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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CASTIGO DOS IGNORANTES/Michael Hjort e Hans Rose
O CASTIGO DOS IGNORANTES/Michael Hjort e Hans Rose

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Caro chefe de redacção Källman,
Leio a vossa publicação há muitos anos, primeiro como revista em formato físico e, mais recentemente, na Internet.
Nem sempre concordo com os vossos pontos de vista e, de vez em quando, questiono tanto a vossa escolha de temas como o ângulo das reportagens. Todavia, tenho quase sempre conseguido encontrar alguma satisfação no vosso produto.
No entanto, neste momento sinto-me obrigado a fazer-lhe estas perguntas, enquanto responsável pelo jornal:
Por que motivo incentivam a cretinice pura na vossa publicação?
Quando se decidiu que a verdadeira estupidez deveria ser celebrada e tornada não só a norma, mas também algo desejável e invejável?
Por que motivo concedem voz e espaço a pessoas que nem sabem em que ano começou a Segunda Guerra Mundial, que não têm os mais básicos conhecimentos de matemática e que, apenas em casos excepcionais, conseguem, no seu discurso, proferir uma frase completa? Pessoas cujo único talento consiste em fazer beicinho nas chamadas selfies e cujo único mérito é ridicularizarem-se publicamente, praticando sexo num desses reality shows que inundam os nossos canais de televisão, serão após serão.
No meu trabalho, tenho oportunidade de conhecer muitos jovens. Bem-educados, inteligentes, empenhados e ambiciosos. Pessoas jovens que seguem a actualidade, assimilam conhecimentos, têm um pensamento crítico e formam-se para, eventualmente, conseguirem um trabalho interessante e desafiante e contribuírem para a sociedade. Jovens que querem alguma coisa. Que sabem alguma coisa.
Deveriam dar destaque a esses. Deveriam transformar esses em exemplos para outros. Não aos seres sem empatia, egoístas, obcecados com a própria imagem, que, com a língua cheia de sucata metálica e o corpo coberto de tatuagens ordinárias, se vangloriam do seu baixíssimo QI e cultura geral inexistente.
Portanto, repito a minha pergunta, e espero ansiosamente por uma resposta impressa:
Quando se decidiu que a verdadeira estupidez deveria ser celebrada e tornada não só a norma, mas também algo desejável e invejável?
Com os melhores cumprimentos, CATÃO, o Velho

 

 

 


 

 

 


– TRINTA SEGUNDOS a partir de agora.

Mirre já praticamente nem se dava conta do clique metálico que o cronómetro fazia ao iniciar. Quanto tempo duraria isto? O que dissera o homem?

Iria fazer-lhe sessenta perguntas.

Em qual iam? Mirre não fazia a mais pequena ideia, parecia-lhe que estavam naquilo há uma eternidade, e continuava a tentar perceber o que se passara.

– Queres que repita a pergunta?

O homem estava muito próximo, do outro lado da mesa, a sua voz calma e grave.

A primeira vez que Mirre ouvira aquela voz fora há pouco mais de duas semanas, quando haviam falado um com o outro por telefone. O homem ligara-lhe e apresentara-se como Sven Cato, jornalista freelance. Queria fazer uma entrevista. Ou melhor, um retrato. Mirre não ganhara, mas fora um dos participantes que obtivera mais publicidade e atenção nas redes sociais. As pessoas tinham formado opinião sobre ele apenas com base no que haviam visto, e Sven queria aprofundar um pouco essa imagem; mostrar outros lados, a pessoa por detrás. Poderiam encontrar-se?

E assim fora; encontraram-se no hotel Kurhotellet, onde Sven pagou o almoço. Decidiram pedir uma cerveja cada um, apesar de passar pouco das onze e meia de uma terça-feira. Mas era Verão, dia livre. Sven colocara um pequeno gravador em cima da mesa, entre os dois, e começara a fazer perguntas. Mirre respondera.

Agora o homem à sua frente interpretava aparentemente o seu silêncio como um sim.

– A que categoria pertencem as palavras que descrevem relações entre pessoas, coisas e locais, como por exemplo «em», «para», «frente» e «no».

– Não sei – respondeu Mirre, apercebendo-se de quão exausto soava.

– Ainda faltam dez segundos para acabar o tempo de reflexão.

– Não sei! Não sei responder às suas malditas perguntas!

Gerou-se um silêncio durante alguns segundos, seguido de um clique quando o cronómetro parou e de mais outro quando voltou ao zero.

– Próxima pergunta: Como se chamava a embarcação utilizada por Cristóvão Colombo na viagem em que descobriu a América, em 1492? Trinta segundos a partir de agora.

Clique.

O cronómetro recomeçou a contagem decrescente.

A entrevista correra bem. Apesar de Sven ter a mesma idade, ou ser ainda mais velho, que o pai de Mirre e de não acompanhar tudo, parecia verdadeiramente interessado. Fora agradável falar com ele. Quando Mirre regressara de uma ida à casa de banho, Sven pedira uma segunda cerveja para cada um.

Fora essa de certeza. A segunda cerveja. Devia ter posto alguma coisa nela, pois, ao fim de pouco tempo, Mirre começara a sentir-se mal. A perder a concentração, a sentir-se fraco.

Sven oferecera-se para o levar a casa. Saíram do restaurante e dirigiram-se ao parque de estacionamento. E depois acordara ali. A cabeça contra o tampo duro da mesa.

Conseguira sentar-se direito, mas levara alguns segundos a tomar consciência de que não via nada. Quando tentara retirar o que lhe tapava os olhos, percebera que apenas conseguia mexer as mãos alguns centímetros. E ouvira um som metálico ao fazê-lo: correntes, algemas.

Começara a gritar e a puxar as algemas, mas calara-se quando ouvira a voz familiar.

– Ninguém consegue ouvir-te, e não vais conseguir soltar-te.

Mais gritos. O que se passa? Que raio estás a fazer? Ameaças e apelos intercalados. Mais ameaças do que apelos.

– Acalma-te. Podes ir-te embora daqui a mais ou menos meia hora. Partindo do princípio de que és aprovado, claro.

– O que queres dizer com aprovado? – perguntara Mirre. – Aprovado em quê?

Sessenta perguntas. Trinta segundos de reflexão para cada uma; um terço das respostas tem de estar certo.

– O que acontece se assim não for? – questionara Mirre.

– Vamos então começar – respondera o homem, que, provavelmente, nem se chamava Sven Cato. – Primeira pergunta: O que quer dizer o acrónimo OTAN? Trinta segundos a partir de agora.

O clique do cronómetro seguido de um tiquetaque mais suave, mas mais rápido, da contagem decrescente dos segundos.

Mirre não dera importância nenhuma às primeiras dez ou quinze perguntas. Continuara apenas a puxar as algemas, a perguntar que raio estava o homem a fazer, o que queria, a jurar que lhe lixaria a vida facilmente por isto ou que lhe daria tudo o que poderia querer, desde que o soltasse.

Ameaças e apelos.

O homem não se deixara influenciar. Continuara a fazer as suas perguntas com a mesma voz calma, iniciara o cronómetro, perguntara se deveria repetir a pergunta e esperara pela resposta. Passado algum tempo, referira objectivamente que as hipóteses de aprovação estavam a diminuir drasticamente e que Mirre faria melhor em tentar concentrar-se um pouco mais e ameaçá-lo um pouco menos.

Então Mirre começara a escutá-lo.

– O que é um número primo?

– Que animais são designados por The Big Five?

– Em que década se formou a ilha Surtsey, ao largo da costa sul da Islândia?

– Como se chama a unidade do Sistema Internacional utilizada para medir a intensidade da luz?

Fora talvez a meio que Mirre se apercebera de um som crepitante quando se movia. Plástico – estava sentado sobre plástico; um assento macio, almofadado, embrulhado em plástico. No mundo de Mirre, havia apenas dois motivos para isso.

Um era o assento ser novo.

Outro era o plástico servir de protecção.

Protecção contra manchas. Salpicos. Sangue.

Com uma descarga exponencial de adrenalina, decidiu que iria sobreviver a isto. Fazer o sacana ver. Tentou ouvir com atenção, tentou pensar – tinha de conseguir a maldita aprovação.

– Em que estado americano se situa a cidade de Chicago?

– Qual o símbolo químico do fósforo?

– Quem foi coroado rei da Suécia depois de Óscar I?

Pergunta após pergunta, sempre com o mesmo tom de voz calmo e grave. Mirre não sabia uma única das malditas respostas.

– Última pergunta: a que família pertence o glutão?

Clique.

A que família? Qual família? Mirre sabia como se dizia glutão em inglês. Wolverine. Vira todos os filmes da Marvel alguma vez feitos. Mas família?

– Queres que repita a pergunta?

– Não.

Silêncio. O tiquetaque suave, mas rápido. Clique.

– E acabou-se o tempo. Então vamos lá ver...

Mirre suspirou e pousou a cabeça sobre a mesa. Era impossível ter acertado em vinte perguntas. Nem sequer respondera a tantas.

Ao ouvir o homem erguer-se do outro lado da mesa, levantou lentamente a cabeça do tampo, seguindo-o pelo som. Parecia-lhe que estava a aproximar-se. De repente, Mirre sentiu algo frio e metálico contra a testa.

– Estás reprovado – disse o homem, que, obviamente, não se chamava Sven Cato.

Mirre nem teve tempo de desviar a cabeça, antes de o ar comprimido da pistola sacrificial fazer disparar a pequena vara metálica que, imediatamente, lhe atravessou o osso frontal, até penetrar no cérebro.


TODA A SUA VIDA estivera rodeada de mentiras. Invisíveis. As sombras haviam estado presentes durante mais de trinta anos, sem nunca as ter descoberto. Mas agora já não, agora via-as por toda a parte. Para onde quer que se virasse, encontrava-as.

As mentiras e as traições. Ninguém lhe dissera a verdade, ninguém. Nem Anna, nem Valdemar ou Sebastian. Mãe, pai e pai.

Mas agora recusava-se a pensar em qualquer um deles como sua família. Era demasiado afectuoso e não tencionava proporcionar-lhes isso. Agora, eram apenas pessoas com nome, nada mais.

Anna. Valdemar. Sebastian.

A sua vida começara a desintegrar-se passo a passo. Uma investigação policial sobre crimes económicos levara à detenção de Valdemar. Assumira desde o início que ele era inocente, vítima de circunstâncias infelizes. Afinal, tratava-se do seu pai. Mas ele confessara, e o seu mundo perdera o centro de gravidade.

Na altura não sabia que aquilo era apenas a ponta do icebergue.

O verdadeiro abismo abrira-se quando descobrira que Valdemar não era o seu pai biológico. Essa revelação quase a destruíra. Tentara freneticamente navegar pela sua nova realidade e descobrir a verdade. Confrontara Anna, sem nunca ter imaginado a sua capacidade de dissimulação.

Inventara um pai.

Um homem morto.

Mais uma mentira.

Vanja conseguia compreender o motivo pelo qual Anna não lhe contara a verdade sobre Valdemar. Compreender e talvez até apreciar. Ele fora, na prática, o seu pai durante toda a sua vida, o melhor pai que conseguia imaginar. Porquê retirar-lho? Porquê estragar a relação entre ambos quando não havia qualquer necessidade de o fazer?

E agora? Quando já sabia quem ele era ou, melhor dizendo, quem não era. Porquê continuar com as mentiras? Porquê recusar-lhe a verdade agora? Não era possível nem explicar, nem defender ou compreender, e o resultado tornou-se uma frieza imensa entre as duas. Um gelo emocional permanente que Vanja não sentia qualquer necessidade de tentar descongelar.

Não fora ela quem mentira.

Ela era inocente.

E depois, quando tudo à sua volta já estava fora de equilíbrio, Sebastian Bergman saíra repentinamente das sombras.

Ele era seu pai.

Fora por isso que procurara a divisão nacional de homicídios, a Riksmord, novamente.

A força impulsionadora era clara como a água; todas as suas acções tinham apenas um objectivo: aproximar-se mais dela, tornar-se seu amigo.

Sebastian acordara-a a meio da noite depois do casamento de Billy. Vanja continuara meio a dormir quando ele dissera que tinha algo para lhe contar e que não, não podia esperar. Ela não soubera ao certo o que esperava ouvir quando se sentara ao seu lado na cama por fazer, mas certamente não aquilo que ouvira, isso era mais que certo.

– Sou teu pai, Vanja – dissera, ao dar-lhe as mãos.

Esforçara-se pelo menos por lhe contar as coisas com alguma consideração. Tentara ser o mais sensível possível, explicara como descobrira e que, quando soubera, não quisera prejudicar a relação com Valdemar, que Anna o proibira, que, apesar de tudo, sempre quisera o melhor para ela.

Sebastian parecera-lhe sincero, e Vanja estava-lhe agradecida por isso. Todavia, isso não alterava nada na realidade – uma traição era uma traição.

Tinham brincado com a vida dela. Como naquele filme com o Jim Carrey, The Truman Show.

Tudo fora teatro, e todos haviam sido actores, excepto ela.

Ela, que sempre fizera questão de se reger pela racionalidade e pela lógica, perdera o pé. Era como se se encontrasse numa casa onde todas as portas davam para um novo beco sem saída. Por mais que procurasse, não conseguia encontrar escapatória.

Metera baixa médica durante duas semanas e ficara fechada em casa, a tentar controlar as emoções. Porém, isso não ajudara, apenas fizera que se desse conta de quão sozinha realmente estava.

Durante toda a vida adulta, focara a sua energia em duas coisas: o trabalho e a família.

Ser boa polícia. Ser boa filha.

Agora, sem família, só lhe restava o trabalho.

Mas aí também se encontrava o homem que revelara ser seu pai. Os seus dois mundos colidiam. Não conseguia livrar-se dos pensamentos que a perseguiam, em lado algum. Mas era disso que estava a precisar.

De construir uma vida para lá das sombras.

Uma vida própria. A sua.

Só não fazia ideia de como o poderia fazer.


NORMALMENTE, o volume de ruído, quando perto de duzentos alunos se reuniam à volta dos cacifos, ao longo das paredes, era completamente diferente. Mas as férias de Verão tinham começado na quinta-feira anterior, e Lise-Lotte González estava agora sozinha na escola silenciosa. Algum trabalho administrativo ficara por completar nas semanas anteriores ao final do ano lectivo, e ela decidira dedicar todo o tempo que fosse necessário até o terminar, para depois poder estar livre, com a consciência tranquila. No dia anterior, estivera no escritório apenas algumas horas, até que o bom tempo a fizera desistir, mas hoje decidira ficar até, pelo menos, às quatro da tarde.

Na realidade não lhe fazia diferença adiar as férias uma semana ou duas. Até era bom conseguir trabalhar concentrada, sem telefones a tocar, colegas a interromper e uma caixa de e-mail a encher-se rapidamente.

Por volta das duas, decidiu fazer uma pausa merecida. Dirigiu-se à sala de professores vazia, ligou a chaleira eléctrica e preparou uma chávena de Nescafé. Remexeu nas gavetas por baixo da bancada e encontrou uma caixa com bolachas de amêndoa velhas. Teriam de servir.

Depois da pequena pausa, decidiu dar um passeio. Gostava de passear pelas salas acabadas de renovar da sua escola.

Era assim que pensava nela.

Como a sua escola.

O que não correspondia à realidade. A escola Hildingskolan era o mais recente estabelecimento de ensino do grupo Donner a ser aberto para turmas do sexto ao nono ano.

E estavam a ter sucesso.

Uma boa afluência de alunos, boa reputação; todos os professores eram efectivos, e os resultados nacionais haviam ficado bem acima da média. Assim sendo, Lise-Lotte tinha a certeza de que a direcção do grupo não se arrependera em momento algum de lhe terem dado o cargo de directora.

Dobrou uma esquina e chegou ao corredor onde se ensinavam principalmente as disciplinas de ciências naturais. Lise-Lotte parou repentinamente. Uma das portas brancas novas, que, contra qualquer prognóstico, haviam sobrevivido o semestre inteiro sem terem sido escrevinhadas, estava entreaberta. Deveriam estar todas trancadas, uma vez que as salas tinham químicos, ácidos, botijas de gás e outros materiais caros e perigosos lá dentro.

No momento em que estava prestes a fechar a porta, resolveu dar uma vista de olhos dentro da sala.

O que era aquilo?

Abriu completamente a porta e confirmou o que lhe parecera ter visto: à esquerda do quadro interactivo estava uma figura sentada, em tronco nu, de costas para a sala.

– Desculpe?

Nenhuma reacção. Lise-Lotte entrou na sala.

– Desculpe, está tudo bem?

Continuava sem resposta, nada que indicasse que a pessoa a ouvira, sequer. Estaria sob o efeito de alguma coisa? A julgar pela posição em que se encontrava sentado na cadeira, parecia inconsciente ou, pelo menos, num sono profundo.

Lise-Lotte avançou por entre as mesas, com as cadeiras ordenadamente empilhadas de pernas para o ar, à espera de que o ano lectivo recomeçasse, dali a oito semanas.

– Está tudo bem? Está a ouvir-me?

Tratava-se de um jovem, em boa forma, tatuado. Mas o que era aquilo que tinha na cabeça? Um cone de papel ou o que seria? E o que tinha nas costas? Lise-Lotte só desejava que, se estivesse drogado ou inconsciente, não fosse com algo que tivesse encontrado na sala de química. Daria muito mau aspecto se um adolescente da localidade tivesse conseguido arrombar a porta e se tivesse drogado ou envenenado na sua escola.

Lise-Lotte parou novamente e, com uma expressão de surpresa e desconfiança, viu o que o rapaz tinha colado nas costas.

Duas folhas de papel.

Formato A4.

E com qualquer coisa escrito. Manchas de sangue nos pontos onde estavam fixadas, com grampos grandes, na pele nua. Lise-Lotte receou o pior enquanto dava os últimos passos e se inclinava para ver o rosto do rapaz.

Se os olhos fixos não fossem sinal suficiente de que o jovem estava morto, o pequeno orifício redondo que tinha na testa não deixava qualquer lugar para dúvidas.


VANJA ESTAVA SENTADA no sofá do gabinete de Torkel, à espera.

Ou chegara adiantada ou ele estava atrasado.

Provavelmente a primeira hipótese, pois Torkel era conhecido pela sua pontualidade. Vanja apercebeu-se de que estava nervosa, sem perceber porquê.

Torkel já sabia a verdade sobre Sebastian, ela contara-lhe quando ele lhe telefonara a perguntar como estava. Torkel não sabia porque metera baixa. Devia pensar que era uma gripe ou algo passageiro. Como era natural, ficara surpreendido, mas também se mostrara compreensivo e dissera-lhe para tirar o tempo que fosse preciso e que sabia onde ele se encontrava, se quisesse falar com alguém.

E era disso que precisava agora.

Não tinha mais ninguém e apercebera-se de que, sozinha, não chegaria a lado nenhum.

Através da parede de vidro, viu Torkel aproximar-se. Levantou-se imediatamente e tentou acalmar-se, maldizendo ao mesmo tempo esse movimento instintivo. Era com Torkel que ia falar. O seu amigo e mentor, e os acontecimentos dos últimos tempos não o haviam alterado.

Tudo iria correr bem.

Ele estava do seu lado.

Então por que se comportava como uma criança de primeiro ano, chamada à sala do director?

A alguns metros do gabinete, Torkel reparou nela, sorriu amigavelmente e acenou-lhe, mas Vanja ficou com a sensação de ter visto alguma preocupação nos seus olhos. Veio-lhe então à cabeça que ele poderia estar tão nervoso como ela em relação a esta reunião.

Torkel não sabia por que motivo ela estava ali.

Pensaria que estava prestes a perdê-la?

Estaria efectivamente a perdê-la? Por que razão estava realmente ali?

Nem ela própria sabia responder. Perdera o controlo. Não era típico dela. Era por isso que estava nervosa.

– Olá, Vanja, que bom ver-te outra vez! – disse Torkel ao entrar e aproximar-se dela para lhe dar um abraço. – Como tens passado?

– Não muito bem. – Vanja sentiu, de repente, um grande alívio por ter alguém que era importante para ela a fazer-lhe aquela pergunta. Alguém que se importava com ela. – Não consigo assimilar tudo.

– Compreendo – respondeu Torkel calmamente, ao mesmo tempo que a agarrou pelos ombros, à distância dos braços. – Tem sido demasiado para ti.

– Sim, é verdade...

Torkel esboçou um ligeiro sorriso e apertou-lhe mais os ombros, antes de a soltar e se ir sentar numa das poltronas para as visitas. Fez um gesto com a cabeça para que Vanja se sentasse no sofá à sua frente.

– Tive um encontro rápido com o Sebastian ontem – disse-lhe quando ela se instalou. – Ele também não tem aparecido muito por aqui.

– Disseste-lhe que sabias? – perguntou Vanja.

Torkel abanou a cabeça. O que pensava realmente dele? Ela pedira-lhe que não contasse. E devia saber que ele nunca trairia a sua confiança dessa maneira.

– Como fazemos agora? – continuou ele e inclinou-se para a frente, repousando os cotovelos nos joelhos e juntando as mãos. – Como queres fazer? Tu é que decides.

Vanja encarou o seu olhar amigável e aberto e desejou conseguir dar uma resposta melhor.

– Não sei.

– Ele nem sequer é efectivo, só tem um contrato de consultor. Posso rescindi-lo hoje, se quiseres.

Vanja ficou surpreendida e sem saber muito bem o que dizer, nem sequer equacionara essa possibilidade. Sentia que Sebastian fazia parte da equipa, exactamente como ela própria. E, de repente, tinha a possibilidade de o alterar. De se desfazer dele.

Mas não era simples.

Uma parte de si nunca mais queria vê-lo. Outra parte estava mais insegura, mais confusa.

– Não sei – conseguiu, por fim, dizer. Era a ausência de resposta que parecia utilizar cada vez mais. A que deixava aos outros a responsabilidade de tomar as decisões.

– Posso despedi-lo imediatamente, é contigo – repetiu Torkel.

Vanja assentiu com a cabeça, agradecida, embora a incerteza fosse tão grande como a gratidão. Se não maior.

Vanja não odiava Sebastian Bergman, não estava tão zangada com ele como estava com Anna e Valdemar. Muito pelo contrário. Na verdade, não lhe desejava nada de mal. Tinham alcançado alguma confiança, um com o outro, uma parte dela até gostava dele.

– Tenho de pensar. De certa maneira, parece-me uma solução demasiado fácil – disse-lhe.

– Às vezes, o mais fácil é o melhor – respondeu Torkel.

Certo, embora isso fosse o mesmo que tentar fugir às dificuldades. Escondê-las debaixo de um tapete. E não era ela. Ela não queria evitar os problemas. Queria resolvê-los. Frontalmente. Ou pelo menos tentar, antes de desistir.

Recusou com a cabeça.

– Deixa-o ficar. Se mudar de ideias, aviso-te.

Torkel assentiu. No entanto, era impossível decifrar, pelo seu rosto, o que realmente pensava da decisão que Vanja tomara. Ia acrescentar alguma coisa quando o toque de um telefone o interrompeu, e, desta vez, não havia dúvidas em relação à sua expressão. Irritação. Levantou-se e contornou a secretária, ao mesmo tempo que levantava o auscultador do telefone fixo.

– Disse que não queria ser incomodado – respondeu secamente. Depois ouviu e pegou num bloco que estava em cima da mesa e numa caneta. – De onde disseste que ela estava a ligar?

Torkel começou a escrever. Vanja levantou-se do sofá. Não sabia quem ligava nem de onde, mas percebeu que acabavam de receber um novo caso.


SEBASTIAN NÃO PERCEBIA muito bem como fora parar à ilha de Adelsö. Ou melhor, amaldiçoava-se por se ter permitido ir parar a Adelsö. Era verdade que jogava sempre no campo contrário, mas, de modo geral, tinha a inteligência suficiente para se certificar de que sairia facilmente de um sítio, quando precisasse. De preferência, antes de a mulher com quem dormira acordar. Atribuía desta vez a responsabilidade de não ter sido tão precavido ao facto de o seu vício ter atingido um pico, nos últimos tempos. A necessidade de seduzir tinha mais ou menos tomado conta da sua existência.

Depois dos acontecimentos em Värmland.

Depois de Maria e da sua filha Nicole.

A menina testemunhara o assassinato dos primos, da tia e do tio maternos e recusara-se a falar, quando a polícia a encontrara. Sebastian encarregara-se de a ajudar a ultrapassar o trauma. Durante esse tempo, apegara-se à menina e à mãe. Demasiado. Elas tinham ido viver para sua casa. Haviam formado uma pequena família. Nicole preenchera o vazio deixado pela sua filha morta.

Não era saudável.

Não era suportável.

E assim fora.

Acabara com Maria a mostrar-lhe claramente que nunca mais o queria ver.

Mas Sebastian queria vê-las a elas.

Assim, reservara algum tempo a tentar encontrá-las. Não fora muito difícil, tinham-se mudado do apartamento de Enskede para uma pequena vivenda geminada na área de Åkersberga. Sebastian fora até lá, mas, já à porta, hesitara.

O que faria?

O que podia fazer?

Queria explicar-se. Dizer o que elas significavam para ele. Quanto queria tê-las por perto outra vez. Que elas, de alguma maneira, o haviam feito sentir-se mais completo do que alguma vez se sentira, desde o dia a seguir ao Natal de 2004.

No entanto, mentira-lhes. E a si mesmo. Ou, como Vanja dissera, aproveitara-se delas no seu momento de maior vulnerabilidade. Maria também o sabia, portanto, o que esperara ganhar ao aparecer de repente nas suas vidas, de novo? Nada. E, por isso mesmo, deixara-as. Deixara o bairro de casas geminadas.

Deixara Maria e Nicole.

Voltara a refugiar-se nas ligações sexuais esporádicas e sem sentido.

Como a da ilha de Adelsö.

O sonho despertara-o pouco antes das seis. Como de costume, tinha o punho direito firmemente cerrado. Esticou lentamente os dedos, ao mesmo tempo que se apercebeu de que não fazia sentido levantar-se e tentar escapar. Mesmo que soubesse o caminho, o que não sabia, não tinha vontade nenhuma de andar a pé sete quilómetros até um ferry para, a seguir, ser obrigado a andar uma eternidade de autocarro, até estar de regresso a Estocolmo. Então permaneceu deitado, a olhar para o tecto, até ouvir a mulher ao seu lado, Kristina... qualquer coisa, acordar. No mesmo instante em que ela abriu os olhos, Sebastian sorriu-lhe e acariciou-lhe rapidamente o rosto.

– Bom dia.

Ela espreguiçou-se e, quando se preparava para fazer deslizar uma mão por baixo do cobertor, Sebastian atirou-o para o lado e levantou-se.

– Vou tomar banho. Importas-te que use uma toalha?

Kristina pareceu-lhe um pouco desiludida com aquela fuga rápida, mas ele não podia de maneira nenhuma pensar novamente em sexo. Era a tensão, o desafio de controlar o cenário de sedução, jogar o jogo, que o levava a conseguir, por um curto período, esquecer a dor e a culpa que lentamente o envenenavam. Era disso que precisava. Sem isso, o sexo era mera tortura.

Quando saiu do duche, Kristina preparara-lhe o pequeno-almoço. Sebastian não tinha fome, tentava sempre evitar estas situações a todo o custo. A falsa sensação de proximidade, a ilusão de terem algo em comum – apesar de, se dependesse dele, nunca mais se verem novamente – causava-lhe arrepios.

– Queres dar um passeio depois do pequeno-almoço? – perguntou Kristina, ao mesmo tempo que punha manteiga no pão aquecido no microondas.

– Não, quero que me dês boleia até ao ferry – respondeu Sebastian, sinceramente. – Ou, melhor ainda, até ao centro da cidade.

Kristina pousou a faca da manteiga e sorriu-lhe, um pouco surpreendida, como se o que acabava de ouvir não fizesse minimamente parte dos seus planos para aquele dia.

– Ontem à noite disseste que não tinhas muita pressa de voltar hoje.

– Ontem à noite teria dito qualquer coisa para te levar para a cama.

Era verdade, mas dizê-lo, nesta situação, teve consequências.

A consequência positiva foi que o pequeno-almoço indesejado terminou imediatamente.

A negativa foi que Kristina não tinha a menor intenção de o levar de carro nem até à esquina.

Portanto, Sebastian passeava-se agora por algo chamado circunvalação de Adelsö, na esperança que aquele caminho o levasse até ao cais.

O seu telemóvel tocou.

Deu por si a desejar que fosse Vanja.

Há quase um mês, na noite depois do casamento de Billy, sentira-se obrigado a contar-lhe o que já sabia desde há algum tempo.

Que era seu pai.

Naturalmente, Vanja ficara chocada. De início, não quisera acreditar e depois, quando finalmente se convencera que ele lhe estava a dizer a verdade, pedira-lhe que se fosse embora. Não no sentido de «nunca mais te quero ver», mas por necessidade de ficar sozinha.

Precisava de tempo para digerir.

De certeza que o iria contactar.

Não o fizera.

Sebastian conhecia-a suficientemente bem para saber que, para a relação de ambos, já de si bastante frágil e muito recente, ter alguma hipótese de sobrevivência, tudo teria de decorrer segundo as condições de Vanja. Teria de ser ela a estabelecer o ritmo. O menor sinal de insistência da sua parte faria que ela se virasse contra ele, para sempre.

Assim, Sebastian estava sozinho.

Não se dava bem sozinho.

Por esse motivo, passeava agora por Adelsö.

E não era Vanja quem estava a ligar. Era Torkel.

Estava na altura de voltar ao trabalho.


URSULA SURPREENDEU-SE ao ver a colega mais nova entrar pelas portas do terminal. Torkel não tinha a certeza se Vanja iria com eles, mas, aparentemente, conseguira convencê-la. Ursula compreenderia perfeitamente se Vanja tivesse optado por deixar passar este caso. Nem ela sabia se queria voltar a trabalhar com Sebastian. Não só por ele ser um mentiroso viciado em sexo, mas porque agora revelara ser pai de Vanja.

Ursula tinha as suas próprias razões.

Perdera o olho direito pelo facto de estar perto dele.

Os dois sozinhos em casa dele.

Respirava-se tensão sexual no ar.

Talvez mais qualquer coisa, pelo menos do lado dela, embora nunca o admitisse. Uma ex-namorada com uma pistola apontada contra o óculo da porta. Depois, Sebastian nem sequer a visitara no hospital. Pedira umas desculpas esfarrapadas e pretendera que retomassem as coisas onde as haviam deixado. Como se nada tivesse acontecido.

Ursula virou-se para Torkel, que estava uns passos atrás.

– O Sebastian também vem?

– Sim, disse que vinha.

– E a Vanja, acha bem?

– Sim.

– Não podemos ir a votos? – perguntou, ao mesmo tempo que cumprimentava Vanja com a mão, que parara mesmo antes das portas de vidro e os procurava com o olhar.

Vanja acenou de volta e aproximou-se dos dois, com a sua mala preta de cabine que levava sempre consigo, surpreendentemente cheia, na opinião de Ursula. Talvez um pouco mais pálida do que o normal. E também parecia ter perdido alguns quilos.

– Há problema em ele vir connosco? – perguntou Torkel, e Ursula sentiu que ele a olhava de forma inquisidora.

Havia algo no seu tom de voz... Pensava que ele já ultrapassara o facto de ela ter estado em casa de Sebastian, quando fora atingida. Que os ciúmes iniciais eram um capítulo encerrado. Mas talvez não. Apesar de tanto ela como Sebastian terem garantido que fora um encontro inocente. Um jantar agradável. Mais nada.

– O Sebastian é sempre um problema – respondeu, encolhendo os ombros para desdramatizar a situação.

– Para ti pessoalmente?

Claramente nada encerrado.

– Não – respondeu ela com um suspiro. – Não mais do que o habitual – acrescentou.

Vanja chegou ao pé deles, e Ursula, para surpresa das duas polícias, deu-lhe um abraço. Nunca abraçava ninguém. Nem a própria filha.

– Olá, querida, como estás? – perguntou-lhe.

Vanja olhou-a meigamente. Agradecida pela atenção inesperada.

– Estou melhor. Vai fazer-me bem voltar a trabalhar.

Virou-se para Torkel e desviou a conversa da sua vida privada para o trabalho.

– Só tive tempo de dar uma vista de olhos rápida pelo relatório preliminar no táxi – disse, desculpando-se um pouco. – Sabemos mais alguma coisa?

– Não muito – respondeu Torkel. – Dois homicídios. Espectaculares. Idênticos. As vítimas foram mortas um tiro no meio da testa, encontradas em salas de aula, com um cone de papel na cabeça e uma espécie de... teste, cravado nas costas. A primeira em Helsingborg, na semana passada. A segunda anteontem, em Ulricehamn.

– Então o assassino está em movimento?

– Parece que sim – disse Torkel. – Infelizmente, o relatório preliminar da polícia de Helsingborg tem algumas falhas.

Ursula abanou a cabeça.

– Então vamos começar nos dois sítios, como sempre – disse, com um certo sarcasmo.

– Ainda não sabemos. Também há bons polícias fora da Riksmord – retorquiu Torkel.

– Pena nunca os ter conhecido – contra-atacou Ursula, com um sorriso. – Sei que gostas de defender os saloios, mas até tu tens de reconhecer que o relatório da polícia de Helsingborg estava uma desgraça.

Olhou para Vanja procurando encorajamento, mas descobriu que a colega tinha a sua atenção concentrada noutro sítio. Ursula virou-se e viu o que Vanja já notara. Sebastian transpunha as portas giratórias com a calma de quem não tem qualquer preocupação na vida. Atrás dele, Ursula viu Billy sair de um táxi e apressar-se em direcção às portas.

O grupo já estava todo reunido...

Ao ver Vanja, Sebastian, parou, e de repente o seu ar despreocupado pareceu esfumar-se.

– Vou falar com ele – sussurrou Vanja e largou a mala.

– Queres que vá contigo? – perguntou-lhe Torkel, num tom de voz quase paternal.

– Não é preciso.

Começou a dirigir-se a Sebastian, que também pousou a sua mala, num gesto claro de que tencionava esperar por ela. Billy passou por ele, acenou-lhe discretamente com a cabeça e continuou na direcção de Torkel e Ursula, sem parar. Sebastian sabia dos segredos obscuros que se escondiam por detrás daquela fachada de indiferença. Sabia aquilo que Billy escondia. Mas, naquele momento, apreciava o facto de o colega agir como se nada se passasse. Tinha de se concentrar na filha.

– Olá, Vanja – disse, calmamente, quando ela ainda se encontrava a alguns metros de distância. – Não sabia ao certo se também virias.

– Mas vim.

– Tinhas dito que me ias contactar...

Vanja deu os últimos passos e aproximou-se tanto que ele conseguia sentir o aroma do seu champô. Parecia-lhe que ela tentava criar uma bolha de privacidade no meio de toda a confusão.

– Passei pela rua Grev Magnigatan, hoje – começou por dizer baixinho, para que nenhuma de todas aquelas pessoas que estavam por perto pudesse ouvir do que estavam a falar. – Mas tu não estavas em casa.

– Pois não, estava em casa de... um amigo.

Sebastian amaldiçoou-se novamente por ter ido parar a Adelsö. Se não tivesse saído da área metropolitana, provavelmente não se teria desencontrado de Vanja.

– Tu não tens amigos – constatou Vanja, com uma brusquidão desnecessária. – Deves ter andado foder a alguém – continuou, para demonstrar novamente que o conhecia demasiado bem.

Sebastian percebeu que havia momentos melhores e piores para mentir. Este era um dos piores.

– Desculpa – respondeu-lhe com sinceridade. – Não sabia que ias passar lá por casa. Devias ter ligado antes.

– Foi uma decisão espontânea – disse Vanja com um encolher de ombros. – Tinha estado a falar com o Torkel e queria que soubesses que contei a todos os membros da equipa a nossa... a nossa relação de parentesco.

– Que eu sou teu pai?

Vanja olhou-o com uma certa frieza. Era tão fácil para ele, tão difícil para ela... Não era justo.

– Gostas de referir-te a ti próprio assim, não gostas?

– Sim, gosto – assentiu Sebastian. – Tenho orgulho em ti. Mas, se te perturba, deixo de o fazer.

Olhou em volta pelo terminal. Um pouco adiante estavam Torkel, Ursula e Billy, os três uns ao lado dos outros, a olhar na direcção dele e de Vanja. Sebastian ficou com a sensação de que pelo menos dois deles, se não os três, preferiam que ele virasse costas e voltasse para casa. Que os deixasse para sempre. Mas não se importava com o que eles pensavam. A única pessoa que realmente importava era a que tinha à sua frente.

– Faço o que quiseres, só não quero perder-te – admitiu, ao mesmo tempo que, sem reflectir, esticou a mão e agarrou a dela. Para sua surpresa, ela não a retirou. – Não estavas preparada para isto – continuou com franqueza. Esta poderia ser a conversa mais importante que alguma vez teria. Talvez a mais importante da sua vida. Não pensava deitar tudo a perder por se distanciar emocionalmente. – Compreendo que estejas zangada comigo. Zangada com toda a gente. Percebo...

Fez uma pausa. Mediu as palavras. Era como estar em cima de uma ponte instável a tentar manter o equilíbrio. Com um precipício de cada lado, de onde, a qualquer momento, a filha o podia empurrar para o vazio.

– O meu maior medo, desde que descobri quem tu és, tem sido esta situação, estarmos frente a frente, e tu decidires virar as costas. Não me permitires aproximar. Andava aterrorizado só de pensar nisso. Ando aterrorizado ao pensar nisso.

Inspirou profundamente antes de continuar. Não fazia a menor ideia se estava a conseguir chegar a ela. O rosto de Vanja não deixava transparecer nada do que estava a pensar. Mas continuava a segurar-lhe a mão.

– Mas a vida é tua. Tem de ser uma escolha tua.

Parou de falar. Havia mais coisas que queria dizer, mas era demais, coisas demasiado grandes para abordar num aeroporto ruidoso e cheio de vida. Então aguardou. Um tempo que lhe pareceu uma eternidade.

– Podes continuar a ser meu colega – acabou por responder Vanja. Calma e contida. – A outra parte... – Calou-se. Também ela parecia medir bem as palavras. Olhou-o intensamente com os seus belos olhos azuis. – Tu não és meu pai. Não dessa maneira, não da maneira «vamos festejar juntos o Natal e ofereço-te flores no Dia do Pai».

Sebastian assentiu com a cabeça. Parecia estar a correr melhor do que ousara esperar.

– Não consigo lidar com isto agora – continuou Vanja, como se esperasse que ele se opusesse. – Talvez nunca venha a conseguir. Podemos ser apenas colegas. Achas que consegues?

Sebastian suspirou profundamente de alívio. Ela parecia pelo menos aceitar uma pequena parte dele, e uma pequena parte era melhor do que nada.

– Vou fazer o melhor que conseguir – respondeu com dignidade.

– Faz melhor do que o melhor que conseguires – disse Vanja, conseguindo esboçar-lhe um pequeno sorriso. – Já vi o melhor que consegues fazer.

E com estas palavras afastou-se e regressou para junto dos outros.

Uma voz no altifalante anunciava que os passageiros do voo para Gotemburgo deveriam deslocar-se para a porta de embarque número 37. Sebastian voltou a pegar na mala e seguiu a colega.


COMO DE COSTUME, Billy ignorou todos os limites de velocidade e câmaras de trânsito, durante os pouco mais de oitenta quilómetros entre o aeroporto de Landvetter e Ulricehamn, o que lhes permitiu observar o lago Åsunden em toda a sua extensão, menos de quarenta e cinco minutos depois de se terem sentado no carro, à porta do terminal das chegadas. Sebastian pensava recordar-se de ter havido uma batalha importante nas águas geladas daquele lago, em algum momento da história. Mas não fazia a mais pequena ideia de quando, entre que contendentes, quem ganhara e que consequências isso tivera.

Passaram pela extremidade sul do lago e por um grande parque de campismo que fervilhava de vida, e o GPS informou-os de que deviam virar à direita, e novamente à direita em Boråsvägen, uma rua que, aos olhos de Sebastian, era exactamente igual ao resto das ruas principais de todas as cidades de província que visitara. Muita vegetação. Casas antigas que alternavam com algumas lojas e pequenas indústrias. Depois, surgiram alguns blocos de vivendas do lado direito, que, pelo menos dos andares superiores, deviam ter boa vista para o lago e, provavelmente, preços em linha com isso. E, finalmente, chegaram à esquadra da polícia. Ao sol do meio-dia, parecia de construção recente. O andar térreo era de tijolo, e o de cima estava rebocado e pintado de amarelo. Toldos verdes e o emblema da polícia de cada lado da entrada. Billy virou à esquerda e estacionou junto a um relvado circular, onde três pedras estavam encostadas umas às outras, no que parecia um Stonehenge em miniatura.

– Torkel Höglund? – ouviram alguém perguntar, atrás deles, quando saíram do carro.

Todos se voltaram e viram uma mulher nos seus quarenta e cinco anos aproximar-se, ao mesmo tempo que apontava com a mão, que segurava a chave de um carro, para trás de si e que os piscas de um Passat verde, mais abaixo no estacionamento, acendiam. – Eva Florén, Polícia de Borås, região de Västra Götland. Fui eu que vos liguei hoje de manhã.

Torkel apertou-lhe a mão estendida e apresentou os restantes membros da equipa.

– Acabei de chegar da medicina legal, em Gotemburgo – continuou Eva, ao mesmo tempo que os dirigia para o interior do edifício. – Temos uma identificação segura por parte do pai da vítima.

Guiou-os através da recepção, onde dois polícias fardados estavam atrás do balcão, a olhar cada um para o seu ecrã. Não havia nenhum visitante. Um passar de cartão de segurança e depois o zumbido de um trinco de porta, e estavam no interior da esquadra.

– Alguém quer café? – perguntou Eva ao passarem pela copa, onde tudo, desde bancadas, armários e mesas, era feito de madeira clara.

Uma ilha de cozinha curva, com um armário pendurado do tecto, separava o canto com o congelador e o frigorífico, o lava-louça, a máquina de café, o microondas e as bancadas de trabalho do resto da sala, onde umas cadeiras estofadas a fúcsia rodeavam a mesa. Havia cortinados brancos com bolas coloridas em todas as janelas. Alguém se empenhara bastante em tentar criar na sala um ambiente de trabalho moderno, e com bastante sucesso.

– Sim, obrigado! – respondeu Sebastian à oferta de café, enquanto todos os outros recusaram. – Simples, mas de preferência com um cubo de açúcar, se houver.

Vanja lançou-lhe um olhar. Era evidente que havia a possibilidade de apenas lhe apetecer um café, mas ela pressentia que a resposta afirmativa e o sorriso caloroso que se lhe seguira eram o início de uma tentativa de sedução da inspectora de Borås, que acabava de tirar uma chávena de uma das prateleiras com uma mão onde eram bem visíveis tanto um anel de noivado como um de casamento. Não que isso fizesse alguma diferença para Sebastian.

– Muito obrigado – disse, quando Eva, no minuto seguinte, lhe estendeu a chávena com a bebida fumegante.

Novamente um sorriso, e Vanja reparou com um suspiro entediado que Sebastian fizera de propósito para que a sua mão tocasse levemente na de Eva, ao receber a chávena. Se antes tivera dúvidas, agora haviam-se esbatido por completo. Na realidade, não era nada de novo, e era até aquilo que já esperava de Sebastian, mas o seu comportamento incomodava-a muito mais agora, que sabia quem ele era. Pensar nele apenas como colega de trabalho numa situação como aquela não estava a ser fácil. Perguntou-se se deveria abordar o assunto com ele.

Eva dirigiu-os à sala de reuniões da esquadra. Quadro branco numa das paredes, cadeiras de estofo fúcsia iguais às da cozinha, os mesmos cortinados brancos com bolas nas janelas.

– Esta será a vossa sala. É a única que temos aqui. Se precisarem de mais alguma coisa, terão de ir ao nosso escritório, em Borås.

As mesas estavam agrupadas duas a duas, em três filas, viradas para o quadro branco, em vez de estarem todas juntas no meio da sala, como a equipa da Riksmord estava habituada a ver nas salas que punham à sua disposição.

– Serve perfeitamente – disse Torkel. – É maior do que os que normalmente nos dão.

– Agora está com ar de sala de aula, com as mesas assim em fila – continuou Eva, em jeito de desculpa. – Mas podem dispô-las como quiserem.

Sentaram-se. Ursula, Vanja e Torkel ocuparam a fila da frente. Sebastian e Billy colocaram-se atrás deles. À sua frente, todos tinham uma pasta verde-escura.

– Tiveram tempo para estudar o material? – perguntou Eva.

– Alguns mais do que outros, mas gostaríamos muito de ouvir a tua explicação – respondeu Torkel.

Eva assentiu com a cabeça, abriu uma pasta idêntica à que eles tinham à sua frente e mostrou-lhes uma fotografia de um jovem musculado, que sorria para a câmara, descontraidamente.

– Miroslav Petrovic, vinte e um anos, foi encontrado morto no laboratório de química da escola Hildingskolan, ontem à tarde – começou Eva.

– Mirre – exclamou Billy, como se, de repente, tivesse visto um velho conhecido.

– Sim, era assim que lhe chamavam.

– Não tinha associado até agora – continuou Billy, abanando a cabeça.

– O que é que não tinhas associado? – questionou Torkel, observando Billy com curiosidade.

– Ficou em terceiro lugar no programa Paradise Hotel – respondeu Billy, como se isso explicasse tudo.

Os outros contentaram-se com a resposta.

– Ontem, de manhã, recebemos a informação de que um homicídio semelhante tivera lugar em Helsingborg, na semana passada – prosseguiu Eva. – Foi então que decidimos contactar-vos.

– Patricia Andrén – acrescentou Torkel.

– Exacto, embora isso seja praticamente tudo o que sabemos. Foi encontrada numa escola, cone de papel na cabeça, alvejada na testa e com uma espécie de teste agrafado ao corpo, precisamente como o Petrovic. Um relatório mais detalhado vem a caminho, espero eu.

– Óptimo – assentiu Torkel. – O que mais sabemos sobre o Petrovic, para além de que está morto?

– Como já foi dito, uma pequena celebridade depois da participação naquele reality show. Segundo o pai, Gabriel Petrovic, o filho ia encontrar-se com um jornalista para uma entrevista, na terça-feira passada. À hora de almoço. Não foi visto desde então.

– O pai sabia o nome do jornalista? – quis Vanja saber, participando pela primeira vez na reunião.

– Sim, Sven Cato. Há seis pessoas com esse nome na Suécia. Ninguém o usa como nome próprio.

– Algum deles é jornalista? – continuou Vanja, bem consciente da resposta que ia ouvir. Se fosse assim tão simples, não teriam chamado a equipa da Riksmord.

– Não. Estamos a verificar, obviamente, mas partimos do princípio de que é um nome falso.

– Sabemos se realmente se encontraram e, se sim, onde? – concluiu Vanja.

– Ainda não. Por enquanto, temos conseguido manter a sua identidade longe da imprensa, por isso ainda não começámos a receber pistas por parte dos cidadãos.

– E terá sido a melhor opção? – perguntou Torkel, com um claro descontentamento na voz. Petrovic teria provavelmente sido assassinado há mais de quarenta e oito horas. Os dois primeiros dias eram importantes. As informações de testemunhas sobre terça-feira seriam cada vez menos valiosas, quanto mais tempo esperassem.

– Provavelmente não, mas foi um pedido do pai.

Torkel soltou um suspiro, pesaroso, e assentiu. Era sempre difícil tomar uma decisão nesses casos.

– Se a imprensa não chegar lá antes, amanhã temos de divulgar a informação. Temos de conseguir mapear as suas últimas horas, o mais rigorosamente possível.

– Esta investigação agora é sua – assentiu Eva. – Poderá divulgar quando quiser. Eu só queria explicar o motivo para não o termos feito até este momento.

– E a escola? – Ursula interrompeu a discussão. – Algumas pistas?

Eva abanou a cabeça ao começar a falar, o que, por si só, era resposta suficiente para Ursula.

– A sala de aula foi o local onde o encontrámos, mas não é o local do crime.

– E o resto da escola?

– Uma porta no rés-do-chão fora forçada. Mas nada aponta para que ele tenha sido assassinado ali.

Nada que a polícia local de Ulricehamn tenha encontrado aponta para que tenha sido assassinado ali, quis Ursula corrigir, mas lembrou-se de que Torkel lhe pedira para guardar para si própria a sua total desconfiança face às capacidades da polícia local.

– Alarmes? – resolveu perguntar em vez disso, apesar de julgar já saber a resposta.

Um novo assentir de cabeça. Ursula suspirou.

– Quero dar uma vista de olhos.

– Claro que sim, levo-te quando tivermos terminado aqui.

Sebastian passava em revista as fotografias tiradas do local onde o corpo fora encontrado. A cadeira, a corda à volta da barriga que mantinha a vítima direita, virada contra o canto, com o cone branco na cabeça. Um assassino em série minucioso, com uma mensagem.

Normalmente, Sebastian não se concentrava totalmente nas informações, mas algo neste cenário macabro lhe despertava a atenção. Continuou a olhar para o material que tinham na pasta e encontrou o que procurava. Uma cópia dos papéis que haviam sido agrafados aos corpos das vítimas. Algums partes onde o sangue cobria o que estava escrito eram difíceis de ler, mas Sebastian deu uma vista de olhos rápida.

– Quais são as tuas primeiras impressões, Sebastian? – perguntou-lhe Torkel, virando-se para trás na cadeira.

Sebastian endireitou-se, levantou os olhos da pasta e desejou ter uns óculos que pudesse colocar sobre a testa ou empurrar para a ponta do nariz. Talvez devesse arranjar uns. Para cultivar um pouco o ar de intelectual. Dirigiu um leve sorriso a Eva, que, desta vez, não lho retribuiu.

– Homem. Mais velho. Não há muita gente com menos de cinquenta anos que consiga identificar-se com o acto de se sentar no canto da vergonha ou que saiba o significado de um cone de burro. – Sebastian voltou a olhar para as fotografias. – Acha que este jovem devia ter vergonha. Ao que parece, pela sua falta de cultura geral.

– Houve um episódio do Paradise Hotel deste ano em que os concorrentes tinham de resolver problemas do ensino básico, e foi uma vergonha completa. – Não eram muitos os que conseguiam acertar, digamos assim.

– A pessoa que fez isto deve ter contactado o Petrovic para, de alguma maneira, expressar o seu desprezo.

– Encontraram o telemóvel dele? – interrompeu Billy novamente.

Eva voltou a abanar a cabeça.

– Não, só temos o computador...

– Vasculhem os e-mails, caixas de comentários, no caso de ele ter algum blogue, contas do Instagram, do Twitter – disse Sebastian. – Este homem contactou-o por alguma via.

– Sabem que estes jovens são tão odiados quanto amados. Há por aí alguns.

Torkel virou-se novamente para Sebastian.

– Do que estamos à procura?

Sebastian continuou a estudar as fotografias do jovem amarrado e com um cone na cabeça.

– De um comentário eloquente, que expresse desprezo. Nada de ameaças. Nada de insultos. Tudo sem erros ortográficos. – Olhou para os restantes e voltou a sentir a falta de uns óculos. – Mais uma coisa, mas vocês talvez já tenham chegado a essa conclusão. – Fez uma pequena pausa dramática e esperou até ter a atenção total de todos, antes de continuar. – Se ele fez isto duas vezes na mesma semana, é porque pensa voltar a fazê-lo.


Jornal Eskilstuna-Kuriren

Cartas ao director

Apartado 120

631 02 Eskilstuna

Querem estar em todo o lado. Sem conseguirem contribuir com nada. Todas essas pessoas dos reality shows e dos blogues. Praticamente idênticos fisicamente, com os seus corpos tatuados (homens e mulheres) e lábios e peitos cheios de silicone (mulheres). Todos com o nível intelectual de uma criança de dois anos.

Todos os dias, os canais de televisão nos bombardeiam com a mensagem de que a superficialidade, a ignorância e a estupidez pura são as características que, seguramente, levam ao sucesso nos tempos modernos.

Aproveitam-se os que são inteligentes e que realmente sabem alguma coisa? Convivem lado a lado? Não, tanto novos como velhos com inteligência e uma cultura geral sólida são cinicamente postos de lado.

Não são «televisivos».

Não geram «cliques».

Não se tornam trending topic.

São pessoas que não sabem nada, que se orgulham de ser assim e que os nossos tempos transformam em ícones e ídolos.

Como o talentoso Kristian Luuk diz no programa que, graças a Deus, ainda é um refúgio entre tanta homenagem à ignorância total: Em que nos estamos a transformar?

CATÃO, o Velho


NADA DE ERRADO com o hotel. Nada de errado com o quarto. Mesmo assim, Billy só queria sair dali e desaparecer.

Estava sentado à secretária e preparava-se para começar a ver o computador de Petrovic. Um Acer Aspire, 17,3 polegadas, 4GB de RAM, 500GB de disco rígido. O objectivo era ficar com uma visão geral, uma ideia de quanto trabalho teria, quando começasse a procurar a sério. Já sabia que Mirre tinha uma conta de Instagram e de Twitter, mas e de Facebook? Teria algum blogue, talvez uma conta de Flickr, mesmo que isso fosse menos comum?

Mas a concentração recusava-se a aparecer. Adorava aquele tipo de trabalho, era bom naquilo. A equipa esperava que o resolvesse, e o seu apreço e reconhecimento significavam muito para ele. Mesmo assim, ainda mal começara as buscas, e já os pensamentos lhe fugiam.

Pensou em Jennifer. Ficou furioso consigo próprio por estar a pensar em Jennifer, em vez de pensar na mulher. Então pensou em My. Na lua-de-mel, dez dias muito bons na Turquia, e depois pensou no casamento.

Na noite do casamento.

A manhã seguinte.

E depois já não havia nada a fazer.

Fechou o portátil e levantou-se com um suspiro. Foi até à janela e observou o lago. O que deveria fazer? Quando fizeram o check-in, a recepcionista do hotel dissera que havia um pequeno ginásio. Treinar? Não tinha vontade. Além disso, era mais apelativo correr ao ar livre. Telefonar a alguém? Mais uma vez, veio-lhe o nome de Jennifer à cabeça. Não sabia porquê. Tinham-se beijado uma vez, um mês ou mais antes do casamento. Era tudo. Talvez os dois tivessem querido levar aquilo mais longe, mas Billy travara a situação. Ia casar-se – estava casado – com My. Amava My; se precisasse de falar com alguém, deveria ser com ela. Porém, tudo era mais simples com Jennifer. Eram mais parecidos, tinham mais coisas em comum. Ela compreendia-o de maneira diferente.

Mas claro que ela não sabia nada sobre a noite do casamento. Sobre a manhã seguinte. Isso ninguém podia compreender.

Nem ele próprio.

Mas nada melhoraria se ficasse de pé no quarto de hotel, um pouco quente demais, a dar rédea solta aos pensamentos. Pegou no casaco e deixou o quarto.

No minuto seguinte, desceu as escadas e atravessou o lobby. Olhou à sua volta e reparou em Sebastian, sentado numa das poltronas castanhas da recepção, a ler. Billy tinha esperança de conseguir sair sem ser descoberto, mas, no mesmo instante, Sebastian levantou os olhos do jornal e olhou-o de frente. Billy praguejou em voz baixa, para si próprio. O que estava Sebastian a fazer sentado no vestíbulo? Por que motivo não estava lá em cima, no seu quarto, ou lá fora, a tentar encontrar alguém de Ulricehamn para levar para a cama? Era isso que costumava fazer. Estaria Sebastian a vigiá-lo?

– Onde vais? – ouviu Sebastian perguntar através do lobby, ao mesmo tempo que se levantou da poltrona e veio na sua direcção, enquanto vestia o casaco.

– Vou sair.

– Então vou contigo.

Era uma constatação, não uma pergunta. Pelos vistos, Billy não tinha voto na matéria.

– Não preciso de baby-sitter.

– Pensa em mim mais como um... amigo dos animais.

Billy nem teve paciência para responder, limitou-se a empurrar a porta e sair para a pequena praceta empedrada, em frente à entrada do hotel. Apesar de ainda estar algum calor, fechou o seu casaco leve antes de, sem dizer uma palavra, se começar a afastar do hotel. Virou à direita, atravessou um pequeno relvado e depois voltou à direita outra vez.

Sebastian seguiu-o e alcançou-o, e, juntos, atravessaram a estrada maior. Continuaram na direcção do lago e, já aí, Billy decidiu andar para o lado esquerdo, com o vento a bater-lhe nas costas. Sebastian caminhou ao seu lado, em silêncio.

O facto de terem acontecido tantas coisas no último mês era culpa de Billy.

Descobrira o parentesco entre Vanja e Sebastian. Trabalho honesto de polícia à moda antiga, juntamente com recolha de ADN, tinham comprovado aquilo de que já desconfiava havia algum tempo.

Ameaçara contar o que sabia a Vanja, se Sebastian não esquecesse o que vira.

Que Billy estrangulara um gato, na noite do seu casamento.

Que tirara prazer disso.

Prazer sexual.

Mesmo que Sebastian tivesse querido esquecer, era impossível. Contara imediatamente a Vanja que era seu pai, para que aquela vantagem de Billy sobre ele desaparecesse imediatamente. Depois fora obrigado a reflectir. A decidir-se. Contar a Torkel ou não.

Sobre Edward Hinde. Sobre Charles Cederkvist.

Duas pessoas que Billy fora obrigado a matar, em serviço. Sebastian ficara surpreendido pela falta de reacção de Billy perante os tiroteios, mas nunca lhe passara pela cabeça que o colega tivesse associado as mortes a prazer, e que essa ligação agora o empurrava para um caminho muito perigoso.

O bloqueio natural que, em casos normais, nos impede de vivermos as nossas fantasias fora quebrado. Billy teria de o construir novamente, uma vez que as fantasias estariam sempre lá. O importante era saber onde as encaixar, saber que eram só isso – fantasias – e que Billy não precisava de agir sob o impulso que elas criavam.

Sebastian insistira com ele para que encarasse o problema. Procurasse ajuda. Até agora, nada acontecera, que soubesse.

Caminharam um pouco ao longo da praia, antes de Sebastian romper o silêncio.

– Porque saíste?

– Tenho o direito de sair do quarto de hotel!

– Estás angustiado?

Billy não respondeu, e Sebastian interpretou-o como um sim.

– Como estão as coisas com a My?

Billy não respondeu, mas também não precisava de o fazer, era evidente que a situação com My estava complicada. Os segredos eram uma coisa pesada, e este era um dos maiores que se podia ter. Billy estava no meio de um processo onde seria obrigado a reavaliar grande parte do que pensava saber sobre si próprio e, para além disso, tinha de trabalhar e de manter uma relação amorosa.

– Já falaste com alguém? – perguntou Sebastian e sentiu que estava a ficar sem fôlego. Billy caminhava depressa, e ele não estava em forma para passeios rápidos. Viu que se aproximavam de mais um parque de campismo, um pouco adiante. Quantos poderiam existir neste buraco?

– Se não falares comigo, vou contar ao Torkel, já sabes.

– Então porque não o fazes já?

Uma pergunta perfeitamente aceitável. Sebastian pensara nisso, por que motivo permanecia calado? Não tinha nenhum sentimento especial por Billy, mas sabia que Vanja gostava dele. E não sabia como ela reagiria se fosse ele a dar a notícia que dividiria a equipa. Não se podia dar ao luxo de ela se lembrar de culpar o mensageiro. Além disso, era uma pequena vantagem que lhe dava jeito ter, não podia negá-lo. O conhecimento do que Billy fizera dava-lhe uma boa posição de negociação, se alguma vez precisasse de um favor ou de ter alguém do seu lado. Billy estava, com certeza, consciente disso, mas não era nada que precisasse de ter confirmado.

– Então como estão as coisas com a My? – repetiu Sebastian.

Por um instante, pensou que desta vez também não receberia resposta, mas depois ouviu Billy inspirar profundamente e, através de um suspiro, dizer:

– Está em casa dos pais, e eu estou satisfeito por não ter de a ver todos os dias.

Sebastian assentiu com a cabeça.

– Evito ligar-lhe – continuou Billy. – Sou recém-casado e não quero falar com a minha mulher. Isso responde à tua pergunta sobre como estão as coisas com a My?

– Sim, responde – assentiu Sebastian.

– Óptimo.

Continuaram a caminhar.


URSULA REGRESSOU ao hotel por volta das oito e meia da noite. Era evidente que Miroslav Petrovic não fora assassinado na sala de aula, o corpo fora transportado para lá de alguma maneira. Quando e como era algo que teriam de tentar descobrir com a ajuda de câmaras de vigilância, se houvesse algumas. Isso faria parte do trabalho de Billy.

Dera um passeio à volta da escola Hildingskolan para se orientar, mas não encontrara nada à primeira vista. Os corredores, a porta branca, a sala de química lá dentro, a entrada arrombada no piso inferior. Contrariada, admitiu para si própria que a polícia de Borås até parecia ter feito um bom trabalho. Os lugares que, na sua opinião, eram de interesse já tinham sido examinados, e o relatório estava bem escrito. Ao fim do dia, ia relê-lo, mais uma vez, e depois ligar ao técnico responsável, logo pela manhã. O contacto pessoal com aqueles que tinham feito a investigação inicial era importante. Em princípio, ela herdava sempre os casos de alguém, era raro ser a primeira pessoa no local. O material documental era a base de tudo, mas o encontro pessoal costumava proporcionar-lhe conhecimentos mais aprofundados. Só assim podia compreender como os técnicos tinham trabalhado, como haviam pensado e, desse modo, talvez encontrar detalhes que não tivessem procurado ou, na pior das hipóteses, que tivessem deixado passar despercebidos.

Por vezes, a polícia até se decidia inicialmente por uma das pistas e tentava que as provas confirmassem as suas teorias, em vez de deixarem as provas guiá-los, ser a base objectiva a partir da qual se construía uma teoria. Nessas alturas, era conveniente estar bem informada. Para ela, as provas técnicas eram indiscutíveis, tudo o resto podia ser interpretado, retorcido ou inventado, mas as provas eram definitivas e verdadeiras.

Era provavelmente por esse motivo que gostava mais delas do que de pessoas.

Pousou a sua pequena mala de um dos lados da cama e deitou-se do outro lado, sem descalçar os sapatos. Fora um dia muito comprido, e sentia-se cansada. A prótese parecia-lhe seca, e piscou os olhos algumas vezes para a humedecer. Começava a habituar-se. Nunca pensara que isso fosse acontecer.

O mais difícil não era a prótese em si, ou o seu manuseamento, mas a total falta de visão do lado direito. Afectava-lhe o equilíbrio, via-se obrigada a virar a cabeça constantemente, para interiorizar o mundo à sua volta, e fazia tudo mais lentamente.

Não obstante, poderia ter corrido pior. Muito pior.

Inspirou profundamente.

Era bom estar de volta ao grupo e ao ar livre. Tivera saudades disso. Vivia para viagens como esta. Quanto mais complicados os casos, melhor. Aí tinha um foco que não existia no dia-a-dia. Que a fazia sentir-se viva. Na verdade, trabalhara durante a convalescença, mas não era a mesma coisa estar em casa, sentada em frente a um computador, ou estar no terreno. Em casa, o quotidiano era sempre demasiado próximo, demasiado intrusivo. No terreno, não existia de todo, tudo girava à volta da investigação.

Sentou-se e olhou em volta. O hotel Bogesund parecia ter uma predilecção por papel de parede bem colorido. Grandes flores encarnadas, entrelaçadas com folhas verdes, cobriam a parede por trás da cama. Era o mais longe do seu próprio estilo espartano que podia imaginar, o que, em si, se tornava libertador. Era uma não casa em muitos aspectos.

Perguntou-se se Torkel teria o mesmo papel de parede no seu quarto. Já havia algum tempo que não partilhavam uma cama, ela e Torkel. Antigamente, antes de Sebastian reaparecer na Riksmord, costumavam acabar muitas vezes no quarto de Torkel. De forma simples e natural. Para ela, nunca se tratara de amor. Mas fora um sentimento de união, e sentia cada vez mais falta disso.

Tinham tido um entendimento.

Só em trabalho.

Nunca em casa.

Nada de planos para o futuro.

Fora perfeito para ela. Durante o dia, o foco estava todo na investigação, e, à noite, podia entregar-se a uma relação sem exigências. Não precisava de mais do que isso.

Torkel tinha esperança de que pudesse haver mais, ela sabia-o.

Algo mais permanente.

Uma relação.

Enquanto fora casada, ele contentara-se com o que tinham. Mas depois, quando Micke a deixara e, na verdade, não havia nenhum impedimento, tornara-se muito claro. Estranhamente, queria-o menos então, quando estava verdadeiramente sozinha. Não que sentisse a falta de Micke, essa relação também nunca fora amor, como havia sido obrigada a admitir quando se analisara a si própria. Pelo menos, não do lado dela. Mas a vontade clara de Torkel de dar o passo de «pouco exigente» para «relação séria» não era possível de conjugar com quem ela era e com o que queria. Finalmente, a fricção acabara por estragar os encontros regulares dos dois.

Todavia, talvez conseguissem chegar a um compromisso. Pegou no telemóvel e ponderou enviar-lhe uma mensagem escrita. Apenas a perguntar como estava. Se estava acordado. Ele compreenderia.

Uma mensagem escrita, e tudo voltaria ao normal.

Ele estaria à sua porta em trinta segundos.

Era apelativo, mas, ao mesmo tempo, estava realmente cansada. Havia algo de emocionante em fantasiar mais um pouco. Amanhã aproximar-se-ia um pouco mais. Tocá-lo, tomar a iniciativa. Iria mostrar um lado totalmente novo de si própria.

Iria seduzi-lo.


VANJA E BILLY deslocaram-se para Helsingborg directamente a seguir ao pequeno-almoço madrugador. Segundo o GPS, iriam demorar duas horas e quarenta e cinco minutos a ir de Ulricehamn até à rua Berga allé 25, em Helsingborg, onde se localizava a esquadra da polícia, mas, como era Billy quem ia a conduzir o carro de aluguer, deviam conseguir chegar lá em pouco mais de duas horas. Pelo menos, era o que ele afirmava. Quando já se encontravam um pouco a sul da cidade, Vanja pegou no novo relatório da polícia de Helsingborg que haviam recebido naquela manhã e começou a analisá-lo.

A vítima chamava-se Patricia Ellen Andrén, nascida em Malmö, em 1989. Solteira, um filho. Era cabeleireira. Havia várias fotografias dela no dossiê, a maior parte do local do crime, mas duas delas de quando estava viva, as duas aparentemente tiradas por um profissional. Uma na praia, de biquíni. Vanja teve a sensação de a reconhecer. Ou então era só o estilo que lhe era familiar. Uma morena com curvas, tatuagem ao fundo das costas, seios operados e um sorriso demasiado branco por detrás dos lábios aumentados.

– Encontraste alguma coisa de interesse? – perguntou-lhe Billy.

Vanja levantou uma das fotografias para que ele pudesse ver. A de Patricia em fato-de-banho. Billy lançou um olhar rápido para o lado.

– Porra, também a reconheço! – exclamou surpreendido.

– Tens a certeza?

– Procura-a no Google. Tenho a certeza de que ela também participou em alguma coisa na televisão.

Vanja pegou no telemóvel e fez uma busca rápida por Patricia Andrén. Billy tinha razão. Obviamente. A fotografia de biquíni aparecia logo nos primeiros resultados da busca. Patricia participara no programa de encontros Mãe Solteira Procura, dois anos antes. Vanja suspirou, não era disto que estavam a precisar. Quando a informação se tornasse pública, seriam obrigados a passar metade do tempo a lidar com a imprensa e a afastá-la. Claro que isso era parte do trabalho de Torkel, mas a cobertura mediática intensiva afectava-os a todos enquanto equipa.

– Parece que alguém anda a assassinar famosos de baixo nível – disse, ao levantar o telemóvel para Billy ver.

– Ao menos a imprensa vai ficar contente – respondeu Billy, resignado, mostrando que pensara imediatamente a mesma coisa que ela. – Mas o Torkel vai achar pouca graça.

– De certeza.

– Diz mais alguma coisa? Devia haver um relatório de autópsia – continuou Billy calmamente, enquanto acelerava a fundo e ultrapassava um camião. O velocímetro aproximava-se dos 160 quilómetros por hora.

– Sim, devia, mas os imbecis lá de baixo não o enviaram com isto.

Vanja voltou a passar em revista o pouco material que tinham. A maior parte era do local onde encontraram o corpo. Patricia fora encontrada na escola Tollsjöskolan, uma escola estatal do ensino básico, a quinze minutos do centro de Helsingborg. O professor que normalmente ensinava naquela sala encontrara-a na escola, que estava fechada para as férias de Verão, por volta das oito e meia da manhã, na véspera do solstício de Verão. O corpo fora colocado numa cadeira, num dos cantos à frente da cátedra. Uma corda à volta da barriga para manter o corpo direito. Cone de papel na cabeça, a cara voltada para o canto, e duas folhas de papel com perguntas agrafadas com grampos, nas costas nuas. A escola não tinha alarmes, e a polícia encontrara uma porta arrombada nas traseiras. Era como estar a ler novamente sobre Mirre Petrovic e a escola Hildingskolan.

– Ao menos têm um suspeito – disse Vanja, ao fim de algum tempo.

– Quem?

– O ex-namorado. Stefan «Steffe» Andersson. Pai do filho dela. Parece que a tinha ameaçado.

– Só têm isso?

– Diz aqui que ele foi chamado para interrogatório... – Vanja folheou o pouco que restava do material. – Mas o relatório do interrogatório também não foi enviado.

Billy abanou a cabeça.

– Parece que nomearam o melhor investigador para isto.

– Completamente.

– Que sorte a Ursula não estar, havia de os desfazer aos bocados...

Vanja imaginou Ursula chamar a si o pobre coitado que compilara o relatório e dizer-lhe o que achava dele em particular, e dos polícias «além centro da capital», em geral. Não conseguiu esconder um sorriso.

– É bom ela estar de volta – continuou Billy honestamente.

– Saíste-te bem da última vez, sem ela – respondeu Vanja, e estava a falar a sério. – Não sei se já to tinha dito.

– Obrigado, é bom ouvir isso.

Lançou um olhar agradecido a Vanja, e ela assentiu animadamente para ele. Era verdade. Billy realmente crescera nos últimos tempos. Era pena terem-se afastado um do outro. A certa altura, tinham sido mais como irmão e irmã do que colegas, mas, mesmo que tivessem esclarecido as coisas um com o outro, nunca haviam voltado a ser o que eram.

Provavelmente nunca voltariam.

O trânsito estava um pouco mais compacto, e Billy vira-se obrigado a abrandar.

– Tenho de te perguntar... – começou Billy, e Vanja quase conseguiu vê-lo tomar balanço antes de continuar. – Como te sentes por, de repente, teres o Sebastian como pai? Deve ser estranhíssimo.

Vanja riu-se, um pouco resignada.

– Não consigo pensar nele como pai. É apenas um colega.

Billy lançou-lhe um olhar confuso.

– Então é exactamente como antes, é isso?

– Claro que não, mas... é como se tivesse de ser – calou-se e observou a paisagem, cada vez mais plana, que passava por eles, no exterior. – Tem de levar o tempo que levar. Não consigo lidar com tudo ao mesmo tempo.

– Mas continuas aqui e encontras-te com ele, isso mostra muita força.

– Pensei despedir-me.

– E porque mudaste de ideias?

– Era demasiado simplista. Demasiado cobarde. Não é dessa maneira que resolvo os problemas.

Ficaram em silêncio. Billy manteve o olhar concentrado na estrada, à sua frente. Vanja queria aproveitar o momento para continuar a falar. Mas já bastava de trabalho e dos seus problemas. Também tinham acontecido coisas importantes na vida dele.

– E tu, como estás? – perguntou-lhe, esforçando-se para fazer a pergunta com a maior energia positiva possível. – Como está a correr a vida de recém-casado?

– Bem, muito bem – assentiu Billy e sorriu. – É espectacular.

– Conta-me tudo sobre a Turquia – pediu Vanja e sentou-se direita no assento para escutar.

Billy começou a contar, mas, passado um pouco, Vanja perdeu a concentração. Estudou-o. Agora que já não eram tão próximos, parecia que Billy se esquecera de uma coisa.

Ela era boa a perceber quando as pessoas mentiam.

Era um dos seus pontos fortes.

E Billy estava a mentir.

Não estava nada tudo bem. Vanja ficou com a sensação de que estava tudo bastante longe de bem.


VIRAR À DIREITA. Daqui a trezentos e cinquenta metros, virar à direita.

A voz feminina do GPS dirigiu o carro para ruas cada vez mais pequenas de bairros residenciais que, aos olhos de Sebastian, eram todos iguais. Aproximavam-se do seu objectivo, e ele arrependia-se de não ter feito mais resistência quando tivera a oportunidade.

Estava a acabar de tomar o pequeno-almoço quando Torkel entrara e se sentara à sua mesa. Sebastian lançara-lhe um olhar inquisidor. Ursula estava sentada a uma mesa junto à janela, um pouco mais afastada, com vista, com o lugar à sua frente vazio.

– Problemas no paraíso?

Torkel olhara para ele, confuso, e Sebastian fizera um gesto com a cabeça na direcção da janela. Torkel virara-se, olhara na direcção de Ursula e voltara a virar-se para Sebastian.

– Não, o quê?

– Achas que só porque não tomam pequeno-almoço juntos ninguém sabe que vocês vão para a cama?

– Eu já tomei o pequeno-almoço.

– Sabes uma coisa, era menos suspeito se vocês se sentassem juntos, como colegas, do que não o fazendo – continuara Sebastian a argumentar. – Se não quiserem que seja evidente que dormem juntos, quero dizer.

– Nós não dormimos juntos.

– Porquê?

– Já terminaste? – perguntara Torkel com um gesto para o prato e caneca praticamente vazios de Sebastian, claramente decidido a acabar com a conversa sobre Ursula. – Vamos ver o pai do Petrovic.

– Ela pareceu bastante interessada em ti no casamento do Billy – continuara Sebastian, relutante em deixar cair o assunto, uma vez que deixava Torkel tão claramente pouco à vontade. – Como conseguiste deixar escapar isso?

Imaginara ou teria visto uma sombra de melancolia, mais do que de fúria, nos olhos de Torkel, antes de ele afastar a cadeira?

– Vá despacha-te, levanta-te.

– Onde vamos?

– Já te disse – um indício de cansaço e irritação na voz de Torkel. – Vamos ter com o pai do Petrovic. Quero falar com ele antes da conferência de imprensa.

– E porque tenho de ir também?

– Porque te estou a dizer!

Sebastian não apreciara de todo que Torkel fizesse uso da sua posição como único argumento para impor a sua vontade. Recostara-se na cadeira para marcar que não tinha a menor intenção de se levantar. Pelo contrário, tencionava permanecer sentado.

– Leva a Vanja ou alguém que...

– A Vanja e o Billy foram para Helsingborg – interrompeu-o Torkel. – Vens tu. Cinco minutos. Fico à espera no carro.

Sebastian observara Torkel virar as costas e deixar a sala de refeições. Ponderara por momentos voltar para o quarto, deixá-lo esperar no carro até se fartar e partir sem Sebastian. Mas Torkel não parecera estar com paciência para esse tipo de marcação naquele dia. Sebastian não fazia ideia se fora por ter trazido Ursula à conversa, mas estavam apenas no início do segundo dia da investigação. Teria mais oportunidades de fazer frente a Torkel. Sobre coisas mais importantes. Bebeu o resto do café arrefecido de um trago e levantou-se.

Virar à direita. Daqui a duzentos metros, virar à direita.

– Então tu é que és o pai da Vanja – constatou Torkel e continuou a guiar o carro segundo as indicações do GPS. Sebastian lançou-lhe um olhar rápido.

Aí estava.

Completamente sem pré-aviso.

Perguntara a si próprio quanto tempo demoraria Torkel a comentar o assunto.

– Sim – respondeu Sebastian, secamente. Era impossível perceber se Torkel tinha alguma opinião sobre aquilo. A constatação fora feita com o mesmo tom e expressão corporal, como se estivesse a comentar o tempo.

– Há quanto tempo sabes? – continuou Torkel e reduziu ainda mais a velocidade ao fazer a última curva à direita, para entrar na rua Luktärtsvägen.

– Há algum, descobri depois de nos termos encontrado em Västerås.

– Isso explica um pouco do teu comportamento.

– Sim, pode dizer-se que sim.

Chegou ao seu destino. O seu destino encontra-se do lado direito.

Torkel parou e desligou o motor. Sebastian olhou pela janela do carro e observou brevemente a vivenda de um andar, em tijolo cinzento, com o jardim bem cuidado, que iam visitar, antes de se virarem novamente para Torkel.

– O que te disse ela?

– Só isso. Que és pai dela.

– E tu, o que disseste?

– Que ela podia decidir se queria continuar a trabalhar contigo ou não.

Sebastian não conseguiu evitar um sorriso satisfeito. Vanja tivera oportunidade de se distanciar dele e recusara.

Uma escolha activa.

Não era como se fosse obrigada a suportá-lo. Escolhera tê-lo por perto. Sempre era alguma coisa. Na realidade, era mais do que «alguma coisa», era fantástico. Era um bom presságio para o futuro.

– Mas quero que saibas, se eu alguma vez tiver de escolher... – disse-lhe Torkel, antes de abrir a porta do carro e de sair, sem terminar a frase. Também não precisava, Sebastian sabia perfeitamente quem sairia a perder se chegassem a essa situação, e não seria Vanja certamente.

O homem que recebeu Torkel e Sebastian na sala de estar mostrava todos os sinais de um homem destroçado. Parecia não mudar de roupa há alguns dias. Círculos escuros à volta dos olhos, barba por fazer. Falou em voz baixa e com a cabeça descaída sobre os ombros quando, apaticamente, esticou o braço e apontou para as poltronas da sala de estar demasiado mobilada. Less is more era claramente um lema que não chegara à casa dos Petrovic. As paredes estavam cobertas de quadros, pequenos espelhos e fotografias do chão até ao tecto, em cima de cada superfície plana havia uma toalha, um bibelô, um candelabro, uma taça ou um vaso com uma planta. Sebastian contou rapidamente onze sítios diferentes para se sentar, sem ter em conta os repousa-pés, colocados à frente das duas poltronas de pele, perto da televisão.

– Porque está a Riksmord envolvida? – questionou Gabriel Petrovic, ao sentar-se numa das quatro poltronas da sala, em frente a Sebastian e Torkel, que se instalaram no sofá. Torkel reflectiu um pouco e decidiu dizer a verdade. De qualquer maneira, seria revelado na conferência de imprensa mais tarde, nesse dia.

– Pensamos que o seu filho possa ter sido vítima de um assassino em série. Talvez seja a segunda vítima.

– Quem foi a primeira?

– Uma mulher de Helsingborg. Patricia Andrén.

Gabriel abanou a cabeça, aparentemente o nome não lhe dizia nada. Inclinou-se para a frente e colocou a mão sobre uma de três pastas repletas que se encontravam em cima da mesa de centro.

– Arquivei tudo o que foi escrito sobre ele. Pensei que pudessem querer dar uma vista de olhos.

Sebastian estava prestes a perguntar porque haveriam de querer isso, mas deteve-se ao ver o olhar do homem.

Já vira aquele olhar antes.

Ao espelho, muito tempo depois da morte de Lily e Sabine. A tristeza sem fundo. A luta para conseguir funcionar como uma pessoa, para encontrar um motivo para sair da cama de manhã. Este era um homem que precisava de falar sobre o filho, e, por isso, Sebastian limitou-se a assentir silenciosamente com a cabeça.

– O Miro era um bom rapaz – continuou Gabriel, ao abrir a primeira página de uma das pastas. – Não devem acreditar naquilo que viram na televisão.

– Eu não o vi na televisão – respondeu Sebastian.

– Eu também não – acrescentou Torkel quando Gabriel olhou para ele com um ar confuso.

– Ele representou um papel lá. Para ganhar. Só pensava em ganhar.

Como a página aberta da pasta parecia comprovar. Um recorte de jornal ligeiramente amarelado, a fotografia de uma equipa de futebol. Rapazes de nove, dez anos, com os braços à volta dos ombros uns dos outros, a sorrirem para a câmara. O título indicava uma vitória num torneio em Borås. Miroslav Petrovic como o responsável pela vitória.

– As coisas não foram fáceis para ele. A mãe morreu quando ele tinha nove anos – contou Gabriel, enquanto continuava a folhear a pasta. A maior parte dos recortes eram sobre futebol, mas mais tarde parecia que o filho se interessara por desportos individuais também. Ténis e esqui. – A escola corria mais ou menos. Mas era um bom rapaz. Nunca se envolvera em drogas ou gangues e essas merdas. Treinava muito.

Sebastian lançou um olhar a Torkel, que esperava que transmitisse a pergunta de por quanto mais tempo iriam permitir a viagem nostálgica do pai, e Torkel pareceu perceber a indicação. Tossiu ligeiramente.

– Sabe se ele alguma vez foi ameaçado?

– Constantemente – assentiu Gabriel. – Ou talvez não fossem mesmo ameaças, mas muito ódio. Muitas pessoas cruéis. Ele bloqueou a caixa de comentários do seu blogue há alguns meses.

– Alguma coisa em concreto o levou a fazê-lo?

– Fartou-se, simplesmente. Fartou-se de que toda a gente pensasse que ele era aquela pessoa que aparecera na televisão. Aquilo era um papel.

– Pois, já tinha dito.

– Para ganhar.

Gabriel deixou a mão repousar sobre uma página aberta. «De talento de Ulricehamn para a final nacional» lia-se no título e, por baixo, uma fotografia de um Miroslav de talvez treze anos, com equipamento branco de ténis e uma raquete na mão.

– Ele ganhou as regionais do Troféu Pato Donald e chegou à final em Båstad.

– Este jornalista com quem ele se ia encontrar... – começou Torkel, numa tentativa de voltar a dirigir a conversa para o presente.

– Sim?

– Ele disse mais alguma coisa sobre ele? Algo para além do nome?

Gabriel reflectiu um momento, antes de abanar a cabeça.

– Não.

– Nada sobre onde se iam encontrar?

– Algures em Ulricehamn. Ele ia pagar-lhe o almoço e depois iam para outro lado para tirar fotografias.

– Mas não sabe onde?

– Não.

– Acha que ele pode ter dado mais detalhes a outra pessoa? – tentou Torkel. – Colegas de trabalho, alguma namorada ou assim?

Gabriel voltou a abanar a cabeça.

– Ele não estava a trabalhar agora. Desistiu do liceu e conseguiu trabalho numa empresa de pinturas aqui na cidade, mas despediu-se para participar no Paradise Hotel.

– Não manteve o contacto com os colegas de trabalho?

– Não muito. Muitos deles eram mais velhos e... acho que tinham alguma inveja. O Miro ficou conhecido e passou a ganhar mais dinheiro.

– Como conseguia isso? – perguntou Sebastian, francamente espantado.

– Tinha acabado de assinar um contrato com o jornal Expressen, ia começar a escrever nos blogues de entretenimento deles. E também recebia algum dinheiro do Encher o Camião.

– O que é isso?

– Uma canção que ele e uma das raparigas do Paradise Hotel gravaram. Chegou a disco de platina – o orgulho na sua voz era evidente. Gabriel começou a folhear outra das pastas e encontrou o que procurava. Uma impressão da lista de tops de Maio. Algumas semanas antes de o trânsito na maior parte das cidades ficar completamente caótico, por causa das lentas e barulhentas carrinhas de estudantes bêbedos, a que chamavam «festas de finalistas».

Encher o Camião, de Mirre e Chiao, estava em terceiro lugar da lista daquela semana.

– Iam voltar ao estúdio e participar os dois numa tournée pela costa oeste, em Julho.

– Namorada? Outros amigos? – Voltou Torkel a tentar.

Gabriel abanou a cabeça, mais uma vez.

– Não tinha namorada, e a maior parte dos amigos já se foi embora daqui. Ou então perderam o contacto.

Não iam conseguir mais nada. Torkel pegou num cartão-de-visita e fê-lo deslizar por cima da mesa com o discurso habitual de que Gabriel podia ligar-lhe a qualquer hora, se precisasse de alguma coisa ou se se lembrasse de algo mais.

– Vamos dar uma conferência de imprensa – acrescentou Torkel, ao mesmo tempo que se levantaram do sofá. – Haverá alguma comoção, a imprensa irá provavelmente querer contactá-lo.

– Devo falar com eles? – perguntou Gabriel e parecia realmente querer uma resposta da parte dos visitantes.

– Faça como quiser – respondeu Torkel. – Algumas pessoas sentem-se melhor por poderem falar do assunto, outras não. Mas eles hão-de descobrir onde mora e virão até cá.

– Posso ir para casa do meu irmão. Ele mora em Uddevalla.

– Como disse, faça como quiser.

Apertaram as mãos, e Gabriel acompanhou-os até à porta.

– Era um bom rapaz – deteve-os Gabriel, quando já estavam a sair. – Portava-se bem, trabalhava, treinava... Podem referir isso na conferência de imprensa? Que ele era bom rapaz?

– Claro – assentiu Torkel.

Planeava fazê-lo, mas, fosse como fosse, não seria isso que apareceria nos jornais no dia seguinte. A imprensa seguia a sua própria dramaturgia nestes casos, e bons rapazes não vendiam tantos jornais e revistas como participantes de reality shows sexualmente promíscuos. Torkel fechou a porta, e deixaram o homem com as suas pastas e as suas memórias de que ninguém queria saber.


CHEGARAM, tal como Billy prometera, duas horas e catorze minutos depois de terem deixado Ulricehamn. A esquadra da polícia de Helsingborg ficava num edifício cinzento de dois andares, naquilo que melhor se podia descrever como uma zona industrial. Estacionaram o carro e entraram na recepção envidraçada. Estavam à espera deles, e o inspector Peter Berglund ia atendê-los imediatamente, anunciou a recepcionista, pedindo-lhes que a acompanhassem.

Foram escoltados rapidamente para dentro do edifício, seguiram por alguns corredores sem graça e subiram uma escada antes de chegarem a uma sala de reuniões fria e pequena. A sala precisava urgentemente de ser modernizada, tal como o homem que esperava por eles. A cara de Peter Berglund era do mesmo tom que as paredes cinzento-pálidas da sala. Uma mancha de café na camisa amarrotada, assim como na pequena mesa de madeira, e Vanja sentiu também um leve cheiro azedo a álcool do dia anterior quando cumprimentou o homem. Berglund parecia ter bem mais do que os cinquenta e cinco anos que os dados da sua ficha pessoal indicavam que teria. O seu estilo de vida estava a deixar marcas, assumiu Vanja.

– A viagem até cá correu bem? – perguntou num forte dialecto, sem parecer muito interessado na resposta.

– Sim, obrigada – respondeu Vanja secamente e sentou-se. Billy sentou-se ao seu lado e pegou no computador portátil para tomar notas. Vanja tomou o comando da conversa, como habitualmente.

– Precisamos de um briefing sobre o caso da Patricia Andrén. Temos um homicídio praticamente idêntico em Ulricehamn que...

– Sim, ouvi falar disso – interrompeu Berglund. – Mas o nosso caso está praticamente resolvido. Temos um suspeito.

Vanja olhou com espanto para o homem à sua frente, que agora parecia querer evidenciar a sua falta de interesse, deixando o olhar deambular pela janela até ao parque de estacionamento, lá fora, ao mesmo tempo que se inclinou na cadeira e apertou as mãos por cima da barriga demasiado extensa.

– O vosso suspeito está detido? – questionou Vanja.

– Sim, o presumível suspeito.

– Então como poderia ele ter cometido um homicídio em Ulricehamn na terça-feira passada?

– Não podia.

– Os indícios apontam para que tenha sido o mesmo perpetrador – disse Vanja e sentiu que começava a ficar verdadeiramente irritada com a atitude de Berglund. – Falou sequer com os colegas de Ulricehamn?

– Não, estou concentrado no meu caso. É esse o meu trabalho – respondeu Berglund secamente. – É para isso que me pagam.

Vanja deu por si a desejar que Ursula tivesse vindo com eles.

– É aquele namorado, o Stefan Andersson, a quem se está a referir? – acrescentou Billy e voltou a fechar o portátil. Não parecia vir grande coisa digna de nota da parte do homem que tinham à frente.

– Ex-noivo, para ser mais preciso – assentiu Berglund, confiante, para Billy. – É bom ser-se preciso quando se é polícia, não é verdade?

Billy olhou para Vanja. Não podia acreditar no que estava a ouvir. Aproveitava-se de uma oportunidade ridícula para os criticar?

– É o Stefan Andersson a quem se refere? – repetiu Billy enfaticamente. Começava a ficar tão irritado como Vanja.

– Exactamente. Ele já a tinha agredido fisicamente antes e ameaçado matá-la. Tinha-a insultado de tudo, de puta a cretina. Há testemunhas que o corroboram. Não tem álibi – inclinou-se para a frente como que para reforçar a sua convicção. – Quase dá para perceber, pela maneira como ela falava dele na televisão. Era uma verdadeira víbora, se querem saber a minha opinião – Berglund fez uma pausa e recostou-se novamente na cadeira, que rangeu com o peso do corpo e da atitude. – Por isso temos tudo sob controlo. Sinceramente não sei o que vocês, de Estocolmo, poderiam acrescentar por agora.

– Algum trabalho de investigação minimamente profissional, talvez?

Vanja inclinou-se para a frente. Estava a ferver por dentro. Tinha consciência de que, por vezes, poderiam deparar-se com incompetência e resistência, mas nunca chegara a este nível. Contudo, se ele queria jogar duro, ela também o sabia fazer. Aprendera com a melhor.

– O relatório que recebemos é dos piores que já li em toda a minha vida. Além disso, é impossível o noivo ter assassinado alguém em Ulricehamn – lançou um olhar fulminante a Berglund. – Mas talvez também tenha resposta para isso?

Berglund fitou-a com hostilidade e encolheu os ombros.

– Não deve ter sido ele.

Billy olhou para Vanja. Costumava ter um rastilho mais longo, mas agora até ele estava pronto para a luta.

– Talvez não saiba como funciona a Riksmord – começou por dizer, as palavras como balas. – Quando somos chamados, tomamos conta da investigação. Podemos trabalhar consigo ou dispensá-lo. Fica ao seu critério.

Berglund não respondeu. Cruzou os braços por cima do peito, num gesto que marcava claramente que escolhera a última alternativa. Com algum esforço, lançou um olhar provocador a Billy, que, subitamente, pensou que o cheiro a álcool que também ele sentira talvez não fosse da véspera.

– Não, não fica. – Vanja fartara-se. – Não fica nada ao seu critério. Pode sair.

– Eu não vos chamei. Isto continua a ser o meu caso. Digam o que disserem!

Com isso, levantou-se em esforço e deixou a sala iradamente. Bateu a porta com força ao sair. Vanja e Billy olharam um para o outro.

– Ele ainda estava bêbado, não estava? – comentou Billy.

Vanja assentiu e teve dificuldade em evitar começar a rir-se.

– Isto bate o recorde das más transferências – comentou ele.

– O recorde mundial! – respondeu Vanja e sorriu.

Vinte minutos mais tarde, estavam os dois sentados no gabinete do chefe da polícia, a ouvir desculpas arrependidas.

Peter Berglund não estava bem.

A mulher deixara-o.

Os filhos haviam cortado o contacto com ele.

Ele estava disposto a vir pedir-lhes desculpas.

O chefe da polícia era um homem pequeno e nervoso, que não emanava autoridade absolutamente nenhuma. Parecia mais preocupado com a possibilidade de Vanja e Billy se queixarem dele do que com o facto de um dos seus inspectores ser alcoólico e ter negligenciado completamente uma investigação de homicídio.

– Mas, se ele está assim tão mal, porque o pôs a investigar um homicídio?

A pergunta parecia provocar dores físicas ao chefe da polícia. Começou a contorcer-se e a transpirar ao mesmo tempo.

– Pode ter sido erro meu, mas não fazia ideia de que...

– De que ele bebe? – atirou Vanja. Não o deixaria sair desta tão facilmente. Levantara-se demasiado cedo e viajara para demasiado longe para estar ali sentada a ouvir tretas. – Demorámos dois minutos a percebê-lo. Se eu for ter com a recepcionista e com o pessoal das limpezas, aposto que também sabem.

O chefe da polícia baixou o olhar para a mesa, envergonhado.

– Não é assim tão simples. Já discuti a situação com o sindicato. Mas ele é representante sindical, e o ónus da prova... – Engoliu e endireitou-se um pouco na cadeira. – Não é assim tão simples tirá-lo daqui.

– Coitadinho de si – respondeu Vanja, fria como gelo. – Vamos levar esta questão a um nível superior.

– Será realmente necessário? – questionou o homem à sua frente, com ar de quem estava com falta de ar aguda. – Vão ter toda a ajuda de que precisarem. Foi um erro, estou de acordo, mas há muitas vontades diferentes nesta esquadra.

– É por isso que existem chefes – constatou Vanja secamente.

– Vamos praticamente ter de recomeçar a investigação – acrescentou Billy, mais controlado, mas tão zangado como Vanja. – Precisamos de ver cada interrogatório. Cada relatório. Tudo. Compreende quanto tempo vamos perder com isto?

O chefe da polícia assentiu, sem energia.

– Compreendo. Vou reunir todo o material. – Esticou a mão para o telefone e levantou o auscultador. – Vou ver se o Berglund me pode ajudar.

Vanja não podia acreditar no que estava a ouvir. Inclinou-se para a frente e fixou os olhos nos dele.

– Não. Vai excluir o Berglund e certificar-se pessoalmente de que temos todo o material. Agora. Não queremos ver esse cretino outra vez. Nunca mais.

O chefe da polícia voltou a pousar o auscultador, com a mão a tremer de nervos.

– Claro, claro. Não sei onde tinha a cabeça.

Uma chávena de café para cada um mais tarde, o material chegou à sala acinzentada do piso superior. Estava tudo misturado dentro de uma caixa de mudanças. Em cima, Billy encontrou o relatório da autópsia. Vinha da medicina legal de Lund, feito pela médica-chefe, Frida Hansson, que Billy sabia ser competente e cuidadosa. Começou a ler o relatório em voz alta para Vanja. Focou-se no essencial.

– Provavelmente morta 12 a 16 horas antes de ter sido encontrada de manhã. Causa da morte: penetração violenta da testa.

– Um tiro?

Billy abanou a cabeça.

– Não. Não há pólvora, ferimento de saída ou bala no crânio. – Levantou o olhar dos papéis. – Ela acha que o assassino utilizou uma pistola de ar comprimido. Os ferimentos e o diâmetro da ferida de entrada apontam para isso.

– Uma pistola de ar comprimido?

– Daquelas que se utilizam para anestesiar cavalos e gado nos matadouros. Um pistão de aço é disparado por pressão de ar ou pólvora – fez um efeito sonoro para ilustrar. – Puff! Directamente na testa!

Vanja fez uma careta ao imaginar a cena macabra.

– Marcas claras de algemas – continuou Billy. – Patricia deve ter lutado para se soltar, tinha nódoas negras e ferimentos de pressão à volta dos pulsos. E isto é muito interessante... – Levantou o olhar para Vanja, que vasculhava a caixa de mudanças. – Tinha vestígios de benzodiazepinas no estômago.

– Drogada.

– Não conheço os valores de referência, mas é uma dose substancial. Provavelmente suficiente para a anestesiar ou, pelo menos, para a tornar passiva. A Ursula sabe de certeza.

Vanja retirou um saco de provas do fundo da caixa, identificado com uma data, mas sem número de registo. Era o teste que aparecera preso às costas de Patricia. Vanja levantou-o para Billy.

– Estão aqui provas. Que caos de merda. Alguém minimamente competente vai ter de nos ajudar a catalogar isto, caso contrário teremos de ficar aqui uma eternidade.

Pousou o teste ensanguentado em cima da mesa. No topo da primeira página estava escrito «13/60», a vermelho. Vanja inclinou-se para a frente e leu a primeira pergunta em voz alta.

– A que corresponde o acrónimo OTAN?

Billy encolheu os ombros.

– Não sei. Tu sabes?

– Organização do Tratado do Atlântico Norte.

– Porque haveria de saber isso? – perguntou Billy, ao mesmo tempo que levantou o saco com o teste. – Olha para isto: A que categoria de palavras pertence blá, blá, blá? O que significa escalfar? Como se chamava a embarcação principal de Cristóvão Colombo? – virou o saco para ver o outro lado da folha. – Quem foi coroado rei da Suécia depois de Óscar I?

Voltou a pousar o saco em cima da mesa e virou-se para Vanja.

– Sinceramente, porque haveria de saber isto? Posso procurar as respostas todas no Google em menos de dez segundos.

– Chama-se cultura geral.

– Até percebia quando éramos obrigados a ir a correr para casa e pegar numa enciclopédia para descobrir as respostas, mas agora? Agora são só conhecimentos inúteis.

– Acho que nem toda a gente concordaria que existe isso de conhecimentos inúteis – respondeu Vanja divertida. Billy estava lançado. Ficou com a sensação de que ele simplesmente não conseguira acertar em muitas das questões que acabara de ler.

– Caguei para isso – retorquiu Billy. – Ao menos agora já não precisamos de especular sobre se é o mesmo suspeito. As perguntas são idênticas às que encontrámos nas costas do Petrovic.

Vanja assentiu em silêncio, só podia concordar com ele.

– Se puseres o Torkel a par dos avanços, eu continuo aqui a tentar organizar esta confusão. Envia-lhe o teste e o relatório da autópsia.

– Claro – respondeu Billy, pegou nos papéis e saiu rapidamente da sala.

Vanja continuou a remexer no conteúdo da caixa de mudanças, a retirar e tentar colocar tudo numa ordem rudimentar. Havia várias coisas de interesse.

Um interrogatório com uma Ragnhild Torsson, do infantário onde o filho de cinco anos de Patricia, Max, andava. Fora ela quem contactara a polícia primeiro. Quando Patricia não aparecera para buscar a criança até às sete da tarde, Ragnhild levara-a para sua casa e telefonara à polícia. Na manhã seguinte, fora lançado um alerta de busca, e uma patrulha da polícia fora enviada ao apartamento de Patricia e ao salão de cabeleireiro onde trabalhava. Nem vizinhos nem colegas de trabalho a tinham visto.

Quando encontraram um corpo na escola Tollsjöskolan, relacionaram o desaparecimento com a descoberta. Até então, o trabalho fora profissional e eficiente. Os relatórios dos agentes policiais estavam relativamente bem escritos e davam um bom panorama geral. Ainda havia esperança para a polícia de Helsingborg. Fora quando Berglund tomara conta da investigação que tudo começara a correr mal. Este dirigira imediatamente as suspeitas para Stefan Andersson. Os relatórios tornaram-se esporádicos e mal feitos. Faltavam interrogatórios cuidados aos colegas de trabalho, pessoal do infantário e amigos. Todos os esforços haviam sido direccionados para uma confissão de Stefan. Este negara posteriormente qualquer crime.

A fixação desmedida de Berglund em Stefan Andersson levou Vanja a desconfiar de que o primeiro se teria cruzado com o segundo no âmbito das suas funções. Um conflito, uma custódia difícil, algo pessoal. Não havia outra explicação para a convicção cega que Berglund demonstrava.

E assim era. Stefan Andersson, de trinta e três anos, trabalhador da construção civil, de baixa médica, já era conhecido da polícia. Várias condenações por maus-tratos e ameaças. Patricia conhecera-o aos dezanove anos, e haviam iniciado uma relação complicada, que terminara no ano antes de Patricia ter concorrido ao programa Mãe Solteira Procura. Já no programa, Patricia revelara, aparentemente em lágrimas, que Stefan a maltratara, tanto física como psicologicamente, durante vários anos. Fora tempo de antena bom e comovente, que, conforme toda a dramaturgia dos media, levara a uma atenção fugaz e passageira, sobre a problemática da violência nas relações de intimidade, acima de tudo nos tablóides.

Também levara a que Stefan, por várias vezes, tivesse atacado Patricia fisicamente, a quem agora acusava de o haver difamado e de lhe ter estragado a vida.

Oito meses depois da emissão do programa, chegara finalmente a ordem de proibição de contacto.

Parecia ter resultado, e as chamadas para a polícia haviam diminuído e, eventualmente, terminado completamente. A própria Patricia conseguira capitalizar a sua fama recente e começara a escrever em blogues e a ganhar visibilidade em diferentes contextos. Aparecera como convidada em alguns talk shows e programas de debate, onde continuara a falar sobre Stefan e sobre a sua luta para se livrar dele. Depois do Verão, esperava-se que aparecesse a integrar uma dupla de apresentadores, numa série sobre co-dependência, e a participar no programa Estrelas de Reality Shows na Quinta.

Um vencedor e um vencido, na sociedade actualmente obcecada pelos media, pensou Vanja. Compreendia perfeitamente o motivo pelo qual Berglund suspeitara do homem. Mas os interrogatórios contavam a história de um polícia que deixara as suspeitas tornarem-se convicções, sem qualquer prova concreta.

Não obstante, havia uma coisa pela qual tinha de agradecer a Berglund: conseguira manter o nome de Patricia longe da imprensa. Fora uma das suas estratégias nos interrogatórios a Stefan. «Se eu contar a alguém que se trata da Patricia, a tua vida está completamente acabada. Vais ser condenado por toda a gente, independentemente de haver acusação ou julgamento», expressara em vários interrogatórios. Mas era a única coisa que tinha a agradecer a Berglund, pensou, quando olhou novamente para a confusão que estava em cima da mesa, à sua frente. O facto de terem evitado o frenesi mediático até agora. O facto de ter sido encontrada na véspera do feriado do solstício de Verão e de entrar de férias depois do fim-de-semana também ajudara. Ninguém dera logo pela sua falta.

Para além de Max.

Vanja nem queria pensar nisso.

Billy regressou. Não havia nada de novo a reportar de Ulricehamn, mas iriam dar uma conferência de imprensa dali a pouco tempo, por isso, era apenas uma questão de tempo até que a investigação ficasse sob as luzes dos holofotes. E não, Torkel não ficara nada satisfeito com a ligação dos famosos...

Vanja e Billy concentraram-se. Tinham de ficar com uma visão geral do caso melhor do que aquela que o material em cima da mesa lhes podia dar e decidiram começar pela professora do infantário. Iam tentar fazer o máximo antes da conferência de imprensa. A memória das pessoas era afectada pelas coisas que liam e ouviam, e queriam chegar a Ragnhild antes das teorias dos jornais.


O INFANTÁRIO A Joaninha ficava a quinze minutos da esquadra da polícia e consistia numa fileira amarelo-clara, de um piso, com dois pavilhões e um grande jardim. As crianças estavam no exterior, brincavam nas caixas de areia, andavam nos baloiços e trepavam pelos escorregas enormes, colocados no meio do recreio. O ar estava repleto de vozes felizes e excitadas de crianças. Billy e Vanja apresentaram-se a uma rapariga de aproximadamente vinte anos, com duas meninas pequenas penduradas nas pernas, e explicaram o motivo da sua visita. Ragnhild Torsson estava numa reunião de planeamento. Era importante? Sim, era.

Foram acompanhados até ao interior do edifício e encaminhados para um pequeno escritório. Passados alguns minutos, chegou Ragnhild, uma mulher de sardas, à volta dos trinta e cinco anos, com cabelo ruivo, encaracolado, vestida de calças de ganga e uma camisola azul da Adidas. Fechou a porta atrás de si e sentou-se.

– Já sabem mais alguma coisa? – perguntou, com uma mistura de preocupação e curiosidade na voz, depois de se terem apresentado novamente.

– Não, mas gostaríamos de lhe fazer mais umas perguntas – respondeu Vanja.

– Claro, claro – respondeu Ragnhild. – É tudo tão terrível. – Ragnhild baixou a voz, da forma como as pessoas empáticas faziam, quando eram lembradas de tragédias.

Transmitia uma imagem calma, composta, quase maternal. Vanja deu por si a sentir-se agradecida por ser Ragnhild quem estivera com Max, quando os serviços sociais tinham vindo e relatado os terríveis acontecimentos.

– Como está o Max agora? – perguntou.

Ragnhild encolheu os ombros, de forma resignada, e suspirou levemente.

– É difícil dizer. Ele tem cinco anos. Não sabe muito bem o que é a morte. Mas claro que sente falta da mãe.

– Claro...

– Está a viver com uma família de acolhimento temporário, mas os serviços sociais querem que continue a vir aqui, algumas horas por dia. Para lhe dar alguma continuidade. Deve estar quase a chegar, se quiserem falar com ele.

Vanja assentiu e olhou para Billy, com ar inquiridor. Deveriam falar com Max? Uma criança de cinco anos. Não tinham formação em interrogatórios a crianças.

– Obrigada, talvez sim – respondeu Vanja. – Lembra-se de algo que o Max tenha dito, que nos possa ajudar? – continuou. – Seja o que for.

– Não. Já pensei nisso desde que... que aconteceu, mas... não, nada.

– Pode falar-nos sobre o dia em que a Patricia desapareceu? Algo de particular em que tenha pensado? – começou Billy por um novo caminho.

– Não, a Patricia vinha buscá-lo um pouco mais tarde do que o habitual. Ela costuma vir por volta das quatro, mas naquele dia pensava vir às cinco. Foi a única coisa.

– E disse porquê?

– Não, mas falou mais com a Yasmin quando o deixou cá, de manhã. Talvez ela saiba.

Vanja olhou rapidamente para a investigação de Berglund. Ninguém de nome Yasmin fora interrogado, que se lembrasse.

– Yasmin quê? – perguntou e folheou o material cheio de falhas.

– Asghari. Posso ir chamá-la, se quiserem.

– Sim, por favor.

Ragnhild levantou-se e saiu da sala. Ouviu-se a voz dela no corredor, lá fora, quando chamou Yasmin.

Billy inclinou-se para trás na cadeira e olhou para Vanja. Estava a pensar no mesmo que ela.

– O que achas? Devemos falar com o Max? – perguntou.

– Não sei, talvez muito rapidamente, dizer só olá. Criar uma pequena relação que possamos aprofundar mais tarde. O que te parece? – respondeu Vanja.

– Não sei. Acho que mais vale perguntarmos aos serviços sociais o que eles acham ser melhor.

– Porra, imagina teres cinco anos e acordares para isto. A mãe assassinada e o pai proibido de se aproximar. Põe os nossos problemas pessoais numa perspectiva um bocado diferente.

Billy começou por não responder. Transpareceu algo no olhar que ela teve dificuldade em interpretar. A sua voz tornou-se mais contida.

– Problemas pessoais são problemas pessoais, independentemente da perspectiva.

Vanja olhou-o com um certo espanto.

– Tu és recém-casado, que problemas podes ter? Demasiado sexo?

A piada não caiu bem. Viu algo que não era riso no olhar de Billy. Preocupação. Havia decididamente algo que ele não estava a contar.

Vanja não teve tempo para pensar mais sobre o assunto. Ragnhild abriu a porta e trazia consigo uma rapariga tatuada, de cabelo curto, por volta dos vinte e cinco anos. Usava óculos e uma camisa aos quadrados, por cima de uma saia pelos joelhos.

– Esta é a Yasmin.

Apertaram as mãos, e Yasmin sentou-se.

– Quero começar por lhe perguntar se já foi interrogada antes?

– Não, não estava a trabalhar quando a polícia cá veio, e depois não disseram mais nada. Achei um pouco estranho.

Vanja conseguiu evitar o suspiro, mas não o pensamento. Berglund nem sequer interrogara a última pessoa a ter visto Patricia com vida. Um pouco estranho não chegava nem aos calcanhares do problema. Era prevaricação, porra!

– Então ainda bem que o estamos a fazer agora – conseguiu Vanja dizer e tentou soar controlada.

Quinze minutos mais tarde, estavam sentados no carro, com Torkel no sistema de alta-voz do telefone. Os dois focados, mas empolgados.

Tinham feito um primeiro avanço.

Sven Cato voltara a aparecer.

Segundo Yasmin, fora com ele que Patricia combinara encontrar-se. Era por isso que iria buscar Max um pouco mais tarde. Ia escrever um retrato. No jornal Sydsvenskan. Contara-o a Yasmin, orgulhosa, no minuto antes de deixar o infantário, para nunca mais ser vista. Yasmin estava segura do que dizia.

– Okay, o mesmo procedimento que com o Petrovic então – disse Torkel, com voz séria. – Sabem onde eles se encontraram?

Vanja abanou a cabeça, apesar de ele não o conseguir ver.

– Não, os responsáveis cá de baixo perderam o controlo de tudo. Vamos ter de fazer tudo desde o início. Infelizmente.

– Compreendo – suspirou Torkel, mas tentou ser construtivo. – Vou ligar ao Christiansson, em Malmö, para ver se ele vos pode dar apoio. Passamos por cima da equipa de Helsingborg.

– O que se passa com a conferência de imprensa? – perguntou Billy.

– Vai acontecer daqui a meia hora – era impossível o cansaço na voz de Torkel passar despercebido. Sabiam ambos quanto ele detestava o lado mais público do trabalho. – Falamos mais logo.

– Boa sorte – respondeu-lhe Vanja.

Billy desligou o telemóvel e inspirou profundamente.

– Okay, então vamos dividir-nos – disse ele. – Eu fico com as listas dos telemóveis, o computador dela, os mails, essas merdas. Tu ficas com os colegas de trabalho e os vizinhos. O ex-namorado também, se tiveres tempo.

Vanja assentiu. Esperou que Billy ligasse o motor do carro e que saíssem dali, mas ele permaneceu imóvel, inclinado para trás, com a cabeça encostada ao apoio do assento. Ficou com a sensação de que queria dizer algo.

– Senti falta disto – acabou por dizer. – Só tu e eu. Como nos bons velhos tempos.

Vanja sorriu, um sorriso sincero e satisfeito. O facto de as coisas estarem como estavam, ela assumia grande parte da culpa por isso. Fora ela que, num momento de fraqueza, magoara Billy.

– Tenho pena de nos termos afastado – começou.

– A culpa não é só tua – interrompeu ele.

– Não no início – objectou ela, apesar de, no fundo, concordar com ele. Desde que My aparecera, Billy mudara. A relação deles mudara. Agora já praticamente nunca se encontravam fora do trabalho. Talvez fosse perfeitamente natural quando alguém se apaixonava. O que sabia ela? Sempre pusera o trabalho e os colegas acima de tudo.

– Amigos outra vez? – perguntou-lhe e estendeu a mão na direcção dele.

– Sempre fomos amigos – respondeu Billy e apertou-lha. – Vou apenas tentar ser melhor a demonstrá-lo.


TORKEL ESTAVA SENTADO na sala de conferências, onde tinham acabado por juntar todas as mesas em forma de ilha, no meio da sala, como costumavam fazer, como gostavam de estar. Tinham conseguido construir uma linha temporal dos últimos dias de Petrovic, juntamente com imagens do local do crime. Daí a pouco tempo, teriam mais uma. A de Patricia. Torkel receava que aparecessem mais. Trabalhava naquilo há tempo suficiente para saber que Sebastian provavelmente tinha razão. O perpetrador iria seguramente matar outra vez.

Tinha algo a provar.

Queria dizer algo.

O modo de operar era demasiado calculado para qualquer outra explicação. Um impulso daqueles não desaparecia. Pelo contrário, a atenção costumava desencadeá-lo ainda mais, dar-lhe uma sensação de que as pessoas o ouviam.

De sucesso.

Sucesso alimenta sucesso.

Era isso que preocupava Torkel. Não a conferência de imprensa em si, mas a comoção que geraria. Será que ia provocar o assassino? Acelerar a sua vontade de atacar outra vez? Talvez, mas na verdade não havia nada que pudesse fazer em relação a isso. Mais cedo ou mais tarde, a imprensa iria acabar por descobrir que, e como, os homicídios estavam relacionados, e, com uma certa abertura, poderia, pelo menos, tentar controlar o fluxo de informação.

Sebastian entrou na sala. A mesma expressão despreocupada de sempre. De repente, Torkel sentiu-se irritado com isso. Depois de tudo o que acontecera, depois de saber quão próximo estivera de ser afastado da equipa da Riksmord para sempre, conseguia, mesmo assim, vaguear despreocupado.

– Viste a Eva? – perguntou e sentou-se no canto da mesa mais próxima.

– Não, porquê?

– Estava a pensar perguntar-lhe se quer jantar comigo hoje.

– Ela é casada.

– Então não janta, é isso?

Torkel não teve paciência para responder. Reuniu os seus apontamentos. Costumava escrever algumas palavras de apoio como segurança. Por momentos, pensara manter a identidade das vítimas em segredo, mas rapidamente pusera essa ideia de lado. Precisavam de descobrir onde Andrén e Petrovic haviam estado nas suas últimas horas de vida, onde se tinham encontrado com Sven Cato. Não o poderiam descobrir se não divulgassem os seus nomes. E a imprensa descobriria de qualquer maneira. Era um pequeno milagre ainda não terem descoberto.

– Estás preparado? – perguntou Sebastian, indiferente. – Está cá o teu preferido.

– Eu tenho um preferido?

– O Weber.

Axel Weber, o repórter criminal do Expressen e um verdadeiro cão de caça que costumava descobrir a maior parte das coisas que Torkel preferia manter em segredo. Demasiadas vezes, telefonava com dados que descobrira e que queria que Torkel confirmasse, apenas para ouvir a resposta «sem comentários», que ambos sabiam que era o equivalente a uma confirmação.

Porque é que o jornal não lhe podia ter dado férias mais cedo? Enviado um estagiário acabado de sair da faculdade em vez dele. Alguém mais fácil de contornar.

Esperanças vãs.

Torkel suspirou, levantou-se e vestiu o blazer. Estava quase na hora.

– O que achas que lhe vão chamar? – continuou Sebastian calmamente.

– Quem?

– Os tablóides. Costumam adorar um bom título. Aposto em «Assassino de pseudocelebridades».

Torkel bufou.

– Não estou mesmo nada interessado nisso.

– Eu sei, mas é divertido tentar adivinhar. É o que as vítimas têm mais claramente em comum. Para além de não conseguirem responder a sessenta perguntas ao nível do Trivial Pursuit.

– Esse pormenor é para manter afastado da imprensa o máximo tempo possível – respondeu Torkel, num tom de aviso impossível de interpretar mal. Não que Sebastian tivesse o hábito de passar informações à imprensa, mas nunca era demais recordar.

– Também não é muito bom. «Assassino da cultura geral»... É difícil, não soa bem– continuou Sebastian. Torkel não parecia minimamente divertido.

– Pára com isso Sebastian, não tem graça nenhuma.

– Podes perguntar ao Weber o que lhe vão chamar.

Torkel olhou para o relógio, cansado. Cinco minutos até estar no local. Saiu para o corredor, e Sebastian seguiu-o. A conferência de imprensa teria lugar na sala de reuniões directamente atrás da recepção. Quando passaram pela cozinha, Ursula foi ao seu encontro. Torkel viu pela sua expressão que tinha novidades.

– Recebi um relatório preliminar do médico-legista de Gotemburgo – disse e levantou um maço de papéis. – É praticamente igual ao da Patricia. Benzodiazepinas no estômago, uma dose um pouco mais alta apenas, e a mesma penetração mortal na testa.

Sebastian tivera tempo de os alcançar.

– Pistola pneumática? – perguntou.

Ursula respondeu rapidamente sem precisar de consultar os papéis.

– O médico-legista não quer especular sobre isso, mas excluiu arma de fogo. Acho que se vai provar que o Hansson de Lund tem razão, quando eu própria avaliar os ferimentos. O mais provável é ser uma pistola pneumática.

Sebastian assentiu levemente e pegou no relatório que Ursula tinha nas mãos.

– Encaixa no perfil. Ele vê-se a si próprio como superior às vítimas – disse Sebastian. – Como se elas fossem criaturas.

– Temos alguma maneira de descobrir a origem da pistola? – continuou Torkel.

Ursula abanou a cabeça.

– Não há registos ou licenças, mas podemos ver se conseguimos descobrir de que modelo se trata, sabemos o diâmetro do cilindro.

– Sim, obrigado. Faz isso. – Torkel olhou para o relógio novamente. – Tenho de ir para a conferência agora, falamos mais logo – disse e começou a andar outra vez. Um pouco mais depressa, mas sem correr. Não queria estar ofegante quando chegasse.

Tinha de parecer ter tudo sob controlo.

Parecer estar apenas alguns passos atrás do assassino.

Mesmo que não fosse, de todo, verdade.

Um murmúrio ligeiramente expectante esperava-o ao entrar na sala. Não estava lá muita gente. Seis pessoas, para ser mais exacto. Fez um gesto de reconhecimento com a cabeça para dois deles. Axel Weber, como sempre a meio da primeira fila, com o seu gravador na mão, e, atrás dele, alguém do Göteborgs-Posten, de cujo nome Torkel não se recordava agora. Visén, Wilén, Widén, qualquer coisa assim.

Os outros eram provavelmente recursos locais.

As vítimas ainda eram corpos anónimos. Haveria mais jornalistas da próxima vez. Consideravelmente mais. Pessoas conhecidas atraíam sempre um grande público, quer estivessem vivas ou mortas, aprendera-o ao longo dos anos. A tendência também se tornava mais clara a cada ano que passava. O mundo moderno parecia inundado daqueles que dedicavam a vida a ser vistos, que construíam a sua existência e a sua identidade com base em cliques, gostos e seguidores. Torkel não compreendia.

Tanto Wilma como Elin tinham contas aqui e ali, sabia-o. Mas fazia os possíveis para não criticar, ou questionar, as suas vidas nas redes sociais. Quando é que um cinquentão alguma vez achou que aquilo que os adolescentes fazem era normal ou importante? Bastava-lhe pensar no seu próprio crescimento, nos seus próprios pais.

Torkel aproximou-se da pequena mesa que alguém colocara ali, puxou de uma cadeira e sentou-se. Fora ele quem pedira uma mesa. Achava que parecia mais natural estar sentado do que de pé, à frente dos jornalistas reunidos. Mais fácil manter a calma, parecia-lhe.

O murmúrio terminou.

Como fazia sempre inicialmente, agradeceu a presença de todos, apresentou-se como chefe da comissão da Riksmord e começou. Tentou manter o discurso o mais curto e conciso possível.

– Temos, neste momento, dois homicídios, que julgamos estarem relacionados. Um aqui em Ulricehamn, que teve lugar na terça-feira passada, e outro há nove dias, em Helsingborg. Ambas as vítimas foram encontradas numa sala de aula, nas respectivas localidades.

– Em salas de aula? Tanto aqui em Ulricehamn como em Helsingborg? – ouviu-se em dialecto forte a uma mulher mais nova, de vestido azul, que estava sentada na ponta da segunda fila. Tinha um smartphone na mão e parecia estar a filmar a reunião. Torkel virou-se para ela. Com o olhar sólido e seguro, como aprendera que funcionava.

– Exactamente. Sabemos que as duas vítimas, pouco antes dos homicídios, foram contactadas por alguém que se fez passar por jornalista. Também combinaram um encontro com esta pessoa e, pouco depois disso, foram assassinadas.

– Quanto tempo depois? – perguntou um homem careca, que estava encostado à parede ao fundo da sala.

– No mesmo dia. Mas só foram encontradas no dia seguinte – precisou Torkel.

– O que sabem sobre este jornalista? – veio do Göteborgs-Posten.

– Não acreditamos que seja jornalista – Torkel hesitou. Entre as suas palavras de apoio escrevera Sven Cato. Mas deveria realmente divulgar o nome? Isso serviria de aviso a todas as potenciais futuras vítimas, mas também revelaria ao homicida quanto sabiam. Levá-lo-ia a mudar de nome, talvez até de método de actuação. Tornar-se-ia mais cuidadoso. Mas, se mais jovens morressem, atraídos por Sven Cato, e Torkel não tivesse dito nada, teria problemas e, sinceramente, seria difícil viver com isso.

– Nos dois casos apresentou-se como Sven Cato – continuou Torkel, depois da pequena pausa dramática. Ouviu todos escreverem o nome rapidamente em papel ou em computadores e iPads. Dali a pouco tempo, seria do conhecimento público. O ligeiro desinteresse contido que anteriormente pairara sobre o grupo desaparecera subitamente.

– Sabem mais alguma coisa para além do nome? – perguntou o vestido azul.

– Não. Mas é um pseudónimo, isso sabemos. Queremos ser informados se alguém tiver sido contactado por uma pessoa que tenha utilizado esse nome ou se o tiver ouvido noutro contexto.

Torkel sentiu a última informação que deu ser devorada pelo grupo, cada vez mais concentrado.

Dera-lhes a manchete.

Um aviso em letras maiúsculas.

Alguém foi contactado por Sven Cato?

Só faltava saberem o que excederia aquela informação, dali a nada.

– Acham que ele vai atacar outra vez? – perguntou uma mulher atrás do vestido azul. Camisa branca e saia.

– Não queremos especular sobre isso – respondeu, sabendo que era exactamente isso a que dava azo, ao dizê-lo.

A voz de Weber ouviu-se pela primeira vez. Grave e relaxada. Um homem que sabia que não precisava de levantar a voz para ser ouvido.

– O que sabem sobre as vítimas? Há alguma ligação entre ambas? – perguntou.

Torkel virou-se para Weber. Tentou fazer que a resposta soasse tão policial quanto possível.

– Até agora, a única ligação que encontrámos foi que ambas as vítimas participaram em diferentes programas de televisão.

– Que programas de televisão?

– Em reality shows.

– Reality shows? – ouviu-se a um Weber surpreendido, ao mesmo tempo que o resto da sala caiu em silêncio. Todos se aperceberam daquilo que o chefe da Riksmord lhes acabava de dar.

Um folhetim de Verão.

Dezenas de artigos.

Lançaram-se sobre a informação. Todos. Vestido azul, careca, GP, Weber, camisa branca e saia e também o que ainda não dissera nada.

– Que reality shows?

– Quem são?

– Pode dar-nos nomes?

– Quem?

As perguntas chegavam de todos os lados. O vestido azul até se levantou da cadeira. Torkel tentou acalmá-los com as duas mãos. Não correu muito bem. Mas não esperava outra coisa.

Passara o testemunho.

Agora o show era deles.

Os nomes Miroslav Petrovic e Patricia Andrén, juntamente com Paradise Hotel e Mãe Solteira Procura, passaram rapidamente para o domínio público. Seguir-se-iam as fotografias. Quantidades imensas de fotografias. Todas com pouca roupa. De seguida, as especulações. Quem e porquê?

As teorias. Quem era Sven Cato?

As pistas e os avanços da polícia, verdadeiros e falsos. As entrevistas. Os retratos de fundo. (Torkel lembrara-se de dizer que Miroslav era bom rapaz.)

A tristeza dos amigos. O desespero dos pais. O assassino ainda à solta. Tantos participantes em reality shows ao longo dos anos. O medo.

Os artigos «imaginem que eu sou o próximo».

As páginas «assim os recordamos».

Os apresentadores dos respectivos programas recordá-los-iam. O choque. A perda. A luta para conseguir seguir em frente.

Seria uma verdadeira viagem, sentiu Torkel, e apressou-se a abrir caminho por entre aqueles que queriam fazer mais perguntas. Weber não era um deles. Já estava de telemóvel encostado à orelha, a gesticular e a falar, provavelmente com o seu chefe de redacção. Pedia mais recursos. Fotógrafos e mais colegas para Ulricehamn.

Torkel desejou que tivessem chegado mais longe na investigação por eles próprios. Agora pediam dicas e iriam recebê-las. Em quantidade. Teria de chamar mais gente, e muitos polícias não eram apenas algo positivo. A qualidade da competência variava muito. Helsingborg fora um exemplo horrível. Além disso, aumentava o risco de fugas de informação.

Subitamente, ouviu uma voz atrás de si.

– Torkel?

Virou-se para a mulher que dissera o seu nome. Loira, da mesma idade que ele, talvez um pouco mais nova. Olhos azuis. Vestido simples de Verão e sabrinas nos pés. Uma mala pequena e um capacete de bicicleta na mão. Parecia-lhe que a reconhecia. Mas não era uma das jornalistas que estivera na conferência de imprensa.

– Torkel... sou eu – disse com um sorriso, caloroso e pessoal, não profissional. – Lise-Lotte. Lise-Lotte Patriksson. Da escola Älvsjöskolan – continuou a tentar explicar quando se apercebeu de que ele continuava sem saber quem ela era.

– Lise-Lotte... – disse ele e esboçou um sorriso rasgado de reconhecimento. Agora conseguia ver que era ela. O mesmo cabelo loiro de então, ainda mais comprido agora. Os olhos azuis, com a mesma vivacidade, ainda que com mais algumas rugas à volta. O seu sorriso não envelhecera um só dia.

– O que estás aqui a fazer? – continuou Torkel e sentiu que os pensamentos sobre o caso haviam sido postos de lado por uns instantes e substituídos por alegria genuína. Lise-Lotte Patriksson. Meu Deus, passara-se uma eternidade.

– Vivo aqui. Em Ulricehamn. Trabalho como directora da escola – o seu sorriso esmoreceu um pouco. – Fui eu que encontrei o corpo.

– Li o relatório... – disse Torkel com a testa franzida. – Mas não associei o nome, não era um nome espanhol?

– González – assentiu Lise-Lotte. – Casei-me com um chileno.

A sua voz soava quase distante, com os pensamentos ainda na descoberta do morto, assumiu Torkel, e irritou-se consigo próprio.

– Estás bem? – conseguiu perguntar. – Era um dos teus alunos?

Essa devia ter sido, naturalmente, a primeira pergunta, como é que ela estava, mostrar consideração. Não tentar investigar os diferentes apelidos. Era polícia há demasiado tempo.

– Não, mas claro que fiquei em choque – respondeu cuidadosamente. – Ia só dar uma volta à escola e depois...

Não terminou a frase, mas olhou-o nos olhos. Torkel olhou à volta da recepção, relativamente cheia.

– Anda comigo. Está demasiada gente aqui – disse-lhe e indicou-lhe a porta que separava os espaços públicos do resto da esquadra.

– Mas deves ter tanto para fazer.

– Sim, mas pode esperar um pouco – assegurou Torkel. – Não te vejo há... quanto tempo será? Trinta anos?

Lise-Lotte riu-se.

– Sim, qualquer coisa do género. O tempo passa.

Torkel sorriu-lhe e passou o cartão de entrada pelo leitor. A porta fez um zumbido.

– Mas estás igual ao que eras – comentou Torkel ao segurar-lhe a porta para ela passar à sua frente, ao mesmo tempo que se apercebeu de que o comentário sincero poderia ser interpretado como um elogio em tom de sedução.

– Há quanto tempo és casada? – apressou-se a perguntar, para minimizar as diferentes interpretações possíveis do que dissera antes.

– Estou divorciada há dez anos. E tu?

– Também sou divorciado. Duas vezes, aliás – respondeu Torkel, enquanto lhe indicava o caminho para as zonas exclusivas do pessoal. – Duas filhas, a Wilma e a Elin. Dezoito e catorze.

– Nós temos uma filha, a Theresa. Já tem vinte e um agora.

Calaram-se quando entraram na copa. A actualização rápida estava concluída. Agora tornava-se mais difícil. Onde deveriam começar? Por memórias comuns ou por tentarem conhecer-se melhor? Apesar de tudo, haviam-se passado trinta anos. O que quereria ela? Porque o procurara?

– Ouvi dizer que eras o responsável pela investigação e pensei passar por cá só para dizer olá – disse Lise-Lotte, como se tivesse lido os pensamentos de Torkel.

– Boa ideia – respondeu. – De certeza que acabaríamos por nos encontrar, costumamos querer falar com todas as testemunhas – acrescentou, ao mesmo tempo que se deu conta de que, normalmente, essa tarefa cabia aos outros membros da equipa. Ele próprio ter-se-ia certamente desencontrado com ela. – Mas fico muito contente por teres passado por cá – disse com sinceridade.

Ela assentiu e sorriu-lhe brevemente. Ficaram novamente em silêncio.

– Queres um café?

– Sim, obrigada.

Torkel apontou para as mesas, ao mesmo tempo que se dirigiu para a máquina de café, atrás da ilha da cozinha. Não lhe perguntara que tipo de café queria, mas pegou numa chávena, colocou-a no sítio e escolheu café de filtro normal.

Enquanto a bebida estava a ser preparada, olhou de relance para Lise-Lotte, que acabara de se sentar numa das cadeiras cor-de-rosa da mesa mais próxima. Muitas memórias, mas podia dizer sinceramente que não pensava nela há... uma eternidade.

Tinham tido uma relação durante os dois últimos anos do liceu. Jovens e apaixonados, mas haviam-se afastado quando Torkel fora para a tropa e ela começara os estudos em Linköping. A distância ou as ambições. Nunca soubera ao certo qual fora o motivo. Mas acabara de qualquer maneira. Ela acabara com ele. Numa festa estranha, na universidade de Linköping.

Sozinho, à chuva, fora-se embora de lá.

Zangado e desiludido.

Retirou a chávena com o café e colocou outra, vazia. Escolheu a opção café de filtro novamente. A máquina começou a fazer os seus barulhos ao mesmo tempo que Eva Florén se aproximou dele.

– Tens tempo?

– Sim.

– Chegaram pessoas tanto de Borås como de Jönköping. Pensei que talvez quisesses falar com elas.

Torkel assentiu. Tinham chamado pessoal extra para ajudar com as pistas telefónicas que, provavelmente, iriam começar a chegar, dali a pouco tempo. Em princípio, todos sabiam ao que deveriam estar atentos e que perguntas fazer, mas era sempre melhor fazer uma sessão de informação. Olhou rapidamente para Lise-Lotte e de volta para Eva.

– Dá-me um minuto.

– Estamos lá em cima – respondeu ela, apontando com a cabeça na direcção do andar superior, e foi-se embora.

Torkel pegou nas duas chávenas de café e dirigiu-se a Lise-Lotte.

– Desculpa, mas tenho de trabalhar – disse-lhe, ao pousar uma das chávenas à frente dela.

– Não há problema, eu percebo.

– Mas podes ficar aqui e acabar de beber o café, se quiseres.

– Era mais a companhia do que o café que me interessava – respondeu com um sorriso, levantou-se e ajustou o vestido, num reflexo inconsciente. – Mas, se tiveres tempo, podemos jantar um dia destes, enquanto cá estiveres.

– Sim, isso era óptimo – disse Torkel e desejou ter sido ele a fazer a sugestão. – Vou certificar-me de que tenho tempo para isso.

– Óptimo. Liga-me.

– Sim, vou fazê-lo.

Esticou a mão para lhe dar um aperto caloroso, mas ela ignorou-o e, em vez disso, abraçou-o. Cheirava a lírios.

– Foi bom voltar a ver-te – disse ela quando se afastaram novamente e pegou na mala e no capacete que estavam na cadeira ao lado.

– Sim, também acho – concordou Torkel. – Mas eu ligo-te.

Um sorriso e um aceno rápido, e desapareceu.

Torkel pegou na sua chávena de café e subiu as escadas, para se juntar aos polícias que o esperavam. Não se apercebeu do facto e ninguém lhe disse nada, mas todos repararam que o chefe da Riksmord parecia genuinamente feliz.


EBBA PASSOU TODO O DIA com uma música na cabeça.

Can’t Hold Us, de Macklemore e Ryan Lewis. Tinha quase sempre uma música na cabeça quando acordava. Podia ser uma recente ou uma antiga. Nem precisava de a ter ouvido recentemente, elas simplesmente apareciam.

Todas as manhãs.

Quase.

Pensou criar uma «música do dia» para o blogue com um ficheiro de som ou um link para o Spotify. Achou que seria algo que os seus leitores poderiam apreciar. A única coisa que, na verdade, a impedia era o facto de Sara provavelmente também vir a querer ter uma música do dia, ou pelo menos esporadicamente, e ela tinha um gosto musical péssimo.

Comprovara-se no sábado passado. Na entrega dos prémios Summer Blog Awards. Uma estação de rádio abordara-as, logo a seguir à passadeira vermelha, e perguntara-lhes que música ouviam agora. Ebba nem conseguia pensar naquilo sem corar...

Fora isso, nunca sentira vergonha da irmã. Era algo impensável. Seria como ter vergonha de si própria. Eram tão próximas como isto. Sara era mais velha, mas, desde que Ebba nascera, onze minutos mais tarde, haviam-se mantido sempre juntas. Eram inseparáveis. Ebba sabia que os pais, de vez em quando, se preocupavam por elas não arranjarem outros amigos próximos, mas elas nunca haviam precisado de mais ninguém, para além de uma da outra.

Ainda dividiam quarto, apesar de terem a possibilidade de ter um para cada uma. Andavam na mesma turma, do mesmo liceu. Andavam no mesmo grupo de dança, treinavam no mesmo ginásio. E depois tinham o blogue.

Quando o começaram, em 2011, chamaram-lhe Cara ou Coroa, e a premissa era escreverem sobre os mesmos acontecimentos, a partir de duas perspectivas diferentes.

A Sara acha, a Ebba acha.

Depois tornou-se chato, várias vezes sentiam que tinham de se esforçar demasiado para encontrar diferenças nas suas vivências. Claro que havia divergências, mas, na maior parte das vezes, tinham a mesma opinião sobre o que faziam e o que lhes acontecia. Então fecharam esse blogue e começaram outro: Almas Gémeas.

Era tão óbvio quanto isto.

Em vez de se focarem nas diferenças, iam basear-se nas semelhanças.

Em quão próximas eram uma da outra.

Em quão único era o elo que as unia.

Qualquer pessoa podia escrever sobre o seu dia-a-dia, mas não havia muita gente que pudesse fazê-lo sob a perspectiva de gémeos. Era esse o nicho delas, e funcionava tão, tão bem!

Começaram a atrair atenções e tornaram-se uma parte da blogosfera, mais e mais pessoas criavam links para a sua página, captavam cada vez mais seguidores e, no sábado anterior, haviam ganho na categoria «A não perder este Verão», dos prémios Summer Blog Awards.

Na segunda-feira, foram contactadas pela Nivea, perguntaram-lhes se ela e Sara queriam escrever sobre os seus produtos para a pele e tornar-se uma das suas caras públicas, ou duas, neste caso. Iriam ser pagas. Se mais empresas o fizessem, poderiam viver do blogue. Melinda, uma das suas amigas, criara um link «Para colaborações, contactem-me» para um endereço no Hotmail onde ela, contra pagamento, se oferecia para expor marcas no seu blogue ou na sua conta de Instagram. Iniciara actividade no ano anterior e cobrava em recibos verdes.

Ela e Sara também o deviam fazer, pensou Ebba.

Bateu levemente à porta, que estava fechada, antes de a abrir. Na verdade, não havia qualquer necessidade, elas sabiam tudo uma sobre a outra, mas, se a porta do seu quarto estivesse fechada, batiam. Era simplesmente assim.

Sara estava sentada à secretária, com o portátil aberto à sua frente.

– Acabei de actualizar.

– Sobre o quê?

– Sobre o quanto detestamos a Arriva.

A Arriva era a empresa responsável pelos autocarros no sítio onde viviam. Não era a primeira vez que Sara escrevia sobre o seu péssimo serviço, condutores mal-humorados, autocarros atrasados e viagens canceladas. A Arriva seria certamente uma das empresas a contactá-las quando começassem a procurar colaborações, assumiu Ebba.

– O que vais vestir hoje à noite? – perguntou e abriu a porta do roupeiro que tinham em comum.

– O que vamos fazer hoje à noite?

Ebba suspirou para si própria. Havia, na verdade, uma coisa em que eram diferentes. Realmente diferentes. Para Sara, o facto de tomar o pequeno-almoço de manhã poderia ser uma surpresa. Planear, antecipar e manter as coisas em ordem não era com ela. Ebba assumia parte da culpa disso. Desde cedo se responsabilizara por entregarem os trabalhos da escola na altura certa, chegarem a horas e planearem as coisas do dia-a-dia.

Ela era a certinha.

Sara, a desorganizada.

– Temos uma entrevista.

– Com quem?

– Com aquele que nos ligou depois dos Blog Awards.

Sara virou-se, com uma expressão que dizia que esta era, seguramente, a primeira vez que estava a ouvir que alguém lhes telefonara depois dos Blog Awards. Era um facto que Ebba nunca se irritava com a irmã, mas, se isso acontecesse, seria certamente uma boa altura.

– Eu contei-te – explicou, pacientemente. – Um tipo freelance. Sven qualquer coisa...


Universidade Real Técnica

Escrivão

SE-100 44 Estocolmo

Recurso da decisão de nomeação para cargo de docente

(VL-2914-00071)

Venho, por este meio, recorrer da decisão de atribuir a outro candidato o cargo de docente, no concurso VL-2914-00071.

No seu parecer, a Comissão de Recursos considerou que eu preencho todos os requisitos especificados no perfil do candidato, no que diz respeito à competência educacional e científica.

Além disso, a Comissão de Recursos, no parágrafo 8 do protocolo n.º 4/2013, escreve que o departamento «procura alguém que consiga não apenas construir um grupo de investigação, mas que também tenha a capacidade de estabelecer ligações entre todas as actividades do departamento, liderar o ensino e atrair financiamento externo».

As minhas capacidades vão particularmente ao encontro de todos esses critérios (ver CV em anexo), e sou, além disso, um funcionário e pedagogo muito apreciado e estimado, com contactos bem estabelecidos, tanto dentro como fora da Universidade Real Técnica.

O que também apresento, ao contrário da pessoa designada para o cargo, é uma ampla cultura geral, um interesse ardente em transmitir conhecimentos e uma compreensão especial sobre a importância da aprendizagem e do conhecimento para o nosso futuro. Não só lideraria a escola de forma exemplar, como também seria um excelente embaixador para toda a Universidade Real Técnica e um importante e visível obstáculo ao desprezo pelo conhecimento e à cultura superficial, que grassa pela sociedade.

Portanto, de todos os candidatos, sou a pessoa mais adequada para o cargo e exijo que a decisão de recrutamento relacionada com o concurso VL-2914-00071 seja alterada a meu favor.


– TORKEL?

Torkel levantou a cabeça da sua refeição por acabar, já arrefecida, que comia directamente da embalagem de alumínio, pois nem tivera paciência para a pôr num prato. Hambúrgueres caseiros, batatas cozidas e molho, mas a única coisa que tinha algum sabor era a geleia de arando, que encontrara num frasco no frigorífico. Eva Florén aproximou-se dele.

– Recebemos uma chamada...

Torkel percebeu que ela queria dizer uma chamada especial. Porque não tinham recebido uma chamada. Tinham recebido uma chamada a cada quinze segundos, na última hora. Os telefones haviam começado a tocar quase directamente a seguir à conferência de imprensa e nunca mais tinham parado.

Haviam sido avistados homens estranhos que «pareciam jornalistas» nas ruas. Tinham sido observados carros à porta de escolas, todas as escolas, não apenas da escola Hildingskolan. Pensava terem-se ouvido gritos vindos de edifícios abandonados, e algumas pessoas achavam que os vizinhos mostravam um comportamento estranho nos últimos tempos. Muitos tinham a certeza de ter visto Miroslav Petrovic na terça-feira passada. Em diferentes sítios, na companhia de diferentes homens. (Estranhamente, muitos tinham-no avistado também na quarta-feira, apesar de ele, nessa altura, já estar morto.)

A mesma coisa com a Patricia Andrén. Mas, no caso dela, as observações eram ainda mais irregulares. O homicídio ocorrera há mais tempo, e a memória era, na maior parte das vezes, um produto do dia.

O pessoal extra a ser chamado, que consistia maioritariamente em assistentes de polícia e um ou outro aspirante, escutava todas as chamadas, tomava notas e entregava os dados a um grupo de comando, que, por sua vez, analisava as informações e as ordenava por grau de importância. Eva Florén dirigia esse grupo.

Agora puxava de uma cadeira e sentava-se em frente a Torkel.

– Temos informações sobre o sítio onde o Petrovic e o Cato podem ter almoçado.

Torkel engoliu o que restava do hambúrguer seco e olhou, interessado, para ela.

– De confiança?

– Duas empregadas de mesa e um dos clientes – assentiu Eva. – Indicam o mesmo local e hora, independentes uns dos outros. O Petrovic com companhia.

Entregou um papel a Torkel, que o começou a ler.

– Tens um pouco de molho aí – disse Eva, e Torkel levantou a cabeça para ela. Eva apontou para o canto da sua própria boca. Torkel passou a mão sobre a dele.

– Do outro lado – indicou Eva, e Torkel, para jogar pelo seguro, limpou os dois cantos com o indicador e o polegar.

– Queres que envie alguém ou vão lá vocês?

Torkel pousou o papel e ponderou alguns segundos. Agora arrependia-se um pouco de ter enviado Billy e Vanja juntos. Teria sido bom ter um deles ali, agora. Sebastian e Ursula não eram exactamente a equipa de sonho, mas enviar um deles sozinho também não era a solução ideal. No caso de Sebastian, era completamente impensável. Ursula conseguiria provavelmente fazê-lo, mas interrogatórios a testemunhas não eram o seu forte. Pensou, por momentos, ir ele próprio com Ursula, mas pôs a ideia de lado. Não podia abandonar a esquadra, não agora. Não apenas algumas horas depois de terem voltado a dar algum fôlego à investigação. Mas também não queria enviar recursos locais acerca dos quais não sabia nada.

– Nós tratamos disso – respondeu ao empurrar a embalagem de alumínio. – Obrigado.

Levantaram-se ao mesmo tempo. Eva saiu da cozinha e voltou a subir as escadas, em direcção aos telefones a tocar. Torkel ficou onde estava, bebeu o resto da água que tinha no copo, foi deitar fora a embalagem de alumínio, arrumou a loiça na máquina e saiu para a sala que lhes fora disponibilizada.

Quando entrou, Sebastian levantou os olhos da investigação e dos outros papéis espalhados à sua frente.

– Tenho algo parecido com um perfil do suspeito – disse, ao recostar-se na cadeira. – Ainda é um esboço, mas mesmo assim...

– Vai ter de esperar. Tenho um trabalho para ti.


URSULA SAIU DO CARRO e observou o hotel Kurhotellet. Ou, antes, o Novo Kurhotellet, como aparentemente se chamava. Não fazia a menor ideia do que acontecera ao velho. De qualquer forma, agora consistia num edifício de madeira de um piso, amarelo e em forma de T, com detalhes vermelho-escuros à volta das janelas e por cima das portas. O sentido estético de Ursula não era particularmente desenvolvido, mas, na sua opinião, aquilo era verdadeiramente horroroso.

Ouviu Sebastian fechar a porta do passageiro e trancou o carro. Caminharam juntos, pelo caminho de gravilha, entre os relvados bem tratados, até ao hotel.

– Como está o Torkel? – perguntou Sebastian, quando estava a meio caminho.

– O que queres dizer com «como está o Torkel»?

– Vocês pareciam bastante próximos no casamento do Billy. Ouvi-o no teu quarto à noite...

– Ciúmes?

Impossível dizer se estaria a brincar ou não.

– Curioso. Não é preciso ser psicólogo para ver que, seja o que for que vocês têm, o Torkel quer mais.

– Não é um assunto que te diga respeito – disse Ursula, secamente. Não tinha intenção de contar a Sebastian que planeava dar um pouco mais a Torkel nessa mesma noite.

– Preocupo-me convosco, quero que sejam felizes.

– Conversa de merda – bufou Ursula.

– Pronto, está bem, quero que tu sejas feliz, estou-me mais a cagar para o Torkel.

Ursula parou e virou-se para Sebastian. Os olhos momentaneamente carregados de raiva contida.

– Nada do que tu fazes, ou que alguma vez tenhas feito, mostra que estejas interessado em que eu seja feliz.

– Isso não é muito justo... – tentou Sebastian, completamente desprevenido pela reviravolta da conversa, que, na sua opinião, fora leve até esse momento.

– Ai não? Então quando quiseste que eu fosse feliz? – continuou Ursula. – Foi quando me encornaste com a minha própria irmã? Ou quando a tua ex-namorada me deu um tiro em tua casa, e tu nem sequer te deste ao trabalho de ir ao hospital ver como eu estava?

– Peço desculpa por isso. Simplesmente não consegui... Já to expliquei no casamento.

– Demasiado tarde, Sebastian.

Ursula virou-lhe as costas e começou a andar na direcção do hotel. Depois de alguns passos, parou e virou-se para ele novamente.

– Em vez de seres um cretino e depois pedires desculpa por isso, já pensaste em deixar de ser cretino?

Continuou na direcção da entrada, em passos rápidos.

Sebastian permaneceu imóvel, ainda espantado pelo facto de a sua conversa inocente, um pouco provocante, ter levado àquilo. Claro, Ursula tivera uns meses realmente difíceis. Micke deixara-a, a má relação com a filha custava-lhe, perdera um olho. Teria atingido um ponto de saturação algures, e agora descarregava nele. Sebastian não achava realmente que a tivesse magoado ou desiludido assim tantas vezes, mas, presumiu ao mesmo tempo que recomeçou a andar pelo caminho de gravilha, se as desilusões fossem suficientemente grandes, provavelmente não precisariam de ser muitas.

A recepcionista guiou Sebastian e Ursula até uma sala, ao lado do restaurante, e pediu-lhes que se sentassem num dos sofás de pele, enquanto ela ia buscar as colegas. Não trocaram uma palavra enquanto esperavam. Sebastian não tinha vontade de voltar à conversa, e Ursula parecia não ter qualquer intenção de a continuar, tão-pouco. Quando a recepcionista regressou, na companhia de duas mulheres, uma à volta dos vinte, outra com pouco menos de trinta, as duas vestidas com saias pretas e blusas brancas com o logótipo do hotel no peito, levantaram-se e explicaram quem eram e o que estavam ali a fazer.

As mulheres sentaram-se, cada uma numa das poltronas em frente deles. Ursula pegou na sua caneta e encostou a ponta a um pequeno bloco de notas que tinha no colo.

– Ambas estiveram aqui a trabalhar na quinta-feira passada? – começou por perguntar.

– Sim – confirmaram as duas mulheres, com um assentimento da cabeça.

– Contem-me.

– Contar o quê? – perguntou Cissi, a mais nova das duas.

– Disseram que o Miroslav Petrovic esteve aqui a almoçar. Com outra pessoa.

– Sim.

– Onde se sentaram? – acrescentou Sebastian.

– Ali dentro – disse Emma e virou-se para trás para apontar pelas portas de vidro, para o restaurante, com as suas mesas em fila, cadeiras de madeira simples e pequenas toalhas brancas, que davam uma sensação mais de cantina escolar do que de hotel e centro de conferências.

– Na mesa do canto, mais ao fundo da janela. O Mirre estava de costas para a sala e o outro homem à frente dele.

– Que aspecto tinha?

– Tinha cortado o cabelo – respondeu Cissi de imediato, sem conseguir evitar um sorriso como que apaixonado, ao recordar. – Estava mesmo giro, e tinha uma t-shirt azul e calças...

– Por amor de Deus! – interrompeu Sebastian, com um suspiro profundo. – Não nos interessa minimamente a aparência do Petrovic. O outro! O homem com quem ele almoçou! Que aspecto tinha?

– Era ele o assassino? – perguntou Emma com um olhar curioso, enquanto Cissi se recostou na poltrona, um pouco abalada pela repreensão.

– Que aspecto tinha? – repetiu Sebastian.

Nenhuma delas respondeu de imediato. Olharam uma para a outra, Cissi encolheu ligeiramente os ombros, e Emma virou-se novamente para Ursula e Sebastian.

– Era... velho.

– Quão velho?

– Não sei, cinquenta e cinco talvez.

– Era mais velho que isso – acrescentou Cissi. – O meu avô materno tem setenta, era parecido com ele.

Ursula olhou para os números no seu bloco de notas e suprimiu um suspiro. Havia uma grande diferença entre ter cinquenta e cinco anos ou mais de setenta. Com uma margem de alguns anos para cada lado, e ficavam com uma faixa etária de vinte anos. Completamente inútil do ponto de vista da descrição do suspeito.

– Que idade acham que eu tenho? – perguntou-lhes Sebastian, que, aparentemente, estava a pensar na mesma coisa que Ursula.

As mulheres do outro lado da mesa baixa olharam para Sebastian.

– Sessenta, sessenta e cinco? – disse Cissi, com algumas dúvidas, e olhou para Emma em busca de apoio, que obteve quando Emma assentiu com a cabeça, em acordo.

Sebastian não disse nada. Talvez fosse mesmo altura de começar a tomar mais conta de si próprio. Lançou um olhar rápido para Ursula e podia jurar que ela parecia divertida.

– Barba! – disse Emma de repente. – Tinha barba. Barba grisalha.

Podia ser uma explicação para o facto de acharem que parecia mais velho, pensou Ursula, enquanto apontava «barba grisalha» por baixo dos números que escrevera anteriormente. Mas Sebastian não tinha barba, e elas pensaram que era dez anos mais velho do que na realidade era.

– Tinha uma boina na cabeça, o tempo todo. Uma daquelas boinas de velho.

Ursula assentiu e apontou. Óptimo, começamos a chegar a algum lado. Com pormenores suficientes, talvez a idade indefinida não fosse assim tão importante.

– E óculos – disse Cissi.

– Pois era, daqueles com hastes fininhas – acrescentou Emma. – Que se compram nas bombas de gasolina.

– Mais alguma coisa? – perguntou Ursula encorajadora.

– Não.

– Sotaque? – perguntou Sebastian. – Ouviram-no falar? Lembram-se de alguma coisa em relação à voz?

As mulheres olharam uma para a outra e abanaram a cabeça.

– Não foi ele que fez os pedidos? – persistiu Sebastian.

– Sim, mas não me lembro de nada de especial. Era, tipo, só uma voz.

– Lembram-se de como ele pagou? – quis Ursula saber. Não tinha muita esperança que tivesse sido com cartão multibanco, mas, por vezes, até os criminosos mais espertos cometiam os erros mais estúpidos.

– Em dinheiro – disse Emma e desfez rapidamente a menor esperança.

– Não se lembram de mais nada?

Nova troca de olhares, novo abanar de cabeça.

– Então era um homem barbudo, de boina e óculos, que parece e soa como todos os outros homens entre os cinquenta e cinco e os setenta anos – resumiu Sebastian, sem conseguir esconder a desilusão que sentia.

Cissi e Emma trocaram mais uma vez olhares e, desta vez, assentiram com a cabeça.

– Sim...

– Então obrigado.

Cissi e Emma levantaram-se e saíram. Ursula fechou o bloco de notas e recostou-se no sofá. Reflectiu se valeria a pena chamar um polícia retratista, mas acabou por decidir que teria de ser uma decisão de Torkel.

Sebastian levantou-se e dirigiu-se às portas de vidro que separavam a sala onde se encontravam do restaurante.

Poderiam lançar um apelo a que todas as pessoas que tivessem almoçado ali na terça-feira passada para que contactassem a polícia. Algum dos outros clientes talvez conseguisse providenciar uma descrição melhor. Na melhor das hipóteses, alguém até tirara uma fotografia a Petrovic, que também tivesse apanhado Sven Cato.

Mas Cato era esperto.

Deve ter contado com essa possibilidade.

No canto, de costas para o resto da sala.

No melhor cenário, teriam conseguido uma fotografia de um pescoço e de umas costas.

Continuavam, portanto, sem nada.


BILLY CONSEGUIRÁ ENTRAR no computador portátil de Patricia Andrén. Não fora propriamente difícil. Ela não definira uma palavra-passe para o login e, quando já se encontrava dentro do sistema operativo, conseguira facilmente encontrar as páginas que visitava com frequência, através da memória cache. Billy começou pelo Facebook, que era a mais utilizada, e teve logo sorte.

Muita sorte.

Patricia não fizera logout. Billy começou ansiosamente a percorrer o seu mural. Os efeitos da conferência de imprensa eram avassaladores, fora uma verdadeira chuva de comentários e posts durante todo o dia.

Imensos.

Quantidades absurdas.

Todas as pessoas pareciam sentir-se obrigadas a dizer algo pessoal ou a parecer sofrer. Falar da saudade e falta que sentiam de alguém que apenas conheciam através de um ecrã de televisão. Parecia-lhe estranho e, ao mesmo tempo, um pouco banal. Os 7187 seguidores de Patricia estavam de luto, independentemente de quão bem a conheciam. A julgar pelos posts e comentários, ela tornar-se-ia mais conhecida e mais amada depois da sua morte do que alguma vez fora em vida.

Billy começou a percorrer o mural para trás, passando pelas interacções mais recentes e, passado um pouco, chegou ao último post escrito pela própria Patricia. Do seu telemóvel, às 14h46 do dia em que fora assassinada. Uma selfie tirada no salão, com o comentário «Quase hora da entrevista, desejem-me sorte», por baixo.

Billy continuou a percorrer dezenas de posts quotidianos, repetitivos, que, todos, de uma maneira ou de outra, recaíam sobre quão bom tudo era, quão deliciosa era a comida e quão bem lhe corria a vida. Até encontrar algo que o interessou. A 8 de Junho, às 13h24, publicara outra selfie, tirada no trabalho, com o comentário «Acabaram de me ligar do jornal Sydsvenskan. Graaande entrevista a caminho! Mantenho-vos actualizados.»

Billy apontou 8/6 13.24 no seu próprio computador portátil.

O próximo passo seria pedir as listas de chamadas do telemóvel de Patricia à operadora. Ver que números lhe haviam ligado antes das 13h24 desse dia. O assassino teria de aparecer nessa lista. Se fosse tão inteligente como se mostrara até então, teria provavelmente feito a chamada a partir de um cartão SIM pré-pago, mas sem dúvida que valia a pena investigar.

Billy voltou à última publicação que Patricia fizera e começou a dar uma vista de olhos aos comentários. Talvez tivesse respondido a algum deles e contado mais detalhes sobre a entrevista próxima. Alguns «boa sorte» e gostos. Nada com respostas ou um «obrigada» da parte de Patricia. Excepto o último.

Publicado às 03h16. A partir do seu telemóvel.

Muito curto.

«Treze em sessenta. Reprovada.»

Billy sobressaltou-se. 03h16. Pouco mais de cinco horas antes de o seu corpo ser encontrado. Procurou rapidamente pelo relatório da autópsia. Pensava lembrar-se que os colegas de Lund tinham estabelecido a hora da morte entre as nove da noite e a uma da manhã. Encontrou a página que procurava e verificou que tinha razão.

O comentário fora, sem dúvida, escrito depois da hora da morte.

Treze em sessenta.

Sessenta perguntas do teste que tinham encontrado nas costas das vítimas.

Billy inspirou profundamente e afastou os papéis. Os pensamentos atropelavam-se uns aos outros. Teria o assassino publicado igualmente os resultados de Mirre, depois da sua morte? Não que fosse do seu conhecimento. Mas a primeira coisa que a polícia local verificava normalmente não eram as redes sociais. Billy sabia que o lado digital de uma investigação dividia os colegas em dois grupos. O daqueles que viam as novas tecnologias como um recurso e o dos que não as viam de todo.

Pegou no telemóvel e abriu o Twitter. Procurou Mirre Petrovic, encontrou-o e escolheu segui-lo. O feed de Mirre apareceu de imediato. Nada. Não fora particularmente activo. Um tweet dia sim dia não ou a cada três dias. Nada depois da sua morte.

Billy abriu o Instagram e procurou-o aí também, encontrou o nome certo, e, tal como suspeitara, a conta não era privada. Apercebeu-se de imediato de que não precisaria de percorrer todo o histórico.

Billy sentiu um calafrio.

A primeira fotografia a aparecer, a última imagem. O teste de Mirre, em cima do que parecia ser uma mesa de escola, preenchia grande parte da imagem, mas num canto via-se um pouco do chão. Aí, um sapato com o respectivo pé num ângulo que indicava que a pessoa a quem o pé pertencia não estava levantada. Billy reconheceu os sapatos. Eram de Mirre. Muita coisa indicava que não estava vivo quando a fotografia fora tirada. Por baixo dizia «Reprovado. 3/60».

1884 likes.

366 comentários, a maior parte a perguntar que raio era aquilo que publicara. Parecia uma prova. Não sabia que estavam de férias?

Três respostas certas.

Três em sessenta.

Reprovado.

Billy pegou no telemóvel para ligar a Torkel e lhe contar o que descobrira.


TORKEL ESFREGOU OS OLHOS e olhou para o relógio. Passava pouco das seis, contudo, fora um dia muito intenso. Estava na hora de fazerem um apanhado.

O que sabiam?

O que precisavam de fazer daí em diante?

A resposta à primeira pergunta era: preocupantemente pouco. Por conseguinte, a resposta à segunda pergunta era: quase tudo.

Continuavam a chegar algumas chamadas para os números de recepção de informações, agora que as pessoas chegavam dos seus trabalhos e viam as notícias, mas estas haviam diminuído consideravelmente.

As chamadas que tinham chegado durante o dia não lhes deram muito, para além do almoço no hotel Kurhotellet e de dois carros que poderiam ser de interesse. Ambos haviam sido avistados perto da escola Hildingskolan, ao fim da tarde de terça-feira e ao início da noite de quarta. Haviam encontrado o dono de um dos carros, que tivera uma explicação totalmente lógica para a sua presença, naquela zona, àquela hora. Além disso, não estivera sozinho no carro, e o outro passageiro corroborava as informações. O outro carro era um Volvo V70 encarnado, mas a testemunha devia ter confundido algum número ou letra da matrícula, pois AYR393 pertencia a um Skoda branco de Sundsvall, e ambas as matrículas continuavam no veículo. Torkel também não tinha muita esperança nas câmaras de segurança da cidade. Os quarteirões à volta da escola não eram vigiados, a câmara mais próxima estava a mais de 600 metros de distância, numa rua bastante movimentada e por onde, para ir para a escola, nem se precisava de passar. Havia pelo menos três outras maneiras de lá chegar.

Torkel tivera esperança de que houvesse câmaras de segurança ao longo do caminho para o hotel Kurhotellet. Situava-se num beco sem saída, depois do hotel só havia floresta. As filmagens de terça-feira, por volta das 14 horas, poderiam ter constituído uma verdadeira ajuda. Mas era a mesma coisa ali. O caminho não tinha vigilância nenhuma.

Haviam interrogado a terceira pessoa que lhes dera informação sobre o almoço de Petrovic, mas não tinham conseguido descrição melhor do seu acompanhante. A pessoa em questão cruzara-se com Mirre quando este regressava de uma ida à casa de banho. Com quem Mirre estivera sentado ou onde, essa pessoa não vira. A polícia lançara um pedido de fotografias tiradas a Petrovic, às escondidas ou não, durante o almoço, mas, até esse momento, não tinham obtido resultados.

Em Helsingborg também não houvera avanços decisivos. Os colegas de trabalho do salão de Patricia Andrén não sabiam mais nada além de que ela seria entrevistada nessa tarde, não sabiam onde, nem exactamente quando.

Haviam recebido uma dica sobre um restaurante onde a pessoa em questão pensava lembrar-se de ter visto Patricia, no mesmo dia em que ela desaparecera, mas, quando Vanja lá fora, ninguém do restaurante se lembrava de lá ter visto Patricia Andrén, mesmo tendo reconhecido uma fotografia dela que Vanja lhes mostrara.

Stefan Andersson continuava sem álibi para o dia em que Patricia Andrén desaparecera, porém tinha um indiscutível para o homicídio de Petrovic: estivera sob custódia policial.

Por momentos, discutiram a possibilidade de haver dois criminosos, mas nada na forma de actuar apontava para isso. Pelo contrário.

– Sabemos que publicou os resultados dos testes com os telemóveis das próprias vítimas, nas suas próprias contas, depois dos homicídios – concluiu Torkel o seu resumo bastante desanimador e esfregou os olhos novamente. A sala estaria mal ventilada? Ou demasiado? Tinha os olhos secos.

– É possível localizarmos os telemóveis? – perguntou Sebastian.

– Não estão ligados, segundo o Billy, mas, se ele os utilizar outra vez...

– Ele não vai fazer isso – estabeleceu Sebastian como seguro. – Seria estúpido e, se há coisa que o nosso criminoso não é, é estúpido.

– Okay, então o quê ou quem é ele? – perguntou Torkel, puxou uma cadeira e esticou-se para uma das garrafas de água que estavam em cima da mesa, antes de se sentar. – Disseste que tinhas estabelecido um perfil.

– Um esboço, não está minimamente completo.

Torkel fez-lhe sinal de que não havia problema, para ele avançar de qualquer maneira.

– Como já disse, é um homem, com mais de quarenta anos, que está insatisfeito ou que não compreende o desenvolvimento, há muito tempo, mas que, até agora, nunca agiu.

– E porquê agora? – perguntou Ursula.

Sebastian fez um gesto com as mãos que indicava que qualquer hipótese era tão boa como a seguinte.

– Divórcio, perdeu o emprego, não foi promovido, algo pode ter acontecido que o empurrou para lá do precipício. Ou então simplesmente fartou-se. Cansado da atenção que Petrovic e Andrén obtinham e que não considerava ser, de todo, merecida.

– As coisas corriam-lhes bem ultimamente – acrescentou Ursula. – Trabalhos com blogues, tournées, apresentação de programas, novos empregos na televisão, atenção na imprensa...

– O nosso homem é quase de certeza um académico de algum tipo – continuou Sebastian. – Defende a velha imagem do conhecimento. Para fora, transmite uma imagem de colega calmo, apreciado e conhecedor. Provavelmente, não terá mudado de emprego muitas vezes, e é visto como resistente à mudança.

Alguém bateu à porta. Sebastian calou-se, e Eva Florén espreitou para dentro da sala.

– Desculpem estar a incomodar, mas tens visitas – disse, dirigindo-se a Torkel.

– Vão ter de esperar.

– É importante, caso contrário não vos teria interrompido – respondeu Eva, obviamente. – Diz que o assassino o contactou.

– Quem diz isso?

– Um Axel Weber.

Torkel foi até à recepção e olhou em volta. Algumas pessoas, mas ninguém que reconhecesse da conferência de imprensa, exceptuando Weber, que guardou o telemóvel no bolso e se levantou de uma das cadeiras em frente do guichê de atendimento, quando viu Torkel a acenar para si.

– Entre por aqui – disse-lhe Torkel e segurou a porta que separava a recepção do resto da esquadra. – O Cato contactou-o? – perguntou, assim que a porta se fechou atrás deles.

– Não a mim directamente.

Weber pegou no blazer e, do bolso interior, retirou um papel que estava dentro de uma bolsa de plástico. Entregou-o a Torkel, que o examinou rapidamente. Uma cópia de uma carta.

– O chefe recebeu isto há umas semanas. Não pensou mais no assunto, sabe como é que é, provavelmente um daqueles tipos «tudo era melhor antigamente». Mas depois começámos a escrever sobre o Sven Cato...

– Catão, o Velho.

– Pois, é suficientemente próximo, não acha?

– Vamos precisar do original – constatou Torkel.

– Sorry, isto é o que lhe podemos dar...

Torkel levantou o olhar do papel.

– Vai escrever sobre isto?

Uma pergunta. Nada mais. Torkel sabia que não valia a pena tentar proibi-lo.

– Quer que eu escreva?

– Não, de preferência não.

– Então dê-me outra coisa. Em exclusivo.

Torkel ponderou rapidamente. Era óbvio que não tinha de dar nada a Weber, mas, ao mesmo tempo, ele tinha-os realmente ajudado. Não apenas agora, mas até no caso em que haviam trabalhado antes. Dera-lhes informações antecipadas sobre os dados que o seu jornal tencionava publicar, para que tivessem tempo de mudar uma testemunha de sítio. O que poderia até ter-lhe salvado a vida.

– A arma do crime foi provavelmente uma pistola pneumática – disse Torkel, depois de reflectir sobre que dados seria menos nocivo tornar públicos do ponto de vista da investigação e que, de qualquer maneira, tinham mais probabilidade de ser descobertos pela imprensa num curto espaço de tempo.

– Okay, posso citá-lo?

– Não.

Não havia necessidade de espalhar que o chefe da Riksmord fornecia informações exclusivas a um jornalista em concreto. Além de que aquela informação poderia ter sido obtida por Weber de vários sítios diferentes. Fora o relatório da autópsia da medicina legal em Lund que mencionara uma pistola pneumática como possível arma do crime. Um relatório a que Peter Berglund tivera acesso, e este decerto muitas vezes não soubera onde o pusera ou quem mais o poderia ter.

– Pode escrever que recebeu a informação de uma fonte na polícia de Helsingborg.

– Tem a certeza?

– Sim. E, se por acaso referir o nome Peter Berglund alguma vez, também não há problema.

– Quem é o Peter Berglund?

– É polícia em Helsingborg.

Weber olhou para Torkel com espanto, mas, ao mesmo tempo, ligeiramente divertido.

– E o que fez ele para merecer a cólera da unidade da Riksmord?

– Aparentemente acabou de revelar informações sobre a arma do crime – respondeu Torkel com um sorriso, pegou na bolsa de plástico com um aceno e voltou para junto de Ursula e Sebastian.


– DECIDIDAMENTE ACADÉMICO – comentou Sebastian, ao apontar para a fotocópia que Torkel lhe dera. – «No meu trabalho, tenho oportunidade de conhecer muitos jovens.» Acho que deve ter algum cargo ligado ao ensino.

– Pode ser instrutor de condução, chefe de escuteiros ou outra coisa qualquer, esses também se cruzam com jovens – retorquiu Ursula.

– Não – Sebastian abanou a cabeça. Continuou a ler. – «...assimilam conhecimentos, têm um pensamento crítico e formam-se para, eventualmente, conseguirem um trabalho interessante e desafiante...» Está numa escola. Provavelmente numa universidade ou num instituto superior.

– Mas porque se intitula Catão, o Velho? – estranhou Torkel. – Porque não Sven Cato?

Ursula puxou para si o computador portátil de Torkel, que estava aberto em cima da mesa, ao mesmo tempo que Sebastian olhou para Torkel com surpresa fingida.

– Não sabes quem era Catão, o Velho?

– Não.

– Precisamente. Sabê-lo mostra conhecimento. Cultura geral.

– E tu, sabes quem é?

– Sim, por acaso sei. Foi ele que disse «Considero, ainda, que Cartago deve ser destruída».

– Porque disse isso? O que tinha ele contra Cartago?

– Não sei.

– Catão, o Velho, nascido em 243 antes de Cristo – começou Ursula a ler no ecrã, depois de uma pesquisa no Google. – Era senador romano e terminava todos os seus discursos, independentemente do tema, com o desejo de que Cartago fosse destruída. Era da opinião que a cidade do Norte de África representava uma ameaça à posição de poder de Roma em torno do Mediterrâneo.

– E, se quisermos adaptar esta informação, podemos dizer que o nosso Cato é da opinião de que a obsessão superficial dos nossos tempos por celebridades é uma ameaça à velha sociedade do conhecimento – finalizou Sebastian.

Espalhou-se um silêncio à volta da mesa.

– Que mais? Mais alguma coisa antes de terminarmos por hoje?

Sebastian voltou a pegar na folha.

– Ele escreveu para outros órgãos de comunicação – disse, e voltou a levantar os olhos do papel. – Devíamos contactar jornais, revistas e televisões, principalmente os canais que transmitiram os programas onde as vítimas participaram. Talvez tenha ligado alguma vez para o Opinião Pública. Antes de ter começado a matar.

– Vou certificar-me de que o farão – respondeu Torkel, ao mesmo tempo que se recostou na cadeira e voltou a esfregar os olhos. – Amanhã, logo que começarmos.

– Quando falares com os jornais e com as revistas, pede-lhes para também verem as cartas de leitores – disse Sebastian. – O Cato é do tipo de enviar cartas. Meios de comunicação clássicos. Jornais em papel. Envelopes e selos.

Torkel assentiu. Ursula fechou o computador portátil. Torkel bebeu o último resto da garrafa de água mineral. Levantaram-se os dois. Sebastian permaneceu sentado. Continuava com o papel na mão.

– Mais alguma coisa?

– Não, vão andando vocês – respondeu Sebastian, sem levantar os olhos. Cato interessava-o. Mais do que qualquer outro criminoso das investigações em que tinham trabalhado, desde que voltara para a Riksmord.

Inteligente, bem planeado, comunicativo, decidido.

Um adversário à sua altura.

Infelizmente para todos os jovens participantes em reality shows pelo país, era provável que não o conseguissem apanhar até cometer um erro.

E poderia demorar.

Demorar muito.


PRIMEIRO PENSARA ADIAR.

A polícia divulgara o seu pseudónimo. Aquele que utilizara ao contactar as irmãs Johansson.

Não que achasse que elas tivessem lido algum jornal ou ouvido algum noticiário, durante o dia, mas era algo que poderiam ter descoberto.

Pseudocelebridades assassinadas estava ao nível ideal daquilo que elas conseguiam absorver do fluxo de notícias.

Mas, mesmo que tivessem descoberto o que fizera em Helsingborg e em Ulricehamn, não era certo que isso as houvesse alertado de alguma maneira. Não havia motivos para se sentirem ameaçadas. Eram bloggers e, que ele soubesse, nunca tinham aparecido na televisão. Além disso, só lhes dissera o seu «nome» uma única vez. Quando telefonara a Ebba Johansson da primeira vez e se apresentara como jornalista do jornal Svenska Dagbladet. Era muito improvável que ela tivesse memorizado o nome.

Lera as contas de Twitter das duas irmãs, seguira-as no Instagram e fizera um esforço imenso para ler o seu blogue insípido, que em lado algum haviam comunicado que iriam encontrar-se com algum Sven Cato ou sequer que tinham uma reunião com um jornalista.

Restava a possibilidade de terem descoberto o que acontecera, reconhecido o nome, ido à polícia e dito que tinham uma reunião marcada com Cato, nesse fim de tarde.

Possível.

Mas não provável.

Mas mesmo assim.

Um certo cuidado não seria demais.

Iriam encontrar-se às oito da noite, numa pizaria em Sundbyberg. O local fora minuciosamente escolhido. Familiar para as irmãs, mas com risco mínimo de encontrarem alguém que as conhecesse. Seria fácil para ele estacionar o carro meio escondido, longe de transportes públicos, algum tempo de espera por um táxi.

Quando Ebba lhe perguntara porquê precisamente ali, ele respondera que gostaria de as levar ao sítio onde haviam passado a infância. Fora preciso uma certa persuasão. Ebba achava que não tinham nada de especial para dizer sobre Sundbyberg, haviam-se mudado dali quando tinham cinco anos, mas ele insistira. Poderia dar uma perspectiva interessante ao artigo, quem achavam que seriam hoje se ali tivessem ficado? Ter-se-iam desenvolvido de maneira diferente, se a mãe não se tivesse voltado a casar e mudado para Djursholm[1]? Esse tipo de questões interessava-o. Ir além da superfície. Encontrar as pessoas verdadeiras, por detrás das suas identidades de bloggers. Ebba tentara explicar-lhe que não havia verdadeiramente «pessoas por detrás», que ela e a irmã escreviam sobre as suas vidas tal como eram e que não eram personagens quando escreviam. Mas, por fim, lá conseguira o encontro na pizaria.

Tudo correra como planeado.

E depois o seu pseudónimo tornara-se público.

Mas ele sabia o que a polícia sabia e era mais esperto do que eles.

Mais esperto do que a maior parte das pessoas.

Então manteve o plano, mas modificou-o um pouco.

Se as irmãs tivessem contactado a polícia, imaginava que já estariam no local à espera dele, quando chegasse, pouco antes das oito. Então, fora até ao restaurante logo pelas três da tarde e comera um almoço tardio. Ficara lá mais de uma hora, memorizara as pessoas que se encontravam no local. Deixara o local durante pouco mais de uma hora e depois regressara, a pretexto de se ter esquecido da boina. Nenhum dos clientes que lá estivera às três horas continuava lá ao regressar. Mas isso não significava nada, objectivamente. Talvez estivessem na cozinha, num carro lá fora, num edifício ao lado.

Tomou uma decisão. Telefonou a Ebba e perguntou se se poderiam encontrar num restaurante chinês nas proximidades, em vez de na pizaria. Não dera uma verdadeira explicação para a mudança de planos, e ela não perguntara. Também não lhe parecera que estivesse a fazer algum esforço para parecer indiferente por estar a falar com ele. Soava exactamente da mesma maneira que da última vez que tinham falado.

O facto fortaleceu-lhe a percepção de que ela não fizera uma ligação entre o seu primeiro telefonema e as notícias do dia. Não sabia ao certo como a polícia trabalhava, mas, se fosse polícia – e teria sido um excelente polícia –, teriam agora de mudar a vigilância da pizaria para o restaurante chinês, e isso implicaria algum movimento à porta e à volta do estabelecimento. Porém, não houve qualquer sinal de actividade policial durante o tempo que esteve a observar o novo local de encontro, e, quando o relógio marcou quinze minutos para as oito, convenceu-se de que a polícia não sabia do encontro iminente e entrou no restaurante.

Olhou em volta. Ninguém reagiu à sua presença. Indicaram-lhe uma mesa, mas pediu outra, no canto, e deram-lha. Sentou-se de costas para o resto da sala e esperou.

Vinte minutos mais tarde, as irmãs Johansson chegaram.

Tinham começado bem, na opinião de Ebba.

O homem na mesa do canto levantara-se quando elas entraram no restaurante e acenara-lhes brevemente. Dirigiram-se a ele.

– Ebba e Sara? – perguntara-lhes, quando se aproximaram, e era evidente que sabia quem era quem. Nem todas as pessoas conseguiam ver as diferenças. A maior parte até fazia questão de o deixar claro. Eram realmente muito parecidas. Ebba irritava-se sempre que isso acontecia. Mesmo que fossem muito parecidas, havia diferenças. Eram dois indivíduos diferentes. Não ter paciência para descobrir quem era quem era apenas preguiça. Mas o homem barbudo, com a boina de velho enfiada na testa, de tal maneira que quase lhe tocava nas hastes metálicas dos óculos, sabia quem elas eram. Nisso já ganhara pontos.

– Sören. Foi consigo que falei ao telefone – disse, voltando-se para Ebba e de mão estendida para a cumprimentar.

Pensara no assunto e decidira mudar de nome quando se encontrassem. Para algo parecido, algo que ela pudesse facilmente ter confundido ao telefone. Utilizar o nome Sven Cato seria brincar com a sorte, poderiam ter ouvido, ou visto, o nome algures na imprensa, ao longo do dia, mesmo que não o tivessem feito associado a si próprias.

– Ah sim? Desculpe, pensei que se chamava outra coisa – disse Ebba, quando apertaram as mãos. Sara acenou com a cabeça, concordando.

– Não, o meu nome é Sören, mas não faz mal. Sentem-se.

Conduzira-as até ao sofá, e elas sentaram-se uma ao lado da outra. Um empregado de mesa chegara com as ementas. Haviam demorado algum tempo a escolher o que queriam.

– Claro que sou eu que convido – disse-lhes, enquanto elas tentavam decidir-se. – Por isso, peçam o que quiserem.

Sara pedira crepes de vegetais. Sören pedira costeletas com molho de soja. Ebba decidira-se por camarões com legumes em molho de tamarindo e, apesar de terem as duas mais de dezoito anos, pediram uma coca-cola light e uma água com gás, em vez de álcool. Sören pediu uma cerveja sem álcool. Ia conduzir...

Começou a entrevista enquanto esperavam pela comida. De início, Ebba sentira algumas reservas. Já se encontrara antes com homens da idade de Sören e, ao contar o que ela e Sara faziam, costumava ser obrigada a defender-se.

Para que serve um blogue?

Sentiam sempre necessidade de serem reconhecidas?

Porque queriam expor a sua vida ao público?

Mas rapidamente se apercebeu de que Sören tinha outro ponto de vista. Na verdade, seria um retrato. Ir mais fundo. Estava incrivelmente bem informado, fê-las sentirem-se especiais, fez-lhes perguntas que poucas pessoas haviam feito. Pessoais, mas não privadas. Levava-as a sério.

A comida chegou. Comeram e continuaram a conversar. Sören tomava notas. Sara perguntou porque não gravava antes a conversa. Parecia muito mais fácil do que estar a apontar tudo. Sören explicou que, pela sua experiência, as pessoas ficavam mais tensas se soubessem que estavam a ser gravadas. Tornavam-se um pouco menos espontâneas, ponderavam todas as palavras.

– Claro que podem ler o texto antes da publicação e, se quiserem alterar alguma citação, podem sempre usar a desculpa de que eu ouvi ou interpretei mal – disse-lhes, com um sorriso. – Isso não seria possível se eu gravasse a conversa.

Uma atitude simpática, de um homem simpático, pensou Ebba.

O empregado aproximou-se e levantou os pratos, ambas recusaram sobremesa, mas aceitaram café.

Durante o café, falaram sobre os Summer Blog Awards, a festa, a distinção, o que significava para elas, o que significava para outras raparigas, quanta atenção haviam recebido depois da vitória.

– Um dos meus alunos ganhou uma bolsa de estudo para o MIT, no ano passado – disse Sören repentinamente. – Não recebeu atenção nenhuma por isso.

Ebba lançou um olhar rápido à irmã, as duas surpreendidas pela interrupção do homem cordial e quase modesto.

– Okay... – comentou Sara. – Parabéns.

– Desculpem, interrompi-vos – disse Sören e baixou o olhar para a mesa. – Peço desculpa.

– Não faz mal – respondeu Sara.

Depois de um breve silêncio, em que pareceu que Sören perdera um pouco o fio à meada, Ebba desculpou-se e perguntou se ele sabia onde era a casa de banho. Sören apontou para a entrada e para a esquerda. Ela levantou-se e saiu.

– Queres mais uma coca-cola? – perguntou Sören, quando ficou sozinho com Sara.

Já estava na altura de dar a noite por terminada. Pelo menos, a parte do restaurante chinês.

– Sim – respondeu ela com os olhos colados ao telemóvel.

Típico, pensou ele e levantou-se. Mal havia uma pausa, olhar directamente para o ecrã. Tinham estado sentados a conversar talvez durante uma hora e um quarto. O que poderia ter acontecido de tão importante durante esse tempo que ela não pudesse esperar mais uns vinte minutos para descobrir?

Mas era um dos problemas daquela geração. Não sabiam esperar. Não tinham paciência. Ansiar por algo era impensável.

Tudo tinha de acontecer agora.

Imediatamente.

E, de preferência, ser de graça.

Mas estava satisfeito com a decisão de mudar de nome. No caso de ela estar a actualizar alguma coisa, estaria com alguém chamado Sören. A caminho do pequeno balcão no meio da sala, irritou-se consigo próprio por se ter deixado provocar por elas. A conversa aborrecida sobre quão importante era o blogue, sobre inspirarem outras pessoas e verem-se como modelos para outros levara-o a perder a razão.

Mas não fora só isso.

Baixara a guarda, tornara-se descuidado, uma vez que, tinha de o admitir para si próprio, era bastante agradável conversar com elas. Pelo menos com uma delas. A mais nova. Ebba. Não parecia tão superficial como a irmã.

– Uma coca-cola light e mais uma água com gás, por favor – pediu ao empregado do balcão e lançou um olhar de volta à mesa, onde Sara continuava completamente absorvida pelo telemóvel.

– Eu levo o pedido à mesa.

– Não, pode servir aqui, eu levo.

Enquanto o empregado enchia um copo com coca-cola de pressão e tirava uma garrafa do frigorífico, retirou os pequenos comprimidos do bolso e dividiu-os em partes iguais pela mão esquerda e direita.

– Aqui está – disse o empregado e colocou os copos no balcão, com uma expressão que dizia que continuava sem perceber muito bem porque não os podia levar à mesa.

– Obrigado.

Pegou nos copos pela parte de cima e, dessa forma, deixou os comprimidos de benzodiazepina desaparecerem nas bebidas. Provocaram algumas bolhas ao afundarem-se nos copos, mas, quando os colocasse em cima da mesa, já se teriam dissolvido e desaparecido. Fora tão fácil com Patricia e com Miroslav. Foram à casa de banho, uma bebida adulterada esperava-os ao regressarem, começaram a sentir-se mal, e oferecera-se para os levar a casa.

Mais difícil agora, que eram duas. Talvez fosse má ideia. Mas não tinha tempo para pensar nisso agora. Acabara de se sentar quando Ebba regressou.

– Pedi mais uma água para ti.

– Obrigada, estou bem assim.

O mesmo não se aplicava à irmã, que bebera dois tragos substanciais do segundo copo, mal ele o colocara à sua frente. O que aconteceria se uma delas não bebesse? Talvez resultasse na mesma. Juntos, ajudariam Sara a sair. Talvez até corresse melhor, pareceria menos suspeito do que se as duas se sentissem doentes e sonolentas, repentinamente.

– Quais são os vossos planos para o futuro?

Ebba começou a contar aquilo em que pensara nessa tarde. Abrir uma empresa. Ter mais publicidade no blogue. Fazê-lo crescer dessa forma.

– Não têm ambições de ter um emprego a sério? – perguntou e fez um gesto de aspas ao dizer «a sério», para elas não ficarem com a ideia de que achava que o que faziam agora não se classificava como um emprego a sério.

– Porque haveríamos de ter? – perguntou Sara. – Se ganharmos dinheiro a escrever, então é um emprego, ou não?

– E tu, também é isso que queres?

– Não sei – respondeu Ebba, mais pensativa. – Talvez por algum tempo. Ver como corre, mas tenho dificuldade em imaginar que vou ser blogger aos trinta anos.

– O que farás então?

– Não sei. Vamos acabar o liceu, depois logo vemos.

Ouviu-se um pequeno gemido do lado esquerdo de Ebba, e ela virou-se. Sara estava de olhos semicerrados e parecia ter ficado mais pálida em apenas alguns segundos.

– Não me estou a sentir bem... – conseguiu dizer e gemeu outra vez, inspirando profundamente, como que para despertar, mas não surtiu efeito.

– Alguma coisa que comeste? – tentou Sören, num tom compadecido.

– Não sei. Talvez...

– De qualquer maneira, já tínhamos terminado, certo? Vou pagar.

Levantou-se e retirou a carteira do bolso de trás das calças, ao afastar-se da mesa.

– Pode chamar um táxi também, por favor? – pediu Ebba atrás dele.

– Posso levar-vos a casa, vou para esses lados de qualquer maneira e tenho o carro aqui fora.

– Está bem.

A sua irmã não se sentia mesmo nada bem.

Quando saíram para o ar fresco, pareceu ficar um pouco mais desperta, mas, depois de apenas alguns passos, era como se as pernas não aguentassem o seu peso, e teve de se apoiar em Ebba.

– Tenho o carro ali ao fundo – disse Sören. – Eu ajudo-te com ela – ofereceu-se e colocou o braço à volta da cintura de Sara, sem esperar por uma resposta.

Continuaram alguns passos e viraram à direita, para um beco sem saída. O edifício onde se encontrava o restaurante chinês era o último daquela rua. Do outro lado do beco sem saída, havia um pequeno parque, aparentemente vazio. Continuaram a percorrer a rua, ao longo dos carros estacionados. A rua acabava num descampado. Lixo, arbustos descuidados, garrafas, um velho carrinho de compras e uma grande placa com a informação de que ali seriam construídos cinquenta novos prédios, iluminada por dois candeeiros cor de laranja, apesar de ainda não estar escuro. Alguns metros atrás da placa, estava uma autocaravana, grande e branca, estacionada.

– Tem uma autocaravana? – perguntou Ebba, de forma um pouco desnecessária, pois era óbvio que era para lá que se dirigiam.

– Sim, a tua irmã pode descansar lá dentro enquanto eu conduzo.

Continuaram até ao veículo estacionado. Ebba não sabia porquê, mas o grande carro branco atrás da placa iluminada fê-la hesitar. Começou a andar mais devagar. Aparentemente, ele ouviu-a, pois virou-se para trás e olhou-a, em dúvida.

– O que foi?

– Vamos antes apanhar um táxi.

– Não é preciso, eu vou para os vossos lados.

Continuou a andar com Sara, que parecia não reagir minimamente ao que se passava à sua volta. As dúvidas que Ebba sentira transformaram-se em preocupação.

– Não, pare, largue-a, nós apanhamos um táxi.

Mas Sören não parou. Continuou com a sua irmã. Passaram pela placa iluminada. Faltavam apenas alguns metros para a autocaravana. Ebba viu-o procurar as chaves no bolso com a mão que tinha livre.

Olhou em volta.

A preocupação a caminho do pânico completo.

Um lugar deserto e abandonado no meio dos arredores. Não havia janelas para o lado da rua sem saída que haviam percorrido. O parque completamente vazio. Um sítio a evitar, mesmo nas noites claras e quentes de Verão. Um lugar cuidadosamente escolhido.

Os pensamentos precipitavam-se na sua cabeça. Tentou encontrar uma lógica. Como sabia ele que Sara ficaria doente? Que não iriam fugir? A bebida. O segundo copo. Não tocara no seu. Sara bebera a totalidade do dela. O homem, que muito provavelmente não se chamava Sören, fora buscá-los ao bar. Vira-o colocar os copos em cima da mesa quando regressara da casa de banho.

Sara estava drogada.

O conhecimento daquilo que provavelmente estaria a acontecer proporcionou a Ebba uma força estranha. Adrenalina, supôs. Sem reflectir, correu para o homem, que continuava a agarrar na irmã, ao mesmo tempo que tentava abrir a porta da autocaravana. Não tinha nada que pudesse usar como arma, nenhum conhecimento de combate de contacto, a única coisa que tinha era o seu corpo e a sua velocidade.

Investiu-o de lado com toda a força que conseguiu reunir. Apesar de estar completamente visível, ele não se revelara preparado para o ataque. Tropeçou para trás, bateu com a cabeça contra o veículo e largou Sara, que, silenciosamente e como que em câmara lenta, deslizou para o chão. Ebba chegou junto dela num instante. Agarrou-a por baixo dos braços, tentou erguê-la. Rapidamente se apercebeu de que nunca conseguiria levantá-la e, mesmo que Sara conseguisse pôr-se de pé, nunca chegariam a lado nenhum. O homem já conseguira voltar a equilibrar-se e virava-se para elas.

Ebba largou a irmã, virou-se e correu.

Se tivesse sorte, encontraria alguém na rua, à porta do restaurante chinês, conseguiria parar um carro ou teria tempo de solicitar a alguém do restaurante que impedisse o homem de levar a irmã.

– Vais deixar a tua irmã? – ouviu-o gritar.

Ebba continuou a correr.

– Vais conseguir viver com isso? Sabendo que a deixaste? Comigo?

Ebba parou repentinamente. A respiração pesada. Sentiu as lágrimas encherem-lhe os olhos. Não queria, não tinha coragem de se virar, mas ouviu a chave rodar na porta, esta a abrir-se, os gemidos abafados do homem, que, com algum esforço, enfiava a irmã na autocaravana.

– O que dizem mesmo no vosso blogue? – continuou. A voz calma a quebrar o silêncio de Verão. – «Uma sem a outra, somos metades.»

Sentiu os olhos inundarem-se. Uma lágrima solitária escorria-lhe pelo rosto.

Não podia. Não podia deixar Sara.

Ela era a organizada. Aquela de quem se esperava que fizesse o correcto.

Virou-se e começou a andar de volta à autocaravana estacionada.


A VIDA ERA FRÁGIL.

Tudo podia desaparecer a qualquer momento.

Alguns centímetros para a esquerda, e a bala que lhe levara o olho tê-la-ia matado. Se aprendera algo com os acontecimentos dos últimos tempos era que teria de aproveitar mais a vida.

Atrever-se. Apostar. Arriscar.

Decidir-se.

Na verdade, não sabia se era possível ela e Torkel serem um verdadeiro casal. Nunca se permitira sequer pensar nisso. Não era dela.

Não era o que queria.

Nunca funcionaria.

Mas como poderia sabê-lo? Não podia. Não sem antes experimentar.

E, por isso, estava naquele momento no corredor, à porta do seu quarto, vestida com uma blusa branca nova e as suas calças de ganga habituais. Para variar, usara um pouco de perfume. Na maior parte das vezes, contentava-se com sabonete e desodorizante, mas fora aquele perfume que usara nos primeiros encontros com Torkel, e a ideia era sinalizar um novo começo. Se ele reparasse, claro. Torkel era um polícia excepcional, mas gestos românticos e insinuações subtis não eram o seu forte. Na verdade, também não eram o dela. Por um lado, parecia-lhe um pouco ridículo e desesperado, mas esse lado perdera a luta na casa de banho. Queria mostrar-lhe que realmente sentira falta dele e, então, tornava-se necessário ser um pouco óbvia, apesar do seu lado envergonhado.

Começou a andar pelo corredor, mas apercebeu-se de que não sabia para onde ir. Torkel costumava dar-lhe o número do seu quarto, às vezes verbalmente, em geral por mensagem escrita.

Simples e compreensível. Duas pessoas que queriam o mesmo.

Talvez devesse enviar-lhe uma mensagem a perguntar o número do quarto, pensou. Tornaria tudo mais fácil. Mas queria surpreendê-lo. Era esse o objectivo de todos os preparativos. Fazer as coisas de maneira diferente desta vez. Dirigiu-se ao elevador.

A recepção saberia em que quarto ele estava.

Como o elevador não estava naquele andar, decidiu descer pelas escadas. Aquele elevador era tão lento que ela chegaria lá abaixo antes de ele alcançar o seu andar. Quando lhe faltavam apenas alguns degraus, conseguiu ver a recepção e grande parte do bar, ao lado. Torkel estava ali. De costas para ela, perto de uma mulher de cabelo loiro, comprido. Ria-se. A mulher loira também se ria e colocou a mão levemente no seu braço coberto com um blazer. Os seus olhos brilharam quando se aproximou mais dele.

Pareciam conhecer-se. Gostar um do outro.

Ela ergueu o copo num brinde e beberam.

Ursula permaneceu onde estava e considerou momentaneamente se deveria ir ter com eles. Apresentar-se. Saber mais. Saber quem.

Mas a que levaria isso? Na melhor das hipóteses, uma troca de frases cordiais e a pergunta sobre se queria beber um copo de vinho. A mulher voltou a colocar a mão no braço de Torkel, e ele inclinou-se para a frente dizendo-lhe algo ao ouvido. Ela riu-se novamente. Toda ela reluzia.

Ursula deu meia-volta e subiu de novo as escadas, rapidamente.

Sentiu o perfume atingir-lhe as narinas.

Seria obrigada a tomar banho outra vez.


AMBOS HAVIAM CHEGADO mais cedo. Lise-Lotte já estava de pé no bar do hotel, quando Torkel desceu. Estava ainda mais bonita agora, com o longo cabelo loiro arranjado, um vestido de Verão simples, mas elegante, e uma écharpe leve por cima dos ombros. Torkel estava contente por ter feito o esforço de tomar banho e mudar de roupa outra vez, teria sido estranho se Lise-Lotte fosse a única que se tivesse arranjado. Foi ter com ela e abraçaram-se levemente. Lise-Lotte sugeriu um restaurante onde podiam ir a pé, e Torkel propôs que começassem primeiro com um copo de vinho no bar, tinham tempo de sobra. Lise-Lotte aceitou e pediu um copo de tinto. Rapidamente os dois passaram ao segundo copo. A timidez inicial que Torkel sentira desapareceu. Era fácil conversar com ela. Aberta e esfuziante de energia. Era contagiante. As memórias ajudaram, tinham uma história comum e, em pouco tempo, falavam como melhores amigos e não como pessoas que não se viam há trinta anos. Lise-Lotte mostrou inclusive ter uma memória fantástica, o que facilitava tudo. Mesmo que isso levasse Torkel, passado algum tempo, a sentir-se ligeiramente senil.

– Como consegues lembrar-te de tudo? – perguntou, por fim, quando ela contou o que ele trazia vestido na noite em que haviam começado a sair. – Eu não me lembro de nada. Como fazes?

– Sempre tive facilidade em lembrar-me das coisas, mas... tenho de reconhecer que te observei o tempo inteiro, naquela noite – confessou, com um risinho abafado. – E algumas vezes antes disso também. Muitas vezes até... – Torkel podia quase jurar que ela corara um pouco, quando se virou e bebeu um pouco mais do vinho.

– E lembras-te da primeira música que dançámos? – perguntou ela quando voltou a pousar o copo.

– Sim, disso até me lembro! – respondeu Torkel e endireitou-se com orgulho. – Roxy Music.

– Ah, deles já te lembras – disse Lise-Lotte a fingir um tom ofendido por detrás do sorriso. – Mas isso é porque eras fã deles, suponho.

– Por acaso não era.

Lise-Lotte olhou para ele, surpreendida.

– Se estamos a confessar coisas... – continuou Torkel e olhou-a nos olhos. – Fingi que era fã deles porque tu gostavas deles. Até comprei os discos todos para os ter em casa, no caso de tu lá ires alguma vez.

– Estás a brincar?

– Não.

Riu-se. Ela também se riu e pôs a mão levemente no seu braço coberto com o blazer. Os seus olhos brilharam quando se aproximou mais dele.

– Que querido.

Ergueu o seu copo, brindaram e beberam. Torkel desfrutava.

Ia ser uma noite agradável.


NOITE.

Ou pelo menos fim de dia avançado.

Quarto de hotel. Sozinho.

Não era uma combinação feliz.

A televisão estava ligada, mas esperar que algo nela despertasse o seu interesse era esperar demasiado. Sebastian levantou-se da cama, andou para a frente e para trás até à janela, abriu-a. Calor morno de Verão contra o peito nu. Um suspiro aborrecido. Analisara o material da investigação, que agora estava do outro lado da larga cama individual. Não havia mais nada a retirar dali agora, além do que que se descobrira na esquadra.

E não houvera nada a retirar na esquadra.

Quando Torkel abandonara a reunião para ir falar com Alex Weber, Sebastian acompanhara Eva Florén, com a desculpa de ir buscar mais café.

Planeava regressar a Borås mais tarde?, perguntara-lhe.

Sim, planeava.

Teria vontade de comer qualquer coisa com ele antes de regressar?

Não, não tinha.

Por isso agora estava no quarto de hotel.

Sozinho. Ansioso.

A sensação muito familiar, mas agora reforçada por não saber de Billy. Ele estava em Helsingborg. Se também estivesse sozinho e ansioso no seu quarto de hotel, seria pior. Ou poderia ser, pelo menos.

Viu-se obrigado a afastar aqueles pensamentos. Concentrar-se noutra coisa. Noutra pessoa. Sebastian retirou a camisa das costas da cadeira e vestiu-a, quando o telefone tocou. Olhou para o ecrã. Na esperança habitual de que fosse Vanja.

Um número desconhecido com o indicativo de Estocolmo.

Considerou, por momentos, deixar a chamada seguir para o atendedor. Havia o risco de ser alguém com quem tivesse dormido que conseguira o seu número. Por vezes acontecia. Ou um operador de telemarketing. Igualmente mau. Mas, por outro lado, se atendesse, ao menos acontecia qualquer coisa. Independentemente de quem fosse. Atendeu a chamada com um seco «Sim?».

– Sebastian?

– Quem fala?

– É a Anna. Anna Eriksson. A mãe da Vanja – acrescentou, no caso de ele conhecer muitas outras Anna Eriksson.

– O que queres? – perguntou Sebastian num tom que, para sua surpresa, soava mais a curiosidade pura do que a desprezo. Era certamente a última pessoa que esperava ouvir.

– Falar. Sobre a Vanja.

– Está bem.

Sebastian calou-se.

Fora ela a ligar-lhe. Fora ela a querer falar.

Ele não tencionava começar.

– Ela cortou contacto comigo, completamente – disse Anna com uma voz que Sebastian achou estar um pouco tremida.

– E estás surpreendida? – espanto sincero, mais uma vez. – Mentiste-lhe a vida toda!

– Para o bem dela.

– No início talvez. Mas agora no fim não – sentiu a surpresa e a curiosidade transformarem-se numa irritação crescente. Ela dirigira todo o desenvolvimento dos acontecimentos. Decidira tudo. Desde que ele a contactara depois de saber que Vanja era sua filha até ao casamento de Billy. Ele fizera o que ela quisera. O tempo todo. E agora, quando o seu plano não funcionara como ela queria, ligava-lhe a ele.

– Quando ela descobriu que o Valdemar não era o pai dela, porque não lhe contaste que era eu? – perguntou e percebeu que a raiva crescente começava a transparecer na sua voz. – Porque inventaste um morto qualquer?

– Tu eras uma alternativa pior.

Podia dizer-se o que se quisesse, mas claramente não lhe ligara para se insinuar.

– Podemos encontrar-nos?

– Porquê? Eu sou a pior alternativa.

– Sebastian...

– Ela detesta-te, a mim suporta-me – interrompeu-a. – Porque haveria eu de arriscar alguma coisa?

– Por favor. O Valdemar está outra vez internado, e eu... não consigo lidar com tudo agora.

– O cancro voltou?

Sebastian sentiu que se tornava difícil manter a raiva em lume vivo. Valdemar era, de muitas maneiras, aquele que menos erros cometera em toda aquela história, mas, ainda assim, era quem mais sofria.

Anna não respondeu de imediato. Apenas uma inspiração profunda, que não era o início de uma nova frase, mas que expeliu novamente num suspiro ruidoso. Sebastian conseguiu visualizar como ela estaria junto à janela, a olhar para o nada, a morder as unhas e a lutar para travar as lágrimas. Ficou com a sensação de que não era o cancro que estava de volta, de que era algo pior. O que poderia ser?

– Não, ele... ele está deprimido – acabou por admitir, em voz baixa. – Tentou suicidar-se.

Pronto, pior. Sebastian sentiu o que restava da irritação desaparecer. Não nutria sentimentos muito calorosos por Anna, mas isto era algo que não desejava a ninguém.

– E como está?

– Tomou comprimidos, mas encontrei-o a tempo. Agora está internado no hospital Karolinska, fora de perigo.

– Lamento – conseguiu dizer. – Estou em Ulricehamn – continuou, como que para explicar porque não se podiam encontrar.

– A Vanja também está aí?

– Não, está em Helsingborg. Mas tanto faz.

Anna ficou novamente em silêncio. Não havia muito mais para dizer. Nada se resolveria por telefone.

– Podes dizer qualquer coisa quando voltares para Estocolmo?

Mais uma súplica do que uma pergunta.

– Logo vejo...

– Por favor. Preciso... Preciso de a recuperar. Preciso de alguma coisa que funcione na minha vida.

Ligava a Sebastian Bergman para ter algo que funcionasse na sua vida.

Era mesmo porque não tinha alternativa.

– Logo vejo – repetiu. – Não prometo nada.

E desligou. Permaneceu de pé, com o telefone na mão. Não menos inquieto depois da conversa. Poderia isto afectar a sua relação com Vanja? O pai mais recente, afastado pelo antigo, e deprimido, pai. Sentimentos antigos vieram novamente à tona. Não era impossível. Saberia Vanja sequer o que acontecera? Esquecera-se de perguntar a Anna. Deveria telefonar a Vanja? Não queria dar-lhe uma notícia daquelas por telefone. Também não lhe queria dar a sensação de que estava em contacto com a mãe.

Portanto, não telefonava.

Mas não conseguia permanecer no quarto.

Abotoou a camisa e saiu do quarto para tentar encontrar alguém com quem ir para a cama.


CAMINHARAM DE VOLTA ao hotel passeando pela pequena cidade.

Alguns turistas vagueavam pela rua pedonal, e um grupo de adolescentes estava reunido na paragem de autocarro, mas, fora isso, estava uma noite particularmente calma. Lise-Lotte escolhera um restaurante excelente. Boa comida, acolhedor e pessoal. Tinham conversado sobre todo o tipo de coisas. Recontado a vida de cada um, ao mesmo tempo que, de vez em quando, se entregavam a memórias comuns.

Trinta anos.

Era muito tempo, realmente muito, mas, enquanto estavam ali sentados, por vezes parecia-lhes que haviam passado apenas alguns anos, desde a última vez que se tinham visto. Ou nem isso. Era fascinante a facilidade e rapidez com que haviam reatado a relação. Torkel estava genuinamente satisfeito. Não se recordava da última vez que se sentira tão relaxado e contente.

Passaram por algumas lojas fechadas, dobraram a esquina e, de repente, para sua desilusão, avistou o hotel ao fundo da rua. Já estavam a chegar? Ficara com a sensação de que estavam mais longe. Olhou em volta, desejando encontrar uma razão para fazerem um desvio, para prolongarem o passeio mais um pouco.

– Talvez seja melhor levar-te eu a casa – tentou, olhando para Lise-Lotte.

– Obrigada, mas vivo bastante longe do centro – respondeu-lhe. – Por isso vou apanhar um táxi, é demasiado longe para ir a pé.

Torkel voltou a sentir a desilusão inundá-lo, mas tentou escondê-lo. Oferecer-se para a acompanhar no táxi não era uma alternativa. Uma iniciativa dessas teria de partir dela.

– Não te imagino nada a viver no campo – disse, em vez disso. – Sempre foste uma pessoa tão citadina. Até Linköping te parecia um buraco.

Lise-Lotte esboçou um sorriso e enfiou o braço no dele, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Torkel não pensava protestar.

– Sim, mas sinto-me bem lá. Deve ser da idade... também nunca me passou pela cabeça que te tornasses superintendente da polícia.

– Pois, isso foi provavelmente uma surpresa para muita gente, acho eu.

– Lembro-me de quando a Helena me contou que tinhas entrado para a academia de polícia, fiquei tão surpreendida.

A distância até ao hotel diminuía. A entrada iluminada aproximava-se cada vez mais. Sabia o que queria que acontecesse, mas sentia-se demasiado tímido e embaraçado para o tentar sequer. Exactamente como da primeira vez que ele e Lise-Lotte se tinham tornado um casal. A preocupação galopante no coração e a sensação de ser insuficiente. Não ter coragem. O medo da rejeição.

Nessa altura, fora ela quem dera o primeiro passo. Ela que se inclinara para a frente para o seu primeiro beijo. Desta vez, desejou que fosse ele a ter coragem. Sentiu o seu corpo quente através do tecido do blazer. Caminhavam em silêncio. Os seus passos ecoavam no asfalto. Ela deixara-o aproximar-se mais. Apesar disso, não encontrava forças para fazer o que realmente queria.

Tocar-lhe.

Beijá-la.

O hotel estava cada vez mais próximo. Os passos em conjunto eram cada vez menos. A possibilidade de algo mais diminuía a cada metro. Do que estava à espera? Não percebia. Não teria mais, ou melhores, oportunidades. Era agora ou nunca. Dali a pouco, estariam à frente da entrada, a despedir-se um do outro.

– Foi uma noite muito agradável, Torkel – disse Lise-Lotte e parou de repente, virando-se para ele.

– Eu também achei.

Foi tudo como da primeira vez, há tantos anos. Ela inclinou-se para a frente e beijou-o. Torkel deixou a precaução de lado e correspondeu ao beijo. Os seus lábios sabiam a vinho tinto. Beijaram-se com intensidade e por muito tempo, pareceu-lhe, mas, quando se separaram, ele não queria mais nada que não fosse continuar.

– Oh! – exclamou Lise-Lotte e olhou-o profundamente nos olhos, com ternura, ao mesmo tempo que deu um passinho para trás. – Não tinha contado com isto.

Torkel sentiu-se um pouco confuso.

– Com o quê? – conseguiu perguntar.

– Sentir assim... – parou de falar por um instante, antes de quase sussurrar – tanto.

– Eu também não!

– Podemos falar amanhã? – perguntou.

Torkel assentiu com a cabeça, apesar do facto de, no fundo dos fundos, a última coisa no mundo que queria agora ser deixá-la ir.

– Claro que sim – disse. – Amanhã falamos.

Inclinou-se para a frente e deu-lhe um último beijo. Menos intenso.

Ela conteve-se.

Ele também.

Que mais poderia fazer?


O BOLETIM METEOROLÓGICO que ouvira no carro prometera entre vinte e vinte e cinco graus para esse dia. Ainda era cedo, o relógio mostrava que passava pouco das seis, mas já se sentia o calor do Sol através da janela, quando estacionou a carrinha no parque de estacionamento. E estavam apenas no final de Junho. Roger Levin esperava realmente que não fizesse tanto calor como no Verão anterior. Era um pouco maldoso para todas as pessoas que ansiavam por descanso, que iam entrar de férias no próximo mês e sentiam falta dos dias de sol longos, preguiçosos e quentes, seguidos de mornas noites de churrascos, mas o seu desejo meteorológico era puramente egoísta.

Teria de trabalhar.

Dentro de casa.

Todo o Verão.

Ou, pelo menos, até meio de Agosto. Quando as escolas abrissem novamente, teria de estar tudo pronto. A família não ficara propriamente contente, quando soube que ele não teria nenhum período mais longo de férias esse ano, mas, ao mesmo tempo, compreendiam.

A Levin Construções e Electricidade existia desde 1999, quando Roger Levin se despedira da NCC[2] e abrira a sua própria empresa. Os primeiros anos tinham sido difíceis. Havia muitas pequenas empresas de construção a competirem por trabalhos num mercado onde as obras não declaradas proliferavam. Depois apareceram os benefícios fiscais, em 2008, e as coisas ficaram melhores. Um desconto de 50% do preço da obra em IRS fez que já não fosse tão atractivo contratar mão-de-obra ilegal. A Levin Construções e Electricidade angariou mais trabalho, até conseguiram contratar mais pessoal. Roger começou a brincar com a ideia de reduzir o horário de trabalho. Mas depois a empresa ganhou a empreitada para esta obra de remodelação. Um trabalho grande e importante que tinham de fazer correctamente e bem. Um trabalho que poderia gerar muitos mais, se fosse bem feito. E, por isso, pensava liderar os trabalhos no local, durante todo o Verão.

Saiu da carrinha, dirigiu-se às portas traseiras e retirou o grande caixote de madeira que lá tinha. Uma máquina de café, dois termos, leite, pão, manteiga, queijo e fiambre. Bolos, alguns pacotes de bolachas e alguns sacos de gomas variadas.

Os seus homens só viriam por volta das sete, mas Roger queria assegurar-se de que haveria sandes prontas e café quando chegassem. Não teriam umas boas-vindas daquelas todas as manhãs, mas seria um Verão longo, e provavelmente quente, para todos, e não fazia mal nenhum tentar mantê-los de bom humor. Também estavam a abdicar de férias e de tempo em família.

Aproximou-se das portas duplas de vidro, abriu-as com a chave que lhe haviam dado e entrou no vestiário deserto. A sala dos professores era no andar de cima. Devia era ter sido professor, pensou ao carregar o caixote de madeira pelas escadas. Dez semanas de férias no Verão, férias de Páscoa, Carnaval, Natal. Porém, quando não estavam de férias, tinham crianças à sua volta, o tempo inteiro. Trinta miúdos. E os pais. Roger fora ajudante de treinos e jogos no clube de desporto local, durante alguns anos, quando as filhas eram mais novas e queriam jogar futebol. Nunca deixara de se impressionar pela maneira como os pais das raparigas se comportavam nas laterais do campo. Gritavam, reclamavam, criticavam, provocavam, questionavam tudo o que o treinador fazia. Ser professor devia ser o mesmo, mas dez vezes pior, pensou. Nunca o conseguiria fazer, independentemente de quantas férias tivesse pelo meio.

Chegou ao primeiro andar e dirigiu-se à sala de professores. Quando ia virar à esquerda para o corredor que ia dar ao gabinete do director, deteve-se.

Uma das portas no corredor estava aberta. Do sítio onde se encontrava, conseguia ver marcas de arrombamento na madeira.

Merda.

Era melhor dar uma vista de olhos, documentar os danos e reportá-los para que ninguém viesse dizer que aquilo acontecera enquanto ele e o seu pessoal ali tinham estado a trabalhar. Pousou o caixote no chão e deu os poucos passos que restavam até à porta arrombada. As botas de aço reforçado contra o chão de pedra.

Pois claro, arrombada com brutalidade, tanto a ombreira como a tranca estragadas, constatou rapidamente. Pegou no telemóvel para tirar algumas fotografias. Como a escola Fiskåsskolan era uma escola pública, presumiu que deveria telefonar para a Câmara Municipal e informar alguém acerca do sucedido. Deu uma volta, com o telemóvel apontado, para tirar fotografias de outro ângulo. Olhou de relance para dentro da sala de aula e baixou o telemóvel, deu alguns passos para o interior e compreendeu que a primeira chamada do dia não iria, afinal, ser feita para a Câmara Municipal.

Ligou para o 112.


– SABEMOS QUEM É?

Sebastian estava alguns passos à frente da porta arrombada e estudava o cenário infelizmente demasiado familiar. A jovem rapariga aguentava-se direita na cadeira, com a ajuda de uma corda à volta da caixa torácica, imediatamente abaixo do peito. Duas folhas de teste pregadas às costas. O cone branco na cabeça, cara virada contra a parede. Estava completamente convencido de que Ursula, quando examinasse o corpo, encontraria um buraco de entrada redondo na testa, feito pela pistola pneumática.

– Ainda não – respondeu Ursula de onde estava a examinar o local da descoberta, com a ajuda de dois técnicos assistentes. Claramente perturbada por mais uma pessoa ter perdido a vida de maneira tão brutal, mas ao mesmo tempo satisfeita por, finalmente, ser a primeira a chegar ao local. Poder tornar a investigação técnica verdadeiramente sua.

– Ele está a avançar mais depressa – comentou e levantou brevemente o olhar da máquina fotográfica para o dirigir a Sebastian. – Quase uma semana entre a primeira e a segunda, três dias até à seguinte.

– Sim.

– Será o chamado cooling off period que está a diminuir?

– O nosso homem não tem período de cool off.

Deu mais um passo na direcção da mesa mais próxima da fila traseira da sala de aula e pegou na cadeira que estava em cima. Ursula lançou-lhe um olhar, e ele deteve-se, mas depois ela assentiu com um gesto rápido de cabeça. Sebastian sentou-se, inclinou a cadeira para trás, até estar equilibrada nas pernas traseiras e encostada à parede atrás de si, e olhou novamente para a rapariga.

– Assassinos que matam por compulsão interior, que vão criando fantasias até já não lhes conseguirem resistir, esses têm período de cool off – explicou Sebastian e deu por si a pensar brevemente em Billy. – Esses sentem alívio depois da matança, muitas vezes ligado a sentimentos de vergonha e culpa pelo que fizeram. Depois, a necessidade começa de novo a crescer, até já não conseguirem resistir. Estatisticamente, o período de calma costuma tornar-se cada vez mais curto. Mas o nosso homem...

Deixou o olhar pousar nas folhas cravadas nas costas nuas da rapariga.

– O nosso homem não é dominado por fantasias ou compulsões. Mata porque quer, não porque se sente obrigado – ficou em silêncio. Não pelo efeito dramático, mas para percorrer em poucos instantes, mentalmente, todos os casos em que haviam trabalhado juntos ao longo dos anos. Chegou à conclusão de que havia indícios suficientes para corroborar aquilo que pensara logo que tinham visto a primeira vítima.

– Nunca nos cruzámos com alguém como ele até agora.


TINHA A SENSAÇÃO de que nunca mais conseguia regressar à sala de aula. Não que quisesse lá estar. Realmente não queria. A rapariga tão nova morta na cadeira.

Torkel não conseguia olhar para ela sem pensar em Elin.

A sua filha mais velha, que acabara de entrar de férias de Verão, depois do primeiro ano na Escola Superior de Hotelaria e Restauração de Estocolmo. Estava a estudar para ser chefe de cozinha. Conseguira um trabalho de Verão num restaurante em Hornstull. As suas notas do liceu não tinham sido nada de especial. Torkel amava-a acima de tudo, mas estava bastante seguro de que ela não conseguiria responder à maior parte das perguntas que o perpetrador fazia nos seus testes caseiros.

Isso não significava de modo algum que ela fosse estúpida, pelo contrário: era ponderada, madura, empática e engraçada, mas não tinha aquele tipo de conhecimento enciclopédico. E a maior parte das suas amigas também não, julgou ele, com base nas que havia conhecido e com quem tinha conversado. Mas ela tinha outra coisa. Autoconfiança, curiosidade, não tinha medo de situações desconhecidas, tinha a crença de que tudo era possível, uma audácia que a poderia levar longe. Provavelmente mais longe do que os conhecimentos que as vítimas deste caso haviam sido obrigadas a demonstrar. Ou, pelo menos, igualmente longe.

Torkel sabia que ela costumava ver aqueles programas. Alguns deles, pelo menos. Tinha esperança de que fosse apenas pela mesma atracção que os antigos freak shows provocavam. Que o disparatado, o estranho, o esquisito atraíam, era impossível não olhar.

Mas nunca na vida lhe passaria pela cabeça candidatar-se a um desses programas.

Pelo menos pensava que não.

Tinha esperança de que não.

Teria grande dificuldade em lidar com o facto de a sua filha embriagada ter relações sexuais com mais ou menos homens, mais ou menos conhecidos, na televisão. Mesmo que ela, como Miroslav Petrovic fizera, dissesse que estava a representar um papel.

Todavia, tinha quase dezoito anos e poderia fazer aquilo que queria. Já o fazia. Passara muito tempo desde a última vez que lhe pedira conselhos ou o informara de algo antes de tomar uma decisão. Na maior parte das vezes, Torkel lidava com factos já consumados.

A situação é esta, lida com isso.

Presumira que discutiria mais as coisas com Yvonne. Teoricamente, tinham custódia partilhada, mas, na prática, ambas as filhas viviam com a mãe. Tinham-no feito desde o divórcio. O seu trabalho tornava impossível a troca de residência semana sim, semana não.

Tinha uma boa relação com as filhas, sentia-o verdadeiramente, mas, para serem excelentes, as relações precisavam de tempo e presença, e disso havia menos. Apercebeu-se de que falara com as miúdas uma única vez, desde que tinham entrado de férias de Verão, e fora há mais de duas semanas. Decidiu que lhes ligaria nessa noite.

Sentiu que precisava de falar com elas.

Principalmente depois de ter visto a rapariga na sala de aula.

Torkel saíra da sala para pedir aos agentes fardados no local para tentarem descobrir quem poderia ser a jovem. Até agora, todas as vítimas tinham sido encontradas na manhã a seguir ao encontro com o assassino. Pediu-lhes para verificarem se alguma pessoa, cuja descrição pudesse corresponder à rapariga seminua que estava lá dentro, fora dada como desaparecida na véspera, a partir da hora de almoço, por exemplo. Um pouco como um tiro no escuro. Se a vítima vivesse sozinha, o que não era de todo impossível, pois parecia ter cerca de vinte anos, não era seguro que alguém já tivesse tido tempo de dar pela sua falta.

Mas Torkel esperava pelo melhor.

Haviam recebido a chamada pouco depois das sete da manhã.

O seu telemóvel estava programado para tocar às 6h30, mas Torkel acordara com um bom humor pouco usual, logo por volta das seis. O jantar da noite anterior era certamente a explicação para isso. Depois de um duche rápido, descera para tomar o pequeno-almoço.

Ursula chegara à sala de refeições quarenta e cinco minutos mais tarde, no preciso momento em que ele ponderava se devia pecar ligeiramente e comer um croissant de chocolate com a segunda chávena de café.

– Bom dia. Estás muito madrugador – dissera-lhe com um gesto da cabeça para o seu prato praticamente vazio.

– Acordei e decidi levantar-me.

– Então ontem não ficaste acordado até tarde?

Torkel olhara para ela. Estaria a imaginar ou notara um tom de satisfação na voz de Ursula?

– Não...

– Com quem te encontraste?

Torkel continuara a olhar para ela, confuso.

– Vi-te no bar. Com uma pessoa – explicara Ursula.

– Ah, okay. Era uma antiga colega de escola. Andámos juntos no liceu.

– Que giro. E o que anda ela aqui a fazer?

– Vive aqui. Trabalha na escola onde encontraram o Petrovic. Por acaso até foi ela que o encontrou.

– Ui. Deve ter sido... difícil.

– Sim.

Gerara-se um breve silêncio. Torkel ponderara se deveria contar-lhe que ele e Lise-Lotte tinham sido mais do que colegas de escola, durante algum tempo, mas decidira não dizer nada. Certamente Ursula não teria qualquer interesse em sabê-lo. Fora há uma eternidade.

– Vou buscar qualquer coisa para comer – dissera Ursula finalmente e afastara-se na direcção da mesa do buffet.

– Traz-me um croissant de chocolate quando voltares, por favor – gritara Torkel atrás dela.

Não tivera tempo de o comer.

Ursula mal abandonara a mesa quando o telemóvel de Torkel tocara.

Mais um corpo.

O caso era deles.

Uma escola em Rosersberg, nos arredores de Estocolmo.

Três chamadas rápidas de Torkel, depois disso.

A primeira para Vanja e Billy: queria saber o ponto da situação e se podiam ir para Estocolmo.

Podiam. Christiansson enviara dois agentes que pareciam particularmente competentes e sentiam-se à vontade para lhes passarem a responsabilidade e deixar Helsingborg, se Torkel quisesse.

Queria.

A segunda chamada fora para Eva Florén. Contara-lhe o sucedido e pedira-lhe para assumir a responsabilidade da parte da investigação ligada a Ulricehamn e para lhe reportar diariamente os progressos ou mal acontecesse alguma coisa que julgasse importante.

A terceira chamada fora para Sebastian.

Estivera sentado num café a tomar o pequeno-almoço, a alguns quarteirões dali. Quando Torkel lhe perguntara por que motivo não comia no hotel, respondeu que não passara lá a noite.

– Eva Florén? – perguntara Torkel, com um suspiro desanimado.

– Não.

Torkel não perguntara mais nada, conseguia perceber facilmente o resto da história sozinho. Contentava-se com o facto de não ter sido com Florén que Sebastian passara a noite. O seu mau hábito de se envolver sexualmente com as mulheres ligadas às investigações começava a revelar-se um problema. Em vez disso, dera ordens a Sebastian para que regressasse ao hotel e arrumasse as suas coisas. Iriam voltar para Estocolmo.

Para Rosersberg.

Uma terreola sem importância, no caminho entre Estocolmo e o aeroporto de Arlanda.

Já na escola, haviam entrado os três na sala de aula, mas, depois de constatarem rapidamente que se tratava realmente do seu caso, Torkel deixara os colegas para pedir aos agentes fardados que os ajudassem com a identificação da vítima.

De seguida, fora falar com o construtor, que, ao que parecia, fora quem encontrara o corpo.

Estava a regressar, quando um dos agentes fardados no local o chamara.

Tinha a sensação de que nunca mais conseguiria regressar à sala de aula.

Sebastian estava sentado numa cadeira ao fundo da sala, apoiado contra a parede. Ursula e os dois colegas trabalhavam à volta da vítima. Todos se viraram para ele quando, finalmente, entrou pela porta.

– Sara e Ebba Johansson foram dadas como desaparecidas pelos pais, ontem à noite – disse, imediatamente, quando viu os seus olhares curiosos. – Gémeas. Não voltaram para casa depois de um jantar, não disseram nada e não atendiam os telemóveis, o que pelos vistos é muito estranho nelas.

– Com quem jantaram? – quis Sebastian saber.

– Ainda não sei, só tenho os dados pessoais delas.

– Participaram em algum reality show?

– Não sei.

– Temos alguma fotografia?

– Vem a caminho.

– Gémeas?

– Sim, foram as duas dadas como desaparecidas pouco depois da meia-noite.

Sebastian inclinou-se para a frente, de maneira que a cadeira ficasse apoiada sobre as quatro pernas.

– Então onde está a outra?


VANJA OBTEVE um apanhado da situação de Ursula, pelo telefone, quando estava no táxi, a sair do aeroporto de Bromma.

Todas as novas descobertas eram consistentes com as das outras vítimas. A posição do corpo, o cone na cabeça e o teste agrafado às costas. Sara Johansson tivera mais sucesso que Patricia e Miroslav, dezasseis certas em sessenta, mas não fora o suficiente. Não se sabia onde estava Ebba.

Não parecia haver uma relação directa entre as vítimas e as escolas onde eram depositadas, e havia muitas escolas fechadas para férias de Verão na zona de Estocolmo que teriam de ser revistadas. Ebba poderia estar em qualquer uma. Ursula terminou o relato dizendo que lhe iria enviar tudo o que sabiam sobre as gémeas até então.

Não haviam encontrado o telemóvel de Sara, e Billy começou as suas pesquisas mal se sentou no banco traseiro do táxi. Não poderia haver muitas gémeas chamadas Sara e Ebba Johansson. O telefone de Vanja apitou. Era o primeiro relatório policial da véspera, quando foram dadas como desaparecidas. Segundo o mesmo, tinham ido as duas encontrar-se com um jornalista, por volta das oito da noite. Nenhum nome, mas Sven Cato era o mais provável. Enquanto Vanja tentava contactar o agente da polícia que recebera a chamada, reflectiu sobre como podiam Sara e Ebba ter comparecido àquele encontro. Meio dia depois de terem divulgado o nome. Tudo bem que os jovens não liam muitos jornais, mas algum tipo de notícias actualizadas deviam encontrar ao longo do dia. Pelos vistos não.

Conseguiu encontrar o assistente de polícia Larsson, que lhe contou que os pais tinham passado uma impressão preocupada, mas atenta e inteligente, quando reportaram as raparigas como desaparecidas, e que, em resposta a uma pergunta directa, as filhas não haviam referido o nome do jornalista. Iriam encontrar-se num restaurante chinês em Sundbyberg. Mais do que isso não sabiam.

– Não disseram o motivo pelo qual queria entrevistá-las? – perguntou Vanja. – Elas tinham participado em algum programa de televisão ou assim?

– Parece que ganharam qualquer coisa relacionada com o blogue, há pouco tempo – respondeu Larsson, e Vanja ouviu-o remexer nos papéis que tinha no balcão. – Chamava-se Almas Gémeas – acrescentou, ao regressar ao auscultador.

– Isso não aparece no relatório – observou Vanja e consultou o telemóvel.

– Achei que essa informação não era relevante em relação ao desaparecimento das raparigas – respondeu Larsson num tom que indicava que estava seguro de ter feito uma escolha totalmente certa.

Vanja agradeceu a ajuda e desligou.

– Almas Gémeas – disse para Billy, no assento traseiro.

Billy fez uma pesquisa no Google e rapidamente encontrou tanto uma conta de Twitter como de Instagram com esse nome, assim como um blogue. Começou pelo Twitter. Estendeu o telemóvel na direcção de Vanja e indicou-lhe o último tweet.

– Ontem à noite. Às nove e um quarto – disse-lhe.

– «Eu e a minha irmã temos encontro com um jornalista. Fixe e jantar à borla» – leu Vanja em voz alta. – Então ambas as irmãs estavam vivas ontem às nove e um quarto, pelo menos. Mais alguma coisa?

– Ainda não – Billy inclinou-se novamente para trás com o telemóvel e voltou à dança do dedo pelo ecrã. Vanja olhou pela janela. Passavam a grande velocidade pela estação de metropolitano de Alviks, começavam a aproximar-se de Estocolmo.

– Foda-se! – ouviu-se de repente, vindo do banco traseiro.

– O que foi? – perguntou ela.

– Olha para a caixa de comentários ao último post do blogue delas – respondeu Billy e voltou a inclinar-se para a frente, para que Vanja conseguisse ler o que estava no ecrã.

Sara 16/60. Reprovada.

Ebba 28/60. Aprovada.

– Aprovada?! Meu Deus, o que é que isso quer dizer? – perguntou Vanja.


QUANDO CHEGARAM à Riksmord, Vanja e Billy subiram directamente para a sala de conferências, no terceiro piso, a que nunca chamavam outra coisa além de «a sala». Vanja estava satisfeita por estarem de volta a Estocolmo e à Riksmord. Aqui tinham o local, a tecnologia e os recursos de que precisavam para poderem fazer um trabalho de qualidade. Vanja nunca se dedicara a desportos de equipa, mas assumia que a sala era a versão de jogar em casa da Riksmord. Era incomparável e inestimável terem um lugar fixo, onde reuniam toda a informação, onde podiam ficar rapidamente com uma ideia geral de todo o caso e, com essa percepção, serem mais criativos.

Billy colocou o computador portátil em cima da mesa e estava prestes a recomeçar o mapeamento da vida das irmãs na rede, quando a chefe do Departamento Operacional Nacional, sob a tutela do qual a Riksmord se encontrava agora, Rosmarie Fredriksson, entrou.

A chefe está de visita.

Isso significava algo.

Segundo um rumor maldoso que circulava, só aparecia quando Torkel ultrapassava o orçamento, e dizia-se que estava mais interessada nas horas extraordinárias da equipa do que na percentagem de casos resolvidos. A mulher, de aproximadamente cinquenta anos, assentiu rapidamente para Vanja e Billy em reconhecimento. Como sempre, estava impecavelmente vestida, com o cabelo loiro escuro apanhado e um olhar cinzento-aço.

– Já sabemos mais alguma coisa? – perguntou directamente.

Billy concentrou-se no seu monitor. Esta era uma situação que ele de muito bom grado deixava Vanja liderar, e viu pelo canto do olho a colega abanar a cabeça em negação.

– Acabámos de chegar de Helsingbog. A Ursula está no local onde encontrámos o último corpo, e o Torkel está a caminho – respondeu Vanja, na esperança de que «a caminho» quisesse dizer «estava a chegar a qualquer segundo». Torkel tinha jeito para lidar com Rosmarie.

– Nada de novo sobre a irmã? A que continua desaparecida? Parece que todos os jornalistas do país estão a telefonar ao mesmo tempo – prosseguiu Rosmarie.

– Temos doze patrulhas a fazer buscas em todas as escolas a norte de Rosersberg – respondeu Vanja e tentou soar o mais factual possível. – Até agora, nada.

– Detesto este caso. A chefe da Polícia Nacional já ligou três vezes hoje – continuou Rosmarie, irritada.

Vanja percebeu subitamente de onde vinha todo aquele interesse. Não era motivado por qualquer preocupação pelo bem-estar da irmã desaparecida, qualquer consideração pelas vítimas, eram simplesmente os telefonemas do superior hierárquico.

– Diz-lhe que pode telefonar para mim, se achas que é muito chato – ouviu-se Torkel dizer quando apareceu à porta. Aparentemente, ouvira o último comentário ao entrar na sala. Fez um gesto breve de cumprimento com a cabeça na direcção de Rosmarie. – Estamos a dar o nosso melhor aqui – continuou, com uma certa irritação na voz.

Billy levantou o olhar do computador.

– Olhem para isto. Eles já sabem que ela continua desaparecida – disse, ao virar o monitor para os outros. A fotografia de uma rapariga loira dividia a página com o texto preto em letras grandes.

RAINHA DOS BLOGUES ASSASSINADA PELO HOMICIDA

DOS REALITY SHOWS, IRMÃ DESAPARECIDA

– Fomos nós que divulgámos esta informação? – perguntou Rosmarie, zangada, aproximando-se do monitor e ficando a olhar para ele.

– Claro que não fomos nós – respondeu Torkel, sem conseguir esconder o cansaço na voz.

– Seja como for, isto não é bom – ainda se ouviu Rosmarie dizer, mas não conseguiu acrescentar mais nada antes de Sebastian, com o seu estilo despreocupado, entrar na sala.

– Olha, temos visitas especiais – disse ele, ao ver Rosmarie. – Os jornalistas já começaram a telefonar ou há outra razão para o seu súbito interesse no trabalho policial?

Sem esperar pela resposta, virou-se para os colegas.

– Olá, Vanja, quando chegaste?

– Há um bocado – respondeu Vanja e apontou para o monitor de Billy. – Já viste isto?

– É a irmã desaparecida?

– Sim, a Ebba. Já sabes que ela foi aprovada, certo? – perguntou-lhe Vanja.

– Sim, o Torkel contou-me.

Sebastian avançou alguns passos e observou a rapariga loira no ecrã. Dezoito anos. O olhar fixo na câmara. A vida inteira pela frente, como se costumava dizer. Sebastian duvidou seriamente de que isso se aplicasse a Ebba Johansson, infelizmente.

– E o que quer isso dizer? – perguntou Rosmarie, a marcar claramente que não tencionava deixar que a ignorassem por mais tempo.

– Isso só saberemos quando a encontrarmos – disse Sebastian, reservado.

– Estas raparigas não eram nenhumas estrelas de reality show – continuou Rosmarie, com o olhar desafiante em Sebastian. – Porque é que ele agora se virou para bloggers, sabemos?

– O mais importante não é o que elas fazem – respondeu Sebastian calmamente e num tom de voz como se estivesse a falar com uma criança pequena. – Elas eram conhecidas. Bem-sucedidas. Sem, na verdade, o merecerem, aos olhos dele. – Sebastian virou-se para Rosmarie e levou uma mão ao queixo, num gesto que indicava que reflectia profundamente. – Tipo... como... como quando alguém passa para um lugar de chefia sem, na verdade, ter competência para isso. É assim que ele vê as coisas...

Rosmarie ficou com uma expressão tensa à volta da boca, e o olhar penetrante que dirigiu a Sebastian, antes de se virar para Torkel, era impossível de ser mal interpretado.

– Mantém-me a par de tudo – disse e acenou com a cabeça para os outros, antes de abandonar a sala. Torkel suspirou profundamente quando ela bateu com a porta atrás de si.

– Bom trabalho, Sebastian.

– Obrigado.

Torkel puxou uma das cadeiras e decidiu largar o assunto. Sebastian decidira não dar atenção à ironia na sua voz e, de qualquer maneira, não estaria sensível ao argumento de que ter os chefes do seu lado facilitava sempre tudo. Não queria saber. Sebastian nunca tivera um chefe completamente do seu lado. Contando com Torkel. E conseguira que Rosmarie os deixasse em paz. Se tudo corresse bem, por um longo período de tempo. Sempre era alguma coisa.

– Okay, o que fazemos agora? – perguntou Torkel, dirigindo de novo a atenção para o trabalho.

Billy estava cheio de trabalho. Ia continuar a consultar a actividade das vítimas nas redes sociais, completar o cronograma no quadro branco, mas primeiro tinha de pedir as listas das chamadas às operadoras telefónicas. Eram três diferentes. Patricia Andrén tinha contrato com a Tele2, Mirre era cliente da Três, e as irmãs Johansson pertenciam à Halebop. Billy estimava que demorasse algum tempo a obter todas as listas.

Vanja ia voltar a sentar-se com todo o material de Helsingborg e de Ulricehamn, tentar encontrar pormenores que lhes tivessem escapado ou novas ligações a fazer, para além de que Christiansson continuava constantemente a enviar-lhes novas informações que era obrigada a incorporar no material que já tinham. Eva Florén a mesma coisa. Esperava ter um apanhado da situação para lhes dar ao final do dia. Mas primeiro precisava de comer. Não conseguira comer nada desde o pequeno-almoço.

– E tu? – perguntou Torkel, ao virar-se para Sebastian. – O que vais fazer?

– Vou fazer companhia à Vanja – respondeu Sebastian e seguiu-a para fora da sala.

Sebastian estava parado à porta da despensa e observou Vanja a retirar uma refeição pré-cozinhada do frigorífico e dirigir-se ao microondas.

– Também queres? – perguntou-lhe, por cima do ombro.

– Não, obrigado – respondeu, um pouco abstraído. Viu-a retirar a embalagem de cartão, fazer uns furos na película de plástico e colocar a comida no forno, sem realmente registar o que se estava a passar à sua volta. Seria obrigado a tomar uma decisão. Deveria contar-lhe? Andava a remoer aquilo desde o telefonema de Anna.

O que deveria fazer?

Precisava de lidar com a situação da maneira mais correcta possível, pensou. Tinham acontecido muitas coisas na vida de Vanja, ultimamente. Não podia certamente guardar silêncio sobre o que acontecera. Ela iria descobrir, mais cedo ou mais tarde. Se ele não lhe contasse, o facto seria mais uma vez interpretado como uma traição. Como desonestidade. Mas precisava de usar a informação de maneira a fortalecer a frágil relação deles, não a aumentar a distância entre os dois.

O problema era que Vanja ainda tinha muitos sentimentos por Valdemar. Eram muito próximos um do outro, quando Sebastian entrara na sua vida. Almoçavam juntos uma vez por semana. Davam longos passeios os dois. Jantares, idas ao cinema e concertos. Sebastian sabia, pois seguira-os algumas vezes e observara-os, invejosamente.

Era o tempo passado em conjunto que construía relações duradouras. Não os genes. Era essa a verdade. Valdemar passara muitos anos com ela, e, na realidade, a sua culpa não era assim tão grande. Pelo contrário, o que fizera fora apenas humano. Apoiara a mulher e protegera a filha. E isso um filho podia perdoar. Principalmente em situações extremas. Era esse o problema de fundo.

A tentativa de suicídio alterava o plano de jogo.

Enfraquecia a posição de Sebastian.

O que faria ela quando soubesse o que se passara?

Procuraria Valdemar?

Provavelmente.

Deveria acompanhá-la? Sebastian deteve-se nesse pensamento. Talvez fosse uma ideia que valesse a pena explorar. Dar o seu apoio, não apenas a Vanja, mas também a Valdemar. Pôr os ciúmes de lado, talvez até mostrar agradecimento por tudo o que Valdemar fizera pela filha. Apoiá-lo naqueles tempos difíceis. Ser um parceiro, em vez de um rival. Uma estratégia possível, realmente.

– Vais ficar aí parado a olhar? – a voz de Vanja interrompeu-lhe os pensamentos, trouxe-o de volta ao presente. Estava junto ao lava-louça a beber um copo de água, enquanto esperava pela contagem decrescente dos dezassete segundos que faltavam para o microondas acabar de preparar a refeição. – Pensei que também ias comer.

– Não... – respondeu e deu alguns passos cautelosos para o interior da pequena sala de refeições. – Vanja, tenho uma coisa que preciso de te contar.

– Ah, sim? O quê?

Virou-se para o microondas. Sebastian calou-se novamente. Última oportunidade. Inventar algo inofensivo, virar costas e sair ou contar-lhe.

– A Anna ligou-me esta noite – acabou por dizer.

Vanja reagiu como ele previra. Virou-se rapidamente, e ele sabia que os olhos estariam escuros de raiva, antes de os ver. Ouviu-se um tinido atrás dela, mas parecia ter perdido todo o interesse pela comida.

– Que raio estás a fazer?!

– Nada, juro-te! Foi ela que me ligou! E...

Vanja interrompeu-o antes de ter tempo de avançar.

– Se queres que isto resulte de alguma maneira, não podes falar com ela. Nunca!

Sebastian continuou o mais calmo e apaziguador possível. Pesou cada palavra, cada tom, numa balança de ouro.

– Tudo bem, mas ela ligou-me porque... porque... – interrompeu-se. Vanja olhava fixamente para ele. Os braços cruzados sobre o peito, os ombros encolhidos até às orelhas, baixara um pouco a cabeça para realmente o fixar com o olhar. Pronta para a batalha com cada fibra do seu ser. Teria de correr como corresse. Não podia adiar mais agora.

– O Valdemar tentou-se suicidar.

As palavras afectaram-na quase fisicamente. Viu o sobressalto, a raiva e a desconfiança varridos imediatamente por uma onda de angústia pura. Os braços caídos ao lado do corpo. Toda a cor lhe desapareceu da cara.

– O quê?! Como?? Quando?! Como é que ele está? – as perguntas a atropelarem-se. Nem ela própria sabia qual era a mais importante. A respiração tornou-se mais pesada, e Sebastian pensou ver lágrimas encherem-lhe os olhos. Tivera razão. Os sentimentos por Valdemar persistiam, por mais que tivesse tentado enterrá-los. Sebastian não conseguia evitar, e não era nada de que se orgulhasse, mas uma parte de si ficou preocupada. Estaria a afastá-la? Valia de muito pensar nisso agora...

– Ele está bem. Tomou montes de comprimidos, mas a Anna encontrou-o a tempo – disse e tentou responder ao maior número possível das perguntas dela.

Vanja apenas assentiu com a cabeça, como que para si própria, e Sebastian viu que tentava processar a informação, torná-la compreensível.

– Onde está? – conseguiu, por fim, perguntar.

– No Karolinska – respondeu ele e soube, no mesmo instante, que ela iria visitá-lo.

E acertou à primeira. Sem dizer uma palavra, Vanja passou por ele e desapareceu da cozinha.


ENTROU NA ZONA do hospital, estacionou o carro em segunda fila e dirigiu-se à entrada principal, com passos nervosos, acelerados. Estava ansiosa e sentia todo o corpo pegajoso, a camisola preta subitamente demasiado quente. Não era apenas o stresse devido ao encontro iminente com Valdemar, também estava confusa devido aos seus próprios sentimentos. Tentara distanciar-se daqueles que a haviam magoado. Queria começar uma nova vida, uma vida própria. Mas não tinha escolha.

Eles puxavam por ela.

Como sempre.

Demorou quinze minutos a localizá-lo. Fora transferido das urgências para medicina interna, no quarto piso, enquanto esperava por uma consulta de psicologia e pela decisão sobre as próximas medidas. Apanhou um dos elevadores grandes para o quarto piso e perdeu-se nos corredores infinitos. Um auxiliar acabou por lhe mostrar o caminho certo. A enfermaria onde Valdemar se encontrava cheirava a uma estranha mistura de álcool etílico e comida do jantar. A porta estava fechada, e Vanja tentou acalmar-se lá fora, antes de a abrir cuidadosamente.

Viu-o imediatamente.

Estava deitado na cama mais próxima da janela, do lado direito do quarto. As outras camas também estavam ocupadas, mas Vanja só tinha olhos para o homem que, em tempos, fora seu pai. Estava a anos-luz do homem que recordava. Não era que tivesse envelhecido.

Era pior do que isso.

Parecia não só que tinha perdido peso, mas que também fora drenado de toda a energia e força. O cabelo estava ralo e embaraçado. Os lábios finos e quase cinzentos. Os olhos encovados. Tinham passado apenas alguns meses desde que o vira pela última vez, mas era como se mal o reconhecesse. Não passava de uma sombra daquilo que fora. Subitamente, não conseguia sentir nada além de dor e melancolia. Parou aos pés da cama e permaneceu ali de pé, a observá-lo. Tubos a saírem-lhe do nariz e dos braços. Provavelmente fora submetido a uma lavagem de estômago.

– Valdemar? – disse, em voz baixa, passado algum tempo.

Valdemar levantou lentamente o olhar. Demorou alguns segundos a conseguir focar-se nela, como se não pudesse verdadeiramente acreditar no que estava a ver.

– Olá – disse Vanja e olhou-o nos olhos baços.

– Vanja? – conseguiu dizer, por fim. A voz fraca e áspera.

Vanja puxou de uma cadeira, mas colocou-a conscientemente um pouco afastada da cama, antes de se sentar. Precisava de manter uma certa distância, fosse o que fosse que estivesse a sentir no fundo.

– O que fizeste? – perguntou-lhe, com mais consideração do que culpabilização, quando se sentou.

– Vieste – saiu-lhe com esforço. Lágrimas nos olhos.

Era impossível continuar zangada. Não conseguia manter a distância que decidira aparentar. Queria apenas abraçá-lo, mas resistiu ao instinto e tentou, em vez disso, encontrar as palavras certas. Era difícil.

– Porquê? Porque fizeste uma coisa destas? – acabou por perguntar. Os olhos de Valdemar brilharam de dor, ou de vergonha, Vanja não sabia dizer.

– Não quero que me vejas assim – conseguiu responder sem nunca desviar o olhar do dela.

– Então não devias ter tentado suicidar-te! – respondeu ela. Dura, mas honesta. E ele continuava sem lhe responder à pergunta. – Porquê?

Valdemar olhou para ela, parecia abatido. Um movimento pelo corpo frágil que poderia ser um encolher de ombros.

– Os médicos dizem que tenho muitas razões para querer viver. Mas estão errados – disse, quase inaudível, com uma voz que ela mal reconhecia.

Houve um silêncio momentâneo. Lá fora ouviam-se os passos de alguém a passar no corredor. Um dos outros pacientes tossiu um pouco. Os lençóis brancos rígidos da cama de Valdemar crepitaram quando se virou para ela.

– Tenho tanta pena de te ter magoado. De te ter mentido – continuou com a voz rouca. Olhou para ela com um olhar suplicante. – Não sei o que hei-de fazer sem ti.

Era difícil criar uma barreira contra a ternura dele. Vanja arrependeu-se subitamente de se ter sentado. Não precisava de tudo isto. Estava a acontecer demasiado depressa. Sentiu que as últimas palavras de Valdemar rasgavam um buraco na sua determinação.

– Não podes fazer isto, Valdemar – disse com aspereza e surpreendeu-se a si própria pelo tom severo. Soara mais duro do que pensara mas era obrigada a dizê-lo. – Não te podes magoar a ti próprio para me fazer voltar.

Valdemar baixou o olhar, as lágrimas a escorrerem para a almofada quando fechou os olhos. Era como uma esponja que bastava apertar um pouco para expelir líquido.

– Não vim aqui para ouvir a pena que tens ou o quanto te arrependes – continuou embalada, mas, ao dizê-lo, sentiu de imediato que as palavras eram mais uma tentativa de manter as defesas no lugar do que algo que realmente sentisse.

Era bom ouvir alguém finalmente pedir-lhe desculpas. Assumir a culpa. Admitir os seus erros. Anna nunca o faria.

Vanja viu quão duramente aceitou aquelas palavras.

– Porque vieste cá? – perguntou-lhe, e soluçou, choroso.

– Porque em tempos foste alguém que amei.

– Mas posso sê-lo outra vez, com o tempo, não achas? – implorou-lhe.

Subitamente, sentiu um certo desdém por ele, no meio daquilo tudo. Provavelmente estava a ser demasiado dura, mas o tom choroso e o banho de autocomiseração perturbavam-na.

– Não vamos falar sobre isso agora – disse-lhe e tentou controlar os sentimentos contraditórios. – Não vim aqui para discutir.

Olhou para ele e inspirou profundamente. Quase se arrependia de ter lá ido, precisava de abandonar aqueles sentimentos, de se agarrar aos factos. Àquilo que conseguia dominar. Ao que tinha sob controlo.

– O que dizem os médicos? Vais ficar bem?

– Sim, tive sorte, é o que dizem. A Anna encontrou-me a tempo – respondeu Valdemar em tom neutro, e ela apercebeu-se de que ele estava, pelo menos, a fazer um esforço.

Era tudo tão estranho.

Os papéis invertidos.

Ele fraco, lastimoso, a precisar dela.

Ela a forte, a que tinha o controlo.

Ele a criança, e ela a adulta.

O Valdemar que ela conhecera estava muito longe. E, no entanto, era ele que estava ali deitado. Vanja não conseguia juntar tudo.

– Porra, como é que as coisas puderam correr tão mal? – acabou por dizer.

Valdemar olhou para ela com tristeza.

– Porque cometi muitos erros, Vanja.

Vanja assentiu, mas não respondeu. Não havia muito mais a dizer, sentiu. Assim, ficou ali sentada na cadeira.

Demasiado longe para estar perto.

Demasiado perto para não sentir nada.


NÃO COSTUMAVA BEBER. Pelo menos, não fora por isso que Laura o deixara. Não sabia qual fora o motivo, mas não fora isso. Porém, sabia porque bebia essa noite.

A culpa era dela.

Da rapariga. Ebba.

Não costumava abusar do álcool. Um copo de vinho de vez em quando. Uma cerveja ocasional. Raramente o suficiente para ficar afectado. Essa noite estava embriagado. A última vez fora há anos. Nem se lembrava há quantos. Tinha a cabeça à roda. Era difícil seguir uma linha de raciocínio.

Havia regras.

Dava-lhes uma oportunidade honesta.

Se respondessem correctamente a um terço das perguntas, seriam aprovados.

Se não conseguissem, deixava-os nos edifícios onde deveriam ter sido instruídos, onde os conhecimentos básicos lhes deviam ter sido transmitidos, preparados para o futuro, mas onde agora, aparentemente, se falhava miseravelmente nesse único e simples objectivo.

A Suécia afundara-se como um pedregulho nos últimos relatórios PISA.

Nenhum outro dos trinta e três países da OCDE caíra tanto nas classificações como a Suécia. O pior resultado de todos os países nórdicos, com uma ampla margem. Muito pouco acima de países como o México e o Chile.

Nos debates que se seguiram, viu e ouviu dezenas de desculpas, explicações e teorias sobre o porquê de os alunos suecos terem obtido tão maus resultados. Mas a resposta era muito simples.

A sociedade celebrava a superficialidade e a estupidez.

Saber coisas era pretensioso. Estudar era aborrecido. Parvo. Desnecessário, se o conhecimento não proporcionasse benefícios económicos imediatos ou algum tipo de vantagem na vida. Não se premiava o talento, uma vez que o conhecimento não era nem digno de esforço, nem prestigiante.

Não se dava atenção nem tempo de antena ao sucesso, a não ser que acontecesse numa arena desportiva.

A decadência era ainda mais visível nas gerações mais novas, mas a sua própria não estava, de modo algum, livre de idiotas. Prova disso era o conselho de recrutamento, a reitoria, todo o departamento de recursos humanos e a comissão de apelação da Universidade Real Técnica.

Completamente incapazes de apreciar o seu trabalho, de compreender o valor dos seus excelentes contactos com outras escolas, de interpretar a sua investigação, de ver a sua habilidade enquanto pedagogo e de compreender o mérito do seu vasto conhecimento. Cegos face a qualquer outro tipo de sucesso que não o passível de se medir através do número de publicações nos canais tradicionais e nas revistas de prestígio.

O facto de ser o professor mais popular ano após ano e aquele que, para além disso, tinha mais alunos que realmente completavam os estudos parecia não significar nada. O facto de a sua capacidade pedagógica ser um recurso que se poderia aproveitar num centro intelectual também parecia não pesar o suficiente.

Porque haveria alguém de estudar?

Porque haveria alguém de querer passar anos a aprender alguma coisa, quando era bombardeado diariamente com a ideia de que bastaria pôr uns vídeos no YouTube, escrever umas coisas sem sentido num blogue ou embebedar-se e foder com alguém na televisão para não só ficar famoso, mas também poder viver disso?

Se fossem precisas mais provas de quão aceite e normalizada estava a decadência, bastava olhar para a casa real. O príncipe casara com uma modelo de revistas masculinas, que participara no reality show Paradise Hotel.

Registara-se como membro da Associação Republicana no mesmo dia do anúncio do noivado.

Superficialidade e estupidez.

Não era possível contestar que o homem que conseguira o lugar de professor catedrático em vez dele era um especialista na sua área. Talvez até mais do que ele. Mas apenas nisso. Todas as conversas de natureza geral, filosófica ou psicológica tornavam-se breves, uma vez que transparecia claramente que o homem carecia de qualquer tipo de profundidade.

Mas era bom em networking, aquele novo professor, a conseguir dinheiro para a sua investigação, a começar um discurso com uma anedota engraçada, a ser notado e ouvido.

Estava a remoer.

Tinha consciência de que estava a remoer.

Laura dissera-lhe que já não se empenhava. A sua ardente devoção, o seu entusiasmo pelo ensino, por espalhar conhecimento, fora uma das coisas que a atraíra nele. Porém, agora já não era entusiasmo. Agora era uma obsessão, uma fixação.

Já não se empolgava, estava amargo.

Um canalizador.

Como era possível ter escolhido o raio de um canalizador?

Na verdade, não havia nada de mal na profissão em si. Uma profissão antiga e honesta, que exigia conhecimentos. Mas que, igualmente, como o novo marido de Laura tão claramente demonstrava, qualquer idiota do mundo podia aprender com algum tempo e uma chave de parafusos.

Havia regras.

Se fossem aprovados, deviam ser libertados.

Nunca pensou que pudesse acontecer. No entanto, apareceu Ebba Johansson. Quase metade das respostas certas. Muito perto em mais algumas perguntas.

Matá-la era completamente impensável. Regras eram regras. Mas ela vira-o. Estivera sentada à sua frente durante mais de uma hora.

Vira-o. Vira o seu carro.

Tinha obviamente de a soltar, mas era demasiado cedo para arriscar uma descrição pormenorizada. Ainda estava longe de terminar o que havia começado.

Recebera alguma atenção pelo que fizera até agora. Títulos de jornais, segmentos na televisão, actualizações constantes na Net. Mas o foco continuava a incidir sobre os jovens mortos, os coitadinhos que eram, e o monstro era quem os matara. Ainda não conseguira elevar a questão ao nível seguinte. Levá-los a perceber que estava a denunciar um problema social. Contudo, era apenas uma questão de tempo até algum editor corajoso, ou um comentador, ficar do seu lado. Alguém que percebesse que não era possível continuar assim. Que não era possível continuar, de olhos abertos, a marchar na direcção do abismo. Alguém que tivesse a coragem de insurgir contra o desprezo pelo conhecimento e que reconhecesse, mesmo sendo suicídio público simpatizar com o método, que aquilo que estava a fazer era, no fundo, bom e importante.

Ele era necessário.

Não podia ser preso agora.

Mas ela vira-o. Vira o seu carro.

Fora obrigado a agir. E fizera-o, de facto.

Agora bebia. A culpa era dela.

Da rapariga. Ebba.


AS DORES.

Foram a primeira coisa de que teve consciência. Mesmo antes de se aperceber de que recuperara os sentidos.

Uma dor de cabeça perfurante e imobilizadora, diferente de qualquer outra coisa que tivesse sentido anteriormente, que dominava e abafava todos os sentidos, tudo o resto. A respiração cortada, pequenas inspirações dolorosas, como se uma respiração profunda fosse fazer que a cabeça explodisse.

Tentou mover-se. Alguém gritou. Teria sido ela própria? Não teve tempo de pensar mais nisso, antes de vomitar. Sem pré-aviso, tudo para fora. Por breves instantes, sentiu os conteúdos quentes do estômago acabarem-lhe no peito, antes de o movimento repentino enviar uma nova onda de dor lancinante pelo corpo, até à cabeça.

Deitou-se novamente de costas. A respiração curta e ofegante.

O que acontecera? Não sabia dizer, não conseguia formular um único pensamento coerente e coeso por entre as dores.

Sara.

A irmã.

Onde estaria? Onde estava ela própria?

Tentou concentrar-se, apesar das dores. Focar-se. Organizar os pensamentos. Esquecer por momentos o sofrimento para se orientar. Tinha de o fazer.

Ela era a certinha.

Sara, a desorganizada.

Virou lentamente a cabeça. Não tinha coragem para tentar mais movimentos para além daquilo. Mas de nada serviu. O quarto estava às escuras. Negro.

Tudo negro.

Anormalmente negro, apercebeu-se.

Voltou a virar a cabeça e levantou penosamente as mãos na direcção do rosto. Perto, tão perto que as pontas dos dedos lhe tocaram levemente a testa, e tomou consciência da respiração cada vez mais rápida, como se o seu cérebro atormentado fizesse a ligação sozinho.

O quarto não estava escuro.

Ela é que estava cega.

Cegara-a.


TORKEL CONVOCARA-OS para fazer um ponto da situação, antes de darem o dia por terminado. Parecia-lhe notar uma certa sensação de frustração na sala. Reconhecia-a. Acontecia de vez em quando, na maior parte das investigações, quando todos sabiam que, na verdade, não conseguiriam acrescentar nada de novo e que aquilo que tinham não os aproximara minimamente de uma captura.

Vanja, principalmente, parecia deprimida e preocupada, como não a via há muito tempo. Torkel lançou um olhar reprovador a Sebastian quando este entrou em último na sala, convencido de que era o responsável pela melancolia de Vanja, mas Sebastian pareceu nem o ver.

– Ebba Johansson continua desaparecida – começou Torkel, quando todos ocuparam os seus lugares. – Estamos a tentar que o pessoal das escolas de toda a região de Estocolmo faça uma busca pelas instalações, mas são muitas, tanto públicas como privadas, por isso ainda não sei o resultado.

– Ele mata os reprovados – comentou Vanja. – Quererá isso dizer que se pode sobreviver se se passar, como a Ebba?

Ninguém respondeu directamente. Essa ideia também ocorrera a Sebastian. Mas, ao mesmo tempo, parecia demasiado arriscado. Libertá-la, pura e simplesmente, seria estúpido.

Sebastian olhou em volta pela sala e apercebeu-se de que os colegas esperavam que fosse ele a responder à pergunta de Vanja. Encolheu os ombros.

– Provavelmente viu-se obrigado a improvisar. Mas como o resolveu, não sei.

A resposta foi recebida com silêncio e com alguns acenos de cabeça. Podiam apenas esperar até encontrarem Ebba, não fazia muito sentido continuarem a especular.

– Obtivemos resposta ao pedido que fizemos aos jornais – continuou Torkel e mudou de assunto. – Três comentários ao editor assinados «Catão, o Velho». – Colocou cópias dos recortes em cima da mesa, e todos se aproximaram para ficar com uma. – E uma carta dirigida pessoalmente ao chefe de redacção do Östersunds Posten. A mesma assinatura.

Sebastian deu uma vista de olhos rápida pelo conteúdo breve dos comentários e da carta, um pouco mais longa. Correspondia perfeitamente à imagem que estabelecera do perpetrador. Todos os textos se referiam, de alguma maneira, a quão provocador era permitir que a superficialidade e a estupidez se generalizassem. Bem formulados e precisos. Gramaticalmente correctos. Os comentários haviam chegado em papel, por correio normal, nenhuma redacção guardara os originais ou os envelopes. Tinham recebido o original da carta para o chefe de redacção, mas uma pesquisa de impressões digitais não obtivera resultados. Demasiadas pessoas tinham manuseado os papéis desde que haviam sido retirados do envelope, que também fora deitado para o lixo.

– Esta Frida Wester – começou Ursula e apontou para a carta. – Será que a devíamos contactar?

Torkel compreendeu a sua linha de raciocínio. A carta para o chefe de redacção chegara depois da publicação de uma grande reportagem em Dezembro sobre Frida Wester, de dezassete anos, de Frösön, que conseguira mais de cem mil seguidores no seu canal do YouTube, onde dava conselhos sobre como tratar melhor das unhas e sugestões fantasiosas acerca de diferentes maneiras de as pintar.

Torkel olhou para Sebastian.

– O que achas?

– Foi meio ano antes de ele começar a matar – respondeu Sebastian, pensativo.

– Também foi há dois anos que a Patricia Andrén participou no Mãe Solteira Procura – contrapôs Billy.

– Mas foi agora que ela conseguiu o lugar de apresentadora e também ia participar em mais um programa. Era actual. Bem-sucedida. O Petrovic e as irmãs Johansson também.

– Então a Frida está fora de perigo, é isso?

– Não o posso garantir, mas sim, provavelmente.

Torkel assentiu. Tencionava, de qualquer maneira, ligar à polícia de Östersund e pedir-lhes que contactassem a família Wester, dizer-lhes que estivessem mais atentos ao que se passava na vida de Frida. Pedir-lhes que os avisassem se um jornalista telefonasse a pedir um encontro ou assim.

– Ursula? – perguntou e virou-se para a esquerda.

– Nada de especial – começou Ursula por dizer, com um suspiro. – Como sabem, não havia impressões digitais nas cartas que nos deram, nem nos locais onde encontrámos os corpos. Até agora também não temos quaisquer vestígios de ADN. Meticuloso e cuidadoso.

Inclinou-se para a frente e aproximou dois papéis que tinha na mesa, à sua frente.

– Recebemos um relatório de perícia – acrescentou. – Os cones de papel nas cabeças das vítimas eram de cartolina que pode ser comprada em qualquer loja de artigos de escritório ou papelaria. O papel onde os testes foram impressos era da HP Laser. A mesma coisa.

Passou para a página seguinte.

– A corda à volta dos corpos era de polipropileno, entrançada, de doze milímetros. Encontra-se em todas as grandes superfícies. O laço nas cordas era um nó de escota.

– Que eventualmente poderia indicar que ele tem experiência com barcos – acrescentou Torkel.

– Se tu o dizes – Ursula virou-se para Billy, que estava precisamente a pensar se deveria mencionar que um nó de escota era um nó de marinheiro e não um laço, mas decidiu não dizer nada. – Não tenho a certeza absoluta, mas, daquilo que vi em relação às vítimas, acho que devemos continuar a trabalhar com a teoria de que ele utiliza uma pistola pneumática.

– Não cheguei a lado nenhum em relação a isso – acrescentou Billy imediatamente. – Esse tipo de arma não exige licença, e localizar uma venda é impossível. Tinha esperança de que alguma clínica veterinária ou uma quinta, talvez um matadouro mais pequeno, tivessem reportado algum roubo, mas nada nos últimos anos.

O telemóvel de Torkel vibrou em cima da mesa. Olhou para o ecrã, levantou-se e atendeu a chamada ao mesmo tempo que deixou a sala. O silêncio estendeu-se. A sensação de frustração não ficara propriamente mais leve pelo facto de perceberem claramente que, em princípio, não haviam chegado a lado nenhum, desde que tomaram conta do caso das polícias locais.

– Posso ver isso? – perguntou Billy e fez um gesto com a cabeça para os papéis que Ursula tinha na mesa, à sua frente, ao mesmo tempo que se levantou.

Ursula assentiu e empurrou-os na direcção de Billy, que se virou para a parede e os pregou ao lado da linha temporal, no quadro. Sebastian tentou estabelecer contacto visual com Vanja, mas ela evitou-o intencionalmente.

– Então o que vão vocês fazer hoje à noite? – perguntou, em vez disso, para a sala toda, mas com o olhar fixo em Billy, ao lado do quadro branco. Viu pelo canto do olho Vanja e Ursula reagirem. Não era habitual falarem de coisas privadas no trabalho, muito menos quando estavam todos em grupo, e era raríssimo ser Sebastian a tomar uma iniciativa dessas. Conversa de circunstância com colegas não era propriamente o seu forte.

– Nada de especial – respondeu Billy de forma breve, quando percebeu que nem Ursula nem Vanja pensavam responder.

– A My ainda está de viagem? – continuou Sebastian, e Billy viu mais uma vez Ursula reagir.

Como sabia Sebastian onde estava a mulher de Billy? A que propósito sabia onde estava a mulher de Billy? Billy percebeu o que Sebastian pretendia, mas não poderia ter puxado o assunto em privado? Era apenas esquisito e suspeito.

– Sim – voltou a responder secamente e viu, com alívio, a porta abrir-se e Torkel regressar, sem contudo transpor a ombreira.

– Encontraram a Ebba Johansson.


– ELA VINHA DALI – disse o homem de fato de treino, com um sotaque que indicava que era oriundo do Norte, ao apontar para o armazém de madeira vermelho, isolado, ao fundo do campo. – Mal conseguia andar, na verdade. E também estava encharcada, deve ter caído naquela vala ali em baixo – voltou a apontar, desta vez para o lado esquerdo do celeiro.

Estavam num pequeno caminho de floresta, pouco mais de dois trilhos de rodas no chão, nada a não ser floresta para lá do campo com o celeiro. Poderia ficar-se com a sensação de que estavam no meio do campo, mas, a apenas algumas centenas de metros na outra direcção, encontrava-se a povoação. Mais um centro de sonolência e bem-estar. A trinta quilómetros de Rosersberg. Vivendas e pequenas casas de campo. Um sítio para onde qualquer um se mudava, se tivesse dinheiro, para as crianças crescerem num ambiente mais seguro. Onde se protegiam as casas com sistemas de alarmes e associações de vizinhança, onde se sabia que alguns jovens consumiam drogas aos fins-de-semana e se desconfiava de que alguém era agredido por detrás das cortinas fechadas, mas que, em geral, estava livre de criminalidade violenta.

– Ela disse alguma coisa?

– Não... bem... hmm... falou de uma Sara e não parava de dizer qualquer coisa sobre os olhos, mas parecia tudo bastante incoerente.

Torkel assentiu. Com base na pouca informação que possuía, também não esperara que Ebba os pudesse ajudar muito. Um exame preliminar no hospital mostrara que os seus olhos haviam sido queimados de algum modo. Estava anestesiada desde então, e só a poderiam interrogar amanhã de manhã. Mas nem isso era seguro.

Ursula enviara técnicos ao hospital para recolherem eventuais vestígios do corpo e das roupas de Ebba. Ela própria iria concentrar-se no celeiro abandonado.

– Mais alguma coisa que queira acrescentar? – perguntou Torkel ao homem cuja corrida sofrera uma reviravolta inesperada, por assim dizer.

– Não, para já nada, desde que a encontrei.

– E de resto...?

– Esteve aqui uma autocaravana antes. Hoje à tarde.

– Uma autocaravana?

– Sim.

– De que marca?

– Não faço a menor ideia. Era uma... autocaravana.

– Viu a matrícula?

– Não, vi que era estrangeira, mas não vi de que país.

– Também tinha ido correr nessa altura? – perguntou Sebastian, que, até agora, permanecera em silêncio. Havia uma pequena probabilidade de o homem estar a gostar demasiado da atenção e querer «ajudá-los» mais do que realmente podia.

Fazer-se mais importante do que realmente era.

Já acontecera antes.

– Não, moro ali ao fundo – respondeu e apontou novamente, desta vez para uma vivenda de madeira amarela, numa pequena colina, com vista sobre o campo que terminava no celeiro. – Vi-a da janela. É muito raro andarem carros por aqui, principalmente assim tão grandes. O caminho acaba a algumas centenas de metros ali para baixo, e depois é só um trilho para caminhadas e pessoas a cavalo.

Torkel sentiu uma mistura de esperança e de irritação. Era uma pista importante, algo com que poderiam trabalhar, mas o homem que tinha à sua frente parecia não conseguir ajudá-los mais do que já fizera. Todavia, valia a pena tentar.

Pediu a Billy que se juntasse a eles.

Teria de se sentar com o homem para verem fotografias de autocaravanas. Com alguma sorte, reconheceria um modelo.

– Mas essas autocaravanas são todas iguais! – constatou o homem, dissipando todas as esperanças de Torkel. Com aquela atitude, era pouco provável que viesse a ser de alguma utilidade.

Billy aproximou-se, deambulante, vindo do celeiro onde estivera a ajudar Ursula. Torkel explicou rapidamente o que queria e pediu-lhe também para investigar todas as possíveis vias de acesso e confirmar se haveria câmaras de segurança em algum sítio. Não devia haver muitas autocaravanas a passarem por aquela zona.

Sebastian deixou Billy com o homem de fato de treino e olhou em volta.

Ainda era de dia.

Nunca ficaria realmente escuro naquela altura do ano.

Ouviam-se os pássaros a chilrear, na noite morna de Verão. Sebastian era incapaz de identificar um único pássaro pelo som, mas um deles parecia-lhe mais melódico e mais forte do que os outros e pensava lembrar-se de alguém lhe dizer, num passeio de regresso a casa pela cidade, noutra noite morna de Verão, que era um melro. Mas que raio sabia ele?

Viu Vanja de pé, um pouco afastada, a olhar, aparentemente desocupada, para o grande campo. Avançou e parou ao seu lado. Vanja nem se virou para ele.

– Está tudo bem?

– Deve haver muitos veados por aqui, não achas?

Pronto, não era propriamente a resposta de que estava à espera. Nem era uma resposta, na verdade, mas decidiu fazer-lhe a vontade por algum tempo.

– Não sei, não sei nada sobre a natureza. Não a aprecio muito.

– Como é possível não apreciar a natureza?

Sebastian reflectiu por alguns momentos, apesar de, efectivamente, já saber a resposta.

– Ela apenas existe, não pensa. Tenho dificuldade em apreciar coisas que não pensam.

– Acho que é por isso que gosto tanto dela – disse Vanja, quase num sussurro. – Simplesmente existe. Não pensa, não mente, não se tenta suicidar...

Sebastian virou-se para ela, mas Vanja continuava com o olhar fixo no horizonte vazio.

– Há alguma coisa que eu possa fazer, Vanja?

Nenhuma resposta.

– Como teu colega.

– Não.

E foi-se embora.


O APARTAMENTO estava agradavelmente vazio quando chegou.

Satisfeito com o facto de não ter de falar com mais ninguém, descalçou os sapatos, pendurou o casaco, foi directamente para a cozinha, tirou uma cerveja do frigorífico e atirou-se para o sofá.

Fora um dia longo.

Até tinha dificuldade em lembrar-se de que fora nessa manhã que ele e Vanja haviam saído de Helsingborg. Acontecera tanta coisa.

Infelizmente, nada que os tivesse aproximado mais do assassino.

O homem que encontrara Ebba não os conseguira ajudar. Não chegaram a lado nenhum com a identificação da autocaravana. Nem marca, nem modelo, nem sequer detalhes específicos que os pudessem fazer avançar. Nem o país de origem ficou esclarecido. Billy mostrara-lhe imagens de diferentes matrículas, e agora era a Polónia, a Alemanha e Espanha que estavam nos primeiros lugares das nacionalidades mais prováveis, mas também podia ser um veículo da Dinamarca. Ou da Roménia. Ou do espaço sideral. O homem do fato de treino não fazia a menor ideia.

Assim sendo, autocaravana com matrícula estrangeira era a única coisa que tinham por enquanto.

Não havia câmaras de segurança nas estradas das redondezas e não era preciso passar por nenhuma portagem ao percorrer o trajecto entre a escola de Rosersberg e o celeiro de Täby, mas Billy tencionava, mesmo assim, contactar a administração dos transportes no dia seguinte e pedir-lhes as imagens de todas as portagens. Não poderia haver assim tantas autocaravanas a movimentarem-se na região de Estocolmo em finais de Junho, pensou ele.

Pegou no telemóvel. Alguns estudos indicavam que, principalmente os mais novos, podiam olhar para os seus telemóveis e tablets mais de cem vezes por dia, e Billy sentia definitivamente que, nesse aspecto, pertencia ao grupo dos «mais novos», apesar dos seus trinta e três anos. Não tinha chamadas perdidas nem mensagens.

My ligara-lhe quando estavam no celeiro. Sentia-se um pouco mal pelo alívio que fora poder dizer-lhe que estava fora, em trabalho, e que não podia falar naquele momento. Para reforçar quão urgente aquele trabalho era, contara-lhe sobre Ebba e dissera-lhe que iam demorar; havia muito para analisar, testemunhas a entrevistar e, por isso, era melhor falarem amanhã.

Ela compreendia perfeitamente.

Amo-te. Beijinhos e até amanhã.

Não fora assim tão fácil livrar-se de Sebastian.

Quando se dirigiram cada um para o seu carro, Sebastian alcançara-o e queria uma pequena actualização. Billy não estava com paciência. Era tarde, estava cansado, ainda tinha trabalho para fazer, mas Sebastian insistira. Concordaram que Billy lhe daria boleia até casa. Falariam no carro. Menos de meia hora. Teria de ser suficiente. Sebastian aceitara.

– Tenho tudo sob controlo – disse Billy, quando Sebastian terminou o interrogatório sobre como tinham corrido as coisas em Helsingborg e se encontrara alguém com quem falar.

A resposta de Sebastian a esse comentário fora um olhar que dizia claramente que não acreditava naquilo nem por um segundo.

– É verdade! – insistira Billy. – Sabes como é, como quando fazemos alguma coisa estúpida e não pensamos muito nisso, mas fazemos na mesma, e depois, quando alguém nos apanha, é que percebemos quão estúpido aquilo realmente era.

– Estúpido?

Aquela única palavra fora suficiente. Billy percebera que Sebastian achava que chamar «estúpido» àquilo que fizera na noite do seu casamento era o eufemismo do ano.

– Tu percebes o que eu quero dizer – acrescentara, com um encolher de ombros. – Posso tipo dar um passo atrás, ver as coisas do lado de fora, quão louco aquilo foi.

– Não é suficiente.

– É suficiente para mim. Não vai voltar a acontecer.

– Não é assim tão simples – respondera Sebastian com aquele tom de que era óbvio que ele tinha razão e que todos os outros estavam errados e que irritava Billy enormemente. – Não é a mesma coisa que apanhar multas por excesso de velocidade e, a partir daí, passar a conduzir mais devagar – continuara. – Seres apanhado não te ajuda a ultrapassar o problema. Tu precisas de ajuda!

– Mas o que sabes tu acerca disso? O que sabes de ultrapassar problemas? – Billy levantara um pouco a voz, cansado de estar sempre a ter de se defender. – Tu vais para a cama compulsivamente com qualquer mulher que tenha pulsação!

– Isso é diferente. É um vício.

– Qual é a diferença?

– Um vício pode ser ultrapassado com a motivação certa. Podes decidir parar. Sozinho ou com ajuda – virara-se para Billy, que agarrava o volante com força, o olhar fixo na estrada cheia de trânsito em direcção ao centro da cidade. Todo o seu corpo gritava o pouco que queria ter aquela conversa. – Tu tens um distúrbio psiquiátrico. Estás fracturado. Limitares-te a compreender de maneira racional que aquilo que fazes é errado não vai ser suficiente para alterares o teu comportamento.

– Se é assim tão simples ultrapassar um vício, porque não deixas o teu? – quisera Billy saber, numa tentativa de desviar a conversa mais para Sebastian e menos para ele próprio.

– Não tenho a motivação certa.

O que era verdade e teria de ser suficiente. Não tinha intenção de falar sobre o buraco negro que a morte de Lily e Sabine deixara e sobre o que fazia para evitar ser totalmente devorado por ele.

– Eu estou motivado. Tenho tudo controlado. Não vai voltar a acontecer – dissera Billy com firmeza.

– Não se torna mais verdade só por o repetires – respondera Sebastian de forma distante, conseguindo, com isso, irritá-lo ainda mais.

Billy deu um gole na cerveja.

O que se passara?

Que raio se passara?

Só o facto de chegar a ter uma conversa daquelas com Sebastian Bergman era completamente absurdo. Como se deixara arrastar até esse ponto?

Ele não era assim.

Era polícia. Um bom polícia. Na Unidade de Homicídios, um departamento a que a maior parte dos outros polícias sonhava poder pertencer, com colegas que gostavam dele e que o apreciavam.

Era recém-casado com uma mulher que amava. Que era a melhor coisa que já lhe acontecera, mas que agora mantinha deliberadamente à distância. My iria acabar por perceber. Iria perguntar o que se passava, por que motivo a andava a evitar, não o deixaria em paz enquanto não soubesse. E aí, iria perdê-la, disso tinha a certeza.

Não podia acontecer.

Ele era o tipo que ouvia hip-hop, que ia ao cinema ver todos os êxitos de bilheteira e que preferia ler bandas desenhadas em vez de livros. Era simples. Decente. Era a pessoa a quem se ligava quando se precisava de ajuda com as mudanças, aquela com quem se ia a festas de Verão, aquela com quem se ia beber uma cerveja a uma esplanada, aquela em quem se pensava como padrinho para um filho recém-nascido.

Era isso que ele era.

Um bom tipo.

Não o maluquinho que estrangulava gatos.

No entanto, não mentira a Sebastian. Agora estava tudo sob controlo. Pelo menos, por enquanto. Em Helsingborg, nem pensara em sair do quarto. Os pensamentos haviam girado quase exclusivamente em torno do que acontecera, não do que poderia acontecer no futuro. A vergonha, a má consciência, o medo de perder My, de perder tudo.

O pior de tudo era que, no fundo, sabia que Sebastian tinha razão. Sabia que era errado, sempre soubera. Racionalmente, sempre estivera consciente de que estava a ultrapassar todas as fronteiras, mas isso não fora suficiente para o parar.

A emoção, o poder, a sensação.

Eram imbatíveis.

Preenchiam-no naquele instante, assustavam-no a seguir. A maneira como tomavam conta dele, completamente.

Como poderiam aquele que queria ser e aquele em quem se tornara ser pessoas tão diferentes? Não conseguia conjugar as coisas. Aquilo estava a destruí-lo.

Voltou a pegar no telemóvel.

Afinal, talvez não devesse ficar sozinho essa noite.


DEPOIS DA VISITA ao hospital, fizera tudo em piloto-automático. Estava desconcentrada e preocupada.

Depois de terem ido até ao celeiro onde Ebba fora encontrada e onde, na realidade, não fizera nada de construtivo, decidira ir para casa. Desculpou-se com o facto de ter dores de cabeça, o que não era mentira nenhuma.

Ele tentara suicidar-se.

Tomara a acção mais extrema que uma pessoa podia tomar. Por mais que tentasse afastar aquele pensamento, era uma consequência das atitudes de Vanja. Essa era a verdade terrível.

Dessa nunca poderia fugir.

O que a deixava fisicamente maldisposta.

Deixou o olhar percorrer o apartamento que ele lhe comprara. As provas de que a amava como sua própria filha estavam por todo o lado. Na mesa que lhe comprara quando se mudara, na cozinha que a ajudara a remodelar, nas paredes que tinham pintado juntos.

Amara-o tanto.

Sentira-se obrigada a dar menos prioridade aos amigos. Aos namorados também. Em prol do trabalho. Tivera uma relação complicada com Anna toda a vida. Só lhe restava Valdemar. A única pessoa de quem fora realmente próxima.

Mas agora já não.

Agora estava sozinha.

Quem lhe restava, na verdade? Não muitas pessoas. Contudo, precisava de alguém. Alguém bem longe, tanto da família como do trabalho. Alguém com quem pudesse ter outro tipo de relação.

Alguém normal.

Alguém que estivesse lá para ela.

Só para ela.

Jonathan era a solução. Haviam-se separado há quase dois anos, e fora uma ruptura prolongada, com muitas voltas. E depois ele ligara-lhe algumas vezes.

Queria encontrar-se, falar, dizia ele.

Queria encontrar-se, acabar na cama, ouvia ela.

Por isso talvez não fosse a melhor ideia, pensou Vanja ao pegar no telemóvel, mas continuou a percorrer o ecrã até encontrar o número dele. A verdade era que não havia mais alguém, mais ninguém.

– Vanja? – respondeu Jonathan com a sua voz grave familiar, mesmo que naquele momento soasse mais surpresa do que o normal.

– Olá, Jonathan – disse Vanja e tentou soar alegre. – Como estás?

– Estou bem. Estás a ligar-me? – conseguiu dizer, com a surpresa que sentia claramente a demorar-se.

– Sim, sei que já passou algum tempo...

– Sim, de facto. Como estás?

– Estou bem, obrigada – respondeu cuidadosamente.

Ficaram alguns segundos em silêncio, e Vanja perguntou-se quão estúpido aquilo fora, numa escala de um a dez.

– Ah, okay, está bem... Querias alguma coisa de especial ou...? – perguntou ao ver que ela não tomava a iniciativa de continuar a conversa. Vanja hesitou por momentos: mentir, fazer conversa de circunstância, desligar ou...? Decidiu ser sincera, afinal fora por isso que lhe telefonara.

– Pois, na verdade, não estou muito bem, não. Tenho tido alguns problemas com a família – disse e sentiu que era um bom começo.

– É o Valdemar? – perguntou Jonathan, com preocupação na voz.

Vanja quase se esquecera. Jonathan sabia que Valdemar tivera cancro. Estavam juntos nessa altura. Da primeira vez que fora diagnosticado. Pulmões. A doença de Valdemar, o trabalho na Riksmord, a relação com Jonathan, tudo fora demasiado. O mais fácil seria terminar a relação. Mas gostavam um do outro. Valdemar e Jonathan. Como é que isto afectaria Jonathan? Vanja nem pensara nisso. Então, quanto lhe deveria contar? Começou pelo início, talvez fosse suficiente por algum tempo.

– De certa maneira. Ele recuperou do cancro... foi bastante duro, ou melhor, é bastante duro...

Calou-se novamente.

– É bom ouvir isso – respondeu Jonathan. – Diz-lhe que mando cumprimentos.

– Sim...

– Então o que se passa? Aconteceu mais alguma coisa? – perguntou-lhe daquela maneira bondosa que, lembrava-se agora, era tão natural nele.

Sentiu que não conseguiria esconder o acto de Valdemar por muito mais tempo. Nem sabia ao certo se realmente o queria fazer. Todavia, não lhe podia contar uma coisa daquelas pelo telefone.

– Podemos encontrar-nos? – perguntou discretamente.

Jonathan não respondeu logo. Vanja estava prestes a dizer que afinal não era boa ideia, que ele podia esquecer tudo aquilo e desligar, quando finalmente respondeu.

– É um pouco complicado agora. Eu e a Susana acabámos de nos juntar outra vez, e já sabes o que ela sente em relação a ti...

Vanja perdeu momentaneamente a concentração nos seus próprios problemas. Ele estava com Susana outra vez? A namorada de quem se separara em tempos para estar com Vanja. Isso é que era uma novidade.

– Aah – saiu-lhe. – E ela continua tão ciumenta como antes?

– Deves achar estranho estarmos juntos outra vez – continuou Jonathan, meio a brincar, sem responder à pergunta.

Também não precisava de o fazer. Vanja sabia. Não era possível chamar outra coisa que não ódio àquilo que Susana demonstrara das poucas vezes que a havia encontrado, e não era provável que tivesse diminuído. Aos seus olhos, Vanja roubara-lhe o namorado, e isso era algo que não passava impune.

– Sim, um bocado – respondeu Vanja, apesar de, na verdade, não ser assim tão surpreendente.

Jonathan nunca estivera solteiro. Quando acabava uma relação, era porque sabia que já havia outra a começar. Se fosse ele a ser deixado, tornava-se persistente, ao ponto de se tornar incómodo, nas tentativas de fazer as coisas voltarem a resultar. Era absolutamente incapaz de estar sozinho.

– Conta-me o que aconteceu – disse Jonathan e mudou de assunto.

– Não sei. Não te quero arrastar para isto – respondeu-lhe, insegura.

– Sabes sim, caso contrário não terias ligado.

Podiam dizer-se muitas coisas sobre Jonathan, mas que a conhecia realmente, isso conhecia.

Vanja inspirou profundamente, o olhar percorreu o apartamento. De repente, voltou a ver Valdemar por todo o lado.

– O Valdemar tentou suicidar-se – acabou por dizer.

Falaram durante mais de meia hora. Jonathan fora fantástico. Era bom poder partilhar a dor com alguém que realmente a ouvia.

Vanja saiu para a sua pequena varanda, para apanhar um pouco de ar fresco. Ficou de pé, a olhar para o porto de Frihamnen. Começara a escurecer, e um grande ferry branco partia rumo à baía.

Deu consigo a arrepender-se do telefonema e, ao mesmo tempo, não.

Era evidente que Jonathan ainda tinha sentimentos por ela, e, durante a conversa, também sentira subitamente saudades dele. Tivera um vislumbre de uma vida alternativa, na qual já não estava sozinha. Bem longe das sombras.

Fora ele quem sugerira um encontro e, apesar de saber de Susana e de não ter vontade nenhuma de a desafiar, acabara por aceitar.

Podia usar como desculpa a sensação de confusão geral em que se encontrava.

Contudo, isso não explicava o facto de se sentir tão feliz com a situação.

Realmente feliz.


– OLÁ, ENTRA.

Deixou Billy entrar no apartamento e deu-lhe um abraço, depois de fechar a porta.

– Trouxe umas cervejas – disse Billy, entregando-lhe um saco com seis garrafas, enquanto descalçava os sapatos.

– Óptimo. Entra e senta-te.

Fez um gesto com a cabeça na direcção da sala e foi para a cozinha.

– Então, como vai a vida de recém-casado? – disse em voz alta, para a sala, enquanto procurava um pacote de amendoins no armário ao lado do exaustor. – Não te vejo desde o casamento.

– Bem, tudo bem – respondeu Billy.

Ela esperou um bocado, mas, aparentemente, não havia mais nada a dizer sobre o assunto.

– E onde está hoje a My? – perguntou enquanto servia os frutos secos numa taça de plástico azul do IKEA.

– Foi visitar os pais. Vivem na região de Dalarna.

Jennifer assentiu para si própria. O facto de Billy passar o serão com ela e algumas cervejas, enquanto a mulher estava fora, não tinha de significar nada. Se tinha percebido bem as coisas, My não era do tipo ciumento, e Billy nunca lhe dera motivos para o ser. Houvera oportunidades... ele beijara-a na pista de tiro da esquadra de Kiruna, mas fora apenas isso. Não acontecera mais nada.

Infelizmente.

Jennifer saiu da cozinha com duas das cervejas que ele trouxera numa mão e a taça com os amendoins na outra.

– Fazes escalada? – perguntou Billy, quando ela se aproximou dele, apontando com a cabeça para o arnês de escalada, pendurado numa corda, na parede ao lado da televisão.

– Já fiz bastante, agora já não tenho tanto tempo, mas acho que fica giro, ali pendurado.

Pousou as cervejas e os amendoins na pequena mesa de centro redonda e sentou-se ao lado de Billy.

– O que andas a fazer no trabalho?

Billy contou-lhe. Das salas de aula, dos cones de burro, dos testes, do fracasso de Helsingborg e de que estavam à espera de poder interrogar Ebba no hospital. Jennifer ouviu-o, concentrada. Claro que tinha lido sobre o caso. Os tablóides destinavam pelo menos seis páginas por dia ao assunto, e até os jornais diários e os jornais televisivos haviam alinhado. Mas agora podia saber mais. Saber tudo. Sentia-se quase parte da investigação.

O que era uma sensação fantástica.

Não havia nada que Jennifer desejasse mais do que entrar para a Riksmord.

Até agora, o trabalho policial mostrara-se um pouco decepcionante. Procurara a profissão para viver emoções fortes e acção. Gostava de que acontecessem coisas, sempre fora assim. Sempre procurara desafios, tanto físicos como psíquicos. Depois da Academia de Polícia, fora colocada em Sigtuna. E ali continuava.

Muitos controlos de velocidade e álcool, poucas perseguições a assassinos.

Muita administração, pouca adrenalina.

Sentia que era boa em muitas coisas, mas rotinas não eram uma delas.

Já trabalhara com a equipa da Riksmord por duas vezes. Investigações verdadeiras e complexas de homicídios. A primeira vez acabou por ser atingida a tiro num regimento abandonado em Södertälje, da segunda fora Billy que lhe pedira pessoalmente que o acompanhasse a Kiruna para investigar um desaparecimento. Na verdade, não tinham acontecido muitas coisas dessa vez. Para além daquele beijo na pista de tiro, claro.

Jennifer gostava de toda a equipa da Riksmord, mesmo de Sebastian Bergman, com quem os outros pareciam ter alguma dificuldade em lidar, mas gostava particularmente de Billy.

Gostava muito de Billy.

Poder estar sentada no sofá, a beber uma cerveja e a discutir uma investigação de um assassino em série com ele não estava muito longe de uma noite perfeita. Quando ele já não tinha absolutamente mais nada para lhe contar sobre o caso, Jennifer foi à cozinha buscar mais duas cervejas ao frigorífico.

– Queres fazer alguma coisa? – perguntou-lhe quando regressou e estendeu-lhe uma das garrafas.

– Como o quê?

– Não sei. Ir ao cinema. Ir à cidade – parou de falar, sentou-se, bebeu um pouco e ponderou rapidamente se seria uma sugestão demasiado óbvia. – Ir a uma pista de tiro – acabou por acrescentar.

– Não, eu... – Billy abanou a cabeça. Mesmo que tivesse percebido a referência ao que acontecera em Kiruna, não estava a dar sinais disso. – Não – voltou a dizer, distante, ao mesmo tempo que arrancava a etiqueta da garrafa com uma unha.

Jennifer observou-o. Parecera-lhe que algo estava diferente assim que ele chegara, mas afastara o pensamento, já não se viam há muito tempo. Talvez estivesse muito stressado com o trabalho. Talvez tivesse discutido com My. Podia ser algo tão simples como isso. Mas agora, a sensação voltara. E desta vez tinha a certeza. Algo estava definitivamente diferente. Ele estava diferente.

– Aconteceu alguma coisa?

Billy não respondeu de imediato. Olhou para ela. Não com o olhar amistoso e aberto que ela conhecia, este era diferente. Vigilante. Como se a estivesse a avaliar. A tentar decidir se poderia ou não confiar nela.

– O que foi? – perguntou novamente, um pouco insegura e desconfortável com o silêncio. Jennifer viu a respiração de Billy ficar mais pesada e o modo como mordia os lábios, quando desviou os olhos dos dela e ficou a olhar para o chão. Continuava a mexer na etiqueta da garrafa. De seguida, inspirou profundamente e olhou para ela novamente.

– Preciso de te contar uma coisa.

Depois daquilo, Jennifer ficou calada.

Não sabia exactamente o que esperara quando Billy dissera que precisava de lhe contar algo, mas aquilo não fora de certeza. Hinde e Cederkvist, o prazer que lhe dera, como tudo o resto, perdera o interesse, os gatos, o casamento.

A compulsão que crescia, até se tornar a única coisa em que ele conseguia pensar.

O caos.

O ódio de si próprio.

Jennifer percebeu que teria de ser ela a quebrar novamente o silêncio. Aclarou ligeiramente a garganta.

– São apenas gatos – conseguiu proferir e viu que aquela não era a reacção que Billy esperara. O que haveria de dizer? Mal conseguia assimilar o que ele lhe contara, ao mesmo tempo que, de uma maneira estranha, conseguia compreendê-lo. Não o acto de matar em si, mas a força impulsionadora, a caça ao pico da emoção, isso podia reconhecer em si própria.

Quantas vezes não havia roubado coisas de lojas quando era adolescente? Não porque precisasse realmente de alguma delas, mas pela emoção. Forçado a entrada em piscinas públicas durante a noite. Saltado sobre blocos de gelo. O que eram a escalada, os cursos de aventura, o ciclismo downhill, as vezes que experimentara asa-delta e mergulho senão tentativas de, por breves momentos, sentir que estava viva? Tornar a realidade um pouco menos real.

Aumentada. Emocionante. Interessante.

Mas porque lhe contara Billy aquilo?

Por entre os sentimentos de surpresa e confusão, deu por si a sentir-se também um pouco feliz e orgulhosa. Era algo que ele não contara a ninguém, nem sequer a My. Mas contara-lhe a ela. Isso queria dizer que se sentia tão próximo dela, que queria partilhar aquele seu segredo com ela. Significaria mais alguma coisa?

– A questão aqui não são os gatos – suspirou Billy, e Jennifer pensou ouvir uma certa desilusão na sua voz. – A questão é que... é eu fazer isto, de todo... ou ter feito – corrigiu rapidamente.

– Eu compreendo, mas... também a reconheço. Essa procura do momento preciso que realmente nos faz sentir que estamos vivos.

– Mas isto não é como uma porcaria de um bungy jump. Esta merda é doentia!

– Sim, mas...

Parou de falar.

Era realmente doentio. Era estranho imaginar Billy a fazer o que acabara de descrever. Mas, se conseguisse olhar para além da acção em si, tal como ele dissera, a questão ali não eram os gatos; olhar para a força motivadora. O que ele queria alcançar...

– Diz – incentivou Billy através do silêncio. – Diz o que estás a pensar.

– Não sei... – começou Jennifer, hesitante, mas decidiu expor a sua teoria mesmo assim. De qualquer maneira, era impossível a noite tornar-se mais estranha do que já estava. – Levar a cabo a fantasia talvez seja mais importante do que o resultado, por assim dizer.

– O que queres dizer com isso?

– Disseste que estavas... tipo... excitado na pista de tiro em Kiruna, mas aí ninguém morreu. Só imaginaste que estavas a disparar contra pessoas. Foi uma fantasia. Era a fingir.

– Sim...

– Vamos dizer que não se trata do acto de matar em si, mas do poder. A sensação de controlo, superioridade, ligados a um prazer físico. Não é assim tão doentio, pode resolver-se.

– Não faço ideia do que estás a falar.

Billy parecia realmente confuso, e Jennifer hesitou novamente. Tinha experimentado aquilo algumas vezes, mas não era, de modo algum, especialista no assunto. Possivelmente estava a entrar em águas demasiado profundas, mas, perdida por cem, perdida por mil.

– BDSM... Sabes a que estou a referir-me, controlo... asfixia erótica.

Billy olhou novamente para a garrafa, que agora já tinha perdido completamente a etiqueta, como se, de repente, tivesse ficado extremamente incomodado com o rumo que a conversa tomara.

– Acho que isso não é bem a cena da My... – respondeu, em voz baixa.

Jennifer hesitou outra vez. Mas que raios? Ele confessara-lhe o seu segredo, não havia motivos nenhuns para ela agora esconder o que sentia.

Ou vai ou racha. Colocou a mão na perna dele.

– Então não o faças com a My.


ESTAVA A SER A EPÍTOME DE UMA MANHÃ MISERÁVEL.

Tudo o que poderia correr mal correra mal.

O despertador não tocara, por isso acordara demasiado tarde e não conseguira levantar Ella a horas.

Não havia leite em casa, descobriu ao abrir o frigorífico, por isso não pudera beber o seu leite com chocolate e, depois de uma discussão stressada à mesa do pequeno-almoço sobre uma bebida de substituição, não quisera vestir nenhuma da roupa que tinha no roupeiro e não queria ir para a escola. Quando finalmente a conseguira deixar – em calças de ginástica por baixo de uma saia de tule cor-de-rosa e com uma camisola de capuz demasiado pequena com a Elsa do Frozen no peito, assim como uma tiara e sandálias, uma criação que seria decididamente questionada e discutida em casa, ao fim do dia, quando Linda a fosse buscar à creche –, já estava quase meia hora atrasado em relação ao seu horário habitual.

A reunião com o chefe era às nove. Chegaria tarde. Quão tarde dependia do trânsito, mas pelo menos um quarto de hora, talvez mais. Não era bom.

Começara logo na noite anterior. Um dos canais da concorrência decidira, apesar da altura do ano, apostar na estreia de um novo reality show chamado A Última Tentação. A propaganda fora enorme. Os tablóides tinham ajudado, e criara-se interesse à volta dos concorrentes, mesmo antes de o programa começar, o que era sempre positivo.

O chefe ligara-lhe pouco depois das onze da noite. Claes estivera sentado com Linda na varanda, a beber um copo de vinho. Ela suspirara quando o telemóvel havia tocado, levantara-se e fora para dentro quando ele dissera que tinha mesmo de atender.

– Viste o Tentação ontem? – perguntara o chefe, sem sequer o cumprimentar ou pedir desculpa por ligar tão tarde.

– Não – respondera Claes honestamente. Provavelmente devia ter visto o programa, havia de certeza aqueles que pensavam que fazia parte das suas funções de chefe de programação ver pelo menos as estreias dos programas da concorrência, mas tivera outras coisas para fazer. Com a família.

– Correu bem?

– Tiveram um rating de 412 mil. 18,7% de share, dos 15 aos 44. Programa mais visto do público-alvo.

Claes permanecera calado. O que haveria de responder àquilo?

Era um bom resultado. Em finais de Junho. Mesmo muito bom.

Os programas que eles próprios tinham com essas audiências podiam contar-se pelos dedos da mão. Se se amputassem dois dedos. Ou três. Eram números realmente bons.

Já era suficientemente mau a concorrência estar a ultrapassá-los, mas a conversa ainda ia piorar mais.

– Não tivemos uma oferta deste programa para o nosso canal? – perguntara-lhe o chefe num tom de voz que dizia que já sabia a resposta.

– Tivemos – confirmara Claes. – Mas eu recusei.

Silêncio como única reacção. Como se a pergunta «porquê» fosse tão evidente que nem precisava de ser colocada.

– O programa que passaram ontem não era bem a proposta que eu recusei – acrescentara Claes e percebera que aquilo soara mais defensivo do que o pensado. – Fizeram umas quantas alterações, melhorias.

– Como é que sabes, se não viste o programa?

– Falei com os produtores. São os mesmos que produzem o Esposas de Manhattan para nós.

– E essas alterações não podiam ter sido feitas para o nosso canal, é isso?

Uma interrogação evidente. Não era a primeira vez, provavelmente não seria a última.

A chamada terminara cinco minutos mais tarde com a combinação de que se encontrariam nessa manhã. Às nove horas. A primeira reunião do dia.

Claes vinha do mundo das empresas de produção. Aí, tinha durante muitos anos formado equipas, vendido as ideias, colocado a pessoa certa no sítio certo para resolver os problemas que surgiam. Mas o seu ponto forte não eram os conteúdos. Nunca tinham sido. E isso viria certamente ao de cima, um dia.

Talvez hoje.

Os dois predecessores no lugar de chefe de programação tinham durado quatro e nove meses, respectivamente, no cargo. Na estação, falava-se daquele emprego como o único com assento ejectável em todo o escritório. Por isso, estava um pouco nervoso ao deixar o apartamento, era inegável. Ao mesmo tempo, disse para si próprio que se tratava apenas de um péssimo reality show, não era como se tivesse recusado os Beatles.

Chamou o elevador. Nada aconteceu. Carregou novamente no botão. Silêncio total no prédio. Alguém devia ter deixado a grade interior aberta ou então havia algum problema. Que inferno. Começou a descer as escadas rapidamente. Stressado por vários motivos.

A reunião da manhã era um deles.

Outro era esta história do assassino dos reality shows. Tanto Mirre Petrovic como Patricia Andrén tinham participado no seu canal. Era verdade que Andrén participara no Mãe Solteira Procura antes de Claes ser chefe de programação, mas mesmo assim. A imprensa contactava-os, queriam detalhes das gravações, memórias pessoais. Haveria mais alguma coisa, para além do que tinham enviado com o material disponibilizado à imprensa durante as temporadas? Alguma coisa exclusiva? Claes encaminhara-os para a produtora. Não tinha nada para dizer, nem acerca de Mirre nem de Patricia, não conhecera nenhum dos dois, mal sabia quem eles eram, para ser sincero. Não vira os programas onde eles tinham participado. Sim, vira um episódio ou dois porque era obrigado, mas nunca na sua vida os seguiria. Ninguém no canal os seguia.

Aquilo era encarado como televisão para imbecis.

Para vender publicidade.

Programas construídos cinicamente, com participantes escolhidos a dedo para, em simbiose com os tablóides, atrair o público certo e obter o máximo de cobertura mediática. Nem sequer era controverso falar sobre isso. Todos sabiam. Todos pensavam o mesmo. No entanto, sentia que, até naquilo, o canal tinha a expectativa de que ele fizesse mais. Falara-se de um programa especial de uma hora sobre as duas vítimas. Intercalar imagens antigas com entrevistas e reflexões pessoais de família e amigos. Um memorial, por assim dizer. Como se tivessem sido estrelas do desporto ou políticos. Como se tivessem significado alguma coisa. Pronto, isso também era cínico. Claro que tinham significado alguma coisa, e era horrível que duas vidas jovens tivessem sido levadas mas... Memoriais? Por amor de Deus.

Empurrou a porta metálica que dava para o parque de estacionamento subterrâneo e virou para a esquerda. Tirou a chave do carro do bolso e estava prestes a destrancar o Lexus quando o viu.

As asneiras e palavrões atropelavam-se, enquanto olhava em volta, para a garagem vazia. Não dava para acreditar naquela merda.

Estava bloqueado. Algum cretino parara imediatamente atrás do seu carro. E não era um carro qualquer.

Era uma porra de uma autocaravana enorme.


AINDA NÃO ERAM NOVE E MEIA da manhã, mas Torkel sentiu que já estava a ficar com fome. O despertador tocara logo às cinco e um quarto. Depois de uma corrida rápida por uma Estocolmo ainda a dormir, um duche e um pequeno-almoço bastante pobre, fora para a esquadra em Kungsholmen. Antigamente, atribuía o seu frigorífico vazio ao facto de estar muitas vezes fora, mas isso já não era verdade. Tinham-se passado menos de dois dias completos em Ulricehamn, não fora tempo suficiente para que algo passasse do prazo de validade. A verdade era que achava cada vez mais difícil comer sozinho.

Acordar sozinho, adormecer sozinho.

Viver sozinho.

A sensação intensificara-se quando descobrira que Yvonne e Kristoffer estavam noivos. Iam casar no Outono. Numa quinta campestre na região de Bergslagen, onde Kristoffer nascera. Um casamento pequeno. Não estava à espera de ser convidado. Desejava tudo de bom à sua ex-mulher, mas aquele passo dela para uma relação amorosa duradoura apenas tornara mais evidente quão longe ele próprio estava do mesmo.

Fora obrigado a admitir que as coisas com Ursula não iriam evoluir. Tinham acabado no quarto dela, depois do casamento de Billy, com uma garrafa de vinho. Mas, quando a garrafa acabara, Ursula deixara claro que queria que ele se fosse embora. Continuar a tentar e a ter esperança em algo mais não fazia sentido nenhum.

E depois havia Lise-Lotte.

O beijo fora fantástico, trouxera a promessa de algo mais, mas Torkel deixara Ulricehamn sem sequer lhe dizer nada. Prometera ligar-lhe e não o fizera. Não era uma coisa que as mulheres vissem como algo propriamente positivo. Ela também não lhe telefonara. Por isso, o beijo fora literalmente uma vez sem exemplo.

Chegara ao trabalho antes de todos os outros. Desfrutara do silêncio, enquanto se preparava para a actualização matinal com a imprensa. A polícia tinha porta-vozes de imprensa, a maior parte das divisões fazia uso deles, mas Torkel não.

Às nove da manhã encontrara-se com o Quarto Poder. Como esperara, eram mais do que os que tinham estado em Ulricehamn. Muitos mais. Câmaras de filmar em tripés. Uma floresta de microfones colocados na mesa onde ele se sentou. Não havia muito de novo a acrescentar.

Uma terceira vítima mortal, uma jovem mulher gravemente ferida, mas com vida. A identidade das duas já era conhecida. Muito provavelmente, todos naquela sala sabiam tanto sobre as irmãs Johansson quanto a polícia, se não mais.

As perguntas que se seguiram ao seu curto apanhado foram, portanto, todas variações do mesmo tema.

Onde e porquê?

O que acontecera a Ebba?

Quando poderiam interrogá-la?

Porque sobrevivera ela?

Haviam, inacreditavelmente, conseguido manter o pormenor dos testes que as vítimas tinham sido obrigadas a fazer longe da imprensa, e ninguém parecia ter procurado as suas contas nas redes sociais, ou pelo menos não tinham feito a ligação entre os homicídios e as curtas actualizações dos resultados aí publicados.

Não sabiam que Ebba fora aprovada, e Torkel também não pensava contar-lhes, por isso, ao fim de alguns minutos em que parecia que as perguntas apenas se repetiam, dera a reunião por acabada e prometera uma nova actualização assim que acontecesse alguma coisa no caso.

Decidiu subir pelas escadas até ao seu departamento e sentiu, no caminho para cima, que estava com fome.

Billy estava ao balcão da cozinha a servir-se de café quando ele entrou na sala de refeições. Acenou com a cabeça para Torkel e bebeu um pouco da bebida quente.

– Então, chegaste agora?

– Não, estive a falar com a imprensa.

Torkel aproximou-se e abriu o frigorífico. Lançou um olhar a Billy, que continuou a beber o café, conteve um bocejo e esfregou os olhos.

– Estás bem? – perguntou Torkel e tirou a manteiga e o queijo do frigorífico. Billy não era conhecido por se deixar afectar assim tanto pelos casos em que trabalhavam para que ficasse com perturbações do sono, mas nunca se sabia. Às vezes, podia ser algum detalhe específico que espoletasse algo pessoal. Mais valia perguntar.

– Sim, porquê? – perguntou Billy, surpreendido.

– Pareces um pouco cansado.

– Ah, okay. Não, está tudo bem. Deitei-me um bocado tarde ontem.

– Está bem.

Torkel abriu a porta da grande despensa e tirou um pacote de tostas.

– Como vão as coisas? – perguntou.

– Quais coisas?

– Tudo. O trabalho.

– As companhias telefónicas prometeram enviar as listas de chamadas o mais depressa possível e, na melhor das hipóteses, vou receber as imagens das portagens agora de manhã para poder começar a procurar as autocaravanas.

– Avisa se precisares de pessoal para te ajudar com isso.

Billy assentiu. Era muito provável que fosse precisar. Havia muitas portagens à volta das entradas para Estocolmo, e não tinham uma hora exacta para delimitar a procura. Mesmo que soubessem do que andavam à procura, era muito material para rever.

O telefone de Torkel tocou. Enfiou a faca no pacote da manteiga e atendeu, ao mesmo tempo que Billy deixou a sala de refeições com a sua chávena de café. Trinta segundos mais tarde, desligou a chamada, marcou o número de Vanja e perguntou onde ela estava.

O hospital Karolinska entrara em contacto com eles.

Podiam ir lá falar com Ebba Johansson.


VANJA VIROU para a entrada do hospital.

Sebastian estava sentado ao seu lado, em silêncio. Vanja sabia que ele, tal como ela própria, associava em primeira mão o hospital Karolinska a Valdemar, naquele momento. Todavia, nem sequer lhe perguntara se queria falar sobre o assunto, o que Vanja agradecia. Pensou que aproveitaria a oportunidade de estar sozinho no carro com ela para lhe perguntar como estava, oferecer o seu apoio, tentar aproximar-se mais, mas, para além de perguntar se podia desligar o rádio quando começara a passar reggae sueco, permanecera em silêncio.

Quando Torkel lhe telefonara e pedira para ela ir ao hospital e levar Sebastian consigo, Vanja pensara começar por protestar, mas apercebera-se rapidamente de que os conhecimentos dele seriam, na verdade, úteis para aquela visita. Uma jovem rapariga traumatizada. Podia dizer-se o que se quisesse sobre o modo como Sebastian se deixara afectar pelo último caso que tinham investigado, mas não havia dúvidas de que fora uma influência positiva para a pequena Nicole. Também poderia ser positivo desta vez.

Estacionou à porta do edifício onde Ebba Johansson estava internada e, juntos, dirigiram-se para a entrada. Estava um número considerável de pessoas do lado de dentro da porta, notou Vanja, e a maioria parecia esperar calmamente sentada, bastante desocupada. Jornalistas, assumiu, o que se confirmou logo de seguida, quando um homem novo, no fundo da sala, se levantou.

– É o Sebastian Bergman, não é?

Alguns dos outros que estavam à espera despertaram e juntaram-se ao homem mais novo, próximo de Sebastian, que parara.

– Vai andando – disse para Vanja, que, sem abrandar o passo, continuou na direcção da recepção. – Vamos ver quantas variantes de «sem comentários» consigo inventar – continuou, com um sorriso, para a mão-cheia de pessoas que se aproximavam dele.

– Estamos aqui para falar com o Christos Theotokis – disse Vanja quando chegou ao pé da recepcionista, mostrando-lhe discretamente a identificação policial.

– Quinto andar. Os elevadores são ali ao fundo, vou avisar que estão a chegar.

Vanja agradeceu e fez sinal a Sebastian para que avançasse com ela para os elevadores. Nem sequer olhou para os jornalistas que os acompanharam e, menos ainda, se deu ao trabalho de responder às perguntas atiradas para o ar.

– Vão interrogá-la?

– Ela já disse alguma coisa?

– Deu-vos alguma descrição?

– O que lhe aconteceu?

– Porque é que ele não a matou?

As portas do elevador abriram-se, e ela e Sebastian entraram. Um olhar de Vanja foi suficiente para que mais ninguém tivesse a ideia de lhes fazer companhia.

Christos Theotokis, um homem alto, magro, de cabelo escuro e barba imponente, esperava-os quando as portas do elevador se abriram.

– Como é que ela está? – perguntou Vanja, depois de se terem identificado novamente e de começarem a percorrer o pálido corredor hospitalar.

– Não está em perigo de vida, mas não vai voltar a recuperar a visão.

– Sabe-se como ele o fez? – quis Sebastian saber. – Com os olhos?

Christos olhou-o com um certo cansaço no rosto. Sebastian imaginou que, tal como com todos os polícias com quem trabalhava, já lhe tinham perguntado detalhes macabros sobre o seu trabalho demasiadas vezes, em diferentes circunstâncias sociais, e que, por isso, não estava com muita vontade de saciar a curiosidade mórbida de Sebastian.

– O procedimento poderá dizer-nos muita coisa sobre a pessoa em questão, ficaremos com uma imagem mais clara de com quem estamos a lidar – acrescentou Sebastian como resposta ao olhar de Christos, que assentiu em acordo.

– Forçou-lhe as pálpebras e queimou-lhe os olhos. Os ferimentos são consistentes com algum tipo de queimadura com laser.

– E ela estava consciente quando ele o fez? – perguntou Vanja e sentiu um arrepio.

– Não, ela não se lembra de nada.

– Que sorte – respondeu Vanja, aliviada.

O médico parou frente a uma das portas fechadas do corredor e virou-se com seriedade para os seus acompanhantes.

– Está ali dentro. Podem falar com ela, mas tentem não a perturbar.

– E como podemos fazer isso? – perguntou Sebastian. – Temos de falar com ela sobre o homem que lhe queimou completamente os olhos e lhe matou a irmã. Tem alguma ideia de como o podemos fazer sem a perturbar?

O médico lançou um olhar a Sebastian que claramente indicava que eram as pessoas erradas, no sítio errado, para questionar o que ele dizia.

– Vamos ser o mais cuidadosos possível – interveio Vanja. – E, mal ela queira interromper, paramos.

Christos olhou para Vanja e novamente para Sebastian. Vanja só esperava que ele não fizesse outro comentário estúpido e insensível. Christos Theotokis estava a dois segundos de os proibir de entrar.

– Ela é que manda, eu faço o que ela diz – disse Sebastian e assentiu para Vanja. Christos fixou o olhar nele por mais uns segundos para ver se dava algum sinal de estar a ser irónico, depois abriu as portas e deixou-os entrar no quarto, sem dizer uma palavra.

– Vê lá se te comportas! – sussurrou Vanja, zangada, quando a porta se fechou atrás deles.

Ebba Johansson media um metro e sessenta e oito, mas parecia mais pequena, ali, deitada de costas, na grande cama de hospital. O cobertor puxado até ao peito, os braços estendidos ao lado do corpo. Compressas brancas a taparem-lhe os olhos. Os pais sentados ao lado da cama.

– Vanja Lithner, Brigada Nacional de Homicídios. Este é o Sebastian Bergman, é psicólogo e trabalha connosco – disse Vanja, dirigindo-se principalmente aos pais, que apenas assentiram, sem darem nenhum sinal de que se iam levantar para os cumprimentar ou apresentar-se. – Precisamos de falar com a vossa filha por uns momentos, se puder ser?

– É mesmo necessário? – perguntou a mãe com a voz rouca de sofrimento.

– Infelizmente sim.

– Não faz mal – ouviu-se levemente da cama. Vanja olhou rapidamente para Sebastian, que parara perto da rapariga, puxara uma cadeira e se sentara do outro lado da cama, em frente aos pais.

– Olá. O meu nome é Vanja. Precisamos de falar contigo sobre o que aconteceu, se conseguires.

A rapariga assentiu levemente.

Vanja contou rapidamente o que já sabiam para que Ebba não precisasse de desperdiçar energia a contar coisas que já eram do conhecimento deles. Quando acabou, perguntou a Ebba se havia alguma coisa que queria acrescentar, antes de passarem a perguntas mais específicas.

– Ele apresentou-se como Sören, não como Sven – disse a rapariga, tão baixinho que Sebastian teve de se inclinar para conseguir ouvi-la de todo.

– Óptimo, muito bem – comentou Vanja, encorajadoramente. – O restaurante chinês onde se encontraram, lembras-te como se chama?

– Beijing Garden, fica em Sundbyberg.

Vanja assentiu. Enviariam agentes para interrogar o pessoal e ver se alguém conseguia dar uma descrição mais detalhada do que «homem mais velho com barba, boina e óculos». Fora também essa a descrição de Ebba.

Sebastian apercebeu-se repentinamente do motivo pelo qual o perpetrador a cegara. Presumivelmente teria uma série de regras: se fossem aprovados, sobreviveriam. Só que, muito provavelmente, não esperara ter de contemplar os problemas que isso implicaria.

A solução fora cegá-la.

Podia dar-se ao luxo de deixar Ebba descrever o encontro por palavras, desde que não pudesse controlar o modo como as suas informações eram trabalhadas. Não lhe poderiam mostrar fotografias de suspeitos para identificar. Nenhum polícia retratista poderia providenciar um desenho em colaboração com ela. Nada. Claro, talvez conseguisse reconhecer a voz quando capturassem um suspeito, mas identificações de voz feitas por testemunhas nunca haviam sido suficientes para uma condenação em tribunal em caso algum, pelo menos que Sebastian soubesse. Não sem poderem ser corroboradas por provas técnicas, e, até agora, não tinham nenhuma.

– Quantas respostas certas eram necessárias para se ser aprovado? – perguntou Sebastian.

– Um terço. Vinte. Eram sessenta perguntas.

– Sim, isso sabemos, já os vimos. Como é que ele faz? Os testes?

Pela primeira vez durante a conversa, os pais de Ebba reagiram. Ou pelo menos o pai, que se virou para Sebastian com um olhar céptico.

– Ela tem mesmo de vos contar isso?

– Ela não tem de fazer nada, mas quantos mais pormenores tivermos melhor.

Ebba inspirou profundamente e contou-lhes.

Sobre a autocaravana, as correntes, o cronómetro, a venda.

Sebastian reflectiu sobre a venda. Qual era o seu objectivo? As vítimas do assassino já o tinham visto, tinham passado várias horas juntos. Então por que motivo não o poderiam ver durante a prova em si? Valia a pena guardar esse detalhe na memória.

– A autocaravana – comentou Vanja e quis retroceder na conversa. – Consegues dar mais algum pormenor sobre ela?

– Era uma autocaravana. Só a vi de lado. Mas era uma autocaravana normal, com uma risca encarnada ao longo de toda a parte lateral.

Tratava-se de algo de novo. Novo e importante para Billy, que teria de percorrer centenas de fotografias nos próximos tempos.

– Vamos deixar-te descansar – disse Vanja e levantou-se da cadeira, depois de perguntar se havia alguma coisa de que Ebba se recordasse que pudesse ser importante para eles durante a investigação e de ter recebido um ligeiro abanar de cabeça como resposta. – Obrigada pelo esforço que fizeste. Foi muito importante para nós.

Vanja voltou a pôr a cadeira no lugar e acenou com a cabeça para os pais de Ebba quando já estava de saída.

– Ele disse que tinha um aluno – ouviu-se da cama.

Vanja e Sebastian detiveram-se.

– Um aluno?

– Estávamos a falar da atenção que tínhamos recebido, depois de termos ganho aquele prémio, e então ele disse que um dos alunos dele conseguira uma bolsa de estudo para o MIT, no Outono passado, mas que ninguém tinha dado importância a isso.

– Tens a certeza de que foi para o MIT?

– Sim.

– No Outono passado?

– Sim.

Vanja não conseguiu evitar um sorriso.

Um avanço. Um verdadeiro avanço.

Quantas pessoas poderia haver que tivessem ganho uma bolsa de estudo para o MIT no Outono passado? Não podiam ser muitas. E quantos professores poderiam ter tido? Muitos, mas uma quantidade possível de analisar. Tinham passado dos milhares de suspeitos para, talvez, uma dúzia.

– Obrigada Ebba, isto foi mesmo uma grande ajuda para nós.

– Ele drogou-a e levou-a para o carro – disse Ebba, de repente, para o quarto. Talvez pensasse que eles não sabiam como os raptos tinham acontecido. Em consideração tanto por Ebba como pelos pais, Vanja não quisera entrar nesses detalhes. Choro na voz. Sebastian não sabia o que os ferimentos nos olhos haviam feito aos canais lacrimais, mas, de qualquer maneira, as compressas brancas iriam absorver as eventuais lágrimas.

– Não a consegui salvar. Devia tê-la salvado.

Os pais inclinaram-se para a frente. Colocaram as mãos sobre as dela, as vozes baixas e consoladoras. A culpa não era dela. Não havia nada que ela pudesse ter feito. Não podia pensar assim.

Não iria ajudar.

Sebastian permaneceu em silêncio, a observar a cena que se desenrolava na cama do hospital.

Os olhos acabariam por cicatrizar, ela era nova, iria adaptar-se a uma vida enquanto cega.

Mas a culpa e a dor... eram coisas completamente diferentes.

Era algo sobre o qual ele sabia tudo.

A expectativa de proteger alguém.

Prometer a si próprio nunca desiludir, salvá-la a todo o custo.

E acordar da inconsciência apenas para perceber que se falhara.

Que se quebrara a promessa.

E viver com isso para o resto da vida.

Sim, a culpa era algo sobre o qual ele sabia tudo.

Mas não era nada que pudesse dizer para consolar a pequena menina na cama grande.

Então foi-se embora.


TENTAR ENCONTRAR quem atribuíra bolsas de estudo a quem no último ano iria demorar demasiado tempo, compreendeu Billy. Havia um número demasiado grande de fundações, instituições e de outros actores, que distribuíam dinheiro para ir por essa via. Teria de pegar no problema pelo lado contrário. Não poderia haver assim tantos suecos a estudarem no MIT, esperava ele.

O que lhe dificultava o trabalho agora era a diferença horária.

Seis horas.

Passava pouco da hora de almoço em Estocolmo, o que significava que passavam alguns minutos das seis da manhã em Boston. Demasiado cedo para o pessoal administrativo que precisava de contactar estar no local de trabalho.

Mas Billy preparou-se para a conversa, ou para as conversas, o melhor que podia. Consultou as páginas da universidade e percorreu os separadores people e offices, até ter uma lista com as cinco pessoas que, lidos os respectivos títulos e funções, julgava poderem ajudá-lo ou, no mínimo, guiá-lo na direcção certa.

Depois era só esperar.

Foi buscar a terceira chávena de café do dia e apercebeu-se, enquanto esperava que a bebida estivesse pronta, de que teria de se manter ocupado para não pensar na noite anterior. Felizmente, recebera um e-mail da Administração dos Transportes quando regressou ao seu lugar. Dados de login, nome de utilizador e palavra-passe para aceder às imagens das portagens. Billy entrou na página e escolheu a data actual. Reflectiu sobre se tinham alguma indicação de horário que pudesse restringir a busca, mas não. Decidiu começar pela sexta-feira em que Sara e Ebba foram raptadas e pelas portagens mais próximas de Sundbyberg onde se haviam encontrado. Tinha esperança de conseguir reduzir a busca a veículos de matrícula estrangeira, mas as imagens não estavam categorizadas por esses critérios, o que eliminava essa possibilidade. Também não era possível definir o tipo de veículo. Passadas duas horas, percorrera centenas de imagens. Tinham passado duas autocaravanas. As duas com matrícula sueca. Compreendeu que seria impossível percorrer material de vários dias, das dezoito portagens. Teriam de chamar mais pessoal para os ajudar. Principalmente porque havia a possibilidade de o perpetrador ter conduzido à volta de Estocolmo, ter-se mantido longe das portagens ou ter passado por elas durante a noite, quando não se pagava, e, logo, quando também não se registavam os veículos. Tendo em conta a forma bem planeada e inteligente como agira até agora, era um risco iminente. O que transformaria aquilo em tempo perdido para Billy.

Espreguiçou-se e olhou para o relógio. Duas e um quarto. Oito e um quarto em Boston. Valia a pena fazer uma tentativa.

Pegou na lista com nomes e números de telefone que compilara anteriormente, agarrou no telefone e marcou o primeiro número. Vários sinais de chamada. Nenhuma resposta. Desligou e experimentou o número seguinte. Carolyn Bernstein atendeu de imediato. Billy explicou quem era e do que se tratava. Tinham recebido algum bolseiro da Suécia no Outono passado e, se sim, poderiam dar-lhe um nome? Carolyn explicou-lhe que estava a ligar para a pessoa errada, mas deu-lhe o nome da pessoa com quem poderia falar e disse-lhe que ia transferir a chamada. Billy agradeceu, a linha ficou silenciosa.

Demasiado silenciosa, durante demasiado tempo.

A chamada não fora transferida, fora cortada.

Com um suspiro, ligou novamente para Carolyn e explicou que devia ter havido um engano. Carolyn pediu desculpa e tentou novamente. Desta vez, ouviram-se os sinais de chamada. Muitos. Depois um atendedor, que dizia que a pessoa com a extensão 3449 estava de férias e só regressaria na quinta-feira. Se fosse urgente, poderia ligar para outro número. Billy apontou o número, não era um dos que já tinha na sua lista, desligou e fez uma nova chamada. Nenhuma resposta. Frustrado, bateu com o auscultador no telefone e recostou-se na cadeira. Porra que estava mesmo difícil conseguir apanhar alguém que os pudesse ajudar! Estava prestes a voltar a pegar no telefone, a continuar a percorrer os nomes da lista, quando este tocou.

My.

Agora não podia ser. Nem pensar.

Desligou o som, mas não a chamada. Como se não estivesse no seu lugar quando ela ligara e a tivesse perdido. Levantou-se e foi à casa de banho para não ter de ver o pequeno monitor aceso, o qual, silenciosamente, lhe alimentava a má consciência.

Quando regressou, My deixara uma mensagem. Não tencionava ouvi-la. Em vez disso, ligou para o terceiro número do MIT. Katie Barnett atendeu ao segundo sinal e, depois de ouvir do que se tratava, informou-o alegremente de que claro que o podia ajudar. Já tinha falado com o Kenneth? Billy perguntou se era o Kenneth com a extensão 3449 e que, nesse caso, ele só regressava na quinta-feira. Sim, era desse Kenneth que Katie estava a falar. Billy insistiu na urgência do caso. Katie compreendia perfeitamente e prometeu tentar ajudá-lo. Podia dar-lhe o seu número de telefone para lhe ligar de volta quando soubesse alguma coisa? Billy deu-lho, sem grandes esperanças de alguma vez voltar a falar com ela, mas, para sua surpresa, nem dez minutos mais tarde, viu um número +1 aparecer no pequeno monitor. Katie estava a ligar de volta e o que lhe disse era como música para os seus, naquele momento, bastante cansados ouvidos.

– Só temos uma pessoa bolseira da Suécia.

– Olivia Johnson – disse Billy ao afixar uma fotografia de uma mulher jovem, de cabelos e olhos castanhos, no quadro branco da sala. – Estudava Engenharia Biomédica na Universidade Real Técnica até ao ano passado, altura em que ganhou uma bolsa de estudo de dois anos, da Fundação Suécia-América, para continuar os estudos no MIT.

– E temos a certeza de que é ela? – perguntou Torkel.

– Certeza, certeza não, mas é a única pessoa sueca que está lá com uma bolsa agora e entrou no Outono passado.

Torkel assentiu e viu que toda a equipa se endireitava nas cadeiras. Agora já não se tratava de uma revisão das coisas que já sabiam.

Agora tinham uma pista.

Agora era uma caça.

Billy virou-se para a mesa e pegou numa pasta com mais algumas fotografias.

– Estes são os orientadores dela na URT – explicou Billy, enquanto afixava as restantes imagens no quadro. Três homens de meia-idade. – Åke Skogh, professor catedrático de Engenharia Biomédica, Christian Saurunas e Muhammed El-Fayed, ambos professores universitários.

Todos se inclinaram para a frente e observaram as fotografias dos três homens.

Skogh e Saurunas pareciam ter à volta de cinquenta anos. Skogh tinha barba, mas não tinha óculos. Saurunas tinha óculos, mas não tinha barba.

O terceiro, El-Fayed, não parecia ter nem quarenta anos e tinha barba, mas também uma pele bastante mais escura e traços faciais que, em conjunto com o nome, indicavam uma proveniência do Médio Oriente.

– O Skogh e o Saurunas parecem-se mais com as descrições que já temos – salientou Ursula e estabeleceu o óbvio.

– Não queria excluir o El-Fayed, mas, sim, é verdade – concordou Billy.

– E é só a Olivia que está a estudar ou que estudou no MIT? – perguntou Vanja, como que para confirmar que estavam mesmo no caminho certo, que não estavam a desperdiçar tempo.

– Única pessoa da Suécia nos últimos três anos – confirmou Billy com um aceno da cabeça. – Pelo menos é o que o MIT diz, e pareceu-me estarem bem organizados.

Torkel interrompeu, também ele preocupado em serem eles próprios a questionar a nova pista o mais minuciosamente possível, a tentar encontrar eventuais fraquezas ou falhas, para evitarem desilusões mais tarde.

– Também pode ser que o estudante de quem o nosso suspeito estava a falar tenha estudado lá há mais tempo. Há vários anos.

– Segundo a Ebba, ele disse «no Outono passado» – comentou Vanja imediatamente. – Isso não pode querer dizer mais do que o último Outono ou o Outono antes desse, pois não?

– Se ela se lembrar correctamente – acrescentou Ursula, céptica.

– Ela parecia lembrar-se bastante bem dos pormenores, não achaste? – perguntou Vanja e virou-se para Sebastian, que acenou com a cabeça, em concordância.

– Ele mencionou o facto quando falavam sobre a atenção que as raparigas tinham recebido ultimamente por causa do blogue. Parece-me pouco provável que fosse compará-las com um sucesso académico de há vários anos.

– Também pode acontecer que a Olivia seja a estudante certa, mas a pessoa de que andamos à procura tenha sido professor dela há muitos anos – atirou Billy para a discussão. – Manteve contacto com ela, seguiu o percurso académico...

– Falou dela como um dos seus alunos. Se se tivessem passado vários anos, teria dito «um dos meus antigos alunos»... ou não?

– Vou arranjar alguém para verificar os professores que a Olivia teve, antes de entrar para a URT – decidiu Torkel. Vanja recostou-se e observou as fotografias dos três homens no quadro.

– Quanto tempo é que ela estudou na URT antes de ir para Boston? – questionou.

– Dois anos.

– E estes são os únicos professores que ela teve durante dois anos? – continuou Vanja, com um tom que revelava que não podia ser esse o caso.

– Não, teve mais de quinze cadeiras, com quinze professores diferentes – confirmou Billy. – Mas estes três são os únicos que a acompanharam regularmente, desde que começou.

– Começamos por estes então – decidiu Torkel, com um tom que dizia que o assunto estava encerrado. – Bom trabalho, Billy!

– Qual é o próximo passo? Como vamos dividir isto? – perguntou Vanja, pronta para sair dali.

– O Billy certifica-se de que Helsingborg, Ulricehamn e o tal restaurante chinês de Sundbyberg obtêm uma cópia destas fotografias. Pode ser que alguém consiga reconhecer algum deles – disse Torkel directamente voltado para Billy, que assentiu com a cabeça, e apontou para as fotografias dos três homens.

– Então vamos precisar de pessoas para examinar as imagens das portagens. Deram-nos os acessos agora, ao início da tarde.

– Eu trato disso – respondeu Torkel e virou-se para Vanja. – Tu e o Sebastian podem começar a investigar estes três. Eu junto-me a vocês.

Com essas palavras, a reunião terminou. Todos se levantaram.

– Eu vou à medicina legal, se precisarem de me contactar – disse Ursula, reuniu as suas coisas e deixou a sala, juntamente com Billy.

– Vou só à casa de banho e depois vamos – disse Sebastian, com um sorriso, para Vanja, que apenas lhe respondeu com um aceno de cabeça resoluto.

– Lamento que tenhas de ser tu a ficar com ele outra vez – desculpou-se Torkel quando a porta se fechou atrás de Sebastian. – Mas ele não serve para nada nas outras coisas que é preciso fazer.

– Não faz mal.

– De certeza?

– Sim.

Torkel deteve-se e observou-a. Estava diferente desde que desaparecera durante algumas horas, na tarde anterior. Não dissera onde tinha estado quando regressou. Algo distante o resto do dia. Era melhor insistir no assunto.

– Passa-se alguma coisa, tenho a certeza.

Vanja desviou o olhar e dirigiu-o para a janela, como se precisasse de reflectir sobre como se havia de expressar. Torkel esperou, pacientemente.

– Às vezes não sentes que não temos vida para além disto? – perguntou e abriu os braços para incluir toda a sala.

Torkel sobressaltou-se. Pensara que ia falar de algo relacionado com o trabalho ou a família, queixar-se de Sebastian, que agora encaixava nas duas categorias, mas não, isto era maior do que antecipara.

– Eu não tenho mais nada – continuou, sem esperar por uma resposta. – Já me apercebi disso agora e tenho de arranjar alguma coisa.

Torkel assentiu. Compreendia o que ela queria dizer. Talvez melhor do que ela pensava. Também tinha esses pensamentos, de vez em quando. Pois o que tinha ele próprio fora do trabalho, além de uma ex-mulher quase recasada e de duas filhas que já praticamente nunca precisavam dele? Não muito.

– Se precisares de tempo livre para pensar no que vais fazer mais... – interrompeu-se e levantou um dedo para enfatizar as suas palavras. – Mais. Não «em vez de». Se precisares de tempo livre para pensar no que vais fazer mais, só tens de me dizer. Mas és demasiado boa para desistir.

Vanja fez um gesto com a cabeça que indicava que o ouvira, mas que, na verdade, aquilo não alterava nada.

– E íamos mesmo sentir a tua falta – Torkel deu mais um passo e ficou encostado a ela. – Eu ia sentir a tua falta.

Vanja assentiu novamente com a cabeça e abraçou-o com a maior naturalidade.

– Obrigada – disse contra o seu braço, depois de alguns segundos.

Torkel terminou o abraço e pareceu-lhe ver lágrimas retidas nos olhos de Vanja. Compreendeu que ela não devia querer chorar à sua frente.

– Agora põe-te a andar – disse-lhe, com um sorriso.

Com mais um aceno rápido, Vanja virou-se e saiu.


ERA COMO um velho projector de slides, onde a imagem primeiro aparecia desfocada, só se percebiam as cores e contornos, depois alguém ajustava a lente e tudo se focava lentamente.

A autocaravana.

Estava na autocaravana.

Na garagem subterrânea, Claes convencera-se, por entre muitos palavrões, de que teria de ir de transportes públicos para o trabalho e de chegar ainda mais atrasado à reunião. Ficara, por isso, positivamente surpreendido quando o homem de barba se aproximara dele e pedira muitas desculpas. Claes esperara que o dono falasse alemão, a autocaravana tinha matrícula alemã, mas o homem explicara-lhe, num sueco sem qualquer sotaque, que fora à superfície ligar para a assistência, porque o seu telemóvel não funcionava dentro da garagem. Qual era o carro de Claes? Estava a bloqueá-lo? Talvez juntos conseguissem empurrar a autocaravana alguns metros para a frente, para que Claes conseguisse retirar o seu Lexus. O barbudo ia só entrar para a pôr em ponto morto e desactivar o travão de mão.

Claes esperara na parte de trás e não se apercebera de que o homem dera a volta pelo outro lado e aparecera atrás de si, até sentir algo molhado e frio ser pressionado violentamente contra a sua cara e um braço forte à volta do peito.

Claes levantou lentamente a cara do tampo duro da mesa. Sentiu que se babara e tentou limpar a boca, quando percebeu que não conseguia mexer as mãos. Estavam presas à mesa por correntes finas.

– Não estou muito habituado a soporíferos de inalação, por isso não sabia quanto tempo ia ficar inconsciente.

Claes sobressaltou-se e virou a cabeça na direcção da voz. O barbudo virou-se para trás, do banco do condutor onde estava sentado, e olhou para ele. Claes olhou rapidamente à sua volta. Conseguiu ver árvores pelo vidro dianteiro. As outras janelas estavam tapadas por cortinas. Estava sentado à mesa, na parte traseira do veículo. Almofadas compridas lilases nos dois sofás. Plastificadas no lado onde ele se encontrava. Provavelmente era possível, com alguns movimentos simples, desmontar a mesa e fazer uma cama de toda a parte traseira. Pelo menos dava para o fazer na autocaravana onde passara algumas férias de Verão, com os pais, quando era pequeno. Estavam parados.

Se bem se lembrava, o isolamento sonoro não era muito rigoroso nestes veículos. Se houvesse pessoas nas redondezas, talvez o conseguissem ouvir.

– Estamos no meio da floresta. Completamente sozinhos – disse o barbudo como se tivesse lido os pensamentos de Claes, ao mesmo tempo que se deslocou para a parte traseira da caravana.

– Já percebeu quem eu sou ou, pelo menos, o que fiz?

– Não – respondeu Claes sinceramente e admirou-se pelo facto de os pensamentos estarem tão claros naquela situação. Estava aterrorizado, era evidente que o homem fazia tenção de o magoar, de uma maneira ou de outra, mas o seu cérebro estava completamente focado. Reparou em vários detalhes, concentrou-se na conversa, tentou perceber o que acontecera e porquê, para depois conseguir pensar numa maneira de sair daquela situação.

E poder ir para casa, ter com a Linda e com a Ella, outra vez.

– O erro foi meu – disse o barbudo secamente e sentou-se no sofá do outro lado da mesa. Claes não o largou com o olhar. – Alterei o meu modus operandi. Sabe o que isso é?

– Sim.

– Uma expressão em latim que significa «modo de operação» – continuou o barbudo, como se nem tivesse ouvido a resposta de Claes.

– Porque estou aqui? – perguntou Claes, com a voz calma e serena. Precisava de mais informações para poder decidir como iria agir. Também queria iniciar uma conversa. Conseguir um contacto. Claes ouvira várias vezes que era uma pessoa simpática, que era divertido e fácil estar com ele. Esperava que fosse mais difícil para o barbudo fazer-lhe mal se o conhecesse um pouco melhor.

– Não os podemos acusar por tentarem a sua sorte, não é verdade? – respondeu o barbudo e inclinou-se para a frente sobre a mesa. – É, apesar de tudo, aquilo que a sociedade há anos mostra ser a chave do sucesso.

– Não sei do que está a falar – disse Claes com sinceridade. – Mas, se de algum modo o prejudiquei ou o ofendi, peço-lhe sinceras desculpas e gostaria de ter uma oportunidade de me redimir.

O homem do outro lado da mesa sorriu abertamente.

Como se tivesse ouvido algo engraçado.

Aquilo não era bom, sentiu Claes instintivamente.

– É preciso uma mudança vinda de cima. O problema é darem-lhes a oportunidade. É você dar-lhes a oportunidade.

– A quem, a quem é que eu dei oportunidades?

– Eu testo-os – prosseguiu o barbudo, claramente decidido a continuar sem responder às perguntas directas. Puxou para si umas folhas A4 que estavam na mesa perto da janela.

– Sessenta perguntas de cultura geral. Uma ferramenta obtusa para medir conhecimento, eu sei, mas de qualquer maneira dá uma ideia das bases com que podemos trabalhar.

Claes apenas assentiu com a cabeça e olhou para os papéis em cima da mesa. Linhas ordenadamente escritas à máquina.

Um teste.

Cultura geral.

– Vinte certas, ou mais, e são aprovados. Podem viver.

Isso Claes conseguia fazer. Ninguém do seu círculo de amigos gostava de jogar Trivial Pursuit com ele. Era uma espécie de sabichão e bastante mau perdedor, tinha de reconhecer.

Vinte certas e poderia ir-se embora.

Subitamente apercebeu-se.

Quem «eles» eram. A ligação. A quem ele dera a oportunidade.

Como podia não ter percebido mais cedo? Era tão evidente.

– Meu Deus, é você? – conseguiu dizer. – A Patricia e o Mirre...

– Conduz um Lexus, semeia sucessos, ganha dinheiro com a decadência. Por acaso gosta dos programas pelos quais é responsável?

– Não, não, por amor de Deus.

O barbudo lançou-lhe um olhar que lhe provocou arrepios da cabeça aos pés. Sentiu instintivamente que não fora a resposta certa. Talvez não houvesse resposta certa, talvez tivesse sido melhor ficar calado ou, como o próprio barbudo fazia, mudar de assunto.

– Como já disse, alterei o meu modus operandi. O senhor não precisa de nenhum teste.

Claes observou o barbudo empurrar os papéis para o lado, pegar em algo que tinha ao seu lado no sofá e colocá-lo à sua frente.

– Sabe o que é isto?

Sabia.

Uma pistola pneumática.


AXEL WEBER passara o dia inteiro a telefonar a todos os contactos que tinha na polícia e no hospital Karolinska. Precisava de conseguir algo para começar a vasculhar, alguma coisa que pudesse tornar-se um título ou, no mínimo, dar um ângulo único. Mas Torkel Höglund era eficiente a minimizar as fugas de informação. Ebba Johansson estava sob constante vigilância policial, e Torkel tinha, como de costume, limitado o acesso ao caso aos colegas mais próximos da Riksmord. Nem o porta-voz da polícia sabia mais do que o próprio Weber. Clássico de Torkel Höglund. Weber estava impressionado, mesmo que achasse aquilo extremamente frustrante enquanto profissional. Precisava de notícias, de coisas sobre as quais escrever, e as melhores fontes costumavam ser os polícias que batiam com a língua nos dentes. Notícias e furos jornalísticos que geravam tráfico de dados e que vendiam números nas bancas, isso toda a gente conhecia, mas quem queria vender melhor e ser mais visível precisava de revelações ou de histórias que mais ninguém tivesse.

Naquele momento, Weber não tinha rigorosamente nada de único, não sabia nada a mais do que a concorrência. O que implicava ter de concorrer com os outros nas tentativas de reutilizar a informação já disponibilizada e de a apresentar sob um novo pacote. Em casos de homicídios espectaculares como aqueles, essa técnica funcionava bastante bem. Podia falar-se com família e amigos, encontrar testemunhas que tivessem visto veículos misteriosos ou pessoas nas proximidades dos locais dos crimes, fazer ligações com tragédias antigas que lembravam aqueles acontecimentos. Virar e revirar, especular e, acima de tudo, tornar as coisas emocionantes e entusiasmantes.

Os leitores adoravam homicídios, quanto mais brutais melhor, mas também queriam as histórias pessoais que tornavam possível sentirem afinidade com as vítimas, importarem-se com elas. Se se conseguisse combinar isso com um assassino desconhecido, uma malvadez sem rosto, as pessoas leriam tudo o que se escrevesse, e aquilo que os jornais, em conjunto, haviam denominado «o assassino dos reality shows» conjugava todos esses critérios: celebridades que, de certa maneira, eram pessoas normais, com um assassino em série, activo por toda a Suécia e que podia encontrar-se precisamente ao lado do leitor.

Agora até tinham um sobrevivente que era uma figura pública, rapariga, jovem e loira. Não poderia ser melhor. Ele sabia-o, o editor-chefe e o chefe de reportagem sabiam-no, no fundo, toda a redacção o sabia. Era por isso que Weber, mesmo numa fase de constantes cortes orçamentais, conseguira recursos extraordinários. Mas teria de corresponder às expectativas, mostrar que era merecedor da confiança. Os tempos não estavam fáceis para os jornalistas sérios, e aqueles que procuravam factos e não se limitavam a copiar conteúdos das redes sociais ou comunicados de imprensa tinham cada vez mais dificuldade em justificar o seu direito a existir. Os jornais em papel vendiam cada vez menos, e cada vez mais conteúdos eram levados para as versões gratuitas na Net. O jornalismo verdadeiro era caro, e a tendência mostrava que já ninguém estava disposto a pagar por ele. Era stressante, e os cortes orçamentais faziam que ninguém se sentisse seguro. Precisava mesmo de conseguir uma entrevista exclusiva com Ebba Johansson, custasse o que custasse. A melhor ideia naquele momento era uma amiga das gémeas, Johanna Lind, que ficara de se encontrar com Sara e Ebba hoje, para celebrar o seu aniversário. Era um bom ângulo e, provavelmente, geraria citações emocionais fortes sobre perda, amizade e sonhos destruídos. Johanna também era bastante bonita, o que nunca era uma desvantagem. Porém, qualquer jornalista poderia conseguir uma entrevista daquelas.

Amigo desolado da vítima, dor e luto.

Era simples.

Weber queria ser melhor do que isso.

Por isso tinha esperança de que o encontro com Johanna lhe desse algo mais.

Estava decidido a tentar ganhar a sua confiança para que ela o ajudasse a conseguir contacto directo com Ebba. O diário Aftonbladet conseguira um ângulo exclusivo no dia anterior e publicara várias páginas sobre um encontro com o ex-companheiro de Patricia Andrén, que todos sabiam que a havia ameaçado e agredido, mas que agora, na nova versão, era o suspeito inocente que sentia a falta da sua amada Patricia e que estava em risco de não conseguir a custódia do filho por causa da medida de afastamento. Talvez fosse cínico, mas vendia mais do que a verdade, Weber sabia-o. A maior parte das pessoas preferia ler sobre alguém de luto do que sobre um espancador de mulheres marginal. Também não queriam saber que o ex-companheiro cobrara bastante dinheiro pela entrevista. Mas era essa a verdade, o próprio Weber recusara-se a pagar-lhe as vinte mil coroas que ele exigia. Não que tivesse, por princípio, algo contra pagar às pessoas que entrevistava, isso todos os jornais faziam, mas, pessoalmente, tinha algo contra pagar a um homem como Stefan Andersson.

Não estava assim tão desesperado.

Pelo menos, por enquanto.

Olhou para o relógio. Iriam encontrar-se com Johanna Lind às cinco da tarde, ele e um fotógrafo, e conseguira que ela lhe prometesse não falar com mais nenhum jornalista.

Até lá, tinha de encontrar novos pontos de vista, novas ideias, até amanhã. Corriam alguns boatos de que a polícia estava a investigar um restaurante chinês em Sundbyberg, e uma colega fora lá para ver se conseguia alguma coisa. Esperava ter notícias dela em breve.

E, por falar no diabo, pensou quando o seu telefone fixo começou a tocar.

Era Julia, da recepção lá em baixo, sentada por detrás do vidro à prova de bala que tinham instalado no ano anterior, depois de um ataque de neonazis ao jornal.

– Alguém deixou aqui um envelope para ti – disse-lhe, com algum nervosismo na voz.

– Está bem, depois passo aí. É de quem?

– Diz que é de um Sven Cato. Não é aquele assassino?


– NÃO POSSO CONTINUAR ASSIM.

Vanja parou e virou-se para Sebastian, que estava a alguns passos do carro. Acabavam de estacionar à porta o edifício branco de cinco andares, Campus Flemingsberg, que pertencia à Universidade Real Técnica.

– Isto é pior do que quando não sabias nada.

– O que é pior?

– Tu e eu, o silêncio, o distanciamento...

Vanja ficou com uma expressão dura e aproximou-se uns passos de Sebastian.

– Tens razão, é pior, mas sabes que mais? Não és tu o coitado aqui.

– Também não era isso que eu estava a dizer – respondeu Sebastian, imediatamente na defensiva.

– Então o que estavas a dizer?

– Contento-me com uma relação de trabalho, tu sabes disso, mas tu nem sequer falas comigo – tentou Sebastian.

– Aguenta!

– Está bem. Desculpa ter dito alguma coisa.

Mas o pedido de desculpas parecia ter chegado demasiado tarde. Vanja agora estava lançada, tinha necessidade de verbalizar o que estava a sentir.

– Eu não tenho nada! Preciso de arranjar uma vida. Depois. Depois de fazer isso, decido quem quero que faça parte dela. Percebes?

Sebastian limitou-se a assentir. Compreendeu que a discussão estava terminada. Ao menos, tentara explicar-lhe o que sentia. Era um erro que não pensava repetir.

– Mas por favor diz-me se puder ajudar-te em alguma coisa – terminou, numa tentativa de conseguir alguns pontos positivos, e seguiu Vanja até à entrada.

– Não podes – respondeu Vanja, decidida.

O seu telemóvel tocou. Era Billy. Enviara as fotografias para o restaurante chinês em Sundbyberg e falara com os empregados, mas não obtivera grandes resultados. Lembravam-se do homem. Aparentemente insistira em ser ele próprio a levar as bebidas que pedira para a mesa. Provavelmente para as conseguir drogar com os soporíferos, adivinhou Billy, mas, para além disso, não estavam muito seguros de uma identificação. A única coisa relevante fora que uma das empregadas estava certa de que não era El-Fayed. Era demasiado escuro. Ainda que o homem que servira fosse difícil de recordar, tinha a certeza de que era de origem sueca.

– Vamos encontrar-nos com o Skogh agora – disse-lhe Vanja, e empurrou a porta da recepção. Deixou-a fechar-se atrás de si, sem sequer olhar para trás para ver onde estava Sebastian.

– Ligo-te outra vez se conseguirmos alguma coisa de Helsingborg e de Ulricehamn – concluiu Billy e desligou.

Vanja foi até à recepção, apresentou-se e explicou o que pretendiam. Respondeu que não à pergunta sobre se tinham agendado um encontro, mas que era muito importante poderem falar com ele. Depois de uma chamada rápida para Åke Skogh, que do lado da recepcionista consistira em alguns murmúrios e num «claro» final, indicou-lhes o caminho para os elevadores e informou-os de que Åke os esperaria à saída do quarto andar.

– Quem ligou? – perguntou Sebastian quando estavam os dois no elevador.

– O Billy.

– Alguma coisa importante?

– Os empregados de Sundbyberg excluíram o El-Fayed – respondeu Vanja e saiu assim que as portas se abriram.

Åke Skogh transmitiu uma impressão algo cautelosa e céptica quando os cumprimentou e perguntou de que tratava a visita mal começaram a andar em direcção ao seu escritório, mais abaixo, no corredor.

– Queremos falar consigo sobre um antigo aluno – começou Vanja, completamente decidida a tentar evitar, pelo máximo tempo possível, explicar exactamente o que pretendiam. Em casos menos mediáticos, uma abordagem totalmente aberta podia ser uma estratégia bem-sucedida, mas aqui o risco de fugas de informação era demasiado grande, e não queria que Olivia Johnson fosse oficialmente relacionada com o assassino dos reality shows. Pelo menos por enquanto, principalmente visto que tinham de interrogar várias pessoas no mesmo local de trabalho.

– Vêm duas pessoas a Flemingsberg para fazer perguntas sobre um ex-aluno? – questionou Skogh e indicou-lhes o seu escritório. – Não têm telefones?

– Olivia Johnson. Sabemos que foi um dos orientadores dela – disse Vanja, abanando a cabeça e permanecendo de pé quando Åke Skogh lhes apontou as cadeiras à volta da pequena mesa de reuniões. Sebastian puxou uma e sentou-se.

– Aconteceu alguma coisa à Olivia? – perguntou Åke com preocupação e sentou-se atrás da sua secretária.

– Não, está tudo bem com ela, que saibamos. Foi orientador dela no ano antes de ela ir para o MIT? – continuou Vanja calmamente.

– Continuo a ser orientador dela – Åke olhou de Vanja para Sebastian e de volta para Vanja. Continuava céptico e confuso em relação à presença deles. – Vão-me explicar porque estão interessados na Olivia?

– Não, por enquanto não, e isto será mais rápido se se limitar a responder às nossas perguntas, em vez de fazer as suas – respondeu Vanja factualmente e pegou no seu bloco de notas.

– Sou suspeito de alguma coisa? – perguntou, mesmo assim, Skogh.

– Tenho aqui algumas datas e gostava de saber onde se encontrava em cada uma – continuou Vanja sem responder à pergunta. – Dia dezassete e dia vinte e três de Junho.

– Então sou mesmo suspeito de alguma coisa? – determinou Skogh.

– Se calhar só queremos poder excluí-lo.

– Isso não é basicamente a mesma coisa?

Olhou para cada um novamente, percebeu que também não iria obter resposta desta vez e retirou o telemóvel do blazer, que estava pendurado na cadeira.

– No dia dezassete de Junho, trabalhei meio dia e depois fui para Bohuslän, para festejar o solstício de Verão. No dia vinte e três, estive na Universidade de Linköping – respondeu, depois de consultar a agenda.

– E consegue prová-lo de alguma maneira?

– A minha família foi comigo para Bohuslän, e em Linköping éramos vários colegas. Posso pedir à minha assistente para vos dar alguns nomes – disse. – Porque querem saber? – tentou novamente com um certo nervosismo na voz, reparou Sebastian.

– Quando a Olivia ganhou a bolsa de estudo, o que sentiu? – perguntou-lhe calmamente. Era a primeira vez que falava desde que se apresentaram, e Åke reagiu ao novo participante na conversa.

– O que senti?

– Sim.

Åke encolheu um pouco os ombros como que para mostrar que só havia uma resposta àquela pergunta.

– Fiquei orgulhoso. Contente. Ela merecia mesmo.

– Acha que ela recebeu atenção suficiente?

– Está a perguntar da parte da escola?

– Não, em geral, imprensa, televisão talvez?

– Não, quero dizer... isto é uma coisa importante no nosso pequeno mundo, mas não se torna publicamente conhecido, isso nunca acontece.

Sebastian assentiu para si próprio. Parecia que o professor Skogh também não achava que deveria ter sido notícia de primeira página.

– O que acha do Paradise Hotel? – perguntou-lhe e mudou de assunto num tom despreocupado.

– O que é isso?

– Um reality show. Passa na televisão.

– Nunca vi. Não tenho televisão.

Sebastian olhou para Vanja e conseguiu perceber que ela também pensava que as respostas tinham sido sinceras. Era boa nisso. A detectar as nuances no discurso. Os pequenos sinais de mentiras ou meias-verdades. Aqui parecia não ter detectado nada.

– Christian Saurunas, conhece-o bem? – retomou Vanja e redireccionou a conversa novamente, parecia-lhe que pela última vez.

– Sim, claro que sim, foi professor aqui.

– O que quer dizer com «foi»? – perguntou Vanja, surpreendida.

– Já não trabalha cá.

– Porquê?

– Ficou sem meios e foi obrigado a terminar a investigação connosco – respondeu Åke, sem grande interesse. Aquela única frase deu a Sebastian a impressão de que não tinham sido amigos próximos, de que não teriam convivido fora do trabalho. Inclinou-se um pouco para a frente.

– Sem meios? O que quer isso dizer? – perguntou-lhe.

– É quando não se encontra financiamento. Na nossa área, temos de conseguir subvenções para fazer investigação e, se tivermos azar, ela não é considerada interessante, actual ou necessária, e então não recebemos dinheiro. Temos de nos ir embora. Não é como num local de trabalho normal. Aqui temos de arranjar o nosso próprio dinheiro – esclareceu Åke e, pela primeira vez desde o início da conversa, soou como o professor catedrático que era.

– E o Saurunas não conseguiu? – prosseguiu Sebastian.

– Não, já andava com problemas de dinheiro há alguns anos. A investigação dele não era considerada suficientemente actual. Recebeu algumas críticas por isso – continuou Åke, num tom que demonstrava que compreendia a decisão de cancelar o financiamento.

Sebastian reagiu àquela nova informação. Isto podia realmente ter algum significado. Havia algo no ódio do assassino à actualidade que podia perfeitamente relacionar-se com alguém que descobrira que o seu trabalho, os seus conhecimentos, já não eram considerados actuais.

– E isso aconteceu quando? – perguntou Sebastian, entusiasmado.

– Foi agora em Maio. Acho que o último dia dele foi... – Skogh pegou novamente no telemóvel e procurou. – Dia vinte e dois de Maio.

Mais ou menos um mês antes de Patricia ser assassinada, pensou Sebastian e sentiu o corpo todo a reagir. Poderia estar certo. Um momento de mudança de vida poderia transformar em acção algo que há muito tempo era uma fantasia. Não se começava simplesmente a matar. Não acontecia sem um motivo.

Normalmente era preciso algo que obrigava a pessoa a transpor uma fronteira.

Uma derrota ou algo humilhante, como ser despedido.

Ou ficar sem financiamento.


AXEL WEBER observou o pacote amarelo-torrado almofadado que estava em cima da sua mesa. O nome do remetente estava escrito em letras pretas impressas num pequeno autocolante branco.

Sven Cato.

Podia ser uma piada de mau gosto, mas, por algum motivo, achou que não era esse o caso. Porque mais valia prevenir do que remediar, fora procurar um dos empregados de limpeza e pedira-lhe um par de luvas de borracha. Se o pacote fosse mesmo do assassino que se apelidava Sven Cato, acabaria em breve por ser entregue à polícia, e Weber, nesse caso, queria pelo menos evitar ser criticado por ter destruído eventuais impressões digitais.

A forma do pacote grosso indicava que havia algo duro e rectangular no seu interior e, por alguns instantes, ponderou se o conteúdo poderia ser explosivo ou perigoso de alguma maneira. Deveria contactar o departamento de segurança ou deixaria a curiosidade guiá-lo? A curiosidade ganhou, mas tentou afastar a cara quando inseriu a faca de papel e, cuidadosamente, começou a abrir o pacote. Quando terminou, inclinou a abertura para baixo e deixou o conteúdo escorregar pelo tampo da secretária.

Um telemóvel dentro da caixa de cartão original.

Um cartão SIM pré-pago ainda preso a um cartão plástico maior.

Um envelope A4.

Weber começou pelo envelope e, como não estava selado, apenas teve de levantar a parte de cima e retirar cuidadosamente o conteúdo. A primeira coisa a sair foram algumas páginas agrafadas, que, à primeira vista, pareciam conter uma lista enorme de perguntas.

«O que quer dizer o acrónimo OTAN?» era a primeira pergunta. Por baixo das folhas com o questionário, Weber encontrou uma carta escrita à máquina.

Desdobrou-a e começou a ler.

Caro Axel Weber,

No passado recente, escrevi ao vosso chefe de redacção, Lennart Källman, sobre um assunto semelhante, mas ele decidiu ignorar por completo a minha carta, pelo que venho agora fazer uma nova tentativa consigo.

Na vossa publicação, tal como em todas as outras, apresentam-me como um maníaco absoluto. Como alguém que, aleatoriamente, escolhe alguns jovens pseudofamosos e os mata. Nada poderia estar mais errado. Porém, a minha motivação para exercer estas acções não transparece em lado algum, nas vossas reportagens.

É imperativo acabarmos com a idolatria da estupidez.

Parar de fomentar o desprezo pelo conhecimento e o anti-intelectualismo.

Parar de dar aos preguiçosos, egoístas e superficiais a atenção que os instruídos empenhados, inteligentes e organizados, deveriam receber.

Constato que dois factores, em conjunto, contribuíram para que isto não tenha transparecido correctamente:

O primeiro é que a polícia reteve informação que tornaria a minha motivação mais clara e as minhas acções mais compreensíveis.

Esta carta vem acompanhada de um teste. Todas as vítimas tiveram de o completar, e três de quatro foram, não inesperadamente, reprovadas.

Para que não pense que se trata de uma brincadeira ou de uma tentativa desesperada de chamar a atenção através dos actos de outra pessoa, remeto para as seguintes fontes:

Comentário inserido às 03h16 na última actualização da conta de Facebook de Patricia Andrén;

A última fotografia na conta de Instagram de Miroslav Petrovic;

O comentário inserido às 02h28 na última actualização do blogue das irmãs Johansson.

Aí encontrará os resultados das provas, registados com os telemóveis das próprias vítimas, depois das suas mortes. Uma informação que espero que os vossos contactos na polícia possam verificar.

O segundo factor que contribuiu para que a minha motivação não tenha transparecido é que cometi um erro. Reconheço-o. Atacar o problema crescente da glorificação da estupidez através da eliminação dos estúpidos é o mesmo que tentar matar ervas daninhas cortando-lhes as flores. É evidente que é preciso arrancar as ervas pelas raízes. Ir à fonte do problema. Agarrar os problemas pela base. Com a vossa ajuda, espero conseguir trazer luz a esta questão.

Temos de nos perguntar se realmente queremos viver numa sociedade onde se permite às pessoas que nunca leram um livro, que não conseguem resolver a equação mais simples ou sequer compreender instruções básicas, serão após serão, semana após semana, inundarem as televisões com, entre outros, a vossa publicação como ávida instigadora e megafone publicitário, enquanto jovens investigadores, com a possibilidade de mudarem o mundo, caem no silêncio e no esquecimento completos.

O senhor parece-me, por aquilo que já li do seu trabalho, ser um dos mais inteligentes na sua área e, por isso, assumo que compreenderá o que espero que faça com o conteúdo restante desta remessa.

Melhores cumprimentos,

CATÃO, o Velho

Weber leu a carta mais uma vez. Havia tanta coisa ali, era tudo uma loucura, em tantos sentidos. Um assassino em série mandara-lhe uma carta. Apenas isso era suficiente para um suplemento extra, mas havia outras coisas também. Mais, muito mais.

Que a polícia retivera informação sobre os testes.

Que o homicida iria «à fonte», «agarrar os problemas pela base». O que significava aquilo?

Novas vítimas? Outro tipo de vítimas? E quais, nesse caso?

O instinto dizia-lhe que a carta era legítima. Que realmente fora o assassino a escrever-lhe, mas não bastava guiar-se pelo instinto. Não quando as coisas estavam a este nível.

Weber pegou no documento. Leu a curta lista na carta e apercebeu-se de que ele próprio poderia controlar os dados, mas que levaria mais tempo. Olhou à sua volta pela redacção. Kajsa Kronberg estava sentada a algumas mesas de distância. Weber não estava totalmente seguro, mas tinha ideia de que ela era a mais nova do grupo. Levantou-se e foi até lá.

– Tu tens Instagram e Facebook e essas coisas, não tens? – perguntou-lhe, ao agachar-se ao lado da sua secretária.

– Sim.

– Preciso de ajuda com uma coisa.

– Está bem.

Explicou-lhe o que queria que ela procurasse, e menos de dois minutos mais tarde tinha tudo confirmado. Todos os resultados estavam publicados nas contas das próprias vítimas. Se tinham sido registados com os seus próprios telemóveis, era impossível saber, segundo Kajsa, mas Weber estava convencido de que essa parte da carta também correspondia à verdade.

Porra, isto estava a ficar cada vez melhor.

Agradeceu a ajuda de Kajsa e regressou à sua secretária.

Começou a ler as perguntas com atenção. Era uma mistura curiosa. Questões de cultura geral, poder-se-ia dizer. Um tipo de cultura geral antiquado. Rios e espécies de animais, reis e história. Ciências naturais e geografia. Conhecimentos que talvez em tempos tivesse sido importante saber de cor. Sabia algumas respostas, outras não. Perguntou-se qual seria a fronteira entre reprovado e aprovado, entre a vida e a morte, se ele próprio seria considerado digno de sobreviver.

Tanta loucura.

Tanto potencial.

Uma oportunidade fantástica, principalmente se tivesse sido o único jornalista a receber a carta.

A questão agora era como devia lidar com aquilo. Agarrou no resto do conteúdo do pacote. Havia apenas uma razão para alguém enviar um telemóvel com um cartão pré-pago novo. Weber abriu a embalagem e retirou o telefone. Era um modelo de gama baixa, que provavelmente não custara mais de umas dezenas de euros. Retirou a parte traseira para inserir o cartão SIM. Encontrou o sítio para o inserir por baixo da bateria e desencaixou o pequeno chip de plástico do cartão maior. Inseriu-o, voltou a colocar a bateria e depois a tampa traseira. Ligou o telemóvel. Ele acendeu-se. Retirou o carregador da embalagem para o ligar à corrente quando viu que tinha a bateria carregada. Observou o telefone por breves instantes e estava prestes a começar uma busca por números, moradas ou qualquer outra coisa quando o aparelho apitou.

Duas mensagens escritas.

Abriu-as e leu a primeira no pequeno ecrã. Era a operadora a desejar-lhe as boas-vindas enquanto cliente.

Abriu a segunda.

Esta era mais pessoal.

Endereçada directamente a si.

«Se puder confiar em si, dou-lhe uma entrevista exclusiva. Se ligar à polícia, vou saber», dizia. Weber levantou-se instintivamente, deu alguns passos para trás, passou as mãos pelo cabelo, pelo queixo. Era impossível ficar quieto. Impossível ficar indiferente.

Isto era importante.

Era a coisa mais importante que já lhe acontecera em todos os anos de repórter criminal.

Nunca pensara em si próprio como alguém que procurava reconhecimento sob a forma de prémios e distinções, mas isto poderia ser lendário.

Tinha decididamente de falar com o chefe, apercebeu-se, não era uma decisão que poderia tomar sozinho; mas a mera ideia de Källman lhe dizer «não» fê-lo hesitar.

Três pessoas assassinadas. Uma hospitalizada.

Agir por conta própria acarretava um grande risco; no entanto, também havia outros riscos que teria de juntar à equação.

Como envolverem a polícia.

Não era muito provável, Weber conhecia o seu chefe bastante bem e sabia que era um homem que não tinha medo de controvérsias. Tinha, por exemplo, defendido com todo o coração e até às últimas consequências um colega de Weber que comprara armas ilegais em Malmö. E também havia o princípio da protecção das fontes em que se apoiar. Pessoas que forneciam informações para publicação tinham anonimato garantido. Ainda que, normalmente, as pistas que conseguiam não fossem deste nível, parecia-lhe que sobreviveria a uma investigação. Então, a ideia de Källman entregar tudo directamente à polícia não era provável.

Não, o maior risco era ser obrigado a partilhar e a juntar-se a alguns colegas. Pia Lundin e o seu departamento de televisão online eram prioritários aos olhos da direcção. Material exclusivo na Net funcionava como o íman de cliques. E cliques traziam anunciantes. A palavra escrita devia preferencialmente ser substituída ou, de alguma maneira, ser completada com imagens em movimento.

Ponderou alguns momentos, decidiu-se, sentou-se novamente, pegou no telemóvel e respondeu à SMS.

Fora ele quem recebera a carta.

Ninguém lhe tiraria aquilo.

«Pode confiar em mim», escreveu rapidamente.

Iria seguir a pista por mais algum tempo, antes de contar a alguém.

Ver onde tudo aquilo levava e depois informar Källman, antes da publicação.

Teria de ser assim. Era jornalista, este era o seu trabalho.

Passados trinta segundos, recebeu uma resposta.

«Vá até à Biblioteca Nacional», dizia.


ESTAVAM DE REGRESSO à sala. O ambiente geral era de concentração, como há muito tempo não acontecia. Vanja e Sebastian tinham, os dois, conseguido convencer Torkel de que Christian Saurunas era a pista mais interessante, o que fora ainda mais reforçado quando Billy chegara e contara as novidades sobre Ulricehamn. Eva Florén falara com o pessoal do hotel Kurhotellet, e Saurunas era o único dos três que lhes lembrara do homem que tinham visto com Mirre. Era verdade que a pessoa que haviam visto tinha barba, por isso estavam longe de ter alguma certeza, mas haviam excluído El-Fayed pelo mesmo motivo que a empregada em Sundbyberg, tinha simplesmente uma aparência demasiado «não sueca», e Åke Skogh não se parecia minimamente com o suspeito, afirmavam com segurança. Havia algo com a forma da sua cara e o nariz. Tudo isso levou Torkel a retirar prioridade à lista de participantes da viagem a Linköping que tinham recebido da assistente de Åke Skogh. Ia obviamente ser controlada, mas não precisava de o ser agora, nem por eles. Principalmente porque Vanja, ao regressar da Universidade Real Técnica, conseguira contactar a mulher de Åke Skogh, que confirmara que toda a família fora para Åland naquela quarta-feira, para festejar o solstício de Verão, e ficara lá até domingo. Uma vista de olhos rápida pelas fotografias na sua conta de Facebook confirmava o testemunho. Por isso, agora concentravam-se no professor universitário afastado.

Billy imprimira toda a informação que conseguira encontrar no pouco tempo de que dispusera.

Christian Ignas Saurunas, nascido a 4 de Fevereiro de 1962, em Norrköping. Engenheiro Civil. Professor de Engenharia Biomédica na URT, desde 1998. Divorciado há três anos, sem filhos. Pai falecido em 1999, mãe registada como emigrada para a Lituânia e uma irmã que continuava a viver em Norrköping, para onde os pais tinham imigrado em 1958 e onde tinham vivido até à morte do pai. Tinha carta de condução e, segundo os dados da Direcção-Geral dos Transportes, era proprietário de um Volvo vermelho, modelo S60, de 2007.

Torkel sobressaltou-se quando leu os dados sobre o carro. Ainda não tinham encontrado o Volvo vermelho que uma testemunha vira perto da escola Hildingskolan, em Ulricehamn.

– Pois, eu sei – disse Billy, quando Torkel levantou a questão. – Claro que pode ser o mesmo carro, mas, para começar, acho que as pessoas devem conseguir ver a diferença entre um S60 e um V70.

– Nem toda a gente, já sabes como é com as testemunhas oculares – retorquiu Torkel. – Começam a falar uns com os outros, preenchem-se lacunas e depois todos concordam que viram uma coisa que, na verdade, não viram.

– Claro que sim, mas o carro do Saurunas está registado com a matrícula GVL665, e a testemunha de Ulricehamn deu-nos a matrícula AYR393.

– Mas enganou-se, acabámos de estabelecer isso.

– Porra, não se pode ter enganado assim tanto, nem uma letra é a mesma!

Torkel assentiu, Billy tinha razão. Tendo em conta o modelo e a matrícula, era difícil que aquele fosse o carro que estivera em Ulricehamn.

Continuou a analisar o material.

Saurunas não estava registado como proprietário de nenhuma autocaravana e não tinha qualquer registo criminal. A última morada conhecida era o número 43 da rua Bäckvägen, em Aspudden.

Não tinham muita coisa, mas era um começo.

O apoio que Vanja pedira já se encontrava à sua espera, num Saab descaracterizado, quando chegou ao número 43 da rua Bäckvägen, um bloco de vivendas geminadas amarelas, com quatro pisos.

– De quem estamos à procura? – perguntou a agente da polícia, depois de se cumprimentarem com um aceno de cabeça.

– Um tal Christian Saurunas, queremos interrogá-lo – respondeu Vanja.

– É a cena dos reality shows?

Vanja assentiu discretamente.

– Mas não quero uma palavra sobre o assunto – acrescentou.

– Tudo bem, compreendido – respondeu o agente mais novo e reforçou as palavras com uma certa expressão de admiração.

Entraram no prédio com o código que Vanja conseguira arranjar. Demoraram alguns segundos a habituar-se à escuridão relativa da escada depois da luz forte do exterior. Saurunas vivia no terceiro andar, e Vanja tomou a dianteira. Quando chegaram, procuraram o apartamento com o nome de Saurunas na caixa do correio. Vanja tocou à campainha. Várias vezes. Esperou alguns minutos. Encostou a orelha à porta para tentar discernir se alguém se movia lá dentro, mas não ouviu nada. Virou-se para os outros dois.

– Também não atende o telemóvel – informou-os em voz baixa. – Vamos bater às portas e perguntar se alguém o viu. Mas, como já disse, só queremos falar com ele. Não digam com o que está relacionado.

Os colegas fardados assentiram.

– Vão para os outros andares, eu começo por aqui – concluiu Vanja, virou-se para a porta dos vizinhos e tocou. Uma mulher mais velha, com um vestido simples e de cabelo grisalho apanhado, abriu a porta. Olhos atentos e curiosos observaram Vanja quando apresentou a identificação policial.

– Olá, chamo-me Vanja Lithner e sou da polícia. Tenho algumas perguntas sobre o seu vizinho, o Christian Saurunas – disse amavelmente.

A mulher reagiu como a maior parte das pessoas naquela situação, com mais curiosidade do que outra coisa. Havia sempre algo de excitante com uma visita da polícia. Vanja ouviu uma porta abrir-se no andar de cima e uma conversa semelhante à sua a decorrer.

– O que aconteceu? – perguntou a mulher.

– Só queremos falar com ele – respondeu Vanja e achou sobretudo simpático a mulher ter perguntado o que acontecera e não o que Saurunas fizera. – Quando o viu pela última vez?

A mulher reflectiu durante algum tempo antes de responder.

– Já deve ter sido há algumas semanas, acho eu. Espere – virou-se para o interior do apartamento e chamou para alguém. – Karl, quando foi a última vez que viste o vizinho?

– Qual deles?

– O do lado, aquele com o nome esquisito.

Vanja assumiu que os vizinhos não se relacionavam diariamente, uma vez que nem tinham a certeza do nome certo. Mas as coisas eram assim. Podíamos viver uns ao lado dos outros durante vários anos, sem sequer trocar uma palavra. Ela própria nunca falava com os vizinhos mais próximos, nem sabia os seus primeiros nomes, uma vez que não estavam escritos nas caixas do correio.

– Não sei – respondeu um homem de dentro do apartamento, com uma voz rouca.

Vanja ouviu alguém movimentar-se e, de seguida, apareceu uma figura acinzentada, de roupão. O homem coxeava, andava com a ajuda de uma muleta e parecia ter dores ao mexer-se.

– Quem quer saber? – perguntou, ao ver Vanja.

– É a polícia. – Vanja viu o homem deter-se, surpreendido, e ficar imediatamente sério. – Disse-lhe que foi há umas semanas – continuou a mulher.

O homem abanou a cabeça.

– Não, não, foi há mais tempo que isso. Meteu umas malas no carro e foi-se embora a 25 ou 26 de Maio, por aí. Não te lembras de te dizer que o tinha encontrado nessa altura? Quando estava tão chateado?

– Pois foi, mas foi assim há tanto tempo? – assentiu a mulher.

– Sim, eu pelo menos não o vejo desde essa altura.

– Então deve estar certo, tu costumas lembrar-te dessas coisas melhor do que eu – respondeu a mulher, sem a menor dúvida na voz.

O homem aproximara-se mais da porta. Estendeu a mão a Vanja, olhos atentos e um aperto firme. – Olá. Karl Johansson. O corpo está um bocado débil, mas a cabeça não tem problema nenhum. É verdade, ele nem queria contar para onde ia, mas levava muitas malas com ele.

Vanja assentiu. Era informação interessante, nada de verdadeiramente decisivo, mas mantinha-o como possível assassino. Os homicídios em série tinham começado a 17 de Junho.

– Nunca o viram com uma autocaravana? – perguntou-lhes.

– Não, só com aquele Volvo que ele conduz.

– Okay, e tem a certeza das datas?

O homem assentiu com convicção.

– Sim, eu fui operado no dia 27 – levantou a muleta. – Foi um ou dois dias antes disso.

Vanja agradeceu-lhes e desceu as escadas, em busca dos colegas. Karl parecera-lhe credível, mas havia uma possibilidade de alguma outra pessoa do prédio ter visto Saurunas depois daquela data.

Ninguém o vira. As outras pessoas com quem haviam conseguido falar só tinham visto Saurunas durante o mês de Maio, exceptuando uma rapariga mais nova do rés-do-chão, que também o vira a arrumar o carro e partir, mas que pensava que fora mais tarde, apesar de não ter a certeza. Poderia ter sido no final de Maio.

Vanja decidiu pedir a Torkel para deixarem a casa sob vigilância. Era uma medida cara e talvez difícil de justificar, tendo em conta que não era visto há várias semanas, mas estava convencida de que Torkel o ia autorizar. Não deixava de ser um assassino em série, e estavam em observação atenta. O próximo passo seria tentar descobrir para onde Saurunas fora, nesse dia, há pouco mais de um mês, e onde se encontrava agora.


WEBER REQUISITARA um carro e conduzira como um louco pelo trânsito confuso de Estocolmo. Piorava de ano para ano, e não era apenas o número de carros que aumentava. Algumas ruas haviam sido permanentemente cortadas ao trânsito, e outras tornavam-se mais estreitas com o alargamento das ciclovias. Era uma decisão política que Weber, por princípio, apoiava, excepto nos raros dias em que precisava de se deslocar de carro. Sim, obrigado, a uma cidade sem carros, pensava, tirando quando era ele próprio que tinha de usar um, aí praguejava como, e para, os outros automobilistas. Acabou por infringir o código da estrada e por utilizar a via reservada aos transportes públicos na avenida Kungsgatan, para ganhar algum tempo. O telemóvel barato que recebera pelo correio estava ao seu lado, no assento do passageiro. De vez em quando, olhava para ele e pensava se teria feito a escolha certa em simplesmente deixar a redacção, sem dizer a ninguém o que se passava. Tratava-se, apesar de tudo, de um assassino em série.

Um homem capaz do pior.

Não obstante, se queria acabar a corrida em primeiro lugar, teria de assumir alguns riscos. No entanto, prometera a si próprio que seria cuidadoso, que se afastaria ao menor sinal de perigo. Manteria a cabeça fria e não se deixaria levar pelo sentimento de aventura e suspense. Demasiada adrenalina estava, muitas vezes, na base de más decisões.

Inspirou profundamente, conseguira passar a praça Stureplan. Estava perto agora. Virou para a rua da Biblioteca Nacional em Humlegårdsgatan. Pouco depois de ter entrado na zona do parque, viu o grande e elegante edifício amarelo-claro, por entre as copas das árvores verdejantes. Deu-se conta de que havia muito tempo que não ia ali. Certamente mais de cinco anos. A Internet tornara o trabalho de pesquisa mais simples, mas, de certa maneira, também mais aborrecido. Todavia, não nos podíamos opor ao desenvolvimento, por mais que quiséssemos. Claro que podia sentir falta dos tempos em que os jornalistas e o jornal eram todo-poderosos, quando todas as notícias e toda a informação chegava a partir dos dedos deles, com as suas vozes. Porém, havia algo extremamente democrático nos novos tempos, que Weber apreciava. Que a informação, a comunicação e as notícias já não fossem controladas apenas por algumas famílias estava mais de acordo com a sua inclinação política. Claro que havia imensa coisa de má qualidade, mas também havia o contrário. Queria acreditar que isso também dava uma imagem mais realista da humanidade e da vida como pessoa. O problema era que a maior parte das pessoas só procurava informação que confirmava aquilo que já pensavam saber e não ligavam ao resto. A Net, tal como a existência, era mais complexa do que muitos queriam que fosse.

Por mais que procurasse, não encontrava lugar para estacionar. A faixa amarela ao longo do passeio indicava lugares de descarga, mas ali havia pelo menos um espaço. No pior dos casos, pagaria a multa, decidiu. Saiu do carro. Dois caminhos largos de gravilha levavam até à biblioteca. Dos lados, e atrás de si, estendia-se o parque Humlegården. Um parque grande, bonito e muito frequentado nas noites de Verão, cercado pela cidade de pedra.

Começou a caminhar. O telemóvel barato na mão. Olhou novamente para a mensagem escrita, só para confirmar. Apesar de já a ter lido mais de dez vezes. Continuava a ler «Vá até à Biblioteca Nacional».

Qual seria o próximo passo? Deveria responder à mensagem e dizer que já lá estava ou deveria aguardar? Decidiu aguardar e foi até à grande escadaria de pedra onde várias pessoas estavam sentadas a ler, a beber um copo de vinho ou apenas a apreciar o fim de tarde ameno de Verão. Mal subiu o primeiro degrau, o telemóvel começou a vibrar. Weber deteve-se. Outra mensagem, e não podia ser coincidência ter chegado naquele momento exacto.

Cato estava a controlá-lo.

A vigiá-lo.

Weber olhou novamente à sua volta, era impossível não o fazer. A ideia de que um assassino estava algures ali a observá-lo era assustadora, mas também estranhamente exaltante. Sentiu a pulsação acelerar. Todo o corpo tenso ao estudar com suspeição as pessoas que conseguia ver.

Eram muitas.

Demasiadas.

Para não falar das que o conseguiam ver a ele. Tanto do parque como das ruas em volta. Cato escolhera o local com precisão.

Levantou o telemóvel e abriu a nova mensagem.

«Óptimo. Prestou atenção», dizia. Nada mais. Weber desceu o degrau de volta para o caminho de gravilha e parou. Se Cato o podia ver, era melhor agir calmamente. Outra coisa poderia afugentá-lo. Tentou acalmar a pulsação acelerada com algumas inspirações profundas. Não estava a resultar muito bem. Deveria responder à mensagem? Parecia-lhe totalmente desnecessário, Cato estava a vigiá-lo e, de qualquer modo, era ele quem tomava as decisões. Além disso, era moralmente mais fácil esperar e seguir instruções, do que interagir demasiado. Ou estaria Cato à espera de um diálogo? Que Weber mostrasse activamente interesse?

Como que por encomenda, recebeu uma nova mensagem.

«Vá para o parque infantil na outra ponta. Não faça desvios.»

Weber dobrou a esquina do edifício e, dali a pouco, tinha a grande biblioteca do seu lado esquerdo e todo o parque Humlegården, com os seus enormes relvados e imponentes árvores cheias de folhas, à sua frente. O caminho de gravilha a norte serpenteava através do parque, na direcção do seu centro, onde um número de caminhos convergia em volta de uma fonte. Se Cato o estivesse a observar, havia um sem-número de sítios de onde o poderia estar a fazer. Podia ser qualquer uma das pessoas que se mexiam à sua volta. Ou talvez caminhasse pelo passeio de alguma das ruas paralelas ao parque. O nervosismo que sentira transformara-se em curiosidade pura. Acelerou o passo e chegou rapidamente à fonte. Aí cruzou-se com um casal que caminhava apaixonadamente abraçado e continuou pelo caminho de onde eles tinham vindo. Um pouco mais à frente, por entre as árvores, conseguiu vislumbrar o parque infantil. Algumas casotas baixas de madeira, várias caixas de areia, escorregas e baloiços. Já no local, parou à entrada. Bastantes crianças, apesar de serem quase sete da tarde e de os gritos entusiasmados das suas brincadeiras se misturarem com um ou outro choro de cansaço e com os sons dos carros que passavam na avenida Karlavägen. Weber já ali estivera uns anos antes, quando tivera uma relação com uma rapariga que tinha filhos. Ela arrastara-o até ali, e ele ficara junto aos baloiços, a empurrar e a brincar aos papás. Era um bom miúdo, o filho dela, mas ela queria ter mais filhos, e Weber escolhera não ter nenhum. Nenhum dos dois se revelara disposto a mudar de opinião, e a relação terminara passado um ano. Por um curto momento, Weber perguntou-se se teria feito a escolha certa.

Mas agora havia coisas mais importantes em que pensar.

O telemóvel na mão direita vibrou novamente. Mais uma mensagem.

Provavelmente uma nova instrução.

«Continue pela avenida Karlavägen. Vire à esquerda. Caminhe até nova indicação», dizia.

Olhou novamente em volta. Pessoas por todo o lado. Um pouco afastado, viu um homem sentado num banco de jardim. Tê-lo-ia visto antes? Não tinha a certeza. O telemóvel voltou a vibrar.

«Do que está à espera?»

Sim, do que estaria à espera? De deixar de se sentir como uma marioneta, talvez? Começou a andar outra vez. Dirigiu-se para a avenida Karlavägen e virou à esquerda no passeio, logo à saída do parque. Continuou a caminhada. Mais adiante, conseguiu ver os semáforos do cruzamento seguinte. Mas tencionava continuar em frente pela avenida Karlavägen até receber nova mensagem. Não podia fazer mais nada que não fosse seguir as instruções de um assassino em série.

Demorou quinze minutos até voltar a receber notícias de Cato. Um longo quarto de hora. De início, caminhara aceleradamente, continuara na avenida Karlavägen até ao ponto em que esta convergia com a rua Birger Jarlsgatan. Ali, ficara um pouco confuso durante alguns segundos, mas continuara a andar sempre em frente. Quando passara a rua Odengatan e continuava sem receber sinal de Cato, sentiu a insegurança aumentar. Quanto tempo deveria realmente continuar a andar? Parou por alguns momentos e observou o ambiente à sua volta. Carros e pessoas. Mas ninguém ou nada que se destacasse particularmente. Continuou. Mais rapidamente, como se quisesse chegar à próxima mensagem. Em frente, até Roslagstull. No cruzamento com a rua Frejgatan, chegou aquilo por que esperava.

A vibração na mão direita.

Um endereço.

«Rua Roslagsgatan, número 29.»

Era tudo.

Sabia onde ficava a rua Roslagsgatan, mas, pelo sim pelo não, confirmou no Google Maps. Estava certo. À esquerda, na rua Frejagatan, e a próxima rua paralela seria a Roslagsgatan, apenas alguns minutos até lá.

Sentiu o corpo ficar novamente tenso. Um endereço de uma casa. Não estava a gostar muito daquilo, sentia-se mais seguro visível no meio de pessoas. Preferia não entrar num sítio onde ninguém o podia ver.

Chegou à rua Roslagsgatan. Segundo o mapa, o número 29 ficava um pouco mais abaixo, do lado esquerdo. Havia um serralheiro na esquina, com letreiros grandes azuis e encarnados. Foi até lá. Por cima da loja, uma placa suja indicava «Roslagsgatan 27–41». Estava muito próximo.

Era a porta seguinte.

O prédio estava coberto por andaimes e plásticos. Parecia estar em renovações ou reconstrução. Aproximou-se cuidadosamente. O único movimento vinha do plástico a tapar os andaimes, que, de vez em quando, se agitava com o vento suave. Conseguiu localizar a porta principal por baixo do andaime, uma porta dupla de vidro e madeira clara. Um candeeiro branco por cima da porta iluminava o número 29. Empurrou a porta ao de leve. Estava trancada. No interior do vidro, havia um papel colado com fita-cola onde alguém escrevera com letras grandes «substituição de canos 15 Março-15 Agosto».

Atrás da porta, a entrada estava totalmente às escuras e vazia, provavelmente como o resto do prédio. Saiu de baixo do andaime e olhou para cima, ao longo da fachada do prédio vazio. Silêncio e vazio. Olhou para o telemóvel barato, a desejar que chegasse uma mensagem a dizer-lhe o que fazer agora, mas nada, por enquanto. Estaria Cato à espera de alguma coisa ou será que já não o conseguia ver? Weber afastou-se mais um pouco do prédio, até estar ligeiramente na estrada vazia, para ficar um pouco mais visível. Nada. O que deveria fazer? Decidiu tentar a porta do prédio novamente. Talvez lhe tivesse escapado alguma coisa? Estava apenas a alguns passos de distância quando o telemóvel vibrou. Ficou imediatamente tenso.

Cato estava de volta.

«Trepe até ao quarto andar, entre pela janela destrancada, e conseguirá a sua entrevista».

Weber congelou por dentro. Olhou para o andaime e apercebeu-se de que era esse o caminho a que Cato se referia. Até um apartamento no quarto andar. Era precisamente aquilo que prometera a si próprio não fazer. Deixar-se atrair para um lugar sem testemunhas. Um local onde o assassino poderia estar à sua espera. Simultaneamente, era difícil resistir. Se estava à procura de algo exclusivo, algo que nenhum concorrente tinha, então era isto.

O título dos títulos.

O maior furo da sua carreira.

Mas também a coisa mais perigosa que já fizera. Pegou no telemóvel outra vez.

«Como sei que não está a planear alguma coisa?», escreveu e enviou.

A resposta chegou imediatamente.

«Não o poderá saber.»

Weber olhou fixamente para o pequeno monitor. O tom preocupava-o. Não lhe parecia apenas perigoso. Parecia-lhe fatal.

O telemóvel vibrou outra vez.

«Se não está interessado, posso contactar alguém da concorrência. Há muitos como você», dizia.

Aquilo resolveu a questão. Weber guardou o telemóvel no bolso e agarrou-se ao andaime por cima de si com as duas mãos. O poste metálico era grosso, e teve dificuldade em conseguir aderência. Içou-se e conseguiu colocar os dois pés no suporte. Por um segundo, esteve prestes a perder o equilíbrio, mas, com o impulso das pernas, conseguiu içar-se um pouco mais e agarrar-se mais acima, com a mão direita. Encontrou o seu ponto de equilíbrio e olhou em volta. Se conseguisse subir apenas mais quarenta centímetros, alcançaria uma placa metálica, onde se poderia pôr de pé. Levantou uma das pernas e fez força, baixou a outra mão e içou-se novamente. Alcançou a placa metálica com a barriga primeiro e ficou assim deitado alguns momentos, a recuperar o fôlego, antes de se levantar. Olhou em volta. O resto da subida seria muito mais simples. Havia escadotes metálicos para cada um dos pisos e tábuas de madeira a fazer de chão. A estrutura abanou um pouco com o seu peso quando começou a subir, mas rapidamente apanhou o jeito.

Alcançou o segundo andar, a fila de janelas escuras, fechadas, chegava-lhe à cintura. Espreitou pela janela mais próxima. O apartamento parecia estar vazio. O chão coberto com cartão e algumas ferramentas, mais nada. Afastou o sentimento de desconforto e prosseguiu com a subida. Quanto mais subia, mais isolado se sentia.

Chegou ao terceiro andar. Janelas fechadas, em fila. Como olhos escuros numa fachada cinzenta.

Sem vida. Tudo deserto.

Inspirou profundamente e continuou. Mais cuidadosamente agora. Cabeça e olhos quase acima da borda. Parou e espreitou outra vez. A mesma coisa. A fachada, janelas, o plástico que se enrolava com o vento. Alguns baldes brancos sujos, um pouco mais à frente. Havia mais um andar acima, mas este era o quarto. Saiu para a tábua estreita, que lhe pareceu menos firme, e a estrutura rangeu com o seu peso. Tinha de se movimentar com mais cuidado. Continuava sem ver nada de especial naquele piso, comparado com os anteriores, mas era para ali que Cato o enviara. Foi até à janela mais próxima. Estava coberta de pó, e teve de se encostar completamente ao vidro para conseguir ver alguma coisa. Também aqui só via cartão a cobrir o chão do que parecia ser uma sala de estar, alguns caixotes com canos de esgotos e uma sanita empacotada em frente ao que presumiu ser a porta da casa de banho. Continuou. Espreitou para a cozinha. Alguns copos de papel usados e pacotes de comida pré-cozinhada na bancada, mas, para além disso, tão vazia como as outras divisões. Weber prosseguiu, empurrado pela tensão e excitação. Mais uma janela, mais um apartamento.

Ficou imóvel quando lá chegou, a janela estava aberta. Certamente presa com um pequeno pedaço de papel dobrado, que fora pressionado na parte inferior, mas o espaço entre a janela e a moldura não passava despercebido.

Puxou o pedaço de papel, e a janela à sua frente abriu-se. Lá dentro, esperava-o uma casa escura e desabitada.

A coisa passava dos limites, sentiu subitamente.

A adrenalina e a tensão podiam levá-lo até certo ponto, mas isto era diferente. A sua vida poderia acabar ali dentro, na escuridão. Era essa a realidade.

Contudo, não podia sair dali. Não agora, era impossível. A abertura era ao mesmo tempo assustadora e tentadora. Não implicava apenas uma ameaça, mas também possibilidades. Possibilidades que desejava e de que precisava. Pelas quais lutara. Não podia voltar atrás.

Hesitou, apesar de, na verdade, já se ter decidido. Iria fazê-lo. Porém, precisava de uma tábua de salvação. Pegou no seu próprio telemóvel. Telefonou para a única pessoa em quem confiava totalmente. O seu irmão. Rolf respondeu imediatamente, como fazia sempre.

– Olá, Axel, como estás? – cumprimentou-o.

– Tenho uma coisa especial para te pedir – respondeu Weber.

Rolf percebeu pela voz do irmão que este estava stressado.

– O que se passa? – perguntou, com preocupação.

Por alguns segundos, Weber não soube por onde começar.

– E que barulho é esse? – continuou o irmão, e Weber apercebeu-se de que já se habituara ao som do plástico que cobria o andaime. Aproximou mais o telefone da boca para se fazer ouvir melhor.

– Depois conto-te tudo, juro. Mas agora é assim: consegui contacto com aquele assassino dos reality shows.

– Aquele sobre quem andas a escrever?

– Exactamente. Vou entrar num apartamento agora, mas não sei se ele está lá ou não.

Weber conseguiu detectar o pânico do irmão.

– Estás completamente louco?

– Tenho de fazer isto. Se acontecer alguma coisa, chamas a polícia! É por isso que te estou a ligar!

– Pára Axel, pára com isso! Sai daí!

– Não posso – Weber tentou soar calmo e convincente. – Se resultar, vale tudo. É a maior coisa de sempre.

– Não vale a pena morrer por isso! – implorou Rolf.

Weber ignorou-o, não tencionava deixar as reacções do irmão influenciarem-no. Já se decidira.

– Aponta esta morada – disse-lhe, assertivo. – Rua Roslagsgatan, número 29.

– Em Estocolmo?

– Exactamente. No quarto andar.

Ouviu Rolf inspirar profundamente. Mas, pelo menos, já não estava a protestar. Weber continuou.

– Ouve-me com atenção. Vou entrar no apartamento. Mantém-te em linha. Se me acontecer alguma coisa, se a chamada cair ou qualquer outra coisa, chamas a polícia imediatamente e dizes-lhes para virem aqui.

– Está bem. Mas tem cuidado – implorou outra vez.

– Sim, prometo – respondeu Weber. Sorriu levemente para si próprio. Fazia toda a diferença ter o irmão consigo, mesmo que fosse apenas pelo telefone. Já não se sentia tão sozinho.

Weber abriu totalmente a janela e olhou para o interior para se certificar de que a divisão estava vazia e entrou.

– Vou entrar agora... – disse e, pouco depois, estava a pisar o chão coberto de cartão castanho e a olhar em volta. Não viu nada de muito diferente das outras divisões para onde espreitara.

– O que estás a ver? – ouviu do telemóvel que mantinha encostado à orelha.

– Uma divisão vazia e escura. Provavelmente a sala de estar.

Weber deu alguns passos lentos para o interior. A sala tinha duas portas. Uma em frente, que parecia dar para a entrada e, mais ao fundo, para outra divisão com a porta fechada; e outra logo à sua esquerda, que dava para o que pensou ser a cozinha. Caminhou hesitantemente até lá e espreitou com cuidado. Era, de facto, uma cozinha.

– Alex? Estás aí? – ouviu-se do telefone.

– Sim – respondeu e continuou sorrateiramente.

– Diz-me o que estás a ver – pediu Rolf, nervoso.

– Vou até à entrada – sussurrou Weber em resposta. O apartamento estava em silêncio total, a única coisa que ouvia eram os barulhos do telemóvel e a sua própria respiração. Quanto mais se aproximava, mais cheirava a esgoto. Provavelmente da casa de banho, que estava de porta aberta na outra ponta do corredor, em frente à porta da rua. A divisão estava completamente demolida e não tinha nem sanita, nem lavatório ou duche. Os sanitários novos estavam empacotados, encostados ao longo de uma das paredes. Pareceu-lhe que a casa teria três assoalhadas. Apenas lhe faltava inspeccionar uma. A que tinha a porta fechada e que vira a partir da sala de estar.

– Só falta um quarto – sussurrou para o irmão.

Por segurança, Weber olhou à sua volta novamente. Nenhuma sombra ou algo que se movesse em sítio nenhum, que conseguisse ver. Aproximou-se lentamente da porta de madeira fechada. Pressionou a maçaneta muito lentamente e ao de leve. A porta não estava trancada e abriu-se com um estalido. Deteve-se alguns instantes, com a porta entreaberta por alguns centímetros. Decidiu não entrar de rompante. Em vez disso, recuou um passo.

– Vou entrar agora – sussurrou.

Sem esperar pela resposta do irmão, deu um pontapé na porta, mas calculou mal a força, e ela abriu-se violentamente, bateu na parede de dentro e voltou a fechar-se rapidamente na sua cara, com a força do impacto.

– Foda-se!

Gritou não pelo que acontecera com a porta, mas pelo que vira lá dentro nos poucos segundos em que ela estivera aberta.

Um homem sentado numa cadeira.

Demasiado quieto.

– Merda, está alguém lá dentro – continuou, em voz alta, para o irmão.

– Sai daí imediatamente, vou ligar à polícia! – respondeu Rolf, e Weber sentiu que o irmão estava a segundos de o fazer.

– Não, não ligues. Vou espreitar outra vez.

– Não! Por favor, vai-te embora daí!

Weber ignorou a voz do irmão. Havia algo no que acabara de ver. Uma figura numa cadeira. Quieta, quase como se estivesse à sua espera. Não podia sair dali. Era impossível. Agarrou na maçaneta e abriu novamente a porta. Cuidadosamente. E viu-o.

Porque era um «ele».

Amarrado a uma cadeira.

A cabeça caída para trás, num ângulo nada natural.

Weber ficou completamente gelado por dentro. Viu o cabelo embaraçado e ressequido, o rosto cinzento-pálido com fios de sangue, os olhos virados para o tecto.

E depois viu a mensagem na tabuleta de papel pendurada à volta do pescoço do homem.

«CULPADO», dizia.

Subitamente, um sinal quebrou o silêncio no quarto. O som fê-lo saltar de susto. Era o outro telemóvel. Número desconhecido, indicava. Não obstante, sabia quem era.

– Já te ligo de volta – disse, sem emoção, para o irmão. Não estava a conseguir processar qualquer sentimento naquele momento. Cato levara-o até ao recanto mais profundo do seu mundo.

Levantou o telemóvel barato até à orelha.

– Agora talvez consiga a sua entrevista – disse um homem do outro lado da linha.


A INFORMAÇÃO CHEGARA a partir de um telemóvel com cartão pré-pago anónimo. Fora tão detalhada como credível, e Torkel decidira enviar todos os recursos imediatamente para o local descrito.

Rua Roslagsgatan, número 29, quarto andar.

Um homem morto, amarrado a uma cadeira.

A primeira patrulha chegara ao local seis minutos mais tarde e confirmara que, de facto, havia um homem assassinado no apartamento do prédio vazio. Torkel pedira-lhes que esperassem no exterior e se certificassem de que ninguém acedia à casa. Ursula e Billy teriam de assegurar as provas forenses, antes de qualquer outra pessoa poder entrar. Antes de mais, teriam de confirmar se realmente se tratava do mesmo perpetrador ou se este seria outro caso. O que os levava a ter certas dúvidas de que se tratava da mesma pessoa era o facto de o local onde o corpo se encontrava ser completamente diferente. O ambiente escolar parecera uma constante importante até então.

Vanja pedira à central que lhes desse informações sobre pessoas dadas como desaparecidas na região de Estocolmo nas últimas 48 horas, para identificarem possíveis vítimas, mas ainda não tinham conseguido nada. Um rapaz desaparecera na noite anterior em Hagsätra, mas fora identificado em casa de um amigo pela manhã.

Quando viraram para a rua Frejgatan, foram abordados por três patrulhas e carros da polícia com as sirenes ligadas, que impediam o acesso à rua. Um grupo de curiosos já se concentrara à volta das fitas azuis de bloqueio policial, e a equipa foi obrigada a furar por entre as pessoas para passar. Deixaram os carros. Todos sabiam o que tinham de fazer. Todos menos Sebastian, parecia, que andava um pouco perdido, para trás e para a frente, à porta do prédio com os plásticos. Torkel sorriu para si próprio. Sebastian andava a comportar-se de maneira muito diferente, ultimamente. Parecia quase subserviente. Ao mesmo tempo, Torkel queria aproveitar esse facto, pois certamente não iria durar para sempre.

Vanja afastou-se para ir falar com os polícias que tinham encontrado o corpo e desapareceu debaixo dos andaimes. Torkel virou-se para Billy e Ursula para ver se estavam prontos. E estavam. Haviam vestido os seus fatos protectores completos e tinham duas malas cada um, com as ferramentas. Torkel pegou numa das malas de Ursula, num reflexo antigo. Entraram os três em bloco no prédio. A entrada estava cinzenta de poeira, e os andaimes impediam quase totalmente a luz fraca do fim de tarde de entrar, mas pelo menos havia luz eléctrica no prédio. Chegaram às escadas de pedra e aceleraram o passo. Todos excepto Billy estavam ligeiramente ofegantes quando finalmente alcançaram o quarto andar. A porta de um dos apartamentos estava aberta. Torkel acenou para os agentes fardados que conversavam com Vanja, antes de lançar um olhar para o interior da habitação. Estava escuro lá dentro. Cartão a proteger o chão. No final do corredor, uma porta aberta para o que em tempos fora, e depois da remodelação voltaria a ser, uma casa de banho. Um ligeiro mas inconfundível cheiro a esgoto vinha da porta aberta. Torkel pousou a mala que trazia.

– Onde está o corpo? – perguntou Ursula, quando ela e Billy passaram por ele.

Um dos agentes apontou para o interior do apartamento.

– Ali dentro – disse. – No quarto do lado esquerdo.

– Numa cadeira. Saímos de lá mal confirmámos que estava morto – acrescentou a outra agente rapidamente. Ouvia-se na sua voz o esforço para se mostrar competente.

– Bom trabalho – confirmou Torkel e virou-se de seguida para Ursula. – Avisa quando pudermos entrar.

Ursula assentiu. Billy seguiu-a. Torkel virou-se novamente para os agentes. Eram jovens, mas pareciam mais expectantes e ansiosos do que nervosos. Era óbvio que não era todos os dias que podiam participar numa investigação de homicídio.

– Já revistaram os outros apartamentos? – perguntou-lhes.

– Só o do lado. Estava vazio – respondeu a jovem mulher.

– Mais uma coisa – interrompeu Vanja. – Aqui o William disse que a janela da sala estava aberta quando chegaram.

– É bom saber. Obrigado – Torkel assentiu amigavelmente para William. Valia a pena elogiar os agentes, as boas relações facilitavam sempre o trabalho. Para Torkel, nenhuma corrente era mais forte que o seu elo mais fraco, e aqueles que quase sempre chegavam primeiro ao local eram mais importantes do que muitos dos seus colegas chefes queriam afirmar.

– Revistem o resto do prédio, por favor – pediu-lhes. – Se encontrarem alguma coisa, já sabem o que devem fazer.

Os dois agentes assentiram e foram-se embora.

Torkel espreitou para dentro do apartamento, na direcção por onde Billy e Ursula haviam desaparecido. Ouviu-os movimentarem-se lá dentro.

– Como é que isso está? – chamou, curioso, na direcção do trabalho deles.

– É difícil dizer – ouviu-se Ursula responder, passado algum tempo.

– É o mesmo autor do crime? – perguntou Vanja. Era frustrante estar ali fora, sem poder participar, sem sequer poder ver. Ursula respondeu imediatamente, compreendia a impaciência deles.

– Calcem os protectores de sapatos e venham até à porta. Aí já conseguem ver bem – disse-lhes.

– Tens a certeza? – perguntou Torkel, ao mesmo tempo que começou a procurar nos bolsos.

– Sim, só até à porta.

Calçaram rapidamente os protectores de sapatos. Claro que Sebastian não tinha nenhuns consigo e teve de pedir um par emprestado a Vanja.

Entraram em fila, primeiro Torkel, depois Vanja e, por último, Sebastian. A divisão era de tamanho médio, provavelmente um quarto de dormir. No meio do chão, rodeado por Billy e Ursula com os seus fatos protectores, estava um homem bem vestido, amarrado a uma cadeira. A cabeça a pender anormalmente para trás. Uma tabuleta com a palavra «CULPADO» à volta do pescoço. Um cenário macabro no quarto escuro, reforçado ainda mais quando Billy acendeu o candeeiro de trabalho que trouxera consigo. A luz branca e fria tornava o corpo morto ainda mais sem vida e pálido, e Ursula e Billy ainda mais peculiares nos seus fatos.

– Tem algum teste nas costas? – perguntou Sebastian.

– Não.

– Não é uma escola, não tem o cone de papel na cabeça, está no meio do chão em vez de no canto, com a parte de cima do corpo vestida – observou Sebastian, calmamente. – Interessante.

– Mas manteve a pistola pneumática – Ursula levantou cuidadosamente a cabeça do homem e mostrou-lhes a testa desfeita e sangrenta. – Os mesmos ferimentos, no mesmo sítio – continuou e apontou para as cordas bem apertadas que mantinham o homem preso à cadeira. – Além disso, tanto as cordas como os nós são exactamente iguais.

– Então é ele?

– Acho que podemos partir desse princípio – respondeu Ursula. – Mas certezas só vou ter depois de receber as respostas do laboratório.

Ficaram em silêncio durante algum tempo. Os três colegas permaneceram no corredor a observar, enquanto Billy e Ursula continuavam o seu trabalho. Billy tirava fotografias, Ursula mostrava-lhe onde se devia concentrar.

– Se alterou assim tanto o seu modo de actuação, presumo que a vítima também vai ser diferente das outras – constatou Sebastian, secamente. Os outros viraram-se para ele, curiosos.

– O que queres dizer com isso? – quis Vanja saber.

Sebastian encolheu os ombros casualmente.

– Não me parece que este seja alguma celebridade de terceira. A tabuleta diz-nos outra coisa sobre este homem.

– Que é culpado de alguma coisa? – perguntou Billy sarcasticamente e levantou os olhos daquilo que estava a fazer, revistar a roupa do homem.

– Os outros foram apresentados como burros – continuou Sebastian, sem dar atenção ao comentário irónico. – Os eventuais conhecimentos deste homem não tiveram importância, é culpado na mesma. De outra coisa.

– Um assassino que altera o seu MO é exactamente aquilo de que não precisamos – afirmou Torkel, com uma expressão severa. – Pronto, terminem isto por aqui. Nós vamos começar a investigar as redondezas e tentar encontrar alguém dos outros prédios. Tens alguma ideia de há quanto tempo está morto?

– Seis horas, no máximo – respondeu Ursula.

– Óptimo, então temos alguma coisa com que avançar – respondeu Torkel e começou a dirigir-se dali para fora. Vanja e Sebastian estavam prestes a segui-lo quando Billy os travou.

– Esperem – disse e puxou uma carteira do bolso interior do casaco da vítima. Abriu-a e retirou uma carta de condução. – Claes Wallgren.

– Alguém o conhece? – perguntou Torkel, mas só recebeu abanos de cabeça como resposta.

– É chefe de programação na TV3 – disse Billy e mostrou o cartão-de-visita que tinha na mão calçada com luvas.

– Okay, liga-nos se descobrires mais alguma coisa. Vou contactar a família dele – disse Torkel.

– Acho que já percebi a tabuleta – disse Sebastian. – O nosso suspeito acha que, se há algum sítio onde se é culpado de premiar a estupidez, é na televisão.

Virou-se para Torkel e Vanja com ar austero.

– Começou a caça ao peixe graúdo.


TORKEL ESTACIONOU no seu lugar reservado à porta de casa. Pagava por ele quase tanto como uma renda mensal de um pequeno estúdio, mas não tinha paciência para andar às voltas a procurar lugares disponíveis, quando chegava a casa a qualquer hora do dia. Um olhar rápido para o relógio mostrou que era quase meia-noite. Desligou a ignição, recostou-se no assento e permaneceu sentado. Fechou os olhos.

Adorava o seu trabalho, não tinha dúvidas, e ainda bem que assim era, tendo em conta o tempo que lá passava, mas havia uma coisa que lhe provocava sempre um mal-estar muito grande.

Informar as famílias.

Depois de ter deixado o prédio em obras onde haviam encontrado o corpo, fora directamente para casa da família Wallgren.

Rua Dalagatan. Bairro Vasastan.

Torkel vira-se obrigado a dar algumas voltas pelo quarteirão, mas não encontrara sítio para estacionar. Por fim, decidira estacionar em segunda fila, do lado do parque Vasaparken. O prédio da família Wallgren ficava entre um dentista e um restaurante, e Torkel pegara no papel com o código de entrada, inserira-o no leitor para abrir a porta e subira as escadas. Terceiro andar. Com uma inspiração profunda, encostara o dedo à campainha. Uma mulher à volta dos trinta e cinco anos de idade abrira a porta poucos segundos depois. Torkel assumira que era Linda Wallgren. Parecera-lhe conseguir ver a esperança transformar-se rapidamente em desilusão momentânea, antes de ser substituída por preocupação confusa.

Tivera esperança de que fosse o marido.

Que se tivesse esquecido das chaves, perdido o telemóvel, que tivesse sido assaltado, sido infiel, fosse o que fosse que pudesse explicar o motivo pelo qual não o conseguia contactar, pelo qual não estava no trabalho, mas que agora voltava para casa. Em vez disso, estava um homem mais velho, com uma expressão séria e uma identificação policial na mão, a perguntar-lhe se ela era Linda Wallgren. Linda assentira, e Torkel perguntara-lhe se podia entrar.

Abriu os olhos novamente, olhou para o seu apartamento às escuras, lá em cima, e retirou a chave da ignição, com um suspiro. Saiu do carro e lembrou-se de que não tinha nada para comer em casa. Rigorosamente nada. Nem sequer poderia fazer uma chávena de chá, se quisesse. Dirigiu-se à loja de conveniência da esquina.

Estivera mais de uma hora sentado no grande, luminoso e moderno apartamento da rua Dalagatan, todavia não conseguira nada de significante com a visita.

– Aconteceu-lhe alguma coisa? O que se passou? – perguntara Linda, enquanto o levava para a sala de estar, até ao sofá de canto. Torkel acabara de se sentar e estava prestes a dar-lhe as notícias terríveis, quando uma menina entrou na sala.

– Quem é? Onde está o papá?

Linda tentara convencer a criança a sair da sala, a ir-se deitar novamente, mas ela recusara-se. Começara a chorar. Agarrara-se a Linda, que fora telefonar à mãe, a qual aparentemente vivia muito perto e chegara quinze minutos depois. A avó conseguira levar a menina, e Torkel pudera finalmente explicar o motivo pelo qual estava ali, a sentir-se desconfortável no sofá requintado. Claro que, mal abrira a porta, Linda soubera, ou pelo menos desconfiara, mas, quando o pior se confirmou, não conseguira evitar o choque e as lágrimas. Silenciosas, contidas. Provavelmente para que a filha não a ouvisse chorar e voltasse para a sala.

– Como? – perguntara, por entre os soluços contidos. – Porquê?

Torkel contara-lhe o que podia.

Assassinado.

Possivelmente ligado a outros homicídios.

O motivo: provavelmente a sua profissão.

Sabia por experiência que, na verdade, não fazia muita diferença o que dizia, ela não conseguiria assimilar a informação, tudo lhe pareceria surreal e incompreensível. De modo geral, não havia muito mais que pudesse fazer, para além de lhe dizer quanto lamentava e de lhe perguntar se poderia responder a algumas perguntas. Linda assentira, mas não conseguira dar-lhe muita informação.

O marido não tinha nenhum encontro marcado com um jornalista, que ela soubesse. Tinha uma reunião com o chefe, mas era a única coisa. Usava a agenda do telemóvel, talvez aí houvesse mais informação. Sim, talvez sim, pensara Torkel, mas não o tinham encontrado. Linda não reparara em nenhuma autocaravana, não ouvira nada sobre Claes se sentir de alguma forma ameaçado.

Torkel perguntara-lhe se o marido fora activo nas redes sociais. Usava Twitter e Facebook. Era tudo. Linda voltara aos «comos» e «porquês», e Torkel tornara a responder o melhor que conseguira, antes de se despedir e deixar o apartamento e a mulher cuja vida a sua visita mudara para sempre. Era por isso que detestava informar as famílias.

Ao descer as escadas de regresso ao carro, telefonara a Billy, que procurara a conta de Twitter de Claes Wallgren e encontrara imediatamente algo.

O último tweet. Às 20h35.

«Acabou-se o “dar ao povo aquilo que o povo quer”.»

Quarenta e oito caracteres de um homem já morto.

A situação intensificara-se rapidamente, pensou Torkel, ao mesmo tempo que pagava os poucos artigos na loja. Teria de fazer uma nova conferência de imprensa amanhã outra vez. Provavelmente, também receberia uma nova visita de Rosmarie. Perguntas.

O que estavam a fazer para encontrar o suspeito?

Teriam de oferecer protecção policial a algumas pessoas e, se sim, a quem?

Quão avançados estavam realmente na investigação?

A única coisa que Torkel possivelmente teria para lhe dar era Christian Saurunas. O nome, não a pessoa. Continuavam sem fazer a menor ideia de onde poderia estar. Tinham conseguido contactar a sua mãe, em Kaunas. Ela confirmara que Christian a visitara por pouco mais de uma semana, entre Maio e Junho. Indignado e triste por já não ter o seu cargo na URT. Não sabia para onde fora depois de a deixar, no dia 5 de Junho. Billy experimentara ligar para o telemóvel de Saurunas algumas vezes e localizá-lo, mas não obtivera resultados. Atendedor de chamadas e depois nada. Desligado, estragado ou sem cobertura, pensava Billy.

Já a caminho de casa, com o saco das compras numa das mãos, Torkel olhou novamente para o relógio. Deveria ligar a Ursula? Ainda estaria acordada, possivelmente acabada de chegar do local da investigação. Ocasionalmente, durante o dia, pensara naquilo que Vanja dissera.

Sobre não ter nada para além do trabalho.

Exactamente o mesmo se aplicava a ele próprio. Ursula nunca se tornaria a sua terceira mulher e nunca viveriam felizes para sempre os dois, mas podiam encontrar-se, apreciar a companhia um do outro. Ter um pouco de alguém era melhor do que não ter ninguém. E não podia ouvir mais do que um «não», pensou ao abrir a porta do prédio. A ideia de telefonar a Ursula deu-lhe alguma energia adicional, e subiu as escadas até sua casa, em passos rápidos. Mas deteve-se a apenas alguns degraus do seu andar.

Estava alguém sentado nas escadas.

– Agora tiveste sorte. Tinha acabado de decidir que só ia esperar mais dez minutos – disse Lise-Lotte, levantando-se com um sorriso.

– O que estás aqui a fazer? – perguntou Torkel ao subir os últimos degraus até ela, com dificuldade em juntar o que estava a ver com o sítio onde estava.

– Uma surpresa! – respondeu e abraçou-o. – Ficaste surpreendido?

– Sim!

– Óptimo.

Lise-Lotte terminou o abraço e subiu os degraus que faltavam até à porta de Torkel. Este permaneceu quieto.

– Estás aqui à espera há muito tempo?

– Uma hora ou assim. Trouxe um livro comigo.

Torkel limitou-se a assentir, ainda ligeiramente em choque.

– Deixas-me entrar? Tenho mesmo de ir à casa de banho – disse Lise-Lotte com um gesto da cabeça para a porta.

Isso, decididamente, ia deixar.


FICOU DEITADO A OBSERVÁ-LA.

Sentia que era algo que poderia ficar a fazer o resto do dia, o resto da vida. Deitado, a olhar para ela, enquanto ela dormia ao seu lado.

A noite anterior, ou melhor, a noite e um pouco da madrugada, fora perfeita. Não costumava conseguir esquecer tão facilmente os casos em que estavam a trabalhar, mas dera por si a apreciar simplesmente a presença de Lise-Lotte, à mesa da sua cozinha, e ouvi-la contar como chegara ali, enquanto ele preparava o pouco de comestível que acabara de comprar e abria uma garrafa de vinho.

Lise-Lotte não conseguira esquecer a noite em Ulricehamn e andara por casa a pensar no assunto. Quando Torkel não lhe telefonara, pensara ligar-lhe ela, mas não tinha o seu número e não era fácil encontrar o chefe da Riksmord. Então dirigira-se à esquadra da polícia para falar com Eva Florén, que a informara de que a equipa fora obrigada a regressar a Estocolmo de urgência.

O trabalho chamava.

E isso ela conseguia compreender.

Regressara a casa, mas não conseguira parar de pensar nele. Estaria de férias durante várias semanas, não tinha planos concretos, a filha andava a viajar pela Europa. Porque haveria de ficar em Ulricehamn? Só o facto de andar com aqueles pensamentos queria dizer alguma coisa, não? Ficara cada vez mais convencida de que se arrependeria se não tentasse descobrir onde isto levaria.

E levara-a à cama dele.

A seguir, quando ela já dormia apoiada no seu braço, e Torkel sentia a sua respiração quente contra o pescoço, ficara tão feliz que tivera de conter as lágrimas. Só haviam adormecido depois das duas da manhã, mas, ainda assim, ele acordara pouco antes das seis.

Ficara deitado. Apenas a olhar para ela.

Os seus pensamentos foram interrompidos pela campainha da porta. Torkel sobressaltou-se. Nem eram sete e meia, quem poderia ser àquela hora? Olhou para Lise-Lotte, mas ela continuava a dormir profundamente. A campainha soou novamente. Torkel apressou-se a levantar-se, vestiu um roupão, saiu para o corredor e abriu a porta.

– Já viste isto? – perguntou Ursula, ao entrar no apartamento, estendendo um jornal na sua direcção. O Expressen. Aberto para que pudesse ler o título sensacionalista:

ENTREVISTA EXCLUSIVA: É POR ISSO QUE OS MATO

O ASSASSINO DOS REALITY SHOWS PRONUNCIA-SE

Torkel olhou para Ursula com uma expressão inquisidora, como se precisasse de ajuda para compreender o que acabara de ler.

– Encontrou-se com ele. O teu amiguinho Weber encontrou-se com o nosso suspeito!

– Ele não é meu amigo – retorquiu Torkel num reflexo e virou-se novamente para o jornal. Deu uma vista de olhos pelo artigo.

Parecia, sem dúvida, que Weber realmente se teria encontrado com o perpetrador, ou pelo menos falado com ele. Estava ali toda a informação sobre o teste, as sessenta perguntas, os resultados publicados com os telemóveis das vítimas. E outras coisas que Weber só poderia ter conseguido directamente do assassino ou por uma fuga de informação de alguém com acesso total à investigação, e isso aplicava-se apenas a ele e à sua equipa e, por isso mesmo, era completamente impensável.

– O que fazemos? – perguntou Ursula.

– Temos de ter uma conversa com o Weber – respondeu Torkel com um tom de voz que levou Ursula a perceber que seria uma conversa que o jornalista não esqueceria facilmente.

– Dá-me cinco minutos.

Torkel foi para a casa de banho. Ursula ficou no corredor. Sentou-se na pequena cadeira branca à porta. Onde se sentara da vez em que decidira quebrar uma das regras que tinham os dois, pela primeira vez.

Nunca em casa.

Talvez tivesse sido ali que Torkel a tivera, a ideia de que talvez pudesse ser algo mais. De que pudessem quebrar também a regra seguinte.

Nada de planos para o futuro.

Ursula ponderou se devia recordá-lo dessa vez, mostrar que se lembrava, talvez dizer-lhe que tinha saudades de estarem juntos, contar-lhe que estava disposta a fazer algumas mudanças na sua vida, depois de ter sido alvejada. Era uma boa oportunidade. Ele estava demasiado perturbado com o artigo para querer ficar em casa a falar sobre o assunto ou a ter sexo, mas ficaria a saber o que ela sentia, e, assim, poderiam retomar fosse o que fosse que tinham, noutra altura.

Estava prestes a levantar-se e a aproximar-se da porta fechada para não ter de gritar, quando os viu.

Um par de sapatos de mulher. Sandálias azuis. Salto alto, médio.

Ursula franziu a testa e olhou para os cabides na parede.

Um casaco de mulher. Bege, botões grandes, bolsos com fecho.

Ficou sentada na cadeira branca e deu por si a desejar que fosse uma das filhas que tivesse passado a noite em casa do pai, mesmo que, inconscientemente, tivesse reparado que nem o casaco nem os sapatos eram minimamente apropriados para uma adolescente. Os seus pensamentos foram interrompidos quando a porta do quarto se abriu e uma mulher saiu de lá, enrolada no edredão de Torkel. Descalça, as pernas nuas visíveis até ao início do tecido. O cabelo loiro comprido, perfeitamente embaraçado da cama, a cair à volta do rosto com os brilhantes olhos azuis, linha do decote fina até às clavículas, bem visíveis. Como que saída de uma comédia romântica dos anos oitenta. Ursula reconheceu-a. Era a mulher que vira no bar em Ulricehamn. A colega de escola. Até Ursula conseguia apreciar quão bonita era.

– Olá.

– Olá... Ursula, trabalho com o Torkel.

Não fez qualquer tentativa de se levantar. Também não esticou a mão.

– Lise-Lotte.

– Ah. Olá.

– Olá.

Silêncio breve, interrompido por Torkel a sair da casa de banho. Quando viu Lise-Lotte à porta, ficou com um sorriso rasgado. Ursula não se recordava de alguma vez o ter visto sorrir daquela maneira. Demorou alguns segundos a aperceber-se de que Torkel, por momentos, parecera feliz.

– Acordámos-te? – perguntou-lhe e aproximou-se dela para lhe dar um beijinho carinhoso na cara. – Foi sem querer.

– Não faz mal...

– Esta é a Ursula, trabalhamos juntos... – disse Torkel, com um gesto para Ursula, que se levantou da cadeira.

– Sim, ela disse-me – acrescentou Lise-Lotte.

– Tenho de sair, surgiu um problema – continuou Torkel e dirigiu Lise-Lotte de volta para o seu quarto. – Mas podes ficar aqui o tempo que quiseres e, se fizeres alguma coisa mais tarde, encontramo-nos logo à noite.

– Sim, eu oriento-me. Vai.

– Dois minutos – disse Torkel para Ursula, que continuava de pé no corredor.

– Espero lá em baixo – respondeu Ursula, antes de a porta se fechar atrás deles.

Não estava certa de que Torkel tivesse ouvido.

Não foram dois, mas sete minutos até Torkel abrir a porta do prédio e sair para o passeio. Olhou à sua volta e avistou Ursula mais abaixo, na rua, junto do seu carro estacionado em segunda fila. Foi ter com ela em passos rápidos, ao mesmo tempo que pegou no telemóvel. Dezassete chamadas não atendidas. Havia várias pessoas que já tinham lido o Expressen. Reactivou o som do telemóvel, guardou-o novamente no bolso e apertou o casaco. Os raios de sol ainda não alcançavam o espaço por entre os prédios e estava um pouco frio.

– Podemos ir no teu carro? Estava a pensar deixar aqui o meu, para o caso da Lise-Lotte o querer usar hoje – disse Torkel, ao chegar ao pé de Ursula.

– Claro.

Ursula sentou-se no lugar do condutor, e Torkel deu uma corrida rápida à volta do carro e sentou-se ao seu lado.

– Há quanto tempo ela está cá? – perguntou Ursula num tom que, esperava ela, transparecesse curiosidade neutral.

– Chegou ontem à noite.

– Ah, está bem.

Ursula ligou o carro, olhou rapidamente para o retrovisor e avançou.

– Como se vai para lá?

– Vira à direita ali à frente e depois direita outra vez, para entrarmos na ponte Västerbron.

– Estas merdas de quarteirões são todos de sentido único.

– Não se virarmos à direita duas vezes.

Ursula ligou o pisca e virou para a rua perpendicular mais estreita.

– E quanto tempo fica?

– A Lise-Lotte?

– Sim.

– Não sei, ela está de férias, por isso... não sei.

Torkel olhou de relance para Ursula. Se não a conhecesse tão bem, juraria que ouvira um traço de ciúmes na sua voz. Porque ela não podia estar com... A ideia nem lhe ocorrera lá em cima, no apartamento, mas era melhor perguntar, limpar o ar, para que não houvesse nada por dizer entre os dois que pudesse tornar-se algo mais e estragar.

– Foi chato para ti?

– Foi chato o quê? – perguntou Ursula, com a atenção focada na estrada.

– Com a Lise-Lotte. Quero dizer, eu e tu tínhamos o que tínhamos...

Torkel virou-se para ela. Ursula não respondeu, apenas virou à direita novamente e acelerou.

– Acho que foste clara quando disseste que não querias continuar com aquilo ou avançar com as coisas – continuou Torkel.

– Sim, é verdade.

– Então está tudo bem? Estamos bem?

– Sim.

Respostas directas. Não deixavam muito espaço para interpretações, mas não teriam sido um pouco contidas, mais curtas do que a própria palavra curta? Talvez estivesse só a imaginar. Ursula costumava ser incrivelmente directa na sua forma de comunicar, normalmente não era preciso adivinhar o que ela achava e pensava.

– De certeza? – perguntou-lhe, para lhe dar realmente uma hipótese de dizer o que estava a sentir, se é que estava a sentir alguma coisa, em relação ao aparecimento de Lise-Lotte.

– Certeza absoluta.

Mais uma vez, ficou com a sensação de que não estava a ser totalmente sincera, mas não a podia pressionar mais. Se não queria contar, não queria.

Ou então ele estava a dar demasiada importância àquilo.

A imaginar coisas.

Talvez não significasse nada para ela que ele tivesse conhecido alguém.

Entraram na ponte Västerbron. O arranha-céus do DN ficou visível ao fundo, do lado esquerdo. Continuaram o percurso em silêncio. Torkel abriu novamente o jornal e leu o artigo de Weber com mais atenção. Estivera em contacto com o assassino. Talvez se tivessem encontrado. E não lhe dissera nada. Torkel estava bem ciente de como os media funcionavam e da pressão que tinham para vender jornais e atrair cliques, mas tinha ideia de que o Weber, mesmo assim, pertencia à velha escola. De que tinham uma relação que realmente significava alguma coisa e se baseava em respeito mútuo pelo trabalho um do outro. Aparentemente não era o caso, e era parvo, mas Torkel não o conseguia evitar.

Sentia-se desapontado.


AS PAREDES da elegante sala de conferências do jornal Expressen estavam repletas de primeiras páginas históricas, em fila. A ideia era provavelmente impressionar as visitas com a longa ascendência e história do jornal. Naquele momento, não estava a resultar minimamente. Torkel e Ursula estavam sentados em duas cadeiras caras, a olhar para Lennart Källman e um algo pálido Alex Weber, do outro lado da mesa brilhante de carvalho escuro. Torkel estava verdadeiramente irritado e tentava ignorar o corpulento chefe de redacção, dirigindo olhar e palavras unicamente para Weber, o homem em quem cometera o erro de pensar que podia confiar.

– Vai-me mesmo dizer que nem lhe passou pela cabeça contactar-nos quando recebeu a carta?! – quase gritou.

– A Suécia tem protecção de fontes e não podemos falar sobre as pistas que recebemos – defendeu-se Weber, parecendo, pelo menos, um pouco envergonhado.

– É um dos pilares da liberdade de imprensa – acrescentou o chefe de redacção, com uma atitude meio arrogante que Torkel achava que tivera o tempo inteiro. – Faz parte do ADN do Expressen defender, a todo o custo, a liberdade de imprensa.

Torkel limitou-se a abanar a cabeça. Ursula interveio na discussão.

– Estamos a lidar com um assassino em série, um assassino em série a quem vocês acabaram de dar seis páginas de publicidade! – disse, irada.

– O nosso jornal dá espaço a diferentes vozes, faz parte da nossa missão enquanto publicação – Weber permaneceu em silêncio e parecia esperar que o chefe de redacção continuasse a defesa, o que aconteceu.

– Além disso, julgámos que era do interesse público entender os seus motivos e a forma como pensa.

– Nós achamos que é do interesse público apanhá-lo! – contra-atacou Ursula.

– Então sugiro que façam o vosso trabalho e nos deixem fazer o nosso – respondeu Källman secamente.

– Era mais fácil se as pessoas usassem algum senso comum e nos avisassem quando um assassino as contacta – retorquiu Torkel, ainda com o olhar sombrio dirigido a Weber.

– Não posso.

– Conversa de merda! – Torkel deu uma palmada forte na mesa. – Se quisesse, tinha arranjado maneira. Foi uma escolha não o fazer!

– Sim, e foi a escolha acertada – interrompeu Källman. – É uma entrevista única, que fornece imensa informação sobre como o assassino pensa. O que o move.

– Não é uma entrevista, é uma porra de um manifesto! – opôs-se Torkel, ainda exaltado.

– Chame-lhe o que quiser, mas julgamos que é de grande interesse para os nossos leitores – repetiu o chefe de redacção. Decidira claramente a linha de defesa que iriam seguir.

O olhar zangado de Torkel deixou Weber por momentos.

– Está sinceramente à espera de que eu acredite que fizeram isto pelos vossos leitores? Fizeram isto para vender jornais. Fosse a que merda de preço fosse. Ao menos admita-o, em vez de estar para aí a dizer um monte de parvoíces!

Fez-se silêncio na sala. O chefe de redacção ficou corado. Por um segundo, Torkel pensou que o homem se iria levantar e expulsá-lo da sala. Ursula olhou para ele com uma certa surpresa e admiração. Não era comum Torkel levantar a voz daquela maneira. A palmada na mesa. Já alguma vez acontecera?

Por fim, Källman levantou-se e dirigiu-se a um aparador estreito e elegante, que estava encostado à parede do fundo, com algumas estatuetas de ouro, taças e uma pequena caixa de cartão em cima.

– Às vezes ficamos em lados opostos. Mas agora estamos dispostos a ajudar-vos o melhor que pudermos – disse e pareceu ter decidido tentar encontrar paz, apesar de estar claramente a fazer um grande esforço para se manter calmo.

– E de que maneira pensam ajudar-nos? – perguntou Torkel, também ele um pouco mais calmo. Continuar um confronto seria apenas contraproducente.

O chefe de redacção não respondeu, mas pegou na caixa de cartão que estava em cima do aparador, virou-se e empurrou-a na direcção de Torkel.

– Desta – respondeu, curto e seco.

A caixa não tinha tampa. Torkel viu que continha uma embalagem dos correios, alguns papéis dobrados e um telemóvel, ainda com a caixa original ao lado.

– O que é isto? – perguntou, com curiosidade.

– Tudo o que recebemos do Cato – disse Weber.

– Pensámos que poderia ser-vos útil – acrescentou o chefe de redacção e sentou-se novamente. – Queremos ajudar.

Torkel não respondeu e limitou-se a puxar a caixa para mais perto de si. Ursula levantou-se para conseguir ver melhor.

– Foi com este telemóvel que a entrevista foi feita? – perguntou ela.

– Exactamente – respondeu Weber e assentiu. – Ele enviou-me mensagens escritas antes disso. Estão todas guardadas.

Ursula pegou na sua mala preta, abriu-a e retirou um par de luvas de borracha e um molho de sacos de prova. Calçou as luvas, pegou no telemóvel e colocou-o num dos sacos. Weber continuou o relato.

– Chegou tudo à recepção dentro dessa caixa, ontem à tarde. Como vêem, vinha endereçada a mim. Com o Cato como remetente – disse e parecia sinceramente disposto a ajudar.

– Chegou por correio ou por estafeta? – perguntou Torkel.

– Estafeta.

– De que empresa?

– Isso não sei.

– Vou falar com a recepção para ver se eles sabem e já vos digo – ofereceu-se Källman.

– Continue. O que aconteceu depois? – disse e olhou, apelativo, para Weber.

– Li a carta, mas usei sempre luvas, na verdade, por isso espero não ter destruído eventuais impressões digitais.

Torkel olhou para ele com severidade.

– Veja só que competente!

– Pelo menos tentei, está bem? – respondeu Weber, com irritação. – Ele manteve contacto por mensagem escrita. Começou por me mandar para a Biblioteca Nacional e depois obrigou-me a dar umas voltas, durante algum tempo. Devia querer confirmar se eu estava sozinho, presumo.

– Mais alguma coisa? – continuou Torkel. Neutro, curto e seco. Queria mesmo que Weber percebesse que os acontecimentos das últimas horas tinham destruído aquilo que tinham erigido ao longo dos anos. Weber olhou de relance para o chefe de redacção, antes de responder.

– Ele mostrou-me uma coisa – acabou por dizer.

Torkel reagiu ao tom que Weber utilizou. E Ursula também.

– Mostrou-lhe o quê? – perguntou ela vigorosamente.

Weber hesitou por alguns momentos. Ficaram com a sensação de que se tratava de algo que ele queria e precisava de contar, mas que estava a resistir. Outro olhar rápido para o chefe de redacção apenas confirmou a sensação. Weber suspirou ruidosamente.

– Vão acabar por encontrar no telemóvel também.

– O que vamos encontrar no telemóvel? – ouviu-se de Torkel.

– Ele levou-me até ao corpo na rua Roslagsgatan. Fui eu que telefonei a dar a pista.

Torkel empalideceu. Não contara com aquilo.

– Como entrou?

– Por uma das janelas. Ele tinha-a deixado aberta. Com um papel dobrado a travá-la. Também está aí na caixa.

Torkel inclinou-se para a frente, mais cansado do que zangado agora, reparou. Não havia fim à vista para as idiotices.

– Tem de vir à esquadra fazer um relato pormenorizado sobre tudo. Hoje. Isto é muito grave.

– Compreendo – disse Weber e assentiu.

Ursula empacotara o conteúdo em sacos de provas e voltara a colocá-los na caixa. Agora virava-se para Weber, também ela com uma certa resignação no olhar.

– Há mais alguma coisa que nos possa dizer sobre o assassino? Qualquer coisa? Seja o que for? – perguntou.

– Está tudo no artigo do jornal – interrompeu o chefe de redacção. – Não retirámos praticamente nada.

Ursula não desistiu.

– Alguma coisa que não venha no jornal!

– Está lá quase tudo, mas há uma coisa. Ele não o disse, mas fiquei com essa sensação... – interrompeu-se e olhou com seriedade para Torkel e para Ursula, como que para se assegurar de que tinha a atenção total dos dois.

– Ele está longe de ter terminado.

Torkel suspirou. Infelizmente, e para usar uma expressão adequada ao ambiente onde estavam, essas notícias já eram de ontem.


NÃO TINHAM CONSEGUIDO encontrar uma única impressão digital no telemóvel, para além das de Weber. Nem no cartão SIM ou na caixa de cartão onde, em princípio, era mais verosímil encontrar vestígios, uma vez que o suspeito provavelmente nunca abrira o invólucro do telefone. Ursula utilizara o novo microscanner digital do segundo andar para analisar a carta, as folhas do teste e a embalagem dos correios e, de seguida, ainda analisara tudo manualmente, tanto ao microscópio como por escovagem. Nada.

Era frustrante quão bom o suspeito se revelava a evitar deixar qualquer vestígio atrás de si. A falta de pistas concretas e o facto de o assassino parecer estar a subir na cadeia alimentar fazia que Ursula começasse a sentir a pressão, apesar de normalmente nunca ficar stressada.

De bloggers e estrelas de reality shows a directores de canais de televisão.

Quem se seguiria?

Não era a única a sentir a pressão. Rosmarie já estivera em cima de Torkel várias vezes a exigir resultados. Não que o ameaçasse directamente, mas todos na equipa sabiam que Rosmarie era o tipo de chefe que facilmente substituía os chefes intermédios, quando estes não mostravam resultados. Mas, se não tinham nada com que trabalhar, que resultados poderiam então mostrar?

Billy ficara com bastante mais trabalho. Por um lado, graças ao tráfego de mensagens escritas, conseguira um número de telefone que o assassino obviamente utilizara. Por outro, também tinha o cartão pré-pago do telemóvel usado por Weber e, com o código PUK exclusivo, conseguira localizar a loja onde fora comprado. Mesmo não tendo muita esperança de que alguém se lembrasse de quem tinha comprado um simples cartão pré-pago, Billy pedira a Vanja para ir à loja de conveniência na estação T-centralen, na saída para a praça Sergels Torg, uma das lojas com mais clientes da cidade de Estocolmo. Billy assumiu que era essa exactamente a razão para o assassino a ter escolhido.

Não obstante, tratava-se de uma pista que eram obrigados a verificar.

Ele próprio concentrou-se nas telecomunicações entre Weber e o suspeito. O assassino enviara dez mensagens escritas e, por fim, fizera uma chamada que durara dezasseis minutos e treze segundos. Weber enviara duas mensagens de volta e fizera uma chamada curta para o 112. Depois disso, mais nada.

O número utilizado pelo assassino pertencia a um cartão pré-pago não registado, mas isso não impedia Billy de descobrir rapidamente a que operadora telefónica estava associado. Já fizera este tipo de buscas muitas vezes e sabia exactamente com quem devia falar na Telia, para conseguir o material de que necessitava.

Billy pegou nas listas que a Comviq lhe disponibilizara sobre o tráfego de, e para, o telefone que Weber recebera pelo correio, arranjou um mapa do centro de Estocolmo e colocou-o ao lado do material das duas operadoras. Com um marcador verde e outro encarnado, começou a assinalar a localização das antenas telefónicas a que o telemóvel de Weber se conectara.

A primeira mensagem de Weber fora enviada quando ainda se encontrava na sede do Expressen. O telefone ligara-se à antena da torre do DN. Billy desenhou uma pequena cruz encarnada no mapa. Verificou a lista da Telia. Weber dissera que estava convencido de que o assassino o observara.

De que o seguira. De que se mantivera nas proximidades.

Parecia confirmar-se.

O cartão pré-pago anónimo que respondera à mensagem de Weber um minuto mais tarde utilizara a mesma antena telefónica. Billy desenhou uma cruz verde ao lado da encarnada e continuou.

Da vez seguinte que Weber utilizou o telemóvel para contactar o assassino, já se encontrava na rua Roslagsgatan. Billy assinalou a antena utilizada, com o marcador encarnado. A resposta chegara novamente em menos de um minuto. E, além dessa, recebera outra mensagem, também um minuto depois. Billy consultou as listas que obtivera da Telia com as comunicações do assassino, apesar de estar bastante seguro do que iria encontrar. E assim foi: ambas as mensagens enviadas para Weber haviam utilizado a antena já marcada com a cruz encarnada. De seguida, não se registaram mais comunicações durante aproximadamente vinte minutos, até o assassino ter feito uma chamada.

Ambos os telemóveis ligados à mesma antena durante toda a conversa.

Billy voltou ao telemóvel de Weber. Começou a marcar no mapa as antenas utilizadas aquando do percurso pelo parque Humlegården. Mesmo não tendo enviado mensagens nessa altura, só as tinha recebido, era possível rastrear o percurso. Essa era a maior vantagem de se encontrarem no centro de Estocolmo, havia muitas antenas, o que levava os telemóveis a saltitarem frequentemente entre elas e o posicionamento a ser mais exacto.

Billy tinha esperança de que o suspeito também se tivesse mantido por perto o tempo inteiro.

Porém, não o fizera, apercebeu-se quando começou a fazer comparações com as listas da Telia. Sim, mantivera-se nas proximidades, mas o seu telefone apenas excepcionalmente se ligara à mesma antena que a de Weber. Quando Billy acabou de preencher as cruzes verdes, endireitou-se. Com as costas um pouco rígidas, depois de ter estado tanto tempo debruçado sobre a mesa.

Mas de bom humor.

Fizera um possível avanço.


BILLY ESTAVA um pouco atrasado, mas não pediu desculpa quando entrou na sala, onde a restante equipa já se encontrava à sua espera. Também ninguém contava com isso, todos conheciam Billy e sabiam que não os teria chamado sem uma boa razão. Billy dirigiu-se ao quadro em passos largos e com ar satisfeito. Trazia alguns papéis na mão e umas fotografias grandes.

– O que encontraste? – perguntou Torkel, impaciente, antes de Billy ter tempo de chegar ao quadro.

– A autocaravana – respondeu Billy, orgulhoso, e colocou algumas das fotografias no quadro. Todas tiradas por algum tipo de câmara de vigilância e com uma autocaravana com uma risca vermelho-escura de lado, rodeada de outros carros.

– As imagens são de ontem.

– Como sabes que é essa? – quis Torkel saber.

Billy assentiu satisfeito, parecia que não só antecipara aquela pergunta, como também tivera esperança de a ouvir.

– A sensação do Weber de estar a ser observado estava certa. O assassino estava nas proximidades – continuou, ao mesmo tempo que afixava o mapa com as cruzes verdes e vermelhas no quadro. – As vermelhas são do telemóvel do Weber, as verdes do assassino.

Todos os presentes na sala se inclinaram para a frente, interessados, mesmo que o mapa com as cruzes e traços colocados de forma aparentemente aleatória não lhes dissesse nada.

– E como é que isso nos ajudou? – perguntou novamente Torkel.

– As cruzes correspondem às antenas telefónicas a que os telemóveis se ligaram. Os traços são os caminhos que eles percorreram.

– Continuo sem perceber como chegaste à autocaravana com isso? – constatou Torkel com curiosidade sincera e com o olhar fixo no mapa. Billy lançou-lhe um sorriso que dizia «ainda bem que me fazes essa pergunta».

– Quando o Weber recebeu a primeira mensagem à porta da Biblioteca Nacional, os dois telemóveis estavam ligados à antena do telhado do hotel Scandic Anglais.

Billy apontou para as cruzes encarnadas e verdes no mapa, num edifício fora do parque, mas muito perto da biblioteca. Tão perto que a pessoa facilmente conseguiria observar a entrada.

– Depois, quando o Weber atravessou o parque Humlegården é que as coisas ficam interessantes – continuou Billy e apontou para as cruzes verdes interligadas por um traço que acabava por formar um quadrado. – Aí, o suspeito começa a movimentar-se em quadrado à volta do parque. Deu várias voltas porque a mesma antena captou o sinal dele várias vezes.

– Estava de carro, então – comentou Vanja.

– Sim, tem de ser isso – assentiu Billy. – As antenas mudaram demasiadas vezes para haver outra explicação.

Todos observaram o mapa. A rua Sturegatan, à esquerda na rua Karlavägen, descida pela rua Engelbrektsgatan e pela rua Birger Jarlsgatan para depois entrar novamente na rua Sturegatan.

Todos conheciam bem a zona e perceberam que o suspeito poderia, por várias vezes, ter observado Weber a partir de um carro, ao mesmo tempo que ele próprio se mantinha em constante movimento, impossível de detectar.

– Eu sabia por onde ele andou e quando – prosseguiu Billy. – Há uma câmara de segurança na praça Stureplan e outra na rua Karlavägen. E esta passou lá às horas certas.

Satisfeito, Billy apontou para as imagens da autocaravana. Torkel levantou-se com o entusiasmo. Não era frequente isso acontecer.

– Bom trabalho! Conseguiste alguma imagem do condutor?

– Na da rua Karlavägen, mas está demasiado desfocada para o conseguir identificar. Boina, óculos de sol e barba, é tudo. Mas consegui isto.

Billy colocou uma imagem em cima da mesa. A parte traseira da autocaravana, aumentada e, por isso, muito pixelizada, não muito fácil de ler, mas conseguia-se mesmo assim distinguir as letras e números da matrícula. Não era sueca.

– É da Alemanha, não é? – perguntou Sebastian, em forma de constatação.

Billy assentiu.

– De Hamburgo. Comprada há três meses a um stand de lá.

– Algum nome do comprador? – quis Vanja saber.

– Adivinha.

– Sven Cato?

– Exactamente. Pagou em dinheiro, por isso não temos cartão de crédito para rastrear. Não tem seguro, registo de exportação ou controlo de origem pedido na direcção dos transportes – continuou Billy. – Não tem nenhuma inspecção ou registo na Suécia.

Fez-se silêncio por alguns momentos. Apesar de não saberem muito mais do que alguns minutos antes, sentiam-se mais próximos do homem que caçavam. Foi Torkel quem interrompeu o silêncio.

– Já divulgaste a matrícula e a descrição da autocaravana? – perguntou, com o olhar curioso dirigido a Billy.

Billy abanou a cabeça.

– Ainda não, queria falar contigo primeiro. Mas o material está todo preparado, é só enviar – respondeu.

– Faz isso, prioridade número um! E deve ser tudo reportado directamente a nós, não quero intermediários – disse Torkel, decidido.

– Okay, já faço, há mais uma coisa – continuou Billy, esperançoso. Regressou ao quadro e ao mapa. – O Weber sai da rua Roslagsgatan depois da chamada com o assassino, liga para o 112 já um pouco afastado dali, mas o outro telemóvel continua na zona até nós chegarmos.

Tanto Torkel como Vanja reagiram.

– O quê? – disseram em sintonia. Billy assentiu para os dois.

– Confirmei com o relatório da polícia. O primeiro carro chegou às 19h56. Nós devemos ter chegado por volta das 20h10, não foi? Ele aí ainda lá estava – explicou Billy, a olhar para eles.

– O assassino ainda lá estava quando nós chegámos? – perguntou Vanja em tom severo.

– Sim, às oito e vinte e cinco desliga o telemóvel e desaparece. Desde então não voltou a aparecer – respondeu Billy e olhou novamente para os dois.

– Não temos maneira de o localizar? – perguntou Ursula.

– Se ele o usar outra vez sim, mesmo que seja com outro cartão SIM, consigo localizá-lo através do número de IMEI – respondeu Billy, mas encolheu os ombros, como que a dizer que não lhe parecia muito provável que isso fosse acontecer.

– O que é isso? – perguntou Sebastian.

– É uma maneira de localizar o telefone físico, independentemente do número que esteja a ser utilizado na altura, mas tem de estar ligado e, por enquanto, está completamente morto.

Sebastian levantou-se com uma expressão pensativa no rosto. Deu alguns passos na direcção do quadro branco e do mapa com todos os traços vermelhos.

– Ou ele costuma sempre estar assim tão perto quando a polícia chega ou, então, está a ficar mais corajoso e mais disposto a correr riscos.

– Aconteceu-lhe alguma coisa – determinou Vanja. – Até agora, nunca procurou estabelecer contacto como fez com o Weber.

Sebastian assentiu. Feliz por poder concordar com ela.

– Quer ser compreendido, quer que o seu trabalho tenha reconhecimento e atenção – constatou Sebastian. – A visibilidade significa assumir riscos, e é assim que vamos conseguir apanhá-lo.

– Então vamos fazê-lo – disse Torkel e levantou-se. Estava na hora de terminar a reunião e de voltar ao trabalho. – Billy, tu envias a sinalização e a ordem de busca da autocaravana. Nós vamos rever os relatórios sobre o que aconteceu na rua Roslagsgatan e tentar obter todas as fotografias tiradas lá. Se ele estava na zona, talvez se tenha mantido muito perto.

Todos assentiram e levantaram-se. Calados e concentrados, deixaram a sala.

O perpetrador ainda era desconhecido, mas começavam lentamente a descobrir o seu padrão, a mapear a sua força motriz. Continuava oculto e escondido nas sombras, mas parecia-lhes que, pelo menos, começavam a vislumbrar os seus contornos.


HENNING LINDH estava atrasado.

Na verdade, a culpa não era sua, mas os colegas da rua Bäckvägen não iriam estar minimamente interessados nisso. Carregou ainda mais no acelerador e virou na direcção de Hägersten. Quanto poderia faltar? Cinco minutos? Dez, no máximo. Diminuiu a velocidade e esperou que o fluxo rápido de carros no sentido contrário parasse, para que pudesse virar à esquerda. No cruzamento, havia uma bomba de gasolina com uma loja de conveniência. Henning ponderou, por alguns segundos, entrar e comprar um café e algo para comer, iria passar longas horas no carro, mas decidiu não o fazer, não queria chegar mais atrasado do que já estava.

Finalmente, conseguiu passar o cruzamento e, alguns trinta metros adiante, virou à direita e entrou na rua Bäckvägen. Agora só precisava de encontrar o número 43. Não poderia levar muito tempo.

E não levou. Dois minutos mais tarde, parou junto de uma das simples casas amareladas de quatro andares, em fila do seu lado direito, e saiu do carro. Olhou em volta e descobriu imediatamente os colegas sentados num Passat azul, estacionado junto a uns arbustos baixos, um pouco abaixo, na rua. Levantou a mão num cumprimento e dirigiu os passos até eles. A mulher no lugar do condutor, que tinha ideia de que se chamava Aya ou Aira ou algo parecido, baixou o vidro quando ele se aproximou.

– Estás atrasado – disse-lhe, sem preâmbulo.

– Eu sei, desculpem – respondeu Henning e decidiu nem tentar justificar-se ou explicar a sua chegada um pouco tardia. – Como está a correr? – perguntou em vez disso.

– Nada até agora. Ele tem um lugar de estacionamento dentro do pátio, por isso tem de passar ali pela entrada, nos arbustos – apontou para um buraco na vegetação por onde passava um caminho asfaltado. – O apartamento dele é no terceiro andar.

Henning olhou de relance para a lateral do prédio. Duas janelas grandes no meio da fachada e uma no canto. Todas com as cortinas e persianas fechadas.

– São as três dele?

– Sim.

Depois disso, ligou a ignição e foi-se embora, ao mesmo tempo que fechava a janela. Henning ficou a olhar para o carro em movimento e depois regressou ao seu. Decidiu dar a volta e ficar estacionado de maneira a poder ver todo o estacionamento, janelas e entrada, sem ter de utilizar os espelhos retrovisores.

Quando isso estava feito, acomodou-se para a espera. Os colegas pelo menos eram dois. Tinham companhia, alguém com quem conversar. Suspirou e afundou-se no assento. Arrependeu-se de não ter ido comprar o tal café. Mais cinco minutos, que diferença teria feito?

Apareceu um carro na sua direcção.

Um Volvo encarnado S60.

A pessoa que estavam a vigiar não tinha um Volvo encarnado? Henning pegou na pasta que estava no lugar do passageiro e abriu-a. Sim, um S60 encarnado, modelo de 2007, com a matrícula GVL 665.

Quando Henning voltou a olhar, já o carro encarnado tinha entrado no pátio à sua frente e desaparecido por entre os arbustos. Não conseguira ver a matrícula.

Henning esqueceu tudo sobre o café e o turno solitário. O carro desaparecera de vista e, por instantes, Henning ponderou se devia sair e aproximar-se do veículo para uma identificação mais exacta. Volvo encarnado não era propriamente rigoroso.

Contudo, se tivesse azar, iria revelar-se.

Então, provavelmente o suspeito voltaria a fugir.

Permaneceu sentado.

Viu um homem barbudo por volta dos quarenta e cinco anos de idade, com uma grande mochila às costas e uma mala em cada mão, aproximar-se vindo do parque de estacionamento, na direcção da entrada, pousar uma das malas, inserir um código e desaparecer dentro do edifício.

Henning inclinou-se para a frente. O olhar fixamente dirigido para as janelas do terceiro andar. Quanto tempo levaria a chegar lá acima? A casa teria elevador? O homem chegara com bastante bagagem. Sobressaltou-se ao ver uma das persianas ser subida e a janela a abrir-se.

Era o apartamento certo.

Estava na hora de telefonar para a equipa da Riksmord.

Vanja subiu as escadas e aproximou-se da porta onde já estivera anteriormente. Tocou à campainha. Olhou em volta. Os reforços estavam perto, mas não ao ponto de serem visíveis se Saurunas olhasse pela vigia da porta. Tocou novamente à campainha. Não se ouviam movimentos do lado de dentro. Será que o polícia que vigiara a casa se enganara? Do pouco que Vanja conhecia dele, tinha a impressão de que não era o mais perspicaz da companhia. Ou teria Saurunas voltado a sair sem que a vigilância o tivesse visto?

Estava prestes a desistir da operação quando ouviu passos aproximarem-se do outro lado da porta e, dali a pouco, o fecho a rodar por dentro.

– Christian Saurunas? – perguntou Vanja quando um homem com uma barba densa apareceu à porta.

– Sim – confirmou e olhou para Vanja com ar inquiridor.

– Está sozinho em casa?

– O quê? – ainda mais confuso. – Sim?

Vanja deu silenciosamente um passo para o lado e, alguns segundos depois, Saurunas estava deitado no chão, coberto por três homens fortemente armados. Gritos fortes de surpresa e dor quando as mãos foram puxadas violentamente para trás das costas e algemadas. Vanja deu os poucos passos que faltavam para estar dentro do apartamento, ao mesmo tempo que os homens do piquete levantavam Saurunas do chão.

– Vanja Lithner, Comissão da Riksmord – disse e apresentou a sua identificação. – Queremos interrogá-lo em relação ao homicídio de Patricia Andrén, Miroslav Petrovic, Sara Johansson e Claes Wallgren.

– O quê? Quem?

Vanja não se repetiu. Christian Saurunas teria muitas oportunidades para ouvir os quatro nomes novamente.

– Tem algum advogado ou representante legal ou quer que chamemos um advogado oficioso?

– Não tenho advogado... – conseguiu Saurunas dizer, e ouvia-se na sua voz que continuava sem compreender o que se passava ou para que precisava de defesa.

Vanja fez sinal com a cabeça para os polícias, que levaram Saurunas para o carro à espera de o levar para a esquadra, em Kungsholmen. Deu mais alguns passos para o interior do apartamento, ao mesmo tempo que pegou no telemóvel e carregou num dos números da marcação rápida. O apartamento parecia bafiento e empoeirado, apesar de uma das janelas e da porta da varanda estarem abertas. Como se ninguém tivesse estado ali desde há muito tempo. A porta da casa de banho estava entreaberta e vinha de lá um cheiro não muito agradável. Talvez fosse a explicação para Saurunas ter demorado tanto tempo a abrir a porta.

Vanja obteve resposta.

– Já podes vir – disse, virou-se e deixou o apartamento a cargo de Ursula e dos técnicos.


– ONDE SE ENCONTRAVA e o que estava a fazer nestas datas?

Vanja estendeu-lhe um papel onde estavam escritas quatro datas. A primeira era a de quando Patricia Andrén fora assassinada em Helsingborg, a última a do dia anterior. Saurunas lançou um olhar rápido à pequena lista e virou-se novamente para Vanja e Torkel, que estava sentado ao lado dela.

– Porque querem saber?

– São as datas e horas em que sabemos que as quatro vítimas se encontraram com o perpetrador.

O homem ao lado de Saurunas pegou no papel e olhou-o rapidamente. Henrik Billgren, advogado oficioso. Torkel e Vanja já o tinham encontrado várias vezes antes. Um homem calmo, calado, que dava o melhor pelos clientes, mesmo que só os conhecesse há uns minutos, mas sempre com respeito pelo trabalho da polícia. Quando questionava, ou se opunha a alguma coisa, era normalmente com razão, não apenas para obstruir ou tornar o trabalho deles mais difícil. Vanja gostava dele e tinha ideia de que Torkel sentia o mesmo.

– Isto são horas muito exactas – constatou Henrik Billgren, com a sua voz calma, na qual ainda se conseguiam ouvir vestígios de um sotaque da região de Dalarna.

– Então ainda mais simples dizer-nos onde se encontrava – retorquiu Vanja.

Henrik acenou com a cabeça para Saurunas, para que lhes respondesse, e devolveu-lhe o papel.

– Não sei do que estão a falar – disse Saurunas, com a voz repleta de preocupação e um olhar suplicante para os dois, do outro lado da mesa. – Eu não fiz nada. Nem sei quem são essas pessoas que ela referiu – concluiu, com um sinal da cabeça na direcção de Vanja.

– Olhe para as datas, por favor – acrescentou Torkel.

Saurunas fez o que lhe mandaram. Reviu a lista curta e olhou para elas novamente.

– Fui visitar a minha mãe a Kaunas no dia 26 de Maio, fiquei lá até dia 5 de Junho. Depois estive em casa, fiz as malas outra vez e fui para uma cabana em Härjedalen que me emprestaram, no dia seguinte.

– Quem lha emprestou?

– O meu cunhado. Ou melhor, o meu ex-cunhado. Estão divorciados agora.

– Agradeço que nos dê o nome dele e contactos.

– Claro. Posso escrever aqui? – Saurunas fez um gesto com a caneta para o papel com as datas.

– Não, aqui – disse Vanja e estendeu-lhe uma nova folha, vazia.

– E voltou de Härjedalen hoje? – quis Torkel saber, enquanto Saurunas escrevia.

Saurunas abanou a cabeça e entregou os dois papéis a Vanja. Torkel pegou no que tinha os contactos e, depois de um aceno rápido de assentimento com a cabeça para Vanja, levantou-se e deixou a sala.

– Encontrou-se com alguém lá? – continuou Vanja. – Recebeu visitas?

Saurunas abanou a cabeça.

– A cabana é muito isolada. Não tem electricidade. A água é de um poço. Fogão a lenha, não há rede. Fui para lá para poder estar em paz, pescar e reflectir sobre as coisas.

– Precisava de reflectir sobre o quê? – perguntou Sebastian, que estava na sala contígua a observar o interrogatório, através do vidro espelhado que o tornava invisível a quem estava do outro lado. Quando sentia necessidade, podia acrescentar pequenos comentários directamente para Vanja, através do auricular na sua orelha direita.

Como agora.

– Reflectir sobre que coisas? – perguntou Vanja, e era impossível perceber que a pergunta lhe fora transmitida.

– Tive de deixar a URT recentemente, talvez já saibam? – Saurunas olhou novamente para Vanja, que acenou com a cabeça. – O que haveria de fazer agora? Procurar coisas novas, tentar voltar, fazer outra coisa? Esse tipo de reflexão.

– Como foi para lá? Na autocaravana?

– Qual autocaravana?

– Não tem acesso a uma autocaravana?

– Não, fui no meu carro. No Volvo.

– Temos indicação de que, de vez em quando, conduz uma autocaravana – mentiu Vanja abertamente, ao mesmo tempo que fingiu procurar essa mesma informação nos papéis que tinha à sua frente, para tornar a coisa mais credível.

Se Saurunas realmente tivesse acesso a uma autocaravana, agora era uma excelente oportunidade para o confessar. Assim, não poderia ser acusado de ter mentido num interrogatório inicial, mais tarde. Confirmar o que a polícia já sabia e negar tudo o resto era a melhor maneira de enfrentar um interrogatório. Se Christian Saurunas e Sven Cato eram a mesma pessoa, seria com certeza suficientemente esperto para se aperceber disso.

Todavia, um abanar de cabeça convicto disse-lhe que o homem do outro lado da mesa não fazia tenções de cair na sua pequena mentira.

– Não.

– De certeza?

– Parece-me que o meu cliente provavelmente saberá se, de vez em quando, conduz uma autocaravana ou não – interrompeu Billgren modestamente. – Talvez seja melhor deixar isso de lado e seguir em frente.

Vanja assentiu. Tentara, mas não fora bem-sucedida. Sebastian estava em silêncio no seu ouvido. Então, continuou segundo o plano.

– Há alguém que possa corroborar que realmente esteve em Härjedalen?

Saurunas abanou a cabeça outra vez e suspirou profundamente quando se apercebeu de como aquilo ia soar.

– A cabana é muito isolada. Estaciona-se o carro, e é preciso andar quase dez quilómetros pelo interior da floresta.

Vanja limitou-se a acenar com a cabeça e a escrever um apontamento.

Que conveniente.

Passar um mês no sítio mais isolado do mundo, ao mesmo tempo que tinham lugar quatro homicídios.

– Levei comigo tudo aquilo de que precisava para aquelas semanas – continuou Saurunas, como se tivesse previsto a pergunta seguinte de Vanja. – E claro que também tinha esperança de conseguir pescar alguma coisa.

Tentou um pequeno sorriso, ao qual Vanja não respondeu.

A porta da sala espartanamente mobilada abriu-se, e Torkel espreitou. Vanja virou-se e, com um pequeno gesto de cabeça na direcção do corredor, Torkel indicou-lhe que precisava de falar com ela.

– Vamos fazer um curto intervalo – disse Vanja, inclinou-se para a frente e desligou o gravador. De seguida levantou-se e deixou os dois homens à mesa.

Sebastian saiu da sala onde estava e juntou-se a Torkel e Vanja no corredor.

– O cunhado confirma que o Saurunas foi buscar a chave da cabana na manhã do dia 6 de Junho e que tinha o carro carregado de bagagem – informou-os Torkel quando se dirigiam para a zona dos escritórios.

– E o que disse acerca da autocaravana?

– Que o cunhado soubesse, o Saurunas não tem nenhuma.

Vanja suspirou profundamente. Sentiu um cansaço espalhar-se-lhe rapidamente pelo corpo.

A concentração, a adrenalina, a caça.

Tinham-na levado a andar acelerada, a recalcar tudo o que não estivesse ligado ao trabalho, tanto o cansaço físico como o esgotamento psíquico.

Agora faziam-se sentir novamente.

Ver-se-iam obrigados a recuar e a começar tudo de novo? O que tinham então?

Nada, na verdade. Nesse caso, teriam de alargar a busca a todas as pessoas que haviam tido Olivia Johnson como aluna. Não só os tutores e orientadores, mas todos que tivessem tido que ver com ela durante o tempo na Universidade Real Técnica. Ou ainda pior, podia ser como Billy receara, podia ser alguém que a tivesse tido como aluna há muito mais tempo e depois seguido o seu percurso ao longo dos anos. Uma tarefa praticamente impossível. Não tinham provas técnicas, nenhuma amostra de ADN, nenhuma impressão digital. Podia ser que Ursula e a equipa técnica tivessem encontrado alguma coisa na casa de Saurunas, caso contrário...

– Vou ligar à Ursula – disse Vanja e pegou no telemóvel. Sebastian e Torkel continuaram até Billy.

– Encontraste alguma coisa? – perguntou Torkel quando chegaram ao pé dele.

– Ainda só tenho o telemóvel, o computador está a ser trazido do apartamento.

– E há alguma coisa no telefone?

Billy clicou para abrir um documento no computador e inclinou-se ligeiramente para o monitor.

– A última chamada foi dele, na manhã do dia 6 de Junho.

– Para quem?

– Um... David Lagergren, em Solna.

– É o cunhado. Nenhuma chamada depois disso?

– Não.

– Achas que as pode ter apagado? – acrescentou Sebastian.

– Poder claro que pode, mas já confirmei as ligações às antenas, e o percurso foi na direcção de Härjedalen, até desaparecer da rede.

– Então não foi ele que telefonou ao Weber da autocaravana?

– Pelo menos não com este telefone.

Torkel praguejou para si próprio.

– E tem fotografias tiradas depois do dia 6. Várias.

Billy pegou no rato e abriu um novo documento. Apareceu fotografia atrás de fotografia, em fila, no ecrã. Billy virou-o ligeiramente na direcção de Torkel, que se aproximou. Uma fotografia de uma cabana pequena e solitária, outra de um pequeno-almoço em cima de uma mesa, em frente a uma janela com vista para os cumes das montanhas salpicados de neve. Mas a maior parte parecia ter sido tirada em interiores ou perto de cursos de água, com vastos pauis à volta, que se entendiam contra majestosas montanhas, ao fundo. Muitas fotografias de peixes. À beira da água ou pousados num tronco. A maior parte bastante grande, com pintas e amarelo-esverdeados por baixo. Torkel pensou ser algum tipo de truta. Outra espécie que aparecia em muitas imagens, era um pouco mais pequena e com uma barbatana nas costas, mas Torkel não fazia a menor ideia do nome do peixe.

Uma fogueira.

Uma chávena de café a fumegar.

Um peixe acabado de grelhar, embrulhado em alumínio.

Torkel deu por si a sentir saudades, em combinação com uma certa inveja de Saurunas. Também queria estar com água pelos joelhos, a pescar no silêncio da natureza selvagem. Não pescara uma única vez desde que era adulto, mas não era isso o mais importante. Era a sensação que as imagens transmitiam. A calma e a paz. A possibilidade de contemplação. Sozinho, com a natureza e os seus próprios pensamentos.

– Esta... – continuou Billy e aumentou uma das fotografias até ocupar todo o ecrã. – Esta foi tirada quando sabemos que o nosso suspeito estava a almoçar com o Petrovic, em Ulricehamn.

Apontou para a data e para a hora, que estavam visíveis no canto inferior direito da imagem. Torkel sentiu a energia desaparecer quando viu a imagem. Era uma das poucas fotografias que era uma selfie. Saurunas, vestido com um anoraque, gorro na cabeça e uma barba menos cerrada, sorria para a câmara, com a água atrás de si, e, algumas centenas de metros atrás, viam-se dois alces a atravessar o paul.

– Ele não poderá ter falsificado a data e a hora? – tentou Torkel, não obstante estar bastante seguro de que procurava uma agulha num palheiro.

– Pouco provável – foi a resposta já antecipada.

Como se isso não bastasse para os deixar desanimados, Vanja veio na direcção deles, e Torkel conseguiu ver logo na sua expressão que Ursula não encontrara nada que confirmasse as suspeitas em relação a Saurunas.

– Nada no apartamento que aponte para as vítimas ou para que ele seja o Cato – confirmou Vanja, assim que chegou ao pé do resto do grupo.

Gerou-se um silêncio breve. Todos pensavam o mesmo, mas foi Billy que deu voz aos pensamentos.

– Então temos de o soltar?

Torkel limitou-se a assentir com a cabeça, não havia muito mais que pudessem fazer. Claro que o podiam manter detido durante as 72 horas, mas Billgren iria questioná-lo certamente, e nenhum procurador concordaria em prendê-lo preventivamente. As justificações para isso não eram apenas frouxas, eram inexistentes.

– Deixem-me falar com ele alguns minutos – Sebastian interrompeu o silêncio e, antes de alguém poder reagir, afastou-se a passos rápidos e decididos, na direcção da sala de interrogatórios.

– Olá, Sebastian Bergman – disse Sebastian ao fechar a porta atrás de si e dirigir-se para a mesa a curta distância na sala de interrogatórios. Saurunas e o seu advogado oficioso olharam para ele como se esperassem uma mão estendida, que nunca apareceu.

– O que achou de ter perdido o emprego? – perguntou Sebastian, sem se sentar.

– Quem é o senhor? – retorquiu Henrik Billgren em tom áspero, antes de Saurunas ter tempo de responder.

– Já disse, sou o Sebastian Bergman, trabalho aqui. Psicólogo criminal, se os títulos forem importantes para si. Posso continuar agora?

Sebastian lançou um olhar cansado para o advogado, na esperança de que isso transmitisse claramente a ideia de que, quanto menos se ouvisse da parte dele, melhor. Mas Henrik Billgren não deu sinal de ter percebido a mensagem e limitou-se a responder com um aceno da cabeça.

– O que achou de ter perdido o emprego? – repetiu Sebastian, ainda de pé, em frente a Saurunas.

– O que achei?

– Sim.

– O que lhe parece? Fiquei... zangado, triste, destroçado. Trabalhei lá durante mais de quinze anos.

– E acha que deveria ter sido outra pessoa a perder o emprego, na sua vez? Colegas menos capazes, não tão espertos?

– O mundo universitário não funciona exactamente dessa maneira, temos de arranjar financiamento próprio para as nossas investigações...

– Então digamos assim: acha que outros eram menos merecedores de financiamento do que o senhor?

Saurunas ficou com uma ruga pensativa na testa, baixou a cabeça, parecia reflectir como se nunca se tivesse colocado aquela questão. Abanou a cabeça para si próprio e voltou a olhar para Sebastian.

– Suponho que sim – confirmou. – Não sei se serão menos capazes, mas conheço outros cujas investigações podem ser questionadas e que, provavelmente, são mais antiquadas do que as minhas, mas... – encolheu os ombros num gesto resignado. – O que podia eu fazer?

– Onde, exactamente, pretende chegar com isto? – acrescentou Henrik Billgren. Sebastian ignorou-o completamente e passou por Saurunas, de maneira a ficar atrás dele.

– O que sentiu quando a Olivia Johnson ganhou a bolsa de estudo?

Saurunas virou-se na cadeira, de maneira a poder continuar a ver Sebastian, que se colocara junto à janela de vidro fosco, como se conseguisse ver através dele.

– Orgulho. Foi justo. Era uma excelente aluna.

– Acha que lhe foi dada atenção suficiente?

– O que quer dizer com isso?

– Os jornais escreveram alguma coisa sobre isso? Ela deu entrevistas? Foi notícia?

– Não, claro que não – Saurunas parecia verdadeiramente espantado com a pergunta. – A revista interna da URT escreveu um artigo. A Fundação Suécia-América publicou uma coisa na página da Internet. Acho que apareceu qualquer coisa na página do DN também, mas foi só isso.

– Foi só isso – repetiu Sebastian e calou-se.

Permaneceu quieto, com o olhar dirigido para o vidro opaco. Os segundos passaram. Saurunas começou a mexer-se na cadeira e olhou para Billgren, com uma expressão interrogadora. Sebastian continuou onde estava. O silêncio estendeu-se.

– Vou repetir: onde pretende chegar com isto? – perguntou Billgren, quando ninguém na sala disse nada, durante quase meio minuto. Sebastian não respondeu, mas afastou-se da janela, passou pela mesa e pelos dois homens e puxou a cadeira onde Vanja se sentara anteriormente. Afundou-se nela e enfrentou o olhar confuso de Saurunas. Ainda em silêncio.

– Então, Cato... – começou Sebastian e calou-se outra vez. Nenhuma reacção visível da parte do homem do outro lado da mesa, apenas uma espera atenta pela continuação. – De que cor é o peito de um serzino?

– Amarelo – respondeu Saurunas imediatamente, sem ter de pensar no assunto. Só depois da resposta Sebastian viu no seu rosto que não percebia o sentido da pergunta.

Sebastian decidiu tomar a ofensiva, apostar tudo numa única carta. Começou a aplaudir lentamente, ao mesmo tempo que se inclinou sobre a mesa.

– Que bem. Mas é a prova de uma imagem antiquada de conhecimento – Sebastian levantou a voz, tornou-se mais insistente, mais confrontativo. – Porque hão-de as pessoas ter isso na cabeça quando podem, a qualquer momento e em qualquer lugar, fazer uma pesquisa no Google?

Saurunas voltou a virar-se para Billgren, do seu lado direito. Sebastian deu um murro na mesa para chamar novamente a atenção para si.

– Estes jovens já o perceberam. Já perceberam o que é preciso para serem bem-sucedidos, apreciados, para ganharem dinheiro. São coisas completamente diferentes de estudar enciclopédias. Tornaram-se conhecidos, populares e ricos, enquanto o senhor anda aí a atormentar-se numa universidade empoeirada, que nem sequer o quer lá, e a azedar porque não consegue a atenção que lhe é devida. Então quem é realmente o mais esperto aqui?

– Não percebo mesmo onde é que isto...

– Cale-se! – Sebastian interrompeu o advogado. – Estou a fazer um pequeno monólogo, nada com que o seu cliente precise de se sentir insultado.

Voltou a contornar lentamente a mesa, para ficar a falar atrás de Saurunas.

– Sabe o que o senhor é? É um dinossauro a olhar para um cometa e a pensar que o pode parar.

– Não sei o que quer que eu responda a isso – disse Saurunas cuidadosamente quando percebeu que Sebastian havia terminado.

Sebastian esticou-se. Deu novamente a volta à mesa sem olhar para os dois homens, que, provavelmente, tentavam compreender que raio acabara de acontecer ali. Estava bastante seguro de que o homem que se apelidava «Cato» e «Catão, o Velho» teria reagido quando Sebastian utilizara o seu pseudónimo, perguntado por que motivo Sebastian o chamara assim, tentado distanciar-se do nome, fingido que nunca o ouvira antes.

Também estava seguro de que o homem que, num curto espaço de tempo, assassinara quatro pessoas e que queria divulgar uma espécie de manifesto por via dos tablóides não ficaria sentado, em silêncio, a ouvir acusações de que era estúpido, de que as suas vítimas eram mais espertas que ele. O sentimento de superioridade e o sentido de justiça eram muito fortes para o seu suspeito. Se um homem como Sebastian não compreendesse a sua grandeza, não conseguiria resistir a corrigi-lo. O seu perpetrador era muito inteligente, mas não conseguiria controlar as suas emoções do mesmo modo que o homem que estava sentado à mesa.

Sebastian lançou um olhar para o espelho. Estava bastante seguro de que Vanja se encontrava na sala contígua. Talvez Torkel também. Aproximou-se mais uns passos do espelho e fez um olhar para quem quer que estivesse do outro lado que dizia «acho que não é ele».

Tinha a certeza de que concordavam com ele.


FINALMENTE.

Os primeiros sinais do despertar.

A entrevista que dera a Axel Weber estava publicada na íntegra na Internet, mas, como não era possível comentar artigos na página do Expressen, não conseguia saber as reacções. Teve de ir ver no Aftonbladet, que copiara e colara o trabalho da concorrência e publicara um artigo praticamente idêntico. Com a excepção de que era possível escrever o que se pensava, na caixa de comentários.

Com uma mão tremente, o homem que não se chamava Cato começou a percorrer os comentários. 188 quando abriu a página. A maior parte dos comentários iniciais eram variantes de «que cabrão mais doentio» e «quem é que esta pessoa pensa que é», mas, de seguida, apareceu um que obviamente não defendia as suas acções, mas que, ainda assim, achava que ele pusera o dedo numa ferida importante. Seguiam-se algumas respostas zangadas a esse comentário, e depois outro que também condenava os homicídios e a violência, mas que era da opinião de que se deveria poder discutir a superficialidade e o tipo de pessoas que se tornavam famosas hoje em dia. Algumas pessoas contra, mas mais que concordavam. Depois de mais um par de condenações categóricas, apareceu o comentário seguinte, que, curta e concisamente, determinava:

«Mas que merda, ele tem razão!»

Vários depois disso, que pareciam ter compreendido a sua mensagem, que reagiam, e, já mais para o fim, os números estavam quase cinquenta-cinquenta entre os que o condenavam como um louco e os que achavam que, na verdade, ele tinha algo de importante para dizer.

Abriu uma nova página, escreveu o endereço da Flashback e procurou a secção dos rumores sobre celebridades. Havia um thread sobre Patricia Andrén e outro sobre Mirre Petrovic, mas ambos remetiam para «o assassino dos reality shows», na categoria «Crimes Actuais e Casos Policiais».

Esse thread já tinha mais de 1400 comentários.

Começou a percorrê-los. Os primeiros eram principalmente sobre os motivos que poderia haver para os crimes e que tipo de pessoa poderia fazer uma coisa daquelas. Depois de algumas centenas de variantes sobre o tema, misturado com rumores e especulações sobre a sua identidade, apareceu o primeiro que, numa curta observação, escrevera: «Sou só eu ou também acham que ele se limita a matar pessoas genuinamente estúpidas?»

Este comentário recebeu imenso apoio, e rapidamente começaram a aparecer listas e sugestões de outras pseudocelebridades que o assassino dos reality shows devia aproveitar para tratar, uma vez que já estava lançado.

Depois surgira a publicação do Expressen, e foi uma explosão total. Misturado com diagnósticos psicológicos amadores e palpites absurdos sobre quem ele poderia ser, surgiu lentamente uma discussão bastante sensata sobre o assunto que quisera trazer à tona, o tempo inteiro.

O desprezo pelo conhecimento. A glorificação da estupidez. A ignorância como factor de sucesso.

Tratava-se agora do Flashback, por isso não era possível dizer que era uma amostra representativa da população que ali se expressava, longe disso, mas já provocava algumas ondas.

A discussão estava lançada. Esperava que fosse também levantada em algum editorial, ou página de cultura, nos próximos dias.

Estava a crescer.

Estava a alcançar algo.

Não podia parar agora.

Já começara a olhar para algumas potenciais vítimas futuras. Passara à frente dos participantes de reality shows, dos bloggers e dos famosos de terceira categoria, com as suas tentativas mais ou menos desesperadas de prolongar o tempo sob as luzes da ribalta, por mais alguns minutos.

Agora era maior do que isso.

Mais importante.

O homicídio de Claes Wallgren e a entrevista com Axel Weber haviam sido passos na direcção certa. Tinham avançado as suas posições. Não podia voltar para trás. Para ter uma hipótese de acordar uma população adormecida, teria de apostar mais forte, encontrar os responsáveis pela corrupção intelectual que reinava e responsabilizá-los. Dois nomes da sua lista relativamente longa eram mais interessantes do que os outros, pensou.

Os seus pensamentos foram interrompidos pela campainha da porta. Olhou rapidamente para o relógio. Não estava à espera de visitas. De qualquer modo, raramente esperava visitas nos últimos tempos. Fora Laura quem se certificara de que mantinham uma vida social minimamente activa. E muita desaparecera com ela.

Levantou-se e dirigiu-se à porta, preparou umas frases já decoradas para o caso de ser algum vendedor ou algum pregador de uma seita qualquer.

Mas não era nem uma coisa nem outra.

Uma cara familiar encontrava-se do outro lado da porta.

– Olá, desculpa o atraso, não vais acreditar no que me aconteceu.

– Entra, conta-me – respondeu o homem que não se chamava Cato, desviou-se e deixou entrar Christian Saurunas no apartamento.


VANJA TINHA realmente tomado uma decisão.

A chamada para Jonathan fora um grande erro. Compreensível, mas, mesmo assim, havia limites para quão desesperado se podia ficar.

Susanna estava de volta.

Tudo tal e qual como da última vez.

O tempo parara.

Na realidade, era perfeitamente lógico que Jonathan tivesse regressado para Susanna. Ele precisava de alguém. Sempre precisara, era a sua maneira de ser. O estranho ali não era o comportamento de Jonathan, mas o seu próprio, que por momentos tivesse estado disposta a voltar a meter-se num ninho de víboras.

Jonathan talvez não fosse suficientemente forte, mas Vanja tinha de o ser. Era o papel que sempre desempenhara e seria esse que assumiria outra vez. Ela era forte. E sabia-o. Conseguia tomar decisões sensatas. Como não voltar a contactá-lo.

E depois ele telefonara-lhe.

Como uma tentação enviada por poderes superiores. Queria jantar com ela, e a sua determinação mostrou-se frágil como flocos de neve, uma leve pressão e desapareceu.

Concordaram encontrar-se dali a uma hora.

Vanja desligou e permaneceu sentada a olhar para o infinito. À sua volta, pessoas a movimentarem-se pelos gabinetes, terminavam o dia de trabalho. No seu interior, tudo estava ainda mais confuso. Obrigou-se a trabalhar mais um pouco, havia coisas para fazer. Ainda alguma coordenação com as equipas de Ulricehamn e de Helsingborg, e depois Torkel queria uma transcrição do interrogatório a Saurunas. Vanja não tinha nada contra fazê-lo, pelo contrário, o trabalho de transcrição era uma maneira de ficar com os apontamentos perfeitos.

Quando faltavam quinze minutos para ter de sair, sentiu que fora suficientemente eficiente e que podia deixar o trabalho sem peso na consciência. Foi à casa de banho e maquilhou-se levemente, mas com cuidado. Havia muito tempo que não se maquilhava para um encontro com alguém. Olhou para o seu reflexo no espelho.

Mas o que estava ela a fazer?

Toda a ideia de arranjar outra vida, uma vida própria, era para que fosse menos complicada, mais simples do que a antiga. E agora estava ali a maquilhar-se, para se encontrar com um ex-namorado que estava outra vez numa relação com a ex-namorada. Não obstante, sentia que não tinha escolha. Tinha passado toda a vida a pensar, a ponderar, a analisar. Precisava de seguir os seus sentimentos agora. Por mais errado que uma parte de si achasse que era.

Iam encontrar-se à porta do cinema Filmstaden. Jonathan continuava a trabalhar como técnico de informática na empresa Coldoc, um distribuidor de fibra óptica cujos escritórios ficavam perto da zona de Gärdet, e a praça Hötorget era um local de fácil acesso para os dois. Além disso, era o local onde tinham combinado o primeiro encontro, há muitos anos, e o simbolismo não passou despercebido a Vanja. Apanhou a linha azul em Rådhuset, era apenas uma paragem até à T-centralen, e depois um passeio rápido. Apesar de haver chuva no ar, apreciou o passeio de fim do dia e conseguiu libertar-se de grande parte da decepção que implicara terem de soltar Saurunas.

Jonathan estava no mesmo sítio onde esperara por ela da primeira vez. Vanja deteve-se, observou-o alguns momentos. Estava na mesma. Cabelo mais curto e talvez mais alguns quilos, mas continuava muito atraente. Alto e bem constituído, com aquele cabelo escuro grosso que ela adorava sentir por entre os dedos.

A parte sexual nunca fora um problema para eles, sempre se sentira atraída por ele, mesmo quando o afastamento entre os dois começara a fazer-se sentir. Era outra coisa que faltara no final. Ela chamara-lhe profundidade, nessa altura. Uma intimidade onde se sentissem à vontade para serem verdadeiramente sinceros um com o outro. Jonathan tinha uma certa tendência para se tornar submisso e, normalmente, não tinha coragem para enfrentar as situações que, a curto prazo, provocavam fricção na relação, mas que, a longo prazo, criavam laços mais fortes.

Era simplesmente demasiado bondoso.

Todavia, depois do último ano de montanha-russa emocional, essa característica parecia-lhe extremamente atractiva.

Vanja precisava de alguém bondoso.

O rosto de Jonathan iluminou-se quando a viu, e acenou-lhe com alegria. Vanja acelerou o passo e abraçou-o quando se encontraram. O corpo dele estava quente e cheirava bem.

– Olá, Jonathan – disse, sem o largar. – Que bom ver-te outra vez.

– Também é bom ver-te – respondeu Jonathan.

– Pareces estar bem – comentou Vanja com sinceridade.

– Obrigado, tu também.

Ficaram em silêncio alguns momentos, a olhar um para o outro com curiosidade.

– Onde vamos jantar? – Vanja interrompeu o silêncio antes que se tornasse constrangedor.

– Não sei.

– Não reservaste mesa em lado nenhum?

Jonathan abanou a cabeça e parecia estar embaraçado.

– Na verdade, não sabia se ias mesmo aparecer. Tu sabes. Podias mudar de ideias, no último momento.

Ele conhecia-a bem. Não havia dúvida. Porém, ela agora estava ali e, como de costume, assumiu o controlo.

– Vamos ao Kol & Kox? Ou achas que é estranho? – perguntou-lhe.

O Kol & Kox era um restaurante italiano a poucos metros de onde estavam, onde tinham jantado no primeiro encontro. Jonathan abanou a cabeça e sorriu.

– Sim, claro. Não vou lá há imenso tempo. Uma pequena viagem ao passado faz sempre bem – respondeu. Começaram a andar. As bancas de frutas e legumes continuavam a trabalhar a todo o vapor e passaram por entre os vários vendedores barulhentos, que competiam para conseguir livrar-se do máximo possível da mercadoria restante, ao melhor preço possível, antes de encerrarem as bancas. Vanja caminhava perto de Jonathan, mas decidiu mostrar-lhe claramente que tinha saudades dele. Agarrou-se ao seu braço e, para sua satisfação, viu um pequeno sorriso nos seus lábios.

Comeram, cada um, uma massa com cogumelos e carne. Jonathan sugeriu dividirem uma garrafa de vinho tinto, mas Vanja recusou. A noite podia acabar com eles os dois juntos, mas também poderia dar-se o caso de se ver obrigada a regressar ao trabalho, e aí não podia ter bebido.

A conversa virou-se rapidamente para tudo o que lhe acontecera. Fora realmente esse o motivo para aquele encontro, e Jonathan parecia sinceramente interessado. Vanja tentou não deixar nada de fora. Como Anna até lhe mostrara uma lápide num cemitério e afirmara que o homem ali enterrado era o seu pai. Mas guardou o melhor para o fim, aquilo que toda a farsa pretendera esconder. Que Sebastian Bergman revelara ser o seu pai biológico. Jonathan passara de interesse sincero a consternação.

– Meu Deus, isso nunca acaba? – comentou quando Vanja acabou a história.

Vanja encolheu os ombros de forma resignada. Não sabia responder. Mas parecia que não.

– E a tentativa do teu pai... do Valdemar –, corrigiu-se. – A tentativa do Valdemar se matar, a acrescentar a tudo isso? Como é que aguentas? – continuou e olhou para ela com compaixão.

– Tem sido chato – respondeu Vanja. Era um eufemismo, mas ele compreendeu. Inclinou-se mais para ele. – Foi por isso que te liguei. Precisava de alguém – acrescentou em voz baixa.

– Obrigado. É simpático dizeres isso – respondeu Jonathan e sorriu. Ficaram algum tempo calados. Ele olhou para ela com uma expressão que Vanja não conseguia interpretar muito bem. O facto incomodou-a. Costumava conseguir lê-lo sem dificuldade.

– Fico contente por me teres ligado, mas isto é difícil para mim – conseguiu, finalmente, dizer. Os homens da mesa ao lado da deles levantaram-se e começaram a vestir os casacos. Por algum motivo, tanto Vanja como Jonathan olharam para eles. Talvez tivesse sido o movimento repentino a desviar-lhes a atenção. Talvez o som das cadeiras contra o soalho. O riso alto de um deles. O que quer que tivesse sido, Vanja sentiu que o leve encantamento que se criara momentos antes se quebrara.

Na realidade, ele não lhe pertencia.

E ela não lhe pertencia a ele, de todo.

Haviam tido o seu momento, mas já fora há muito tempo.

Também não eram amigos. Tinham sido algo muito maior do que isso. Mas já não. O que eram agora, nenhum dos dois sabia.

– Tu precisas de alguma coisa, Vanja. Mas não sei se ta posso dar.

Vanja acenou com a cabeça, em silêncio. No entanto, magoava-a que ele nem sequer tentasse descobrir onde aquilo os poderia levar.

Levantou o copo e bebeu um último gole. Queria prolongar o momento. Os homens acabavam de sair pela porta. Daí a pouco, seriam eles os dois a seguir pelo mesmo caminho. Como recordaria ela este encontro? Para onde iria quando tivesse agradecido o jantar e ele tivesse dito que fora realmente bom terem-se encontrado? Regressaria à Riksmord, ao trabalho que anteriormente adorara e que fora a única coisa pela qual vivera.

Tocou levemente nas costas da mão de Jonathan.

– Tenho saudade tuas – disse-lhe e agarrou em dois dos seus dedos. Apertou-os. Ele olhou para ela prolongadamente. E por fim respondeu.

– Tens? Mesmo? Ou precisas de alguém só porque estás a atravessar uma fase horrível? – perguntou-lhe e retirou discretamente a mão de cima da mesa.

– Tenho mesmo saudades tuas – disse tão rápida e convincentemente que nem ela própria teve tempo de ponderar se era realmente verdade ou não. – Teria querido isto de qualquer maneira – prosseguiu, na esperança de continuar a soar convincente.

– Eu estou com a Susanna outra vez.

– Mas estás aqui sentado comigo.

– Sim, mas se calhar não estou propriamente muito orgulhoso disso – respondeu Jonathan e olhou, sério, para ela, ao mesmo tempo que se inclinou para a frente. – Tu sabes que eu estou interessado. Se não, não estaria aqui – disse, sincero. – Mas não estou seguro de que tu queiras realmente isto. Talvez eu seja alguém de quem tu precisas neste momento, por algum tempo. E eu não consigo lidar com isso. Não outra vez... – disse e calou-se.

– Eu percebo isso – respondeu Vanja carinhosamente e tocou-lhe outra vez na mão. Ele deixou-a ficar onde estava desta vez.

– Não, não percebes.

Olhou para ela, os olhos escuros a transbordarem de emoções que já não conseguia conter. Vanja baixou o olhar. Não contara com isto. Tê-lo-ia magoado assim tanto?

– Também foi difícil para mim – disse-lhe e apertou-lhe a mão com um pouco mais de força.

– Não como para mim.

Ela sabia que ele tinha razão. E sentiu vergonha. Vanja não tivera qualquer problema em seguir em frente.

Fora ele quem telefonara.

Ele quem chorara.

Ele que precisara dela.

Ela fora a forte. A que o afastara.

– Tu sabes que consegues ter-me de volta, Vanja – disse Jonathan, e Vanja sabia que era verdade. – Mas eu não posso ser apenas alguém que resolve uma coisa urgente. Tem de ser a sério. E isso, acho que talvez não seja.

Vanja não sabia o que haveria de responder. Precisava dele naquele momento. Mas poderia ser diferente dali a um mês. Dali a uma semana. Estava a fazer isto por si própria, não porque o amava.

Contudo, essa percepção não foi o pior de tudo. O que a assustava foi aperceber-se de que parecia o pior egoísta que conhecia. Alguém que se punha sempre a si próprio, e às suas necessidades, em primeiro lugar. Alguém que deixava o seu próprio desejo controlar todas as interacções e encontros, principalmente aqueles com o sexo oposto.

Sebastian Bergman.

Era a menina do papá.

Tinha muito que fazer, convenceu-se a si próprio.

E era por isso que continuava no escritório, depois de a maior parte dos colegas terem ido para casa.

Tinha que fazer.

Não tinha nada a ver com o telefonema de My nessa tarde. Tinha saudades dele e estava ansiosa por vê-lo o mais depressa possível. Dissera-lhe a que horas aterrava.

Poderia ir buscá-la?

Billy arrastou a questão. Não era que não quisesse, também tinha saudades dela, mas... Era a investigação. Complicada. O caso era público, para não dizer mais, desta vez. Não tinham muito por onde pegar, e o pouco que tinham ficara à sua responsabilidade.

Câmaras de segurança. Listas telefónicas. Esse género de... o seu trabalho.

– E a que horas achas que estás despachado?

Não fora possível não reparar na desilusão que transparecia na voz de My.

– Não sei. Tarde.

– Não podemos ao menos jantar? – não tanto uma pergunta como uma ordem indirecta. – Não nos vemos há quase uma semana.

Billy inspirara profundamente. Fechara os olhos. Não havia uma maneira agradável de o dizer, apenas várias mais ou menos desagradáveis. Escolheu uma delas.

– Eu sei, mas hoje não devo mesmo conseguir. Tenho milhares de coisas para fazer...

O silêncio foi a única resposta.

– Talvez seja melhor combinarmos antes para amanhã de manhã – concluiu Billy. – Posso avisar que vou chegar mais tarde e... vemo-nos então.

Quando desligou, não conseguiu livrar-se da sensação de que ela pressentia alguma coisa. De que havia algo por dizer entre os dois, mas também podia perfeitamente ser a mistura de confusão, má consciência e sentimentos de culpa que o afligia.

Afastou os pensamentos com ajuda do trabalho.

Havia muito que fazer. Isso, pelo menos, não era mentira.

Conseguira as listas de chamadas de todas as vítimas, excepto as de Claes Wallgren. Também as pedira, mas ainda não as recebera.

Sabiam com bastante precisão quando o suspeito contactara duas das suas vítimas, por isso começou por Patricia Andrén. O comentário sobre a reunião de almoço e a entrevista próxima fora publicado a 8 de Junho, às 13h24, na sua página de Facebook.

Billy controlou a lista com as chamadas de, e para, o seu telemóvel.

Treze minutos antes, às 13h11, recebera uma chamada de um número que revelara pertencer a um cartão pré-pago. A chamada durara oito minutos. Cinco minutos depois, escrevera o comentário no Facebook.

Continuou para as chamadas de Ebba. Ela dissera-lhes que recebera a chamada segunda-feira, depois de terem ganhado o prémio no Summer Blog Awards. Uma pesquisa rápida no Google providenciou-lhe a data da gala, e, como esperado, havia uma chamada de outro cartão pré-pago na manhã da segunda-feira que se seguira à atribuição dos prémios.

O caso de Mirre Petrovic precisou de um pouco mais de trabalho de detective. Não sabiam exactamente quando recebera a chamada, mas alguém lhe telefonara de um terceiro cartão pré-pago dois dias antes do seu último almoço oferecido, no hotel Kurhotellet. Também esta chamada durara pouco mais de cinco minutos. Combinações rápidas.

Provavelmente não fora muito difícil convencê-los com a atracção de alguma publicidade.

Infelizmente não avançou mais com os telefonemas. A pequena esperança que alimentara de que o suspeito, que Sebastian estava convencido ser um académico mais velho, tivesse sido descuidado no que dizia respeito à parte electrónica e tivesse deixado um rasto digital atrás de si desvaneceu-se rapidamente. Era um homem que não deixava nada ao acaso.

Billy esperava ter mais sorte com o veículo que conseguira identificar.

Aqui, sabia exactamente o que procurava.

Modelo, ano e matrícula.

Tinha todos os dados. Só não tinha uma imagem de quem o conduzia.

Que eles soubessem, o assassino mantivera-se na zona de Estocolmo depois do rapto de Sara e Ebba Johansson. Tinha as imagens de todas as portagens à sua disposição. No melhor dos casos, conseguiriam uma fotografia frontal onde se visse o condutor, mas, até agora, nem sequer conseguira encontrar o veículo.

Passado uma hora, riscou outra portagem da lista.

Já tinha pesquisado quatro. Faltavam catorze.

Recostou-se na cadeira e espreguiçou-se com os braços por cima da cabeça. Ponderou se devia ir buscar mais uma chávena de café, mas percebeu que provavelmente seria melhor comer qualquer coisa, uma vez que, de qualquer modo, teria de ir até à copa.

Pelo canto do olho, apercebeu-se de um movimento no escritório vazio. Vanja estava de regresso. Viu-o no seu lugar e aproximou-se dele. Billy inclinou-se para a frente e desligou a música que tinha a passar no Spotify.

– Não tinhas um encontro hoje? – perguntou Billy quando Vanja puxou uma cadeira da secretária ao lado da dele e se sentou.

– Já acabou.

– Tão cedo – comentou Billy com um olhar para o relógio.

– Sim. E tu, o que estás aqui a fazer? – perguntou Vanja para dirigir a conversa para longe dos pormenores do jantar com Jonathan.

– Tenho coisas para fazer.

Billy apontou para a secretária e para os monitores à sua frente, que esperava fossem descrição suficiente da sua carga de trabalho.

– Precisas de ajuda? – quis Vanja saber, ao mesmo tempo que despiu o casaco. A noite estava, de qualquer modo, arruinada. Não queria, de maneira nenhuma, voltar para o apartamento vazio, que só a fazia lembrar de Valdemar.

– Estou à procura da autocaravana nas imagens das portagens. Podes ficar com algumas delas, se quiseres.

Vanja assentiu, e Billy passou alguns minutos a ligar um novo computador a um dos monitores, a dar-lhe acesso ao servidor, e, em pouco tempo, estavam sentados um ao lado do outro, a observar intermináveis filas de carros a entrarem e a saírem de Estocolmo. Vanja deu por si a apreciar o momento. Era como nos bons velhos tempos, antes de tudo se desmoronar, antes das sombras a dominarem. Quando ela e Billy tinham trabalhado muito próximos, sido uma equipa e amigos próximos. Mais do que isso. Quase como irmãos, na verdade. Antes da ruptura, de toda a discórdia e de My, que Vanja só conhecera de passagem no casamento, mas de quem não conseguia convencer-se a gostar.

– A My voltou hoje – disse Billy, de repente, como se soubesse no que Vanja estava a pensar.

– Onde esteve?

– Nos pais, em Dalarna.

– Então o que estás aqui a fazer? – perguntou Vanja, surpreendida. Os poucos outros casais que conhecia tinham quase de ser separados com um pé de cabra, nos meses a seguir a terem-se casado. A sensação que tivera no carro a caminho de Helsingborg regressou. De que nem tudo estava bem com o casal Rosén.

Billy ficou calado. Olhava concentrado para o monitor. Pensativo.

Porque dissera que My tinha regressado?

Havia algo naquela situação. Ele e Vanja. Lado a lado. Em tempos, ela fora a pessoa a quem podia contar tudo. Realmente tudo. Vanja sabia mais sobre ele do que My, do que Jennifer (mesmo que Jennifer soubesse outras coisas), mais do que qualquer outra pessoa. Tinha de admitir, tudo o que acontecera estava a dar cabo dele. Tantos segredos e mentiras. Quando não estava a trabalhar, os acontecimentos das últimas semanas passavam-lhe pela cabeça em imagens, como num filme. Sem fim. O dia inteiro. Partilhar isso com alguém talvez o pudesse ajudar a lidar com a situação.

– Fui infiel – disse em voz baixa e manteve o olhar fixo no monitor à sua frente.

– Vocês estão casados tipo há um mês! – Estupefacção sincera. Fosse o que fosse que Vanja tivesse esperado, não era aquilo, percebeu Billy.

– Eu sei...

– Com quem?

– Faz alguma diferença?

– Provavelmente não. Porquê?

Sim, porquê? Porque funcionava. A sensação de dominação, poder e controlo, em conjunto com um prazer sexual intenso, ajudara-o a diminuir aquela necessidade sombria que se alojara como uma cobra esfomeada na sua barriga.

Tornara-a mais manobrável.

Mais do que isso: insignificante.

A experiência com Jennifer fora uma das mais intensivas que alguma vez vivera. Mais forte e melhor do que aquilo que sentira ao matar os animais, uma vez que fora imediatamente seguida de satisfação sexual. Como nunca sentira, nem de perto, anteriormente. De seguida, todos os pensamentos sobre fazer mal a alguém tinham desaparecido. A cobra estava apaziguada. Billy sentira-se calmo, satisfeito, o seu âmago em equilíbrio, como não estava há muito tempo.

Sabia tudo aquilo, mas não podia contar nada daquilo.

– É complicado – respondeu, o que também não era mentira.

– Sabes que isso faz de ti mais ou menos um cabrão, não sabes?

– Sim.

Não fazia diferença. Não estava à procura de simpatia. Sentia-se, de qualquer modo, melhor por lhe ter contado.

O computador de Billy apitou, e ele inclinou-se imediatamente para a frente, o interesse reavivado. Um clique do rato, e abriu-se uma nova janela.

– Olha esta...

– O que é? – perguntou Vanja, claramente instigada pelo interesse súbito de Billy.

– Tenho o cartão de crédito do Saurunas a ser rastreado.

Vanja pensou perguntar se isso era sequer legal, sem a autorização de um procurador, o que não lhe parecia que tivessem, mas deixou passar. Obviamente dera resultados.

– E ele acabou de o usar – Billy confirmou os pensamentos dela.

– Onde?

– No parque de estacionamento de longa duração do aeroporto de Arlanda – lançou um olhar rápido para Vanja antes de pegar no telefone para ligar a Torkel. – Está a preparar-se para se pirar.


AUTO-ESTRADA E4 para norte. Billy acelerou até perto dos 150 quilómetros por hora e colocou o pirilampo azul junto ao vidro dianteiro, ao mesmo tempo que acendeu as luzes azuis na grade, que eram quase invisíveis até estarem ligadas. Não tinha sirene, uma vez que era um carro civil, mas desatava a buzinar mal se aproximava de algum condutor que, aparentemente, não olhara para o retrovisor e vira as luzes intermitentes.

Torkel ia no banco traseiro e decidiu, pela segunda vez durante a investigação actual, abster-se de comentar a velocidade a que iam. Em vez disso, reviu mentalmente o que fizera até então, e o que ainda havia para fazer até chegarem.

A primeira coisa que fizera fora telefonar à patrulha de serviço na esquadra de Arlanda. Dera-lhes algumas informações e uma descrição de Christian Saurunas e ordenara-lhes que controlassem todas as saídas, de todos os terminais. Se não tivessem tempo de verificar junto das companhias aéreas, teriam de fazer um apelo geral a todas as portas de embarque. Torkel deixou bem claro que não estava minimamente interessado que isso provocasse atrasos gerais. Saurunas não podia, de maneira nenhuma, deixar Estocolmo.

A patrulha policial que haviam enviado ao número 43 da rua Bäckvägen confirmara que Saurunas não estava no apartamento e que o seu Volvo vermelho também não estava no lugar de estacionamento que pertencia à sua casa.

Então o telefonema seguinte fora para o parque de estacionamento de longa duração de Arlanda. Partiram do princípio de que ele não reservara um lugar, o que fora rapidamente confirmado com uma chamada para a linha de apoio ao cliente. O que queria dizer que Saurunas simplesmente estacionara no primeiro lugar disponível. Torkel perguntara se a empresa de estacionamento tinha possibilidade de mandar alguém procurar o carro. Para ganharem algum tempo. Para sua surpresa, a mulher com quem falava garantiu que ela própria sairia imediatamente e que levaria um colega consigo. Dera-lhes o número da matrícula do Volvo vermelho de Saurunas, mas não tinha esperança que desse muitos resultados. Devia ser um dos carros mais comuns do país inteiro, e a mulher com quem falara, cujo nome agora não conseguia recordar nem por nada, dissera-lhe que os dois parques de estacionamento, juntos, tinham capacidade para mais de mil e oitocentos carros. Torkel arriscou e pediu-lhes para também manterem os olhos abertos para uma autocaravana com matrícula alemã. Não era possível haver assim tantas no estacionamento, com certeza. Também fosse mais fácil de detectar, tendo em conta o seu tamanho. A mulher prometera dar o seu melhor, indicara-lhe o número do seu telemóvel privado e terminara a chamada.

Torkel olhou pela janela lateral e viu que ultrapassavam carro após carro na fila da direita. Ponderou, por momentos, telefonar a Lise-Lotte. Todavia, poderia parecer pouco profissional naquele momento e, além disso, não tinha vontade de abrir a porta a perguntas por parte dos outros dois passageiros do carro.

Deixara-a sozinha, mais uma vez.

Tinham estado sentados num restaurante perto da ponte Djurgårdsbron. Acabavam de decidir o que iam comer, mas ainda não tinham feito o pedido. Tinham mandado vir um copo de rosé cada um e dado as mãos por baixo da mesa. A noite não podia começar melhor. Lise-Lotte contara-lhe o que fizera durante o dia. Fora turista na capital. Mudara-se de Estocolmo havia muitos anos e, pensando bem, já havia mais de quinze que estivera lá pela última vez. Então, visitara algumas das coisas «obrigatórias» e apreciara o dia.

E depois Billy telefonara. Cinco minutos mais tarde, Torkel estava sentado num táxi a caminho da esquadra em Kungsholmen. Estava verdadeiramente preocupado com a possibilidade de Lise-Lotte se cansar dele. Se reflectisse um pouco, aquela era a terceira vez que a deixara apressadamente. Pronto, não na noite em que ela o esperara nas escadas. Mas, por outro lado, dessa vez ela tinha esperado por ele várias horas.

Era assim que funcionava uma relação com ele?

A resposta a essa pergunta era, infelizmente, sim.

Facto que as suas duas ex-mulheres haviam descoberto e do qual se tinham cansado.

Não ousava realmente esperar que Lise-Lotte fosse diferente.

Praguejou para si próprio. Não poderiam ter-se encontrado há um mês? Depois de terem concluído o caso em Torsby, Torkel não tivera praticamente nada para fazer durante várias semanas.

Conseguira pôr em dia toda a papelada em atraso.

Respondera a algumas cartas.

Participara em algumas reuniões estratégicas.

Tivera horários regulares de escritório. Fora normal. Alguém ao lado de quem se podia realmente pensar em viver – pronto, um pouco exagerado depois de três encontros, admitia –, mas queria tanto que aquilo desse em algo mais, algo estável e duradouro.

Suspirou profundamente, e Vanja virou-se para trás e olhou para ele com uma expressão interrogadora. Estavam apenas os três no carro. Ursula iria ter com eles por conta própria. Por pura cortesia, Torkel telefonara a Sebastian, que rapidamente chegara à conclusão de que aquilo era trabalho policial puro.

Ou conseguiam apanhar Saurunas ou não conseguiam.

Se chegassem a tempo de o apanhar, que lhe ligassem outra vez. De outro modo, não estava interessado em passar o fim do dia a correr de um lado para o outro, a procurar pessoas num aeroporto. Torkel não ficara exactamente surpreendido. Afinal de contas, era com Sebastian Bergman que tinha falado.

Billy saiu da E4 e desceu para a longa recta que ia até aos parques de estacionamento de longa duração, com os nomes muito criativos de Alfa e Beta, e depois seguia até chegar aos cinco terminais. Quando uma zona de casas de exposição apareceu do lado direito do carro, Billy virou para a direita na direcção de Norrtälje e acelerou a fundo outra vez.

Apenas alguns minutos mais tarde, chegaram aos dois amplos terrenos bem preenchidos com centenas de carros em filas rectas.

– Para onde vamos agora? – perguntou Billy e parou no meio das entradas para os dois parques.

Torkel pegou novamente no telemóvel e marcou o número que obtivera da mulher que prometera ajudá-lo a encontrar o carro quando ele chegasse ou, de preferência, antes.

– Olá, é o Torkel Höglund da Riksmord, outra vez – disse, quando ela atendeu. – Já chegámos, sabe dizer-me para onde devemos ir?

– Está aqui uma autocaravana com matrícula alemã – respondeu a mulher.

– Aqui onde?

Não teve tempo de ouvir a resposta. Também não precisou.

Dentro do parque, à direita de onde estavam, um enorme pilar de fogo ergueu-se em direcção ao céu. Logo de seguida, sentiram a onda de choque, que fez o seu carro tremer, e ouviram o barulho ensurdecedor da explosão, que não deixava margem para dúvidas sobre a localização precisa do carro que procuravam.


A FORÇA POLICIAL foi massiva.

Grandes holofotes iluminavam o local. Sirenes e barreiras por todo o lado. Polícias fardados, pessoal de emergência médica, bombeiros e técnicos. Imprensa e curiosos reunidos. Um pouco mais longe, ouviam-se vozes agitadas de pessoas que haviam tido tempo de aterrar antes de o aeroporto ser encerrado, mas que agora não conseguiam ir buscar os seus carros.

Torkel percorreu o local pela periferia. Não havia muito que pudesse fazer no centro dos acontecimentos. Na verdade, podia perfeitamente ter ido para casa, receber o relatório no dia seguinte, mas era responsável pela investigação e deveria ser dos últimos a deixar o local. De qualquer modo, não podia ir-se embora antes de haver um relatório técnico preliminar sobre o que realmente acontecera.

Mesmo que não fosse muito difícil de perceber.

A autocaravana explodira.

Não restava muito dela. Peças retorcidas e queimadas, que, com alguma imaginação, poderiam refazer o chassis. Aquilo que provavelmente fora o pesado motor estava alguns metros à frente. Uma parte de uma das paredes erguia-se num fragmento carbonizado e afiado de um dos lados, de resto, não sobrava mais nada. Os pneus tinham ou explodido ou derretido, com o calor do incêndio subsequente. Havia peças por todo o lado. Os carros nas filas mais próximas da explosão tinham sido atirados para os lados, e alguns tinham pegado fogo. Havia estilhaços de vidros e espelhos a várias centenas de metros de distância.

A mulher com quem falara aquando da explosão fora levada para o hospital. Fora encontrada inconsciente. Provavelmente, teria sido projectada pela onda de choque e, já inconsciente, atirada contra um dos carros estacionados. Tinha ferimentos de estilhaços na cara, e suspeitava-se de que tivesse hemorragias internas. Torkel fez uma nota mental para contactar o hospital no dia seguinte para saber como ela estava.

Um dos técnicos que andava à volta dos carros atirados para os lados, ou que estavam em cima uns dos outros, chamou alguém. Torkel parou e viu o responsável pela equipa técnica aproximar-se do colega e, de seguida, olhar em volta como que à procura de outra pessoa.

Era dele que estava à procura, percebeu Torkel quando o outro lhe acenou.

Um Golf preto tinha a parte da frente por cima da lateral de um Renault azul. Todos os vidros e espelhos estilhaçados. Contudo, parecia que nenhum dos carros se incendiara. Torkel aproximou-se e olhou para o local, para onde o primeiro técnico apontava.

Entre os estilhaços de vidro e os restos do que poderia ter sido um dos assentos da autocaravana, estava algo que só podia ser uma perna. Rasgada pela coxa. Restos de umas calças e um sapato relativamente intacto, num pé cujo tamanho apontava para que se tratava de um homem.

Torkel suspirou profundamente.

Mais vítimas mortais.

Seriam obrigados a redefinir os objectivos da operação. A partir de agora, todas as buscas deveriam estar focadas em encontrar restos de corpos.

Torkel deixou o local com melancolia no peito. Levaria tempo até identificarem a pessoa a quem a perna pertencera, mas só pensar no que lhe acontecera deixava-o perturbado. Alguém que aterrara depois de uma viagem, com saudades de casa, apanhara o autocarro até ao parque de estacionamento, para conduzir a última distância até à família e de repente... fim.

Sem pré-aviso.

De forma totalmente inesperada.

A injustiça.

Pouco menos de dez minutos depois, chamaram-no novamente.

Apontaram para debaixo de um Volvo 242 cor de laranja, que, apesar de ter estado estacionado a duas filas de distância da autocaravana, fora empurrado para o lado e estava espremido contra um Toyota cinzento. Torkel debruçou-se, com cuidado para não pousar o joelho nos estilhaços de vidro. Uma cabeça e parte de um ombro direito desta vez. Parcialmente queimados e danificados pela força da explosão, mas surpreendentemente bem conservados. Obviamente, iriam precisar de uma autópsia e de testes de ADN para ficarem totalmente certos da identidade, mas Torkel reconheceu o homem graças à barba descurada. Estava bastante seguro de que se tratava de Christian Saurunas.

Mas o que significava aquilo?

– Veio até aqui e suicidou-se? – perguntou Billy quando ouviu o que tinham encontrado, ou quem.

– Não sei. A que horas usou o cartão de crédito?

Billy verificou os seus apontamentos.

– Às 20h24.

– Nós chegámos pouco depois das nove... – disse Torkel mais para si próprio, mas Billy acenou com a cabeça, em concordância. – Porque esperou mais de meia hora, nesse caso?

– Talvez tenha sido um acidente – tentou Billy. – Estes carros devem estar todos cheios de gasolina.

– Mas, se ele planeava pôr-se a andar, porque ficou à espera no carro mais de meia hora? – acrescentou Vanja à discussão.

– Talvez o voo só partisse mais tarde e tivesse pensado ficar aqui a tomar um café... – tentou Billy, mas ouviu logo que isso não fazia sentido nenhum.

– Sabemos se tinha bilhete para algum dos voos de hoje? – quis Torkel saber.

Billy abanou a cabeça.

– Ainda não, mas só há seis partidas depois das nove horas, por isso não deve demorar até sabermos.

– Avisa-me quando souberes. Alguma coisa aqui não bate certo – conclui Torkel e deixou Vanja e Billy.

Seria uma noite longa.

Telefonara a Lise-Lotte. Dissera-lhe que, muito provavelmente, teria de ficar a noite toda em Arlanda. Pedira-lhe desculpa. Ela respondera que se veriam então no dia seguinte e que a podia acordar quando chegasse a casa, independentemente das horas que fossem.

– O que achas? – perguntou, quando se aproximou por trás de Ursula, que estava a analisar os restos da autocaravana.

– Aquele ali ao fundo... – apontou para um homem que estava sentado na parte traseira de uma ambulância, a ser tratado. A roupa indicava que era funcionário da empresa de estacionamento. Provavelmente o colega que a mulher com quem Torkel falara levara consigo para a ajudar com a busca. Era evidente que o homem estivera mais afastado da explosão. Sorte a sua.

– Ele disse que houve três explosões, todas muito próximas umas das outras.

– O que é que isso quer dizer?

– Que explodiram três coisas diferentes.

– Duas botijas de gás e o depósito de gasolina?

Ursula não respondeu imediatamente. Deu mais uns passos na direcção do carro. Apontou.

– O gás devia estar no fundo ou no meio da caravana. Perto da cozinha, não achas?

– Não sei, acho que nunca estive dentro de uma autocaravana – respondeu Torkel.

– Devia ter estado ao fundo ou no meio – constatou Ursula. – O depósito de gasolina por baixo da parte traseira. Olha para o motor.

Torkel fez o que Ursula lhe disse, mas apenas conseguiu ver peças escuras e retorcidas um pouco à frente do veículo.

– É pesado. A coisa mais pesada do veículo. Uma explosão de gás no meio ou na parte traseira não o teria empurrado para a frente desta maneira.

Torkel limitou-se a assentir com a cabeça. Parecia-lhe que estava a perceber onde a linha de raciocínio a ia levar, mas deixou-a continuar.

– Alguma coisa explodiu lá à frente, no cubículo do condutor, e ali não há gás.

– Então o que foi?

– Não sei, mas, se me obrigares a adivinhar, diria que foi algum tipo de explosivo – levantou a cabeça e deixou o olhar percorrer o local. – Não me parece que gás e um depósito de gasolina provocassem tantos danos como aqui.

– Então foi uma bomba?

– É melhor trazermos os cães, para termos a certeza – virou-se para ele e retribuiu-lhe o olhar. – Mas sim. Provavelmente uma bomba.


SEBASTIAN ESTAVA à espera há quase duas horas quando o elemento seguinte da equipa abriu a porta e entrou na sala.

Torkel.

Com o cabelo ainda ligeiramente húmido do duche. Uma camisa de manga curta, aos quadrados, umas calças chinos castanho-claras, barba feita, chávena de café numa mão, uma pasta com papéis e relatórios na outra. Tinha a mesma aparência e estava vestido como costumava, mas, ainda assim, Sebastian achou que algo nele estava diferente.

– Bom dia, já cá estás? – perguntou alegremente quando viu Sebastian.

– Pensei que começávamos às oito.

– Porra, pois é, desculpa. Ontem decidimos que íamos começar mais tarde. Ficou tudo tão tarde, lá em Arlanda.

Apesar do tom de arrependimento, tinha um ligeiro sorriso nos lábios. Sebastian seguiu-o com o olhar até ao canto da mesa. Passos leves. Um certo brilho nos olhos. Até lhe pareceu ouvir um ligeiro cantarolar quando o chefe puxou uma cadeira e se sentou.

De repente, apercebeu-se do que era.

Torkel parecia recém-fodido.

Recém-fodido e feliz.

Estava prestes a tentar comprovar a sua teoria, quando a porta se abriu novamente e Ursula entrou. Também ela com uma chávena de café e uma pasta nas mãos. Mas as semelhanças ficavam-se por aí.

– Bom dia – disse simplesmente quando entrou e se sentou.

Cansada. Sem maquilhagem. Nada de passos leves, brilho nos olhos, nenhum cantarolar de satisfação. Sebastian assumiu que haveria outra pessoa a fazer Torkel feliz hoje em dia ou então ele era tão aborrecido e desprovido de imaginação na cama como era enquanto pessoa. Claro que não era impossível, mas Ursula parecia tão divertida como se tivesse passado a noite na lavandaria e, mesmo que Torkel não fosse um atleta sexual, tinha de ser melhor do que isso.

Sebastian largou os pensamentos sobre a vida sexual de Torkel quando Vanja entrou. Também ela lhe pareceu bastante desgastada quando murmurou um curto «Olá», antes de se sentar na cadeira mais próxima da porta. Sebastian tinha vontade de lhe perguntar como se sentia, mas absteve-se. Mesmo sendo uma pergunta completamente normal entre colegas, tinha a certeza de que ela a interpretaria como demasiado pessoal e curiosa. Portanto, manteve-se calado. Vanja puxou para si uma das garrafas de água que estavam em cima da mesa. Sebastian passou-lhe o abre-garrafas.

Torkel olhou para o relógio de parede.

– O Billy? – perguntou.

– Vem um pouco mais tarde – respondeu Vanja. – Assim que puder.

– Okay, vamos começar – virou-se para Sebastian. – O Christian Saurunas morreu quando a autocaravana de que andávamos à procura explodiu no parque de estacionamento de longa duração, em Arlanda, ontem – disse, para Sebastian, virando-se de seguida para Ursula.

Ela abriu a pasta que trouxera consigo, mas não olhou para ela. Sabia de cor o pouco que tinha para acrescentar.

– Encontrámos vários fragmentos de corpos, parecem pertencer todos à mesma pessoa, e estamos a seguir a teoria de que era o Saurunas. O parque de estacionamento tem câmaras de segurança, as filmagens vão ser enviadas ao Billy agora, durante a manhã, e os cães de rastreio marcaram a presença de explosivos.

– Uma bomba – constatou Torkel, sucinto.

– Explosivos, pelo menos.

– Iria fazer explodir um avião? – lançou Vanja.

Ninguém teve oportunidade de responder antes de a porta se abrir novamente e de Billy entrar rapidamente.

– Desculpem o atraso – disse, ao mesmo tempo que se sentou e abriu o portátil no mesmo movimento. – Em que ponto estamos?

– Material explosivo no carro, e estávamos mesmo a perguntar-nos se ele teria algum atentado terrorista planeado.

– Não tinha passagem para nenhum dos voos que iam partir ontem à noite – informou-os Billy, ao mesmo tempo que abriu os documentos e ficheiros de que precisava, no computador.

– Pode ter ido lá passar a noite para apanhar um voo agora de manhã.

– Também não tinha bilhete para nenhuma das partidas hoje de manhã, que se saiba, mas eles continuam à procura – respondeu Billy, com a atenção ainda focada no monitor.

Conseguira manter a promessa a My. Ela não sabia que tinham decidido adiar a reunião matinal para as dez horas, por isso pensara que ele ficara em casa por sua causa.

Acordara-o às sete. Tinham feito sexo. Baunilha. Aborrecido. Ele desempenhara seu papel de forma convincente.

Sabia do que ela gostava.

Ela não fazia a menor ideia do que ele gostava hoje em dia.

Ou porquê.

Para alguém de fora, a manhã não teria parecido minimamente estranha, mas Billy sentiu que havia uma distância, que as palavras educadas e amorosas não conseguiam verdadeiramente esconder. Tudo como sempre, mas, ainda assim, diferente. Todavia, podia ser apenas a sua má consciência. Por fim, fora obrigado a regressar ao trabalho. Ela compreendia. Apreciava que ele tivesse tirado aquelas horas da manhã. Contou-lhe que iria passar rapidamente pelo consultório, ver os e-mails, não tinha clientes nem hoje nem amanhã. Talvez pudessem combinar qualquer coisa para essa tarde? Aproveitar as tardes solarengas. Ele não lhe podia prometer nada, mas ia tentar. Beijinhos e até logo.

Tudo como sempre, tentou convencer-se.

Exactamente como sempre.

– O que estava lá ele a fazer se não ia viajar? – perguntou Ursula, com razão.

– É um parque de estacionamento grande, talvez livrar-se do carro? – sugeriu Billy.

– Um carro de que nenhuma das pessoas com quem falámos alguma vez tinha ouvido falar ou que soubesse que ele conduzia.

– E isso não explica os explosivos – acrescentou Vanja.

– Suicídio? – atirou Torkel para o ar.

Não era provável. Nada na abordagem apontava para isso, mas as coisas funcionavam assim. Uma das vantagens de um grupo tão unido como o deles era que todos expunham as suas ideias, por mais parvas ou inverosímeis que parecessem, sem se retraírem. Por várias vezes, uma ideia atirada para o ar ou a sugestão de um cenário impossível desencadeavam uma linha de raciocínio, que se desenvolvia numa corrente que realmente os fazia avançar.

Mentes abertas eram um pré-requisito para o sucesso.

– Porquê ali? E porquê com uma bomba? – foi Ursula quem questionou a última sugestão. – Além disso, tinha álibi para os homicídios.

Ninguém respondeu. Estava difícil relacionar a deslocação até Arlanda, e a súbita morte de Christian Saurunas, com o que sabiam acerca dele.

– Então o nosso assassino quis desfazer-se dele – disse Sebastian, e verbalizou o que a maior parte da equipa estava a pensar. – E do carro – acrescentou.

Torkel acenou com a cabeça, pensativo.

– É uma teoria que temos pelo menos de ponderar.

– Então é porque foi encarado como uma ameaça – constatou Vanja.

– Provavelmente.

– Porquê? – continuou. – Por termos falado com ele? O assassino teve medo de que o Saurunas nos levasse até ele?

– Para onde é que ele foi quando o soltámos, sabemos?

Torkel virou-se para Billy como se fosse ele quem, com maior probabilidade, soubesse responder melhor à questão. O rápido encolher de ombros de Billy indicou o contrário.

– Não, isso não sabemos.

– Foi para casa e pegou no Volvo, mas depois... – Ursula fez um gesto com as mãos como que a dizer que ninguém sabia para onde Saurunas fora depois disso.

– Vou receber a lista das chamadas dele hoje, posso ver se telefonou a alguém depois de sair daqui – disse Billy.

– Se saiu daqui e foi ter com o assassino, é porque se trata de alguém que o conhece – constatou Torkel. – Temos de começar a mapear a família dele, conhecidos, associações de que era membro, tudo.

– Acho que devemos começar pela URT – comentou Sebastian. – Estamos muito provavelmente à procura de alguém com formação académica e, além disso, temos a ligação à Olivia Johnson.

– Em relação a ela... – acrescentou Billy. – Temos uma lista das escolas que ela frequentou, mas não de todos os professores que teve.

– Vê se aparece algum nome ligado ao Saurunas, que tenha trabalhado em alguma dessas escolas – decidiu Torkel, e Billy acenou com a cabeça. Levaria algum tempo a completar o puzzle à volta de Saurunas. Comparar nomes e registos. Muitas chamadas. Talvez hoje também tivesse de fazer horas extraordinárias ...

– Entretanto, voltamos aos três primeiros.

– O Skogh tinha álibi, e o Saurunas está morto – argumentou Vanja.

– E eliminámos o El-Fayed, as testemunhas de dois sítios diferentes disseram que não era ele – acrescentou Billy.

– Eu sei, mas ele é académico, a Olivia Johnson foi aluna dele, e é a única pessoa que temos neste momento.

Vanja assentiu e afastou a cadeira.

Então prosseguiam com El-Fayed.


VANJA TENTOU LIBERTAR-SE da sensação de que estavam a desperdiçar tempo quando voltou a passar as portas do campus de Flemingsberg. Não se haviam interessado por El-Fayed, uma vez que várias testemunhas o tinham excluído e porque houvera sempre pistas mais verosímeis e interessantes para seguir. Agora estavam de volta à estaca zero e tinham de recuar. Agarrar no que tinham encarado como baixa prioridade. Como Muhammed El-Fayed, professor de Engenharia Biomédica. Era trabalho policial que tinha de ser feito.

Desta vez foi pelas escadas e ouviu Sebastian, alguns passos atrás de si, começar a ficar ofegante. Tinha de admitir que haviam beneficiado muito dele nas investigações em que ele participara nos últimos anos, mas, se alguma vez se vissem numa situação em que precisassem de perseguir alguém, Sebastian seria completamente inútil.

Ponderou brevemente se deveria fazer um qualquer comentário azedo sobre a sua péssima condição física, mas decidiu não interromper o silêncio que reinava entre os dois desde que haviam deixado a esquadra, em Kungsholmen.

Viraram à esquerda e depois à esquerda novamente e tocaram à campainha da porta de vidro que dava para a Escola de Engenharia Biomédica. Uma mulher na sala mais próxima da porta veio abrir. Vanja identificou-se, explicou de que tratava a visita, e a mulher guiou-os pelo corredor, parou em frente a uma das portas de madeira e bateu. Um homem de barba, à volta dos quarenta e cinco anos, de aparência árabe, afastou-se do computador quando a mulher abriu a porta.

– A polícia quer falar contigo – disse a mulher e fez sinal a Vanja e Sebastian para que entrassem, sem esperar que Muhammed tivesse oportunidade de dizer se era uma boa altura para o interromper ou não.

– Pedimos desculpa pelo incómodo – disse Vanja e estendeu a mão a El-Fayed. – Vanja Lithner, da Riksmord. Precisamos de lhe fazer algumas perguntas.

– Claro, sobre o quê? – perguntou Muhammed e virou-se para Sebastian, que puxou uma cadeira da pequena mesa de reuniões e se sentou, sem qualquer intenção de se apresentar ou de o cumprimentar. Vanja retirou o seu pequeno bloco de notas do bolso.

– O que estava a fazer ontem entre as oito e as dez da noite?

Mais valia despacharem o assunto o mais rapidamente possível. Fazer as perguntas, directamente, sem rodeios.

– Estava em casa.

– Sozinho?

– Sim.

– Vive sozinho?

– Sou separado. Tenho as crianças semana sim, semana não.

– Mas esta semana não?

– Não, estão com a mãe durante algumas semanas agora, no início das férias de Verão. Porque querem saber? – Muhammed olhou de Vanja para Sebastian, que continuava recostado na cadeira, com os braços cruzados sobre o peito, sem dizer uma palavra.

– Pode dizer-nos onde se encontrava nestas datas, a estas horas? – prosseguiu Vanja e retirou uma folha do bloco de notas, desdobrou-o e entregou-o a Muhammed. Ele pegou no papel e olhou para ele com uma expressão confusa.

– Tenho de ver na minha agenda – disse e olhou para Vanja como que a pedir autorização para se virar para o computador. Vanja acenou discretamente com a cabeça e, depois de uns cliques rápidos no rato, Muhammed abriu a sua agenda. Deixou os olhos passarem do papel para o monitor e de volta para o papel.

– Na primeira estava aqui... na segunda estive em Linköping, numa visita de estudo ao curso que eles têm lá. O Åke também estava. Alguém da polícia ligou a perguntar sobre isso.

Vanja praguejou para si própria. Tinham verificado o álibi de Åke Skogh, e a viagem a Linköping confirmara-se, mas Torkel delegara a tarefa de contactar todas as pessoas que tinham participado na visita a alguém de fora do grupo. Deviam ter sido informados de que o nome de El-Fayed estava nessa lista.

– Na terceira data estava em Barcelona. Fui dar uma conferência na universidade de lá. A Katja, que vos trouxe aqui, tratou dos bilhetes de avião e da reserva de hotel.

– Okay, obrigada.

– Posso prová-lo – disse Muhammed e virou-se novamente para o computador.

Sebastian reagiu à veemência com que Muhammed queria limpar o seu nome. Mas era perfeitamente compreensível, poderia ter tido experiências menos agradáveis com a polícia no seu país natal. Ou talvez pensasse que a sua origem automaticamente fazia que não acreditassem nele.

– Veja aqui – exclamou, virando o monitor para que Vanja conseguisse ver. Uma página em espanhol de uma universidade em Barcelona. Texto em espanhol à volta de uma caixa no meio do ecrã, onde se via Muhammed sentado numa cadeira alta e uma projecção numa tela branca, ao fundo. Um triângulo branco no meio da imagem indicava que era uma filmagem. Por baixo do filme, a legenda «Muhammed El-Fayed on Transferring data from the Inner Body». A conferência tivera lugar no mesmo dia que as irmãs Johansson se haviam encontrado com o perpetrador.

O telemóvel de Vanja tocou, ela pegou nele, pediu licença discretamente e atendeu, ao mesmo tempo que saiu da sala. Muhammed permaneceu sentado à secretária e olhou com hesitação para Sebastian, que continuava também ele sentado, calado e quieto. Muhammed deitou uma vista de olhos para o corredor, onde Vanja andava de um lado para o outro, ainda com o telemóvel encostado à orelha.

– A Olivia Johnson foi sua aluna – disse Sebastian. Muhammed sobressaltou-se ligeiramente com o som repentino.

– Sim, é por isso que estão aqui? – um certo sinal de preocupação na voz agora. – Aconteceu-lhe alguma coisa?

– O que pensou quando ela conseguiu aquela bolsa de estudo?

– O que pensei?

– Sim.

– Não sei...

Muhammed inclinou-se para a frente, pousou o queixo coberto de barba numa das mãos e parecia realmente reflectir sobre a questão. Continuava ansioso por agradar, pensou Sebastian.

– Fiquei orgulhoso. Ela merecia mesmo, mas, infelizmente, nunca lho disse.

– Porquê?

– Estava de férias há duas semanas quando ela soube que conseguira a bolsa e, quando regressei, já se tinha ido embora. Foi tudo muito rápido. Aconteceu-lhe alguma coisa?

– Que nós saibamos, não.

– Então porque estão aqui?

A porta de vidro abriu-se, e Vanja entrou novamente no gabinete. Sebastian voltou a recostar-se na cadeira. A ordem estava reposta. As perguntas eram feitas e respondidas a Vanja. Calado e em segundo plano; era assim que ela o queria, pelo que era assim que ele se mantinha.


ENCONTRAVAM-SE NA SALA novamente. O nível de energia diminuíra consideravelmente. Agora sabiam com certeza aquilo de que antes haviam suspeitado. Saurunas fora assassinado.

Tinham recebido as filmagens do parque de estacionamento. Mostravam um homem a deixar a autocaravana imediatamente depois de a ter estacionado e que não regressara. Trinta minutos mais tarde, explodira. Por mais que Billy tentasse manipular as imagens, não se conseguia ver quem era a pessoa a deixar o local. As câmaras estavam demasiado longe, e a resolução das imagens era demasiado baixa. Mas não era El-Fayed. Não só a visita a Linköping e a conferência em Barcelona lhe proporcionavam um álibi à prova de bala, como as respostas que lhes dera haviam soado totalmente honestas aos ouvidos de Vanja. Também não houvera nada no seu comportamento, ou na sua história, que se assemelhasse à psicologia por detrás do suspeito que procuravam. Era verdade que poderia ser um manipulador incrivelmente habilidoso e estar a enganá-los, mas Vanja não acreditava nisso.

As testemunhas, o álibi e o encontro pessoal. Não era El-Fayed.

Estavam a mapear as pessoas à volta de Saurunas, do círculo mais íntimo para a periferia, e a comparar os nomes que conseguiam encontrar com todas as pessoas que, ao longo dos anos, tivessem tido Olivia Johnson como aluna. Era um trabalho muito moroso e, até então, não os levara a lado nenhum.

Torkel ponderava se não deveria engolir um sapo e ir ter com Rosmarie, para pedir mais recursos. Alargar as buscas. Interrogar todas as pessoas com ligação a Saurunas, todos os professores que Olivia Johnson alguma vez tivera. Arriscar. Só para chegarem a algum lado. Como as coisas estavam agora, parecia que davam um passo em frente e dois para trás a cada descoberta importante que faziam.

As pistas não os levavam a nada.

A lado nenhum. Apenas à frustração.

Sebastian levantou-se e começou a andar de um lado para o outro da sala. Os outros observaram-no em silêncio.

– O homem de que andamos à procura não parou de matar – constatou, quando tinha a atenção da equipa toda. – Está cada vez mais ambicioso. Tanto no que diz respeito às vítimas como à maneira de proceder. Está na altura de agirmos, em vez de reagirmos.

– Estamos a seguir todas as pistas que temos – respondeu Torkel. – Não é como se estivéssemos aqui sentados a jogar às cartas.

– Mas estamos a segui-lo. E ele lidera – retorquiu Sebastian. – Temos de o alcançar e de o ultrapassar. De tomar a iniciativa.

– E como sugeres que o façamos? – perguntou Vanja e, a julgar pelo tom, podia perfeitamente ter dito «falar é fácil».

– Temos de o compreender – prosseguiu Sebastian, sem se deixar abalar. – Quem é este homem? O que quer? O que o move? Em que está mais interessado?

Ninguém respondeu. Já tinham todos experiência daquela situação. Dos pequenos one-man shows de Sebastian Bergman. E, em todas as ocasiões, era evidente quanto ele os apreciava.

– Ele quer ensinar-nos. Formar-nos. Fazer-nos ver o mundo como ele o vê, porque desvendou a mentira. Ele é um pouco melhor do que todos os outros.

Aproximou-se em passos rápidos da mesa e pegou no Expressen da véspera.

– Reparem na entrevista que ele deu ao Weber. De cada vez que se mostrou um pouco crítico, ou que questionou alguma coisa, o Cato teve necessidade de o refutar. Com veemência. Pô-lo no seu lugar. Este homem não quer apenas ensinar e desvendar mentiras, quer fazê-lo de forma incontestada.

– E em que é que isto nos ajuda? – Torkel viu-se obrigado a interromper o monólogo.

– Imaginem que alguém lhe diz que ele está errado. Que não é nem mais esperto, nem melhor que nós. Que nem sequer é mais esperto do que as suas vítimas. Dão-lhe atenção porque ele mata, mas qualquer atrasado mental sabe matar.

A sala ficou novamente em silêncio enquanto todos reflectiam sobre o que acabavam de ouvir e ponderavam sobre o que aquilo realmente significava.

– Estás a pensar atacá-lo? – acabou Ursula por concluir serenamente.

– Atacar é a palavra errada – respondeu Sebastian, ainda excitado. – Desafiá-lo. Desequilibrá-lo. Pegar em toda a atenção que está a receber e virá-la contra ele – ficou novamente em silêncio, a olhar para a equipa, à sua frente. – Alcançar e ultrapassar.

Como ninguém parecia ter, ou pelo menos não o expressara, objecções ou sugestões melhores, virou-se para Torkel.

– O Weber não te está a dever um favor?


– QUEREM DAR uma entrevista exclusiva?

Estavam de volta à sala elegante com linhagem. Lennart Källman estava sentado na mesma cadeira que da última vez e olhava para Sebastian com espanto.

– Sim – respondeu Sebastian.

– E qual é o objectivo? – continuou o chefe de redacção, deixando transparecer na voz que o espanto inicial fora substituído por uma certa desconfiança.

– O vosso objectivo deve ser vender jornais, o nosso é outra coisa – respondeu Sebastian, críptico.

– Consideramos que é do interesse público dar a conhecer a nossa visão do assassino – acrescentou Torkel. Não se esquecera da última reunião que tivera lugar naquela sala. – Devem dar espaço a diferentes vozes no vosso jornal, não é? Ou percebi mal a vossa missão enquanto publicação?

O chefe de redacção olhou para Torkel com irritação. Era evidente que reconhecia a sua própria argumentação e que não apreciava que ela fosse utilizada contra si.

– Achamos que nos devem isso – concluiu Torkel.

– Não é bem assim que as coisas funcionam – respondeu Källman com escárnio. – É claro que queremos uma entrevista. Mas quero saber qual é o objectivo. Não vamos deixar que nos usem – rematou, obstinado. Sebastian olhou para ele. Começava a sentir-se irritado com a figura de macho-alfa pretensioso, do outro lado da mesa. Torkel inclinou-se para a frente, ficara de mau humor logo com a ideia de se encontrar com Källman novamente.

– Ou fazem a entrevista ou vamos a outro sítio. Viemos aqui porque achei que fazia sentido serem vocês a fazê-la. Mas talvez me tenha enganado – concluiu agressivamente.

O chefe de redacção sobressaltou-se, não muito, mas o suficiente para que os dois se apercebessem do seu nervosismo instintivo. Era uma das vantagens da concorrência feroz. Se alguém recusasse, haveria sempre outra pessoa que se atiraria com unhas e dentes à oportunidade, desde que se tivesse algo para vender, e isso Torkel tinha. Ele sabia-o, e Källman sabia-o. O que tornava a equação bastante simples. De um lado do ringue, um número considerável de edições vendidas e de cliques. Do outro, algo que, na melhor das hipóteses, poderia ser descrito como integridade, talvez dignidade. A escolha já estava feita, apesar de Källman parecer reflectir sobre o assunto durante alguns segundos, antes de se levantar.

– Vou buscar o Weber para poderem combinar – disse calmamente, dirigindo-se para a porta a passos lentos e de costas direitas. Parecia que, mesmo derrotado, sentia necessidade de mostrar que era ele quem mandava.

– Não sei se acho isto realmente uma boa ideia – disse Torkel, quando a porta se fechou e ficaram os dois sozinhos.

– Temos de fazer alguma coisa. Algo inesperado – respondeu Sebastian com convicção. – Acho mesmo que isto vai perturbá-lo. E aí a probabilidade de cometer erros aumenta, tu sabes.

Sebastian parecia completamente seguro de que aquilo era a melhor coisa que poderiam fazer. Contudo, ficava sempre entusiasmado com as suas próprias ideias. Torkel ainda não estava convencido.

– Imagina que o deixamos completamente fora de si? – olhou para Sebastian com preocupação. – O que acontece então?

– Não sei – respondeu Sebastian sinceramente. – Mas espero que então cometa o tal erro.

– E se não cometer?

Sebastian suspirou e virou-se para Torkel.

– Tu e eu sabemos que ele vai voltar a matar. Seja o que for que façamos. Mas temos de fazer alguma coisa.

Torkel não respondeu. Observou Sebastian. Teria sido fácil dizer não, havia motivos tanto racionais como emocionais. Ao mesmo tempo, havia algo naquela ideia que o atraía. O suspeito tivera a vida demasiado facilitada, estivera sempre vários passos à frente, nunca precisara de olhar para trás. Nunca lhe ofereceram resistência. Se havia algo em que Sebastian era realmente bom, era a oferecer resistência e deixar as pessoas desorientadas.

– Okay, avançamos. Mas não exageres – respondeu e, no mesmo segundo, apercebeu-se de que aquilo era algo que deveria ter reportado a Rosmarie, antes de o fazerem. Talvez até precisasse de autorização. Tarde demais. A porta abriu-se, e Weber entrou na sala, acompanhado do chefe de redacção e de um jovem com uma câmara de filmar simples, colocada num tripé, na mão. Weber olhou para Torkel com um olhar ligeiramente apologético.

– Olá, disseram-me que queriam falar comigo.

– O Sebastian quer – respondeu Torkel, secamente. Não tencionava ser mais amigável do que aquilo. Para ele, Weber continuava no banco dos castigados.

– Pensei que podemos publicar tanto em papel como na Net – informou o chefe de redacção e fez um gesto para o jovem com a câmara de filmar. – Isto vai ser um monstro de cliques – continuou, sem conseguir esconder um sorriso rasgado. Era evidente que as vendas nas bancas e os cliques tinham vencido a integridade e a dignidade por knock-out.


SEBASTIAN ESTAVA CANSADO quando chegou a casa. A entrevista correra bem, mas fora uma semana intensa, e a conversa com Weber drenara-lhe a última energia.

Exaltara-se.

Fora exuberante e excessivo.

Marcara a sua posição com autoconfiança.

Torkel estivera presente na primeira parte, mas fora obrigado a regressar à Riksmord, e Sebastian talvez tivesse ido demasiado longe, no final, quando passara da retórica bem formulada aos insultos puros. Entre outros, reutilizara a metáfora dos dinossauros que lançara contra Saurunas, mas de maneira ainda mais desenvolvida, na medida em que era injusto para os dinossauros, com os seus cérebros do tamanho de uma noz, compará-los com o assassino dos reality shows.

Mas pronto, o que estava feito, feito estava. Agora era só esperar pela publicação. A entrevista estaria disponível na Internet dentro de uma hora, dissera Källman quando, praticamente a babar-se, agradecera a Sebastian, no fim.

Foi buscar um copo de água à cozinha, levou-o para a sala, sentou-se na poltrona grande de leitura que raramente utilizava hoje em dia, fechou os olhos e permitiu-se apreciar o momento. Se tivesse feito devidamente o seu trabalho e conseguido entrar na mente do assassino, e achava mesmo que o tinha feito, sabia que o perpetrador não ficaria impassível à provocação que lhe lançara. Sebastian obrigara-o a reagir. E tinha esperança de que ele reagisse de maneira irreflectida e em tensão emocional. Torkel preocupara-se com o que poderia acontecer se o assassino ficasse furioso.

Contudo, ele já era perigoso.

E já estava furioso.

Era essa raiva que o tornava metódico e persistente. A raiva que Sebastian esperava ter conseguido despertar agora, uma raiva que o tornasse impulsivo e descuidado. Pensava ter conseguido fazê-lo. Irritar as pessoas era quase o seu desporto favorito.

Fora bem-sucedido, fora útil e sentia-se bem por isso.

De resto, não havia muito mais que lhe desse prazer ou alegria. Para sexo, não tivera nem tempo nem paciência, a última vez fora aquela experiência triste em Ulricehamn. A relação com Vanja era o que era. Nada acontecia nessa frente. Não se tinham aproximado minimamente.

Nada melhorara.

Quase o oposto.

Vanja aceitava tê-lo por perto, mas, simultaneamente, estava mais distante do que antes. Nessa altura, antes de ter ficado a saber, pelo menos virara-se contra ele, fizera-lhe frente, questionara-o. Agora, ele estava apenas ali, sem que ela se importasse particularmente.

Em Billy não tinha muita paciência para pensar. Dava uma vista de olhos pelo jornal diariamente, em busca de notícias sobre animais de estimação mortos na zona onde Billy morava, pois maus-tratos a animais costumavam aparecer nos jornais, mas nada, até agora. Talvez conseguisse mesmo controlar os seus impulsos, como lhe dissera, ou então era como o caso de Sebastian com as mulheres, simplesmente não tinha tempo nem paciência naquele momento.

Por falar em mulheres, preferia não pensar em Ursula, mas não conseguia evitar. Ela parecia-lhe tão desgastada... Não apenas como consequência de ter sido alvejada, também lhe parecia infeliz. Ursula costumava aguentar muita coisa, poucas coisas conseguiam trespassar a sua armadura sentimental, mas agora algo o fizera, aparentemente. Perguntava-se se ele próprio teria alguma coisa a ver com isso. Esperava que não. Ursula sempre tivera um significado especial para ele.

O toque do telefone interrompeu-o. Abriu os olhos, algo entorpecido, e ponderou, por momentos, ignorar os sinais furiosos que lhe saíam do bolso, mas o artigo talvez já estivesse disponível online, e apercebeu-se de que poderia ser importante. Constatou que não reconhecia o número no visor do telemóvel.

– Sebastian – atendeu.

– Estou a falar com Sebastian Bergman? – ouviu uma voz de mulher animada e jovial, do outro lado. Deve querer fazer algum tipo de vendas telefónicas, teve tempo de pensar.

– Sim, sou eu.

– Ah, que bom. O meu nome é Annika Blom e estou a ligar da Speakers Forum, ainda bem que o consegui apanhar. Espero não estar a incomodar.

– O que deseja? – perguntou Sebastian, imediatamente cansado do tom de vendedora exageradamente alegre.

– Estamos a organizar um seminário em conjunto com a Universidade de Lund, sobre criminologia e técnicas de interrogatório, e tivemos uma desistência de última hora. Por isso queria perguntar-lhe se está interessado em preencher a vaga? É já neste sábado – disse a mulher.

– Quanto pagam?

– Está interessado? – espantosamente, a mulher soou ainda mais alegre. – Que maravilha. Tem sido tão difícil encontrar alguém com um prazo tão curto!

– Eu não disse isso, só perguntei sobre a remuneração – respondeu Sebastian secamente e tentou soar mais aborrecido do que realmente estava.

– Podemos pagar quinze mil com recibo.

– Infelizmente não posso este sábado.

– Talvez consiga aumentar um pouco a remuneração. Falta muito pouco tempo, e estamos todos um pouco desesperados – aliciou a mulher.

– Não perguntei sobre o dinheiro por querer negociar. Só queria saber quanto estou a recusar.

– Acho que conseguimos subir até às vinte mil coroas, se isso ajudar – tentou, mas Sebastian afastou imediatamente a hipótese.

– Não ajuda. Também o iria recusar. Obrigado por ter ligado – respondeu antes de desligar o telefone.

Pousou o telemóvel no braço largo da poltrona. Noutra situação, teria aceitado a proposta. Uma viagem paga, com hotel, e uma aparição pública que, normalmente, lhe garantiam uma ligação sexual temporária. Mas agora não podia. Não queria estar longe da Riksmord antes de saber as consequências da entrevista. Sexo conseguia sempre arranjar, de uma maneira ou de outra. Esse não era o seu maior problema. Fechou novamente os olhos, contudo, não conseguia relaxar verdadeiramente. Havia algo no que a mulher lhe dissera que continuava a perturbar-lhe os pensamentos.

Alguém cancelara no último momento.

Era por isso que o prazo era tão curto.

Já ouvira isso antes, algures.


VANJA SAIU da casa de banho com a toalha enrolada à volta do corpo. Para sua grande decepção, continuava com a mesma sensação, a de insatisfação crescente.

Reconhecia-a muito bem.

E sabia por que motivo aparecera.

A investigação. O facto de, em princípio, não terem chegado a lado nenhum. Era o seu dever, o seu trabalho. Continuava a ser tudo o que ela era e, quando não era suficientemente boa, ficava inquieta. Impaciente.

Deixara Kungsholmen depois de uma última revisão na sala, que, na verdade, apenas confirmara a falta de avanços. Fora até ao seu apartamento, mas, bastante depressa, apercebera-se de que não seria capaz de passar a noite toda ali, sozinha. Então o que haveria de fazer?

A solução fora, como quase sempre, sair para fazer uma corrida.

Pela estrada Lidingövägen, descera na direcção de Storängsbotten, com o objectivo de chegar ao trilho em Lill-Jansskogen. Iria fazer um percurso longo. Deixar o ritmo da corrida e a concentração na respiração limparem-lhe o cérebro, ao mesmo tempo que tencionava esgotar-se fisicamente.

Depois de catorze quilómetros, estava novamente em casa, fizera uns alongamentos durante quinze minutos, no relvado em frente ao prédio, antes de subir para o apartamento. Decidira tomar um banho de imersão em vez de um duche. Algo que quase nunca fazia. Alguns anos antes, Jonathan dera-lhe de presente um conjunto de spa que nunca utilizara, mas que continuava guardado no armário por baixo do lavatório. Uma pequena garrafa com óleo de banho que, de acordo com a etiqueta, a levaria a esquecer tudo o que acontecera durante o dia e a deixaria pronta para a cama. Aparentemente, seriam a manteiga de cacau, o óleo de amêndoas doces, a camomila e a alfazema a produzir esse efeito.

Afundara-se na banheira, tentara relaxar, deixar o aroma a sândalo e jasmim influenciá-la. Não ficara muito surpreendida quando não funcionara.

Por isso, continuava inquieta e um pouco mal-humorada quando saiu da casa de banho e o telemóvel tocou.

Olhou rapidamente para o visor.

Sebastian.

Por alguns segundos, ponderou não atender a chamada, mas continuavam a trabalhar juntos numa investigação complicada. Não atender seria pouco profissional, mas, se o assunto fosse algo que não trabalho, ou se ele tentasse falar de algo pessoal, desligaria imediatamente.

– Olá, sou eu – disse Sebastian, quando Vanja respondeu com o seu nome.

– Eu sei, o que é que queres? – nenhuma abertura para conversas desnecessárias.

– Ligaram-me de uma agência de colóquios, queriam que eu participasse numa palestra.

– Então parabéns.

– Obrigado, mas a questão é que ligaram em cima da hora porque outro participante tinha desistido.

– Está bem...

– A Olivia Johnson soube que ganhara a bolsa de estudo duas semanas antes da data em que tinha de estar no MIT.

– Como sabes isso? – interrompeu Vanja, mais interessada agora que finalmente falavam da investigação.

– Foi o El-Fayed que disse.

– Quando?

– Quando tu saíste para falar com o Billy.

– Okay, o que disse ele exactamente? – perguntou Vanja e tentou empurrar para o lado o descontentamento em relação ao facto de Sebastian ter tido uma conversa com uma pessoa ligada à investigação, sem o seu conhecimento.

– O que acabei de dizer: a Olivia recebeu a notícia de que ganhou a bolsa duas semanas antes da data em que tinha de estar no MIT.

– E achas que foi porque alguém desistiu?

– Pode ter sido. Pelo menos, pensei nisso. Talvez valha a pena confirmar.

Vanja concordava, valia obviamente a pena confirmar. Olivia Johnson e a sua bolsa de estudo eram uma peça importante da investigação. A declaração do perpetrador de que fora sua aluna orientara, e muito, a investigação. Agora, repentinamente, descobria-se que havia um risco de terem investigado a pessoa completamente errada.

– Vou ligar ao Billy imediatamente – respondeu Vanja. – Foi ele que fez todos os contactos com o MIT.

– Está bem, faz isso. E por favor avisa-me se der em alguma coisa.

– Sim, claro. – Fez-se um silêncio curto na linha, enquanto Vanja ponderava se deveria dizer o que estava a pensar, se deveria dar-lhe a satisfação que isso implicaria. Decidiu que deveria.

– Bom trabalho!

E desligou.

Meio adormecida, Jennifer ouviu um telemóvel vibrar algures no apartamento. Não era o seu. Levantou ligeiramente a cabeça do ombro de Billy e olhou para ele, mas ele parecia não ter ouvido. Jennifer deixou-se cair novamente contra o seu tronco nu. Quando deixou a mão acariciar-lhe levemente o peito, viu as marcas ligeiramente rosadas deixadas pelas algemas. Nunca pensara verdadeiramente que fosse do tipo submisso, mas, com Billy, adorava sê-lo.

A liberdade de movimentos restringida.

O desejo crescente, conjugado com a impossibilidade de se satisfazer a si própria.

A emoção de se entregar totalmente, quando ele punha as mãos à volta do seu pescoço.

Havia uma sensação de liberdade em deixar outra pessoa assumir o controlo, ao mesmo tempo que era ela que lhe permitia sentir-se poderoso. Poderia retirar-lhe esse poder com apenas uma palavra. Não que o tivesse feito até então. Tirava prazer de se entregar totalmente a ele. Para seu espanto, mesmo das últimas vezes em que ele introduzira uns ligeiros toques de sadomasoquismo. Não fizera a menor ideia de que a dor podia intensificar o prazer e a excitação, mas era verdade. Mais tarde, quando ele se certificara de que se vinham os dois, sentira uma calma relaxada e uma harmonia que perduraram muito além do fim do encontro sexual.

Jennifer rebolou e deitou-se em cima de Billy, totalmente consciente de que isso o acordaria. Quando ele abriu os olhos, encostou as mãos à sua cara e beijou-o. Sentiu-o ficar imediatamente erecto contra a sua barriga nua. Com um pequeno sorriso, terminou o beijo e levantou-se da cama.

– Onde vais?

– Buscar alguma coisa para beber. Queres?

– Não, obrigado.

Ficou a observá-la ir nua até à cozinha. Depois ela regressou e atirou-lhe o telemóvel.

– Alguém te ligou.

E foi-se novamente embora. Uma chamada não atendida. De Vanja. Uma mensagem, provavelmente dela também. Ligou-lhe imediatamente, sem ouvir o que queria.

– Olá, o que estás a fazer? – ouviu assim que ela atendeu ao primeiro sinal.

– Porquê?

– Não atendeste.

– Não atendo sempre.

– Atendes sim. Estás com ela?

Billy lançou um olhar para Jennifer, que regressava com um copo de água, e pousou-o em cima da mesa-de-cabeceira, enquanto vestia umas cuecas e o roupão.

– O que é que queres? – perguntou Billy, ignorando a pergunta de Vanja.

Cinco minutos mais tarde, Vanja desligou novamente. Olhou para o relógio do telemóvel. Dez e dez.

Não havia muito mais que pudesse fazer essa noite. Billy prometera-lhe telefonar ao seu contacto no MIT e tentar descobrir se Olivia conseguira a bolsa pelo facto de outra pessoa ter desistido do lugar. Passava pouco das quatro da tarde em Boston, por isso tivera esperança de conseguir obter os dados que procuravam. Vanja pedira-lhe que lhe ligasse de volta quando soubesse alguma coisa, independentemente das horas.

O que haveria de fazer agora?

Talvez devesse vestir-se, continuava com a toalha enrolada à volta do corpo, ou então devia ir-se deitar, tentar dormir, mesmo que, nem por um instante, acreditasse que fosse conseguir adormecer nas próximas horas. Apesar do óleo de banho.

O toque da campainha da porta tomou a decisão por ela.

Um novo olhar para o relógio, apesar de já saber que horas eram. Quem poderia ser àquelas horas? Jonathan, pensou com ansiedade, enquanto se dirigia rapidamente para o quarto para vestir umas cuecas e umas calças de ganga. Um novo sinal breve vindo do corredor. Puxou um top preto da prateleira e enfiou-o pela cabeça, já a caminho da porta.

Imediatamente antes de rodar o trinco, e ainda na esperança de ver Jonathan do outro lado, apercebeu-se de que ele provavelmente não saberia o código da porta do prédio. Fora há mais de um ano que ele estivera em sua casa, e o senhorio já o alterara desde então. Por duas vezes até. Quem conhecia que soubesse o código, pensou ao mesmo tempo que abriu a porta.

– Olá. Desculpa vir aqui tão tarde, espero não te ter acordado.

Pois claro.

Ele sabia o código.

Valdemar.


UM KWV CHARDONNAY de 2014.

Ursula desenroscou a tampa e serviu-se. O vinho branco tingiu-se ligeiramente de cor-de-rosa, ao misturar-se com as poucas gotas de vinho tinto que continuavam no fundo do copo. Um sommelier provavelmente teria tido um ataque nervoso. Contudo, ela estava longe de ser uma conhecedora e parecia-lhe recordar-se de Bella ter dito uma vez que nunca se podia errar com um Chardonnay. Dvia ser por isso que a garrafa acabara no seu frigorífico. Seria estúpido misturar vinho tinto com branco, do ponto de vista das dores de cabeça, ou isso seria apenas um mito urbano? Restara apenas um copo e meio na garrafa de tinto que estava em cima da bancada, mas apetecia-lhe mais. Era uma dessas noites. Uma certa desilusão por não terem chegado a lado nenhum com a investigação. Um relatório tardio dos técnicos que tinham estado em Arlanda, que precisava de rever. Uma de muitas noites no apartamento, sozinha. Sem que Torkel fosse sequer uma alternativa. Todavia, o que esperara?

Que ele a cortejasse e a desejasse para todo o sempre? Que, vez após vez, ele aceitasse ser rejeitado e continuasse a regressar. Ela tornara bem claro que nunca seriam um casal. Que ele não lhe podia dar aquilo de que ela precisava. Que ninguém podia. Claro que ele procurara outra pessoa. Procurara Lise-Lotte. Só se podia culpar a si própria. Tinha, na prática, entregado Torkel de bandeja.

Voltou para a sala de estar, onde tinha a televisão ligada, sem som. Episódios antigos de Foi Assim que Aconteceu, uma série que parecia dar ininterruptamente em todos os canais, mas da qual nunca vira um único episódio completo. Pousou o copo de vinho na mesa, ao lado do seu iPad. Sentou-se no sofá, desligou a comédia e encontrou o que parecia ser um documentário. Deixou-o a passar, bebeu um gole do vinho e agarrou no iPad com um suspiro. O relatório do técnico que tinha estado no parque de estacionamento de longa duração de Arlanda confirmava o que ela já sabia. Uma carga explosiva, colocada na frente da autocaravana. A primeira explosão pegara fogo ao gás e à gasolina, o que resultara num aumento da força destruidora. Havia algumas fórmulas químicas no relatório e, mesmo que ela as traduzisse para ácido clorídrico, água oxigenada e acetona, a compreensão dos restantes membros da equipa seria mínima.

Iria, por isso, facilitar-lhes as coisas.

Contar-lhes apenas o que precisavam de saber, nada mais.

A construção era simples: um grande recipiente, com substâncias que, por si só, não eram explosivas. Mais um recipiente com outro líquido por cima, com uma «rolha» no meio, que impedia que este se entornasse. O líquido do recipiente superior tinha corroído lentamente a «rolha», ao fim de algum tempo. Quando esta barreira desapareceu, os dois líquidos juntaram-se, deu-se a síntese química, e as substâncias, que por si só eram inofensivas, transformaram-se numa bomba.

Os técnicos desconfiavam de que a rolha, neste caso, fora de alumínio e de que o líquido no recipiente superior o corroera à velocidade de quatro centímetros por hora. Passaram-se cerca de trinta minutos desde que o homem que tinham visto nas câmaras de segurança deixara a autocaravana até que ela explodira, o que apontava para uma rolha de alumínio de aproximadamente dois centímetros de grossura.

Provavelmente diria aos colegas que a mistura tinha grandes parecenças com TATP, mas que o suspeito, de alguma maneira, conseguira estabilizá-la e torná-la significativamente menos sensível a embates, o que apontava para que (e isso seria provavelmente a coisa mais importante que ela teria para partilhar na reunião diária do dia seguinte) o homem que procuravam tivesse conhecimentos de química. Conhecimentos profundos, até.

Colocou o iPad de lado e bebeu um pouco mais de vinho. E agora? Sabia, sem precisar de tocar no comando, que não estaria a dar nada na televisão que a interessasse àquela hora. Deveria telefonar a Bella? Havia muito tempo que não se falavam. Não se lembrava exactamente quanto, mas várias semanas pelo menos, bastante antes de terem ido para Ulricehamn, por isso, talvez estivesse novamente na altura.

Imediatamente a seguir ao acidente, quando perdera o olho, Bella viera de Uppsala, estivera lá com Ursula, próxima, preocupada, atenciosa. Depois, quando Ursula já não estivera em perigo de vida e fora evidente que recuperaria com um olho novo artificial, a relação das duas regressara à normalidade.

Muito tempo entre telefonemas.

Sempre Ursula a tomar a iniciativa.

Como agora.

Bella atendeu ao terceiro sinal. Música no fundo, mas sem vozes altas que indicassem que estava numa saída à noite. Ainda assim, Ursula perguntou se estava a incomodar, mas apenas recebeu um «não há problema» como resposta. De seguida, a conversa desenrolou-se como de costume.

Ursula perguntou como ela estava, e Bella respondeu.

Ursula quis saber se os estudos de Direito estavam a correr bem, e Bella contou em poucas palavras.

Ursula contou o que fizera desde a última vez, e Bella ouviu sem perguntas adicionais.

Tudo de acordo com o padrão. Sempre que Ursula não tomava a iniciativa, gerava-se um silêncio, como se Bella não quisesse saber ou contar nada. Até ao fim, quando Ursula perguntou se Bella pensava vir a casa agora, durante o Verão.

– Estive em Estocolmo na semana passada.

Ursula não conseguiu evitar sentir espanto e, depois de reflectir rapidamente, e de chegar à conclusão de que ela própria também estivera em casa no fim-de-semana anterior, uma certa desilusão.

– O que estiveste cá a fazer?

– Um amigo fez anos no sábado.

– Porque não disseste nada? – a voz ainda marcada por um laivo de desilusão que parecia passar totalmente despercebido a Bella.

– Tinha muito que fazer.

– Então também não estiveste com o pai?

Um silêncio breve que, aos ouvidos de Ursula, significava que Bella estava a ponderar se deveria mentir ou não.

– Só uma visita rápida – respondeu, com a verdade. Sempre era alguma coisa.

– Quando?

– No domingo. Encontrámo-nos para um brunch.

Ursula não precisava de perguntar. O uso do plural queria dizer ela própria, Micke e Amanda, a sua nova namorada. Não havia muito mais para dizer, nem sobre a visita a Estocolmo ou sobre outra coisa qualquer. Então terminaram.

Ursula pegou no copo de vinho e afundou-se novamente no sofá. Bella era menina do papá. Sempre fora. Mais uma vez, só se podia culpar a si própria.

Mantivera uma certa distância durante toda a sua infância, por alguns períodos até saíra de casa e deixara-os aos dois sozinhos. Sim, empurrara activamente a filha para Mikael, por isso as prioridades de Bella não eram exactamente uma surpresa. Todavia, acentuavam a solidão de Ursula. Numa noite em que já se sentia sozinha. Os pensamentos voltaram rapidamente a Torkel e à cópia de Meg Ryan com quem ele dormia. Afastou-os. Porquê torturar-se mais do que o necessário? Esvaziou o copo e levantou-se com as pernas trôpegas para ir buscar mais vinho.


TORKEL TELEFONOU uma hora depois de o artigo e de a entrevista estarem disponíveis na Internet. Recebera uma chamada bastante agitada de Rosmarie Fredriksson, que, aparentemente, tivera uma reacção forte tanto ao título «Polícia desfaz assassino dos reality shows» como ao subtítulo «Sebastian Bergman afirma: o homem é um idiota».

Sebastian tentara defender-se, dizendo que não fora ele quem decidira os títulos, mas Torkel respondera-lhe lendo excertos do texto principal e escolhendo algumas citações mais agressivas, que se aproximavam da difamação. Sebastian tentara tornar a situação caricata. Se o chefe estava enervado, provavelmente não se comparava com o que o assassino estaria a sentir.

Queriam deixá-lo abalado. Desequilibrá-lo.

Fora esse o plano.

Para isso, eram precisas medidas.

Esses argumentos caíram por terra com Torkel. Tinham concordado que Sebastian se conteria, seria disciplinado e transmitiria uma imagem de adversário à altura, não que abriria completamente as comportas. Sebastian constatou que, por um lado, Torkel deveria conhecê-lo o suficiente por esta altura para saber que Sebastian não se continha e, por outro, era demasiado tarde para fazer alguma coisa agora. Estava tudo publicado. Não obstante, prometeu que assumiria a responsabilidade, caso Torkel tivesse problemas.

– Óptimo – respondera Torkel. – Porque a Rosmarie quer falar connosco assim que chegar, amanhã de manhã, para lhe darmos uma explicação.

Depois da chamada, Sebastian dirigiu-se a um dos restaurantes da rua Storgatan e comprou uma salada de atum. Não tinha muita fome, mas sentiu que precisava de apanhar um pouco de ar e comer qualquer coisa.

Quando regressou a casa, viu que estava alguém à porta, à sua espera.

Anna Eriksson.

Por um segundo, pensou tentar escapar-se, mas ela vira-o mal dobrara a esquina. Obrigou-se a caminhar calmamente até ela, apesar de, no seu interior, estar muito acelerado. Ao aproximar-se, reparou que ela parecia estar completamente destroçada. Claramente, acontecera alguma coisa.

– O que estás aqui a fazer? – perguntou-lhe e esforçou-se por soar amigável.

– O Valdemar deixou-me – respondeu e olhou para ele com um olhar sombrio de acusação. – A culpa disto é tua – acrescentou, sem conseguir travar uma fungadela irada. Sebastian olhou para ela, resignado. A culpa era sempre de outra pessoa.

– E como é que isto é culpa minha? – perguntou-lhe, sem sequer se importar em soar simpático.

– Se não tivesses aparecido, nada disto teria acontecido.

– Se não lhe tivesses mentido durante toda a vida dela, também não teria acontecido – respondeu-lhe incisivamente.

– Fiz isso por ela. Tu sabes! – respondeu Anna e olhou-o, cansada. Debatia-se para conter as lágrimas. Deve estar esgotada, pensou Sebastian. Sempre a defender uma posição que já devia há muito ter percebido que era incomportável. Havia algo naquilo que a tornava mais humana, e Sebastian sentiu que, pela primeira vez, talvez conseguisse chegar até ela.

– Eu nunca quis separá-la de ti – disse, cautelosamente. – Apenas quis ter uma relação com a minha filha. Mais nada.

Anna olhou para ele, muda, a abanar a cabeça de modo abatido.

– Boa sorte. O Valdemar acha que vai conseguir reconquistá-la se se afastar de mim. Vai fazer tudo por ela.

Sebastian sentiu a frieza subitamente espalhar-se por todo o lado a partir da barriga.

– Ele disse isso? – perguntou.

– Ele deixou-me para a conseguir de volta. Percebes? Vais ter tão pouco a ver com ela como eu.

Uma lágrima solitária escorreu-lhe pelo rosto, e Anna limpou-a, irritada, com a manga do casaco. Sebastian permaneceu calado, a olhá-la. A mulher que tinha à sua frente já não era uma adversária. Já perdera tudo. Agora cabia-lhe a ele não ir pelo mesmo caminho.

Convidou-a a subir. Não podiam continuar ali na rua. Começava a fazer frio, e, além disso, queria saber mais coisas. Qual era o plano de Valdemar? Como estava a situação dele com Vanja?

Entraram, e Anna despiu o casaco, ao mesmo tempo que olhava em volta.

– Não sabia que tinhas uma casa tão grande.

– Pois, para quem tem uma filha em comum, sabemos muito pouco um do outro – respondeu Sebastian e tentou sorrir. Anna sorriu-lhe de volta. Provavelmente devido ao cansaço, sobretudo, mas mesmo assim. Guiou-a até à cozinha e ofereceu-lhe uma chávena de chá. Ela aceitou e sentou-se à mesa da cozinha.

– O Valdemar sabe de mim? – perguntou-lhe com curiosidade e pôs uma panela ao lume.

– Não lhe contei. Mas deve ser só uma questão de tempo até ele descobrir.

Tinha razão. Vanja iria contar-lhe. Nunca manteria uma mentira. Era fundamentalmente honesta. Uma característica que não herdara de nenhum dos pais.

– Então ele está com ela agora? – perguntou Sebastian, determinado a descobrir o máximo possível sobre a nova situação. Se queria bater Valdemar, teria de estar muito bem informado, era essa a chave do sucesso.

– Não sei. Ele disse que ia a casa dela – baixou os olhos e olhou para a mesa. – Está tão zangado comigo...

Esticou-se para o rolo de papel de cozinha que estava em cima da mesa e rasgou uma folha, limpou a cara num movimento rápido e assoou-se. Sebastian sentiu pena dela.

– Parece que está toda a gente zangada connosco – comentou.

– Completamente.

– Mas talvez tenham razão em estar assim. Talvez o mereçamos – continuou Sebastian, pensativo. Anna abanou a cabeça.

– Eu acho que não mereço isto.

Sebastian deixou o último comentário passar despercebido. Apercebeu-se de que Anna nunca assumiria nenhuma parte da responsabilidade sobre o que acontecera. Afundara-se tão profundamente em mentiras e defesas que era impossível sair delas. Seria demasiado doloroso. Confrontar-se com todos os seus erros, seria devastador para ela. Então ficaram os dois calados. Sebastian percebeu que ela não conseguiria ajudá-lo com mais informação sobre Valdemar. Já não sabia mais nada. Não tinha nada. Era por isso que baixara a guarda e estava sentada na sua cozinha. Sebastian estava de pé, encostado à bancada da cozinha, a olhar para ela. Arrebatado pela sensação de naturalidade da sua presença.

– Nunca me vou esquecer de quando reapareceste, depois daqueles anos todos – disse Anna repentinamente, em voz baixa. Sebastian presumiu que estaria a fazer uma viagem pelas memórias, a tentar encontrar o ponto em que tudo começara a correr mal, quando perdera o controlo. – Ali parado à porta.

– Só queria saber se era verdade. Se ela era minha. Não é assim tão estranho, pois não?

Anna olhou para ele, já sem se importar com as lágrimas que lhe escorriam pela cara.

– Estava só a tentar manter as coisas normais – disse. – Mas não consegui.

Sebastian serviu uma chávena de água quente, pôs uma saqueta de chá lá dentro e deu-a a Anna. Não se serviu de nada, mas sentou-se ao seu lado.

E ali estavam.

Na sua cozinha.

Os dois de quem Vanja não queria saber.

O instinto surgiu do nada. Infantil e estúpido. Idiota. Mas tão proibido que era atraente.

Tencionava levá-la para a cama.

Tencionava ensinar uma lição a Valdemar. Se ele tencionava tirar algo a Sebastian, Sebastian iria tirar-lhe algo que era dele. Não algo que quisesse verdadeiramente, mas era melhor que nada. Inclinou-se para a frente.

– Anna... – disse e esperou que ela olhasse para ele. – Sei que tudo parece perdido neste momento, mas eu, pelo menos, estou contente que estejas aqui, contente por termos uma oportunidade de conversar.

Anna assentiu com a cabeça.

– Eu também – respondeu.

– Se não nos atravessarmos no caminho um do outro, podemos de certeza resolver isto – disse em voz baixa e em confidência. Uma mentira, obviamente. Vanja nunca perdoaria à mãe, e Sebastian não tinha nenhuma intenção de se aliar a ela, mas Anna limitou-se a assentir com a cabeça, queria acreditar na mentira, queria acreditar que havia uma solução. Sebastian esticou a mão e pegou cuidadosamente na dela. Anna recolheu-a, não de maneira depreciativa, mais cautelosa. Sebastian seguiu o movimento com a sua mão, e ela deixou-o tocar-lhe. Olhou-a com mais intensidade. As lágrimas tinham secado, mas a tristeza e o desespero permaneciam.

Estava ansioso por aquilo. Mulheres como Anna costumavam entregar-se totalmente. Sexo cujo objectivo principal era esquecer quão sozinha uma pessoa realmente estava costumava ser muito intenso.

Incrivelmente excitante, por um lado.

Inacreditavelmente estúpido, se parasse para pensar um segundo.

No entanto, impossível não avançar.

Inclinou-se um pouco mais para ela. Sem a certeza de estar a avançar demasiado depressa. Deveria dizer algo mais que ela quisesse e precisasse de ouvir primeiro? Todavia, pareceu-lhe vê-la abrir infimamente os lábios, provavelmente sem a consciência de que projectara o corpo alguns centímetros na direcção dele. Sebastian permaneceu calado, colocou uma mão no braço de Anna e inclinou-se ainda mais para ela. Os seus lábios encontraram-se. Sebastian sentiu que a respiração dela ficou mais pesada. Ela abriu a boca e deixou que as suas línguas se tocassem. Sentiu o desejo dela, apesar de Anna estar a retrair-se. Sebastian levantou-se, puxou-a para si e encostou-se a ela. Ela respondeu com uma carícia nas suas costas e mordeu-lhe levemente o lábio, ao mesmo tempo que soltou um gemido. Sebastian levantou-lhe a camisa e deixou as mãos acariciarem-lhe as costas nuas. Com uma das mãos, desapertou-lhe o sutiã e deixou a outra descer-lhe até ao traseiro. Sentiu as mãos dela deixarem as suas costas e avançarem para a frente, tão ansiosas como as dele ou ainda mais. Anna começou a desapertar-lhe o cinto com uma das mãos, enquanto, com a outra, lhe acariciava o sexo.

Ninguém iria saber daquilo.

Foi o último pensamento que teve antes de se afundarem os dois no chão da cozinha.

Ninguém iria saber daquilo.


QUANDO BILLY saiu para a cozinha para comer um pequeno-almoço rápido, viu uma nota de My deixada em cima da mesa da cozinha. Para seu grande alívio, My já dormia quando chegara a casa na noite anterior e, de manhã, levantara-se sem o acordar. Convenceu-se de que ela não o estava a evitar, de que não sabia de nada. De que o teria confrontado se desconfiasse de alguma coisa. Ela não era do tipo de varrer eventuais problemas para debaixo do tapete. E a nota confirmava a sua teoria, pensou. My escrevera que não conseguira ficar acordada até ele chegar, mas que esperava que as coisas no trabalho tivessem corrido bem e que tivessem tempo de se ver nessa noite. Concluíra com um beijo.

Billy retirou um pacote de sumo e iogurte do frigorífico, e os cereais da despensa. Pegou num prato, num copo, numa colher e sentou-se à mesa da cozinha. Tirou o telemóvel do bolso para ver se acontecera alguma coisa durante a noite, mas deteve-se ao ver as horas.

Quase sete e meia.

Provavelmente demasiado cedo, mas valia a pena tentar.

Conseguira falar com Katie Barnett ontem, quando estava em casa de Jennifer. Explicara o assunto. Precisavam de saber se Olivia Johnson fora para o MIT em substituição de alguém que, por qualquer motivo, recusara o lugar. Katie percebeu exactamente o que ele queria dizer, mas não o podia ajudar. Eram os próprios estudantes que eram responsáveis por financiar os seus estudos e procurar as diferentes bolsas. Por isso, a única que poderia saber se Olivia Johnson era a primeira suplente seria a organização que lhe atribuíra a bolsa.

Neste caso, a Fundação Suécia-América.

Billy agradecera-lhe e apercebera-se de que era demasiado tarde para conseguir entrar em contacto com alguém de lá. Depois, Jennifer voltara novamente para a cama, e tinham ficado lá deitados, enrolados um no outro, até ser hora de Billy ir para casa.

Agora procurara o número de telefone da fundação e ouvira, para seu grande espanto, alguém atender do outro lado da linha. Explicou quem era e o que queria. Mal conseguia acreditar na sorte que estava a ter: o homem com quem estava a falar podia ajudá-lo. Não precisava de ser transferido, telefonar a outra pessoa, voltar a ligar mais tarde ou fazer uma requisição para obter a informação de que precisavam por vias oficiais. Ouviu a cadeira de escritório rolar pelo chão e imaginou o homem a sentar-se ao computador mais próximo, pronto a ajudá-lo. A que período de tempo estava a referir-se? Teria Billy algum nome ou eventualmente outras informações que o pudessem ajudar a limitar um pouco mais a busca?

Billy deu-lhe tudo o que sabia e, depois de apenas alguns minutos, chegaram a um resultado.

Billy tinha um novo nome.

– Um Robin Hedmark conseguiu uma bolsa de estudo integral, mas acabou por recusar por motivos pessoais.

Não era frequente Billy soar exaltado quando falava de trabalho. Não era frequente Billy soar exaltado de todo, mas, agora, Vanja conseguia ouvir a excitação na sua voz, pelo telefone.

– O que sabemos sobre ele? – perguntou-lhe, ao mesmo tempo que vestia o top preto da véspera.

– Ainda nada, mas vou a caminho do escritório agora – respondeu Billy, e Vanja ouviu o som de uma buzina furiosa de um carro a passar. Presumiu, sorridente, que Billy não estava propriamente a respeitar todas as regras de trânsito a caminho de Kungsholmen. – Devo saber mais daqui a uma hora.

– Já ligaste ao Torkel?

– Ainda não, queria falar contigo primeiro, como foste tu que sugeriste a hipótese...

Vanja saiu para o corredor, olhou rapidamente para o espelho e passou uma mão pelo cabelo. Viu que estava novamente a sorrir. Era assim que as coisas deviam ser entre ela e Billy. Tivera saudades daquela dinâmica.

– Por acaso foi o Sebastian, mas obrigada.

– Claro, vemo-nos logo.

Desligaram. Vanja olhou-se novamente ao espelho. Algumas olheiras, talvez. Não dormira muitas horas, mas a notícia sobre Robin Hedmark despertara-a de uma maneira que nem o duche da manhã nem as duas chávenas de café forte tinham conseguido.

Um novo nome. Novas possibilidades. Uma pista.

Retirou o casaco do cabide, calçou os sapatos, deixou o apartamento, desceu pelas escadas, fez corta-mato por cima da relva até ao carro e afundou-se no assento do condutor. Permaneceu ali sentada, quieta, por alguns momentos. Como se a energia recente não chegasse para mais do que aquilo.

Valdemar.

Não conseguira pensar noutra coisa para além da sua visita, até ao telefonema de Billy, e agora aqueles pensamentos haviam regressado e empurravam tudo o resto para o lado.

Como lhe pedira para entrar.

Dificuldade em olhá-la nos olhos.

Tão desprotegido. Tão fraco. Tão apologético.

Tinham acabado na cozinha com uma chávena de chá, rapidamente arrefecido, cada um, e ele contara-lhe o que ela, na verdade, já sabia.

A sua relação com ela era a coisa mais importante da vida dele.

Pedira desculpa pela tentativa de suicídio. Percebera que mais parecia chantagem. Mas não era isso que queria, não era dessa maneira que a queria recuperar. Queria ser merecedor da companhia dela, da sua confiança, do seu amor.

Prometera fazer tudo ao seu alcance para o conseguir.

Vanja ligou o carro e olhou por cima do ombro, antes de sair do estacionamento. Ligou o rádio e aumentou o volume, mas os pensamentos, ainda assim, voltaram para a noite anterior.

Valdemar apercebera-se de que ele e Anna não conseguiriam resolver a situação juntos. Ela estava tão profundamente embrulhada em mentiras e mecanismos de defesa que era impossível falar com ela.

Então decidira separar-se. Vanja era importante para ele a esse ponto.

Vanja perguntara-lhe se sabia quem era o seu pai biológico. Não sabia. Anna nunca lhe contara, ele nunca lhe perguntara. Nem agora. Não precisava de saber. Era só biologia. No seu coração, ele era pai dela. Nada que uma simples análise ao sangue pudesse alterar.

Vanja virou à esquerda para a estrada Valhalllavägen, entrou na rua Banérgatan, passou pela escola Östermalmsskolan. Não era esse o caminho para Kungsholmen.

Era o caminho para a casa de Sebastian.

O outro pai.

Decidira passar por sua casa para lhe dar boleia quando Billy lhe telefonara a contar que encontrara um novo aluno bolseiro. Na verdade, fora Sebastian que os conduzira a essa descoberta, e fora a Vanja que telefonara com a sua ideia. Pensava fazer-lhe uma surpresa, premiá-lo com uma boleia e, desta vez, falaria com ele, seria obrigada a falar com ele.

Não conseguira manter a fachada. Valdemar chorara. Mas não tinham sido as suas lágrimas a atingi-la, fora a sua honestidade total. A forma como estivera disposto a pedir desculpa pelos seus erros, a assumir o que fizera, como mostrara que estava pronto para uma mudança. Tencionava ajudar o procurador público, admitir tudo sobre o seu envolvimento em crimes económicos e cumprir a sua pena. E, em nome da verdade, fora a pessoa que menos desiludira Vanja. Soubera que ela não era sua filha biológica e não dissera nada. Principalmente porque Anna o proibira. Mas também porque não vira nenhuma vantagem nisso. Aos seus olhos, Vanja era sua filha. Amava-a acima de tudo e, durante muitos, muitos anos, ela também o amara. Por que motivo haveria de estragar isso com a verdade sobre um homem desconhecido que nem sabia onde estava?

A diferença era que, agora, já não era desconhecido.

Era, ao mais alto nível, real.

O seu outro pai.

Não estava numa situação em que precisasse de fazer uma escolha, poderia perfeitamente ter os dois na sua nova vida, se o decidisse, e quando a compusesse realmente.

Contudo, tinham de ser sinceros.

A véspera provara-lhe isso mesmo, quão importante isso era para ela. A honestidade. Planeava dar a Sebastian a oportunidade de, tal como Valdemar, ser totalmente sincero com ela. Havia coisas que ainda provocavam atrito em relação a ele.

Coisas em que escolhera acreditar porque era mais fácil assim.

Como a oportunidade perdida de fazer a formação com o FBI. Teria Sebastian alguma coisa a ver com isso? Se procurasse o mais fundo possível no seu âmago, acreditava que provavelmente sim. A forma como os crimes de Valdemar haviam sido descobertos era outra coisa. Tudo à volta disso se aproximava um pouco demais de Sebastian, para que pudesse excluir completamente o seu envolvimento.

Todavia, não podia saber ao certo.

E dar-lhe-ia uma oportunidade.

Estava na hora de parar de querer acreditar e de realmente começar a acreditar.

Entrou na rua Styrmansgatan, a dois quarteirões de onde Sebastian vivia. O primeiro prédio do lado esquerdo. Não contara conseguir arranjar lugar para estacionar e ficou agradavelmente surpreendida quando viu dois lugares livres, mesmo à porta. Olhou rapidamente para o relógio. Passava pouco das sete horas da manhã. Era muito raro Sebastian chegar ao trabalho antes das oito, estaria com certeza em casa. Se não tivesse ido comer alguém e ficado lá a dormir, claro.

Estava prestes a sair do carro, quando a porta do número dezoito se abriu. Por alguns momentos, Vanja pensou que tivera sorte, que conseguira coordenar a sua chegada perfeitamente. Contudo, não era Sebastian quem estava a sair do prédio.

Era Anna.

A mãe.

A mulher com quem ele prometera nunca mais ter contacto.


TORKEL ESTAVA FELIZ quando entrou no escritório.

Fora jantar com Lise-Lotte na noite anterior e, de seguida, haviam dado um longo passeio romântico até casa. Era mesmo maravilhoso passar tempo com ela. Sedutora, feminina, inteligente. E com aquele vislumbre de humor constante no olhar, que era tanto sensual como ousado, mas que lhe transmitia, acima de tudo, uma sensação de amor. Não precisava de palavras quando olhava para ele. Não se recordava de ela ter aquele olhar quando eram jovens. Fora engraçada nessa altura. Agora era linda.

No trabalho, as coisas também estavam a avançar. Billy conseguira um novo nome, Robin Hedmark, um doutorando que deveria ter ido para o MIT, mas que tivera um impedimento. A equipa ia encontrar-se dali a pouco na sala, para saberem que mais Billy conseguira descobrir. A única pedra no sapato aquela manhã era que, muito provavelmente, seria obrigado a encontrar-se com Rosmarie. Conseguira adiar a reunião matinal com a desculpa da nova pista sobre Hedmark, mas tinha dificuldade em acreditar que ela não voltaria a contactá-lo. Até no programa da manhã da TV4 tinham falado sobre a manobra agressiva de Sebastian e de como a polícia, com isso, passava uma imagem desesperada e pouco profissional.

Entrou no seu gabinete e pousou a pasta. Ia tentar ter tempo de consultar a caixa de correio electrónico antes da reunião e acabara de ligar o computador, quando Vanja irrompeu pelo gabinete. Torkel olhou para ela e sorriu alegremente.

– Olá, Vanja, está tudo bem?

Vanja olhou friamente para ele e, de seguida, abanou a cabeça. Torkel compreendeu que algo acontecera e deu uns passos na sua direcção.

– O que foi? – perguntou com um tom de voz mais sério, ao aproximar-se dela.

– Não quero que o Sebastian continue aqui – disse-lhe com uma voz cheia de raiva contida. Torkel olhou, pasmado, para ela.

– O que fez ele agora? – perguntou-lhe, surpreendido.

– Não interessa, não quero que ele continue a trabalhar connosco.

Os olhos de Vanja brilhavam de fúria. Torkel nunca a vira tão zangada. Estava cheia de manchas vermelhas na cara e no pescoço por causa da ira que lhe fervilhava no interior.

– Disseste que eu só tinha de avisar para ele desaparecer. Estou a avisar – cuspiu. A gravidade da situação já não era questionável. Torkel tentou acalmá-la.

– Tudo bem, mas posso saber porquê? Ele tem de ter feito alguma coisa, ou não?

Vanja olhou-o com irritação. Era evidente que não queria contar.

– Vais fazê-lo ou tenho de ameaçar com a demissão? Posso fazer isso, se quiseres.

Torkel decidiu recuar imediatamente.

– Pronto, pronto, eu percebo – respondeu-lhe. Acabaria por descobrir o motivo de qualquer maneira e, na escolha entre um e outro, não tinha qualquer dúvida qual dos dois escolheria. Mas era o pior momento que se podia imaginar para aquilo acontecer. Tinham acabado de dar a entrevista e, mesmo que Sebastian tivesse ido demasiado longe, poderiam precisar dele agora. Pelo menos, por mais algum tempo. Torkel olhou para ela, mas decidiu nem sequer tentar argumentar. A expressão facial de Vanja dizia tudo. Seriam obrigados a continuar sem Sebastian.

– Tudo bem, vou já telefonar-lhe – disse-lhe, passado algum tempo.

– Óptimo – respondeu Vanja secamente e desapareceu tão depressa como tinha entrado.

Torkel ficou a vê-la afastar-se, antes de regressar à sua secretária, pegar no telefone fixo e marcar o número de Sebastian. O que teria feito desta vez? Tinha de ser algo grave.

– Olá, Torkel. A Rosmarie contactou-te outra vez? – ouviu Sebastian dizer quando atendeu. Soava provocador e até um pouco contente. Das duas uma, ou era um actor excelente ou então não fazia mesmo a menor ideia do motivo da chamada do chefe.

– Não.

– Ai não? Então o que foi?

– Estás dispensado das tuas funções, com efeitos imediatos – disse-lhe Torkel, com o máximo de autoridade que conseguia transmitir pelo telefone. Ouviu a respiração de Sebastian alterar-se do outro lado da linha.

– O quê? Porquê? Como podes fazer isso?

Torkel decidiu encurtar o processo e não se deixar arrastar para uma troca de argumentos.

– O assunto não está aberto a discussões. O teu cartão de acesso vai deixar de funcionar. Se tiveres alguma despesa para apresentar, podes enviá-la por correio.

– Espera, Torkel, não estou a perceber. Isto vem da Rosmarie? Eu posso redimir-me com ela, posso resolver as coisas – implorou Sebastian.

– Não vem da Rosmarie. É uma decisão minha.

– Então tem de ser da Vanja. Foi a Vanja?

Torkel inspirou profundamente, antes de continuar.

– Tu não és efectivo. Não tens contrato. Não preciso de me justificar a ti.

– Somos velhos amigos, Torkel!

– Infelizmente, só quando é conveniente para ti.

Sebastian calou-se. Torkel quase conseguia ouvi-lo, freneticamente, tentar compreender.

– Mas espera, já trabalhamos juntos há... – ouviu-o Torkel dizer, antes de o interromper.

– Obrigado pela ajuda, Sebastian. Vou desligar agora. – O que fez de seguida.

Suspirou profundamente.

E logo nesse dia, que começara tão bem.


ERA QUASE PALPÁVEL a sensação de antecipação que se experimentava na sala quando Torkel entrou. Billy estava a postos, junto ao quadro branco, com uma expressão de quem iria explodir, se não o deixassem contar rapidamente o que descobrira. Vanja estava profundamente concentrada no material impresso que tinha à sua frente e já estava a fazer apontamentos. Apenas Ursula parecia um pouco apagada, ali sentada na cadeira, inclinada para trás, a beber tragos profundos de uma das garrafas de água mineral.

– Okay, podes começar – disse Torkel para Billy, ao mesmo tempo que se sentou.

– Não vamos esperar pelo Sebastian? – perguntou Ursula.

– Ele não vem – respondeu Torkel secamente, na esperança de que o tom de voz não convidasse a mais perguntas.

– Porquê? – insistiu Ursula.

– Porque já não faz parte desta investigação – respondeu Torkel e lançou um olhar para Vanja, que lhe respondeu com um gesto de cabeça. Ursula reparou na troca muda entre os dois e decidiu não perguntar mais nada. Era evidente que a ausência de Sebastian tinha a ver com acontecimentos do foro privado, e não do profissional, e não tinha vontade nenhuma de se envolver.

Torkel voltou a acenar para Billy com a cabeça, que apontava para uma nova imagem no quadro. Um rapaz, ligeiramente atarracado, com a franja para o lado, óculos e uma pele marcada por cicatrizes de acne, que devia ter tido na adolescência.

– Robin Hedmark, vinte e dois anos. Estudou Química na URT. Recebeu uma bolsa de estudo de dois anos para o MIT, mas recusou-a três semanas antes do início do semestre. A mãe morreu, e não podia deixar os irmãos mais novos cá sozinhos.

Billy fez uma curta pausa, como que para dar lugar a reacções ao trágico acontecimento. Não houve nenhumas.

– Portanto, se partirmos do princípio de que o nosso suspeito se estava a referir ao Robin quando falou de um aluno, temos dois professores leitores e um professor catedrático, tal como em Engenharia Biomédica – continuou, ao mesmo tempo que se inclinou sobre a mesa e pegou noutra fotografia. – Este aqui é claramente o mais interessante dos três.

Colocou a fotografia na parede. Um homem, à volta dos cinquenta anos. Aparência comum, calvície inicial, óculos com hastes metálicas e uma barba vigorosa, mas bem cuidada. Sem características distintivas. Torkel ficou com a sensação de que poderia encontrar este homem, talvez até trocar algumas palavras com ele, sem o conseguir recordar mais tarde e, ainda menos, conseguir dar uma descrição detalhada da sua aparência. Havia pessoas que, simplesmente, não eram memoráveis, nem para ele, que tinha jeito para rostos.

– David Lagergren, um dos leitores – apresentou Billy e afastou-se um pouco da parede.

– Reconheço esse nome – disse Torkel.

– É o cunhado do Saurunas – confirmou Billy. – Ou melhor, ex-cunhado. O Saurunas era casado com a irmã dele, Laura. É este o dono da cabana de Härjedalen.

Um silêncio breve enquanto assimilavam a nova informação.

– Então pode perfeitamente ter sido lá que o Saurunas foi quando o soltámos – pensou Torkel, em voz alta.

– Para devolver as chaves – acrescentou Vanja.

– Isso poderia explicar porque não telefonou antes de ir, conhecia-o bem, talvez até estivesse à espera dele.

– Há mais alguma coisa que o torne interessante para nós? – perguntou Ursula e esticou-se para a segunda garrafa de água mineral da manhã.

– Sem dúvida, oiçam isto – Billy voltou a inclinar-se sobre a mesa e pegou num papel impresso. – Concorreu a um lugar de catedrático há algum tempo e estava bastante seguro de que o ia conseguir.

– Mas não conseguiu.

– Não, foi atribuído a outra pessoa. O Lagergren apresentou recursos em todas as instâncias, mas foi sempre indeferido.

– Uma derrota pessoal ou adversidade, que pode ter desencadeado tudo – assentiu Ursula. – Exactamente como o Sebastian disse – acrescentou.

Sobretudo porque podia.

Sempre conseguia irritar alguém.

Estava de mau humor desde que acordara, com uma dor de cabeça lancinante, logo às cinco e meia da manhã.

– Sabemos onde o Lagergren está agora? – perguntou Torkel, sem dar nenhum sinal de ter ouvido a pequena provocação de Ursula ou não.

– Telefonei para a URT – assentiu Billy. – Ele está de licença sem vencimento há três meses, só está previsto voltar depois do Verão.

– Temos a morada de casa dele?

– Temos essa e a da cabana de Härjedalen.

– O que fazemos?

A pergunta veio de Vanja. Torkel ponderou por momentos. A pesar os prós e os contras. Não tinham muita coisa sobre Lagergren, poderiam chamar-lhe indícios, no melhor dos casos. Se o detivessem para interrogatório e ele não admitisse nada, e se não conseguissem provas técnicas, seria muito difícil que um juiz concordasse com a prisão preventiva. Por outro lado, se não o detivessem, também não poderiam procurar provas técnicas e, se ele fosse quem pensavam que era, já assassinara cinco pessoas e deixara uma rapariga cega. Era uma pessoa que Torkel preferia não deixar a correr pelas ruas. Principalmente depois de, na entrevista com Weber, ter dado a entender que não tinha terminado. Longe disso.

– Vamos detê-lo.


SEBASTIAN JÁ TELEFONARA a Vanja pelo menos dez vezes. De cada uma delas, a chamada fora rejeitada. Enviara-lhe mensagens escritas, sem obter resposta.

Por fim, telefonou a Anna.

Era a única explicação que conseguia encontrar para os acontecimentos daquela manhã. Que ela, de alguma maneira, o tivesse sabotado. Que não fora ele a seduzi-la, mas o contrário.

Para se livrar dele, de uma vez por todas.

Para provocar um fosso entre ele e Vanja.

Possível, mas não lhe parecia provável. Nada na noite anterior lhe parecera estudado ou planeado. Certamente fora um pouco desconfortável, de manhã, quando Anna se vestira e, sem sequer tomar o pequeno-almoço, se fora embora. Mas tinham, de qualquer maneira, conversado. Decidido que o que acontecera se manteria um segredo entre os dois.

– Contaste à Vanja?! – perguntou, zangado, quando Anna finalmente atendeu o telefone.

– O quê? – respondeu Anna com a voz ensonada.

– Fui despedido, e a Vanja recusa-se a falar comigo. Por isso volto a perguntar: contaste-lhe sobre nós?

Anna pareceu despertar. A sua voz recuperou a força.

– Porque havia de o ter feito?

– Sei lá, algum tipo de vingança infantil. Ontem disseste que tudo o que aconteceu foi culpa minha.

– Mas depois fui para a cama contigo!

Sebastian calou-se. A Anna na sua cozinha não fora a mesma que encontrara à porta do seu prédio, e, se não tivesse sido sincera, fora uma representação digna de um óscar.

– O que tinha eu a ganhar em contar?

– As pessoas não se vingam para ganharem alguma coisa, vingam-se para conseguirem vingança.

Ouviu-se um suspiro profundo de Anna, não tanto de fúria por estar a ser acusada, mas mais de desilusão.

– Achas mesmo que fui eu?

– Não sei, foste?

– Não, eu fui directamente para casa, fui-me deitar e dormi. Tu agora acordaste-me.

Sebastian não conseguia decidir se deveria acreditar nela. Se sabia alguma coisa sobre Anna, é que era capaz de mentiras muito convincentes.

– Mas alguma coisa deve ter acontecido. Falei com ela ontem, antes de tu apareceres. E estava tudo bem.

– Sabes que mais, não quero ser arrastada para isto – Anna soou tremendamente cansada. – Tu pareces ter mais contacto com a Vanja do que eu, por isso pergunta-lhe a ela – e desligou. Sebastian permaneceu sentado com um telemóvel mudo nas mãos. Irritado, pousou-o, levantou-se e deu umas voltas frustradas pela sala.

Mas que raio acontecera?

A entrevista passara um pouco dos limites, mas, se fosse esse o motivo, Torkel ter-lhe-ia dito. Também não tinha nada a ver com Rosmarie, dissera-lhe Torkel, e Sebastian não tinha qualquer motivo para duvidar disso. Tinha, portanto, de ser outra coisa. Valdemar, por exemplo. Talvez tivesse conseguido influenciar a filha. Levá-la a afastar-se dele. Sebastian não fazia a menor ideia. Detestava ter de encarar factos quando as decisões haviam sido tomadas à sua revelia. Principalmente quando nem sabia porquê. Começava a achar que devia ir ao escritório na mesma. Entrar e exigir respostas. Provocaria, quase de certeza, uma confusão total, mas nada poderia ser pior do que a situação em que já se encontrava.

Alguém tocou à porta. Sebastian foi imediatamente inundado por uma forte sensação de esperança. Devia ser ela. Vanja costumava confrontá-lo quando fazia algo idiota, não era pessoa para desviar o olhar e varrer os problemas para debaixo do tapete.

Quase correu para a porta. Ajustou as calças e a camisa uma última vez, para não parecer demasiado descuidado ao abrir. Não que tivesse alguma importância. Vanja estaria ali para lhe dar uma descompostura, nada mais.

Abriu a porta. Não estava lá ninguém. Deu um passo para fora e teve tempo de ver uma figura, de roupa escura, encostada à parede do seu lado esquerdo. Como uma sombra que rapidamente avançou para ele. Sebastian tentou dar novamente um passo para dentro de casa, mas não teve tempo. As mãos agarraram-no, apertaram-lhe o pescoço. Era um homem, isso conseguiu sentir. Tentou soltar-se, mas o homem já estava demasiado perto. Já estava atrás dele e colocou-lhe uma mão por cima do rosto, da boca e do nariz. Sebastian sentiu um cheiro forte e pungente, antes de perder a sensibilidade nas pernas. Tudo ficou enevoado. Virou-se para trás, numa tentativa de ver a cara do homem que o atacava. A única coisa que viu foi uma máscara de esqui.

Os olhos irradiavam ódio e raiva.

A entrevista funcionara, teve tempo de pensar.

De seguida, ficou tudo escuro.


A PRIMEIRA COISA em que Sebastian reparou foi que estava sentado.

A segunda foi que não se conseguia mexer.

A cabeça estava pendurada sobre o peito, e conseguiu ver a corda fina enrolada à volta da sua barriga, mas percebeu rapidamente que os pés estavam presos às pernas da cadeira e que as mãos estavam atadas atrás das costas. Permaneceu com o olhar dirigido para o chão e concentrou-se em manter a respiração calma e regular, até ao efeito do que quer que fosse que o tivesse anestesiado diminuísse ainda mais. Ouviu movimentos. Passos contra o chão de cimento, alguma coisa a ranger e alguém a gemer ou, pelo menos, a tentar fazer algum som. Pombos a arrulhar. Mas nenhuma voz. Os poucos sons ecoavam, e Sebastian ficou com a sensação de que se encontravam num local bastante grande e vazio.

Fingiu estar inconsciente por mais dez minutos, até se sentir suficientemente lúcido para conseguir avaliar a situação com mais seriedade. Doeu-lhe o pescoço ao levantar a cabeça. Virou-o lentamente para a esquerda e para a direita para suavizar os músculos, mas também para conseguir absorver o máximo possível do ambiente à sua volta.

Tal como pensara, encontrava-se num local vazio, despojado, com paredes e chão de cimento. Um armazém, ou depósito industrial, abandonado. Fileiras de janelas, com vários vidros partidos junto ao telhado. Lâmpadas fluorescentes solitárias a iluminarem a sala à sua frente.

Em frente, a talvez cinco metros de distância, estava outra pessoa sentada, também ela amarrada à cadeira. Com uma placa à volta do pescoço. Sebastian reconheceu tanto a placa como o homem sentado na cadeira.

A placa era igual à que estivera pendurada em Claes Wallgren, quando o haviam encontrado. «CULPADO», em letras maiúsculas.

O homem era Lennart Källman, o chefe de redacção do Expressen.

Quando viu que Sebastian acordara, puxou as algemas de tal maneira que a cadeira se deslocou alguns centímetros. Sebastian reconheceu o rangido e os gemidos abafados por detrás da mordaça robusta. Nem sequer reflectira sobre se também tinha alguma coisa a tapar-lhe a boca ou não e começou a passar a língua pelos lábios. Não tinha nada. O que queria dizer que o local era tão isolado que não faria diferença se gritasse ou não. Por isso absteve-se de o fazer.

Ao lado de Källman estava o homem da máscara de esqui que batera à porta de Sebastian há... não fazia ideia quanto tempo se passara desde então. Várias horas, parecia-lhe. Lá fora, ainda era dia, mas, nesta altura do ano, havia luz durante vinte horas por dia, o que não servia de grande ajuda.

– Com que então és mais inteligente do que eu – disse o homem, enquanto deslizava suavemente na direcção de Sebastian. A controlar a situação, relaxado, a sentir-se bem-sucedido.

Noutra situação, Sebastian tentaria estabelecer contacto com ele. Falaria muito. Tentaria passar de vítima anónima para pessoa real e com vida, aos olhos do agressor. Porém, isso não funcionaria com o homem que agora se aproximava dele. Passara longas refeições com todas as suas vítimas, provavelmente ficara a conhecê-las bastante bem e, ainda assim, não tivera qualquer problema em matá-las a seguir.

Sentia-se superior a todos os níveis, e Sebastian desafiara-o.

Sentiu as gotas de suor irromperem-lhe na testa, apesar de não estar calor nenhum no local, e a respiração a tornar-se mais ofegante e superficial.

– Mas isto não conseguiste prever – continuou o homem e parou frente a Sebastian, que se viu obrigado a inclinar a cabeça para trás, para poder manter o contacto visual.

– O que é que queres? – perguntou-lhe, tentando esconder o medo e o stresse da voz. Pareceu-lhe ter conseguido.

– Sabes porque é que ele merece morrer? – respondeu o homem, apontando para Källman. Sebastian permaneceu em silêncio. Ficou com a sensação de que ouviria a resposta de qualquer forma.

– É responsável por sabermos mais sobre a Caitlyn Jenner e a família Kardashian do que sobre qualquer um dos nossos próprios ministros.

– Parece-me que a Internet também deve ter alguma coisa a ver com isso – ripostou Sebastian. O homem olhou para ele e acenou com a cabeça, sério.

– Claro que sim, tens toda a razão, a Internet tem uma grande responsabilidade, mas isso não altera o facto de que aquele ali enche o peito para afirmar que é um grande educador do povo quando, na verdade, só espalha estupidez, burrice e generalizações.

– Publicaram-te a ti – contrariou Sebastian. – Têm editoriais, debates...

– Merda é merda, mesmo que a embrulhes num editorial de vez em quando – interrompeu o homem à sua frente e enfiou a mão num dos bolsos. – Mas tu podes salvá-lo. Já que és tão mais esperto do que eu.

Sebastian não respondeu, não perguntou como.

– Já jogaste a um jogo que se chama «peça a peça»? – quis o homem saber e desdobrou o papel que tinha tirado do bolso.

– Não.

– É como um quiz. Dão-se pistas. Difíceis para cinco pontos, um pouco mais fáceis para quatro pontos, ainda mais fáceis para três pontos e assim por diante, até uma muito fácil para um ponto. Percebeste?

– Percebi.

– Ainda bem – disse o homem, com um sorriso. – Se não, não eras assim tão esperto. Vou fazer-te cinco perguntas, uma de cada vez. Sendo assim, qual o máximo de pontos que podes conseguir?

– Vinte e cinco.

– Muito bem. Eu fiz o mesmo teste. Sem fazer batota, juro-te. Se o teu resultado for mais alto do que o meu, podem os dois ir-se embora. Se não, bom...

O homem olhou na direcção de Källman, que, mais uma vez, puxou descontroladamente pelas algemas e agora parecia estar a gritar por detrás do tecido que tinha enfiado na boca.

– Escrevi o meu resultado na parte de trás da placa dele – disse o homem e apontou novamente para Källman com a mão que segurava no papel e, com a outra, retirou um cronómetro do bolso. – Estás pronto? Tens vinte segundos para pensar entre cada pista.

O homem esboçou um pequeno sorriso irónico por baixo da máscara, antes de olhar novamente para o papel que tinha na mão.

– Primeira pergunta, medicina: uma doença. Para cinco pontos: doença infecciosa, também conhecida por doença de Lyme, depois de uma epidemia em Old Lyme, nos Estados Unidos, na década de oitenta do século XX.

O homem iniciou o cronómetro com um clique. Sebastian olhou para ele. Sentiu a energia espalhar-se pelo corpo. Sabia aquilo. Sabine fora diagnosticada com aquela infecção, no princípio de um Outono em Colónia, depois de terem passado o Verão na Suécia. O médico falara com ele em inglês e utilizara essa expressão, o que fizera que Sebastian pensasse que era muito mais grave do que era, na realidade.

– Borreliose! – quase gritou. O homem levantou os olhos do papel com uma expressão de surpresa e, pensou Sebastian, insatisfação.

– Está certo. Cinco pontos. Próxima. Botânica. Uma árvore. Para cinco pontos: a bétula e esta espécie de Populus tremula foram as primeiras árvores a aparecer na Escandinávia, depois da idade do gelo.

Clique.

Botânica. Sebastian não fazia a menor ideia. Não sabia nada sobre árvores. Nunca se interessara pela natureza. Era algo que apenas estava ali, como pano de fundo, atrás de janelas, de carros e comboios. Permaneceu em silêncio, a ouvir os segundos passarem.

– Para quatro pontos: pode alcançar os vinte e cinco metros de altura e tem um tronco fino e direito, de casca cinzenta. Não formam florestas.

Sebastian cerrou os dentes. Precisava da pontuação, mas isto... não fazia puto de ideia. Bétula e carvalho eram as únicas árvores das quais sabia o nome, e, que ele soubesse, havia florestas dos dois tipos. Lançou um olhar rápido para Källman, que olhava para ele horrorizado, os olhos quase a saltarem-lhe da cara. Uma visão que não o ajudava em nada. Sebastian dirigiu a atenção novamente para o homem que acabava de desligar o cronómetro com um clique.

– Três pontos. As flores têm pedúnculos compridos e peludos. A madeira branca e rija desta árvore é usada para pasta de papel...

– Isto não tem nada a ver com inteligência! – Sebastian levantou a voz. O homem olhou para ele calmamente, mas com ar inquiridor. – Isto é cultura geral. Conhecimento que qualquer pessoa pode decorar, tem a ver com aprendizagem e memória, não com inteligência. A pessoa mais estúpida do mundo podia responder a isto!

– Mas tu não, pelos vistos – respondeu o homem e voltou a clicar no cronómetro para o colocar outra vez no zero. – Dois pontos: ...assim como para fazer fósforos, claro. As folhas são redondas, com caule comprido, fortemente achatado.

Sebastian suspirou. Sabia que tipo de madeira era usada para a produção de fósforos.

– Faia – respondeu em voz baixa.

– Certo. Dois pontos. Sete, no total. Próxima pergunta. Geologia. Uma pedra preciosa. Para cinco pontos: consiste em esferas transparentes, muito pequenas e compactas, de dióxido de silício aquoso.

Sebastian ficou calado outra vez. Não sabia o que era dióxido de silício aquoso. Källman reagiu ao seu silêncio. Gritou por trás do tecido e olhou para Sebastian com ar acusatório.

– Não tenho culpa de que estejas aqui! – disse-lhe, stressado. – Estou a tentar salvar-te, porra!

Clique.

– Quatro pontos: algumas têm um belo esquema de cores. A Austrália e a República Checa são grandes produtoras.

Sebastian pensou recordar que as opalas vinham da Austrália. Não teria visto um programa sobre isso, em que homens rastejavam para dentro de buracos no deserto, como coelhos, à procura precisamente de opalas? Sim, tinha. Tinha quase a certeza.

– Opala – respondeu e reparou que estava a suster a respiração, enquanto esperava para saber se estava certo ou não.

– Quatro pontos. Próxima. Filosofia. Um pensador. Cinco pontos: enfatizou o homem como ser social, com os princípios de «humanidade» e «doutrina do meio».

– Confúcio – respondeu Sebastian imediatamente. Satisfeito. Se não fosse pela maldita árvore, dominaria o jogo. Conhecia os filósofos. Lera muitos, não vivia de acordo com nenhum. Com um tossicar ligeiro, o homem desligou o cronómetro.

– Cinco pontos novamente. Dezasseis no total. Última pergunta. Arquitectura. Uma construção. Cinco pontos: é composta por vários edifícios, agrupados à volta do Pátio dos Leões e do Pátio das Murtas, entre outros.

Clique.

Reconheceu aqueles nomes. Não tinha até estado lá com Lily? Talvez não. Nunca gostara muito de fazer turismo, pelo que deveria recordar as poucas viagens que tinham feito juntos. Mas o Pátio dos Leões... fez-se luz na sua mente, um pensamento, mas fora demasiado fugaz para o conseguir agarrar.

– Para quatro pontos: os construtores apelidaram-na de «A Vermelha», pela cor dos tijolos.

Sebastian suspirou. Estivera lá com Lily. Antes de Sabine existir. A ideia fora dela, claro. Ele não se interessava para onde iam, desde que pudesse estar com ela. Mas agora recordava-se.

– Alhambra.

– Dezasseis mais quatro faz vinte. De vinte e cinco possíveis. Nada mau, de todo.

Era impossível para Sebastian perceber se o homem estava desiludido ou satisfeito. Nem os olhos nem a voz revelavam a mais pequena informação. Teria sido perfeito como apresentador de algum concurso de televisão, pensou Sebastian. Ou jogador de póquer. A expressão revelava o mesmo que uma pedra.

O homem avançou para Källman, que olhava para Sebastian e depois para ele. Os seus olhos revelavam que pensava que vinte pontos não seriam suficientes. Parecia estar completamente aterrorizado e, quando o homem se aproximou e esticou o braço na direcção da placa que tinha pendurada à volta do pescoço, desviou-se para o lado tão bruscamente que a cadeira quase tombou. Com o olhar virado para Sebastian, o homem virou a placa para que Sebastian a pudesse ler.

Dois números dois pretos.

Vinte e dois.

22.

Sebastian fechou os olhos e baixou a cabeça. Ficou completamente sem fôlego. Estivera sob mais pressão do que se apercebera. E agora sentia-se completamente vazio. Ouviu a sua própria respiração, pouco profunda, aos soluços, como se estivesse prestes a começar a chorar.

O que deveria fazer?

O que poderia fazer?

Arriscara muito. Contara conseguir provocar uma reacção. Porém, subestimara a oposição, e agora seria outra pessoa a pagar o preço.

– Tu, que és tão mais esperto do que eu... – ouviu o homem dizer, satisfeito. Sebastian levantou outra vez a cabeça lentamente e viu o homem ir até uma mala de pano, que estava no chão, junto a uma das paredes. Sebastian não reparara nela antes.

– Não tem nada a ver com esperteza... – tentou Sebastian novamente. – Tu continuas a ser um dinossauro que não percebe que está em vias de extinção.

Sentiu que podia dizer basicamente o que quisesse agora. A situação não poderia ficar pior do que já estava.

– Tenho a imprensa do meu lado agora. Estão a espalhar a minha mensagem.

Sebastian soltou um riso seco, sem humor.

– Parabéns. Os jornais são o próximo dinossauro a morrer.

O homem retirou algo da mala de pano. Sebastian não conseguiu ver, ao certo, o que era, mas não podia ser nada de bom, uma vez que o homem, agora, com o objecto na mão, se dirigia para Källman com passos decididos.

– Eu tenho razão, e tu sabes disso – gritou Sebastian. O homem parecia nem sequer o ouvir. Källman gritava histericamente agora, por detrás da mordaça, e tentava desesperadamente soltar-se. – Aqueles miúdos são tão mais espertos do que tu! Já perceberam tudo, adaptaram-se, desenvolveram-se. Tu estás no mesmo sítio desde a escola primária!

O homem não se deixou provocar. Källman fez uma última tentativa de se soltar, o que apenas resultou em que a cadeira, desta vez, de facto caísse, e Källman bateu com força no chão.

– Não faças isso... – implorou Sebastian, quando o homem chegou a Källman, que agora estava deitado de lado, a olhar fixamente para Sebastian, com os olhos a inundarem-se e a derramarem um mar de lágrimas.

– Por favor, não faças isso! Eu estava errado. Posso dizê-lo publicamente. Dou-te o meu apoio. Publicamente. Prometo!

O homem lançou-lhe um olhar e um pequeno sorriso de escárnio, que indicavam que não acreditava minimamente em Sebastian. De seguida, colocou-se de joelhos e encostou aquilo que Sebastian já adivinhara ser uma pistola pneumática à têmpora de Källman e disparou.

Källman contraiu-se num espasmo violento e, depois, ficou completamente imóvel. Os olhos, que instantes antes reluziam de terror, apagaram-se e fixaram-se, por alguns momentos, no horizonte, antes de se revirarem e fecharem.

O homem ergueu-se, limpou os joelhos e voltou para junto do saco encostado à parede. Sebastian mal reparou nos movimentos. Não conseguia desviar o olhar do corpo morto de Källman. Que parecia desintegrar-se à sua frente, até compreender que estava a chorar. As lágrimas escorriam-lhe, quentes, pelo rosto.

Piscou os olhos para limpar as lágrimas ao ouvir o som metálico de uma porta a abrir-se. O homem estava à porta, com o saco na mão. Olhou para dentro do local, para Sebastian, para Källman e, de seguida, para o local novamente, como se quisesse certificar-se de que nunca esqueceria aquela visão. Depois acenou com a cabeça para si próprio, satisfeito, e saiu.

A porta fechou-se atrás dele, com um estrondo.

E Sebastian ficou ali. A olhar para Källman. Um pequeno fio de sangue escorria-lhe do buraco na têmpora, deixando um rasto vermelho ao longo da testa.

Fora o homem da máscara que disparara.

Mas fora Sebastian que o matara.


O VOLVO VERMELHO de Christian Saurunas manteve os setenta quilómetros do limite de velocidade na estrada Frösundaleden. Não tencionava ser detido por algo tão banal como excesso de velocidade.

Até agora, tudo correra como planeado. Fora atacado, reagira e ganhara.

Sebastian Bergman estava errado.

Claro que tinha a ver com inteligência. Tinha a ver com a vontade e a capacidade de interpretar a informação e o conhecimento. As pessoas compreendiam isso cada vez mais na Internet, nos diferentes fóruns, e, de forma lenta mas segura, até os jornais de referência começavam a dar-lhe razão.

Um editor do jornal Svenska Dagbladet tinha, depois da manobra inesperada de Sebastian Bergman com o Expressen, decidido levantar a questão num artigo de opinião. Claro que condenava todos os homicídios, toda a violência, e os pensamentos estavam com as famílias e os amigos das vítimas e etc., etc., etc., mas, ainda assim, queria tentar levar a questão para outro plano.

Pôr de parte o que ele fazia, concentrar-se no que dizia.

Só porque alguém utiliza métodos horríveis e imperdoáveis para transmitir uma mensagem, esta, em si, não tem obrigatoriamente de estar errada. Nestes tempos em que a educação na Suécia ficava para trás, em que as empresas tinham dificuldade em encontrar competência de ponta, em que a Suécia perdia competitividade, quais eram os exemplos a que realmente se dava destaque?

Era precisamente isso que ele queria alcançar.

Iniciar uma discussão, alertar as pessoas para o que se estava a passar, despertá-las da sua sonolência doutrinada pela publicidade e fazê-las perceber a superficialidade.

Reivindicar o conhecimento, como os jovens zangados diriam.

Saiu da estrada principal. Estava quase em casa. Hora de fazer uma pausa para descanso e relaxar. Mas não por muito tempo. Via-se obrigado a continuar. Mais cedo do que queria, na verdade, mas, pela primeira vez, não conseguia ser ele a decidir o local e a hora.

Mais à frente, viu um carro da polícia virar à esquerda, para a rua Stråkvägen. Nada de invulgar em si, mas estava cada vez mais atento aos movimentos da polícia na sua zona. Apesar de tudo, agira sem qualquer disfarce e não sabia exactamente o quê, ou quanto, a polícia realmente sabia. O canal TV4 tinha, no programa da manhã, falado sobre a impressão bastante desesperada da polícia que a entrevista de Bergman passava, mas, como se dissera, ele não sabia. E isso também não fora o mais entusiasmante do segmento. O mais interessante fora quando uma das convidadas, uma mulher de cabelos compridos pintados com hena que David não reconhecia, imediatamente antes da pausa para publicidade, dissera:

– Mas podemos falar rapidamente do que este assassino realmente está a dizer?

Ao que a apresentadora respondera:

– Sim, podemos, mas não de imediato porque agora temos de fazer uma curta pausa. Voltamos já.

Depois passaram para a publicidade e para apresentações das suas próprias produções e, quando regressaram ao programa em estúdio, a convidada ruiva já não estava presente, e foram apresentados novos temas.

Viu o carro da polícia virar para a esquerda novamente.

Para a rua Källbacken.

Para a sua rua.

Claro que podia ser uma coincidência, mas, durante todos os anos em que ali vivera, não se conseguia lembrar de alguma vez ter visto um carro da polícia no tranquilo bairro de vivendas. Acendeu o pisca e seguiu-os. O carro da polícia a uns trinta metros de distância. Nenhum sinal de que iriam virar em algum dos cruzamentos que se aproximavam.

A sua casa ficava no topo da rua, onde a estrada se transformava num caminho para peões e bicicletas, por entre uma zona verde. Um beco sem saída. O carro da polícia continuou em frente, passando por duas possíveis saídas. Agora só restava uma. Abrandou e encostou o carro ao passeio. Seguiu o carro da polícia com o olhar. Não se podia esquecer de que conduzia uma viatura que, provavelmente, já estava sinalizada e a ser procurada. O carro da polícia aproximou-se da rua Ekstigen, a última possibilidade de sair da rua Källbacken, para tomar outra direcção. Porém, continuou em frente, estacionou atrás de outro carro de polícia que já estava estacionado em frente à sua casa, juntamente com dois carros civis que sabia seguramente não pertencerem a nenhum dos vizinhos.

Fez cuidadosamente marcha-atrás alguns metros e virou para a rua Björkvägen.

Acelerou ligeiramente.

Sabiam quem ele era.

A longo prazo, era provavelmente inevitável. Não obstante, se conheciam a sua identidade, seria apenas uma questão de tempo até o conseguirem apanhar. «Passar à clandestinidade» não era, de todo, tão fácil como faziam crer na televisão e nos filmes. Era, aliás, praticamente impossível. Ele sabia-o. Mas o facto não alterava muito as coisas, na realidade. O importante agora era tirar o melhor partido da nova situação.

Era inteligente.

Podia adaptar-se.

Contudo, o tempo era limitado. Mais valia que soubessem o que acontecera. Divulgar a mensagem que a morte de Källman pretendia transmitir.

Deixar que isso tomasse lugar, assentasse e provocasse reacções, antes de ser hora novamente.

Pegou no telemóvel que estava no assento do lado e ligou para o 112.

Uma operadora de emergência atendeu ao fim de cerca de um minuto.

– 112, qual é a emergência?

– Bom dia, a imprensa chama-me «o assassino dos reality shows» e queria reportar mais um homicídio.


QUANDO O ENCONTRARAM, estava em mau estado.

Sebastian não sabia há quanto tempo estava ali sentado, sozinho, com Lennart Källman morto à sua frente, mas parecia-lhe que se passara uma eternidade. Depois de as lágrimas terem parado, começara a entrar em pânico. Convencera-se de que nunca ninguém o encontraria ali, de que teria de passar o resto da vida com o homem morto, cujo sangue parecia nunca parar de escorrer do buraco na têmpora. Com as últimas forças, tentara lutar para se soltar. Contudo, perdera o equilíbrio e acabara por cair para o lado, com a cadeira. Ficara deitado nessa posição, amarrado, transpirado e exausto, até ouvir as portas abrirem-se, com um estrondo.

Ordens curtas e o barulho dos passos com botas pesadas contra o chão de cimento quebraram o silêncio.

Polícia de intervenção.

Nunca na sua vida ficara tão feliz por os ver.

Depois de terem montado um perímetro de segurança, desamarraram-no e levaram-no para o exterior, onde uma ambulância o aguardava. Lá fora, estavam vários carros da polícia, e conseguira ver o carro de Ursula, um pouco afastado. A equipa da Riskmord já estava no local ou a caminho. Sebastian percebera que, fosse o que fosse que tivesse levado ao seu afastamento, muito dificilmente poderia regressar depois do que ali se passara. Algumas pessoas iriam afirmar que tinha o sangue do chefe de redacção nas mãos. Teria dificuldade em contrariá-las. Os polícias deixaram-no junto de uma ambulância, onde fora visto por dois paramédicos. A consulta era totalmente desnecessária, Sebastian já sabia que estava fisicamente ileso. Fora por dentro que levara a pancada. Seria essa a dor com a qual teria de viver. Por muito tempo. Deram-lhe um cobertor e uma garrafa de água e levaram-no até um dos carros da polícia. Era estranho deixar o local do crime, porém, os polícias responsáveis por ele tinham ordens estritas para o levar directamente para a esquadra de Kronoberg, assim que terminasse o exame médico.

Agora aguardava numa das salas de interrogatório. Já estivera naquela sala impessoal muitas vezes antes, mas nunca tivera de esperar por ninguém. Agora, os papéis estavam invertidos, e sentia-se como um suspeito, ali sentado, com um cobertor, uma garrafa de água quase vazia e a sua ansiedade como única companhia.

Depois do que lhe pareceu mais uma eternidade, Torkel e Billy entraram. Cumprimentaram-no os dois rapidamente. Torkel, profissional, mas claramente a manter a distância. Billy, mais amigável, mas também um pouco distante.

– Foi por causa daquela entrevista – disse Torkel, com os olhos fixados em Sebastian. – Se não fosse ela, o Källman ainda estaria vivo.

– Não, não foi por ter publicado a entrevista que ele morreu – respondeu Sebastian. Na verdade, estava demasiado cansado, mas sentia que, mesmo assim, tinha de se defender. – Foi porque ele também espalhava idiotices, estupidez e simplificações.

– Como sabes isso?

– Foi o que ele disse. O assassino.

– Então o facto de o Källman morrer no dia a seguir à publicação da entrevista foi mero acaso? – não era possível ignorar a desconfiança de Torkel.

– Não sei. Talvez o tenha ajudado a tomar a decisão, mas não foi decisivo – Sebastian enfrentou o olhar de Torkel. Tinha esperança de que isso ajudasse a convencê-lo. – Ele queria ganhar-me, a mim! Eu acabei ali por causa da entrevista. O Källman, acabaria por o raptar de qualquer maneira.

Sebastian calou-se. Não tencionava continuar a defender-se. Já não tinha forças para isso.

Racionalmente, percebeu que tinha razão.

Emocionalmente, era outra coisa completamente diferente.

Enfurecera o assassino. Provocara e desafiara, mas, quando chegara a hora de o provar, quando tivera a vida de outra pessoa nas mãos, falhara, e alguém morrera.

Razão e emoção.

As emoções levariam a melhor durante bastante tempo.

Torkel sentou-se. Parecia ter-se acalmado ligeiramente.

– Tudo bem, vamos presumir que tens razão.

– Eu tenho razão – interrompeu Sebastian.

– Viste alguma coisa que nos possa ajudar? – perguntou Torkel, sem prestar atenção à interjeição.

Sebastian abanou a cabeça.

– Ele usou uma máscara o tempo inteiro. Máscara de esqui. Mas acho que reconheço a voz, se a ouvir outra vez.

– Onde é que ele te raptou? – perguntou Billy e inclinou-se para a frente.

– Em minha casa, com uma espécie qualquer de preparado de clorofórmio. Tocou à porta.

– Quero mandar lá um técnico. Pode ir lá alguém contigo quando acabarmos aqui?

– Claro. Sabem mais alguma coisa? Aconteceu alguma coisa desde ontem? – perguntou Sebastian. Nenhum dos colegas respondeu, mas Billy olhou discretamente para Torkel. Sebastian percebeu que aquilo significava algo.

– Deu em alguma coisa, aquilo da Olivia Johnson ter sido notificada tão tarde sobre a bolsa? – insistiu cuidadosamente.

Não lhe responderam. Era uma sensação horrível. Sentir-se responsável pela morte de uma pessoa e, ao mesmo tempo, estar completamente excluído do grupo do qual fizera parte.

– Não podem só dizer se deu em alguma coisa ou não? Preciso de saber se o vão apanhar ou não.

– Quando o apanharmos há-de aparecer nos jornais – respondeu Torkel e fê-lo sentir-se ainda mais como um suspeito do que como um ex-colega.

Sebastian fez uma nova tentativa.

– Por favor – implorou com a voz destroçada. – Não podem só dizer? Preciso de saber.

O olhar de Torkel tornou-se ligeiramente mais sensível.

– Sim, deu-nos uma nova pista. Temos um nome – respondeu por fim.

– Do assassino? De quem que me raptou?

– Achamos que sim.

– Como se chama?

– Não posso dizer. Já contei demasiado a uma pessoa externa à investigação – concluiu e levantou-se. – Se te lembrares de mais alguma coisa, diz-nos.

Começou a dirigir-se para a porta. Sebastian assentiu levemente com a cabeça. Demasiado abatido para ripostar. Torkel virou-se para Billy.

– Vou buscar alguém para te escoltar – foi a última coisa que Sebastian ouviu antes de a porta se fechar atrás dele.

Então era assim que ia terminar. O seu tempo na Riksmord. Escoltado por um guarda prisional. Como um criminoso. Ou como uma vítima.

Sentia-se as duas coisas.


TORKEL REGRESSOU ao seu gabinete.

Precisava de ficar com uma visão geral.

Vanja comprometera-se a contactar a família de Källman, para que não tivessem de ler sobre a sua morte na Internet. Com tantos polícias e força de intervenção no local, era apenas uma questão de tempo até haver uma fuga de informação sobre quem fora encontrado morto, no chão do armazém industrial abandonado. Torkel não sabia se Vanja já conseguira contactá-los, mas assumiu que ela o avisaria quando estivesse feito. Billy estava novamente a analisar o computador de Lagergren. Neste momento, o computador era a melhor hipótese que tinham de conseguir ligar Lagergren ao homicídio. A primeira busca ao seu apartamento não lhes dera mais nada.

Torkel inclinou-se sobre a secretária e pegou nos pequenos papéis amarelos com mensagens que Gunilla lhe entregara. Ela classificara-os segundo importância, e o interesse de Torkel, sobre cada assunto. Os mais importantes e interessantes no cimo e depois, por ordem decrescente de importância, até aos do fundo, em que apenas o informava por uma questão de formalidade, pois sabia perfeitamente que ele nunca telefonaria de volta.

A primeira mensagem agora era de Ursula. «Nada em Albano até agora», dizia com a letra fácil de decifrar de Gunilla. Torkel lançou um olhar para o relógio. Ursula ligara-lhe meia hora antes. Por baixo desse papel, havia uma quantidade razoável de mensagens e pedidos de contacto de vários jornalistas. Torkel passou-os rapidamente em revista, assumindo que a maior parte dos que o tinham procurado iria estar presente na conferência de imprensa que seria obrigado a dar, o mais brevemente possível. Queria apenas certificar-se de que Vanja conseguia falar com a família de Källman primeiro. Não estava ansioso por isso. Seria um caos. Um chefe de redacção assassinado iria deixar o mundo dos media em ebulição. As perguntas sobre se havia uma ligação entre a entrevista ao jornal Expressen e a morte de Källman seriam inevitáveis.

No pior dos casos, saberiam que Sebastian estivera presente aquando da morte de Källman. Perguntariam porquê. E, depois, o facto de Sebastian já não fazer parte da equipa de investigação da Riksmord seria considerado como um sinal de culpa. Mesmo que lhes contasse tudo o que sabiam, iriam pensar que estava a esconder informação sobre o seu próprio envolvimento.

Seria simplesmente um circo infernal.

Torkel continuou a folhear os papéis e acabou com os três últimos. Eram todos de Rosmarie, a pedir-lhe que a contactasse o mais rapidamente possível. Torkel amachucou-os a todos e atirou-os para o cesto de papéis. Os pensamentos regressaram à conferência de imprensa iminente. Tinha de decidir se deviam ou não divulgar uma fotografia de Lagergren. Era invulgar fazerem-no, principalmente uma vez que apenas tinham indícios que o ligavam aos homicídios. Mas, ao mesmo tempo, poderia apresentar a questão como se apenas precisassem da ajuda da imprensa para entrar em contacto com ele, sem dizer que era suspeito. Que queriam fazer-lhe algumas perguntas relacionadas com a investigação, como costumavam dizer. Sem dúvida que isso destruiria a existência de Lagergren, se se apurasse que era inocente, mas desviaria a atenção das perguntas incómodas sobre Sebastian e Källman. E precisavam mesmo de ajuda para o encontrar, por isso o motivo para o fazer não era apenas egoísta.

Não teve tempo de se decidir, antes de o telefone começar a tocar.

– Torkel Höglund – respondeu.

– Olá, é a Vanna, da recepção – disse uma mulher do outro lado da linha.

– Olá – respondeu Torkel e tentou, ao mesmo tempo, ver através da porta de vidro se Gunilla ainda lá estava e, nesse caso, porque não tinha atendido esta chamada.

– Está aqui um David Lagergren – continuou Vanna. – Diz que quer confessar uns homicídios.

Torkel ficou literalmente sem palavras. Era como se a ligação entre o ouvido e o cérebro se tivesse desligado totalmente. Não conseguiu dizer uma palavra. Pelo auscultador, ouviu a voz de um homem a dizer algo ao fundo.

– Ele diz que o deve conhecer melhor como Sven Cato – acrescentou Vanna, e Torkel ouviu a recepcionista esforçar-se por se manter calma e neutral. O bloqueio inicial começou a dissipar-se.

– Peça-lhe para esperar, vou já para aí – conseguiu dizer e desligou.

Permaneceu sentado alguns segundos, tentou concentrar-se o mais possível, organizar os pensamentos, que disparavam para todos os lados. Depois, levantou-se, saiu do gabinete e chamou Billy até si.

– O Lagergren está na recepção – disse quando Billy entrou no seu gabinete.

– O quê?! – exclamou Billy, tornando-se evidente que pensara ter ouvido mal.

– Quer confessar – confirmou Torkel.

– Deve ser alguém a gozar connosco.

– Ninguém sabe que estamos à procura de um Lagergren.

Billy demorou alguns segundos a aperceber-se de que Torkel tinha razão. O nome de Lagergren surgira na investigação durante essa mesma manhã. Ninguém de fora da equipa sabia que o procuravam.

– O que queres que faça? – perguntou Billy, com grande expectativa.

– Liga ao Strandberg, quero uma equipa do lado de dentro das portas de segurança daqui a três minutos. E alguns do lado de fora da entrada.

– Está bem.

– Certifica-te de que os do lado de fora da entrada têm uma fotografia dele – chamou para Billy, quando este já estava a sair do gabinete. Billy levantou uma mão em sinal de que ouvira as instruções do chefe.

Torkel respirou profundamente. Três minutos. Tinha três minutos para decidir o que queria fazer. Tentou rapidamente fazer um apanhado mental daquilo que sabiam sobre Lagergren. O que quereria? O que pretendia alcançar, ao aparecer ali? Quais os cenários verosímeis quando se encontrassem? Fixou-se na autocaravana. Saurunas. Lagergren sabia construir bombas. Merda!

Torkel pegou no auscultador do telefone e marcou rapidamente o número da recepção. Vanna atendeu de imediato.

– Olá, é o Torkel outra vez. Diga-me uma coisa, o homem que quer falar comigo, trouxe alguma mala consigo?

Silêncio enquanto Torkel conseguia visualizar Vanna inclinar-se sobre o balcão para localizar o homem na grande recepção.

– Não, não tem nenhuma mala – quase sussurrou Vanna quando regressou ao telefone.

– Onde é que ele está agora? – quis Torkel saber.

– Está sentado num dos bancos, à direita da entrada.

– Óptimo, obrigado, vou já para aí.

Desligou. Nenhuma mala. O que não queria necessariamente dizer que não haveria explosivos envolvidos. Podia tê-los por baixo da roupa, e Torkel não podia casualmente pedir à recepcionista que fosse lá fora revistá-lo. Deveria mandar evacuar? Ou enviar todos os recursos possíveis? O risco era que Lagergren poderia detonar a sua bomba, se a tivesse. Ou fazer reféns. Ou simplesmente desaparecer entre o tumulto que se geraria de seguida.

Billy regressou, sem fôlego, mais pela excitação do que por ter corrido.

– Já estão a postos nos dois sítios. Vamos? – disse Billy e atirou um walkie-talkie para Torkel. – Estamos a usar a frequência 4.

Torkel acenou com a cabeça. Decidiu avançar com a situação, por enquanto. Haveria sempre a hipótese de recuar e mandar evacuar, se lhe parecesse necessário. Juntos, saíram dos seus gabinetes, em passo rápido.

– Relatório – pediu bruscamente enquanto ele e Billy desceram as escadas a correr.

– Estamos a postos – respondeu Strandberg através do ruído áspero do rádio. – Temos contacto visual com o sujeito.

– Ele continua sentado?

– Sim, não se mexeu.

– E tens uma equipa à entrada? – perguntou Torkel, apenas para reconfirmar a informação.

– Correcto.

– Estou aí dentro de um minuto – confirmou Torkel, acelerando ainda mais o passo. Sentiu a pulsação e a respiração aumentarem dramaticamente. Desceram os últimos degraus praticamente a correr e chegaram ao rés-do-chão. Torkel deteve-se. Billy também parou e olhou para ele, hesitante.

– O que foi?

– Espera um segundo – respondeu Torkel e virou à esquerda, afastando-se do curto corredor que os levaria à porta de segurança e à equipa de Strandberg. Billy abanou a cabeça e seguiu-o. Passado um pouco, compreendeu para onde Torkel se dirigia. Do outro lado do edifício, ficava a central de vigilância.

Torkel parou em frente à porta branca não identificada, puxou do seu cartão magnético, inseriu o seu código pessoal e abriu-a. Lá dentro estavam três polícias fardados, sentados em frente a uma parede completamente coberta de monitores, com todos a mostrarem imagens a preto e branco. A fachada, as ruas em volta, o portão para o centro de detenção, o parque de estacionamento dos funcionários, a entrada, a rampa para o estacionamento subterrâneo, tudo surpreendentemente nítido para serem câmaras de vigilância. O sistema era novo, instalado no ano anterior. Os três polícias sentados nas confortáveis cadeiras de escritório viraram-se para os visitantes que entraram de rompante.

– Mostrem-me a câmara da recepção – pediu Torkel, assim que entrou.

– Qual delas? Há três – respondeu um dos fardados, ao mesmo tempo que se esticou para o painel de controlo que tinha à sua frente.

– Todas – disse Torkel secamente.

Alguns segundos depois, o homem com o painel de controlo apontou para um dos monitores, que se dividiu em quatro quadrados do mesmo tamanho. Três deles encheram-se de imagens da entrada. O quarto ficou vazio.

– Aquele ali – disse Torkel e apontou para o quadrado no canto superior esquerdo. O homem do painel de controlo clicou na imagem, que passou a preencher todo o ecrã. Viram um homem sozinho, sentado num dos bancos do lado de dentro das portas de vidro da entrada. Inclinado para a frente, com os cotovelos apoiados nos joelhos e o olhar dirigido para o chão.

– É ele? – perguntou Billy, apesar de estar a ver exactamente a mesma coisa que Torkel.

– É difícil dizer, não consigo ver a cara – respondeu Torkel.

– Do que estão à procura? – perguntou o homem do painel de controlo.

– De explosivos à volta do corpo – respondeu Torkel, e a sala caiu imediatamente em silêncio absoluto. De repente, Lagergren mexeu-se. Endireitou as costas e espreguiçou-se. Quando puxou os braços para trás, contra a parede, o casaco repuxou à volta do peito. Todos na sala se inclinaram para a frente.

– Não havia nada saliente – constatou o homem do controlo, ao mesmo tempo que Lagergren parecia reprimir um bocejo e olhou para o relógio. Olhou em volta, pela recepção. Torkel ficou com a sensação de que não tencionava esperar muito mais tempo. Era obrigado a arriscar.

– Obrigado – disse Torkel e deixou a sala, com Billy a reboque. Correu de volta para a porta de segurança, para Strandberg e a sua equipa. Viu-os. Quatro agentes fardados, Strandberg no meio, a dar aos restantes o que parecia ser um último briefing, mas deteve-se quando viu Torkel a correr para eles.

– Tudo pronto? – conseguiu perguntar quando, algo ofegante, se juntou a eles.

Strandberg assentiu, deu um passo na direcção de Torkel e estendeu-lhe um colete antibalas.

– Veste isto, pelo sim pelo não.

– Obrigado.

– Não tenho nenhum para ti – disse Strandberg virado para Billy.

– Então ficas aqui – decidiu Torkel, num tom que indicava que a questão não estava aberta a discussão, ao mesmo tempo que pegava no seu colete e o vestia.

– É mesmo o assassino dos reality shows? – perguntou um polícia mais novo, de feições infantilmente arredondadas.

– Achamos que sim, por isso tenham cuidado – assentiu Torkel, ao mesmo tempo que puxou da arma.

– Avancem! – exclamou Strandberg. Virou-se para a porta, lançou um olhar rápido para os outros como que para confirmar que estavam todos prontos, antes de a abrir e avançar rapidamente para o lado esquerdo. Os outros seguiram-no e espalharam-se, de arma em punho. A recepção estava praticamente vazia. Para além do homem sentado no banco e da recepcionista, estava um casal nos bancos da outra ponta do local, e uma mulher mais velha de pé, a ver as brochuras à direita do balcão da recepção. Vanna baixou-se quando viu os polícias em bando. O casal de jovens encolheu-se nos braços um do outro, como que para se tornarem o mais pequenos possível. A mulher que estava a ver as brochuras recuou até à parede com um grito breve de pânico e as mãos levantadas ao nível da cabeça.

O homem sentado no banco não se mexeu de todo. Limitou-se a olhar para eles. Como se o que estava a acontecer fosse a coisa mais natural do mundo. Torkel agarrou na arma com as duas mãos dirigidas para o chão e deu alguns passos em frente, até ficar no centro do semicírculo de colegas armados.

– David Lagergren? – perguntou, autoritário.

O homem olhou para ele, mas não respondeu.

– Ponha as mãos onde as possamos ver! – disse Strandberg em voz alta, do lado direito.

O homem virou lentamente a cabeça na direcção de Strandberg e, de seguida, novamente para Torkel e levantou lentamente as duas mãos sobre a cabeça.

– Não precisam de fazer isto. Estou aqui para me entregar – disse, com um sorriso.

Não estava a sorrir em nenhuma das fotografias que tinham dele na sala, e o sorriso fez que deixasse de parecer normal e comum, notou Torkel. Tornava-o horrendo.

O semicírculo de polícias avançou alguns passos.

– Levante-se. Nada de movimentos bruscos – ouviu-se novamente de Strandberg. O homem acenou ligeiramente com a cabeça e levantou-se do banco.

– Deite-se no chão – Strandberg continuou a dar as ordens, quando o homem já estava de pé. Com as mãos ainda levantadas, pôs-se suavemente de joelhos e dobrou-se cuidadosamente para a frente. Ficou de barriga e com as mãos encostadas ao chão. Dois dos polícias nas pontas do semicírculo avançaram rapidamente de cada lado. Os outros continuaram a vigiar Lagergren com as armas erguidas, preparados para o menor movimento.

– É o David Lagergren? – perguntou Torkel novamente, mais severo desta vez.

– Sim, sei que andam à minha procura – respondeu Lagergren irritantemente calmo, enquanto um dos polícias pousava um joelho nas suas costas, ao mesmo tempo que o outro lhe puxava os braços para trás das costas e o algemava.

Torkel guardou a sua arma. Os polícias que estavam no chão começaram a revistar o homem deitado. Quando terminaram, levantaram-no. Torkel deu os poucos passos que faltavam para chegar até ele.

– O que pretende? – perguntou-lhe.

– Entregar-me – respondeu Lagergren. – Não andam à minha procura? Ou enganei-me? – acrescentou.

Sorriu novamente.

Desta vez, não pareceu apenas horrendo.

Sorriu como alguém que ainda tinha o controlo da situação.


DAVID LAGERGREN estava sentado à mesa da sala de interrogatórios despida, que se parecia mais ou menos com aquilo que imaginara. Uma mesa simples de madeira, sem nada, à excepção de algum tipo de instrumento de gravação, na ponta, do lado da parede cinzenta-clara. Quatro cadeiras, janelas de vidro fosco, sem cortinados, três lâmpadas fluorescentes no tecto. Paredes nuas, excepto uma, que tinha uma janela com vidro espelhado. David estava bastante seguro de que aquilo era a versão realista dos espelhos unidireccionais que vira em tantos filmes policiais americanos. O polícia fardado que estava de pé, à porta, a olhar fixamente para ele, completava o cenário.

Nunca estivera numa sala de interrogatório.

Nunca tivera nada a ver com a polícia, de todo, à excepção de um ou outro controlo esporádico da velocidade e do nível de álcool, em estradas.

O facto de não ter qualquer antecedente criminal era algo sobre o qual os jornais iriam escrever, estava convencido disso. Fortaleceria a sua posição. Levaria mais pessoas a darem-lhe ouvidos.

Não era um criminoso. Isso era importante. Sabia perfeitamente como ele próprio reagia quando lia sobre pessoas a quem aconteciam coisas horríveis, que eram atingidas a tiro, esfaqueadas, espancadas ou feridas de qualquer maneira.

«A vítima era conhecida da polícia».

A empatia e a compaixão diminuíam imediatamente. A sensação de que a pessoa finalmente tivera o que merecia entranhava-se logo. Ajuste de contas, pensava-se automaticamente. Comportamento criminal que recebia um castigo.

Seria diferente com ele.

Bem formado, emprego estável, sem antecedentes criminais.

Alguém com quem se podia simpatizar.

Mesmo sendo suspeito de um crime.

A porta abriu-se e duas pessoas entraram na sala.

Uma delas, um homem, que reconheceu. Era o mesmo homem que viera à recepção. O chefe, claramente. A mulher que estava com ele, nunca a tinha visto antes. Mais nova, trinta e cinco, talvez menos, mas parecia cansada e desgastada, o que provavelmente adicionava alguns anos à sua idade real. Trazia uma pasta grossa por baixo do braço, que presumiu ser sobre ele próprio. O polícia fardado deixou-os.

– Boa tarde, Torkel Höglund, a minha colega, a Vanja Lithner – disse o chefe quando a porta se fechou e fez um gesto com a cabeça para a mulher mais nova. O que era totalmente desnecessário, pois não havia mais ninguém na sala que pudesse ser a Vanja Lithner.

David sorriu para os dois.

Sentaram-se à sua frente. Vanja colocou a pasta à sua frente, na mesa, enquanto Torkel se esticou para o gravador, na ponta. Registou a data, disse quem estava presente na sala e perguntou se se confirmava que Lagergren recusara assistência jurídica para o interrogatório.

David acenou com a cabeça.

– Responda com palavras, por favor, para a gravação – disse Torkel. – Recusou a assistência jurídica?

David inclinou-se um pouco para o lado, para ficar mais próximo do instrumento de gravação.

– Sim.

– Não precisa de se inclinar, o gravador apanha tudo o que se diz na sala, fale normalmente.

David acenou novamente e olhou para Vanja, que abriu a pasta à sua frente. Conseguiu vislumbrar fotografias, mapas, relatórios e impressões, enquanto ela folheava rapidamente o material e parecia dividi-lo em grupos mais pequenos, empurrando partes dele para os lados, até as folhas formarem um pequeno mas grosso leque. Deteve-se numa fotografia que colocou à sua frente, em cima da mesa. David observou-a. Patricia Andrén. Parecia-lhe que passara uma eternidade desde que lhe telefonara a pedir uma entrevista.

Ela ficara tão contente.

Parecia uma rapariga genuinamente simpática. Exuberante e positiva. Fortalecida por aquilo por que fora obrigada a passar. Completamente decidida a tentar ajudar outras pessoas que estivessem na situação em que ela se encontrara, com o noivo abusivo, e certificar-se de que as coisas ficariam melhores para o filho.

– Vamos começar por ela? – perguntou Vanja e empurrou a fotografia um pouco na sua direcção.

David levantou os olhos da imagem e encarou-a.

– Sabe quem é esta pessoa? – perguntou Vanja novamente e fez um gesto com a cabeça para a imagem na mesa.

David continuou sem responder. Vanja colocou um dedo sobre a fotografia e bateu com ele algumas vezes, como se David não tivesse percebido a quem ela se referia.

– Só falo com o Sebastian Bergman – disse claramente.

– Já não trabalha aqui – respondeu Torkel rapidamente.

– Sabe quem esta é? – repetiu Vanja com um novo bater do dedo na fotografia.

– Só falo com o Sebastian Bergman.

Percebeu que Vanja ficara irritada com a resposta. Os seus olhos a escurecerem, literalmente. Também irritara Torkel, assumiu, mas conseguira disfarçá-lo melhor.

– Isso não vai acontecer – quase cuspiu Vanja. – Vai falar connosco.

– Não. Só falo com o Sebastian Bergman.

Torkel reflectiu por momentos, esticou o braço e desligou o gravador. Permaneceu sentado a olhar para o infinito alguns segundos antes de, com um grande suspiro, se virar para a colega.

– Podemos ir lá fora um minuto...?

Vanja levantou-se sem dizer uma palavra e dirigiu-se para a porta, com passos zangados.

– Já voltamos – disse Torkel, antes de também ele deixar a sala. Alguns segundos depois, o polícia fardado entrou novamente e plantou-se à porta.

David tentou sorrir-lhe novamente.

Não foi correspondido.

Vanja estava encostada à parede do corredor, com os braços cruzados sobre o peito, quando Torkel saiu da sala de interrogatório. Esperou que o polícia fardado desaparecesse para dentro da sala, antes de se dirigir a ela. Conteve o impulso de colocar uma mão no seu ombro, ficou com a sensação de que ela o sacudiria.

– Já sei o que vais dizer – antecipou-se Vanja.

O que provavelmente era verdade.

– Temos de o fazer falar – disse Torkel.

– Só tentámos tipo dois minutos!

– E achas que ele vai mudar de opinião?

Vanja não respondeu imediatamente. Cerrou os dentes e apertou os braços ao peito ainda com mais força. Não, David Lagergren não iria mudar de opinião, estava bastante segura disso. Não havia nada na psicologia daquele homem que apontasse para tal. Sebastian Bergman desafiara-o, humilhara-o, diminuíra-o, o que fosse. Era perfeitamente natural que Lagergren apenas quisesse falar com ele.

Medir forças com ele outra vez.

Ganhar outra vez.

Se respondesse que sim à pergunta de Torkel, ele saberia que estava a mentir.

Contudo, não podia dizer o que pensava. Isso seria, de certa forma, dar carta-branca a Torkel para chamar Sebastian de volta. Estaria a sancioná-lo, se respondesse que não.

– Não sei – teve de responder. Não tencionava ajudá-lo a tomar a decisão que, no fundo, sabia que ele seria obrigado a tomar.

– Tenho de chamar o Sebastian – disse Torkel suavemente e, desta vez, colocou uma mão no ombro de Vanja. Ela deixou-o estar. – Não tenho escolha, Vanja.

Vanja acenou com a cabeça, tensa e contrariada. Era verdade. Estava um assassino em série ali dentro. O pior que já tinham conhecido. Que, além do mais, conseguira a proeza de se tornar popular, que até conseguira alguns apoiantes confusos. Torkel tinha mesmo de resolver aquilo. Levar a questão até ao fim, até uma condenação em tribunal. Não havia margem para erros. Questões privadas não poderiam ser levadas em conta.

Vanja compreendia-o.

Ele não tinha mesmo escolha.

– Mas eu tenho – respondeu, e olhou-o seriamente nos olhos, antes de se endireitar e começar a percorrer o corredor.

– Vanja... – ouviu atrás de si, mas sem passos, o que a levou a assumir que Torkel não a seguira. – Vanja, não te vás embora assim. Espera para podermos conversar sobre isto, pelo menos.

Vanja abanou a cabeça. Se ficasse, Torkel acabaria por conseguir convencê-la.

Então continuou a andar.


AS PORTAS ABRIRAM-SE, e Vanja saiu para debaixo do grande tecto de vidro da entrada. Parou e inspirou profundamente, algumas vezes. O ar estava tão quente que o efeito pretendido não se verificou. Todavia, sentiu os ombros relaxarem ligeiramente. Melhor assim. Por momentos, considerou apenas atravessar a rua e ir sentar-se no parque Kronobergsparken, por uns instantes. Aproveitar o tempo maravilhoso que se fazia sentir. Talvez comprar uma bebida e um bolo no café da esquina. Riu-se da ideia. Um lanche no parque... Acabara de deixar a equipa da Riksmord temporariamente, não sofrera uma mudança radical de personalidade.

Em vez disso, começou a andar na direcção do metropolitano.

Se acreditasse nessas coisas, diria que era o destino. A sua decisão de cortar de vez com Sebastian levara a que a decisão mais difícil de todas, que até agora fora demasiado fraca para tomar sozinha, deixar a Riksmord, fosse tomada por outra pessoa. Coincidências tinham feito as peças cair no seu devido lugar e dado o empurrão de que precisava para uma existência em que tinha todas as portas abertas. Uma vez que Vanja era estruturada e metódica, essa realidade assustava-a um pouco. O facto de não saber o que iria fazer essa tarde, e ainda menos amanhã, no dia seguinte. Uma parte dela queria virar costas, correr de volta para o interior do edifício e trabalhar no caso.

Terminá-lo. Fazer aquilo em que era boa.

Ser uma linda menina.

Contudo, a outra parte de si apreciava a sensação de liberdade que não conseguia recordar-se de ter sentido há muitos e muitos anos. Talvez nunca a tivesse sentido até. Sempre fora precisamente a linda menina. Isso tinha de acabar agora. Agora, ia concentrar-se em si própria.

A sensação de que tudo era possível ainda perdurava quando saiu do metropolitano, na estação Gärdet. A sua casa ficava imediatamente em frente. Cinco minutos de passeio a pé até ao apartamento, quando deixasse efectivamente o subsolo.

Deteve-se.

O que havia ali para ela, realmente?

O apartamento não havia mudado, mesmo que muitas outras coisas o tivessem feito. Continuaria a sentir-se fechada e inquieta, tinha a certeza. E não queria isso. Não quando tudo era possível. Virou-se para o outro lado. A saída do outro lado da plataforma dava para a rua Brantingsgatan.

A Coldoc ficava na rua Brantingsgatan.

Jonathan trabalhava na Coldoc.

Subiu pelas escadas rolantes, passou as cancelas giratórias e fez uma viragem de cento e oitenta graus, subiu as escadas do lado direito da entrada para o metropolitano, que iam dar à rua Brantingsgatan, avançando até ao primeiro edifício amarelo do lado esquerdo. O número 44. Tocou na campainha assinalada Coldoc AB e, passado um segundo, ouviu o zumbido da porta a ser destrancada.

Três lanços de escadas depois, atravessou o que parecia ser a porta de um apartamento normal e que, certamente, o fora em tempos, mas que agora se abria numa grande recepção, onde anteriormente teria havido um corredor apertado. Parecia-se com o que ela recordava. Dois sofás de pele pretos num dos cantos, com uma mesa de centro baixa, de vidro, em frente, em cima de um tapete colorido. Revistas, grossas e caras, numa fila bem ordenada ao longo de um dos lados da mesa. No canto, algo grande e verde que, com a ajuda de uma treliça, subia pela parede traseira. Nas restantes paredes, fotografias a preto e branco, parecendo todas tiradas em Nova Iorque.

Uma rapariga morena que Vanja não reconheceu, sentada atrás do balcão ligeiramente curvado da recepção, deu-lhe as boas-vindas com um sorriso.

– Venho à procura do Jonathan Bäck – disse Vanja, depois de dar os poucos passos até ao balcão.

– Ele está à sua espera?

– Não, não está. Chamo-me Vanja. Vanja Lithner.

A rapariga pegou no telefone e carregou num dos números na memória. Atenderam imediatamente.

– É da recepção. Tem uma visita – olhou para Vanja. – Vanja Lithner.

A rapariga ficou em silêncio, escutou e desligou, depois de um curto «está bem».

– Ele já vem, pode sentar-se enquanto aguarda – apontou para os sofás.

Vanja fez o que lhe indicaram. Quando se viu obrigada a parar, as dúvidas voltaram. Seria boa ideia? Desde que saíra da estação do metropolitano até agora, fora uma acção contínua. Em piloto automático. No dia em que tomava decisões importantes. Mas agora não estava tão segura. Jonathan fora bastante claro ao jantar. Todavia, agora era tarde demais para ponderar se devia ficar ou ir-se embora, pois Jonathan apareceu na recepção. Um grande sorriso. Pelo menos parecia contente por vê-la.

– Olá, estás aqui?

Jonathan avançou e abraçou-a quando Vanja se levantou.

– Sim, estás ocupado?

– Não tanto que não possa falar contigo.

Virou-se, começou a andar na direcção do seu gabinete e fez-lhe um gesto para que o seguisse.

– Queres café ou alguma coisa? – perguntou-lhe quando passaram por uma sala de refeições no caminho.

– Não, obrigada.

– Pensei que estavas cheia de trabalho – continuou Jonathan e virou à esquerda no corredor. Tinha obviamente trocado de gabinete desde a última vez que Vanja ali estivera. – Li na Internet que o apanharam o tipo, o assassino dos reality shows.

– Sim, mas... não, não estou a trabalhar agora.

– Okay, aqui estamos.

Desviou-se e deixou-a entrar no gabinete. Maior do que o anterior. O que não queria dizer muito, um roupeiro de tamanho normal era maior do que o antigo gabinete de Jonathan. A mesma vista para o edifício em frente. Desordem na secretária e na estante por trás, onde, para sua satisfação, viu que a estátua incrivelmente kitsch de Nossa Senhora que lhe comprara em Itália tinha lugar de destaque. Jonathan fechou a porta de correr que dava para o corredor e indicou-lhe a única cadeira do gabinete, para além da que estava atrás da sua secretária. Vanja pegou numa pilha de papéis, colocou-a no parapeito da janela e sentou-se.

– Então, o que contas? – perguntou Jonathan, depois de também ele se sentar.

– Estive a pensar no que disseste – começou Vanja.

– Okay...

– Naquilo de que talvez só sejas alguém de quem eu preciso neste momento. De que, na verdade, eu talvez não queira mesmo que nos juntemos outra vez.

– Sim.

Estaria a imaginar ou Jonathan começava a parecer um pouco desconfortável? Pensou mais uma vez se teria mesmo sido boa ideia ir lá, mas agora já era tarde. Mais valia dizer o que ali fora dizer, pelo menos ficaria a saber.

– Lembras-te de te ter dito que o Sebastian é meu pai e... – calou-se. Tinha de esquecer o enredo. Concentrar-se no essencial. Simplificar. Inspirou profundamente e olhou de forma aberta para Jonathan. – Tenho de me afastar de tudo isso. Afastar-me de todos. Provavelmente da polícia também. Só tive a minha família e o trabalho até agora, por isso preciso de alguma coisa nova, alguma coisa para construir, que seja a base, o fundamento...

Se antes parecera ligeiramente desconfortável, agora parecia estar a ficar horrorizado, pensou Vanja. Tudo bem, palavras pesadas. Ex-namorada vem ao trabalho falar de fundamentos para construir novas bases. Era evidente que exagerara. Mas, mais uma vez: agora era tarde para fazer alguma coisa em relação a isso.

– Quero que sejas tu – concluiu e manteve os olhos nos dele.

Jonathan inclinou-se para trás na cadeira e soltou um suspiro profundo.

– Uau.

– Percebes o que quero dizer – acrescentou Vanja numa tentativa de diminuir a dimensão das palavras anteriores. – Estou preparada para fazer isto a sério. Nós os dois, a sério.

Jonathan continuava a parecer hesitante, para não dizer mais. Vanja sentiu um aperto no estômago. Não ia funcionar. Ele ia dizer que não. Outra vez. O ataque era a melhor defesa.

– O que foi? Não queres?

– Quero...

– Não acreditas em mim?

– Acredito...

– Então o que é?

Jonathan respondeu com silêncio. Vanja reparou que estava sentada mesmo à ponta da cadeira. Tensa. Pronta para correr. Para ele ou para fora dali.

– É complicado – disse Jonathan, finalmente, e inclinou-se sobre a secretária, para Vanja. – Tenho de falar sobre isto com a Susanna. Pela segunda vez. E não vou fazer isso. Não sem ter a certeza absoluta.

– Eu tenho a certeza agora – ripostou Vanja. – A certeza absoluta. Não posso prometer que nos vamos reformar juntos. Mas agora. Prometo-te agora. Não chega?

Silêncio novamente. Vanja compreendia-o, não eram coisas simples de decidir num segundo, mas tinha esperança de que, ainda assim, o pudesse fazer. Por ela. Um gesto discreto da cabeça deu-lhe a resposta, antes de ele a proferir em palavras.

– Sim, chega.

Vanja apercebeu-se de que estava a suster a respiração. Soltou um suspiro, ao mesmo tempo que se levantou da cadeira. Ficou de pé. O que acontecia agora? O que deveria fazer? Jonathan tomou a decisão por ela, ao contornar a secretária e beijá-la. Vanja correspondeu o beijo. Sentira falta dos seus lábios. Ele era bom a beijar. A sua língua procurou a dela, ao mesmo tempo que lhe apertou as costas com mais força. Vanja deixou uma mão percorrer-lhe o cabelo e sentiu a respiração ficar mais pesada quando Jonathan deixou uma mão subir até aos seus seios. Vanja interrompeu o beijo, apertou-se mais contra ele e encostou o seu rosto ao dele.

– Tens de continuar a trabalhar? – sussurrou ao seu ouvido. As palavras pareceram quebrar o encantamento. Sentiu Jonathan recuar um pequeno passo. Talvez consciente de que estava aos beijos num escritório com paredes de vidro, com uma mulher que não era a sua namorada actual.

– Pior do que isso – respondeu Jonathan, e Vanja sentiu a mão dele na sua cintura, na anca, antes de deixar o seu corpo. – Há um evento hoje à noite, da Agência Reguladora das Comunicações Postais e Electrónicas, tenho de o preparar e depois ir lá.

– O regulador das comunicações bate ir para a cama comigo? – perguntou Vanja, fingindo estar magoada.

– Tem de ser, infelizmente – respondeu Jonathan. – Mas vem comigo. Tenho de lá ficar uma hora, uma hora e meia, no máximo. E depois... pensa nisso como preliminares – brincou.

– Estava tentada até teres dito isso – sorriu Vanja de volta.

– Então esquece e vem na mesma.

Vanja abanou a cabeça e conteve um impulso de lhe passar novamente a mão pelo cabelo. Teriam tempo para isso mais tarde.

– Onde e quando?

– No Waterfront, às sete. Vem aqui ter às seis e um quarto e vamos para lá juntos.

Inclinou-se para a frente e deu-lhe um beijo leve.

– Agora tenho de trabalhar.

Outro beijo. Um rápido «até logo», e Vanja foi-se embora.

Com uma sensação fantástica. Conseguira. Mais uma peça que se encaixava, e visualizou-a à sua frente.

A nova vida.


SEBASTIAN NÃO ODIARA muitas pessoas na vida. Não gostava de algumas, irritava-se com mais umas quantas, mas as que o provocavam até que as começasse a odiar cortava simplesmente relações com elas, afastava-as da sua vida, para que não tivesse de dedicar tempo e energia a não gostar delas activamente.

Contudo, odiava David Lagergren.

Odiava aquilo de que o obrigara a fazer parte.

Não queria encontrá-lo outra vez.

Mas era obrigado. Lagergren não falava com mais ninguém, e seriam aqueles interrogatórios que lhes permitiriam prendê-lo. Segundo Torkel, ainda não tinham provas técnicas contra o homem, apesar de terem estado na sua casa e terem apreendido telemóveis e computadores, tanto de casa dele como do seu local de trabalho. Talvez as obtivessem quando Billy os conseguisse analisar, mas, até agora, só tinham indícios.

Por isso, era obrigado a ultrapassar a sua aversão pessoal e a agir profissionalmente.

– Estás pronto?

Sebastian levantou os olhos. Torkel estava à porta da sala de refeições. Sebastian olhou para a sua chávena de café intocada e assentiu com a cabeça. Tão pronto como alguma vez estaria.

– A Vanja não está cá? – perguntou em tom de conversa de circunstância, quando saíram para a zona de trabalho comum e deixou o olhar percorrer o ambiente familiar.

– Não.

– Ou não quer encontrar-se comigo?

– Não está cá.

– Porque eu estou aqui?

Torkel não respondeu e continuou a andar alguns passos à frente de Sebastian, pelo corredor, na direcção das salas de interrogatório.

– Foi ela que te disse para me despedires, não foi? – perguntou Sebastian quando estavam quase a chegar, ansioso por conseguir confirmar aquilo de que já estava bastante certo.

– Leva isto – disse Torkel, estendendo um auricular a Sebastian. – Vou estar na sala do lado a dar-te assistência, para o caso de precisares de pormenores sobre a investigação.

Sebastian pegou no pequeno objecto e pô-lo na orelha.

– Boa sorte.

Torkel abriu a porta da sala ao lado da sala de interrogatório e desapareceu lá para dentro. Sebastian aproximou-se da porta azul-acinzentada, ao lado.

Por trás dela estava o assassino dos reality shows.

David Lagergren.

O homem que o tornara participante num homicídio.

Sebastian inspirou profundamente. Expirou lentamente. Repetiu. Conseguiu controlar as emoções e abriu a porta, com o que esperava que fosse interpretado como indiferença autoconfiante, e entrou. Fez um gesto discreto com a cabeça para o polícia fardado, que abandonou a sala imediatamente. Ao avançar, lançou um olhar rápido para o vidro reflector, como se pudesse ver um olhar de apoio de Torkel, aproximou-se da mesa, puxou a cadeira e sentou-se. Levantou os olhos. Apercebeu-se de que, até então, evitara o olhar do homem do outro lado da mesa. Um erro, provavelmente. Teve de lutar para manter a respiração sob controlo quando os seus olhares se encontraram.

Era ele.

Reconheceu os olhos. Os lábios por detrás da máscara.

Nunca os esqueceria.

Sentiu a boca ficar seca. Não queria ser ele a quebrar o silêncio, em parte porque isso o colocaria numa posição de alguma desvantagem e, por outro lado, porque não tinha a certeza se a voz não tremeria.

– Estou arrependido – disse Lagergren, ao fim de meio minuto de silêncio.

– Não sou padre católico, por isso não me interessa – respondeu Sebastian rapidamente e descobriu, para sua satisfação, que a voz soava exactamente tão dura como pretendera. Calou-se novamente. Não tencionava ser ele a conduzir a conversa. Não sem antes saber o que o adversário pretendia. Estava completamente decidido a não lhe dar nada de graça.

– Arrependo-me de ter vindo aqui e de ter confessado aqueles homicídios, que não cometi – disse Lagergren com arrependimento aparentemente genuíno na voz. Sebastian percebeu que se devia ver na sua expressão quão surpreendido ficara. Isto estava a dar uma volta completamente inesperada.

– Então não matou estas pessoas?

– Não.

– Então porque disse que se chamava Sven Cato e que queria confessar os homicídios?

– Não sei – respondeu Lagergren e encolheu os ombros. – O que acha? Insanidade mental temporária?

Sebastian compreendeu subitamente o que homem à sua frente queria. Jogar um jogo, novamente. Desafiar Sebastian, outra vez. Levá-lo a ser parte activa num processo que talvez levasse a que, por fim, fossem obrigados a libertá-lo.

Era um jogo de alto risco.

Para o vencer, Lagergren teria de estar seguro de que não tinham provas. De que não deixara vestígio nenhum. Relutantemente, Sebastian viu-se obrigado a admitir que o homem do outro lado da mesa podia perfeitamente consegui-lo. Provavelmente também sabia que o poderiam manter detido durante setenta e duas horas, sem o mínimo de provas. Talvez até esperasse ansiosamente por isso. Quatro dias de jogo do gato e do rato. Poder comparar o seu intelecto superior com o de Sebastian para, por fim, o derrotar e, triunfante, sair dali como um homem livre.

– Quem está a tentar enganar? – cuspiu Sebastian, completamente decidido a não entrar no jogo. – Eu reconheço-o.

– Reconhece?

– Sim.

– De onde? Não me recordo de nos termos encontrado.

– Quando matou o Källman.

– Não sei do que está a falar. Deve estar a confundir-me com outra pessoa. Era mesmo eu? Viu-me? Viu a minha cara?

– Reconheço a sua voz.

– E, nesse caso, isso seria mesmo suficiente em tribunal? – Lagergren parecia francamente curioso. Sebastian percebeu subitamente o motivo pelo qual as vítimas tinham usado uma venda durante os questionários, na autocaravana. Se conseguissem responder às perguntas necessárias, se fossem aprovadas e libertadas, Lagergren poderia sempre afirmar que sim, tomara uma refeição com aqueles jovens, mas, fosse o que fosse que tivesse acontecido de seguida, não fora com ele. Tê-lo-iam realmente visto na autocaravana, quando fizeram o tal teste? Ebba tivera azar. Estava com a irmã. Se tivesse estado sozinha, talvez ainda tivesse a visão.

– Porque queria falar comigo?

– Obviamente sou doente, se confesso crimes que não cometi. Não é verdade?

Lagergren sorriu para Sebastian. E Sebastian fartou-se. Aquilo não o levava a lado nenhum. Não ganharia nada com um confronto directo. Era melhor entrar no esquema, mas não sem antes virar o plano de jogo.

Os ataques teriam de ser defesas. As defesas, ataques.

O que sabia sobre Lagergren? Um académico que achava que o conhecimento não era suficientemente valorizado. Que media o valor da vida das pessoas pelo seu grau de cultura geral.

Desinteressante.

Era o que ele achava, não quem ele era. O que o impelia? O que dissera antes de matar Källman? Que tinha a imprensa do seu lado. Que estava a espalhar a sua mensagem.

Parecera orgulhoso disso.

De lhe darem ouvidos. De lhe darem atenção.

A entrevista com Weber fora mais um manifesto do que uma conversa.

Sebastian podia usar isso. Além do mais, Lagergren mostrava sinais de uma certa embriaguez de poder, tudo lhe correra na perfeição até agora.

Sebastian sentiu a energia regressar. Era bom nisto. O melhor. Até ansiava por aquilo. Conseguir vingança. Poder finalmente ganhar.

– Que pena – disse secamente e pareceu desiludido, ao mesmo tempo que abanou a cabeça, ligeiramente desapontado.

– Pena o quê? – quis Lagergren saber. Sebastian olhou para ele, ponderou que isco deveria usar, decidiu-se e lançou-o.

– Não ter sido o senhor.

Esticou-se na cadeira e inclinou-se para a frente, os cotovelos em cima da mesa, o queixo repousado nas mãos com os dedos entrelaçados.

– Conhece o Edward Hinde?

– Sim, sei quem é.

– E sabe porque sabe isso? – deixou claro que a pergunta era retórica e respondeu ele próprio imediatamente. – Porque eu escrevi livros sobre ele. Livros de sucesso. Fiz palestras sobre ele. Leccionei sobre ele. Mantive-o na consciência das pessoas.

Sebastian calou-se e estudou o homem à sua frente. Estaria ele a perceber o que se estava a passar? O que Sebastian estava a fazer. Era difícil dizer, mais valia continuar.

– Se tivesse sido o senhor a matar estas pessoas... – continuou. – A escrever aquelas cartas, a fazer aquela entrevista...

Calou-se novamente. O isco estava agora quase completamente lançado. Conseguiria Lagergren vê-lo, estaria interessado?

– Não fui eu – respondeu Lagergren, e Sebastian sentiu uma pontada de desilusão. Ou não? Não haveria, ainda assim, uma pequena diferença? A voz mais baixa, menos segura, mais cuidadosa...?

– Que pena, senão teria sido uma pessoa mais interessante – continuou Sebastian, levantando-se e começando a andar pela sala. – É emocionante estar com alguém que percebe que pode influenciar mais, chegar a mais pessoas, se não for anónimo. Que pode ser um símbolo de luta, mesmo que esteja na prisão. Um símbolo melhor, até. Alguém que roce o estatuto de mártir.

Sebastian encostou-se à parede. A expressão facial de Lagergren não se alterou, mas Sebastian conseguiu ver pela sua linguagem corporal que despertara interesse. Um interesse que, provavelmente, estivera ali o tempo inteiro e que, tal como Sebastian dissera, era com certeza o motivo pelo qual Lagergren se entregara. Mas, quando o pensamento era transformado em palavras por outra pessoa, quando era confirmado por alguém exterior, tornava-se mais real.

Real e tentador.

– Que pena não ser o senhor – disse Sebastian em tom de conclusão e afastou-se da parede. – Teria escrito sobre si, e o que eu escrevo vende.

Virou-se e dirigiu-se para a porta. O que poderia ser? Seis passos? Cinco. Nem um som de Lagergren. Quatro. Três. Esticou a mão para a maçaneta da porta e tentou pensar numa razão para permanecer na sala, sem desvendar a sua ansiedade. Dois. Não era possível.

– Espere.

Sebastian não conseguiu evitar um sorriso. Lagergren vira o isco e achara-o interessante. Agora era uma questão de o puxar um pouco para que o seguisse, trazê-lo para a luz do dia. Sebastian eliminara todos os vestígios do seu sorriso de satisfação quando se virou com um ar que esperava que transmitisse aborrecimento, em conjunto com a ideia de que tinha coisas mais importantes para fazer.

– O que foi?

– Vi uma entrevista sua, disse que acha que aquele assassino dos reality shows é um idiota.

– Sim.

– Então por que razão quer escrever um livro sobre ele?

– Não escrevi sobre o Hinde porque gostava dele ou porque concordava com ele – Sebastian deu alguns passos de volta à sala. – Ele era interessante para mim, para os leitores. A pessoa que cometeu estes crimes é ainda mais interessante. Hinde era apenas um psicopata comum, sem empatia, vítima de abusos em criança, blá blá blá, está a ver o estilo. Este homem tem algo de importante para dizer. Um plano.

Viu Lagergren acenar com a cabeça, em concordância. O isco estava definitivamente a atraí-lo. Aproximava-se cada vez mais. Estava na hora de o puxar outra vez. Para ainda mais longe. Para que o perdesse de vista. Para que fosse obrigado a esforçar-se para o poder ver novamente. Um esforço sob a forma de confissão.

– Mas não sei... quanto mais penso nisso, mais... – Sebastian deteve-se, não terminou a frase, como se tivesse acabado de se lembrar de outra coisa. Como se se tivesse apercebido de algo que lhe escapara.

– Mais quê? O quê?

Sebastian franziu a testa, suspirou e abanou levemente a cabeça, como se os seus próprios pensamentos o tivessem desiludido.

– Não deve ser suficiente.

– O que não é suficiente?

Preocupação na voz. Excelente.

– Uma espécie de manifesto e uma mão-cheia de mortes – Sebastian virou-se para Lagergren como se fosse um participante legítimo na discussão, alguém cuja opinião Sebastian iria valorizar. – O mundo mudou, não é? Hinde matou quatro pessoas, isso era muito há vinte anos, mas agora...

Novo abanar de cabeça, que deixava espaço a diferentes interpretações.

– E qualquer pessoa pode inventar um manifesto – continuou Sebastian. – A Internet está cheia deles. Quero dizer, olhe para o Breivik, quantas vezes ouvimos falar dele? Qual é o interesse que ele desperta hoje em dia? E a pessoa que fez isto nem se aproxima daquilo que ele fez naquela ilha da Noruega.

– Por enquanto não.

Três palavras. A primeira fissura na fachada. O primeiro golpe real no isco. Como continuar sem o perder? Esperar que ele se agarrasse com mais força ou atacá-lo por outro lado.

– Acha que ele vai matar outra vez?

Sebastian conseguiu ver que Lagergren percebera o que acabara de revelar com aquelas três palavras simples.

– Como havia de o saber? – comentou com agressividade. Indignado. Como se quisesse compensar o seu erro com força e volume. Sebastian decidiu-se por um ataque por outro lado.

– Foi isto que aconteceu também com a Ebba Johansson e com a história da bolsa de estudo para o MIT? Saiu-lhe assim, sem planear? É esse o seu calcanhar de Aquiles? Deixa as emoções controlarem o que lhe sai da boca às vezes?

– Não sei do que é que está a falar.

– Foi assim que o descobrimos.

Sebastian contornou a mesa e pôs-se atrás de Lagergren. Conseguiu perceber que Lagergren lutava contra o impulso de se virar para trás e seguir Sebastian com o olhar. Sebastian aproximou-se dele, inclinou-se para a frente, baixou a voz, sussurrou-lhe a alguns centímetros da orelha.

– Desistiu. Entregou-se.

Silêncio.

– Está aqui sentado.

Silêncio.

– Deve ter contado com a possibilidade de já não sair daqui.

Silêncio.

– Mas sabe que vem aí mais alguma coisa.

Lagergren já não conseguiu aguentar. Virou-se bruscamente para trás.

– Não sei do que está a falar.

– Cale-se! Sabe perfeitamente do que estou a falar! – Lagergren manteve o olhar fixo em Sebastian. A respiração pesada. Como se, a qualquer momento, fosse atirar-se a Sebastian e agredi-lo. Sebastian não desviou o olhar nem por um segundo. Fixou-o também. O homem na cadeira continuava a respirar pesadamente. De repente, virou-se rapidamente de novo e ficou a olhar fixamente, em frente. Sebastian continuou com a mesma voz calma e óbvia.

– Então já está planeado.

Silêncio.

– É uma bomba? Está a pensar rebentar alguma coisa outra vez?

Silêncio. Sebastian endireitou-se e começou a andar pela sala novamente. Colocou a questão como se estivesse mais ou menos a falar sozinho.

– Não se está a vangloriar de quão esperto é, de que nos enganou e que não temos qualquer hipótese, porque... – Parou e lançou um olhar de triunfo para Lagergren, sem sequer tentar esconder o sorriso. – Porque ainda podemos impedi-lo, agora que sabemos.

– Não, não podem.

– Podemos sim.

Ainda a sorrir, deu os últimos passos até à porta. Tinha a certeza de que Torkel abandonara a sala adjacente assim que Sebastian conseguira deixar claro que vinha aí mais qualquer coisa. Quando e onde era tarefa para os outros. Sebastian já fizera o seu papel. Ou não completamente... Deteve-se, já com a porta aberta.

– Enfie as suas merdas de perguntas de Trivial Pursuit num sítio que eu cá sei. Isto aqui... – bateu com o dedo indicador na têmpora. – Isto é que é verdadeira inteligência.

E com isso saiu e deixou a porta fechar-se atrás de si.


ESTAVAM OS DOIS praticamente pendurados em cima dele.

Sebastian de um lado e Torkel do outro.

– Como é que isso vai? Consegues alguma coisa? – perguntou Torkel e conseguiu a proeza de soar encorajador e desapontado ao mesmo tempo.

– Não vou encontrar nada mais depressa convosco aí – respondeu Billy, irritado, e lançou um olhar a cada um, por cima do ombro.

Sebastian e Torkel permaneceram imóveis.

– A sério, vão beber um café ou qualquer coisa, eu aviso quando estiver pronto.

Torkel suspirou, resignado, mas recuou um passo.

– Pronto, está bem. Anda, vamos deixar o Billy trabalhar em paz – disse para Sebastian e foi-se embora. Billy olhou rapidamente para eles. Compreendia-os. Percebia a sua impaciência e fervor, Lagergren deixara de falar e não tinham nada que os pudesse ajudar a descobrir o que o homem planeara fazer de seguida.

Exceptuando, talvez, o seu computador.

O único problema era que Lagergren fora muito metódico a apagar o histórico de pesquisas do navegador de Internet, e Billy via-se obrigado a tentar recriar tudo a partir da cache do disco rígido.

Ia levar algum tempo.

Tempo que Sebastian estava convencido de que, na realidade, não tinham.

Torkel e Sebastian entraram na sala de refeições. Torkel foi até ao frigorífico, abriu-o e ficou de pé, com a porta aberta.

– Queres alguma coisa? – perguntou para Sebastian.

– Não.

– Eu também não – disse Torkel para si próprio e fechou a porta. Começou a andar de um lado para o outro, em frente à bancada da cozinha, demasiado inquieto para se sentar. De vez em quando, lançava um olhar a Sebastian, que se afundara numa das cadeiras mais perto da porta.

– O que fizeste? – acabou por perguntar.

– O que fiz quando?

– Para que a Vanja tenha ficado tão chateada.

Sebastian olhou para Torkel com surpresa. Ele não sabia? Decidira despedi-lo sem saber o que fizera?

– Ela não te disse?

– Não.

– Então não deve querer que tu saibas.

Torkel não tencionava continuar a conversa. Não era assim tão importante. Começou novamente a deambular.

– O que achas que ele planeou? O Lagergren?

– Alguma coisa em grande, infelizmente.

– Quão grande?

– Tão grande que vai querer ficar com os louros todos. Foi por isso que veio aqui.

– E não podia simplesmente ligar ao Weber outra vez? Admitir por essa via?

– Não. É como eu disse ali dentro, ele já não quer ficar no anonimato. Quer tornar-se um símbolo. Um líder. Acha que agora tem seguidores que poderão continuar o trabalho dele. Que vai poder inspirar outros a partir da prisão e que eles vão estar à espera dele quando sair.

– Isso é de loucos.

– Eu não devia dizer isto, porque sou formado em Psicologia, mas, sim, ele é louco.

– Pronto, já terminei – ouviu-se vindo da porta onde Billy enfiara a cabeça. Sebastian levantou-se imediatamente.

– Só para que saibas, não estás de volta – disse Torkel ao saírem. – Aconteça o que acontecer aqui, não estás de volta.

– Eu sei.

– O que encontraste? – perguntou Torkel, quando ele e Sebastian se encontravam novamente de cada lado de Billy, a olhar fixamente para o monitor.

– Ele foi cuidadoso, apagou o histórico todas as noites – respondeu Billy, enquanto fazia os últimos acertos para que o material aparecesse no ecrã. – Tudo para destruir qualquer rasto, por isso fui obrigado a reconstruir.

– Fantástico, óptimo trabalho, mas o que encontraste? – o desapontamento desaparecera da voz de Torkel, agora só restava o encorajamento.

– Isto – disse Billy e mostrou-lhes montanhas de textos no monitor. Sebastian inclinou-se para a frente, para tentar ficar com uma ideia geral da massa de letras.

– É o histórico de pesquisas dele. Foi muito rigoroso – acrescentou Billy, ao apontar para a primeira linha de texto. – No início de Junho, Patricia Andrén. Começou a pesquisá-la no Google. A ler as publicações no blogue – Billy apontou um pouco mais para baixo e continuou. – Depois procurou por restaurantes em Helsingborg, escolas, mapas, câmaras de segurança rodoviária. Um pouco mais tarde, fez a mesma coisa com o Petrovic e Ulricehamn.

Colocou o dedo no rato e andou para baixo.

– Depois disso, começou a pesquisar sobre si próprio, em paralelo com as irmãs Johansson, o Weber, alguns chefes de televisão, mas deteve-se rapidamente no Wallgren da TV3.

Billy virou a cabeça na direcção de Sebastian.

– Tu também apareces por aqui.

– Okay, isso é bom, pelo menos reforça o nosso caso. Mas precisamos de saber o que ele planeou agora, não o que já fez.

– A última coisa que pesquisou foi a ARCPE – disse Billy.

– O que é isso? – perguntou Sebastian.

– A Agência Reguladora das Comunicações Postais e Electrónicas – Billy clicou numa nova página e aumentou a imagem que lá aparecia. Um edifício grande, de pedra, amarelo preencheu o monitor. – Uma instituição pública que vigia todas as comunicações electrónicas e os correios da Suécia.

Ficaram em silêncio durante algum tempo. Os três a olhar fixamente para o edifício amarelo, como se acreditassem que lhes poderia dar alguma resposta. Sebastian recuou um passo, pensativo. Ouvira qualquer coisa relacionada com aquilo. A pergunta era o quê. E quando. E de quem.

– Então ele passou de procurar pessoas individuais para instituições públicas? – perguntou Torkel, ao fim de algum tempo.

– Esta ARCPE é, de alguma maneira, responsável pela Internet? – quis Sebastian saber.

– É com isso que trabalham, com a expansão e o desenvolvimento, para que toda a gente tenha banda larga de qualidade e telefonia sem fios e essas coisas.

– Sim – disse Sebastian para si próprio. – Sim – Parecia ter chegado a alguma coisa. Apontou para o monitor de Billy.

– Lembram-se daquela carta para o jornal Östersunds-Posten, sobre aquela rapariga de Frösön, aquela dos vídeos sobre unhas...

– Frida Wester – interrompeu Torkel.

– Exactamente. Fenómeno do YouTube. Há montes de gente como ela, e o Lagergren deve odiá-los a todos. Ele disse isso. A mim e ao Källman. Que a Internet tinha de ser responsabilizada por muita coisa.

Sebastian agora estava exaltado e tinha dificuldade em manter-se quieto. Os pensamentos voavam de um lado para o outro. Tinha de os controlar para que os pudessem levar a algum lado, para que lhes dessem uma direcção.

– Teorias da conspiração, vídeos de gatinhos, páginas de ódio, monstros de cliques, há muitas coisas na Internet que são completamente de doidos. Ele escreveu ao Weber a dizer que tencionava ir à origem. Aos que disponibilizam a estupidez. O Wallgren, o Källman...

– A Agência Reguladora das Comunicações Postais e Electrónicas – acrescentou Torkel, subitamente pálido. – Merda, vou dizer-lhes para evacuarem o local! – afastou-se para o lado e pegou no telemóvel. Sebastian puxou uma cadeira da secretária atrás de Billy e sentou-se ao seu lado.

– Qual foi a última coisa, de todas, que ele pesquisou? – perguntou-lhe e fez um gesto com a cabeça para o monitor. Billy voltou à página com o histórico de pesquisas de Lagergren e desceu até ao final da lista.

– É um evento qualquer...

Abriu uma nova janela, copiou a busca de Lagergren, apareceram os resultados e clicou no primeiro.

– Sim, um evento no Waterfront sobre a expansão da fibra óptica e a visão de que a Suécia vai ser o país mais ligado do mundo, em 2020 – continuou a percorrer o texto na página e, de repente, pareceu preocupado. – Tanto o ministro das Telecomunicações como o da Educação vão lá estar.

– Quando é?

– Hoje à noite, começa às sete.

Olharam os dois para o relógio no ecrã.

Um quarto para as sete.


MUITOS HABITANTES da cidade achavam que o mais recente acréscimo à paisagem urbana de Estocolmo era um desastre arquitectónico e estético e, consequentemente, votaram-no como o edifício mais feio de Estocolmo. Vanja não concordava, achava que o Waterfront era bastante elegante, com todo aquele vidro e a construção metálica imponente e irregular, de frente para a baía de Riddarfjärden. Era isso que caracterizava uma grande cidade, na sua opinião. O facto de crescer e se alterar constantemente. Vanja nunca conseguira compreender o medo das inovações que se espelhava nos debates exaltados que surgiam assim que alguém queria construir algo diferente. Uma cidade moderna precisava de edifícios modernos.

O evento iria decorrer na área dos congressos, paredes-meias com o hotel. Vanja nunca estivera no interior do edifício, apenas passara por ele de carro, por isso, apesar de suspeitar que o evento seria chato como o diabo, estava contente por poder ir. Tinham ido no carro de Jonathan e estacionado no parque subterrâneo. Vanja colocou as chaves e a carteira de Jonathan na sua mala, para que não lhe pesassem no casaco fino de linho que ele vestira por cima da camisa azul clara. Ela própria vestira um vestido de Verão amarelo-claro, com um pequeno blazer branco por cima. Agora encontravam-se no elevador, a caminho da sala de congressos, juntamente com outros convidados bem vestidos.

– O que vamos dizer se encontrarmos algum dos teus colegas? – perguntou Vanja. Jonathan sorriu-lhe suavemente.

– Nada. Cumprimentamo-los. Falamos um bocado. Eles são meus colegas de trabalho, não são da Susanna – respondeu-lhe e deu-lhe um beijo. As portas do elevador abriram-se e saíram os dois para o zumbido da multidão. Algumas pessoas dirigiam-se ao local do encontro, mas muitas continuavam de pé, junto às mesas altas, redondas. Os empregados de mesa, com fardas brancas, moviam-se eficientemente por entre os convidados, enquanto ofereciam copos de vinho branco e canapés. Vanja nunca estivera particularmente interessada em conviver com políticos e famosos, mas, naquele momento, era uma pausa verdadeiramente apreciada e bem-vinda. Talvez passasse a ser uma parte da sua nova vida. Com Jonathan.

Tirou um programa de um suporte que estava em cima de uma das mesas e abriu-o.

– Quando podemos ir embora? – perguntou, ao mostrar o programa a Jonathan.

– Depois disto – respondeu ele e apontou para um ponto. Vanja leu o que o dedo de Jonathan indicava.

– «20h15: O Futuro já está aqui? Anders Grudell, Director Executivo Coldoc» – leu em voz alta.

– Um verdadeiro «pára-tudo» – sorriu Jonathan.

Vanja pegou num copo de vinho branco fresco de um tabuleiro prateado que passava por eles. Ouviu-se um pequeno sino a tocar algures.

– Então está na hora de ocuparmos os nossos lugares – disse uma voz. – Aos vossos lugares! – ouviu-se novamente o sino.

Faltavam aproximadamente dez minutos para começar. Primeiro uma breve recepção de dez minutos por parte do presidente da Agência Reguladora das Comunicações Postais e Electrónicas e, de seguida, o próprio discurso de abertura seria feito pelo ministro das Telecomunicações, segundo o programa. Vanja e Jonathan dirigiram-se lentamente para as portas.

Quando entraram na sala de congressos, Vanja ficou surpreendida com o número de pessoas que ali estavam. Estava quase cheio, e o local tinha capacidade para um máximo de seiscentas pessoas, de acordo com uma placa à entrada. Na frente do palco elevado, havia dois enormes ramos de flores a emoldurarem um pódio com uma mesa redonda elevada, ao lado de um computador montado. Uma tela de cinema, marcada com o logótipo da Agência Reguladora das Comunicações Postais e Electrónicas, estava pendurada na parede posterior.

Vanja e Jonathan sentaram-se um pouco abaixo, perto do corredor. Quando estavam sentados, Jonathan pegou na mão de Vanja.

– Estou tão contente por estares aqui!

– Ainda estarias mais contente se estivéssemos noutro sítio – respondeu Vanja, pôs cuidadosamente a mão na perna de Jonathan e apertou-a.

Ele sorriu-lhe. A alegria e o desejo misturados com uma certa melancolia.

– Vai ser chato para nós durante algum tempo. Sabes isso, não sabes? Por causa da Susanna – disse-lhe e aproximou-se mais dela.

– Eu sei – respondeu Vanja, séria, mas sem lhe retirar a mão da perna.

– E achas que vais conseguir aguentar? – perguntou-lhe, quase com preocupação.

– Depois de tudo o que aconteceu, aguento qualquer coisa.

– Até um discurso do ministro das Telecomunicações sobre a expansão da fibra óptica?

– Até isso – respondeu Vanja e riu-se ligeiramente.

O som das sirenes ecoava por entre os edifícios de pedra. Billy conduzia rapidamente, mas, desta vez, Torkel achou que não iam suficientemente depressa. Esperava conseguir chegar lá a tempo. No rádio da polícia, a actividade era intensa. Vozes e ordens irrompiam. Parecia que toda a força policial de Estocolmo ia a caminho do Waterfront. A primeira patrulha estava quase no local, mas, até então, ninguém conseguira comunicar com alguém responsável pelo evento, e a evacuação ainda nem sequer fora iniciada. Uma voz de mulher informou que tinham conseguido falar com um recepcionista do hotel ao lado, que prometera ajudar a encontrar algum dos organizadores. Torkel tentara entrar em contacto com um responsável da polícia secreta, uma vez que os ministros deviam ter segurança pessoal durante o serão, mas, como sempre acontecia com a polícia secreta, era difícil encontrar a pessoa certa, principalmente ao fim do dia. Parecia que só contavam com atentados durante o horário de expediente, pensou Torkel com irritação. A brigada antibombas estava a caminho, mas levariam mais dez minutos, no mínimo, a chegar, depois de um falso alarme em Solna. Torkel estava cada vez mais stressado. Os minutos passavam a correr, e nem sequer tinham começado a evacuação do local. Se a sua teoria estivesse certa, estavam a caminho de uma potencial catástrofe. Sabiam que Lagergren dominava as bombas-relógio e, para garantir o alcance máximo, teria provavelmente construído uma que explodisse durante o discurso de abertura do ministro das Telecomunicações.

Segundo o programa, era o que aconteceria às sete e dez.

Por isso, precisavam realmente de retirar as pessoas do local.

Finalmente, receberam confirmação de que a patrulha 67 chegara ao local. Torkel pegou no microfone e deu a ordem.

– Evacuem, evacuem tudo, o mais rapidamente possível. Estamos a uns minutos de distância.

Billy desviou-se para a fila contrária e acelerou a fundo. O rugido do motor quase se sobrepunha às sirenes. Passaram o largo Bolinders Plan e ficaram com o viaduto Klarabergsviadukten e o edifício do Waterfront à sua frente, com a fachada de vidro a reflectir, intermitentemente, o azul-topázio de todos os pirilampos da polícia à porta. Todavia, Torkel só via polícias a entrar e ninguém a sair.

– Porra, nunca teremos tempo de retirar toda a gente! – gritou Torkel frustrado, com algumas gotas de suor a brotarem-lhe da testa.

O burburinho na sala diminuíra, e o grisalho director-geral da Agência Reguladora das Comunicações Postais e Electrónicas acabara de subir ao palco, de avançar para o pódio e de pegar no microfone para dar as boas-vindas ao público. Antes de começar, pressionou numa tecla do computador, e a imagem atrás de si alterou-se. O logótipo da Agência Reguladora desapareceu, e agora lia-se apenas «VISÃO 2020» em letras enormes, por cima de um mapa da Suécia. «O país mais ligado do mundo», lia-se em letras mais pequenas, no fundo da tela, e, a julgar pelos aplausos, todos na sala ficaram bastante impressionados.

O director-geral estava prestes a tomar a palavra quando, de repente, se ouviu barulho e algumas vozes autoritárias a virem da entrada. Vanja não percebeu de imediato o que se passava, mas não tardou a ver um grupo de polícias fardados a irromper pela sala. Os aplausos cessaram.

– Temos de vos pedir para evacuarem o local – disse um deles, em voz alta. As pessoas olharam umas para as outras, à sua volta e para os polícias, confusas, mas apenas algumas se levantaram.

– Saiam agora! – gritou novamente o polícia. – Temos um alerta de bomba!

Agora a preocupação espalhou-se como fogo pelo local, todos se levantaram e dirigiram o mais rapidamente possível para as saídas. Vanja virou-se para Jonathan.

– Vai lá para fora, eu já venho – disse-lhe e abriu caminho por entre a multidão confusa, na direcção de um dos polícias que estava a caminho do palco onde o director-geral continuava de pé, com o microfone na mão. Vanja conseguiu alcançar o polícia e mostrou-lhe a sua identificação.

– Vanja Lithner, equipa da Riksmord. O que aconteceu?

– Recebemos ordens para evacuar o local. Vossas, na verdade – respondeu o agente e continuou a abrir caminho até ao palco. Vanja olhou para ele, surpreendida, e seguiu-o.

– Da Riksmord? – perguntou.

– É possível que haja aqui uma bomba, dizem vocês – respondeu o polícia, saltou para cima do palco e avançou até ao pódio. Retirou o microfone das mãos do director-geral.

– Como dissemos, é preciso evacuar o local imediatamente – ouviu-se dos altifalantes. – O mais rapidamente possível, mas nada de pânicos. Calma e ordeiramente.

Os murmúrios aumentaram de volume, e alguém gritou de aflição. As portas estavam entupidas de pessoas que tentavam sair da sala. Ia demorar demasiado tempo até todas as pessoas saírem, apercebeu-se Vanja e sentiu a pulsação aumentar. Isto tinha de estar relacionado com Lagergren. Por que outra razão haveria a Riksmord de estar envolvida? Vanja procurou Jonathan, mas já não o conseguiu ver. Olhou em volta e descobriu duas saídas de emergência, praticamente inutilizadas, um pouco à frente, atrás do palco.

– Utilizem as saídas de emergência também! – gritou, decidida, e começou a tentar dirigir as pessoas para as saídas alternativas. – Diga-lhes para também utilizarem aquelas saídas! – gritou para o polícia com o microfone e apontou.

De repente, avistou Jonathan, que avançava para ela por entre a vaga de pessoas. O olhar encantador desaparecera, agora parecia apenas nervoso.

– Anda, temos de sair daqui – ouviu-o chamar.

Vanja abanou a cabeça.

– Vou ficar a ajudar. Vai tu. Eu depois ligo-te.

Jonathan alcançou-a e agarrou-lhe na mão.

– Tens a certeza?

– Sim, para conseguirmos retirar toda a gente, é preciso toda a ajuda possível – respondeu-lhe e assimilou o caos à sua volta.

– Está bem. Mas tem cuidado – respondeu Jonathan e deu-lhe um beijo rápido na boca.

Jonathan assentiu com a cabeça, largou-lhe a mão e desapareceu.

Vanja ficou a olhar para ele alguns segundos, antes de se virar e continuar a tentar dirigir a massa de pessoas.

Billy estacionara o carro no meio da rua Klarabergsgatan para a bloquear. Deixara as sirenes e as luzes ligadas. Torkel já saíra do carro e estava a falar com um dos polícias no local. Pessoas aflitas, em roupas de festa, corriam à sua volta. Muitas delas paravam assim que saíam do edifício. Torkel fazia sinais com os braços para que continuassem a andar, enquanto falava com o agente.

– Têm de as afastar mais daqui, levem-nas para o viaduto Klarabergsviadukten, na direcção de Kungsholmen – disse-lhe. O agente acenou vigorosamente com a cabeça.

– Com certeza.

– E cortem o trânsito. Comboios e metropolitanos também.

– Sabemos se é mesmo uma bomba? – perguntou o agente, em voz baixa, mas algo ansioso.

– Partimos do princípio de que sim – respondeu Torkel e tentou parecer mais calmo do que realmente se sentia. Aproximou-se mais para que as pessoas que passavam por eles não os ouvissem.

– Assim que a brigada antibomba chegar, mande-os entrar – ordenou. O agente assentiu novamente, e Torkel virou-se para Billy. – Vou entrar. Ficas aqui e certificas-te de que tudo está bloqueado?

– Claro.

Torkel correu na direcção do fluxo de convidados que saíam e desapareceu no interior do edifício.

Sebastian saiu do carro e olhou em volta, inseguro do que deveria fazer. Uma parte de si compreendeu que, se o que temia estivesse correcto, ele e todas as pessoas nas proximidades do edifício corriam perigo de vida. Olhou rapidamente para o relógio. Sete horas e três minutos. O ministro das Telecomunicações deveria começar o seu discurso dali a sete minutos, segundo o programa. No lugar de Lagergren, ter-se-ia certificado de que a bomba explodia durante esse discurso.

Valor simbólico máximo.

Olhou para Billy, que tentava desesperadamente dirigir os carros de polícia que chegavam e levar os outros agentes a bloquearem um perímetro mais largo à volta do edifício. Uma parte de Sebastian sentiu que, na verdade, deveria sair dali o mais depressa possível. Não o queriam ter ali. Porque haveria de se importar? Se houvesse mesmo uma bomba, poderia explodir a qualquer momento.

Todavia, não podia ir-se embora, sentiu.

Tivera a sua dose.

Não conseguira salvar Källman. Mas ia ser a última pessoa que Lagergren matava.

Não o deixaria vencer uma vez mais.

Sebastian começou a dirigir-se para a massa de gente.

A sala de congressos estava praticamente vazia, mas metade dos convidados ainda estavam no átrio, onde a fila nas escadas se deslocava lentamente. Copos, canapés e alguns tabuleiros de metal estavam espalhados pelo chão. Havia pessoal junto aos elevadores a impedir as pessoas que os tentavam utilizar. Todavia, tudo decorria calmamente. A evacuação parecia estar a resultar, mesmo que levasse o seu tempo.

Vanja pegou no telemóvel e ligou a Billy. Soava stressado, no mínimo, e Vanja ouviu inúmeras sirenes à volta do colega.

– O que se passa? Porque estão a evacuar o Waterfront? – perguntou-lhe sem sequer o cumprimentar.

– Estão a dar na televisão? – perguntou Billy.

– Talvez, mas eu estou cá dentro.

– O quê?! Porquê? – perguntou Billy surpreendido.

– Caga nisso, o que se passa?

– Achamos que o Lagergren vai fazer qualquer coisa nesse evento – respondeu. – Durante o discurso do ministro das Telecomunicações. – Vanja sentiu-se gelar por dentro, principalmente ao ver todas as pessoas que ainda se acotovelavam para sair.

– Isso devia começar daqui a cinco minutos – disse.

– Nós sabemos – respondeu Billy. – A brigada antibombas vai a caminho.

Vanja virou-se e correu novamente para a sala de congressos.

– Fazem alguma ideia de onde ele pode ter colocado a bomba? – perguntou, nervosa, ao mesmo tempo que começou a revistar os espaços entre as filas de cadeiras por que passava a caminho do palco.

– Nem temos a certeza se há mesmo uma bomba.

Vanja saltou para cima do palco, olhou para baixo do pódio. Estava prestes a olhar para trás do palco quando se fez luz.

– Merda! – disse ao saltar do palco e correu de volta ao átrio.

– O que foi? Encontraste alguma coisa? – perguntou Billy, cheio de preocupação.

– Não, mas lembrei-me de uma coisa. Há uma garagem aqui. Por baixo deste edifício.

Vanja interpretou o silêncio de Billy como ele a aperceber-se do que ela acabava de dizer.

– Um carro-bomba por baixo do edifício – disse Billy, finalmente. – Então temos de evacuar o hotel também.

– Vou descer – respondeu Vanja e começou a correr na direcção da fila de elevadores.

– Tem cuidado – conseguiu ouvir Billy dizer antes de desligar e a voz do colega desaparecer.

Alcançou os elevadores. Um dos empregados tentou impedi-la, mas Vanja puxou da sua identificação, empurrou-o e carregou no botão de descida. Não precisou de esperar. As portas ao fundo, do lado direito, abriram-se imediatamente, o elevador parecia estar à sua espera. Correu lá para dentro e carregou no G. Cruzou-se com o seu próprio olhar no espelho.

Não se reconhecia totalmente.

O olhar dizia-lhe que era polícia.

A roupa dizia que continuava num encontro romântico.


SEBASTIAN NÃO CONSEGUIA acreditar no que estava a ver. O que estava Vanja ali a fazer?

Sebastian estava um pouco afastado, a guiar as pessoas para as saídas, quando olhou para o patamar superior e viu Vanja como uma faixa amarela a correr pela carpete vermelha, na direcção dos elevadores. Afastou-se da massa preocupada e suada de gente que se apertava para sair. Dirigiu-se para os elevadores. Vanja entrara no que ficava mais à direita. Sebastian olhou para o quadro por cima das portas dos elevadores, para ver em que andar ela saíra. Um G no quadro à esquerda luzia para ele. Sebastian paralisou. Continuava sem perceber muito bem o que Vanja estava a fazer na garagem, mas isso ficou subordinado ao sentimento de pânico que começava a sentir.

Uma garagem.

Subterrânea.

Era evidente que era isso.

Deviam ter percebido aquilo mais cedo. Nunca tinham encontrado o Volvo de Saurunas.

Carregou no botão para descer, ao mesmo tempo que pegou no telemóvel. Ligou para Billy, que atendeu quando o elevador chegou e as portas se abriram. Entrou e carregou no botão que o levaria à garagem.

– A Vanja está aqui! – disse rapidamente.

– Sim, eu sei. Foi para a garagem – respondeu Billy impetuosamente.

– Eu sei, vi-a descer – respondeu Sebastian, irritado.

– Achamos que pode ser um carro-bomba!

Sebastian nem se deu ao trabalho de responder a Billy. Sentiu que já não tinham tempo para observações evidentes.

– O Volvo do Saurunas, qual era a cor? E a matrícula? – perguntou quando as portas do elevador se fecharam e a sua viagem começou.

– Hum... – ouviu pelo auscultador enquanto Billy tentava recordar-se.

Sebastian olhou para o relógio. Sete e dez. O discurso do ministro das Telecomunicações deveria ter acabado de começar. Sebastian quase sentiu uma tontura.

– Despacha-te, Billy!

– Volvo S60. De 2007. Passion Red. Vermelho, portanto!... GV... GVL 665! – despejou Billy, concentrado.

– Óptimo. A equipa antibomba já chegou?

– Ainda estão em Ulriksdal – respondeu Billy.

Demasiado longe. Longe como o cu de judas, pensou Sebastian, e desligou. As portas abriram-se, e saiu para uma garagem subterrânea cinzenta, cheia de carros estacionados. Deu alguns passos para o interior e olhou em volta.

Conseguiu ver Vanja a alguma distância. Estava de costas e parecia procurar algo.

– Vanja! – chamou.

Vanja virou-se bruscamente e viu-o.

– O que estás aqui a fazer? – perguntou, mais surpreendida do que irritada, quando Sebastian se aproximou.

Vanja não queria saber dele, não o queria ver, Sebastian estava consciente desse facto, mas, naquele momento, não queria saber disso. Havia coisas mais importantes.

Lagergren não podia ser bem-sucedido.

Vanja não podia ficar ferida.

– Volvo S60. Vermelho. GVL 665. Já o viste?

Vanja abanou a cabeça.

– Viste algum Volvo vermelho?

– Sabemos que é esse o carro?

– É o único que temos, temos de o tentar encontrar.

Vanja acenou com a cabeça e começou a andar.

– Há dois andares de garagem subterrânea, eu vou para o segundo – disse-lhe e começou a correr na direcção da rampa, um pouco mais ao fundo, para descer. Ao fim de alguns passos parou, descalçou os sapatos de salto alto e continuou descalça. Num vestido de Verão amarelo.

Sebastian deu por si a pensar que aquela podia ser a última vez que a via.

Não podia acontecer.

Começou a correr ao longo das filas de carros. Era uma garagem enorme e, por causa do evento daquela noite, estava completamente cheia. Procurou por tudo o que fosse vermelho. Viu um Toyota vermelho, um Mazda vermelho e um Volvo vermelho, mas era um V40, com a matrícula errada.

Continuou a correr.

De repente ouviu Vanja a gritar.

– Está aqui! Está aqui!

Sebastian virou-se e correu na direcção de onde vinha o som da sua voz. Os pés não tão rápidos quanto a sua vontade. Desviou-se de alguns carros estacionados e seguiu pela rampa inclinada, que o levou ainda mais para dentro da terra. A sua má preparação física começava a fazer-se sentir, mas Sebastian aguentou, nem tinha coragem de olhar para o relógio, limitou-se a correr. O som dos seus passos pesados ecoava por entre as paredes de betão.

Então avistou-a um pouco ao fundo, precisamente quando Vanja colocava a mala à volta do cotovelo e partia o vidro lateral de um Volvo vermelho, com um golpe poderoso.

Chegou finalmente ao pé dela.

A matrícula estava certa.

Era o carro de Saurunas.

Estava estacionado ao lado de um pilar de sustentação, certamente não por coincidência.

– Há qualquer coisa aqui atrás – disse Vanja. – Alguma coisa grande.

Vanja destrancou a porta traseira, abriu-a e puxou o cobertor cinzento-azulado, que tapava o conteúdo do porta-bagagens. Lagergren rebaixara o banco traseiro para ter espaço. Sebastian espreitou lá para dentro. O porta-bagagens estava cheio de enormes sacos de papel castanhos, bem empacotados. O carro cheirava fortemente a gasóleo. No meio, rodeada dos sacos de papel, estava uma caixa de madeira. Alguns dos sacos estavam abertos, e o seu conteúdo, cristais brancos granulados redondos, vertera.

Vanja pegou em alguns dos pequenos grãos parecidos com areia de gato e sentiu-os.

– É fertilizante sintético – constatou. – Misturado com gasóleo para não absorver água.

Era um dos tipos de bomba mais simples que se podia fabricar. Nitrato de amónio com gasóleo. Sebastian olhou para Vanja com preocupação.

– E o que é isso? – perguntou-lhe e apontou para a caixa de madeira. Vanja esticou-se e retirou a tampa. Na caixa de madeira havia dois recipientes de vidro cheios de líquido, um grande e um pequeno.

– As bombas de fertilizantes requerem uma força explosiva inicial de grande alcance para desencadearem uma reacção em cadeia, que depois provoca uma explosão – disse Vanja, ao observar o conteúdo da caixa.

O segundo recipiente era o maior e continha um líquido claro e transparente. O líquido do segundo recipiente, o mais pequeno, era ligeiramente amarelado. Os recipientes formavam como que uma unidade, ligados um ao outro através de um bloqueio de vácuo. O que impedia os líquidos de se misturarem era uma fina camada de metal entre os dois recipientes. Sebastian apontou para ela.

– Foda-se! – exclamou Vanja stressada. – Já nem meio centímetro de grossura tem. O que é que a Ursula tinha dito? Um centímetro a cada quinze minutos?

– Então temos seis ou sete minutos. No máximo – respondeu Sebastian. Aproximaram-se mais e quase conseguiam ver o líquido amarelo a corroer lentamente a pequena peça metálica. Aparas de metal muito, muito pequenas separavam-se e diluíam-se à frente dos seus olhos.

Sebastian olhou para Vanja. O olhar sério.

– Tens de sair daqui – disse-lhe. Ela reagiu exactamente como ele sabia que ela iria fazer.

– Nem pensar! Temos de tentar tirar isto daqui.

– Eu fico – retorquiu Sebastian. – Eu tento.

Vanja abanou a cabeça.

– São precisas duas pessoas para isso – constatou ela.

Sebastian olhou-a, frustrado, e pegou no telemóvel.

– Vou ligar ao Billy para saber o que se passa com a equipa antibombas –disse-lhe e começou a marcar o número. De repente, olhou, desiludido, para o telefone.

– Não tenho rede – disse.

Vanja olhou para o seu telemóvel. A mesma coisa.

– Tinha rede no andar de cima, vou lá a correr – disse Sebastian.

– Não, não temos muito tempo. Temos de resolver isto sozinhos.

Sebastian olhou para ela. Vanja tinha razão.

Eram apenas os dois agora.

Pai e filha.

Billy, que continuava à espera da equipa antibombas, estimou que mais de dois terços dos convidados já tinham conseguido sair. De acordo com a última informação que recebera, a equipa estava presa na rua Sveavägen. Provavelmente por causa dos bloqueios que ele próprio ajudara a implementar, mas tinha esperança de os conseguir ver em breve.

Torkel veio a correr para ele.

– Já sabes alguma coisa da Vanja ou do Sebastian?

– Liguei para os dois, mas as chamadas foram directamente para o atendedor. Provavelmente não têm rede lá em baixo.

Torkel olhou para Billy. Parecia preocupado.

– E a brigada antibomba?

Billy apontou para as filas de trânsito compactas.

– Estão presos no trânsito. Achas que podemos mandar um grupo à garagem para tentar encontrá-los? – perguntou Billy.

Torkel não respondeu. Virou-se para outro lado. Ainda havia pessoas a saírem do edifício e a fugirem do local. Os que estavam lá dentro a ajudar com a evacuação era uma coisa. Mas enviar mais gente lá para dentro... Não podia fazer isso. A brigada antibombas sim, mas mais ninguém. Abanou a cabeça. Era uma decisão que lhe custava, era bem visível.

– Não podemos arriscar mais vidas. Mas continua a tentar contactá-los – disse para Billy e tentou não mostrar a preocupação na voz.

– Eu posso ir lá abaixo! – ofereceu-se Billy.

– Não! Percebo o que estás a sentir, mas não.

Havia oito sacos que, de acordo com as etiquetas coladas, continham cinquenta quilos de fertilizante sintético cada um. O que queria dizer quatrocentos quilos dentro do Volvo. O efeito seria devastador. Não faziam a menor ideia de como poderiam desconstruir os recipientes que serviriam de gatilho, portanto decidiram que o melhor que podiam fazer era transportá-los dali para fora e, dessa maneira, tentar evitar a catástrofe. Porém, o tempo começava a escassear. A placa metálica ficava cada vez mais fina, a cada segundo que passava.

Juntos, retiraram a caixa de madeira com os recipientes de vidro de dentro do porta-bagagens, o mais cuidadosamente possível. A única coisa que podiam fazer era esperar que Ursula tivesse razão quando dissera que Lagergren era um químico tão habilidoso que os líquidos eram suficientemente estáveis para serem transportados.

– O que fazemos agora? – perguntou Vanja quando removeram a caixa de dentro do automóvel.

– Temos de tentar levar isto daqui para fora – respondeu Sebastian e tentou agarrar a caixa com a maior firmeza possível. – Quanto mais longe do carro, melhor.

– Acho que a força explosiva só desta parte deve ser infernal – respondeu Vanja e fez um gesto com a cabeça para a caixa. – A que ele usou no parque de estacionamento de Arlanda fez carros a cinquenta metros de distância mexerem-se. Nem posso imaginar qual será o efeito num espaço fechado – continuou.

– Isso é um problema para as seguradoras – respondeu Sebastian decidido.

– Não era a isso que me estava a referir. No pior dos casos, isto vai desencadear o fertilizante, esteja onde estiver na garagem.

Vanja observou a fina placa metálica novamente. Estava literalmente a desaparecer à frente dos seus olhos. Abanou a cabeça em frustração.

– Nunca vamos ter tempo de a levar para cima – exclamou, à beira do pânico.

Sebastian não respondeu. Respirava de forma ofegante. Afinal, a caixa era bastante pesada.

– Merda! Já sei! Pousa-a, pousa-a! – gritou Vanja, de repente, e Sebastian quase deixou cair a caixa.

– O que foi? – perguntou-lhe depois de ter pousado a caixa.

– O carro do Jonathan! Está aqui estacionado e tenho as chaves dele na mala! – explicou Vanja e começou a correr o mais depressa que conseguia. – Levamos isso daqui para fora no carro!

Sebastian ficou onde estava. Não passou nem meio minuto até ouvir um carro a ser ligado, um motor a rugir, e, com os pneus a guinchar, Vanja dobrou uma esquina num Audi preto. Travou à sua frente, saiu do carro a correr e abriu a porta do lado do passageiro.

– Com cuidado – disse ao ajudarem-se a colocar a caixa de madeira no lugar do passageiro. Quando estava pousada, puxou o cinto de segurança e prendeu-o à volta da caixa. De seguida, correu de volta à porta aberta do lado do condutor. Era uma questão de minutos, talvez de segundos, até os líquidos se misturarem e o inevitável processo químico se iniciar.

– Eu faço isso – disse Sebastian e colocou-se à frente de Vanja, entre ela e a porta. Vanja olhou para ele, surpreendida.

– O que estás a fazer? – perguntou-lhe.

– Só é preciso um de nós para conduzir o carro – continuou Sebastian, impressionado pela sua própria calma.

– Achas que isto vai mudar alguma coisa? Entre nós? – atirou Vanja. – Estares a armar-te em herói?

Tinha-a magoado realmente, compreendeu Sebastian. Nem naquela situação ela conseguia importar-se com o que lhe aconteceria. Aquela revelação deu-lhe mais força. Precisava de fazer aquilo. Subitamente, sentiu o corpo mais leve.

Como se aquela acção o libertasse da culpa.

O purificasse.

– Não tem a ver com isso – disse-lhe calmamente e entrou no carro. – Já perdi uma filha uma vez. Não vou perder outra.

Fechou a porta e lançou-lhe um último olhar, antes de partir.

Vanja ficou onde estava.

Não chorou. Não pareceu agradecida. Nada.

Rapidamente deixou de a ver no espelho retrovisor.

Desapareceu.

Provavelmente para sempre.


SEBASTIAN CONDUZIA DEPRESSA. O carro era sensível e bem equilibrado. O rádio estava ligado, canal P4. Uma música conhecida fluía dos altifalantes e, por momentos, pensou desligar. Mas porque haveria de o fazer? Por que motivo não podia ouvir música, se estes seriam os momentos finais da sua vida? Talvez porque aquela música era horrorosa. Desligou o rádio. Pensou na bomba que levava ao seu lado.

No metal que erodia lentamente.

Tal como a própria vida.

Tudo era perecível.

À sua frente, havia uma cancela, onde deveria parar para pagar o estacionamento. Em vez disso, reduziu a mudança e acelerou. O carro respondeu como um relâmpago, e Sebastian partiu a cancela. O embate foi mais fraco do que pensara. A cancela partiu-se em alguns pedaços e deixou uma pequena racha no vidro pára-brisas. Foi tudo.

Viu a saída e a luz do final de dia de Verão um pouco ao fundo. Apercebeu-se de que, na verdade, não fazia a menor ideia do que o esperava. Retirar a caixa de madeira e os recipientes da garagem, não pensara muito para além disso. Agora estava prestes a sair para as ruas de Estocolmo, num carro que podia explodir a qualquer momento. Tinha de encontrar um sítio tão longe das pessoas e da densa área urbana quanto possível. Parecia-lhe uma missão impossível.

Derrapou para fora da garagem e abrandou ligeiramente para se orientar. Carros de polícia com as sirenes e luzes ligadas. Tinham bloqueado o acesso ao viaduto Klarabergsviadukten em ambos os sentidos, mas Sebastian viu um espaço entre uma carrinha de piquete e um carro da polícia, na direcção do centro comercial Åhléns e da praça Sergels torg. Decididamente, não era o caminho que deveria seguir, estaria a entrar no coração da cidade, mas não tinha alternativa. Tinha de sair dali. A qualquer momento poderia ser tarde demais, e a sua tentativa de evitar uma catástrofe teria fracassado. Acelerou e buzinou em aviso para que as pessoas se desviassem. Houve pelo menos uma pessoa que percebeu o que ele estava a fazer. Billy. Sebastian viu-o a correr, a agitar os braços no ar, para que os outros polícias não o tentassem parar. Enfiou o carro através da abertura, era mais pequena do que tinha pensado, raspou os dois lados do carro e ficou sem um dos espelhos retrovisores. O viaduto Klarabergsviadukten e a rua Klarabergsgatan estavam subitamente livres à sua frente. O seu carro era o único a conduzir naquela direcção. Mais à frente, viu as enormes filas no sentido contrário. Aumentou a velocidade.

Para onde deveria ir?

Sebastian começou a entrar em pânico. Não devia faltar muito tempo para a explosão, mas, ao mesmo tempo, não podia propriamente sair do carro e deixá-lo onde estava. A responsabilidade era sua. Era obrigado a terminar o que começara. Mesmo que isso implicasse pagar o preço mais elevado de todos.

Avistou a pequena rua transversal junto à igreja Klara kyrka, que, através de outra transversal, o levaria à bem maior rua Vasagatan. Era a melhor alternativa que tinha. Era verdade que a rua Vasagatan passava pela Estação Central, mas, depois disso, tornava-se mais aberta e, com alguma sorte, conseguiria chegar à água. Travou a fundo e virou o volante ao mesmo tempo. Os pneus chiaram em protesto, e a parte traseira do carro derrapou por alguns segundos, mas Sebastian conseguiu manter o controlo do Audi cambaleante e entrou na rua transversal. Na seguinte guinada à direita já estava mais preparado e conseguiu não derrapar tão descontroladamente. À sua frente, tinha subitamente a rua Vasagatan, onde, para sua surpresa, se apercebeu de que ainda não havia bloqueios, mas Sebastian recusou-se, ainda assim, a abrandar. Em vez disso, atirou-se para a buzina. Teve tempo de notar que a via da direita estava repleta de carros parados e virou bruscamente para a esquerda, de frente para o trânsito em sentido contrário. Mal o fez, esteve prestes a embater num autocarro. Por pouco, conseguiu evitá-lo, ao passar rente a um táxi. Raspou novamente, agora do lado do passageiro, mas não perdeu demasiada velocidade. Os carros em sentido contrário paravam ou viravam bruscamente para o lado. Sebastian percebeu que tinha de voltar para a outra fila, a do sentido certo. Contudo, a ilha larga e alta que separava a rua em duas vias tornava a tarefa extremamente difícil, e, além disso, a fila de carros parados do seu lado direito estendia-se até ao cruzamento seguinte de Tegelbacken. Então, continuou em frente, em sentido contrário. Um pouco adiante, viu uma passadeira onde alguns peões, apesar do barulho das travagens a fundo dos outros automobilistas e das buzinas furiosas, começaram a atravessar a rua. Sebastian começou a apitar como um louco para que se desviassem. Os peões viram-no e começaram a correr para todos os lados, para evitarem um embate.

Fora por pouco, mas agora conseguia ver a água atrás da via Klarastrandsleden, um pouco adiante. Todavia, também conseguiu ver os carros da polícia com as sirenes ligadas, estacionados junto à ciclovia, a bloquear eficientemente o seu caminho a direito até à água.

A sua melhor hipótese. Arruinada.

Sebastian avançou para o cruzamento sem reduzir a velocidade, derrapou para a direita e acelerou para debaixo da ponte Centralbron. A qualquer momento aquilo podia acabar. A qualquer momento os químicos podiam misturar-se. Pelo menos, seria rápido. Não teria praticamente tempo de se aperceber da explosão. Essa era a única vantagem, pensou. Se era para morrer, mais valia que acontecesse num abrir e fechar de olhos.

Lançou um olhar rápido para a esquerda. Um muro de um metro de altura separava-o da água. Merda! Só faltava mais essa. Já se sentia como se estivesse a viver com tempo emprestado.

Há quanto tempo teria deixado o estacionamento subterrâneo?

Um minuto, talvez? Dois?

Continuou em frente. Já nem se dava ao trabalho de olhar para o velocímetro. Ia muito depressa. Era a única coisa que precisava de saber. O muro tornou-se mais baixo e terminava numa escada. Ainda havia um desnível, mas já não se atrevia a continuar a conduzir. Estava a aproximar-se do edifício da Câmara Municipal e, a alguns quarteirões dali, começava uma zona residencial. Virou o volante o máximo que conseguiu para a esquerda. Bateu com as rodas no passeio alto e devia ter partido alguma coisa, pois subitamente tornou-se bastante mais difícil virar o volante, o carro puxava para a direita. Não faltava muito, o carro só tinha de se aguentar inteiro um pouco mais de tempo. Então, avistou os barcos a vapor no cais, à sua frente.

Não tinha pensado neles. Todavia, agora já não podia fazer nada em relação a isso. Era obrigado a arriscar. A descer para o cais. Várias pessoas corriam para os lados, telemóveis voavam das mãos. Sebastian dirigiu-se para o espaço entre os barcos vermelhos, pretos e brancos, que balanceavam pacificamente ao sol de fim de tarde. Esperava de todo o coração conseguir não atingir nenhum deles, mas já não tinha mais escolha.

Esta viagem teria de terminar em algum lado.

Teria de ser ali.

Acelerou a fundo e abriu a porta. Aquilo iria ser doloroso, mas que podia fazer? Queria projectar o carro para o mais longe possível da baía cintilante e, para isso, precisava do máximo de velocidade.

A berma do cais aproximava-se vertiginosamente. Quando faltavam apenas alguns metros, largou o volante e atirou-se para fora do carro. Por alguns segundos, sentiu-se a voar, em queda livre, e depois veio a dor. Rebolou pelo asfalto, viu tudo a andar à roda, o corpo a gritar de dor. De seguida, ouviu-a. Uma explosão abafada, seguida de um jacto de água imenso que o encharcou. Viu os barcos a vapor, por alguns momentos, quase erguerem-se da água.

Conseguiu sentar-se.

Não conseguia mexer o braço esquerdo.

Sentia dor de cada vez que inspirava.

O cais estava completamente coberto de água, e o ar estava repleto de gotas tão pequenas que mais pareciam nevoeiro. Os barcos a vapor batiam uns nos outros, com as suas armações metálicas. Os raios de sol irromperam por entre o caos, e, por momentos, Sebastian vislumbrou um arco-íris.

Era tão belo, pensou.

E caiu para a frente, ficando deitado no chão.


CONSEGUIRA, FINALMENTE, juntá-los a todos.

Era assim que via as coisas, apesar de Sebastian não estar ali. Era assim que estava previsto, que devia ser. Na verdade, Torkel não queria pensar que era nostálgico, mas, neste caso, as coisas eram, sem qualquer dúvida, melhores antes.

Era assim que eles funcionavam melhor.

Sem Sebastian Bergman.

Torkel imaginava que isso não os tornava, de modo algum, únicos. Certamente acontecia à maior parte das constelações.

Estavam oficialmente livres desde há algumas horas. Fora então que Torkel entregara a investigação completa ao Ministério Público, e agora estavam a celebrar na esplanada do restaurante Moon Cake, a apenas algumas centenas de metros da esquadra. Tinham pedido algumas entradas e petiscos para dividirem. Cerveja para quem queria. Vinho para Ursula.

A imprensa ficara completamente louca depois dos acontecimentos no Waterfront. O assassino dos reality shows, ministros, craques da área de negócios, carro-bomba na baía Riddarfjärden por entre turistas. Era como um enorme dilúvio de vários dias, no meio da seca das notícias de Verão.

Havia tantos ângulos diferentes por onde escolher que o assunto principal rapidamente caíra no esquecimento. Durante as mais de duas semanas que se tinham passado desde aqueles acontecimentos, Lagergren ocupava cada vez menos espaço noticioso, e a pequena semente de debate que as suas acções anteriores haviam plantado já não parecia interessar a ninguém, uma vez que, com os actos no Waterfront, fora acusado de terrorismo, e nem o orador mais liberal queria defender as ideias por detrás do terrorismo.

Lagergren fora novamente detido, pouco depois dos acontecimentos ligados ao evento da Agência Reguladora das Comunicações Postais e Electrónicas, e talvez até se tivesse apercebido de que a acção fracassada o tornaria mais conhecido, mas menos fácil de alguém simpatizar com a sua mensagem, pois confessara crime após crime, com longas explicações sobre o motivo pelo qual se vira obrigado a agir e sobre quão importante era que alguém resistisse à estupidificação.

Tivera de iniciar uma cruzada contra a idiotice.

Nada do que dissera chegara à imprensa, e Lagergren sabia-o. Parecia mais que estava a treinar um discurso para o julgamento vindouro, uma vez que insistira repetidamente junto do seu representante legal para que não decorresse à porta fechada. O que aconteceria com essa parte só saberiam em Agosto, quando o julgamento começasse. Torkel não tinha qualquer dúvida de que David Lagergren seria condenado a prisão perpétua e de que, no seu caso, cumpriria toda a pena.

Era sempre gratificante quando os esforços do trabalho da equipa davam resultados, mas o melhor era mesmo Vanja ter regressado. Depois do Waterfront, estivera ausente dois dias, mas mais tarde aparecera outra vez no escritório, a perguntar se podia ajudar.

Certificar-se de que todo o material chegava ao procurador.

De que não falhavam em nada.

De que Lagergren seria condenado.

Concluir o trabalho, simplesmente.

Torkel observava-a agora. Já estava ligeiramente bronzeada, uma blusa amarela, calções brancos, óculos de sol, a sorrir para Billy, com um copo de cerveja na mão. Estava tão contente por ela ter regressado.

Inclinou-se para a frente, pegou num garfo que estava em cima da mesa e bateu num dos copos de cerveja vazios em frente a Billy. Aclarou a garganta, mas não fez qualquer movimento para se levantar. O resto da equipa ficou em silêncio e olharam para ele, em antecipação divertida. Torkel compreendia-os, não era comum fazer discursos.

– Só queria dizer que estou muito contente por estar aqui convosco – começou. – Com todos – continuou, com um olhar caloroso para Vanja. – E também quero acrescentar que fizemos um óptimo trabalho. Agora, tirem uns dias merecidos de folga, espero que se passem algumas semanas até nos voltarmos a ver!

Depois de várias saúdes e desejos de bom Verão, Torkel pousou o copo e levantou-se. Billy levantou os óculos de sol sobre a testa e olhou para ele, confuso.

– Já te vais embora?

– Sim, vou para casa fazer a mala, vou-me embora amanhã de manhã. Mas levo o telemóvel, se for preciso alguma coisa.

– Para onde vais? – quis Vanja saber.

– Para Ulricehamn primeiro, depois logo se vê.

Torkel não conseguiu esconder um breve sorriso de satisfação ao falar dos dias que se aproximavam. Ursula bebeu um gole de vinho e pousou o copo vazio. Um gesto no qual Torkel reparou.

– Fiquem aqui o tempo que quiserem e peçam o que vos apetecer. Já pedi ao empregado para me enviar a conta depois.

Depois disto, virou-se e começou a andar de volta à esquadra e ao carro. Em passos leves. Afastando-se dos colegas e a caminho de Lise-Lotte.

– Torkel!

Torkel deteve-se e virou-se. Viu Vanja meio a correr na sua direcção.

– O que foi?

Vanja alcançou-o e parou. Olhou para os pés calçados com sandálias. Torkel pensou vê-la a morder o lábio. Fosse o que fosse que queria dizer, notava-se que não era fácil para ela.

– Não sabia se devia... – começou por dizer, interrompeu-se e olhou para ele. – Mas mais vale ficares já a saber.

– Saber o quê? – perguntou-lhe Torkel, mas já ficara com um nó na garganta.

– Não vou voltar para a Riksmord depois do Verão.

Vanja dissera-o. Aquilo que Torkel menos queria ouvir. Havia tanta coisa que queria responder, protestar, contrariar.

– Não, não podes... – foi a única coisa que lhe saiu.

– Tem de ser.

– Ele não vai voltar. O Sebastian não vai voltar.

– Não é por causa disso, e tu sabes que eu adoro trabalhar contigo... mas tenho de quebrar este padrão. Preciso de fazer alguma coisa nova.

– Tu és a melhor da equipa!

– Vou continuar na polícia, mas estou a pensar procurar outro departamento.

Torkel limitou-se a assentir com a cabeça. O que poderia fazer? Conhecia Vanja tão bem. Não conseguiria convencê-la, se ela já estivesse decidida. Era Vanja. Além disso, não a queria ter na equipa se ela não quisesse lá estar.

– Mas vais voltar? – apercebeu-se de que aquilo mais parecia uma ordem do que uma pergunta.

– Sim, vou voltar. Quero voltar, só preciso de me organizar primeiro.

O que mais haveria para dizer? Nada. Vanja aninhou-se nos seus braços com naturalidade, e Torkel abraçou-a. Com força e por muito tempo. Vanja sentiu uma lágrima no canto do olho.

– Toma conta de ti e diz qualquer coisa, se precisares... seja o que for – ouviu Torkel dizer contra o seu cabelo.

– Sim, vou fazer isso.

Torkel quebrou o abraço, olhou para ela como se pensasse dizer alguma coisa, mas apenas acenou ligeiramente com a cabeça, virou-se e foi-se embora.

Vanja regressou para junto dos colegas. Olhou para o relógio ao atravessar a estrada. Estava na hora de se ir embora. Ela e Jonathan iam apanhar o comboio nocturno para Copenhaga.

– Aconteceu alguma coisa? – perguntou-lhe Ursula, quando Vanja regressou à mesa para ir buscar a mala e dizer adeus aos colegas.

Vanja inspirou profundamente, convencera-se de que o mais difícil já passara ao contar a Torkel, mas percebeu que, provavelmente, estivera enganada.

– Vou sair. Da Riksmord – disse o mais natural e o menos dramaticamente possível. Percebeu pelas expressões faciais dos colegas que eles pensavam que estava a brincar. Então teve de explicar porquê, quanto tempo pensava estar fora, o que pensava fazer em alternativa e, depois disso, não desistiram enquanto Vanja não bebeu mais uma cerveja – duas no caso de Billy – antes de se ir embora.

– Conheces o Jonathan? – perguntou Ursula ao seguir Vanja com o olhar, a caminho da estação de metropolitano de Rådshuset.

– Sim, vi-o uma ou duas vezes, há muito tempo – respondeu Billy. – Pareceu-me um tipo porreiro. Já conheces a nova namorada do Torkel?

– A Lise-Lotte. Sim, vi-a uma vez. Acordei-os quando o Weber publicou aquela entrevista.

– E como te sentiste?

Ursula paralisou. A pergunta sobre se já conhecia Lise-Lotte fizera-a logo sentir-se um pouco desconfortável, agora sentia-se cada vez pior.

– O que queres dizer com isso?

– Vocês não estavam juntos antes? Tu e o Torkel?

Billy perguntou aquilo como se fosse perfeitamente natural e do conhecimento geral. Um tema de conversa como qualquer outro, como se lhe estivesse a perguntar se já tinha visto uma determinada série de televisão ou um filme.

– Todos sabem, não é? – perguntou Ursula e abanou ligeiramente a cabeça.

– Não sei se todos sabem. Eu sabia.

– Não era nada – afirmou Ursula e bebeu mais um gole de vinho. – E, mesmo que tivesse sido alguma coisa, agora acabou. Por isso, nas calmas. O que vais fazer agora? – perguntou, por sua vez, a Billy, para mudar de assunto.

– Não sei.

– Não vais com a tua mulher para algum lado?

– Ela fartou-se de esperar que eu acabasse de trabalhar e foi com amigos para a costa oeste. Vou lá ter amanhã.

– Então não vais fazer nada de especial esta noite?

– Não. Tu também não?

– Não.

– Então pronto.

Tocaram com os copos levemente um no outro, esvaziaram o que restava e olharam em volta à procura de um empregado.


NÃO ESTAVA BÊBEDA.

Mas estava mais do que tocada.

Haveria alguma palavra para aquele estado intermédio?

Ursula reflectiu sobre isso ao sair do táxi e dirigir-se para a porta do seu prédio. Não teve problemas em inserir o código de abertura. Acertou à primeira, o que era uma prova de que não estava bêbeda. Quando já estava no interior, acendeu a luz e permaneceu parada por algum tempo. Inspirou profundamente para se concentrar. A cabeça estava ligeiramente mais à roda depois do esforço de empurrar a porta do prédio, o que era uma prova de que também não estava sóbria. Algo intermédio, portanto.

Deu os poucos passos que distavam até à parede onde os inquilinos tinham as suas caixas de correio. Continuava a dizer M. U. e B. Andersson na sua caixa, apesar de M e B não viverem lá há muito tempo. Durante meio ano, ponderara mudar a placa dos nomes, mas nunca chegara realmente a fazê-lo. Não porque pensasse que M e B alguma vez regressassem. De M nem sentia a falta, e B não sentia a falta de Ursula. Teria deixado a pequena placa de nomes permanecer ali porque a recordaria de outros tempos? Não tempos melhores, de modo algum, apenas outros, diferentes, possivelmente mais simples.

Ursula pescou o molho de chaves da mala, encontrou a pequena chave prateada da caixa do correio e abriu-a. Vazia à excepção de um jornal local, da ementa de um restaurante da esquina e de um folheto de cores alegres, de uma imobiliária que lhe prometia o melhor preço pelo seu apartamento, se decidisse deixá-los venderem-no.

Nada para Ursula, pessoalmente.

Quando fora a última vez que alguém lhe mandara notícias, ponderou. Para além de contas, qual fora a última coisa a chegar por correio, endereçada a ela? Apenas a ela. Devia ter sido o convite para o casamento de Billy e My.

E quando fora isso?

Há vários meses.

Para ser realista, não havia muitas pessoas que escrevessem cartas ou enviassem postais nestes tempos, mas a sua caixa de correio electrónico no computador estava praticamente tão vazia de e-mails pessoais e notícias como a sua caixa de correio física. Tudo o que recebia era trabalho, publicidade ou lembretes do Facebook de que tinha mensagens por ler ou de que perdera acontecimentos. Ursula criara uma conta no Facebook alguns anos antes, pensando que seria uma boa maneira de manter algum contacto com antigos colegas de escola ou de trabalho. Contudo, cansara-se. Não tinha ideias para actualizações de perfil e fartara-se das vidas aparentemente perfeitas dos outros, com fins-de-semana em spas, sextas-feiras com marisco e vinho branco, recordes pessoais no ginásio, pores-do-sol e bolos imaculados para festas de Verão.

O melhor era admitir. Estava sozinha. Sempre estivera sozinha, mesmo quando vivia com Micke e Bella. O que, na verdade, não a incomodava. Era quem ela era, talvez até quem escolhera ser.

Mas a noite era uma criança.

Era Verão. Estava de folga.

Porque haveria de subir e ficar sentada num apartamento vazio?

Principalmente visto que, na verdade, havia alternativa.

Deixou ficar tudo na caixa de correio, fechou-a bruscamente, trancou-a e voltou para trás. Talvez a alternativa não fosse o melhor para ela, pensou quando saiu para o passeio e o calor embateu contra o seu corpo.

Porém, estava entre a embriaguez e a bebedeira.

Tinha o direito de tomar más decisões.


DEPOIS DE AMANHÃ faria três semanas.

Três semanas desde que conduzira o carro de Jonathan para dentro de água, na baía de Riddarfjärden, partira três costelas e o braço esquerdo em dois sítios diferentes.

Torkel fora vê-lo ao hospital, enquanto esperava que alguém lhe engessasse o braço. Agradecera-lhe, mas, ao mesmo tempo, mostrara-se ligeiramente zangado com ele.

Tinham recebido elogios de todo o lado pela sua intervenção, mas era possível que Sebastian não tivesse pensado minimamente nas consequências? Sim, impedira uma catástrofe, mas o que teria acontecido se a bomba tivesse explodido na rua Vasagatan? Às portas da Estação Central?

Sebastian não compreendera o motivo pelo qual estavam a falar de coisas que, eventualmente, poderiam ter acontecido quando, na verdade, não tinham. Era perfeitamente improvável que se visse na mesma situação outra vez e, por isso, não precisava de retirar qualquer lição do que acontecera.

Não tinham falado de nada que tivesse a ver com um possível regresso de Sebastian à equipa da Riksmord.

Sebastian não perguntara.

Torkel não levantara o assunto.

Quando uma enfermeira chegara para o levar ao sítio onde lhe poriam o gesso, Torkel dissera apenas «adeus» e deixara-o.

Depois dessa única visita, mais nada.

Sebastian tivera esperança de que Vanja aparecesse. Da última vez que ficara gravemente ferido em trabalho, ela fora visitá-lo. Dessa vez, Sebastian apenas se oferecera para tomar o lugar de Vanja.

Como refém.

Refém de Edward Hinde.

Edward não aceitara a troca, e os dois quase tinham morrido.

Desta vez, tomara realmente o lugar dela, conseguira mantê-la totalmente longe do perigo, mas, desta vez, Vanja não aparecera.

Nem no hospital, nem em sua casa.

Não o contactara.

Sebastian estava com uma estranha sensação de déjà-vu. Sair de um hospital e aperceber-se de que perdera a filha. Obrigou-se a aceitar que Vanja realmente não queria ter nada a ver com ele.

Magoava-o.

Mais do que as costelas e o braço partidos.

Em situações normais, sabia o que fazer para controlar os sentimentos de dor, luto, inquietação, depressão. A cura era a mesma para todos os estados de espírito.

Mulheres e sexo.

Agora mal conseguia inspirar profundamente, sem gemer de dores. Sexo estava fora de questão. Claro que broches e masturbação eram uma opção, mas não tinha forças para jogar o jogo e apresentar essas exigências no fim da sedução. A probabilidade de insucesso era grande.

Por isso, manteve-se em casa. Estava a ficar louco.

Deu umas voltas inquietas pelo apartamento. Presumiu que devia comer qualquer coisa. Teria sequer almoçado? Parecia-lhe que não. Mas, por outro lado, também não tinha fome. A campainha da porta. Sebastian deteve-se. Começara a sentir um certo desconforto de cada vez que alguém tocava. Mas não o suficiente para não ir abrir. E continuava sem olhar pela vigia da porta.

Teve esperança, como sempre, de que fosse Vanja.

Era Ursula.

– Olá.

Ursula conseguiu a proeza de enrolar ligeiramente a sua única e breve palavra.

– Estiveste a beber?

– Fomos sair e bebemos uns copos de vinho.

– Fomos quem?

– Os colegas.

– A Vanja?

– E o Torkel e o Billy.

Sebastian não fazia parte da equipa há três semanas, não esperava ser convidado para copos depois do trabalho ou saídas à noite, mas, ainda assim, e até para surpresa sua, sentiu um certo desapontamento por ter sido excluído.

– Entra – disse para Ursula e deu um passo para o lado.

Era só impressão sua ou Ursula hesitara ligeiramente, antes de entrar no átrio? Fosse como fosse, Sebastian não tencionava recordá-la do que acontecera da última vez que estivera em sua casa.

– Queres café? Ou comer alguma coisa?

– Sim, café, obrigada.

Ursula estava sentada numa das cadeiras, à mesa da cozinha. Sebastian estava a tratar do filtro para a máquina e a tirar o café moído da embalagem, que prendera entre o seu braço engessado apoiado na tala e a barriga.

– Precisas de ajuda? – perguntou-lhe Ursula.

– Não, eu consigo. Obrigado.

Ursula inclinou-se para trás na cadeira. Sentiu que o álcool a tornava encantadoramente descontraída. Recordou-se da última vez que ali estivera.

Tinham jantado.

Fora agradável.

Torkel ligara-lhe, ligeiramente embriagado, e dissera que a amava. Isso não aconteceria esta noite. Mais tarde, tinham bebido café na sala de estar. Estivera mais do que subentendido entre os dois que iriam acabar na cama. O que também não aconteceria esta noite.

De seguida, Ursula fora buscar leite, alguém tocara à porta...

Não queria pensar naquilo.

– Como estás? – perguntou, em vez disso, quando viu que Sebastian estava a contrair-se de dores, quando foi colocar o pacote de café novamente no armário.

– Melhor.

– Mas ainda tens dores?

– Sim.

– E é por isso que pareces triste?

Viu Sebastian ficar tenso, por momentos. Claramente surpreendido pela rapidez com que o tema passara da conversa de circunstância para o plano pessoal.

– Pareço? – perguntou, ligeiramente cauteloso, deixando Ursula com a impressão de que estava a fazer questão de se manter de costas viradas para ela.

– É a Vanja? – continuou, por algum motivo decidida a não o deixar escapar assim tão facilmente. Não ficou muito surpreendida quando não obteve resposta.

– O que fizeste para ela ter ficado tão furiosa?

Sebastian virou-se e olhou para ela. Curiosidade sincera nos olhos algo embaciados. Nenhum sinal de satisfação maliciosa. Nenhum julgamento. Talvez até uma certa compaixão.

Sebastian reflectiu por alguns segundos.

Ursula estava ali. Era a única que o fora visitar. Certamente embriagada e solitária, mas ainda assim. Tinham tido algo juntos. Então, há muito tempo, quando tivera a certeza de que ela realmente o amara, antes de ir para a cama com a irmã dela, mas também agora, recentemente. Antes de Ellinor lhe dar o tiro. E agora ali estava ela, novamente.

No seu apartamento. Na sua cozinha. Na sua casa.

Alguém que o procurara voluntariamente.

Alguém que realmente o perdoara.

Ursula merecia a verdade.

– Fui para a cama com a mãe dela – disse, finalmente.

– Ela detesta a mãe.

– Eu sei.

Fez-se silêncio na cozinha. A única coisa que se ouvia era o teimoso gorgolejar da máquina de café, que indicava que estava na altura de a descalcificar.

– Não consegues mesmo evitar estragar as coisas para ti próprio, pois não?

Não era uma acusação, era mais uma constatação triste. Compaixão. O que deveria dizer? O que poderia dizer? Não era possível argumentar contra aquilo. Ursula tinha razão. De todas as vezes que alguma coisa corria relativamente bem, Sebastian tinha de estragar tudo.

Antes de conhecer Lily, fora movido por uma sede.

Uma sensação de que a relva era constantemente mais verde noutro sítio.

Uma ideia imatura de que talvez estivesse a perder algo melhor, se se contentasse com o que tinha.

Uma incapacidade de escolher, um desejo de ter tanto quanto possível. De ter tudo. O tempo inteiro.

Depois do tsunami de 2004, era outra coisa.

Ursula estava à espera de uma resposta, uma reacção, qualquer coisa.

O que deveria dizer? O que poderia dizer?

Como já decidira, ela era merecedora da verdade.

– Acho que não mereço – disse, baixinho.

– Não mereces o quê?

– Ser feliz.

O silêncio na cozinha era quase palpável. Sebastian olhou para Ursula. Estava praticamente a esgotar todas as forças que tinha. À espera de uma reacção. Fosse qual fosse. Ursula levantou-se, sem dizer nada, e aproximou-se dele. Quanto mais perto chegava, mais difícil era para ele olhar para ela. Parou à sua frente. Perto. Sebastian olhou para o chão. Sem dizer uma palavra, afastou a tala para o lado e encostou-se a ele. Abraçou-o com cuidado. Encostou o rosto ao seu peito. Sebastian sentiu o calor do seu corpo, o cheiro do seu champô e do desodorizante, um leve cheiro a álcool também. Colocou o seu braço saudável à volta da cintura dela. Deixou-a abraçá-lo. Aceitou o gesto de consolação, ao mesmo tempo que se tentou convencer de que era por ela lhe estar a apertar as costelas feridas que estava a chorar.

O sol da manhã queimava-lhe os olhos.

Com sede e uma vontade urgente de ir à casa de banho. Virou a cabeça para evitar o sol forte e então sentiu as dores de cabeça. Ficara bêbedo ontem.

Realmente bêbedo.

Não se conseguia recordar da última vez que ficara tão alcoolizado. Também não se recordava de tudo da noite anterior. Falhas de memória. Quando Ursula apanhara um táxi à porta do Moon Cake, ligara a alguns velhos amigos. Tinha uma ligeira memória de se terem encontrado primeiro algures, na zona de Söder, para beber umas cervejas, seguido para o bar Björns Trädgård para mais algumas e, de lá, terem apanhado um autocarro para o Gärdet, para combinar as cervejas com futebol.

O último metropolitano de regresso ao centro.

Uma mulher a gritar.

Vermelho.

Abriu os olhos. O machado de escalada e a corda na parede. Pois era. Não tinha ido para casa. Fora para casa de Jennifer. Ligara-lhe. Acordara-a. Já perto das duas da manhã.

Sentira-se quase como se fosse a última noite com o grupo.

Vanja ia deixá-los. Não permanentemente, mas ainda assim. Tinham concluído a investigação. O trabalho estava feito. Amanhã iria para Marstrand, onde ficaria num pequeno quarto, com uma única cama pequena, juntamente com My, numa casa que tinham alugado em conjunto com duas amigas de My e os respectivos namorados.

Durante uma semana.

Uma semana em que não poderia encontrar-se com Jennifer.

Billy compreendera que o arranjo que conhecera durante o último mês não resultaria durante muito mais tempo. Era obrigado a fazer alguma coisa. Acabar com uma das situações. My ou Jennifer. Contudo, também não fora nada em que quisera pensar na noite anterior. Mais uma razão para beber algumas cervejas.

Jennifer rira-se quando ouvira quão bêbedo Billy estava. Mas claro que podia passar lá por casa. Bem, disso lembrava-se. Apanhara um táxi até lá. Adormecera no carro. O condutor acordara-o.

Ergueu-se e ficou sentado.

O efeito foi ficar com menos sede, mas com mais vontade de ir à casa de banho.

Bastantes mais dores de cabeça.

Não se recordava exactamente de como acabara no sofá. Provavelmente cheirava demasiado mal ou ressonara excessivamente. Passou a língua pelas gengivas. Pelo menos não lhe parecia que tivesse vomitado. Também não lhe parecia que tivesse utilizado uma escova de dentes.

Vermelho.

Levantou-se do sofá. Arrastou-se até à casa de banho. Que horas seriam? Sentia-se como se apenas tivesse dormido duas horas. Mas tinha de ser mais tarde. O Sol já estava bastante alto no céu. Percebeu que ainda estava bêbedo quando estava de pé, a urinar.

Tinha de sair dali.

Nem sequer tinha feito a mala para as férias. O comboio partia às onze e vinte e dois. Mas não podia ser assim tão tarde, se não Jennifer tê-lo-ia acordado.

Puxou o autoclismo e abriu a torneira da água fria. A cabeça protestou contra a diferença de altura e a inclinação quando se baixou para beber. Por último, encheu as duas mãos com água e lavou a cara algumas vezes. Então endireitou-se cuidadosamente e enfrentou, pela primeira vez, o seu reflexo. Que desastre. Piscou os olhos algumas vezes e tentou esticar a pele. Parecer mais desperto. Alerta. Não estava a correr muito bem. Inclinou-se para a frente e passou um dedo pela bochecha. Era como mexer em plasticina. A pele parecia que ficava presa na posição repuxada.

Vermelho.

Billy congelou.

De súbito totalmente sóbrio.

A adrenalina e tudo o resto fizeram-se sentir num segundo.

Vermelho era a palavra de segurança deles.

Não se recordava muito bem de que tivessem ido para a... mas sim, tinham ido.

Ele estava bêbedo e excitado e merda!!

Correu da casa de banho para o quarto. Deteve-se imediatamente à porta. Jennifer estava nua, deitada na cama. As mãos por cima da cabeça, ainda presas à cabeceira pelas algemas. As pernas afastadas, presas pelas finas bandas de cabedal que costumavam utilizar. A cabeça virada para o outro lado. Billy respirava tão descontroladamente que até tremia e não conseguia ver se o peito de Jennifer se mexia. Mas tinha de se mexer! Talvez só tivesse desmaiado. Alguma coisa com a circulação de sangue? Os braços deviam doer-lhe desalmadamente, talvez até tivesse uma lesão muscular, mas...

Correu até à cama.

– Jenn...

Pensara abanar-lhe levemente o ombro, mas deteve-se.

De repente, tudo à sua volta desapareceu.

O quarto, a cama, o chão, tudo.

Todos os sons. Todas as cores. Não via nada.

Tirando uma única coisa.

As marcas roxas-escuras à volta do pescoço de Jennifer.

 

 

                                                   Michael Hjort e Hans Rosenfeldt         

 

 

 

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