do espaço. Bem diante da escrivaninha se encontram mesinhas baixas, onde estão sentados escrivães que, se os funcionários querem, escrevem os ditados que lhes são apresentados. A maneira como isso acontece sempre espanta Barnabás. Não ocorre nenhuma ordem explícita do funcionário, nem o ditado é feito em voz alta, quase não se nota que está sendo ditado, ao contrário, o funcionário parece ler como antes, só que nesse lance ele ainda sussurra e o escrivão ouve. Muitas vezes o funcionário dita tão baixo que o escrivão, sentado, não consegue ouvir, aí ele precisa se levantar de um salto para captar o que é ditado, sentar-se rapidamente e escrever, depois saltar outra vez e assim por diante. Como é curioso! É quase incompreensível. Sem dúvida Barnabás tem tempo suficiente para observar tudo, pois na sala de espera ele fica sentado horas e às vezes o dia inteiro antes que o olhar de Klamm incida sobre ele. E mesmo quando Klamm já o viu e Barnabás se endireitou em posição de prestar atenção, nada ainda se decidiu, pois Klamm pode voltar-se outra vez dele para o livro e esquecê-lo, e isso acontece com freqüência. Mas que serviço de mensageiro é este, tão sem importância? Fico triste quando Barnabás diz de manhã cedo que vai ao castelo. Essa caminhada provavelmente inútil por completo, esse dia provavelmente perdido, essa esperança provavelmente em vão. O que quer dizer tudo isso? E aqui na aldeia se acumula o serviço de sapateiro, que ninguém faz e para cuja execução Brunswick exerce pressão. — Muito bem — disse K. —, Barnabás tem de esperar muito tempo antes de receber uma tarefa. Isso é compreensível, parece haver aqui uma abundância de pessoal, nem todos podem receber todo dia uma incumbência, disso vocês não precisam se queixar, pois atinge todos. Mas afinal Barnabás com certeza recebe mensagens, a mim mesmo ele já trouxe duas cartas. — É possível — disse Olga — que não tenhamos o direito de nos queixar, especialmente eu, que sei tudo por ouvir dizer e por ser moça também não sou capaz de entender tão bem como Barnabás, que aliás guarda consigo muita coisa ainda. Mas ouça bem, agora, o que se passa com essas cartas, com as cartas para você, por exemplo. Elas não são recebidas diretamente de Klamm, mas do escrivão. Num dia qualquer, numa hora qualquer — por isso é que também o serviço, que parece tão fácil, fica tão cansativo, pois Barnabás precisa prestar atenção sem parar — o escrivão se lembra dele e faz-lhe um aceno. Klamm parece não ter absolutamente motivado isso, fica lendo calmamente seu livro; só às vezes, é verdade, mas ele o faz; de resto, com assiduidade, está a ponto de limpar o seu pincenê quando Barnabás chega e talvez o veja nesse momento, supondo-se que vê alguma coisa sem pincenê; Barnabás duvida, Klamm está na ocasião com os olhos quase fechados, parece dormir e limpar o pincenê apenas em sonho. Nesse meio-tempo o escrivão busca entre os muitos dossiês e cartas que conserva sob a mesa e puxa uma carta para você; não é portanto uma carta que acabou de escrever. É antes — pelo aspecto do envelope — uma carta muito antiga, que já está ali faz muito tempo. Mas se é uma carta velha, por que fizeram Barnabás esperar tanto tempo? E você também, certamente? E afinal a carta também, pois agora ela já está sem dúvida envelhecida. Com isso Barnabás fica com a inquietação de ser um mensageiro mau e demorado. O escrivão, entretanto, facilita as coisas para si, entrega a carta a Barnabás e diz: “De Klamm para K.” e assim Barnabás é despachado. Vez por outra Barnabás chega em casa sem fôlego, a carta tanto tempo aguardada sob a camisa, no corpo nu, e nos sentamos aqui no banco como agora e ele conta o que houve e investigamos então tudo separadamente e avaliamos o que foi alcançado e finalmente descobrimos que é muito pouco e que esse pouco é duvidoso, e Barnabás põe a carta de lado e também não tem vontade de entregá-la, também não tem nenhuma vontade de ir dormir, pega o trabalho de sapateiro e permanece sentado no banquinho a noite toda. Assim é, K., e são esses os meus segredos; agora você não se admira mais, com certeza, que Amália tenha renunciado a eles. — E a carta? — perguntou K. — A carta? — disse Olga. — Bem, depois de algum tempo, quando pressionei Barnabás bastante (é possível que passem dias e semanas nesse ínterim), ele a pega e vai entregá-la. Nessas coisas exteriores ele é muito dependente de mim. Eu, quando superei a primeira impressão do seu relato, posso me recompor, coisa de que ele, provavelmente porque sabe mais, não é capaz. Assim é que posso sempre dizer outra vez a ele: “O que você quer propriamente, Barnabás? Com que carreira, com que objetivo sonha? Quer talvez ir tão longe que precise nos abandonar, me abandonar por completo? É esse o seu objetivo? Não sou obrigada a crer nisso, uma vez que de resto seria incompreensível por que motivo está tão terrivelmente insatisfeito com o que já conseguiu. Olhe em torno para ver se alguém entre nossos vizinhos já chegou tão longe. Certamente a situação deles é diferente da nossa e não temos nenhuma razão para aspirar a algo mais, mas também, sem fazer comparações, é necessário constatar que para você tudo vai da melhor maneira possível. Existem obstáculos, pontos discutíveis, decepções, mas isso significa apenas aquilo que já sabíamos antes, que nada será dado de presente a você, que pelo contrário terá de lutar por qualquer ninharia, motivo a mais para ser altivo e não abatido. E você não combate por nós, então? Isso não significa nada, não lhe dá nenhuma força nova? E o fato de eu ser feliz e quase arrogante por ter um irmão assim não lhe dá segurança? Em verdade, não no que alcançou no castelo, mas naquilo que consegui com você, fico decepcionada. Você pode entrar no castelo, é um visitante constante das repartições, passa dias inteiros no mesmo espaço que Klamm, é mensageiro publicamente reconhecido, tem direito a um uniforme oficial, recebe cartas importantes para levar — tudo isso você é, pode tudo isso e desce para a aldeia; em vez de chorarmos de felicidade nos braços um do outro, ao me ver parece abandonar toda a coragem, duvida de tudo, só os trabalhos de sapateiro o atraem, e a carta, essa caução do nosso futuro, você põe de lado?”. Assim falo com ele e, depois que o repeti o dia inteiro, ele apanha suspirando a carta e parte. Mas provavelmente não se trata do efeito das minhas palavras e sim do impulso de ir outra vez ao castelo e, sem ter executado a tarefa, ele não ousaria ir para lá. — Mas você tem razão em tudo o que diz a ele — disse K. — Resumiu tudo direito de uma forma admirável. Como é capaz de pensar claro de maneira espantosa! — Não — disse Olga. — Isso o engana e talvez seja assim também que eu o engane. O que, pois, ele conseguiu? Pode entrar numa repartição, mas não parece nem mesmo uma repartição, antes uma ante-sala das repartições, talvez nem mesmo isso, talvez um quarto, onde devem ser retidos todos aqueles que não podem entrar nas repartições reais. É com Klamm que ele fala, mas é Klamm? Não é antes alguém apenas parecido com Klamm? Talvez um secretário, no melhor dos casos, que é um pouco semelhante a Klamm e se empenha em parecer mais semelhante ainda e então se faz de importante à maneira sorridente e sonhadora de Klamm. Essa parte do seu ser é a mais fácil de imitar, vários o tentam, mas do resto eles sabiamente têm medo de fazer má figura. E um homem tão freqüentemente desejado e tão raramente alcançado, como Klamm é, assume na imaginação dos homens, facilmente, diversas configurações. Por exemplo, Klamm tem aqui um secretário de aldeia chamado Momus. Verdade? Você o conhece? Ele também se mantém muito reservado, mas de fato já o vi algumas vezes. Um senhor jovem e forte, não é? E provavelmente ele não é nada semelhante a Klamm. Apesar disso podem-se encontrar na aldeia pessoas que jurariam que Momus é Klamm e nenhum outro. Assim é que as pessoas laboram na própria confusão. E será que no castelo é diferente? Alguém disse a Barnabás que aquele funcionário é Klamm e efetivamente existe uma semelhança entre ambos, embora uma semelhança sempre posta em dúvida por Barnabás. E tudo fala a favor de sua dúvida. Klamm devia, ali num espaço coletivo, se espremer entre outros funcionários, com o lápis atrás da orelha? Isso é altamente improvável. Barnabás tem o hábito, um pouco infantil — mas aqui já se trata de uma disposição confiável —, de dizer às vezes: “O funcionário se parece muito com Klamm; se estivesse sentado, na sua própria repartição, à própria escrivaninha e tivesse seu nome na porta, eu não teria mais dúvida”. É infantil mas também razoável. Mais razoável, no entanto, seria se Barnabás, quando está lá em cima, se informasse logo, junto a várias pessoas, como são realmente as coisas; segundo suas informações, anda pela sala número suficiente de pessoas. E se suas informações não fossem muito mais confiáveis do que as daquele que, sem ser perguntado, lhe mostrou Klamm, teriam de resultar, no mínimo, dessa multiplicidade alguns pontos de apoio e de comparação. Essa idéia não é minha, mas de Barnabás; ele porém não ousa expô-la, de medo que possa, por qualquer infração involuntária de prescrições desconhecidas, perder seu posto, não ousa dirigir a palavra a ninguém; é inseguro assim que se sente; entretanto é essa insegurança propriamente lamentável que me esclarece seu posto mais nitidamente do que todas as descrições. Como tudo deve lhe parecer ameaçador e duvidoso lá em cima, se não ousa abrir a boca nem mesmo para uma pergunta inocente! Quando penso nisso, acuso-me de deixá-lo sozinho naqueles espaços desconhecidos, onde tudo se passa de tal forma que até ele, mais temerário que covarde, provavelmente treme de medo. — Creio que aqui você chegou ao ponto decisivo — disse K. — É isso. Depois de tudo o que contou, julgo agora ver claro. Barnabás é jovem demais para essa tarefa. Nada do que ele narra pode ser levado a sério, sem mais nem menos. Uma vez que lá em cima ele sucumbe de medo, não é capaz de observar aqui embaixo; no entanto, é obrigado a relatar: o resultado são contos de fada confusos. Não me admiro com isso. A reverência diante da autoridade é inata em vocês, continuará a ser incutida durante a vida toda das formas mais variadas e por todos os lados; até vocês ajudam nisso como podem. Mas no fundo não digo nada contra: se uma autoridade é boa, por que não se deveria ter respeito perante ela? Só que não se deve enviar um adolescente sem instrução como Barnabás — que não ultrapassou as fronteiras da aldeia — de repente ao castelo e depois querer exigir dele relatórios fidedignos e investigar cada uma de suas palavras como uma revelação e tornar a própria felicidade da vida dependente de uma interpretação. Nada pode ser mais falho. Certamente eu também, sem me diferenciar de você, me deixei iludir por ele e tanto depositei esperanças nele como sofri decepções por seu intermédio — ambas as coisas unicamente fundadas em suas palavras, ou seja, sobre quase nada. Olga silenciou. — Não vai ser fácil para mim — disse K. — confundi-la na confiança que tem no seu irmão, posso ver como o ama e o que espera dele. Mas isso tem de acontecer — e não menos por causa do seu amor e das suas expectativas. Pois repare que algo sempre a impede — não sei o que é — de reconhecer plenamente o que Barnabás não conseguiu, mas foi dado a ele de presente. Pode entrar nas repartições ou, se você quiser, numa ante-sala; é portanto uma ante-sala, mas há portas lá que fecham o caminho para a frente, barreiras que é preciso ultrapassar, quando se tem jeito para tanto. Para mim, por exemplo, essa ante-sala é, pelo menos no momento, completamente inacessível. Com quem Barnabás conversa ali eu não sei, talvez seja aquele escrivão o servidor mais subalterno, mas mesmo sendo o mais subalterno pode conduzir ao seguinte mais acima dele e, se não pode fazê-lo, pode no mínimo nomeá-lo; caso não possa nomeá-lo, pode sem dúvida indicar alguém capaz disso. O suposto Klamm pode não ter rigorosamente nada em comum com o verdadeiro, a semelhança talvez só exista para os olhos cegos de excitação de Barnabás; quem sabe seja o mais baixo dos funcionários, ou nem mesmo seja funcionário, mas tenha alguma tarefa naquela escrivaninha; lê algo no seu grande livro, sussurra alguma coisa para o escrivão, pensa alguma coisa quando seu olhar recai sobre Barnabás e mesmo que ele e seus atos não signifiquem absolutamente nada, o fato é que alguém o colocou lá e o fez com alguma intenção. Quero dizer, com tudo isso, que existe qualquer coisa, qualquer coisa que é oferecida a Barnabás, pelo menos qualquer coisa, e que é culpa apenas dele se não consegue nada senão dúvida, medo e desesperança. E sendo assim sempre parti do caso menos favorável, que chega a ser improvável. Pois temos com certeza as cartas na mão, nas quais em verdade não confio muito, embora bem mais do que nas palavras de Barnabás. Podem ser cartas antigas e sem valor, tiradas sem critério de um monte igualmente sem valor, com tão pouco discernimento como mostram os canarinhos nas feiras, quando colhem com o bico, do meio de um monte, o destino de uma pessoa — de qualquer pessoa; se for mesmo assim, então essas cartas têm alguma relação, mínima que seja, com o meu trabalho; visivelmente elas se destinam a mim, mesmo que não o sejam, talvez, em meu benefício; como testemunharam o prefeito e sua mulher, foram feitas de próprio punho por Klamm e, segundo ainda o prefeito, possuem apenas um significado particular e pouco transparente, mas apesar disso grande. — O prefeito disse isso? — perguntou Olga. — Sim — respondeu K. — Vou contar a Barnabás — disse rápido Olga. — Isso vai animá-lo muito. — Ele não precisa, porém, de ânimo — disse K. — Animá-lo significa dizer-lhe que ele está certo, que deve seguir em frente como até agora, mas que, mesmo desse modo, nunca vai conseguir nada; você pode animar alguém que tem os olhos vendados o máximo possível a olhar através da venda e ele nunca irá ver; só quando lhe tirarem a venda é que ele será capaz de enxergar. Barnabás precisa de ajuda, não de encorajamento. Pense por um momento: lá em cima está a autoridade na sua grandeza inextricável — acreditava ter dela representações aproximativas quando cheguei aqui, como era infantil tudo aquilo —; lá, portanto, está a autoridade e Barnabás vai ao seu encontro, ninguém mais, só ele, impiedosamente só; é honra suficiente para ele não ficar desaparecido a vida inteira, espremido num canto escuro das repartições. — Não acredito, K. — disse Olga —, que nós subestimamos o peso da tarefa que Barnabás assumiu. Respeito pela autoridade é coisa que não nos falta, você mesmo disse isso. — Mas é um respeito que vai pela via torta — disse K. — Respeito no lugar errado, que rebaixa seu objeto. Deve-se ainda chamar de respeito o fato de Barnabás usar mal o privilégio da entrada naquele espaço para passar lá o dia inteiro sem fazer nada? Ou quando desce para a aldeia e lança suspeitas e discrimina aqueles diante dos quais acaba de tremer? Ou quando, por desespero ou cansaço, não distribui logo as cartas e não entrega logo as mensagens que lhe foram confiadas? Isso já não é mais, com certeza, respeito. Mas a censura prossegue, dirige-se também a você, Olga; não posso poupá-la; apesar do respeito à autoridade que acredita ter, você o enviou para o castelo, ou pelo menos não reteve Barnabás, em toda a sua juventude, fraqueza e desamparo. — A censura que você está me fazendo — disse Olga — eu também faço a mim mesma desde sempre. No entanto não se pode censurar-me por ter enviado Barnabás ao castelo; não fui eu que o mandei, ele foi pessoalmente, embora eu devesse tê-lo retido, sem dúvida, por todos os meios, com persuasão, astúcia e força. Devia tê-lo retido, mas se hoje fosse aquele dia, aquele dia de decisão, e eu sentisse a penúria de Barnabás, a penúria de nossa família como antes e hoje, e se Barnabás, consciente de uma maneira clara de toda responsabilidade e perigo, sorrindo e suave se soltasse outra vez de mim, ainda hoje eu não o deteria, apesar de toda experiência adquirida nesse meio-tempo, e julgo que você não poderia fazer nada diferente no meu lugar. Não conhece nossa miséria, por isso é injusto conosco, mas principalmente com Barnabás. Tínhamos antes mais esperança do que hoje, mas nossa esperança, então, também não era grande. Grande era só nossa penúria e assim ela permaneceu. Frieda então não lhe contou nada sobre nós? — Só alusões — disse K. — Nada definido, mas já o seu nome a irrita. — E a dona do albergue também não contou nada? — Não, nada. — E ninguém mais, além deles? — Ninguém. — Naturalmente, como é que alguém poderia contar alguma coisa! Todo mundo sabe alguma coisa sobre nós, seja a verdade, na medida em que é acessível às pessoas, ou pelo menos algum boato, assumido ou na maioria das vezes inventado, e todo mundo pensa em nós mais do que é necessário; porém contá-lo francamente ninguém o faz, guardam-se de levar essas coisas aos lábios. E têm razão. É difícil proferi-lo, mesmo diante de você, K., e também não é possível, então, que você, logo que o escutou, vá embora e não queira mais saber de nós, por menos que isso pareça lhe dizer respeito. Aí nós o teremos perdido, a você que agora — eu o confesso — significa para mim quase mais do que o trabalho de Barnabás no castelo até este instante. E no entanto — essa contradição já me atormenta a noite toda — você precisa sabê-lo, pois de outro modo não chega a uma perspectiva sobre nossa situação, continuando a ser injusto com Barnabás, o que me doeria particularmente; o acordo necessário e completo nos faltaria e você não poderia nem nos ajudar nem aceitar a nossa ajuda, que é extra-oficial. Mas ainda resta uma pergunta: você quer realmente sabê-lo? — Por que pergunta isso? — disse K. — Se é necessário, quero saber, mas por que pergunta assim?
— Por superstição — disse Olga. — Você será arrastado para as nossas questões, inocente, não muito mais inocente do que Barnabás. — Conte depressa — disse K. — Não tenho medo. Você o torna pior do que é com seu temor de mulher.
— JULGUE POR SI MESMO — disse Olga. — Aliás, soa simples, não se entende logo como é que pode ter um grande significado. Existe um funcionário no castelo que se chama Sortini. — Já ouvi falar dele — disse K. — Participou da minha convocação. — Não acredito — disse Olga. — Sortini quase não aparece em público. Você não está confundindo com Sordini, escrito com “d”? — Você tem razão — disse K. — Era Sordini. — Sim — disse Olga. — Sordini é muito conhecido, um dos funcionários mais zelosos, sobre o qual muito se fala; Sortini, ao contrário, é muito retraído e hostil à maioria das pessoas. Faz mais de três anos que eu o vi pela primeira e última vez. Era no 3 de julho, numa festa da Associação dos Bombeiros; o castelo também havia participado e oferecido uma bomba hidráulica nova. Sortini, que ao que parece se ocupa também com questões de proteção contra incêndio, mas talvez só estivesse lá por delegação — na maioria dos casos os funcionários representam uns aos outros e por isso é difícil reconhecer a competência deste ou daquele —, participou na entrega da bomba hidráulica; naturalmente havia outros ainda que vieram do castelo, funcionários e servidores, e Sortini, como corresponde ao seu caráter, permaneceu totalmente em segundo plano. É um senhor pequeno, franzino e pensativo; algo que nele chama a atenção de todos os que de algum modo o observam é sua maneira de franzir a testa; todas as dobras — e havia uma porção delas, embora ele não tenha, com certeza, mais de quarenta anos — se estendiam em leque da fronte até a raiz do nariz, algo dessa natureza eu nunca vi. Bem, havia então aquela festa. Nós, Amália e eu, a esperávamos com alegria já fazia semanas, os vestidos de domingo estavam em parte renovados, principalmente o vestido de Amália era muito bonito, a blusa branca avançando em frente, estofada, uma fila de renda em cima da outra, a mãe tinha emprestado todas as rendas para aquela finalidade, eu estava então com inveja e antes da festa chorei a metade da noite. Só quando, pela manhã, a dona do Albergue da Ponte veio nos visitar... — A dona do Albergue da Ponte? — perguntou K. — Sim — disse Olga. — Ela era nossa amiga, veio portanto à nossa casa e teve de admitir que Amália estava em vantagem e por isso me emprestou, visando a me acalmar, seu próprio colar de granadas da Boêmia. Quando então estávamos prontas para sair, Amália ficou diante de mim, em pé, nós todos a estávamos admirando, e o pai disse: “Hoje, lembrem-se do que estou dizendo, Amália ganha um noivo”. Foi então que, não sei por quê, tirei o colar do pescoço, meu orgulho, e o coloquei em Amália, sem mais nem um pouco de inveja. Inclinei-me diante de sua vitória e achei que todo mundo devia fazer o mesmo: talvez o que nos surpreendesse, então, fosse a circunstância de que ela tinha uma aparência diferente da usual, pois não era propriamente bela; mas o olhar sombrio, que manteve assim a partir daquela ocasião, passava longe sobre nós e quase involuntariamente, mas, de fato, a gente se inclinava diante dela. Todos notaram isso, inclusive Lasemann e a mulher, que nos vieram buscar. — Lasemann? — perguntou K. — Sim, Lasemann — disse Olga. — Éramos muito considerados, e a festa não teria podido, por exemplo, nem começar sem nós, pois o pai era o terceiro chefe de exercício dos bombeiros. — Seu pai era tão robusto, então? — perguntou K. — O pai? — perguntou Olga, como se não entendesse inteiramente. — Há três anos ele ainda era de certo modo um jovem; durante um incêndio na Hospedaria dos Senhores, por exemplo, havia carregado, em passo de corrida, um funcionário pesado, Galater, nas costas. Eu própria estive lá, não havia em verdade perigo de incêndio; só que a madeira seca ao lado do aquecedor começou a soltar fumaça e Galater ficou com medo, pediu socorro pela janela e a brigada de incêndio veio; meu pai teve de transportá-lo para fora, embora o fogo já estivesse apagado. Ora, Galater é um homem que se movimenta com dificuldade e nesses casos é necessário ter cuidado. Só conto isso por causa do pai; mais de três anos se passaram desde então e veja agora como ele fica sentado ali! Só então K. viu que Amália já estava outra vez na sala, embora bem a distância, junto à mesa dos pais; dava de comer à mãe, que não podia mexer os braços reumáticos, e enquanto isso falava com o pai no sentido de que devia ter um pouco de paciência, logo chegaria a vez dele de ser alimentado. Mas ela não teve êxito em seus apelos, pois o pai, já muito ávido para tomar a sopa, superou a fraqueza física e tentou primeiro tomá-la com sua colher e logo depois bebê-la diretamente da tigela, resmungando bravo quando nenhuma das tentativas deu certo: a colher estava fazia tempo vazia antes de chegar à boca, e não eram nunca os seus lábios, mas o bigode pendente que mergulhava na sopa, pingando e espirrando para todos os lados, exceto dentro da boca. — Três anos fizeram isso dele? — perguntou K., mas ainda não sentia compaixão, só repulsa, pelos velhos e por todo aquele canto da mesa de família. — Três anos — disse Olga devagar. — Ou, mais exatamente, algumas horas de festa. A festa era num prado diante da aldeia, ao lado do riacho, já estava lá uma porção de pessoas quando nós chegamos, muita gente das aldeias vizinhas também tinha vindo, o barulho deixava tonto. Naturalmente fomos conduzidos pelo pai até a bomba hidráulica, ele riu de alegria quando a viu, uma nova bomba o fazia feliz, ele começou a apalpá-la e a nos explicar, não tolerava nenhuma contradição e nenhuma falta de entusiasmo dos outros, se havia alguma coisa a inspecionar debaixo da bomba tínhamos todos de abaixar e quase rastejar sob a máquina; Barnabás, que na ocasião se recusou, levou por isso uma surra. Só Amália não se importava com a bomba hidráulica, permanecia ereta no seu lindo vestido e ninguém ousava lhe dizer nada, eu corri algumas vezes até ela e a peguei pelo braço, mas ela ficou em silêncio. Ainda hoje não consigo explicar a mim mesma como foi que, enquanto estávamos diante da bomba hidráulica e quando o pai se desligou dela, nós notamos Sortini, que obviamente havia se inclinado o tempo todo atrás da máquina, ao lado de uma haste. O barulho, então, era sem dúvida medonho não só porque era uma festa como as outras: o castelo dera também de presente algumas trombetas, instrumentos especiais com os quais o menor dispêndio de energia — uma criança seria capaz disso — podia produzir os sons mais selvagens; quando se ouvia aquilo se julgava que os turcos já haviam invadido o lugar e não era possível se acostumar, pois a cada novo sopro as pessoas estremeciam. E uma vez que eram trombetas novas, todos queriam experimentar, e porque era uma festa do povo isso era permitido. Justamente à nossa volta — talvez elas tivessem atraído Amália — estavam algumas dessas trombetas; era difícil conservar os sentidos e se nós precisávamos, ainda por cima, segundo as ordens do pai, prestar atenção na brigada de incêndio, isso era o máximo que se podia fazer e, sendo assim, Sortini nos escapou — a quem aliás não havíamos até então conhecido — por um tempo incomumente longo. “Lá está Sortini”, cochichou Lasemann afinal ao pai; eu estava perto. O pai inclinouse profundamente e também nos deu, excitado, um sinal para nos inclinarmos. Sem conhecê-lo até então, o pai havia admirado desde muito tempo Sortini como especialista em questões de incêndio; muitas vezes, em casa, falava dele; por isso foi para nós uma grande surpresa e um fato significativo ver agora Sortini na realidade. Mas Sortini não se importava conosco, não que essa fosse uma peculiaridade dele, a maioria dos funcionários parecem apáticos em público; ele também estava cansado, só o dever de ofício o mantinha aqui embaixo, não são os piores funcionários aqueles que sentem exatamente essas obrigações de representação como tediosas em particular; outros funcionários e servidores se misturam com o povo, já que estiveram lá; mas Sortini permaneceu junto à bomba hidráulica e quem quer que tentasse se aproximar dele com algum pedido ou lisonja era repelido pelo seu silêncio. Sucedeu, assim, que ele nos notou depois que nós o fizemos. Só quando nos inclinamos respeitosamente e o pai procurou nos desculpar é que ele olhou em nossa direção; olhou de um a um, em seqüência, cansado, como se suspirasse por haver, ao lado de um, sempre um outro, até que então se deteve em Amália, para a qual teve de levantar os olhos, pois ela era muito maior do que ele. Nesse momento se espantou, saltou sobre a haste, para ficar mais perto de Amália, a princípio nos equivocamos e, chefiados pelo pai, quisemos nos aproximar dele, mas ele nos barrou com a mão erguida e depois fez um aceno para irmos embora. Isso foi tudo. Depois troçamos muito com Amália, porque ela então havia encontrado realmente um noivo; na nossa falta de discernimento passamos a tarde toda muito alegres, mas Amália estava mais silenciosa que nunca, “ela se apaixonou perdida e completamente por Sortini”, disse Brunswick, que é sempre um pouco grosseiro e não tem compreensão pela natureza de pessoas como Amália, mas daquela vez sua observação nos pareceu quase correta; passamos literalmente tontos o dia, e todos, exceto Amália, como que anestesiados pelo doce vinho do castelo, chegamos em casa depois de meianoite. — E Sortini? — perguntou K. — Sim, Sortini — disse Olga. — Vi Sortini várias vezes ainda durante a festa, de passagem; estava sentado sobre a haste, os braços cruzados no peito; assim permaneceu até que o carro do castelo chegou para pegá-lo. Não foi nem mesmo assistir aos exercícios da brigada de fogo, nos quais o pai, naquela ocasião, justamente esperando que Sortini presenciasse, se destacou entre todos os homens da sua idade. — E vocês não ouviram mais falar dele? — perguntou K. — Parece que você tem uma grande admiração por Sortini. — Sim, admiração — disse Olga. — Tenho, e também ainda ouvimos falar dele. No dia seguinte fomos acordados, por um grito de Amália, do nosso sono profundo de vinho; os outros caíram logo de novo na cama, mas eu estava totalmente desperta e corri até Amália; ela estava em pé junto à janela, segurando uma carta na mão que, fazia pouco, um homem lhe havia entregado pela janela; o homem ainda estava esperando uma resposta. Amália já tinha lido a carta — que era curta — e a segurava na mão que pendia mole; como eu a amava sempre que ela estava cansada assim! Ajoelhei-me ao lado dela e li a carta. Mal havia terminado, Amália a pegou, de novo, com um breve olhar para mim, mas não teve mais forças para a ler, rasgou-a, atirou os pedaços no rosto do homem lá fora e fechou a janela. Foi aquela a manhã decisiva. Eu a chamo decisiva, mas todos os momentos da tarde anterior foram igualmente decisivos. — E o que estava escrito na carta? — perguntou K. — Sim, ainda não contei isso — disse Olga. — A carta era de Sortini, endereçada à moça que usava o colar cor de granada. Não consigo reproduzir o conteúdo. Era uma intimação para procurá-lo na Hospedaria dos Senhores, e na verdade Amália devia ir imediatamente, pois Sortini tinha de partir em meia hora. A carta estava escrita com as expressões mais vulgares, que eu ainda nunca tinha ouvido, e só adivinhei o conteúdo pela metade, a partir do contexto. Quem não conhecia Amália e tivesse apenas lido aquela carta, a teria considerado uma moça desonrada, para a qual alguém ousara escrever naqueles termos, mesmo que ela não tivesse sido absolutamente tocada. E não era uma carta de amor, não havia ali nenhuma palavra de carinho; pelo contrário, Sortini estava obviamente furioso pelo fato de que a visão de Amália o houvesse capturado e desviado dos seus negócios. Concluímos mais tarde que Sortini queria, naquela tarde, provavelmente ir para o castelo e só havia permanecido na aldeia por causa de Amália; de manhã, cheio de raiva porque também à noite não conseguira esquecer Amália, havia escrito a carta. Diante dela era preciso primeiro ficar indignado — até a pessoa de maior sangue-frio o faria —, depois, porém, com alguém que não fosse Amália, provavelmente prevaleceria o medo diante do tom ameaçador; em Amália perdurou a indignação, ela não conhece o medo, nem para si mesma nem para os outros. E enquanto eu buscava outra vez refúgio na cama, debaixo dos cobertores, e repetia para mim o final interrompido da frase — “Venha logo, pois senão!...” —, Amália ficou no banco da janela, olhando para fora, como se ainda esperasse outros mensageiros e estivesse disposta a tratar qualquer um deles como havia tratado o primeiro. — São então assim os funcionários? — disse K. hesitante. — Encontram-se exemplares como esse entre eles. E seu pai, o que fez? Espero que tenha se queixado de Sortini energicamente, em lugar competente, se é que não preferiu o caminho mais curto e mais seguro para a Hospedaria dos Senhores. O mais feio em toda essa história não é a ofensa feita a Amália, que poderia ser facilmente retocada; não sei por que dá um peso excessivo justamente a ela. Por que Sortini devia ter comprometido Amália para sempre com essa carta? Segundo o que você conta seria possível acreditar que exatamente isso, no entanto, não seria cabível; seria fácil apresentar uma satisfação a Amália e em alguns dias o incidente estava esquecido; Sortini não comprometeu Amália, mas a si mesmo. É de Sortini portanto que recuo de medo, diante da possibilidade de que haja um abuso de poder dessa natureza. O que não deu certo nesse caso, porque foi dito em termos rasgados e plenamente transparentes, encontrando um adversário superior em Amália, pode, em mil outros casos, dar certo de uma vez só em circunstâncias um pouco mais desfavoráveis e escapam a qualquer olhar, mesmo ao olhar de quem foi objeto de abuso. — Quieto — disse Olga. — Amália está olhando para cá. Amália havia acabado de dar comida aos pais e agora estava a ponto de trocar a roupa da mãe; havia desatado a saia dela, os braços da mãe foram erguidos em volta do pescoço, Amália a levantou um pouco, fez a saia descer suavemente e depois a sentou com brandura de novo. O pai, sempre insatisfeito com o fato de a mãe ser atendida primeiro, o que porém evidentemente só acontecia porque a mãe era ainda mais desamparada que ele, tentava — talvez também para punir a filha pela suposta morosidade — tirar a roupa sozinho, mas embora começasse pelo menos necessário e mais fácil, os chinelos grandes demais, nos quais os pés flutuavam, não conseguia de modo algum retirá-los; teve de desistir logo com um estertor rouco e se inclinou outra vez rígido na sua cadeira. — Você não reconhece o que é decisivo — disse Olga. — Pode ter razão em tudo, mas o decisivo é que Amália não foi à Hospedaria dos Senhores; o modo como tratou o mensageiro ainda podia passar, seria possível disfarçá-lo; mas com o fato de não ter ido foi proferida a maldição sobre nossa família e sendo assim o tratamento ao mensageiro foi considerado imperdoável e até apresentado em primeiro plano ao público. — Como? — bradou K. e imediatamente abafou a voz, uma vez que Olga ergueu as mãos em súplica dizendo: — Você, a irmã, não disse por acaso que Amália deveria ter obedecido a Sortini e corrido à Hospedaria dos Senhores? — Não — disse Olga. — Que eu seja protegida de uma suspeita dessas! Como pode crer nisso? Não conheço ninguém que tenha estado tão solidamente certa como Amália, em tudo o que fez. Se tivesse ido à Hospedaria dos Senhores, certamente eu teria dado igualmente razão a ela; mas o fato de não ter ido foi heróico. No que me diz respeito, confesso a você abertamente, se tivesse recebido uma carta como aquela, teria ido. Não teria suportado o medo do futuro, só Amália não o tem. Existiam muitas saídas: uma outra moça, por exemplo, teria se enfeitado bastante, isso teria levado um tempo e depois iria à Hospedaria dos Senhores, onde ficaria sabendo que Sortini já tinha ido embora, talvez mesmo logo após o envio do mensageiro, algo que é até muito provável, pois os humores dos funcionários são instáveis. Mas Amália não fez isso nem nada semelhante, estava profundamente ofendida e respondeu sem reservas. Se ela de algum modo tivesse fingido obedecer, ultrapassado apenas a soleira da porta da Hospedaria dos Senhores em tempo, a desgraça teria sido desviada, temos aqui advogados muito espertos, capazes de fazer de um nada tudo o que se quer; mas neste caso não existia nem mesmo um nada favorável, pelo contrário: ainda persistia a desonra da carta de Sortini e o insulto ao mensageiro. — Mas o que quer dizer desgraça? — perguntou K. — E que advogado? Seria possível, por causa do comportamento criminoso de Sortini, acusar ou, pior ainda, punir Amália? — Sim — disse Olga. — Era possível, não certamente segundo um processo regular; e ela também não foi punida imediatamente, mas sem dúvida de outra maneira, ela e nossa família inteira, e como é pesada essa pena você agora começa com certeza a reconhecer. Parece-lhe injusta e monstruosa, mas na aldeia é uma opinião inteiramente isolada; ela está a nosso favor por completo e devia nos consolar, e assim seria se não derivasse visivelmente de erros. Posso prová-lo com facilidade e me perdoe se falo de Frieda neste contexto, mas entre Frieda e Klamm, independentemente de como isso afinal veio a tomar forma, ocorreu algo totalmente semelhante ao caso entre Amália e Sortini e no entanto, embora no início estivesse assustado, você considera isso certo, agora. E não se trata de hábito, não se pode ficar tão embotado pelo hábito, quando o caso é um simples julgamento; trata-se meramente de se desfazer de erros. — Não, Olga — disse K. — Não sei por que você está puxando Frieda para esta história; o caso foi inteiramente diverso, não misture coisas fundamentalmente diferentes e continue a contar. — Por favor — disse Olga —, não leve a mal se insisto na comparação, ainda é um resíduo de erros também em relação a Frieda quando você acredita ter de defendê-la contra uma comparação. Ela não precisa de modo algum ser defendida, só enaltecida. Se comparo os dois casos, não estou dizendo que sejam iguais, eles se comportam um em relação ao outro como a cor branca à cor negra, e a cor branca é Frieda. No pior dos casos se pode rir de Frieda, como fiz desconsideradamente no balcão de bebidas — mais tarde fiquei muito arrependida; mas até quem ri, aqui, já é maldoso ou invejoso, no entanto se pode rir; mas Amália, quando não se está ligado a ela pelo sangue, só se pode desprezar. É por isso que são dois casos fundamentalmente diversos, como diz você, mas apesar disso também semelhantes. — Também não são semelhantes — disse K. balançando irritado a cabeça. — Deixe Frieda de lado. Ela não recebeu nenhuma bela carta como a que Amália recebeu de Sortini, e Frieda realmente amou Klamm; quem duvida disso pode lhe perguntar, ela o ama até hoje. — Mas essas diferenças são tão grandes? — perguntou Olga. — Você não acredita que Klamm pudesse ter escrito da mesma maneira a Frieda? Quando os senhores se levantam da escrivaninha, são assim; não sabem como lidar com o mundo; depois, distraidamente, dizem o que há de mais grosseiro, não todos, mas muitos. A carta a Amália pode ter sido lançada ao papel sem reflexão, sem o menor cuidado pelo que havia sido escrito realmente. O que é que nós sabemos dos pensamentos dos senhores! Você mesmo não escutou ou ouviu dizer em que tom Klamm se dirigiu a Frieda? Sabe-se que Klamm é muito grosseiro, ao que parece não diz nada durante horas, e depois, de repente, fala uma grosseria de tal natureza que faz a pessoa estremecer. Sobre Sortini não se sabe disso, uma vez que, em geral, é muito desconhecido. No fundo, o que se sabe sobre ele é apenas que seu nome é parecido com o de Sordini; não fosse essa semelhança de nome, provavelmente não se conheceria nada a seu respeito. Provavelmente também o confundem com Sordini como especialista em combate ao fogo; mas o verdadeiro especialista é o segundo, que explora a semelhança de nome para descarregar sobre Sortini os deveres de representação e desse modo permanecer no trabalho sem ser perturbado. Agora, se um homem sem traquejo no mundo, como Sortini, é de repente arrrebatado pelo amor a uma jovem da aldeia, é natural que isso assuma outras formas pelas quais o aprendiz de marceneiro ao lado se apaixona. Além disso, é preciso pensar que entre um funcionário e a filha de um sapateiro existe uma grande distância, que tem, de alguma maneira, de ser transposta; Sortini tentou dessa forma, outro poderia fazê-lo de modo diferente. Na verdade consta que todos nós pertencemos ao castelo, que não existe distância e portanto nada para transpor; talvez de hábito seja assim, mas tivemos infelizmente a oportunidade de ver que não é o caso justamente quando o assunto é de interesse. Seja como for, depois de tudo, o comportamento de Sortini se tornou mais compreensível, menos monstruoso e de fato ele é muito mais inteligível comparado com o de Klamm, e mesmo quando não se está participando muito de perto, muito mais suportável. Quando Klamm escreve uma carta terna, ela é mais embaraçosa do que a carta mais grosseira de Sortini. Compreenda-me direito: não ouso julgar Klamm, apenas comparo, porque você se defende contra a comparação. Klamm é sem dúvida como um comandante sobre o exército de mulheres, ordena ora esta, ora aquela, para ir até ele; não tolera nenhuma demora e assim como ordena a vir, também ordena para ir embora. Ah, Klamm jamais faria o esforço de escrever uma carta! Ora, em comparação com isso é mais monstruoso ainda se Sortini, que vive completamente retirado e cujas relações com mulheres são no mínimo desconhecidas, senta-se um dia à escrivaninha e escreve, na sua bela letra de funcionário, uma carta certamente ignóbil. E se neste caso não resulta nenhuma diferença em favor de Klamm, mas o contrário disso, o amor de Frieda é a causa? A relação das mulheres com os funcionários, acrediteme, é muito difícil, ou antes, sempre muito fácil de julgar. Amor aqui nunca falta. Não existe amor infeliz de funcionário. Não é um elogio, nesse sentido, quando se diz de uma jovem — aqui não estou me referindo nem de longe a Frieda — que ela se entregou ao funcionário porque o amava. Ela o amava e se entregou a ele, foi isso o que aconteceu, mas não há nada a louvar neste caso. Amália, porém, não amava Sortini, é o que você pode objetar. Bem, ela não o amava, mas talvez o amasse, sim; quem pode responder? Nem mesmo ela. Como ela pode julgar tê-lo amado, se o repeliu de maneira tão vigorosa como provavelmente nunca antes um funcionário tinha sido repelido? Barnabás diz que ainda hoje às vezes treme diante do movimento com que Amália, faz três anos, bateu a janela. Isso também é verdade e por isso não se pode fazer-lhe perguntas; ela encerrou o assunto com Sortini e não sabe nada mais que isso; se o ama ou não, ela não sabe. Mas nós sabemos que as mulheres não podem senão amar funcionários quando estes se voltam para elas; na verdade amam o funcionário desde antes, por mais que queiram negá-lo, e Sortini não só se voltou para Amália, mas também saltou sobre a haste da bomba hidráulica quando viu Amália, saltou sobre a haste com as pernas enrijecidas pelo trabalho na escrivaninha. Esta, entretanto, é uma exceção, dirá você. Sim, ela o é, provou que sim, quando se recusou a ir até Sortini, e isso é uma exceção suficiente; mas que além disso não tivesse amado Sortini é quase exceção demais, isso já não daria mais para entender. Naquela tarde estávamos sem dúvida atacados de cegueira; o fato, no entanto, de termos então acreditado, através de toda aquela névoa, notar algo do apaixonamento de Amália, mostrava um pouco ainda de discernimento. Mas quando se junta tudo isso, o que sobra então para uma diferença entre Frieda e Amália? Unicamente que Frieda fez o que Amália recusou. — Pode ser — disse K. — Para mim, no entanto, a diferença principal é que Frieda é minha noiva e que no fundo Amália só me preocupa na medida em que é irmã de Barnabás, o mensageiro do castelo, e que o destino dela talvez esteja entrelaçado com o ofício de Barnabás. Se um funcionário tivesse cometido com ela uma injustiça clamorosa do tipo que a princípio me pareceu existir segundo o seu relato, isso teria me ocupado muito, mas mesmo assim bem mais como assunto oficial do que como sofrimento pessoal de Amália. Segundo o seu relato, entretanto, a imagem muda de uma maneira que não me é, em verdade, inteiramente inteligível, mas, uma vez que é você quem narra, ela é suficientemente digna de fé e por isso gostaria muito de pôr esse assunto todo de lado; não sou bombeiro, o que é que Sortini me importa? Mas Frieda me importa e por isso é estranho, para mim, que você, em quem confiei por completo e vou ficar feliz em continuar confiando sempre, procure continuamente atacar Frieda, por vias indiretas através de Amália e tente me tornar suspeito. Não suponho que faça isso deliberadamente, nem muito menos com má intenção, senão eu já teria ido embora há muito tempo; você não o faz com intenção — são as circunstâncias que a induzem a fazê-lo, por amor a Amália você quer elevá-la muito acima de todas as mulheres e, uma vez que não encontra na própria Amália, para esse objetivo, nada que seja suficientemente digno de louvor, acaba se apoiando no apequenamento de outras mulheres. O que Amália fez é notável, mas quanto mais você conta a esse respeito, tanto menos se pode decidir se um feito foi grande ou pequeno, inteligente ou estúpido, heróico ou covarde; Amália conserva trancados no peito os motivos que a moveram, ninguém irá arrancá-los dela. Frieda, pelo contrário, não fez absolutamente nada de notável, apenas seguiu seu coração; para todo aquele que trata do caso com boa vontade, é algo claro, qualquer um pode verificá-lo, aqui não há espaço para tagarelice. Mas eu não quero nem rebaixar Amália nem defender Frieda, mas só esclarecer a você como me comporto com Frieda e como todo ataque contra Frieda é ao mesmo tempo um ataque contra minha existência. Vim para cá por vontade própria e por vontade própria me estabeleci aqui, mas tudo o que desde então aconteceu, principalmente minhas perspectivas de futuro — por mais sombrias que possam ser, elas de qualquer modo existem —, tudo isso eu devo a Frieda, discussão alguma nesse sentido pode desmenti-lo. Fui de fato aceito como agrimensor, mas só na aparência, brincaram comigo, me expulsaram de todas as casas, ainda hoje brincam comigo, mas — e quão mais complicado é isso — de certo modo ganhei envergadura e algo assim já tem um sentido; por mínimo que seja, já tenho um lar, um posto e trabalho de verdade; tenho uma noiva que, quando preciso cuidar de outros afazeres, assume meu trabalho profissional, vou me casar com ela e me tornar membro da comunidade; além da relação administrativa com Klamm, tenho ainda outra, pessoal, da qual até agora com certeza não pude me aproveitar. Tudo isso é pouco? E quando vou à casa de vocês, a quem cumprimentam? A quem você confia a história da sua família? De quem espera a possibilidade, por mínima e improvável que ela seja, de alguma ajuda? Certamente não é de mim, o agrimensor, que, por exemplo, faz uma semana foi posto para fora de casa, com violência, por Lasemann e Brunswick; você espera ajuda do homem que já tem algum meio de poder; mas esse poder eu devo justamente a Frieda; Frieda, tão modesta que, se você tentar perguntar a ela alguma coisa do gênero, certamente vai responder que não sabe o mínimo a esse respeito. E no entanto parece, diante de tudo isso, que Frieda, na sua inocência, fez mais do que Amália em toda a sua altivez, pois, veja só, tenho a impressão de que você procura ajuda para Amália. E da parte de quem? Na verdade, de ninguém menos que Frieda. — Falei coisas tão feias sobre Frieda? — disse Olga. — Sem dúvida não o quis e acreditava também não o ter feito, mas é possível; nossa situação é tal que rompemos com todo mundo e começamos a acusar, é mais forte que nós, não sabemos em que direção. Você também tem razão, existe agora uma grande diferença entre nós e Frieda e é bom acentuá-lo pelo menos uma vez. Há três anos éramos filhas de boa família e Frieda, a órfã, criada do Albergue da Ponte; passávamos por ela sem um olhar, éramos certamente orgulhosas demais, mas assim fomos educadas. Naquela noite na Hospedaria dos Senhores, porém, você deve ter notado a atual situação: Frieda com o chicote na mão e eu no meio dos servos. Mas é pior ainda. Frieda pode nos desprezar, corresponde ao seu posto, são as relações efetivas que o forçam. Quem, no entanto, não nos despreza? Quem quer que decida nos desprezar encontra logo a maior companhia. Você conhece a sucessora de Frieda? Pepi é o nome dela. Só a conheci anteontem à noite, até então ela era camareira. Estou certa de que ela supera Frieda no ato de me desprezar. Ela viu da janela quando fui buscar cerveja, correu até a porta e trancou-a, tive de pedir durante muito tempo e prometer-lhe a fita que trago no cabelo para que ela abrisse para mim. Mas, quando lhe dei a fita, jogou-a num canto. Bem, ela pode me desprezar, em parte dependo de sua boa vontade, ela está no balcão de bebidas da Hospedaria dos Senhores, certamente só por algum tempo, e sem dúvida não tem as qualidades necessárias para ser uma empregada naquele lugar de forma duradoura. Basta ouvir como o gerente da hospedaria fala com Pepi e comparar com a maneira como fala com Frieda. Isso entretanto não impede Pepi de desprezar também Amália, cujo olhar, por si só, seria suficiente para fazer Pepi sumir logo do salão com todas as suas tranças e fitas, com uma presteza de que nunca seria capaz se dependesse apenas de suas próprias perninhas grossas. Que palavrório revoltante sobre Amália tive de ouvir ontem, outra vez, da parte dela, até que finalmente os clientes tomaram o meu partido, do modo, é claro, que você uma vez já viu. — Como você é medrosa — disse K. — Apenas coloquei Frieda no devido lugar, mas não quis rebaixar nenhum de vocês do jeito que você entendeu. Sua família tem alguma coisa especial para mim, isso não escondi; mas o modo como essa particularidade dá motivo para desprezo é uma coisa que não entendo. — Ah, K.! — disse Olga. — Temo que você também não irá entendê-lo; será que não consegue compreender de maneira alguma que o comportamento de Amália diante de Sortini foi o primeiro motivo desse desprezo? — Seria na verdade muito estranho — disse K. — Admirar ou condenar Amália por causa disso seria possível, mas desprezar? E se realmente desprezam Amália por um sentimento que me é incompreensível, por que se estende o desprezo sobre todos vocês, sobre a família inocente? Que Pepi, por exemplo, a despreze, é forte demais e, quando eu for de novo à Hospedaria dos Senhores, quero fazê-la pagar por isso. — Se você quisesse — disse Olga — mudar o modo de ver de todos os que nos desprezam, seria um árduo trabalho, pois tudo vem do castelo. Lembro-me ainda com precisão da tarde que se seguiu àquela manhã. Brunswick, que antes era nosso ajudante, chegara como todos os dias, o pai lhe havia dado trabalho e o mandado de volta para casa; nós estávamos sentados tomando o caféda-manhã, todos muito animados, com exceção de Amália; o pai falava sem parar da festa, tinha vários planos em relação ao corpo de bombeiros; no castelo, com efeito, uma equipe própria de bombeiros que enviara uma delegação à festa, com a qual muita coisa tinha sido discutida — os senhores do castelo presentes haviam visto as realizações da nossa brigada de fogo, se pronunciado muito favoravelmente sobre ela, comparando-a aos bombeiros do castelo com um resultado que se mostrou vantajoso para nós —, tinha falado sobre a necessidade de uma nova organização do corpo de bombeiros do castelo, para a qual eram necessários instrutores da aldeia, alguns na verdade foram levados em conta, mas o pai tinha com certeza esperança de que a escolha recairia sobre ele. Falou então sobre isso e como era seu costume, tão bonito, de realmente se espalhar quando estava à mesa, ficou lá sentado, abarcando com os braços metade do móvel; e toda vez que erguia os olhos, pela janela aberta, para o céu, seu rosto era tão jovem e esperançoso como nunca mais iria vê-lo. Foi aí que Amália, com uma superioridade que não conhecíamos nela, disse que ninguém devia pôr muita fé naqueles discursos dos senhores; nessas ocasiões eles costumavam dizer com gosto algo agradável, mas que isso significava pouco, mal havia sido dito já tinha sido esquecido para sempre, embora certamente as pessoas, na próxima oportunidade, estivessem sem dúvida outra vez na mão deles. A mãe a reprovou por falar assim, o pai apenas riu de sua precocidade e do seu ar de sabedoria, mas depois hesitou, parecendo buscar algo cuja falta só agora notava, mas em verdade não faltava nada e ele disse que Brunswick havia contado alguma coisa sobre um mensageiro e uma carta rasgada; perguntou se nós estávamos a par disso, quem estava envolvido e como ficara aquela história. Nós silenciamos, e Barnabás, que era então jovem como um cordeirinho, falou algo particularmente tolo ou atrevido, falou-se de outras coisas e o assunto caiu no esquecimento.
— MAS LOGO EM SEGUIDA — prosseguiu Olga — fomos bombardeados por todos os lados por causa da história da carta, vieram amigos e inimigos, conhecidos e desconhecidos, mas eles não ficaram muito tempo, os melhores amigos se despediam o mais rápido possível; Lasemann, habitualmente lento e digno, entrou como se quisesse apenas tomar as dimensões do cômodo, um olhar em volta e havia terminado, parecia uma horrível brincadeira de criança, como se Lasemann fugisse e o pai se livrasse das outras pessoas e corresse atrás dele até a soleira da porta e depois desistisse, Brunswick chegou e anunciou ao pai que queria se tornar autônomo — ele o disse com total honestidade —, uma cabeça esperta que sabia se aproveitar do momento, vieram clientes e procuraram no depósito do pai as botas que tinham deixado ali para remendar; a princípio o pai tentou mudar a opinião dos clientes, todos nós o apoiamos segundo as nossas forças, mais tarde o pai desistiu e meio em silêncio ajudou as pessoas nas buscas, no livro de encomendas, elas foram riscadas linha por linha, as reservas de couro que essa gente tinha conosco foram suspensas, as dívidas pagas, tudo correu sem o mínimo atrito; todo mundo estava satisfeito quando conseguiu cortar, rápida e completamente, a ligação conosco, podem ter ocorrido então perdas também, mas isso não foi levado em conta. E finalmente, o que aliás era de se prever, Seemann apareceu, o chefe do corpo de bombeiros, ainda vejo diante de mim a cena: Seemann grande e forte mas um pouco curvado e doente dos pulmões, sempre sério, é alguém que não sabe rir de modo algum, fica em pé diante de meu pai, que ele admirava, a quem, em momento de confiança, ofereceu a perspectiva de ocupar o posto de representante do chefe da brigada de fogo e agora deve apenas lhe comunicar que a associação o está demitindo e exige a devolução do diploma. As pessoas que estavam em volta de nós deixam no momento seus afazeres e se juntam em círculo ao redor dos dois homens. Seemann não pode falar nada. Dá tapinhas sem parar nos ombros do pai, como se desejasse que este fizesse saírem as palavras que ele próprio deve dizer e não encontra. Nesse meiotempo ri sem cessar, gesto com o qual quer com certeza acalmar um pouco a si mesmo e aos outros; mas uma vez que não sabe rir e nunca ninguém ainda o ouviu rir, não ocorre a nenhuma pessoa acreditar que se trata de um riso. Mas o pai já está desesperado e cansado desse dia para poder auxiliar Seemann; parece mesmo cansado até para pensar no assunto de que se trata. Todos nós estávamos igualmente desesperados, mas, uma vez que éramos jovens, não podíamos crer num colapso total dessa natureza; sempre pensamos que na seqüência dos visitantes finalmente viria alguém que ordenasse o basta! e forçasse tudo ao movimento de voltar atrás outra vez. Seemann parecia-nos, em nossa inconsciência, particularmente adequado a isso. Tensos esperamos que daquele riso contínuo afinal brotasse uma palavra clara. Do que se podia, pois, rir agora, senão da estúpida injustiça que recaía sobre nós? “Senhor chefe, senhor chefe, diga afinal às pessoas”, era o que pensávamos apinhando-nos em torno dele, o que no entanto o levava apenas a curiosos movimentos circulares. No fim, porém, ele começou, não a realizar nossos secretos desejos, mas a corresponder aos apelos estimulantes ou irritados das pessoas e se pôs a falar. Ainda continuávamos a ter esperança. Ele iniciou com um grande louvor ao pai. Chamou-o de ornamento da associação, um membro indispensável cuja demissão iria praticamente destruir a associação. Foi tudo muito bonito — se ele tivesse terminado ali. Mas continuou falando. Se apesar disso a associação decidira solicitar o desligamento do pai só provisoriamente, seria possível reconhecer a seriedade dos motivos que a forçaram a fazê-lo. Talvez, sem as realizações brilhantes do pai na festa do dia anterior, não se tivesse ido tão longe, mas esses feitos haviam atraído particularmente a atenção oficial; a associação estava então sob plena luz e precisava velar por sua pureza ainda mais do que antes. Ora, havia sucedido o insulto do mensageiro, por isso a associação não tinha encontrado nenhuma outra saída, e ele, Seemann, assumira o difícil dever de comunicá-lo. Esperava que o pai não lhe tornasse as coisas ainda mais difíceis. Como Seemann estava contente de ter conseguido isso, satisfeito por tê-lo feito assim, não foi nem mesmo mais considerado de forma exagerada: apontou para o diploma que pendia na parede e acenou com o dedo. O pai fez um sinal com a cabeça e foi buscá-lo, mas não pôde tirá-lo do gancho com as mãos trêmulas, tive de subir numa cadeira para ajudálo. E a partir desse momento tudo havia terminado, nem tirou o diploma da moldura, mas o deu a Seemann do jeito que estava. Depois sentou-se num canto, sem se mexer nem falar com mais ninguém, tivemos de tratar sozinhos com as pessoas o melhor que podíamos. — E onde você vê aqui a influência do castelo? — perguntou K. — Até esse momento parece não ter intervindo. O que você contou até agora foi apenas apreensão irrefletida das pessoas, prazer com o prejuízo do próximo, amizade não confiável, coisas que se podem encontrar em toda parte e até, por acaso, do lado do seu pai — pelo menos assim me parece —, uma certa puerilidade, pois o que era aquele diploma? Confirmação de suas habilidades e estas ele ainda mantinha; se o tornavam indispensável, tanto melhor; e a única maneira que ele teria para tornar as coisas realmente difíceis para o chefe seria atirar o diploma aos pés dele logo na segunda palavra. Particularmente significativo me parece, porém, que você não mencionou Amália; Amália, que era a culpada de tudo, provavelmente estava em pé, lá no fundo, e observava a devastação. — Não, não — disse Olga —, ninguém deve ser censurado, ninguém podia agir de outra maneira, foi tudo influência do castelo. — Influência do castelo — repetiu Amália que, sem ser notada, havia entrado, vinda do pátio: os pais estavam fazia muito tempo na cama. — Estão contando histórias do castelo? Vocês ainda estão sentados juntos? E você, K., não queria se despedir logo? E já são dez horas. Essas histórias o preocupam de alguma forma? Há pessoas aqui que se alimentam delas, sentam-se juntas, como vocês aqui, e regalam-se mutuamente; mas você não parece fazer parte dessas pessoas. — Faço sim — disse K. — É exatamente dessas pessoas que faço parte; em compensação, as que não se preocupam com essas histórias e só com outras não causam muita impressão sobre mim. — Bem — disse Amália. — O interesse das pessoas, no entanto, é muito diversificado, ouvi certa vez falarem de um jovem que ocupava os pensamentos dia e noite com o castelo, negligenciava tudo o mais, temiam pelo seu juízo porque sua mente toda estava lá em cima no castelo; mas finalmente se constatou que não se tratava propriamente do castelo, e sim da filha de uma mulher que lava as repartições; ele a conquistou então, e tudo voltou à ordem. — Esse homem me agradaria, acredito — disse K. — Duvido que o homem o agradaria — disse Amália. — Talvez a mulher dele o agradasse. Mas não se perturbem, vou indo dormir e tenho de apagar a luz por causa dos pais, eles adormecem logo mas uma hora depois o sono verdadeiro terminou e aí qualquer clarão de luz os incomoda. Boa noite. E realmente logo ficou tudo escuro, Amália arrumou em algum lugar no chão, perto da cama dos pais, o seu pouso. — Quem é esse jovem de quem ela falou? — perguntou K. — Não sei — disse Olga. — Talvez Brunswick, se bem que não combine completamente com ele; talvez seja um outro. Não é fácil entendê-la com precisão porque muitas vezes não se sabe se ela está sendo irônica ou séria, muitas vezes é sério, mas soa irônico. — Deixe de lado as interpretações! — disse K. — Como é que você chegou a essa dependência tão grande dela? Era assim já antes da grande infelicidade? Ou só depois? Nunca você teve vontade de se tornar independente dela? E essa dependência tem algum fundamento racional? Ela é a mais jovem e como tal tem de obedecer. Inocente ou não, ela trouxe a desgraça para a família. Em vez de, por causa disso, pedir todos os dias, a cada um de vocês, perdão de novo, ela anda de cabeça mais alta que todos, não se importa com nada, a não ser quase por clemência com os pais; não quer tomar conhecimento de nada, como diz, e se afinal fala com vocês então é a “maioria das vezes séria, mas isso soa irônico”. Ou domina talvez pela beleza, que você às vezes menciona. Ora, vocês três são muito parecidas, mas o que distingue Amália é totalmente desfavorável a ela; já quando a vi pela primeira vez, fiquei assustado com seu olhar embotado e sem afeto. E no entanto é a mais moça, mas não se percebe nada disso no seu exterior, ela tem a aparência sem idade das mulheres que praticamente não envelhecem, embora também nunca em verdade tenham sido jovens. Você a vê todos os dias, não observa em absoluto a dureza do seu rosto. Por isso, quando reflito, não posso levar muito a sério a inclinação de Sortini; talvez ele quisesse apenas puni-la com a carta, e não chamá-la. — Não quero falar sobre Sortini — disse Olga. — Da parte dos senhores do castelo tudo é possível, trate-se da jovem mais bela ou da mais feia. Mas de resto você se engana completamente em relação a Amália. Veja, não tenho motivo algum para ganhá-lo para Amália em especial e no entanto tento fazê-lo só por sua causa. De algum modo Amália foi a causa de nossa infelicidade, isso é certo, mas até o pai, que sem dúvida foi o mais duramente atingido pela desgraça e nunca pôde se conter muito com as palavras, sobretudo em casa, mesmo ele não disse, nos piores tempos, palavra alguma de censura. E não porque tivesse por acaso aprovado o procedimento de Amália; como é que ele, um admirador de Sortini, podia aprovar, nem de longe conseguia entender, teria certamente sacrificado com prazer a si próprio e a tudo o que possuía para Sortini, seja como for não como agora aconteceu de fato, sob a provável cólera dele. Uma cólera provável, pois não soubemos mais nada de Sortini; se até então tinha sido recatado, agora era como se não existisse mais. E você devia ter visto Amália naquela época. Todos nós sabíamos que não viria nenhuma punição explícita. Eles só se afastaram de nós. Tanto as pessoas aqui quanto o castelo. Mas enquanto se observava, naturalmente, o afastamento das pessoas, não se notava nada, em absoluto, da parte do castelo. Já havíamos reparado antes, também, a falta de solicitude do castelo, agora tínhamos de notar uma mudança de atitude. Esse silêncio foi o pior de tudo. De longe foi isso e não o afastamento das pessoas, elas não o tinham feito por nenhuma convicção, talvez não alimentassem absolutamente nada sério contra nós, o desprezo atual ainda não existia, eles haviam feito isso só de medo e agora esperavam como se passariam as coisas. Também não tínhamos ainda de temer nenhuma necessidade, todos os devedores haviam pago, os distratos tinham sido favoráveis, se nos faltavam alimentos os parentes nos ajudavam em segredo, era fácil, estávamos na época da colheita, de qualquer modo não tínhamos terras e em parte alguma nos deixavam trabalhar, pela primeira vez na vida estávamos quase condenados ao ócio. E assim ficávamos sentados juntos ao lado das janelas fechadas, no calor de julho e agosto. Não acontecia nada. Nenhuma convocação, nenhuma notícia, nenhuma visita, nada. — Bem — disse K. — Uma vez que não acontecia nada e não era de se esperar alguma punição explícita, do que vocês tinham medo? Que tipo de gente são vocês? — Como posso explicar a você? — disse Olga. — Não temíamos nada futuro, sofríamos já com o presente, estávamos em meio à punição. As pessoas na aldeia esperavam que fôssemos encontrá-los, que o pai abrisse outra vez sua oficina, que Amália — que sabia costurar belos vestidos, verdade que só para as pessoas mais distintas — viesse receber de novo encomendas; todas as pessoas sofriam pelo que haviam feito; quando na aldeia uma família acatada é de repente excluída, todo mundo enfrenta com isso alguma desvantagem; quando se desligaram de nós acreditaram que faziam apenas o seu dever: nós não teríamos agido de outra forma no seu lugar. Eles também não sabiam com exatidão do que se tratava; só que o mensageiro havia voltado à Hospedaria dos Senhores com a mão cheia de pedaços de papel; Frieda o tinha visto sair e depois voltar, trocara algumas palavras com ele e logo espalhara aquilo que soubera; mas outra vez não por hostilidade a nós, de modo algum, simplesmente por dever, como em caso similar teria sido o dever de outra pessoa. E, como já disse, para as pessoas teria sido uma solução feliz, a mais bem recebida do caso todo. Se de repente tivéssemos chegado com a notícia de que estava tudo em ordem, que, por exemplo, só tinha sido um mal-entendido, inteiramente esclarecido nesse ínterim, ou que de fato fora uma ofensa, mas que ela já estava reparada pela ação ou — até isso teria sido suficiente para as pessoas — que havíamos conseguido, através de nossas ligações com o castelo, liquidar o assunto — teríamos sido com certeza recebidos de volta de braços abertos, teria havido beijos, abraços, festas; já presenciei coisas assim algumas outras vezes. Mas nem mesmo uma notícia dessas teria sido necessária; se houvéssemos saído livres e nos oferecido, as relações antigas teriam se reatado, sem perder nem uma palavra sequer sobre a história da carta; isso teria bastado, com alegria todos teriam renunciado a discutir o caso; foi sem dúvida, ao lado do medo, principalmente o embaraço do assunto o motivo pelo qual se isolaram de nós, simplesmente para não ouvir nada sobre ele, não falar a seu respeito, não pensar nisso, de forma alguma precisar ser tocado por ele. Se Frieda deu vazão à coisa, não o fez para se alegrar com isso, mas para proteger a si mesma e a todos, para chamar a atenção da comunidade de que aqui acontecera algo do qual as pessoas tinham de se manter distantes da maneira mais cuidadosa. Não entramos aqui em consideração como família, mas tão-somente por causa da questão; foi só por causa de uma questão em que havíamos nos enredado. Assim, portanto, se tivéssemos apenas reemergido, deixado o passado em paz, mostrado pelo nosso comportamento que havíamos superado o caso, não importa de que maneira, e as pessoas tivessem chegado à convicção de que o assunto, sem considerar como ele poderia ter sido criado, não fosse mais objeto de discussão, tudo teria ficado bem, por toda parte teríamos encontrado a velha e boa cooperação; mesmo que não houvéssemos esquecido o caso por completo, as pessoas haveriam de entender e nos teriam ajudado a esquecer totalmente a questão. Em vez disso, porém, ficávamos em casa, sentados. Não sei o que esperávamos, suponho que a decisão de Amália; ela havia assumido então, já pela manhã, o comando da família e se aferrara a ele. Sem arranjos especiais, sem ordens, sem pedidos, quase só pelo silêncio. Certamente nós outros tínhamos muita coisa a discutir, era um sussurrar contínuo de manhã até a noite e às vezes o pai me chamava, em súbito estado de alarme, e eu passava a metade da noite ao lado da cama. Ou então ficávamos acocorados, eu e Barnabás, que entendia muito pouco de tudo o que acontecia e sem parar exigia febrilmente explicações, sempre as mesmas, sabia com certeza que os anos despreocupados, que outros de sua idade esperavam, para ele não existiam mais; por isso, K., permanecíamos sentados como nós dois agora, e esquecíamos que anoitecia e que a manhã ia chegar outra vez. A mãe era a mais frágil de todos nós, certamente porque não só sentia a dor comum, mas também a de cada um individualmente, e assim éramos capazes de perceber nela, com pavor, as mudanças que, conforme pressentíamos, aguardavam toda a família. Seu lugar preferido era o canto de um canapé, faz muito tempo que não o possuímos mais, ele está na grande sala de estar de Brunswick, lá ela costumava se sentar e — não se sabia exatamente por quê — cochilava ou, segundo pareciam sugerir seus lábios em movimento, mantinha longas conversas consigo mesma. Era tão natural falarmos continuamente da história da carta, de trás para diante sobre todos os pormenores certos e todas as possibilidades incertas, que sem cessar superávamos um ao outro na imaginação de meios para uma solução boa; era natural e inevitável, mas não era bom, pois com isso nos aprofundávamos cada vez mais naquilo que desejávamos evitar. E de que nos serviam essas idéias, apesar de excelentes? Nenhuma delas era realizável sem Amália, não era nada senão preparativos sem sentido, uma vez que seus resultados não chegavam nunca a Amália e, se a tivessem alcançado, não teriam encontrado outra coisa senão silêncio. Bem, felizmente eu hoje compreendo Amália melhor do que antes. Sua carga era maior do que a de todos nós, é incrível como ela a suportou e ainda vive entre nós. A mãe carregava talvez toda nossa dor, carregava-a porque esse sofrimento desabou sobre ela; não o fez por muito tempo; não é possível dizer que de algum modo a carregue ainda hoje; já na época seu espírito estava perturbado. Mas Amália suportou não só a dor, como também teve o discernimento para ver através dela; nós só víamos as conseqüências, ela via o fundo das coisas, esperávamos algum pequeno expediente, ela sabia que estava tudo decidido, nós tínhamos de murmurar, Amália tinha só de silenciar; ela enfrentava a verdade olho no olho, vivendo e agüentando a mesma vida antes como hoje. Como as coisas eram muito melhores, em toda a aflição, para nós do que para ela! Evidentemente tivemos de abandonar nossa casa, Brunswick foi habitá-la, indicaram-nos esta cabana, com um carrinho de mão transportamos nossos pertences, em algumas viagens, até aqui; Barnabás e eu puxávamos, o pai e Amália ajudavam atrás; a mãe, que havíamos trazido antes, nos recebia, sentada sobre uma caixa, sempre gemendo levemente. Mas eu me lembro de que, durante as viagens tão cansativas — que também eram humilhantes, pois freqüentemente encontrávamos carroças de colheita, cuja tripulação silenciava diante de nós e desviava o olhar —, lembro-me de que Barnabás e eu, mesmo durante essas viagens, não conseguíamos parar de falar dos nossos planos e preocupações, que durante a conversa às vezes ficávamos parados e só o chamado do pai, conclamando ao trabalho, nos fazia recordar de novo do nosso dever. Mas todas as conversas também não alteraram, depois da mudança, a nova vida, só que agora, aos poucos, começávamos também a sentir a pobreza. As contribuições dos parentes cessaram, nossos recursos estavam quase no fim e justamente nessa época teve início o desprezo por nós, como você o conhece. Observaram que não tivemos força para sair da história da carta e nos levaram a mal por isso, não subestimaram o peso do nosso destino, embora não soubessem exatamente qual ele era; se o tivéssemos superado, teriam nos honrado de forma correspondentemente alta; mas o fato de não o termos conseguido fez com que agissem em definitivo como até então haviam agido só temporariamente: excluíram-nos de todos os círculos, sabiam que eles mesmos provavelmente não teriam passado pela prova melhor que nós, por isso era mais necessário se separarem totalmente da nossa família. Agora não falavam mais de nós como de seres humanos, nosso nome de família não foi mais mencionado; quando precisavam falar de nós, chamavam-nos de Barnabás, o mais inocente de todos; até nossa cabana ficou mal-afamada e se pensar nisso terá de admitir que também você, quando entrou pela primeira vez, julgou notar que esse desprezo era justificado; mais tarde, quando as pessoas começaram a nos visitar novamente, torciam o nariz sobre coisas totalmente sem importância, por exemplo que o pequeno lampião a óleo pendia sobre a mesa. Onde seria possível pendurá-lo a não ser sobre a mesa? Para elas, porém, parecia algo insuportável. Se no entanto colocássemos a lâmpada em outro lugar, não mudaria em nada sua má vontade. Tudo o que éramos e tínhamos, encontrava o mesmo desprezo.
— E O QUE FAZÍAMOS NESSE MEIO-TEMPO? — continuou. — A pior coisa que podíamos ter feito, algo pelo qual deveríamos ter sido desprezados com mais razão do que por aquilo que de fato éramos — traímos Amália, nos livramos do seu comando silencioso, não podíamos mais continuar vivendo assim, totalmente sem esperança não era possível viver e começamos, cada qual à sua maneira, a pedir ou assediar o castelo, para que nos perdoasse. Sabíamos, em verdade, que não éramos capazes de reparar alguma coisa; sabíamos também que a única ligação esperançosa que mantínhamos com o castelo era a ligação com Sortini, o funcionário inclinado a favor de nosso pai, mas que estava inacessível a nós justamente por causa dos acontecimentos; apesar disso nos pusemos a trabalhar. O pai começou, foi esse o início de pedidos inúteis ao prefeito, aos secretários, aos advogados, aos escrivães; na maioria das vezes ele não era recebido e quando o era, por astúcia ou acaso — ficávamos em júbilo com notícias como essa e esfregávamos as mãos —, repeliam-no com extrema rapidez e nunca mais o receberam. De qualquer modo era muito fácil responder a ele, o castelo agia sempre com tanta facilidade. O que então estava querendo? O que havia acontecido com ele? Pelo que queria perdão? Quando e por quem, no castelo, levantaram somente um dedo contra ele? Certamente estava empobrecido, tinha perdido a freguesia etc., mas eram contingências da vida cotidiana, questões de artesanato e de mercado; devia, pois, o castelo se ocupar de tudo? Na realidade, se preocupava com tudo, mas não podia, sem dúvida, intervir grosseiramente na evolução das coisas, simplesmente e sem outro objetivo do que servir ao interesse de um único homem. Devia por acaso despachar seus funcionários para que estes corressem atrás dos clientes do pai e trazê-los de volta à força? O pai então objetava — discutíamos essas coisas todas em minúcia lá em casa, antes e depois, apertados num canto, como que escondidos de Amália, que aliás notava tudo, mas deixava correr —, o pai então objetava que não se queixava do empobrecimento; tudo o que havia perdido aqui era fácil de recuperar, era tudo secundário se apenas o perdoassem. Mas do que deviam perdoá-lo? — era o que lhe respondiam, até então não tinha sido expedida nenhuma queixa contra ele, nem mesmo ela constava ainda nos protocolos, pelo menos não nos protocolos acessíveis aos advogados; em conseqüência disso, na medida em que era possível constatar, nem havia sido empreendido nada contra ele, nem algo estava a caminho. Podia citar, talvez, uma disposição administrativa que tivesse sido emitida em seu desfavor? O pai não podia fazê-lo. Ou tinha havido uma intervenção de um órgão administrativo? A esse respeito o pai não sabia nada. Bem, se então ele não sabia nada nem nada tinha acontecido, o que é que ele estava querendo? O que poderia ser-lhe perdoado? No máximo que agora importunava sem propósito as autoridades, mas exatamente isso era imperdoável. O pai não cedeu, na época continuava sendo muito forte e o ócio forçado lhe dava tempo de sobra. “Vou reconquistar a honra de Amália, não vai levar muito tempo”, dizia a Barnabás e a mim algumas vezes durante o dia, mas só em voz muito baixa, pois Amália não devia ouvi-lo; além disso era dito apenas em benefício de Amália, pois na realidade não pensava em absoluto na reconquista da honra, e sim no perdão. Para receber o perdão, no entanto, precisava primeiro estabelecer a culpa e esta lhe estava sendo negada nos círculos administrativos. Concebeu a idéia — o que mostra que já estava mentalmente fraco — de que a culpa estava sendo mantida em segredo porque ele não pagava o suficiente; até então, como quer que seja, pagava sempre os tributos fixados, que, pelo menos para as nossas condições, eram bastante altos. Acreditava então, porém, que tinha de pagar mais, o que sem dúvida estava errado: embora nossas autoridades, por uma questão de facilidade, para evitar discussões desnecessárias, aceitem subornos, não deixam que se consiga algo com isso. Mas era essa a esperança do pai e não queríamos atrapalhá-lo. Vendemos o que ainda possuíamos — eram quase só coisas ainda indispensáveis — para conseguir os fundos necessários às investigações do pai e durante muito tempo tivemos, todas as manhãs, a satisfação de vê-lo se pôr a caminho ao menos com algumas moedas tilintando no bolso. Certamente passávamos fome durante o dia inteiro, enquanto a única coisa que alcançávamos, levantando o dinheiro, era que o pai se mantivesse num certo nível de esperança. Isso no entanto quase não era uma vantagem. Ele se esfalfava nas suas rondas de visita e aquilo que sem dinheiro teria em breve encontrado o devido fim, arrastou-se no tempo. Uma vez que com o pagamento suplementar nada de extraordinário na realidade podia ser produzido, um escriturário tentava às vezes alcançar algo apenas na aparência, prometia indagações, insinuava que certas pistas já tinham sido encontradas e elas seriam seguidas não por dever, mas por consideração ao pai — e o pai, em vez de ficar mais desconfiado, se tornava cada vez mais crédulo. Voltava com uma dessas promessas nitidamente vazias como se trouxesse outra vez a bênção plena para a casa, e era doloroso ver como, sempre pelas costas de Amália, com o sorriso crispado e os olhos arregalados, apontava para ela, querendo nos dar a entender que ninguém mais que ela própria ia ficar surpresa; em razão dos seus esforços, isso era iminente, mas ainda um segredo que devíamos conservar estritamente. Com efeito teria continuado assim por muito tempo ainda se, no final, não estivéssemos inteiramente sem condições para fornecer dinheiro ao pai. Nesse ínterim, depois de muitos pedidos, é claro, Barnabás foi aceito como ajudante de Brunswick, mas apenas para o propósito de recolher à noite, no escuro, as encomendas e devolver o trabalho no escuro — é preciso reconhecer que neste caso Brunswick assumia um certo risco no seu negócio por nossa causa, mas em compensação pagava muito pouco a Barnabás, e o trabalho de Barnabás é impecável; mas o salário só bastava para nos preservar da fome absoluta. Com grande cuidado e após muitos preparativos comunicamos ao pai a suspensão do nosso apoio financeiro, o que ele aliás aceitou tranqüilamente. Em sua mente já não era capaz de perceber a falta de perspectiva de suas intervenções, embora estivesse com certeza cansado das contínuas decepções. Disse, de fato — não falava mais tão claramente como antes, quando sua fala era quase nítida demais —, que até então havia gasto muito pouco dinheiro, hoje ou amanhã saberia de tudo e agora tudo tinha sido em vão, o fracasso fora só por dinheiro etc.; mas o tom em que falava tornava evidente que não acreditava em nada daquilo. Imediatamente, pois, concebeu novos planos. Uma vez que não havia conseguido provar a culpa e por causa disso não podia alcançar nada pelos canais administrativos, tinha de recorrer exclusivamente aos pedidos e se dirigir pessoalmente aos funcionários. Sem dúvida havia entre eles alguns de coração compassivo, ao qual na verdade não deviam ceder em questões de ofício, mas só fora delas — quando eram surpreendidos na hora certa. K., que havia até então ouvido Olga completamente concentrado, interrompeu a narrativa com a pergunta: — E você não acha isso certo? Na realidade a continuação do relato devia oferecer a resposta, mas ele estava querendo saber logo das coisas. — Não — disse Olga. — Não se pode falar de compaixão ou de algo semelhante. Por mais jovens e inexperientes que fôssemos, isso nós sabíamos e naturalmente o pai também, mas ele o havia esquecido, tanto essa como a maioria das coisas. Ele tinha planejado se estabelecer na via principal, perto do castelo, lá por onde passam as carruagens dos funcionários, e, se de algum modo a oportunidade aparecesse, apresentar seu pedido de perdão. Sinceramente falando, um plano sem qualquer sentido, mesmo se o impossível acontecesse e o pedido de fato chegasse ao ouvido de um funcionário. Mas será que um funcionário pode individualmente perdoar? Seria no máximo assunto da autoridade conjunta, mas mesmo esta, provavelmente, não pode perdoar, apenas julgar. Mas como um funcionário tem condições, mesmo querendo descer da carruagem e cuidar do assunto segundo aquilo que o pai, o pobre, velho, envelhecido homem, lhe balbucia, de formar uma imagem da questão? Os funcionários são muito cultos, porém apenas unilateralmente; em sua especialidade um funcionário atravessa logo com o olhar, por uma simples palavra, toda uma série de pensamentos; no entanto, coisas de outra repartição você pode explicar-lhe horas a fio, talvez ele acene com a cabeça cortesmente, mas sem entender uma palavra. Tudo isso é óbvio, com certeza; uma pessoa busca os pequenos assuntos administrativos que lhe interessam pessoalmente, matéria trivial que um funcionário despacha com um dar de ombros; a pessoa tenta compreender essa coisa até o fundo e terá uma tarefa pela vida toda e não chegará ao fim. Mas se o pai esbarrasse num funcionário competente, este não iria resolver nada sem os autos preliminares, particularmente na via principal; ele não pode conceder um perdão, apenas tratar a questão pelos meios administrativos e, visando esse objetivo, apontar de novo só o trâmite oficial, mas para alcançar isso o pai já tinha malogrado totalmente. Como as coisas já deviam ter ido longe para o pai, para que ele quisesse de algum modo se impor através desse novo plano! Se existisse alguma possibilidade dessa natureza, mesmo a mais remota, a via principal devia fervilhar de petições, mas já que no caso se trata de uma impossibilidade, que impregna a pessoa desde a formação escolar mais elementar, naquele lugar ela é totalmente vazia. Talvez fosse isso que fortalecesse o pai em sua esperança, ele a alimentava de todas as fontes. Aqui ela era muito necessária, um espírito sadio não se envolveria nessas grandes reflexões, devia reconhecer claramente, já nos aspectos mais exteriores, a impossibilidade. Quando os funcionários viajam para a aldeia ou voltam para o castelo, não se trata de viagens de prazer, há trabalho esperando por eles, por isso viajam na maior velocidade. Não lhes ocorre olhar pela janela da carruagem e buscar lá fora portadores de petições, mas os veículos estão lotados de processos que os funcionários estudam. — Mas — disse K. —, já vi o interior de um trenó de funcionários, no qual não havia nenhum processo. Na narrativa de Olga se abria diante dele um mundo tão vasto e escassamente plausível, que K. não podia resistir a tocá-lo, com sua pouca experiência, para se convencer mais nitidamente tanto da existência desse mundo como da sua própria. — É possível — disse Olga. — Mas então é pior ainda, pois o funcionário tem assuntos tão importantes que os autos são preciosos demais ou abrangentes demais para serem levados; é então que esses funcionários fazem a carruagem andar a galope. De qualquer modo, para o pai não pode sobrar nenhum tempo. E mais: existem diversas vias de acesso ao castelo. Ora é uma delas que está na moda, e aí a maioria transita por ela, ora numa outra, e aí todos congestionam o caminho. Segundo quais regras se dá essa mudança ainda não foi descoberto. Ora viajam todos às oito horas da manhã por uma estrada, meia hora mais tarde todos de novo por outra, dez minutos mais tarde novamente por uma terceira, meia hora depois, talvez, pela primeira, e assim permanece o dia inteiro; mas a cada instante existe a possibilidade de uma mudança. Na realidade todas as vias de acesso se juntam perto da aldeia, mas lá todas as carruagens já estão a toda, ao passo que perto do castelo a velocidade é um pouco mais moderada. Mas assim como as ordens de saída em relação às estradas são irregulares e insondáveis, o mesmo se dá com o número das carruagens. Com freqüência há dias em que não se vê nenhuma, depois porém transitam outra vez em multidões. Diante disso tudo imagine agora meu pai. Com sua melhor roupa — logo será a única — parte todas as manhãs de casa acompanhado pelas nossas bênçãos. Um pequeno distintivo do corpo de bombeiros, que ele na verdade conservou indevidamente, é o que leva consigo, para colocar na roupa quando está fora da aldeia; nesta ele sempre teme mostrá-lo, embora seja tão pequeno que mal dá para vê-lo a dois passos de distância; segundo o pai, porém, é até adequado, pois chama a atenção das carruagens que passam. Não longe da entrada do castelo existe uma horticultura que pertence a um certo Bertuch, ele fornece legumes ao castelo; lá, no estreito pedestal de pedra das grades do jardim, o pai escolheu um lugar para ficar. Bertuch o tolerou porque no passado manteve relações de amizade com o pai e também fez parte dos seus clientes mais fiéis; ele tem aliás um pé um pouco deformado e acreditava que só o pai era capaz de lhe fazer uma bota justa. Ali então o pai ficava sentado dia após dia; podia ser um dia de outono escuro e chuvoso, mas o tempo lhe era indiferente por completo: de manhã, numa determinada hora, estava com a mão na maçaneta e se despedia de nós com um aceno; à noite ele voltava; parecia que ficava a cada dia mais curvado, voltava completamente ensopado e se atirava a um canto. Primeiro ele nos contava sobre suas pequenas experiências, por exemplo que por compaixão e uma velha amizade Bertuch lhe atirou por cima da grade um cobertor, ou então que acreditou reconhecer este ou aquele funcionário na carruagem que passava e que um cocheiro de vez em quando o reconhecia e por brincadeira passava nele de leve as correias do chicote. Mais tarde parou de contar essas histórias; aparentemente não esperava mais alcançar alguma coisa naquele lugar; só considerava ainda como dever sua profissão vazia, ir até lá e passar o dia. Nessa época começaram suas dores reumáticas, o inverno se aproximava, a neve veio cedo, entre nós o inverno começa logo, assim ele se sentava ali sobre as pedras molhadas de chuva, depois na neve. À noite gemia de dor, de manhã muitas vezes estava inseguro se devia ir ou não, mas então superava a incerteza e ia de fato. A mãe pendurava-se nele e não queria deixá-lo partir; provavelmente com medo dos membros que não obedeciam mais, permitia que ela também fosse e foi assim que a mãe também foi acometida de dores. Nós estávamos freqüentemente com eles, levávamos comida ou só íamos visitá-los, querendo convencê-los a voltar para casa; quantas vezes os encontramos lá, afundados e se apoiando um no outro sobre seu assento estreito, envoltos por uma coberta fina, que mal os cobria, por toda a vista nada senão o cinza da neve e da névoa, e dias inteiros nenhuma pessoa ou carruagem — que visão, K., que visão! Até que certa manhã o pai não conseguiu mais tirar as pernas duras da cama; estava inconsolável, acreditava ver, numa fantasia de febre amena, como naquele momento, lá em cima, na horticultura de Bertuch, parava uma carruagem, descia um funcionário, perscrutava a grade em busca do pai e voltava para o veículo, irritado e balançando a cabeça. O pai, nessas ocasiões, soltava gritos que era como se quisesse, daqui, ser notado pelo funcionário lá em cima e explicar a falta de culpa de sua ausência. E foi uma longa ausência, ele não voltou mais para lá, durante semanas teve de permanecer na cama. Amália assumiu a tarefa de servi-lo, tratálo, cuidar dele, tudo, e em verdade mantém-se assim, com pausas, até hoje. Ela conhece ervas que acalmam as dores, quase não precisa de sono, nunca se assusta, não tem medo de nada, jamais é impaciente, fazia todo o trabalho para os pais; ao passo que nós, sem poder ajudar em alguma coisa, ficávamos rodeando por ali inquietos, ela se conservava em tudo fria e silenciosa. Quando então o pior havia passado e o pai conseguiu sair da cama com esforço, apoiado à esquerda e à direita, cuidadosamente, Amália se retirou logo e o entregou a nós.
— DE NOVO — PROSSEGUIU OLGA — a questão era encontrar para o pai alguma ocupação de que ele ainda fosse capaz, algo que pelo menos o mantivesse na crença de que estava ajudando a livrar a família da culpa. Não era difícil descobrir uma coisa assim, no fundo tudo era tão sem propósito como ficar sentado diante da horticultura de Bertuch, mas achei algo que deu certa esperança até para mim. Quando quer que, entre funcionários, ou escriturários, ou em algum outro lugar, a conversa girasse sobre nossa culpa, só a ofensa ao mensageiro de Sortini era outra vez mencionada, ninguém ousava avançar mais que isso. Bem, disse a mim mesma, se a opinião geral, mesmo que apenas na aparência, está ciente só da ofensa ao mensageiro, tudo poderia ser reparado — também apenas na aparência — se fosse possível aplacar o mensageiro. Nenhuma denúncia foi levantada, assim explicavam, a questão portanto ainda não está na posse de nenhuma repartição e desse modo o mensageiro está liberado, no que diz respeito à sua pessoa — e não se tratava de nada além disso — para conceder o perdão. É claro que tudo podia não ter qualquer significado decisivo, era mera aparência, e possivelmente não resultaria em nada mais uma vez, mas tornaria o pai feliz e sendo assim, talvez, para satisfação sua, fosse capaz de conter um pouco os muitos divulgadores de informação que tanto o atormentavam. Evidentemente, primeiro era preciso encontrar o mensageiro. Quando contei meu plano ao pai, ele ficou de início muito bravo; na verdade havia se tornado extremamente obstinado; em parte acreditava que isso tivesse acontecido durante sua doença, que nós o havíamos impedido sempre de alcançar o êxito final, primeiro pela suspensão do apoio financeiro, agora retendo-o na cama; mas também em parte ele já não conseguia mais aceitar idéias alheias. Eu ainda não tinha acabado de expor meus planos e ele já havia sido rejeitado: na opinião do pai era preciso continuar esperando no jardim de Bertuch e, uma vez que ele seguramente não estaria mais em condições de subir até lá todos os dias, nós tínhamos de transportá-lo num carrinho de mão. Mas não desisti e aos poucos ele foi se acostumando a essa idéia; a única coisa que o perturbava era que nesse caso dependesse totalmente de mim, pois só eu havia visto outrora o mensageiro, ele mesmo não o conhecia. É evidente que um criado se parece com outro e eu não tinha certeza absoluta de que aquele eu iria reconhecer. Começamos então a ir à Hospedaria dos Senhores e a procurar entre a criadagem de lá. Na realidade ele tinha sido um criado de Sortini e este não veio mais à aldeia; os senhores, porém, trocam com freqüência de criados, podia bem ser possível encontrá-lo no grupo de um outro senhor e, mesmo que ele próprio não fosse encontrado, talvez houvesse a possibilidade de ter notícia dele por intermédio de outros criados. Para alcançar esse objetivo era preciso de qualquer maneira estar todas as noites na Hospedaria dos Senhores; não éramos bem-vistos em parte alguma, sobretudo num lugar como aquele, e como hóspedes pagantes também não podíamos nos apresentar. Mas acontecia que podiam assim mesmo precisar de nós; você sabe muito bem que praga era para Frieda o corpo de criados; no fundo são, na maioria das vezes, pessoas tranqüilas, mimadas pelo serviço fácil e transformadas em gente preguiçosa: “que você possa ter a vida de um criado” é uma fórmula de bênção dos funcionários e efetivamente, no que diz respeito à boa vida, os criados deviam ser os verdadeiros senhores no castelo; eles também sabem apreciar isso, e no castelo, onde se movimentam sob suas leis, são silenciosos e dignos, muitas vezes isso me foi confirmado e aqui também se acham ainda, entre os criados, resíduos dessa espécie, mas resíduos apenas; de outra forma, pelo fato de que na aldeia as leis do castelo não vigoram mais por completo em relação a eles, acabam como que metamorfoseados; um povo selvagem, insubordinado, dominado por seus impulsos insaciáveis em vez de controlados por leis. Sua falta de vergonha não conhece limites; é uma sorte para a aldeia que só podem deixar a Hospedaria dos Senhores mediante ordens, mas até na hospedaria é preciso se arranjar com eles; para Frieda isso pesava bastante e por isso lhe foi muito bem-vindo que ela pudesse me usar para acalmar os criados: há mais de dois anos que passo a noite no estábulo com os criados pelo menos duas vezes por semana. Antes, quando o pai ainda podia ir junto à Hospedaria dos Senhores, ele dormia em qualquer parte do salão de bebidas e esperava pelas notícias que eu levaria de manhã. Era pouca coisa. O procurado mensageiro nós ainda não encontramos até hoje, deve continuar a serviço de Sortini, que o estima muito; é provável que o tenha acompanhado quando Sortini se retirou para as repartições mais remotas. A maioria dos criados não o tinha visto fazia tanto tempo quanto nós e se algum deles, nesse ínterim, pretende tê-lo visto, é certamente um erro. Dessa maneira meu plano na verdade deveria ter falhado e no entanto não é esse inteiramente o caso; de fato não achamos o mensageiro, e os trajetos até a Hospedaria dos Senhores e os pernoites lá, talvez até a compaixão por mim, na medida em que ainda é capaz disso, deram o golpe de misericórdia no meu pai, que já está há quase dois anos no estado em que você o viu; talvez entretanto ele esteja melhor que a mãe, cujo fim esperamos todos os dias e que só foi adiado graças ao esforço sobre-humano de Amália. Mas o que eu consegui na Hospedaria dos Senhores é uma certa ligação com o castelo; não me despreze, K., se eu disser que não me arrependo do que fiz. Que grande ligação com o castelo pode ser essa, é uma coisa que você talvez possa imaginar. E tem razão, pois não se trata de uma grande ligação. Conheço, com efeito, muitos criados, criados de quase todos os senhores que nos últimos anos vieram à aldeia e, se eu tivesse de ir uma vez ao castelo, lá não seria tomada por uma estranha. Naturalmente se trata apenas de criados na aldeia, no castelo são completamente diferentes, e é provável que lá não reconheçam mais ninguém, em particular alguém com quem estabeleceram relações na aldeia, por mais que no estábulo tenham jurado cem vezes que ficariam satisfeitos com um reencontro no castelo. Aliás, já tenho consciência de como essas promessas significam pouco. O mais importante, porém, não é isso, de modo algum. Não só através dos próprios criados mantenho relação com o castelo, mas espero que seja também o caso de que — quem sabe — alguém lá em cima observe a mim e ao que faço; a administração da grande criadagem é sem dúvida uma parte extremamente importante e séria do trabalho das autoridades; que esse alguém, portanto, que me observa assim, chegue a um juízo mais brando a meu respeito do que outros; que ele porventura reconheça que eu, mesmo de uma maneira lamentável, luto também por nossa família e dou seguimento aos esforços de meu pai. Se as coisas forem vistas por esse ângulo, talvez então me perdoem ainda por aceitar dinheiro dos criados e o despender com minha família. E alcancei outra coisa também, que certamente você vai me reprovar. Através dos criados aprendi certos detalhes — como, por vias indiretas, sem o procedimento difícil, que leva anos, de admissão pública, pode-se chegar ao serviço do castelo; é claro que nesse caso a pessoa não é, em verdade, servidor titular, mas ela fica empregada apenas em caráter secreto e admitida pela metade; não tem direitos nem deveres; o pior de tudo é o fato de não ter deveres; uma coisa porém ela tem: está perto de tudo, pode reconhecer as oportunidades favoráveis e utilizá-las, não é um servidor, mas casualmente pode encontrar um trabalho. Um empregado não está à disposição naquele momento, há um chamado e a pessoa se precipita até lá, e o que não era um instante antes, agora ela acaba de se tornar, um servidor. Quando, entretanto, se descobre uma oportunidade como essa? Às vezes logo, mal chegou, mal olhou em volta e a oportunidade já está lá; um novato qualquer não tem a presença de espírito para agarrá-la; uma outra vez, não obstante, dura de novo mais anos do que o procedimento de admissão oficial, e uma pessoa admitida pela metade não pode nunca mais ser admitida publicamente segundo as regras. Assim existe aqui muita coisa a ser cogitada; mas isso não é nada quando comparado com o fato de que a admissão pública é um processo muito meticuloso e o membro de uma família de algum modo suspeita é rejeitado de antemão; esse indivíduo se submete, por exemplo, a esse processo, treme durante anos diante do resultado, por todos os lados lhe perguntam, com espanto, desde o primeiro dia, como pôde ousar algo tão sem perspectiva; mas ele espera — como poderia viver, de outra maneira? —, mas depois de muitos anos, talvez já ancião, ele fica sabendo da rejeição, fica sabendo que está tudo perdido e que sua vida foi inútil. Bem entendido, aqui também existem exceções e justamente por isso a pessoa é tentada com tanta facilidade. Acontece que precisamente gente suspeita é no final aceita, há funcionários que literalmente contra sua vontade adoram o cheiro dessa presa; nas provas de admissão farejam o ar, contorcem a boca, reviram os olhos; uma pessoa assim lhes parece de certo modo imensamente apetitosa e eles precisam se ater com a maior firmeza aos livros da lei para poder resistir. Às vezes entretanto isso não auxilia a pessoa na admissão, mas tão-somente favorece a ampliação infindável do processo, que não é concluído de fato, apenas interrompido após sua morte. Desse modo, tanto a admissão legal quanto a outra é cheia de dificuldades óbvias e ocultas, e antes que alguém se envolva em algo dessa natureza é muito aconselhável pesar tudo com precisão. E isso Barnabás e eu não deixamos de fazer. Sempre que eu vinha da Hospedaria dos Senhores, sentávamos juntos, eu contava as últimas novidades que soubera, durante dias as discutíamos e o trabalho recaía nas mãos de Barnabás, muitas vezes, por mais tempo do que devia ser. E aqui posso ter culpa no sentido em que você a entende. Eu sabia que não se podia confiar muito nas histórias dos servos. Sabia que nunca tinham vontade de me dizer coisas a respeito do castelo, sempre desviavam o assunto para outro, que era preciso suplicar para arrancar deles alguma palavra; uma vez, porém, que se punham a caminho, deixavam a coisa rolar, tagarelavam besteiras, se faziam de importantes, competiam uns com os outros, em exageros e invenções, de tal maneira que, evidentemente numa gritaria sem fim, na qual um alternava com os outros, lá no estábulo escuro, poderiam no melhor dos casos estar contidas algumas magras alusões à verdade. Contei, no entanto, tudo a Barnabás outra vez, do modo como havia observado, e ele, que ainda não tinha capacidade alguma para discernir entre a verdade e as mentiras e, em conseqüência da situação de nossa família, estava sedento por essas coisas, bebia literalmente tudo e se consumia de desejo para saber mais. E com efeito era sobre Barnabás que repousava meu novo plano. Entre os servos não havia mais nada a alcançar. O mensageiro de Sortini não era encontrável e não seria nunca descoberto; Sortini parecia retirar-se para cada vez mais longe e com isso o mensageiro também se ausentava; muitas vezes sua aparência e seu nome haviam caído no esquecimento e eu tinha de descrevê-los longamente sem desse modo conseguir coisa alguma, a não ser que alguém se recordasse com dificuldade daquela aparência e daquele nome, mas não era capaz de adiantar mais nada. E no que dizia respeito à minha vida com os servos, não tinha, naturalmente, influência nenhuma sobre como o caso era julgado; só podia esperar que as pessoas o aceitassem como ele de fato se apresentava e que, em compensação, por mínima que se apresentasse, alguma coisa fosse subtraída à culpa de nossa família; entretanto, não recebi sinais exteriores disso. Seja como for, fiquei nisso, já que não via outra possibilidade para alcançar alguma coisa no castelo em nosso benefício. Para Barnabás, porém, via uma possibilidade desse tipo. Das narrativas dos servos eu podia deduzir, se tinha vontade, e essa vontade era plena, que alguém que é aceito nos serviços do castelo pode conseguir muita coisa para sua família. Muito bem, o que era digno de acreditar nesses relatos? Era impossível verificar; estava claro apenas que se tratava de muito pouco. Pois quando, por exemplo, um servo que eu nunca mais veria, ou que, se quisesse ver, mal iria reconhecer, me assegurava solenemente que podia ajudar meu irmão a encontrar um posto no castelo ou, pelo menos, quando Barnabás de alguma maneira entrasse no castelo, ele o apoiaria, ou seja, lhe daria algo para reanimar, pois segundo o que contavam, ocorre que candidatos ao lugar desmaiam ou então ficam perdidos durante o tempo de espera excessivamente longo; quando amigos não cuidam dele — quando essas coisas e muito mais me eram reportadas, tratava-se provavelmente de advertências justificadas, mas as promessas que faziam parte disso se mostravam totalmente vazias. Não para Barnabás; de fato eu o adverti a não acreditar nelas, mas já a circunstância de contá-las era suficiente para conquistá-lo em relação aos meus planos. O que eu dizia a mim mesma em nome dos meus propósitos o influenciava menos, a influência principal eram as histórias dos servos. Foi assim que fiquei totalmente reduzida a mim própria; com os pais, na verdade, ninguém podia se comunicar, à exceção de Amália; quanto mais eu seguia os velhos planos de meu pai à minha maneira, tanto mais Amália se fechava diante de mim; diante de você ou de outros ela conversava comigo, sozinha jamais, eu era um joguete para os servos na Hospedaria dos Senhores, um brinquedo que eles se empenhavam em quebrar com fúria, durante os dois anos nunca disse uma só palavra amistosa com eles, só coisas pérfidas, mentirosas ou insensatas; restava-me portanto apenas Barnabás, e ele era jovem demais. Quando, diante dos meus relatos, vi o brilho de seus olhos, que desde então ele conservou, eu me assustei e no entanto não cedi, por maior que parecesse o que estava em jogo. Evidentemente não tinha os planos grandiosos e vazios de meu pai, não possuía esse poder de decisão dos homens, permaneci fiel à reparação do insulto do mensageiro e desejava de fato que não se atribuísse essa modéstia a um mérito. Mas, naquilo em que havia falhado sozinha, queria agora alcançar, através de Barnabás, de uma outra forma e com segurança. Tínhamos ofendido um mensageiro e o afugentáramos das repartições avançadas; que idéia melhor do que oferecer, na pessoa de Barnabás, o serviço a ser apresentado pelo mensageiro ofendido e possibilitar que ele permanecesse tranqüilo em lugar distante, por quanto tempo pretendesse, por quanto tempo necessitasse para esquecer o insulto? Observei bem, na verdade, que em toda a modéstia desse plano havia também arrogância, que poderia despertar a impressão de que queríamos ditar à autoridade o modo pelo qual devia regular as questões do pessoal ou então que duvidássemos que a administração era capaz de tomar sozinha suas determinações da melhor forma possível e até o tivesse feito fazia muito tempo, bem antes que houvéssemos chegado ao pensamento de que aqui poderia ser feita alguma coisa. Depois voltei a crer que era impossível que a administração me entendesse tão mal ou que ela, se quisesse fazê-lo, agiria com deliberação; por exemplo, que nesse caso estava rejeitado, de antemão, sem maiores investigações, tudo o que eu faço. Sendo assim continuei na mesma posição e a ambição de Barnabás fez a sua parte. Nesse período de preparativos Barnabás se tornou tão arrogante que ficou achando o ofício de sapateiro sujo para quem, como ele, era um futuro empregado de repartição; ousava até mesmo contradizer Amália, quando ela, raras vezes, lhe dirigia uma palavra, e o fazia também de modo cabal. Concedi-lhe com prazer essa breve alegria, pois, no primeiro dia em que ele foi ao castelo, a alegria e a arrogância, como era fácil prever, logo passaram. Começou então aquele trabalho aparente, sobre o qual eu já lhe contei. O espantoso foi como Barnabás entrou pela primeira vez no castelo, ou, mais corretamente, na repartição que, por assim dizer, se tornou seu local de trabalho. Esse sucesso me deixou quase louca, quando Barnabás sussurrou isso para mim, à noite, ao voltar para casa; corri até Amália, agarrei-a, espremi-a num canto e a beijei com os lábios e os dentes, de tal forma que ela chorou de dor e susto. Não conseguia dizer nada de tanta excitação, já fazia muito tempo que não nos falávamos e por isso adiei a conversa para depois. Mas evidentemente nos dias seguintes não havia mais nada a dizer. O que tinha sido alcançado tão rápido continuou sendo aquilo. Durante dois anos Barnabás levou essa vida monótona e opressiva. Os servos eram totalmente inúteis, dei a Barnabás uma pequena carta na qual o recomendava à atenção deles; ao mesmo tempo lembrava suas promessas, e Barnabás, assim que via um, arrancava a carta do bolso e a mantinha diante dos seus olhos e quando às vezes, presumivelmente, esbarrava em alguns que não me conheciam, e mesmo em outros que me eram conhecidos, a apresentava à sua maneira, mudo, pois não ousava falar lá em cima; era irritante, bem como vergonhoso, que ninguém o ajudasse e representava uma redenção, que nós poderíamos certamente ter engendrado há muito tempo por decisão pessoal, quando um servo, a quem a carta fora imposta algumas vezes, a amassou e atirou no cesto de papéis. Quase me ocorria na ocasião dizer: “É de maneira semelhante que vocês tratam as cartas”. Mas todo esse tempo não foi em vão; o efeito sobre Barnabás foi favorável, se se quiser chamá-lo de favorável, na medida em que amadureceu precocemente e se tornou homem precocemente, em muitos aspectos perspicaz e compreensivo acima dos outros. Muitas vezes me dava tristeza vê-lo e compará-lo com o jovem que ele era dois anos antes. E nesse ato eu não possuía o consolo e o apoio que ele talvez pudesse me oferecer como homem. Sem mim ele praticamente não teria chegado ao castelo, mas, desde que está lá, ficou independente de mim. Sou sua única confidente, porém o que ele me conta é sem dúvida apenas uma pequena parte daquilo que tem escondido no coração. Conta-me muita coisa do castelo, mas dos seus relatos, dos pequenos fatos que comunica não é possível nem de longe entender como isso foi capaz de tê-lo transformado desse jeito. Em especial não se pode compreender por que ele, agora um homem, perdeu lá em cima tão completamente a coragem que tinha quando jovem, a ponto de nos levar ao desespero. Certamente essa permanência e essa espera inúteis, dia após dia, que sempre se renovam, sem qualquer perspectiva de mudança, que esmagam, tornam a pessoa incerta, e no final até mesmo incapaz para qualquer outra coisa que não seja esse ficar sem fazer nada desesperado. Por que, no entanto, ele não ofereceu nenhuma resistência antes? Principalmente porque reconheceu logo que eu tinha razão e que lá em cima não havia nada a buscar para satisfazer a ambição, mas que talvez, quem sabe, para a melhora da situação da nossa família. Pois lá tudo se passa de maneira bem modesta, à exceção do humor dos servidores; a ambição busca, naquele lugar, satisfação no trabalho, e nesse ato a coisa em si mesma prevalece, com o que ele se perde inteiramente: lá não existe espaço para desejos infantis. Mas Barnabás, conforme me disse, julgou ver claramente como era grande o poder e o conhecimento mesmo desses funcionários obviamente dúbios, em cujas salas tinha permissão de permanecer. Como eles ditavam, rápido, com olhos semicerrados e breves movimentos de mão; como despachavam só com o indicador, sem qualquer palavra, os servidores ranzinzas, que nesses momentos, respirando com dificuldade, sorriam felizes, ou como, ao encontrarem uma passagem importante nos seus livros, batiam com força em cima e, na medida em que a dificuldade da situação permitia, os outros vinham correndo e esticavam os pescoços para enxergar. Isso e coisas semelhantes deram a Barnabás uma boa noção desses homens e ele teve a impressão de que, se chegasse ao ponto de ser notado por eles e pudesse trocar um par de palavras, não como estranho, mas como colega de repartição, mesmo do tipo mais subalterno possível, poderia conseguir para nossa família vantagens incalculáveis. As coisas entretanto ainda não chegaram lá e Barnabás não ousa fazer nada que possa levá-lo para mais perto disso, embora saiba exatamente que, apesar de sua juventude, foi alçado, dentro de nossa família, pelas condições infelizes dela, ao posto pesado de responsabilidade de pai de família. E agora, para confessar a última coisa: você chegou faz uma semana. Ouvi alguém mencionar isso na Hospedaria dos Senhores, mas não me importei; havia chegado um agrimensor, nem mesmo sabia o que é isso. Na noite seguinte, porém, chega Barnabás — eu costumava na época ir ao encontro dele percorrendo um trecho do caminho numa certa hora —, Barnabás chega mais cedo do que habitualmente em casa, vê Amália na sala, por isso puxa-me para fora de casa, comprime o rosto no meu ombro e chora durante minutos. É de novo o jovem de outrora. Algo lhe havia ocorrido, para o qual não se sentia preparado. É como se de repente um mundo totalmente novo tivesse se aberto diante dele e ele não é capaz de suportar a felicidade e as preocupações dessa novidade. Não obstante, nada havia acontecido senão que havia recebido uma carta para entregar a você. Certamente, porém, é a primeira carta, o primeiro trabalho que até então havia recebido. Olga fez uma interrupção. A casa estava em silêncio, a não ser a respiração pesada, às vezes estertorante, dos pais. K. disse ligeiramente, como que para completar o relato de Olga: — Vocês todos se dissimularam diante de mim. Barnabás trouxe a carta como se fosse um velho mensageiro muito atarefado, e você, do mesmo modo que Amália, que dessa vez estava de acordo com vocês, agia como se o ofício de mensageiro e as cartas fossem algo meramente acidental. — Você precisa distinguir entre nós — disse Olga. — Barnabás voltara a ser uma criança feliz através das duas cartas, apesar de todas as dúvidas que tinha em relação à sua atividade. Essas dúvidas ele as mantinha para si e comigo, mas diante de você o ponto de honra era aparecer como mensageiro real, do modo que imaginava que um mensageiro real aparecia. Assim é que tive, por exemplo — a despeito de naquele momento aumentar sua esperança de ganhar um uniforme oficial —, de alterar em duas horas suas calças para elas assumirem ao menos a aparência das calças justas do uniforme oficial e para comparecer com elas perante você, que nesse particular, naturalmente, não é fácil de enganar. Barnabás é isso. Amália, porém, despreza realmente o trabalho de mensageiro e agora, depois que o irmão parece ter alcançado algum sucesso, tal como ela pode sem dificuldade reconhecer pela maneira como nós sentamos juntos cochichando, Amália agora o despreza mais ainda que antes. Diz portanto a verdade, não o engana jamais na medida em que você duvida disso. Mas eu, K., embora tenha rebaixado algumas vezes o ofício de mensageiro, não o fiz com a intenção de enganá-lo, mas de medo. Essas duas cartas, que até agora passaram pelas mãos de Barnabás, são de qualquer modo o primeiro sinal de clemência em três anos, apesar de ainda suficientemente duvidosos, que nossa família recebeu. Essa mudança, se é que se trata de uma mudança e não de uma ilusão — ilusões são mais freqüentes que mudanças —, essa mudança está relacionada com sua chegada aqui, nosso destino entrou numa certa dependência de você, talvez essas duas cartas sejam apenas um começo, e a atividade de Barnabás se expandirá acima do serviço de mensageiro que diz respeito a você; é o que desejamos, na medida em que isso nos é permitido — no momento, porém, tudo está dirigido para você. Lá em cima temos de ficar satisfeitos com o que nos é dado, mas aqui embaixo podemos, quem sabe, fazer alguma coisa nós mesmos, ou seja: garantir sua boa vontade ou ao menos nos proteger da sua rejeição; o mais importante é defendê-lo segundo nossas forças e experiências a fim de que a ligação com o castelo — talvez pudéssemos viver dela — não se perca. Mas como introduzir tudo isso da melhor maneira possível? Fazendo com que você não tenha nenhuma suspeita de nós quando nos aproximamos, pois aqui você é um estranho e por isso certamente cheio de suspeita por todos os lados, suspeita que aliás é perfeitamente legítima. Além disso somos desprezados e você influenciado pela opinião geral, sobretudo por sua noiva; como podemos chegar a você sem, por exemplo, mesmo que não o tenhamos desejado de modo algum, nos colocar contra sua noiva e com isso melindrá-lo? E as mensagens que eu, antes de você as receber, li com atenção — Barnabás não as leu, como mensageiro não se permitiu fazê-lo —, me pareceram à primeira vista não muito importantes; datadas, elas retiravam importância a si mesmas na medida em que o encaminhavam ao prefeito. Como devíamos nos comportar com você, nesse sentido? Se acentuássemos a importância das cartas, nos tornávamos suspeitos por supervalorizar algo evidentemente desimportante, por nos auto-elogiarmos como portadores dessas notícias dirigidas a você, seguindo nossos desígnios e não os seus; era até mesmo possível que desvalorizássemos, dessa forma, as próprias notícias aos seus olhos e o enganássemos muito contra a vontade. Mas se não atribuíssemos muito valor às cartas, nos tornávamos igualmente suspeitos, pois a troco de quê nos ocupávamos depois com passagens dessas cartas sem importância, porque contradizíamos reciprocamente nossas ações e nossas palavras, porque enganávamos assim não só a você, o destinatário, mas também o mandante, que certamente não nos havia dado as cartas para que as depreciássemos com as nossas explicações junto ao destinatário. Conservar o meio-termo entre os exageros, ou seja, julgar corretamente as cartas, é impossível; elas mudam continuamente de valor, as reflexões a que dão ensejo são infindáveis e o ponto em que se deve parar é apenas definido pelo acaso, ou seja, a opinião também é casual. E se além disso o medo por você intervém, tudo se confunde; você não deve julgar com muita severidade minhas palavras. Se por exemplo — como aconteceu uma vez — Barnabás chega com a notícia de que você está insatisfeito com o seu trabalho de mensageiro e no primeiro instante de susto ele, infelizmente não sem a suscetibilidade do mensageiro, se prontifica a pedir demissão de sua função, nesse caso sou capaz, então, para reparar o erro, de enganar, de mentir, de trapacear, de fazer tudo o que é ruim, se isso puder ajudar. Mas depois eu o faço, pelo menos segundo acredito, tanto por sua causa quanto pela nossa. Bateram à porta. Olga correu até ela e abriu-a. Um facho de luz saiu de uma lanterna de sinalização. O visitante retardatário fez perguntas em voz sussurrada e recebeu uma resposta também cochichada, mas não se deu por satisfeito com isso e entrou na sala. Olga não conseguia mais detê-lo e por esse motivo chamou Amália, de quem evidentemente esperava que, para proteger o sono dos pais, fizesse de tudo com o objetivo de afastar o visitante. Efetivamente ela veio correndo, empurrou Olga de lado, saiu para a rua e fechou a porta atrás de si. Foi só por um instante, logo ela voltou: havia conseguido tão depressa o que fora impossível para Olga. K. ficou sabendo, por Olga, que a visita era para ele; tratava-se de um dos ajudantes, que o procurava por incumbência de Frieda. Olga quisera proteger K. do ajudante; se K. quisesse, mais tarde, confessar a Frieda sua visita àquele lugar, poderia fazê-lo, mas não devia ser descoberto pelo ajudante; K. estava de acordo. Mas a oferta de Olga para passar a noite ali, à espera de Barnabás, ele rejeitou; em si mesma ele poderia tê-la aceitado, pois já era tarde da noite e lhe parecia que agora, quisesse ou não, estava ligado àquela família de tal modo que pousar lá talvez pudesse ser penoso por outros motivos; levando porém em conta essa ligação, para ele era a coisa mais natural, em toda a aldeia; apesar de tudo ele recusou, a visita do ajudante o havia assustado, não entendia como é que Frieda, que com certeza conhecia suas vontades, e os ajudantes, que haviam aprendido a temê-lo, estivessem novamente tão próximos que Frieda não temia enviar um ajudante para buscá-lo; aliás, um só, ao passo que o outro tinha com certeza ficado com ela. Perguntou a Olga se ela dispunha de um chicote; ela não dispunha, mas possuía uma boa vara de salgueiro, que ele pegou; depois perguntou se havia uma segunda saída da casa, a saída existia através do pátio, só era preciso escalar a cerca do jardim vizinho e por esse jardim se chegava à rua. K. queria fazer isso. Enquanto Olga o dirigia através do pátio e o levava até a cerca, ele tentou rapidamente acalmá-la em relação a suas preocupações, esclarecendo que não havia ficado bravo por causa dos pequenos truques dela na narrativa, mas a entendia muito bem, agradecia pela confiança que mostrara em relação a ele e a encarregou de mandar Barnabás até a escola logo depois que retornasse, mesmo que fosse à noite. Na verdade as mensagens de Barnabás não eram sua única esperança, caso contrário as coisas estariam mal para ele; não queria porém renunciar de maneira alguma a elas, pretendia apegar-se a todas e ao mesmo tempo não esquecer de Olga, pois Olga era para ele quase mais importante ainda do que as mensagens — de sua coragem, prudência, esperteza e auto-sacrifício pela família. Se tivesse de escolher entre Olga e Amália, isso não lhe custaria muita reflexão. E apertou-lhe calorosamente a mão enquanto já se balançava sobre a cerca do jardim vizinho. Quando depois estava na rua, viu — na medida em que a noite turva o permitia — a casa de Barnabás lá em cima e diante dela, mais uma vez, o ajudante, andando de um lado para outro; às vezes ele parava e tentava iluminar, através da janela coberta pela cortina, dentro da sala. K. o chamou em voz alta; sem se deixar assustar de modo visível, parou de espionar a casa e se dirigiu a K. — Quem você está procurando? — perguntou K. e experimentou na coxa a flexibilidade da vara de salgueiro. — Você — disse o ajudante se aproximando. — Quem é você, então? — disse K. de repente, pois não parecia ser o ajudante. Tinha o ar mais envelhecido, mais cansado, era mais enrugado, mas o rosto era cheio e seu modo de andar era completamente diferente do jeito de andar esbelto e como que eletrizado dos ajudantes; era lento, mancava um pouco, distintamente enfermiço. — Você não me reconhece? — perguntou o homem. — Jeremias, seu velho ajudante. — É mesmo? — disse K. e puxou um pouco para fora outra vez a vara de salgueiro que havia escondido atrás das costas. — Você porém parece totalmente outro. — É porque estou sozinho — disse Jeremias. — Se estou só, a alegre juventude vai embora. — Onde está Arthur, então? — perguntou K. — Arthur? — perguntou Jeremias. — O querido pequeno? Ele deixou o serviço. Você foi um pouco duro demais conosco. Aquela alma delicada não o suportou. Ele voltou ao castelo e apresentou queixa contra você. — E você? — perguntou K. — Eu pude ficar — disse Jeremias. — Arthur fez a queixa por mim também. — Do que vocês se queixam, então? — perguntou K. — Do fato de que você não entende uma brincadeira — disse Jeremias. — O que é que nós fizemos? Brincamos um pouco, rimos um pouco, amolamos um pouco sua noiva. Tudo de acordo com as ordens, por sinal. Quando Galater nos mandou para você... — Galater? — perguntou K. — Sim, Galater — disse Jeremias. — Ele estava representando Klamm naquela ocasião. Quando nos mandou a você, ele disse — notei bem, pois depois foi essa a base da nossa queixa —: vocês vão para lá como ajudantes do agrimensor. Nós dissemos: mas não entendemos nada desse trabalho. Ao que ele replicou: não é isso o essencial; se for necessário, K. vai ensiná-los. O essencial, entretanto, é que vocês o alegrem um pouco. Conforme me informaram, ele leva tudo muito a sério. Acaba de chegar à aldeia e isso é logo um grande acontecimento para ele, embora na realidade não o seja. É isso que vocês devem ensinar a ele. — Bem — disse K. —, Galater tinha razão e vocês realizaram essa incumbência? — Não sei — disse Jeremias. — No curto prazo não foi decerto possível. Sei apenas que você foi muito grosseiro e é sobre isso que levantamos a queixa. Não compreendo como você, que é também só um empregado e nem mesmo um empregado do castelo, não pode perceber que esse ofício é um trabalho duro, e que é muito injusto, malvado, quase pueril, tornar difícil o trabalho a quem trabalha, como você o fez. Essa falta de consideração, com que nos obrigou a gelar na grade ou como quase matou com o punho Arthur no colchão — uma pessoa que uma palavra de ódio pode fazer sofrer durante dias —, ou então ainda como à tarde me perseguiu para cima e para baixo na neve, de tal forma que precisei depois de uma hora para me recuperar da correria. Eu certamente não sou mais jovem! — Caro Jeremias — disse K. —, você tem razão em tudo isso, só que devia apresentar tudo a Galater. Foi ele que, por vontade própria, os mandou, não os pedi a ele. E, uma vez que não os exigi, posso mandá-los de volta e teria preferido fazê-lo em paz e não pela violência; mas vocês evidentemente não queriam outra coisa. Por que, aliás, não veio logo até mim para falar abertamente como agora? — Porque eu estava em serviço — disse Jeremias. — Isso é evidente. — E agora, você não está mais? — perguntou K. — Agora não estou mais — disse Jeremias. — Arthur deu baixa do ofício no castelo ou pelo menos está em movimento o processo que deve nos livrar definitivamente dele. — Mas você ainda me procura como se estivesse exercendo o ofício — disse K. — Não — disse Jeremias. — Eu só o estou procurando para acalmar Frieda. Quando, aliás, você a abandonou por causa da moça da família de Barnabás, ela estava muito infeliz, não tanto em função da perda como de sua traição, embora tenha visto há muito tempo o que estava acontecendo e sofrido muito com isso. Acabo de ir até a janela da escola outra vez para verificar se você porventura tinha se tornado mais razoável. Mas você não estava lá. Só Frieda, que, sentada num banco, chorava. Então eu fui até ela e chegamos a um acordo. Já está tudo arranjado. Sou garçom da Hospedaria dos Senhores que serve os quartos, pelo menos enquanto minha situação no castelo não está resolvida e Frieda trabalha outra vez no balcão de bebidas. Para ela é melhor. Não faz sentido que ela se torne sua esposa. E você não consegue apreciar o sacrifício que ela queria fazer por sua causa. Mas agora a pobrezinha ainda se preocupa com a possibilidade de haver uma injustiça com você; talvez você não tivesse estado com as moças da casa de Barnabás. Naturalmente não podia haver dúvida sobre onde você estava, eu próprio fui até lá para constatá-lo de uma vez por todas; porque apesar de toda a agitação Frieda merece dormir finalmente tranqüila; eu também, por sinal. Por isso fui e encontrei não só você, mas ao mesmo tempo pude ainda ver que as moças o seguem pelo cabresto. Principalmente a morena, uma verdadeira gata selvagem, tomou o seu partido. Cada qual tem seu gosto. Seja como for, não era necessário que você tivesse feito o desvio pelo jardim do vizinho; eu conheço o caminho.
ACONTECEU ENTÃO O QUE ERA POSSÍVEL prever, mas não ser evitado. Frieda o havia deixado. Não se tratava de algo definitivo, mau assim não era; Frieda podia ser reconquistada, ela era fácil de sofrer a influência de pessoas estranhas, mesmo daqueles ajudantes, que consideravam o lugar de Frieda semelhante ao deles e que, agora que haviam dado baixa, tinham também levado Frieda a fazê-lo; K. porém precisava só confrontá-los, recordar de tudo o que o favorecia e com arrependimento ela seria sua outra vez, especialmente se por acaso pudesse se mostrar capaz de justificar sua visita às moças por algum êxito que devesse a elas. Apesar dessas reflexões, no entanto, através das quais tentava se reassegurar quanto a Frieda, ele não estava tranqüilizado. Ainda havia pouco tinha louvado Frieda para Olga, chamando-a de seu único apoio; bem, não era um apoio dos mais sólidos; para roubar Frieda de K. não era necessária a intervenção de alguém poderoso, bastava aquele ajudante não muito apetecível, aquele monte de carne, que às vezes dava a impressão de que não era exatamente vivo. Jeremias já começara a se distanciar, K. o chamou de volta. — Jeremias — disse ele. — Quero ser muito franco com você, me responda também com sinceridade a uma pergunta. Já não estamos mais na situação de patrão e servidor, sobre isso não só você está contente, mas eu também; não temos motivo, portanto, para enganarmos um ao outro. Aqui diante dos seus olhos eu quebro a vara de salgueiro que esteve destinada a você, pois não foi por medo da sua pessoa que escolhi o caminho pelo jardim, mas para surpreendê-lo e usar a vara em você algumas vezes. Bem, não me leve mais a mal, isso já passou; se não tivesse sido um criado que me foi imposto pela administração, e simplesmente meu conhecido, embora sua aparência às vezes me perturbe um pouco, nós teríamos nos suportado às mil maravilhas. Poderíamos, com efeito, recuperar agora o que perdemos nesse sentido. — Você acredita nisso? — disse o ajudante e esfregou os olhos cansados, bocejando. — Eu seria capaz de explicar-lhe a questão com mais minúcia, mas não tenho tempo, preciso encontrar Frieda, a pobrezinha me espera, ainda não assumiu o serviço, o gerente da hospedaria, atendendo aos meus argumentos — ela desejava, provavelmente para se esquecer, mergulhar logo no trabalho —, lhe havia concedido ainda um tempo breve de recuperação, que nós queremos passar ao menos um ao lado do outro. Quanto à sua proposta, não tenho certamente razão para mentir, tampouco para confiar alguma coisa a você. Para mim as coisas são diferentes do que para você. Enquanto estive numa relação de serviço com você, era natural que sua pessoa fosse muito importante para mim, não por causa das suas qualidades, mas do ofício, e teria feito por você tudo o que quisesse, mas agora você me é indiferente. A quebra da vara de salgueiro não me toca, lembra-me apenas o rude senhor que eu tinha; não é o tipo de coisa adequada para eu ser cativado por você. — Você fala comigo — disse K. — como se fosse uma certeza que nunca mais terá algo a temer de mim. Contudo, não é propriamente assim. É provável que não esteja ainda livre de mim; aqui as resoluções não têm lugar tão rápido... — Às vezes mais rápido ainda — objetou Jeremias. — Às vezes — disse K. —, porém nada indica que desta vez isso tenha acontecido, pelo menos nem você nem eu temos em mãos uma resolução por escrito. Portanto o procedimento está apenas caminhando e ainda não intervim com minhas ligações, embora vá fazê-lo. Se a decisão não for a seu favor, você não se preparou muito para levar o seu amo para o seu lado e quem sabe tenha sido até supérfluo quebrar a vara de salgueiro. E na verdade levou Frieda embora consigo, o que o deixa completamente cheio de si; porém com todo o respeito que tenho por sua pessoa, embora você não o tenha mais pela minha, algumas palavras dirigidas por mim a Frieda bastam, isso eu sei, para acabar com as mentiras com as quais a enredou. E só mentiras podem afastar Frieda de mim. — Essas ameaças não me assustam — disse Jeremias. — Você não me quer como ajudante de maneira alguma, sem dúvida teve medo de mim como ajudante, na verdade tem medo de ajudantes, só por medo bateu no bom Arthur. — Talvez — disse K. — Por acaso doeu menos por causa disso? Talvez eu ainda possa mostrar desse modo, com mais freqüência, meu temor de você. Se vejo que a condição de ajudante lhe dá pouca satisfação, é com o maior prazer, por outro lado — acima de qualquer medo —, que o forço a isso. Com efeito, vou considerar conveniente, desta vez, deixá-lo só, sem Arthur; assim poderei prestar mais atenção em você. — Você acha — disse Jeremias — que vou ter o menor medo diante de tudo isso? — Certamente que eu acho — disse K. — É indubitável que você tem um pouco de medo e, se for esperto, muito medo. De outra maneira, por que já não teria ido encontrar Frieda diretamente? Diga: está apaixonado por ela? — Apaixonado? — perguntou Jeremias. — Ela é uma moça boa e inteligente, uma ex-amante de Klamm, ou seja, respeitável a toda prova. E se me pede sem parar para livrá-la de você, por que não devia fazer-lhe esse favor, tendo em conta sobretudo que com isso eu não lhe causaria nenhum dano, agora que você se consolou com as moças da amaldiçoada família de Barnabás? — Vejo agora o seu medo — disse K. — Um medo totalmente lastimável, você tenta me enredar com mentiras. Frieda só pediu uma coisa: livrá-la dos ajudantes que haviam se tornado selvagens, caninamente lúbricos; infelizmente não tive tempo para atender aos seus pedidos e agora estão aí as conseqüências do meu descuido. — Senhor agrimensor! Senhor agrimensor! — gritou alguém na rua. Era Barnabás. Chegou sem fôlego, mas não se esqueceu de se inclinar perante K. — Consegui! — disse. — O que você conseguiu? — perguntou K. — Apresentou meu pedido a Klamm? — Isso não foi possível — disse Barnabás. — Eu me esforcei muito, mas era impossível, abri caminho, sempre em frente, fiquei em pé o dia todo, sem ser convidado, tão perto do estrado da escrivaninha que um escrivão, a quem eu tirava a luz, chegou a me empurrar de volta; eu me anunciei, o que é proibido, com a mão erguida, quando Klamm levantou o olhar; permaneci a maior parte do tempo na repartição; já estava lá, sozinho com os serventes, quando tive o prazer, uma vez mais, de ver Klamm, desta feita voltando; mas não era por minha causa, ele queria apenas verificar rapidamente alguma coisa num livro e foi de novo embora, depressa; finalmente o servente quase me varreu pela porta com a sua vassoura, pois eu continuava ali sem me mexer. Confesso tudo isso para que não fique outra vez insatisfeito com o que faço. — De que me adianta todo o seu zelo, Barnabás — disse K. —, se ele não leva a nada? — Mas fui bem-sucedido — disse Barnabás. — Quando saio da minha repartição — chamo-a assim — vejo um senhor que vem lentamente na minha direção do fundo dos corredores; o resto estava completamente vazio, já era muito tarde; decidi esperá-lo, era uma boa oportunidade de continuar ali; o que eu mais gostaria era de simplesmente permanecer lá, para não precisar trazer-lhe uma má notícia. Mas valeu a pena de qualquer modo esperar aquele senhor, era Erlanger. Você não o conhece? Ele é um dos primeiros secretários de Klamm. Um homem fraco e pequeno que manca um pouco. Reconheceu-me imediatamente, é famoso por causa de sua memória e do seu conhecimento dos homens; franze o cenho e isso já basta para reconhecer alguém, muitas vezes pessoas que nunca viu, só ouviu ou leu sobre elas; a mim, por exemplo, mal deve ter visto alguma vez. Apesar, no entanto, de reconhecer logo qualquer pessoa, pergunta primeiro, como se estivesse inseguro. “Você não é Barnabás?”, disse para mim. Depois perguntou: “Conhece o agrimensor, não é?”. Em seguida disse:
“Isso é bem conveniente. Estou indo agora para a Hospedaria dos Senhores. O agrimensor deve me visitar lá. Estou no quarto número 15. Mas ele teria de ir logo agora. Só tenho alguns compromissos lá e volto ao castelo às cinco da manhã. Diga-lhe que me interessa muito falar com ele”. De repente Jeremias se pôs a correr. Barnabás, que na excitação até aquela hora praticamente não tinha prestado atenção nele, perguntou: — O que é que Jeremias está querendo? — Chegar antes de mim ao encontro de Erlanger — disse K. Correu logo atrás de Jeremias, alcançou-o e se pendurou no seu braço, dizendo: — É a saudade de Frieda que repentinamente o assaltou? A minha não é menor e por isso vamos caminhar no mesmo passo. Diante da Hospedaria dos Senhores, que estava escura, havia um pequeno grupo de homens, dois ou três portando lanternas de mão, de tal modo que vários rostos eram reconhecíveis. K. descobriu só um conhecido, Gerstäcker, o carroceiro. Este o saudou perguntando: — Ainda continua na aldeia? — Sim — disse K. — Vim para ficar. — Isso não me interessa nem um pouco — disse Gerstäcker, tossiu vigorosamente e se voltou para os outros homens. Verificou-se que todos estavam esperando Erlanger. Este já havia chegado, mas, antes de receber as partes, ainda conferenciava com Momus. A conversa geral girava em torno do fato de que não se podia esperar na casa, mas ali fora, em pé, na neve. Na verdade não fazia muito frio, no entanto era uma desconsideração deixar as pessoas, talvez durante horas, à noite diante da hospedaria. Com certeza não era culpa de Erlanger, que, pelo contrário, era muito receptivo e dificilmente sabia disso; ele sem dúvida teria ficado furioso se o informassem a respeito da situação. A culpa era da gerente da Hospedaria dos Senhores, que, na sua pretensão já doentia de refinamento, não podia suportar que viessem de uma só vez muitas partes ao estabelecimento. — Uma vez que tem de ser assim e eles precisam vir — costumava dizer —, então, pelo amor de Deus, que venham sempre um depois do outro. E impusera que as pessoas, que primeiro haviam esperado simplesmente num corredor, depois na escada, em seguida na soleira, mais tarde no balcão de bebidas, fossem finalmente empurradas para a rua. E mesmo isso não a satisfez. Era insuportável para ela “estar sitiada” continuamente na própria casa, conforme se exprimia. Não conseguia entender para que, de qualquer modo, havia esse ir e vir das partes. — Para sujar os degraus da frente — disse-lhe certa vez, provavelmente com raiva, um funcionário em resposta à sua pergunta, mas para ela isso havia sido muito esclarecedor e tinha o hábito de citar com gosto essa frase. Sua ambição — e essa era uma coisa que vinha ao encontro dos desejos das partes — consistia na construção de um prédio em frente à Hospedaria dos Senhores, no qual as pessoas envolvidas pudessem aguardar. Seu maior desejo teria sido que as conversações com as partes e os inquéritos se realizassem fora da Hospedaria dos Senhores, mas os funcionários se opuseram e, quando eles se opunham seriamente, a senhora não tinha, naturalmente, condições de se impor; apesar disso, em questões secundárias ela exercia uma espécie de pequena tirania, graças ao seu zelo incansável e ao mesmo tempo ternamente feminino. As conversações e inquéritos, entretanto, a senhoria presumivelmente teria de continuar suportando ali na Hospedaria dos Senhores, pois os senhores do castelo se recusavam a deixá-la, ao cuidarem de assuntos oficiais na aldeia. Estavam sempre com pressa, só contra a vontade é que permaneciam na aldeia, não tinham o mínimo desejo de estender sua estada além do estritamente necessário e conseqüentemente não se podia exigir deles, só por consideração à paz doméstica na Hospedaria dos Senhores, que atravessassem temporariamente a rua, com todos os seus papéis, para ocupar alguma outra casa, assim perdendo tempo. Os funcionários gostavam muito mais de despachar os problemas administrativos no balcão de bebidas, ou então no seu quarto, se possível durante as refeições; ou ainda na cama, antes de adormecer; ou logo de manhã, quando se levantavam cansados demais e queriam ainda se espreguiçar um pouco. Por outro lado, o tema da construção de um edifício de espera parecia se aproximar de uma solução favorável; certamente se tratava de uma pena sensível para a gerente — ria-se um pouco disso —, pois justamente o assunto do prédio de espera tornava necessárias numerosas discussões e as passagens da hospedaria praticamente não se esvaziavam. Entre as pessoas que esperavam, a conversa girava a meia voz em torno de todas essas coisas. Chamou a atenção de K. o fato de que havia bastante descontentamento, mas ninguém tinha objeções à convocação de Erlanger no meio da noite. Ele fez perguntas a esse respeito e recebeu a informação de que era preciso até mesmo ser muito grato a Erlanger por causa disso. Era exclusivamente a boa vontade e o elevado conceito que conferiam ao seu ofício que o moviam a ir à aldeia; na verdade poderia, se quisesse — e essa atitude talvez correspondesse melhor aos regulamentos —, enviar algum secretário de nível inferior e receber da parte dele os protocolos. Ele porém se recusava, na maioria das vezes, a fazer isso: queria ver e ouvir tudo pessoalmente, mas para alcançar esse objetivo precisava sacrificar as noites, pois no seu plano de trabalho administrativo não se previa tempo para viagens à aldeia. K. objetou que o próprio Klamm vinha à aldeia durante o dia, permanecendo ali até por vários dias; será então que Erlanger, que era apenas secretário, se mostrava mais indispensável lá em cima? Alguns riam bem-humoradamente, outros silenciavam embaraçados; estes últimos prevaleciam e K. não teve resposta. Apenas um disse, com hesitação, que naturalmente Klamm era indispensável tanto no castelo como na aldeia. Foi então que a porta da frente se abriu e Momus apareceu entre dois criados que traziam lanternas. — Os primeiros a serem recebidos pelo secretário senhor Erlanger — disse ele — são Gerstäcker e K. Ambos estão aqui? Os dois se apresentaram, mas por entre eles deslizou Jeremias dizendo: “Sou criado de quarto aqui” e foi introduzido na casa por Momus, que sorria dandolhe um tapa nos ombros como cumprimento. “Vou ter que prestar mais atenção em Jeremias”, disse K. consigo mesmo, momento em que ficou consciente de que Jeremias provavelmente era muito mais inofensivo do que Arthur, que trabalhava no castelo contra ele. Talvez fosse até mais inteligente permitir ser atormentado por eles como ajudantes do que deixá-los ir de um lado para outro tão sem controle, livres para tramar suas intrigas, para as quais pareciam ter um talento particular. Quando K. passou por Momus, este fez como se só então reconhecesse nele o agrimensor. — Ah, o senhor agrimensor! — disse. — Aquele que tem aversão a ser inquirido e que neste momento se apressa para o interrogatório. Comigo isso teria sido mais simples, antes. Agora certamente é difícil escolher os inquéritos certos. Quando K., ao ser interpelado desse modo, quis permanecer ali em pé, Momus disse: — Vá andando, vá andando! Antes eu teria necessitado das suas respostas, agora não. Apesar disso K. disse, provocado pelo comportamento de Momus: — Vocês só pensam em si mesmos. Meramente por causa da administração eu não respondo, nem antes nem agora. Momus disse: — Em quem devemos pensar então? Quem mais está aqui? Vá andando! Na entrada foi recebido por um servidor que conduziu K. pelo caminho já conhecido através do pátio, depois pelo portão e pela passagem baixa que fazia um pequeno declive. Obviamente só os funcionários mais graduados ficavam hospedados nos andares superiores; os secretários, pelo contrário, ficavam nessa passagem, Erlanger também, embora fosse um dos mais graduados. O servidor apagou sua lanterna, pois ali havia uma clara iluminação elétrica. Tudo naquele lugar era pequeno mas delicadamente construído. O espaço tinha sido usado o máximo possível. A passagem era alta o suficiente para uma pessoa andar ereta por ela. Dos dois lados havia uma porta praticamente colada à outra. As paredes laterais não chegavam até o teto; esse fato se devia, provavelmente, a considerações sobre a ventilação, pois os quartinhos instalados na passagem profunda, semelhante a um porão, não tinham janelas. A desvantagem dessas paredes que não se fechavam por completo era o barulho no corredor e necessariamente também nos quartos. Muitos deles pareciam estar ocupados, na maioria as pessoas permaneciam acordadas, ouviam-se vozes, batidas de martelo, tinir de copos. Porém não havia nenhuma impressão especial de alegria. As vozes eram abafadas, mal se entendia aqui e ali uma palavra, parecia também não haver conversas, provavelmente só alguém ditava alguma coisa ou lia algo em voz alta; justamente dos quartos dos quais provinha o som de copos e talheres não se escutava uma palavra, e as batidas de martelo lembravam a K. o que em algum lugar lhe haviam contado: que certos funcionários, para se recuperar do esforço mental contínuo, se ocupavam de tempos em tempos com marcenaria, mecânica de precisão e coisas do gênero. A passagem propriamente dita estava vazia; só diante de uma porta permanecia sentado um senhor pálido, magro e alto, num casaco de pele debaixo do qual aparecia a roupa de dormir; possivelmente estava muito abafado para ele no quarto, por isso havia se sentado fora e ali ele lia um jornal, mas sem prestar atenção; bocejando deixava com freqüência de ler, vergava para a frente e olhava ao longo do corredor, talvez esperasse o portador de uma petição que tinha intimado a vir e que demorava a chegar. Quando passava por ele, o servidor disse a Gerstäcker sobre aquele senhor: — O Pinzgauer! Gerstäcker anuiu com a cabeça: — Fazia tempo que ele não descia para cá. — Fazia tempo que não — confirmou o servidor. Afinal chegaram diante de uma porta, que não era diferente das demais e atrás da qual, conforme comunicou o servidor, Erlanger habitava. O servidor pediu a K. que o pusesse sobre os ombros e espiou pela fenda livre para o interior do quarto. — Ele está deitado — disse o servidor descendo. — Deitado na cama, mas de roupa; julgo porém que está cochilando. Às vezes o cansaço o acomete dessa forma aqui na aldeia por causa do modo de vida alterado. Teremos de esperar. Quando ele acordar, vai tocar a campainha. Já aconteceu, contudo, que passou toda a sua temporada na aldeia dormindo e depois de acordar precisou logo voltar para o castelo. É um trabalho voluntário o que ele realiza aqui. — Que ele durma agora até o fim — disse Gerstäcker. — Quando, depois de despertar, ainda tem um pouco de tempo para trabalhar, fica irritado com o fato de ter dormido, tenta resolver tudo depressa e mal se pode conversar. — Você veio por causa da distribuição dos carretos para o canteiro de obras? — perguntou o servidor. Gerstäcker acenou com a cabeça, puxou o servidor de lado e falou em voz baixa com ele, mas o servidor praticamente não escutava, estava olhando por cima de Gerstäcker, a quem ultrapassava em altura por mais de uma cabeça, e alisava o cabelo séria e lentamente.
AO OLHAR EM VOLTA, sem objetivo definido, K. viu bem a distância Frieda numa curva da passagem; ela fez como se não o conhecesse, fitando-o apenas; levava na mão uma bandeja com pratos vazios. Ele disse ao servidor, que no entanto não prestou atenção — quanto mais se falava a esse servidor, tão mais distraído ele parecia estar —, que ia voltar logo e saiu correndo em direção a Frieda. Ao chegar a ela, segurou-a pelos ombros, como se retomasse sua posse, fez algumas perguntas sem importância, perscrutando nesse lance os seus olhos. Mas a postura rígida dela praticamente não se desfez; procurou fazer, distraída, alguns rearranjos da louça na bandeja e disse: — O que quer de mim? Vá atrás daquelas... você sabe como elas se chamam, está vindo neste momento da casa delas, posso perceber isso quando olho para você. K. mudou rápido de assunto; a conversa não devia começar tão abruptamente e a respeito da pior das coisas, daquelas que eram as menos favoráveis a ele. — Julguei que você estava no balcão de bebidas do albergue — disse ele. Frieda olhou espantada para ele e passou a mão que estava livre sobre a testa e a maçã do rosto dele. Era como se tivesse esquecido a aparência de K. e quisesse trazê-la de volta à consciência desse modo; seus olhos também tinham a expressão velada do esforço da memória. — Fui readmitida para trabalhar no balcão de bebidas — disse depois com vagar, de tal maneira que o que estava falando parecia sem importância, mas sob as palavras ainda conversava com K. e isso era o mais importante. — Este trabalho não me serve, qualquer outra pode providenciá-lo; qualquer uma que saiba fazer uma cama, mostrar um rosto amigável e não se importunar com os clientes, antes estimulando-os a agir desse modo, qualquer uma assim pode ser camareira. Mas no balcão é algo diferente. Fui logo readmitida para trabalhar lá, embora o tenha abandonado anteriormente de uma forma não muito honrosa, certamente porque eu tinha proteção. O gerente da hospedaria, porém, estava feliz porque tinha proteção e, possivelmente, por isso foi fácil me readmitir. Aconteceu até que precisaram me pressionar para assumir o posto; se você pensar no que o balcão me faz lembrar, vai entender. Afinal aceitei o lugar. Estou aqui só provisoriamente. Pepi pediu que não lhe causassem a vergonha de ter de deixar imediatamente o balcão, por isso nós lhe demos um prazo de vinte e quatro horas, uma vez que ela foi sem dúvida diligente e tomou conta de tudo como só sua capacidade teria permitido. — Está tudo muito bem arrumado — disse K. — Só que no passado você deixou o balcão por minha causa e é agora, a pouco tempo do casamento, que você volta a ele? — Não vai haver casamento — disse Frieda. — Porque fui infiel? — perguntou K. Frieda acenou com a cabeça. — Veja, Frieda — disse K. — Sobre essa suposta infidelidade nós já falamos várias vezes e no fim você teve de admitir que a suspeita era injusta. Desde então, no entanto, nada mudou da minha parte, tudo permaneceu tão inocente como era e nunca poderá ser diferente. Sendo assim, alguma coisa deve ter mudado do seu lado, através de insinuações de terceiros ou algo semelhante. De qualquer modo você comete uma injustiça comigo, pois veja: o que se passa com essas duas moças? Uma, a morena — quase me envergonho por precisar me defender em detalhe, mas é você que o provoca —, a morena, portanto, é provavelmente um embaraço não menor para mim do que para você; mas posso de algum modo me distanciar dela, eu o faço e ela também o facilita, não é possível ser mais discreto do que ela é. — Sim! — exclamou Frieda; as palavras lhe vinham como se fosse contra sua vontade; K. estava contente por tê-la desviado assim do assunto; ela estava sendo diferente do que queria. — Ela pode ser discreta para você; a mais desavergonhada de todas você chama de discreta e acredita nisso, por mais inacreditável que seja, honestamente; você não distorce as coisas, eu sei. A dona do Albergue da Ponte diz sobre você: não posso suportá-lo, mas também não posso abandoná-lo; à vista de uma criança pequena, que ainda não sabe andar direito e se precipita em frente, é impossível se dominar, torna-se necessário intervir. — Desta vez assuma o ensinamento dela — disse K. sorrindo. — Mas aquela jovem, seja recatada ou desavergonhada, nós podemos deixar de lado, não quero saber nada dela. — Mas por que você a chama de recatada? — perguntou Frieda inflexível; K. considerou essa participação um sinal favorável a ele. — Você testou isso ou quer rebaixar as outras? — Nem uma coisa nem outra — disse K. — Eu a chamo desse modo por gratidão, porque ela me torna fácil não prestar atenção nela e porque, mesmo que me interpelasse com mais freqüência, eu não conseguiria voltar lá, o que de fato seria uma grande perda para mim, pois tenho de ir por causa do nosso futuro em comum, como você sabe. É por isso que preciso falar também com a outra jovem, que na verdade estimo por sua competência, prudência e abnegação, e de quem ninguém pode afirmar que seja sedutora. — Os servos têm outra opinião — disse Frieda. — Tanto neste como em muitos outros aspectos — disse K. — Você não vai querer deduzir da luxúria dos servos a minha infidelidade, não é? Frieda silenciou e permitiu que K. tirasse de sua mão a bandeja, a colocasse no chão, enfiasse o braço sob o dela e começasse a ir de lá para cá, devagar, com ela, no pequeno espaço. — Você não sabe o que é fidelidade — disse ela, se defendendo um pouco da sua proximidade. — O mais importante não é a maneira como quer se comportar com as moças; o fato de que vá e volte ao seio dessa família, o cheiro da sala de jantar deles nas suas roupas já é uma vergonha intolerável para mim. E você sai correndo da escola sem dizer nada. E fica na casa delas metade da noite. E, quando perguntam por você, manda as moças dizerem que não está, elas dizem isso com fervor, sobretudo a que é incomparavelmente recatada. Esgueira-se por um caminho secreto para fora de casa, talvez para proteger a reputação daquelas jovens, a reputação daquelas jovens! Não, não vamos mais falar sobre isso! — Sobre isso, não — disse K. — Mas sobre outra coisa, Frieda. A respeito disso já não há o que dizer. Por que preciso ir até lá você sabe. Não é fácil, mas eu me forço. Você não devia tornar as coisas mais difíceis do que são. Pensei hoje por um instante em ir até lá e perguntar se Barnabás, que há muito tempo tem de me entregar uma mensagem importante, afinal chegou. Ele não havia chegado, mas, como me garantiram e era digno de fé, devia chegar muito em breve. Não queria mandar que ele fosse atrás de mim na escola para não a molestar com sua presença. As horas se passaram e infelizmente Barnabás não chegou. Mas veio outro, que me é odioso. Eu não tinha vontade alguma de deixar que ele me espionasse e por isso caminhei pelo jardim vizinho; mas também não queria me esconder dele, por isso fui pela rua, espontaneamente, em direção a ele, com uma vara de salgueiro flexível na mão, coisa que admito. Isso é tudo, portanto não há mais nada a dizer; mas sem dúvida há o que dizer sobre algo diferente. O que acontece com os ajudantes, que só o fato de citá-los me é tão repulsivo como, para você, a menção daquela família? Compare sua relação com eles e o modo como me comporto com a família de Barnabás. Entendo sua aversão por ela e posso partilhar desse sentimento. É só em função do meu caso que vou visitá-los; às vezes quase me parece que cometo uma injustiça com eles, que eu os uso. Veja agora você e os ajudantes. Não negou em absoluto que eles a perseguem e admitiu que isso a atrai. Não fiquei zangado com você por causa disso, percebi que aqui estão em jogo forças com as quais não podia competir, estava feliz já com o fato de que você ao menos se defende, ajudei-a a se defender e só porque não prestei atenção durante algumas horas, confiando em sua fidelidade, seja como for também na esperança de que a casa estivesse rigorosamente fechada e que os ajudantes tinham fugido definitivamente — continuo a subestimá-los, é o que receio —, só porque relaxei a atenção um par de horas e aquele Jeremias, que visto de perto é um rapaz não muito sadio, envelhecido, teve o atrevimento de ir até a janela; só por isso, Frieda, devo perdê-la e ouvir como saudação: “Não vai haver casamento algum”. Na verdade sou aquele que pode fazer censuras, mas não as faço, continuo a não fazê-las. E outra vez pareceu bom a K. ter desviado Frieda um pouco do assunto; pediulhe que trouxesse alguma coisa para comer porque desde o meio-dia não havia comido nada. Frieda, evidentemente aliviada pelo pedido, fez sim com a cabeça e correu para pegar a comida, seguindo não pela passagem, onde K. supunha estar a cozinha, mas de lado, alguns degraus para baixo. Ela logo apareceu com um prato de frios e uma garrafa de vinho; mas eram apenas os restos de uma refeição, os pedaços isolados tinham sido rearranjados para tornar o todo irreconhecível, havia ali até peles de salsicha e a garrafa de vinho estava esvaziada em três quartos. K. porém não falou nada sobre isso e se pôs a comer com muito apetite. — Você esteve na cozinha? — perguntou. — Não, em meu quarto — disse ela. — Tenho um quarto aqui embaixo. — Se você tivesse me levado — disse K. — eu teria descido para me sentar um pouco enquanto comia. — Vou trazer uma cadeira para você — disse Frieda pondo-se a caminho. — Obrigado — disse K. e a reteve. — Não vou nem descer nem preciso mais de uma cadeira. Frieda só tolerou com resistência que ele a retivesse, inclinou fundo a cabeça e mordeu os lábios. — Muito bem, ele está aqui embaixo — disse ela. — Você esperava outra coisa? Está deitado na minha cama, se resfriou lá fora, tem febre, quase não comeu. No fundo é tudo culpa sua, se não tivesse expulsado os ajudantes, nem corrido atrás daquela gente, poderíamos agora estar tranqüilamente sentados na escola. Foi só você que destruiu nossa felicidade. Acredita que Jeremias tentasse me seqüestrar enquanto estava em serviço? Se for assim, desconhece absolutamente o sistema que existe aqui. Ele queria vir até mim, se atormentava, ficava à minha espreita, mas isso era apenas um jogo, como um cão faminto brinca e não ousa saltar sobre a mesa. O mesmo acontecia comigo. Tinha atração por ele, é meu companheiro de jogos desde a infância — brincávamos juntos na encosta da montanha do castelo, belos tempos aqueles, você nunca me perguntou sobre meu passado —, mas nada disso era decisivo enquanto Jeremias ficava restringido pelo ofício, pois eu conhecia meu dever como sua futura mulher. Depois, no entanto, você despachou os ajudantes e ainda agora se vangloria por isso, como se tivesse feito algo por mim; bem, num certo sentido isso é verdade. Sua intenção deu certo em relação a Arthur, embora só temporariamente; ele é terno, não tem a paixão de Jeremias, que não receia dificuldade alguma; com um soco, naquela noite — o golpe também foi dado contra nossa felicidade —, você quase o destruiu, ele fugiu para o castelo a fim de se queixar e, mesmo que volte em breve, no momento está longe daqui. Jeremias entretanto ficou. Em serviço ele teme um pestanejar do seu senhor, mas fora dele não tem medo de nada. Ele veio e tomou posse de mim; abandonada por você, controlada por ele, o velho amigo, não pude fazer nada. Não abri a porta da escola, ele arrombou a janela e me puxou para fora. Fugimos para cá, o gerente da hospedaria o estima, aos clientes também nada pode ser mais bem-vindo do que ter um criado de quarto assim, por isso fomos aceitos, ele não vive comigo, mas temos um quarto em comum. — Apesar de tudo — disse K. — não lamento ter expulsado os ajudantes do serviço. Se nossa relação, como você a descreve, e sua fidelidade estão condicionadas apenas pelo vínculo de ofício dos ajudantes em relação a nós, então foi bom que tudo tenha chegado ao fim. A felicidade do casamento, no meio de dois bichos de rapina que só abaixam a cabeça sob o chicote, não teria sido muito grande. Além disso também sou grato àquela família, que involuntariamente contribuiu para nos separar. Os dois silenciaram e ficaram outra vez andando de cima para baixo, sem que fosse necessário decidir quem agora havia começado. Frieda, próxima a K., parecia furiosa com o fato de que ele não a tomasse outra vez pelo braço. — Desse modo tudo estaria em ordem — prosseguiu K. — e nós poderíamos nos despedir, você ir para o seu senhor Jeremias, que provavelmente ainda está resfriado por ter ficado no jardim da escola e a quem você, em respeito a isso, já deixou tempo demais sozinho, e eu, só, na escola; ou então, já que sem você não tenho nada o que fazer lá, em qualquer outro lugar onde seja acolhido. Apesar disso, se agora hesito, é porque continuo duvidando um pouco, com um bom motivo, do que me contou. Tenho sobre Jeremias a impressão oposta. Enquanto ele esteve em serviço, andou atrás de você e não creio que o ofício o tivesse contido de forma duradoura de atacá-la a sério em algum momento. Agora, porém, desde que considera suspenso o serviço, é diferente. Perdão, se me explico da seguinte maneira: desde que você não é mais noiva do seu patrão, não é também mais nenhuma atração para ele como o foi antes. Você pode ser sua amiga de infância, mas ele — na verdade só o conheço por uma breve conversa hoje à noite — não dá muito valor, na minha opinião, a essas questões de sentimento. Não sei por que ele parece a você um caráter apaixonado. O modo de pensar dele me soa particularmente frio. Em relação a mim, Jeremias recebeu alguma incumbência, talvez não muito favorável, de Galater; esforça-se por executá-la com um certo fervor de ofício, quero admitir — não é uma coisa muito rara aqui; faz parte dessa incumbência destruir nossa relação; talvez ele o tenha tentado de formas variadas; uma delas era tentar seduzi-la com seus suspiros lúbricos, a outra — e aqui a dona do Albergue da Ponte o apoiou — inventar histórias sobre minha infidelidade; o ataque dele foi bem-sucedido, alguma lembrança de Klamm, que o cerca, pode ter ajudado; o posto ele de fato perdeu, mas talvez justo no momento em que não precisava mais dele; agora colhe os frutos do seu trabalho e a puxa pela janela da escola; com isso está terminada sua tarefa e, abandonado pelo fervor do ofício, fica cansado, gostaria de estar no lugar de Arthur, que não se queixa de modo algum, mas recolhe louvor e novas tarefas; alguém porém tem de ficar aqui, sem dúvida, acompanhando o desenvolvimento posterior das coisas. É um trabalho tedioso para ele permanecer cuidando de você. Não há nenhum vestígio de amor à sua pessoa; confessou-me abertamente que, como amante de Klamm, você naturalmente é respeitável para ele e faz-lhe com certeza muito bem se aninhar no seu quarto e se sentir um pequeno Klamm, mas isso é tudo; você mesma não significa nada para ele, agora; o fato de tê-la abrigado aqui é apenas um acréscimo à sua principal obrigação; para não a inquietar, ele próprio ficou, mas só temporariamente, enquanto não recebe novas notícias do castelo e seu resfriado não está curado por você. — Como você o calunia! — exclamou Frieda, batendo seus pequenos punhos um no outro. — Caluniar? — disse K. — Não, não quero caluniá-lo. Mas é provável que eu lhe faça uma injustiça, isso certamente pode ocorrer. Veja, não é em absoluto óbvio de imediato o que disse a respeito dele; está aberto a outras interpretações. Mas caluniar? Caluniar só poderia ter como objetivo lutar, por esse meio, contra o seu amor por ele. Se fosse necessário e a calúnia constituísse um método adequado, não hesitaria em caluniá-lo. Ninguém, por isso, poderia me condenar; através de seu mandante, Galater, ele está numa tal vantagem em relação a mim, que eu, totalmente dependente das minhas forças, teria permissão de caluniá-lo um pouco também. Seria um meio de defesa relativamente inocente e, no final, também impotente. Deixemos pois que os punhos descansem. E K. tomou a mão de Frieda na sua; Frieda quis se esquivar dele, embora sorrindo e sem muito dispêndio de energia. — Mas não preciso caluniar — disse K. —, pois você não o ama, apenas acredita nisso e será grata a mim quando eu a livrar do engano. Veja, se alguém quisesse tirá-la de mim sem violência, mas com o cálculo o mais possível cauteloso, precisaria fazê-lo por intermédio dos dois ajudantes. Jovens aparentemente bons, infantis, engraçados, irresponsáveis, que desceram do alto, do castelo, com alguma lembrança de infância em tudo isso, é uma coisa decerto muito amável, sobretudo se por acaso sou exatamente o contrário disso: corro, sem parar, atrás de negócios que não são inteiramente compreensíveis para você, que a fazem se irritar, que me aproximam de pessoas que lhe são odiosas e me transmitem algo disso por maior que seja minha inocência. O conjunto é apenas uma exploração maldosa, apesar de muito engenhosa, das carências de nossa relação. Toda relação tem suas faltas, a nossa também; encontramo-nos vindo cada qual de um mundo inteiramente diverso e, desde que nos conhecemos, a vida de cada um tomou um caminho totalmente novo, ainda nos sentimos inseguros, é tudo novo demais. Não falo de mim, isso não é tão importante, no fundo sempre foi uma dádiva desde que você pela primeira vez voltou os olhos para mim, e habituar-se às dádivas não é muito difícil. Você, entretanto, abstraindo tudo o mais, foi arrancada de Klamm, não consigo medir o que isso significa, mas aos poucos fui tendo uma idéia, a pessoa sofre uma vertigem, não é capaz de se orientar e, embora sempre estivesse pronto para recebê-la, nem sempre estava presente, e, quando estava, muitas vezes seus devaneios ou algo mais vivo a seguravam, como por exemplo a dona do albergue: em suma, houve épocas em que você desviava o olhar de mim, aspirando penetrar em algo semi-indefinido, pobrezinha; e nesses interregnos era necessário apenas que pessoas adequadas fossem alinhadas na direção do seu olhar para que se perdesse nelas, caía na ilusão de que aquilo que no fundo eram só momentos, fantasmas, velhas recordações, existência única do passado que se consumia cada vez mais, que isso ainda era sua vida contemporânea e real. Um erro, Frieda, nada senão a última dificuldade, vista corretamente, desprezível de nossa união final. Volte a si, se componha; se pensasse também que os ajudantes são mandados por Klamm — não é absolutamente verdade, são mandados por Galater — e se eles puderam enfeitiçála com apoio nessa ilusão, que você própria julga encontrar, na sujeira e indecência deles, vestígios de Klamm, como alguém acredita ver num monte de excrementos uma pedra preciosa outrora perdida, ao passo que não poderia, na realidade, encontrá-la de modo algum ali, mesmo que ela estivesse lá — assim são, sem dúvida, apenas rapazes da laia dos servos dos estábulos, só que não têm a saúde deles, um pouco de vento fresco os torna doentes e os atira na cama, a qual eles de qualquer forma conseguem procurar e achar com malícia servil. Frieda havia inclinado a cabeça sobre o ombro de K.; com os braços enlaçados na cintura um do outro, eles andavam em silêncio de cima para baixo. — Se tivéssemos — disse Frieda devagar, tranqüila, quase com bem-estar, como se soubesse que lhe era concedido um prazo muito breve de descanso no ombro de K., mas quisesse fruí-lo até o último —, se tivéssemos logo, ainda naquela noite, emigrado, poderíamos estar em algum lugar em segurança, sempre juntos, sua mão sempre próxima o bastante para eu a segurar; como me é necessária sua proximidade, como, desde que o conheço, me sinto abandonada sem a sua proximidade; creia-me, sua proximidade é o único sonho que sou capaz de sonhar, nenhum outro. Nesse momento gritaram do lado do corredor; era Jeremias, estava em pé no degrau mais baixo, em mangas de camisa, mas tinha enrolado em torno de si um xale de Frieda. O modo como estava ali, o cabelo revolto, a barba rala como que molhada de chuva, os olhos arregalados com esforço, suplicantes e ressentidos, as maçãs do rosto avermelhadas mas parecendo consistir de carne solta demais, as pernas nuas tremendo de frio, de tal forma que as longas franjas do xale estremeciam juntas, o modo como estava ali era o de um doente fugido do hospital, diante do qual não se devia pensar em outra coisa senão em levá-lo de volta à cama. Foi assim que Frieda entendeu a situação, desfez-se de K. e logo estava lá embaixo ao lado de Jeremias. A proximidade dela, a maneira cuidadosa com que apertava mais o xale em volta dele, a pressa com que imediatamente quis empurrá-lo de volta ao quarto deram a impressão de torná-lo um pouco mais forte; era como se só agora reconhecesse K. — Ah, o senhor agrimensor — disse Jeremias. Frieda, que não queria permitir mais nenhuma conversa, passou a mão no rosto dele como um consolo. Jeremias prosseguiu: — Desculpe a interrupção, senhor agrimensor. Não estou nem um pouco bem, isso se justifica. Creio que tenho febre, preciso tomar um chá e transpirar. A maldita grade no jardim da escola — ainda tenho de pensar nisso —, depois, já resfriado, tive de ficar correndo por aí durante a noite. As pessoas sacrificam, sem perceber logo, a sua saúde por coisas que na verdade não o merecem. Mas o senhor agrimensor não precisa se deixar importunar por mim, entre conosco em nosso quarto, faça uma visita ao doente e diga então a Frieda o que ainda tem a dizer. Quando duas pessoas que estão habituadas uma à outra se despedem, têm naturalmente tanto a falar uma para a outra nos últimos instantes, que um terceiro, mesmo que esteja deitado na cama e espere o chá prometido, mostra falta de possibilidade de entender. Mas entre, entre, vou ficar completamente quieto. — Basta, basta — disse Frieda, agarrando o braço de Jeremias. — Ele está com febre e não sabe o que fala. Você, porém, K., não entre, eu lhe peço. É o meu quarto e o de Jeremias, ou antes: o quarto é só meu, proíbo-o de entrar conosco. Você me persegue, K., ah, por que me persegue? Nunca, nunca mais vou voltar para você; tremo só de pensar nessa possibilidade. Vá para as suas moças; conforme me contaram, elas ficam sentadas de camisola no banco do aquecedor ao seu lado; e se alguém vai buscá-lo, elas cospem nele. Certamente lá você está em casa, pois isso o atrai tanto. Sempre o retive para que não fosse lá; com pouco sucesso, mas, seja como for, retive; isso já passou, você está livre. Uma bela vida está à sua frente: por causa de uma delas terá talvez de lutar um pouco com os servos, mas no que diz respeito à segunda, não há ninguém, no céu e na Terra, que tenha inveja de você por causa dela. A aliança está abençoada de antemão. Não diga nada contra; sem dúvida pode refutar tudo, mas no final nada foi refutado. Pense só, Jeremias, ele refutou tudo! Trocaram entre si acenos de cabeça e sorrisos. — Mas — continuou Frieda —, supondo que ele negou tudo, o que teria sido alcançado com isso? O que me importa? Como as coisas podem acontecer com aquelas lá é totalmente assunto delas e dele, não meu. O meu é cuidar de você, Jeremias, até que você fique bem como estava antes — antes que K. o atormentasse por minha causa. — O senhor realmente não vem junto, senhor agrimensor? — perguntou Jeremias, mas Frieda, que não se voltou mais para K., puxou-o definitivamente. Embaixo via-se uma pequena porta, mais baixa que as portas da passagem em cima; não só Jeremias, mas Frieda também, teve de se abaixar para entrar; dentro parecia estar claro e quente, ouviu-se ainda um pouco de cochicho, provavelmente uma persuasão amorosa para levar Jeremias para a cama, depois a porta foi fechada.
SÓ ENTÃO K. PERCEBEU como estava silencioso na passagem, não apenas naquela parte do corredor onde permanecera com Frieda e à qual pareciam pertencer os espaços domésticos, mas também na extensa passagem onde se achavam os quartos antes tão animados. Assim, portanto, os senhores tinham afinal adormecido. K. também estava muito cansado; talvez não houvesse se defendido de Jeremias tanto quanto devia, por causa do cansaço. Talvez tivesse sido mais inteligente se orientar pela atitude de Jeremias, que exagerava visivelmente seu resfriado — o estado lamentável dele não derivava do resfriado, mas era inato e não podia ser combatido por nenhum chá bom para a saúde; adaptar-se totalmente a Jeremias na realidade oferecia um espetáculo de grande exaustão como o dele, cair ali na passagem, cochilar um pouco, o que em si já lhe causaria muito bem-estar e depois, quem sabe, ser também alvo de um pouco de atenção. Só que as coisas não correriam tão favoravelmente como para Jeremias, que na competição por simpatia, com certeza e provavelmente com razão, também teria vencido, era óbvio, nessa outra luta. K. estava tão cansado que pensou se não poderia tentar ir para um daqueles quartos, muitos dos quais sem dúvida estavam vazios, e dormir durante horas numa bela cama. Teria sido, na sua opinião, uma recompensa por um monte de incidentes. Estava pronto, inclusive, para tomar algo para dormir. Na bandeja que Frieda tinha deixado no chão havia uma pequena garrafa de rum. K. não poupou o esforço de voltar atrás e esvaziou a garrafa. Sentia-se agora ao menos com força suficiente para entrar no quarto de Erlanger; mas uma vez que o servidor e Gerstäcker não estavam mais à vista e todas as portas eram iguais, não pôde encontrá-lo. Acreditava porém se lembrar do lugar na passagem onde talvez a porta estivesse e decidiu abrir uma que, a seu ver, provavelmente era a procurada. A tentativa não podia ser perigosa demais: se fosse o quarto de Erlanger, este certamente o receberia; se fosse o quarto de outro, seria possível se desculpar e ir embora; se o hóspede estivesse dormindo, o que era mais provável de tudo, a visita de K. não deveria ser de modo algum notada; seria mau apenas se o quarto estivesse vazio, pois nesse caso K. praticamente não resistiria à tentação de se deitar na cama e dormir sem parar. Olhou de novo à esquerda e à direita, ao longo da passagem, para ver se não vinha ninguém que lhe desse informação e tornasse a ousadia desnecessária, mas o longo corredor estava silencioso e vazio. K. então ficou escutando junto à porta: ali também não havia ruído. Bateu tão suavemente que uma pessoa dormindo não poderia ser despertada; quando então nada aconteceu, abriu a porta com extremo cuidado. Mas foi aí que um grito, emitido de leve, o recebeu. Era um quarto pequeno, ocupado em mais que a metade por uma cama ampla; sobre o criadomudo estava acesa a lâmpada elétrica, ao lado havia uma pasta de viagem. Na cama, mas escondido totalmente sob a coberta, alguém se mexia intranqüilo; por uma fresta entre a coberta e o lençol, sussurrou: — Quem é? Agora K. não podia ir em frente sem mais; descontente contemplou a cama atraente mas infelizmente ocupada, lembrou-se depois da pergunta e disse seu nome. Isso pareceu produzir um bom efeito; o homem que estava na cama puxou a coberta e descobriu um pouco o rosto, mas com medo, pronto para se cobrir de novo logo, de alto a baixo, caso alguma coisa fora não estivesse certa. Em seguida, no entanto, sem pensar muito empurrou para os pés da cama a coberta e se sentou, ereto. Sem a menor dúvida não era Erlanger. Tratava-se de um senhor pequeno, bem-apessoado, cujo rosto apresentava, por isso, uma certa contradição, no sentido de que as maçãs eram redondas como as de uma criança, os olhos infantilmente alegres; mas a testa alta, o nariz pontudo, a boca estreita, na qual os lábios mal queriam se tocar, o queixo quase inexistente — nada disso era infantil, mas traía uma inteligência superior. Era com certeza a satisfação consigo mesmo, que havia conservado um resíduo forte de sadia infantilidade. — Conhece Friedrich? — ele perguntou. K. fez que não. — Mas ele o conhece — disse sorrindo o senhor. K. acenou com a cabeça; não faltavam pessoas que o conheciam, era inclusive um dos principais obstáculos no seu caminho. — Sou secretário dele — disse o senhor. — Meu nome é Bürgel. — Desculpe-me — disse K. estendendo a mão para a maçaneta. — Infelizmente confundi sua porta com outra. Na verdade fui convocado pelo secretário Erlanger. — Que pena! — disse Bürgel. — Não porque foi chamado a outro lugar, mas porque confundiu as portas. Quando estou dormindo e sou acordado, não adormeço outra vez, sem dúvida alguma. Bem, isso não deve molestá-lo tanto, é minha infelicidade pessoal. Por que também aqui as portas não podem ser trancadas? Certamente isso tem uma razão. Segundo um velho ditado, as portas dos secretários devem estar sempre abertas. Seja como for, isso não deve ser tomado de modo tão literal. Bürgel olhou para K. interrogativo e alegre; ao contrário de sua queixa, parecia bem descansado; tão cansado como K. naquele momento, Bürgel certamente nunca esteve. — Para onde então quer ir agora? — perguntou Bürgel. — São quatro horas. Quem quer que deseje ver, terá de acordá-lo; nem todos estão acostumados a isso como eu, nem todos irão aceitar pacientemente, pois os secretários são pessoas nervosas. Fique um pouco, portanto. Por volta de cinco horas as pessoas aqui começam a se levantar, será então o melhor momento para responder à sua convocação. Largue pois a maçaneta e sente-se em algum lugar, certamente o espaço aqui é estreito, será melhor que tome assento na beira da cama. Admira-se com o fato de eu não ter nem cadeira nem mesa? Bem, minha escolha era receber ou uma mobília de quarto completa com uma cama de hotel estreita ou esta cama grande e mais nada a não ser a mesa de toalete. Escolhi a cama grande; num quarto de dormir a cama é com certeza o principal. Ah, para quem pudesse se esticar e dormir bem esta cama deveria ser verdadeiramente deliciosa. Mas para mim, que sempre estou cansado sem poder dormir, ela faz bem; passo nela uma grande parte do dia, dou conta de toda correspondência nela, anoto aqui as declarações das partes. As coisas funcionam realmente bem. Seja como for, as partes litigantes não têm lugar para sentar, mas passam sem isso; para elas é até mais agradável permanecer em pé, e a pessoa que toma notas se sente à vontade; isso é melhor do que quando os dois ficam sentados confortavelmente e nesse caso se interpelam aos gritos. Tenho então apenas este lugar à beira da cama para oferecer, mas não é um lugar de ofício e se destina somente a conversações noturnas. Mas está tão quieto, senhor agrimensor! — Estou muito cansado — disse K., que respondeu ao convite imediatamente, sentando-se com grosseria, sem respeito, na cama, inclinando-se sobre a moldura dos pés da cama. — Naturalmente — disse rindo Bürgel. — Todo mundo aqui está cansado. Não é pouco trabalho o que eu, por exemplo, já realizei ontem e hoje. Está completamente excluída a possibilidade de que agora eu adormeça; mas mesmo que isso, a mais improvável das coisas, acontecesse e eu dormisse enquanto está aqui, senhor agrimensor, iria lhe pedir que ficasse quieto e também não abrisse a porta. Não tenha medo, porém; com toda certeza não vou adormecer e, no melhor dos casos, seria só por alguns minutos. Comigo de fato sucede que, provavelmente por estar tão acostumado ao movimento das partes, sou capaz de adormecer mais facilmente quando tenho companhia. — Durma, por favor, senhor secretário — disse K. satisfeito com esse anúncio. — Se me permitir vou então dormir também um pouco. — Não, não — riu Bürgel outra vez. — A um simples convite infelizmente não consigo pegar no sono, só no curso da conversa pode haver essa possibilidade; é antes de tudo numa conversa que adormeço. Sim, os nervos sofrem em nossa atividade. Eu, por exemplo, sou secretário de ligação. Não sabe o que é isso? Bem, estabeleço a mais forte ligação — aqui ele esfregou rapidamente, numa alegria involuntária, as mãos — entre Friedrich e a aldeia, a ligação entre os secretários do castelo e da aldeia, a maioria das vezes estou na aldeia, mas não permanentemente; preciso estar preparado para subir a qualquer momento até o castelo; está vendo a pasta de viagem, é uma vida intranqüila, não convém a qualquer um. Por outro lado, é certo que não poderia dispensar mais esse tipo de trabalho, todos os outros trabalhos me parecem tediosos. Como são as coisas na agrimensura? — Não faço nenhum trabalho dessa espécie, não estou empregado como agrimensor — disse K. Estava pensando pouco nessa questão, na verdade permanecia desejando ardentemente que Bürgel adormecesse, mas também isso ele fazia apenas por um certo sentimento de dever para consigo mesmo, no íntimo julgava saber que o momento de Bürgel cair no sono ainda estava incomensuravelmente longe. — É espantoso — disse Bürgel com um vivo movimento de cabeça e puxou um caderno de notas, que estava sob a coberta, para assinalar alguma coisa. — O senhor é agrimensor e não realiza nenhuma agrimensura. K. acenou mecanicamente com a cabeça, tinha esticado o braço esquerdo sobre a guarda da cama e colocado a cabeça em cima dele; já havia tentado de diversas maneiras se acomodar, mas essa era a posição mais cômoda de todas, ele podia então prestar um pouco mais de atenção no que Bürgel falava. — Estou disposto — prosseguiu Bürgel — a acompanhar daqui em diante essa questão. Aqui entre nós, com toda certeza, as coisas não são de modo a que se deixe inoperante uma força especializada. E para o senhor também deve ser mortificante, não sofre com isso? — Sofro com isso — disse K. devagar e sorriu para si mesmo, pois justamente naquela hora não sofria o mínimo com aquilo. A oferta de Bürgel também causava pouca impressão nele. Era totalmente diletante. Sem saber nada das circunstâncias em que fora feita a indicação de K., sem saber nada das dificuldades que ela encontrava na comunidade e no castelo, das complicações que durante a estada de K. naquele lugar já haviam sido produzidas ou anunciadas — sem saber nada disso, até mesmo sem mostrar que não tinha a menor idéia de que aquilo lhe dizia respeito, o que devia ser acatado sem mais por um secretário, ele se oferecia, com um golpe de mão, com a ajuda do seu pequeno caderno de notas, para colocar a coisa em ordem. — O senhor parece já haver tido algumas decepções — disse, porém, Bürgel, provando com isso, afinal, algum conhecimento dos homens.
Na realidade, desde que havia entrado no quarto, K. exigia de si mesmo, de tempos em tempos, que não subestimasse Bürgel, mas no estado em que se encontrava era difícil julgar direito qualquer outra coisa que não fosse o próprio cansaço. — Não — disse Bürgel como se respondesse a um pensamento de K. e quisesse lhe poupar, por consideração, o esforço de se pronunciar. — Não precisa se intimidar com decepções. Aqui muita coisa parece ter o objetivo de intimidar e, quando se acaba de chegar, os obstáculos parecem completamente impenetráveis. Não quero investigar como em verdade isso acontece, talvez a aparência corresponda de fato à realidade; na posição em que estou me falta o distanciamento certo para verificá-lo; mas note que às vezes se apresentam outras possibilidades que quase não coincidem com a situação geral, oportunidades nas quais, a partir de uma palavra, um olhar, um sinal de confiança, pode ser alcançado mais do que através de esforços exaustivos que duram a vida toda. Certamente é assim. Oportunidades como essas sem dúvida coincidem com a situação de conjunto contanto que nunca sejam aproveitadas. Mas por que não são aproveitadas, é o que sempre me pergunto. K. não sabia; na verdade notava que aquilo de que Bürgel falava provavelmente dizia muito respeito a ele, mas agora ele tinha uma grande aversão por todas as coisas que diziam respeito a ele; deslocou a cabeça um pouco para o lado como se com isso abrisse caminho às perguntas de Bürgel e não pudesse mais ser afetado por elas. — É uma queixa constante dos secretários — prosseguiu Bürgel, estendendo os braços e bocejando, o que fazia um contraste perturbador com a seriedade de suas palavras —, é uma queixa constante dos secretários, que eles são forçados a realizar a maioria dos inquéritos da aldeia à noite. Mas por que eles se queixam? Porque se esforçam demais? Porque preferem empregar a noite dormindo? Não, com certeza não se queixam por isso. Naturalmente há, entre os secretários, como em toda parte, aqueles que são diligentes e menos diligentes, mas nenhum deles se queixa de um esforço grande demais, pelo menos não publicamente. Simplesmente não faz nosso estilo. Nesse aspecto desconhecemos a diferença entre tempo habitual e tempo de serviço. Essas distinções são estranhas a nós. O que, portanto, os secretários têm contra os interrogatórios noturnos? Por acaso consideração pelas partes? Não, não, também não é isso. Com os litigantes os secretários não têm consideração, de qualquer modo não são nem um pouco — o mínimo que seja — mais considerados do que consigo mesmos, mas exatamente tão desconsiderados. Na realidade é essa falta de consideração, ou seja, o cumprimento férreo e a realização do ofício, a maior das considerações que as partes podem desejar a si mesmas. No fundo — certamente um observador superficial não o nota —, no fundo isso também é plenamente reconhecido; nesse caso, por exemplo, são justamente os interrogatórios noturnos os mais bemvindos pelas partes, os que não incorrem em nenhuma queixa fundamental. Por que, pois, a aversão dos secretários? K. também não o sabia; sabia tão pouco, nem mesmo distinguia se Bürgel exigia a resposta a sério ou só na aparência. “Se você me deixar deitar em sua cama”, pensou, “vou responder, amanhã ao meio-dia ou de preferência à noite, a todas as perguntas.” Mas Bürgel parecia não prestar atenção nele, de tal modo o ocupava a pergunta que ele próprio se pusera: — Até onde distingo, e até onde vão minhas experiências, os secretários mantêm a seguinte reserva em relação aos interrogatórios noturnos. A noite é menos adequada às negociações com as partes, porque de noite é difícil, ou praticamente impossível, preservar na plenitude o caráter oficial das negociações. Isso nada tem a ver com as exterioridades; naturalmente as formas podem, à noite, ser observadas à vontade de maneira tão estrita como durante o dia. Não é isso, portanto; por outro lado, o julgamento administrativo sofre à noite. Involuntariamente a pessoa está inclinada a julgar as coisas de um ponto de vista mais privado, as intervenções das partes ganham mais peso do que lhes cabe; misturam-se ao julgamento considerações irrelevantes sobre a situação das partes tal como elas existem em outros lugares, sobre suas dores e preocupações; a barreira necessária entre partes e funcionários, mesmo que exteriormente pareça intacta, se afrouxa, e onde normalmente, como devia ser, apenas perguntas e respostas iam e vinham, se estabelece às vezes uma troca estranha, totalmente sem cabimento, entre as pessoas. Assim dizem, pelo menos, os secretários, ou seja, pessoas que, da maneira como for, por causa da profissão, são dotadas de uma sensibilidade extraordinária para essas coisas. Mas mesmo eles — isso já foi discutido com freqüência em nossos círculos — percebem pouco, durante os interrogatórios à noite, aqueles efeitos desfavoráveis; pelo contrário, esforçam-se previamente para contrariá-los e acreditam finalmente ter feito um trabalho excepcional. Mas quando se lêem mais tarde os protocolos, fica-se freqüentemente espantado com suas patentes fraquezas. E são esses os erros, quer dizer, os ganhos sempre meio injustificados das partes demandantes, que, ao menos segundo nossos regulamentos, não podem ser reparados pelo breve trâmite habitual. Com toda certeza são ainda corrigidos por uma instância de controle oficial; mas isso não será proveitoso senão ao Direito, porém não prejudicará mais as partes. Nessas circunstâncias, as queixas dos secretários não são muito justas? K. já havia passado um pequeno momento num meio sono e agora era perturbado de novo. “Por que tudo isso?”, pensou. “Por que tudo isso?”, perguntou a si mesmo e contemplou Bürgel com as pálpebras abaixadas, não como a um funcionário que discutia com ele questões difíceis, mas como algo que o impedia de dormir e cujo sentido mais amplo não conseguia descobrir. Bürgel, no entanto, totalmente entregue aos seus pensamentos, sorria, como se tivesse sido capaz de confundir K. um pouco. Estava pronto, contudo, para conduzi-lo de novo ao caminho certo. — Bem — disse ele —, não se pode dizer que essas queixas são, sem mais, totalmente justificadas. Na verdade os interrogatórios noturnos não estão prescritos abertamente em parte alguma, portanto não se infringe nenhuma determinação quando alguém tenta evitá-los; mas as circunstâncias, a sobrecarga de trabalho, o tipo de ocupação dos funcionários no castelo, sua difícil disponibilidade, a prescrição de que o inquérito das partes não deve ter lugar senão depois que o resto das investigações terminou por completo, mas aí imediatamente, tudo isso e outras coisas mais tornaram os inquéritos à noite uma necessidade incontornável. Mas se eles se tornaram uma necessidade — é o que eu digo —, isso também constitui, pelo menos indiretamente, um resultado das prescrições e significaria, quase, macular a essência dos inquéritos noturnos — naturalmente exagero um pouco porque posso exprimi-lo enquanto exagero —, seria equivalente então a macular as prescrições. Por outro lado, deve-se reconhecer que os secretários procurem se assegurar, dentro das normas, contra os inquéritos à noite e suas desvantagens, que talvez sejam só aparentes, o melhor possível. É o que eles fazem, e numa extensão enorme; aceitam apenas objetos de negociação de que se pode esperar o menor temor possível, examinam a si mesmos com precisão antes das negociações e, se o resultado do exame o exige, adiam até mesmo no último momento todos os acordos, fortalecem-se na medida em que convocam, com freqüência, uma parte demandante dez vezes antes de conduzirem realmente o inquérito, gostam de ser substituídos por colegas incompetentes para o caso em pauta e por isso capazes de tratar dele com maior leveza, fixam as negociações no mínimo para o início ou o fim da noite e evitam as horas intermediárias — há inúmeras medidas como essa; os secretários não se deixam levar com facilidade, são quase tão resistentes quanto vulneráveis. K. dormia, não era propriamente um sono, ouvia as palavras de Bürgel talvez melhor do que durante a vigília anterior, morto de sono; palavra por palavra golpeava seu ouvido, mas a consciência importuna havia desaparecido, ele se sentia livre, nem Bürgel o retinha mais, ele tateava ainda às vezes em direção a Bürgel, não estava ainda nas profundezas do sono, mas já se encontrava imerso nele, ninguém mais devia despojá-lo daquilo. Era como se houvesse conquistado uma grande vitória e já havia pessoas ali para comemorar, e ele ou algum outro levantava a taça de champanhe numa homenagem a essa vitória. E para que todos soubessem do que se tratava, a luta e a vitória foram repetidas mais uma vez, ou talvez o combate não tivesse sido repetido, mas só agora tivera lugar; já fora festejado antes e não tinha havido permissão para que ele festejasse porque o resultado felizmente era certo. Um secretário, nu, muito semelhante à estátua de um deus grego, foi levado por K. à luta. Era muito cômico, e K. sorria suavemente no sono pelo fato de que o secretário fosse sempre coagido por seus golpes a abandonar a postura de altivez e precisasse usar rapidamente o braço esticado para cima e o punho cerrado para cobrir sua nudez e desse modo os gestos dele ficavam cada vez mais lentos. A luta não durou muito tempo, passo a passo (e se tratava de passos largos) K. avançava. Era de fato uma luta? Não havia nenhum obstáculo sério, só aqui e ali um pipilar do secretário. Aquele deus grego pipilava como uma menina a quem se faz cócegas. Finalmente ele se foi; K. estava sozinho num grande espaço, pronto para lutar ele girava o corpo e buscava o adversário, mas ninguém mais estava lá, o público também havia desaparecido, só a taça de champanhe jazia no chão, quebrada; K. triturou-a por completo. Mas os cacos de vidro pinicavam, ele despertou tremendo, sentia-se mal como uma criança pequena que é acordada; apesar disso, à visão do busto nu de Bürgel no sonho, passou-lhe o seguinte pensamento: “Aqui está o seu deus grego! Vamos, arranque-o da cama!”. — Existe contudo — disse Bürgel, com o rosto levantado pensativamente para o teto, como se procurasse exemplos na memória mas não conseguisse encontrálos. — Existe, contudo, apesar de todas as medidas de precaução, uma possibilidade para as partes utilizarem essa fraqueza noturna dos secretários, supondo sempre que seja uma fraqueza. Sem dúvida uma possibilidade muito rara ou, melhor dizendo, uma possibilidade que quase nunca se manifesta. Consiste em que a parte chega à noite sem ser anunciada. Talvez o senhor se admire de que isso, embora pareça tão natural, aconteça de maneira tão rara. Bem, não está familiarizado com o que se passa aqui. Mas também já deve ter chamado sua atenção a ausência de lacunas da organização administrativa. Dessa ausência de lacunas, porém, resulta que quem quer que tenha um assunto a tratar ou, por outros motivos, deva ser interrogado sobre alguma coisa, imediatamente, sem hesitação já recebe, na maioria das vezes até mesmo antes de haver tido tempo para refletir sobre o assunto, ou antes ainda que ele próprio saiba, a intimação. Não é dessa vez que será interrogado, na maioria dos casos não; a questão em geral ainda não está madura, mas a parte tem a intimação sem ser anunciada, ou seja, totalmente de surpresa ela não pode mais chegar; pode no máximo chegar fora de hora; bem, então vão chamar sua atenção para a data e a hora da intimação e se depois a parte chegar na hora certa, em geral será mandada embora, não é mais um problema; a intimação na mão da parte e o registro nos autos não são na verdade sempre suficientes para os secretários, mas decerto fortes armas de defesa. De qualquer modo isso só diz respeito ao secretário competente para a causa, embora ainda fique aberto a qualquer um se aproximar dos outros à noite e de surpresa. Mas essa é uma coisa que praticamente ninguém faz, é quase sem sentido. Em primeiro lugar o secretário competente, por causa disso, ficaria muito zangado; na verdade nós, secretários, não somos, certamente, ciumentos uns em relação aos outros a respeito do trabalho; cada um leva uma carga de trabalho muito elevada, medida sem mesquinharia alguma; mas diante das partes administradas não temos o direito de tolerar, em hipótese alguma, perturbações de competência. Muitos já perderam o cliente porque onde acreditaram não poder avançar no lugar competente, tentaram passar por algum que não o era. Aliás essas tentativas têm de fracassar porque um secretário não competente, mesmo que seja surpreendido à noite e esteja com a maior boa vontade para ajudar, exatamente por causa de sua incompetência mal pode intervir como um advogado qualquer; no fundo muito menos, pois lhe falta, mesmo quando, de resto, pudesse fazer alguma coisa, uma vez que conhece, melhor do que todos os senhores da advocacia, os segredos do Direito — faltalhe, simplesmente, tempo para coisas que não cabem em sua alçada; ele não poderia consagrar a isso um só instante. Quem, portanto, em face dessas perspectivas, passaria suas noites desmobilizando os secretários incompetentes? Além disso, também há partes plenamente ocupadas se, ao lado de sua profissão habitual, querem corresponder às intimações e às indicações dos serviços competentes; “plenamente ocupadas” sem dúvida no sentido das partes, o que naturalmente não é nem de longe a mesma coisa que “plenamente ocupados” no sentido dos secretários. K. acenou sorrindo com a cabeça; acreditava agora entender tudo com exatidão, não porque o preocupasse, mas porque estava então convencido de que nos próximos instantes adormeceria completamente, dessa vez sem sonho nem perturbação; entre os secretários competentes, de um lado, e os não competentes, de outro, e diante da massa das partes plenamente ocupadas, ele mergulharia em sono profundo e desse modo escaparia de todos. Estava já tão acostumado à voz baixa, auto-suficiente, a qual evidentemente trabalhava em vão para o próprio sono de Bürgel, que era mais provável que ela promovesse do que perturbasse o seu sono. “Gira, moinho, gira”, pensou, “Você gira só para mim.” — Onde está, portanto — disse Bürgel brincando com dois dedos no lábio inferior, os olhos encarquilhados, o pescoço esticado, como se acaso se aproximasse, após uma caminhada estafante, de um ponto de perspectiva encantador —, onde está, pois, aquela possibilidade referida, rara, que quase nunca acontece? O segredo está oculto nas regras sobre a competência. Com efeito, não é assim, e não pode ser assim, numa organização grande e viva, que haja para cada causa apenas um determinado secretário que seja competente. Só é assim porque um deles tem a competência principal para julgar, mas muitos outros também têm em certas partes uma possibilidade, embora menor. Quem poderia, sozinho, ainda que fosse o que trabalhasse com o maior dos empenhos, conservar unidos todos os relatórios, mesmo sendo apenas os dos menores incidentes, sobre sua mesa de trabalho? Mesmo o que eu disse sobre a competência principal é demasiado. Será que na menor competência possível já não está a competência toda? Será que aqui não decide a paixão com a qual a causa é assumida? E não é sempre a mesma, ela não está lá sempre com sua força inteira? Em tudo pode haver diferenças entre os secretários, e há inúmeras diferenças, mas não na paixão; nenhum será capaz de se deter quando for exigido dele que se ocupe de um caso para o qual não tem a mínima competência. Para o exterior, é verdade, é preciso criar uma possibilidade de negociação regular, e assim é que um secretário em particular sobe ao primeiro plano para as partes e é nesse plano que elas têm de se manter administrativamente. Mas não é necessário que seja aquele que possui a maior competência para o caso; aqui é a organização que decide, tanto quanto suas necessidades especiais no momento. É este o estado das coisas. E agora, senhor agrimensor, pondere a eventualidade de que uma parte, por quaisquer circunstâncias, malgrado os obstáculos em geral completamente suficientes que já descrevi, surpreenda, apesar de tudo, no meio da noite, um secretário que possua uma certa competência para o caso em questão. Já pensou, por acaso, numa possibilidade dessa natureza? Quero crer que sim, com prazer. Não é também obrigatório pensar nela, pois é uma coisa que quase nunca ocorre. Que pequeno grão estranho, formado de modo tão definido, além de ágil, deve ser uma parte como essa, para passar através da peneira insuperável? Acredita que isso não pode em absoluto ocorrer? Está com a razão, não pode absolutamente acontecer. Mas uma noite — quem pode garantir tudo? — acontece. Entre minhas relações, de qualquer modo, não conheço ninguém a quem isso tenha sucedido; na verdade isso prova muito pouca coisa; o número de meus conhecidos, em comparação com os números que aqui devem ser levados em conta, é limitado e, além disso, não é de maneira alguma certo que um secretário, a quem ocorreu algo semelhante, o admita; seja como for, é uma questão muito pessoal e, de certo modo, que toca de perto o pudor administrativo. Minha experiência, porém, talvez prove que se trata de uma coisa tão rara, existente, na realidade, graças ao boato e não comprovada por nada a não ser isso, que é muito exagerado ter medo diante dela. Mesmo se de fato devesse ocorrer, a pessoa pode — é preciso acreditar — torná-la literalmente inofensiva provando que não há lugar para ela neste mundo, o que é muito fácil.
De qualquer maneira é mórbido quando a pessoa, por medo dela, se esconde, quem sabe, sob a coberta e não ousa olhar para fora. E mesmo que a improbabilidade completa de repente tomasse forma, está então tudo perdido? Pelo contrário. Que tudo está perdido é mais improvável ainda do que o que existe de mais improvável. Certamente quando a parte está no quarto já é muito ruim. Oprime o coração. “Quanto tempo você vai poder oferecer resistência?”, é o que se pergunta a si mesmo. Mas não vai haver nenhuma resistência, isso se sabe. É preciso apenas que se tenha uma representação correta da situação. A parte que nunca foi vista, sempre aguardada, aguardada com uma verdadeira sede, e sempre considerada, de maneira racional, como inacessível, está sentada lá. Já por meio de sua presença muda ela incita a penetrar em sua pobre vida, instalarse ali como numa propriedade pessoal e lá sofrer com ela sob suas inúteis exigências. Esse convite no silêncio da noite é fascinante. A pessoa obedece e cessa propriamente, então, de ser uma personagem oficial. É uma situação na qual em breve será impossível recusar um pedido. Dizendo as coisas com precisão, a pessoa que julga está desesperada, ou, mais exatamente ainda, está muito feliz. Desesperada porque a maneira desarmada com que se fica sentado aqui e se espera o pedido da parte interessada e se sabe que, uma vez proferido, é necessário atendê-lo mesmo que, ao menos até onde é possível discernir, ele literalmente rompa o tecido administrativo — com certeza isso é o pior de tudo que pode acontecer na prática. Acima de qualquer coisa — sem contar o resto — porque se trata de uma promoção hierárquica inconcebível, que aqui se alcança em proveito próprio, por um momento e através da força. Nossa posição não nos autoriza a atender pedidos como este de que estamos tratando, mas, pela proximidade da parte à noite, de certa maneira crescem também as forças administrativas, nós nos comprometemos com coisas que se encontram fora do nosso alcance; chegaremos até a realizá-las, a parte nos extorque, à noite, como o salteador na floresta, sacrifícios de que jamais seríamos capazes de outra forma — muito bem, é assim agora, quando a parte ainda está presente; ela nos fortalece, obriga e encoraja; e tudo marcha de maneira meio insciente; mas o que será depois, quando isso passou e a parte, saciada e sem preocupação, nos deixa e ficamos ali sozinhos, sem defesa perante nosso abuso administrativo? É inimaginável! E no entanto estamos felizes. Como a felicidade pode ser suicida! Poderíamos nos empenhar em manter em segredo, frente à parte, a verdadeira situação. Espontaneamente ela não nota praticamente nada. Em sua opinião, provavelmente, foi só por motivos fúteis, casuais, que, exausta, decepcionada, sem consideração e indiferente, penetrou, por fadiga e decepção, num outro quarto, que não aquele que queria; fica ali sentada, ignorante de tudo e se ocupa mentalmente, quando se ocupa de alguma coisa, do seu erro ou do seu cansaço. Não seria possível deixá-la nesse estado? Não é possível. Na loquacidade da pessoa feliz é preciso explicar tudo a ela. Sem poder se poupar o mínimo que seja, é necessário lhe mostrar em pormenor o que aconteceu e por que razões isso aconteceu; como é extraordinariamente rara e de uma grandeza única a oportunidade; é preciso lhe mostrar como a parte, nessa oportunidade, em todo o seu desamparo — como não pode ser objeto disso nenhuma outra criatura, a não ser justamente uma parte —, como ela tropeçou, mas como, neste momento, se quiser, senhor agrimensor, pode dominar tudo; para isso ela não tem de fazer nada senão de algum modo apresentar seu pedido, para cuja concessão já está tudo preparado, sim, em cuja direção ela se espicha: tudo isso tem de ser mostrado, essa é a hora difícil do funcionário. Mas se já se fez isso, senhor agrimensor, o que há de mais necessário sucedeu, é preciso se contentar e esperar. Mais que isso K. não escutou — ele estava dormindo, fechado contra tudo o que acontecia. Sua cabeça, que primeiro estava colocada em cima do braço esquerdo, na guarda dos pés da cama, havia escorregado no sono e pendia livre, baixando devagar cada vez mais fundo, o apoio do braço em cima já não era suficiente; involuntariamente K. conseguiu um novo apoio estendendo a mão direita em direção à coberta, lance em que agarrou por acaso justamente o pé de Bürgel que saía de debaixo do cobertor. Bürgel olhou para lá e deixou o pé para ele, por mais incômodo que isso pudesse ser. Nesse momento bateram com golpes fortes na parede do lado, K. se estendeu e fitou a parede. — O agrimensor não está aí? — perguntou alguém. — Sim — disse Bürgel, libertando seu pé de K. e se esticando de repente, selvagem e traquinas como um garoto. — Então ele deve vir finalmente para cá — disse outra vez a pessoa. Não se levou em conta nem Bürgel nem o fato de que necessitasse ainda de K. — É Erlanger — disse Bürgel cochichando, e a circunstância de Erlanger estar no quarto vizinho não parecia surpreendê-lo. — Vá logo encontrá-lo, ele já está irritado, tente acalmá-lo. Tem um bom sono, mas nós conversamos muito alto, não se pode controlar a si mesmo e sua voz quando se fala de certas coisas. Bem, vá para lá, parece que não consegue sair do sono de jeito algum. Vá, o que quer ainda aqui? Não, não precisa se desculpar por sua sonolência, por que deveria? As forças do corpo só chegam a um certo limite, ninguém tem culpa se justamente esse limite também é, de resto, significativo. Não, contra isso ninguém pode fazer nada. É assim que o mundo corrige a si mesmo no seu curso e mantém o equilíbrio. É uma instituição excelente, uma instituição continuamente excepcional, se bem que sob outro aspecto desesperadora. Agora vá, não sei por que está me fitando assim. Se hesitar por muito tempo ainda, Erlanger vai cair em cima de mim, eu gostaria com prazer de evitar isso. Vá então, quem sabe o que o espera do outro lado, ali está de fato cheio de possibilidades. Só que existem, com certeza, possibilidades que de certo modo são grandes demais para serem aproveitadas; há coisas que não malogram em nada a não ser em si mesmas. Sim, isso é espantoso. Aliás, espero agora poder de fato dormir um pouco. Certamente já são cinco horas e o barulho logo vai começar. Se ao menos já quisesse ir embora! Entorpecido por ter sido subitamente despertado do sono profundo, necessitando ainda dormir sem limites, com o corpo todo dolorido em conseqüência da posição incômoda, por muito tempo K. não conseguiu tomar a resolução de se levantar, segurando a testa e baixando os olhos para o colo. Mesmo as despedidas contínuas de Bürgel não foram capazes de movê-lo a partir; foi só o sentimento da absoluta inutilidade de permanecer mais tempo naquele quarto que o levou lentamente a fazê-lo. O cômodo parecia-lhe deserto de uma maneira indescritível. Se havia se tornado assim ou se fora desde sempre desse modo era algo que não sabia. Nem mesmo conseguiria adormecer de novo ali. Essa convicção foi decisiva; sorrindo um pouco daquilo, K. se ergueu, se apoiou onde quer que encontrava um suporte — na cama, na parede, na porta — e, como se tivesse se despedido fazia muito tempo de Bürgel, saiu sem saudá-lo.
PROVAVELMENTE ELE TERIA PASSADO com igual indiferença diante do quarto de Erlanger se este não estivesse em pé na porta aberta e não fizesse um sinal para ele. Um único e breve sinal com o indicador. Erlanger já estava inteiramente preparado para ir embora, vestia um casaco de pele preto com a gola justa abotoada até o alto em volta do pescoço. Um servidor acabava de lhe passar as luvas e ainda estava segurando um chapéu de pele. — Faz muito tempo que o senhor já deveria ter vindo — disse Erlanger. K. quis se desculpar; Erlanger mostrou, fechando os olhos com lassidão, que renunciava a isso. — Trata-se do seguinte — disse ele. — No balcão de bebidas servia, anteriormente, uma certa Frieda, só conheço seu nome, não conheço ela própria, já que não me diz respeito. Essa Frieda serviu cerveja a Klamm algumas vezes. Atualmente parece haver lá uma outra moça. Naturalmente essa mudança é banal; provavelmente o é para todo mundo e para Klamm com toda certeza. Quanto maior, no entanto, é um trabalho — e o trabalho de Klamm é sem dúvida o maior de todos —, tanto menos energia sobra para se defender contra o mundo externo; por conseqüência, qualquer mudança insignificante das coisas menos importantes causa sério transtorno. A menor alteração na escrivaninha, a remoção de uma mancha de sujeira que existia ali desde sempre, tudo isso pode perturbar e, da mesma forma, uma nova servente. Ora, sem dúvida, todas essas coisas, mesmo que perturbem um outro qualquer, seja qual for o seu trabalho, a Klamm não causam transtorno, isso está fora de qualquer discussão. Entretanto, é nosso dever vigiar o bem-estar de Klamm de tal forma que mesmo incômodos que não são nada para ele — e é provável que não exista absolutamente nenhum — nós os eliminamos quando nos chamam a atenção como possíveis perturbações. Não é por causa dele, nem por causa do seu trabalho, que removemos esses transtornos, mas sim por nossa causa, nossa consciência e nossa tranqüilidade. É por esse motivo que aquela tal de Frieda precisa voltar imediatamente ao balcão de bebidas; talvez o fato de que volte seja justamente o que perturbe; nesse caso vamos mandá-la embora outra vez, mas provisoriamente ela tem de voltar. O senhor vive com ela, conforme me disseram; faça portanto com que retorne de imediato. Nesse ato não podem ser levados em conta sentimentos pessoais, é claro, por isso não me permito, também, me envolver na mínima consideração ulterior sobre esse assunto. Já estou fazendo muito mais que o necessário quando menciono que, caso o senhor dê provas de valor nessa pequena contingência, isso pode ser eventualmente útil ao seu progresso. É tudo o que tenho a lhe dizer. Acenou com um gesto de cabeça para se despedir de K., colocou o chapéu de pele entregue pelo servidor e, acompanhado por este, desceu rápido, embora mancando um pouco, pelo corredor. Às vezes aqui eram dadas ordens muito fáceis de cumprir, mas essa facilidade não alegrava K. Não só porque a ordem dizia respeito a Frieda e na verdade era concebida como tal, soando porém a K. como um escárnio, mas acima de tudo porque ela mostrava para K. a inutilidade de todos os seus esforços. As ordens passavam sobre ele, tanto as desfavoráveis como as favoráveis, e até as favoráveis tinham certamente um cerne, em última análise, desfavorável; seja como for, todas passavam por cima dele, e K. estava colocado muito baixo para intervir nelas ou constrangê-las ao silêncio e fazer com que sua voz fosse ouvida. “Se Erlanger o manda passear, o que você pode fazer? E se ele não o manda passear, o que você poderia dizer-lhe?” K. com certeza permanecia consciente de que naquele dia sua fadiga o havia prejudicado mais do que todas as circunstâncias desfavoráveis, mas por que ele, que acreditara poder confiar no seu corpo e que, sem essa convicção, não teria conseguido se pôr a caminho, por que não era capaz de suportar algumas noites más e uma noite de insônia, por que ficara tão incontrolavelmente cansado justo aqui, onde ninguém estava fatigado ou onde talvez todo mundo sempre estava continuamente cansado sem que isso, no entanto, prejudicasse o trabalho — de fato num lugar que parecia, antes, favorecê-lo? Era preciso concluir, daí, que se tratava de uma espécie inteiramente diferente de cansaço daquela que acometia K. Aqui a fadiga devia sem dúvida existir em meio ao trabalho feliz, algo que, visto de fora, tinha a aparência de cansaço e que na realidade era tranqüilidade indestrutível, paz indestrutível. Quando ao meio-dia se está um pouco cansado, isso faz parte do curso natural e feliz do dia. “Para estes senhores, aqui é sempre meio-dia”, disse K. para si mesmo. E coincidia bastante com isso o fato de que agora, às cinco horas, ao longo dos dois lados do corredor, as coisas já se tornavam vivas. Essa balbúrdia de vozes nos quartos tinha algo de extremamente alegre. Soava ora como os gritos de júbilo de crianças que se preparam para uma excursão, ora como o alvorecer num galinheiro, como a euforia de estar em plena harmonia com o dia que raiava, em alguma parte um senhor até imitou o canto de um galo. O corredor propriamente dito estava, na verdade, deserto, mas as portas já se achavam em movimento, continuamente uma delas se abria um pouco e se fechava depressa; esse abrir e fechar de portas zunia na passagem, aqui e ali K. enxergava lá em cima, no espaço livre das paredes que não chegavam ao teto, cabeças de cabelos matinalmente revoltos que apareciam e logo desapareciam. Da distância se aproximou devagar um carrinho conduzido por um servidor, contendo processos. Um segundo servidor andava ao lado, tinha na mão uma lista com a qual obviamente comparava os números das portas com os números dos processos. O carrinho parava em frente à maioria das portas, usualmente se abria então a porta e os dossiês correspondentes, às vezes apenas uma folha pequena — em casos assim se desenvolvia uma curta conversa entre o quarto e o corredor, provavelmente o servidor era alvo de censuras —, eram entregues no quarto. Se a porta ficava fechada, os autos eram empilhados cuidadosamente na soleira. Em casos como esses K. tinha a impressão de que o movimento nas portas da vizinhança não diminuía — se bem que os processos, também ali, já houvessem sido distribuídos — mas, pelo contrário, aumentava. Podia ser que os demais espreitassem cobiçosamente os autos que se encontravam, incompreensivelmente, ainda amontoados no limiar da porta: eles não podiam entender como alguém, que precisava apenas abri-la, para entrar na posse dos seus processos, não o fizesse; talvez fosse até possível que autos definitivamente negligenciados fossem, mais tarde, distribuídos entre os outros senhores, que desde já queriam se certificar, por olhares freqüentes, se os autos ainda estavam na soleira e se continuava a haver esperança para eles. Aliás, os processos que restavam formavam na maioria das vezes um maço particularmente grande, e K. supôs que, por uma espécie de vaidade ou maldade, ou então de orgulho justificado, eles se destinavam a estimular os colegas, tendo sido essa a razão pela qual haviam sido deixados ali. O que o fortalecia nesse modo de ver era o fato de que às vezes, justamente quando não estava olhando, o pacote de autos, depois de ter sido exposto à visão por um tempo suficientemente longo, era puxado de repente, o mais rápido possível, para o quarto, e a porta, depois, permanecia outra vez imóvel como antes; nesse momento as portas da vizinhança também sossegavam, decepcionadas ou satisfeitas com a circunstância de que esse objeto de atração constante era afinal eliminado; pouco a pouco, entretanto, elas voltavam a se pôr em movimento. K. observava tudo isso não só com curiosidade mas também com ativo interesse. Sentia-se quase bem no meio dessa movimentação, olhava para cá e para lá e acompanhava — mesmo que a uma distância conveniente — os servidores que certamente diversas vezes já haviam se voltado para ele com olhar severo, cabeça inclinada, lábios protuberantes, e contemplava seu trabalho. Quanto mais este progredia, tanto menos se tornava fluente: ora a lista não coincidia de todo, ora os autos não eram sempre muito discerníveis uns dos outros para o servidor, ora os senhores levantavam objeções por outras razões; fosse como fosse, acontecia que várias distribuições tinham de ser anuladas; nesses casos o carrinho retrocedia e pela fresta da porta era negociada a devolução dos autos. Essas negociações representavam, em si mesmas, grandes dificuldades; ocorria constantemente que, quando se tratava da devolução, justamente as portas que tinham estado em ação da maneira mais viva permaneciam obstinadamente fechadas, como se não quisessem saber mais nada do assunto. Era então que começavam as dificuldades propriamente ditas. Aquele que julgava ter direito aos processos ficava impaciente ao extremo, fazia um grande barulho no seu quarto, batia palmas, batia com os pés no chão, gritava sem parar pela fresta da porta, em direção ao corredor, um determinado número de processo. Aí o carrinho ficava freqüentemente abandonado por completo. Um dos servidores se mantinha ocupado em acalmar o impaciente, o outro lutava diante da porta fechada pela restituição dos autos. Os dois tinham problemas a enfrentar. O impaciente ficava em geral mais impaciente ainda com as tentativas de pacificação, não conseguia mais escutar as palavras vazias do servidor, não queria consolo, queria autos; um dos senhores chegou a atirar lá do alto, pelo vão livre sobre as paredes, uma bacia cheia de água em cima do servidor. O outro servidor, evidentemente de grau hierárquico mais alto, enfrentava mais dificuldade ainda. Se o senhor em questão admitia entrar em conversações, tratava-se de discussões práticas, nas quais o servidor se reportava à sua lista, o senhor às suas anotações prévias e justamente aos autos que devia devolver, mas que segurava com firmeza nas mãos, de tal modo que não ficava visível para os olhos cobiçosos do servidor senão um cantinho deles. Este precisava, de mais a mais, diante da necessidade de novas provas, voltar correndo até o carrinho que, no corredor um pouco inclinado, continuava a rolar um trecho sozinho; ou então tinha de se dirigir aos senhores que reivindicavam os dossiês e ali trocar as objeções do até então proprietário por novas objeções em sentido contrário. Essas negociações duravam muito tempo, às vezes se chegava a um acordo: o senhor, por exemplo, divulgava uma parte dos autos ou recebia um outro auto como ressarcimento, uma vez que não se tratara senão de uma confusão; mas ocorria também que alguém tinha de renunciar, sem mais, a todos os autos exigidos, seja porque o senhor fora posto contra a parede pelas provas do servidor, seja porque estava cansado da negociação permanente; mas aí ele não dava os autos ao servidor, atirando-os longe no corredor, por uma decisão súbita, de tal forma que os barbantes que os amarravam se soltavam e as folhas voavam, motivo pelo qual os servidores precisavam se empenhar muito para pôr tudo em ordem outra vez. Mas tudo isso ainda era relativamente mais fácil do que quando o servidor não recebia absolutamente nenhuma resposta aos seus pedidos de devolução dos processos; ele ficava então em pé diante da porta fechada, pedia, conjurava, citava sua lista, se reportava a prescrições — tudo em vão; do quarto não saía um som e entrar sem permissão era uma coisa à qual o servidor obviamente não tinha direito. Era nesse momento que até esse excelente servidor às vezes perdia o autocontrole; ia até seu carrinho, sentava sobre os autos, enxugava o suor da testa e por um bom tempo não fazia nada a não ser balançar os pés, desamparado. O interesse pelo assunto em volta era muito grande, por toda parte se cochichava, mal uma porta se aquietava e lá em cima, no parapeito da parede, rostos curiosamente cobertos quase por completo por toalhas, como múmias, que além do mais não permaneciam um instante quietos nos seus lugares, esses rostos acompanhavam todos os acontecimentos. Em meio a essa intranqüilidade chamou a atenção de K. que a porta de Bürgel ficara o tempo todo fechada e que os servidores já haviam passado por essa parte do corredor sem atribuir nenhum processo a Bürgel. Talvez ele ainda dormisse, o que, naquele barulho, significava um sono muito saudável — mas por que não tinha recebido auto algum? Ali só havia bem poucos quartos, além do que provavelmente desabitados, tendo sido omitidos por isso. Em compensação já havia no quarto de Erlanger um hóspede novo, particularmente inquieto; Erlanger devia ter sido literalmente expulso por ele durante a noite; essa circunstância combinava mal com a personalidade de Erlanger, fria e sobranceira; mas o fato de que K. precisasse aguardar na soleira da porta apontava sem dúvida nesse sentido. Depois de todas essas observações a distância, K. logo voltou-se novamente para o servidor; não se aplicava a este, na verdade, o que, de resto, fora contado a K. sobre os servidores em geral, acerca de sua ociosidade, de sua vida cômoda, de sua altivez; havia com certeza exceções entre os servidores ou — o que era mais provável — existiam entre eles grupos diversos, pois, como K. se deu conta, havia ali muitas distinções sobre as quais ele até então não tinha percebido praticamente nada. A obstinação desse servidor, em especial, o agradava muito. Na luta contra esses pequenos quartos turrões — muitas vezes parecia a K. que se tratava, com freqüência, de uma luta com os quartos, já que quase não lhe era dado ver os ocupantes —, nessa luta o servidor não cedia. Ele, com efeito, se esgotava — quem não se esgotaria? —, mas logo se recuperava, deslizava do carrinho para o chão e arremetia ereto, os dentes cerrados, outra vez contra a porta a ser conquistada. E acontecia que, duas ou três vezes, era rechaçado, de uma forma muito simples aliás, meramente pelo silêncio diabólico, sem no entanto ser em absoluto vencido. Vendo que não podia alcançar nada pelo ataque frontal, ensaiava fazê-lo de outro modo; por exemplo — na medida em que K. o entendia corretamente — através da astúcia. Fingia então que se desinteressava pela porta, deixando que ela de alguma maneira exaurisse seu poder de silêncio; voltava-se para outras portas, mas depois de um tempo regressava; chamava em voz alta o outro servidor, tudo para atrair a atenção, e começava, depois, a amontoar processos diante da porta fechada, como se houvesse mudado de opinião e não tivesse o direito de retomar àquele senhor o que quer que fosse, mas sim de lhe atribuir outros autos. Em seguida continuava seu caminho, não tirando porém os olhos da porta e quando então o senhor, como em geral acontecia, abria logo, cautelosamente, a porta para puxar os processos para dentro do quarto, o servidor, com alguns saltos, já estava lá, metia o pé entre a porta e a guarda da cama e dessa forma forçava o senhor ao menos a negociar face a face com ele, o que de modo geral levava a um resultado razoavelmente satisfatório. Se isso falhava, ou se, naquela porta, essa não lhe parecia ser a maneira apropriada, ele tentava outra coisa. Voltava nessa hora, por exemplo, a atenção para o senhor que reclamava os autos. Punha de lado, então, o outro servidor, um auxiliar decididamente inútil, que só trabalhava mecanicamente, e começava a convencer ele próprio o senhor; cochichava furtivamente, enfiando a cabeça fundo no quarto, provavelmente fazendo promessas e assegurando-lhe também, para a próxima distribuição, uma punição apropriada do outro senhor; muitas vezes, em todo caso, apontava para a porta do adversário e ria, na medida em que seu cansaço o permitia. Mas havia então casos, um ou dois, em que ele certamente renunciava a todas as tentativas — aqui porém K. também acreditava que fosse apenas uma renúncia aparente ou no mínimo uma renúncia por razões justificadas — pois o servidor continuava a andar tranqüilamente, tolerava, sem se voltar, o barulho do senhor negligenciado; a única coisa que tornava visível que ele sofria com o barulho era que, de tempos em tempos, fechava longamente os olhos. O senhor, no entanto, se acalmava também aos poucos; assim como o choro ininterrupto de uma criança se transforma, pouco a pouco, em soluços cada vez mais isolados, ocorria a mesma coisa com a sua gritaria, mas, até depois que havia silenciado por completo, ouvia-se ainda, aqui e ali, novamente, um grito isolado ou um abrir e fechar rápido daquela porta. De qualquer modo era provável que o servidor houvesse agido de maneira totalmente judiciosa. No fim só ficou um senhor, que não queria se acalmar; permaneceu longo tempo em silêncio, mas só para se recuperar, depois desatou outra vez, então mais forte que antes. Não era muito claro por que ele gritava e se queixava tanto, talvez não fosse em absoluto por causa da distribuição dos processos. Nesse meio-tempo o servidor havia concluído seu trabalho; só restava um único auto, na verdade apenas um papelzinho, uma folha de um bloco de anotações, no carrinho — isso por culpa do auxiliar —, e não se sabia a quem distribuí-lo. “Poderia muito bem ser meu processo”, passou pela cabeça de K. O prefeito repetidas vezes havia falado desse caso como o mais minúsculo de todos. E K., por mais arbitrária e ridícula que, no fundo, considerasse essa suposição, procurou se aproximar do servidor que examinava pensativo o pedaço de papel; não era muito fácil, pois o servidor não mostrava por sua vez simpatia por K.; mesmo em meio ao trabalho mais duro, ele sempre encontrava tempo para olhar em direção a K., irado ou impaciente, com nervosos movimentos de cabeça. Só depois de terminada a distribuição é que parecia ter esquecido K. um pouco; quanto ao resto, havia se tornado mais indiferente que antes, sua grande fadiga o explicava; não se empenhava muito, também, em relação ao pedaço de papel, talvez não o tivesse lido em absoluto, só fingia que o estava lendo e embora, ali no corredor, provavelmente houvesse causado prazer a qualquer ocupante dos quartos, resolveu outra coisa, ficara saturado da distribuição de processos, com o indicador nos lábios fazia sinal de silêncio a seu acompanhante e — K. ainda estava longe de chegar até ele — rasgou o papel em pedacinhos, enfiando-os no bolso. Era com certeza a primeira irregularidade que K. havia visto ali, no trabalho administrativo, de qualquer modo era possível que ele também a tivesse interpretado errado. E mesmo que fosse uma irregularidade, era algo que devia ser relevado; não era possível, nas condições reinantes, que o servidor trabalhasse sem cometer erro; uma hora podia ser a raiva acumulada, a inquietude acumulada, que acabava por estourar, e se ela se manifestava no simples ato de rasgar um pequeno pedaço de papel ainda era bastante inocente. A voz do senhor que nada podia acalmar ainda ressoava pelo corredor, e seus colegas, que em geral não se comportavam de maneira muito amistosa entre si, pareciam, em relação ao barulho, ser plenamente da mesma opinião; era como se, aos poucos, o senhor houvesse assumido a tarefa de fazer barulho por todos, que o estimulavam só por meio de apelos e sinais de cabeça a continuar. Mas o servidor não se ocupava mais nem um pouco com aquilo, havia terminado seu trabalho, apontou para o guidão do carrinho para que o outro servidor o segurasse e partiram de novo como tinham vindo, só que mais satisfeitos e tão rápido que o carrinho pulava diante deles. Só uma vez eles ainda recuaram de medo e olharam para trás, quando o senhor que não parava de gritar — e diante de cuja porta K. agora se movimentava porque gostaria de saber o que o senhor queria de fato — evidentemente deixou de achar satisfação em gritar, pois tinha descoberto o botão de uma campainha elétrica e, com certeza encantado com o fato de estar assim aliviado, começou a tocar ininterruptamente, em vez de gritar. Logo em seguida começou um grande murmúrio nos outros quartos, parecia significar aprovação, o senhor parecia estar fazendo algo que todos teriam feito com prazer há muito tempo e só por um motivo desconhecido haviam necessitado pôr isso de lado. Talvez fosse o serviço de quarto, ou quem sabe Frieda, que o senhor queria chamar com o toque da campainha? Ele podia então tocar muito tempo. Frieda estava ocupada em embrulhar Jeremias com toalhas úmidas e, mesmo que estivesse curado, era melhor que ela não tivesse tempo, pois a essa altura já estaria deitada nos braços dele. O soar da campainha, porém, teve um efeito imediato. O gerente da hospedaria já aparecia a distância correndo, vestido de preto e abotoado como sempre; mas a maneira como corria dava a impressão de que tinha esquecido sua dignidade: os braços semi-estendidos, como se houvesse sido chamado por causa de uma grande desgraça e chegasse para agarrá-la e asfixiá-la logo no seu peito; cada pequena irregularidade do som da sineta parecia fazê-lo dar breves saltos e se apressar ainda mais. Também sua mulher aparecia um longo trecho atrás dele; corria igualmente de braços abertos, mas seus passos eram curtos e afetados, o que fez K. pensar que ela ia chegar tarde demais, naquele meio-tempo tudo o que era preciso fazer o gerente já teria feito. E para abrir caminho para a corrida do gerente, K. espremeu-se junto à parede. O gerente no entanto estacou na altura em que K. se encontrava como se esse fosse seu objetivo e logo a mulher também estava lá e os dois o cumularam de censuras, que com a pressa e a surpresa ele não entendeu, em especial porque a campainha do senhor se imiscuía e até outras sinetas começaram a trabalhar, agora não mais por necessidade, mas por brincadeira e excesso de alegria. K., a quem importava muito entender sua culpa com precisão, estava de pleno acordo com o fato de que o gerente o havia pegado sob o braço e saísse com ele daquela barulheira que se intensificava continuamente, pois atrás deles — K. não se voltou porque o gerente da hospedaria, de um lado, e a mulher, do outro, não paravam de falar com ele —, atrás deles todas as portas se abriram por completo, a passagem se animou, parecia que ali se desenvolvia a circulação de uma viela estreita e cheia de vida, as portas diante deles esperavam, indubitavelmente com impaciência, que K. afinal passasse para que os senhores pudessem sair; no meio de tudo isso, as campainhas soavam, continuavam a retinir como que para festejar uma vitória. Finalmente — já estavam de novo no pátio branco e silencioso, onde aguardavam alguns trenós — K. percebeu aos poucos do que se tratava. Nem o gerente nem a mulher dele podiam compreender que K. tivesse conseguido ousar algo daquela natureza. Mas afinal o que ele tinha feito? Era o que K. não parava de perguntar, mas precisava de muito tempo para saber, uma vez que sua culpa era evidente demais para os dois e por isso não pensavam nem remotamente em sua boa-fé. Só com lentidão K. reconheceu tudo. Ele não tinha o direito de estar na passagem, em princípio só o balcão de bebidas era acessível a ele e mesmo assim por clemência e de forma revogável. Se era convocado por um senhor, naturalmente tinha de comparecer no lugar da convocação, mas sempre consciente — certamente ele tinha pelo menos o bom senso usual dos homens? —, sempre consciente de que estava num lugar ao qual na realidade não pertencia, onde o senhor o havia chamado com a máxima má vontade, só porque um assunto oficial o exigia e justificava. Por esse motivo precisava aparecer rápido, se submeter ao interrogatório e depois desaparecer se possível mais rápido ainda. Será, pois, que lá no corredor ele não tivera o sentimento penoso de não estar no seu lugar? Mas se o teve, como pôde circular ali como um animal no campo? Ele não tinha sido intimado para um interrogatório noturno e não sabia, portanto, por que haviam sido introduzidos os inquéritos à noite? Os interrogatórios noturnos — e aqui K. recebeu uma nova explicação sobre seu sentido — tinham como objetivo apenas inquirir as partes cuja visão era totalmente insuportável para os senhores durante o dia, de uma maneira rápida, à noite, sob a luz artificial, tendo a possibilidade de esquecerem no sono, logo após o inquérito, toda a feiúra existente nele. Mas o comportamento de K. fora um escárnio em relação a todas as medidas de segurança. Até fantasmas desaparecem pela manhã; K. porém havia permanecido ali, as mãos nos bolsos, como se esperasse que — já que não se afastava — o corredor inteiro, com seus quartos e senhores, fosse se distanciar. E seria isso também que — uma coisa de que ele não podia estar seguro — com toda certeza teria acontecido, se de algum modo fosse possível, pois a sensibilidade dos senhores era ilimitada. Ninguém, por exemplo, vai repelir K. ou, seja como for, dizer aquilo que é mais óbvio; que ele afinal devia ir embora — ninguém vai dizer isso, embora, durante a presença de K., provavelmente tremam de nervosismo, e a manhã, seu momento preferido, se encha de fel para eles. Em vez de empreender algo contra K., eles preferem sofrer — lance em que, bem entendido, a esperança tem um papel —; que isso finalmente, saltando aos olhos de K., fará com que também ele, aos poucos, se dê conta do que ocorre e tenha de sofrer, de modo correspondente à dor dos senhores, até o insuportável, por estar ali no corredor pela manhã com uma inadequação tão horrível e visível a todos. Inútil esperança. Eles não sabem ou não querem saber, na sua amabilidade e condescendência, que existem também corações insensíveis, duros, que nenhum respeito seria capaz de abrandar. A própria mariposa, pobre criatura, não busca, quando nasce o dia, um canto sossegado, fica plana, gostaria muito mais de desaparecer e se torna infeliz com o fato de que não pode fazê-lo? K., ao contrário, se coloca no lugar onde fica mais visível, e se pudesse impedir, com isso, o romper do dia, sem dúvida o faria. Não é capaz de evitá-lo, mas de retardá-lo; infelizmente, pode torná-lo difícil. Não assistiu à distribuição dos processos? Algo que a ninguém é permitido presenciar, a não ser às pessoas imediatamente envolvidas. Uma coisa que nem o gerente nem sua mulher tiveram o direito de ver em sua própria casa. Algo de que não ouviram falar senão por alusões, como por exemplo hoje, da parte do servidor. Será que ele não notou com que dificuldade se efetuou a distribuição dos processos, algo em si incompreensível, uma vez que cada um dos senhores só está servindo à causa, jamais cogita numa vantagem pessoal e por isso precisa trabalhar com toda a energia para que a distribuição dos processos, esse trabalho importante e fundamental, se efetive rápido, fácil e sem erros? E será que realmente nem de longe aflorou à consciência de K. que a causa principal de todas as dificuldades era que a distribuição dos autos tinha de ser realizada com as portas quase cerradas, sem a possibilidade de relações diretas entre os senhores, que naturalmente são capazes de se entender no mesmo instante, ao passo que a mediação dos servidores tem de durar quase horas, não pode se passar nunca sem reclamações, representa um tormento permanente para senhores e servidores e provavelmente acarretará conseqüências danosas aos trabalhos posteriores? E por que os senhores não podem estabelecer relações? K. continuava, pois, a não entender isso? Algo semelhante ainda não havia acontecido à esposa do gerente da hospedaria — e o gerente o confirmava também, por sua parte —, embora já houvessem tido o que fazer com uma variedade de pessoas recalcitrantes. Coisas que normalmente não se ousa proferir, é necessário dizer a ele abertamente, pois de outro modo ele não entende nem aquilo que é mais essencial. Muito bem, já que é preciso ser dito: por sua causa, só e exclusivamente por sua causa, os senhores não foram capazes de sair de seus quartos, uma vez que pela manhã, logo depois do sono, eles são pudicos demais, vulneráveis demais, para se expor a olhares de estranhos; sentem-se literalmente, embora possam estar completamente vestidos, desnudados demais para se mostrar. É difícil afirmar por que se envergonham — talvez se envergonhem, esses eternos trabalhadores, só porque dormiram. Mas talvez mais ainda do que se mostrar, envergonham-se de ver pessoas estranhas; aquilo que superaram felizmente com a ajuda dos interrogatórios noturnos — a visão dos suplicantes, que são para eles tão difíceis de suportar — agora de manhã não desejam, de repente, sem mediação, permitir que os invadam de novo em toda a sua verdade natural. Isso está acima de suas forças. Que pessoa é preciso ser, para não respeitar isso! Ora, é preciso ser uma pessoa como K. Alguém que se sobrepõe a tudo, tanto à lei como à consideração humana mais usual, fazendo-o com essa indiferença embotada e com essa dormência que não dá a menor importância ao fato de tornar quase impossível a distribuição dos processos, prejudicando a reputação da casa e chegando ao que nunca ainda aconteceu, de tal forma que os senhores, levados ao desespero, começam eles próprios a se defender; após uma auto-superação impensável num ser humano comum, lançam mão da campainha e chamam socorro para expulsar K., que, de outra maneira, não se deixa abalar. Eles, os senhores, pedindo socorro! O gerente, sua mulher e o pessoal todo teriam acorrido muito tempo antes se houvessem ousado tão-somente aparecer pela manhã diante dos senhores, sem ser chamados, mesmo que fosse para dar ajuda e depois desaparecer logo. Tremendo de indignação com K., inconsoláveis em virtude de sua impotência, teriam aguardado ali no começo da passagem e o soar da campainha, na verdade nunca esperado, teria sido um alívio para eles. Bem, o pior já passou! Se eles pudessem apenas lançar um olhar que fosse sobre a atividade jubilosa desses senhores enfim livres de K.! Para K., sem dúvida, as coisas não estavam terminadas; ele teria com certeza de responder pelo que havia causado naquele lugar. Nesse ínterim eles haviam chegado ao balcão de bebidas; não estava muito claro por que o gerente, apesar de toda a sua raiva, havia conduzido K. até ali; talvez houvesse reconhecido que o cansaço de K. tivesse tornado impossível, no momento, que ele deixasse a hospedaria. Sem esperar um convite para sentar-se, K. desabou logo, literalmente sobre um dos tonéis. Lá no escuro ele se sentia bem. Num largo espaço ardia agora apenas uma lâmpada elétrica fraca sobre as torneiras de cerveja. Fora também a escuridão era ainda profunda, parecia ser uma tempestade de neve. Ali no quente onde estava, era preciso ser grato e tomar precaução para não ser expulso. O gerente e a mulher continuavam em pé à sua frente, como se ele ainda representasse um certo perigo, como se, dada a sua completa falta de confiabilidade, não estivesse excluído que pudesse de repente se levantar e tentasse penetrar outra vez no corredor. Eles próprios também estavam cansados do susto noturno, por terem saído da cama antes da hora, principalmente a mulher do gerente, que vestia uma roupa marrom, ampla, e fazia um ruído parecido com o da seda, abotoada e ajustada um pouco em desordem — onde a teria buscado em meio à pressa? —, conservava a cabeça, como que vergada, apoiada sobre o ombro do marido, os olhos tapados com um pequeno lenço fino, e dirigia olhares infantilmente malévolos a K. Para acalmar o casal, K. disse que tudo o que lhe haviam contado era uma completa novidade para ele; que, a despeito de sua ignorância de tudo aquilo, não iria permanecer tanto tempo no corredor, onde de fato não tinha nada que fazer e certamente não quisera atribular ninguém, mas que tudo só ocorrera por causa da fadiga excessiva. Agradecia a ambos pelo fato de terem posto um fim àquela cena penosa. Se lhe pedissem para prestar contas, isso seria muito bem-vindo, pois só desse modo podia evitar uma falsa interpretação do seu comportamento. O cansaço, nada mais, tinha sido o culpado. Essa fadiga, no entanto, se originava no fato de que ainda não estava acostumado ao esforço dos inquéritos. Não fazia muito tempo que ele estava ali. Quando chegasse a ter alguma experiência nesse sentido, coisa semelhante não poderia acontecer de novo. Talvez levasse os inquéritos muito a sério, mas isso em si não era com certeza uma desvantagem. Teve de se submeter a dois interrogatórios, um logo após o outro — um com Bürgel e o outro com Erlanger; especialmente o primeiro o esgotara muito; o segundo, na verdade, não durara tanto; Erlanger tinha apenas lhe pedido uma gentileza; mas os dois juntos foi mais do que podia suportar de uma só vez; quem sabe fosse a mesma coisa para outra pessoa, para o senhor, por exemplo, senhor gerente. Do segundo interrogatório ele já saiu cambaleando. Fora quase uma espécie de embriaguez — tinha visto e ouvido os dois senhores pela primeira vez e precisado, não obstante, dar respostas a eles. Pelo que sabe, tudo saiu bem, mas depois ocorreu aquela infelicidade, pela qual, entretanto, depois do que havia se passado antes, praticamente não era possível inculpá-lo. Infelizmente só Erlanger e Bürgel haviam tomado conhecimento do seu estado e seguramente teriam se ocupado dele e impedido todo o resto; mas Erlanger foi obrigado a ir embora logo depois do interrogatório, evidentemente para se dirigir ao castelo, e Bürgel, provavelmente exausto por causa daquele interrogatório — como, então, K. devia resistir sem ficar fraco? —, adormeceu e permaneceu dormindo durante toda a distribuição dos autos. Se K. tivesse desfrutado de uma possibilidade semelhante, a teria aproveitado com alegria e renunciado sem problemas a todas as espiadas interditas — e isso tanto mais facilmente na medida em que estava, na realidade, sem condições de ver coisa alguma, e por essa razão até os senhores mais suscetíveis poderiam ter se mostrado diante dele sem constrangimento. A menção aos dois interrogatórios, sobretudo o de Erlanger, e o respeito com que K. falou dos senhores deixaram o gerente bem-disposto em relação a ele. Parecia já a ponto de atender ao pedido de K. para colocar uma prancha sobre os tonéis e deixá-lo dormir ali ao menos até o amanhecer; mas a mulher do gerente estava nitidamente contra, ela não parava de sacudir a cabeça, consciente naquele momento da desordem em que se encontrava sua roupa e tentando arrumar aqui e ali: evidentemente era uma velha disputa relativa à limpeza da casa, disputa que estava prestes a explodir outra vez. Para K., no seu cansaço, a conversa do casal assumiu uma importância excessiva. Ser expulso de novo daquele lugar parecia a ele uma desgraça que ultrapassava tudo o que havia experimentado até então. Isso não devia acontecer, mesmo que o gerente e a mulher pudessem se unir contra ele. Espiava os dois, contorcido sobre o tonel. Até que a mulher, na sua suscetibilidade extrema, coisa que havia tempo chamara a atenção de K., repentinamente deu um passo para o lado e — provavelmente tinha falado de outras coisas com o gerente — exclamou: — Como ele me olha! Mande-o embora, afinal! K., porém, aproveitando a oportunidade e convencido quase até à indiferença de que ia ficar, disse: — Não estou olhando para a senhora, mas para o seu vestido. — Por que meu vestido? — perguntou excitada a mulher do gerente. K. sacudiu os ombros.
— Venha — disse a mulher ao gerente. — O calhorda está bêbado. Deixe-o curar no sono a bebedeira. E ainda ordenou que Pepi, que havia surgido do escuro ao seu chamado — os cabelos revoltos, cansada, uma vassoura na mão, negligente —, atirasse para K. uma almofada.
QUANDO K. ACORDOU, julgou a princípio quase não ter dormido: o quarto permanecia inalterado, vazio e morno, todas as paredes na obscuridade, uma única lâmpada sobre os tonéis de cerveja e diante das janelas a noite. Mas ao esticar o corpo a almofada caiu, a prancha e os tonéis rangeram, Pepi chegou logo em seguida e então ele ficou sabendo que já havia anoitecido e que tinha dormido bem mais que doze horas. A mulher do gerente perguntara por ele algumas vezes durante o dia; também Gerstäcker, que pela manhã, quando K. conversava com a mulher do gerente, havia aguardado ali no escuro, diante de uma cerveja, mas depois não ousara mais importunar K., estivera lá uma vez, nesse meio-tempo, para observar K.; por fim Frieda, ao que parece, tinha vindo e ficado por uns instantes ao lado de K., embora na prática não houvesse chegado até lá por causa dele, mas porque tinha de preparar naquele lugar diversas coisas, uma vez que à noite devia retomar seu velho posto. — Ela não gosta mais de você? — perguntou Pepi ao trazer café e bolos. Porém já não fazia a pergunta com maldade como antes era o seu estilo, e sim com tristeza, parecendo ter, nesse lapso de tempo, conhecido a malevolência do mundo, diante da qual toda maldade pessoal fracassava e ficava sem sentido; ela se dirigia a K. como a um companheiro de infortúnio, e quando ele provou o café e ela julgou perceber que K. não o achou suficientemente doce, correu e trouxe para ele o açucareiro todo. Sem dúvida a tristeza dela não conseguira impedir que se arrumasse mais ainda que da última vez; tinha uma quantidade de laços e fitas urdidos no cabelo, ao longo da testa e nas têmporas os cabelos estavam cuidadosamente frisados e do pescoço uma correntinha descia pelo decote fundo da blusa. Quando K., satisfeito por ter finalmente dormido o suficiente e podido beber um bom café, esticou furtivamente a mão para alcançar um dos laços, tentando desatá-lo, Pepi disse com lassidão: — Deixe-me, deixe-me. Sentou-se depois sobre um tonel ao lado dele. K. não precisou perguntar o que a fazia sofrer, ela própria começou a contar, o olhar fixo no bule de café de K. como se necessitasse de algo para se desviar enquanto falava — como se não pudesse, mesmo ocupada com sua dor, se abandonar totalmente a ela, pois isso estava acima de suas forças. K. a princípio foi informado de que na realidade era culpado pela infelicidade de Pepi, mas que ela não guardava rancor contra ele.
Acenava fervorosamente com a cabeça, enquanto contava a sua história, para não deixar K. oferecer qualquer objeção. Primeiro, ele tinha levado Frieda do balcão e com isso possibilitado a ascensão de Pepi. Não era possível imaginar de outro modo o que pudera mover Frieda a renunciar a seu posto; ela ficava sentada junto ao balcão como a aranha na teia, tinha por toda parte os fios que só ela conhecia; teria sido completamente impossível removê-la contra sua vontade, só o amor por alguém inferior, ou seja, algo que não era compatível com sua posição, podia tirá-la dali. E Pepi? Será que havia ocorrido a ela conquistar para si aquele lugar? Ela era criada de quarto, possuía um posto sem importância e com pouca perspectiva, como qualquer jovem, ela tinha sonhos de um grande futuro, sonhos que não se podem proibir, mas não pensava a sério num avanço, havia se conformado com o que alcançara. E foi então que de repente Frieda desapareceu do balcão, foi tão repentino que o gerente da hospedaria não tinha à mão uma substituta adequada, ficou procurando e seu olhar recaiu em Pepi, que sem dúvida havia se adiantado com essa finalidade. Naquela época ela amava K. como ainda não amara ninguém; durante meses havia permanecido no seu minúsculo quarto embaixo, todo escuro, e estava pronta para passar ali, no pior dos casos, a vida inteira, ignorada; então K. apareceu de súbito, um herói, um libertador de jovens, e lhe abrira o caminho para cima. É verdade que não sabia nada sobre ela, não o havia feito por sua causa, mas isso não subtraiu nada à sua gratidão; durante a noite que antecedeu a indicação dela — a colocação ainda era incerta, mas apesar de tudo muito provável — ela passou horas falando com ele, sussurrando seu reconhecimento no ouvido de K. E a seus olhos a ação dele se engrandeceu mais pelo fato de ter assumido o fardo de Frieda; era um ato de incompreensível abnegação ter feito Frieda sua amante para tirar Pepi da sombra, Frieda, uma jovem que não era bonita, nem mais jovem, magra, de cabelos curtos e ralos, além do que manhosa, que tinha sempre algum segredo, o que certamente combinava com seu aspecto; rosto e corpo podem indubitavelmente ser lamentáveis, por isso ela deve ter outros segredos que ninguém é capaz de verificar, por exemplo suas supostas relações com Klamm. E mesmo idéias como essa ocorreram a Pepi na ocasião: é possível que K. realmente ame Frieda? Será que ele não se engana ou talvez engane apenas Frieda, e o resultado de tudo isso seja só a ascensão de Pepi e nesse caso K. notará o equívoco ou então não irá querer mais ocultá-lo? Não será mais Frieda então, mas apenas Pepi que desejará ver — o que não precisava ser exclusivamente produto da imaginação desregrada dela, pois, na verdade, como jovem contra jovem, ela era muito mais que um páreo para Frieda, como ninguém podia negar, e havia sido principalmente o posto de Frieda, e o brilho que ela conseguia dar a ele, que ofuscara K. naquela época. Pepi tinha sonhado que, quando possuísse aquele posto, K. viria procurá-la e ela teria a escolha ou de escutá-lo e perder o lugar ou de rejeitá-lo e continuar sua ascensão. Havia estabelecido para si mesma que ia renunciar a tudo e descer até ele para lhe ensinar o verdadeiro amor que nunca havia experimentado com Frieda — um amor independente de todos os postos de prestígio do mundo. Mas as coisas então se passaram de modo diferente. E quem era culpado por isso? K. acima de tudo e certamente, também, a manha de Frieda. Sobretudo K., pois o que ele quer, esse estranho homem? Ao que aspira, quais são as coisas importantes que o ocupam e fazem esquecer o que existe de mais próximo, de melhor, de mais belo que tudo? Pepi é a vítima e tudo é estúpido e está tudo perdido e quem tivesse forças para atear fogo na hospedaria inteira e queimá-la por completo, de modo que não sobrasse nada, queimá-la como um papel no fogão — esse seria, hoje, o eleito de Pepi. Sim, Pepi chegou tão bem ao balcão de bebidas há quatro dias, pouco antes do almoço. O trabalho ali não é fácil, é um trabalho quase capaz de matar uma pessoa, mas o alvo a ser alcançado também não é pequeno. Antes disso Pepi não tinha vivido de expediente e, mesmo que nunca houvesse reivindicado aquela colocação nem nos pensamentos mais ousados, fizera com certeza uma quantidade de observações; sabia o que esse posto implicava, não tinha assumido o trabalho despreparada. Não se pode enfrentá-lo sem preparo, caso contrário a pessoa o perde nas primeiras horas. Particularmente se quisesse agir ali no estilo de uma criada de quarto. Como criada de quarto, com o passar do tempo, a pessoa acaba se sentindo inteiramente perdida e esquecida, é como trabalhar numa mina, pelo menos no corredor dos secretários é assim; durante dias não se vê, lá, com exceção das poucas partes suplicantes que passam de um lado para outro como sombras, sem ousar erguer os olhos, nem sequer um ser humano além das duas, três outras criadas de quarto, igualmente amarguradas. Pela manhã não se tem o direito de sair do quarto, os secretários desejam permanecer a sós entre si, as refeições são levadas para eles da cozinha, pela mão dos servos, sendo assim as camareiras em geral não têm nada o que fazer; também durante o tempo da refeição não é permitido aparecer no corredor. Só enquanto os senhores trabalham é que elas podem fazer a arrumação dos quartos, mas obviamente não os que estão ocupados, apenas os que justamente se acham vazios; e esse trabalho deve ser realizado em completo silêncio para que a atividade dos senhores não seja perturbada. No entanto, como é possível fazer a arrumação em silêncio se os senhores permanecem nos quartos vários dias, além do que os servos também ficam rondando ali — aquele bando de gente porca —; quando afinal o quarto é deixado livre para as criadas, encontra-se num tal estado que até mesmo o próprio dilúvio seria incapaz de limpá-lo. Trata-se, na verdade, de altos personagens, mas é preciso ser forte para superar o nojo e conseguir pôr as coisas limpas e em ordem depois deles. As criadas não têm um trabalho excessivo, mas duro. E jamais se ouve uma palavra gentil, só e sempre censuras, principalmente esta, que é a mais dolorosa e freqüente: a de que durante a arrumação se perderam processos. Na realidade nada se perde, qualquer papelzinho é entregue ao gerente; mas sem dúvida se perdem processos, só que não por causa das camareiras. Vêm então as comissões, as criadas têm de abandonar seus quartos e a comissão revira as camas; criadas não têm propriedades, o par de coisas que possuem cabe numa mochila; mas a comissão passa horas procurando. Evidentemente não encontra nada; como os autos poderiam ter ido para lá? O que as criadas iriam fazer com processos? O resultado, porém, são novamente xingamentos e ameaças da parte da comissão decepcionada transmitidos tãosomente pelo gerente. E tranqüilidade nunca — seja de dia, seja à noite. Barulho a metade da noite e barulho bem cedo de manhã. Se ao menos não fosse preciso morar ali, mas é necessário; pois nos intervalos, em função das encomendas recebidas — pequenos pedidos feitos à cozinha —, as criadas são obrigadas a leválas por força do ofício, sobretudo à noite. Sempre de súbito o murro na porta das criadas, os pedidos ditados; é preciso descer correndo até a cozinha, sacudir o jovem cozinheiro que dorme, colocar a bandeja com as coisas solicitadas diante das portas das criadas, onde os servos as recolhem — como é triste tudo isso! Mas não é o pior de tudo. O pior é, antes, quando não vem nenhum pedido, quando em plena noite, em que todos já deviam estar dormindo e a maioria de fato já adormeceu, alguém por vezes passa se esgueirando diante da porta das criadas de quarto. As moças então se levantam de suas camas — os leitos estão superpostos um ao outro, há muito pouco espaço em toda parte, o quarto inteiro das criadas na verdade não é nada mais que um grande armário com três gavetas —, ficam escutando junto à porta, se ajoelham e se abraçam angustiadas. E não se pára de ouvir essa pessoa se esgueirar diante da porta. Todas se mostrariam felizes se ela finalmente entrasse, mas nada acontece, ninguém entra. E nesse caso é obrigatório dizer que não se trata necessariamente de um perigo capaz de ameaçar, talvez seja apenas alguém que vai e vem diante da porta, cogitando se deve fazer um pedido e não chega, depois, a se decidir fazê-lo. Talvez seja só isso, mas talvez seja algo completamente diferente. Na verdade não se conhece em absoluto esses senhores, dificilmente foram vistos. Seja como for, as moças lá dentro se consomem de medo e, quando fora finalmente faz silêncio, elas se encostam na parede, sem forças para subir de novo às suas camas. É essa a vida que espera Pepi outra vez; hoje à noite ainda ela deve ocupar novamente seu lugar no quarto das criadas. E por quê? Por causa de K. e Frieda. De volta a essa vida à qual mal havia fugido com a ajuda de K., na verdade, mas também com o maior esforço pessoal. Pois nesse ofício as moças negligenciam a si mesmas, até as mais cuidadosas. Para quem devem se embelezar? Ninguém as vê, no melhor dos casos o pessoal da cozinha; quem se contenta com isso está livre para se adornar. O resto do tempo, porém, permanecem sempre no seu quartinho ou nos quartos dos senhores, onde o fato de entrar em trajes limpos já é leviandade e desperdício. E sempre sob a luz artificial e num ar abafado — a calefação não pára — e, na realidade, sempre cansada. Na única tarde livre da semana o melhor é passar tranqüila num canto da cozinha e dormir calma e sem medo. Por que, portanto, se embelezar? Sim, você mal se veste. Então, de repente, Pepi é removida para o balcão de bebidas, onde, supondo-se que o desejo é de se afirmar ali, é exigido exatamente o contrário; onde se está continuamente exposta ao olhar das pessoas, entre elas os senhores muito mimados e atentos e onde, por isso, é preciso manter a aparência o mais possível fina e agradável. Bem, foi uma guinada. E Pepi pode dizer sobre si mesma que não perdeu a oportunidade. Que forma, mais tarde, isso iria tomar, não a deixou nada preocupada. Que ela tinha as qualidades necessárias a esse posto, era uma coisa que sabia, a esse respeito estava inteiramente segura; tal convicção ela possui ainda agora, algo que ninguém pode lhe tirar — mesmo hoje, no dia de sua derrota. O único problema tinha sido como, nos primeiros tempos, ia dar provas disso, porque era uma pobre criada de quarto sem roupas e adornos e porque os senhores não têm paciência para esperar a evolução das coisas, mas querem ter logo, sem transição, uma servente de balcão apropriada, senão eles vão embora. Pode-se considerar que suas exigências não são demasiadas, uma vez que Frieda pôde satisfazê-las. Mas isso não é exato. Pepi pensou a esse respeito muitas vezes, encontrou Frieda, aliás, com freqüência e chegou até a dormir um certo tempo com ela. Não é fácil seguir as pegadas de Frieda, e quem não presta muita atenção — quantos, dentre os senhores, prestavam bastante atenção? — é prontamente induzido a erro por ela. Ninguém sabe com mais precisão que a própria Frieda como sua aparência é lamentável; quando por exemplo a pessoa vê pela primeira vez ela soltar os cabelos, junta as mãos de compaixão; uma moça assim não poderia, se as coisas fossem corretas, nem mesmo ser criada de quarto; ela sabe disso e por esse motivo chorou várias noites, se agarrou a Pepi e colocou os cabelos de Pepi em torno da própria cabeça. Mas quando está trabalhando todas as dúvidas já desapareceram, ela se considera a mais bela de todas e sabe insuflá-lo a qualquer um da forma certa. Conhece as pessoas e é essa sua verdadeira arte. E é com rapidez que mente e engana, para que as pessoas não tenham tempo para observá-la em detalhe. Naturalmente isso não dura o suficiente, as pessoas afinal têm olhos e são elas que no fim ficam com a razão. No instante porém em que nota um perigo desses já dispõe de outro recurso; nos últimos tempos, por exemplo, sua relação com Klamm. Sua relação com Klamm! Você não acredita nisso, pode até verificar, dirija-se a Klamm e pergunte a ele. Como é esperta, como é esperta! E se você não devesse ousar ir até Klamm para colocar essa questão e talvez outras infinitamente mais importantes e mesmo que ele permanecesse totalmente inacessível a você — a você e aos que se parecem com você, pois Frieda, por exemplo, vai aos pulos para Klamm quando quer —, se é assim, você pode, apesar de tudo, examinar o caso, só precisa esperar. Klamm não poderá tolerar por muito tempo, com certeza, falsos rumores dessa espécie; seguramente tem muita vontade de saber o que se conta a respeito dele no balcão de bebidas e nos quartos de hóspedes, tudo isso é da maior importância para ele e caso seja falso irá corrigi-lo prontamente. Mas não corrige, então não há nada para corrigir e sendo assim se trata da verdade pura e simples. O que na verdade se vê é apenas que Frieda leva a cerveja ao quarto de Klamm e sai de lá com o pagamento; mas o que não se vê é o que Frieda conta e a pessoa é obrigada a acreditar. E ela não conta absolutamente nada, não vai divulgar, certamente, tais segredos; não, são os segredos que se espalham por si mesmos em torno dela; aí de qualquer modo ela não teme mais falar pessoalmente a respeito deles, mas de uma forma modesta, sem afirmar o que quer que seja, apenas se refere ao que, aliás, é conhecido por todo mundo. Não se reporta a tudo; por exemplo, ao fato de que Klamm, desde que ela está no balcão de bebidas, toma menos cerveja que antes, não muito menos, mas visivelmente menos, sem dúvida; sobre isso ela não fala, pode haver razões diversas, chega uma época em que a cerveja simplesmente agrada menos a Klamm ou então que ele se esquece de beber por causa de Frieda. De qualquer forma, por mais espantoso que possa parecer, Frieda é a amante dele. O que, porém, é suficiente para Klamm — como é que os outros não deveriam também admirar? E assim Frieda, antes que alguém desse por isso, se tornou uma grande beldade, uma jovem feita exatamente como o balcão precisa. Em verdade, quase tão bela, tão poderosa, que o balcão é praticamente insuficiente para ela. Com efeito parece às pessoas curioso que ela continue no balcão; ser a moça do balcão é muito; a partir daí parece muito plausível a ligação com Klamm; mas se a servente do balcão é amante de Klamm, por que ele a deixa ficar nesse lugar — e por tanto tempo? Por que é que ele não a promove? Pode-se dizer mil vezes às pessoas que aqui existe uma contradição, que Klamm tem motivos definidos para agir desse modo; ou que a ascensão de Frieda virá de repente, talvez muito proximamente; tudo isso não faz muito efeito; as pessoas têm idéias precisas e não se deixam desviar delas a vida toda em função de qualquer habilidade. Ninguém mais duvidou de que Frieda é amante de Klamm, mesmo aquelas que evidentemente sabiam mais já estavam muito fatigadas para duvidar. “Seja a amante de Klamm e vá para o inferno”, pensavam. “Mas já que é, então nós queremos constatá-lo na sua ascensão.” No entanto não se notou nada e Frieda permaneceu no balcão de bebidas como antes e, secretamente, muito contente de que as coisas tenham ficado assim. Mas perdeu o crédito entre as pessoas, naturalmente não pôde deixar de percebê-lo; em geral ela capta coisas antes ainda que elas existam. Uma jovem realmente bela e amável, uma vez aclimatada no balcão, não tem necessidade de usar artifícios; pelo tempo em que se conservar bela — se não intervier um incidente particularmente infeliz — será servente do balcão. Uma jovem como Frieda, porém, tem de estar constantemente preocupada com o seu posto; evidentemente não o demonstra, o que é compreensível; costuma, de preferência, se queixar e amaldiçoar o lugar em que se encontra. Em segredo, entretanto, não pára de observar o ambiente. E assim ela viu que as pessoas se tornavam diferentes; a entrada de Frieda não era mais nada para a qual valesse a pena sequer erguer os olhos; nem mesmo os servos se ocupavam mais dela; preocupavam-se antes com Olga e moças como ela, o que se podia entender; mesmo no comportamento do gerente ela percebeu que era cada vez menos indispensável; não era possível, além disso, inventar histórias sempre novas sobre Klamm, tudo tem limites — e foi desse modo que a boa Frieda se decidiu por algo novo. Se apenas tivesse havido alguém capaz de desvendar tudo logo! Pepi tinha suas suspeitas, mas infelizmente não descobriu o que estava havendo. Frieda resolveu fazer um escândalo: ela, a amante de Klamm, se atira aos braços do primeiro que aparece, o mais insignificante possível! Isso vai causar sensação, vão falar a esse respeito por muito tempo e finalmente, finalmente irão se recordar do que significa ser amante de Klamm e o que quer dizer jogar fora, no êxtase de um novo amor, essa honra. O difícil era apenas encontrar o homem apropriado com o qual devia ser jogado o jogo sutil. Não podia ser um conhecido de Frieda, nem mesmo um dos servos, provavelmente ele a teria fitado com olhos arregalados e passado adiante; sobretudo não teria conseguido manter a seriedade e nenhuma eloqüência poderia ser capaz de espalhar que Frieda fora atacada por ele sem poder se defender ou mesmo que houvesse sucumbido num momento de inconsciência. E ainda que se tratasse de alguém destituído de qualquer importância, era preciso ser uma pessoa sobre a qual pudesse se tornar plausível que, apesar dos seus modos rústicos e grosseiros, não aspirasse por ninguém mais a não ser exatamente por Frieda e não tivesse nenhuma ambição mais alta — Deus do céu! — do que se casar com ela. Mas mesmo que devesse ser um homem comum, se possível inferior ainda a um servo, muito inferior a um servo, e no entanto uma pessoa por cuja causa nem toda jovem caísse na risada, no qual — quem sabe? — uma outra moça sem crítica talvez pudesse achar algo atraente. Mas onde se encontra um homem assim? É provável que outra jovem o tenha procurado a vida inteira, inutilmente; a sorte de Frieda a leva ao agrimensor no balcão de bebidas justamente na noite em que pela primeira vez esse plano lhe vem ao espírito. O agrimensor! Sim, no que K. está, pois, pensando? Que coisas especiais tem na cabeça? Quer alcançar algo particular? Um bom emprego, uma distinção? Ele quer alguma coisa como essas? Bem, desde o início ele precisava ter tomado a iniciativa de forma diversa. K. não é absolutamente nada, é uma coisa lastimável presenciar sua situação. Ele é agrimensor, talvez isso seja algo; ele portanto aprendeu alguma coisa, mas quando não se consegue fazer nada com o que se sabe, não se é nada outra vez. E no entanto levanta reivindicações; sem a menor retaguarda, apresenta exigências; não diretamente, mas se nota que formula certas exigências e isso é provocador, sem dúvida. Será que sabe que até uma criada de quarto perde alguma coisa quando fala por mais tempo com ele? E com todas essas reivindicações particulares ele cai, logo na primeira noite, na mais tosca das armadilhas. Será que não se envergonha? O que pois o espicaçou tanto em Frieda? Agora ele poderia de fato confessar. Ela realmente o havia agradado, essa coisa magra e amarelada? Ah, não, ele nem mesmo tinha olhado para ela, ela lhe havia dito apenas que era amante de Klamm, isso o impressionara como uma novidade; aí, então, ele estava perdido. Mas ela tinha de se mudar, naturalmente nesse caso não existia mais espaço para ela na Hospedaria dos Senhores. Pepi a tinha visto ainda na manhã anterior à mudança, o pessoal se reunira correndo, todo mundo estava curioso para ver. E seu poder continuava tão grande que as pessoas a lamentavam; todos, até seus inimigos, a lamentavam: desde o início o cálculo dela provara ser correto. Ter-se atirado a um homem como aquele parecia a todos algo incompreensível, um golpe do destino; as pequenas empregadas da cozinha, que naturalmente admiram qualquer moça do balcão de bebidas, estavam inconsoláveis. Até Pepi estava tocada por aquilo, não conseguia nem se defender completamente, não obstante sua atenção, na realidade, se dirigisse a outra coisa. Chamava-lhe a atenção quão triste na verdade Frieda estava. No fundo era a desgraça medonha que havia atingido Frieda; ela agia, aliás, como se estivesse muito infeliz, mas isso não bastava, aquele jogo não podia enganar Pepi. O que, portanto, a sustentava? Por acaso era a felicidade de um novo amor? Bem, essa ponderação devia ser eliminada. Mas o que era, então? O que dava força a ela, até contra Pepi, que na época era considerada sua sucessora e friamente amável como sempre? Pepi, naquela ocasião, não tinha tempo suficiente para refletir a esse respeito, pois estava às voltas com os preparativos para o novo posto e tinha coisas demais para fazer. Provavelmente devia ocupá-lo dentro de algumas horas e ainda não fizera um belo penteado, nem tinha um vestido elegante, roupa de baixo fina, sapatos decentes. Tudo isso precisava ser providenciado em poucas horas; se não fosse possível se arrumar convenientemente, o melhor era renunciar de vez ao posto, pois com toda certeza o perderia em seguida, já na primeira meia hora. Bem, em parte teve êxito. Ela possuía um dom especial para pentear os cabelos; certa vez até a mulher do gerente a tinha mandado chamar para fazer seu penteado; o que lhe fora dado era uma certa leveza de mão especial, certamente seu cabelo abundante pode ser assentado facilmente. Também para a roupa havia ajuda. Duas de suas colegas permaneciam fiéis a ela; é uma certa honra para elas, também, que uma jovem do seu grupo se torne servente do balcão de bebidas; além do que, mais tarde Pepi, caso chegue ao poder, é capaz de lhes oferecer várias vantagens. Uma das moças possuía, havia muito tempo, um tecido precioso, era o seu tesouro, com freqüência tinha permitido que outras o admirassem; inclusive chegou a sonhar em usá-lo para si de um modo excepcional e — fora uma bela ação da parte dela — na ocasião em que Pepi precisava dele, ela o sacrificou por ela. E ambas a ajudaram voluntariamente na costura; se tivessem costurado para si mesmas não poderiam tê-lo feito com mais fervor. Foi até mesmo um trabalho alegre e prazeroso. Elas estavam sentadas em suas camas empilhadas, cantavam e cosiam, fazendo descer e subir de uma cama para outra as partes prontas e os adereços. Quando Pepi pensa nisso, seu coração se torna cada vez mais pesado pelo fato de tudo ter sido inútil, ela volta de mãos vazias para suas amigas. Que infelicidade! Como foi provocada, de forma leviana, sobretudo por culpa de K.! Como, na ocasião, todas se alegraram com o vestido! Parecia a garantia do sucesso, e a última dúvida se desfez quando posteriormente se encontrou mais um lugar para uma fita. E o vestido não é realmente bonito? Agora já está amassado e um pouco manchado; Pepi, na verdade, não tinha um segundo vestido, precisou vestir aquele dia e noite, mas continua visível o quanto é belo, nem mesmo aquela maldita Barnabás conseguiria fazer um mais bonito. E o fato de que se pode à vontade apertá-lo ou alargá-lo de novo, tanto em cima como embaixo, o fato portanto de que em verdade é só um vestido, mas tão passível de mudança — isso é uma vantagem especial e foi propriamente invenção sua. Não foi, com efeito, difícil costurar para ela, Pepi não se vangloria disso, tudo sem dúvida combina com jovens mulheres sadias. Muito mais difícil foi arranjar roupas de baixo e botas — e aqui, na realidade, começa o insucesso. Também nisso as amigas ajudaram o melhor que puderam, mas elas não podiam muita coisa. Eram somente roupas de baixo rústicas que reuniram e costuraram e em vez de botinhas de salto alto foi necessário ficar nas pantufas, que é preferível esconder que mostrar. Consolaram Pepi: Frieda também não andava muito bem vestida e às vezes se arrastava desleixada de lá para cá, de tal forma que os clientes gostavam mais de ser servidos pelos rapazes da adega do que por ela. Efetivamente as coisas se passaram assim, mas Frieda podia se permitir a agir desse modo, já gozava de favor e consideração; quando uma dama se mostra vestida de maneira suja e negligente, é tanto mais atraente, mas uma novata como Pepi? Além do mais Frieda não conseguia de modo algum se vestir bem, pois é destituída de qualquer gosto; se alguém já tem a pele amarela, não há muito o que se fazer; mas não precisa, como Frieda, ainda por cima, vestir uma blusa creme muito decotada, a tal ponto que o observador verta lágrimas. E mesmo que não houvesse sido assim, ela era avarenta demais para se vestir bem; tudo o que ganhava, guardava, ninguém sabia para quê. No serviço não tinha necessidade de dinheiro, saía-se bem com mentiras e manobras; esse exemplo Pepi não queria nem podia imitar e por isso era justificado que se enfeitasse assim, para desde o início se valorizar totalmente. Se pudesse apenas fazê-lo com recursos mais radicais, ela, a despeito de toda esperteza de Frieda, apesar da tolice de K., teria permanecido como a vencedora. Aliás, começou muito bem. Alguns truques e conhecimentos que eram necessários ela já os havia aprendido antecipadamente. Mal chegara ao balcão de bebidas, ela já estava aclimatada no lugar. Ninguém sentiu a falta de Frieda naquele trabalho. Só no segundo dia vários clientes quiseram saber onde Frieda na realidade estava. Não houve nenhum erro, o gerente se mostrava satisfeito; no primeiro dia permanecera continuamente no balcão, movido pela angústia, depois só ia de vez em quando e finalmente, já que as contas do caixa batiam — em média as entradas eram até maiores do que na época de Frieda —, o gerente deixou tudo nas mãos de Pepi. Ela introduziu inovações. Não por zelo, mas por cupidez, por mania de mandar e por medo de ceder a alguém algo dos seus direitos, Frieda chegou até — pelo menos em parte — a vigiar os servos, especialmente quando estava sendo observada; Pepi, ao contrário, atribuiu esse trabalho completamente aos rapazes da adega, muito mais competentes para a tarefa. Em função disso fez sobrar mais tempo para os quartos dos senhores, os hóspedes foram servidos mais rápido e conseqüentemente ela podia ainda trocar algumas palavras com cada um deles, o que não acontecia com Frieda, que supostamente se reservava inteiramente a Klamm, considerando cada palavra, cada aproximação de outra pessoa, como uma ofensa a Klamm. Evidentemente também isso era um ato de esperteza, pois, se permitia que alguém se aproximasse dela, tratava-se de conceder um favor extraordinário. Pepi porém odeia essas manobras, mesmo no início elas não são necessárias. Pepi era amável com qualquer pessoa e todas retribuíam com amabilidade. Elas estavam visivelmente contentes com a mudança; quando os trabalhadores desgastados pelo trabalho podiam, finalmente, sentar-se um pouco diante de um copo de cerveja, era possível literalmente transformá-los, através de uma palavra, de um olhar ou de um dar de ombros. Todas as mãos passavam com tanto ardor pelos cachos de Pepi que ela era obrigada a refazer dez vezes por dia o penteado, ninguém resistia à sedução daqueles cachos e laçadas, nem mesmo K., de resto tão distraído. Assim passaram voando dias excitantes, cheios de tarefas, mas bem-sucedidos. Se ao menos eles não tivessem voado tão rápido! Se tivessem sido um pouco mais numerosos! Quatro dias eram escassos demais, ainda que o esforço dela não houvesse chegado à exaustão; talvez cinco dias já tivessem bastado, mas quatro tinham sido insuficientes. Na verdade Pepi havia conquistado em apenas quatro dias benfeitores e amigos, se pudesse confiar em todos os olhares ela simplesmente nadava, quando chegava com as jarras de cerveja, num mar de amabilidade; um secretário chamado Bratmeier ficou louco por ela e a presenteara com uma correntinha e um medalhão com sua imagem, o que, de qualquer maneira, era uma ousadia da parte dele — tudo isso e outras coisas se sucederam, mas foram só quatro dias; em quatro dias, se Pepi houvesse se empenhado, Frieda podia ter sido quase esquecida, embora não completamente; teria sido esquecida com certeza, talvez ainda antes, se não tivesse tomado a precaução de permanecer presente na boca das pessoas através do grande escândalo que havia provocado; renovara-se por meio dele, eles teriam gostado de revê-la só pela curiosidade; o que se tornara tedioso até a náusea tinha reencontrado a atração graças à serventia de K., ele mesmo, aliás, totalmente indiferente. Evidentemente os clientes não iriam ceder Pepi em troca disso, uma vez que ela estivesse no balcão e sua presença surtisse efeito, mas custa à maioria dos senhores mais velhos, um pouco pesados em seus hábitos, se acostumar a uma jovem no balcão de bebidas, por mais que a troca tenha sido vantajosa durante alguns dias; dura alguns dias, talvez somente cinco, para lutar contra a vontade própria dos senhores, mas quatro não bastam: apesar de tudo, Pepi continuava sendo considerada provisória. E além disso, talvez a pior desgraça de todas: nesses quatro dias Klamm, não obstante estivesse na aldeia nos dois primeiros dias, não desceu para o salão de bebidas. Se tivesse descido, o fato seria a prova decisiva de Pepi, uma prova, aliás, que ela não temia em absoluto e com a qual, ao contrário, se alegrava. Não teria se tornado — em coisas como essa é preferível, decerto, não tocar com palavras — amante de Klamm nem procuraria se promover mentirosamente dizendo haver chegado lá; mas teria no mínimo sabido colocar o copo de cerveja sobre a mesa com tanta simpatia como Frieda, cumprimentado e se despedido com graça, mas sem os avanços de Frieda; e se Klamm por acaso busca algo nos olhos de uma moça, o teria encontrado até a saciedade nos de Pepi. Mas por que ele não veio? Foi por acaso? Naquela ocasião Pepi, ela também, havia acreditado nisso. Durante os dois dias esperou-o a cada instante, mesmo à noite. “Agora ele virá”, pensava sem parar e corria de cá para lá sem outro motivo senão a intranqüilidade da expectativa e o desejo de ser a primeira a vê-lo logo à sua entrada. Essa decepção constante a cansou muito, talvez por isso não tivesse rendido tanto quanto pôde. Esgueirava-se, quando dispunha de um pouco de tempo, corredor acima, no qual é rigorosamente proibido que o pessoal entre; lá se espremia num nicho e aguardava. “Se Klamm viesse agora” — pensava — “se eu o retirasse do seu quarto e conseguisse carregá-lo nos meus braços para o salão de bebidas lá embaixo! Não sucumbiria sob seu peso, por maior que fosse!” Mas ele não veio. Naqueles corredores de cima é tão silencioso que nem se pode imaginar, quando não se esteve lá. É tão silencioso que lá não é possível agüentar muito tempo, a quietude expulsa a pessoa dali. Mas continuamente repelida dez vezes, dez vezes Pepi subiu de novo. Era uma coisa sem sentido. Se Klamm quisesse vir, ele viria; mas se não o quisesse, não seria Pepi que o iria atrair para fora, mesmo que quase sufocasse de palpitação no nicho. Não tinha sentido, mas se ele não vinha, quase nada tinha sentido. E Klamm não veio. Hoje Pepi sabe por que Klamm não veio. Frieda teria conseguido um excelente objeto de entretenimento se tivesse sido capaz de ver Pepi lá em cima, no corredor, espremida no seu nicho, as duas mãos no coração; Klamm não descera porque Frieda não permitiu. Não foram seus pedidos que produziram esse efeito, esses apelos não penetram até Klamm. Mas ela, Frieda, essa aranha, possui relações que ninguém conhece. Quando Pepi se dirige a um cliente, ela o faz com franqueza, é possível ouvi-la falar até da mesa vizinha; Frieda não tem nada a dizer, coloca a cerveja sobre a mesa e vai embora; só se ouve o ruído de sua combinação de seda, a única coisa em que despende dinheiro. No entanto, se por acaso fala algo, não o faz francamente; cochicha para o hóspede, inclinando-se sobre ele de tal modo que na mesa vizinha aguçam os ouvidos. O que ela diz é provavelmente irrelevante, mas nem sempre; ela mantém ligações, sustenta umas através das outras e se a maioria malogra — quem se preocuparia o tempo todo com Frieda? —, aqui e ali uma funciona. Começou então a utilizar essas ligações; K. lhe deu a possibilidade para isso; em vez de ficar sentado em casa e vigiá-la, perambula por toda parte, tem entrevistas ora lá, ora aqui, presta atenção em tudo, exceto em Frieda; finalmente, para dar mais liberdade a ela, ele se muda do Albergue da Ponte para a escola vazia. Tudo isso é um belo início de lua-de-mel. Ora, Pepi é certamente a última que faria censuras a K. pelo fato de não ter permanecido ao lado de Frieda; não é possível ficar com ela. Mas então por que não a deixou de uma vez, por que sempre voltou para ela, por que, com suas perambulações, ele desperta a impressão de que está lutando por ela? A impressão que dava era a de que, só a partir do contato com Frieda, K. descobriu sua efetiva nulidade, que desejava se tornar digno dela, guindar-se ao nível dela e por isso renunciava provisoriamente ao convívio, com o objetivo de, mais tarde, poder se ressarcir imperturbável dessas privações. Nesse meio-tempo Frieda não perdeu tempo, se estabeleceu na escola, para a qual provavelmente desviou a atenção de K. e manteve um olho aberto sobre a Hospedaria dos Senhores e o outro sobre K. Tinha nas mãos excelentes mensageiros, os ajudantes de K., os quais ele — é uma coisa que não se compreende; mesmo quando se conhece K., não se compreende —, os quais ele deixa totalmente para ela. Ela os envia aos seus velhos amigos, relembra-os da sua existência, queixa-se de que é mantida como prisioneira por um homem como K., faz intrigas contra Pepi, anuncia sua próxima chegada, pede ajuda, conjura-os a não revelar nada a Klamm, age assim como se Klamm precisasse ser poupado e, por via de conseqüência, ninguém devesse deixá-lo descer ao balcão de bebidas. O que faz passar diante de uns como proteção de Klamm, ela usa como sucesso pessoal diante do gerente, alertando que Klamm não vem mais; como, pois, ele pode vir, se lá embaixo só aquela Pepi serve? Na verdade o gerente não tem culpa alguma, aquela Pepi ainda era a melhor substituta que se podia encontrar, só que não era boa o suficiente, nem por alguns dias. K. ignora tudo a respeito dessa atividade de Frieda; quando não está perambulando por aí, fica estendido a seus pés, sem suspeitar de nada, enquanto ela conta as horas que ainda a separam de sua volta ao balcão de bebidas. Mas os ajudantes não servem apenas como mensageiros, têm ainda o papel de tornar K. ciumento, de mantê-lo mobilizado em relação a ela. Desde a infância Frieda os conhece, certamente já não têm mais segredos entre si, mas por causa de K. se põem a sentir saudades uns dos outros e K. corre o perigo de que isso se transforme num grande amor. E faz tudo para agradar Frieda, até o que existe de mais contraditório: deixa-se ficar enciumado dos ajudantes, porém não tolera que os três permaneçam juntos enquanto vai fazer suas caminhadas sozinho. É quase como se fosse o terceiro ajudante de Frieda. É então que ela, finalmente, com base em suas observações, se decide pelo grande golpe: resolve voltar. De fato é em cima da hora que o faz; é admirável como Frieda, a esperta, reconhece e usa isso; a força de observação e de resolução dela são sua arte inimitável; se Pepi a tivesse, como sua vida seria diferente! Caso Frieda houvesse permanecido mais um ou dois dias na escola, não teria sido mais possível expulsar Pepi; seria definitivamente servente do balcão, amada e sustentada por todos, ganhando dinheiro suficiente para completar com brilho seus pertences em petição de miséria; mais um ou dois dias e não haveria novas intrigas para conservar Klamm afastado do salão de hóspedes; ele bebe, come, sente-se confortável e, quando de algum modo repara na ausência de Frieda, fica altamente satisfeito com a mudança; mais um ou dois dias e Frieda — com seu escândalo, suas ligações, seus ajudantes, tudo — está completamente esquecida, nunca mais ela aparece. Poderia ser, então, que se apegasse a K. com tanto mais firmeza e, supondo que seja capaz disso, pudesse aprender a realmente amá-lo? Não, isso também não. Pois K. não precisa, igualmente, de mais que um dia para ficar saturado dela, para reconhecer como ela o engana tão odiosamente, com tudo, com sua suposta beleza, sua pretensa fidelidade e de mais a mais com o presumido amor de Klamm; mais um dia ainda, não mais que isso, é o que ele precisa para pô-la para fora de casa com toda aquela canalha imunda; quando se pensa, nem K. precisa mais do que isso. E ali, entre esses dois perigos, onde começa literalmente a se fechar o túmulo sobre ela, K., em sua ingenuidade, deixa ainda aberto o último caminho estreito — e Frieda se evade. De repente — dificilmente alguém teria esperado mais, não é uma coisa natural —, de repente é ela que põe para fora K., que continua a amá-la, a persegui-la sem parar, caçando-a, e, sob a pressão de ajuda posterior dos amigos e ajudantes, Frieda surge aos olhos do gerente da hospedaria como a salvação, mais, muito mais atraente que antes por causa do escândalo; comprovadamente desejada pelos mais poderosos tanto quanto pelos mais subalternos na hierarquia, tendo sucumbido apenas por um instante ao mais inferior de todos, mandando-o logo embora, como convém, e inalcançável a todos outra vez, conforme fora antes, com a diferença de que anteriormente havia motivos para duvidar de tudo, mas que agora as pessoas estão de novo convencidas. Assim é que Frieda retorna; o gerente hesita, lançando um olhar de viés para Pepi — deve sacrificá-la, a ela, que passou pelas provas? Mas se persuade logo, muitas coisas falam a favor de Frieda e acima de tudo o fato de que reconquistará Klamm para o salão de hóspedes. Naquele momento estávamos lá, jantando. Pepi não vai esperar que Frieda chegue e faça um triunfo da retomada do posto. Já entregou o caixa à mulher do gerente e pode ir embora. O compartimento de dormir, lá embaixo, está pronto para ela no quarto das empregadas, ela irá chegar, saudada pelas amigas em prantos, arrancar do corpo a roupa, as fitas do cabelo e amontoar tudo num canto, onde ficará bem escondido, sem lembrar desnecessariamente os tempos que devem ser esquecidos. Depois irá pegar o balde grande e a vassoura, cerrar os dentes e ir trabalhar. Porém, no momento, ela precisava contar tudo a K., a fim de que ele, alguém que sem ajuda não teria percebido nada até agora, visse claramente como se comportou mal com Pepi e o quanto a fez infeliz. Sem dúvida ele também fora manipulado no processo todo. Pepi tinha terminado. Com um suspiro, limpou algumas lágrimas dos olhos e das maçãs do rosto e depois olhou para K. meneando a cabeça, como se quisesse dizer que, no fundo, não se tratava absolutamente da infelicidade dela; iria suportá-la e para tanto não precisava nem de ajuda nem de consolo de quem quer que fosse, muito menos ainda de K.; apesar de sua juventude conhecia a vida, e sua desgraça era apenas uma confirmação de experiência; mas tratava-se, sim, de K.; o que ela queria era fazê-lo encarar a si próprio: mesmo depois do colapso de todas as esperanças dela, havia avaliado que esse gesto era necessário. — Que fantasia exuberante você tem, Pepi — disse K. — Não é absolutamente verdade que só agora descobriu todas essas coisas; elas não são nada senão sonhos do estreito quarto de criadas lá de baixo, onde estão no lugar certo; mas aqui, no ar livre do balcão de bebidas, eles se distinguem por sua estranheza. Com pensamentos dessa natureza você não podia se firmar aqui, é claro. Mesmo seu vestido e seu penteado, dos quais tanto se vangloria, são apenas produtos monstruosos daquela escuridão e das camas do seu quarto; lá eles certamente são muito bonitos, aqui porém todo mundo ri deles em segredo ou abertamente. E o que mais você conta? Que fui manipulado e traído? Não, cara Pepi, fui manipulado e traído tão pouco como você. É certo que Frieda presentemente me deixou, para retomar sua expressão, e se evadiu com um ajudante; você vê um clarão de verdade e é real, também, que existe muito pouca probabilidade de que ela ainda se torne minha esposa; mas é inteiramente falso que eu estaria saturado dela, que já no dia seguinte a mandaria embora ou que ela teria me traído como, de resto, uma mulher talvez traia o marido. Vocês, criadas de quarto, estão acostumadas a espionar pelo buraco da fechadura e, em função disso, conservam o hábito mental de fazer valer para o todo a visão que de fato têm de uma coisa pequena, o que resulta em algo tão superlativo quanto falso. A conseqüência é que neste caso eu, por exemplo, sei muito menos que você. Nem de longe posso, como você, explicar com precisão por que Frieda me deixou. A explicação mais provável parece ser a que você também levantou mas não utilizou — que eu a negligenciei. Infelizmente isso é verdade, eu a negligenciei, mas aí havia motivos particulares que agora não cabe mencionar; ficaria feliz se ela voltasse, mas recomeçaria logo a negligenciá-la. Assim é. Enquanto ela esteve comigo, fiquei continuamente fazendo as caminhadas que você ridiculariza; mas agora que ela foi embora estou quase desocupado, cansado, o meu desejo é um ócio cada vez mais completo. Você não tem um conselho para me dar, Pepi? — Certamente — disse Pepi, tornando-se de súbito vivaz e agarrando K. pelos ombros. — Somos os dois que foram ludibriados, vamos ficar juntos, desça comigo ao quarto das moças. — Enquanto estiver se queixando de ter sido enganada — disse K. —, não posso me entender com você. É sem cessar que quer ser ludibriada porque isso a lisonjeia e comove. A verdade, no entanto, é que esse lugar não é apropriado para você. E como essa inadequação deve ser manifesta, a ponto de até mesmo eu, na sua opinião o mais ignorante de todos, enxergar isso! Você é uma boa moça, Pepi, mas não é muito fácil se dar conta desse fato; eu, por exemplo, a princípio a tomei por cruel e arrogante, embora não o seja; é apenas esse posto que a deixa confusa, porque se trata de pessoa imprópria para ele. Não quero dizer que o lugar seja elevado demais para você, não é nenhum posto extraordinário, talvez — quando se olha de perto — seja mais honroso que o anterior; no conjunto, porém, a diferença não é grande, ambos se parecem tanto um com o outro que chegam a se confundir; quase seria possível afirmar que a existência de uma criada de quarto é preferível à de uma servente de balcão, pois no primeiro caso a pessoa vive sempre entre secretários, e aqui, ao contrário, é preciso, até quando se tem a permissão de servir, nos quartos de hóspedes, os superiores hierárquicos dos secretários, lidar também com o povo mais subalterno, por exemplo comigo; legalmente me é interditado permanecer em outra parte a não ser aqui no balcão de bebidas: a possibilidade de estabelecer relações comigo devia ser honrosa acima de qualquer medida? Bem, é o que lhe parece e talvez você tenha motivos para isso. Mas é justamente porque não foi feita para este posto. É uma colocação como qualquer outra, entretanto para você é o reino dos céus e por conseqüência se apega a tudo com zelo desmedido, enfeita-se como, na sua opinião, os anjos se adornam — na realidade eles são diferentes —, treme pelo posto, sente-se sem parar perseguida, procura conquistar todos os que, a seu ver, possam apoiá-la, com uma amabilidade excessiva, mas com isso os perturba e repele, pois na hospedaria eles querem paz e não acrescentar às suas preocupações as das serventes do balcão. É possível que após a saída de Frieda nenhum dos clientes de alto nível tenha realmente reparado nisso, mas agora eles estão sabendo e sentem de fato saudades dela, pois Frieda sem dúvida conduziu tudo de forma diversa. Como quer que ela seja em outros aspectos e até que ponto sabia valorizar o posto, o fato é que tinha muita experiência do ofício, fria e dona de si; você própria o salienta, sem na verdade tirar proveito da lição. Já observou alguma vez o olhar dela? Não era mais, em absoluto, o olhar de uma servente de balcão, já era quase o de uma gerente. Via tudo e ao mesmo tempo cada um em particular — e o olhar que sobrava para qualquer indivíduo era suficientemente forte para submetê-lo. O que importava que ela talvez fosse um pouco magra, um pouco envelhecida, que era possível imaginar um cabelo mais abundante; são ninharias em comparação com aquilo que realmente possuía; e aqueles aos quais essas deficiências teriam perturbado só mostraria que lhes faltava o sentido das coisas maiores. Certamente não se pode censurar Klamm por isso e é somente o falso ponto de vista de uma jovem inexperiente que a faz não crer no amor de Klamm por Frieda. Klamm lhe parece — e com razão — inacessível e por esse motivo você acredita que Frieda também não tivesse podido se aproximar dele. Engana-se. Nesse aspecto só confiaria na palavra de Frieda, mesmo que não dispusesse de provas irrefutáveis. Por mais inacreditável que possa lhe parecer e por menos conciliável com sua visão do mundo e dos funcionários, da elegância e eficácia da beleza feminina, é tão verdadeiro quanto o fato de estarmos sentados lado a lado e eu conserve sua mão nas minhas; com certeza era assim que Klamm e Frieda também ficavam sentados, como se fosse a coisa mais natural do mundo; ele descia espontaneamente, na verdade descia até correndo, ninguém o espiava no corredor; negligenciava o trabalho usual, tinha de se esforçar pessoalmente para ir ao salão dos hóspedes, e as falhas na roupa de Frieda, diante das quais você se horrorizava, não o incomodavam em absoluto. Você não quer acreditar nela! E não sabe a que ponto se expõe ao ridículo com isso, a que ponto mostra desse modo justamente sua falta de experiência. Mesmo alguém que não soubesse nada sobre a relação dela com Klamm seria forçado a reconhecer sua personalidade, formada por uma pessoa que era mais do que você, eu e todo o povo da aldeia; que as conversações entre eles ultrapassavam as brincadeiras usuais entre clientes e garçonetes e pareciam ser o objetivo de sua vida. Mas não estou fazendo justiça a você. É óbvio que reconhece muito bem as vantagens de Frieda, repara no dom de observação dela, em sua força de decisão, na influência que exerce sobre as pessoas — só que interpreta tudo errado, sem dúvida; julga que ela utiliza tudo de maneira egoísta apenas em vantagem própria e para fazer o mal ou, então, como arma contra você. Não, Pepi, mesmo que ela tivesse essas flechas não as dispararia de uma distância tão curta. Egoísta? Seria possível antes dizer que, sacrificando aquilo que tinha, e daquilo que lhe é permitido esperar, deu a nós dois a oportunidade de nos mantermos num posto mais elevado, que ambos no entanto a decepcionamos e a forçamos literalmente a regressar para cá. Não sei se é assim, minha culpa também não me é muito clara; só quando me comparo com você é que emerge algo dessa natureza; como se nós dois tivéssemos nos empenhado muito, com bastante ruído, infantilmente demais, inexperientes demais, para alcançar algo que, por exemplo, com a tranqüilidade, a objetividade de Frieda, tivesse sido fácil de ganhar, fácil e imperceptivelmente; como se esperássemos obtê-lo através do choro, arranhando, puxando, à maneira de uma criança que puxa a toalha da mesa mas não consegue nada, apenas põe abaixo todo o esplendor exposto e o torna inacessível para sempre — não sei se é assim, mas é antes assim do que como você conta, disso eu tenho certeza. — Bem — disse Pepi. — Você está apaixonado por Frieda porque ela lhe escapou; não é difícil estar apaixonado por ela na sua ausência. Mas pode ser que as coisas sejam como você quer; pode ser que tenha razão em tudo, mesmo em me tornar ridícula; agora, porém, o que fazer? Frieda o abandonou, nem a minha explicação nem a sua lhe oferecem a esperança de que ela volte ao seu lado; e mesmo que devesse voltar, nesse meio-tempo você precisa ficar em algum lugar, está fazendo frio e não conta nem com trabalho nem com cama; venha morar conosco, vai gostar das minhas amigas, iremos tornar confortável sua situação, irá nos ajudar no trabalho que, de fato, é pesado demais para moças que vivem sós; não dependeremos mais somente de nós próprias e à noite não teremos mais medo. Venha ficar conosco! Minhas amigas também conhecem Frieda, vamos contar histórias sobre ela até que não consiga mais ouvi-las. Oh, venha! Temos ainda retratos de Frieda e iremos mostrá-los a você. Naquele tempo Frieda era mais modesta que hoje, dificilmente irá reconhecê-la, no máximo por seus olhos, que já na ocasião eram furtivos. Você virá, então? — Isso é permitido, portanto? Ainda ontem houve um grande escândalo porque fui surpreendido no corredor de vocês. — Isso aconteceu porque você foi pego em flagrante; se estiver conosco, não o será. Ninguém irá saber de nada, só nós três. Ah, vai ser divertido! A vida já me parece muito mais suportável do que um instante atrás. Talvez agora eu não perca tanto pelo fato de ter de ir embora daqui. Sabe, mesmo a três não nos entediamos, é necessário adoçar uma vida amarga, desde a juventude tornaram as coisas amargas para nós a fim de que a língua não fique mal acostumada; somos as três solidárias, vivemos tão bem quanto é possível naquele lugar, você vai gostar principalmente de Henriette, mas de Emilie também, já falei a seu respeito com elas, lá histórias dessa espécie soam incríveis, como se fora do quarto, na verdade, nada acontecesse; lá é quente e estreito e nos esprememos uma contra a outra; não, se bem que dependamos umas das outras, não ficamos saturadas, pelo contrário: quando penso em minhas amigas é quase certo que vou voltar para lá; por que devo ir mais alto do que elas? Aquilo que nos ligava era justamente o fato de que o futuro estava fechado às três da mesma forma e aí eu parti para a ruptura e fiquei separada delas; certamente não as esqueci e meu mais vivo cuidado foi de que maneira poderia fazer alguma coisa por elas; minha própria situação ainda era incerta — a que ponto o era eu não sabia — e lá estava eu falando com o gerente sobre Henriette e Emilie. Em relação a Henriette ele não estava completamente inflexível; para Emilie, que é muito mais velha que nós — ela tem mais ou menos a idade de Frieda —, ele não deu, entretanto, esperança alguma. Mas imagine só, elas não querem absolutamente ir embora; sabem que a vida que levam lá é miserável, mas já se adaptaram, aquelas boas almas; acredito que as lágrimas que derramaram na minha despedida se deviam acima de tudo ao fato de que eu precisava deixar o quarto comum, sair para o frio lá fora — tudo o que está além do quarto nos parece frio — e tivesse de me debater nos grandes espaços estranhos com pessoas grandes e estranhas, sem nenhum outro objetivo a não ser ganhar a vida, no que até então realmente eu tivera êxito com as três vivendo juntas. É provável que elas não se espantem quando agora eu voltar e será só para me dar um pouco de satisfação que vão chorar um pouco e lamentar meu destino. Aí elas irão vê-lo e notar que foi bom que eu tivesse ido embora. O fato de termos agora um homem como ajuda e proteção as fará felizes e ficarão literalmente encantadas por tudo precisar permanecer em segredo: através dele estaremos mais unidas que antes. Venha, oh! por favor, venha para nossa casa! Isso não criará nenhuma obrigação para você, não vai ficar ligado para sempre ao nosso quarto como nós. Quando a primavera vier e você encontrar acomodação em algum outro lugar, achando que não lhe agrada mais continuar conosco, pode ir embora, só que terá de guardar segredo e não nos trair, pois essa seria nossa última hora na Hospedaria dos Senhores; além do que, naturalmente, enquanto estiver conosco, precisará ser cauteloso, não se mostrar em lugar algum onde estimarmos que não é sem perigo e no geral seguir nossos conselhos; essa é a única obrigação que vai ter e necessitará levá-la em conta tanto quanto nós, mas no resto você é completamente livre, o trabalho que vamos lhe dar não será muito pesado, não tenha medo. Você vem, então? — Quanto tempo ainda demora até chegar a primavera? — perguntou K. — Até chegar a primavera? — repetiu Pepi. — O inverno entre nós é longo, um inverno muito longo e monótono. Mas lá embaixo não nos queixamos, estamos protegidas contra o inverno. Bem, a primavera uma hora chega, o verão também, e ambos sem dúvida têm o seu tempo; mas neste momento, na memória, primavera e verão parecem tão curtos como se não fossem muito mais que dois dias e mesmo assim, até durante o mais belo dos dias, ainda neva ocasionalmente. Nesse instante a porta se abriu, Pepi estremeceu, estava mentalmente muito distante do balcão de bebidas; mas não era Frieda, era a mulher do gerente. Ela fez que estava espantada por encontrar K. ainda ali, K. se desculpou dizendo que havia esperado a senhora gerente e ao mesmo tempo agradeceu por ter recebido permissão para passar a noite ali. A gerente não entendia por que K. a tinha esperado. K. disse que tivera a impressão de que a senhora ainda queria falar com ele, pediu desculpas caso tivesse sido um equívoco, aliás — fosse como fosse — precisava de fato ir embora, havia entregue a escola, onde era servente, a si mesma por tempo demais, a culpa de tudo era da intimação de ontem, ele tinha muito pouca experiência nessas coisas, com toda certeza não iria acontecer de novo que causasse tantos inconvenientes à senhora gerente como o fizera ontem. E se inclinou para ir. A mulher do gerente lhe dirigiu um olhar como se sonhasse. Por esse olhar K. foi retido por mais tempo do que queria. No momento ela sorria ligeiramente e só pelo rosto assustado de K. foi de certa maneira despertada; era como se houvesse aguardado uma resposta ao sorriso e, quando então ela não veio, a gerente acordou. — Creio que ontem teve o atrevimento de dizer alguma coisa sobre minha roupa. K. não conseguia se lembrar. — Não consegue se lembrar? Ao atrevimento se acrescente em seguida a covardia. K. desculpou-se alegando sua fadiga no dia anterior; era bem possível que no dia anterior tivesse tagarelado alguma coisa, seja como for não conseguia mais se lembrar. O que poderia ter dito sobre as roupas da senhora gerente? Que eram as mais belas que jamais tinha visto. Ao menos ainda não vira uma senhora gerente trabalhando com roupas assim. — Ponha de lado essas observações — disse rápido a gerente. — Não quero ouvir mais nenhuma palavra sua sobre minhas roupas. Não tem de se preocupar com elas. Proíbo-o de fazê-lo de uma vez por todas. K. se inclinou mais uma vez e caminhou para a porta. — O que quer dizer isso? — exclamou a gerente indo atrás dele. — O que quer dizer que ainda não viu uma gerente trabalhando com roupas assim? O que significam essas observações absurdas? Não faz o menor sentido. O que quer dizer com isso? K. se voltou e pediu à mulher do gerente que não ficasse nervosa. Evidentemente a observação era absurda. Além disso ele não entende nada de roupas. Na posição em que se achava, qualquer roupa limpa e não remendada já lhe parecia luxuosa. Ele simplesmente havia ficado espantado ao ver a senhora gerente aparecer lá no corredor, à noite, no meio de todos aqueles homens semivestidos, com um vestido de noite tão bonito, mais nada. — Veja só! — disse a mulher do gerente. — Finalmente parece lembrar-se da observação que fez ontem. E a complementa com mais coisas sem sentido. O fato de que não entende nada de roupas é correto. Mas então eu o dispenso também — peço-o com toda seriedade — de emitir juízos sobre o que são roupas luxuosas ou vestidos de noite inadequados e coisas do gênero. Além do mais — nesse momento foi como se um calafrio a percorresse —, não tem nada a ver com minhas roupas, está ouvindo? E quando K., em silêncio, quis se voltar outra vez, ela perguntou: — Onde adquiriu seu conhecimento sobre roupas? K. levantou os ombros, não tinha conhecimento algum. — Não tem nenhum conhecimento — disse a gerente. — Mas também não deve fingir que tem algum. Venha aqui para o escritório, vou lhe mostrar algo, nesse caso irá pôr de lado para sempre seus atrevimentos, é o que espero. Saiu antes pela porta; Pepi saltou para o lado de K.; sob o pretexto de fazer K. pagar a consumação, os dois se entenderam depressa; era fácil, uma vez que K. conhecia o pátio cujo portal dava para a rua lateral, ao lado dele um portãozinho atrás do qual Pepi queria vê-lo em uma hora, talvez, e abrir quando ouvisse três batidas. O escritório particular ficava defronte à sala de hóspedes, era preciso apenas atravessar o corredor; a gerente já estava em pé no gabinete iluminado e olhava impaciente na direção de K. Mas ainda houve um contratempo. Gerstäcker tinha esperado no corredor e queria falar com K. Não era fácil se desembaraçar dele, a gerente teve de intervir para ajudar e censurou Gerstäcker por sua impertinência.
— Para onde, então? Para onde? — ouvia-se ainda Gerstäcker exclamar quando a porta já estava fechada, as palavras misturando-se de uma maneira feia a suspiros e tosse. Era um cômodo pequeno e superaquecido. De encontro às paredes do fundo estavam uma escrivaninha alta e um cofre-forte, junto às paredes laterais um armário e um sofá. O armário ocupava a maior parte do espaço não só por preencher toda a parede lateral, mas também porque, por sua profundidade, estreitava muito o aposento: eram necessárias três portas de correr para abri-lo inteiramente. A gerente apontou o sofá para K. se sentar, ela própria tomou assento na cadeira giratória junto à escrivaninha. — Aprendeu costura alguma vez? — perguntou a mulher. — Não, nunca — disse K. — O que faz, realmente? — Sou agrimensor. — O que é isso? K. explicou, a explicação a fez bocejar. — Você não está dizendo a verdade. Por que é que não diz a verdade? — A senhora também não a diz. — Eu? Começa outra vez com os atrevimentos. E se não digo a verdade, tenho de me justificar diante de sua pessoa? E no que falto com a verdade? — Não é apenas gerente, como quer fazer crer. — Veja só, está cheio de descobertas! Então o que sou, além disso? As insolências principiam, neste momento, a não ter literalmente limites. — Não sei o que é, além de gerente. Vejo somente que é gerente e, no mais, veste roupas que não convêm a uma gerente e que, até onde sei, ninguém aqui na aldeia veste. — Ah, então chegamos ao ponto propriamente dito: não pode silenciar a esse respeito. Talvez não seja de modo algum atrevido, parece apenas uma criança que sabe de alguma patifaria e a quem nada poderia levar a ficar quieto acerca disso. Então fale! O que há de especial nestas roupas? — Ficará zangada se eu disser. — Não, vai apenas me fazer rir; quando muito será um palavrório pueril. Como são, pois, as roupas? — Quer mesmo saber? Bem, são de material fino, muito suntuoso, mas estão fora de moda, sobrecarregadas de enfeites, muitas vezes trabalhadas em excesso, gastas, e não combinam nem com sua idade, nem com sua figura, nem com a posição que ocupa. Elas chamaram minha atenção logo que a vi pela primeira vez; foi mais ou menos há uma semana, aqui no corredor. — Então é isso. Estão fora de moda, são sobrecarregadas e o que mais ainda? E de onde tirou todo esse conhecimento? — É uma coisa que vejo. Para isso não se precisa de ensinamento. — Vê, simplesmente. Não precisa investigar em parte alguma e logo fica sabendo o que a moda exige. Nesse caso irá se tornar insubstituível para mim, pois na verdade tenho um fraco por roupas bonitas. E o que dirá quando souber que este armário está cheio de roupas? Empurrou para o lado as portas rolantes, viam-se roupas premidas umas contra as outras, tomando toda a largura e profundidade do armário; eram na maioria roupas escuras, de cor cinza, marrom, preta, todas cuidadosamente penduradas e estendidas. — Estas são minhas roupas, todas fora de moda, sobrecarregadas de adornos, conforme a expressão que usou. Mas são apenas as roupas para as quais não tenho lugar no meu quarto, na parte de cima; lá eu tenho mais dois armários cheios; dois armários, cada qual quase tão grande como este. Está espantado, não é? — Não, esperava algo parecido; bem que eu disse que não é apenas uma gerente, pois está pretendendo alguma outra coisa. — O que eu pretendo é apenas me vestir bem, e você não é nem um tolo nem uma criança, ou então uma pessoa muito má, perigosa. Agora vá, vá! K. já estava no corredor e Gerstäcker o segurava outra vez firme pela manga quando a gerente bradou para ele: — Recebo amanhã uma roupa nova, talvez mande procurá-lo. Gerstäcker, irritado e esgrimindo com a mão como se quisesse silenciar de longe a gerente que o importunava, convidou K. a ir com ele. A princípio não quis entrar em maiores explicações. Mal prestou atenção na objeção de K. no sentido de que agora precisava ir à escola. Só quando K. resistiu a ser arrastado por ele é que Gerstäcker lhe disse que não devia se preocupar, K. iria ter tudo de que precisava na casa dele; podia dispensar o posto de servente de escola; K. podia finalmente ir com ele; Gerstäcker tinha passado o dia inteiro à espera dele, sua mãe não tinha idéia de onde ele estava. Cedendo lentamente, K. perguntou por que, afinal, Gerstäcker queria lhe dar casa e sustento. Este deu apenas uma resposta fugidia — precisava da ajuda de K. com os cavalos, possuía então outros negócios, mas agora K. não devia, por favor, se deixar arrastar assim por ele, nem lhe causar dificuldades desnecessárias. Se estivesse querendo pagamento, ele iria providenciá-lo também. Mas nesse ponto K. estacou apesar de puxado. Ele não entende nada sobre cavalos. Não era preciso, disse Gerstäcker impaciente, juntando as mãos de raiva para mover K. a ir junto com ele. — Não sei por que quer me levar consigo — disse K. finalmente. Para Gerstäcker era indiferente o que K. sabia ou não. — Porque acredita que eu possa obter de Erlanger alguma coisa a seu favor — acrescentou K. — Sem dúvida — disse Gerstäcker. — Por que outro motivo eu me importaria com você? K. riu, se pendurou no braço de Gerstäcker e se deixou conduzir por ele através da escuridão. A sala na cabana de Gerstäcker estava iluminada fracamente só pela chama do fogão e por um toco de vela, sob cuja luz alguém, inclinado num nicho debaixo das traves do teto, que ali se projetavam oblíquas, lia um livro. Era a mãe de Gerstäcker. Ela estendeu a K. a mão trêmula e o mandou sentar-se ao seu lado; falava com esforço, era preciso se esforçar para entendê-la, mas o que ela disse.
Franz Kafka
O melhor da literatura para todos os gostos e idades