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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CAVALEIRO DA ÁGUIA / Fernando Campos
O CAVALEIRO DA ÁGUIA / Fernando Campos

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Em nome de Deus amém. Senhor que tolhes os pecados do mundo, tolhe a mim os meus e livra-me de todo o mal. Ó altíssimo rei, guarda-me dos perigos desta vida e do poderio de Satanás. Eu te rogo me defendas de cair na fornicação e me livre tua mansidão do ódio e da malquerença, desça sobre mim teu Santo Espírito e alumie a minha escrita. Era de mil cento e setenta e sete. Este é o livro de todos os desvarios, encontros e recontros, lutas de corpo e alma, derrotas e vitórias, que coube viver neste vale de lágrimas ao assinalado varão Gonçalo Mendes, desde que saiu das trevas do ventre da mãe, Leodegunda Soares, dita a Tainha - era quarta-feira e chovia o sexto dia das Calendas de abril do ano de mil e oitenta e três -, até agora que, com a notícia negra da sua morte em combate perto de Beja, no sítio que ora dizem Cabeços de El-Rei, junto a Ourique, na idade de noventa e quatro anos, nos chegam os seus ossos. Três dias e três noites jazeu-lhe o corpo sem vida no campo de batalha, exposto à fome dos abutres, dos lobos e dos ursos, dos cães selvagens. Oh, que horrores me estão pintando os olhos da imaginação! A espada inútil caída ao lado, inerme aquele corpo ainda quente, pasto das feras, dilacerados os músculos possantes, comida a ternura dos olhos... Descarnado, pelas armas lhe reconheceu a ossada um jovem combatente chamado Gualdim Pais, que Afonso Henriques havia acabado de armar cavaleiro.

Recolheram-na piedosamente os companheiros. Se a tua carne, incansável lidador, não pode esperar debaixo da terra pela ressurreição no dia do Juízo Final, já a alma certo te ascendeu à luz perpétua do Paraíso a descansar das lides terrenas. Requiem aeternam dona ei, Domine.

Eu, Fernando, cónego da colegiada de Leça do Bailio, companheiro do ilustre varão, como padre combatente que com ele segui em suas últimas jornadas para prestar assistência religiosa aos soldados, o escrevi, solicitado pelos herdeiros de sua casa, para que as lembranças desses tempos convulsos aqui figurem com toda a fidelidade e competente desenvolvimento, ut sit omnibus monumento. Muitas vezes o meu coração pulsou de júbilo, outras o sal das lágrimas me cavou mais fundo as rugas da velhice. Deus me perdoe, que a uma parte estremeci de fúria guerreira ante o inimigo, brandindo também eu o meu montante, a outra se me enterneceu o coração com maciezas de sentimentos. É o que me está acontecendo neste momento, ao ver chegar a silenciosa procissão de brandões dos soldados que ladeiam a carroça com a tumba amantada de preto. Assomam à porta do mosteiro os irmãos hospitalários em seus hábitos brancos, no peito a cruz vermelha de São João do Templo, as espadas nuas ao alto em homenagem. De dentro vem o coro dos agostinhos salmodiando o cantochão dos defuntos.

Acabadas as solenes exéquias, desde logo me entrego ao trabalho com afinco redobrado, já que tenho vindo, no decorrer dos anos, a reunir cabedal para um cronicão sobre aqueles feitos. A matéria, porém, tem-me resistido sem que eu atine em domá-la. Porque logo aquela peça de xadrez, que é Gonçalo Mendes, se vê diluída como todos os outros seres humanos, sejam heróis ou gente anónima, na pulverização do vasto mosaico do que se passou na Hispânia e no mundo. Esbatido embora no seu estrito campo de acção, não deixarei de iluminar-lhe a figura estupenda. Esta a minha luta de cronista.

 

 

 

 

- Porquê, mestre? - pergunta-me o ajudante, que a meu lado me prepara o papel, apara as penas, copia as laudas que vou escrevendo e espevita o morrão da candeia quando o céu embrulha ou cai a noite.

- Frente a frente, Randulfo, dois valerosos campos...

Dois? Mas não ides contar de Gonçalo?

Pouso a pena de meu vagar no turbilhão das ideias:

- A um braço, outro braço. Percebes?

- Não.

Criaturo singelo este Randulfo. Corcunda e manco, nem serviu para a guerra nem para o altar. Estudioso, não lhe ajuda a prontidão da memória o tardo entendimento, mas uma alma grande, constrangida, retorcida na carcaça do corpo, que, pelo trato dos livros e a conversação dos frades, chispa de súbito em sábios pensamentos de nos fazer espantar. Vinte e três anos encarquilhados.

- Ouve. A palavra inimigo é termo ambíguo.

- É?

- E herói. E valor. E ideia. E fé...

- Vade retro, Satana, que blasfemais!

- Não te assustes.

- Pondes em dúvida a fé? Vós?

- Não há herói que lute contra moinhos de vento nem exército que invista rebanho de carneiros e ovelhas.

- Era o que faltava!

- A guerra, Randulfo, tem espelho. Uma banda reflecte-se na outra banda.

- Não é bem assim, mestre. Seria lindo o nosso Gonçalo aparecer no outro lado, de turbão na cabeça e vestido de jilaba... A cruz no pendão dos soldados cristãos não se transforma em crescente, nem vice-versa.

- Tu não vês o que há de comum entre cruz e crescente?

- De comum? Credo!

- Sobe ao conceito abstracto, Randulfo.

- Continuo a não entender, mestre.

-Ambos são símbolos, isto é, representam uma ideia, uma fé.

- Pois se é uma guerra santa...

- De que lado?

- De que lado? Não pregou o papa Urbano a cruzada? Nós, os cristãos contra os infiéis.

- Eles, os maometanos, contra nós, os infiéis.

- O mestre está a baralhar-me.

- Não. Estou a tentar tornar as coisas claras. O mester de cronista assim o exige. Ora repara. É como as margens dos rios... do Ebro, do Guadalquivir, do Guadiana, do Tejo, do Mondego, do Douro, do Minho... Do lado de cá, o Gonçalo Mendes, valente peito, vontade indómita, forte braço... Do outro lado...

- Que importa, mestre? Um perro qualquer, que merece a morte.

- ...um al-Mansúr, um Ben Iúsuf, um Ibn Ucaxa, braço forte, vontade indómita, valente peito... A um herói corresponde outro herói. O valor do braço de Gonçalo é tanto maior quanto o for o braço de al-Mansur.

- O de Gonçalo é mais valente.

- Bem se tem visto. A dança em que têm andado tantas terras, tantas cidades. Fernando, primeiro deste nome, tomou Coimbra, al-Mansur retomou-a, Beja conquistada pelos Mouros, logo reconquistada pelos Cristãos, logo tornada a al-Mansúr, logo retornada a Fernando... O conde Raimundo cobra Santarém, Sintra, Lisboa, os Mouros recobram Lisboa, Sintra, Santarém...

- Alfonso sexto ocupa-as.

- E os Mouros as reocupam.

- E o conde Henrique mais o nosso Gonçalo voltam a filhá-las.

- E os Mouros as refilham.

- E o filho do conde e de Tareja, esse rapagão que anda aí de sangue na guelra, de novo as há-de arrebatar.

- Pois é, Randulfo, pois é. Nunca jogaste com os teus companheiros o jogo da corda?

- Cede sempre o mais fraco.

- Exactamente. Mas aqui qual é o mais fraco?

- Hão-de ser eles.

-Assim o desejo e rogo a Deus nos ajude. Mas Deus, Randulfo, é o único que se não espelha. É o mesmo e um, sem imagem nem duplo, em todo o lado. Para nós e para eles. Dêem-lhe o nome que lhe derem.

O pobre Randulfo, atormentado com estes pensamentos, ergueu-se de seu escabelo, foi até à janela, de onde ficou alguns instantes calado a olhar as águas do Leça a correrem, depois virou-se para mim e disse :

- Deus há-de acudir-nos. A justiça está connosco. Tanta devastação e violência, tanta viuvez, tanta orfandade, tanta lágrima e dor... Eles não têm perdão. Se eu vir a minha terra assaltada, a minha casa entrada, espancado e matado o meu pai, violadas minha mãe e minhas irmãs, degolados meus irmãos, ah, mestre, que tenho direito à raiva e à vingança, direito à faida e a procurar por todos os meios defender-me e aos meus e à minha terra.

- Todos temos esse direito, Randulfo, é verdade. E grandes são as calamidades destes tempos. Mas não fujamos, peço-te, da questão que eu estava a pôr à minha consciência de cronista mais do que à tua sede de justiça. No outro lado, Randulfo, no outro lado, também nós arrasámos e incendiámos cidades e violámos mães e filhas, degolámos mancebos, provocámos lágrimas e dor e raiva e desejo de vingança e de justiça, direito à faida e a procurar por todos os meios defender-se cada um e aos seus e à sua terra. Também eles invocaram Deus. De espelho, Randulfo, a guerra volve-se em eco: "matança, violação, orfandade, viuvez" gritámos do lado de cá do vale e logo do outro lado...

- ... "matança... anca... anca... violação... ão... ão... ão... orfandade... ade... ade... ade... viuvez... ez... ez... ez..."

- Perante tamanha violência, dá-se então o esvaziamento da ideia de herói. Não falaste há pouco do mais fraco, no jogo da corda? Do outro lado fica, impante, peito armado, o mais forte, o senhor impiedoso. Vae victis!

- Foram eles, os Mouros, que nos invadiram as nossas terras, vieram lá das Ásias e das Áfricas, passaram o estreito do mar e em oitenta anos estenderam o seu império desde as bocas do Indo às ribas do Tejo, do Douro, do Lima, do Ebro, galgam os Pirenéus e chegam quase a meio da França. Só então começou a reconquista e há alguns séculos têm os Sarracenos vindo a ser empurrados para de onde vieram.

- E antes deles outros tantos séculos, não te lembras? Estavam cá os Iberos vieram os Celtas, fundiram-se em Celtiberos... chegaram Fenícios, Gregos, Cartagineses, Romanos...

- ... e depois Vândalos, Alanos, Suevos, Visigodos... Todos queriam possuir estas terras maravilhosas, fugir de neves e desertos, procurar vida mais abundante e aprazível.

- A posse da terra os trouxe e, perante estes factos, cabe então fazer uma pergunta, Randulfo: de quem é a terra?

- Do mais forte.

- Ora enfim chegas ao ponto. O herói esbate-se para dar lugar ao mais forte, ao mais poderoso...

- ... e daí ao prepotente, ao tirano vai um passo...

- Aí tens.

- Então de que lado está a razão?

- Cada um pensa que do seu lado... Compreendes agora aonde quero chegar?

- Julgo que sim.

- O cronista que pretenda, como eu, ser imparcial, ver-se-á em dificuldade para fazer o seu relato...

- ... e poderá não agradar nem a Gregos nem a Troianos. Já pensou o mestre que do outro lado pode estar outro cronista...

- Está decerto.

- .. .como o mestre?

- Um Ibn Cácime, de Silves, um Ibn Bassam al-Shantarin, de Santarém, um Ibn Muzaym também de Silves, um Ibn Iúsuf... Se quiser ser imparcial deparará com os mesmos obstáculos que eu.

- Que fazer então? Ides invocar as Musas, mestre, os deuses?

- No decurso da crónica esbater-se deve a voz do cronista não a sinta o leitor. Mas como exprimir o aperto do peito, a revolta da mente, o vómito das vísceras, o estremecer da mão ao pegar da pena para relatar a crueldade extrema? Que invocação fazer a harmonizar as palavras à fereza dos actos? A que musa? A que terríveis divindades? Às Erínias, que nasceram de gotas de sangue?...

- Os deuses velhos já morreram.

- Ao Senhor dos Exércitos, da Lei Antiga?... Ao poderoso Allâh?... Não. Cristãos contra cristãos não é cristianismo; árabes contra árabes não é a guerra santa que o Profeta prescreve...

- Então?

Incendeu-se-me o estro, como se estivesse possesso e, em fingida pose teatral, a pretender infundir pavor, clamei braços erguidos:

- A mim, a mim, Espíritos das Trevas, todas as forças do mal! Tremam os céus e a terra e os corações, chovam as nuvens sangue, soprem os ventos o terror da mortandade, da destruição, da violação, da escravatura... Matarei meus irmãos, de suas cabeças arremessarei ao chão, ao pó, as coroas reais e ficarei eu só senhor do mundo onde imporei a santa lei de Cristo, a santa lei de Muhammad, a santa lei de...

- Tende mão, mestre. Quereis que acredite em vós? Isso é fabula ficta...

Desarmei a tragédia e disse calmamente:

- ... mas anúncio de horrores tais propósitos...

- Tornando atrás, mestre... Como vai contar a história de Gonçalo Mendes?

- Talvez o embaraço se resolva se eu entrançar a de Fernando Magno, a de seu filho Alfonso, a dos condes Raimundo e Henrique, a de Gonçalo e seus irmãos e de tantos outros atrás no tempo, com a de al-Mansúr, a de Iúsuf, a de al-Mutâdid, a de al-Mutâmid e seus filhos e de tantos outros... Tanto mais que nem sempre Mouros e Cristãos foram inimigos.

- Estranhos tempos estes!...

- Estranhos. O Tejo parece dividir a meio a península. A norte cristãos, reis, condes, barões, guerreiam-se uns aos outros, movidos da ambição; a sul, depois da queda do califado de Córdova, muçulmanos guerreiam muçulmanos, da ambição movidos...

- E não raro os mouros vêm pedir ajuda e aliança aos senhores cristãos.

- E ex contrario. Verdade é que actualmente já a violência não é tão grande. De um e outro lado compreendeu-se que a matança geral dificulta o povoamento das terras, elimina os braços necessários ao trabalho e retira a possibilidade de reter prisioneiros como moeda de troca para resgate de cativos. De um e outro lado começam a ser protegidos cristãos ou mouros, que se deixam ficar em suas terras mesmo quando conquistadas pelo inimigo. Daí às alianças entre uns e outros...

- ... e aos casamentos... e aos adultérios... e às mancebias... Ter escravazinha moura é um consolo, não é? O mestre o diga. A vossa é bem azadinha...

- Não sejas tonto.

- Sou, sou. Eu também gosto das moças... E elas de mim, não é para me gabar. Quando passo na rua, elas cochicham e riem entre si e olham-me agradadas com olhos de carneiro mal morto e dizem-me coisas...

- Se tu és bonitão...

Randulfo amuou, que disse de mau cariz:

- Eu sei que não sou bonito, mas elas gostam de mim assim...

Desvio a conversa, para o não magoar:

- Sabias que o nosso Gonçalo trazia sangue mouro nas veias?

- Como pode ser isso?

- Um livro, Randulfo, é uma varanda de onde se espraia o olhar sobre o mundo, é como um janelo, um buraco de fechadura. Pode espreitar-se a vida passada, a presente. Ora espreita aqui por esta fresta.

- Estou a espreitar, mestre. Que rodopio! Até fico ourado.

- Estás a recuar na voragem do tempo mais de cento e cinquenta anos.

- Parece que estou a ver nuvens... nuvens de poeira... e ouço estropeada de cavalos...

 

                     Rei Ramiro

Que tropel vem lá entre nuvens de pó? Quem cavalga tão célere por vales, montanhas? É rei Dom Ramiro com seus cavaleiros, na frente o alferes, ao vento o pendão. Sufocou há anos com extremo rigor revolta de irmão, insurreição de primos. Em campo os derrota, os lança por terra, cruel lhes manda os olhos sacar e os corpos exangues em convento prender. A Salvaterra vem ora chegando de vencer o califa Abderramão, batalha em Simancas, recontro de Alhândega. Já rompe a azinhaga de a par do castelo, que nas águas do Minho se mira.

"Sus, sus, meu cavalo, meu loiro alazão! Corre azinha, corre, que eu te darei das ricas favas de meu bom faval. Em meio de suas formosas donzelas minha amada Gaia me desfia dias, horas insofridas."

Já mete pela porta da barbacã, na praça de armas descavalga já, e lança a mirada acima à alcáçova, ao balcão vazio, já sobe apressado a seus paços reais, onde cor da neve o aguardam os braços da esposa. Desolado estaca surpreso à entrada, a olhar incrédulo a deserta câmara. Nem mulher nem moças nem arcaz das roupas, escrínio das jóias...

"Que vem a ser isto? Adonde foi Gaia?"

Um velho criado então aparece, lágrimas lhe rolam pelo engelho das faces, pela trémula voz:

"Senhor, vossa Gaia, a vossa mulher, rei mouro Abencadão a filhou, a levou pra seu castelo roqueiro da vila de Portucale nas ribas do Douro."

"Maldição! Vingança!" clamou rei Ramiro. "Chamai meu filho Ordonho, os meus fiéis cavaleiros."

Armada fretou e muniu el-rei e, com seu filho, seus fiéis cavaleiros, as ondas do mar na noite arrostou. Uivavam os ventos, mas não se assustou, mais lhe uivava o grito de seu coração. A São João de Afurada em breve aportou e pela calada da antemanhã, no silêncio cúmplice da tácita Lua, deslizam as naves entre margens de espesso arvoredo de louros e pinhos, carvalhos e faias.

"De panos verdes, de verde disfarce, cobride estes barcos, as velas, os mastros, de guisa se esbatam no verde do bosque" assim manda o rei, logo obedecido. "E mais escutai: de imundo veleto, de sujo surrão de mendigo romeiro envolverei meu corpo, manchas de lazarado na cara, nas mãos, debaixo das roupas mui bem escondidos meu fino punhal, o alfange afiado. Do ombro pendente levarei meu corno e vós, fora poucos que fiquem nas naves, jazereis vigilantes pela ribeira entre as árvores. E, quando nos ecos meu olifante ouvirdes, acudide prestes que a hora é chegada de minha vingança."

Assim falou Ramiro, assim se cumpriu, já no céu pintava a rosada aurora.

Das penhas do teso do alto castelo a rocha gemia a linfa da fonte. Aí foi sentar-se o mendigo rei, à espera viesse por água uma escrava. Longe a montear terras de Alafão descuidoso andava o rei mouro com sua matilha de cães filhadores, caçadores, monteiros e homens de lança.

Que moça formosa é esta que aí vem? É donzela Ortiga, que serve no paço. Pela manhãzinha, mal ela se erguia, uma ordem lhe dava a rainha Gaia, à fonte lhe fosse por água pràs mãos. Pelo verde prado caminha de leve, sandálias de esparto cor de laranjado, a haste do corpo, a anca lhe ondula, sobraçado traz um gomil de prata. Da veste que se abre no peito, nos lados, entrevê-se o seio, a perna de leite. Véu de tule branco o rosto lhe esconde, negros são os olhos que acima lhe brilham, tranças de azeviche descansam nos ombros, estreita-lhe a cintura faixa colorida. E ao ver Ramiro ali assentado, em roupas de lázaro romeiro mendigo, a linda da moça não no conheceu. Era história antiga, que em batalha feroz Ramiro vencera a Abencadão e a formosa Ortiga, irmã do rei mouro, ficara cativa. Mas também cativo Ramiro quedara da formosura dela e nos reais paços tornaram-se amantes. A rainha Gaia jurava vingança, rei Abencadão vingança jurava...

Já Ortiga enchia de água o gomil, disse-lhe Ramiro: "Moça, tem pena de um pobre mendigo. Não manda o Profeta que pratiques o bem?"

"Não vais tu, romeiro, rezar a Santiago? O Profeta ordena guerra aos infiéis."

"Não fez a teu rei tréguas com Ramiro? Tu és tão formosa, mais formosa ficas, se fizeres o bem a um pobre lázaro romeiro mendigo."

"Que queres tu, romeiro?" disse envaidecida. "Dá-me de beber."

Tinha rei Ramiro rico anel de ouro com um camafeu tal

qual outro que possuía a rainha Gaia. Assim o haviam partido

por meio como sinal de recíproco amor. Sem ser percebido,

meteu-o na boca. Chegava-lhe a moura o gomil aos beiços,

fingiu o romeiro saciar a sede e o anel larga pra dentro da taça.

Foi-se Ortiga embora, sorriem-lhe os lábios, cintilam os

olhos. A voz do mendigo súbito soara-lhe acentos do amante.

"E ele, é Ramiro!" o coração segredava-lhe.

"Filhou-me a esposa" Ramiro pensava, "vingarei minha honra. Resgatou a irmã, vingarei a paixão"

Chega Ortiga ao paço aonde sua ama, já água lhe verte do gomil de prata. Nas mãos de alabastro o anel lhe caía e logo a rainha o reconheceu.

"Quem achaste na fonte?" lhe pergunta Gaia.

"Ninguém aí estava" responde a donzela.

"Tu mentes, não negues, confessa a verdade, que te farei por isso muito bem e mercê".

"Um mouro doente lazarado, aí estava, da água pediu, dei-lhe de beber".

"Vai por ele à fonte e, se aí o achares, traze-mo contigo".

Correu a formosa à fonte e achou rei Ramiro, que disse:

"Aqui vens, donzela outra vez à fonte, sem gomil de prata? Perdeste arrecada ou brinco ou anel? O coração perdeste, que vens ofegante?"

"A rainha manda que chegues a ela, que quer conhecer-te" e virava costas, muito afogueada, e caminhava prestes.

Levantou-se Ramiro, a moça seguiu, já subia à crasta e no paço entrava aonde a rainha.

"Rei Ramiro!" Gaia o reconhece. "Que te trouxe aqui?"

"Teu amor me trouxe" responde-lhe o rei a boca em sorrisos.

"Desgraça te trouxe, que vens a morrer".

"Pequena maravilha se morrer de amor".

Raivosa a rainha virou-se prà moura:

"Chama os guardas, Ortiga, e em prisão mete este homem e não coma nem beba".

Prenderam Ramiro em câmara escura, as portas fechadas a sete ferrolhos. Mas a donzelinha, amorosa de seu bem-amado, o pensou e cuidou sem Gaia saber.

 

Que trompas são estas, latidos de cães? De correr monte chega rei Abencadão. De jantar lhe davam, comia e bebia e, empós, se ia prà sua rainha e em sua alcova seu prazer de ambos libavam, fruíam.

"Se aqui adregasse" lhe disse a mulher, "tu teres Dom Ramiro, que é que lhe farias?"

"O que ele a mim faria" respondeu, "matava-o".

"Ortiga, meus guardas! Trazei o mendigo".

Trouxeram o preso, el-rei lhe dizia:

"És tu rei Ramiro?"

"Eu sou" respondia.

"Perigosa jornada. A que vieste aqui?"

"Vim ver minha esposa, que à traição me filhaste. Em tréguas estávamos não me catei de ti".

"Vieste a morrer, rei Ramiro, mas, antes, responde à pergunta que quero fazer-te..."

"Diz".

"Se em tua corte me tivesses preso, que tormentos, que morte era a que me davas?"

El-rei Dom Ramiro, que estava com fome, então respondia:

"Dar-te-ia a comer um capão assado, uma boa regueifa, e depois a beber uma copa de vinho. Do castelo as portas abrir mandaria, concorressem à festa velhos e novos, toda a gente viesse presenciar-te a morte. Far-te-ia subir à torre mais alta e tanger o corno até que da boca deitasses os bofes, a alma do corpo".

"Essa mesma morte é que te quero dar".

Já Ramiro, comia seu capão assado, a boa regueifa, em cima bebia a copa de vinho. Rangiam nos gonzos as pesadas portas e por elas a turba ululante rompia. Soldados o levam à mais alta torre e ele começa de tanger seu corno, que vai ressoando pela encosta abaixo. Ouviu-o Ordonho, ouviram-no os seus.

Por entre o arvoredo sem ruído deslizam, já escalam as penhas, já entram de súbito adentro da castra. Do alto da torre descia Ramiro, medonho arrancando da espada afiada, mouro que encontrava logo o descabeça. Avança pra ele rei Abencadão, brandindo no ar o terrível alfange. Com a dextra Ramiro apara-lhe o golpe, com a sestra lhe enfia no bucho o punhal. Na praça seus homens a fio de espada tremendos passavam a chusma de mouros. E naquela manhã e pela tarde adiante até ao cair do cansaço da noite, de Portucale na vila roqueira não escapara vivalma de mouro, só ruína se via, pedra sobre pedra.

E tomou rei Ramiro a sua mulher e com ela levou as formosas donzelas, e com ricos despojos logo se embarcou. Ondinhas que vêm, ondinhas que vão, sob o céu estrelado foram navegando e ao romper do dia logo se lhe antolha angra acolhedora, foz de uma ribeira e, num vale ameno, de Gontinhães as casinhas da vila.

"Amarremos as barcas, amigos" el-rei ordenava. "Tratemos

de aqui comer e folgar".

E folgou rei Ramiro com sua mulher e, depois que folgou, deitou-se-lhe a dormir no doce regaço. Então abrolhou a rainha a chorar, dos olhos lhe desfiavam as contas das lágrimas e iam cair no rosto de el-rei, que logo espertava: "Porque te chora, Gaia, triste o coração?" "Choro o bom rei mouro, que tu me mataste". Ordonho seu filho, que andava aí na nave, ouviu a sua mãe aquela palavra e sanhoso disse:

"Pai, não mais connosco levemos o demo" Então rei Ramiro filhou uma mó que em a nave trazia, atou-a à garganta de sua mulher e, sem piedade, no mar a ancorou.

E, mal se foi e chegou a sua corte, pronto cuidou de baptizar Ortiga, pôs-lhe nome Aldara e com ela casou e nela fez filho Alboazar Ramires.

 

                                 Intermezo primeiro

- Que têm estas penas, Randulfo, que logo se escanam? Levantou-se o meu ajudante a trazer-me outras:

- Deve de ser dos patos caseiros. Experimente estas, mestre, de pato bravo. Trouxeram-nas os monteiros. E mais papel, precisa?

- Ainda tenho.

Parou a meu lado, a ver-me escrever:

- Essa história do rei Ramiro...

- Que tem a história do rei Ramiro?

- Balada muito bela, mas cruel... Só não compreendo...

- Que é que não compreendes?

- Que tem a ver o rei Ramiro com o nosso Gonçalo Mendes?

- Não te disse eu que Gonçalo tinha nas veias sangue mouro? Gonçalo é tetraneto de Ramiro e da moura Ortiga, isto é, da rainha Aldara. -Ah!

- O príncipe Alboazar Ramires casou com Helena Godins, filha de Godinho das Astúrias. Tiveram filho Trastamiro Alboazar que casou com Mêndola Gonçalves e houveram Gonçalo Trastamiro, que tomou aos Mouros as terras da Maia e casou com Mécia Rodrigues e geraram muitos filhos. O primogénito foi Mem Gonçalves da Maia que casou com Leodegunda Soares...

-... a Tainha, e foram os pais de Gonçalo...

- Aí tens.

Randulfo deitava o olhar às laudas que eu tinha na mesa.

- Curiosidade?

- Queria saber o que lá vinha.

- O irmão mais velho de Gonçalo, Soeiro Mendes, senhor da Maia, foi barão de grandes feitos. Livrou a Espanha do feudo que pagava a Roma.

- Como?

- Lidou em Roma, em desafio público, com um cavaleiro que sustentava por parte do império, dever Espanha estar sujeita aos imperadores.

- E venceu-o.

- E venceu-o. Por diante ouvirás falar dele... Gonçalo nasceu pela era de mil e oitenta e três. Deixa-o desmamar-se do seio da ama, crescer, aprender seu latim na colegiada dos frades, que não tardará muito a puberdade o leve com os mais velhos a correr montaria de javali e gamo e lhe ponha a espada na mão e o vejas a distinguir-se nas hostes de Fernando Magno na conquista de Lamego, de Viseu, de Coimbra, de Salamanca, e a ajudar o rei a submeter os emires de Saragoça e de Toledo. Logo o acharás a combater ao lado de Alfonso, filho de Fernando, a estender a fronteira cristã até ao Tejo, a fazer vassalos os reis de Badajoz e de Sevilha, a vencer o rei mouro, de Valência...

- As vossas palavras, mestre, voam com o tempo. Não dão azo a parar sequer para acalmar o respiro da corrida.

- Que é que pretendes? Quedar a ver como ruíram as velhas casas de ao pé do mosteiro, em que os cónegos reuniam o cabido, e como os pedreiros fazem erguer-se a nova cóniga? Como junto a esta cóniga há outra casa em que colhem o pão? Como também ruiu a adega e houve que a refazer mais às cubas que aí eram?... Pois passeemos um pouco, Randulfo.

- O mestre é bexigueiro.

- Verás se o sou ou se, ao contrário, não gracejo ou bexigo, como tu dizes. Vem comigo por esta azinhaga. Saiamos pela porta da Moura. Aqui tens a tenda do Martim Degolado. Passemos estas hortas, os fornos do carvão e da cal, a almuinha de Pai Domingos, caminho de Ponte da Pedra...

- Aonde me levais, mestre? É como se voássemos por cima de montes e rios...

- Caminhemos por este vale que vai dar à anta onde está a figueira merdosa e daí ao chão da valeira. Não sentes o aroma das árvores de espinho?

- Mestre, mestre! Não estou a reconhecer esta paisagem, estas figueiras, estas alfarrobeiras, estas amendoeiras em flor... Este rio não é o meu Leça... Sinto-me estonteado...

- Caminhemos, caminhemos, caminhemos de longada. Agora não podemos parar. O tempo urge. Esta é a fonte da prata, mais adiante a fonte ferrenha... O rio, perguntas? É a ribeira do Divor...

- Ai, mestre! Tenho medo. Estamos em terra de mouros. Por este andar, vamos cair-lhes nas mãos junto a Évora.

- Não. A caminho, a caminho. Por Badalhouce e Mérida desceremos a Sevilha.

 

                                   Na corte do rei poeta

Meu burrico sendeiro, meu manco zarolho, que desafiando vento e neve, me trouxeste esforçado ao alto desta portela da serra Morena, não desesperes, amigo. Logo acharemos onde descansar da longa caminhada. Depois, pelas margens do Guadalquivir, desceremos a Sevilha. Do negro desterro de Saragoça nos chamou o emir nosso amigo, mal seu pai faleceu. Agora o rei é al-Mutâmid, que nos acolherá de braços abertos. Acabar-se-ão nossas misérias e tu poderás de novo, saciado, cobrir teus ossos de tenras enxúndias e verás outra vez teu pêlo brilhar acetinado... Mas repara. Por entre esta névoa espessa e regelada, parece-me ver além um casebre arrimado àquela lapa agreste. Talvez haja aí alimento que nos aqueça as almas.

- Está frio, Ibn Ammar - disse a velha à porta da cabana, abanando brasas sob a panela que fumegava. - Senta-te e aquece-te ao lume. Vens esfomeado, poeta vagabundo. Prova deste caldo de sapos e lagartos.

Ibn Ammar apeou-se e conduziu o burro até um fardo de palha que perto havia. Sentou-se então junto da velha:

- Como sabes o meu nome?

- As sementes do vento. Vá, come. Forças para o resto da jornada. Em breve despirás esses andrajos e vestirás os ricos trajos dos vizires...

- Maravilhas me anuncias.

- Chega de misérias. Não te bastaram as da infância em Shannabús, esse lugarejo perdido, próximo de Silves, teus pais pobres a viverem da jorna no campo?

Atiçava a velha o lume, fervia o panelo de ferro e dele se exalavam fumos engulhentos atenuados por aromas de alecrim e flor de caneleira.

- Depois, tiveste mestres, em Sevilha, em Córdova, e desenvolveste os teus dons de poeta, triste jovem desconhecido, com teu balandrau de pelica, teu pequeno gorro na cabeça, à espera que algum rico senhor te atirasse as migalhas da mesa... nem sequer palha para dares de comer ao burro...

A mulher encheu um sujo tarro de cortiça:

- Bebe. Vai fazer-te bem.

Ibn Ammar apertou o nariz e bebeu de um trago, com um esgar de nojo:

- Delicioso, dona - disse atirando-lhe um olhar assassino.

- Queres mais?

- Não quero esgotar-te o conduto.

- Voltaste a Silves. Um dia fizeste em verso o elogio de um abastado mercador. Tão gabado se viu que mandou dar-te um saco de cevada... - e a velha, sem deixar de mexer o caldeirão, pôs-se a cacarejar gargalhadas gostosas...

- Muito sabes a meu respeito.

- Tudo, filho, tudo... Foste admitido na corte de Sevilha, conheceste o príncipe Muhammad, uma amizade para a vida... e para a morte...

-...até que o rei me escorraçou.

- E ainda te digo. Silves, no Gharb, espera-te. Foge de Múrcia.

Ibn Ammar levantou-se enfadado. Assobiou ao burro, que se regalava com a palha e logo veio.

- Obrigado, dona. Vou andando.

- Foge de Múrcia, Ibn Ammar. Ouve um conselho, Ibn Ammar. O poder é como o vinho ou o sumo do medronho ou a pitada da papoila branca que os caravaneiros trazem de Esmirna. Devem tomar-se com moderação. Não te deixes embriagar. Os olhos ficam toldados e já não distinguem o brilho da estrela do norte...

Ibn Ammar, batendo os calcanhares sujos na pança do burrico, acenou-lhe com a mão :

- Allâh te guarde.

- Lembra-te de mim, quando fores um grande senhor.

- Farei de ti a chefe dos meus cozinheiros.

Sentado de pernas entrelaçadas num coxim de seda lavrada, sua veste bordada, seu turbante de onde vigiava enorme rubi de fogo, al-Mutâmid fumava por gorgolejante narguilé de prata uma mistura de dormideira e pós de cantáridas e mandrágoras perfumada com essências de rosas e violetas. A seu lado, a amada Itimâd recitava mais do que cantava, ao som do alaúde morna toada de amor. Um eunuco abanava lento leque de plumas de avestruz e, a um canto, um queimador de resinas embalsamava o ar.

Tu foste embora e a escuridão da noite sobre mim tombava. Dá-me de novo beijos e abraços para que torne a raiar a alvorada.

- Ele chegou, emir - entrou o secretário a anunciar. - Vais ficar desagradado com o seu preparo maltrapilho.

- Ibn Ammar? - exclamou al-Mutâmid levantando-se. - Manda-o entrar.

Ibn Ammar à porta rojou-se por terra, os braços levantados numa saudação:

- Allâh akbâr!

Al-Mutâmid acorreu a erguê-lo e, apesar dos andrajos, abraçou comovido Ibn Ammar:

- Meu querido amigo! Em que estado me apareces! Calculava que te fosse desazado o banimento, mas nunca esperei tal degradação. Muito temos que falar, mas antes vamos cuidar de ti.

Bateu as palmas, veio o mordomo:

- Já. Tratem as escravas de o banhar, perfumar com unguentos, cuidar do cabelo, dos pés, das mãos. Apressem-se os alfaiates a vesti-lo com grave decoro, que este meu amigo do coração será o meu vali do Gharb.

Quando, horas depois, Ibn Ammar regressou, a veste de cambraia bordada, a cabeça coberta por um lenço que um cordão de seda cingia, barbicha preta luzidia, babuchas douradas, tinha à sua espera uma mesa cheia de manjares: saladas e peixes, doirados frutos de espinho, uvas e figos passos e quentes vinhos de Sevilha... al-Mutâmid consolava-se a ver o amigo saciar fome e sede de mau passadio...

- No alto da serra - dizia Ibn Ammar com a boca cheia - uma velha deu-me uma horrível mexerufada... e predisse-me o futuro.

- Que adivinhou ela?

- Para já, parece ter acertado que Silves espera por mim. É essa a tua intenção, emir?

- Sim. Serás vali do Gharb, com teu assento na nossa amada Silves. Lembras-te dos tempos felizes que lá vivemos?

- Se lembro!...

-...as escapadas, disfarçados, a Sevilha, ao Prado de Prata, ao pé do Guadalquivir, a conhecer as mulheres, os rapazinhos...

-...Até que teu pai... Ele não gostava de mim, da nossa amizade. Achava que eu era o culpado da vida dissoluta que levavas...

-...que levávamos...

- Chamou-te a Sevilha, a separar-nos e a lograr ensejo de me desterrar para Saragoça...

- Os versos que fazíamos às nossas amadas!

- Nos intervalos da guerra. Por mais que queiramos, emir, temos as mãos tintas de sangue. Fazer versos não nos redime.

- Que é a nossa vida senão lutar, matar ou morrer? Cantemos entretanto.

- Esse matar ou morrer, em campo de batalha, contra os perros dos cristãos é abençoado por Allâh. Não é desse que falo. Falo daquele em que califas, emires, vális banham as mãos no sangue de seus irmãos. A quem conquistaste Silves, emir, Santa Maria de Faro? A cristãos? Não. A muçulmanos.

- O reino abácida de Sevilha não se estenderia pelo Gharb, pelo Andaluz, se não fossem as conquistas de cidades como Córdova...

- Dos três reis de Sevilha, foi teu pai al-Mutâdid o mais inclemente. O teu avô Ibn Abbâd ajudou a derribar o califado de Córdova. A cilada que ele armou ao califa Yahyâ! E tornou-se emir independente. Morreu o califa, o exército destroçado... guerra é guerra. Mas era homem equilibrado, culto. Gostava das flores...

-...que cantou em seus versos. Gostar de flores é sinal de alma sensível.

- Teu pai, para lá de astuto, matreiro, ambicioso, era frio, cru.

- Não falemos disso.

- Quando subiste ao trono, eu sei, uma das primeiras coisas que fizeste foi ordenares a remoção das caveiras de inimigos...

- Porque teimas em lembrá-lo?

- ... com que teu pai ornava os jardins do palácio.

- Foi um grande guerreiro. Conquistou Carmona, Jerez, Arcos, Niebla...

- Bem sei: Morón, Mértola...

-...e Serpa, Ronda...

- Fez-te vali de Huelva e pôs-te à frente do exército que conquistou Silves e Faro... Bebia em excesso, em excesso entrava em orgias de concubinas. Não admitia falhas. Mandou executar teu irmão Ismail por haver tido a veleidade de querer ser rei de Córdova...

- Está bem. Está bem. Vejo que lhe não perdoas o ter-te afastado. Falemos antes do presente. Aqui estás, tornado à tua dignidade e fulgor. Partirás para Silves. Dar-te-ei escolta luzida e poderosa, cavalos de raça...

Partia Ibn Ammar para seu valiado, disse-lhe ainda al-Mutâ-mid num último abraço:

- Quando lá chegares, saúda por mim as margens do Arade, o arvoredo onde cantam rouxinóis e pintassilgos. Saúda os jardins amáveis e os pomares perfumados. Pergunta-lhes se têm tantas saudades de mim como eu deles. Saúda o palácio dos balcões que jamais poderei esquecer. Tantos valentes leões dos meus exércitos, tantas doces gazelas do meu harém. Salões, sombras e brandas penumbras, meu grato refúgio entre rotundas ancas opulentas, cinturas de vespa, túrgidos bustos... trago nas mãos, na pele do corpo, a memória de maciezas e humidades íntimas, moças cor de neve, cor de ébano... agudas brancas espadas de ponta sangrenta os seios, a trespassarem-me a alma, as negras lanças do triângulo dos seus púbis, a amável tenaz de braços e pernas. Noites e noites permanecia eu na mansa enseada das águas, enredado nas guerrilhas do amor, ondeava-lhe o corpo como os volteios do rio, como o ondular do tempo a escoar-se.

Ela deitava-me vinho na taça de oiro, o vinho dos seus olhos na taça do coração, tomava um trago e dava-me a beber da sua boca. Soavam-me as cordas do alaúde a tendões cortados por fina adaga. Pouco a pouco desnudava-se e ia revelando o lustroso do ventre... galhinho de salgueiro a desabrochar seu botão e enfim a abrir a flor em esplendor e rescendência...

- Fazes-me, também a mim, sentir saudades.

- Anos da juventude. Os mais felizes da vida. Vai, amigo. Leva este recado.

A rainha Itimâd ar-Rumaykiya, a grande senhora, as-Sayydat-I-Kubra, recostada em lento sofá, deixava-se molemente pentear por uma escrava. Em baixo, a seus pés, assentadas em coxins, as concubinas Jawhara, Maha, Sihr, Ubayd, Ulmm e Widâd conversavam. Em roda, pelo salão, ao sol das gelosias abertas, junto aos repuxos de chafarizes, espalhavam-se dengosas mancebas de corpos coleantes, olhos de gato persa, de água marinha, de andorinhão, de boi, escravas núbias, cativas cristãs, servas do norte. A aia entrou e veio segredar ao ouvido de Itimâd e logo recebeu uma ordem. Bateu as palmas e a algazarra das mulheres foi-se extinguindo:

- Senhoras - disse a aia risonha -, teremos a visita dos mercadores.

A gralhada explodiu em exclamações de alegria e súbito se conteve quando as portas da câmara se abriram. Avançaram os eunucos, as cimitarras prontas nos braços cruzados, e acostaram-se a toda a volta do recinto. Seguiram-se os vendedores, que, a meio do salão, se postaram em vénia à rainha e, a um sinal dela, abriam sobre os ricos tapetes suas trouxas, seus alforges, suas sacolas, e expunham diante das mulheres, que formavam redondel, os seus produtos, apelo à vaidade e ao luxo.

Primeiro, quê? brilhavam os olhos das lindas moças, saltavam ávidos aqui e ali. Adornemos os belos corpos, perfumemo-los... este véu de seda branca para realçar o meu cabelo negro, este azul para as tranças de açafrão... estas sandálias de sardão do deserto, estas de seda com cordões de prata dirão bem no meu pé?... colares de pérolas para o meu pescoço de íbis do Nilo, de flamingo das marismas do Guadalquivir, para o meu seio de leite, bracelete de diamantes para o meu pulso, argolas de âmbar para o meu tornozelo, os meus braços... desdobravam-se peças de panos, os linhos, as sedas, as telas, apresentavam-se brocados, sirgos e passamanes, lavores e recamos de prata e ouro, tacteavam-se afagos de peles de raposa, de marta zivrina, de lince, de coelho... flamejavam as jóias, turquesas, safiras, rubis, ametistas, diamantes, em brincos, anéis, camafeus, capelas, tiaras, diademas, grinaldas, alfinetes, incrustações de pedras e vidros e esmaltes coloridos, cinzelamentos de gomis, copos e taças, filigranas de arrecadas... experimentavam-se sapatos, bordadas babuchas, alcorques elegantes de fíbula de ouro, pantufos debruados de penugem de adem... abriam-se os frascos dos perfumes, a exalarem pelo ar bálsamos de unguentos e raras essências de sândalo, de mirto, de alfazema... derramavam-se nos olhos as vivas cores das plumas de empenar roupas e coifas, pavão, grou, faisão, garça real, espreitavam-se sacos de penas para amaciar frouxéis... os passarinheiros exibiam as gaiolas de aves cantadeiras... e ali estavam as maravilhas de contar o tempo: a água nas clépsidras da Grécia e de Alexandria; o fogo nas graduadas velas de cera, nas lucernas de azeite, nas varinhas medidas de serradura e resinas aromáticas para incensar o ar; a areia - o pó das coisas, de todos nós - em ampulhetas de vidro... desafiavam a imaginação os engenhos de música que rodavam sozinhos, jardins e pórticos em que apareciam dançarinas a bailar, artifícios de corda, palafréns donairosos a cabriolar, os espelhos de cristal que transformavam a beleza em monstruosidade e a fealdade em harmonia de formas, ria a rainha, as concubinas, as mancebas, de si próprias...

Al-Mutâmid passeia nos jardins com seus ministros, o grão-vizir Abú-I-Walíd Ibn Zaydún e os vizires Ibn Salame e Ibn Iúsuf. Fala e gesticula zangado:

- É como sempre. Cada um, antes de se afirmar, procura saber o que os outros pensam. Para que tenho eu ministros? Para pautarem seu parecer pelo meu? É isso ser conselheiro?

- Não te queremos desagradar, emir - diz Ibn Zaydún.

- E acabais por me desprazer. Fora! Fora! Pára e olha com enfado os seus ministros:

- E desde já ficai a saber. Mandei chamar de Silves Ibn Aramar. Será ele, de agora em diante, o grão-vizir do meu divã.

- Tu ordenas, emir - dizia Ibn Zaydún com riso contrafeito. Iúsuf vai também para falar, mas o rei corta-lhe a palavra:

- E muita sorte tendes em não dar as ordens ao carrasco para vos descabeçar...

- Escuta, emir...

- Não, não. Prefiro ouvir as minhas mulheres... - e acrescentava meio sorridente, acalmando-se, como falando consigo, ouvindo versos interiores, uma cácida, um zéjel: -...tenham embora as cabeças ocas. Abrem-se em sorrisos, em meneios, suspiros, os olhos diamantes, os lábios rubis onde espreitam as pérolas dos dentes... os seios...

- Escuta, emir - insiste Ibn Salame. - Alfonso sexto de Leão não brinca. Aperta connosco lhe paguemos as páreas acordadas.

- Ameaça-nos? - perguntava al-Mutâmid já apaziguado.

- Não por enquanto - responde Ibn Zaydún. - Pressiona apenas.

- Entretanto estreita o cerco - acrescenta Salame - e vai ganhando terreno. Agora já chega ao Tejo e reforça as conquistas do pai, Santarém, Lisboa, Sintra...

- O vali de Santarém - esmiuçava Iúsuf - achou melhor render-se que fugir. Para si e os habitantes evitou o massacre. Os moçárabes têm sido respeitados pelos emires muçulmanos. Agora são os muçulmanos que se adaptam, optam por ficar em suas casas, guardar seus bens, mulheres e filhos...

- Chamam-se-lhes mudéjares...

- Que receais? - respondia o emir. - O rei de Badalhouce não há-de largar essas cidades facilmente. Conquistas efémeras. Cidades que não tardarão a ser retomadas.

- Alfonso possui forte exército, servido por excelentes barões. Assim como se tem distinguido, ao serviço do rei Sancho de Castela, Rodrigo Díaz de Bivar, verdadeiro campeador, também Alfonso conta com o valente braço de um guerreiro que já serviu nas hostes do rei Fernando, na tomada de Lamego, de Viseu, de Coimbra...

- Do primeiro tenho ouvido. Quem é esse?

- Chama-se Gonçalo Mendes...

- É das terras da Maia, que já foram nossas em outros tempos. Irmão de outro bom guerreiro, Soeiro Mendes, que ficou agora a governar Santarém, sob as ordens do conde Raimundo de Borgonha...

- Esse Soeiro Mendes - interveio Salame - dizem-me os nossos esculcas tem um filho de uma donzela moura de Santarém.

- Dá que pensar. Mesmo que os Cristãos se esforcem por nos expulsar da Ibéria, jamais o conseguirão. O nosso sangue corre já nas suas veias.

- Não te esqueça, emir. O contrário é também verdadeiro. Não temos nós filhos de cristãs?

- Pergunto-me se estas guerras de irmãos, muçulmanos contra muçulmanos, cristãos contra cristãos, muçulmanos contra cristãos e vice-versa, com o rodar do tempo não perderão o sentido.

- E a djihâd, a guerra santa?

- Ficará Deus a lutar contra Deus pelos séculos fora...

- Eles ensinam que há um só Deus.

- Também nós. O nosso.

- Se cada um fica no seu, é de certeza círculo vicioso. E, como é círculo vicioso, não percamos o fio da conversa.

- Esse tal Gonçalo é irmão de Soeiro...

-...e do presbítero D. Paio.

- É ainda novo. Terá uns cinco anos menos que tu, emir. Onde ele aparece há sempre grande destroço nos nossos.

- Fortes e ilustres barões. Têm ajudado a estender a Galiza até ao Tejo e posto seus braços ao serviço de Alfonso na vassalagem dos emirados de Toledo, Badajoz, Valência...

-...e Sevilha, eu sei.

-...mas, enquanto vivermos à sombra de Alfonso, estamos protegidos contra outros inimigos...

- Os Cristãos estão divididos.

- E os Muçulmanos não estamos?

- Quando Fernando primeiro faleceu, dispôs que os seus domínios, Leão, Galiza, Castela e parte de Navarra até ao Ebro, fossem repartidos pelos filhos. Sancho ficou com Castela, Alfonso com Leão, Garcia com a Galiza, Urraca senhora do condado de Zamora, El vira com o de Toro...

- Divisão, enfraquecimento. Fatal disposição.

- Mais fatal ainda porque a luta entre irmãos não tarda a estalar.

- Como assim?

- Sancho não está satisfeito com o poder que Alfonso aumenta de dia para dia. Não me admiraria nada de que rebentasse guerra entre os dois.

- E Garcia?

- Enquanto Sancho se vira para Alfonso... Suspenderam-se com ouvir o brado do almuadem, que, do alto do minarete chamava os fiéis à oração.

Postaram-se por terra, virados para Meca, a rezar. Como leite suave o silêncio derramou-se por toda Sevilha, mas o doloroso grito de Itimâd seguido do aiar aflito das escravas feriu os ares e alarmou os corações. Al-Mutâmid, seguido dos vizires, já acorria e de toda a parte acudia gente ao palácio real.

 

                                     Intermezo segundo

- Mestre, que gritas tão angustiadas foram essas a alancear a cidade que rezava? Apressemo-nos, também nós, ao palácio do emir.

- Não, Randulfo, não. Há dores que requerem solidão e total intimidade. Nem sempre curiosidade é desvelo de amigo. Não inquietemos a dor de Itimâd. Amansa, como a potro selvagem, esse desejo imediato e malsão... e trata de me encheres o tinteiro de espesso atramento e o areeiro de finíssimo pó.

O meu ajudante logo pôs em obra o que eu lhe ordenava e disse:

- Compartilhar as aflições, mesmo com infiéis, não ensinastes sempre vós em timbre de cristãos?

- Derrama antes lágrimas pela dilaceração da nossa pátria. Ir ter com as pessoas, para em sua companhia ou sofrer com os seus males ou fruir com os seus bens, é sentimento cristão...

- ... até com os inimigos...

- ... mas não há pior inimigo, maior quebra de sentimento cristão que a de irmão que ataca irmão.

- De que estais a falar?

- Olha, Randulfo, o que o rei Sancho de Castela está a fazer a seu irmão Alfonso de Leão. Toda a Hispânia cristã treme e eu receio não sejam surpreendidos em qualquer lugar ou sofram castigo de tão irreflectida audácia aqueles que tentem chegar, com a sua compaixão e ajuda, até ao oprimido Alfonso.

 

                                   Corcéis brancos... corcéis pretos.

Pelas abóbadas da igreja, pela claustra da abadia ressoa o cantochão dos frades, ante os restos mortais da rainha Sancha.

Seu filho Sancho não lhe sofre o ânimo, sendo primogénito, não o tenha o pai, Fernando Magno, deixado herdeiro de todos os domínios de Leão, de Castela, da Galiza, que se estende até ao Tejo, e da parte de Navarra que vai até ao Ebro. Escuta distraído o canto fúnebre, olha de invés para os irmãos ali ao lado: Alfonso, muito sério; Garcia, indiferente; Urraca, apertando o sentimento na comissura dos lábios; Elvira, chorosa. Atrás de si, os nobres senhores, os guerreiros. Lá mais para o fundo, a transbordar do templo, o povinho.

Quando a função terminou, no dobrar dos sinos Sancho, sem uma palavra aos irmãos, montou a cavalo e abalou carrancudo, acompanhado de seus homens.

Urraca seguiu-o com os olhos:

- Nossa mãe - pensou -, enquanto viveu, embora viúva manteve em respeito as ambições de meus irmãos. E agora?

O chefe dos exércitos de Sancho é Rodrigo Díaz de Bivar, a quem ele, ainda príncipe, havia armado cavaleiro.

- Ordenaremos as hostes - diz-lhe o rei Sancho. - No princípio do ano, mal as neves da Cantábria degelarem, atacaremos Leão.

Por março, começaram a brilhar os córregos, a despenhar-se cascatas por encostas, pegos e vales, já se afoitavam de jornada os peregrinos pelos caminhos de Santiago.

Sancho ataca Alfonso. Os dois exércitos defrontam-se. Alfon-so é vencido mas consegue lhe conceda tréguas o irmão. Três anos se passam, quebra Sancho o pacto e, em Golpejar, investe de improviso sobre Alfonso. Os leoneses saem vencedores... Quê? O Cid vencido? Pela primeira vez? admira-se o povo. Os nossos foram os melhores, murmura-se, corre fama estava presente, a ajudar o comandante Pedro Ansúrez, o braço valoroso daquele Gonçalo Mendes que veio com seus guerreiros das terras da Maia... Não se contava era com a excessiva confiança de Alfonso, não se esperava traição. Após a batalha, enquanto em seu acampamento os soldados leoneses repousavam descuidados, Sancho, a conselho do Cid, cai de surpresa sobre eles. Grande é a matança e o rei Alfonso preso.

Quando a nova chega a Zamora, Urraca envia mensagem ao irmão Sancho: a maldição de Deus caia sobre ti, se, em nome de nosso pai Fernando e de nossa mãe Sancha, não libertares Alfonso.

Ordena então Sancho que lhe tragam Alfonso à presença:

- Vou libertar-te, mas terás de prometer-me que tomarás hábito de monje e não mais pensarás em governar.

-Assim farei.

- Terás escolta até São Facundo e aí recolherás ao mosteiro.

- Irmão, considera no que estás a fazer. Despojaste-me do meu reino. Agora, adivinha-me o espírito, caminharás para a Galiza a despojar nosso irmão Garcia... Que loucura te tomou?

Sancho não replica. Dá suas ordens. Alfonso sai acompanhado de escolta.

Com a sua mesnada de homens, Gonçalo Mendes cavalga em direcção a Zamora. Na ponte do Douro, à.entrada da cidade, os soldados de Urraca reconhecem-no e franqueiam-lhe a passagem.

Já sobe aos paços da condessa, que o recebe rodeada da sua corte condal:

-Aque vens, Gonçalo Mendes? Pareces perturbado. Fugido certamente não é, se bem te conheço.

- Senhora. Sancho a vosso pedido libertou Alfonso, mas obrigou-o a tomar hábito e mandou-o com escolta para São Facundo.

- Vejo escapaste à chacina que a traição de Sancho havia preparado aos leoneses.

- Estava com uma companhia de mercenários de Portucale. Havíamos erguido as tendas numa clareira, afastados do restante acampamento. Sentimos a traição, desaparecemos. Mas não ficámos parados. Fizemos espera à escolta que levava Alfonso a São Facundo e atacámo-la. Libertado, Alfonso dirigiu-se a Toledo a pedir asilo ao rei mouro al-Mamún, que o recebeu com a maior distinção.

- E agora - disse a condessa Urraca - Sancho deve querer submeter-me a mim também, não é?

- Caminhou para a Galiza a destronar Garcia, que fugiu para a corte do rei de Sevilha. Depois, em Toro, submeteu vossa irmã Elvira. Agora...

- ... dirige-se para aqui.

- Não tardará a vir cercar Zamora.

Do cimo dos adarves, os homens da condessa Urraca vêem chegar as hostes do rei Sancho de Castela. Brilham ao sol da manhã os elmos doirados, faíscam espadas bem temperadas, luzem lorigas, cotas de malha, a floresta de lanças. Vêm de todos os lados, da banda da terra, da outra margem do rio. Lá cavalga o esquadrão do rei em seus corcéis brancos, com os orgulhosos pendões ao vento. Lá galopam os cavaleiros do Cid em seus corredores cor-de-amora, com os impantes gon-falões a tremular.

- Urraca - brada Sancho para o alto da barbacã -, rende-te e evitarás a chacina, a pilhagem do teu rico espólio. Jurar-me-ás preito e menagem e continuarás a ser condessa de Zamora.

- Vai-te embora, Sancho. Se não te lembras de que sou tua irmã, Deus te fulmine. Guardarei a vontade de nosso pai e a memória de nossa mãe.

- Rendição ou morte - brada do outro lado Cid, o Campeador, para o alto das muralhas.

Responde-lhe das ameias uma chuvada de setas.

- Rendê-los-emos pela fome e pela sede - disse o rei Sancho. Sete dias e sete noites ali ficam sitiando o castelo roqueiro,

mas de dentro não chegam sinais de rendição. Até que, pela calada da oitava noite, um vulto se esvai furtivo e silencioso pela porta da traição e se aproxima das tropas de Sancho, a pedir asilo. Levam-no ao rei.

- Quem és tu? Trazes recado de minha irmã?

- Senhor. Chamo-me Velido Adaúlfes. Sou soldado e desertei. Não trago mensagem de vossa irmã, mas digo-vos que pela fome nunca conseguireis dominar ZamQra. As tulhas estão cheias de pão, os currais de gado, as cisternas de água até os bordos.

- Porque desertaste?

- A condessa mandou-me açoutar por eu ter dito que seria melhor render-se e viver em paz convosco.

- A praça é forte?

- Muito forte, meu senhor. Sobretudo, há lá um guerreiro, com seus homens das terras da Maia, que é tão valente ou mais que o vosso Rodrigo Díaz de Bivar.

- Então achas que levante o cerco e me vá embora? Não queres ser vergastado também aqui, pois não?

- Não, meu senhor. E isto vos quero dizer: há um ponto fraco, uma brecha, naquela forte muralha de granito e homens aguerridos. Ninguém a notou, senão eu.

- E onde é?

- Vinde comigo, senhor, pela quietude das estrelas. Nada de levar cavalo nem companhia. Bastava um resfolegar do animal, o tilintar de aço, para alertar as sentinelas. Pode parecer um contra-senso, mas crede se vê mais nas sombras da noite que à luz do dia. Vinde. Ao romper da manhã Zamora será vossa.

O rei Sancho ergueu-se, deu suas ordens e saiu da tenda acompanhado de Velido. Meteram pela espessura de pequeno bosque que corria a par das penhas em que se erguia o cubelo norte do castelo. O traidor ia à frente e, de vez em quando, virava-se atrás a Sancho a fazer sinal o seguisse em silêncio. A alguns passos da estreita senda que subia à porta da traição, volta-se súbito e enterra o punhal no coração do rei. Sancho cai por terra sem um grito, eram as Nonas de outubro de mil cento e dez. Velido sumiu-se no castelo, tão silencioso e ratoneiro como se havia esgueirado.

Quando a nova correu da morte misteriosa do rei Sancho, logo os seus generais levantaram o cerco a Zamora. Compreenderam, com todos os senhores e povos das Espanhas, ser Alfonso o natural herdeiro dos domínios de el-rei Fernando Magno. Sancho morrera sem deixar geração e as vozes foram unânimes, desde a grande Galiza, Leão e Castela e a parte de Navarra até ao Ebro, em nomear Alfonso o seu soberano. Mas Castela, pela voz de Rodrigo Díaz de Bivar, pôs condição:

- Alfonso deverá fazer solene juramento de que não teve parte no aleivoso assassínio do irmão.

-Apoiado! - clamaram os seus pares, as espadas erguidas.

Alfonso, mal por sua irmã Urraca teve conhecimento do que se passara, saiu de Toledo e estava em Santa Gadea, de Burgos, quando chegaram doze cavaleiros castelhanos, encabeçados pelo Cid, para lhe tomar juras tão terríveis que ao próprio rei geram espanto.

- Alfonso - adiantou-se Rodrigo Díaz -, se queres te aceitemos como rei de Castela, terás de jurar sobre os santos Evangelhos que não intervieste na treda morte de teu irmão, o nosso bom rei Sancho.

- Como poderia eu ter intervindo no assassínio de meu irmão, se me encontrava longe de Zamora, no meu exílio de Toledo?

- Jura sobre o livro sagrado. E maldito sejas tu nas profundas do Inferno, se jurares falso.

Alfonso avança solene para o altar, onde, sobre alvíssima rendilhada toalha de linho pousava luxuoso volume encadernado de couro com pregueamentos de ouro e tauxias de pedras preciosas. Estende a mão sobre o livro e a sua voz clara e firme ecoa pelo templo:

- Pela salvação da minha alma, juro solenemente sobre os santos Evangelhos não ter tido parte na triste morte de meu irmão Sancho.

Ajoelhou Rodrigo e aos pés de Alfonso depôs sua espada e beijou a fímbria da veste do rei:

- A teus pés, meu senhor e meu rei, o teu fiel servidor. Todos os outros castelhanos, a uma voz, lhe juraram fidelidade e o aclamaram rei de Castela.

Ao sul, a Sevilha, vai Gonçalo Mendes com seus cavaleiros, para acompanhar de volta à Galiza o rei Garcia.

Al-Mutâmid faz gala em dar festa de despedida ao seu hóspede real. Banquete sumptuoso, os comensais sentados em coxins, em roda, na vasta sala de colunas, no centro branda poesia ao som de cítara e alaúde, bailam balanços lentos de anca, ventres femininos, ondeiam hastes de braços, mãos, dedos, véus transluzentes mal desvendam mimos de luxúria. Rei al-Mu-tâmid tem à sua direita rei Garcia, à esquerda a linda rainha Itimâd. Rodeiam-nos os filhos: Sirâj ad-Dawla, o primogénito, Ar-Rashíd, Ar-Râdi Yasíd, Al-Mamún al-Fath que tem ao lado a bela esposa Zaida, Abd-al-Jabbâr, Al-Mutâd Abd Allâh, Al-Matamâd, Yahyâ, Hakamât, Ibn Abbâd, Abú Hashim, Zin ad-Dawla e a formosíssima Buthayna. Segue-se Gonçalo e seus cavaleiros, o grão-vizir, os ministros. Gonçalo fica ao lado de Buthayna. E o coração de Gonçalo palpita mais depressa, de trote entra em galope desenfreado. Não é o diadema de fina renda de pedras preciosas, é a noite do cabelo a cair em cachos rolados sobre os ombros macios; não é o brilhante na testa de ouro, é o poço dos olhos; não são os brincos de diamantes, mas o recorte, o acetinado da orelha; não é o colar de pérolas, antes o torneado do colo; não o alfinete de prata a fechar o decote, mas sim o leite entrevisto do busto; e os braços roliços e as mãos esguias e a ânfora do corpo e o perfume a sândalo que dele se exala...

- Eu te digo, rei Garcia. Mais do que guerrearmo-nos, devíamos era tratar de povoar essas terras imensas. Mal se sai das muralhas das cidades, que é que se vê?

- Tens razão, al-Mutâmid: a desolação, o enorme descampado, o brejo a perder de vista...

-...a selva, os campos por cultivar, as minas por explorar...

- ... o mar infestado de piratas normandos que nos saem impunes pelas terras ribeirinhas e atacam e pilham e devastam as povoações indefesas...

- Ainda há pouco tiveram o arrojo de entrar Guadalquivir adentro e chegar até aqui às portas da cidade... - e al-Mutâmid, ia em seu coração secretamente pensando que se impunha reforçar e renovar a armada que herdara dos califas, os arsenais de Sevilha, de Alcácer, de Setúbal...

- E lá em cima, no norte, meteram pelo rio Minho, desembarcaram e dizimaram quanto encontraram, roubaram, violaram, mataram, incendiaram... Quando se acudiu, já tinham fugido.

Na outra ponta do festim, Gonçalo fala com Buthayna:

- Gostaria que conhecesses as doces terras da Maia, o meu castelo de Águas-Santas, o meu ameno rio Leça...

Buthayna, a boca e o olhar cheios de sorrir de desfrute, responde-lhe como se exprimisse em verso o eco da fala do companheiro:

- Gostaria que conhecesses as doces terras de Silves, onde nasci, o meu palácio das varandas, o meu ameno rio Arade...

Rei Garcia, que deu conta da fala de Buthayna, perguntava a al-Mutâmid:

- Os teus filhos também são poetas como tu?

- Dei-lhes uma educação esmerada no que respeita à filosofia, às artes e restantes saberes. Alguns deles dedicam-se, além do mais, à poesia: Al-Mamún, Ar-Râdi, Ar-Rashíd e minha filha Buthayna.

Na hora da partida, a rei Garcia são oferecidos bem arreados cavalos árabes, de fronte nobre, olhos grandes, vivos, ventas dilatadas, pescoço fino, crineira e cabos sedosos, baios, mosqueados, pretos, alazões rosilhos, rocins andorinhos, corcéis nervosos cor-de-tâmara ou murzelos azeviche, todos ajaezados de prata e bronze, com telizes bordados e franjados, e também garanhões andaluzes e mulas carregadas de ricos presentes... Gonçalo ficam-lhe os olhos nos olhos de Buthayna...

- Rei só pode haver um - rosnou Alfonso em seu coração e cavalgou mais seus exércitos à Galiza a depor e a prender à má fé o irmão Garcia.

Que é isto, rei Alfonso? Portas-te com teu irmão Garcia pior do que Sancho? Envia-lo para os calabouços carregado de ferros?

- Reuni os estados que meu pai em seu testamento desmembrara e agora vou aumentá-los à custa dos reinos mouros - disse, e logo preparou suas hostes para retomar as campanhas guerreiras.

- Levarei a minha espada o mais longe possível para sul, para lá do Tejo, até à foz do Guadiana, às margens do Guadalquivir...

- Não vos esqueça, senhor - dizia-lhe um conselheiro -, de que o rei mouro de Toledo, al-Mamún, é vosso amigo e vos deu asilo em hora de aperto.

- Não sou ingrato. Enquanto ele for vivo, não atacarei Toledo... mas Sevilha está ao meu alcance. Os meus guerreiros são eleitos entre os melhores. Embora julgue Rodrigo Díaz de pouca confiança e demasiado independente, é um bom combatente. Para o congraçar, casá-lo-ei com minha prima Ximena. Confio mais nos meus cavaleiros de Leão e nesses excelentes barões portucalenses, Soeiro e Gonçalo Mendes da Maia. Invencíveis seremos.

Casou pois Rodrigo Díaz de Bivar, filho de Diogo Laínez, com Ximena, filha do conde de Oviedo e neta do rei Alfonso quinto, corria a era de mil cento e doze. Por esta altura nasceram ao rei Alfonso sexto duas filhas: uma legítima, da rainha Constança, sua segunda esposa, a outra de uma nobre dona leonesa, Ximena Moniz, filha do conde Múnio. À primeira pôs nome Urraca, como a tia dela, e à segunda chamou Tareja - grandes destinos os seus...

Bom cobridor este rei Alfonso sexto. A Inês, primeira mulher, sucedeu a borgonhesa Constança e depois a toscana Berta e a seguir as francesas Isabel e Beatriz, além de ter várias concubinas. Não lhe fez bom prol, que, ademais das duas filhas, só depois lhe nasceu um filho varão de malfadada sina. Constança era sobrinha do abade Hugo, de Cluny, e de Roberto, duque de Borgonha. Lembrou-se Alfonso de se servir deste parentesco para solicitar auxílio de França:

- Enviarei embaixadores a Borgonha, ao abade Hugo, a pedir me envie guerreiros para a luta contra os Muçulmanos.

Foi então que veio juntar-se a Alfonso lustrosa companhia de cavaleiros franceses. Aí se destacam Eudo, duque de Borgonha, e o conde Henrique seu irmão, e o conde Raimundo, primo de ambos.

Foi também por então que, em Córdova, Ibn Ukâsha se sublevou. O rei al-Mutâmid envia o filho Sirâj a aquietar o revoltoso. Na luta, Ibn Ukâsha mata Sirâj...

A sangrenta notícia correu nas asas do vento, no sopro das bocas, subiu a Burgos, à corte do rei Alfonso, que logo jurou haver de ir sobre Córdova, e desceu a Sevilha e chega ao coração da rainha Itimâd, à hora da oração. O grito da mãe reboou por toda a cidade...

 

                                           Intermezo terceiro

- Mater dolorosa, mestre, mater dolorosa... - diz o meu ajudante, junto ao janelo, enquanto vai cosendo as laudas de um volume. Aprendeu o mester com o mudéjar João Queimado Mourisco, que tem habilidosas mãos de sete ofícios. Ajusta as folhas, faz-lhes as ranhuras e vá de as coser com a sua agulha recurva de encadernador. -...Muito me tenho hoje ilustrado convosco. O herói morreu. Não resta dele mais que o homem nu e cru... Olhai. É como esta agulha. Cose o que está roto, mas o seu corpo fica sempre nu... o homem nu, com as suas fés, os seus parcialismos, que tudo vai desaguar ao egoísmo.

-...ao livre alvedrio, Randulfo, à opinião... terreno perigoso de trilhar, segundo a nossa madre santa Igreja...

- Deus é só um, igual para todos, mas os crentes das diversas crenças puxam-no a si, querem-no só para si... E depois, pela perda de um filho, mater dolorosa existe em todo o coração de mulher, nobre, plebeia, cristã, moura... Como eu compreendo o grito de Itimâd!...

- É bem verdade o que dizes. Mas aprende também que a vida nem sempre se contenta com uma única dor. Outras, mais lancinantes, virão.

- Além da morte de Sirâj?

- Além do assassínio do rei Sancho, além da morte do príncipe Sirâj...

-...em Córdova, na era de mil cento e treze... Mas também há novas vidas, uns morrem, outros nascem... Urraca, Tareja...

Não escrevestes que terão ilustre destino?

- Para lá caminharemos. Temos vindo do passado para o futuro...

- ... que para nós, enterrado Gonçalo Mendes, é transitar da era de mil cento e setenta e sete à era seguinte...

- ... e, se Deus nos der vida, a tempo mais adiante.

- Vós, que coligistes a história, dizei-me, mestre: que aconteceu ao rei Garcia?

- Não apresses o tempo, Randulfo. Festina lente. Na hora aprazada o saberás. Esperava fizesses antes perguntas mais instantes e pertinentes. Que acontece - não me dizes? - quando um rei cai e se alevanta outro?

- Cai um rei, caem os áulicos. É habitual.

- Caem ou se acomodam ao novo poder...

- Quem vem caindo, mestre, é a noite dos pés de ébano.

- E os pés de ébano dizem-me que são horas de ceia. Já cá me vem tardando o achego de um caldo...

- ... e o achego de outras quenturas, mestre...

- Xô ! Enxota para lá os maus pensamentos, Randulfo. De nosso vagar atravessamos o terreiro que vai do scriptorium do mosteiro à minha morada, uma casinha térrea com cortinha e pomar por detrás, e vamo-nos dirigindo para a copa. Mesa ampla, já posta, rescendência de panelas. As duas mulheres aguardam-nos: as mouras Imena, que foi baptizada Rosa, vinte anos azougados, morenos, garridos, e a mocinha Zoaira, baptizada Catarina, dezasseis abris, seios a despontar, o desejo a espigar-se-lhe das miradas que desafia a Randulfo, que lhas retribui e eu bem percebo.

- Porque as sonegais avaramente, mestre, na alcova ao lado da vossa cama?

- Para as defender de mal-intencionados como tu.

- Mal-intencionado, eu?... Então não lhes ouço eu os suspiros de noite no vosso quarto, mestre?... Torço-me todo na minha enxovia...

- Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo - digo eu, antes de nos sentarmos.

- Amém - respondeu Randulfo.

- Abençoai-nos, Senhor, e a esta refeição que vamos tomar por vossa bondade. Por Jesus Cristo Nosso Senhor.

- Amém.

Comemos calados nosso caldo de nabiças, nosso apresigo de carne, as moças iam e vinham em roda de nós, bem cheirosas, a servir-nos. De repente, Randulfo disse com a boca cheia:

- Qualquer dia, mestre, roubo-lhe a Catarina Zoaira... Suspendi junto da boca o naco de pão:

- Não desgraces a tua vida, Randulfo - respondi-lhe entre dentes para as raparigas não ouvirem.

Continuei a comer em meu sossego, o ajudante ruminava a babugem de seus pensamentos. Rosa Imena enchia-me de vinho o copo, tirava-me a escudela e servia-me uma maçã. Catarina fazia o mesmo a Randulfo e, do jeito, encostava-se muito a ele que deslizava abaixo a mão esquerda e, embora encoberto pelo tampo da mesa, senti lhe palpava e afagava as pernas deliciado. A moça, o olhar brilhante, rosto afogueado, encontrou os meus olhos e logo desviou os seus, depois afastou-se dengosa com a escudela.

Acabada a ceia, preparámo-nos para nos recolhermos.

- Que me levais a ver amanhã, mestre, na vossa crónica? - dizia Randulfo, procurando desanuviar-me os pensamentos pressagos.

- Rei morto, rei posto e as tempestades que lá vêm...

 

                                              Uma partida de xadrez

- Que estranho! - disse ao rei Alfonso o seu porta-estandarte. - Já não é tempo de branquejar neve pelos tesos dos montes!

- São talvez amendoeiras em flor - respondeu el-rei.

- Já não é tempo de branquejarem amendoeiras pelas covas dos vales!

Havia el-rei descido com seus exércitos ao vale do Tejo, transposto o rio, passado o Guadiana e chegado aos olivedos e laranjais das colinas de Córdova, com o propósito de tomar a cidade.

- Mira bem atento, meu alferes. Apura esse olhar. É a chusma de mouros com suas jilabas cor da neve, seus turbões cor da flor da amendoeira, que nos estão esperando a pé firme nas faldas dos montes, na chã da lezíria.

- Pois então, meu senhor, dai vossas ordens. Como nuvem de corvos, rebanho de carneiros negros, espessemos contra eles nossas hostes a dar-lhes batalha.

Tinham os mouros armado seu acampamento na orla do bosque, suas tendas os cristãos no encosto da serra.

- Caminha, meu arauto, à minha frente com bandeira de paz. Seguir-te-ei em meu cavalo branco pela terra-de-ninguém -disse o grão-vizir Ibn Ammar, mandando a seus homens se aquietassem, enquanto sozinho saía com seu arauto a falar com o rei dos cristãos.

- Senhor, meu senhor rei Alfonso. Vem lá mensageiro do rei de Sevilha. Caminha com sinal de paz, que seu arauto ergue bem à vista o branco pendão.

- Quem vem lá? - clamou o sentinela.

- O grão-vizir de el-rei al-Mutâmid - respondeu o arauto de Ibn Ammar.

Adiantou-se o general do rei Alfonso:

- Meu senhor não recebe embaixadores não credenciados. Fala, Ibn Ammar.

- Só falarei com el-rei.

- Melhor então arrepiares caminho e tornares a de onde vieste.

- Não arredarei pé, enquanto o rei Alfonso me não ouvir. Foi dentro o general e rei Alfonso consentiu em receber Ibn

Ammar.

- Não tenhas, rei Alfonso - disse o árabe -, arreganhos de hierarquias. Eu sou Ibn Ammar, grão-vizir do rei al-Mutâmid de Sevilha, reino que se estende das margens do Tejo até ao Gharb e pelo grande Andaluz desde Huelva, Carmona, Algeciras, Niébla, Jaén, Córdova, Sevilha... Neste momento a voz do grão-vizir é a voz do rei. Falo contigo de igual para igual.

- Ambicioso, tu?

- Venho desafiar-te.

- Bem vejo o teu exército. Quem vem desafiar-te sou eu.

- Venho propor-te...

- Julgas-te em condições de me propor seja o que for? A um sinal meu os meus homens avançarão...

- ... um desafio singular.

- E quem tens tu que se oponha às minhas forças, à minha determinação de estender os meus territórios cristãos para o sul?... que se meça com o valor dos meus guerreiros, de um Rodrigo Díaz, de um Gonçalo Mendes?

- Dois maiores contendores.

- Quais?

- Tu...

- Eu?

- ... e eu.

Rei Alfonso não conteve breve gargalhada.

- Escuta, rei - continuou o grão-vizir. - Problemas, combinações, manobras militares, política de expansão, ambos os lados os têm. O rei al-Mutâmid, quero dizer, al-Mutâmid e eu queremos alargar o reino de Sevilha a Granada, a Múrcia, a Toledo...

- A Toledo?

-...o mais para norte possível...

- E queres que eu e tu travemos combate singular?

- Não é a primeira vez que isso acontece entre chefes de exércitos.

- Para se medir comigo, venha o rei al-Mutâmid, não o seu grão-vizir.

- De qualquer maneira, é o seu grão-vizir que te dará combate. Tenho além o meu exército. A uma ordem minha, ele avançará... e será o massacre dos teus e o despojo do teu desbarato.

- Falas antes do tempo.

- Veremos.

- E queres então propor combate singular entre mim e ti.

- Entre nós dois. Por isso singular. Sem mortes nem sangue derramado nem pilhagens... por isso singular, mas também singular porque...

- Não estou a ver aonde...

- Mandarei erguer uma tenda a meio da terra-de-ninguém, colocar aí numa mesinha um tabuleiro de xadrez. E eu e tu jogaremos a nossa sorte. Se eu perder, retiro-me com os meus homens e tu terás a cidade. Se eu ganhar, serás tu a retirar-te e a deixar-nos em paz.

Rei Alfonso sorriu, cofiou a barba, que já grisalhava, e disse:

- Aceito.

 

Entre os dois arraiais, em terra-de-ninguém, logo ergueram oficiais árabes um rico tentorium de lona, a cúpula afunilada, as abas abertas de um lado e outro, que ambos os campos pudessem ver os dois contendores. No centro a mesinha de mármore rosa e em cima o tabuleiro de jaspe com escaques brancos e pretos, em que se perfilavam hieráticos de uma banda os trebelhos de âmbar, da outra os de ónix.

Sentou-se o rei Alfonso, sentou-se o grão-vizir e o jogo começou. Lenta e renhida é a luta, medidos os golpes, lentas as horas lentas a escoarem-se. Em bufete, ao lado, um criado enchia os copos de vinho sangrento. Os lutadores bebiam e fumavam do narguilé perfumado. Caíam peões, cavalos, alfins, uma torre de el-rei rendida de assalto, a rainha de âmbar tombava em desmaio, rei Alfonso vê-se súbito cercado.

- Xeque-mate - disse o grão-vizir. - Perdeste, rei Alfonso.

- É bom o teu vinho - disse el-rei recostando-se - e o teu narguilé perfumado... Teremos de jogar mais vezes, mas não por tal preço. O último lance apanhou-me em descuido. Da próxima vez...

- Muita honra a minha jogar com o príncipe dos príncipes cristãos.

- Darei ordens a meus soldados e levantaremos o arraial. Córdova é vossa mas não abdicarei das páreas que sempre me devestes.

Aos quatro ventos soou minha façanha. Verás, al-Mutâmid, quem é o teu grão-vizir. Basta de humilhação. O meu fausto será igual ao teu, mais além irá. A minha comitiva ao passar pela cidade, as gentes arrojam-se no chão a saudar-me. Olha este que se abeira a pedir-me justiça! Arreda, cão! A um gesto meu o vergastam meus guardas. Não pises o chão que os cascos do meu cavalo calcam...

Meu coração é ninho de inveja e ambição, tormentas de rancor e zelos? Deixá-lo, conquanto consiga meus fins... Roo-me de ciúmes. Éramos jovens, no remanso de Silves. Para lá das belas raparigas que amávamos, buscávamos os formosos efebos escravos... Num festim, uma noite... lembras-te? toquei-te no braço a chamar-te a atenção. O escanção andava em roda, como Lua no céu, do corpo derramava-se-lhe doce perfume que o próprio suor humedecia... os dedos de lis a segurar as taças, os olhos de narciso a girarem para nós, para os nossos corações... Tem cuidado, amigo, te digo. Tu que brandes alfange ornado de pedraria e guardas em cavalariça corcéis de raça, se no ardor da luta o jovem guerreiro que a penugem cobre debaixo da cota te deixa impassível, se ele a tirar, é como o Sol a raiar das trevas: agita-se e mostra o negrume do púbis, altivo potro a avançar ufano, rédeas e freio tilintantes... o corçozinho em seu fojo cativa o leão dos bosques... Foi então que eu e tu libámos no leito a taça do amor... Depois, em Sevilha, encontraste aquela formosura sem par, Itimâd ar-Rumaykiya, e se bem tenhas muitas outras concubinas, a ela só olhas, nela só pensas... Raras vezes desces o olhar a este verme, a partilhar comigo interlúdios íntimos... É tempo de me afastar de ti. Conquistarei Granada, levarei minhas armas até Múrcia, Valência...

Assim falava o grão-vizir em seu coração de cuco. Compondo máscara de fiel vassalo, foi aonde el-rei:

- Senhor, atacar os mais fracos, aliarmo-nos aos mais fortes, eis a melhor política. Rei Alfonso sexto é nosso aliado. Permiti que assalte Granada. Ampliarei teu reino e mil riquezas te arrecadarei...

Consentiu al-Mutâmid. Nove meses o cerco durava: feroz a defesa dos granadinos, rei Alfonso negava o auxílio, pouco agradado de tal conquista, e parte das tropas que em volta sediam a acudir correram a revolta de judeus em Córdova. Ibn Ammar não lograva tomá-la.

Atacarei Múrcia, entre os dentes da alma malsã o grão-vizir ruminava, enquanto à frente dos tristes soldados, à chuva e ao vento, tomava o lamacento caminho de volta a Sevilha. Arredio, procurarei evitar al-Mutâmid. Não deve ter ficado contente com o desfecho de Granada.

Uma noite al-Mutâmid convida o amigo:

- Tu andas fugido? Vem cear comigo.

Sentou-o a seu lado em coxim de rendas, enche-o de atenções, de mimos: "Servide-lhe vinho, acepipes, méis..." Erguiam as taças, bebiam, sorriam, trocavam olhares... "Esta noite" o emir lhe segreda ao ouvido, "dormirás comigo..."

Acabada a ceia, idos os convivas, aos reais aposentos caminham, no leito se deitam aos abraços, beijos, torturas de amor. Pela noite adiante, cansados adormecem e entra o vizir de ter cruel sonho. Da escuridão, branca sombra como fumo esvoaça, toma a vaga forma de olhos, de boca, e uma voz longínqua pelo ar ressoa: "Desinfeliz desgraçado, foge a toda a pressa. Ele vai matar-te!"

Estremunhado acorda o pobre grão-vizir, os cabelos em pé. Senta-se no leito: "São os vapores do álcool. Demais eu bebi" e de novo se deita e torna a dormir. De novo o duende ou fumo ou fantasma lhe atroa aos ouvidos: "Foge, foge para longe. Ele há-de matar-te!"

Levanta-se, abre os olhos, a voz o persegue: "Ele há-de matar-te! Foge!"

Então, quase nu, em ceroulas, à pressa, embrulhando-se em esteira do chão, Ibn Ammar sai do quarto, atravessa corredores desertos, desce escadarias até aos portais do palácio. Fechadas as grades, não pode sair. Num recanto se agacha coberto com a esteira, aguardando venha depressa a manhã. "Correrei ao porto a tomar um barco, a fugir para África..."

"Onde está meu amigo?" al-Mutâmid acorda, estende a mão ao leito vazio. "Guardas! Criados! Aqui acudide!"

Buscam, rebuscam, no harém não entrara, nos seus aposentos também não no acharam. Passam corredores, descem escadarias, ao pórtico chegam de grades fechadas. "Por aqui não saiu!" de espanto diziam.

"Mas que coisa está suspirando, mexendo, debaixo da esteira?"

Levantam a esteira e o vizir aparece quase nu, em ceroulas. As pernas, os braços, os queixos lhe tremem, as mãos não conseguem tapar-lhe as vergonhas.

"Oh, Abú Bakr! Que te aconteceu?" o rei lhe pergunta.

Sons incompreensíveis gagueja o infeliz e então al-Mutâmid com muita doçura o reconduz ao seu quarto, ao seu leito:

"Acalma-te, amigo. Conta o que passou."

Acalmado enfim, o infeliz grão-vizir contou a seu rei o sonho que teve.

"Que mau vinho tens! Foi um pesadelo. Alguma vez poderia eu matar-te, a ti minha alma, a ti minha vida? Suicídio seria. Esquece tal sonho."

Viu o rei de Granada, Abd Allâh ben Balkin, que Alfonso sexto não ajudara no cerco da sua cidade e, não contente em ter resistido a Ibn Ammar, resolveu passar a atacar e sair a sitiar Sevilha.

Ao reino de al-Mutâmid havia chegado Rodrigo Díaz com seus homens a exigir as páreas devidas. Recebeu-o el-rei com todas as honras e magnanimidade e já ordenava ao seu arinteiro procedesse à satisfação do tributo acordado, quando o grão-vizir veio anunciar que à vista das muralhas de Sevilha refulgiam lanças, alfanges, escudos de Abd Allâh ben Balkin.

- Todas as nossas tropas estão de alerta e aguardam ordens de atacar. Mas numeroso e valente é o exército deles.

- Permites-me, rei al-Mutâmid - falou o Cid - intervenha em teus negócios e te ajude a combater o inimigo? Eles não sabem que me encontro aqui com os meus homens. Diverti-os com vossos frecheiros do alto dos muros, com lançamento de mechas de fogo, alarido guerreiro. À sorrelfa sairei com os meus pela porta da traição e sobre eles cairei de surpresa.

Assim disse o Campeador, assim se combinou e, junto aos muros da nobre cidade, os mouros de Abd Allâh sofreram cruel e súbito revés. Combatia por eles o castelhano Garcia Ordonez, que preso caiu às mãos de Rodrigo, enquanto o exército fugia em desordem perseguido pelas tropas do grão-vizir, que saíram a ultimar a refrega.

Dias depois, a caminho de Burgos, à corte do rei Alfonso, sai Rodrigo Díaz de Bivar com seus prisioneiros e muito rico espólio.

De todo esquecido do aviso da velha da Serra Morena, pensou Ibn Ammar ser chegada a hora de sua glória:

- É o momento, senhor - disse a al-Mutâmid - de investirmos contra Múrcia. O rei Abú Abd ar-Rahmân Ibn Tâhir é homem pacífico, virado para as coisas do coração e do espírito, pouco dado a militares empresas. Fácil presa será. Solicito o teu consentimento.

- Consinto - responde al-Mutâmid - e demais quero que meu filho, o príncipe ar-Rashíd, te acompanhe.

Partia Ibn Ammar e liança fazia com o conde Berenguer Ramón, senhor de Barcelona com seu irmão gémeo Ramón Berenguer. Para assegurar tão estranho concerto, entrega o conde em refém o próprio sobrinho e o grão-vizir não menor penhor que o príncipe ar-Rashid, filho de al-Mutâmid. Atacada Múrcia, na data aprazada não honrou Ibn Ammar os termos do pacto.

- Perfídia, traição! - brada o conde Berenguer Ramón e logo ordenava prendessem ao vizir e ao filho do rei de Sevilha.

E em prisão os leva para os seus domínios, que nem as tropas deles alcançam livrá-los.

E rei Ibn Tâhir pôde enfim descansar, vendo os inimigos desfazer o cerco.

 

                                           Intermezo quarto

- Padre Armirigo! Senhor prior! Que prazer em ver-vos! A que devo a honra... ?

- Ah, mestre Fernando, o prazer é meu... Estes meus rins, estes meus joelhos... E os meus pés? Nem sei como me deu para sair. Mas tinha de aviar hóstias para a missa de amanhã...

- Porque não mandastes um dos vossos clérigos, o sacristão?

- O sacristão? Desconfio que anda de amores o malandro. Não me apareceu até agora.

- De amores?

- De amores. É andaço, praga de gafanhotos, maleita dos ares, corrupção de peste... Ainda agora, ao passar pelo pão de trigo do Maurício... Bela seara, sim senhora!... É verdade: onde está o vosso ajudante?

- O Randulfo? Deve estar a chegar.

- Não é ele a pontualidade em pessoa?

- A pontualidade em pessoa, mas hoje... É estranho! Ainda não chegou!... Porque perguntais?

- É que, ao passar pelo trigal do Maurício, creio tê-lo visto...

- Pelo trigal do Maurício?

- ... pareceu-me ser ele... a figura não engana, aquele corpo assim, torto, trangalhadanças... a contrastar com...

- ... com...?

- ... ia bem acompanhado...

- Acompanhado?

- ... da vossa escrava... Como é que se chama aquela vossa escrava, essa mocinha tão esbelta, tão...

- ... tão...?

- ... que eu baptizei?

- O Randulfo? Acompanhado de Zoaira, da Catarina?

- Catarina. Essa mesma. Meteram pelo trigal do Maurício... que os engoliu...

- Que os engoliu?... Ah!...

- Lindo trigal! Alto, espigado, loiro...

- O Randulfo e...

- O que eu nunca tinha visto, mestre, era um trigal a ondular e a tremer e a suspirar seus ais sem que soprasse uma aragem...

- E o trigal gemia?

- Gemia.

-...e suspirava?

- Suspirava.

- ... e desferia seus ais?

- ... e uis. Sentidos. Gostosos...

- Tenho entendido, Padre Armirigo.

- Também eu. Por isso é que há pouco eu dizia...

- Dizei-me antes, padre, como vai a vossa igrejinha de Nossa Senhora do Ó, de Águas-Santas?

- Vai bem, mestre Fernando... E o trigal, ia eu para me tirar de meus cuidados...

- E o pecúlio dos fregueses? E a côngrua? E as rendas do mosteiro? Vão pingando na caixa das esmolas? Dão para o azeite da lâmpada, prà cera dos círios, prò sal da pia da água benta, prà mesa dos freires?

- Não me faleis disso, mestre. Uma carestia!... Como ia dizendo, os meus joelhos...

- E a água milagrosa da fonte das santas irmãs Basília, Germana e Vitória?

- Ai, não lembreis isso, mestre. Milagres? Já os não há. Ai os meus joelhos! Adeus, mestre. Vou andando.

- Adeus, padre Armirigo. Aparecei sempre.

- Se eu puder, mestre... se eu puder...

- Ide com Deus... e olhai... Não vos ocupem os trigais alheios... que estremecem sem vento e lançam gemidos de espantar corvos...

- Adeus, adeus.

- Até à vista, padre. Cuidado com esse degrau... e com a pia das galinhas... Lá vai o coscuvilheiro do prior... Não querem lá ver? A espreitar vida alheia! A titilar, o maganão! Com aquela idade!... Ah! Olha quem me vem entrando portas adentro! Viva, senhor Dom Randulfo! Assim descurais vosso mestre, minhas penas e laudas?...

Dissimulo, é bem de ver. Roubou-me Zoaira. Qualquer dia atreve-se a Imena que é mais sabida e azougada... Tenho de lhe dar correctivo, lição...

- Mestre, injusto que sois! Por mor de vós me levantei cedo e fui para o rio por areia para o vosso areeiro.

- E que é dela, a areia?

- Tenho-a lá fora ao sol a secar. Também fui pôr estopa de molho para os cordões dos cadernos...

- Vens cansado, vejo... Mas que lindas cores! Fez-te bem o passeio...

- Tenho de o fazer mais vezes.

- Bom, bom, bom. Ao trabalho. Falaremos à ceia. Ao trabalho.

Randulfo senta-se no seu escabelo, acerta os cadernos com ar distraído, toma da agulha como quem tem o tardo, o olhar a perder-se pelo janelo fora...

- Deixaste de ser curioso, Randulfo? Nem sequer me perguntas onde ficámos, aonde chegámos na nossa crónica...

Falava consigo, como quem recita versos mouriscos, ouvidos, cantados ao som de alaúde:

- Maravilha-te de quem se queixa de sede tendo água na garganta...

- Não me estás a ouvir, Randulfo? Acorda. De traições é a

hora...

 

                                      Hora de traições

Ibn Ammar, refém de Ramón Berenguer, conde de Barcelona, a seu senhor al-Mutâmid emir de Sevilha:

Maré de tempestade a que eu navego. Afastar-me, arrostando o meu destino?...Chegar-me a ti, meu porto de refúgio?... O entendimento diz-me que teu peito intenta libertar-me da mofina. Mas logo caio num combate vão, do alfange o fio se amolece, é negra cerração a minha noite. Tem compaixão! Fiel sempre fui, és testemunha. Se tinha mérito, ganhou-mo teu exemplo. Não te desobedeci, na tua ausência, não fui fraco, mas presa da fortuna, cimitarra e armadura se romperam. Não fossem as águas da bondade que enternecem os ramos sequiosos meu sofrimento não se acalmaria, por me saber culposo do sucesso. Humilde imploro um grão de piedade, possa eu beber do licor da tua alma. Vento vindo de ti, ainda suão, a abrandar-me o coração brisa será.

- Louco traidor insensato! - resmunga al-Mutâmid, a carta na mão. - É verdadeiro teu sentir? Minha sanha se acalma. Duro castigo merecias, que te deixasse apodrecer nas masmorras do inimigo... Mas também lá tenho meu filho ar-Rashid... Nem eu nem sua mãe Itimâd podemos sofrer vê-lo feito refém - e o emir bateu palmas, chamou seu ministro:

- Abú Bakr!

- Meu senhor?

- Depressa! Correi junto ao conde Berenguer Ramón. Levai bolsa bem recheada de maravedis de ouro e resgatai meu filho...

- Sim, meu senhor.

-... mais o grão-vizir... que caíram reféns.

Foi-se Ibn Zaydún por montes e vales, brejos e baldios, evitando castelos e povoações, via ao sul branquejarem os cumes da Serra Nevada, para leste os da Serra Segura, azular de vez em quando ao longe o espelho do Mediterrâneo, e chegava aonde o conde Ramón... e dentro de dias a Sevilha tornava com os dois reféns.

Na corte houve festa, sorrisos e lágrimas, pelo regresso do príncipe ar-Rashid. E o grão-vizir, na sombra, roía nos dentes podres da alma a peçonha da inveja.

Morria al-Mamún, livre se sentia rei Alfonso para atacar Toledo, andança que em seu coração muitos anos havidos volvia. De todas as Espanhas os cavaleiros chama, os condes barões da Galiza, Leão, de Castela e Navarra. Concorrem à corte os senhores de Santiago, Corunha, de Trava, Oviedo, os nobres dos Sousas, de Alões e da Maia, de Ribadouro e Baião, os senhores de Borgonha, de Tolosa, com suas mesnadas, os brasões, as armas luzidas na arca dos peitos, os pendões ao vento, seus cavalos corredores de jarretes nervosos e olho brilhante...

- Senhores - diz el-rei -, o tempo é chegado de tomarmos Toledo, forte bastião pra mais audaz avanço por campo de mouros. A vossas terras tornai a preparar guerreiros, armas e tudo o mais que pertença à empresa.

Os guerreiros voltaram cada um a seu termo, para as bandas do mar, para os castelos das serras... Mas Rodrigo, o Cid, em vez de seguir pra seus paços, corre a fazer razia por taifas de mouros, a se acrescentar em esbulho e riqueza.

Apelava Ordonez, da prisão de Burgos, o libertasse el-rei, que o Cid à traição o prendera, sendo ambos cristãos. Mais insinuava ter ficado o Cid com a metade do espólio de Granada. Mandou rei Alfonso o preso viesse à sua presença.

Aos pés de seu senhor se rojava Garcia.

- Soam por aí rumores de que o Cid se apoderou de despojos de guerra devidos à coroa. Que é que tu sabes? Fala - o rei lhe ordenava.

Garcia contava como combatia junto de Abd Allâh ben Bal-kin, rei de Granada, contra a investida do emir de Sevilha:

- Abd Allâh é teu tributário, senhor. Sob tua protecção se encontrava.

- Achas?

-Assim eu julgava. O que não esperava era que Rodrigo ali aparecesse a combater ao lado do vizir Ibn Ammar.

-... que também se julga meu protegido.

- Encontrámo-nos, pois, dois dos cristãos vossos a combater um contra o outro. O Cid ganhou e em ferros eu vim para Burgos. Mas isso não é o mais grave.

- Que é o mais grave?

- Ele não te entregou o espólio todo, a riqueza toda que para Burgos trouxe.

-Não?

- Guardou para si o maior quinhão.

- É isso verdade?

- À fé de quem sou.

- Não estarás a erguer falsidade, da inveja tolhido? Para tal mentira a morte é o castigo.

- Mata-me, se quiseres... mas tira devassa.

Devassa tirou rei Alfonso e então descobria que Ordonez falara verdade.

- Libertai o preso - el-rei ordenava - e que às honras volva de dom cavaleiro... - e com torvo olhar o dedo apontava à porta da alcáçova: -...e que o Cid da corte, do reino pra sempre seja banido, que eu jamais o veja.

IbnAmmar, o vizir, a seu rei al-Mutâmid de louvores rodeava, de salamaleques:

- Saiam Halayk, senhor! - fazia salema. - Se alguma vez de mim foste amigo...

- Não fui?

- ... pois se foste, permite que a teus olhos, no teu coração, este teu amigo, que deveras sou, se reabilite.

- Que pretendes tu?

- Desagradado comigo deves ter ficado...

- Fiquei. Deixaste prendessem meu filho.

- ... e por eu ter falhado a conquista de Múrcia... Mas agora...

- Agora? Quererás tu recair no mesmo erro?

- Reforcei minhas tropas.

- Não julgo avisado.

- Experiência é mestra...

- A quem tu o dizes. Aprende com ela e não queiras...

- Aprendi com a vida. Não torno a falhar. IbnRashíq, o alcaide do castelo de Baldj, é meu aliado.

- Teu? E meu não? - a el-rei al-Mutâmid a negra suspeita o coração invadia.

- ... é nosso aliado. Desta vez a empresa não pode quebrar.

- Seja - enfim o emir consentia sem fervor nem gosto.

Tinha o grão-vizir apoio seguro de murcianos traidores aliciados por IbnRashiq. Já treda negregura, IbnAmmar, o peito te alaga, que aceitas conluio de aleivosos traidores?

Após longo cerco, a cidade de Múrcia rendeu-se, o ano corria da era de mil e cento e dezasseis. Triunfal entrada de IbnAmmar, ladeado por IbnRashiq. Ao rei Abú Abd ar-Rahmân IbnTâhir não quer humilhar. Mensageiro lhe envia com riquíssimas vestes reais. Agastado recusa o vencido soberano:

- Diz ao teu senhor - com gravidade responde -, que dele só quero pelica comprida e gorro pequeno.

Bem entende o vizir o agudo remoque, lembrado do tempo em que vagabundo pobre, de balandrau de pelica pelos ombros magros e pequeno carapuço na cabeça, lhe recitava versos. Magoado ordenava:

- No forte o encerrai de Monteagudo.

À varanda real, ricamente vestido, IbnAmmar à multidão aparece e faz-se coroar rei pelos juízes e sacerdotes, que juravam obediência com medo não lhes fossem dos ombros rolar as cabeças. IbnRashíq logo ali grão-vizir é alçado e ao povo que os aclama o novo rei promete a descida de impostos. Aclamações ruidosas aplaudem a promessa.

À noite, ao banquete, ao ouvido do seu grão-vizir IbnRashiq segreda rei IbnAmmar:

- Meu reino alargarei ao norte, ao sul, ao este, e oeste...

- E a próxima conquista é...?

- Atacarei Toledo.

- Toledo? O rei Alfonso?

- Partirei em breve com minhas tropas. Na minha ausência ficarás tu a governar Múrcia.

- Assim farei, senhor - disse o grão-vizir erguendo a taça de vinho.

À frente de suas tropas partia IbnAmmar para a grande empresa, mas no caminho, ao dar conhecimento a seus generais de seus secretos intentos, estes revoltam-se e negam-se a seguir o traidor e encetam o caminho de Sevilha, a seu rei al-Mutâmid.

Com apenas alguns fiéis cavaleiros, regressa IbnAmmar a Múrcia mas ao chegar encontra-lhe vedada a entrada na cidade e de cima da cidadela ameaças de morte, se não sair dali a toda a pressa.

IbnRashiq havia-se proclamado rei. Sem tropas, sem nada, fugiu IbnAmmar para Saragoça. Ainda tem esperança de que el-rei Alfonso lhe venha em ajuda. Mas o rei cristão auxílio lhe nega, que não dá auxílio a ladrão roubado, a traidor traído...

À solta andava ainda a traição por outras bandas e aos ouvidos soava de Alfonso, de al-Mutâmid, de todos os reizetes das taifas e até do pobre, do triste do IbnAmmar, mais uma vez exilado em Saragoça, tombado do alto da sua ambição...

- Formoso tempo, irmão, para correr montaria! Queres vir amanhã fazer caça ao urso pardo, ao cervo da serra, ao javardo dos tojos? - desafiava Berenguer Ramón a seu irmão gémeo Ramón Berenguer, condes de Barcelona.

Duas vezes casara Ramón Berenguer primeiro, o Velho: com dame Isabel de Béziers, de quem houve filho Pedro Ramón, e com dame Almodis de La Marche, a mãe dos dois gémeos. Num envolvedouro de traição e morte haviam crescido estes dois irmãos, que Pedro Ramón, dos ciúmes roído, apunhalara um dia a madrasta Almodis. Ao morrer, o pai deixara, pro indiviso, aos dois outros filhos todos seus domínios, que, por casamento com damas de França, além Pirenéus se estendiam, aos condados de Carcassona e Tolosa, Narbona e Manerbes, Sales e Foix. Pairava no ar, talhava-se à espada a espessa, grudenta ambição. Em qual dos peitos dos condes rivais primeiro entraria?

Ainda a aurora não era raiada, já soa olifante, malsofridos latidos de inquieta matilha, rafeiros, sabujos, lebréus, perdigueiros, tropel de cavalos enceta caminho, caçadores, monteiros com forquilhas, chuços, o agudo punhal à cintura. Já partem ligeiros, trepando ladeiras, encostas, na crista da serra do Fogo entrava a pintar o luar da rosada manhã. Floresta de robles, de cedros, ciprestes, pinheiros e zimbros, penhascos agrestes, pedragulhentas grutas, emaranhados silvedos, já os cães farejavam.

Berenguer Ramón deixara-se ir atrás, à distância, do irmão Ramón Berenguer dito o Cabeça de Estopa. Súbito a matilha, em aflitiva ladraria, levanta da sarça de silvas um possante porco montês, já o têm filhado raivosos, regougando, espumando, alguns já sangravam das presas da fera. Correm os homens, os picos em riste, prontos os punhais, quando de outra moita segundo javali se levanta e furioso investe Cabeça de Estopa. Incita a montada Berenguer Ramón, como para ajudar o irmão no perigoso transe. Já aponta a lança, já arremessa o tiro e a aguda frecha o peito trespassa de Ramón Berenguer.

Que triste que foi o regresso a casa, aos paços condais! O povo chorava Cabeça de Estopa e no ar começavam a ouvir-se como a medo murmúrios estranhos, e, quando o conde, de luto vestido, passava nas ruas, seguiam-no olhares, silêncios e vozes por vezes, trechos de palavras mal pronunciadas, vinham de entre dentes: lá vai Ramón Berenguer, o Fratricida...

... que assim nas crónicas pelo tempo adiante ficou conhecido...

Desgraçada vida leva Ibn Ammar em Saragoça. Para cúmulo aí chega, banido de Alfonso, Rodrigo Díaz de Bivar. Vem colocar seu braço, sua espada ao serviço do rei al-Mutâmin. IbnAmmar não quer ficar atrás. Tem saber, experiência, seus préstimos certo não deixarão o rei indiferente. al-Mutâmin acolhe o oferecimento. Mas quais as armas do antigo vizir senão as da negregada traição? Preso em Segura, é encarcerado num forte no alto da serra. Seus carcereiros são os Banú Suhayl, que, a vingar velhas injúrias, o ferram escravo pelo maior lanço.

Apelo angustiado envia a Sevilha, a seu al-Mutâmid:

Minha alma grita por que venhas atalhar que outro seja o que me compre. Corre a tomar-me a vida, se ela para ti ainda tem valia. Vem depressa, adianta-te. Sei que é alto o preço do resgate, mas é garante de fazeres boa mercancia. Disporás de mim depois como quiseres: poupar-me a vida ou dar-me a morte. Por AllâhIQue quererão de mim meus carcereiros? Será amanhã o dia do meu fim? Não sei que mais me mata, se a vergonha, se o medo de morrer...

Vede-o ali está, no largo da feira, no estrado do leilão de escravos, apenas um leve manto pelas costas, para que os compradores possam avaliar-lhe os músculos, o peito, mãos e pés, os dentes... Quem dá mais? Quem dá mais? Escravo valioso, ó gente, valiosíssimo!...

- Cinquenta maravedis.

- Cinquenta e cinco.

- Quem dá mais? -Cem.

Adianta-se um jovem muito bem vestido, num cavalo branco ricamente ajaezado, acompanhado de cavaleiros armados. Tem ar de rico senhor, nobre parece. Ninguém o conhece naquelas paragens:

- Quanto queres, leiloeiro, por esse escravo mais a torre em que o tens prisioneiro?

- Quê? O escravo mais o forte?

- Foi o que eu perguntei.

- Não tem preço isso.

- Toma. Aí tens uma bolsa cheia de ouro.

Em roda os compradores, estupefactos, olham o jovem, o vendedor que abre a bolsa e arregala os olhos com o que vê.

- É teu o escravo mais o forte, senhor - diz ao jovem, fazendo-lhe vénia como a alta personagem e entregando-lhe as chaves da prisão.

- Vem - diz o jovem. Reconhece-o Ibn Ammar.

- Príncipe ar-Rashid!

 

                               Intermezo quinto

- Randulfo, temos umas contas a ajustar.

- Então esse grão-vizir...? Traidor me saiu!

- Não te esquives. Bom traidor me saíste tu.

- Eu, mestre?

- O prior Armirigo viu-te mais Zoaira meterem pela seara do Maurício dentro...

- Fomos ver se o trigo estava maduro.

- E estava?

- Sazonadinho, mestre.

- É pecado, Randulfo.

- O que é pecado, mestre, é sonegar. E vós tendes Imena e ainda quereis Zoaira. Isso é sonegar, mestre. E vós sonegais. Isso é pecado, mestre.

Sentia eu algum espinho de remordimento na consciência e compreendia que o meu ajudante tinha razão. Compondo o ar mais bonacheirão que pude, apesar do zelo que me roía o coração, enchi-lhe eu próprio o copo de vinho:

- Talvez tenhas razão.

O olhar dele foi punhal afiado, quando disse:

- Tendes Imena. Deixai Zoaira para mim. Casai-me com ela, mestre.

- Casar? E ela quer?

- Como não há-de querer, se...

- ... se já viram o trigo sazonado? Eu falo com ela.

- Fala?

- Falo e, se ela disser que sim...

- Sois um santo homem, mestre.

- Zoaira, vem cá.

- Que quereis, meu senhor?

- Sei que foste ver mais o meu ajudante se o trigo do Maurício estava sazonado. Estava?

- Estava, meu senhor. Parecia que a terra era ainda virgem, que o trigo enlouquecera, grande como nunca jamais eu vira outro.

Fiquei sem saber que dizer, um nó na garganta. O melhor seria ir direito ao assunto sem rodeios e metáforas...

- Sabes que Randulfo gosta muito de ti?

- Sei, meu senhor.

- Quer casar contigo e se tu consentires...

- Casar? Deus me livre! Eu não gosto dele... torto como é... Tive é pena dele, foi o que foi.... sempre a mendigar... e depois...

- ... depois...?

- Bom momento foi... Casar? Eu nem sei de quem gosto. Também não gosto de vós...

-Não?

- Não, e no entanto... Gosto do moleiro, apesar de cristão. Rapagão guapo, escorreito, bonito... Gosto do pastor, se bem que judeu. Formoso zagal! Todas as moças da terra o requestam... Mas casar...

- Se casasses com Randulfo, serias mulher forra, terias estatuto de senhora dona...

- Escravidão dobrada, senhor. Casar não é comigo... Estou bem assim... a menos que vós me não queirais...

- Quero, pois. De ti gosto muito.

- Ainda bem, meu senhor.

- Não sei é como dizer a Randulfo que tu...

- Deixai isso comigo.

 

                                   Toledo

Comités, condes, seniores, senhores, domini villarum, os donos das vilas... cavaleiros e infanções, os fidalgos campesinos que desceram dos montes Cantábricos, os barões das presúrias, frades dos mosteiros, de San Miguel de La Escalada, de Cardena e Cogolla, de São João Baptista de Ribadouro, de Guimarães, ao chamado do rei Alfonso acorriam todos. Os condes Raimundo e Henrique convocavam seus homens. Ali vinha Gomes Echíguez e o filho, Egas Gomes, dos Sousas, real sangue dos godos. Este é Mendo Alão de Bragança, com a filha do rei da Arménia casado. Já se apresentava Gosendo Araldes, da casa dos Baiões, vindo das margens do Cávado, e Ermígio Moniz. Chegava também Soeiro Fromarigues, das bandas de Grijó. Não quis Paio Ramires faltar, senhor de Prisco, Marecos, de A-Ver-o-Mar e outras muitas terras ao redor de Braga, que não desdenha ser de família de moçárabes de Toledo. Aí vem Egas Moniz, filho de Múnio Ermiges, de quem a história muito tem que dizer. E estes, com suas mesnadas, são os Mendes da Maia, os irmãos Soeiro, Gonçalo e Paio, garbosos em seus garbosos cavalos.

De mil cento e trinta e cinco a era corria e aproximavam-se as Calendas de maio. De todos os ventos chegavam ao Tejo, pelos descampados das Extremaduras, e concentravam-se no planalto a norte da urbe, na loira Sacra de terra avermelhada, e não demoraram a cercá-la a impedir lhes viesse do sul socorro. Pela calada da noite procedem e da madrugada, tão silenciosos como o luar e as estrelas. No alto do morro, que o rio, em pequenos açudes e azenhas do pão, afagava coleante como a promontório, ali estava ela dentro das muralhas, o ocre dos tijolos a brilhar ao sol, a torre do minarete ou mole de palácio a destacar-se do casario baixo acotovelado por estreitas, tortuosas ruelas. De inimigos cercada a cidade acordava, gritavam dentro mulheres e crianças, e pelas ameias a espreitar começam vultos brancos de mouros.

Até à barbacã avance um arauto, Alfonso sexto ordena. Rendessem-se. Respeitar vidas, religião e bens e trabalho el-rei prometia: podia cada um ficar com casa e família, com seu ganha-pão. Rendessem-se.

Algum tempo levaram os Mouros a tomar decisão. Entregaram-se ao cabo, não sem refrega de alguns resistentes pronto dominados, e pôde o rei cristão enfim triunfante entrar em Toledo.

Então foi Gonçalo Mendes mandado com carta de Alfonso ao emir al-Mutâmid a propor-lhe seja o reino de Sevilha regido por conde cristão. Recebe Gonçalo com agrado a missão. De quarenta anos e casado com Urraca Teles, não lhe sai no entanto da ideia a imagem formosa da princesa Buthayna. Enquanto desce por montes e vales ou segue por margens de ribeiro ameno, à testa de cem cavaleiros, nela vai pensando e aos lábios lhe vêm uns versos ouvidos na corte andaluza. Compusera-os o emir, na beleza inspirado da amada Itimâd. Ao recitá-los, não é na mãe que cuida Gonçalo, mas na beleza da filha:

 

Aquele dia ela não apareceu

com receio de invejas

que espreitavam pelos cantos.

Temia a traísse o esplendor do rosto,

o brilho dos olhos?

ou o tilintar das jóias

nos braços, no colo e artelhos?

ou o perfume do âmbar

do corpo exalado?...

Ao clarão do rosto, ao fulgor dos olhos

bem poderia sob o véu escondê-los,

as jóias calá-las tirando-as...

a fragrância do encanto porém

pelo ar esparzida

como ocultá-la?...

Isso a denunciaria...

 

Com todas as honras recebera al-Mutâmid o enviado de Alfonso. Leu a proposta contida na carta, tomou-a como acto de guerra :

- Ide a vosso rei, cavaleiro, e levai-lhe em resposta o meu fundo repúdio - e, com a maior secura, despediu da corte a Gonçalo Mendes e ele partiu sem nem sequer ter visto a formosa Buthayna.

- Gonçalo, meu fiel cavaleiro, que novidades me trazeis do emir de Sevilha?

- Envia-vos carta, senhor. Pelo que respondeu depois de ter lido a vossa proposta, rejeita-a e zangado ficou.

- Mau é isso - disse rei Alfonso quebrando os selos da carta que Gonçalo lhe dava. E assim a carta rezava do emir al-Mutâmid:

Que Allâh confunda teu renegado intento. Queres ser chefe das duas religiões? Desengana-te. A nós, Muçulmanos, é que é mais devido esse título, pelas nossas conquistas, organização e tributos cobrados. A desinquietar-nos vieste e agora volve-se ira o nosso sossego. Havíamos deixado em paz os Cristãos e pensaste que ninguém te igualava. Fatal erro. Somos numerosos, temos exércitos, cavaleiros couraçados de ferro, arte e engenho guerreiro e aliados intrépidos. Persistentes, meus homens menosprezam infortúnio, sangue pronto a tingir de vermelho as espadas. É gente habituada a morrer nos plainos, a combater com ardor, a esquivar golpes de infiéis. Demasiado durou a calma em que estávamos, mas fortaleceu-nos a fé. Jamais vossos avós respeitaram os nossos e ante eles se portaram com dignidade. Sempre tentaram humilhar-nos, não o ignoras e nós não o esquecemos.

Louvado Allâh seja por nos dar ensejo de te repreender e dar uma lição ante a qual nada vale a morte. Ele nos ajudará, quando nós contra ti marcharmos, e dará a vitória a quem segue a verdade e foge de erro e traição.

Por instantes Alfonso quedou pensativo com a carta na mão. Depois estendeu-a a Gonçalo:

- Lede. O emir quer a guerra, a guerra terá.

- Ameaça atacar-vos? - estranhou Gonçalo os termos da carta. - Mas isso é loucura!

- Loucura será, mas antes ainda lhe darei ocasião de reflectir bem no passo tomado.

- Que ireis fazer senhor?

- Ide, Gonçalo. Passai palavra aos cabos de guerra estejam prestes para quando eu der ordem.

Partiu Gonçalo de ao pé do rei, mandou este chamar o seu

arinteiro:

- Mossel Baruch...

- Senhor?

- Preciso envieis emissário a Sevilha ao emir al-Mutâmid,

a cobrar-lhe as páreas devidas.

- Sim, meu senhor.

Não tardou Baruch em cometer o encargo a um cobrador judeu, com severas ordens de não regressar sem as páreas cobradas.

- De não regressar? - estranhou o pobre. - E se ele não pagar?

- Ameaçai-o.

E o cobrador partiu, com pequena comitiva, e passaram-se dias e ele não regressava, que o emir al-Mutâmid, quando tal ouviu, que ou pagava as páreas que a Alfonso devia, ou el-rei Alfonso com seu exército as iria cobrar e com os juros da guerra em vidas e bens, levado da ira o mandava matar...

Um fugitivo da comitiva do triste judeu, à corte chegava a contar o caso. Então foi a vez de se enfurecer o coração de el-rei e a suas tropas ordena que marchem para sul a conquistar quanto seja terra de mouros...

' Que desassossego sente o emir ao saber por esculcas que Alfonso avançava! Seu poder não era como em carta afirmava. Aguerridos exércitos? Cavaleiros de ferro? Gente acostumada a morrer nos plainos?... Ah! Gente mas é amolecida nos prazeres da luxúria, na soltura de orgias, banquetes... Aliados intrépidos?... Talvez Iúsuf, o rei almorávida, possa acudir em auxílio...

Resolve escrever-lhe:

Fortaleça Allâh o emir dos crentes, a vitória lhe dê da nossa religião. Os árabes do Andaluz vemos a fraqueza e desunião de nossos povos, abastardada a nossa linhagem, por desrespeito das crenças antigas. Partidos em reinos hostis entre si, presenciamos o crescer dos que se comprazem com a nossa ruína. Principal inimigo o infiel rei Alfonso. Ameaça-nos, assedia-nos com suas tropas, por nossas terras caminha, apodera-se delas, de fortalezas, castelos, e a nós muçulmanos apego dos prazeres da vida retém cada um em sua casa, nenhum de nós acode a vizinho ou irmão. Em tanta aflição, a esperança perdida, é para vós, senhor dos Himyaris, seu soberano e chefe e seu guia, que volto o meu olhar e peço socorro. Em naves ligeiras atravessai o mar e o infiel vinde combater. A lei do Islão fazei renascer, defendei a religião de Muhammad. Grato para convosco se há-de mostrar e ser-vos-á generoso o muito alto e grande Allâh, em quem reside todo o poder.

Assustados também com a tomada de Toledo, a este pedido de auxílio se juntaram os emires de Badalhouce e Granada.

Eram berberes dos Sanagás e dos Lantunitas, que a dinastia dos Almorávidas criaram. Corpos secos, endurecidos, temperados como aço de espadas na sede de água e na magra fome de algum fruto do deserto, na míngua de mimos, na solidão e silêncio dos dias, na recitação das verdades eternas e únicas dos versículos do texto sagrado.

Filho de varão sanagá e mulher lantunita, Iúsuf IbnTâshfín era descendente dos fundadores do rebate, que se entregavam à pregação e à guerra santa, como o Corão prescrevia. Sua dinastia engrandece e funda a cidade de Marrocos, de que faz capital, e o reino estende ao Mediterrâneo, a al-Jazair.

Um dia ao deserto, nas abas do Atlas, chega-lhe um mensageiro e lhe entrega a carta do emir de Sevilha. Lê-a. Não hesita. Pronto dá ordens se levante o exército, se apreste frota que leve o seu braço a acudir ao irmão muçulmano do outro lado do mar... e em breve espaço assombrosa armada se junta no porto de Tanjah, frente ao estreito que, três séculos e meio para trás, Gebal Tárik IbnZeiad, lugar-tenente de Muza ben Nasser, transpusera para invadir a Hispânia.

 

                                           Intermezo sexto

Imena e Zoaira haviam seguido para a ribeira de Almorode a pôr na demolha, para lhes tirar o amargor, duas sacadas de tremoço acabado de cozer em água de cinza. Terminada a missa, antes de pegarmos a trabalhar, eu e Randulfo passámos por lá. Os pés dentro de água e as saias arregaçadas pelos joelhos, discutiam elas com o Manel cesteiro que teimava em arreliá-las colocando o seu molho de vimes da parte de cima da corrente.

- Ó home! Tire lá isso daí, que as varas largam cor. Vá para o lado de baixo. Quer estragar-nos os tremoços?

- Agora! Venham mas é vossemecês prà minha beira. Da riba de cima estarão melhor.

- Temos visto! - espetava Zoaira os punhos nas ancas reboludas, fingindo zanga, os olhos travessos. - Vomecê é casmurro?

- Casmurra será a menina, com sua licença... tão prendada, pernas tão bonitas...

- Nós chegámos primeiro - Imena dizia, saindo da água e deixando a fímbria das saias caírem até os tornozelos.

- Fazemos um acordo - o ar maganão do cesteiro.

- Qual?

- A menina casa comigo e eu...

- O home não está bom da touta!

- ... e eu ficava por baixo...

- Uma figa! - atirava-lhe Imena uma chapada de água.

Ria o cesteiro a bom rir e virava-se para Zoaira:

- E a menina?

- A menina quê? - desafiava Zoaira com os olhos.

- Ora quê? A menina bem sabe.

- Soubera eu outra coisa... Ou vossemecê sai daí ou...

- Deixa, Zoaira - intervenho eu, que venho chegando e percebo a contenda. - Então, Manel cesteiro, a mangar com as moças?

- Ora, sor cónego, só derriço. Eu saio já - e calmamente pegava nas varas e ia colocá-las mais abaixo na água corrente.

Randulfo, todo arreganhado, chispava-lhe ódio do olhar. Manel ainda lança uma mirada às moças, a nós, e, atirando a molhada de cordas para o ombro, desanda dali:

- Até mais ver, senhor cónego. Adeus, moças.

- O senhor cónego não quer que eu lhe lave os pés? - dizia Zoaira com o ar mais inocente do Sete-Estrelo. - A água está fresquinha. Fazia-lhe bem.

- Cuida de Randulfo, que eu lavo os pés ao senhor cónego - disse Imena.

Sentámo-nos na erva da margem, as moças tiraram-nos as sandálias, mergulhámos os pés na água e elas, ajoelhadas na areia pouco funda, as saias acima dos joelhos, deram-se ao gostoso e bíblico lava-pés.

- Tu não tens vergonha, Randulfo? - dizia Zoaira -, de não cortares as unhas dos pés? Olha para estas gadunhas! Só de podoa! E és tu que queres casar comigo?

O que ela foi dizer. Randulfo ergueu-se de rompante, pegou nas sandálias e saiu furioso campo fora.

- Que é que lhe deu? - espantava-se a candura de Zoaira. Imena enxugava-me os pés, calçava-me as sandálias e eu

parti no encalço do meu ajudante:

- Até logo, cachopas.

- Até logo, senhor cónego.

Encontrei Randulfo no scriptorium. Parecia trabalhar, mas pelo tremor das mãos vi que outros eram seus trabalhos. Procurei desviar-lhe os espíritos funestos:

- Ora, Randulfo, é dos antigos compararem a vida às águas do rio. Mas há, para além do fluir, o refluir. Fluxos e refluxos, apanham-nos as paixões...

- O mestre não me avisara de que Zoaira...

- Quem iria adivinhar que ela não gostava de unhas compridas?... Avém-te lá com ela. Por mim, não me intrometo mais no assunto... Mas basta de conversa. O trabalho chama-nos. Mãos à obra, Randulfo. Não queres saber o que lá vem a seguir? O embate entre as hostes de Alfonso e de Iusuf? Ou o que aconteceu a IbnAmmar, que em apuros deixámos?

Atirou-me de lá, do seu escabelo, um olhar de punhal afiado:

- À fava, mestre, mais a maldita crónica! - e levantava-se e saía de sacão porta fora resmungando entre dentes.

Comecei a temer pelo seu humor truculento.

 

                               O castigo

- Grande é Allâh! Como se abate ambição, poder e tredice! - a velha abanava a fogueira, fumegava a panela do caldo de sapos e osgas. - Olá, Ibn Ammar. Mais miserável vens que da última vez. Que é da tua arrogância, grandeza, teu oiro e luxúria? Não te avisara eu fugisses de Múrcia?

- Cala-te, mulher - a custo falava Ibn Ammar. Andrajosas as roupas, haviam-no posto de bruços sobre o lombo de um ásino burro, a cabeça para baixo, mãos e pés atados de ferros, entre fardos de palha. - Cala-te e chega-me à boca dessa tua mistela. Morro de fome e de sede.

Consentiram os guardas.

- Toma - dava-lhe a velha a beber do tarro nojento. - É manjar de vizires - e acrescentava: - Vê, te faças humilde. Talvez possas ainda salvar-te. Foge à ira do rei teu senhor. Que esperavas tu? Que o príncipe ar-Rashíd de vizir te vestisse? Depois do que obraste?... Allâh te salve, príncipe ar-Rashíd, e a toda a tua companhia.

Em seu corcel branco, luzido, vinha chegando o príncipe mais a sua comitiva real. Deram os guardas em chibatar o asno, que lesto lesto se pôs a trotar, o desgraçado Ibn Ammar aos baldões o caldo da velha da boca bolçava. Das alturas da serra Morena desciam às margens do Guadalquivir, já Córdova inteira, a multidão nas ruas, aguarda a chegada do vizir abatido.

- Allâh confunda o grande traidor! - só se viam, se ouviam apupos gritados, as bocas abertas, os punhos no ar, e risos e troças e maldições incontidas:

- Olá, grão-vizir!

- Viva, real senhor!

- Morra o fi de puta!

Mas emir al-Mutâmid ordenava levassem o preso pra junto da corte em Sevilha. Queria ver de perto o castigo, a vingança de tamanha traição. Da varanda rendada com sua Itimâd, o grão-vizir e ministros, contempla a triunfal chegada, por entre alas da turba, do cansado asno burro com o fardo de palha do traidor castigado. Cuspinhos e murros choviam, pessoas em fúria da bosta colhida do chão lhe atiravam, gritando impropérios. O pobre do burro aturdido desatava aos pinotes, aos coices, os fardos ao chão atirava com Ibn Ammar e o focinho fisgava a fugir pràs bandas dos campos, do rio...

Ao preso levaram-no os guardas para os calabouços de ao pé do palácio, com sua corte el-rei recolhia-se a rir e a aprazer-se em alegre banquete.

Do ventre das nuvens fuzilou o relâmpago e pela crista dos montes e o eco dos vales roncou o trovão e não tardou que as fontes dos céus em grossos cordões sobre a terra chovessem seus cântaros. Lucilações de chumbo alumiavam os ares e riscavam o firmamento ziguezagues de fogo. :

A custo arrastou Ibn Ammar as grilhetas até às grades do triste janelo e, agarrado a elas, do peito arrancava seu brado de angústia: :

- Relâmpago gerado no ventre das nuvens, leva meu grito ao príncipe ar-Rashid. Voa por esses salões de riqueza sem par e derrama-te em poalha de oiro celeste. "Quem és tu?" inquirirá o príncipe. "O mensageiro sou", responderás, de um miserável escravo que o negrume das noites de ti afastou. Eis o seu recado: "Allâh te proteja e mantenha o dom de perdoar. À tua sombra, dantes, cantava eu a tua glória em doces numerosos hinos. Minha cabeça agora o espectro da águia adeja sobre ela, já as asas bate, as garras afia. No reino da ventura estrela rara és tu sob o esplendor do sol, o emir teu pai. Quem senão tu, ar-Rashíd, meu valedor há-de ser junto dele? Acode-me! Desça até mim a doçura de teus olhos, e minha dor e meus ferros se haverão de fundir"."

Assim às revoltosas nuvens Ibn Ammar bradava das grades de sua prisão, mas resposta só teve do apagar dos céus, do apupo dos ventos, do ribombar longínquo. Resolve então escrever a al-Mutâmid a rogar-lhe clemência:

Perdoa, meu rei e senhor. Se perdoares, maior brilho e beleza ganhará amor. Punindo-me, realce tomará tua sanha. E entre sanha e amor, teu coração escolherá, por força e pendor, o preferido de Allâh. Sê compassivo. Dos que me odeiam não escutes calúnias. Foi meu o crime, eu sei, procedi com vileza. Mas não poderei eu voltar a servir-te com lealdade? Da noite de meus erros ver de novo raiar a manhã? Perdoa! Tanta coisa, em inesquecíveis momentos, partilhámos juntos! Não há-de isso remir-me e tornar-me a teus assentos perfumados? O sopro da tua bondade me apague os vestígios dos erros. Alguém mos fará pagar, asseveram os que me caluniam. Mas esse alguém, és tu, que possuis a virtude e o poder do perdão. Nas tuas mãos está meu destino. Se a sentença é a morte, levarei comigo todo o arrebatamento da minha afeição.

Emir al-Mutâmid longo tempo ficou com a carta na mão. Olhava à janela a noite profunda, os pensamentos a luzirem-lhe, a vacilarem-lhe, a pulsarem-lhe como a luz das estrelas. Não pôde evitar lhe rolasse uma lágrima pela face e fosse esconder-se corrida de pejo pelos fios da barba aloirada.

Amigo, inimigo, já nem o sabia. Perdoar! Perdoar! latejava-lhe a voz do ex-vizir nos lábios, nas fontes. Como perdoar a um fementido traidor? respondia em seu coração.

Sem bem saber que fazia, chamou por seus guardas lhe trouxessem o prisioneiro.

Entrava Ibn Ammar e aos pés se arrojava de seu senhor, abraçava-lhe as pernas, chorando, implorando:

- Oh! Meu senhor, meu senhor!

Erguia-se o rastejante andrajo e de pé se postava diante de al-Mutâmid, que dava raivosas passadas pela luxuosa câmara e clamava esquentado:

- Verme! Náusea de bicho!

- Se para me matar me chamaste, mata-me já, mas não me açoites com o azorrague das tuas palavras. Não te confessei eu meu remordimento?

Hesitava al-Mutâmid, a alma em tumulto:

- Remorsos? Tu?... - e caminhava pra trás e prà frente como seus sentimentos. - Quem pudera em tal acreditar!

- Por Allâh, senhor! Crê-me.

- Guardas, de volta o levai a seu calabouço.

- Mata-me antes. Oh! Mata-me!

Tomavam-no os guardas, a porta alcançavam, dizia al-Mutâmid:

- Mas ouve. A última vez. Perdoo-te. Tirar-te-ei da infâmia de escravo condenado à morte e restituir-te-ei à dignidade de homem livre.

Esboçava Ibn Ammar o gesto de tornar atrás a espojar-se-lhe aos pés, cortou el-rei:

- Aguardarás em tua cela as minhas decisões. Levai-o.

O príncipe ar-Rashíd, com os ministros da corte e os cabos de guerra, esperava chegasse el-rei para o conselho real, quando lhe entregaram a carta de Ibn Ammar. Julgando ser mais uma vez pedido de auxílio, a rir disse aos amigos:

- Quereis ouvir o que me escreve o desavergonçado Ibn Ammar? - e, em alta voz, se pôs a ler o escrito. Contava o prisioneiro de sua entrevista - pomposo era o termo - com seu soberano e como este, de compaixão movido, lhe havia perdoado e prometera torná-lo à antiga dignidade e insinuava, em cuidosa expressão: "Ai dos meus inimigos, quando eu..."

- Quê? - exclama o grão-vizir Abú Bakr Ibn Zaydún, que aí se encontrava. - Ibn Ammar, o traidor, de novo grão-vizir? Que mal fiz eu a el-rei para lhe cair em desgraça?... - e desandou dali com o susto na alma.

Por toda a corte voou a novidade e por toda a cidade. Apavorados também estavam os caluniadores. E até gente do povo, que apupara e vexara Ibn Ammar à sua chegada a Sevilha, temia vingança. Só talvez o ásino burro, em sua sabedoria, não tivera comichões de consciência...

Entrava al-Mutâmid ao conselho real e estranhava a ausência de seu grão-vizir.

- Onde está Ibn Zaydún, o meu grão-vizir? - perguntava.

- Uma carta chegou, a mim dirigida - o príncipe ar-Rashíd respondia -, em que Ibn Ammar participa que tu, senhor pai, lhe perdoavas e o restituías à antiga dignidade - e estendia a carta a el-rei.

Leu-a al-Mutâmid e logo irado de si a lançava:

- Quê? À antiga dignidade?

- O grão-vizir Ibn Zaydún julgou ter caído em desgraça e, temendo as ameaças de Ibn Ammar e o teu desagrado...

- E, pra lá de mentir, entrou em ameaças?

- ... veladas...

- Que importa?... Guardas! Buscai-me o grão-vizir. Dizei-lhe, com todo o respeito, que seu rei o espera para o conselho real.

 

O grão-vizir errava pelos paços, passava o serralho, de onde vinha a abominável gralha das mulheres, os modornentos cantos de alaúde, já saía ao vergel das laranjeiras e desolado sentava-se num degrau de mármore azul, ao pé da cisterna. "Meu pai Abú-I-Walíd Ibn Zaydún", desfiava o filho o rosário de suas lamentações, "quando el-rei chamou de Silves Ibn Ammar, foi deposto de grão-vizir. Assumiu o amigo o novo cargo de primeiro-ministro, administrador de todos os negócios de estado, general-em-chefe de todas as tropas. Sempre odiou meu pai, que logo afastou, enviando-o da corte, que estava em Córdova, a Sevilha a pacificar rebelião. Velho e doente, não aguentou meu pai a viagem e morreu. Quis Ibn Ammar abater também Itimâd, mas não logrou seus intentos. Odeia-a de morte. Agora, depois de tanta traição, el-rei lhe perdoa e de novo o investe nas funções antigas. Vai proceder comigo como com meu pai e não tardará me persiga e a minha família e nos expulse do reino. Só descansará com a minha morte. Que mal fiz a el-rei?"

Ao fundo do jardim os vultos cresciam dos guardas mandados por el-rei.

-Allâh akbâr, senhor grão-vizir! - curvavam-se os guardas em respeitosa vénia. - El-rei Almotâmid...

O pobre vizir já estendia as mãos a tomar as grilhetas...

- ... manda-nos muito saudar-te e espera empenhado compareças ao conselho real - e, fazendo outra vénia, as costas voltavam, saíam.

Abú Bakr Ibn Zaydún ficava especado, espantado com o trato cortês e o recado dado. "Então é mentira? El-rei aguarda-me e não me quer mal?..." E caminhava lesto pelos corredores dos paços, passava o serralho de onde vinha a alegre gralha os risos de fonte das formosas moças, os cantos gostosos alaudistas.

- Grão-vizir - el-rei lhe sorria -, porque te não apresentaste a horas ao conselho real? Desconheço-te. Sempre foste o primeiro a chegar...

Contou-lhe então Ibn Zaydún o medo que tivera por ter caído em desgraça de seu senhor...

- Quem te meteu na cabeça que de ti me desprazo?

- Vais nomear outro grão-vizir. Não sei que erros cometi. Se os cometi, perdoa-me.

- Enlouqueceste, Abú Bakr? Que outro grão-vizir?

- Ibn Ammar, que já ameaça, assim que...

- E fugias, amigo, com medo?

- Não das ameaças do outro, mas do teu desagrado. Levantava-se al-Mutâmid a imagem de um génio aceso de

cólera:

- Guardas! - chamava e, virando-se para o grão-vizir: - Nada temas. Meu braço será justiceiro.

- O sol entrou em meu cárcere! - rejubilava Ibn Ammar ao ver entrar o rei.

- Não, víbora, não! A negrura da morte.

- Quê, meu senhor?

- Já te julgavas vizir outra vez? Ameaças brandias que aos ventos lançaste?

- Dava parte a teu filho do perdão de meu rei...

- E mentias. E torcias as minhas promessas. Ah! Nem mais uma palavra sairá dessa boca podre, nojenta! - e, tomando de um guarda uma acha-de-armas, contra o preso investia e desfechava o golpe. O braço lhe corta que o desgraçado erguera a escudar a cara:

- Não! Não! Piedade!

Possesso de fúria, outro golpe desfere que lhe fende o crânio:

- Morre, vilão!...

... e outro e mais outro:

- Morre!... Morre!

que lhe abriam os peitos ...

Em borbotões o sangue a golfar, pendurado da grilheta do muro lhe descaía o corpo.

- É cumprido este passo. Não mais trairá.

Saía al-Mutâmid a seus aposentos e sobre o leito se lança a chorar...

Triste fim foi este o de Ibn Ammar, o grão-vizir, o poeta, o sonhador de grandezas. A sepultar o levaram fora do palácio, na Porta das Palmeiras, nem ao cuidado se deram de lhe destrinçar as grilhetas. De setembro os Idos corriam e a era de mil cento e vinte e quatro. Não demorou o vento a cobrir-lhe o silêncio com o choro do outono.

Requiescat in pace.

 

                                           Intermezo sétimo

- Amen - disse Randulfo da sua banqueta, colocando a pena no tinteiro e olhando ao alto, como a apanhar no ar os ecos da última lauda. - Mas este encomendar de alma, mestre... de quem não é cristão...

- E que faz? Acaso os mouros não têm alma?

- Eles que vão lá para o Céu ou Inferno deles.

- Queres desafiar-me às teologias? Não te metas por esses caminhos.

- Demais, pensava eu que poeta era, de sua cepa, um bom homem, virtuoso. Mas vejo que esse Ibn Ammar...

- Há cepas de boas castas e outras de más - respondi-lhe. - E há ainda que considerar os enxertos. De distintas espécies, tais vezes afins, tais outras não. Associações difíceis que nem sempre vingam. Tenta separar de ti a imagem que não cessas de te criar com o escólio engenhoso de teus sentimentos e actos. Logo conhecerás que esse simulacro, abantesma, quimera, ou lá que seja, nada tem a ver com o que tu em verdade és ou podes ser e tu ignoras. Terrível coisa, se lhe fazes frente, mas nada mais do que autocomiseração pelos teus erros, se te deixas desfalecer e cais em apenas justificar-te. Abandonar-nos desta sorte parece-nos indigno, negarmo-nos a nós mesmos. Acreditamos fundar-se nossa qualidade na consciência ou na coragem de que um dia demos prova, mais do que no medo que tantas vezes nos levou a sermos prudentes... Ibn Ammar construiu-se um ser diferente a cada momento. Não é o poeta que é desvirtuoso. Foi o homem, as imagens, os avejões, os trasgos que de si foi fabricando. No fundo de si, quando ele escreve ao emir, numa sátira insultuosa em que enlameava rei, esposa, filhos, as mulheres do harém, em termos tão obscenos, indecentes e indecorosos que os cronistas os não quiseram reproduzir para não conspurcarem sua escrita, ele estava a servir-se de al-Mutâmid como espelho: era a si próprio que ele dirigia aquelas impudentes ofensas... Pobre Ibn Ammar!

Randulfo ficou pensativo em longo silêncio dentro de si. Por fim disse:

- Paz à sua alma!

Tratei de mudar o rumo da conversa. Quando eu chegara ao scriptorium já Randulfo se entregava, muito calmo, ao seu labor de copista. Não estranhei. Já esperava:

- Vejo que te passou a zanga - digo-lhe. Olhou-me e respondeu:

- Fui infame, insolente, para convosco, mestre. Peço-vos perdão.

- Estás perdoado. Apraz-me ver-te de bem contigo, de novo tirado pela nossa crónica, cuidoso dela...

- Fizemos as pazes. Zoaira aceitou-me. -Ah!

- Amancebados estamos.

Com os pensamentos a correrem-me a outro lado, repetia-lhe as palavras:

- Aceitou-te?... Amancebados?

- Queríamos a vossa bênção.

- A minha bênção?... Muito folgo. Tê-la-eis.

- Se o mestre nos deixasse amanhar nosso conchego na casa que fica por cima da adega...

- Conchego? Na casa da adega?... Pois não. Deixo.

- Apesar de moura, é baptizada, é cristã. Quer ser mulher forra de um bom marido...

- ... cristã... sim... bom marido...

- Por isso estranhei, inda há pouco, que o mestre tenha rematado o capítulo com aquele Requiescat. Os mouros não falam assim... Mas depois do que me explicou ainda agora...

- Não falam assim os mouros? Não falam?... - começava eu a regressar dos meus longes: - Fala o cronista, Randulfo... Mas diz-me - lá vinha a preocupação -: e bragal? e cama? e de que vivereis?

- Não sou vosso ajudante, mestre? Não é ela vossa serviçal? Não estamos nós sob a vossa protecção?

- Ajudante... serviçal... Está bem, está bem. Deus vos abençoe. Dou-vos bragal e cama e continuará cada um com suas tarefas. Trata de mandar arrumar a casa da adega, tirar-lhe a tralha que para lá está, limpar-lhe as teias de aranha e de chamar os caiadores. Casa lavada e nova é outra loiça.

- Não tenho palavras, mestre, para vos exprimir a minha gratidão, o quanto...

- Deixa-te de retóricas e palavras bonitas. Ao trabalho. Ao trabalho.

Entregou-se Randulfo ao trabalho com aparente fervor. Eu é que me fervilhava no peito não sei que moinha de vesga ciumeira. Daí a pouco, mirando-o de viés, estranhei-lhe o ar vago e parado, como a pensar, o olhar perdido janela fora no canto da boca um sorriso - ou esgar? - enquanto afagava o fio da faca de encadernador. Súbito levantou-se:

- Ah! Esquecera-me. Tenho de ir à vila por papel. Já quase não há.

- Aproveita para trazeres o mais que falte.

- Já fiz o rol. Não me espereis para o jantar, mestre. Só chegarei lá para a hora da merenda ou da ceia.

 

                                   A caminho... a caminho.

- Lá vêm eles! - na cortinha, as mulheres suspenderam a lida, a enxugar suor das testas, águas das faces. Vinha da calçada estropeada de cavalos.

- Lá vai o meu homem prà guerra - gemia Balbina, curvada a levantar uma giga do chão, alçando os rins cansados.

-Ai, madre! - suspirava-lhe ao lado a filha Dolcina, olhos a brilharem. - Que fidalgo tão lindo o senhor Dom Gonçalo!

Na volta da senda surgiam os cavaleiros, à testa Gonçalo Mendes em murzelo lustroso de crinas aladas, a descer de seu castelo de Águas-Santas. Trinta anos, não seguia armado, apenas à cinta o punhal agudo, leve camisa sobre o peito forte, a descoberto robustos os braços, que o calor apertava, cabelos loiros compridos a ondularem como as crinas da montada, rosto proporcionado, nos lábios e olhar meio sorriso entre firme e bondoso.

- Eh! Sina a nossa! - sentada à sombra de olmeiro, a velha catava o neto pequeno e a neve sábia de seus cabelos resmoneava: - Casar, emprenhar, parir... e ficar viúvas de maridos e filhos varões...

Empoleirados em escadas de pau e pelas ramadas de esteios de pedra, vindimavam anciãos e mulheres vides de enforcado, cachos pendentes, e enchiam os cestos vindimos e aos ombros, em filas, os levavam, pejados de uvas, a descarregar nas dornas dos carros de bois.

Todos, por instantes, a faina paravam, a olhar cavaleiros e peões que passavam. Ia em meio setembro, sexta-feira dezassete antes das Calendas de outubro, subia dos lagares o aroma do mosto.

Também de Pedrouços com valorosa hoste saía Paio Mendes e de Guilhabreu, dos paços acastelados, conduzia Soeiro Mendes aguerrida mesnada.

E os três irmãos, mais os barões de Sousa e Baião, todos juntos buscaram o Douro e em barcas remeiras o atravessaram.

Já da Corunha e de Santiago, de Tui e de Oviedo, de Zamora e de Toro cavalgavam as tropas da Galiza e Leão a unir-se ao exército do rei Alfonso, e as tropas do rei de Aragão, e os barões franceses, que em auxílio vieram. De Portucale os senhores seguem para sul e, do passo que se adiantavam, suas falanges se engrossam das gentes de Lamego e Viseu, do termo de Santa Maria, e a Coimbra chegavam, onde o bispo Dom Paterno, se bem pela velhice não possa lutar, rijo corpo aparelhara de lanceiros, besteiros, vindos de Montemor e arredores.

Transposto o Mondego,

- Senhores - disse Gonçalo aos companheiros -, entrámos a trilhar terra indecisa, já cristã já moura...

- ... mas não fronteira religiosa - interpôs Paio Mendes. E explicava: - Se a mescla de povos, que séculos atrás por este rincão foram passando, quase já se esbatera - os restos de Iberos e Celtas, Suevos e Alanos, Lusitanos, Romanos e Godos -agora ali Mouros, Cristãos e Judeus, moçárabes e mudéjares, se iam em paz acomodando, nas vilas e cidades, em mourarias e bairros e judiarias.

- Terra de razias, de algaras, fossados, de um e outro lado - dizia Soeiro Mendes. - Necessário agora avançar com cautelas dobradas...

- ... arrectis auribus armisque - rematava Paio.

De Coimbra, por entre Lousa e serra do Açor, rumavam a leste caminho de Egitânia, do Ponsul na riba direita.

Ao avistarem o serro penhascoso de Monsanto e a concha em que se anichava a cidade após breve ondular de colinas, pararam. Da carriagem, lá atrás, tiravam as alfaias de guerra. Ordem de silêncio, nem tinir de armas, nem tosse, nem espirros, nem atear faísca de lume. Aí estão Gonçalo Mendes e os outros senhores. Vestiam longas cotas de malha, ajustavam caneleiras, cingiam espadas, empunhavam a lança, o escudo, na cabeça enfiavam os elmos brilhantes.

Deixarão cair a noite e atacarão de súbito. Do arvoredo encobertos, o povoado espiam. Estranham mudez, ausência de vida. Aqui e além fumozinho a erguer-se de telha-vã de casebre.

Escoavam-se as horas. Ao frouxo luar do céu estrelado, sorrateiros avançam. Esboroadas muralhas, escancaradas as portas. Entram. Desolação, abandono. Da antiga sé visigoda, da maior parte das casas, muros e destroços, desventrados telhados. De mouros nem rastro.

- Cessou de viver aqui bispo, desde que os muçulmanos vibram - informava Paio Mendes, que recebera já as ordens menores.

De uma choupana espreitavam os olhos de um velho. Inquirem-no. Os Mouros, senhor? Quanto tempo havia abandonaram o sítio! Raro aparecerem. Habitantes? Prài duas, três dezenas de fogos. Lavoura, que o solo era pingue em grão, vinha, caça, e até o rio, lá em baixo, que belas bogas, que paladosos barbos!... Lenha que fartava por aquelas bouças adentro...

Nessa noite armaram seu campo pelo meio das ruínas da urbe deserta.

Por vales e montes, desbastar de brenhas e selvas escuras, atravessar de ribeiras, galgar fundos pegos, atingiam as margens do rio Alagón. Com o entardecer, por todo o plaino adormecia grossa neblina que se ia enrolar aos pés da colina da cidade de Cória.

Abandonada também pelas guarnições dos Árabes, quase inabitada o rei Alfonso a encontrara e, dentro de escombros das muralhas romanas da velha Cauria de Ptolomeu, assentara arraial. Na planície, suas tropas as tendas de lona tinham erguido e as forças, que vinham depois arribando, os acampamentos arrumavam pela extensa campina, por abas de outeiros, entre os esquadrões ordenavam carriagem, fardagem, na grande bulha de carros tirados por mulas, moços de varapau em punho a amanharem os bois de hastes esguias, os cães de pastor a tornearem rebanhos, a reajuntarem ovelhas que se tresmalhavam, os cavalos, enxugados do suor dos caminhos, a mascarem mansos a aveia e o trigo...

Caía a noite e, pelo campo recolhido, confiante nos olhos de atentos vigias, em espetos enormes rodavam, pingavam a assar, as peças de caça, veados e porcos, sobre o brasido intenso de cem fogueiras que tingiam a névoa de sangue.

Convocou el-rei os chefes ao pavilhão real.

-Aqui, muitos séculos atrás - dizia o preste Paio Mendes, do passo que iam trepando a vereda -, dispôs Viriato seu campo contra o cônsul Lúcio Emílio Paulo.

À ceia, enquanto comiam da boa vianda de javali montês, assim falou rei Dom Alfonso, após a boca limpar e as mãos à toalha de linho:

- Senhores cavaleiros, tomai atenção.

Ao longo da mesa comprida, de mastigar cessaram os queixos, voltavam-se atentos os rostos para a cabeceira real.

- As novas do avanço das tropas mouriscas é que desembarcaram há dias em Tarifa, em Algeciras. Poderosa armada, mais de vinte mil guerreiros. Seu chefe Yúsuf subiu a Sevilha, a conferenciar com al-Mutâmid e com os reis de Badalhouce e Granada. Dirigem-se agora para oeste caminho de Mérida. Não conheço as tenções de seus generais, mas pelo rumo que trazem, devem já saber que os esperamos. Descemos ao seu encontro?

Aguardamos aqui a pé firme, em território deles? O meu pensamento é que devemos guardar a linha a norte do Tejo. Confiaria a missão aos senhores de Portucale. Os outros desceríamos ao encontro do inimigo... Desejo conhecer vossos pareceres.

Levantou-se burburinho entre os vários chefes, a que el-rei pôs cobro:

- Fale cada um por sua vez. Vós, Dom Raimundo de Borgonha. Vossa opinião?

Raimundo pousou sobre a mesa a copa de vinho e disse: - Acho, senhor, que o melhor é fortificarmo-nos. Se bem que em ruínas, este lugar é bom e seguro cá no alto. E lá em baixo, contrairemos fossos, paliçadas, parapeitos. Inexpugnáveis seremos.

Olhou el-rei para Henrique, que disse:

- Por mim, melhor defesa o ataque. Ficarmos acantonados é, de antemão, considerarmo-nos sitiados. E um sítio pode durar dias, semanas e meses, até nos rendermos pela fome e a sede...

Falou em seguida o bispo de Toledo, guerreiro possante:

- Aliemos antes essas duas traças.

- Como aliemos?

- Dividamos a hoste em força atacante e força defensiva. Estaremos sempre de surpresas guardados.

Os senhores da Galiza, de Leão, concordavam. Soeiro Mendes sugeria avançassem as hostes por vias dispersas ao encontro dos Mouros e os surpreendessem de frente e pelos flancos. Estivessem atalaiados, em cilada, pelos cerros das penhas, pelas angusturas dos córregos, como Fábio Máximo, a desgastar o inimigo antes de se lhes abrirem em batalha campal.

Foi a vez finalmente de falar Gonçalo:

- É exército o nosso não habituado a fixar-se, a infantaria no terreno a aguardar o embate do inimigo. Exército de ofensiva, não esqueçamos, de reconquista. Movimenta-se mal, é certo.

Apenas a cavalaria é mais lesta; sobretudo quando toca a incursões profundas, razias. É vagaroso, com todo o peso da carriagem... E depois não há soldado que aguente combater do nascer ao pôr do Sol sem comer seu bocado, fortalecer-se do vinho. Trazemos atrás de nós manadas de bois e de vacas, rebanhos de ovelhas, carneiros, e, se adrega, pelo caminho ainda caçamos o gamo, o javali, o urso. Carregamos o vinho e o pão, mas, de passagem pelos povoados, ainda espoliamos o sustento do povo...

- ... depois de violarmos mulheres e donzelas - comentava um dos convivas ao ouvido do companheiro do lado, que o fitou com ar reprovador.

- ... Nas florestas abatemos o roble, o pinho, para nos aquecermos às nossas fogueiras e assarmos cem bois para a soldadesca. Somos um exército pesado, lento, que combate de barriga cheia...

- ... entre peido e arroto - murmurava o mesmo comentador.

- ... Costumados estamos às tropas dos Abádidas, dos Aftácidas, que esqueceram o Corão e comem da vianda de porco e bebem do vinho em seus banquetes e já não sabem viver sem a moleza dos costumes e perderam a fibra, a têmpera dos antepassados. E os que agora aí vêm contra nós? Os Almorávidas, secos, magros, curtidos do sol do deserto, são hoste veloz, de pouca carriagem; aguentam a fome, a sede, o calor e o frio. Uma côdea de pão e um gole de água e ei-los a combater leves e rápidos, a ajudá-los a ligeireza dos cavalos. Imprevisíveis. Olha em tua volta, rei. Em toda a planície, aquela colina atrás de nossas linhas, tudo parece deserto. Não se enxerga viva alma, branquejar jilaba, luzir ponta de lança. Não te traz o ar murmúrio de algaravia, rumor de cavalgada. E de repente... eis o inteiro derredor se eriça de piques e reboa a grita e uma onda de brancos mantos esvoaçantes e tropel de corcéis, que a toda a brida desabam da encosta e como relâmpago chegam até nós, o aço a brilhar, te acometem de morte... São os Berberes, são o vento, o furacão, que brotam do nada...

Longo tempo quedou rei Alfonso a cismar, no espírito, como se fossem vivas, a visão das cenas acabadas de ouvir...

- Então que sugeres? - alfim perguntou.

- Exército a mover-se não é em passeio. Os vossos generais já preveniram os dados possíveis. Necessário é a todos remedeio dar. Nada de incúrias, à frente e atrás, vanguarda e reguarda, numa e outra ala, ao que se despenhe do céu ou rebente do inferno. E, na hora do combate, dar o peito com fúria...

- ... xon raza, de gana... - acrescentava o bispo de Toledo, possante guerreiro... - Se a melhor defesa é o ataque, como diz o cavaleiro Henrique de Borgonha, ataquemos. Mas não descuremos a defesa.

- A primeira coisa a fazer - sugeria um general - é escolher o campo da luta. Não esperemos que sejam eles a escolher o deles.

- Escolher o terreno e fixar-nos - tornou Gonçalo Mendes - não será de novo parar? Caminhemos antes ao encontro deles, antes que venham eles e nos encontrem parados, à espera, a limpar a ferrugem das espadas...

- Esta madrugada, bem cedo, cavaleiros - levantava-se el-rei -, marcharemos para sul. Como tenho determinado, os senhores de Portucale guardarão a linha a norte do Tejo. Nós outros desceremos vigilantes e destemidos, preparados para toda a conjuntura...

 

                                                   Intermezo oitavo

- Tão cedo para jantar, senhor cónego? - estranhou Rosa Imena. - Ainda não soaram as ave-marias.

Chovia. Limpei da lama a sola dos sapatos no raspador de ferro ao lado da soleira e entrei. Tirei a capa molhada, o chapéu e dei-os à rapariga, que os foi pendurar de um arrocho. Na cozinha a mesa não estava posta e ao lume o panelo ainda não fervia.

Era vasta a quadra. Bancal de xisto para os alguidares de lavar a louça, forno e, por baixo, o alhal da lenha, larga lareira de granito, com tripé de ferro, por cima fumeiro sob o boqueirão da chaminé, a um lado o escano corrido para nos sentarmos a aquecer e a ouvir dos velhos histórias de maravilha nas noites de inverno. Noutra banda, a masseira, a salgadeira, prateleiras. Pendentes de pregos ramos de louro, de ervas cheirosas, hortelã, rosmaninho, orégãos, réstias de cebolas e alhos, um tosco armário com caçoilos, caçarolas, escudelas, canecas de barro. No centro, a mesa comprida onde comíamos. Imena foi por pão de sêmea ainda quente do forno e colocou-o na mesa com o pichel do vinho. Enchia-me a caneca:

- Para o senhor cónego ir enganando a fome, enquanto o jantar não está pronto. Só agora comecei a cozinhar.

- E Zoaira? Onde está?

- Ah! A trabalheira! Andámos as duas a arrumar a casa da adega. Ela ainda para lá está, toda afadigada. Eu fui-me chegando por via do jantar...

Mesmo assim, o senhor cónego logo hoje é que havia de aparecer cedo...

- Queria ter uma conversa convosco, antes de o Randulfo vir da cidade... Olha, Imena. Senta-te aqui ao pé de mim.

A moça puxou de um banco e sentou-se em minha frente.

- Sabes que a Zoaira e o Randulfo...

- ... vão casar? Então não sei? - disse alegre. De repente, acrescentou pesarosa: -Agora fico sozinha...

- Ficamos sozinhos.

- Ah! Pois é! - tornou, de novo contente: - Os dois... sozinhos... - e outra vez, como amuada: - Mas o senhor cónego não pode casar comigo...

- É como se estivéssemos, Imena. -É?

-É.

Tomou um ar sonhador:

- Quando eles forem para a casa deles e nos deixarem sozinhos, hei-de fazer para a nossa boda uma ceia especial.

- Que ceia?

- Açorda com do alho, do azeite, do louro, ovos... hum! que bom!... lá em baixo, em Beja, quando eu era moura...

- Mas agora és cristã. Quero que faças antes perna de cabrito.

- Só depois da açorda.

- Está bem. Tu ordenas. És a dona da casa.

- Pois não sou?

Levantou-se e foi espreitar as panelas, que já ferviam e voltou a sentar-se:

- E que me vai dar de prenda?

- Prenda?

- Pois eu não sou sua mulher?

- E que é que querias de prenda?

- Agora que somos mulher e marido, posso tratá-lo por tu, senhor cónego? A mulher deve tratar por tu o seu homem.

- Tens razão. Podes.

- Então, tu, senhor cónego, também tens de me dar um presente de boda.

- E que presente? - disse-lhe sorrindo.

- A alcova onde eu dormia com a Zoaira já não é precisa. Vou deitar fora o enxergão, caiar de branquinho as paredes, esfregar o sobrado e pô-la toda linda. No chão, colocarei a arca da minha roupa perfumada com saquinhos e rocas de alfazema apanhada no orvalho da noite de São João. Em frente da entrada, virada para a nossa cama, numa mesinha porei a imagem da Santa Virgem Maria, que tu me vais dar de presente, e, ao lado, um jarrinho com flores frescas e uma vela benta.

- Estás doida, rapariga? A imagem da Virgem na alcova onde tu... onde nós... voltada para a cama onde nós...? Isso é blasfémia!

Fitou-me surpresa, ofendida, as lágrimas a gemerem-lhe dos olhos:

- A minha alma é virgem.

- E agora choras - digo irritado. - Não vês que...

- E tu não vês, senhor cónego - replicou com viveza -, que tu também tens a imagem de Cristo crucificado pendurada da parede, por cima da cabeceira da cama, a olhar-nos lá de cima quando nós estamos a...

- Mulher! Mulher!

- O meu corpo, eu sei que é formoso. Os olhares dos homens não enganam. Brilham de desejo. Mas eu não sou a Zoaira, que gosta de ser desejada. Abraço o meu corpo e não me sinto. É como se fosse coisa estranha a mim. Se é meu, é pedaço alheio a mim, que sou outra coisa. Olha as minhas mãos. Cuidadas, hábeis de tantos lavores, de tantas fábricas e ofícios.

Sabem fiar a lã, torcer o sirgo, tanger alaúde, cavar a horta, cozinhar, lavar a roupa e tantas, tantas manhas mais... e até carícias... Minhas, coisa exterior a mim, mas sem as quais não posso viver assim como sem o meu corpo, que é a primeira camisa, o vestido com que Deus me vestiu. E o que faço com o meu corpo, as minhas mãos, os meus olhos, a minha boca, é preciso ser feito com eles, meus instrumentos, as minhas ferramentas. O meu almafreixe, a minha sacola está cheia: abro-a e sabes o que tiro de lá? As minhas coisas, o envoltório, o embrulho, a trouxa de mim, gelo, gelo se eu os não aquecer. Quando se morre e a alma se vai, não fica frio o corpo?... Detesto os que se aproximam de mim cegos pelos meus olhos, a minha boca, o meu corpo. São inimigos. Vingo-me atiçando-lhes o desejo, parecendo oferecer-lhes o pasto do meu corpo e subitamente retirando-lhes a iguaria da paixão. Não há um só que se ocupe de mim, daquilo que realmente sou, a minha alma. Quando eu, no pico do prazer, grito que sou tua, estou a dar-te o que é pertença minha, mas não a mim mesma. Compreendes agora? A minha alma é virgem. A Santa Virgem Maria sabe-o com certeza. Não é verdade que ela sabe tudo?

- Imena!

- Fostes vós, os cristãos, que me baptizastes. Eu era filha... De quem era eu filha... perdi-me pelo caminho, quando os mouros me levaram de Coimbra... de um vizir do emir de Beja, disseram, mas eu não credito... quando os vossos, com esse Afonso Henriques e o vosso Gonçalo Mendes...

- ...que Deus tenha!...

- ... fizeram funda razia pelo Alentejo até derrotarem os nossos em Cabeços de El-Rei...

- ... junto a Ourique...

- Fui criada com mimos, educada pelos melhores sábios muçulmanos. Fui presa como escrava, depois de morto meu pai - o que diziam meu pai - no saque da cidade.

Tu evitaste que eu fosse vendida no mercado dos escravos. Trouxeste-me para as tuas terras. Vós, os cristãos, baptizastes-me duas vezes: a primeira foi o baptismo do fogo da violação: fizestes de mim concubina. A segunda, o baptismo da água, que tudo lava: fizestes-me cristã. A minha alma é virgem.

Pois é, Imena... - o meu pensamento um turbilhão, enquanto ouvia as suas palavras tão justas e tão cruéis. - ... Que a tua alma era virgem até eu sabia. E sabia também e sentia e estava-me pungindo que a minha era um carvão negro de pecados. Em que ferida de mim, Imena, vieste pôr o dedo?...

Este meu solilóquio foi interrompido por Imena, que compreende o meu desconforto e vem em meu auxílio:

- Deixa lá, meu conegozinho. Se me não queres dar de prenda a Santa Virgem Maria, eu não me importo. Não vou zangar-me por isso.

- Eu dou-te a prenda.

Levantou-se a espreitar de novo o cozinhado e regressou:

- Já falta pouco... - e, desviando a conversa, lembrou: - Que me querias falar...

Aceito a ajuda caridosa de Imena:

- O que eu te queria dizer, afinal já tu sabias. São as bodas deles. Eu vou ser o padrinho...

- ... e eua madrinha. Pedido da Zoaira. Vai ser tão bonito! Calei-me um pouco, como hesitando no que ia dizer. Imena

espiava-me os olhos, os lábios, à espera das palavras.

- Mas... -Mas...?

- ...estou apreensivo.

- Porquê, meu senhor cónego?

- O Randulfo anda muito esquisito...

- Tu também reparaste? Ora, não te incomodes. Aquilo é ciumeira. Os rapazes, o pastor, o moleiro, o padeiro, andam à volta dela, atiram-lhe madrigais...

- ... e ela...

- ... e ela é uma rapariga bonita, alegre, gosta de os ouvir, desfaz-se em risos...

- Dá-lhes trela.

- E depois? Que dê? É caso para ciúmes?

Estendi a mão para a de Imena e, muito sério, olhos nos olhos, disse-lhe:

- Com o Randulfo, receio seja caso para alguma desgraça.

 

                                           A sexta-feira de Zalaca

Partiam de Cória, do rio Alagón, as tropas cristãs, peonagem à frente, lanceiros, frecheiros, besteiros... do alto das penhas o olhar silencioso os seguia das águias e das funduras dos céus perscrutavam a terra falcões peregrinos, gaviões rapaces... floresta de piques, aljavas às costas, os arcos, as bestas, caminhada penosa, barrancos, taludes, pedregais e brenhas, a tropos-galhopos... dos ramos das árvores olham-nos espertos os corvos, as pegas... entre mesnada de cavaleiros a pesada, lenta carriagem, tirada por mulas, carroças com porcos e as manadas de bois, os rebanhos de ovelhas e bodes tocados por moços monteiros e matilhas de cães vigilantes... e um bando da andorinhas - que a hora soara - voo levantava, julgando emigravam como elas também... atrás, comboiado pelo garbo da fina flor dos barões, ao vento estandartes que empunhavam alférezes, el-rei Dom Alfonso em seu corcel formoso... na alcandora dos ninhos vigiavam conspícuas cegonhas, os grous, e no chão acolhiam-se às luras coelhos e lebres... Marcham para sul, sem perderem vista da fresca ribeira, que o calor aperta. Galgam os penhascos do Tejo pela ponte de Alcântara, nem se dando conta, a um lado, em destroços, do pequeno templo antigo de ervas coberto, de sardões habitado, vazio dos imortais deuses mortos.

- Buscaremos as margens do rio Salor - dera ordem el-rei aos seus comandantes - e, pelo côncavo a meio das serras de San Pedro e del Colorado, apontaremos a Badalhouce, que sitiaremos.

Já dos montes, das árvores, por terra se alongam, derramam as sombras da tarde, aos pés se vão estirando de peões, cavaleiros, avistam ao longe, à direita, a serrania del Colorado em manto púrpura envolta. Cansados, na margem do Salor armam arraial, logo às águas mansas, claras, junto à ponte romana, conduzem vaqueiros, pastores o gado a beber, acendem magarefes as grandes fogueiras, facalhões afiam, enquanto esperava a fome dos homens.

À noite, em seu pavilhão, prandeava-se el-rei com os generais e, após saciado, as mãos besuntadas limpava à toalha de linho e as palmas batia, acorre o mordomo:

- Trazei-me sementes de trigo, centeio e seixos do rio, uvas e medronhos, bagos de abetoiro e mirto, bolotas e landes, nozes e castanhas...

Prestes lhe trouxeram do que el-rei pedia, ante os espantados olhos dos presentes. Alargava Alfonso espaço no tampo da mesa, tomava do pão, copos, facas, panos, dispunha pedrinhas, montinhos de areia do rio, sementes, e explicava:

- Mimar-vos-ei o campo de batalha e o nosso plano. Aqui é o rio Odiana - e, molhando o dedo na copa de vinho, na mesa traçava o sulco da água. - Esta é Badalhouce - e assentava seixos como se fossem a cerca do castelo - e adiante, entre os contrafortes das serras de San Pedro e del Colorado, a extensa meia-planura que para lá deita...

Serras são o dorso das bolas de centeio, ondulam os panos imitando colinas, valados, montinhos de areia são moitas, de penhascos serviam os copos, de regatos as facas, são bosques mimosos raminhos de salsa, hortelã...

Olhava solerte, manhoso, para os seus barões:

- Que estais aí parados? Toca de sacar os punhais, as facas, e aguçar pequenas varas do tamanho do dedo mindinho. Espetadas em miolo de pão, teremos batalhão de lanceiros, coorte de frecheiros, corpo de archeiros... - ele próprio o fazia, os outros de o arremedar... Dispunha uvas brancas, tintas em filas cerradas, eis os cavaleiros. Juntava castanhas, eram carriagem, nozes faziam de bois, semelhavam bagos de betoiro rebanho de ovelhas... E, em lugar de destaque, na reguarda, um ouriço encrespado, rodeado de medronhos, o rei e seus donzéis cavaleiros as lanças em riste prà justa.

- Conquistada Badalhouce - rematava Alfonso -, derrotado seu rei Umar al-Mutawakkil, ficarão sem apoio os mouraços de Santarém, Lisboa, Sintra...

- ...e enfim, desceremos a Setúbal, a Alcácer, a Évora...

- Poderemos então dar luta aos mouros de Iúsuf...

De Sevilha partiam, das ribas morenas do Guadalquivir, as tropas mouriscas.

Al-Mutâmid, em sua montada, olhou atrás aos balcões do palácio. Encontrei-me com ela ao romper do dia e já chega a hora da despedida. Agitam-se ao vento os pendões e os cavaleiros partem em seus corcéis. Soam os tambores da separação, os olhos feridos das lágrimas choradas... Daqui a três dias - quem sabe? - estarei de regresso. Mas que eternidade vão durar os três dias!...

- Como branquejam seus véus e jilabas! - das varandas do paço real, Itimâd dizia, os olhos magoados de ver desaparecer para lá das colinas o marido e os filhos. - São leite a derramar-se pela terra, é espuma do mar...

- Que fulgor despedem as cimitarras! - murmuravam chorosas as mulheres do serralho. - Tremendos relâmpagos no trovão do tropel...

Três reis, três exércitos. Aos homens de Iúsuf e de al-Mu-tâmid viera juntar-se a gente de Ben Balkim, rei de Granada. Iriam unir-se às forças de Mutawakkil, monarca de Badalhouce. Multidão aguerrida de soldados que a Santa Olaia sobe, passa Aracena e Lobón, se estende pela margem do Odiana. Em Lobón, antes de partirem para Badalhouce, Iúsuf dá ordens a seus generais: marchassem à frente com as tropas, conforme combinado; ele, com sua guarda, iria com os outros até Badalhouce.

Logo os homens de Iúsuf, divididos em dois esquadrões, se põem em marcha, o rio atravessam, um guina à direita, volve o outro à sestra, em veloz cavalgada...

Em Badalhouce os quatro reis, em consílio uma noite se juntam no castelo de Umar. Após terem ceado, desimpedia Iúsuf espaço no tampo da mesa, tomava copos e facas, do bornal tirava pedrinhas, sementes e sacos de areia, e, ante os olhos pasmados de seus companheiros, explicava:

- Meus esculcas não estiveram parados, enquanto permaneci em baixo em Sevilha. Têm seguido, como invisíveis, todos os passos do inimigo, espiado palavras e actos. Sei tudo o que urdem e onde e quando.

- Quando? - perguntava al-Mutâmid.

- Eles acamparam na entrada da planura que se abre entre as serras del Colorado e San Pedro, nas margens do Salor. Não tardarão em descer em direcção a Badalhouce...

- Para aqui se dirigem? - pergunta Umar.

- Fazem tenção de te cercar a cidade, talvez amanhã.

- Amanhã?

- Ou depois.

- Atravessaremos o rio - aceso al-Mutawakkil acudia - e, antes que cheguem, travar-lhes-emos o passo a meio da chã.

- São obra de quinze mil homens.

- Quinze mil?

- O dobro nós somos. Mimar-vos-ei, sobre a mesa, o campo de batalha e o nosso plano. Aqui é o rio Odiana - e, molhando os dedos na copa de vinho, traçava no tampo o sulco da água. - Esta é Badalhouce - e assentava pedrinhas colhidas no rio como se fossem a cerca do castelo. - Aí adiante, na outra margem do rio, desagua o Xévora. Tomai atenção. A uma só voz e a um mesmo tempo, esta madrugada avançaremos ao encontro dos Cristãos. Passaremos o Odiana e pelas ribas do rio Xévora seguiremos até onde a foz da ribeira do Zapatón. É aí, nesse bívio, que apartaremos os passos: teus homens, Umar, guinarão pelo Xévora a tomar o flanco esquerdo; os teus, Ben Balkim, meterão pelas bordas do Zapatón a postar-se no flanco direito; e tu, al-Mutâmid, tua gente deixará esses rios e deitará pelo centro a dar-lhes o peito no primeiro embate...

- E os teus homens, Iúsuf? Para que os guardas? E tu?

- Partiram já, como vistes. Irei juntar-me a eles.

- Para onde seguiram?

- Dividi minhas tropas, uns quinze mil soldados, em dois corpos, cada um com seu general. Já vão a caminho. A ideia é a que segue: enquanto o inimigo vos defronta e confronta distraído, os meus homens, tendo dado volta por largo, mais à esquerda e mais à direita, tomarão posições pelas pregas escondidas das serras e, no calor da refrega, como fantasmas surgidos do nada, cairão sobre ele pelas costas. Ao desbarato que lhes infligirdes, seguirá o destroço que lhes causaremos. Os Cristãos não tomarão Badalhouce e não enfraquecerão, como pretendem, a linha do Tejo...

Assim falou Iúsuf, era noite cerrada, e o almorávida no tampo da mesa, como fino lavor de mosaico arabesco, espalhava raminhos de eufrásia, botões de papoila, de escabiosa, bagas de viburno, de uva-ursina, de sabugueiro, mimando o ataque mourisco.

 

Era sexta-feira, das Calendas de outubro o décimo dia da era de mil cento e vinte e quatro. No coração da campina, no lugar de Zalaca, Mouros e Cristãos defrontam-se.

- São multidão, senhor - disse a Alfonso o alferes.

- Três exércitos - anunciavam batedores, atalaias. - Um investe pela frente, o do rei al-Mutâmid.

- ... pela nossa direita o de Mutawakkil ataca...

- ... o de Ben Balkim pela esquerda.

- Hum ! - franzia Alfonso o sobrolho. - E Ibn Tâshfín?

- De Iúsuf nada se sabe.

- Não chegou ainda talvez...

Urgia o tempo, que a formidável nuvem branca dos árabes já avultava além a meio da chã.

Em seu campo al-Mutâmid incentiva os seus homens:

- Sus, sus, valentes guerreiros de Allâh, defensores do crescente! Por medo da morte, de vós nem um se esquive. O vosso emir sabe que nos corações não trazeis cobardia. Atacaremos feros como leões. Pela sua religião, pela sua terra, pela sua família, pelo seu emir, deve um homem sofrer grandes trabalhos, calor e frio, sacrificar a carne e o sangue. Feri com as lanças, trespassai-os das frechas, com os montantes os talhai. Ajudai a sustentar a fé de Mafoma. Se morrerdes, sereis santos e mártires e tereis assento no Paraíso.

E uma floresta de ferro se ergueu num só grito:

- Allâh akbar!

Em seu campo, el-rei Dom Alfonso incentiva os seus homens:

- Sus, sus, ao combate, guerreiros da cruz! Venha embora a morte, como leões feros lutaremos. Desonrado o cavaleiro que no coração se acobarda. Pela sua fé, pela pátria e a família, pelo imperador, grandes trabalhos deve suportar um soldado, sofrer frio e calor, dar a carne e o sangue. Passai-os das lanças, das frechas, escachai-os da cabeça aos pés. Ajudai a sustentar a Cristandade. Se morrerdes, sereis mártires e santos e tereis assento no Paraíso.

E uma floresta de armas se eriçou num só brado:

- Pelas chagas de Cristo!

Assim falaram a seus combatentes o emir de Sevilha e o rei Alfonso e assim responderam suas hostes.

Dão sinal as trombetas, troveja o tropel, já rompe a refrega. Os lanceiros avançam, estoques em riste apontados aos peitos de cavalos, de cavaleiros, uma chuva de setas sobre os mouros voa, mas a cavalaria deles entra com grande destroço pela chusma dos peões. Dos flancos cortam por entre os contrários os cavaleiros de Umar e de Ben Balkim. Dão-se e recebem-se golpes de morte, quebram-se escudos, rasgam-se malhas, fendem-se peitos, estilhaçam-se elmos e abrem-se crânios. Os cavaleiros cristãos, picados da afronta, respondem com raiva e porfia, tamanha a ira referve. Proezas se obram de arrojo e bravura em um e outro lado. As horas passavam no longo morticínio, o solo coberto de mortos e feridos, empapado de sangue, os ares magoados de gritas e ais. Até ao cair da noite Mouros e Cristãos agigantam-se em inauditas valentias, humanidade ausente em seus corações sem ocasião de gemer de tamanha carnagem...

Súbito, à tardinha, já o Sol se escondia e alçava-se a Lua nos céus, pelas costas das tropas cristãs uma onda branca troveja e desaba fulminante pelas abas dos montes, das leves colinas, de detrás dos bosques.

- Senhor, atacados somos à reguarda. Perdidos estamos.

- Corre, meu arauto - brada el-rei Alfonso -, vai a Cória, a chamar meus cavaleiros portucalenses...

Partia o arauto em cavalo veloz, sua curva garra vinha a noite estendendo sobre a cruel mortandade. El-rei combatia, já ferem el-rei.

- Senhor! Senhor! - alarmados lhe gritam os cavaleiros. - Rotos estamos! Fugide, fugide, pela quebra dos pegos, pelo través dos córregos.

E el-rei Alfonso, um ombro a sangrar, com quinhentos homens desanda, se esgueira e dissolve nas trevas...

No campo, pela noite adiante - Iúsuf ordenara - a cena hedionda. Enquanto se enterravam os corpos caídos na luta, as cabeças dos mortos cristãos eram cortadas e com elas alto monte se erguia... E pela manhãzinha, ao minarete macabro, que ressumava sangue, subia o almuadem a gritar seu sala, a convidar os mouros a rezarem virados para Meca...

Depois da oração, as tropas preparam-se para regressar. Iúsuf Ibn Tâshfin manda que carroças pejadas das cabeças cortadas, caminhem adiante para Badalhouce, Sevilha, Granada e outras cidades:

- Sejam penduradas das muralhas, para que os povos conheçam a grandeza da vitória de Allâh... - e acrescentava entre dentes: - e tremam pelo azorrague, o castigo que os espera...

 

                                             Intermezo nono

Quando, depois da sesta, voltei ao scriptorium, já Randulfo estava sentado a ler as últimas laudas escritas.

- Santa tarde te dê o Senhor, Randulfo.

- A vós também, mestre.

- Fizeste as compras?

- Arrumadinhas no armário.

- Estavas a ler?

- Terrível sexta-feira aquela de Zalaca!

- Terrível e cruel. Sobremaneira.

- Sim. Construir minarete de cabeças cristãs...

- ... não é o mesmo que calar os sinos das torres.

- Não respeitaram os mortos. Corpo morto é coisa sagrada. Já não nos pertence, que desce à terra a ser comido dos vermes...

- ... a esperar pelas tubas da eternidade...

- Iúsuf Ibn Tâshfin não tinha coração.

- A que ponto o verás adiante...

Tais palavras trocávamos, mas era evidente que tanto eu como ele sentíamos longe o pensamento, os olhos desencontrados, contrafeito o ricto dos lábios... até que eu cheguei aonde queria:

- Já tens a casa pronta?

- Zoaira e Imena foram incansáveis. Tendes de passar por lá, mestre, a abençoar o meu lar. Levo a caldeira mais o raminho de hissope?

- Está bem, embora eu ache que...

Fomos interrompidos pela entrada do prior Armirigo que vinha manquejando das pernas, arquejando dos bofes:

-Ai, que desgraça! - dizia, deixando-se cair na primeira banqueta encontrada e enxugando suor e baba. - Nunca tal acontecera nesta terra!

- Que foi, senhor prior?

- Que aconteceu?

- O cesteiro... Ai! Até me custa falar...

- Que sucedeu ao cesteiro?

- Morto. Encontrado morto no ribeiro...

- Afogado?

- Qual afogado. Caído de borco, cabeça mergulhada no rio vermelho do sangue que dela escorria... Poderás, Randulfo, fazer-me a caridade de uma gota de água?

Randulfo foi junto da cantareira e da talha de barro tomou água num púcaro e trouxe-a ao prior.

- Obrigado, Randulfo.

- Mas dizei-me, senhor prior. Como sucedeu tal desgraça?

- Roubo. Encontraram-lhe bolsos, alforje, tudo vasculhado. A cabeça esmigalhada por detrás com uma pedra... mas na testa... - parava a beber um gole de água...

- ... na testa... - incitava-o eu ansioso.

- ... na testa um estranho sinal golpeado por punhal ou faca...

- Que sinal?

- Um triângulo com o vértice para baixo e, ao lado, uns riscos paralelos ondeados. Assim... - e o prior tomava de um lápis de Randulfo e desenhava numa folha que ele lhe estendia: - ... assim... Os meirinhos já lá estão a remover o corpo...

- Sabem quem foi?

- Na estrada que bota à Ponte de Pedra toparam com um mendigo. Na bolsa acharam-lhe a faca do cesteiro.

Levaram-no preso. Parece que o vão enforcar por estes dias... O homem chora. Jura que não matou ninguém...

- E a faca?

- ... que passava pelo ribeiro e, dando com o morto, lhe remexeu as algibeiras...

Randulfo, em silêncio, afastava-se até à janela. O prior dizia:

- Ai, amigo senhor cónego. E se enforcam um inocente?...

Por toda aquela tarde Randulfo não disse mais palavra, sentado na sua banca, parado, alheado. Eu olhava para ele e bem via que negra luta interior se lhe travava na alma. E a suspeita medonha entrou-me no coração. Por mais que tentasse escrever, não conseguia, deixava as frases, as palavras em meio... e olhava para ele, espiava-o... Às tantas, os nossos olhares encontraram-se e eu li-lhe nos olhos, no terror dos olhos, que ele também lera os meus pensamentos. Fingi que escrevia, disfarçando o enleio, caracol era o tempo em lenta passada até que chegou a hora de irmos cear...

A caminho de casa, já não era o silêncio dele que me inquietava, mas o meu. Queria falar, dizer-lhe qualquer coisa, mas não atinava quê. Tortura imensa!...

À ceia, Zoaira e Imena comentavam o caso:

- Pra mim - dizia Zoaira - o mendigo mente. Que sabemos dele? Apareceu na aldeia, ninguém sabe quem é...

- E que conhecemos nós da vida do cesteiro? - perguntava Imena. - Aquilo foi bulha que ele trazia com alguém, por mor de terras, de águas, trabalho...

Randulfo conservava o silêncio sombrio...

- ... por mor de mulheres... - rematava Zoaira e, súbito, deixa cair das mãos o prato que traz para a mesa: - Não me digas! Foste tu, Randulfo!

- Cala-te, mulher - gritou-lhe o moço, erguendo-se vermelho, o olhar turvo. - Isso é ideia que nem ao de leve deva riscar-te o coração... - e ia a desandar dali, agarrei-o pelo braço e obriguei-o a sentar-se.

Debruçou-se sobre a mesa num choro convulso...

- Aquilo foi mas é... - e eu sublinhava as palavras - ...o cesteiro escorregou nos limos, quando ia pôr os vimes de molho, deu com a cabeça numa pedra e afocinhou de borco no ribeiro... Foi o que foi... - e eu afagava a cabeça, os ombros do pobre Randulfo, que ergueu para mim os olhos chorosos:

- Foi?

Eu bem sabia que tal hipótese aventada por mim não tinha verosimilhança, que a abalavam os golpes que o morto apresentava na testa...

 

                                                   Guerra de almas

- Feriram-te, vejo - a mão do parceiro, apoiada num lenço do pescoço pendente, observa Iúsuf Ibn Tâshfín.

Lado a lado seguiam em suas montadas. Iúsuf num andori-nho de crinas fartas e cabo opulento, o emir de Sevilha em corcel mosqueado de coma frisada e cauda cortada.

- Golpe de franquisque. Não ma decepavam por pouco... -e, prazenteiro, acrescenta al-Mutâmid: - Não sai pelos dedos a alma... Mas eu também lhe derribei um ombro. Do encontro rei Alfonso saiu malferido.

Vagarosas atrás caminhavam as tropas, rumo ao Guadalquivir. Vitoriosas, eram entanto visíveis as chagas da guerra, cabeças, ombros, peitos, braços, pernas enfeixadas, prostrados na palha de carroças os feridos mais graves, com peitos abertos, membros decepados, os que se não podiam sustentar em cima dos cavalos, tinto de sangue o branco de camisas e jilabas, esfarrapadas as roupas...

Apenas pequena falange escoltava os soberanos, a do andaluz vistosa no vestuário de gala e nos arreios dos cavalos, a do magrebino um grupo de homens singelo, desnudados os braços, os olhos a luzir-lhes do véu raiado que lhes tapava cabeça e rosto, as abas do manto ao vento nos alazões nervosos.

- Não chego a enxergar muito bem - disse al-Mutâmid...

- Quê?

- ... esta pressa em regressares a África. Após tão estrondosa vitória, bem podíamos aproveitar melhor, perseguir os Cristãos mais além, a raia firmar do Tejo ao Mondego, reforçar Santarém e Sintra, Lisboa, retomar Coimbra, Montemor, reconquistar Toledo...

- Seria imprudência. Não é altura azada de aproveitar o triunfo. Os nossos exércitos, se bem vencedores, estão alquebrados - respondia Iúsuf o semblante pesado. - Julgas não sei ter rei Alfonso em Cória, Egitânia, por toda a terra entre Mondego e Tejo, importante reserva de homens, forte guarnição em Toledo?...

- Porque os não chamou em auxílio?

- Enganas-te, amigo. Escuta. Apesar de vivermos lá longe, no outro lado do mar, até nossos ouvidos a fama chegou de valentes guerreiros quais Soeiro Mendes e de um seu irmão Gonçalo e dos aguerridos cavaleiros que chegaram de França. Julgas os não chamou? Já mandou a Cória recado avancem depressa... Após vitória, não quero a derrota. Sou lacrau do deserto, al-Mutâmid.

- De qualquer jeito, vã me parece a nossa vitória. Cerrado o ricto da boca, Iúsuf seguiu longo tempo calado.

Guerreiro duro, não queria manifestar a dor que lhe ia na alma: mensageiro viera correndo de Marráquexe, a anunciar-lhe a morte de um filho a que muito queria. Por fim disse:

- Recolherei a África. Chamaste-me, acudi a um irmão. Derrotámos o inimigo. Se descer a atacar, encontrará vazia a planície. É prudente. Servido estarás por enquanto. Por isso me vou. Quero ir-me daqui - e o cariz do Ibn Tâshfin mais se lhe ensombrava: - Julgas que gostei do que vi?

- Que é que viste? Não te recebemos, eu e os emires de Badalhouce e Granada, como quem és, como amigo que vem acudir a filhos de Muhammad?

- Torre de igreja cristã a badalar seus sinos e, mal eles se calam e o som ainda reboa por campinas e quebradas, sobe ao campanário o almuadem e, lá do alto, como de minarete, grita o seu sala. Tem isto algum jeito? Grave afronta a Allâh, ao Profeta...

- Como pode ser isso? Ordenei por todo o Andaluz se tirassem os sinos e os fundissem para armas. Deves ter sonhado. Só há campanários cegos e moucos. A maior parte tornada minaretes, tal como os Cristãos das nossas mesquitas fazem igrejas e dos minaretes torres sineiras.

- Mas eu vi e ouvi o que te estou a dizer.

- Alguma aldeia perdida...

- Perdida?

- ... que escapou escondida nos refolhos dos montes...

- Muita coisa vi eu que é errada e despraz. Como em carta dizias, os árabes do Andaluz o Corão esqueceram, do Profeta os preceitos. Que é dele, o fervor religioso? Aceitais dos Cristãos sujeição tributária e carregais o povo de ilegal cobrança de impostos. Admiras-te se revoltem os súbditos?...

- Se nós, como outrora, para norte o domínio alargássemos, talvez nos pudéssemos dessa humilhação livrar e os dados até inverter, submetê-los a eles a pagar-nos as páreas. Tratar-se-ia, então, de purificar os costumes...

- Então?

- Nunca é tarde para arrepiar caminho.

- Meus soldados, habituados à disciplina e ao rebate, não os desejo infectados por tropa que se entrega à bebida e ao fornízio...

- Não será tanto assim. Duas faces as moedas têm, não te esqueça. Tu vives lá longe, no deserto. O teor desconheces da vida que levamos. Se tu e o teu povo deixassem de viver na escassez das areias... Moldou-vos a pouquidade.

Acostumastes-vos à gota de água e à frescura avara de um oásis que por vezes não passa de aparência, de sombra e fantasma... Olha-me este solo abundante! É um dom de Allâh. Olha a faina que por esses campos vai! Os vergéis carregados de frutos, os olivais prenhes, as searas doiradas, as vinhas de prata e luar ou veludo cor da noite... Não vês como te fitam os pomos amarelos dos laranjais? Olha as lágrimas de mel dos roxos frutos das figueiras, os montados palpitantes de caça, os mares e os rios a rebrilhar de pescado... O Tejo, depois de alagar a lezíria, ao abandoná-la cobre-a de nata que a fertiliza e o lavrador lança o grão tardio, que pode colher antes do tempo ordinário da monda. Olha nos ares os falcões treinados, em voo rápido, a filharem o pato bravo, a abetarda, garças e grous... Não ouves o zumbir das abelhas? Beijam as flores silvestres, sugam-lhes o néctar e dele fabricam o mel perfumado... Os figos do Gharb, a amêndoa e a alfarroba são apreciados em toda a nação...

- Dom de Allâh, como dizes, tudo isso. É verdade à volta das cidades, a medo um pouco fora e em redor das muralhas. Porque, de resto, que se vê? O matagal, a brenha, a selva, o baldio, o silvado... e o vosso desleixo.

- Desleixo? E o sangue derramado? E aqueles que do nosso exército ainda agora caíram no campo de honra? E o suor do rosto? E o trabalho? Ouve a lida de carpinteiros e calafates nas taracenas de Lisboa, de Alcácer e Shantmariyya al-Gharb, de Lagos e Sevilha, na ilha de Saltes, junto a Huelva, na embocadura dos rios Tinto e Odiei... Falas em selva? A madeira de jabal al-janna, a serra de Monchique, chega a Tiro, a Bagdad o pau oloroso da região de Dálias, na província de Almería, semelha o sândalo indiano pela fragrância e é enviado aos senhores dos reinos das taifas. Em Ossónoba há uma elevação chamada "monte do Paraíso". A sua lenha, quando ao lume, exala maravilhoso perfume. Em Medina Sidónia encontras o mais fino âmbar rosa.

Um dirham dele equivale a vários do importado. Nas montanhas de Calatayud, por mais estéreis, encontras a colocíntida de qualidade. Na ilha de Satin tens algália singular, em extremo gomosa. O melhor quermes ou cochinilha é o das proximidades de Sevilha, Niebla, Medina, Valência, que chega a todos os povos. Lápis-lazúli cerca de Múrcia, o bezoar junto a Lisboa num monte em que de noite resplandece como lâmpadas. Tens o rubi em Montemayor, em Almería, em Pechina. Por todo o lado os nossos mineiros abrem fundas galerias para extraírem a magnetite, a hematite, a marquesita doirada, a magnésia. No mar, pérolas de fria cor, o coral sangue e rosa. Nos rios de Lérida e em Lisboa colhe-se o ouro. Por toda esta terra encontrarás prata, estanho, mercúrio, enxofre vermelho e amarelo, zinco, antimónio, alume, ferro, cobre, grafite...

- Quem te ouvir julgará me queres aliciar.

- Apenas mostrar-te a bondade da terra.

- E a maldade dos homens? Porque infringis a lei com o beber do vinho, o comer da carne de porco, com o excesso da fornicação?

- Olha a invenção de novos engenhos, as noras, os alcatruzes, para a irrigação das terras secas, os nossos moinhos de água para tornar mais eficaz o trabalho do homem. Atenta no labor dos sábios, geógrafos e físicos, matemáticos e astrónomos... Ainda estranhas o aliviar de tais lides, guerreiras ou não, com a suavidade da poesia, com algum prazer?... Vives a religião abstracta. Tens os pés no Céu. Allâh te preserve a santidade. Porém, cá em baixo, nesta terra voraz de homens de carne e de osso, é muito outro o jeito de viver...

Prestes a chegarem a Sevilha, o céu embrulhava, grossas nuvens davam em correr e emprenhar-se de negrume. Arrepiavam-se de frio as folhas das árvores e à sua espessura recolhiam-se apressados, medrosos pássaros. Iusuf seguiu algum tempo calado.

Que estranha luta, Iúsuf se lidava em teu peito? A cobiça de tantas riquezas pelo amigo enunciadas debatia-se com o zelo religioso do almorávida. Mas as palavras adiantaram-se-lhe da boca para fora contrariando-lhe o coração:

- Não há desculpa - com espanto se ouvia a si próprio. - Escuta, amigo. Não me interessa a tua riqueza, bem-estar. Vou-me embora. Se precisares de ajuda, chama-me e eu venho uma segunda e outra vez, quantas necessitares. Mas fica certo de que, quando eu vier de novo, será para pôr cobro a esta desunião dos árabes e ao seu desacato à lei de Muhammad.

- Pressinto ameaça nas tuas palavras.

- Entende-as como achares melhor.

- Melhor teria sido não as ter ouvido, não as teres sequer pronunciado. Não vieste como amigo, como irmão?

- Bem o podes dizer. Em nome da nossa lei vim. -Assim o entendi, mas as tuas palavras de ainda há pouco...

- Não são palavras para o vento as levar. Estão prenhes e negras como estas nuvens que anunciam borrasca.

Um relâmpago súbito alumiou de chumbo os ares e as coisas e, daí a nada, soava o ronco do trovão.

- Antes que cheguem as chuvas de novembro, embarcar-me-ei com os meus para as terras de Marráquexe.

Encalorado, sem sono, saía al-Mutâmid ao jardim...

Bebi do vinho que derrama luz. Já a noite despe seu manto de trevas e das bandas dos Gémeos a Lua pálida e cheia caminha, rainha de esplendor escoltada por miríades de luzeiros seus émulos. Para poente avança, onde como dossel Orion flutua. Abre alas um batalhão de estrelas, seu estandarte as Plêiades... Também eu, também eu me meço com ela em luzimento e linhagem, em meio de exército de valentes e de mulheres formosas. Espalham trevas as lorigas dos meus homens, mas o vinho quente por donzelas servido difunde claridade. Tangem a cítara as escravas e as cimitarras dos meus bravos cantam nos elmos do inimigo... Tentem guerreiros couraçados barrar-me o percurso, empunharei a espada de gumes cortantes e firme levarei de vencida os que me querem derrubar... Então porque hesito ante as ameaças do almorávida?... Sinto crescer dentro de mim o pavor. Sem espada, sem disparo de seta, vai o destino matando, trespassando, sem derrame de sangue... Afoga a ânsia que te consome o espírito. A vida é uma presa a filhar. Acomete-a. Seu tempo é breve. Acaso fosse a tua de mil anos, nem assim se poderia dizer fora longa... Afasta a mofina. Alaúde e vinho fresco te acompanhem pelas bermas da estrada. Cuidados não terás, se por espada ergueres na tua mão a taça borbulhante. Sábio é o que faz por ignorar o saber...

 

                                                 Intermezo décimo

Pendurado da forca, balouçava ao vento, no alto do combro, o corpo negro do mendigo. Desvia-se-nos magoado o olhar no caminho de casa. Como havíamos de passar por lá, Randulfo pediu-me que déssemos volta por outra azinhaga:

- Trago ferida a alma - desafogava. - Saber me acusaram, suspeitaram, instantes que fossem, de eu ter...

Andava mais calmo, mas remoía-lhe reserva no pensamento. Uma tarde, copiava ele aquele passo da crónica em que se contava do desastre de Zalaca, suspendeu o trabalho e disse:

- Quem me dera ter estado lá, no seio da luta! Morria traspassado de lanças e tudo acabava.

- Não digas tontices. A tua hora chegará, quando soar o tempo nas tesouras das Parcas... Deus me perdoe, que a leitura dos Gregos e Romanos sobreleva a dos livros sagrados.

- ... Não me importaria de que os Mouros me fizessem do coração degrau de minarete... - atirava-me um olhar desvairado, sangrento: - Ciúmes... não é preciso tomar haxixe para se ser assassino, pertencer à seita deles...

- Desvairas.

- ... luta em que não há vencedor nem vencido... a vitória é só uma, a de morrer matando...

Negregada angústia ensombrava-me a alma. Chegávamos a casa. À porta Zoaira conversava cheia de risos, dengosa, com o moleiro, que fora levar uma saca de farinha. Palhinha mascada entre os dentes brancos, o moço meneava primores de palavras e olhares.

Randulfo, encrespou-se-lhe o senho à vista do rapaz e ia a destemperar-se, travo-lhe do braço, segredo-lhe:

- Tem-te, homem - e, virando-me para o moleiro: - Bons olhos te vejam, Gil Pais moleiro. Trouxeste a farinha?

- Então não? Três celamins bem medidos.

Randulfo entrava e Zoaira com ele. Previ altercação, mas daí a pouco o que vinha lá de dentro eram os risos da rapariga, seguidos dos de Randulfo. Esta Zoaira! Não pode ver homem. Manco, torto, zarolho, mouco e mudo, tudo lhe serve. Se vir um cepo, um toco, um arrocho com aparência de macho, logo titila. Qualquer dia ainda se vai haver mal por mor disso...

O moleiro despediu-se, depois de eu lhe ter pago a maquia e, lançando miradas concupiscentes à porta:

- Ah, senhor cónego! Que pedaço de cachopa! - disse. Desandou e desapareceu na azinhaga próxima, a trautear

uma cantiga brejeira:

 

Fui à ribeira do rio pus o pé na lealdade.

Estavas louca de cio, então eu fiz-te a vontade...

 

Depois da ceia, Randulfo retirou-se com Zoaira para a casa da adega. Queria descansar. Noites mal dormidas, explicava. Imena arrumava a cozinha e eu, nos ouvidos a soarem-me as ensandecidas palavras de Randulfo, saí para a noite a espiar no escuro do arvoredo as janelas do meu ajudante, tingidos os vidros de um luar suave de candeia de azeite que não tardou a extinguir-se.

Demorei-me por ali, subia a Lua no firmamento. Ia a retirar-me, ouvi a porta ranger e Randulfo saía, descia a escada de pedra e sumia-se nas trevas. Corri no seu encalço, mas já o não encontrei. Hei-de apanhar-te, meu malandro! Dei volta no propósito de recolher, caminhei lento como os meus pensamentos indecisos. Não augurava nada de bom do que acabava de presenciar. Aonde teria ido Randulfo? Seria o que eu estava a pensar? Urgia avisar o moleiro do perigo que corria! Fez-se-me luz. Seria isso? Evitar uma segunda desgraça? Que demónios dentro de mim me arrebatam, retardam meus passos? Deitei-me a caminho pràs bandas da azenha, cosido com muros, taludes, as sombras das árvores, não fosse alguém ver-me passar ao luar... Quando cheguei, a porta da atafona estava aberta, entrei, vasculhei, ninguém, vazio o moinho, a enxerga do moleiro vazia. Randulfo havia atingido os seus desígnios?

De volta a casa, ao meu quarto, desanimado por me ter saído inútil a incursão nocturna, já Imena dormia...

 

                                         Hora de folgar

De mil cento e vinte e quatro o ano acabava, el-rei Alfonso, ataduras no ombro e o braço ao peito, abeira-se das janelas do paço. Pensativo, erra-lhe pela cidade o olhar, atravessa a ponte do Tejo e avança pelo caminho que deita pra sul, a Córdova, Granada, Sevilha... Depois, mais abaixo, repousa nas filhas, Tareja e Urraca, que, acompanhadas de aias e donzelas, nos jardins passeiam.

Seguem-lhe a mirada, por cima dos ombros, o arcebispo, o conselheiro, ministros...

- As princesas folgam, meu senhor - diz o conselheiro.

- Nem sempre é hora de rezar, de sirgos torcer, ou de ler e estudar...

- Andam nos doze anos...

- Formosíssimos - acenavam em volta do rei seus ministros e entravam a cochichar diferenças de estatuto de ambas e duas: a primeira, a herdeira... que dúvida? filha legítima da rainha Constança, a segunda, filha fornizinha de uma dona chamada Ximena Moniz...

A el-rei viúvo, imperator Adephonsus agora se intitula, não agradam tais discrimes nem que por esconsas alusões intervenham seus cortesãos no íntimo foro da sua consciência.

- São minhas filhas - responde estomagado. Não tinha herdeiro varão, respeitassem-lhe a viuvez recente...

- Não era nossa intenção, senhor...

Com a mão um gesto de enfado faz imperador Alfonso, a desculpar-lhes a impertinência, e continuava seu pensamento: propunha-se era ligá-las a sangue da mais alta nobreza...

- Na tua corte, senhor - o primaz Dom Bernardo aponta -, e nos teus exércitos andam esses dois nobres de sangue real de França...

- Raimundo e Henrique?

- ... parentes da rainha Constança, sobrinha de Hugo, abade de Cluny, e de Roberto, duque de Borgonha. Onde encontrarás mais nobre liança, mais vantajosas partes para tuas filhas?

- Raimundo ronda os vinte e cinco - recorda o conselheiro -, nos vinte anda Henrique...

- ... ambos moços formosos, valentes...

- Após o desastre de Zalaca - retoma o prelado -, muitos sobreviventes franceses a suas terras voltaram além Pirenéus. De recear se vão também estes dois senhores...

- Se lhes acenarmos com... - deitava-se Alfonso a conjecturar...

- Tendes razão, meu senhor - o conselheiro acode. - Arme-se-lhes engodo, visco de matrimónio condigno, vastos territórios...

- A Galiza, talvez - sugere o arcebispo. - Extensão que, se bem entendo, pode, a breve termo, ir do extremo norte às bordas do Tejo...

- E demais - pega-lhe na palavra o conselheiro - alguns barões da Galiza andam um pouco soltos, como a atrever-se a agir sem seu rei... um Múnio Peláez, conde de Monterroso, déspota que traz aterrados seus vizinhos, sem que ninguém lhes acuda; um Garcia Pérez, enriquecido com as pilhagens aos mercadores de Inglaterra e Lorena que incautos Compostela visitam...

- Sim. Cumpre saibam que têm senhor - concorda o imperador.

Rumor de cavalgada sobe da calçada.

- Que comitiva será essa que lá vem, meu senhor? Atravessava a ponte e para os paços reais se guiava luzido

grupo de cavaleiros que comboiavam carroças carregadas de fardos, malas, vasilhas...

- Turbões na cabeça, crescente no peito, são mouros, senhor!...

- Que me quererão eles?

- Parecem vir em missão de paz...

O mordomo aparece a anunciar embaixada do emir al-Mu-tâmid. Anuiu Alfonso em a receber.

De par em par se abriram os pesados batentes das portas do salão real e a comitiva solene entrou e se encaminhou para o imperador, que no trono aguardava.

Esperava el-rei ver entrar mensageiros do emir de Sevilha, que lhe apresentassem devidas credencias, mas, com grande assombro, quem ali se adianta a fazer-lhe vénia aos pés do trono é o príncipe ar-Rashid.

Levantou-se Alfonso a recebê-lo:

- Príncipe ar-Rashid, a que vens? Recado certamente de teu pai, o emir al-Mutâmid.

- Assim é, rei dos Cristãos - responde ar-Rashíd -, se bem pareça intempestiva esta embaixada, quando te vejo ainda ferido da batalha que contra nós travaste. Não sei se alguma vez poderá entrar no teu coração o leite do perdão e eu próprio, incumbido por meu pai da missão temerária, alimentei dúvidas se havia de vir. Juntaram-se-me os irmãos - e apresentava-os: - al-Mamún, com sua esposa Zaida, e minha irmã Buthayna... -faziam vénia os príncipes...

Luziam os mouros em seus trajos de seda bordada com guarnições de oiro. As jovens princesas, formosíssimas, vaporosas as vestes que caíam em pregas e se abriam à perna elegante, ornados de pérolas os cabelos negros, colares de safiras, rubis, a rodear-lhes o colo moreno e a pender-lhes em voltas e revérberos sobre o peito, pulseiras de oiro e prata crivadas de diamantes nos braços e tornozelos, nas mãos os anéis, nos pés as babuchas de ponta revirada, seda pespontada de brilhantes - eram visões divinas que estavam prendendo corações. Que perturbado se sente rei Alfonso, que em Zaida os olhos se lhe perdiam...

- ... aqui estamos, dispostos a sacrificar as vidas por uma causa justa. Em paz vimos e suplicantes. Iúsuf Ibn TâshfTn foi embora para África, ameaçando voltar para lutar contra nós e nos destruir. O emir nosso pai sabe que não merece a tua bondade, mas não vê outro recurso de salvação de seu reino e de seu povo senão recorrer à tua protecção. E, como lhe chegou ao conhecimento o anúncio dos esponsórios de tuas filhas, considerou não haveria mais apropriado ensejo para mover a concórdia corações já movidos aos sentimentos do amor. Nas tuas mãos, imperador, os nossos destinos.

Assim falou ar-Rashíd e com seus irmãos se prostrou no chão em submissão.

Guardou breve silêncio o imperador, olhando os príncipes, seus olhos fugindo para a princesa Zaida, no espírito nem sombra de vingança, antes imensa compaixão o invadiu.

- Levantai-vos, príncipes, e sede benvindos. Longe de minha alma cristã inficionar com um gesto de ira o momento de paz. Estão em festa os meus reinos. Sereis meus convidados, antes de tornardes a vosso pai com palavras de liança...

- Permite-me, senhor - diz ar-Rashid -, te ofereça e às princesas tuas filhas um presente nosso e de nosso pai, o emir al-Mutâmid... - e, a um sinal, entravam pajens com arcas e cofres e abriam em frente do imperador cintilações de jóias, de moedas de ouro e prata, luxos de telas, sedas, veludos e damascos...

Nunc est bibendum... hora de afastar os ódios e as guerras, que é suave matéria a concórdia e amor. Rufar de tambores, de timbales, tanger de matracas, tropeada de arautos por praças e ruas a acordar a cidade, charamelas e tubas estremecem os ares... abrem-se janelas, gelosias e portas, assomam vultos às varandas, de mansardas espreitam albóios, olhos e narizes, bocas espantadas, e até os melros, nos ramos das árvores, inclinam o bico a mirar o alvoroço. Saltam dos portais desgrenhados putos a enfiar calças, camisas, a acudir ao tumulto. Um menininho escapa-se a correr todo nu rua fora. - Joane! - a mãe grita. - Ah, seu magano! Taratântara, taratântara - as trombetas troam. Alegre-se o povo, o arauto clama. Festas que ordena o augusto imperador nos esponsórios das filhas, as princesas Urraca e Tareja. Ordena torneio onde os mais famosos paladinos de Espanha, de Franças e Araganças, deste mundo e do outro, medirão valentias, lanças provarão, barões, condes, príncipes... À festa, à festa, houlá! Acorram as gentes. Haverá bufete no fim e terreiro de folgar e bailar ao som de pandeiros sob avelaneiras floridas!...

Alta vai a maré de murmúrios e vozes... que é? que foi? que será? que novidade é esta? Marido, tira-te, deixa-me ir ver o que passa...

- Meu pai, que é torneio?

- É jogo, luta de cavaleiros.

- Matam-se?

- Há torneios de morte e torneios de paz.

- Antes quero os de paz.

- ... uso novo trazido pelos condes franceses Raimundo e Henrique...

Desfiavam-se os dias, fervia o trabalho. Na grande praça aplanara-se arena, tribunas se erguiam, de el-rei e filhas e áulicos a um lado, das damas a outro, armaram-se em escada as bancadas do público... Longos mastros tremulam estandartes, pendões. Empoleiradas em escadas de mão, moças engalanam de laçarias e festões de flores balcões e cornijas, balaústres, colunas de terraços... repicam os sinos... Tropel de manadas e rebanhos. Vêm paladinos chegando, da Galiza e Leão, de Aragão e Granada, os donzéis de França. Das nuvens de poeira surgem como semideuses. Era vê-los passar, garbosos, altivos, em grupo, com seus escudeiros e pajens...

- 'nha mãe, que lindos são os senhores! Vão prà guerra?

- Não, filha. Vêm é correr lanças no casório das princesas.

- Ai, mãe! Que ricos noivos! Case-me com um deles.

- Cante!

Cresce a multidão de forasteiros, em toda a cidade cómodos que bastem não há, os albergues, as estalagens cheias. Erguem-se nos campos arraiais de tendas, pavilhões, tabernácula, tentaria e, nos arredores e pelas bermas das ruas, vendilhões armam, abrem suas bancas de comeres e beberes, abanam fogueiras, cozem pão nos fornos, assam veação, pingam ao lume no espeto porcos, cabritos, bois... Correm crianças, ladram cães, cacarejam galinhas espavoridas... Em suas forjas ferreiros, alfagemes temperam, afiam o aço de espadas, ferram cascos de cavalos... Meus olhos, 'nha mãe... meus ouvidos, meu pai... o cheiro, o palpar, tudo em tudo se inunda, mistura e alaga, as cores e as formas, sons, álacres ruídos, fragrâncias, vapores, maciezas de veludos, sedas e plumas, rudeza pungente de ferros agudos, de ameaçantes puas... Enchem-se as bancadas de cristãos e moçárabes, mouros e judeus, em gralhada algaravia. Que ornada está a tribuna real! Rosas são as duas princesas cristãs, Urraca e Tareja, jasmins as duas princesas mouriscas, Zaida e Buthayna, grinaldas de sorrisos nos lábios vermelhos.

Brilham topázios nos turbantes de ar-Rashíd e al-Mamún, de serena gravidade luz a barba fulva do imperador Alfonso...

Em seu cadeirão o primaz Dom Bernardo murmura ao ouvido do primeiro-ministro:

- Príncipes mouros nos lugares de Raimundo e Henrique?

- Raimundo e Henrique prestam homenagem às futuras mulheres terçando lanças na arena. Vê-los-ás entrar em lida não tarda.

Rufam tambores, soam clarins, florida az de tubas de oiro flâmulas ao vento, pomposo cortejo, o rei de armas e seus passavantes, lacaios e servos... surgem os cavaleiros, de cerimónia vestidos, pajens lhes trazem pela rédea os cavalos de raça ricamente ajaezados, escudeiros ao lado lhes ostentam os nobres escudos de armas de muitas formas e cores, que por todo o lado se mostram também, nos peitos paladinos, nos frisos das tribunas, nos pendões dos mastros, nas gualdrapas dos corcéis... flores lhes lançam dos varandins do estrado as damas formosas, sorrisos nos lábios, os olhos brilhantes...

Dada a volta ao terreiro, a cavalgada retira-se. Em suas tendas os cavaleiros vestem-se de ferro: casco, loriga, couraça, guantes...

- 'nha mãe, ainda não vêm?

- Tem paciência, filha. Logo virão.

Eis os trombeteiros ao vento suas tubas sopram e o arauto anuncia o primeiro combate:

- O insigne Raimundo, conde de Borgonha, versus o excelente Ponce de Minerva, conde de Trípoli.

Tareja olha para a irmã, que a seu lado lhe brilha a Urraca de orgulho o olhar.

As primeiras horas da manhã correm lanças amigáveis os dois cavaleiros. Avançam vagarosos, solenes, as lanças ao alto, viseiras fulgentes erguidas, os cavalos resguardados por testeira e alhacama aríntea, até ao chão amantados, de ouro os bordões do peitoral e da anca. Este é o conde Raimundo de Borgonha, em fundo de azul as flores-de-lis. A seu lado, Ponce de Minerva, o leão de prata e os escudetes de ouro.

Já medem as lanças os juizes e recebem o juramento dos combatentes:

"Por Deus juro, por minha vida e palavra, não trago feitiços, ervas malignas, rezas mágicas, artes diabólicas, no coração nem maldade nem ódio; por honra combato e renome e a graça de minha dama".

- Tomai pois vossos postos e lidai!

Os cavaleiros cavalgam cada um a seu extremo da cerca, baixam as viseiras e, a um gesto do juiz, rompem um para o outro vergados sobre a montada, rentes à teia que lhes divide o campo. Voam em nuvem de pó, as lanças em riste apontadas à esquerda. Ao centro se cruzam e as flechas das hastas se quebram contra o ombro adverso -Ah! ouve-se o clamor da turba - e continuam a marcha até à outra ponta da arena. Novas lanças recebem para segunda investida. No recontro, o conde de Trípoli logra quebrar a vara no escudo de Raimundo. Oh! grande consternação na tribuna das princesas!... Mas os paladinos lá correm a terceiro embate e, por seu turno, Raimundo despedaça a hasta no ombro de Ponce. Quarta e quinta volta e ainda mais uma se encontram os dois contendores...

Os juizes anotam os pontos, as lanças quebradas, e no fim Raimundo sai com a vantagem de um ponto e os cavaleiros, a par, acercam-se das tribunas a receber principescos presentes.

De novo os trombeteiros dão sinal e o arauto anuncia:

- O mui alto conde Henrique de Borgonha versus o valoroso Pedro Froilaz conde de Trava!

- A flor-de-lis contra o golfinho de prata - diz Tareja, os olhos brilhantes, ao ouvido da irmã.

Destros e valentes lidaram os dois paladinos. Primeiro Froilaz amolgou violento o elmo de Henrique. Oh! clamava o povo.

Logo Henrique arremete feroz e derruba da sela a Froilaz, que malferido cai do cavalo. Ui! o povo murmura... Acode o cirurgião com seus ajudantes e levam o cavaleiro à tenda a curar.

O Sol ia alto, por aquele dia suspendem-se as lides que é hora de comer e beber e folgar e bailar no terreiro.

No dia seguinte vieram à liça o leão de púrpura de Ramón de Tolosa contra o leopardo de prata de João Pestana, as cabras de Gosendo Araldes de Baião...

- O velho Gosendo! - murmura o arcebispo. - Serviu em Castela os reis Fernando e Garcia...

... contra o cão de fila de Fernão Mendes de Alão, as vieiras de Mem de Gundar das Astúrias contra a cruz de veiros de Quintanilla de Castela, os crescentes de prata de Egas Gomes de Sousa contra os lírios verdes de Osório Cabrera, o galgo malhado de Nuno Gonçalves de Lara contra a águia de Soeiro Mendes...

Era o meio-dia e, quando parecia ser essa a última justa, que nenhuma outra estava anunciada, eis surgem a cada ponta da liça, sem voz de arauto, dois cavaleiros armados... Um cavalgava um murzelo amantado de vermelho com guarnições de ouro, o outro um corcel árabe com gualdrapa púrpura e azul com frisos de prata. Olhos e bocas espanto exprimiam, só rei Alfonso sorria. De um as armas ostentavam uma águia negra, do outro o castelo, o leão e as palas.

- A águia dos Maias - disse o primaz de Toledo -, Gonçalo Mendes está aí...

- ... e o Cid também - responde o ministro -, que castelo é Castela, leão é Leão e as palas Aragão...

- O imperador fez as pazes com ele. Veio de Saragoça com sua mulher Ximena, prima de Alfonso, carregado de presentes e palavras de paz...

Foram interrompidos pelo brado do arauto:

- Gonçalo Mendes da Maia versus Ruy Díaz de Bivar.

Caminharam os paladinos até ao centro da liça e pararam virados para a tribuna real, a fazer o costumado juramento:

- ... por honra combato e renome - dizia Gonçalo Mendes - e pela graça de minha dama, a princesa Buthayna.

Um murmurinho percorreu a multidão, olhos voltados à princesa moura, que sorria.

- ... por honra combato e renome - dizia Ruy Díaz - e pela graça de minha dama, a princesa Zaida.

E o sussurro de assombro tornou a soar. Tomaram posições os dois cavaleiros, é dado sinal e a toda a brida correm um para o outro e, ao mesmo tempo, ao cruzarem, quebram suas lanças. Nova arremetida e mais outra e uma quarta e a quinta e eram sempre a par as lanças quebradas.

- Empatemos, em homenagem às princesas - sugeriu Gonçalo.

- De acordo - responde o Cid - e, quando, ao centro, se cruzaram, desviam as lanças dão volta e de sua calma vêm postar-se em frente da tribuna real, erguem as viseiras, hastas ao alto, e obrigam os cavalos a fazer vénia com os joelhos em terra.

Enorme ovação ecoou na praça...

 

                                            Intermezo décimo primeiro

Randulfo estava em sua banca aplicado ao labor de copista ou, melhor, ao seu particular jeito para iluminar e adornar lindas letras capitais com flores e frutos, animais fabulosos e coisas tiradas da esquentada imaginação. Acerquei-me dele. Acabara de figurar, numa vinheta, estranha cena de torneio. Um cavaleiro, armado a preceito, a tribuna do rei e das princesas. Se os rostos das personagens eram imaginados, nas duas princesas mouras, reconheciam-se com nitidez os semblantes de Zoaira e de Imena. Havia uma cercadura de cravos e malmequeres, cerejas e uvas, e na arena o cavaleiro, corcunda, montava um unicórnio e, lança apontada, arremetia contra um dragão. No chão rastejavam horríveis salamandras em meio de labaredas e, ao fundo, para lá de um ribeiro, no alto de um cerro, três forcas com seis corpos a balançarem, as cervizes partidas... Fiz de conta que não reparei, embora em meu coração o caso me estivesse alarmando, e disse-lhe:

- Esta noite saíste?

- Não, mestre. Dormi-a de um sono. Mentia o desgraçado! Que havia eu de fazer?

- Pareceu-me ter ouvido ranger a porta da tua casa...

- O vento por certo.

Hei-de apanhar-te. Hei-de apanhar-te. Falarei com Zoaira... Deixei-o com seus desenhos e saí sem nada dizer.

- O senhor cónego por aqui a estas horas? - disse Zoaira com aquele sorriso travesso e equívoco que punha a cabeça dos homens a girar como catavento.

- Zoaira, diz-me uma coisa. O teu homem saiu de casa esta noite, pois saiu?

- Saiu? - admirou-se a rapariga. - Porque pergunta? Agora! Adormecemos juntos, juntos acordámos pela manhãzinha. Passa-se alguma coisa com ele?

- Não, não. A Imena?

Imena entrava com uma braçada de lenha:

- O meu senhor conegozinho por aqui?

- Já estou de saída - digo-lhe apressado. - Logo falaremos - e ia a desandar...

- Oh! mas porque vieste? Saudades minhas?

- Falar com Zoaira.

- Com Zoaira? E eu? Ias-te embora sem me dares uma palavra?

- Ciúmes? Era o que me faltava!

- Que tolo que ele é! - riu-se para Zoaira. - Passa-se alguma coisa? Nesta terra estão sempre a dar-se casos de pasmar.

- E que mais se deu nesta terra que seja de pasmar?

- Não sabes? -Não.

- Que foi? - perguntou Zoaira.

- O moleiro.

- O moleiro? - alarmei-me.

- Morreu? - arregalava Zoaira os olhos.

- Credo! Oh, Allâh não! Desapareceu.

- Desapareceu?

- As pessoas estiveram à espera de farinha para cozerem o pão e nada. Foram à moenda, portas escancaradas, o rodízio parado, nem sinais do moleiro... Ninguém sabe dele.

- Bem, tenho de ir.

Foi neste momento que Zoaira quase saltou:

- Espere aí, senhor cónego. Porque é que ainda há pouco me perguntou se o Randulfo saiu esta noite?

- O Randulfo saiu esta noite? - admirava-se Imena.

- O senhor cónego desconfia de alguma coisa? - tornava Zoaira. -Ai, meu Deus!

- Nada, nada. Não vos alarmeis, cachopas. Tenho de ir. Adeus, adeus, até logo. Queira Deus...

Saí. O moleiro! ia pensando pelo caminho. Que fazer? Como saber o que Randulfo obrara a noite passada e andava a tramar?... Seis forcas! Porquê seis? matutava eu na iluminura do meu ajudante. E pus-me a contar pelos dedos: o mendigo, uma, por mor do cesteiro... outra, algum outro mendigo, por mor do moleiro, que, se não está morto, não tardará a estar, segundo os meus cálculos... a terceira, por mor do padeiro... a quarta... mas haverá assim tantos mendigos para cada assassínio que na aldeia se der?... E o cavaleiro corcunda, que, apesar da viseira caída, bem se via ser Randulfo?... E que significava estar a combater com um dragão? Luta de consciência? O demónio do remorso?...

 

                                                     O pior veneno

Era quase a hora décima e o alegre simposium prosseguia. Confraternizavam damas e cavaleiros. Objecto de muita atenção os príncipes e as princesas árabes. O imperador demorava-se a conversar com Zaida. Vistosa e bela, setinosa, a barba loira do Cid, que falava com os mais cavaleiros. Para lá das colunas abria-se o jardim, onde bailavam moças ao som de alaúdes e pandeiros. Gonçalo levou Buthayna a passear um pouco.

- Parece que estou em Sevilha - disse Buthayna. -As colunas, o jardim, as bailadeiras, tudo é árabe.

- O palácio, o jardim, vossa gente os construiu. As dançarinas são mouriscas.

Lânguida, mole era a música e Buthayna, no pátio viçoso em volta do repuxo de água, se pôs a dançar, a menear o corpo, serpentes ondeantes lhe volteavam os braços, as mãos, os dedos esguios. Chegaram-se as bailarinas e as alaudistas vieram e dançando e tangendo rodeavam a princesa. Fascinado Gonçalo, encostado a uma coluna, observava. Buthayna a mão lhe tomava, puxando-o a si, e continuava bailando em roda do cavaleiro. Depois, súbito, levando-o consigo, saiu do círculo das bailarinas e meteu-se com ele pela sombra dos ciprestes por onde não havia ninguém.

- Vais-te embora... - disse-lhe Gonçalo.

- Mal a manhã desponte.

- Longe que eu esteja, não deixarei de pensar em ti.

- Muito galante é o meu senhor cavaleiro.

Gonçalo tomou-a nos braços, mimou desajeitado bailar com ela um pouco e beijou-a. Buthayna sorria com doçura.

- Se alguma vez, lá longe em teu reino, te lembrares de mim... - disse Gonçalo.

- Não me esquecerei de ti - respondeu a donzela. -Acudirei pronto, se pretenderes...

Essa noite, quando a princesa se recolheu a repousar, Gonçalo procurou um escravo da comitiva dela e com ele teve secreta conversa. O escravo, de seu nome Soleima, era um rapagão adrede escolhido para proteger a princesa. Ouviu Gonçalo com atenção. Primeiro acenava não energicamente com a cabeça. Depois, pouco a pouco, ia consentindo até acenar que sim com largo sorriso. Gonçalo fez menção de lhe dar uma bolsa de dinheiro, mas Soleima arregalou-lhe os olhos ofendidíssimo. Acabaram apertando as mãos.

No dia seguinte, pela manhã, de partida, os príncipes árabes saudaram o imperador Alfonso e com sua comitiva se deitaram a caminho. Da varanda do palácio o rei viu-os seguir pela ponte do sul e o olhar perdia-se-lhe na princesa Zaida.

Com cem cavaleiros, Gonçalo acompanhou-os durante algum tempo planície fora, até chegarem à vista das primeiras montanhas. Aí parou e, feitos os usuais cumprimentos, deixou-se ficar a vê-los afastar-se. Numa curva da estrada, Buthayna voltou-se na montada e acenou adeus. Gonçalo ergueu a mão a corresponder-lhe, acenou também a Soleima que se voltava na sela e lhe lançava olhar de entendimento e viu-os sumir-se nos caminhos da terra e do destino...

 

E o destino destas vidas, corpos e almas, quem o conhecia então? Ai de mim, cronista da fatalidade, de Moro, filho do Caos e da Noite! A fatalidade conheço-a eu agora, volvidos tantos anos para cá do que foram esses tremendos dias!... Trago nos ouvidos aqueles versos magoados do magnífico e desgraçado emir al-Mutâmid, de sua grandeza atirado para a mais extrema miséria:

Execrando destino! Malfadado fado! Acena com bens preciosos, com o excelente, o bom, e logo o nega e rouba. Deitou por terra aquele que costumava ao caído dizer "ergue-te!", aquele que tinha mão mais pródiga em dar que a chuva, que confusa atrás tornava a caudalosa levada, aquele que fechava os ouvidos ao brado sem vergonha da calúnia, mas o abria ao envergonhado cicio da súplica e dizia ao que esperava dádiva: "não te destrua a esperança o desespero". Allâh se compadeça dos infelizes!

Não o previra o imperador Alfonso, mas sua acção, ao contrário, apressara os sucessos:

- Se eles são o braço de Muhammad, nós somos o de Cristo. Tinha conselho com seus guerreiros, com os barões de

Castela, de Leão, da Galiza:

- Faremos incursão ao sul, cercaremos Aledo, conquistaremos Múrcia, Valência, a prevenir não venha de novo o almorávida perturbar o acordo que há entre nós e os Mouros.

- Pacíficos, serão mais fáceis de dominar - asseverava o conde Raimundo.

- Poderei melhor que ninguém ajudar-te - disse o Cid. - Irei a Saragoça reunir os meus cavaleiros e estarei contigo no ataque a Aledo...

Pela primavera de cento e vinte e cinco o Cid partia e Alfonso com suas tropas marchava para sul caminho de Aledo. A notícia voava por todo o Andaluz, atravessava o mar, a Yúsuf chegava, que logo se dispôs a acudir a seus irmãos da Hispânia.

Pelas lhanuras da Mancha as águas passavam do Odiana, atingiam as ribas do Azuer, galgavam os penhascos e bosques da serra de Alcaraz, seguiam em direcção ao Segura, ao San-gonera, e avistavam Aledo, a que logo puseram cerco. Sete dias se escoaram e a povoação resistia. Alfonso aguardava a todo o momento o reforço do Cid, mas este tardava, quando os batedores surgem com o anúncio de que Yúsuf desembarcara com poderoso exército.

O Cid não vinha e Alfonso, estomagado, achou prudente retirar-se:

- É esta a segunda vez que me engana.

Mandou lhe confiscassem os bens. O Cid procura ainda explicar-lhe o atraso. Alfonso não o quer ouvir: desnaturasse-se, o caso era que o inimigo ocupara Aledo...

O Cid torna a Aragão, estende os domínios árabes à custa dos cristãos de Barcelona, chega a importunar as fronteiras de Castela.

Iúsuf, conquistada Aledo, guarnece de tropa a fortaleza e volta de novo a África, a preparar maiores forças para a definitiva vinda:

- Voltarei - prometia em seu coração -, a acabar com estes reizinhos das taifas e a repor a glória do antigo califado e a pureza do Corão.

Dois anos não iam decorridos, enviou à frente de possantíssimo exército seu primo Sír ben Abi Bakr, que começou por conquistar Granada. Depois dirigiu-se ao fruto mais apetecido, a Sevilha. Al-Mutâmid ainda apela para Alfonso, mas Alfonso não estava pronto para enfrentar de novo Iúsuf. Malquistara-se com o Cid e, além do mais, tendo casado Urraca com Raimundo de Borgonha e Tareja com Henrique e tendo-lhes dado as terras da imensa Galiza que iam até ao Tejo, não podia daí distrair a força daqueles braços.

Al-Mutâmid deixou o filho ar-Rashíd a defender as muralhas...

- Devem vir do lado de Granada disse -, que a acabam de conquistar.

... e saía a campo com sua hoste, a enfrentar o invasor.

O céu embrulhara, pejadas nuvens rolavam ameaças de chuva, um vento ríspido encrespava as águas do Guadalquivir, arrepiava as árvores e as aves.

O emir levava consigo os outros filhos, al-Mutâd Abd Allâh, ar-Râdi, al-Mamún al-Fath. Dentro das muralhas, nos paços reais, ficavam os gritos, o choro, o aiar de mães, esposas, irmãs, dos meninos, do povo assustado.

Acendiam-se os céus e roncavam trovões, abriam-se as fontes e despejavam água em grossas fiadas.

De todos os lados os Almorávidas rompiam, da planície a leste desembarcavam a montante, a jusante do rio, surgiam de oeste. Perdido se vê al-Mutâmid. Tudo de repente desaba. Tumultuam-lhe os pensamentos, as imagens do passado, os pressentimentos do futuro. Esta é a sua terra, a terra de seus pais, a sua pátria. Recorda Beja, onde nascera e onde brincara e fizera os primeiros estudos. Recorda a amável Silves. Pensa nos filhos. Pensa nas filhas. Que iria ser das suas meninas? de Buthayna, dezanove anos formosos, tão frágeis? de Zaida...? E a sua Itimâd?... E agora os inimigos ali estão a roubá-lo... e o povo, ingrato, a mover-se à traição. Não podem é roubar-lhe o coração. O corpo, sim. O coração porém jamais se entrega. Nem o carácter nobre. Quem pode arrebatar a nobreza de carácter? Essa não ma tirarão. Nunca! Venha a morte do corpo poupar-me ignomínia e submissão...

Sem couraça batalha, sem escudo, a arca do peito franqueada ao golpe fatal, mortificada a alma. À sua volta a morte semeia, não evita golpes, corre o sangue a rodos e mistura-se nos charcos da chuva...

De uma lançada cai-lhe morto o cavalo com ele por terra.

- Senhor! Senhor! - acode desmontando um cavaleiro. - Tomai meu cavalo.

À luta regressa enlameado de sangue. Pensa já não voltar a ver os seus, a vida. Não foram assim, altaneiros, valentes seus avós? Quem conhece as raízes, reconhece o ramo...

Um após outro vê cair os filhos, de uma frechada varado Abd Allâh, ar-Râdi por terra o crânio fendido, al-Mamún al-Fath os peitos rasgados... As barbas lavadas do choro e das águas do céu, de raiva se atira, ao combate. Não se protege com escudo nem cota nem elmo.

- Rende-te, rei! Rende-te! Serás poupado... - gritam-lhe amigos no calor da batalha...

- Rende-te, al-Mutâmid! Rende-te, abádida! - grita-lhe Abí Bakr brandindo o alfange, o cavalo nervoso de olho sanguíneo soprando das ventas.

- Não! Não! Render-me? Nunca, maldito almorávida! Rendição o pior veneno... o pior veneno... - e pelo meio do inimigo se arremessa a matar à direita e à esquerda, em frente e atrás, na busca da morte...

Já o adversário entra a cidade, que alguns moradores, dados à traição, patenteiam as portas.

No palácio real há confusão e gritos, correrias de angústia.

- Senhora! - aflito rompe o eunuco Abaiub pela câmara de Zaida. - Depressa! Depressa! Vinde comigo! É preciso fugir...

- E o meu marido? - o susto na alma, pergunta a princesa.

- Deixai, senhora. O tempo resvala. Vinde!

- Morreu?

- Vinde! Vinde!... Ele já não pode...

- Buthayna? E Buthayna?

- Não sei, senhora. Soleima, encontrei-o, anda doido à procura dela. Vinde...

Leva-a por corredores, escadarias escusas, serviço de escravos, para a parte detrás, atravessam cortinha, pomar, e por pequeno cancelo saem à cangosta. Há aí cavalos presos a uma árvore. Montam, tresmalham-se na primeira curva, lomba de colina, no cego da noite e dos bosques...

Ao sentir os soldados de Abi Bakr a entrarem o palácio, a jovem Buthayna, com algumas donzelas, fugia para o jardim em busca do refúgio impossível. A noite as guardou até de manhã. Descobertas, fugia cada uma para seu lado, correndo e gritando. Os homens apanhavam-nas e, à força, começaram a abusar delas. Buthayna, apressou-se na fuga, mais que as outras e já ia a alcançar uma saída, um soldado agarrou-a por um braço, enlaçou-a, meteu a mão pelo decote dela e rasgou-lhe o vestido.

- Ai! Bruto! - defendia-se a jovem com os punhos, no meio da grita das donzelas violentadas.

À princesa foram-lhe arrancadas com dor as jóias do pescoço, dos braços, dos dedos, e depois, toda nua, deitada ao chão e brutalmente forçada.

Oh, Céus! Não há palavras para exprimir a angústia, a revolta, a impotência de corpo e alma de uma donzelinha a ser violada, a dor agudíssima das entranhas, as lágrimas, os ais, o desmaio, o sangue da virgindade a macular-lhe as carnes...

Levantavam-se os brutos e as moças, chorosas, apanhavam do chão as vestes dilaceradas, a cobrir as vergonhas. Assim, seminuas, são levadas ao mercado de escravos.

Os céus piedosos continuavam a lavar o sangue dos homens, que escorria em pequenos riachos para o rio vermelho. Também chorosas eram as almas dos que acorriam à ribeira a deplorar a sorte do emir e dos príncipes, de Itimâd e das princesas.

- A montanha que éramos foi-lhe minada a base. Ela sustentava o mundo e agora tudo ruiu... - assim clamava no meio da turba o poeta Ibn al-Labbâna.

Lá vinham, cercados de soldados, o rei e o filho ar-Rashid, com grilhetas nos pulsos. Acompanhavam-nos Itimâd e os filhos menores.

Vestes rasgadas, caídas, os rostos desfeitos, o peito em ânsias, as bocas torcidas cansadas de gritos, o olhar desvairado... Os soldados empurravam-nos para os barcos, amontoavam-nos como a corpos em vala comum. A multidão olhava em compungido silêncio, pensativa, aqueles que eram pérolas vogando sobre espuma. Partiam as galeras, erguiam-se braços em derradeiro adeus, os olhos em pranto, os remeiros remando embalados por cantos, como camelos compassados pela toada do cameleiro. Quantas lágrimas aquelas ondas levavam! Quantos corações magoados!...

Do estrado de escravas Buthayna vê seus pais e irmãos partirem para o exílio. Não a deixam seguir, que a princesa vale bom preço e suas donzelas. Se alguma esperança ainda lhes pode restar, é a de virem a ser compradas por senhor compassivo...

Chorou a rola aquela manhã triste de setembro chuvoso. A alaudista tangeu, dedilhou suas cordas, seus magoados bordões, as moças ondearam as hastes dos corpos, leves os dedos rufando o sopro dos adufes. Ergueu a voz da princesa moura tórculos e requebros queixosos:

A minha saudade chora como água de fonte. Exilaram o rei meu pai, a rainha minha mãe, prenderam-me irmãos e irmãs. Com as companheiras fiéis, os meus ais se esfumam aos céus, a alma chagada! Despojaram-me de meus véus, dilaceraram-me as vestes e, desnuda no estrado, eis-me agora escrava na feira do povo, examinada em mãos e pés, nos dentes e nas intimidades, a avaliar preço como égua de raça...

Misturado com a multidão, disfarçado de mercador, para não ser preso e degolado como os demais criados do palácio, Soleima assistia à desgraça de seus amos, quando dá com Buthayna e as suas donzelas no mercado de escravas. Com o desespero na alma lhe escuta o cântico dorido e, sob a jilaba, aperta nervoso o cabo do punhal afiado...

 

                                           Intermezo décimo segundo

Ele espia-me. Randulfo espia-me o pensamento. Estava eu concentrado em meu trabalho, sinto na testa, nas têmporas aquele esquisito leve aperto, pulsar, arrepio ou lá que é, de aviso de que alguém me fita. Levanto os olhos e dou com os de Randulfo postos em mim. Logo os desviou e fingiu aplicar-se à escrita. Não é a primeira vez. A cada passo surpreendo-o a seguir-me, mirada funda, inquisitiva. Avalia-me as palavras e os silêncios, interpreta-me os gestos e as intenções. Ele já sabe. Sabe que eu sei. Desconfia de mim e sabe que desconfio de si. Cava-se a cada passo mais larga a brecha entre a nossa conversação. É difícil o trato, pesado o convívio. Espia-me e sabe que o espio, que lhe adivinho os pensamentos, que eu sei que ele sabe. Qual a saída para tal angústia? Receio bem não haja outra senão a morte... Procuro forçar-me:

- Não queres falar?

Olha-me muito sério e, depois de alguma hesitação:

- E vós, mestre, não quereis falar?

- Estou a tentar.

- Estais a tentar que eu fale. Mas o que eu queria era ouvirmos a vós. Porque me espiais? O outro dia fostes perguntar a Zoaira se eu tinha saído aquela noite, quando eu vos havia afiançado que não. Que quereis de mim? Ver-me na forca?

- Não, homem, não! Acalma-te. Que ideia! Quero é varrer esta dúvida. Suponho escondes o segredo do que se passou e possa vir ainda a passar-se...

- E se for verdade e eu vos disser...

- Corres grave risco.

- E vós, mestre, não?

- Ameaças-me?

- Que mal nos pode fazer o falar! Uma incerteza e pronto!

- Uma incerteza?

- Melhor boca fechada.

- Não. Desfaçamos de vez a dúvida.

- Fala-se e não se sabe o que se bota da boca para fora. As palavras traem.

Passeei um pouco pelo aposento e tornei junto de Randulfo:

- Não gostaria que alimentasses uma ilusão. Sabes como é. A gente engana-se... Errare humanum est...

Olhou-me Randulfo, os olhos húmidos, prestes a chorar:

- As mulheres são como os sonhos. Nunca como as desejamos...

- Uma pessoa pode enganar-se. Eu, por exemplo. Vangloriava-me de ser inteiro, seguro na ideia e na conduta... mas reconheço que, se hoje sou um, amanhã posso tornar-me outro...

- Que quer isso dizer? Sois vós agora, mestre que vos abris e confessais?

- Eu não confesso coisa nenhuma. Tu é que...

- Eu? Que sou eu? Tudo mexe e muda, nada tem peso. Viro-me a uma banda, a outra, rio-me... e meto-me em meu buraco a chorar. Escondo o rosto de vergonha de me ver.

- Incomodo? - disse da porta entreaberta a voz do prior Armirigo.

- Entre, senhor prior. Estamos aqui a conversar...

- ... no templo intemporal das confissões, estou a ver - disse sentando-se fatigado de andar. - Padre não falta.

- Confissão? - interrogou Randulfo de mau modo. - A mim basta-me a consciência.

- Como, Randulfo? - diz o prior. - Confissão sub silentio? É heresia. Tem cuidado. Pode esperar-te a fogueira.

- Basta-me, no silêncio da alma, o salmo da penitência, Miserere mei...

- O Paracleto te ilumine, rapaz.

- E que fazes tu dela, Randulfo? - pergunto-lhe.

- Da minha consciência? A mim basta-me.

- Bastaria, se estivéssemos sós - digo-lhe. - Olha. Entrou o senhor prior e logo nos apercebemos do diferente que é a realidade: há os outros, a consciência dos outros...

- A minha me basta.

- ...a tua, que nada mais é que a dos outros em teu pensar e sentir.

- Palavras!

- A tua consciência a sós - disse o prior - é a mais rematada insciência.

- Além do mais - torno eu -, achas que podem os outros pensar de ti o que quiserem e julgar-te como lhes aprouver, que tu continuas seguro e certo de não teres agido mal?

- Eu não agi mal.

- E quem te dá essa certeza?

- A minha consciência.

- Pensas teriam os outros agido como tu nas mesmas circunstâncias?

O prior Armirigo levantava-se:

- Sou aqui uma consciência a mais, é bem de ver.

- Não, senhor prior, sente-se - digo-lhe. - Esteja a seu gosto. O prior voltou a sentar-se:

- Além dos factos concretos - erguia o dedo doutrinal -, particulares, alegres ou trágicos, das nossas vidas, há a lei moral...

- Isso mesmo, senhor prior. Os princípios. Gerais e abstractos. Fruto da consciência colectiva ao longo dos tempos. Tu fechas-te, Randulfo em teu orgulho, sustentas que te basta a tua consciência e ao cabo estás a reconhecer que toda a gente te acusa...

- Acusa de quê?

- Encolhes-te em tua concha, para te sentires melhor sozinho. A solidão apavora-te e então pões-te a torcer, a adaptar, a forçar os pensamentos dos outros às tuas conveniências... e chamas a isso a tua consciência.

- O mestre está a falar de mim ou é eco de si próprio?

 

                                             As princesas mouras

À chuva cavalgam na noite e ao vento, pelas margens do Guadalquivir, a princesa Zaida e seu fiel Abaiúb. Próximo de Córdova deixam o rio para esquivar a cidade e metem à serra. Subida penosa sob a invernia, o desgrenhar das árvores, à beira de abismos. No alto a portela luziu-lhes, da cortina de água, o fraco luar de um janelo. Apearam-se. Sob a lapa, junto aos fardos de palha, o eunuco abrigou os cavalos. Rangeu a porta da choupana e a velha apareceu esfalripada e suja, a candeia ao alto a alumiar a cara dos viajantes:

- Boas vindas, princesa! Molhada como um pito, pobre menina! Quem se bota a caminho com um temporal destes...

- Boa mulher - disse Abaiúb -, poderás dar-nos guarida por esta noite ruim? A princesa Zaida teve de fugir...

- ... se não, faziam dela escrava, eu sei, como a Buthayna...

- Buthayna escrava? - alarmou-se a princesa. - Como o sabes?

- Os ecos do vento, filha, os rumores da chuva... Vá, entrai, princesa. Tenho lume pronto, roupa enxuta, comida quente, cama de folhas murchas, cheirinho agreste, para dormirdes...

Sumiu-se a mulher pelo buraco negro e eles seguiram-na. Na lareira dançavam chamas, sombras saracoteavam-se pelas paredes, num tripé fumegava um caldeirão de ferro. A bruxa lançou a Zaida umas roupas imundas e rotas, mas secas e quentes.

Abaiúb segurou um lençol cheio de nódoas, a fazer resguardo para a princesa mudar de roupa a seu recato.

- Criado fiel - comentou a velha com um risinho cacarejado, enquanto remexia o caldeiro. - Bonito de ver! Mas mais bonito o corpo nu da princesa que se despoja dos vestidos reais. Passai-mos cá para os eu pôr a enxugar ao lume - e, do passo que os ia recebendo, pendurava-os de uma corda sobre a fogueira e punha-se a cantar:

A coruja piou três vezes sobre o ramo da olivera. Mataram o meu marido, outro está à minha espera...

Nem a princesa nem seu escravo conseguiram tomar do caldo nojento da feiticeira.

- Não está uma delícia? - disse rindo. Foi a um pote de barro e veio de lá com amoras, framboesas e bagos de groselheira. - Frutos da serra - disse. - Amadurecidos pelo bafo dos sardões e das serpes, benzido pelo cuspo do cuco.

Mau grado as palavras da bruxa, comeram gostosos, uivava lá fora o vendaval, e prepararam-se para repousar. O eunuco ajuntou a um canto o folhedo, com um xaile da bruxa amanhara almofada. A princesa deitou-se e ele cobriu-a com uma velha capa que encontrou numa arca e enroscou-se aos pés de Zaida como um cão. A velha sentou-se no escano, ao pé do lume, e ali ficou sorrindo até adormecer.

O dia acordou nublado, mas calmo e sem chuva. A princesa cobriu-se de novo de seus vestidos reais, agradeceu a hospitalidade da mulher e partiram.

-A felicidade espera-vos, princesa Zaida... - disse a maga.

Montaram, acenaram adeus. A velha ficou-se à porta a vê-los alongar-se e murmurou muito triste:

- ... espera-vos... até...

Iam serra abaixo os dois fugitivos, a princesa à frente, Abaiúb atrás, espreitavam das penhas águias vigilantes, longas horas caminharam para norte bebendo da água dos ribeiros, comendo do pão que ainda restava no farnel do eunuco. Passaram Caracuel, Calatrava e chegaram às escarpas em volta de Toledo.

Manhã clara, nuvens brancas no céu, o arco-íris a coroar de cores a cidade com as raízes nas águas do Tejo, uma junto à ponte de Alcântara, a outra na extremidade oposta. Zaida não pôde deixar de recordar a última vez que ali estivera, passara aquela ponte por que agora estava a passar, entrara aquela porta que estava a entrar... e eis se encontrava ante o palácio do imperador Alfonso...

- Quem vem lá? - acudia o sentinela.

- A princesa Zaida, filha do emir de Sevilha - adiantou-se Abaiúb -, pede audiência ao imperador Alfonso.

Foi dentro o recado e em breve, com alvoroço e companhia, o imperador em pessoa aparecia a acolher a princesa, a dar-lhe a mão para desmontar. Ele já sabia da tomada de Sevilha pelos Almorávidas e da desgraça que acontecera a al-Mutâmid e família. Não sabia era o que sucedera a Zaida. Em seu coração andava tão angustiado quanto agora exultava por vê-la aparecer como por milagre:

-ADeus graças! Conseguiste fugir!

- Meu fiel Abaiúb me salvou, meu senhor. Trago o coração em chaga viva... Meu pai, minha mãe, meu marido ... - e chorava nos braços do rei - ...meus pobres irmãos...

Recolheu-a Alfonso a seus paços, aias lhe deu que a servissem e ordenou lhe prestassem o gasalhado pertinente a pessoa de sua real qualidade.

Em Sevilha, grande era a faina. Os vencedores almorávidas obrigam os vencidos a enterrar os mortos, a lavar e varrer as ruas, empurram o mulherio, os curiosos, ordenando volte cada um a seus afazeres, sem qualquer piedade ou hesitação degolam os que, na confusão, se dão à pilhagem ou à vingança.

Soleima acercou-se do estrado ao ouvir o cântico lamentoso de Buthayna. Meteu-se por entre o grupo de compradores que em volta se ajuntavam, já a voz do leiloeiro se ouvia a anunciar a almoeda da princesa. Em redor os olhares de lascívia dos que disputavam entre si qual ficasse com a formosa donzela faziam-lhe raiva. Os lanços subiam a valores excessivos. Que arrependido estava por não ter aceitado a bolsa de ouro que Gonçalo lhe oferecera! Não tinha dinheiro bastante para competir. Que fazer? Olhou desesperançado os licitadores ricos. Alguns, ante a ascensão das ofertas, começavam a desistir. Havia aí um judeu, seu conhecido, vestido de preto, quipá no toutiço, que se mostrava disposto, mais que nenhum outro, a não ceder. Soleima aproximou-se do homem:

- Aben Yaisch, não deixes fugir para outro essa pérola preciosa. Na revenda, poderás fazer bom negócio.

- E quem és tu para me ensinares a mim a negociar? Tens dinheiro para ma comprar?

- Sei quem o tem e está interessado nela.

O judeu acudiu a mais um lance, de tal ordem a oferta que os outros concorrentes deixaram de competir. O leiloeiro disse:

- É tua a escrava Aben Yaisch - e entregava a princesa ao judeu.

Pela corda que lhe atava os pulsos era levada Buthayna, chorosa, os olhos atrás volvendo às companheiras de infortúnio. Não reconhecera Soleima, por mor de umas barbas com que ele se disfarçara.

- Fazemos negócio? - perguntou o escravo ao judeu.

- Viste quanto paguei?

- Vi. Vinte dirhans.

- Dar-me-ás dez vezes mais.

- Sem dúvida. Mas vamos a lugar mais recatado, a minha casa, onde o rico comprador que te disse nos espera.

- Porque se esconde ele?

- Pessoa importante. Não quer dar-se a conhecer.

- E se eu não tivesse ficado com a escrava?

- Outro ficaria. A esse me havia de dirigir.

- E se ele a não vendesse?

- O preço que o meu comprador pagará é tal que ninguém lhe poderá resistir.

- Estou para ver.

- Verás.

- Negócio fechado, se é como dizes.

Seguiram por uma viela escura e, num vão desgarrado, Soleima, num golpe repentino apunhalou o judeu, que caiu sem um grito. Desamarrou os pulsos da princesa, tirou do alforge uma túnica e disse-lhe:

- Vinde, princesa Buthayna. Buthayna reconheceu a sua túnica.

- Quem és tu?

- É hora de fugirmos para bem longe. Vinde. Confiai em mim - e levava-a, apressado, pela mão.

Saíram à campina e numa cabana abandonada de pastores se esconderam até a noite cair. Soleima ausentou-se, dizendo a Buthayna que, por nada da vida, se movesse dali ou desse sinal de si. Algum tempo depois regressou com farnel de pão e uvas e um cantil de água. Lá fora resfolegavam dois cavalos.

Comeram do pão, das uvas, beberam da água. Buthayna olhou intrigada para Soleima, que, percebendo-lhe na boca o arredondar da pergunta de há pouco, arrancou as barbas e sorriu.

- Soleima! - exclamou a princesa. Estiveram a conversar durante muito tempo.

- Vestide estas roupas, princesa - disse Soleima, tirando do alforge vestuário de rapaz. - Essa túnica, dei-vo-la para vos cobrirdes.

É perigoso esse traje, durante a caminhada que vamos fazer... E esse anel? Escondei-o.

- Roubaram-me as jóias todas. Só agora reparo se esqueceram deste anel no dedo mindinho. Deu-mo minha mãe Rumaikiyya... - e pôs-se a chorar.

Soleima deitou-lhe um olhar triste e saiu, para a deixar mudar de roupa. Pronta, Buthayna chamou:

- Soleima!

- Vamos?

- Aonde me levas?

- Tomaremos caminho que nos conduza a Coimbra. Procuraremos aí alguém que muito vos quer e vos protegerá como quem sois.

- Quem?

- Procurai na memória de vosso coração.

Buthayna ficou calada, como a vasculhar na lembrança e, pela primeira vez depois da desgraça, sorriu.

- Ireis disfarçada de moço. Como mais novo, fingireis de meu criado. Oh! Desculpai-me, princesa, mas assim terá de ser. Eu sou mercador mudéjar. Se alguém vos perguntar, chamar-vos-eis Belfadar.

- Assim me fade Allâh!

- Há-de fadar. Já vos basta de sofrer.

- Para tudo sair bem, Soleima, terás de me tratar por tu... mesmo quando estivermos sós.

- Terei de me forçar a isso, mas acreditai, princesa, que em meu coração não vos faltarei ao respeito.

- Eu sei, Soleima.

- Trouxe comigo uma bolsa de dirhans e dinares furtada ao judeu que vos comprou na almoeda. Tomai-a e escondei-a bem. Se me acontecer alguma coisa, fugide para Coimbra. Aí vos dirão do paradeiro de...

- ... de Dom Gonçalo Mendes, senhor da Maia.

- Como adivinhastes?

- Trata-me por tu.

- Como adivinhaste, Belfadar? Buthayna levou a mão ao peito e murmurou:

- Busquei na memória do coração.

Com o escurecer dirigiram-se aos cavalos.

- A minha égua! - exclama Buthayna. - Conseguiste-a?

- Estava muito sossegada na cavalariça real... e os soldados ainda atarefados com o ouro e as jóias do palácio...

A coberto da noite partiram para norte, a caminho de Coimbra.

Cavalgam durante dias pelos vales de rios e ribeiras, à sombra de altas serranias, e vão dar a Badalhouce. Misturam-se com o povo que acorre à feira. As suas belas montadas atraem as atenções de uns ladrões, que os seguem com cautelas e esperam se deitem a caminho. Armam-lhes emboscada e assaltam-nos. Faz-lhes frente Soleima, é ferido de morte:

- Foge, Belfadar! Foge!

Belfadar foge a galope e logra sair do alcance dos ladrões. Atravessa o Tejo pela ponte de Alcântara e toma o caminho de Idanha...

Casado Raimundo de Borgonha com a princesa Urraca, deu-lhe o imperador Alfonso o governo das terras da Galiza. E, porque estas eram extensas, casado Henrique com a princesa Tareja, foi-lhe confiado, sob tutela do primo, o condado portucalense, que ia do rio Minho ao Tejo. Os barões de Sousa, da Maia, Baião e territórios ao sul do Douro e do Mondego acataram a autoridade de Henrique e de Tareja.

Gonçalo Mendes assistia em Coimbra, de onde partia, com sua mesnada de cavaleiros, a segurar as terras indecisas de entre Mondego e Tejo. Uma tarde, que fazia razia até Amâyaben Marvão, colheu notícia dos atrevimentos dos Almorávidas pelos reinos árabes de taifas, da queda de Aledo, de Granada, de Sevilha...

- De Sevilha? - pergunta inquieto. - Que é feito do emir al-Mutâmid?

- Triste história, senhor - o informador contava. - O rei foi exilado com a mulher e os filhos que escaparam da mortandade...

- E as princesas?

- Zaida, o marido al-Mamún al-Fâth morreu-lhe em combate e ela fugiu a acolher-se a Toledo à protecção do imperador...

- E Buthayna?

- Menos feliz: prenderam-na, não a deixaram seguir com os pais e os irmãos. Venderam-na como escrava...

- Como escrava? A quem?

- Um judeu a comprou. Mas, na mesma hora, o judeu apareceu morto numa viela da cidade e a princesa desaparecia como por encanto. Ninguém sabe dela.

- E os criados do palácio?

- As concubinas e outras mulheres foram vendidas no leilão de escravos, os criados todos degolados...

- Todos?

- Um eunuco ajudou a princesa Zaida a fugir para Toledo e há um outro criado do paço, zelador da princesa Buthayna, que não aparece em parte nenhuma. Fala-se disso na cidade.

De regresso da razia, na companhia de seus homens, com grosso espólio de gado e de pão, Gonçalo vai pensando na princesa desaparecida. Como encontrá-la? Em que caminhos do mundo andaria errante, perdida? Que frágeis, perigosos, os caminhos do mundo! Por terra? Por mar? Por mar não - era seguir o inimigo... Toledo, como Zaida? Natural seria procurar aí refúgio... mas Soleima, se o seu desaparecimento estava ligado ao de Buthayna, tinha outro recado... Se é escravo fiel, ele há-de mas é procurar-ma, trazer-ma... Então, tomaria antes o caminho que leva a Coimbra... Tirou-se Gonçalo de sonhos:

- Gutierre amigo, chega cá.

- Que me queres, senhor?

- Com alguns cavaleiros, caminharás a Toledo. Irás à corte do imperador indagar se a princesa Buthayna aí se refugiou, como a sua cunhada. Virás a Coimbra dar-me parte do que souberes...

Gutierre partiu pela estrada de Cáceres e Turjâla, enquanto Gonçalo sobe em direcção a Idanha...

 

                                                   Intermezo décimo terceiro

O corpo do moleiro apareceu enforcado na corda do sino, no campanário do mosteiro de Leça. O sacristão ouviu de noite o sino badalar. Coruja dos campanários, pensou. Estranhou as desoras do toque... Mas como é que a coruja pode...? Foi ver. Com o peso do corpo, o sino tombara a um lado e o badalo dera o toque e assim quedara com o moleiro a balouçar rente à empena de pedra, a poucos metros do chão... Algum corujo assassino, pensou o sacristão e deu o alarme.

Vieram os frades. Um deles mandou por uma escada. Veio a escada. Um rapaz do povo ali pronto acudira com ela. Subiu e, não podendo desamarrar a corda, esticada por mor do peso do corpo, sacou de uma faca e, desajeitado, cortou-a... e o corpo do pobre moleiro desabou e os de baixo, que olhavam de bocas abertas para cima, saltaram ao lado, se não recadavam com o moleiro enforcado.

Advertido, corri com Randulfo a ver o sucedido. Chegaram os meirinhos, o médico, verificaram que o morto estava morto e na testa, riscado a faca ou punhal, apresentava uns estranhos golpes: um triângulo com o vértice para cima e este cortado por uma secante.

- O triângulo! - murmurou Randulfo.

- Virado para cima e traçado... - disse eu.

- Que significará isto? - tornou o meu ajudante.

Um padre benzeu o corpo e logo trataram de o enterrar. Quando o dia subiu, toda a gente fazia romaria a olhar para o campanário do mosteiro. E o falatório? Quem foi, quem não foi... Randulfo e eu estivemos, como os demais, a olhar o sino e a corda cortada...

- Agora o sacristão - disse Randulfo com cínico ar divertido -, só poderá tanger o sino se subir a um escadote.

Olhava para mim, media-me dos pés à cabeça... Bem te entendo. Avalias-me a altura... Medi-o também. Deu uma gargalhada.

- E que tens tu a dizer a isto, Randulfo? O sacristão também te cortejava a Zoaira?

- Também - respondeu com ar taciturno.

Viemos andando, calados, desconfiados, até à frente da igreja. Num grupo de frades, que por ali ficara a conversar, ouvimos a pergunta: ... e quem era aquele moço que subira à escada e cortara a corda e ninguém jamais havia visto até aí na aldeia?...

A fama correu e todos se puseram a acusar o moço de assassino e a procurar por ele. Foram encontrá-lo a caminho da vinha do Neves e preparavam-se para o apedrejar, interpõem-se os meirinhos e o protegem de morrer lapidado pela ira do povo.

Interrogam-no e o moço, com a singeleza de inocente soluçada pelo medo, disse que fora concertado para as vindimas do Neves.

- É verdade - confirmava o Neves, que acudia ao barulho.

- Fui eu que o ajustei. Ele vem de Guilhabreu para trabalhar para mim...

- E a criança que é o povo cruel ficou sem seu brinquedo...

- considerou Randulfo rindo, a mirar-me dos buracos dos olhos inquiridores.

- Desta vez não escapas - atirei-lhe.

 

                                         Belfadar

A noite caía, quando Belfadar, atravessado o rio, do alto de uma colina chegava à vista de Idanha. Contava fosse reduto mouro do reino de Badalhouce, onde guarida amiga pudesse encontrar. Começava a descer, deu conta das moitas de piornos a luzirem olhos de lobos. Estugou a montada e a alcateia a ulular corre-lhe no encalço. Sentindo o perigo, voava o cavalo encosta abaixo, com as feras regougantes a chegar-lhe às pernas. As casas do povoado estavam perto, mas os lobos velozes já quase envolviam a presa, quando súbito em grande alarido surgiram cavaleiros cristãos da guarnição de Idanha que os afugentaram.

Aproximou-se Godinho Fafes:

- Perro de uma figa! Andavas a espiar?

- Não, meu senhor. Fugido de Sevilha, acabada de ser tomada por inimigos.

- De Sevilha?... Hum!... E essa égua? Roubaste-a?

- Não, meu senhor. Esta égua...

- Com esses arreios, pertence a gente de algo, não a um tal maltrapilho. Como te chamas?

- Belfadar, meu senhor.

- Livraste-te de boa ainda agora. Se não fôssemos nós, tinhas sido comido pelos lobos mais a tua égua.

- Allâh vos proteja, senhor.

- Vai invocar Allâh para junto dos teus.

- Não me mandes embora, meu senhor. Preciso de ajuda. Godinho olhou Belfadar. Alguma coisa nele lhe agradava e

movia a apiedar-se.

- Junta-te aos criados - disse. - Deixarás a égua com os outros animais. A partir de agora ela é minha e tu meu escravo. À primeira que faças, mando-te açoutar. Vai-te.

Chegou-se Belfadar à criadagem, que àquela hora preparava a ceia da companhia. Um velho escravo mourisco estava sentado num cepo, sob uma árvore, a enxugar o tronco nu coberto de suor, de ter estado a assar um boi no espeto. Belfadar vem sentar-se junto dele.

- És novo aqui. Apanharam-te?

- Vinha a fugir dos lobos...

Breve gargalhada magoada deu o mouro:

- Dos lobos da serra ou das vilas?...

- Parece que adivinhas.

- Para os da serra, se te vires de novo em apuros, abriga-te numa lapa e acende uma fogueira à boca dela. Eles têm medo do lume... Para os das vilas e cidades... mais difícil fugi-los...

Os cavaleiros abancavam em roda de uma mesa de pedra.

- Amalbeque, venha a comida mais o conduto - gritou-lhe Godinho.

Comiam da carne, bebiam do vinho que os criados serviam em grandes travessas, em picheis borbulhantes. Belfadar ouvia-lhes as conversas:

- Para mim o garoto andava a espiar - dizia Julião.

- Hum! Não me parece - respondia Godinho. - Nem sequer vinha armado... Os mouros não mandam espiões desarmados, isolados...

- ... nem moços sem experiência do monte... - acrescentava Brás.

- Ou vêm em pequenos grupos ou recebem mensagens cá de dentro de algum desses perros traidores que são os mudéjares.

- Diz que vem fugido.

- ... de Sevilha...

- Consta que para lá houve grande batalha e mortandade. Iúsuf está a apossar-se dos reinos dos emires de Espanha.

- Qualquer dia vem por aí acima...

- Reparaste na égua que o moço trazia? Aquilo é égua árabe de raça. E os arreios?...

- Roubou-a, por certo.

- Fiquei com ela e o moço é meu escravo - disse Godinho.

- Sem o consentimento de Gonçalo Mendes? - avisava Julião.

- E então? Amanhã de manhã caminharei a minhas terras de Montemor, aonde não vou há meses e levá-los-ei comigo... antes de Gonçalo chegar.

- Zangado ficará quando souber...

- Zangado? Que é ele mais do que eu?

- O senhor da Maia é nosso chefe. Além do mais tem especial amizade com o conde e com o imperador...

Em suas tendas os cavaleiros dormiam. Em redor da fogueira, embrulhados em mantas, descansavam os criados. Belfadar, junto ao lume por mor do frio, amargurado mal comia do que o velho mouro lhe dera e escutava-o:

- Se queres saber, não acredito em uma só palavra do que me contas. Moço de um mercador chamado Soleima? Que foi assassinado por larápios formigueiros? E tu fugiste?

- É verdade.

- Posso lá crer?

- Conheces Dom Gonçalo Mendes?

- É meu amo. Deverá estar a chegar ao acampamento...

- Quando?

- Amanhã pelo meio-dia estará cá, segundo meus cálculos.

- Vem de Coimbra?

- Do sul, de Marvão, de fazer razia. Porque perguntas?

- Antes queria ser escravo do teu senhor. Este cavaleiro que me tomou...

- ... Dom Godinho Fafes...

- ... Não gosto dele. Começou por me inculpar de espião, depois de ladrão, assenhoreou-se da minha égua, fez de mim escravo e quer levar-me para não sei onde. Tenho medo.

- Medo? Mais um sinal de mistério. De tantos tratos, escravo já não sente medo. Pode sentir raiva, vingança. Medo, não... Às vezes, se o senhor é bom, como Dom Gonçalo, até se lhe afeiçoa... Mas tu... além disso, as tuas mãos não são mãos de quem alguma vez trabalhou... Quem és tu, na verdade, Belfadar?

Quem era ele Belfadar? Quem era ela a sua triste pessoa?... Os acontecimentos haviam sucedido tão súbito e tão veloz, que nem tempo tivera Buthayna de os calar dentro de si... Quem era ela? Fora princesa, a filha de um rei dos Banú Abbâd, fora escrava, fora fugitiva, era Belfadar... queriam fazê-la de novo escrava... à beira de poder acolher-se à protecção de em quem poderia descansar de suas tamanhas desventuras... Que responder ao bom do escravo velho?

- Não tenho quem me proteja - disse. - Protege-me tu, Amalbeque, se puderes. Talvez um dia eu me veja na qualidade de te agradecer como mereces... Amanhã certamente, quando o teu amo vier, já Dom Godinho me levou daqui para bem longe. Poderás dar-lhe um recado?

- Que recado?

- Conta-lhe o que aconteceu a Soleima... e aguarda as perguntas que ele te fizer. Conta-lhe tudo...

- Tudo? Mas se eu não sei nada, senão mistério!

- Conta-lhe isso...

Com seis cavaleiros de sua companhia, alta madrugada preparou-se Godinho para abandonar o acampamento. Chamou Belfadar:

- Montarei a égua, moço. Tu montarás o meu cavalo. Traziam-lhe a égua, que se mostrava arisca, empinando-se,

relinchando descontente, os olhos em fúria. Godinho tentou montá-la, mas de imediato foi derrubado ao chão. Os companheiros riam de Godinho que, vexado, chicoteou o animal. A égua ergueu-se nas patas traseiras, furiosa, e ia para Godinho, acode Belfadar a falar com ela, a sossegá-la, a fazer-lhe festa. A égua aquietou-se.

- Só se deixa montar por mim - disse Belfadar. - Por mais ninguém.

Embezerrado, Godinho montou o seu cavalo e disse:

- Quando chegarmos a casa, mandarei abatê-la. Não é um animal e um fedelho que se riem de mim - e, ordenando a Belfadar que o siga em sua égua e seus homens, atrás, o não percam de vista não fosse o moço fugir, cavalgou pela campina em direcção ao Ponsul.

Na Gardunha, na catraia cimeira, com o Sol a nascer para as bandas de Castela, viram-se de repente assaltados de numeroso grupo de mouros. Godinho e os companheiros, sacaram das espadas e deram-lhes luta. Foi rija a refrega e de um lado e outro caíam, feridos e mortos, cavaleiros e suas montadas. Belfadar, que se resguardara a um souto de castanheiros, vendo que ninguém reparara nele foi-se afastando, meteu pelo carreiro que vinha de Idanha e resoluto galopou de regresso a de onde tinha partido...

Começava a aurora a tingir de rosa e púrpura o firmamento, acordava o acampamento, chegava Gonçalo a Idanha, que ansioso cavalgara toda a noite com seus cavaleiros.

Aproximou-se-lhe Amalbeque, a segurar-lhe a montada.

- Então tu agora és o meu eguariço, Amalbeque? - perguntava Gonçalo apeando-se.

- Estava mais à mão, senhor.

- Serviçal de tantas manhas é precioso - desapertava o cinto, devestia-se das armaduras e, descalço e em bragas, abeirou-se do rio e mergulhou a banhar-se. Amalbeque aguardava com uma toalha. Gonçalo saiu da água, tomou a toalha a enxugar-se: - Vai-me por Dom Godinho.

- Dom Godinho, partiu, senhor.

- Partiu? Para onde?

- Para as suas terras...

Gonçalo acabou de se limpar de seu vagar, o cenho carregado:

- Chama-me Dom Julião.

Veio Julião e Gonçalo perguntou:

- Para onde foi Godinho?

Que não via a sua gente e as suas terras havia muitos meses, resolvera partir - Julião respondia, preferindo omitir o caso do moço árabe e da égua que Godinho furtara. Mas Amalbeque, mal Julião se retirava, disse :

- Levou consigo um moço mouro que me pediu vos desse recado...

- Um moço mouro? Que recado?

- Senhor, retiremo-nos aonde ninguém nos ouça.

Em ameno bosque de amieiros se embrenharam e aí Amalbeque contou de Soleima e do mistério que para si era o moço Belfadar e da égua ricamente arreada que trazia.

Assim que Amalbeque nomeou Soleima e falou do moço árabe que não tinha mãos de escravo e da égua de raça com ricos jaezes, no espírito de Gonçalo fez-se luz. Como relâmpago súbito acendido na prenhez das nuvens, Gonçalo mandou reunir os cavaleiros e deu suas ordens: a guarnição continuaria por terras de Idanha; com poucos, ele partiria caminho de Coimbra... e rebentou a trovoada de uma galopada desenfreada em busca de Godinho que levava o escravo Belfadar que era a princesa Buthayna...

E Belfadar, na descida da serra da Guardunha, fugido de Godinho e da emboscada de mouros, estacara de súbito e escondera-se entre as árvores: lá em baixo brava cavalgada corria pelas margens da ribeira e em breve começava a subir a serra. Estrondeava próximo o cascalhar do tropel e não tardou a passar envolto em poeira. A rapidez da corrida não lhe permitia distinguir quem eram os cavaleiros que presto se lhe sumiram do alcance. Saiu do esconderijo e caminhou em direcção de Idanha.

 

                                                     Intermezo décimo quarto

- Gostava de saber, mestre - disse Randulfo levantando os olhos do trabalho e olhando-me -, como se deu o caso de terdes Zoaira como escrava.

Apanhado de surpresa com a indiscreta pergunta, suspendi a escrita, levantei-me, como a descansar das longas horas de imobilidade perdido nos laços de minha crónica.

- Não como escrava - explico. - Baptizei-as, mal aqui cheguei, vai para quatro anos.

- Leilão de escravas?

- Seria esse o seu destino, se eu as não tivesse tomado antes. Vinham num grande grupo de cativos, espólio de um fossado por terras de Mouros, em que eu seguia para apoio religioso ao exército... Baptizadas, cristãs, dei-lhes alforria...

- Cristão em terra de cristão não pode ser escravo.

- ...Reconhecidas pelo trato humano, preferiram ficar comigo a partir sabiam lá para onde...

Dei umas passadas pela quadra e parei junto do meu ajudante. Desenhara ele, em iluminura, um mimoso anel em torno de um zê maiúsculo, de ouro engastado de diamantinos safiros. Arregalei os olhos, esquecido da pergunta de Randulfo:

- Onde é que tu viste esse anel? - perguntei arrepelado.

- Credo, mestre! Que bicho vos mordeu? É um anel que Zoaira possui e esconde ciosamente.

- Mas esse anel pertence a Imena! Não querem ver que a rapariga lho roubou!... Por isso o esconde.

- De Imena? Ela diz que lho deixou a mãe, quando morreu.

- Isso mesmo diz Imena... que lho deixou a mãe ao morrer. Safada rapariga! Até as palavras e os sentimentos sagrados lhe furta. Deixa que logo, à ceia, já mas vai ouvir...

À ceia, quando as duas moças se sentaram à mesa connosco, virei-me para Zoaira e disse-lhe sem mais:

- Muito feio o que fizeste, Zoaira. Roubar o anel à Imena! Não é ela tua amiga?

- Quê? - levantou-se a rapariga tão brava que o banco tombou. - Que é que o senhor cónego está a dizer?

- Que roubaste o anel à Imena.

- Eu? - e puxava de um cordão de ouro que trazia ao pescoço e retirava do seio um anel de ouro engastado de adamantinos safiros. - Deu-mo minha mãe ao morrer. Quer ver? Tem o meu nome por dentro - e inclinava-se, sem pejo de mostrar a raiz dos peitos.

Tomei-o na mão e li a inscrição interior: zoaira.

Já Imena, com extremo espanto, puxava de um cordão que trazia ao pescoço, retirava do seio um anel de ouro engastado de adamantinos safiros.

- Mas o meu está aqui!

- Ah! - exclamou Zoaira.

- Foi minha mãe que mo deu... no leito da morte - dizia Imena comovida. - Tem o meu nome por dentro.

Tomei-o na mão e li: imena. A gravação era idêntica e parecia obra do mesmo artífice.

 

                                                 Caminhos... descaminhos.

- Tu aqui? - abismava-se Amalbeque por ver surgir-lhe de novo em Idanha Belfadar. - A toda a brida abalou o meu amo no encalço de Dom Godinho e de ti. Não o encontraste no caminho?

- Eram eles? Como o vento corriam, não o reconheci. Ocultei-me nas árvores, com medo...

Amalbeque punha-se a pensar. Força o destino o contratempo! E agora? Gonçalo busca inquieto a Belfadar... Mas Belfadar aqui... E a égua? Escravo não tem cavalo, e mais de raça... Como esconder o caso dos cavaleiros da guarnição?

Virou-se para Belfadar, como se o moço lhe seguisse o pensamento:

- Diremos que Dom Gonçalo te mandou esperar em Idanha, és seu serviçal e a égua lhe pertence...

- Sim, sim.

- Pediste-me protecção, vou proteger-te. Aguardarás comigo no acampamento até ele chegar...

- Sim. Aguardaremos até...

E dias passaram e nuvens no céu e folhas amarelecidas levadas pelo arrepio do outono e Amalbeque tivera tempo de ir observando Belfadar em ténues meneios, minúcias de conduta. Suspeita que havia muito lhe ocupava o espírito tomava evidência. Uma noite de luar, sentados depois da ceia à boca da tenda, assim lhe falou:

- Não poderás esconder por mais tempo, Belfadar. Descobrirão qualquer dia... e depois...

- Que dizes?

- Não tens olhos para ver?

- Ver quê? Pranto mos turva. Pensas ser fácil este alterar de condição, este mudar contínuo de terra e de céu, outras estrelas? Não é este o firmamento da minha pátria...

- Sei muito bem o que isso custa. Um dia to contarei... Mudar de condição? É isso, é isso. Tenho andado a estudar-te... Sabes? Há pequenas coisas, parecem não querer dizer nada, gestos, hábitos, posturas que diferençam as pessoas umas das outras...

- Aonde queres chegar?

- As mãos maiormente traem qualquer um, o mais precavido. Olha-me para estas manzorras - e espalmava as suas e revirava-as para o amigo... - rudes, calejadas, seguram um saco de feno como se fosse uma braçada de lenha, pegam numa pena tal um capão... Não são mãos acomodadas a festas, a carícias, a unguentos, a anéis...

Suspendia-se triste, saudoso:

- Outros tempos, sim... Caía em si e retomava:

- As tuas a cada passo, sem se darem conta, buscam o peito, o colo, no jeito de afagar o colar invisível, os teus dedos acariciam-se, sonham anéis que já foram... Deixa-mas ver - e Amalbeque passava-lhe as polpas ásperas pela macieza das palmas: - Sem calos - dizia e tenteava-lhe no mimo dos dedos a trilha dos anéis: -Aqui estão os vincos...

Neste ponto, o infeliz Belfadar entrava de gemer e chorar baixinho a sua desdita.

- Demais - continuava Amalbeque -, os homens são como os cães. Desculpa-me a rudeza. Já viste um cão a mijar? Claro que sim, já viste. Um tronco de árvore lhes basta... E uma cadela?...

Entendes o que eu quero dizer e não preciso de ir adiante e de te falar das luas de todos os meses...

- Ai de mim, Amalbeque!

- Belfadar, Belfadar! A mim não me enganas. Tu és mulher. Quando bebes da água pela caneca de barro, os teus dedos seguram-na, a tua boca aflora o líquido, como se estivesses a libar um licor perfumado por taça de cristal...Tu não és uma mulher qualquer, Belfadar... Eu ouvi a meu amo, depois de lhe ter dado o teu recado sobre Soleima e o teu mistério. Sabes o que ele disse? Ordenou a seus cavaleiros fossem a Toledo inquirir da princesa Buthayna. Tu próprio contaste que vinhas fugido de Sevilha... Belfadar, tu és a princesa Buthayna!...

Belfadar desfazia-se em choro no ombro do velho escravo mouro, que lhe acariciava enternecido a cabeça:

- ... e a minha emoção é tal - caía Amalbeque de joelhos -que vos peço licença, querida princesa minha senhora, para vos beijar as mãos... - e as secas ressequidas fontes dos olhos humedeciam-se-lhe, duas lágrimas desceram-lhe pelas rugas da face até aos beiços que tocavam as mãos da princesa Buthayna ibn Muhammad ibn Abbâd...

Gonçalo, chegado ao lugar do recontro entre cavaleiros mouros e os de Godinho, depara-se-lhe o cerro pedregoso pejado de mortos, andavam já avúitores na fúnebre orgia. Desmonta e, angustiado, olhava o destroço. Procura entre os corpos de cristãos e de inimigos, esfacelados, sangrentos, misturados, enrodilhados, em terríveis esgares de dor abraçados. Voltava-os a examinar-lhes as caras, em busca dos seus. Este é Brás. Infeliz! Que te fizeram? Antão! Quase degolado!...

- Vede se encontrais Godinho, se me achais Belfadar... -gritava aos companheiros, a raiva do guerreiro a regurgitar-lhe da alma.

Reconheciam alguns mais: Pedreanes, José, Manuel...

- Senhor, Godinho está aqui - ouviu chamar.

Acudiu de pronto. Godinho, o rosto uma chaga de sangue coalhado, de mosquedo coberto, a arca do peito golpeada e aberta, ainda respirava. Gonçalo chegou-lhe o odre à boca. A custo Godinho engoliu uma gota e abriu os olhos para os amigos, sorriu.

- Coragem, amigo. Vamos levar-te. Hás-de curar-te, meu

valente.

Acenou tristemente:

- Morro - murmurou.

Gonçalo segurava-lhe piedoso a cabeça, dava-lhe da água:

- Onde está Belfadar? - ao ouvido, quase em segredo, pergunta. - Não o encontrámos.

Fez um vago gesto, como a dizer se tinha posto a andar, a mão descaiu-lhe, desfaleceu-lhe a cabeça, os olhos cerrados.

Cavaram funda vala, enterraram os corpos dos filhos de Deus, cristãos e árabes, cobriram-nos de terra e pedras para impedir fossem comidos das feras. No topo uma cruz espetaram feita de braçadas de árvores, montaram e largaram em direcção de Coimbra. Aos avúitores, aos lobos as cavalgaduras, os corcéis formosos feridos nos peitos...

Cavalgava Gonçalo de cenho sombrio, Julião como lhe adivinhava o cuidado:

- Um moço sozinho por estas serranias... que Deus o proteja!...

- Isso me atormenta.

- Já o outro dia, quando chegou a Idanha, vinha fugido dos lobos. Se não acudíssemos...

- Outras feras há, Julião, outras feras... Piores que essas... Gardunha abaixo, não tarda estejam a atravessar o Zêzere

pelos caneiros de uma azenha. Sobem agora o cabeço da Urra por entre estevas, urze e ervideiros em flor, o sargaço e a carqueja, gilbardeiros de bagos vermelhos, para logo descerem, pela sombra das carvalheiras, à ribeira do Unhais... Terão os olhos dela visto estes folhados, estes azereiros floridos, os suaves freixos e amieiros? ia pensando Gonçalo... Espantosa coisa o rude guerreiro atentar nas flores do caminho, no ameno curso de água entre altas montanhas! Mas que faz o guerreiro senão alargar, proteger a terra de seus pais para as sementes do futuro, os filhos, o pão, as flores?... A vau o passam em suas montadas, que param a beber da límpida água corrente, fugiam no fundo entre seixos apressadas bogas, trutas e barbos prateados... Terá Belfadar aqui saciado a sede da jornada?... De novo encetam a áspera subida da serra, amarelavam já, incendiadas pelo sol de outono, as folhas de castanheiros ainda prenhes de ouriços... Terá ela comido castanhas, provado destas abêbaras da figueira tardia, do fruto do pilriteiro?... Longa e penosa ascensão, do alto já abarcavam com o olhar o mar encapelado dos montes... Um moço sozinho por estas solidões onde espreita o lobo e o urso!...

Levantara-se ventania agreste e nuvens negras acastelavam-se inquietas...

- Vamos ter borrasca - indagava Julião o céu e mais se apertava o coração a Gonçalo. Por onde andaria aquela alma de Deus?...

Na Portela do Vento assaltou-os tempestade. Fuzilou o relâmpago do negrume dos pólos, fendido por fino ziguezague de fogo. Ronquejou o trovão e ribombou pelas quebradas dos vales e a chuva começou a cair pesada e grossa. Apressavam a corrida, pareciam fantasmas, vergados sobre as montadas, correndo sem abrigo, vendo a seu lado os cedros, os robles sagrados escachados de alto a baixo das farpas dos deuses. Gemiam os bosques fustigados pelo aguaceiro e o vendaval e ao tonitroar do trovão veio em breve juntar-se o rumor da ribeira do Arouce. Era um fio o carreiro por onde seguiam, entre pego e escarpa, fervilhava de espuma a corrente e cachoava nos rebos polidos. Súbito, no alcantilado cabeço, talhado a prumo sobre o cascalhento riacho, dão vista do castelinho encantado da lenda do rei Arunce e da princesa Peralta.

Bom agasalhado lhes deu a pequena guarnição que aí se encontrava de atalaia e o fogo de lenha crepitante e perfumada da lareira, afora a vianda de cerdo do monte e o pichel de vinho.

Passara acaso por ali, dias antes, um moço árabe cavalgando égua de raça a caminho de Coimbra? perguntava Gonçalo Mendes ao alcaide.

- Nem viva alma! - responde o oficial. - Muitos dias há que por cá não passa ninguém... Além de que moço árabe... sozinho... se o não mataram os lobos, os ursos, certamente não seria poupado dos cristãos...

Mais se avivava a angústia de Gonçalo com estas palavras. Não lhe sofre o ânimo mais delongas. Dias depois, com o São Martinho a sorrir, chegava à vista de Coimbra.

De Toledo, ao cair da noite, arribava a Idanha Guterre com seus companheiros.

- Partirei amanhã para Coimbra - anunciava à ceia -, a dar recado a Gonçalo do que me incumbiu...

Amalbeque, assim que ao recolher pôde estar um momento com ele pediu-lhe:

- Senhor, grande serviço prestarei a meu amo Dom Gonçalo Mendes, se me deixardes ir mais o moço Belfadar convosco amanhã para Coimbra.

Consentiu Guterre e, ao romper do dia, a comitiva partiu e com ela Amalbeque em uma mula e Belfadar em sua égua de raça.

Caminhos e descaminhos trilhavam os que suas almas ainda se lhes não haviam despegado do corpo e seus corações andavam pelos fados apartados uns dos outros. Foi o caso, além dos mais, que um almocreve, de sua graça Abalcar, saído de Badalhouce com seu burrico carregado de farinha, legumes, sal, azeite e vinho, caminhava um dia pelo trilho de um bosque, ouviu gemidos vindos de dentro de uma moita de urzes. Acorreu e topou com um pobre mouro caído por terra e alagado em sangue. Deu-lhe de beber da sua água e o mouro bebeu com sofreguidão. Num ribeiro que corria perto, molhou um pano e pôs-se a lavar as feridas do desgraçado. Feio lanho lhe rasgara a face da raiz do olho esquerdo até à comissura da boca. Um golpe de punhal parecia afundar-se-lhe no peito próximo do coração.

Com o fresco da água, o ferido abriu os olhos.

- Podes falar? - perguntou Abalcar.

- Sim - balbuciou a custo.

- Quem te fez isto? Cristãos?

- Não. Mouros. Ladrões formigueiros.

- Malditos! Nem seus irmãos poupam! Vou-te enfaixar as feridas e acomodar-te em cima do burro. Breve chegaremos a Marvão. Conheço lá um físico que te há-de curar... Como te chamas?

- Soleima.

- Eu sou Abalcar. Almocreve... Eh! Vida perigosa! Também me assaltam às vezes. Levam-me a mercadoria, o burro... Do mal o menos...

Pensado o melhor que na conjuntura se pôde, acomodou Abalcar o ferido nos lombos do burro e a pé caminhou com o animal pela arreata caminho de Marvão, onde chegaram pelo anoitecer.

Abalcar bateu à porta de um alveitar seu conhecido, que, além de ser curandeiro de bestas, também se arrogava o tratar das feridas dos homens.

- Quem é lá? - disseram de dentro.

- Abride, mestre Behahea. É o almocreve Abalcar que vos chama.

A barbicha rala e grisalha de Behahea espreitou pelo janelo.

- Ah! Sois vós, Albacar? - e abriu a porta.

 

                                           Intermezo décimo quinto

Não me augura nada de bom das alcaguetices de Randulfo. O outro dia foi o caso dos anéis. Assegura-me que há-de pesquisá-lo. Agora veio-me que o sacristão... Já tinha eu adivinhado que ben Moseila escondia, sob a barba espessa, profunda cicatriz?... Teria o homem sido guerreiro mouro, aprisionado, feito escravo, baptizado?... Olhasse que ainda se podiam ver as extremidades do golpe! Nascia na ponta do olho esquerdo, metia-se nos pêlos da cara e ia morrer na comissura dos beiços. Não reparara eu que o lanho lhe arrepanhava em cima a vista, em baixo a boca e a fala?...

- Que queres dizer com isso, Randulfo?

- Certa vez que eu ia a passar pela igreja de Santa Maria ouvi-o tanger às avé-marias. Acerquei-me e, logo que acabou, perguntei-lho. Olhou-me com ar muito calmo, lançou-me o braço pelo ombro, quase paternal, um breve lampejo de sorriso no arreganho dos lábios. Não me metesse no assunto, disse. Acaso me tinha inquirido porque nascera eu torto? E desafiava-me: Queria eu saber?

- Quero, porra! - respondi-lhe. - Quero! Diz-mo, se sabes. "Talvez um dia, Randulfo", respondeu e virava-me as costas, "talvez um dia"... Ali anda coisa, mestre. E o estranho nome dele? Ben Moseila Gonçalves! Gonçalves! Estais a ouvir, mestre?

- Gonçalves, filho de...

- ... de Gonçalo, ibn Gonçalo. Estais a ver? Estais a ver?... Ou me engano muito ou as personagens da vossa crónica andam a invadir as nossas vidas, a nossa tranquilidade... Quem sou eu? Quem foi meu pai, minha mãe? Quem é Zoaira? Quem é Imena?... Quem sois vós, mestre cónego Fernando, que desconfio se...

- Credo, homem! Tarrenego! Nome de São Nunca!

- Isso, isso! Arrepelai-vos, mestre. Não será também matéria de estranheza que vos arrepeleis, assim que ponho o dedo nestas feridas? Dói, é? Dizei-mo de uma vez. Dizei-me porque é que vós...

- Trabalha mas é - atalho com brusquidão - por acalmares a imaginação malsã...

Verguei-me sobre as minhas laudas:

- Deixa que o cão pegureiro da concentração me reúna o rebanho disperso das ideias.

- Bela metáfora, não tenhais dúvida! Vinde-me com essa.

- Lesto tem de ser o discurso, quando os sucessos se atropelam, entrançam, repelem ou congraçam. Incidências, coincidências, dissidências...

- ...encontros, recontros, desencontros, quem sabe premeditados...

- ...e a alma dos homens a depurar-se em sentimentos limpos, a borbulhar e a escumar-se em borras de egoísmo e ambição, como as nuvens nos céus a anunciar tormenta ou bom tempo...

Não lhe tendo eu dado mais atenção, calou-se como recolhido ao labor de copista, mas eu bem via que lhe as mãos desatinavam com o pensamento...

 

                                       A mentira

- Estamos perto - diz Gonçalo, abafado o patear dos cavalos no fofo lameiro que bordeja de amieiros a ribeira. - O Ceira já adiante se mete no Mondego.

Sobem pela Urgeiriça até ao alto, de onde súbito se lhes abre a vista de todo o vale, a ponte, a cidade. Gonçalo pára. Lá está Coimbra acima dos cinseirais, o burgo dourado e branco, as muralhas a cingirem e galgarem a esplêndida acrópole, o castelo, as igrejas, as atalaias avançadas do arrabalde, mandadas construir pelo conde Sisnando, a torre de Santa Cruz, em frente da capela da mesma invocação, a de Almedina, a de São Rolim, a de Martim Vasques, a da Madalena, pedra morena a contrastar com a cal mourisca do casario que alveja ao sol. Além, fora de muros, a igreja de Santa Justa, a de São Tiago, a de São Bartolomeu junta ao espelho do rio, onde nas quebradas se movem azenhas de rodízio... Em volta, em cada outeiro-cinza de oliveiras, as velas dos moinhos dobam seu incansável dobar... Que alvorotado sentir! Encontraria ali, finalmente, a sua princesa, disfarçada de Belfadar?...

Descem envoltos pela fina poalha de nevoeiro que respira do rio e anuvia de sonho laranjais, choupais, o coração de Gonçalo...

Atravessada a ponte, entram pela porta de Belcouce e trepam lestos a íngreme ladeira que leva ao adro da sé, a igreja de Santa Maria. Entre os muitos túmulos de pedra que aí se encontram, atentam em um, lavrado de fresco. Gonçalo apeia-se a ler o letreiro:

HIC:IACET:QUI:FUIT:OLIM:MAGNUS:DUX: SAPIENS: ELOQUENTISSIMUS: DIVES: NUNC: PARVULUS: CINIS: IN: HOC: TU MULO: INCLUSUS: SESNANDUS: IN: PA CE: REQUIEVIT: SEPTIMO: KALENDAS: SEPTEMBRIS: AD: DIEM: XXV: AUGUSTI: R. I. P.

- Nosso luto recente, D. Gonçalo - diz uma voz atrás dele. Voltou-se. O prior Dom Martim Simões acudira com os

cónegos do cabido ao ouvir o tropel.

- De avançada idade o conde Sisnando. O Senhor chamou-o ao seu grémio.

- Deus lhe tenha a alma em descanso.

- Governa a cidade e sua província o genro, o alcaide Martim Moniz, em nome do conde Raimundo.

Foram caminhando até à porta da sé. Impaciente Gonçalo por saber uma outra particular notícia, mas havia que evitar o perguntar sôfrego, para não levantar indiscreta curiosidade.

De grandes convulsões nos tempos que lá vinham as novas que Dom Martim comunicava:

- Na prisão, faleceu D. Garcia, ex-rei da Galiza, irmão do imperador. Paz à sua alma! Também estamos de nojo pela morte da rainha.

- Morreu a rainha?

- Recebemos há pouco a triste notícia.

- Tal é a vida e o tempo! Sai um cavaleiro a combater, não sabe se deixará o corpo no campo de batalha, sobrevive, regressa e o tempo foi ceifando aqueles que amamos e veneramos... Deus guarde a alma da rainha Constança.

- Amen... E também temos bispo novo. A Dom Paterno sucede Dom Crescónio...

- Muito me contais, D. Martim.

Gonçalo hesita, deita o olhar em volta, ao perto, ao longe à curva do Mondego, olhar sem ver senão o pensar interior, e por fim resolve-se:

- Mas dizei-me, dom prior: não chegou, por estes dias, à cidade, montado em égua de raça, um jovem moçárabe a perguntar por mim?

Nem moçárabe, nem mouro, nem cristão, respondia o prelado... ninguém, a não serem os conhecidos almocreves, os mercadores e lavradores, as vendedeiras de hortaliça e fruta - e sorria -, a multidão de carroças pejadas, mulheres com gigas à cabeça, jericos ajoujados com o carrego, algaravia de pregões, que todas as manhãs vinham abastecer a população...

- Temos estado sossegados de novidades, fora as que a grande Ceifeira nos tem trazido... Mas esta paz correm rumores não durará muito. Os condes Raimundo e Henrique desceram do norte com suas tropas.

- Eu sei.

- De todos os cantos acorrem guerreiros.

- Rijas batalhas aí se anunciam, dom prior. Abi Bakr, não contente com se apoderar de todos os reinos de taifas dos emires do grande al-Andaluz, tem vindo a devorar tudo quanto é reinete mouro: depois de Granada, Córdova, Sevilha, Silves e Faro, Beja e Évora, chega às portas do reino de al-Mutawakkil...

- São maré que tudo alaga estes Almorávidas.

- Mutawakkil faz acordo com Abí Bakr e Badalhouce e seu termo por ora parecem ficar tranquilos...

- Parece?

Gonçalo olhou o prior como a explicar:

- Mutawakkil, ao mesmo tempo, faz acordo com rei Alfonso: a protecção do imperador em troca de Santarém, Lisboa, Sintra, estais a entender?

Tornava Gonçalo a montar, já os seus cavaleiros o esperam:

- Por isso - acrescenta -, os condes descem e vêm chegando, a ocupar as cidades prometidas... Mas, se bem entendo, as nuvens do céu e da terra estão ajuntar-se... Até à vista, dom prior. Vou à alcáçova, ao governador Martim Moniz, que certamente terá ordens de Raimundo e Henrique, que são as do imperador...

Ordens que Gonçalo recebe: cavalgue para sul a reunir-se aos dois condes na ocupação de Santarém, Lisboa e Sintra. Gonçalo, supondo venha já Guterre a caminho ao seu encontro a Coimbra, apressa-se a enviar-lhe recado se detenha e vá antes juntar-se-lhe a Santarém com as notícias colhidas em Toledo.

Os mensageiros encontram Guterre e seus cavaleiros, mais Amalbeque e Belfadar a meia jornada. Vá de dar volta, meus senhores, e rumar aonde Gonçalo, a Santarém. E os cavaleiros dão volta e caminham pela serra de Alvelos, pelas margens de ribeiras de atafonas, de mimosas chãs, húmidos vales, campinas, soutos de carvalheiras, azinheiros, sobreiros, as ribas do Zêzere, terras estremenhas da raia de mouros e cristãos, as ribas do Tejo, já corriam novas de que, entre temores e esperanças de corações de mudéjares, moçárabes e judeus, entravam os novos donos das terras, com grandes mostras de força, pompa de senhores esquecidos de os fados dos ventos soprarem e dessoprarem, de que em algumas cidades, contava-se, houvera refregas, revoltas de pequenos grupos árabes, o vali de Santarém deitara a fugir para Lisboa, pensando estar aí em melhor posição de resistir. Houvera luta, tinham morrido alguns de parte a parte...

Murmuradas entre os soldados de Guterre, ouvira Amalbeque estas novidades, uma noite, antes de entrarem em Santarém, no acampamento junto a Vatalandi. Dera em pensar e em seu espírito brotava ambição. Tem um filho, Azmede, que é senhor importante junto do cádi de Lisboa.

E se Buthayna casasse com ele? Quem sabe o que o catavento da Fortuna lhe destinaria, se os Abádidas recuperassem o poder... Necessário, instante era Buthayna nunca encontrar Gonçalo...

Olhou para Belfadar. Embrulhado em sua manta... - Amalbeque comovia-se -, a cabeça num fardo de palha, dormia sossegado. Amalbeque tomou uma decisão...

De manhã cedo, quando os cavaleiros montaram e partiram, deixava-se ficar para trás, retardado no caminhar ao lado de Belfadar.

- Parece que não tens pressa de te juntar aos da frente, Amalbeque. Não nos convém separar-nos deles. São a nossa protecção.

- De caso pensado o faço - respondeu o escravo mouro. - Preciso de vos falar.

- Tratas-me com cerimónia?

- É à minha princesa que desejo dar palavra.

- Que tom de voz e que cara a tua! É coisa grave? Assustas-me.

- Triste. Muito triste, por Mafoma. Para vós e para mim.

- Para mim?

Hesitava Amalbeque, os olhos a brilharem-lhe como se fosse de água, o velhaco do velho.

- Fala.

- O meu senhor Dom Gonçalo Mendes... - e embargava-se-lhe a voz na garganta...

- Que lhe aconteceu? Por Allâh, diz.

- ... o meu senhor morreu... -Ai de mim!

- ... morreu em luta às portas de Santarém...

- A desgraça desaba de novo sobre mim. Malfadada sou.

- ... nem todos os mouros aceitaram entregar a cidade... lutaram... morreram muitos, de uma banda e outra, cristãos e mouros... entre eles Dom Gonçalo...

Buthayna suspirava, o peito a arfar, os rios dos lumes pelo rosto abaixo...

Amalbeque limpava os olhos com as costas da mão, como consternado.

- Ouvi-o aos cavaleiros, ontem à noite. Já se preparavam para repousar, apareceu mensajeiro açodado, vindo de Santarém, contou do desastre, da grande desgraça... Grande desgraça a minha! Que vou eu fazer agora da minha velhice?

- E eu, Amalbeque?... Animava-me esperança de encontrar Dom Gonçalo, que sei me protegeria. Agora... não tenho ninguém... - olhou Amalbeque e viu-lhe nos olhos o desacordo e emendou: - ... senão a ti...

Então, enquanto caminhavam e o Sol subia no céu, Amalbeque foi contando que esperava ainda achar dois filhos que tivera de sua mulher Alemã...

- Dois filhos?

Um, Azmede, o mais velho... presumia vivesse em Lisboa e era alguém junto do vali. O mais novo, Durduz, ajudante do irmão... E recordava:

Moravam em Sintra, no tempo de Fernando Magno, pai do imperador Alfonso. Fora feito prisioneiro pelos Cristãos. Alemã fugira com os filhos para Lisboa...

- e por lá estarão...

- Não te resgataram?

- E como é que podem?

- Tens agora boa ocasião...

- ... de os procurar?... - Sim.

- Quantas vezes me tem ocorrido fugir! Mas afeiçoei-me a Dom Gonçalo, que me tem tratado como amigo...

- ... e agora ele morreu... É altura de te acolheres a teus filhos...

- Nem saberão se vivo. Cuidam lá em mim... Além de que seria muito egoísta se pensasse em mim neste momento, quando tenho obrigação de velar por vós, princesa de meus irmãos árabes, e de vos proteger nem que seja com a vida...

- Dom Gonçalo morreu, Amalbeque. Meus pais, meus irmãos, no exílio, estou só no mundo... Leva-me contigo para Lisboa.

- Porque deixas crescer a barba? - perguntou Abalcar. - Queres esconder a cicatriz da face para te fazeres às moças? Ou é disfarce para te não reconhecerem?

Haviam subido a Santarém pela porta do Sol, junto à alcáçova, e metiam por uma rua estreita. Havia soldadesca cristã por todo o lado. Tinham já conhecimento da ocupação da cidade pelas tropas do imperador Alfonso e sabiam do novo governador Soeiro Mendes.

- Outras cicatrizes há para esconder, Abalcar - respondeu Soleima.

- Quais? Que história é a tua? Afinal, salvei-te, mas não sei nada de ti, se és um cádi, um vali, um grande e poderoso senhor ou um facínora a monte ou um espião... Até as roupas te roubaram. Nada pude adivinhar de ti e as feridas não falavam senão de que te queriam matar...

- Será melhor para ti a ignorância. Não me perguntes mais, que eu, grato por me teres salvado, nada te direi, maneira de te retribuir a vida com a vida...

- Por Allâh, homem! Corro perigo? Quem és tu?

- Um caminheiro chamado Soleima, que o almocreve Abalcar salvou de morrer. Nasci quando me encontraste. És o meu pai. A minha mãe foram as urzes onde eu morria exangue, quando tu, instrumento que o poderoso Allâh colocou no meu caminho, chegaste.

- Instrumento de Allâh? Eu, o pobre almocreve Abalcar?

- Sim, tu. Por isso te digo que é melhor calares-te e não procurares saber mais.

- Está bem. Serei discreto como a água que te saciou a sede e te lavou as feridas, serei mudo como a urze do monte.

Os olhos de Soleima brilharam de um lampejo sestro ao acrescentar:

- Abalcar, meu irmão. Sai da minha vida pela mesma senda por onde me achaste, o caminho de Allâh... Que ele te proteja.

Sentiu Abalcar um fino arrepio pela espinha, puseram-se-lhe os cabelos em pé com o súbito alarme do medo. Pegou o burro pela arreata e, sem mais palavra, tocando a besta com a varinha de mimbre, caminhou até desaparecer na curva de uma ruela.

Aproximou-se Soleima da estrebaria do governador. À porta parou indeciso se havia de entrar. Vinha de dentro o chefe a limpar as mãos a um pano:

- Que queres?

- Trabalho.

Olhou-o o maioral da cabeça aos pés a medir-lhe capacidades:

- Sabes de cavalos?

- Não sei eu outra coisa. De cavalos sei tudo. O cabeça pelos vistos era pessoa decidida:

- Entra. Estou a precisar de um moço de estrebaria para o amanho dos animais.

Em poucos dias Soleima trata os cavalos por tu, sabe de quem são, estes são do governador Soeiro Mendes...

- ...e estes que acabam de chegar todos suados?

- ...é preciso enxugá-los, pensá-los, escová-los, ver-lhes as patas, os cascos...

Este é o cavalo de Gonçalo. Soleima cuida dele com especial esmero. Ao eguariço que o vem buscar para o levar ao dono diz:

- Podes dar um recado a teu senhor?

- Quem és tu para mandares recado a meu senhor?

- Dom Gonçalo ficar-te-ia muito reconhecido.

- Tretas. O que tu queres bem eu sei. Trepar à custa dos que estão à frente de ti. Era o que faltava.

- Não perdes nada em experimentar.

- Como?

- Quando lhe fores levar o cavalo, dizes-lhe uma só palavra. Verás o resultado.

- Que palavra?

- Buthayna.

- Buthayna? Que é isso?

- Não te dê cuidado. Experimenta.

E o eguariço foi-se com o cavalo e soletrava o nome Bu-Thay-na para o não esquecer...

Saíam da alcáçova Gonçalo com seu irmão Soeiro e demais cavaleiros. Os escudeiros já estavam no pátio de armas com as montadas. Gonçalo montou, tomou as rédeas das mãos do escudeiro, que proferiu a palavra mágica:

- Buthayna - e ficou ali especado, de boca aberta à espera de não sabia quê, a ver Gonçalo dar de esporas e cavalgar com os outros... e a estacar de supetão e virar atrás e chegar-se a ele:

- Que disseste?

- Buthayna, meu senhor.

- Onde ouviste esse nome?

- A um moço da estrebaria. Pediu-me to dissesse.

- Leva-me já a esse moço...

Não era preciso, que o moço já se adiantava de barrete na mão:

- Salam Halayk, meu senhor Dom Gonçalo Mendes. Sou Soleima.

 

                                       Intermezo décimo sexto

- O mestre anda a brincar connosco?

- Como assim?

- Então não é fácil? O cronista, quando uma personagem o estorva, castanhola os dedos e prontos, já está, a personagem desaparece para nunca jamais...

- Falas de...

- ... de Abalcar. Que mal lhe fez o homem?

- Mas se foi assim que tudo aconteceu...

- Então, se foi assim, a realidade é fabula ficta. Não tinha morrido Soleima? E vai o mestre e ressuscita-o.

- A vida e a morte, Randulfo, são boeta de surpresas.

- Os deuses jogueteiam com os criandos, os criados e os criaturos. Têm nas mãos a vida e a morte... O mestre é como um deus, é um demiurgo.

- Cronista, Randulfo, tenho-to dito muitas vezes, é apenas voz do tempo.

- Não inventa, não se atreve, não ousa nunca?

- Pode avançar suposições de factos com base nos dados reais. O que não pode é admitir que o seu copista, por distração ou ignorância, lhe adultere os nomes das terras e lhes baralhe as letras. Vatalandi, Randulfo! Já reparaste que Vale de Anta se transforma em Vatalandi para a história, pelos séculos fora, só porque tu...?

- Ora, mestre! - encolheu Randulfo os ombros de desprezo. Eu bem queria desviá-lo do rumo que ele queria dar à conversa, mas ele continuou, teimoso:

- Não me fiz entender. O que eu me pergunto é se fazer desaparecer de cena personagens incómodas não é processo idêntico, igual crime, àquele que faz desaparecer do teatro da vida um pobre cesteiro enamorado, um desgraçado moleiro galanteador.

Que queria dizer Randulfo com aquilo? Que palavras tão equívocas! Estaria a incriminar ou desculpar? O cronista com o criminoso ou o criminoso com o cronista? Digo-lhe:

- Ambiguidade, Randulfo. Sais-te com cada uma! Já é mania. Tem cuidado, Randulfo. Um destes dias...

De costas, o meu ajudante afiava no vão da janela a faca de trabalho.

- Um destes dias... - ouvi-o murmurar entre dentes.

Lançou-me de lá um olhar de esguelha, que tenho dificuldade em interpretar: era, a um tempo, de divertido desfrute e de terrível aviso. Enquanto experimentava na unha o fio da lâmina:

- Se há alguma lógica em tudo isto - atira -, a próxima vítima será o ferreiro.

- Porque supões isso?

- O outro dia, no fim da missa, no adro, aproximou-se de Zoaira e de Imena a cortejá-las. Não é a primeira vez. Foi lá a casa, a pretexto de vender umas tenazes novas, aparece-lhes ao caminho quando elas vão ao mercado ou à feira, importuna-as...

Eu bem o sabia e muito mais.

- Preocupa-me é o sacristão - disse e fingi absorver-me no trabalho.

 

                                                        Azmede e Buthayna

- Que raiva me está doendo o coração! Reparai, princesa, como é bela al-Ushbúna no alto da colina em frente do Tejo!

Haviam surgido das terras baixas marginais e avistavam agora o formidável oppidum de Lisboa a brilhar ao sol, a cerca goda, que os mouros aproveitaram, o castelo, o casario branco e, fora de muros, a povoação a derramar-se morro abaixo.

- Que linda! - dizia Buthayna enlevada. - Mas porque te faz raiva?

- Vê-la, em mãos de cristãos. Ela já foi nossa, princesa, ela já foi nossa e agora... Tanta cidade, tanto território perdido! Temos vindo a ser escorraçados do norte para sul. Já foram nossos os campos para lá do rio Minho, para lá do Douro, para lá do Mondego... Vede como descemos, como minguámos. Agora podemos dizer que nossos foram já povos, lugares e cidades, campos e rios, vales e montes, para norte do Tejo... Por este andar, qualquer dia...

- O nosso maior perigo, Amalbeque, não são os Cristãos, mas os nossos próprios irmãos, os berberes do deserto, os Al-morávidas.

- Pensas assim? Talvez porque o emir teu pai... Seguiram calados pela beira da larga corrente do rio, as margens da outra banda a azularem ao longe, e entraram os muros pela porta de Alfama, subiram à mesquita... e mais uma vez chorou a alma de Amalbeque:

- Belfadar! Buthayna! A nossa mesquita! É agora igreja cristã!...

- Sim, faz pena - respondia Buthayna. - Mas pensa, Amalbeque, no que sentirão os Cristãos ao verem as suas igrejas feitas mesquitas. Somos iguais no sentir. O melhor seria respeitarmo-nos uns aos outros.

- Queira Allâh!

- Queira Deus! como é jeito deles dizerem.

Caminhavam pelo emaranhado das ruelas, parou Amalbeque à porta de um tintureiro a inquirir de um alvazir ou secretário do alvazir chamado Azmede ou quem pudesse informar do paradeiro dele.

- Conheço muito bem. É meu amigo. Com a entrada dos Cristãos, que foi pacífica, salvo algumas pequenas escaramuças logo abafadas, esse oficial do alvazir deixou de ter quaisquer funções na governação da cidade, mas não sofreu perseguição. É comerciante lá em baixo, junto à igreja de São Nicolau...

- Igreja?

- Não te admires, forasteiro. Nós, os árabes, aceitámos a comunidade cristã. Por isso, os Cristãos nos aceitam também a nós, apesar de adaptarem a nossa mesquita a sua sé catedral. Fora de portas, para os lados da ribeira, é quase tudo povo moçárabe.

Amalbeque olhou Belfadar, que lhe entendeu o olhar como complemento da conversa havida há pouco. Agradeceu ao tintureiro e ia a sair:

- Procura uma loja de panos, telas para vestuário, tapeçarias - disse-lhe o comerciante.

Desceram a ladeira e chegaram às casas da margem do esteiro do Tejo que entrava terra adentro até ao morro de Santa Ana e recebia os regueiros escorrentes das colinas em redor.

A pouca distância da água, começava a escadaria de São Nicolau. Na esquina de uma viela, uma loja de panos estava aberta. Amalbeque entrou. Um homem, de costas, empoleirado num banco, arrumava algumas peças de seda numa prateleira.

- Allâh te saúde, senhor.

O homem voltou-se e desceu do banco:

- Salam Halayk, senhor. Em que posso ajudar-te?

- Procuro uma mulher moura chamada Alemã e seus dois filhos Azmede e Durduz.

- Por Allâh! Que dizes? Alemã já não é viva. Porque a procuras?... Quem és tu?

- Há muitos, muitos anos, numa razia de cristãos, em tempo do rei Fernando, fui nesta cidade feito prisioneiro e escravo.

- Escravo?

- Minha mulher conseguiu fugir com os filhos pequenos para Sintra...

O homem abria a boca de espanto:

- Sintra?

- Nunca mais os vi. Se os vir, não os conheço nem eles a mim. Há tanto tempo foi, eram eles menininhos e eu ainda novo...

- E tu vens de onde?

- Hoje serão eles homens feitos e eu sou um velho. Não existe em nossas memórias imagem uns dos outros...

- Por Allâh! Diz-me... - impacientava-se o homem, mas Amalbeque não o escutava:

- Alemã morreu?

- Como te chamas, senhor? - levantava o homem os braços, a suspeita a luzir-lhe nos olhos:

- O meu nome é Amalbeque.

- Durduz! Durduz! - desatava Azmede a gritar para dentro, a voz apanhada do sentimento. - Anda cá depressa! O nosso pai está aqui!... - e ajoelhava diante do velho mouro a beijar-lhe as mãos e eram fontes de júbilo os olhos e as faces de um e outro.

À porta, comovida, Buthayna ensombrava-se-lhe o semblante. Também ela... ao pé de um rio como aquele... o pai partia agrilhoado para o exílio, a mãe, os irmãos... e ela no estrado das escravas... Aqueles ali tiveram a felicidade de se encontrar. Para ela não havia nenhuma esperança, que a última morrera com a morte de Gonçalo... Sentia-se ser a mais no seio da alegria de Amalbeque e dos filhos... Retirou-se, discreta, tomou a égua pelas rédeas e foi caminhando pela borda da água, passou Santa Justa e foi parar a uma chã onde pastava um rebanho, corriam cães em roda a velar por ovelhas e cabras. À sombra de uma faia um títiro, lentus in umbra, esculpia no buxo uma rolha para o odre do vinho. A falésia alçava-se quase a pique até às raízes do castelo. Buthayna acolheu-se, escondeu-se com seus pensamentos ao abrigo de uma lapa. Não queria ser encontrada, que de encontros e desencontros estava cansada e eram tão fáceis os caminhos e descaminhos da vida... Mas a égua, depois de tosar da erva do prado, abeirou-se a beber da água do arroio... Belfadar! Belfadar! Já ao longe, ao ver a égua, gritava, a correr esfalfado, Amalbeque...

- Belfadar morreu! - disse Amalbeque risonho. - Bebamos, meus filhos, à morte de Belfadar...

- ... e à ressurreição da formosíssima Buthayna - acrescentava Azmede, os olhos a sorrirem para a princesa.

Lá vem a princesa, lá vem de Sevilha, sandália de seda, dourada a presilha...

E formosíssima estava, que a veste lhe caía em pregas a ondear-se-lhe pelo corpo até às sandálias douradas, o véu branco a realçar-lhe o cabelo negro, lustroso - que revelação quando, lavantada a coifa de Belfadar, surgiu sedosa a maré daquela pretidão! -, a tez morena do rosto, os olhos escuros como água de cisterna, os lábios vermelhos, polpudos, na mão esguia a brilhar, ao erguer a taça, no dedo mindinho um anel de brilhantes engastados no ouro, o anel que se haviam esquecido de lhe roubar quando a fizeram escrava.

- A Belfadar, que me salvou a vida - disse. - Belfadar não morreu. Viverá sempre comigo. Não estranheis se ele um dia reaparecer.

- Não há-de mais ser necessário esconderdes-vos, princesa -, asseverava Amalbeque.

- Lá estás tu a tratar-me com cerimónia, Amalbeque. Não desejas tomar o lugar de meu pai e casar-me com teu filho Azmede?

- Sim, mas...

- Então trata-me por tu... Aliás, que tens tu sido para mim senão um pai? Muito grato te é meu coração.

Brindaram e beberam os quatro convivas, mas não latejava aberto e franco o coração de cada um. Amalbeque tinha esconderijo no pensamento e transmitiu-o aos filhos ao revelar-lhes, à puridade, quem era na verdade Buthayna. Não lhe fora preciso muita persuasão para inculcar a Azmede a ideia do casamento. O filho agradou-se dela mal a viu, tão linda, mas o brilho do olhar não era de enamorado sincero, antes de reservado cálculo, nos vinte anos de quem já se vira próximo do poder. Durduz, dezoito anos, mais ingénuo, sentia singelo orgulho pelo trato com uma princesa... E Buthayna? Não se encontrava ela, ao cabo de tantos trabalhos, ainda e sempre deslocada, des-raizada, prisioneira e escrava da mofina?...

Cedo, com estudado respeito, levou Amalbeque a conversa para o futuro casamento. Buthayna, sozinha no mundo, que podia fazer?... Azmede era jovem, galante, honesto... Aceitou.

- Mas antes - impunha, o rebate na alma -, terei de pedir o conselho, a licença e a bênção de meu pai. Será possível achar meio de fazer chegar carta minha ao rei meu pai que está cativo em Aghmât?

- É meu amigo - interveio Azmede - um barqueiro e mercador do Tejo, que vai muitas vezes a África a buscar artigos para o seu negócio. Ele poderá desempenhar-se disso.

Buthayna escreveu uma carta ao infeliz emir al-Mutâmid:

Prisioneira, já o sabes, a filha de um rei dos Banú Abbâd, em vão me apressei na fuga. Um soldado berbere me tomou, teve para comigo conduta indigna e lançou-me no mercado de escravas. Um homem me guardou junto de si, de tudo me protegendo, salvo da angústia. Tem um filho com quem me quer casar, de coração puro, postura recta, como se de linhagem nobre venha. A ti me dirijo, bem como esse jovem, a fim de obtermos o teu consentimento. Rogo-te, meu pai, me apontes o caminho certo e me digas se esse jovem é digno da minha afeição. Que Rumaikiyya, mãe dos príncipes, em sua bondade, invoque o Céu para nossa felicidade!

 

Buthayna ibn Muhammad ibn Abbâd

 

Azmede trouxe à presença de Buthayna o mercador mouro Abú Nagâr, que estava de partida, velas pandas, para navegar até Marráquexe.

- Irás a Aghmât, aonde meu pai, e entregar-lhe-ás esta carta. Peço-te saibas de minha mãe Rumaikiyya e de meus irmãos, como estão de saúde, como vivem os infelizes... - e desatava a chorar.

- Oh, senhora! - dizia Abú Nagâr condoído.

Partiu o mouro e a princesa ficava os dias esperando a sua volta. Muitas vezes saía de casa, acompanhada de Amalbeque, a passear pela ribeira do Tejo. Quase não falavam, que o velho mouro bem lhe via ressumar dos olhos lampejo de lágrimas e respeitava o silêncio da princesa.

Em outro rio lhe dobava o pensamento, lá em baixo na sua Sevilha perdida. Não que este não fosse formoso e não se espraiasse em vastidões de terra, céu e mar. Mas foram as ondas do outro que presenciaram a sua vida, alegrias e desventuras... Olhava para as bandas da foz a ver entrar as faluas dos mercadores, os batéis e bateiras, as barcas pescarezas... Notícias de África? Como estaria o pai, a mãe, os irmãos?... Resposta à sua carta?...

Notícias chegavam era de terra, de Toledo. O imperador Alfonso casara com Zaida. Ouvira Amalbeque a comentar o caso com o filho mais velho:

- Aquilo foi cálculo, verás - dizia Amalbeque. - A princesa Zaida leva-lhe um lindo dote de terras, na raia com os Cristãos, diria mesmo metidas coração adentro dos territórios de Alfonso: Cuenca e Uclés, Huete, Consuegra, Ocana, tão perto de Toledo, Mora, Vélez, Alarcos, próximo de Ciudad Real como Malagón, e outros castelos...

- Não será tanto assim. Dizem que o rei de há muito se enamorara da princesa.

- Talvez, que deveras formosa... Mas também é fama ser apenas casamento fingido, para obter o dote. Alguns põem até em dúvida não será ela mera concubina.

- Não corre também que, antes de casar, a fez cristã baptizada com o nome de Isabel, rainha Isabel?

- ... ou Maria, segundo ouvi.

Tais notícias chegavam aos ouvidos de Buthayna e saltava-lhe o pensamento ao infeliz Soleima, que lá ficara, ferido de morte, junto a Badalhouce. Porque a não levara antes para Toledo, para junto de Zaida. Estaria ela agora a mais resguardo e em meio em que sua qualidade teria o devido acatamento... Enegrecia-lhe a alma o saber que, em Arcos, seu irmão Abd al-Jabbâr fracassara a tentativa de se revoltar contra o domínio almorávida e fora esmagado. Esmagado também fora o emir aftácida de Badalhouce, Umar ben Muhammad al-Mutawakkil ben Aftas, corria o novembro de mil cento e trinta e dois. O povo berbere da cidade revoltou-se por ele ter feito acordo com o rei cristão e entregou o poder aos Almorávidas. Mutawakkil foi barbaramente chacinado mais os filhos Tadl e Abbâs...

Quando voltaram para casa, Azmede falava com o mouro Abú Nagâr. Buthayna correu para eles:

- Notícias? Como está meu pai? Minha mãe?...

- Buthayna - acalmava-a Azmede -, as notícias...

- Que cara a tua! Que sucede? Foi Abú Nagâr quem respondeu:

- Não são boas as notícias, senhora...

Eram as mais negras que a pobre Buthayna podia receber: sua mãe Rumaikiyya, que a paixão do emir fizera a rainha Itimâd, falecera de desgosto e de ver a família real humilhada; o pai, assim que Iúsuf soubera da revolta de Abd al-Jabbâr em Arcos, furioso, mandara pôr a ferros o rei al-Mutâmid: "Se o leãozinho ruge, acautelemo-nos com o leão" dissera o almorávida. Os irmãos? Por lá andavam esfarrapados, a executar as mais ignóbeis tarefas para não morrerem à míngua...

- E a resposta à minha carta? - perguntava em lágrimas Buthayna.

- Não foi possível chegar a teu pai, princesa. Uma muralha de espadas e lanças mo impediu...

 

Agora sim, sozinha no mundo, Buthayna consentiu em casar e aquele ano da era de mil cento e trinta e um não teve seu cabo sem ver nascer um menino muito lindo e saudável a que a mãe pôs nome Belfadar. Também de Toledo vinham notícias alegres: a rainha, crismada Isabel ou Maria mas a quem todos chamavam Zaida, dera à luz um herdeiro varão ao imperador Alfonso, o príncipe Sancho. Quem torcera os narizes das calculações políticas e da ambição foram Raimundo e Urraca. Triste sina a dos mortais: não pode haver uma alegria que não comecem logo a formar-se as nuvens da futura borrasca ...

                                           Intermezo décimo sétimo

Alta madrugada os sinos da igreja tangem a rebate e a povoação acorda estremunhada. Fogo! Fogo! soa gritaria. Ouvem-se trincos a ringir, portas a chiar, tamancos a correr calçada abaixo, homens do povo a acudir com baldes de água...

- Onde é?

- Lá adiante, na casa do Gomeira. Também eu me levantei a ver que sucedia:

- Onde é o fogo?

- Na casa do ferreiro.

- Coisa do diabo!

- Céus! Não se salva nada.

Anda que anda, juntei-me aos outros. A casa, térrea, chamas alterosas a lambiam até ao telhado. Os homens a custo atiravam a água dos baldes, que o calor era intenso. O povo ajuntava-se aos magotes em roupas de dormir. As mulheres espreitavam dos janelos, das portas.

- E o Gomeira?

- Ai, que o Anrique Gomeira está lá dentro!

- Está lá dentro o Gomeira?

- Se está, Deus lhe acuda, aquilo é inferno.

Dois moços mais afoutos meteram ombros à porta e desapareceram na fumarada e nas chamas.

- Ui! Jesus! - gritava o mulherio.

- Santo nome de Deus!

- Birge Maria!

- Eles mato-se!

Mas arrastando o corpo do Gomeira, eis surgem eles chamuscados, os olhos vermelhos, meio abafados do fumo, tossindo, abrindo a grandes sorvos as goelas ao ar da noite. Deitaram o homem no chão, já a casa se consumia e o telhado ruía com cintilações de faúlhas nos rolos de poeira vermelha que se erguia. Chegavam os meirinhos, o físico, o padre. O físico ajoelhou, a examinar o corpo, a apalpar o latejo do pescoço, a encostar o ouvido sobre o coração:

- Está morto - disse e virava-lhe a cara a fechar-lhe os olhos abertos do horror... e todos viram: na testa do defunto os sulcos de uma lâmina riscados em triângulo com o vértice para cima...

- Este homem foi assassinado - disse um meirinho, já o prior Armirigo talhava o ar e balbuciava o requiem.

Caminhei com Randulfo para casa. Não trocámos palavra até nos separarmos, que ele me olhou:

- Eu não dizia?

- Queres com isso dizer que adivinhaste? Chamas adivinhar ao que se traz planeado?

- Mestre, não será a hora de se revelar o que se sabe?

- Rói-te a consciência?

- Porque não revela aos meirinhos o que sabe? Libertava-me de um pesadelo...

 

                                                 O aliado do orvalho

Aconteceu que, quando Soleima saudou Gonçalo e se deu a conhecer, entrava no pátio Guterre com seus companheiros.

- Saúde, Dom Gonçalo.

Gonçalo apeava-se e, diante de Soleima e de Guterre, não sabia por qual começar. Mas Guterre adiantou-se:

- Em Toledo, senhor, a princesa não está. Não deixaria de se encontrar na companhia de sua cunhada Zaida, a quem pessoalmente contei do que aconteceu a Buthayna. Desatou a chorar a desdita da irmã...

- Passaste por Idanha?

- Ia seguir para Coimbra, como me tinhas ordenado, mas no caminho recebi o teu recado e dei volta para aqui.

- Não encontraste por lá notícia de um jovem mouro que tinha uma égua de raça?

- Sim, Dom Gonçalo...

- Sim? Diz-me depressa. Onde está? Onde ficou ele?

- Teu criado Amalbeque, quando viu que eu partia de Idanha, pediu-me o deixasse vir em minha companhia mais esse tal moço.

- Como se chamava o moço?

- Chamava-se... Ora deixa ver... Tinha um nome estranho... cavalgava uma égua de raça, muito formosa... O nome do moço... Ah! Belfadar. Chamava-se Belfadar.

- Belfadar? - disseram a um tempo Gonçalo e Soleima. - E onde...?

- É para mim um mistério o que aconteceu - acrescentava Guterre. - Julgava eu, já perto de Santarém, que Amalbeque e o moço nos seguiam, mas, depois de Vatalandi, desapareceram... Não sei deles...

Não pôde Gonçalo esconder como o contrariava tal notícia e quase se esquecera de Soleima, quando este, depois de ouvir o relato de Guterre, falou entristecido:

- Pobre Belfadar! Primeiro, o que sucedeu comigo e agora isto... Allâh o proteja!

E Soleima contou longamente do que acontecera aquela manhã em Sevilha, da partida do rei com os seus para o exílio, da fuga de Zaida, da prisão de Buthayna e de ter sido vendida como escrava e de como ele Soleima a salvara e ambos fugiram caminho do norte, a princesa disfarçada de Belfadar, e de como depois de Badalhouce foram assaltados por ladrões formigueiros que o deixaram à morte...

- Quase a morrer - rematava Soleima -, gritei-lhe que fugisse. Enevoava-se-me a vista na agonia ao vê-lo desaparecer a galope e escapar aos ladrões... Depois... ressuscitei. Um almocreve me encontrou e levou para Marvão, onde um físico me curou... - e Soleima erguia os olhos para Gonçalo e limpava as lágrimas com a mão: - Perdoai-me, senhor! Quis protegê-la e trazê-la até vós. Caminhávamos para norte à tua procura, para Coimbra, onde pensávamos encontrar-te... Mas o destino não quis...

- Traz-me desassossegado não saber de Buthayna - confessou Gonçalo.

- Na altura em que dei conta do desaparecimento de Amalbeque e de Belfadar - adiantou Guterre -, inquiri em Vatalandi de alguns moradores se os tinham visto. Cheguei ao conhecimento de que os dois haviam saído caminho de Lisboa.

- De Lisboa?

- A mim - continuava Guterre - não me sai da ideia uma suspeita...

- Que suspeita? - perguntava Gonçalo.

- ... de que Amalbeque descobriu quem é Belfadar...

- Cavaleiro Guterre, a vossa suspeita sei eu bem qual é - disse Soleima - e acho que tendes razão. Amalbeque deve ter descoberto quem é Belfadar e a ambição entrou-lhe no coração. É necessário descobri-los quanto antes...

- Se há indícios de se terem dirigido para Lisboa - decidia Gonçalo - então terá de procurar-se em Lisboa.

- Irei a Lisboa - afirmou Soleima. - A princesa possivelmente corre perigo.

Concordou Gonçalo e dispôs que iria também, mas os sucessos entretanto desencadeados estavam apostados em opor-se-lhe.

Deveria soar a morte de al-Mutawakkil como sinal de alarme na corte do imperador Alfonso? Deveria ele ordenar a todos os seus barões e fronteiros estivessem vigilantes, que os Almorávidas se mostravam irrequietos? Veio distraí-los da vigilância a notícia, que por todo o lado soou, de o Cid haver conquistado Valência? Nada lhes dizia aos Cristãos os rumores de que, sob o almirantado de Almería, Hispalenses, Saltenses, Silvenses, Castelenses em suas darçanas construíam poderosíssima armada com o intuito de vir atacar os litorais cristãos? Estava adormecida a cristandade peninsular com a posse de Santarém, Lisboa e Sintra? Sentia-se o conde Raimundo seguro dentro das fortes muralhas de Lisboa?

Um dia a cidade acordou embrulhada no espesso nevoeiro acamado no vale do rio. Do alto das muralhas não se enxergavam sequer os telhados que desciam até à ribeira. Não havia olho de águia ou lince que pudesse devassar aquela cerração e ver que o Tejo estava surgido de barcos árabes e que vultos esbranquiçados se moviam sem ruído no leite da névoa e se espalhavam pela povoação e já trepavam para dentro dos muros. Não chegava a sair da garganta o grito de espanto que logo o punhal abafava em sangue. Morte fria, viscosa e súbita ia inundando a cidade que mal havia despertado. Alagava a onda de mouros e quando, no alto, um sentinela deu o brado de alarme - ... pouco mais eras, infeliz, que um infante a quem ainda não despontara a barba, não tiveras tempo de te tornares herói por altas façanhas, arrancado temporão ao regaço de tua mãe, nem ainda libaras da taça doce amarga do amor, logo ceifado morto... -, a corrida a armas foi tardia e atabalhoada, o que ajudava à grande mortandade de cristãos. O conde Raimundo - a mim, a mim, companheiros! na praça de armas chamava em cima da montada fogosa - apenas teve azo de oferecer tíbia resistência com alguns cavaleiros e de certificar-se do rápido destroço e abrir desesperado caminho à fuga para Santarém.

Amalbeque e os filhos, ante a invasão muçulmana, pegaram em armas a defenderem a casa com arrenego. Amalbeque e Azmede caem mortos, Durduz foge para Sintra e dentro Buthayna, sentindo a desgraça, tomava o filho ao colo e corria para as traseiras.

- Por aqui, depressa - disse a voz de um mouro a abrir um cancelo e a indicar-lhe o caminho.

Saiu com o menino e seguiu o mouro por uma azinhaga que tomava pela água do alvardão e pela fonte dos cortiços, a enfesto da ladeira da mouraria, e botava a um pequeno bosque. Por um carreiro entre as árvores, não tardou chegaram à orla do arvoredo, longe dos muros. Dois animais aí estavam, um deles Buthayna logo o reconheceu, a sua égua de raça. Olhou para o mouro: a barba espessa não cobria de todo a cicatriz que lhe apanhava da ponta do olho esquerdo até à comissura da boca.

- Vinde, fujamos depressa - disse o mouro. Buthayna reconheceu a voz.

- Soleima?

- Para vos servir, princesa.

Montaram e breve se encontraram em pleno descampado, caminho de Santarém.

Livres de perigo, pararam junto de um ribeiro a beber da água. O mouro foi ao alforge e tirou de lá pão e um odre:

- Leite para o menino.

Buthayna pôs-se a dar sopas de leite ao filho na palma da mão.

- Sopinhas para o meu pequenino - meio sorria, meio o susto na alma.

- Sopinhas de leite para o Belfadarzinho - repetia Soleima comovido.

Buthayna olhou-o:

- Como soubeste?

- Muitos dias há que tudo sei. Não me dei a conhecer, porque entretanto notei os sinais iminentes do assalto almorávida à cidade. Já não havia tempo de avisar os senhores cristãos. Para mim os Almorávídas são o inimigo. Pelo que vos fizeram e a vossa família. Comecei então a rondar-vos a casa e a estudar uma possível fuga.

- Julguei-te morto aquele dia.

- Um almocreve me salvou. Desde aí o meu cuidado tem sido procurar-vos a vós e a Dom Gonçalo Mendes...

- Pobre Dom Gonçalo! Até esse amigo os fados me roubaram!

- Não por muito tempo.

- Anuncias a minha morte?

- Como, anuncio a vossa morte? Que estais a dizer? Não vos entendo.

- Pois se dizes que falta pouco para encontrar Dom Gonçalo...

- Até chegarmos a Santarém.

- A Santarém?

- ... onde ele vos há-de receber com alegria.

- Dom Gonçalo é vivo?

- Ah! Deus! Fui enganada!

- Pois fostes, princesa. Amalbeque desejava ver-vos casada com o filho.

Buthayna disse com mágoa:

- Só o fiz porque o julguei morto, por minha segurança. Para onde havia eu de fugir?... Meu pobre Belfadar!... - e agarrava-se ao pequenino...

- Foi bonito terdes-lhe posto esse nome... Isso fez com que vos descobrisse... Bem, mas agora é a hora de recuperar a alegria. Vamos! A caminho! Escondei os vossos cabelos neste turbante e a vossa beleza nestes trajes de moço e tirai do dedo esse anel.

- Belfadar outra vez?

- Belfadar primeiro...

- Ainda guardo a bolsa de moedas que me deste. Esperemos não tornem a sair-nos ao caminho os ladrões.

Cavalgaram calados no tumulto dos corações. Então Soleima contou a Buthayna que o rei al-Mutâmid deixara de sofrer, pois falecera em ferros na prisão de Aghmât.

Silencioso chorou o coração de Buthayna. Manso, manso, a voz de Soleima recitava um dos últimos poemas do desgraçado emir:

 

Aliado do orvalho eu era,

irmão da generosidade,

mão direita amiga na hora de dar,

mortal azorrague no combate,

a esquerda apertando as rédeas do corcel

no investir contra floresta de lanças.

Hoje, no cativeiro, pobre e doente,

ave de asas partidas,

não posso já acudir a quem me pede favor,

aos mendigos que gritam por pão.

Tristeza e penar

tomaram vez da antiga alegria.

Repelente o meu aspecto agora,

já um dia

foi regalo de olhos subtis...

 

                                             Intermezo décimo oitavo

Randulfo saiu. Aproveito o estar só para fazer o exame do meu ser interior, pensar e sentir, que tão alterado tem andado. Cheguei ao limite de não poder adiar mais. A hora de Randulfo está a soar. Criminoso consciente é duplamente criminoso, porque age com frieza e cálculo, sem o mais escasso resquício de remorso. Seja. Babugem peçonhenta lhe ressuma a alma. Não basta já calcar aos pés, esborrachar essa pústula nojenta. A justiça acaba sempre por vencer. A hora de Randulfo será também a minha. Não se rirá mais de mim, não me olhará mais de soslaio, não sustentará mais este jogo de gato e de rato. Armei-lhe a boiz em que cairá a espernear de morte lenta e horrível... Ontem, subitamente levantou a cabeça do trabalho e fez a pergunta há tanto esperada:

- Aquele livro de sinais alquímicos, mestre, onde o tendes? Fiz que não estranhei a pergunta e respondi sem alarme:

- No lugar dele, na estante dos códices.

- Aí é que bate o ponto, mestre. Se nunca foi publicado...

- Nunca foi, que eu saiba. É um manuscrito único, raro.

- Se nunca foi publicado, se é exemplar sem cópia, então o autor daqueles crimes horrendos está encontrado. Só pode ser...

- Só pode ser - respondo-lhe, fitando-o acinte nos olhos, no fundo da alma - ...só pode ser quem tem conhecimento dos sinais ocultos que esse livro encerra e são os que o assassino gravou na testa dos infelizes rapazes mortos.

- É isso, mestre. E, como só vós possuís e tendes acesso a esse livro...

- Que estás a insinuar, desamigo? Não te admito. Esqueces-te de que também tu tens acesso a esse manuscrito? Porque é que ainda agora me perguntaste por ele? Não será porque tens tido trato e comércio com os seus arcanos? Vá! Vai lá buscar o livro. Quero ver se o não borraste com os dedos sujos das tintas das tuas iluminuras.

- Mestre, não estejais tão estomagado. Perguntei-vos por ele porque na estante há o lugar do livro, mas o livro desapareceu...

 

                                                 Morrer e nascer

- Que estultícia, bispo! - respondia com viveza o imperador Alfonso. - Ia agora despovoar as minhas fronteiras tendo o inimigo tão arreganhado às portas das nossas cidades! Não vedes o que aconteceu a Lisboa? Um descuido na vigilância e logo perdemos praça tão forte e importante.

- Constantinopla - continuava o primaz Dom Bernardo com voz calma - é o último bastião cristão da Europa. Nem sequer os lugares santos, o túmulo de Cristo, escaparam ao domínio dos infiéis. O papa Urbano, no concílio de Clermont, exortou todos os cristãos a ajudar o império do Oriente ameaçado pelos Seldjúcidas.

- E não somos nós - perguntava el-rei -, os nossos castelos, Lisboa, Santarém, Sintra, Coimbra, Toledo e todos os mais, os bastiões da outra porta da Europa não só ameaçada mas invadida? Que combate tem sido o nosso, bispo, desde há quase quatro séculos? Só agora é que o papa acordou? Alguma vez se lembrou de exortar os povos cristãos a que nos acudissem?

- Foi o imperador Aleixo Comneno, que lhe solicitou auxílio.

Alfonso sexto dava largas passadas na grande sala da alcáçova de Santarém, e de vez em quando parava à janela a ver lá em baixo a largueza do Tejo. Com a perda de Lisboa, acorrera às outras praças a provê-las e a reunir forças para que lhes não acontecesse o mesmo. Ao conde Henrique e a sua filha Tareja, a quem, sob a tutela do conde Raimundo, tinha feito governadores das terras de entre Minho e Douro, cedo alargadas até ao Vouga, dera então o comando do condado, acrescido do de Coimbra e sua província até ao Tejo, sem aquela tutela. Mala-vindo, recolheu-se Raimundo, ou encolheu-se, às terras do norte, à sua Galiza reduzida. Agora, ali presentes o conde Henrique com seus barões e principais, os senhores da Maia, de Sousa, de Baião, de Santa Maria, de Lamego, de Viseu, o governador de Santarém, Soeiro Mendes, e o arcebispo de Toledo Dom Bernardo, que trouxera a novidade do concílio de Clermont e de como a resposta de cristãos ao apelo do papa era de grande entusiasmo em toda a cristandade e já multidão de homens, mulheres e crianças atravessavam o Danúbio e caminhavam em direcção a Constantinopla...

- Pois que vão - dizia o imperador. - Não hei-de eu abandonar os cristãos da Hispânia. Olhai este rio. É fronteira vacilante entre Cristãos e Árabes...

- Devereis saber, senhor, que estou de acordo convosco - disse o primaz. - Só quis, era esse o meu dever de bispo e de vosso sujeito, dar-vos a conhecer a exortação do papa Urbano.

- Fizestes bem. Mas quereis saber? Não me augura nada de bom do que aí vem. Esta pressa! Esta intolerância! A Igreja sempre condenou a guerra...

- A quem o dizeis. Mas a Igreja admite a guerra justa.

- E será justa essa guerra? Queira Deus não seja grande equívoco...

- Estranhas palavras na boca de um guerreiro!

- Talvez a velhice me tenha tornado sábio... - disse sorrindo o rei Alfonso.

Terminado o conselho, partia o imperador com toda a comitiva a visitar Sintra e outras fortalezas.

Descia Gonçalo da alcáçova e preparava-se para seguir o rei, ao chegar ao pátio de armas atentou em Soleima e, junto dele, um jovem montado em uma formosa égua de raça. Aproximou-se. O jovem cavaleiro trazia, entre o arção da sela e o colo um menino de dois anos. Soleima, apeando-se, acercou-se e tomava o menino nos braços.

- Buthayna? - perguntou Gonçalo, olhando para Belfadar e segurando a égua pelo freio.

Foi Soleima quem respondeu:

- Belfadar, senhor, Belfadar primeiro... e Belfadar segundo. Sorriso e sombra eram os olhos da princesa.

A cavalgada real desaparecia ao longe envolta em poeira. Gonçalo ajudou Buthayna a desmontar...

Crónica é o relato do deslizar do tempo. E o tempo, para os seres vivos, é morrer e nascer ou nascer e morrer... Ao conde Henrique nascia em Coimbra uma filha, que houve nome Tareja como a condessa sua mãe. E em Santarém, de uma escrava moura, o bom do Soeiro Mendes teve um filho que nomearam Gonçalo Soares. A rainha Zaida, de seu baptismo Isabel ou Maria, estava de novo prenhe e o imperador Alfonso andava contente... E Gonçalo Mendes da Maia? Viuvara ia para três anos e agora encontrara a princesa que lhe não saía da ideia. Havia-a levado, com o filhinho e o fiel Soleima, para Coimbra, onde sediava a corte do conde Henrique, para uma casinha térrea e airosa na couraça que olhava para o Mondego. Um dia chamou-a à puridade a propor-lhe casamento.

- Não, Gonçalo, não - dizia Buthayna, os olhos em água. - A tua afeição, ao teu desvelo, à tua bondade e protecção devo o que resta de dignidade de quem fui...

- Buthayna! Repudias-me, agora que nos encontrámos?

- Quando me prenderam, em Sevilha, abusaram de mim. Depois mentiram-me e, julgando eu que tinhas morrido, casei-me com um homem que não amava. Não sou digna de ti.

- Não, não. Deixa-me curar-te essas feridas. Tu és como o guerreiro que sai da batalha todo chagado, mas que as mezinhas do físico acabam por sarar.

- Gostaria de vir para ti limpa, sem mácula... mas o destino assim o não quis... e não quero eu. Soltas, cruéis, flutuam-me no espírito as imagens, sujos farrapos de vida, estes poucos anos depois da tragédia. Não imaginas a náusea de mim mesma que me sobe à garganta... Fico aterrada...

- Dormirás tranquila e em paz daqui por diante.

- Eu não sou digna de ti, meu amigo. Que outra atitude digna de ti... e de mim, que nasci para a desgraça... posso eu tomar?

- E mereço-te, eu?

- Oh, meu amigo!

- Também eu fui casado. Que mal tem, a não ser que o pensamento se me fugia para outra mulher?

- Outra?

- Tu... desde que te vi... Casei-me com uma dona do norte, Leonor Viegas que Deus tenha...

- És viúvo?

- Deu-me ela duas filhas, Godinha e Moninha... Mulheres feitas, hoje, de mais idade que tu. A primeira é casada com o rico-homem Egas Gomes de Sousa, a segunda é seu marido Rodrigo Forjaz de Trastâmara. Cada uma tem sua casa, suas terras, sua vida. Ora vê. Sou já um velho de cinquenta anos. Há muito sou sozinho e ando pelos campos de batalha até que a morte me leve. Pelo caminho tive aconchego com um sem-número de mulheres. Nem sei já quantos filhos bastardos meus andam por esse mundo de Cristo... Eu é que te não mereço...

Buthayna chorava:

- O melhor é eu pedir asilo a minha irmã Zaida. Aonde me hei-de eu acolher com esta vida tão mofina, senão...

- O teu lugar, Buthayna, é junto de mim. Fica, peço-te.

- Não sou digna de ti.

- Eu é que não sou digno de ti. Por isso me rejeitas.

- Não é verdade. É porque te respeito, é pelo que sinto por ti que eu...

- Se é assim, siga cada um o seu destino. Tu sais pela direita e deitas aonde te leva o coração e o pensamento. Eu saio pela esquerda e boto aonde me pede o pensamento e o coração... e então...

- Então?

Gonçalo enlaçou Buthayna, fundia os olhos nos olhos dela e disse:

- Então, fatalidade! Os nossos caminhos bifurcados aqui adiante se encontram, se juntam, se misturam, que pensamento e coração vêm desaguar aos teus olhos, aos teus lábios, à corrente do mesmo rio... - e beijou-a ... e, indignos um do outro, não mais discutiram essa indignidade...

E Deus foi servido de que, dessa união, nascesse, decorridos nove meses, um menino a quem foi posto nome Belamiz Gonçalves.

O abade de São Bartolomeu de Tui, Dom Crescónio, fora chamado a governar a diocese de Coimbra, pesado encargo pois lhe ficavam sujeitas também, sede vacante, as de Viseu e de Lamego, quase despovoadas por mor das muitas guerras havidas pela sua posse definitiva. O cansaço do cargo, a par da velhice, não o esmoreciam no desvelo de guardar as suas ovelhas e, com particular atenção, continuava a obra de Dom Paterno e acarinhava os noviços do seu colégio. Era homem alto e seco, ossudo, voz grossa e nítida, pregador directo sem rodeios nem flores de retórica, rigoroso zelador dos decretos da madre santa Igreja e, quando tocava a defender as suas terras pelas armas, braço temível a manejar a espada ao lado dos outros cavaleiros. Do conselho do conde Henrique, falam das notícias que lhes chegam do Oriente:

- Se foi para isto - lamentava-se o bispo diante de Tareja e de Henrique -, que o papa Urbano pregou a cruzada, então estava errado. Uma onda de horrores é o que os Cristãos têm levado à Terra Santa.

- Sabeis bem, Dom Crescónio - opunha o conde Henrique -, notícias, vindas de tão longe, trazidas por mercadores apressados, incultos...

- Mercadores? Incultos?

- ... deturpam o que apanham em caminho em segunda e terceira mão, atoardas que chegam aqui acrescentadas de horrores. Se numa batalha morrem cem homens, quando a nova nos chega já os mortos são mil e, o que é mais, chacinados. Por mim, dou o devido desconto a tais alarmes. Acredito na santidade do movimento pregado pelo papa e digo-vos mais: estou a pensar em seguir para Roma a alistar-me na companhia dos meus parceiros de Cluny.

- Sabereis certamente, senhor, o que é criterioso escolherdes... Mas a minha fonte é mais que simples rumores. Um meu parente chegado de Roma. Ia também lá alistar-se como miles Christi cruce signatus, os horrores que ouviu levaram-no a regressar. Afiança estar o próprio papa desgostoso, teria querido unidade sob o comando do legado Ademar de Monteil, bispo de Le Puy, e de um chefe leigo...

- Mas que se passou de tão grave?

- À peregrinação de barões, organizada, disciplinada, hierarquizada, antecipou-se uma horda selvagem de povo miúdo, gente infeliz do norte de França, de Colónia, das terras do Reno, vitimada durante duas dezenas de anos por calamidades naturais, pestes, fomes, de todo desesperançada. O entusiasmo foi contagioso e logo acrescido de pavores pressagos ante as chuvas de estrelas que riscavam os céus, os cometas de cauda de fogo, a emigração de animais que pareciam fugir, as plantações dizimadas por nuvens de gafanhotos e outros prodígios que a pobre gente tinha por avisos do Céu...

- E não são? - perguntava a condessa Tareja.

A condessa, dona de vinte e três anos, era mulher formosíssima. Ao lado do marido parecia sua filha. Olhos azuis, cabelos loiros ondados, no rosto harmonioso a índole resoluta vincada no ricto da boca, no olhar quase severo. Do colo pendente um colar de ametistas e sobre o peito uma cruz de ouro e diamantes.

Dom Crescónio preferiu não atender à pergunta:

- Venderam os mirrados bens por preços miseráveis, carregaram mulheres e crianças em pesadas carroças tiradas por bois e, como aves migratórias, partiram, não já para acudir a Constantinopla, mas para chegar à terra da promissão, onde o túmulo de Cristo aguarda que dele tomem posse os Cristãos...

- Mas falastes de horrores... - queria o conde saber.

- Os primeiros bandos, partidos na primavera de há dois anos, comandados por um tal Guálter-sem-Cheta e um Pedro o Eremita, atravessaram o Danúbio e, pelo caminho, para obterem víveres, cometem violências sem nome contra as comunidades judaicas, que depredam e chacinam. As tropas húngaras reagem, dispersam e dizimam a maior parte destes desgraçados. Poucos chegam a Constantinopla. A seu pedido levados os restantes para a costa asiática, pilham as povoações cristãs, fazem razia em território turco e são por estes exterminados.

- Referiste a peregrinação dos barões...

- Chegou por esse tempo, dir-se-ia na pior hora. Não agrada a sua chegada ao próprio imperador Aleixo, que havia vencido na batalha de Lévunion, os Petchenegues, calado o emir Tzachas, de Esmirna, e estabelecido relações de paz com o sultão seldjúcida de Rum sediado em Niceia, Kilidj-Arshan. À sua chegada à capital do império logo se dão incidentes entre as tropas de Raimundo, conde de Tolosa e da Provença, e os mercenários petchenegues que as escoltavam, entre Boemundo, príncipe de Taranto, e as gentes de Castória... Recusavam-se as populações a dar-lhes provisões e, por outro lado, o imperador pretendia se considerassem seus vassalos os barões europeus. Hugo de Vermandois, filho do rei de França, prestou juramento, Godofredo de Bulhão recusou-se e só o fez quando lhe cortaram o sustento...

- E Jerusalém?

- O pior e mais lamentável de tudo!

- Dom bispo - disse a condessa Tareja -, guerra não é doce cantochão do vosso coro de noviços, bem o sabeis.

- Tem razão minha mulher, Dom Crescónio. Guerra é guerra e aí a ideia é exterminar toda a semente malina.

- Deus se amerceie de vós, senhor, se pensais assim - disse o bispo com pesar. - Já pouco me resta de vida, mas, se é para ver tal desumanidade que estão abertos os meus lumes, então a Deus rogo os apague quanto antes...

Quanto antes... quanto antes... e aprouve a Deus ouvir a prece de seu servo e o levou para a Jerusalém Celeste finda a era de mil cento e trinta e seis, lançavam-se lá longe em fundamentos de sangue as matrizes do reino latino da Jerusalém Terrestre. Dom Crescónio não viveu para ouvir o relato da tomada da Cidade Santa, a sete de junho do ano seguinte. A cristandade exultou, mas os olhos e as almas de muitos seres humanos para sempre se abriram em chaga viva ao ouvirem da enormidade da carnagem, os cavaleiros de Cristo a entrarem com seus cavalos no templo de Salomão, a destruir as alfaias sagradas e a matar sem olhar a quem, os animais com o sangue das vítimas pelos jarretes... No Gólgota, do alto da cruz, Cristo desmaiava: "Pai, perdoai-lhes, que eles não sabem o que fazem"...

Nesse ano, em julho, em Valência, falecera também Rodrigo Díaz de Bivar, a quem os Mouros chamaram o Cid, o senhor. Sua mulher, a valente Ximena, tomara as rédeas do pequeno reino...

 

                                               Intermezo décimo nono

- Que confusão me faz - disse Randulfo, levantando os olhos do trabalho - isto das datas serem ainda e sempre referidas à era de César. Diga-me, mestre: não será já tempo de nós os cristãos nos pautarmos pelo nascimento de Cristo? Olhai os árabes, que se pautam pela fuga de Muhammad...

- Tens razão, Randulfo. Muitas vezes tenho pensado nisso.

- Então...

- Então, mudar o sistema da datação de documentos é coisa muito mais complicada do que tu possas pensar. Imagina uma bula do papa, uma postura régia, uma doação a um mosteiro... Datadas como? Se o papa usa a era de César, os reis de França, da Alemanha, de Itália, o imperador Alfonso, o conde Henrique e sua mulher Tareja, os abades de Lorvão, de Mosteiro, os cronistas dos reinos... todos temos de usar aquela era... até que um dia todos combinem harmonizar-se pela era de Cristo. Um dia será.

- Sabe-se lá quando...

- Só quem tenha autoridade para o fazer.

- Hei-de morrer sem poder datar um documento com a era de Cristo? Reparai nisto que acabais de escrever: "...Deus foi servido de ouvir a prece do seu servo e o levou para a Jerusalém Celeste finda a era de mil cento e trinta e seis..." Feitas as contas, Dom Crescónio rendeu a alma ao Criador no ano do nascimento de Cristo de mil e noventa e oito.

- Não seria mais próprio?

- Seria, sim.

- Pois, se havemos de referir factos passados com cristãos que vão morrer em combate nas terras de infiéis para libertarem o túmulo de Cristo...

- Tens razão, tens razão.

- ... mesmo que esses factos sejam maravilhosos, como dizem que, na testa dos cristãos caídos em luta nas paragens de Jerusalém, aparecera inscrita, como a golpe de punhal, a cruz dos soldados de Cristo...

Olhei para Randulfo, que me mirava zombeteiro. Que quereria ele dizer com aquela alusão? Perguntei-lhe:

- Estarás, porventura, a querer ligar essa invenção fabulosa às inscrições aparecidas na testa dos que aqui foram assassinados?

- Relação possível. A imitação de um gesto que traz, sem dúvida, uma mensagem misteriosa, cabalística.

- E, como tu pareces ser o único conhecedor de tal milagre acontecido na Terra Santa...

- O único? Ouvi-o a vós, o outro dia, a conversardes com o abade Armirigo e com o sacristão. Porque o escondeis, mestre? Vós bem o sabeis.

- Estás a ser impertinente.

- Acabarei um dia por ser pertinente, não tenhais dúvidas.

- Randulfo, Randulfo! Abre de vez o teu jogo. Pensas que não o conheço?

- Sei bem que sim. Mas os indícios acumulam-se e começa a aclarar-se a escuridão e o sigilo. Ouvide, mestre. Alguém conhece os prodígios referidos: pelo menos vós...

- ... e tu...

- ... eu e o abade Armirigo, e o sacristão...

- E quem contou a Armirigo, e ao sacristão?

- Há um livro vosso desaparecido, mestre... ou propositadamente feito sumir... o Osualdi Baluzii Chartophylacis líber de Signaturis. Continha sinais herméticos. Guardo de cor as palavras do antelóquio: "Antiquissimi sapientes... Os sábios muito antigos, a quem em língua grega chamamos filósofos, os arcanos da natureza ou da arte que tivessem descoberto, por vários modos os ocultavam para que não caíssem no conhecimento dos depravados. Costumavam representá-los em notações hieroglíficas só conhecidas de iniciados e zelosamente sonegadas a olhos profanos..."

- E esse livro, Randulfo...

- ... temo que tenha caído em mãos depravadas, mestre.

- Também eu, Randulfo, também eu...

 

                                          Ventos da história

- As terras da rainha - disse o arcebispo Dom Bernardo - formam como forte muralha a rodear Toledo pela riba a sul do Tejo, desde Cuenca: Huete, Consuegra, Uclés, Ocana, Mora e outros castelos. São praças que vós, senhor, possuis por vosso casamento com Zaida. O general almorávida Sir ben Abi Bakr, primo de Iúsuf Ibn Tâshfin, não sossega enquanto não quebrar essa linha de defesa.

- Subindo de Granada, de Córdova - acrescentava um conselheiro -, com poderoso exército de berberes e o fito determinado de destruir essa barreira, aí está ele às portas de Malagón, junto de Piedrabuena.

- Alertados estamos - respondia Alfonso sexto. - Dei ordens para reunir as tropas. Desceremos ao encontro do inimigo...

O conde Henrique e seus barões caminharam a juntar-se-lhes, sem no entanto desguarnecerem as praças cristãs da margem do Tejo.

Nesses dias inseguros, Gonçalo Mendes, antes de partir com as tropas do conde, enviou para norte, para o seu castelo de Águas-Santas, Buthayna com Soleima e os dois meninos, Belfadar segundo e Belamiz.

- Para tão longe, Gonçalo?

- Se querem atacar Toledo, Buthayna, podem vir atacar Coimbra. Estarás mais protegida lá em cima com os meninos.

- Senhor - disse Soleima, já Gonçalo montava a cavalo -, deixai-me ir convosco. O meu punhal treme na bainha ao pensamento de matar aqueles cães que tanto mal fizeram à princesa.

- Se a queres defender e aos seus meninos, é aqui o teu lugar, Soleima, na minha ausência. Faz-me mais uma vez um juramento.

- Se é para bem deles, faço, senhor.

- A vida de um guerreiro é incerta. Jura-me que os protegerás.

- Juro, meu senhor. Ai de quem puser em perigo ou de qualquer modo lesar, contrariar a princesa e o seu sangue.

E Gonçalo partiu com o conde Henrique e em Zorita receberam ordem de descer a acudir a Malagón que os Almorávidas cercavam. Não chegaram a tempo, que a praça estava perdida e o exército do imperador recuara.

Também lá em baixo, em Múrcia e Valência, sem que o imperador Alfonso pudesse valer à prima, saía vencedor um fortíssimo exército muçulmano, as hostes de Ibn'Aisha, filho de Iúsuf, e do general Ibn Fátima. Mais uma vez nas águas do Mediterrâneo se espelhou a imagem da velha Valência a arder qual outra Tróia, as chamas e o fumo a saírem furiosos de janelas e telhados, as casas devoradas do fogo, o povo em desvairada grita a fugir sem saber para onde, como ninho de formigas assaltado, a carnificina cruel, crianças a chorar pelas ruas, perdidas as mães... Ximena e os seus fiéis cavaleiros saíram a tempo para norte, pelos bosques que ladeavam o Túria, triste caravana de carroças pejadas de haveres à pressa recolhidos, a viúva do Cid, de negro vestida, o rosto crispado de sanha e denodo, a acompanhar o caixão com os despojos do marido, pelas serranias de Cuenca, caminho de Burgos, onde lhe haveria de dar aos ossos descanso seguro até ao dia do Juízo, no mosteiro de San Pedro de Cardena.

No fim desse ano de mil cento e quarenta, saía o conde Henrique com luzida companhia de cavaleiros para França, a integrar-se na expedição à Palestina que seu primo Henrique quarto, imperador do Santo Império romano-germânico, se propusera realizar. Em Coimbra deixava a governar o condado sua mulher Tareja, acolitada por Soeiro Mendes da Maia como prepósito.

Partia o conde, mas cedo de sua devação se desenganava. A expedição gorava-se e ele regressava ao condado.

- Atravessados os Pirenéus - contava suas andanças à mulher -, as novas chegadas da Terra Santa eram lastimosas.

- E que novas eram essas?

- Certo, o reino latino de Jerusalém estendia-se por longa faixa de território... - e o conde desdobrava sobre a mesa uma carta e ia apontando: - vai de Gaza, sobe a Jerusalém, Jafa, Tiberíades, Acre, a Tiro e Sídon, a Antioquia e Edessa, a Alepo, à Arménia ciliciense...

Tareja interrompia-o:

- Mas porque regressaste?

- Seria imprudente prosseguir. Lá esperar-nos-iam dificuldades.

- Dificuldades? - admirava-se Tareja. - Pois que podem esperar guerreiros que tão longe vão guerrear?

- Dificuldades de provimento de toda a casta, agravadas pela conspiração do imperador Aleixo Comneno.

- Conspirava?

- Entendia-se com os Turcos em vez de acudir aos cruzados. Já há defecções graves. Dos cruzados só espera lhe conquistem as terras dos infiéis e as entreguem a seu império. Os chefes cristãos começam a perceber o ludíbrio e a sacudir o jugo. Mas cometem excessos que têm levado à reacção dos Muçulmanos da Ásia Menor.

- Sendo assim - concluía a condessa -, receio bem seja essa uma cruzada inútil.

- Não bastava isto, também o papa Pascoal se opôs à expedição do imperador Henrique. Por querelas antigas e recentes, havia-o excomungado...

- Não te restava, pois, senão regressar.

- Sim. Foi miragem ter partido. Temos aqui a nossa cruzada. E, no paço, nas longas noites de inverno, aqueciam-se à lareira, tangia o menestrel seu arrabil e balada triste cantava:

Lá vai o conde, conde Henrique, no peito a cruz a brilhar, ponta da lança afiada, cavalo branco a trotar, selim de prata dourada, esporas de diamante, com duzentos cavaleiros Terra Santa vai buscar, quer ser soldado de Cristo, Jerusalém libertar. A serrania já sobe, portela do mal passar, pelos tesos dos outeiros ouve-se o vento a aiar, moura encantada alaúde na alta penha a dedilhar: "Coitada de mim, coitada, cristão me foi a matar, meus ais aos ventos bradei, pôs-se-me o vento a chorar"... "Que choro é este do vento, estes ais, este lamento?" o pajem de perguntar.

 

"Que frio trago na alma,

o frio do tramontar!

Moura encantada na penha

o alaúde a vibrar,

chora sua triste sina,

seu fado põe-se a chorar,

que cristão arrenegado

a foi mofina matar...

Sua voz oiço, ai de mim!

Lindo é o seu cantar!

Porque me está a chamar?"

"Pajem, meu pajem, onde estás?"

no seio da cerração

é conde Henrique a bradar.

Procuram-no os cavaleiros

e tornam a procurar,

aos pés de uma alta penha

o vão por fim encontrar,

na urze dormia o pagem,

dormir de não acordar,

a neve de o amortalhar...

 

Em Sintra, Durduz, filho segundo de Amalbeque, casava com a moura Aisha e desse casamento nascera um menino de nome Alaroz. E, quando, no ano seguinte, os muçulmanos, vindos de Lisboa, do mar e do sul, saltearam o acampamento cristão de Vatalandi com o intuito de, mais abaixo, tomarem Santarém, travou-se acesa refrega, em que, apesar de os mouros serem repelidos, ficaram no campo de batalha cavaleiros cristãos e soldados mudéjares que combateram contra os Almorávidas. Aí teve fim o capitão cristão senhor de Grijó, Soeiro Fromarigues, o excelente cavaleiro Mido Crescones e, entre os mudéjares mortos pelos seus irmãos berberes, jazia por terra, comido dos avúitores, o corpo do jovem Durduz. Sua mulher, Aisha, fugia com o filhinho para Coimbra e adregou que Soleima, conhecendo cujos eram e condoído da sua sorte, levou mãe e filho na comitiva da princesa Buthayna para o norte, caminho de Águas-Santas.

Não sossegavam os Almorávidas, que logo, do mar Oceano e do Mediterrâneo, as suas esquadras surgem a depredar a sul e a oeste as povoações ribeirinhas. Os povos cristãos, o coração em constante susto, andam de sobreaviso.

Outro provimento e depredação fazia aquela que comanda o rodar dos tempos e nem o coração nem o pensamento dos humanos é capaz de conter, limitar e reduzir aos domínios, fronteiras, horizontes de religião, raça, língua, costumes, amor e desamor, a grande niveladora de todos os orgulhos e prosápias, vaidades, grandezas e humilhações, riqueza e pobreza. Conhece-a a criança e o velho, o rei e o escravo, e até os brutos animais, o corcel do cavaleiro e o asno do almocreve, o cão do rico e do pobre... Se os que atingiram idade avançada se preparam para partir, luz-lhes ainda o sorriso ao se reverem nos netos recém-nascidos, provimento de gerações, abastecimento de vida sobre a Terra...

 

Em março de mil cento e quarenta e três, nascia a Urraca e Raimundo um filho varão que houve nome Alfonso Raimúndez. Recebem-no os pais com alegria e nele começam de congeminar esperanças venha ele a ser o herdeiro do trono do avô Alfonso sexto, pela pureza do sangue em confronto com a impureza que julgavam correr nas veias de Sancho, filho da moura Zaida. No ano seguinte, em Marráquexe, falecia o rei almorávida Iúsuf ben Tâshfin e deixava em testamento por herdeiro seu filho Ali ben Tâshfin, de vinte e três anos de idade.

O conde Henrique de Borgonha, atarefado em acudir a municiar as fortalezas de seu território colimbriense, não descurava de, pelo caminho, o ir povoando, dando o exemplo pelo ajuntamento com alguma acidental concubina. Desses aconchegos extramatrimoniais, nasceu-lhe um dia, por esse ano, em Alcobaça, um filho natural chamado Pedro Afonso, que mais tarde há-de ser guerreiro ilustre.

Não se gozou muito tempo o conde Raimundo de ver medrar o filhinho Alfonso Raimúndez, que, com pouco mais de três anos, teve a primeira experiência de ver à sua volta os olhos vermelhos e as lágrimas em fio das carpideiras, as estamenhas grosseiras do nojo, e ouvir, pelas abóbadas da catedral, os réquies do cantochão dos frades, pelo falecimento do conde seu pai.

Mas já as Parcas, corria a era de mil cento e quarenta e seis, depois de registarem o nascimento de mais um filho de Henrique e de Tareja, de nome Afonso Henriques, voavam a Uclés onde, a equilibrar contas, contavam tomar principesca presa juvenil...

 

                                                Intermezo vigésimo

- Mestre - disse Randulfo -, estou desorientado e não sei que pensar.

- Que se passa, Randulfo? Há mais algum mistério na tua cabeça?

Levantou-se o meu ajudante, trangalhadança, e manquejou até junto de mim:

- Reparai. Estamos na era de mil cento e setenta e oito, o ano do nascimento de Cristo de mil cento e quarenta. Segundo o vosso relato, vai em trinta e sete anos que Soleima, a mando de Gonçalo Mendes da Maia, caminhou para norte, para aqui, para o castelo de Águas-Santas, com a princesa Buthayna e os dois filhos e com Aisha mais o filho. Trinta e sete anos, mestre! Que é feito dessa gente? Nós conhecemos quem cá vive, quem morreu. O corpo de Gonçalo Mendes foi trazido para cá no fim do ano passado. Que é dos outros? Eu não os conheço. Desapareceram sem deixar rastro? Dizei-me mestre. A princesa morreu? E os filhos? Devem ser hoje homens feitos. Andam na guerra?

- Não sejas apressado, Randulfo. Não sabes que o tempo, parecendo estar parado, é corrente a fluir como a de um rio?

- Voragem silenciosa.

- ... e às vezes ruidosa... Que idade tens, Randulfo?

- Fiz dezoito anos.

- Pois dá tempo ao tempo.

- Não me lembro de ter conhecido os meus pais.

- Quando tu nasceste, já muita coisa, próxima e longínqua, se havia passado.

- Quereis dizer com isso, mestre, que há muita coisa...

- ... que tu não sabes. É isso.

Randulfo, o ar muito concentrado, regressava à sua bancada, preparava-se para escrever, disse:

- E vós, mestre, que idade tendes? Não sei nada de vós, onde nascestes, quem são ou foram vossos pais...

- Curiosidade de soalheiro?

- Não, mestre. Curiosidade de ajudante de cronista.

 

                                       Uclés

Violência inaudita, rei Alfonso! Velho e cansado, enviares teu filho Sancho, um principezinho de doze ou treze anos, para a guerra, para a morte... morte do teu único filho varão, herdeiro do trono? Não pensaste nas porfias de poder que se levantarão quando faleceres? As tuas duas filhas, Urraca e Tareja, com os maridos... e os filhos, os dois Afonsos, um Raimundes, o outro Henriques?... Ah, que não é esta crónica que está errada, mas a consciência dos senhores e guerreiros de um e outro campo, que se olham como inimigos, esquecidos cujo é o sangue de suas veias!... Sancho, um príncipe cristão filho de mãe moura, e Ali, um príncipe mouro filho de mãe cristã! Poderá haver maior ironia?...

Ingrata a tarefa do cronista, que, entre tantas versões do que aconteceu, hesita sobre qual a mais fidedigna. Dizem uns que a mãe, a rainha Zaida, incitou o filho a ir para a guerra, não lembrados de que outros asseveram ter ela morrido, em mil cento e trinta e sete, de parto quando o príncipe nascera. Há ainda os que, pretendendo harmonizar a idade do menino com a pertinente a ir combater, aceitam que a rainha tenha falecido naquela data, de parto mas de um segundo príncipe que também não sobreviveu. De maneiras várias são relatadas a própria batalha e as circunstâncias da morte do príncipe Sancho. Enfim, entre tantos relatos venha o Diabo - cruzes, Canhoto! - e escolha...

À morte do emir almorávida Yúsuf ben Tâshfín, não é o primogénito, Tamím, o sucessor do trono, mas 'Ali, um belo rapaz de vinte e três anos, alto, rosto oval, tez clara, olhos negros, fruto dos amores de um sariano com uma escrava cristã de al-Andaluz de perturbante formosura. Nascido em Ceuta, aí cresceu e foi educado, de formação mais andaluza que africana. Adopta o título de Amir al-Muslimín, Comendador dos Muçulmanos, título legitimado, segundo a tradição, pelo califa de Bagdad, 'Abd Allâh bi-Llâh. No início do reinado, enfrenta a oposição de alguns parentes, governadores de parcelas do reino, que o não querem reconhecer nem prestar-lhe obediência. Atravessa o estreito com seus exércitos e vem a al-Andaluz impor a sua soberania. Substitui no poder os oponentes e, um ano depois, arrumada a casa e antes de regressar a Marráquexe, sua corte, por meados de mil cento e quarenta e cinco, chama Tamím e diz-lhe:

- Tenho pensado, irmão, em empreender grande campanha contra a cintura de fortalezas das terras da moura Zaida, que defendem Toledo...

- ... sobretudo Uclés, a este, e Talavera, a oeste.

- ... continuando a guerra santa começada por nosso pai.

- É pensamento digno de um verdadeiro Amír al-Muslimin.

- És governador de Granada e de todo al-Andaluz. Serás o meu braço e comandarás os nossos exércitos, as tuas tropas mais as de Córdova, Múrcia e Valência, enquanto, na orla marítima de oeste Sír Abí Bakr se prepara para reaver Sintra e Santarém.

Tomou Tamim a peito organizar poderosa ofensiva e, por volta de treze de abril e primeiros dias de maio de cento e quarenta e seis, atravessado o Guadalquivir, caminha, à frente de suas tropas, para Jaén e acampa em Baeza. Aí se lhe juntam as tropas do governador de Córdova, Abí Ranq, as de Múrcia, sob o comando de Ibn'Aisha, irmão de Ali e de Tamím, e as de Valência, de Ibn Fátima.

Reuniram-se os generais na tenda do comandante-chefe a estabelecerem o plano de ataque:

- Penetraremos nas terras de Zaida - disse Tamim - pela praça forte de Consuegra, já em nosso poder. Uclés é lugar principal da região a sul do curso superior do Tejo. Alto castelo sobre escarpas roqueiras, na margem da ribeira Bedija, que nasce num teso e desce a banhar as casas da povoação, espalhada pelos flancos da colina alcantilada, e a alimentar as termas. Cercá-la-emos e tomá-la-emos de assalto.

- A cidadela, no alto, vai oferecer resistência - disse Abi Ranq.

- Cristãos, judeus e mudéjares. Estes passar-se-ão para o nosso lado. Os outros, os que escaparem à investida, buscarão refúgio no castelo.

- Não se renderão - vaticinou Ibn Fátima.

- Sempre há jeito de fazer sair o coelho da lura - sorria Ibn 'Aisha.

A vinte e seis de maio, pelo cair da tarde, sitiam a cidade. No dia seguinte, quarta-feira, dá-se o assalto, trabalhoso e demorado, só concluído na quinta-feira vinte e oito. Matança de assombro, a população mal podia oferecer resistência. Os que conseguem fugir mais a guarnição acolhem-se à cidadela. Até ao cair da noite dão-se os sitiantes à pilhagem, a incendiarem as igrejas e a convertê-las em mesquitas e regressam ao acampamento, onde passam a noite.

Recolhia-se Tamim, um guarda aparece-lhe com um jovem de pulsos atados:

- É um espião. Andava a rondar o acampamento.

- Eu não sou espião - negava o rapaz.

- Então porque rondavas o acampamento?

- Sou mudéjar. Servia no exército cristão. Fugi para me juntar a vós.

Tamim manda libertar o moço e, durante muito tempo, esteve com ele a falar à puridade e dele obteve todas as informações respeitantes às tropas inimigas. Depois manda o acolham no serviço do acampamento e logo convoca o conselho de guerra:

- O rei Alfonso não perdeu tempo - diz. - Aproxima-se um exército cristão. Saiamos a defrontar o inimigo. Reforcemos a guarda do acampamento e as defesas contra a guarnição do castelo, não vão eles fazer sortida de surpresa enquanto nos encontrarmos ocupados no recontro.

- Dispúnhamos as nossas forças em três formações - sugere Ibn'Aisha.

- Sim - concorda Tamím. - Duas alas formadas pelas tropas de Múrcia e Valência. Tu, Ibn 'Aisha, pela esquerda. Tu, Ibn Fátima, pela direita. O corpo de Granada, sob o meu comando, avançará pelo centro, levando na dianteira as tropas de Córdova.

Toda a noite cuidaram das adequadas medidas e, manhã muito cedo, sexta-feira vinte e nove, saem a campo.

Lá vem o infante Sancho em seu corcel cor-de-amora, vem fingindo que comanda o exército cristão, porque é príncipe e, de antemão, herói. Na verdade, o comando está cometido aos generais Alvar Fanez e Garcia Ordonez, conde de Cabra, o Boquituerto. Com este são sete garbosos condes e mais os excelentes capitães da região toledana e os admiráveis governadores de Calatanazor e de Alcalá de Henares, temíveis guerreiros cobertos de ferro em suas montadas, os elmos a coruscar ao sol, floresta de lanças e pendões ao vento.

Aí estão os exércitos frente a frente. Lançam seu grito de guerra os Cristãos e, em furiosa carga, investem contra a dianteira das tropas de Abí Ranq. Alto clamor, brados, fúria de peitos guerreiros, a luta é encarniçada, as tropas cordovesas sofrem pesadas perdas de homens e animais e são postas em debandada. Perseguem-nas durante milhas. Ibn Fátima e Ibn'Aisha avançam pelos flancos e assaltam o acampamento cristão. Tamim, ao centro, com os seus contingentes e os cordoveses que se lhe haviam juntado, lança fortíssimo ataque. Sem o apoio do acampamento, guerreiro é ser isolado, perdido, não pode refazer forças no pão e no vinho, renovar armas, tomar fresca montada. Desesperados, os Cristãos, acabam por ceder terreno. Súbito vêem-se cercados. A mortandade é hecatombe, caem por terra cerca de três mil soldados.

Alvar Fanez foge para Madrid e Toledo com o grosso do exército, abandonando a comitiva do príncipe. Garcia Ordonez e os condes, vendo-se sozinhos com os magros restos das tropas, procuram abrigo. Ali perto de Uclés ergue-se o castelo de Belinchón. A ele se acoitam com príncipe, não se dando conta de que são mudéjares quem tem a praça. Triste coisa é a morte inglória. Podem tecer os poetas vindouros canções de gesta e engrandecer como heróis aqueles que nem um ai tiveram tempo de dar. Correrá depois a lenda que falará do heróico sacrifício do Boquituerto.

- Príncipe - grita, ao ver-se atacado pela chusma de mouros -, protegei-vos atrás de mim.

Atira-se ao inimigo, infrene lutando de espada e punhal, interpondo o corpo como escudo entre si e o seu príncipe, até cair morto. Indefeso, os olhos esbugalhados de medo e o grito travado na garganta, o mocinho cai miseravelmente traspassado...

Como em Zalaca, Tamim ordena que degolem os cristãos mortos e lhes amontoem os crânios. No alto desse minarete humano, da cabeça decepada os olhos abertos do pobre menininho olhavam o almuadem a chamar os crentes à oração e neles brilhava a estrela de alva...

 

El pálido infante

una extrana locura tenía,

el pálido infante

poseer una estrella queria...

 

- Ibn ' Aisha e Ibn Fátima - diz Tamim -, já aqui não sou preciso. Regressarei a Granada. Levareis a bom cabo a rendição de Uclés - e partia com as suas tropas mais o que restava das de Córdova.

No combro da escarpa, as muralhas formidáveis do castelo desafiam o cerco.

- Impossível usar máquinas de guerra - brada Ibn Fátima, olhando à distância a inexpugnável mole -, impraticável a escalada.

- Então - responde Ibn'Aisha -, a melhor máquina de guerra será a astúcia. Finjamos retirar-nos e armemos-lhes, cá fora, emboscada.

Si mens non laeua fuisset, não teriam caído no logro os infelizes sitiados. Vêem o inimigo desaparecer ao longe, saem da fortaleza. Não há soldados muçulmanos ocultos no bojo de nenhum cavalo de madeira, os bosques é que súbito tomaram vida e os Cristãos, surpreendidos, são destroçados, chacinados ou reduzidos a cativeiro. A cidadela de Uclés é entrada e aí se demoram os guerreiros muçulmanos largo tempo. Cavalos, mulas, armas, dinheiro, é o rico despojo. Bom prol lhes faça.

Um pobre passarinheiro que seguia na comitiva do príncipe, apanhado também na voragem de mortandade que relampejou no fio dos alfanges mouriscos, moribundo, o peito golpeado a dessangrar-se, arrastou-se para detrás de uma rocha, abriu a gaiola dos pombos, enrolou mensagem na anilha de um deles e soltou-os, antes de desfalecer.

Em Toledo, o imperador estava ansioso. O general Alvar Fanez havia chegado com os farrapos miseráveis de suas tropas e apresentara-se envergonhado perante o soberano.

- E abandonastes o campo sem tentardes saber do destino do príncipe? interrogava-o assombrado o rei.

- Senhor, o príncipe seguia na comitiva dos condes. O inimigo separou as nossas guarnições da do príncipe Sancho...

- E não sabeis nada mais, senão que fugistes infamemente.

- Senhor...

- Calai-vos. Desaparecei da minha frente. Ide-vos. Ide-vos. Alvar Fanez retirou-se e o imperador ficou sozinho com

seus conselheiros, angustiado. Rufiar de asas, um pombo pousava no peitoril do varandim. Acorreu um áulico, tomou-lhe a mensagem da anilha e apresentou-a ao imperador. Alfonso sexto leu-a, doeu-se-lhe a alma usada e delida, largou da mão o papel e deixou-se cair na cadeira do trono, a mão a esconder a água que lhe alagava os olhos. O mordomo pegou do chão a mensagem. Voltava para os outros o olhar magoado:

- O príncipe morreu.

E, a enegrecer ainda mais o coração do imperador, iam chegando as sombrias notícias. Quase desguarnecidos, os castelos de Zorita, Huete, Ocana e Cuenca foram caindo sob a obediência dos Almorávidas, perdidas todas as terras que a sua querida Zaida - Deus a tivesse em sua guarda! - lhe trouxera em dote. Tão trabalhosa vida ter assim um fim trágico! Ainda estava vivo, já via os avúitores dos parentes e poderosos afiarem as garras para o bodo real, ante a morte do príncipe Sancho e a sua própria, que não poderia tardar. Os condes seus genros já haviam feito pacto sucessório, que ficara sem efeito com a morte de Raimundo. Sua filha Urraca, pela morte de Sancho restituída a ser herdeira do trono, mostrava-se ciosa de ser rainha em detrimento do filho dela, Alfonso Raimúndez. E seu genro Henrique, tão ambicioso, tão independente?... E que fazer, com guerras intestinas à vista entre cristãos, e os Almorávidas a aproveitar-se-lhes das fraquezas e dissidências?...

Chegava o fim de junho do ano seguinte, encontrava-se o imperador de cama, às portas da morte, rodeado dos físicos, do bispo Dom Bernardo, de cortesãos, entra-lhe pela corte o conde Henrique.

Pensou o moribundo que o genro correra a fazer-lhe visita piedosa:

- A que vindes, conde? A ver-me morrer? - a voz sumida, a custo levantava Alfonso os olhos para o genro.

- Deus vos conserve a vida, senhor. Assim o desejo. Deus no-la dá, Deus no-la tira. Assim como dá o poder aos reis para bem governarem os povos com justiça.

Abespinhou-se o imperador:

- Sermoneais, conde? - pigarreava a procurar clarear a voz. - Para sermões tenho aqui o meu bispo e confessor. Poupai-me.

- A isso venho. A poupar-vos que partais desta vida com uma injustiça na consciência.

Assombro e indignação dos senhores presentes. Adiantou-se Dom Bernardo:

- Que dizeis, senhor? Enormidade acabais de insinuar.

- Deixai, bispo, deixai - erguia Alfonso a mão em gesto de apaziguar. - Deixai ouvir. Continuai, conde.

- Continuo, estai certo.

- De que injustiça me quereis poupar?

Não era o conde Henrique achacado a ternos sentimentos, a respeitos humanos, a acatamento ao que os outros pensassem ou sentissem. Sangue real de França nas veias, prosápia orgulhosa, ambição desmedida, não sofria embaraços ao desejo de alargar os seus domínios e os tornar livres de sujeição.

Guerreiro, habituado a ver correr sangue em batalhas, nada o movia a tranquila morte de homem, ainda que sogro e imperador, estirado no conchego de leito de almadraque de lã, bordada colcha de damasco. Não atenuou as palavras:

- Chegado ao termo da existência, tomastes várias cautelas atinentes ao futuro depois da vossa morte.

- Dever meu. Que tendes vós com isso?

- Prometestes o senhorio da Galiza a vosso neto Alfonso, indicastes como herdeira do trono vossa filha Urraca, esquecido da sucessão por via varonil...

- Morreu meu filho Sancho. Só me restam as filhas.

- Aí reside a injustiça.

Num arreganho de ira, ergueu o velho rei o tronco, tentando levantar-se:

- Vede como falais. Não estou tão decrépito que... - e logo caía sem forças no cabeçal de seda...

- Tudo dispusestes, menos que vos esquecestes de vossa filha Tareja... e de mim.

- De vós?

- Morreu Raimundo, morreu Sancho...

- Morreu, morreu o meu querido príncipe - e tinha lágrimas a voz do imperador.

- ... arrumastes Alfonso Raimúndez na Galiza... varão só vos resto eu que, pelo casamento com vossa filha Tareja, vosso filho sou...

- Henrique, Henrique, várias vezes me tendes pedido alargue os territórios do vosso condado. Agora quereis tudo? Ser rei? Imperador?...

- Não vos peço, senhor.

- Exigis?

- É esse o meu direito, é esse o vosso dever.

- Ora, conde! - cansava-se-lhe a voz. - Deixai-me morrer em paz. Retirai-vos de minha corte. Não tenho satisfações a dar-vos, nem quero ver-vos mais. Mordomo, senhores, acompanhai esse homem à porta de minha casa.

Airado de el-rei, saiu do palácio o conde Henrique a bufar como gato assanhado...

Dois dias depois, a um de julho, a alma do imperador Alfonso despegava-se-lhe do corpo debilitado. Requiem aeternam dona ei, Domine...

 

                                           Intermezo vigésimo primeiro

- Não sei se é angústia, mestre - disse Randulfo -, mas sinto um aperto, um como cheiro no ar de que a vossa crónica se está a aproximar das nossas vidas.

Eu bem entendia o sentimento do meu ajudante, cheiro, odor, odorari quid futurum sit, farungar cheiro do que lá vem... Mais que ninguém o entendia. Disse-lhe:

- Não comecei eu o meu relato no ano em que Gonçalo Mendes faleceu, naquela batalha lá para o sul, e os seus ossos foram trazidos para a igreja de Leça? Desandei atrás no tempo e venho contando das marés, abalos, tormentas, mudanças que, de longas eras a esta parte, tem sido a vida dos povos da Hispânia, cristãos e muçulmanos. Porque estranhas que a crónica tenda a caminhar para o ponto de partida?

- É garra que se ergue a agatanhar-me.

- Preocupa-te antes com esse louco que anda à solta a matar, parece, todos aqueles que se aproximam de Imena e de Zoaira. Esse é que constitui real ameaça. O resto, fantasmas do passado...

- Gonçalo morreu. Há no entanto fantasmas do passado ainda vivos no presente... aqui, em Águas-Santas...

- ... tu podes ser um deles, a par de poderes ser também o tal louco que por aí anda à solta...

- Já vos conheço, mestre, tal discurso. Estais muito enganado se pensais vou ficar magoado com a insinuação. Isso foi a princípio. Agora, eandem cantilenam canens, torno-vos de volta a graça. Vós, vós é que sois abantesma do passado e não o quereis dizer... e também certamente esse tal louco de quem tanto falais como sendo outro que não vós. Mas eu asseguro-vos, ai, mestre, sede certo, já estive mais longe de aclarar o mistério... esse e outros que aguardam explicação, como o tresmalho - ou sumiço quem sabe -, do de Signaturis de Osvaldo Balúzio...

- Armas-te em inquisidor?

- Encontrarei o livro. Descobrirei quem são Imena e Zoaira, quem sois vós... quem sou eu...

Estive a ponto de cair na tentação de lhe dizer que a mim pertencia desvendar segredos. Considerei, todavia, ser bravata que acarretaria a minha perdição e calei-me. Não convém por ora desvendar seja o que tenha sido. A crónica, em parte, se encarregará de descobrir muitas coisas... a seu tempo...

 

                                     Urraca

Era espevitada a princesa Urraca, ânimo rebelde, sangue quente.

- Arvoadinha - dizia o povo.

- Égua selvagem - dizia o bispo Diego Gelmírez ao ver o séquito das aias dirigir-se ao grande tanque de mármore do jardim florido.

- Nunca teve marido que a ferrolhasse na hora do banho e, agora viúva, rainha e ainda nova e formosa...

Levavam as donzelas toalhas de linho, unguentos perfumados, essências de nardo, cinamomo, alfazema, já o trovador esperava tangendo sua cítara e postavam-se em volta pretendentes cortejadores, desejosos de fisgar algum lance de alva nudez ou entrever sombrearem, sob a camisa leve, as flores mimosas do roxo dos seios, da púrpura do pente, o risco da fenda por onde o Diabo gostava de entrar. E ela notava, com agradado arrepio, como os olhos dos homens procuravam trespassar-lhe as roupas e chegar-lhe às carnes pudendas, e a pele gostava de se lhe sentir acariciada pelos concupiscentes olhares, quando nadava na ribeira ou no tanque do hortus conclusus.

- Se eles, ansiosos, espreitam nudez, porque não lhes facultar algum desfrute, prendê-los, enredá-los? Mais contidos e obedientes súbditos serão.

E as aias, donzelas formosas, titilavam sorrisos de cristal que arremedavam o gorgolejar da água das bicas da fonte.

- Escureceu a Lua no firmamento e as minhas entranhas sossegaram da sangria mensal. Passadas as Calendas, no dia nono da Lua irei banhar-me - dissera a princesa e ali estavam agora, em alegre chilreada, nos Idos do mês.

E um domingo, na sé, à homilia - frescas na memória de todos as mortes do conde Raimundo, do príncipe Sancho, do imperador Alfonso -, o bispo Gelmírez, ex-secretário e escrivão do conde Raimundo, que Deus haja, subia ao púlpito e aproveitava o ensejo para, em teatralidade retórica, zurzir nos pecados e prepotências dos grandes do mundo, esquecido de que também era um deles, e recriminar os banhos imorais e fazer-se eco do desagrado popular pelo despejo da rainha:

Onde estão os amadores viciosos, que ainda há pouco andavam entre nós? Onde param os príncipes, os reis, os condes, os senhores de impérios, reinos, tenências e presúrias, que não há muito se pavoneavam entre nós com grande estado, circunstância e equipagem, se rodeavam de tumultuosas matilhas de cães e numeroso e solto cortejo, possuíam grandes palácios, inúmeras mansões e extensas terras de pingues rendas e se alimentavam de mimos de gulodice, governavam seus sujeitos com crueldade e os expoliavam do ganho do suor deles? Onde estão os falsos homens esclarecidos, os juízes, os advogados, os ouvidores, as testemunhas juradoras e perjuradoras, que por dinheiro pretendiam comprar Deus e o reino dos Céus? Onde estão os onzeneiros que de um quarto de maravedil fazem um maravedil inteiro, de onze fazem doze e de uma quarta de trigo fazem quase um alqueire? Onde estão os falsos mercadores que têm artes de burlar o próximo ali mesmo ante os vossos olhos? Onde os cruéis executores e testamenteiros e administradores, que aumentam a aflição das viúvas?

E os frouxos eclesiásticos, que uma coisa é pregarem e outra dar mau exemplo de seus actos ao povo de Deus?...

- Grande descaro! - disse Paio Mendes, entre dentes, ao irmão Gonçalo, ali presentes entre os nobres senhores. - Que é das relíquias que roubaste da sé de Braga e levaste para Santiago?

Referia-se a que Gelmírez visitara, um dia, a diocese de Braga, sua sufragânea, fora recebido e hospedado com todas as honras pelo bispo Geraldo e, em paga do bom acolhimento, levou-lhe à surrelfa as relíquias de São Cucufate, São Silvestre, São Frutuoso e Santa Susana...

Onde estão os arrogantes, os invejosos, os licenciosos, os glutões e beberrões e outros prevaricadores?... Vai-se a ver, de todas as riquezas, delicadezas e demasias nada ficou, e os vermes, olhai, tomaram conta dos corpos, e as almas, em vez de palácio, átrio, câmara, ampla sala, habitarão o fundo lago do Inferno. Perfumados eram os banhos das donzelas? Agora, a cuba, o tanque será uma estreita cova na terra e um banho mais turvo, mais podre e nojento do que qualquer banho de piche e enxofre. No lugar de um leito macio, uma cama mais rude e áspera do que todos os pregos e espetos do mundo. Em troca de doces abraços, os amplexos das chamas do Inferno. Em escambo de mulheres de sonho, súcubos de pesadelo. Em vez de cortejo de admiradores, a procissão de vermes, a chusma de demónios. Em lugar de largos domínios, os dois palmos de uma eterna prisão. Em vez de riqueza, pobreza; em vez de prazer, castigos; em vez de honrarias, desprezo; em vez de risos, choro e ranger de dentes; em vez de glutoneria e beberrice, fome e sede sem fim; em vez de jogos com dados, penas e trabalhos; e, em vez do tormento que aos outros infligiam, o próprio tormento eterno...

Saía a rainha mais sua irmã Tareja e o cunhado Henrique, acompanhava-os ao pórtico o bispo Gelmírez com seus acólitos.

- Despropósito, bispo - disse Urraca - o vosso sermão.

- Como assim, senhora?

- Até parece que só os nobres e os que têm dois dedos de engenho vão para o Inferno.

- É dos Evangelhos, rainha, é dos Evangelhos... O camelo, a agulha... estais lembrada?

Um pagem havia-se chegado a Gonçalo Mendes a segredar-lhe qualquer coisa. Logo o cavaleiro se acercou do conde Henrique a comunicar-lhe a mensagem.

- Urraca - disse Henrique -, estamos em pressa. Os Almorávidas estão a desembarcar de novo no Andaluz.

Logo Urraca dispôs se reunisse seu conselho para se deliberar das medidas a tomar.

Findava a primavera de mil cento e quarenta e sete da era de César, mil cento e nove do nascimento de Cristo e de quinhentos e três da Hégira, cerca de um ano depois do desastre de Uclés, o emir dos Muçulmanos, Ali, uma vez pacificada a sublevação de seu sobrinho Yahyâ, vali de Fez, deixava Ceuta e atravessava pela terceira vez o estreito com numeroso exército de mulathimân, os cavaleiros do véu, e um corpo de voluntários da guerra santa. A viração refrescava, fez vela a frota, maravilha de ver aquele mar coalhado de garbosas naus, galés, barcas e barinéis bem guarnecidos e carregados de gente de armas, e navegou em escala em direito de Hispânia, fez sair em terra algumas tropas nos portos de Tarifa e Algeciras e seguiu costeando com outros contingentes até Almería, onde desembarcou.

Aguarda algum tempo em Granada a travessia de todo o exército e a chegada do esquadrão andaluz, quando lhe chega a notícia do falecimento do imperador Alfonso.

- Emir - disse-lhe o grão-vizir -, será agora boa ocasião de atacardes. Por Allâh! Ou me engano muito, ou os poderosos do reino de Leão vão entrar em lutas internas.

- Também assim penso.

Outras notícias lhe chegavam. Os mouros de Sintra haviam-se rebelado e o conde Henrique logo acudira com um corpo de tropas comandadas pelo cavaleiro Gonçalo Mendes e abafaram a rebelião.

- Não perdem pela demora... - disse.

Caminhou para Córdova, onde ultimou os preparativos e, pela madrugada de doze de agosto, estendia-se o exército pelo aprazível vale de formosos bosques e terras de semeadura à vista de Talavera. Ouviu o tropel da cavalaria o sacristão da igreja de Santiago e logo corre ao campanário a tanger os sinos. Na povoação exterior aos muros, levantam-se homens e mulheres em alvoroço, das janelas uns aos outros trocam sobressaltos:

- Que é?

- Que aconteceu?

- É fogo?

- São os mouros! São os mouros! -Ai, gente!

Ditos, choros, ais, as mães com os filhinhos nos braços, os velhos meneando as cabeças, começa de se gerar grande rumor por toda a cidade. Caminhava-se para a igreja com candeias acesas, a ouvir missa, a rezar, clamando a Deus, com muitas lágrimas, lhes acuda, por se verem postos em desaventura, os corações cuidosos da peleja que lá vinha.

Em orações e prantos gastam parte da noite até de manhã, ou a preparar-se contra o inimigo. No lusco-fusco do amanhecer, olham do alto o exército inimigo a atravessar o rio a vau e invocavam a Deus, à Virgem, ao precioso Santiago, seu capitão e ajudador.

O comandante da guarnição cristã envia estafeta a Toledo a avisar e a pedir auxílio. Daí correm mensagens a Madrid e Alcalá e às povoações vizinhas. Por montes e vales repicam os sinos a rebate.

As mulheres, com os filhos, e os idosos inválidos são mandados para dentro das muralhas, os mancebos e os homens válidos com a guarnição militar preparam-se para se defenderem.

No dia seguinte, sexta-feira, os Almorávidas, atacam e acende-se forte e rija peleja. Golpes nem forças, apupos nem alaridos têm medida de uma parte e de outra. Os Castelhanos resistem, fortificam-se dentro das muralhas. No ponto em que o Tejo aborda a cidade, é a água do rio retida por açude de troncos de árvores. Incendeia-os o inimigo arremessando-lhes pelo ar setas com mechas ardentes de estopa embebida em pez e enxofre. A represa rebenta e a caudalosa enxurrada de lama e calhaus rasga uma aberta nas muralhas.

- Sus, sus, rapazes! - grita Ibn Hamdín, cádi da mesquita de Córdova. -Abramos as portas da fortaleza! - e leva atrás de si um magote de mouros que correm a abrir os pesados portais. Sábado, catorze, Talavera é entrada. Como vento, irrompem a cavalo os Muçulmanos, brandindo os alfanges, atiram archotes acesos pelas janelas dentro a pegar fogo às casas. Sangrento é o massacre, muitos os cativados, rico o esbulho. Os habitantes mudéjares são poupados. Mas um mouro, velho e magro, à porta de sua casa em chamas, vocifera sua zanga à voragem de sarracenos que perpassa e estrondeia como tempestade:

- Por Allâh! Pegam-me fogo à casa! Eu sou árabe... - e sentava-se desolado, na soleira de uma porta, a lamuriar-se: - Desgraça a minha! Meus olhos retêm ainda outras imagens iguais a estas... De quando aqui entraram os cristãos de Alfonso sexto a fazer o mesmo. Agora são os meus irmãos que me desgraçam...

Alguns cristãos refugiam-se na alcáçova até ao cair da noite. Então, pela calada e na escuridão, os rostos cobertos de véus, os mais lestos deslizam pelas águas da ribeira, fogem outros a cavalo, perseguidos pelos árabes e capturados. Senhores da povoação, dão-se os invasores à pilhagem: dos estábulos, dos aidos, dos redis tocam manadas e rebanhos, das cavalariças, afora os cavalos e mulas colhidos no campo de luta, tiram os animais, dos celeiros carregam carroças com sacos de cereais, levam consigo armas e vestuário, a prata e o ouro. De cortar a alma a partilha dos cativos: o homem separado da esposa, os filhos arrancados ao seio da mãe em meio de choros e gritos, as donzelas violadas e apresentadas nuas aos compradores de escravos. Devastam a igreja de Santiago, espalham pelo chão as sagradas espécies, roubam-lhe as alfaias sagradas, o bronze dos sinos, purificam-na e devolvem-na ao seu culto.

- Era mesquita - razoava o velho mudéjar -, vieram os Cristãos, purificaram-na e dela fizeram igreja, transformado em campanário o minarete. Agora, purificam-na os da minha raça, emouqueceram o campanário e cegaram-no de suas campas, aqueles buracos vazios, negros a espreitarem lá de cima a cidade e, tornado de novo minarete, vinda de lá a voz do muezim a gritar ao povo o seu sala.

Encorajado pelo êxito da acção, o emir dos Muçulmanos, depois de munir Talavera de uma guarnição de cavaleiros, peões e archeiros, comandados por um caide almorávida, caminha para Toledo, a empreender algara sobre a cidade, aonde chega na terça-feira. Arma acampamento e, por três dias, quinta, sexta e sábado, fustiga a cidade com incursões e escaramuças, já a maior parte do exército, por mor do custo de vidas, do número de feridos e escassez de mantimentos, se havia posto em marcha de regresso a Córdova, pelo caminho tomando ainda o castelo de Canales.

Valente a defesa dos Cristãos. Era de ver o arcebispo Bernardo com os seus cónegos a defenderem, como simples guerreiros, a grande torre dos abades e a rechaçar os intrusos...

Desde meados de julho até que se retira, havia durado quarenta dias a expedição.

- Aniquilámos - dizia Ali aos do seu conselho, em Granada - qualquer veleidade de Castela. Com uma mulher por chefe, vão perder-se em lutas intestinas, de ambições pessoais. Já não têm qualquer poder de iniciativa. A hora é nossa. Santarém e Sintra cairão em breve...

Em Leão, a rainha Urraca, urgida pelos senhores castelhanos que lhe traziam as novas assustadoras da perda de Talavera e do ataque a Toledo, concordava finalmente em que fazia falta um príncipe guerreiro, braço forte...

- ... um batalhador - sugeria um conde -, vosso primo, o rei Alfonso de Aragão...

- É guerreiro valente. Ainda não há muito conquistou parte do território de Saragoça... - concordava outro.

Calados estavam ali os condes Gomes Gonçalves e Pedro de Lara, ambos amorosos da rainha e esperançados em subir ao trono pelo casamento com ela. Sabia-se na corte das suas pretensões e era fama, nas bocas do povo, que ambos, ou pelo menos um, eram amantes de Urraca. Opunham-se, é bem de ver, ao casamento com Alfonso de Aragão.

Urraca era arisca, indomável. Olhava para eles, que ali, diante dos outros áulicos, não se atreviam a adoçar para ela o olhar de carneiro mal morto, e dizia:

- Eu não preciso de muletas de homem. Sei muito bem governar e governar-me sozinha. Não queirais experimentar a minha determinação.

Teimavam em vir à estacada os cortesãos castelhanos:

- É o que se vê. Agora foi Talavera e ameaçaram Toledo. Não tarda, enquanto a leste atacarem Saragoça, a oeste Abi Bakr invista contra Santarém, Sintra, que, mal soube do falecimento do imperador vosso pai, se rebelou e o conde Henrique teve de acudir à pressa a abafar a rebelião, por este andar ameacem Coimbra e sabe-se lá que mais...

- Senhora: acrescentava outro - não é teimosia nossa que vos caseis, mas ponderai: Alfonso primeiro de Aragão é aliança poderosa. Assim como contém os Mouros em Saragoça, forçosamente também os há-de manter em respeito no centro e a ocidente.

- Casamento, então, será inútil - respondia a rainha. - Bastará aliança.

- Não há aliança como a do casamento. Para guerreiro tão possante como Alfonso, só os laços do matrimónio o atarão.

- Rainha - viu Urraca levantar-se, muito sisudo em seus cabelos brancos, o velho aio Pedro Ansúrez, a quem tanto devia e respeitava -, sabeis que vos conheço como a meu coração... desde menininha. Sabeis também que nunca vos enganei. Este momento é muito grave e eu não posso deixar de vos dar, por uma última vez, o meu parecer...

- Dizei, meu querido aio. Também sabeis como prezo sobremaneira o vosso conselho.

- Senhora minha, precisamos de um príncipe a quem possamos confiar a defesa da pátria e cujo nome e braço refreiem os ataques dos Sarracenos. Longe de mim apontar-vos caminho, mas, em minha humildade, só vejo, de momento, pelo valor e juventude, o rei Alfonso primeiro de Aragão.

Longos momentos esteve Urraca, muito séria, a olhar o ancião. Depois, fosse por cálculo político ou por outro qualquer impulso feminino que um pobre cronista não alcança desvendar, disse:

- Meu bom Pedro Ansúrez, tendes razão. Aceito casar com meu primo, o rei Alfonso. - Levantava-se:

- Meus senhores - disse, despedindo os conselheiros. Pelo outono da era de mil cento e quarenta e sete, casava-se

em Astorga com o rei de Aragão...

 

                                       Intermezo vigésimo segundo

Fomos ao lagar ver a faina do vinho novo. Todo o setembro gemeram pelos caminhos, sendas e cangostas os carros de bois ajoujados de gigas cheias de cachos roxos e doirados. Ali iam eles agora, de sua vagarosa melopeia, enquanto caminhávamos. Cantavam rapazes de rostos tisnados, patilhas compridas e farfalhudas, aguilhadas nas mãos:

À vinha fui, à vindima, não achei que vindimar. Encontrei uma menina, com ela me vou casar.

Cantavam cachopas risonhas, de rostos corados sob as largas abas dos chapéus de palha:

À vinha fui, à vindima, não achei que vindimar. Vindimaram-me as costelas, que moço não fui achar.

Randulfo, de má catadura, embezerrado sabe-se lá com quê, nem dava conta. Digo-lhe:

- Pesa-te mais alguma coisa na consciência?

- Mais alguma? Lá estais vós, mestre, a insinuar...

- Não insinuo nada.

Não respondeu. Chegávamos. Numa grande dorna pisavam as uvas homens de bragas arregaçadas. No lagar, a prensa espremia os cachos e o sangue escorria da bica de pedra para o cântaro de barro. Havia cheiro a mosto no ar e voavam abelhas e pousavam a libar o mel.

- Vinho doce, meu senhor conegozinho? - chegava-se Imena com uma púcara cheia, enquanto Zoaira servia a Randulfo. Bebíamos sorrindo.

- Não bebas muito - ria-se. - Desarranja a barriga.

Era licor agradável e escorregava bem na goela. Uma tentação! Cheguei-me a uma mesinha que aí estava e pousei a púcara.

- Uma bucha de pão, a fazer lastro? - perguntava-me a moça, cortando uma fatia de sêmea.

O capataz aproximou-se:

- Bôs tardes, senhor cónego. Como vai Vossoria?

- Boas tardes, ti'Domingos. Deus o salve. Que tal a colheita?

- Boa colheita este ano, sim senhora, graças a Deus. Vamos ter boa pinga. As pipas vão abarrotar.

Apoiava eu um cotovelo à mesinha:

- Não se encoste Vossoria a essa mesa - disse ti'Domingos. - É manca. O sancristão, que aqui esteve um destes dias, creio que foi ele, derribou-a e pôs-lhe um calço. Não fiar.

Randulfo olhou distraído para o pé da mesa:

- Não lembraria ao Diabo. Calçar mesa com um livro... Zoaira apresentava-nos um prato de azeitonas. Todos nos

servimos.

- Com tanta abundância - continuava ti'Domingos -, o preço do vinho vai descer...

- E o vasilhame? Vai chegar?

- Já encomendei mais pipas ao tanoeiro.

Os homens despegavam. Lavavam as pernas numa tina de água, enxugavam-se e vestiam as calças. Um deles, moço bem apessoado, forte, o pastor João Longo de sua graça, chegava-se a Imena e Zoaira:

- Qual de vós me serve uma púcara e um naco de pão? -perguntava e era alvíssimo o sorriso dos seus dentes.

Olhei para Imena e Zoaira.

- Ora, pois não - enchia Imena uma púcara de vinho e Zoaira, dengosa, os olhos brilhantes, apresentava-lhe grosso naco de pão:

- Rapaz forte tem de comer bem...

Olhei para Randulfo... Randulfo olhava para mim... e, de súbito imaginei a testa de João Longo, a sangrar de uma inscrição talhada a fio de punhal... daí a dias...

 

                                             Guerras civis

- Lindo homem o senhor Dom Gonçalo - alçavam as moças a atenção da monda ao vê-lo à frente dos seus cavaleiros.

- Quem dirá estão ali uns sessenta anos! - botava suas contas uma quarentona. - Aquilo é que é homem! De uma tempera... Tão bom na espada como...

Risota pegada, titilação das moças:

- Vossemecê lá sabe, tia Angelina.

A cavalgada passava e as raparigas especavam-se, os olhos sonhadores, a vê-los desaparecer na dobra do caminho... Viera Gonçalo a Águas-Santas visitar Buthayna.

- Vejo-te tão pouco! - recebia-o saudosa a princesa.

- Vida de cabo-de-guerra. Não há muito ainda, tivemos de acudir a Sintra. Agora há sinais de ameaças maiores lá para sul.

- Os Lantunitas?

- Os Lantunitas.

- Não sossegam. Soleima contou-me que o emir Ali tomara todas as terras de minha irmã Zaida e agora Talavera, que o general Abi Bakr anda ocupado a submeter os emires do Gharb, demasiado soltos de sujeição, Beja, Évora, Badalhouce...

- É isso verdade. Acabada a tarefa, verás que logo atacarão Santarém e outras cidades e castelos.

- Não te demoras, não é?

- Os teus Almorávidas não consentem.

- Meus? Os que mataram meu pai e desgraçaram a minha família?

- Mangava. Tornas-te ainda mais bonita, quando te zangas. Buthayna encostou a cabeça no ombro de Gonçalo:

- Vou ficar só outra vez. Os filhos cresceram e foram-se. O dever os chamou... Como o tempo fugiu! De repente, Belfadar já com dezoito anos e Belamiz com catorze... os meus meninos! Agora estão lá para Guimarães, pagens do conde Henrique. Parece que se preparam para ir a França na comitiva do conde...

- Com a morte do imperador Alfonso, é agora rainha a princesa Urraca...

- Diz antes o rei de Aragão. Não casou ela com ele? Não se mostra ele já senhor de Leão e Castela...?

- ... e da Galiza, mas a Galiza não o aceita. Em terras de cristãos vai uma tal barafunda! O clero e parte da nobreza acham inválido esse casamento. E têm razão: é grau de parentesco proibido, que Urraca e Alfonso são primos em segundo grau. O papa decretou a nulidade. Arrogante e prepotente, o aragonês resiste. Colocou à frente dos principais castelos alcaides da sua confiança. Destituiu os bispos que lhe puseram reservas ao casamento... olha, o de Toledo, Dom Bernardo, é um deles... e agora prepara-se para invadir a Galiza, onde o conde Pedro Froilaz de Trava se alçou a favor do príncipe Alfonso Raimúndez que considera o legítimo herdeiro da coroa...

- E o conde Henrique?

- O conde Henrique também ele julga que o poder lhe deve tocar a si. Tem altas ambições e, se bem o conheço não se vai deixar manietado. Temperamento e estirpe pedem-lhe acção. Não aceita ser apenas senhor de um pequeno condado sujeito. Daí o seu projecto de ir a França recrutar forças para enfrentar os adversários...

- E tu?

- Vou a Guimarães, de onde partirei para norte na comitiva da infante Tareja, que vai juntar-se ao marido...

Buthayna olhou-o nos olhos e repetiu:

- Vou ficar só outra vez... Todos os outonos vejo partir as andorinhas para o sul, para as terras quentes do Gharb. Todas as primaveras as vejo chegar e o meu coração rejubila. Poucas vezes te vejo chegar... Sabes? Já tenho um cabelo branco... - e mostrava, na linda, ondeada cabeleira negra, um fio de prata...

Gonçalo riu-se:

- Estás velhota... com trinta e nove anos.

Era o rei Alfonso primeiro de Aragão alto, encorpado, largo de ombros e arca do peito, pernas longas, cabelo ondado, olhos garços, nariz grosso, não muito comprido, rosto sanguíneo, bigode e barba castanhos, no fio dos lábios uma prega de crueza a contrastar com o soqueixo papudo que o diria bondadoso.

Casados Urraca e Alfonso, logo que ficaram sós no aposento conjugal, a rainha experimentou o ímpeto do marido. Ele não esperou que ela se amanhasse. Arremeteu-a...

- Espera, cabrón! - disse ela desabrida.

- Cabrona eres tu - respondia e apanhava-lhe o corpete com a mão e rompia-lho, desnudando-lhe os seios.

- Bruto!

Rasga-lhe as saias, atira-a ao chão, ao tapete, cai sobre ela, que também se vai tornando selvagem. Parecem dois animais com zelo. O macho bate-lhe, dá-lhe bofetadas, palmadas nas nádegas, murros por todo o corpo, empuxões dos cabelos. Ela grita de dor e de prazer e ambos proferem impropérios, pragas e palavras soezes :

- Toma, perra cachonda! Trágatela entera, zorra!

- Hijo de puta, me la has clavado en seco! Me machacas. Mira que soi una reina.

- Una reina? Nunca te olvide quién es aqui el jefe!

- Dame mas, tio!

Tão alto berravam, que por todo o palácio a criadagem na cozinha e na copa, o mordomo em seu gabinete, pagens e criados em suas oficinas e lojas, paravam escandalizados, entre risos maliciosos e receoso espanto...

Quando, cansados, se desenlaçaram e deslassavam, Alfonso, ainda ofegante, olhando o tecto, disse:

- Não consinto, digo-te. Não vou agora consentir que cristãos me venham amputar o reino.

- Não é bem assim. Meu pai...

- Avançaremos sobre a Galiza e daremos uma lição a esses senhores que pretendem, sob a bandeira do príncipe teu filho, tornar-se independentes.

- ... meu pai, antes de falecer, dispôs que a Galiza ficaria para o neto, se eu casasse segunda vez. Casei e...

- ... ficaria para ele, mas não como reino independente...

- Froilaz de Trava e os magnates galegos têm exército potente. Não vai ser fácil vencê-los.

- As minhas tropas mais as tuas são-lhes superiores. Entre os nobres galegos há dissenções. Muitos deles formam liga adversa...

- O arcebispo, por exemplo.

- Aproveitemos estas circunstâncias.

- Pois então demos-lhes a tal lição - disse Urraca levantando-se, ainda descomposta mas desenvolta. - Preciso de tempo para reunir a minha gente.

No princípio do verão de mil cento e quarenta e oito, Alfonso e Urraca invadiram a Galiza. De Astorga, seguiram por Camino e Ponferrada, Bierzo, Triacastela, pelas portelas das montanhas do Cebrero, que alguns cronistas chamam as Fauces ou os Alpes da Galécia, e vão encontrar resistência em Monterroso, junto à ponte Pedrina.

Foi horrendo o recontro e a natureza ferina do Batalhador veio ao de cima. As bochechas da cara vermelhas, inchadas de ira, até lhe os olhos lançavam chispas de inferno. Não cevava ódio e ferocidade apenas nos guerreiros que se lhe opunham. Crianças, mulheres, velhos tudo estraçalhava com seu montante e, já caídos por terra e moribundos ou mortos, bramindo ainda os feria como enlouquecido pela visão do sangue derramado.

Urraca nunca havia presenciado tal crueldade e ficou horrorizada. Mais horrorizada, quando o cavaleiro Pedro, que ela bem conhecia, ante a morte de seus companheiros de luta ajoelhou a seus pés implorante:

- Senhora, por quem sois! Poupai-me a vida! Lembrai-vos de alguns serviços que vos prestei algumas vezes e perdoai-me. Não me deixeis morrer.

Pendia a rainha a perdoar-lhe,

- Miserável! - avançou para o desgraçado o rei Alfonso de espada em punho. - Morre, cão! - e arrumava-lhe um golpe pela testa, pelos narizes, pela boca, que logo lhe brotaram sangue a rodos. - Morre tinhoso! - e cortava-lhe uma e outra orelha. - Vai para o Inferno, fí de puta! - e escachava-lhe os peitos até o coração.

Nada respeitava a sua fúria: igrejas, mosteiros, paços senhoriais, casebres humildes, gado e produtos da terra. Pelo caminho, violava mulheres que encontrava e, se algum marido tinha arreganho de ira, logo o matava de sua própria mão.

Urraca, horrorizada ante a sanha e fereza do marido, afastou-se, apontando-lhe o dedo ameaçador:

- Maldito! Agora sei quem tu és. Vai-te! Não te quero mais - e, saindo, chamou os seus cavaleiros e homens de guerra e marchou açodada caminho de Leão.

Após três meses de resistência, o conde de Trava e os seus homens alcançam repelir o aragonês. Sem as tropas de Urraca, enfraquecido, resolve Alfonso retirar-se para Astorga. Mas os de Astorga fazem-lhe frente. Não se atreva a entrar na cidade, intimam-no. Que outro remédio senão recolher às suas terras de Aragão.

Por esse tempo, o conde Henrique, movido de zelo de reinar, atravessou os Pirenéus em busca de recrutar homens, para fortalecer exército que lhe cobrisse a ambição de disputar o trono com sua cunhada Urraca, e deixa à infante Tareja, sua mulher, a regência do condado. Passados uns meses de por lá andar, chegam notícias do seu regresso. Gonçalo Mendes veio anunciar à condessa a chegada de um mensageiro:

- Parece, senhora, não ter sido muito próspera a viagem de vosso marido a França...

Em seus paços de Guimarães, sedia a infante, formosos trinta anos, coxim bordado a ouro na cadeira de espaldar de finas tauxias, a seus pés, deitados, um raio de sol que coava pela ampla janela aberta e um lindo galgo árabe de cor amarela. Em sua volta, alguns conselheiros, Soeiro Mendes, seu prepósito, e outros barões.

- Que novidades?

- Acaba de chegar um mensageiro. Aguarda que o recebais.

- Mandai-o entrar.

Veio o mensageiro à presença de Tareja:

- Os senhores de França - contava - não se fiaram, parece, das intenções do conde vosso marido...

- Desconfiaram dele?

- ... Entrar assim, com tão aguerrida comitiva de cavaleiros, pelas suas terras adentro, tomando gado e pão das searas para se alimentarem... Então prenderam-no.

- Prenderam-no? Meu marido está preso em França?

- Creio pensavam vir ele com menção de assaltar poder... mas já o soltaram.

- Desfez ele o engano certamente...

- Os parentes de Cluny intervieram e ele foi posto em liberdade e enviado em paz.

- Enviado?

- Digamos que, de algum jeito, lhe deram a entender ser melhor regressar a de onde viera.

- Anuncias-me que está prestes a chegar?

- Não, senhora. Ao passar por Aragão fez liança com o rei Alfonso. Ajudou-o a vencer os Mouros na batalha de Valtierra e agora os dois exércitos marcham contra a rainha Urraca vossa irmã.

Soeiro Mendes interveio:

- Fina jogada do conde Henrique: faz aliança, para esconder a sua traça de tomar ele as rédeas de Leão e Castela. Alia-se ao aragonês, aproveita o auxílio guerreiro...

- ... para, conquistados Leão e Castela -, acrescenta Gonçalo Mendes - partilharem entre si esses territórios...

- ... até ver... - cismava a condessa Tareja.

- Tendes razão, senhora - disse Gonçalo Mendes. - Essa trama que o conde Henrique anda a tecer é uma intrincada destreza de enxadrez. Todos sabemos como é difícil este jogo de finos e bem elaborados enredos. Assisti, um dia, a um entre o vosso pai, que Deus haja, e o malogrado vizir de Sevilha Ibn Ammar. Em vez de seus exércitos combaterem pela posse de Córdova, sentaram-se frente a frente os dois chefes a jogar a sorte da cidade. Vosso pai perdeu e retirou-se para Toledo... O lance que o conde Henrique está a manejar é, quanto a mim...

- Conheço-lhe as ambições.

- ... lanço subtil...

- Precisa é de tomar cuidado não lhe saiam errados os cálculos.

- Já reparastes como os trebelhos se movimentam no tabuleiro de escaque para escaque? Todos se vão inquietando, menos um.

- Menos um?

- Muito sô color de quem não é mais que sujeito e aliado, o conde Henrique rodeia de largo a desviar as atenções: Aragão, Castela, Leão, Galiza... Ninguém atenta, nem muitos de nós, no pequeno condado portucalense... mas ou eu me engano muito ou está aqui a nascer, sem eles se darem conta, um novo reino. Assim nós o saibamos estender para sul, à custa dos Sarracenos...

- ... e para leste...

- Creio ser este o secreto desígnio do conde vosso marido...

Todos ficaram longo tempo calados, ensimesmados, a fantasiar... A tarde caía... o raio de sol e o galgo levantaram-se dos pés de rainha Tareja...

 

                              Intermezo vigésimo terceiro

Três noites há, aquele sonho me persegue, mas foi nesta última que ele se me tornou mais nítido e angustiante.

Mulheres nuas dentro de uma dorna pisavam uvas eram velhas desdentadas e riam de bêbadas João Longo de bragas riscava com a ponta de uma faca descomunal a barriga de Imena e Zoaira gritava sentada na mesa manca Randulfo deitado de papo pró ar a bica de pedra escorria-lhe vinho sangue letras de triângulo pela goela aberta Gonçalo Mendes galopava um camelo por cima das pedras aguçadas das ameias do castelo e com a espada cortava ao passar a perna da mesa e logo acorria o sacristão pousava a cruz alçada a caldeirinha e o hissope no chão e calçava a mesa com um livro enorme de capas de couro Randulfo sentado à secretária folheava a mesa e o livro de onde saíam triângulos a bater as asas que gotejavam sangue e vinho e se sentavam a ouvir o prior Armirigo a pregar do alto do púlpito o sermão do Triângulo Padre Filho Espírito Santo amém senhor conegozinho senhor conegozinho meu rico gritavam lá muito ao fundo e as mãos estendidas tentavam agarrar-me que eu ia a cair a cair a cair por um pego sem fundo que se abria debaixo debaixo debaixo e eu queria gritar e a voz não me saía e eu estrebuchava com falta de ar queria gritar aflito e continuava a cair a afundar-me a afundar-me a afundar-me...

- Acorda, homem de Deus! Acorda! - sacode-me Imena a meu lado na cama. - Credo, meu querido, que aflição! - e acaricia-me e beija-me. - Pronto! Pronto! Já passou. Encosta a cabecinha no meu ombro...

De manhã, quando me levantei, procurei rever o sonho, já muito delido, mas a imagem do livro era insistente. Ao sair para o trabalho, passei pelo lagar. Fui junto da mesinha manca. Tinha uma pedra a calçá-la...

 

                                                    Mexericos e embrulhadas

- Julgam-se deuses? - ia rezingando, em sua mula, o mongezinho cartuxo, rosto imberbe e pálido, lua-cheia na negrura do hábito.

Por montes e vales, sombras de bosques, frescura de rios, a infante Tareja, trinta anos formosos, galopa com seus cavaleiros, caminho de Astorga.

- Usam does e púrpura - continuava o fradezinho -, bastão, coroa, insígnias no escudo, orgulhosos de sua ascendência os filhos de Adão...

- Cala-te, frade - disse-lhe Gonçalo Mendes. - Pensas que já és bispo pregador? Que tens que estar sempre a desfiar tuas arengas? Devias era cingir espada. Não é com ela que se sustenta a realeza de teus senhores?

- Dizeis bem, Dom Gonçalo - replicava o monge. - Espada os sustenta, aos deuses de pés de barro... mas a minha espada é a palavra de Deus.

- Calai-me essa raela - ordenava Tareja.

Bem sabia a infante ser frágil o tecido da sua excelência, estar-lhe a ambição real pendente da espada dos barões e magnates, dos braços desta sua comitiva armada que a protegia das feras dessas montanhas, dos malfeitores de brejos e caminhos, da ambição dos inimigos... força, poder, até a razão, morarem no fio da espada, na ponta dos punhais... E porque não na gota ou pitada de veneno? - não ousaram seus lábios modelar a enormidade do que lhe saltara à ideia...

Gonçalo mandou o frade calar-se e, ao lado de Tareja, ia julgando, em seu íntimo, haver alguma verdade nas palavras dele. Sim, sim. A espada do guerreiro sustentava os deuses. Que outra coisa era a guerra santa dos Árabes, as cruzadas dos Cristãos? E os reis, os califas, os emires, condes, barões e magnates... Quem os sustentava? A espada do guerreiro... Em nós confiam a sua soberania, em nosso braço, no nosso sangue...

Caminharam por Zamora, rumo a Penafiel. Eram um pequeno exército. Tareja, quando se cansava de cavalgar ou quando chovia, recolhia à carroça coberta, aos bancos almofadados de coxins que amorteciam os solavancos das estradas. Jornada longa, às vezes deixava-se dormitar. Ao cair de cada noite, os serviçais, oficiais do ofício, armavam acampamento e começava a lida de acender a fogueira para a ceia, a rodar no espeto o boi trazido com a carriagem, o cervo do monte ou o javali caçados pelos monteiros, a lebre, o pato apanhado pelos falcões adestrados. E bebia-se do vinho que aquecia o tutano dos corpos e das almas.

O Douro era a grande linha que os guiava. Pouca conversa, que respeitavam o silêncio meditativo da infante. Mas, breve, burburinho diferente veio ensurdecer os monólogos interiores. Durante a jornada, nas pousadas, nas povoações, nas aposentadorias dos senhores, por toda a Hispânia, não se falava de outra coisa, fervia o mexerico, o escândalo. Até os monges, no retiro e mudez da ordem, se lhes chegavam ecos do que lá fora acontecia, pecavam por pensamentos sem palavras nem obras...

- Vai de maré o cachondeio! - bichanavam as comadres, enquanto, na soleira dos casebres, catavam os filhos, ou na ribeira lavavam roupa e a punham a corar ao sol.

-Ai, mulher! Ele são os condes, o rei...

- Que dizem elas? - perguntava Tareja.

- Vossa irmã Urraca, senhora, dá pasto às más-línguas - respondia Gonçalo Mendes.

Falavam donas e donzelas, na intimidade, enquanto bordavam seus sirgos, e pelos vergéis dos paços em gralhada desfeita.

- Não, não, minhas filhas. Não me refiro aos amorosos que enxameiam em redor da rainha Urraca. Eu bem sei que o conde Gomes Gonçalves...

- ... e o conde Pedro de Lara...

- ... e sabe-se lá quantos mais...

- O que é maior escândalo é a rainha andar para trás e para diante, sem rumo. Ora está contra os que apoiam o filho e a favor do aragonês, ora contra o aragonês e a favor do filho...

- Dona, mas a rainha também nos amores é indecisa.

- Indecisa? Chamas àquilo indecisão? Determinação é o que é. Não acabaste de ouvir o que disse o senhor Dom Gonçalo? De indecisa não tem ela nada. Sabe muito bem o que quer, na governação como nos amores...

- ... dos braços de uns para os braços dos outros... enredos, contradições...

- ... tempestades ...

- ... atraiçoando este e mais aquele...

- Não é traição, afianço-vos.

- Então que é?

- Aproveitamento, cálculo. A rainha é inteligente. Impetuosa, sobranceira? Sim e atormentada. Ao cabo, vereis, será ela a vencedora.

- Não sei. Será antes vítima.

Tareja apanhava no ar estes pedaços de atoardas e enredos chocalhados, que sabia, embora confusos e mesclados, terem algum fundamento, e calava-os dentro de si. Uma tarde de março, esbarrondavam-se dos céus os açudes das nuvens, aposentada numa albergaria da serra, ouviu a um velho peregrino que aí se acolhera a aquecer-se à grande lareira da sala de hóspedes, da grave desavença que rebentara entre a rainha e o rei de Aragão seu marido.

- Eh! - dizia ele, tirando a capa e o chapéu molhados e pendurando-os num arrocho da parede frente ao lume. - Chuva de neve. Tempo bom para arrefecer zangas e acalmar os calores da carne. Assim o aproveitem a rainha e o rei.

Tareja trocou um olhar com Gonçalo que, compreendendo-lhe a curiosidade, perguntou:

- Que têm a rainha e o rei com a tempestade, romeiro?

- Andam escaldados aqueles dois. O gelo os acalme!

- Explica-te, homem.

- Não sabeis da sova que o marido lhe deu?

- Quê? Ele atreveu-se? - perguntou Tareja.

- Espancou-a, depois de... -Ah!

- ... e acabou por a prender lá para as ribas do Ebro, em Castelar, e por aceitar o divórcio.

- E ela...?

- Conseguiu fugir. Enviou mensageiro à Galiza, a recordar a Pedro Froilaz as disposições do rei seu pai, pouco antes de falecer, acerca do neto: que, no caso de Urraca casar em segundas núpcias, o que aconteceu, o principezinho Alfonso Raimúndez seria senhor da Galiza. Viessem a Leão coroar o príncipe... Puseram-se eles a caminho e Urraca manda recado a seu cunhado Henrique acenando-lhe com larga concessão de território e chama o seu fiel e velho aio Pedro Ansúrez e os condes Gomes Gonçalves e Pedro de Lara e os senhores leoneses e castelhanos que se não haviam bandeado com o usurpador, levanta-se em pé de guerra contra o marido, que tomara Toledo e outras cidades. Em outubro fere-se a batalha de Candespina. As forças aliadas de Alfonso de Aragão e do conde Henrique são mais fortes. O Lara foge no início do combate e Gonçalves morre

na luta, a rainha é derrotada. Os vencedores, transposto o Douro, invadem território leonês...

- E depois?

- Uma embrulhada, senhora.

- Uma embrulhada, dizeis?

- Embrulhada que, dia a dia, semana a semana, mês a mês, os protagonistas da história, sobretudo a rainha Urraca, vão tecendo. Venho respeitando o relato consoante mo comunicou um velho escrivão do cenóbio de Sahagún.

- Conheço esses acontecimentos - disse a condessa - e que o bispo achou meio de se libertar e acabou por unir os desavindos. Uma embrulhada. Como dizeis.

- Embrulhada maior ainda, quando os nobres castelhanos buscaram conciliar os dois esposos...

- Alcançaram?

- Temiam as consequências da separação. Alfonso de Aragão tinha em mãos de alcaides de sua confiança as principais fortalezas de Castela. Conseguiram congraçá-los. Então Pedro Froilaz de Trava tirou-se de cuidados e foi aonde Henrique. Ante a reconciliação do rei aragonês com a rainha Urraca, inTerdito não quer Henrique comprometer-se: aconselha-o a continuar a revolução a favor do príncipe.

- Froilaz veio de lá logrado.

- Mais decidido que nunca a prosseguir. Não previa que de novo Urraca se desaviesse com o rei. Chegado à Galiza, manda prender os partidários de Alfonso de Aragão. Rebenta a guerra civil na Galiza. Os partidários de Urraca e Alfonso, a que dera sua adesão o bispo Gelmírez, prendem em Santa Maria de Castrelo a condessa de Trava, que aí se acolhera mais o príncipe, e também o Gelmírez...

- Diego Gelmírez?

- Entrementes, havia tomado a parte do príncipe. Eu não disse que era uma embrulhada? Andam todos a boiar.

- Continuai - disse Tareja. E o romeiro continuava.

- Vinham lá, a caminho de Leão os barões galegos, à frente deles o bispo Diego Gelmírez com o príncipe Alfonso Raimúndez, para o alçarem rei, aparece-lhes pela frente, entre Astorga e Leão, o aragonês, que os vence no lugar de Viadangos. Mais uma vez melindrosa era a situação dos senhores galegos. Serem vencidos pelo aragonês e verem Urraca, além de não ter palavra, não nutrir o menor amor pelo filho... Mas mais um golpe de vento lhes desgrenhou o pensar e o sentir aos dois esposos: Urraca, sempre altiva, imperial mesmo, havemos de convir, em seu porte de rainha, e - perdoai-me, senhora, se sou atrevido - leviana no que diz respeito aos amores...

- Adiante.

- ... acaba por causar a separação, que ambos dizem definitiva... mas não acredito. Gelmírez envia o príncipe para não sei bem dizer onde, senhora, se Orsillón se Monzón, onde se encontrava Urraca, e retira-se com os restos das suas tropas para Astorga.

- Será a vez - disse Gonçalo Mendes - de o conde Henrique se determinar.

- Sim. Vieram a Henrique fidalgos castelhanos. Fora feio, diziam, haver-se ele aliado ao inimigo. Apartasse-se do aragonês e juntasse-se a eles. Fá-lo-iam general dos exércitos e levariam a rainha a repartir irmãmente com ele dos territórios de seus estados. Lembrasse-se, evocavam alguns, da antiga amizade. Não se recordava de quando, juntos, lutaram em Alagón, em Toledo, em tantos outros combates?...

- E Henrique? - perguntava Tareja.

- Moveu-se a estas censuras, promessas, lembranças. Partiu de Sepúlveda, pretextando negócios urgentes em seu condado e veio ao castelo de Monzón, onde sediava a rainha.

Recebeu-o Urraca como se nada houvera entre eles senão paz e concórdia:

- Não há razão, conde, para nos inimizarmos. Não somos como irmãos? Não são comuns nossos interesses?

-Assim penso, senhora. Cunhada é como irmã... mas sabeis que há razões de estado...

E o romeiro, que era gracioso e um tanto dado a bufonarias, mimava na voz o que ele pensava serem as falas solenes de rainha e conde:

- Sim, sim, sim. Sei tudo isso e estou disposta a confirmar-vos as promessas que vos fizeram os barões meus parciais.

- Também vós mas tínheis feito - acoimava-a Henrique -, mas não foram cumpridas.

- Emendaremos isso a seu tempo. Agora aperta é que, ambos, unidos...

- Serei vosso aliado. Tendes a minha palavra. Assim mantenhais vós a vossa.

Urraca não respondeu ao remoque senão com leve aceno da cabeça e continuou:

- ... urge que expulsemos dos nossos territórios o usurpador. Partirei para a Galiza a reunir forças.

- Ajuntarei meus homens de armas. Aonde nos encaminharemos?

- Ide ter a Astorga. Lá nos agruparemos. Preparai-vos para comandardes os exércitos.

Aliados, ambos se preparam para ir contra o aragonês. Confiara Urraca o príncipe seu filho a cavaleiros de confiança, partiu caminho da Galiza. Ia brava a invernia de neve e vento na cordilheira cantábrica. Caía a neve em surdo rumor que abafava a pateada dos cavalos. Uivava o vento no arvoredo castigado...

- De susto, senhora!

... uivavam pelos tesos desolados alcateias famintas, de pôr os cabelos em pé...

- Eu conheço bem a rota jacobeia, senhora, a serra de Marranco, os montes de Ancares, altíssimas montanhas, desfiladeiros e pegos de inferno, de fazer andar a cabeça à roda e doerem as barrigas das pernas, as medonhas angusturas do Valcarce, a temerosa portela do Cebrero, caminho real para Compostela, cerros escarpados, a via romana que de Astorga se dirige para Lugo, um sem-fim de rodeios ...

Por aí botara a corajosa rainha. Na primavera seguinte, regressava com as tropas da Galiza. Mandou mensageiros às Astúrias, a Castela, a Leão, marchassem todos os partidários com suas tropas a reunir-se-lhe em Astorga.

Alfonso de Aragão não ficara parado. Engrossara o exército com vários socorros, chama de Aragão novas tropas e marcha a cercar Astorga. Vinha o reforço de cavaleiros aragoneses, são salteados pelos castelhanos que os destroçam. Sem esse auxílio, Alfonso levanta o cerco e acolhe-se ao castelo de Penafiel.

- Para lá caminhamos a juntarmo-nos ao conde Henrique que com a rainha lhe pôs cerco - interveio Gonçalo Mendes.

- Já não falta muito, que estamos perto - disse o romeiro. - Convém-me então ir andando. Estou a caminho de Santiago e já muito desviei eu minha jornada pelo sul, a fugir destas guerras que a rainha Urraca anda mantendo ora com uns ora com outros.

A infante Tareja ia ouvindo e guardando no cálculo do seu coração os mais secretos desígnios. Como percebia a manobra do marido! Também ele, como a irmã, fazia o seu jogo. Houve por bem despedir o informador:

- Obrigada, romeiro. Falai com o meu arinteiro. Ele vos dará esmola conveniente.

- Não preciso de nada senhora. Deus vos acompanhe. Pelos mosteiros das montanhas vou granjeando pão e dormida.

 

                                             Intermezo vigésimo quarto

- Tu não vês que ando ocupado? o ror de tempo que me levou, dias, semanas, a desanuviar este capítulo da minha crónica? a acertar o desacerto das sequências temporais, dos encontros e desencontros das pessoas, que parecem estar aqui e estão ali, neste momento desta era e naqueloutro da era seguinte?... E vens-me com essa aleivosa acusação?

Mostrava-me furioso com Randulfo. Arremessara a pena com gesto brusco, levantara-se da bancada e veio direito a mim de indicador espetado:

- Fostes vós, mestre, fostes vós. Agora sei de certeza certa. Primeiro que eu entendesse a que se referia, levei tempo.

Eu estava num outro mundo que não o dele. Descer-daquelas neves da Cantábria até às nebulosas da cabeça de Randulfo... Quando finalmente consegui penetrar ao seu pequeno mundo, levantei-me iroso do meu assento, carreguei-lhe as manápulas nos ombros, como a querer estrangulá-lo, e regouguei-lhe nas trombas:

- Pois eu sei, ouve bem, sei que tu é que...

-Eu?

- ... não tarda muito, já te disse, te veja pendurado ao vento com o pescoço partido pelo laço e, a teus pés, no chão, uma poça de mijo.

Sem se deixar intimidar disse:

- Porque fingis, mestre? Olhai para a estante dos vossos códices.

Olhei para a estante e, atónito, aproximei-me. No seu lugar repousava o exemplar desaparecido do De signaturis de Osvaldo Balúzio. Peguei nele. Cheio de terra, bolorenta uma das bandas da capa, o couro embebido do vinho azedo entornado no chão do lagar.

- Foste então tu que o tiraste de debaixo da mesa manca! - virei-me para o meu ajudante.

- Eu? Que ideia. Levantei os olhos para a estante e, com grande espanto meu, dou com o livro aí pousado.

- Então... se não foste tu... De que me acusavas ainda há pouco?

- De terdes sido vós quem o colocou aí.

- Não, não fui.

- Não mintais, mestre. Só eu e vós temos a chave do scriptorium. Demais, não me ensinastes, mestre, a ter lógica em meus pensamentos? Então... Olhai: mortes, livro que é vosso, mesa manca... Não é fácil a ligação dos factos?

De repente fez-se luz na minha cabeça. Porque me não havia já ocorrido? Lembrei-me daquela noite em que vi Randulfo a sair de casa e desaparecer no escuro, de ele ter negado ter saído... Era isso, era isso! Randulfo sofria de tardo...

 

                                       Saudades

A princesa Buthayna subiu ao alto do castelo a ver se descobria, ao longe, entre verdura negra de pinhais e azul do céu, a fímbria de prata e ouro do mar Oceano ou se, na teia dos caminhos, enxergava levantar-se a poeira da cavalgada do esposo. Sente saudades dele e dos filhos. Sente saudades da pátria, da sua Silves e do Arade, da sua Sevilha e do Guadalquivir, saudades dos pais, dos irmãos, da sua doce língua. E, num imenso solilóquio, sua alma geme, de coração repartido, resíduos de versos dos seus dúlcidos poetas:

Sem parar indago os céus com os olhos em busca da estrela que estarás contemplando.

Interrogo os caminheiros de todas as terras na esperança de encontrar alguém que tenha estado contigo.

Sopram os ventos, aparo-os no rosto, a colher notícias tuas.

Pelos caminhos vagueio à espera de ouvir às raparigas uma canção que me recorde o teu nome.

Discreta perscruto os semblantes das pessoas que passam, em busca de achar algum traço do teu sorriso.

Batidas do vento, assemelham as searas esquadrões de cavalaria a fugirem derrotados diante da tua espada, que sangra feridas de papoilas.

Meu jardim florido, em que, donzela, passeei descuidosa, no pescoço a brilhar o colar de ouro, nas orelhas brincos de diamantes, o ar embalsamado de almíscar amassado com puríssima resina!

Nos ramos da laranjeira gorjeiam aves arroubos de avenas pastoris.

Escorre sem parar a água de fontes e repuxos. São trancelins de prata e pérolas caindo em fios cintilantes, tão perfeito esplendor de formosura como o belo da verdade ou o fulgor da fé.

Dizias-me - lembras-te? - que as estrelas do firmamento, admiradas da negrura dos meus olhos, julgando que eram o céu, vieram cair-me no rosto e aí as viste cintilar.

Não ando agora vestida de cabelos brancos? É a cor do luto em minha pátria andaluza. Visto de luto pela nossa juventude.

Um do outro afastados, de paixão por ti seco e mirrado trago o corpo, só lágrimas me não secam.

Perdendo-te, tornaram-se-me negros os dias.

Contigo, até as noites eram brancas, a nossa boa estrela fazia baixar os olhos dos curiosos.

Éramos, no seio das trevas, dois segredos, até a rosada língua da aurora vir denunciar-nos...

E meu pai, o aliado do orvalho?

O reino, sob a sua tolerante mão. era defendido por hostes de cristãos e árabes.

Despertou de mãos vazias para agarrar o nada... trocou a grandeza à sombra de estandartes pela humilhação de pesadas grilhetas.

Allâh se compadeça do frágil pássaro de asas quebradas...

E minha mãe?

Itimâd, doce é o teu nome, que ele, o rei, deixou escrito num poema.

E meus irmãos?

Chorou a rola aquela tarde...

Porque não hei-de eu chorar? Acaso é de pedra o meu coração?...

Dizei às estrelas que me tragam o pranto.

Juntas os choraremos a todos. Juntas seremos tristes...

E a princesa moura gemia e chorava suas saudades e os alaúdes dos pinhais gemiam com ela.

Na cozinha, Balbina, a aia fiel, as mãos se lhe suspenderam súbito ao gemer do vento:

-Ai, meu Deus! Que gemidos tão tristes, tão tristes, aiam os pinhais? E os cães, na cortinha, o focinho erguido para o céu a uivar... - e, deixando tudo, botou escada acima, subiu à alta torre aonde sua ama e deu com Buthayna em pranto lavada:

- Credo, senhora, que a vossa tristeza, as vossas saudades fazem chorar até os pinhais! Não choreis tão alto, não gemais tão mofina, se não ficarão a gemer aflitos pelos séculos fora...

Pobre viandante na estrada passava e pára assustado, assustado olha para a copa das árvores, Jesus! Santo Deus! desgrenhadas lá em cima, sem tino, a gemerem, gemerem de um triste gemido... Boieiros, pastores, asinha tocavam, aguilhavam, estugavam seu gado, caminho dos aidos.

Acorria Soleima, para quem a alma de sua senhora arcanos não tinha:

- Senhora! Que é isso? Que tamanha mágoa vos dói o coração, que até os pinheiros do bosque deram em gemer? Vinde, vinde comigo, que aqui anda aragem, anda bafo de trasgo, de espírito malino. Não vedes além sobre o mar o disco sangrento do Sol a esconder-se, a esconder-se, e a noite que sai e a Lua que brilha de gélida prata no escuro do céu?... - e solícitos ele mais Balbina a levavam pra baixo e a assentavam à quente lareira. Balbina saía, foi à sua lida. Soleima, de pé ante sua senhora, compassivo dizia:

- Saudades, não é? e muita solidão? Dar-vos-ei bebida de dormideira branca. Repousareis de um sono e logo vereis que vosso esposo não tarda em chegar...

 

                               Intermezo vigésimo quinto

- Mestre, os acontecimentos, a avançarem assim, ainda me apanham.

- Como te apanham?

- O mestre já traz a sua crónica em fins de mil cento e quarenta e nove que o mesmo é dizer no ano do nascimento de Cristo de mil cento e onze, isto é, a nove anos de eu ter nascido. Por este andar...

- Que há de estranho nisso? Não te tenho dito já que darei por findo o meu relato no ponto em que o iniciei, na era de mil cento e setenta e sete, ano da morte de Gonçalo Mendes?

- ...no ano de Cristo de mil cento e trinta e nove...

- É natural que o relato chegue até nós.

- Pois é isso. O que eu quero dizer é que, se há nove anos a princesa Buthayna era viva aqui perto de nós, no castelo de Águas-Santas, que é feito dela que dela não há sinais?

- A seu tempo o saberás. Por agora dedica-te mas é ao trabalho e vê não te distraias nem me distraias.

- Só mais uma coisa, mestre. -Diz.

- Não quererá o mestre examinar comigo o de Signaturis? Talvez o sabermos de antemão se algum daqueles sinais cabalísticos ainda falta ao punhal do assassino nos possa informar se ele tenciona matar mais alguém...

- Falas com conhecimento de causa? Há pouco mostravas receio de ser apanhado, sinal de que a consciência te está a remorder. Agora mostras-te enterrado até às orelhas nos funestos acontecimentos que referiste. Quando mal te precates, a justiça há-de fazer-se.

- Lá está o mestre a torcer. Sabeis o que vos digo? Na verdade nem é preciso consultar o códice. Bastará perguntar-vos a vós que o conheceis de cor e salteado. Falta ou não falta ainda algum sinal? Dizei, mestre - e Randulfo olhava-me com aquele olhar matreiro, logrador e escarmentado que eu tanto odiava...

 

                                                     Armadilha

- Quem vem lá? - bradou a sentinela. Adiantou-se em seu cavalo um jovem escudeiro:

- A altíssima rainha Tareja de Portucal, irmã da mui nobre rainha Urraca e mulher do egrégio conde Dom Henrique.

Logo se destacou um grupo de dois cavaleiros a escoltar Tareja e companhia a entrar no acampamento. Gonçalo Mendes primeiro ali avançou, desmontou a tomar a égua da rainha Tareja pela brida e solenemente caminhou em direcção ao pavilhão de Urraca.

- A rainha Tareja chegou, senhora - veio anunciar um arauto à rainha de Castela e Leão.

- Rainha? - estranhou irritada.

- Assim lhe chamam os seus e a respeitam como tal. Entrava na tenda real Tareja a saudar a irmã, parava Gonçalo

à porta a olhar dois pagens que aí guardavam a entrada e, ao vê-lo:

- Meu senhor pai - ajoelhava Belfadar, ajoelhava Belamiz, a solicitarem a bênção, e Gonçalo erguia-os e abraçava-os mais comovido do que cumpria a um duro guerreiro habituado a dar morte cruel em vez da mão a beijar. Belfadar, o filho de Azmed e da princesa, era parecido com o pai. Mas Belamiz, movia-se o coração a Gonçalo ao olhar-lhe o rosto e aqueles olhos escuros como água de cisterna:

- Ah rapaz! Em qualquer parte do mundo e da vida em que te encontrasse saberia que eras filho de Buthayna.

À noite, à ceia, a rainha falava:

- Por diuturno tempo dura o assédio.

- O castelo de Penafiel - respondia Henrique - é fortaleza de respeito e bem municiada.

Sentavam-se ao lado dela, além de Tareja e do cunhado, Gonçalo Mendes e outros barões, castelhanos, leoneses e galegos.

- Se o cerco se prolonga muito - dizia Urraca -, é como se nós fôssemos os sitiados e não os sitiadores. A gente e os animais precisam de comer... ou teremos de levantar o acampamento e abalar.

- Mais depressa terão os aragoneses escassez - dizia o conde. - Todas as manhãs saem esquadrões de cavaleiros e peões a saquear as redondezas. É vê-los chegar, pela tarde, a tanger manadas de gado, as carroças a abarrotar de pão, de vinho, de palha para os cavalos...

- Água temos cabonde, do rio e das ribeiras que a ele vêm.

- Necessário é tolhê-la ao inimigo.

- Exército que não vai a combate, que só come e bebe, fornica e rouba, começo a recear não crie vícios e perca disciplina...

Assolavam as aldeias das vizinhanças que, por medo, haviam acatado o domínio do aragonês. Aldeias de velhos, mulheres e crianças, que os homens válidos e os mancebos haviam sido levados à força para o exército. O povo miúdo gritava o seu desespero:

- Pensávamos viessem libertar-nos - lamentava um velho - e, afinal vêm roubar-nos, violar-nos as mulheres e as cachopas, enforcar quem lhes resista...

Mal ouviam ao longe o tropel de cavalos e soldados, saíam dos casebres a gritar alarme...

- Fugide, gentes, fugide, que eles vêm lá!

... e corriam sem saber para onde, desatinados. Dois barcos que havia no Douro partiam carregados para a outra banda e não voltavam, que logo o egoísmo humano, sem piedade por irmãos, os alagava para não servirem ao inimigo. Donas e donzelas eram agarradas pela soldadesca, os filhos espavoridos escapavam-se perdidos das mães. Velhos estropiados, sem poder fugir pelos caminhos e esconder-se nos bosques, entregavam-se à fortuna, que muitas vezes era a morte. Choro e ranho e baba de raiva impotente, ante tamanha violência...

À noite, em sua intimidade, Tareja impunha-se ao marido:

- Faz o que te digo. Urraca não é de confiar. Estás a prestar-lhe auxílio e serviço sem galardão? Impõe-lhe condições. Exige-lhe cumpra primeiro o prometido e te entregue as terras que diz são tuas...

- Acabado o cerco...

- Qual cerco! Diz-lhe que não participas e retiras as nossas tropas, se ela não...

- Ela não se atreveria a fementir.

- Urraca? Não a conheces. Não vês como se tem portado com o próprio filho? Ora se alia a ele e aos senhores galegos ora lhes vira as costas...

- Isso é verdade.

- Para ela tu não és mais do que o filho. Trair-te-á, verás.

- Se é assim, então...

- ... então, antecipa-te. Ou ela entrega as terras ou nós nos retiramos.

- Acho que tens razão. Melhor não cair em qualquer logro. Foi o conde aonde a rainha. Barafustou Urraca com o conde.

Protestou que estava de boa fé. Fez-se ofendida em sua honra com a desconfiança de Henrique, com a desconfiança da irmã. Bem percebia ser aquilo intrigas de Tareja? Mal chegara, semeara discórdia. Até já se intitulava rainha!... Ah! Mas ia provar-lhe quem ali era a rainha. Queria já a divisão dos territórios herdados de seu pai?

Pois muito bem. Iriam a Palência e então se procederia à partilha...

Essa mesma noite ordenou que, pela manhã, se levantasse o cerco e os exércitos se encaminhassem para Palência. Henrique saiu, chamou Urraca à puridade um cavaleiro de quem muito fiava:

- Pelas sombras da noite e o silêncio dos prudentes, ide ao castelo, a Alfonso de Aragão, com meu recado. Dizei-lhe que Henrique e Tareja pretendem colher para si as províncias de meu pai. Mostrai-lhe quanto isso o prejudicará e afirmai-lhe que pela manhã eu levantarei o cerco e estarei pronta a ser sua aliada. Guarde segredo desta aliança, rogai-lhe isso, para que os nossos comuns desígnios possam tomar desacautelados a Tareja e a Henrique.

Partido o mensageiro, Urraca permaneceu em seu retiro a remoer os cálculos da sua dobrez: um, o aragonês, usurpou pela violência algumas das minhas terras; o outro, meu súbdito, quer tornar-se independente da minha tutela e alargar o seu condado e, quem sabe, fazer dele um reino. Eu vos aviarei um com o outro...

Chegavam a Palência, entrava janeiro. Do céu de chumbo vinha librando a leveza branca das pétalas de neve. Convocara Urraca conselho para o capítulo do mosteiro dos beneditinos, espaçosa quadra onde crepitava na grande lareira o bom madeiro do carvalho. Lá fora, desolado, o arvoredo dos bosques frondosos vergava-se submisso e as veigas líberes dormiam sob a alvura regelada. Lá vinham chegando Henrique mais Tareja e os exímios barões, o bispo Gelmírez, Pedro Froilaz, conde de Trava, e os barões de Castela e Leão e o ínclito senhor da Maia, Gonçalo Mendes, e, junto à rainha, o favorito Pedro de Lara.

Assim que se acomodaram em seus assentos em volta da mesa, Urraca, na cabeceira, em sua cadeira de espaldar luzente, disse:

- É este um conselho de árbitros composto de barões de cada uma das províncias do meu reino. O notário registará, em acta que vai ser firmada por todos nós, os termos da partilha. Creio bem que, escapados da morte, regressaremos atrás, à pátria de meu pai. Basta de guerra, de desolação, de traições e falsas alianças. Que nos aconteceu? Abandonou-nos Deus? Temos à porta, nas fronteiras do sul, o infiel pronto a atacar-nos e perdemo-nos em guerras intestinas? Como afastar de nós o flagelo?... Meditei nestas coisas e resolvi congraçar-me com o meu mais poderoso cavaleiro, meu cunhado e meu irmão, o conde Henrique aqui presente. Partilharemos irmãmente terras de Leão e de Castela e, em harmonia e sossego de nossos povos, poderemos reunir nossos esforços contra o inimigo comum. O reino de Alfonso sexto, meu pai, que Deus tenha em seu descanso, será de novo unificado.

Assim falou Urraca e logo se levantou o arcebispo de Compostela:

- E esse inimigo comum de que falais, rainha, quem é? Alfonso de Aragão, que nos tomou os castelos e as cidades e nos assola as terras, ou os Almorávidas que, na linha do Tejo se preparam para nos invadir, enquanto estamos distraídos, como dizeis, irmãos contra irmãos? Que faremos do usurpador? Receais irritar um rei poderoso que tantas terras subjugou? Muita é a força de rei ou rainha quando lhe assiste razão. Se acaso gere o fel de um dia, fica-lhe no peito o desejo de retaliar.

Em resposta, Urraca disse:

- Louvor a Deus que, enquanto eu for viva e contemplar esta terra, nunca ninguém porá sobre nós a pesada mão.

No meio deles, levantou-se, sombrio, o conde Henrique, o peito cheio de força, os olhos a rebrilharem como relâmpagos:

- Pensareis talvez que sou mais ambicioso que o mundo. O caso é que não pretendo mais do que aquilo que me foi prometido e por meu esforço mereço. Não desejo mais ser enganado. Não o aturarei. Não o permitirei. Apenas desejo aquilo a que tenho direito. Se não mo derem, eu mesmo o irei buscar...

Olhando-o com cenho carregado, Urraca apressou-se a interrompê-lo:

- Não repitas esse discurso, conde. Estamos aqui para satisfazer o teu pedido. A hora é de concórdia.

As terras que Henrique cobiça, extensão para leste do seu condado portucalense, as províncias de Campos e das Extremaduras, Valladolid, Zamora, Toro, Salamanca, Astorga, Cea e outras mais, vão ficando registadas pelo escrivão, que vai rilhando a língua nos dentes, para apurar as lindas hastes aprumadas, espigadas, da letra carolíngia, que os condes de Borgonha trouxeram de França e a abadia de Sahagún ensinava a seus discípulos. Urraca parece dadivosa, quase mãos-largas. O semblante de Tareja é de quem está desconfiada. A irmã compreende e, voltando-se para Henrique:

- Poderás ocupar já o castelo de Cea - diz -, aqui a dois passos. Ordenarei que to entreguem imediatamente. Marcha a apoderar-te de Zamora, que está nas mãos do usurpador. Levarás homens de armas meus a ajudar-te. Enquanto isso, eu e minha irmã recolheremos a Leão.

Levantavam-se todos e saíam a reunir-se a seus cavaleiros na crasta do castelo. Ao retirar-se da sala, Tareja olhou Gonçalo e fez-lhe imperceptível sinal. Gonçalo anuiu com a cabeça e saiu. Viu Urraca a falar com Henrique. Apontava-lhe os cavaleiros que o haviam de ajudar em Zamora. Gonçalo coseu-se com um ângulo da muralha e ouviu:

- Dei ordens a este esquadrão. Podes confiar nos meus homens.

Virava Henrique as costas, segredava a rainha ao comandante do esquadrão:

- Tomada Zamora aos guardas do aragonês, não entregues a cidade a Henrique.

Já o conde Henrique, em seu cavalo, se preparava para sair, chegou a ele sua montada Gonçalo Mendes:

- Tende cuidado, senhor. Os cavaleiros da rainha levam ordem de vos não entregarem Zamora.

- Deixa-os comigo.

As tropas de Henrique, seguidas do esquadrão da rainha, partiam, Urraca aproximava-se da saída, seguida do alcaide do castelo. Afastou-se um pouco à parte com ele e ordena-lhe a meia voz:

- Se Alfonso de Aragão aqui aparecer, abride-lhe as portas. Caminhou para o convento a juntar-se à irmã. Quando à

noite se despediu dela, para irem descansar a seus aposentos, informou-a:

- Partiremos amanhã cedo para Sahagún, caminho de Leão. Recolhia-se Tareja, segredou-lhe Gonçalo:

- Vossa irmã não é de fiar. Prepara algum golpe - e contou-lhe do que havia ouvido na crasta.

- Estaremos atentos - respondeu Tareja em voz baixa. - Falai com os nossos no máximo segredo. Permaneçam vigilantes ao mínimo sinal suspeito.

Gonçalo Mendes que, com seus cavaleiros ficara como escolta da infante, resolveu armar, com os seus, emaranhada rede de discreta e estreita esculca, noite e dia. Havia inocentes olhos de criados que carregavam fardos de palha para as cavalariças, raparigas que traziam o pão acabado de sair do forno e logo desapareciam para logo tornarem com molhadas de legumes das hortas ou a roupa lavada para as camas e serviam aos cavaleiros os odres de vinho, pagens que se esmeravam na limpeza das armas ou a escovar e reescovar o pêlo dos cavalos.

Dos cantos das muralhas, por entre as ameias, no portal da igreja do mosteiro, no mendigo que passava e se atrevia a abordar os grupos de pessoas que falavam à puridade, em todos espreitavam olhos e ouvidos acordados.

De manhã, saiu Urraca mais a irmã para Sahagún. Alojaram-se na abadia de São Facundo, dos frades beneditinos, nas margens do Cea. Urraca sabia serem os moradores da vila partidários do aragonês, por mor do excessivo rigor com que lhes impunha vassalagem o senhor absoluto do abade. Falando com os barões sahagunenses, facilmente os convenceu a aceitarem o senhorio do rei de Aragão e, uma noite, pela calada, depois que se recolhera Tareja a seus aposentos, enviou mensageiro a Penafiel, aonde Alfonso: viesse prestes a tomar posse de Sahagún e prender a infante Tareja que aí se encontrava.

Dias depois o mensageiro regressava:

- Senhora, senhora! O recado está dado e o rei Alfonso logo se aprestou e vem lá a caminho com grande cavalgada.

Partiu então Urraca para Leão, deixando a condessa sua irmã abandonada à sorte que lhe aprontara.

Dormia a infante no sossego do leito, já estrondeava na calçada o tropel dos cavalos, já chega Alfonso ao portal da abadia, já se lhe abrem as portas, já passa a claustra, já sobe as escadas...

Sus, sus, senhora infante! Acordai, acordai!...

 

                                   Intermezo vigésimo sexto

Acedi à vontade de Randulfo:

- Vai aí à estante e traz o de Signaturis. Respondeu-me com azedume:

- Para quê, mestre, fingirdes-vos de amável, de quererdes fazer-me a vontade? Se desejais satisfazer a minha curiosidade bastará dizerdes o que sabeis.

- Vá. Não sejas casmurro e traz o códice. Levantou-se trôpego, foi pelo livro e colocou-o com maus

modos, em cima da minha mesa, sem o abrir.

- Abre-o.

- O mestre é que sabe a página.

- Tu também sabes, que até, sem o advertires, deixaste a marcá-la uma tira de papel com uma nesga dos teus desenhos.

- Eu? - respingou ouriçado. - Fostes vós que a lá pusestes, para me enculpar.

- Mau, mau, mau! Não te admito...

- Então quem? Então quem? - desafiava.

Com toda a paciência, sem lhe responder fui abrindo os fólios até uma página de onde caiu a tira de papel. Randulfo apanhou-a a examiná-la e não disse nada. Aí estava, em todo o seu mistério e formosura, a lauda fatal: Notarum Characteres. NOTARuM CHIMICAE ex Osualdi Baluzii libro de Signaturis... Em duas colunas, seguiam-se os símbolos NOTAE METALLOruM...

NOTAE MINERALIuM... e, finalmente, QuATuOR ELEMENTORuM Notae...

- Cá está! - exclamou Randulfo, muito corado, a respirar apressado, e, febril, vergava-se sobre o livro, o indicador a seguir os sinais malditos: - ...o triângulo, Ignis... o ferreiro Gomeira morreu pelo fogo... o triângulo com uma secante quase no vértice, Aer... o moleiro Gil Pais morreu enforcado... o triângulo invertido com ondas desenhadas ao lado, Aqua... o cesteiro Bastião Palha morreu afogado... e, cá está, mestre, o que falta: o triângulo de novo invertido com uma secante ao meio, Terra... Quem será o desgraçado que...?

 

                                             Empresa inacabada

Tareja acorda sobressaltada com vozes, passos, tilintar de ferro no exterior. Corre à porta do quarto para fugir, mas recua: vem lá gente açodada. Junto à cama, atrás do reposteiro, há uma porta de serviço dos criados e aias dos príncipes, quando estes ali pousam. Tareja aproxima-se, vai para sair, a porta abre-se e um frade, o rosto tapado pelo capuz, diz-lhe:

- Depressa, senhora! Por aqui!

O frade tranca a porta por dentro e vão descendo húmida escadaria de pedra. Em baixo, o frade diz-lhe:

- Vesti este hábito, velai a cabeça com o capuz, mãos postas a rezar matinas.

Na claustra havia gente de armas, meteram pela porta que ia dar à copa e saíram à horta. Dois soldados rondavam o local.

- Tomai esse balde, segui até ao poço. Cancelo fora, deitai ao bosque. Irei lá ter.

Assim fez Tareja. Os soldados aproximavam-se. O frade pegou num sacho e fez que cavava no gelo.

- Amanhas a neve, meu estupor? - disse um deles sacando da espada.

O frade aguardou o golpe e como um raio desferiu no pobre uma sacholada que o desancou de morte. Acudiu o outro e teve a mesma sorte.

Derrubados, o frade correu para o cancelo e entrou no bosque.

- Vamos! Depressa!

Enfiaram pelo denso das árvores até uma clareira onde esperavam os cavaleiros portucalenses. O frade ajudou a infante a montar, montou também e desandaram em veloz galopada em direcção à estrada de Zamora. Com o vento descaiu o capuz ao frade. Tareja olhou-o e sorriu. Gonçalo Mendes cavalgava determinado e valente como se cavalgasse para cá dos tempos...

Olharam atrás. Vinha lá empós deles o rei Alfonso em furiosa galopada. À saída da vila, começava uma calçada íngreme. No topo, o lagar de azeite do mudéjar Juan Morisco. Na véspera, Gonçalo fora falar com ele:

- Juan - disse -, hás-de fazer-me um grande favor. -   Dizei senhor.

...e Gonçalo segredou-lhe seu recado...

Agora ali estava e metia pela calçada, seguido dos seus. No alto, fez sinal a Juan Morisco, que esperava à porta do lagar e o saudou sorridente. O mudéjar aguardou que toda a cavalaria passasse, depois, rápido, deu ordens e os seus criados trataram de derramar vereda abaixo o bagaço do azeite. Os aragoneses chegavam, entravam na calçada, os cavalos deram em escorregar, em se assentarem nos quartos traseiros e deslizarem contra os que vinham atrás e rebolarem sobre o dorso, patas ao alto, pescoço esticado, olho inquieto, olhai ó gentes em que amorosos refegos vinha de borco repousar o abraço dos cavaleiros, precipitados das selas entre relinchos e ais, o rosto dos heróis afundado nas naturas das bestas, nas molezas rescendentes da bosta em que elas com a aflição se desfaziam...

Gonçalo e Tareja mais os seus fiéis cavaleiros desapareciam ao longe na planície de neve...

 

Já se avistava Zamora, o conde Henrique veio colocar a sua montada a par da do chefe da guarnição da rainha e disse:

- Comandante, a hora é chegada de tomares uma decisão. Sei que és fiel à rainha Urraca. Sei que trazes ordens dela para me não entregares a cidade. Sei que te não agradam as prepotências do rei de Aragão. É-nos fácil expulsar de Zamora o usurpador. Feito isso, escolhe: ou me entregas a cidade, como foi ordenado solenemente em Palência pela rainha e seus barões, ou terás de te haver comigo. A força está do meu lado. Se me apoiares, estarás a apoiar a rainha cujo sujeito sou. Sob a minha tutela, Zamora não sairá do reino de Leão. Deixar-te-ei alcaide da cidade e serás honrado entre os teus.

O comandante caminhava em silêncio, a ponderar as palavras do conde. Por fim disse:

- Sempre as nossas decisões são pratos de balança. Parecem-me razoáveis as tuas palavras. Se a rainha te deu Zamora, porque ta recusa entregar? É coisa que eu não entendo. Sei que muitos dos partidários leoneses e castelhanos discordam da dobrez e redobrez da rainha e estão a teu lado. Também eu ficarei do teu lado. Zamora será tua.

Seguiram sua jornada e, chegados às portas da cidade, nomearam-se às sentinelas que do adarve da barbacã os inquiriam. Contragiraram as roldanas a deslassar as pesadas correntes e a descer a levadiça. Lá vai entrando em turbilhão a comprida cavalgada, pela praça de armas se está espalhando. Sem bulha, submetem a guarda aragonesa, destituem o alcaide e a cidade é ocupada.

No dia seguinte, chegava Tareja e companhia e não tardava a contar ao marido a traição da rainha e o perigo de que, graças a Gonçalo, escapara. Acendeu-se Henrique em braveza:

- Quê? Aliou-se outra vez ao rei da Aragão? E quis prender-te? Urraca está a ir longe de mais.

Deu suas ordens e partiram esculcas a saber onde se encontravam de momento os dois soberanos. Não foi avaro o tempo em soprar novidades. O rei Alfonso de Aragão, os costados ainda doridos de ter alombado na calçada viscosa, dirigira-se para Leão ajuntar-se à rainha e dali ambos marcharam caminho de Carrión.

- Formoso exército! - exclamou, esquecido de seus sermões, o bispo Diego Gelmírez em seu baio trigueiro, no alto do teso. Abrangia com o olhar a extensão dos acampamentos e as tropas que, na planície, cercavam o morro do castelo de Carrión. Quem não soubesse ser ele o metropolita de Compostela, nunca o adivinharia no cavaleiro vestido de elmo, a loriga de malha, cingido de espada, a lança na destra, o escudo na sestra.

- É desta vez que destruiremos os nossos inimigos e o poder finalmente repousará nas legítimas mãos do príncipe Raimúndez.

- Não tenhais pressa, dom bispo - dizia ao lado de Gelmírez o conde de Trava, Pedro Froilaz. - Não estejais tão certo disso. É vária a sorte dos tronos.

O formoso exército eram as tropas de Henrique e Tareja, as azes galegas do partido do príncipe Alfonso Raimúndez, os esquadrões de leoneses e castelhanos descontentes com as errâncias de Urraca e o domínio do aragonês.

Mas este descontentamento bem sabia Henrique que também era errático.

- Em seu íntimo - desabafava com a mulher, quando se encontraram sós -, eles têm respeito por Urraca.

- É a sua rainha.

- Não auguram longa duração à nova concórdia dela com o rei de Aragão.

- Nem eu.

- Também eles não são de fiar. Sinto-lhes sinais de fraquejarem em levar avante este assédio.

- Aguardemos.

De madrugada já os acampamentos fumegavam de actividade. Henrique, como comandante-chefe, fazia a ronda. Tareja acompanhava-o ou, com ares de rainha, ia por outro lado em cortesia. Numa destas visitas, ao chegar ao batalhão galego, cruzou o olhar com Fernão Pérez. Foi relâmpago. O filho do conde de Trava montava um corcel murzelo belamente arreado e o cavaleiro, da idade da infante, exibia armadura lustrosa e o belo rosto descoberto mostrava uns olhos ardentes, testa inteligente, a barba loira cuidada. Guinou a montada e veio saudar a infante:

- Saúde, senhora minha. Muito tempo há vos desejava encontrar - fez ajoelhar o cavalo em vénia graciosa e levou aos lábios a cruz da espada.

- Retribuo a saudação, Fernão Pérez. Não sabia que o conde de Trava tinha um filho tão galante.

- Ao vosso serviço, senhora.

Ao fundo da planície, das bandas de Sahagún, vinha correndo à desfilada um cavaleiro. Em breve o arauto parava junto de Henrique:

- Senhor conde. Trago notícias graves de Coimbra.

- Que foi?

- Os moradores da cidade, por mor parte moçárabes, amotinaram-se...

O cerco foi levantado e os esquadrões galegos, leoneses e castelhanos recolheram aos domínios de seus barões.

Partido de Carrión, deitou Henrique a Palência, passou a Zamora, onde deixou Tareja com o grosso de suas tropas comandadas por Gonçalo Mendes. Depois de Salamanca rumou a Viseu e daí a Coimbra.

Das neves do norte com a primavera chegava Henrique ao sol, ao ar embalsamado, ao jardim do Mondego onde, rasando as águas claras, voejava o pássaro azul. Na portagem, esperava-o a surpresa. A multidão dos moradores aguardava-o em pé de guerra vedando-lhe a entrada.

- Que é lá isso,'vilões? - bradou irritado. -Assim desrespeitais vosso senhor?

Adiantou-se um dos homens, enrodilhando entre tímido e ousado, o carapuço nas mãos:

- Havereis de desculpar, senhor, mas isto é contenda séria. Demasiado oprimidos temos sido por vossos governadores, para cedermos agora diante de vós que, o mais do tempo, não tendes aqui assistência.

- Coimbra tem sido frequentada por mim.

- ... residência incerta a vossa, amiúde interrompida.

- Tenho feito aqui, com minha mulher, largas estadas.

- Não de modo a evitardes que os vossos governadores, Munio Barroso e esse maldito Ebraldo, nos avexassem com gravidade. Expulsámo-los da cidade.

- Nunca mais aqui entrarão - asseverou um da multidão.

- Nunca mais - clamavam os outros.

- Que vos fizeram eles? - perguntava Henrique tentando ser apaziguador.

Desfiaram o rol dos desacatos.

- Eles exigiam-nos o sangue e o suor do trabalho, mal nos deixando o pão para a boca de mulheres e filhos e, se não os satisfazíamos com a ochavada ou a dízima, éramos amarrados ao pelourinho e flagelados...

Entre a multidão ouviam-se apupos e impropérios:

- Fis de puta!

- Malditos!

- Cabrões!

O representante dos moradores fazia gesto se aquietassem e continuava:

- Nós não possuímos privilégios municipais que nos protejam, como já têm outras povoações menos gradas. Não temos defesa contra os governadores. Por isso nos amotinámos...

- Expulsámo-los da cidade.

- Que desejais então?

- Que Vossa Senhoria nos dê carta de lei com nossos direitos e deveres, preto no branco esclarecidas com miudeza as nossas alcavalas...

- ... e que declare expressamente que Munio Barroso e Ebraldo não tornarão aqui a ser admitidos.

- Só assim, senhor, vos acolheremos na nossa cidade e aceitaremos ser vossos vassalos.

- Preparai tudo nos termos legais. Dar-vos-ei carta de foral como nunca houve outra.

No átrio da igreja de São Bartolomeu, fora de portas, assentou-se Henrique diante de mesinha aí adrede colocada, com papel, tinta e areia, o chanceler, o bispo como testemunha e o escrivão, que foi escrevendo o que o conde ia ditando. De vez em quando, era interrompido para rectificar ou apurar um termo, acrescentar um pormenor e, ao chegar ao cabo, um dos moradores, risonho e cordato, em jeito de se desculpar disse:

- E ponde aí, senhor conde, bem declarado, que vos não estomagareis connosco por vos não termos logo recebido como quem sois e acrescentareis que ficará em esquecimento o que contra vós praticámos até este dia.

Henrique concordou com tudo e tudo ficou exarado como os moradores queriam na carta de foral.

Preparava-se o conde para regressar ao norte, chega-lhe de Santarém notícia alarmante:

- Senhor, os Mouros tornam a atacar. Santarém caiu e Sintra. Parece que pretendem caminhar para aqui...

Com rapidez toma Henrique providências: reforça as defesas da cidade e de toda a linha do Mondego fragilizada agora sem o escudo dos castelos do Tejo. E vê-lo incansável a cavalgar pelos sinceirais do rio até Montemor, ao castelo de Santa Eulália, correr a Soure, nas margens do Anços e do Arunca, a Penela, subir aos contrafortes de Miranda, da Lousa, à foz do Arouce... Bem sentiam os moradores de Coimbra que tinham chefe.

Os esculcas chegavam com as novidades:

- Sabendo das vossas precauções, os muçulmanos desistiram de atacar Coimbra...

- ... por agora... - ponderou o conde.

Sentia-se hesitante. Lá em cima esperava-o a continuação da sua luta, tão persistentemente assumida, do alargamento do seu condado. O ataque dos Mouros fizera-o parar. Agora, pacificada Coimbra e afastada, de momento, a ameaça árabe, as notícias que recebia de Leão levavam-no a retomar essa luta. Urraca estava ausente em Aragão, onde o marido a havia convencido a ir administrar o seu território enquanto ele administrava o dela.

- Troca manhosa - ponderava Henrique. - Não posso desperdiçar tal ocasião de firmar o meu domínio nas cidades e fortalezas que em Palência me foram acordadas...

Decidiu-se e partiu. Chegado a Zamora, as novidades choviam:

- O rei Alfonso - dizia-lhe Tareja - tem andado a ocupar os domínios de Urraca.

- Era de prever.

- Fá-lo com violência. Ainda não chegou aqui, porque sabe que somos fortes...

- E Astorga?

- Astorga, Oca e outras cidades e fortalezas já têm guarnições aragonesas.

- E Urraca?

- Furiosa com o comportamento do marido, regressou de Aragão. A discórdia tornou a rebentar. A rainha vem cheia de força.

- Que força pode ser a dela?

- Ganhou aliados entre os próprios aragoneses descontentes, tem aliados entre os seus leoneses e castelhanos, faz aliança com os galegos, alçou rei o filho de sete anos, com quem, diz ela, governa...

- É altura de me aliar a ela também eu.

- Será. Os barões leoneses, castelhanos e galegos andam levantados. Convocaram rei e rainha para Sahagún. Querem impor-se-lhes. Devemos estar presentes.

- Estaremos.

Em Sahagún, perante Urraca e Afonso, os barões falaram:

- Calamitoso é o estado do reino e nós, representantes dos povos, estamos fartos das discórdias havidas entre rainha e marido. Exigimos paz. Para começar, que o rei acate os acordos havidos em Palência.

Isolado, impotente para contrariar a assembleia que lhe impõe a lei, o aragonês recorre ao fingimento:

- Pois muito bem. Se assim o exigis, assim se fará.

Reconcilia-se com a rainha e parte a viver com ela em Astorga. Henrique e Tareja vão com eles e os barões e senhores principais. Não os querem perder de vista.

Uma noite, à ceia, assentavam-se Urraca e Alfonso, Henrique e Tareja, barões e senhores. Ali estava o bispo Gelmírez, o conde de Trava, Pedro Froilaz e o filho, Fernão Pérez, ao lado de Tareja. O rei Alfonso mostrava-se risonho, amável, mas no fundo do olhar luzia-lhe o lampejo do engano. Pela mesa adiante, recatavam-se outros olhares atravessados, que não diziam com os sorrisos rasgados.

Também o olhar de Urraca não era água límpida e as palavras soavam-lhe a vasilha rachada:

- Os nossos filhos - dizia a rainha, dirigindo-se à irmã - ainda são muito meninos. Raimúndez tem sete anos. O teu Henriques vai em quatro. Como o tempo passa! Qualquer dia, já estou a ver...

- Não te dê isso cuidado. A hora deles ainda não chegou.

- Rei Alfonso - disse Henrique, suspendendo a peça de cabrito que tinha na mão -, não andaremos nós a desperdiçar nossas forças? Olhai os Mouros, ainda agora, lá em baixo...

- Na minha raia de Saragoça - respondia o rei com a boca cheia e os lábios besuntados -, tenho-os controlados. A vós compete não deixardes que atravessem o Tejo lá para as vossas bandas...

- Abí Bakr está velho - e Henrique levava a copa de vinho à boca e sorvia um gole gostoso, estalava a língua e prosseguia: - Tomadas Santarém e Sintra, retirou-se para Córdova. Consta que está às portas da morte.

- Após ele virão outros.

O vinho tornava Fernão Pérez atrevido. Sem rebuço olhava Tareja com olhos de carneiro mal morto:

- Olhos borrachos os vossos - segredava-lhe ao ouvido -, mais do que este bom vinho do Ebro.

Por debaixo da mesa Tareja ferrou-lhe uma canelada de se verem as estrelas.

Súbito, Henrique levantou-se muito vermelho, erguia aflito as mãos à garganta. Todos olharam atónitos. Tornou a sentar-se e a cabeça descaiu-lhe sobre a mesa entornando a copa de vinho.

Acudiu um físico. Desapertou-lhe a gola do balandrau, auscultou-lhe o coração e arregalou os olhos para os circunstantes:

- Está morto!

 

                                     Intermezo vigésimo sétimo

A morte súbita do conde Henrique julgava eu viesse pôr interregno nos nossos problemas. Pelo contrário, acirrou os instintos mais vesgos de Randulfo, que disse:

- Balúzio não previu, em seus caracteres cabalísticos, o emprego da peçonha.

- Que queres dizer com isso?

- Essas mortes. Já são duas. Tão oportunas. De longe desejadas por muitos interesses. Raimundo e Henrique...

- Pensas que os mataram?

- Assim parece.

- Nada nos permite avançar com tão terrível suspeição.

- Desde o rei Alfonso sexto. Desde aquele pacto sucessório. Desde que a esposa do primeiro tinha mais que um amante e a irmã também pouco depois um. Desde que a Urraca não agradavam as ambições de Henrique. Desde que a Urraca nem a Alfonso de Aragão interessavam as partilhas de Palência. Desde que apareceu em cena um Fernão Pérez. Aqui tendes, mestre, uma mancheia de suspeitos...

- Aí tens, Randulfo, uma mão-cheia de destemperos que só a tua mente malsã pode gerar. Sabes a que leva isso? A que é cada vez mais urgente que o castigo te bata à porta...

Palavras não eram ditas, ouviu-se em baixo bater à porta. Randulfo espreitou pela janela e virou-se para mim muito pálido, o olhar esbugalhado de terror. Espreitei também. Na rua, aguardava o meirinho-mor, com o bastão de sua autoridade, e dois oficiais. Vinham acompanhados do prior Armirigo, do sacristão e do moço João Longo...

 

                                               Peçonha

Todo o caminho fora pensando naquilo. Procissão de brandões que o vento desgrenhava, de Astorga a Braga, comboiando com seus cavaleiros uma Tareja formosíssima embiocada de negro, atrás da carroça amantada que levava a tumba do marido. Solavancos da estrada, solavancos da vida. Pobre conde Henrique! Havia muito que a Gonçalo não lhe quadravam os acontecimentos. Quantas vezes lhe a espada estremeceu na bainha impaciente! Sim, sim. Compreendia muito bem aonde o falecido conde assentara o alvo: alargar o condado às províncias vizinhas de Campos e da Extremadura, obter a independência e converter aquilo a que se chamava já província de Portugal em poderoso reino peninsular. Isso lhe Havia sido assegurado, aquando da sua aliança com o aragonês. Quase o conseguira no papel, em Palência. Faltava alcançá-lo na pedra e no húmus, no rio e na montanha, seara e brejo, castelo e cidade, na carne e na alma... Urraca e Alfonso de Aragão pareciam apostados, com voltas e revoltas, em desviar-lhes os intentos... e agora, súbito, a morte em tempo acomodado, quando tinha direito, pelas convenções anteriores e os compromissos presentes, a exigir-lhes acabassem o prometido...

Olhava em sua volta. Só estrépito de pateada, o ulular do vento pelas cordas da floresta, o rugir dos córregos nas trompas dos pegos.

Bocas caladas, ricto grave, sobrolho vincado, cachoava dentro o estrépido, o ulular, o rugir das almas. Que pensaria Tareja? Lá ia solícito, a seu lado, Fernão Pérez de Trava. Outro, que de baba urdia sua teia aspirando a ser rei... rei de uma Galiza como dantes estendida até ao Tejo a abafar o condado de Portucale... Assiduidade junto da infante, além de desavergonhada, perigosa. Gonçalo não agoirava nada de bom daquele ajuntamento, que já começava a dar que falar e a fazer-lhe o sangue bolhar nas veias. Haveria de ter uma palavra sobre isso com seus irmãos...

Em Braga, o arcebispo Maurício Burdino, ladeado do cónego Paio Mendes, aguardava no pórtico da sé, com o cabido, que no adro a tumba fosse retirada da carreta e levada para o templo.

Gonçalo ao desmontar teve uma alegria inesperada. Soleima segurava-lhe o cavalo pelo freio e Buthayna, sorriso e lágrimas, abria-lhe os braços.

- Minha princesa! Tu aqui!

Também Soeiro Mendes, vindo de Guimarães, ajudava Tareja a apear-se e o aio Egas Moniz entregava à mãe, pela mão, o príncipe Henriques.

Dentro os frades entoavam seu cantochão:

...ad te omnis caro veniet. Requiem aeternam... Entraram...

- Para onde vais agora? - perguntava Buthayna a Gonçalo, dois dias depois, na hora de cada um ir ao seu destino.

- Terei de acompanhar a infante a Astorga.

- Teu irmão segue para Coimbra a reforçar a defesa. Poderei seguir com ele? É na guarnição de lá que o conde Henrique deixou Belfadar e Belamiz...

Gonçalo sentia remorder-se-lhe a alma por não dar mais assistência a Buthayna. Como negar o que ela pedia, já que era impossível levá-la consigo?

- Quem me dera poder acompanhar-te! - disse.

- Porque não trocas com Soeiro? Ele para Astorga e tu...

- Especiais ordens da condessa. Forçoso obedecer.

- Regressas breve?

- Minha princesa, o meu coração vai contigo. Partiam. Buthayna chorava ao despedir-se:

- Tão mofina tenho sido! Funesta sorte me pressagia o coração.

- Não há-de querer Deus que assim seja.

- OxAllâh!

Tareja seguia para Astorga com a sua comitiva.

- Que caminho desejais tomar, senhora? - perguntou Gonçalo, antes de dar as suas ordens aos da companhia. - Pela portela do Homem ou por Chaves?

- Pela portela - intervinha Fernão Pérez a impor-se -, tomaremos por Celanova e Ourense a rota jacobeia. Daí a Astorga é um salto.

Tareja olhou para Gonçalo como a interrogá-lo.

- Salvo melhor parecer - disse Gonçalo -, é mais acertado botarmos pela velha via romana de Chaves. A meio de maio os caudais do Homem vão revoltos dos degelos das serras e é difícil a travessia. Por Fezes de Jusão, Monterrei, depressa atingiremos Ponferrada que leva a Astorga.

Fernão Pérez ia a responder, mas a infante cortou:

- Deitaremos por Chaves.

E encetaram a jornada, já lá iam, para sul, Buthayna com Soeiro Mendes e Soleima mais o orfãozinho Alaroz, de dez anos de idade, caminho de Coimbra, e, pela riba do Douro, o nobre senhor Egas Moniz, rumo às terras de Sanfins e Lamego, até Cresconhe, até Britiande, onde o príncipe ficaria a completar a sua criação.

Por vales e montes, seguia cada um o fado, o destino, terrível ou feliz que Deus, que Allâh lhe estava traçando...

Negras babugens pestilentas escumava o ódio de Urraca, contra o marido ou ex-marido, o repelente usurpador. Em seu coração maquinava destruí-lo de vez. Pensou no ferro. Pagou a um sicário o arranjo. O rei como adivinhava o intento, que, para onde quer que caminhasse ou onde sediasse, o rodeavam sempre, como escudo, seis fortes guarda-costas armados. Um dia o sicário apareceu morto. Deixou ela passar tempo e traçou então recorrer à peçonha.

Um velho frade que fazia licores no mosteiro da serra e sabia de ervas e símplices e conhecia filtros secretos, Urraca, a pretexto de se confessar a ele, foi ao mosteiro e falou-lhe ao confessionário. Pôs-lhe na mão uma bolsa cheia de ouro e a promessa de o fazer bispo. Uma noite, o frade procurou a rainha às ocultas e entregou-lhe a poção diabólica.

A caminho de Ponferrada, a esse mosteiro da serra acertou chegar a infante Tareja e sua companhia. O batalhão que com eles seguia armou seu acampamento em volta do mosteiro, enquanto a condessa se acolhia ao interior da casa.

O velho frade licoreiro e alquimista andava roído de remorsos por ter fornecido peçonha à rainha Urraca. Sabendo que a irmã da rainha chegara ao mosteiro, resolveu falar com ela, a fim de evitar, se possível, alguma tragédia. À noite, estava a infante a cear, aproximou-se dela:

- Senhora - disse. - Sou o licorista do mosteiro e trago-vos aqui uma amostra da minha colheita.

- Obrigado, irmão. Sois muito gentil.

- Não quererá Vossa Senhoria visitar o meu alambique?

- Com todo o gosto, irmão. Irei, assim que acabar de cear.

E, assim que acabou de cear, a infante Tareja desceu às caves do mosteiro a visitar o alambique do velho frade. Acompanhava-a apenas Gonçalo Mendes, que o frade advertira:

- É zona de segredos. Nem os irmãos a visitam. O abade não permite visitas, a não ser em casos muito excepcionais, como o presente, e, mesmo assim com um número máximo de duas pessoas.

Com grande arrelia sua, Fernão Pérez de Trava fora excluído da visita.

Desceram uma funda escada de caracol, que escorria água viscosa das paredes enegrecidas e, do passo que avançavam, intensificava-se o aroma de licores.

O frade sacou de uma grande chave e abriu uma porta de ferro. Entraram. Recinto sujo, teias de aranha pelos cantos, estantes com garrafas poeirentas, mesa cheia de frascos e vasilhas e pipetas e almofarizes. Na parede, suspensos de pregos ferrugentos, ramos de ervas, folhas, frutos. Apontava-os, por vezes apalpando-os com dedos conhecedores, e nomeava-os:

- Este aqui é baga de murta, aqui raminhos de hortelã, de serpão, de erva-doce e manjerona, o tomilho e seus parentes, a segurelha, o poejo, os orégãos, aqui o açafrão, folhas de figueira, o alecrim, o zimbro... e frutos, que também deles e de sua casca se fazem licores primorosos, os vários frutos-de-es-pinho, a ginja... e muitas plantas mezinheiras que por aqui há para acudir a terçãs e outras maleitas de irmãos e peregrinos...

A um canto, a caldeira, as retortas de vidro. O frade explicava à infante o significado dos tubos, o processo da destilação, a refrigeração, mas guardou bem calado o segredo de cada um dos licores que numa estante se alinhavam. Quase terminada a visita, um pouco hesitante, olhando de soslaio para Gonçalo, disse:

- Poderei por momentos falar convosco a sós, senhora? É matéria da máxima urgência e importância.

Gonçalo, a um gesto da infante, saiu e aguardou do lado de fora. O frade começou:

- Trago a alma torturada, senhora, por um pecado enorme que cometi. Pretendo corrigir o mal feito e só vós me podeis ajudar.

- Como assim?

- Há dias vossa irmã, a rainha Urraca, veio falar comigo. Pretendia peçonha não sei para quê, mas presumo intente matar alguém.

- Matar alguém? - perguntava a infante os olhos arregalados de curiosidade.

- Deu-me uma bolsa cheia de ouro e prometeu fazer-me bispo. Cedi miseravelmente e, dias depois, entreguei-lhe um frasquinho com um veneno poderoso.

- E agora?

- Sei que ides para a corte. Se chegardes a tempo - e queira Deus assim seja - podereis talvez evitar aconteça alguma desgraça...

- Verei o que posso fazer.

Regressados acima, a infante disse a Gonçalo:

- Partiremos de manhã cedo. Tenho urgência em chegar a Astorga.

Gonçalo absteve-se de perguntar a razão de tal pressa. Bem conhecia ele o segredo do frade, que o janelo da porta deixara passar as palavras.

Subiram. No vestíbulo do mosteiro, na sala reservada aos peregrinos e visitantes, encontraram uma trupe de comediantes. Iam também, para a corte de Astorga. Gonçalo pensou valer-se deles para introduzir esculcas nos paços de Urraca e do rei aragonês. Falou com a infante que concordou com a ideia:

- Oferecei-lhes protecção para o caminho. Viagem connosco. Gonçalo assim fez. Familiarizou-se com eles. Pagou-lhes a

estalagem. Disse-lhes:

- Podereis, à noite, dar-nos o prazer de vos ouvir tocar?

Elogiados com a companhia de tão nobre dona e de tão lustrosos senhores, primaram em tocar para eles, enquanto na lareira crepitava um bom lume de oliveira e nas mesas borbulhavam os canjirões de vinho.

Eram seis os artistas. Quando davam espectáculo, usavam máscaras risonhas. O primeiro segurava uma pandeireta com a mão esquerda e tangia-a com uma maçaneta de pau. Tiniam-lhe na cintura pequenos e brilhantes tintinábulos, vestia jubão escuro com capa e capuz pela cabeça e ombros, a máscara semelhava cara de símio e as calças apresentavam fios ou farpas de penas que se agitavam com o menear do corpo. O segundo vestia túnica verde, usava barba e cabelo como se fosse trunfa de leão e tocava também pandeireta. O terceiro caía-lhe a veste cintada até um pouco abaixo dos joelhos, cabelo em grandes caracóis loiros, tocava viola-d'arco. Meio escondido atrás dos outros, usava o quarto carapuço em bico afunilado em redondo como a cúpula de um templo. O quinto percutia tambor com uma baqueta grossa. Capuz e capinha de bobo trazia o sexto, camisa pela cinta, manga curta, meia pela coxa. Raspava com um ferro em gancho uma espécie de couro cheio de ar que ao mesmo tempo tamborilava com os dedos da outra mão...

Truões, saltimbancos, o anão torto, um passarinheiro com gaiolas de aves chilreantes, a bailarina de vestes vaporosas, contorcista, que assenta a cara no próprio rabo e anda com as mãos, o comedor de fogo e engolidor de espadas, funâmbulos que dão saltos mortais e caminham no arame ou na corda bamba, os músicos mascarados, que a eles se haviam juntado, o tocador de gaita-de-foles, o da trombeta, os dos tambores, pandeiretas e adufes, os das violas-d'arco, dos alaúdes, uns bamboleando-se à esquerda, outros à direita, no balanço da dança, turba ruidosa e alegre que entra pelo pátio do palácio real. Um pandemónio! Esvoaçam, à passagem, as aves caseiras, largando penas, galinhas a cacarejar, patos e corvas a grasnar, gritam pavões, coreixas, arremetem gansos agressivos. Assoma a criadagem a janelas e portas, um casal pára de fornicar de pé num desvão da cavalariça a espreitar o alvoroço...

- Que alarido é esse lá fora? - pergunta Urraca.

- Os comediantes, senhora - informa o mordomo. - Solicitam aposentadoria por uns dias em troca de divertimento.

- Sejam benvindos. Curai não lhes falte nada.

Deram espectáculo à noite, à luz de archotes torcidos, no grande salão. Depois houve baile, em que entraram damas e cavaleiros. O rei de Aragão, os olhos fisgados na bailarina da trupe, moça bem talhada, veio sentar-se em seu trono, no estrado ao topo da sala. Rodeavam-no áulicos, que mais cuidavam de lisonjear o monarca, à espera de acrescentamento, do que divertir-se como os outros. Gabavam-lhe a dureza com que tratava inimigos, fossem clérigos ou barões. Referiu-lhe um deles às tantas, o bispo Gelmíres, que andava muito arredio.

- Bispos? - dizia o rei. - Aqueles que me não obedeçam, rua com eles. Olhai esse Dom Bernardo, de Toledo...

- Saqueados os templos, andam fugidos, como ratos...

- ...os que escaparam à morte ou à prisão. Acolheram-se a dioceses que não são do vosso partido, senhor.

Flautas e alaúdes, sistros, címbalos, a harpa, música pausada, lenta, donas e cavaleiros fazem seus meneios, vénias e voltas de dança.

- Olhai como ela toda se rebola, a cabra, com aquele Pedro de Lara! Desavergonhada, a puta. Hei-de pô-la com dono, vereis...

A dança acabava. Urraca vinha sentar-se ao lado de Alfonso. Bateu as palmas. Acorreu um criado.

- Vinho para o rei - ordenou a rainha.

- Pedes vinho para mim ou para o teu par de ainda agora, que está vermelho de se rabear contigo?

O pagem foi ao bufete, entrava o mordomo na sala e anunciava:

- Sua Excelência a infante Tareja.

A condessa de Portugal entrava de rompante. Urraca lançou uma mirada ao rei.

- A que vem esta agora? - rosnou o aragonês.

Em bandeja de prata um pichel de vinho rosado e uma copa de ouro, o pagem aproximava-se. Tareja cortejou rei e rainha e sentou-se a seu lado.

- Quereis saber, certamente, a que venho. Vou dizer-vos. O rei pegava na copa de vinho com a direita e levava-a aos

lábios. Tareja toca-lhe no braço a impedi-lo de beber:

- Deixa o vinho por instantes e ouve o que tenho para dizer-te...

O rei pousou a copa na bandeja. Tinha a mão esquerda metida na braguilha a coçar a verga volumosa. Urraca deu-lhe uma cotovelada a chamar-lhe a atenção para o despropósito.

- Que é lá? - disse Alfonso, arreganhando a dentuça alarve. - Julgas que ela nunca viu? É tão cabra como tu.

- Ao que venho? - disse Tareja, fazendo de conta que não ouvira o rei. - É muito simples. Exigir se cumpra o que foi concertado entre vós, os barões e meu falecido marido. Ocupais Astorga como se fosse vossa. Tendes alcaides aragoneses em cidades e castelos meus. Cumpri com a vossa palavra.

- Saberás, certamente, querida cunhada - respondeu o rei -, que, morto o vosso marido, toda a vossa força se esvaiu como fumo. Que exército tendes no vosso condado que seja garante das vossas aspirações?... E palavra... palavras... nada mais são do que vento... - e o rei Alfonso de Aragão voltava a pegar na copa de vinho e ia para beber, num gesto brusco Tareja entorna-lha:

- Nada mais que vento?

- Vê o que fizeste!

- Mostrar-te-ei se as palavras nada mais são do que vento - e segredou-lhe ao ouvido: - Tem peçonha o vinho que ias

beber...

- Quê? - levantou-se el-rei. - Que disseste?

- Nada mais que vento - riu-se Tareja.

 

                                         Intermezo vigésimo oitavo

Entrou o meirinho-mor e seus oficiais. Entrou o prior Armirigo, ajudado em seu reumatismo pelo sacristão. Entrou João Longo, dando voltas ao carapuço, visivelmente assarapantado com o que lhe acontecia.

- Senhor cónego - disse o meirinho. - Na sequência das pesquisas vindas a fazer quanto ao mistério das três mortes que sabeis, vimos aqui esclarecer uma particularidade que nos pode trazer a chave do caso...

- E essa particularidade é...? - disse eu pausadamente, acautelando o que lá viesse.

- Um livro. Um livro que esse moço disse...

- Eu não disse... eu disse... - interrompia João Longo atrapalhando-se e contradizendo-se.

- ...que esse moço disse... - repisou o meirinho as palavras - ter visto a calçar um dos pés da mesa manca do vosso lagar.

- Eu só disse... - tornava João Longo, logo interrompido.

- O moço afirma a pés juntos que viu um livro velho a calçar a mesa e que esse livro desapareceu. Ora eu dei-me ao cuidado de ir ao local e verifiquei existir, na verdade, uma mesa manca - vá lá saber-se porquê, será caso para futura investigação - e de livro a suprir-lhe a manqueação nicles, como diz aqui o senhor prior que sabe latim.

O prior Armirigo assentiu com a cabeça e achou ser tempo de esclarecer:

- Eu já expliquei ao senhor meirinho-mor o que é natural ter acontecido. Ele não me quer dar ouvidos...

- Eu também sei o que aconteceu - interveio o sacristão. - O livro em questão...

- O livro em questão, o livro em questão... - dizia o meirinho estomagado. - Toda a gente sabe tudo e não sabe nada. O caso é que existe uma mesa manca e o livro desapareceu e tudo leva a crer que esse livro, tal como a mesa manca, está relacionado com os crimes, a julgar por certos desenhos que aí vêm, segundo me contou o senhor prior.

- É verdade, é verdade - afiançava o sacristão.

- Lá de desenhos eu não sei nada - dizia João Longo. - Eu não fui.

- Cale-se, homem. Alguém o está a acusar de alguma coisa? Olhe mas é não vá você aparecer também por aí assassinado, com um desses desenhos gravado a punhal na sua testa.

- Eu? Então eles querem matar-me?

- Sabe-se lá!

Olhei para Randulfo. A um canto, tremia como varas verdes.

- O livro que o senhor meirinho refere - informei - está ali na minha estante. Algum tempo calçou, de facto, a mesa manca do meu lagar. Não sei quem o lá pôs. Como também não sei quem o voltou a colocar na estante. Estranho é, senhor meirinho-mor, que tanta gente saiba do livro e dos seus desenhos. São arcanos que a vossa autoridade e perspicácia encontrará jeito de resolver.

O meirinho tinha a boca aberta de espanto. Fui à estante, tomei o livro, abri-o na página dos desenhos cabalísticos e pu-lo diante dos olhos de Sua Senhoria:

- Aqui tendes.

 

                                                 Sonhos de império

- Céus! Traição! - brada o rei Alfonso de Aragão de pé no estrado, erguendo os braços ao ar, ameaçador e terrível.

A música cessou, o baile parou, damas e cavaleiros, barões e senhores olhavam, quedos como estátuas, para o monarca.

- Que é que te deu? - acudia Urraca, levantando-se.

- Para trás, maldita! - arrumou-lhe um safanão o aragonês, lançando-a do estrado ao chão. - Para trás, traidora. Hei-de esbugalhar-te os olhos como faziam os meus avós.

Pedro de Lara ajudava a rainha a levantar-se. Magoada, sacudindo o vestido, compunha o cabelo:

- Maldito serás tu. Cegasses-me, a imagem do ódio que te tenho não ma apagarás nunca. Tem cuidado, rei.

- Cuidado, cabra? Terei, terei. A mim, a mim, meus cortesãos amigos. Esta fi de puta quis envenenar-me. Pôs peçonha no meu vinho.

- Eu? Peçonha? É falso. É falso. Mentes, rei. Estou inocente do que me acusas.

- Mostra-o.

Cortesãos aragoneses, castelhanos, leoneses, galegos rodeavam os cônjuges desavindos. A infante Tareja desceu do estrado e foi calmamente até um vão de janela onde estava Fernão Pérez.

- Mostro-o, pois então - gritava Urraca. - Escolherás um cavaleiro que se bata com o meu em juízo de Deus. Provarei em ordálio a minha inocência - e chegava-se a Pedro de Lara a apresentá-lo como cavaleiro que sustentaria em estacada a inocência dela.

- Eu? - disse-lhe em voz baixa, aterrorizado, o fidalgo que já uma vez fugira do campo de batalha.

- Tinha-me esquecido de que és cobarde. Escolherei outro - e olhava em redor a procurar a irmã, para lhe pedir emprestado o valoroso cavaleiro Gonçalo Mendes cujo só nome empalidecia inimigos. Viu-a no vão da janela e chamou-a, mas o rei, tomando-lhe do braço com violência, numa gargalhada dizia:

- Juízo de Deus? Queres ofender a Deus? Ah, não! Não to permitirei. Juízo do Diabo é que vais ter. Quem te julgará sou eu - e arremessava-a de si. - Pagem, meu pagem! Já, já, traz-me um chicote, que aqui mesmo a espancarei e à chicotada a hei-de expulsar da minha corte.

Alguns nobres murmuravam já entre si:

- O rei faz-se julgador em causa própria? Que faremos?

- Não me acredito nada em que a rainha lhe tenha dado peçonha.

- Aquilo foi mas é intriga da irmã. Eu bem a vi soprar ao ouvido do rei alguma coisa que o irritou desta maneira.

- O rei não deseja senão pretexto para punir a rainha, sem largar de mão as terras de que ela é legítima herdeira.

- É isso. Finge dar crédito ao que Tareja lhe terá segredado...

- Quer justificar perante nós o seu procedimento, que é separar-se da rainha...

Um pagem acercava-se com o chicote. El-rei volteou no ar a língua de couro que silvou fino estalido de ira e logo se abateu sobre Urraca...

- Toma, fi de puta!

... que gritando, as mãos defendendo o rosto...

- Toma, megera!

...ia fugindo da sala, o rei a persegui-la, os cortesãos a abrirem alas...

- Toma, assassina!

...fê-la descer a escada...

- Toma, cróia! ... sair do páteo...

- Toma, rameira!

... sair a porta da cidade por entre magote de gente que acorria a ver...

Meia dúzia de cavaleiros fiéis juntavam-se a Urraca. Pedro de Lara trazia-lhe um cavalo e, sem demora, o grupo desaparecia a toda a brida em direcção a Leão.

Tareja assistira à cena pela janela e o seu pensamento regurgitava sestras calculações, viscosas secreções pustulentas. Evitara talvez um assassínio, embora não tivesse a certeza de que aquele vinho contivesse peçonha. Acaso a irmã aguardasse para outra altura ministrá-lo, uma ocasião menos pública... Percebera que o rei aproveitara o ensejo para se separar da mulher que desamava. Não concebera era reacção tão violenta e que ele expulsasse a irmã. Notara o burburinho dos nobres, que, em grupos, ali haviam ficado, em grande alvoroço exprimindo descontentamento... Esperemos as horas que aí vêm. Este porventura o azo de Astorga e demais terras serem minhas...

Nos dias que se seguiram, as novidades não pararam de chegar. Gonçalo punha a infante ao corrente.

- Que aconteceu? - perguntava Tareja vendo-o entrar açodado.

- Desagrado geral alastrou às cidades do reino, senhora, mesmo àquelas que têm forte guarnição aragonesa. A começar por Leão. A fama da violência e desacato do rei à rainha correu mais veloz que os cavaleiros e já lá havia soado quando a pequena comitiva de Urraca bateu às portas do castelo. Um nobre aragonês, que servira ao rei Alfonso vosso pai, apressou-se a convencer os soldados que velavam nas torres da cidadela a abrirem as portas e receberem a rainha desterrada. E os burgueses, conquanto até aí partidários do rei aragonês, aderiram à facção da rainha. Posso enganar-me, senhora, mas a rainha Urraca, que parecia ainda há dias vencida, retomará o poder e com maior força que dantes.

Tareja ficava a cismar, um pouco interdita, no rumo que os sucessos estavam a tomar. Minha irmã recobra ânimo. Conheço-a. Moverá guerra sem tréguas a Alfonso. Agirei consoante o que vier...

Pouco depois, Burgos, Naxera, Carrión, Leão e Sahagún, reuniam-se com barões e outros nobres senhores e mais uma vez foram concordes em se mostrar firmes na fidelidade às condições juradas por Alfonso primeiro. Ante tal movimento, o rei retirou-se para o castelo de Cea. Homens-bons dos concelhos, barões, senhores vieram a Sahagún, como em duelo, encostar o rei à parede.

Um munícipe velho e experimentado falou em nome de todos:

- Senhor. Olhai os meus cabelos brancos. Esta neve quer dizer que por aqui passaram muitos invernos, muitas batalhas, muitos reis como vós. Sempre foi coisa assente que palavra de rei é só uma. Pois parece, senhor, que vos esquecestes desta norma de vossos avós. Mas agora todos os que aqui estamos reunidos acordámos num ponto. Incumbiram-me de vo-lo comunicar.

- E esse ponto...? - perguntava el-rei.

- Uma só palavra o traduz. Basta! Basta, rei. Não podereis mais resistir à vontade dos povos, que desde Castela a Leão, à Galiza, a Aragão é só uma: tereis finalmente de declarar sem evasivas que obedeceis às condições há muito ajustadas e prometidas. Largareis os castelos e cidades que ocupais sem direito.

Ouviu-se por toda a assembleia um murmúrio de aprovação. O rei, levantando-se, disse:

- Se assim quereis, assim será. Amanhã farei diante deste conselho declaração pública e solene desses compromissos - e saiu, ante a hesitação de todos.

Pelas trevas dessa noite, fugiu el-rei de Sahagún e foi-se, com magra companhia, para seus estados.

Repicaram sinos por todas as cidades e vilas, deram-se vivas à rainha nos castelos e fortalezas. Não houve nobre que não reconhecesse a autoridade de Urraca. Diego Gelmírez calou, a sul da Galiza, entre o rio Ulla e o Mino, os que se haviam ale-vantado pelo rei de Aragão. O império do rei Alfonso sexto recompunha-se, de novo unido.

Sonhos de império, pensou Tareja. Desfizera-se o de Raimundo, o do aragonês estava-se diluindo, o de Henrique... Compreendeu que o sonho do conde Henrique, que era o seu, parecia desvanecido...

Uma noite, depois de refastelarem a carne, disse com manha Fernão Pérez a Tareja:

- É altura de se retomar o sonho de teu falecido marido por outra ponta...

- Qual?

                                             Intermezo vigésimo nono

- Não entendo porque te não dominas - digo a Randulfo, mal o meirinho-mor e companhia se foram embora. - Esse teu terror, bem estampado no rosto e nas tremuras, está a denunciar-te... Demais, na presença da autoridade. Não te admires se os oficiais, um dia destes, te vierem prender. Dissimulados, os agentes da justiça. Fazem que não vêem, tudo observam. Fingem que não ouvem, trazem as orelhas guichas. Mostram-se néscios, reguilas que nem ratos. Cuidado com eles!...

Randulfo, mal refeito do susto, saiu do seu canto e sentou-se na banca de trabalho a enxugar o suor da testa. Respirou fundo, como aliviado, e disse:

- Temia por vós, mestre.

-Ah, ah, ah! - ri-me. - Gracioso és. Como gostas de virar o bico ao prego. Se o prego sou eu, hei-de espetar-te...

- A mim?

- ... garanto-te. Não pode homem conservar-se imune tanto tempo dos crimes praticados.

Fez-se mouco, distraído, a cabeça inclinada para o trabalho e, mais uma vez, as mãos, aquelas mãos que... - lá estava ele a olhar-me de soslaio - ...permaneciam imóveis, estancado algures nas profundezas da consciência o mando para se dedicarem ao seu labor. E eu punha-me - não era a primeira vez -a imaginá-las, com uma viveza que me magoava, a segurarem o punhal e a riscarem na testa, numa testa, em muitas testas, o triângulo que restava ao cumprimento do destino...

Saí do pesadelo com o ruído de passos escada acima. Era o sacristão que regressava:

- Não me esqueci aqui de uma faca que costumo usar para aparar os círios da igreja? Creio que me caiu da bolsa...

Randulfo levantou-se e apanhou do chão uma faca de lâmina luzidia e aguçada.

- É esta?

Pegou-lhe o sacristão a virá-la e revirá-la:

- Não, credo! Isto até parece punhal!

 

                                             Revoada

- Será prudente não me malquistar com a rainha minha irmã... - disse a infante Tareja.

- Será. Por isso te digo... - respondia Fernão Pérez.

- ... cada vez mais poderosa... ir-me chegando às terras do meu condado, de minha herança e alódio...

A noite ia alta, arrefecera o tempo, chovia lá fora, o leito era quente, macio... macio é o teu corpo, as mãos o afagam, o desejo desperta... os animais também não falam no acto do ajuntamento, mas os olhos... que expressão de amolecimento e liquescência, de quase desmaio é aquela?... Quando no céu lavado as estrelas brilham e é regelo o silêncio cósmico, espalha-se no ar o cheiro do primeiro dia da Criação... Quando as chuvas caem na terra sequiosa, levanta-se no ar o perfume do segundo dia da Criação... Quando na primavera as flores do prado exalam suas essências, rescende o ar ao aroma do quarto dia da Criação... Quando os amantes acordam suados do seu êxtase, incensa o ar a fragrância de Deus...

- Curioso é - retomava Fernão Pérez respiração e discurso - que, nas lutas pelo poder, o condado de Portugal foi passando desapercebido como se não faça parte do império de teu pai...

O cavaleiro galego, sentindo que a linda condessa se deixava envolver, aproveitava o enleio para ganhar em poder na província de entre o Minho e o Mondego.

Intrometia-se no coração da infante e no condado, pensando em ajudar a estender a Galiza do príncipe Alfonso Raimúndez por ali abaixo até ao Tejo ou ambicionando até, para si, sonhos mais altos. Chegava já a cônsul do distrito do Porto, do de Coimbra... Os barões de Portucale começavam a ficar desagradados e iam desertando a corte de Tareja...

Aproveitava Gonçalo Mendes o afastamento para, sob pretexto de arruídos de novas ameaças almorávidas, descer a Coimbra a visitar a sua Buthayna e filhos.

Com felicidade ansiosa o recebia a princesa abádida. Sempre que aparecia, Gonçalo, olhando-a e olhando Belfadar e Belamiz, e Alaroz que era já como de família, dizia-lhe:

- Como o tempo passa! Belfadar vinte anos, Belamiz dezasseis, Alaroz onze...

Ou, no ano seguinte:

- Como o tempo passa! Belamiz dezassete...

Ou um ano, dois, três anos, sei lá, depois... passadas neves, degelos, flores e perfumes, colheitas de pão e vinho, o cair das folhas, o renovo de arcebispos, que o de Braga, Maurício Burdino, fora substituído por Dom Paio Mendes da Maia...

- Belfadar, matado e morto numa refrega com mouros dos Banú Maynún, que surgiram do mar nas praias de Buarcos...

Casara com Fátima e pouco tempo viveu de casamento, deixara uma filhinha que agora fazia cinco anos...

- Belamiz, vinte anos...

Casou com a viúva sua cunhada, de que tem uma filhinha de três anos... Alaroz vinte e dois... e tu, minha querida, sempre bonita!

- É dos teus olhos...

A meio da era de mil cento e cinquenta e cinco, ano do nascimento de Cristo de mil cento e dezassete, os Almorávidas lançaram pesado ataque contra as linhas do Mondego. Ali ben Tâshfín atravessara o estreito, em maio, e desembarcara em Algeciras.

Marchara para Sevilha, onde tratou de organizar formidável exército. Compunham o corpo militar guarnições de al-Andaluz. Um grupo âcfuqahâ, juristas, e de ulamâ, sábios, de Córdova, junta-se à expedição e também a tropa variada de mudjâlidún, os combatentes da fé, de pé e de cavalo. Os fuqahâ e os mudjâlidún encarregam-se da estratégia com a ajuda de voluntários de Granada.

Agrupados os esquadrões, o Príncipe dos Muçulmanos deixa Sevilha e caminha para o vale do Tejo. Passa Santarém, Lisboa, e penetra naquele território indeciso que é e não é de Cristãos e de Mouros, que ondula entre uns e outros consoante de cada um dos lados se correm algaras, arriscam razias.

É vê-los avançar, berberes negros do deserto, mouros tostados de Granada, de Córdova, de Sevilha, jilabas e véus brancos ao vento, a faiscar a floresta de lanças, de alfanges, de adagas, o estrondear do tropel da cavalaria, alazões cor de canela, baios trigueiros, corcéis de jarretes nervosos... Em junho atingem a margem esquerda do Mondego, assolam toda a linha defensiva de Coimbra, os castelos de Miranda, de Santa Eulália, junto a Montemor, e de Soure, colhendo grosso espólio de prata e ouro, gado e pão, de tudo o que é útil, e de prisioneiros. O mais é destruído, o chão encharcado de sangue cristão, moçárabe e mudéjar, e, a vinte e dois do mês, antevéspera de São João, um domingo, chegam a Coimbra sem serem pressentidos, as patas dos cavalos apantufadas de lã, os peões esgueirando-se sorrateiros como bafo de brisa. Grande matança de moradores do arrabalde, fora de muros. Não tiveram tempo de dar o alarme nem de escapar. A cidade achava-se desprevenida: Fernão Pérez de Trava subira ao norte com o mais do exército em missão de apoio às guerras ateadas entre o arcebispo Gelmírez e a rainha Urraca. De roldão com gente do arrabalde, que foge, entram os Almorávidas pela porta de Almedina, pela do Belcouce, na couraça que olhava o rio, pela do Sol, pelo bairro da judiaria, nas ribas de Corpus Christi. A infante Tareja, com o bispo Gonçalo Pais, os cónegos e os poucos nobres que lhe restavam, acouta-se à pressa ao castelo. Quantas cabeças rolam, que grita de aflição vai pela urbe saqueada e destruída! Vinte dias de mortandade e pilhagem na almedina, na sé, a catedral arrasada e as casas do bispo e do cabido, multidão de gente cativa, arrastada, empurrada com violência para as carroças que aguardam à beira-rio.

Belamiz caíra na luta, Alaroz e Soleima perdidos algures ou mortos na luta. Buthayna tenta fugir com Fátima e as meninas. São apanhadas. Fátima tenta defender as filhas. É trespassada pela espada de um mouro. As meninas escapam-se cada uma para seu lado como ratinhos. A princesa é levada, as netas, uma aqui, outra além, são agarradas e conduzidas, a espernear e a chorar, para carros separados.

O castelo muito forte, resistia. Corre fama, entre o exército almorávida de que vem lá do norte, a mata-cavalos, valente tropa cristã com Gonçalo Mendes à cabeça. Ali ben Tâshfin resolve regressar a Sevilha, deixando aos generais 'Abd Allâh ben Fátima e al-Mansúr ben ai-Aftas o prosseguir com o saque da cidade e da região.

- Grande desgraça, meu senhor! - contava Soleima em lágrimas, cheio de sangue, rotas as roupas, a raiva na alma, a Gonçalo acabado de chegar com seus cavaleiros.

- Buthayna? As meninas?

- Grande desgraça! A princesa foi levada mais as meninas, Fátima mataram-na. Belamiz e Alaroz caíram em combate. Grande desgraça!... A cidade ficou como vós vistes...

- Para onde as levaram?

- E sabê-lo? Quando os mouros se retiraram, cada general, cada capitão, cada alcaide levou seu despojo de guerra. Até as meninas, segundo nos contou uma vizinha que tudo viu escondida atrás de um muro esbarrondado... levadas cada uma para seu lado.

- Faremos entradas em toda a terra de Mouros - ameaçava Gonçalo.

Soeiro Mendes, que também acorrera a auxiliar Coimbra, dissuadia o irmão:

- Como poderás encontrar os teus três grãos de trigo no meio da montanha de cereal?

- Hei-de encontrá-las... - e desabafava: - Tenho a alma dorida.

- Alma de guerreiro tem a tempera do aço. Não é dada a molezas do coração. Apega-te a Deus, o último refúgio. Sem ele, não há senão chorar tresmalho tão doloroso.

- Não me conformo - revoltava-se Soleima. - Não me conformo. Partirei de novo. Vestirei meus velhos trapos de mouro e vou à procura delas.

Dias depois, Soleima, de partida para o sul disfarçado de almocreve mudéjar, despedia-se de Gonçalo:

- E esse infeliz menino, filho de Alaroz, que escapou ileso, escondido entre as fraldas, a dormir a um canto na alcofa de giesta?

- Não te preocupes. Dar-lhe-ei ama que dele cuide.

Longos, lentos, largos se filtravam penosos os dias sem notícias de Soleima. Do norte os acontecimentos chamavam os senhores da Maia.

- Temos de ir - dizia Soeiro a Gonçalo.

- E se os Mouros voltam?

- Tão cedo não. Soa que lá para África há dissidências. Revoltou-se a tribo dos al-Mâhadi, os Almóadas. O norte é que nos deve preocupar.

- Eu sei, mas...

- Tareja, que, mal pôde, fora juntar-se ao... a Fernão Pérez...

- Segue o triste exemplo da irmã.

- ... foi cercada por Urraca em Lanhoso...

- Sei disso.

- A traição de Gelmírez levou Urraca a soltar a irmã e fazer com ela pacto...

- ... de que resultou dar a Tareja mais terras do que as que havia prometido ao falecido conde Henrique...

- ... apenas em tenência... Conheces os factos, mas ouve o que só agora me chega ao conhecimento...

-Quê?

- Urraca faz as pazes com Gelmírez. Em Compostela, abandonada do filho e dos nobres, os burgueses, o povo, malavindos com o arcebispo e com a rainha, encurralam-nos na catedral, a que deitam fogo...

E Soeiro Mendes contava ao irmão o que lhe haviam relatado...

- À morte! À morte! - lá fora, a multidão ululava, vociferava:

- Saia só a rainha - diziam vozes mais cordatas. - Os mais serão mortos por ferro e fogo.

A rainha, em tal transe, propõe a Gelmírez saiam ambos:

- Só assim te poderás salvar.

De fora continuam a exigir a rainha, sob palavra de salvação. Ela sai. Alguns burgueses ainda a respeitam, mas a gentinha da turba não se contém, vai a ela, desanca-a, derruba-a, rasga-lhe as vestes, atira-a para um atoleiro, seminua, as vergonhas à mostra, descomposta. A gentalha ri:

- Matemo-la à pedrada - ouvem-se vozes e há já quem se vergue a apanhar rebos do chão, uma velha fere-a no rosto.

Condói-se dela um ferreiro, rapagão possante, que saíra de sua oficina a espreitar o burburinho:

- Tende mão! - brada, colocando-se entre a rainha espojada e os agressores. - Má-raios, que daqui a nada bailareis todos na forca! - e empunhava ameaçador as tenazes.

A turba recua, amaina, desanda, a ira esfuma-se... Ferida, vilipendiada, despida de corpo, Urraca levanta-se, digna e imperial. Não lhe cobre o corpo púrpura real, mas a alma é ainda e sempre de rainha...

- Alma tempestuosa, merece admiração e respeito - disse Gonçalo Mendes.

- Entretanto, o nosso irmão foi preso...

- Preso?

- ... a mando da rainha Tareja.

- Ela já não respeita os serviços que lhe temos prestado... Como foi isso?

- Tu estiveste há pouco lá em cima. Viste como os principais barões portucalenses se foram afastando da corte de Tareja. Nós, os de Ribadouro, Ermígio, Egas e Mendo Moniz...

- ...Sancho Nunes Barbosa...

- ... todos os que havíamos sido favorecidos do conde Henrique... Fernão Pérez é agora senhor todo poderoso no nosso condado... Quando o nosso irmão desceu de Zamora e se dirigiu a Braga, a rainha-infante mandou prendê-lo. Interveio o papa, o arcebispo é libertado. Aparentemente Tareja faz as pazes com Paio, mas ele já ninguém o desvia de seguir mas é o desejo dos barões portucalenses de não aceitarem canga na cerviz...

- ...desejo que parece ser também o do príncipe Afonso Henriques, que está agora nos catorze anos...

- Aí está a razão por que o nosso irmão nos requere em Zamora.

- Coisa grave?

- Digamos antes coisa importante. Estão a ser dados os passos do futuro.

- Explica-te. Continua a luta entre ele e Gelmírez?

- Não.

- ...aqueles bens de entre Minho e Douro?

- Não.

- Reconciliaram-se. O arcebispo de Braga entrou no grémio do cabido de Compostela. O caso é outro. Dir-se-ia que a Galiza se torna nosso modelo.

- Não precisamos de modelo.

- Revoltou-se contra a rainha Urraca e o amante Pedro de Lara. Gelmírez apoia o príncipe Raimúndez.

- E nós, já estou a ver...

- A influência cada vez maior de Fernão Pérez... A rainha Tareja deixa-se dominar.

- O ano passado, o príncipe Alfonso Raimúndez armou-se cavaleiro em Compostela, dia de Pentecostes. E este ano, nesse mesmo dia, em Zamora, o príncipe Afonso Henriques...

- Faz catorze anos.

- ... vai armar-se cavaleiro...

Partiram os dois irmãos caminho de Zamora, onde fazia sua residência o arcebispo Dom Paio. Luziam os cerros da brancura do piorno, do sol das maias, e nos vales amenos toucavam-se de rosa as cerejeiras. Noutras conjunturas lembrariam a Gonçalo a doçura de Buthayna. Agora, caminhava ao sabor da montada, olhava sem ver, nem bálsamo ou tepidez do ar lhe amaciava o sentir. O irmão dava conta, mas respeitava-lhe a amargura calada. Por onde andariam aquelas criaturas de Deus? Tantos anos já escoados! Quisessem os Céus surgisse Soleima a trazer novidades...

Atravessaram a ponte de Zamora na sexta-feira catorze de maio e logo meteram ao paço episcopal ajuntar-se ao irmão arcebispo. Dois dias depois, manhã cedo, ao entrarem na catedral viram o príncipe ajoelhado ante o altar-mor, onde velara armas toda a noite, a túnica vermelha em sinal de estar preparado para derramar seu sangue, a camisa branca símbolo da pureza do corpo, as botas escuras cor da terra a que haviam de voltar. Da sacristia surgia o arcebispo, em grande pontifical, acompanhado de acólitos. Seguiu-se a missa e, no fim, o prelado virou-se para o príncipe e perguntou:

- Príncipe Afonso Henriques, quereis receber a ordem da cavalaria?

- Sim - respondeu o príncipe.

Em cima do altar encontravam-se as esporas, a loriga, a espada de cavaleiro. O arcebispo benzeu-as. Levantou-se então o príncipe e de suas próprias mãos ajustou as esporas, vestiu a loriga, cingiu-se a espada, desembainhou-a e, com ela erguida na direita, sem esperar que o arcebispo lhe dirigisse o juramento, disse com voz firme:

- Juro que não hei-de temer a morte em defesa de minha lei e de minha terra. Prometo guardar, cumprir e fazer cumprir todos os costumes, foros, leis e direitos.

- Deus vos guie no seu santo serviço e permita que cumprais as vossas promessas - disse o arcebispo traçando no ar a cruz e, descendo do estrado, deu ao príncipe o ósculo de fraternidade entre os membros da ordem, e todos os cavaleiros presentes fizeram o mesmo.

 

                                           Intermezo trigésimo

- Porque fizeste isso? - perguntei a Randulfo.

O sacristão olhava para mim, para o meu ajudante, sem compreender o que se passava.

- Porque pegaste na tua faca e o desafiaste? Que perversa intenção é a tua?

- A faca é dele? - perguntou o sacristão.

Randulfo, como alheado, limpava agora as unhas com a faca que parecia punhal e a meia voz ia dizendo como cantilena:

- Eu tive um pai, tive uma mãe. Que é feito deles? Houve depois alguém, não me lembro bem, era pequeno, que me protegeu e trouxe para esta terra. Também se sumiu ou vive algures disfarçado, escondido, sei lá, atrás de alguma máscara... Tantas máscaras me rodeiam...

- Ouviste o que te perguntei?

- Hem? Ouvi, pois. Apenas queria ver como ele reagia à vista de outra faca que não a sua. Aqui parece que toda a gente tem facas. Porque não lhe mostra o mestre a sua? Vá, mestre, coragem. Mostre-lhe a sua linda faca, aquela com que...

- Que estás a dizer, desgraçado? Hás-de pagar-mas um dia destes e nesse dia...

O sacristão empertigou-se e disse:

- Vós os dois aí. Se pensais que me intimido, estais enganados. Muito tenho passado na vida e sei manejar faca e punhal como ninguém.

Já os tive de usar para me defender e para defender aqueles a quem quero bem. À minha beira sois aprendizes no ofício - e o sacristão ia saindo. À porta, virou-se para nós: - Conheço mais dos vossos segredos do que vos poderá passar pela cabeça. Tende cuidado comigo.

- Andais feito com o meirinho-mor? - chocarreou o meu ajudante.

Sem dar resposta, o homem saiu. Randulfo riu-se, como se nada tivesse sucedido:

- É bexigueiro este sacristã. Não é só ele que se esconde por detrás de máscaras... Mas neste momento ocupa-me mas é o espírito aquilo da vossa crónica em que se conta... Então a princesa, aquelas meninas, levadas cativas, reféns, escravas...? Jesus!... E a rainha Urraca? Pobre rainha!...

 

                                           São Mamede

Ao sair de Coimbra na pegada das tropas inimigas, Soleima, no alto de um cerro, ficou perplexo. Os exércitos dividiam-se. Atravessado o rio, seguiam alguns batalhões em direcção a oeste, outros para sul, outros para leste.

Aqueles, pensou, vão para as bandas do mar, os do meio a caminho de Santarém, os da esquerda deitam a Idanha. Embarcarão os do mar, como de lá vieram, em suas naus. Inútil persegui-los. Que me resta? Os outros dois. Santarém? Idanha? Acudi-me, Deus dos Cristãos e dos Agarenos!... Idanha é caminho mais a direito para Sevilha, para Córdova...

Decidido, Soleima acicatou o cavalo e botou para leste...

Lenta seguia a tropa almorávida, por via da carriagem pesada de despojo e cativos. No planalto de Santarém parou e logo armou acampamento. Judeus comerciantes, senhores árabes, os moçárabes, o povo miúdo acorriam na mira de negócio.

A mulher de um dos comandantes do exército, o vali de Beja, aguardava entre a turba com suas aias. Os carros descarregavam, como gado, os reféns. A neta mais velha de Buthayna pulou em terra, os olhos vermelhos e inchados, e, com outros, valeu-se de uma bouça para aliviar apertos. Não muito apartada, estacou a carroça em que vinha a menininha de três anos. Adormecera em soluços ao colo de uma formosa cativa que se esquecia da própria desgraça - oh ! minha linda!

- apiedando-se Seguiam em suas montadas caminho de Guimarães a juntar-se ao príncipe Afonso Henriques, que congregava à sua volta os gentis-homens de Ribadouro, para enfrentarem as forças de Fernão Pérez de Trava que vinham lá em pé de guerra.

- Admiti-lo-ia - continuava Dom Paio -, se ela, por mor da funesta paixão por esse galego de má pêlo, não abandonasse a linha de conduta que herdara do conde Henrique seu marido...

- ... que Deus tenha...

- ... e até aí seguida: continuar a lutar por acrescentar o condado portucalense e retirá-lo da dependência e vassalagem de Leão e Castela. E que está agora a acontecer? O contrário e talvez pior. Pérez de Trava, dominando Tareja está a levar-nos a sermos sorvidos pela Galiza. Isso não permitiremos.

- O príncipe está do nosso lado...

- ... e resolvido a dar luta à própria mãe...

- ... e ao estrangeiro, que é já cônsul do Porto e de Coimbra, senhor com seu irmão Bermudo, de quase todo o condado...

- Olhai esse, casado até com uma irmã do príncipe, genro da rainha e senhor da província de Viseu...

- E tudo isso, sem que ela se oponha. Ainda a desculpais com ser amorosa?

Chegados a Guimarães, reuniram-se com o príncipe e os demais barões de entre o Ave e o Lima, de Braga, de Ribadouro, de Refóios, de Panóias, de Santa Maria... Ali se via o aio Egas Moniz e seus irmãos Ermígio e Mendo, Paio Ramires, senhor de honras de Priscos e terras de Marecos e Veromar, Mem Viegas, dos Sousas, e Egas Mendes, alcaide do castelo do Neiva, Paio Soares, alferes que foi do conde Henrique, os ricos-homens Mem Fernandes, Nuno Soares, Sancho Nunes, que depois casou com outra irmã do príncipe, Garcia Soares e, distinguindo-se pela galhardia, o irmão bastardo do infante, Pedro Afonso.

- Espalhei atalaias por todo o lado - explicava Gonçalo Mendes, que fora encarregado de dirigir as operações dos esculcas, convidado agora pelo príncipe a expor a situação à assembleia -, homens de confiança, de cavalo. A todo o momento chegam com notícia dos movimentos do inimigo. Vêm do norte reforços. Galegos e leoneses. Não muitos e com tíbia vontade de se baterem por causa que não sentem sua... Atravessaram o rio Minho, passaram por Ponte do Lima, por Ponte da Barca e, pela ponte romana de Caldelas, sobre o rio Homem, e pela de Amares, sobre o Cávado, chegaram a Póvoa de Lanhoso. É aí a concentração das tropas.

- Umas boas léguas daqui... - ponderava Egas Moniz.

- Do sul caminha Fernão Pérez, com pouca gente que vem engrossando do passo que avança. Botou a Seia, a reunir a gente do irmão Bermudo. Seguem os dois por Celorico, Trancoso, em Lamego transpõem o Douro, entram em terra de Basto e estão quase a alcançar Póvoa de Lanhoso.

- Evitam, a norte, Braga, que é nossa - disse o príncipe -, o Porto. Tenha embora por cônsul a Fernão Pérez, os burgueses portuenses são-lhe hostis...

- Quanta gente? - perguntava Mem Viegas.

- Não mais de meia centena, cavalos de batalha e animais de tiro, carriagem, peonagem... - calculava Gonçalo Mendes. - Ao todo cerca de trezentos homens.

- E nós? - buscou saber Ermígio Moniz.

- Reuniremos - respondeu o príncipe - mais de seiscentos. Cem de cavalo, lanceiros, besteiros, archeiros, uma hoste ordenada, bem armada. Como estamos em casa, não necessitamos de carriagem nem da peonada dos concelhos, apoiados que nos encontramos na guarnição do castelo. Mas desta vez não nos deixaremos cercar como o ano passado em que meu primo, o rei de Leão e Castela, nos veio assediar. Sairemos a campo a dar-lhes luta.

- Atacar é melhor prática que defender-se - disse Gonçalo Mendes.

- Eles que venham.

- Iremos ao seu encontro...

- ... a dar-lhes as boas vindas.

E eles vieram. Era junho, domingo, dia de São João. Ouvida missa manhã cedo, Afonso Henriques reuniu os seus homens. Haviam descido de Lanhoso as tropas de Fernão Pérez e agrupavam-se junto a São Torcato. Os portucalenses, ao fim de uma hora de caminhada pelas ribeiras do Selho e de Aveleira, chegam ao teso que olha sobre a planície de terras de semeadura, e avistam o inimigo. Pela encosta descem ao campo de São Mamede. Os peões formam, floresta de lanças em riste, atrás archeiros e frecheiros, a chuva de disparos aprontada. Da serra de Santa Catarina acudirão de surpresa cavaleiros que logo rodearão o inimigo desordenado e indeciso. Pendões ao vento, impacientes como os guerreiros naquele instante de suspensão. A um brado do príncipe atacam os portucalenses em corrida e estrépito de cavalgada e grita medonha, brandindo espadas, apontando lanças, negreja, silva e reluz pelo ar nuvem de setas...

Gonçalo Mendes, espada na mão, apressa a montada, investe. Por instantes, ao passar, relançou o olhar ao filho de seu irmão Soeiro, Gonçalo Soares, a quem chamavam o Mouro por sua mãe ser uma linda moura de Santarém. Que garbo e bravura no lutar! Como gostaria de ver ali, naquela hora, o seu próprio filho Belamiz mais o irmão Belfadar mais o primo Alaroz! Todos caídos já a combater os Almorávidas!...

O inimigo vacila, atónito, a retaguarda recua, dispersa, debanda. Os da frente, caídos os primeiros, deitam a fugir. Fernão Pérez e o irmão dão de esporas em retirada mais os seus homens, os que puderam ir atrás dele. Os que se atrasam são feitos prisioneiros...

- A eles! A eles! - bradava o príncipe esporeando o cavalo. - Expulsaremos os estrangeiros da nossa terra.

Terra, senhorio, tenência, presúria, herdade, quinta, honra, campo, casa, meu, minha, o rio, a ribeira, o poço, a nora, o cão, a galinha, o boi, a vaca, as colheitas, a mulher e os filhos... eram estes e outros que tais os termos em que na mente das gentes e de barões, condes, gentis-homens, cônsules, reis, se começava a acender chamazinha de um sentimento que ainda não tinha palavra.

A rainha-infante preferira aguardar no castelo de Lanhoso o desfecho da batalha. Horas inquietas em seu coração. Que se passa comigo? pensava. Que aperto de alma ou de consciência é este? Desconheço-me. É esta aquela filha de Alfonso sexto perseverante e destra no prosseguir o propósito do conde meu marido? Não é a luta do meu filho afinal a minha luta de sempre? Mal-estar por a ter abandonado? Mas não fora, a princípio, minha intenção o aproveitar-me de Fernão Pérez para, ao contrário dos cálculos dele, estender eu o condado portucalense pelas terras da Galiza, em vez de a Galiza se vir apossando das terras do condado? Depois... depois começou a nascer esta paixão e eu cedia, cedia, sem forças nem ânimo nem ganas de me opor... Têm eles razão, os meus opositores? Levanta-se o povo portucalense, meu filho seu cabeça... E este amor, esta paixão domina-me... Dei ao companheiro poder e mais poder, afastei o meu filho dos actos e responsabilidades do mando e agora luto contra ele pelas armas?... Revolta-se-me o espírito. Toda eu sou tumulto, contradição dentro de mim. É nobre o sentimento que trago no coração...

A formosíssima, a dulcíssima Tareja, como gostava de lhe chamar o conde seu marido, ouviu o tropel dos cavaleiros que lá vinham em fuga desvairada.

Compreendeu o desastre da batalha e que lhe terminara a autoridade. Saiu à crasta e montou seu corcel.

- Depressa! Depressa! Sus! - bradava Fernão Pérez, entrando - É preciso fugir! Depressa! A caminho do norte, da Galiza!

E a rainha fugida seguiu, em pronta cavalgada, o companheiro e os restos destroçados do exército...

Dois anos volvidos no exílio, Tareja falecia. Ad aeuum 1168, obiit Donna Tarasia mater domini Alfonsi, Kalendas novembris, o dia um de novembro do ano do nascimento de Cristo de mil cento e trinta... Os seus despojos vieram repousar na sé de Braga junto do conde Henrique... A sufragar a sua alma, em doação de terras à sé de Coimbra, Fernão Pérez prestava-lhe sentida homenagem, amaldiçoando todos aqueles que contrariassem e pretendessem anular essa sua derradeira vontade: abrisse-se-lhes a terra e os engolisse para as profundas como a Dathan, Core e Abiron...

 

                                               Intermezo trigésimo primeiro

- Tenho estado a pensar, mestre, nesse chegarmo-nos às gerações próximas de nós...

- Assim é, Randulfo. Morrem uns para darem lugar aos mais novos. Esta é a normalidade. Se às vezes morrem primeiro os mais novos, é caso de excepção. A guerra, a doença...

- ... o punhal assassino...

Olhei-o de modo que ele arrepiou caminho:

- Belfadar, Belamiz, Alaroz... - pronunciava estes nomes com ar sonhador... De repente, disse. - Um deles podia ser meu pai...

- Podia.

Esteve um longo momento calado, enfim adiantou:

- Tenho a vaga lembrança de, em criança, ter sido trazido não sei de onde, para aqui... uma longa cavalgada, alguém me trazia, no meio de muitos cavaleiros armados... Depois... começo a ver-me no mosteiro a ser educado pelos frades, até que vós...

- ... te fui buscar e trouxe para a minha beira, para meu ajudante. Assim é, Randulfo.

- E quanto à minha trazida? De onde? Quem?

- A seu tempo o saberás. Já não falta muito. Tem paciência. Mas eu bem via que Randulfo andava impaciente. Dir-se-ia

que não eram só aqueles pensamentos que o trabalhavam, mas os outros, os atinentes ao medo que trazia no tutano da alma, do corpo, da pele, de que os meirinhos me entrassem um dia pelo scriptorium dentro. Muitas vezes dei com ele a murmurar para consigo

- E se eles vêm?

 

                                             Desencontros

«Que mulher formosa é esta que aí vem?» o poeta Ibn Muqânâ perguntava, não longe do mar, arredores de Sintra, andavam-lhe os servos o campo a lavrar. Podoa na mão, por instantes quedara na pedra sentado. A moura chegava à fonte por água, descalços os pés, ondulante na anca a ânfora de barro, o corpo magoado na veste andrajosa.

«Escrava» diz o velho, «muitos dias há que olho pra ti, teu andar compassado, os braços roliços, esguias as mãos, torneado o colo, os olhos dois poços, a noite do cabelo onde já rebrilha algum luar da idade... Fazes-me lembrar a moça mais bela que alguma vez conheci em meus dias, vai para um ror de anos...»

«Tu és velho, senhor» respondia Buthayna, «mas pra lá das gelhas do rosto, do quebrar da voz, também a mim me lembras um moço poeta que conheci outrora, de voz maviosa e dúlcidos versos. Não te chamarás acaso Muqânâ?»

«Ibn Muqânâ al-Ushbúni eu sou. Na corte vivi, junto ao Guadalquivir, de um grande e infeliz rei...»

Dois rios de lágrimas dos olhos corriam a Buthayna ao ouvir tais palavras:

«...al-Mutâmid esse rei se chamava» murmurou em soluços.

«Porque choras, mulher? Como sabes seu nome?»

«Da rainha, Itimâd era o nome... e os filhos...» e a voz afogava-se-lhe e não podia falar.

«Quem és tu, que me recordas...»

«Eu era escrava na corte do rei» Buthayna mentia.

«Escrava?»

«Tocava alaúde, cantava e dançava e era feliz. Lembro-me de ti, dos teus versos, ao serão nas noites de inverno...»

«Esse rei tinha uma filha, a mais linda moça que jamais existiu... Essa filha... Deixa ver se me lembra... chamava-se...»

«Era a princesa Buthayna.»

«Buthayna. É isso. Que foi feito dela...»

«De África um dia vieram os berberes Almorávidas...» e a pobre Buthayna chorava, chorava... «Infeliz princesa! Quando o rei foi preso e exilado, a ela em almoeda a venderam...»

«Seguiste com ela?»

«A mim me levaram para longes terras. Não mais soube dela...»

«Da corte dos Abádidas» o poeta acudia a tentar atalhar pranto tão sentido «passei à dos Zíridas, na formosa Granada. Chegou lá a guerra. A queda de uns reis, a subida de outros, que entre si se matavam apesar de irmãos, cansado da fugaz glória de reis e de príncipes, tudo abandonei e vim para aqui, para este canto de Alcabidexe que me viu nascer. Levo vida simples. Com esta podoa aparo minhas árvores, vou limpando a vinha, enquanto me os servos aram, semeiam, mondam este magro campo que é o meu sustento.»

«Santa vida levas, Ibn Muqânâ» a princesa o choro enxugava. «Compense-te Allâh com saúde e te dê longos anos.»

«Possa homem nunca ter falta de grão para semear nem de cebolas nem de limões, um moinho movido pelas nuvens sem precisão de nascentes. Avara é a terra de Alcabidexe. Ainda quando o ano é bom, não dará mais de vinte cargas de cereal... se algo mais, logo os cerdos do monte e dos brejos, em varas espessas, dão nela. Pouco produz, como eu que sou duro de ouvido e creio não me disseste ainda o teu nome...»

«Mas vives feliz» a responder Buthayna fugia, «ao passo que eu, saudades me roem...»

«Deixei os reis em seus mantos de púrpura, renunciei a acompanhá-los nos vistosos cortejos e a viver à sombra deles. Saudades? Quando deixares de tê-las, como eu, que vivo cortando silvas, mondando o pão e amanhando as vides com uma podoa ágil e bem afiada, serás livre e feliz.»

«Mataram-me os filhos, levaram-me as netas menininhas cativas, o esposo lá longe na guerra... Como posso ser feliz?...»

Por todo o al-Andaluz, não encontrou Soleima rasto de Buthayna nem das meninas. Em Sevilha, recordou com saudade os tempos ditosos que ali, a seu modo, vivera e despediu-se do Guadalquivir sem vontade de aí voltar.

- Ao poder abádida sucedeu o poder almorávida - ia pensando enquanto saía da cidade. - Não tarda nada, já se ouvem rumores, estejam aí os Almóadas. Estes que se precatem.

Os Almorávidas, se bem começassem a ter de dar atenção ao movimento que nas suas costas, em África, se levantava, não deixavam de se defrontar com os Cristãos, que, por os crerem distraídos com os berberes almóadas, tomavam ousadia e atacavam-lhes as posições.

Muitas vezes tivera Soleima de fugir apressado, para evitar as ocasiões e lugares de batalha. Nem sempre lhe fora possível. Como no inverno da era de mil cento e setenta e dois. Descia pelo Alentejo, andava Alfonso sétimo a fazer razia por terras de Badalhouce, Évora, Beja. Soleima apressava o burrico de almocreve, pretendia subir ao alto da serra del Colorado, mas foi apanhado. Soleima achou mais seguro deixar-se integrar na carriagem como ajudante. Ao encontro do rei de Castela avançara Ali ben Tâshfin com exército poderoso e de novo combateram junto de Zalaca, onde havia, anos antes, triunfado seu avô Yusuf ben Tâshfín.

As tropas almorávidas assentaram campo e formaram as linhas de batalha. Tâshfín ao centro com a sua gente e os chefes das circunscrições militares, bandeiras brancas com versículos do Corão; os grandes do reino nas duas alas, os pendões vermelhos com inscrições medonhas; nos flancos, gentes das fronteiras e os veteranos; na vanguarda, os Zanatas e as tropas mercenárias, os belos estandartes desfraldados ao vento. Tâshfín levou a melhor, libertou os cativos das mãos de Alfonso sétimo, fez abundante saque e muitos mortos... No fim, na hora do regresso, Soleima retomou o seu ofício de almocreve e separou-se do exército.

No verão, já andava a buscar por senhorios dos condes de Barcelona. Alfonso primeiro de Aragão, animado com a vitória sobre Saragoça, Tudela e Calatayud, avançou contra Fraga, que sitiou. Pediram os sitiados auxílio a Ibn Ghânia, governador de Valença e de Múrcia:

- Se não acudires - ameaçavam -, render-nos-emos a Ibn Ramiro e dar-lhe-emos o governo de Fraga.

Não foi preciso renderem-se ao filho de Ramiro, Alfonso de Aragão, que Ibn Ghânia se dispôs a acudir de pronto.

- Partes para a guerra? - disse-lhe um familiar. - Como te apresentarás a Ali ben Tâshfín, se fores derrotado?

- Ele que faça de mim o que quiser - respondeu e partiu a lutar com o aragonês e o venceu..

Soleima ouvira contar estas coisas e que Alfonso primeiro se refugiara em Saragoça, a morte na alma e no corpo, que, daí a alguns meses, falecia...

Regressado a Sevilha, despedindo-se do Guadalquivir, Soleima subia para norte, entristecido e desanimado. Desejava voltar aonde o seu coração e não achava outro lugar que não fosse viver o resto dos seus dias perto de seu senhor Gonçalo Mendes. Como estaria ele? O tempo fugia... Ainda estaria vivo?... Metia por Mérida, chegava a Cória, a Idanha...

Em outubro, os rumes portugueses atacaram e penetraram na Extremadura. Tâshfín pede a Abú Yaqúb, governador de Sevilha, saia com suas tropas ajuntar-se-lhe na planície de Arrifana, a algumas léguas de Porto da Carne, nas bordas da estrada romana que corre do sul por Mérida, Saragoça até Astorga. Reunidos os exércitos, seguem a estrada até ao albacar de Pinhel, região de criação de gado e de transumância para o Alentejo. Houve luta. Sem esperar saber o resultado da refrega, Soleima evitou-os. Alguns dias depois atingia Coimbra. Ouviu que, não muito longe, nas margens do Lis, em lugar ermo de densos bosques coberto, em alto teso que olha léguas em redor, erguia Afonso Henriques forte castelo que aliviasse o de Soure e fosse atalaia contra as devastações dos Mouros. Deixara nele guarnição de defesa e como alcaide o excelente cavaleiro Paio Guterres, e logo acudira a Tomar, onde os Muçulmanos tentavam ocupar escarpado morro, em que ainda se viam, por terra, pedras de castro romano. Foi infeliz jornada, que o inimigo, mais numeroso, deu nos Cristãos junto ao rio Nabão e dali o varreu para norte.

Em todas estas acções não ouvira Soleima pronunciar o nome de Gonçalo Mendes. Buscou saber. Por esse tempo, o decano dos cavaleiros portucalenses abeirava os noventa anos e havia-se retirado para o seu castelo de Águas-Santas. Soleima decidiu ir ao encontro dele e meteu-se a caminho...

Um mês depois chegava a Águas-Santas. Desolação o castelo! Nunca como agora sentira Soleima a falta de Buthayna e do bulício das crianças. Balbina morrera. Gonçalo Mendes vira desaparecerem um após outro os seus dois irmãos, primeiro Soeiro, e, dois anos depois, o arcebispo. Desgosto sobre desgosto, concertou seus negócios nas terras da Maia e decidiu continuar a colocar seu braço ao serviço do jovem senhor dos portugueses.

Sentou-se Soleima uma manhã, sem saber que fazer, no portal da igreja de Santa Maria do Ó.

- Deus te salve, forasteiro - saudou-o o prior assomando à porta.

- Forasteiro, senhor prior Armirigo?

- Conheces-me?

- E Vossa Reverência não me está a reconhecer a mim? O prior aproximou os olhos do rosto de Soleima:

- A vista cansada... Todo eu sou mazelas... doem-me os ossos... o corpo inteiro.... Não. Eu conheço-te?

- Sou Soleima, prior Armirigo.

-Ah! Eu que não te reconheci. Perdoa-me... Mas... que estás aqui a fazer? Há anos que não te via por cá!

E Soleima contou ao prior as suas andanças até ao regresso e a desolação em que encontrara o castelo...

- Entra, entra. Falaremos lá dentro mais à vontade. Entraram. O prior levou-o a jantar consigo.

- Foi Deus que te trouxe, amigo. Estou sem sacristão. Não quererás ajudar-me? Começarás por tanger a campa às ave-marias. Já não é para os meus braços puxar aquela corda...

O prior Armirigo indicou a Soleima onde Soleima se havia de aposentar:

- Terás aqui os teus cómodos, quarto, mesa, tudo... Ficas?

- Fico, sim. Não tenho aonde me arrimar...

A tarde caía, Soleima tocou a campa e foi-se chegando para a ceia. Puseram em dia as novidades de um e outro.

- E que é feito, dizei-me, senhor prior, de um rapazinho que o senhor Dom Gonçalo mandou de Coimbra para aqui? Tinha-lhe morrido o pai em combate com os Mouros, a avó e as primas haviam sido feitas cativas e levadas não se sabe para onde...

já passaram tantos anos. Elas devem estar mulheres feitas... e o rapaz?

- O rapaz? Sei de quem falas. Lembro-me bem de o terem trazido. Está ao cuidado dos frades do mosteiro. Não podendo servir nem para a igreja nem para a guerra, por lá anda a cultivar as possíveis humanidades...

                                             Intermezo trigésimo segundo

No silêncio da quadra, enquanto eu me dedicava à escrita, em sua banca Randulfo concentrava-se na cópia do meu manuscrito, quando se ergueu tão súbito que o assento caiu:

- Céus! Então um dos dois era meu pai! Belamiz? Se foi Dom Gonçalo Mendes que me trouxe... Eu sou neto de Dom Gonçalo? Dizei-me, mestre. Chegou a hora da verdade.

Pousei de meu vagar a pena no descanso do tinteiro e disse:

- Não, Randulfo. Alaroz é o teu pai.

- Alaroz!... E morreu em combate, em Coimbra.

- Sim.

Ficou momentos longos a ruminar a revelação. Por fim disse:

- ... e eu sou primo dessas meninas que os mouros levaram...

- Sim.

- ... e criado pela princesa Buthayna...

- Sim. Até que ela também...

- ... foi levada não se sabia para onde, mas a vossa crónica esclarece... A vossa crónica esclarece tanta coisa!... Agora sei que o sacristão é Soleima. Eu devia ter adivinhado por aquela cicatriz sob a barba... e aquele nome Moseila que mais não é que Soleima, e Gonçalves, como quem diz que seu senhor é o conde Dom Gonçalo... E também sei que Buthayna foi levada para perto de Sintra, para Alcabidexe. Que lhe aconteceu finalmente? Porque a não foi buscar Dom Gonçalo... ou Soleima?...

- Não queiras saber tudo de uma vez.

Estava porém escrito que aquele era dia de epifania. Aproximava-se a hora de jantar, saímos para casa. Quando lá chegámos, Soleima, no rosto o clarão da ventura, falava com Imena e Zoaira, que abraçadas sorriam e lacrimejavam.

- Senhor cónego - exclamou Soleima -, venha cá, venha ver. Encontrei as minhas meninas...

-Quê?

- Encontrei as minhas queridas meninas... E eu tão perto delas e que não via, não sabia!...

As raparigas, ambas, exibiam ao peito os arozinhos de ouro que costumavam trazer escondidos.

- Somos irmãs - disse Imena beijando Zoaira.

- Quando aqui cheguei, elas falavam dos anéis que acreditavam a mãe lhes dera à hora da morte. Uma reminiscência longínqua, nebulosa. Aproximei-me e reconheci aquilo que eu só, no mundo inteiro, conhecia. Aqueles anéis sabia-lhes eu a história e porque eram tão estreitinhos que agora que elas haviam crescido, lhes não cabiam nos dedos. E, quando vi os nomes gravados, IMENA e ZOAIRA, com grande espanto soube quem eram.

- Como não descobriste há mais tempo? - perguntei intrigado. - Se lhes sabias os nomes...

- Eu estava habituado a ouvir chamar-lhes, quando iam à igreja, pelos nomes cristãos, Rosa, Catarina... Como só aqui, na vossa intimidade, parece, usavam os nomes mouriscos...

- Entendo.

- Contei-lhes então o segredo do nascimento delas mais o dos anéis... que Imena era filha de Belfadar e de Fátima, que, depois de Belfadar morrer, casou com Belamiz, de quem nasceu Zoaira, que elas são netas da princesa Buthayna...

- Então são minhas primas - rejubilou Randulfo e beijava Imena e beijava Zoaira, sua mulher e prima em terceiro grau...

- Mas não foi a mãe comum delas, Fátima, quem lhes deu os anéis. Foi a avó, Buthayna, que o coração pressago lhe estava prenunciando se haviam elas de extraviar um dia uma da outra...

- Como se separaram?

- Imena contou-me. Em Évora, a mulher do vizir ficou com Zoaira, enquanto Imena seguia para uma aldeia perto de Beja. Os anos passaram e não mais se viram e Imena perdeu a lembrança do nome da irmã...

- ... e depois - rematei eu - Deus trouxe-as um dia, faz prài quatro anos, no meio de multidão de cativos colhidos em saque de cristãos e eu tomei-as a meu serviço, antes que fossem vendidas em almoeda de escravas...

- Louvado seja Deus! - disse Randulfo.

- O dia é de festa - concordei.

- Eu fiz um folar - anunciou Imena. - E se comêssemos dele e bebêssemos do vinho?

- Bravo! Comemoremos este dia de revelações felizes. Mas, a contrariar-me, ouviram-se passos escada acima e o meirinho-mor entrou e, sem mais, fez sinal aos oficiais, que logo avançaram para Randulfo, lhe ataram os pulsos nas costas e o empurraram porta fora com violência.

- Não! Não! - berrava e chorava, os olhos cheios de terror, o pobre Randulfo.

 

                                           A morte do Lidador

- Um fossado a fundo por terras de Mouros, senhor rei

- disse Gonçalo Mendes ao infante Afonso, filho do conde Henrique -, é do que eles estão a precisar.

- Chamas-me rei?

- E porque não? Não se intitulou rainha a infante Tareja? Depois de São Mamede, não ficastes vós senhor do condado portucalense e herdeiro da rainha vossa mãe? Porque não havereis de ser chamado rei?

- Prudência, Dom Gonçalo, prudência. Alfonso de Leão e Castela limpou seus reinos de aragoneses, aquietou a Galiza, anda agora ocupado ao sul com os Mouros. Não desejo que volte a atacar-nos como já o fez. Em Tui me encontrei com o rei meu primo. Fizemos as pazes.

- Sois vassalo dele?

- Aliado... na guerra contra o inimigo comum.

- Os Mouros?

- ... qualquer inimigo comum...

Entrava o verão da era de mil cento e setenta e sete, chegava a Coimbra, vindo do norte, e houve conselho com os seus barões. Entre estes distinguem-se, pela autoridade do prestígio e da idade, Egas Moniz e Gonçalo Mendes da Maia.

- Bem claro no meu espírito, senhores, o que cumpre fazer - disse Afonso Henriques.

- Assegurarmos a protecção das terras de Portugal. Para tanto, reforçaram-se as defesas de Soure, que entreguei aos Templários, as de Montemor e Penela, do Arouce, com a construção do castelo de Leiria...

- Não fomos felizes em Tomar - interveio Gualdino Fafes.

- Os Muçulmanos não vêem com bons olhos estes ataques a território que consideram seu - ponderou Sancho Nunes, cunhado do príncipe.

- Terra de ninguém - respondia-lhe Afonso -, que cedo será nossa, para podermos investir contra Sintra, contra Santarém, Lisboa e, depois...

- Sentem-nos agressivos - explicava Gonçalo Oveques - e reforçam também as suas defesas, lançam ataques às nossas posições.

- Por isso - disse Gonçalo Mendes - sugeria há pouco um fossado profundo para lá do Tejo. Começariam a preocupar-se mais lá para baixo, a distrair as suas tropas em defesa do sul...

Assentiu o príncipe com entusiasmo:

- Bem encaminhado tenho o corregimento de nossas fortalezas. Seguro de que Castela nos não fará guerra, apraz-me a ideia de entrar por terra de Mouros, o Alentejo, especialmente nas partes do campo de Ourique, região despovoada, poucas fortalezas e as que há mal fortalezadas. Abundância de mantimentos, boas ganças... Quero pelejar com o rei Ismar, senhor de toda a terra de Mouros a ocidente...

- ... senhor da Extremadura, sendo vencido ficarão os Mouros sem poder defender-se.

- Tenho que as nossas tropas estão guarnecidas de boa gente e que somos abastosos para pelejarmos com ele.

- Não os minimizemos - disse Egas Moniz. - Num instante, vêm eles, com tantas gentes de ajuda, que farão connosco infinda desigualdança: cem mouros para um de nós...

- Não será tanto assim... E mesmo que fosse? Não nos metem medo. Conquistar o sul até ao Gharb, até ao mar, é o meu propósito.

Concordaram os conselheiros.

- Preparemos, pois, esse fossado.

- Os espiões deles não podem dar-se conta.

- Iludi-los-emos.

- Iludi-los? Eles é que acabam de nos iludir. Fizeram razia inesperada e caíram a arrasar o castelo de Leiria. Se começamos a preparar numeroso exército, damos nas vistas.

- Concentrações dispersas no tempo e nos lugares. Ficarão indecisos...

- Seremos como alcateias de lobos. Serras, bosques, bons esconderijos... Passaremos para a reguarda deles. Pelas catraias e portelas da Lousa, pela Gardunha, atingiremos Idanha. Sairão uns ao sul por Alcântara, passarão outros o Tejo em barcas, em lugar deserto, e caminharão pelas charnecas grandes e despovoadas que aí há e todos, uns vindos de um lado, outros de outro, entraremos nos campos muçulmanos.

- Quando derem conta, pedido de socorro a Sevilha, a Córdova, já será tarde...

Desde que o príncipe houve sua fazenda aderençada, partiu-se de Coimbra ele e todos que com ele iam e, a poucas jornadas dali, adoeceu e morreu o seu aio Egas Moniz a que Deus perdoe. O príncipe mandou tornar com ele suas gentes, aquelas com que ele veio e com que poderia ir honradamente e mandou o enterrassem no mosteiro de Paço de Sousa. Como quer que lhe muito pesasse a morte de tão honrado cavaleiro, não deixou de fazer aquilo que tinha em sua vontade e partiu muito apoderado daquele lugar.

Começaram a guerrear os Mouros, vencendo-os em cavalgadas e escaramuças. Soube el-rei Ismar como ele era entrado em sua terra e que tanto mal fazia, mandou requerer a toda a Mourama de al-Andaluz e a seus alvites, homens entre si de santa vida, acorressem à terra que estava em ponto de se perder e para isso vieram tantos mouros de além e de aquém-mar e outras gentes bárbaras que era multidão de ver, entre as quais quatro reis cujos nomes não achamos escritos.

O príncipe Afonso, quando soube parte da vinda de el-rei Ismar, foi disso ledo.

- Cinco reis, senhor, contra um - disse Gonçalo Mendes ao príncipe Afonso.

- Pelas cinco chagas de Cristo, Gonçalo, que os havemos de vencer...

E moveu contra ele e andou suas jornadas para o encontrar e veio ter a um lugar que ora é chamado Cabeços de El-Rei, a par de Castro Verde. Aí armou acampamento.

Ao romper da manhã, em sua tenda, enquanto se fazia armar, ordenou dessem as trombetas e atabales e anafis. Logo se levantaram todos e começaram a confessar-se e ouvir missas e comungar com devoção. Isto acabado, partiu o príncipe sua tropa em quatro azes. Na primeira e segunda trezentos cavaleiros e três mil de pé, em cada uma. As costaneiras cada uma com duzentos cavaleiros e dois mil homens de pé.

Oh, Deus! Como avançava gentil o príncipe Afonso em seu cavalo formoso coberto de suas armas, a cruz direita de azul em campo de prata! Vem na primeira az com seus cavaleiros, tem por alferes Paio Pais, na dianteira, com o pendão, acompanhado de Diogo Gonçalves, grande rico-homem. Na reguarda, Lourenço Viegas e Gonçalo Mendes, na costaneira esquerda Mem Moniz, na direita Martim Moniz. Quando o sol foi arrancado e feriu nas armas deles, esplandeciam e luziam elmos e lorigas, espadas e lanças, como aqueles com quem a graça de Deus ia, ainda que fossem poucos, e não havia poder que os não temesse.

Postos em campo, os Mouros fizeram de si doze azes de muitas gentes, assim de pé como de cavalo. O mesmo sol arrancado que feriu e resplandeceu nas armas cristãs, feriu e resplandeceu nas armas dos Mouros, como aqueles com quem a graça de Allâh ia, e eram multidão, e não havia poder que os não temesse.

Quando os senhores e os grandes homens do príncipe viram as azes dos Mouros arranjadas no campo, chegaram ao príncipe e disseram:

- Senhor, nós vimos a vós que nos façais uma mercê, que será grande honra aos que morrerem e a toda sua geração...

- Dizei. Coisa que em meu poder seja fazê-la, fá-la-ei de boa vontade.

- O que todas estas gentes vos demandamos é que consintais em ser feito rei e haverão estas gentes maior esforço para pelejar.

- Amigos - respondeu o príncipe -, senhores, irmãos. Assaz de senhorio tenho entre vós, que sempre fui de vós bem servido e agradado. Disto me contento e não me quero chamar rei nem o ser. Como vosso irmão e companheiro vos ajudarei com meu corpo contra o inimigo. Ainda que fosse o caso, o lugar não é guisado para se tal coisa fazer. Sede fortes e nada temais. O Senhor Jesus Cristo, pela fé do qual somos juntos e prestes a pelejar e a esparger o nosso sangue, nos ajudará. O precioso Santiago, cujo dia hoje é, será nosso coudel e ajudador nesta batalha.

- Praza a Deus, senhor, que assim sejamos. Todavia é bem que vos alcemos rei.

Vendo-se o príncipe muito afincado deles, disse:

- Pois assim é, fazei como por bem tiverdes.

Então os mais nobres cavaleiros que aí eram o alevantaram rei bradando:

- Real! Real! Real! Por el-rei Afonso Henriques de Portugal! E logo, sem mais tardança, Afonso Henriques cavalgou em

seu cavalo e cada um dos senhores e cavaleiros se puseram nos lugares que lhes eram assinados e, quando o rei viu que era tempo, falou a Paio Pais, seu alferes, movesse com seu pendão e logo todos os da sua az moveram juntos em um coração, contra os Mouros que lá vinham, e o príncipe, que ia adiante, se acertou com um mouro e lhe arrumou tal golpe de lança que deu com ele morto e passaram pela primeira az e chegaram à segunda e ali foi grande o poder dos mouros, que vieram sobre eles e então Lourenço Viegas e Gonçalo Mendes, que traziam a az da reguarda, concorreram ao príncipe e ali se ajuntou batalha medonha e muito ferida de ambas as partes e a costaneira em que ia Martim Moniz entrou da outra parte, à guisa de bom cavaleiro fazendo grande derranco nos Mouros e todos bem esforçados, sobretudo Afonso Henriques, grande de corpo e de estremada valentia e ainda grande talhante de espada, que havia vontade de fazer mal àqueles contra quem combatia.

Gonçalo Mendes, um gigante em seu murzelo cor de amora de alhacama esmaltada e gualdrapa vermelha, em que timbrava a águia de negro, membrada e recamada de ouro, dos Maias, esporeou a montada e investiu como furacão, a espada a semear morte pelo caminho. Santiago! Allâh akbâr! os gritos de guerra dos heróis, a grita dos guerreiros no recontro violento, espadas, alfanges, tinindo, faiscando, a manhã findava do dia vinte e cinco de julho da era de mil cento e sessenta e sete, ante diem octavum Kalendas maias, do nascimento de Cristo de mil cento e trinta e nove, o sangue cristão e árabe misturados a sagrar a terra bendita... Gonçalo caía varado nas costas por lança certeira, arqueia o peito e o montante ainda fere, ainda corta cabeças em redor e rola-lhe o corpo sobre os cadáveres dos mouros... Allâh akbâr! Santiago!...

Durou a batalha até horas de meio dia e Deus fez mercê que Afonso Henriques fosse vencedor e Allâh fez mercê que el-rei Ismar fosse vencido e quatro reis com ele. Mortandade sem conta de mouros e cristãos. Deus de uns e outros os tenha em sua guarda, amém.

 

Sedia a princesa seu sirgo torcendo, a voz de mansinho saudosa carpindo a sua mofina. O vento lá fora brando respirava na rama das árvores. Deu súbito em uivar, em aiar num imenso choro. Buthayna ergueu-se e saiu como se acudisse a um chamamento. Já passa a cortinha, a fonte, e chegava ao campo que fora de Ibn Muqânâ, poeta que a morte restituíra à terra de que era feito. Havia muito, ferrugenta jazia a podoa ágil, as vinhas inçadas de silvas e as árvores do pomar um emaranhado de braços sem respiro nem luz, rastejavam víboras mordazes pelo ervascal... A alva veste leve, a cinta magra que um desbotado e velho laço de seda apertava, os braços caídos, pelos ombros cansados os cabelos brancos em ondas esparzidos, os olhos em pranto, caminhava, caminhava em frente, a cerração entrava, a cerração a engolia... e nela se sumiu...

A essa mesma hora, em Águas-Santas, levantava-se o vento a desgrenhar as copas dos pinheiros em volta do castelo, num aiar lamentoso que pareciam suspiros.

- Que choro tão triste é este? - as pessoas na vereda paravam, o arrepio nos ossos, cabelos em pé.

Até os cães, olhavam para a torre, o focinho ao alto, e uivavam, uivavam...

A névoa cobriu a torre, uma réstea de sol iluminou um vulto branco de mulher em pranto, revérberos de diadema, de colar, de brincos logo se apagavam...

- Jesus! Santa Maria vai! É a abantesma da princesa!

- Farrapo de nuvem mas é. O sol lhe deu, já se dissipou... Mas os cães continuavam de focinho ao alto a olhar a torre

e uivavam, uivavam...

Dizem os viandantes que há certos dias em que os pinhais se põem a gemer, sobre a terra desce a cerração, uma réstea de sol dá nela e a sombra de uma mulher branca aparece no alto e logo se esvai e os cães dão em uivar...

Já dobou tanto tempo, mas ainda agora que lá passei eles lá estavam a uivar, a uivar... Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, Vade retro, Sátana!

 

                           Epílogo primeiro

De madrugada Imena salta alarmada da cama. Põe um xaile pelos ombros e sai aflita a correr. Acordo também e, desconfiado, sigo-a. Ela corre a casa de Zoaira.

- Zoaira! Zoaira! Acorda, minha irmã!

- Que é? Que aconteceu?

- Depressa! Depressa! Temos de ir a casa de Soleima. Despacha-te. É preciso salvar Randulfo.

Daí a pouco saíam e perderam-se na meia-luz da manhã.

Voltei a casa. Vesti-me e saí para o scriptorium. Sei o que me espera. A justiça acaba sempre por chegar. Não dissera eu isto tantas vezes a Randulfo? Pensava ele que me referia a si, mas era em mim que eu pensava. Como este quantos equívocos, afirmações ambíguas lhe dirigi, mas eu sabia que isto acabaria por acontecer e este monstro em que, em horas vesgas e medonhas, o ciúme me transformava, haveria de receber castigo. E que aconteceu? Imena ouviu a confissão que, em meu sonho agitado, a parte sã de mim revoltada proferiu: Randulfo era inocente... Como é possível que um ser amável e bem disposto, sensível e meigo, inteligente e humano, como eu, se transforme, em horas sinistras de lua-cheia, num monstro irreconhecível? Ainda ontem, ao ver João Longo cortejar Zoaira todo dengoso, crispou-se-me a mão, sob a batina, no cabo do punhal...

Estou cansado de lutar comigo mesmo. Acabo o meu relato. O dia nasceu e eu já sinto passos na rua. Já sobem a escada. Vou pousar a pena no descanso do tinteiro e aguardar que o meirinho-mor entre com seus oficiais...(1)

 

*1. «Epílogo primeiro» assim se lê no manuscrito do relato. É paradoxo, que epílogo é remate sem mais. Este primeiro parece inculcar que haveria uma segunda ou mais versões do epílogo. Cronista pode tudo, não é? Ou então talvez tivesse sido enforcado ou aparecido morto com um triângulo inscrito a punhal na testa, antes que pudesse escrever um epílogo segundo ou até um terceiro. Ou será que o cronista queria dizer com isso estar ele afinal inocente, apesar de convencido do contrário? Então não foi ele o criminoso? (N. do E.)

 

 

                                                                  Fernando Campos

 

 

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