Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O CAVALEIRO DA ESPERANÇA
3ª. PARTE
Os caminhos do exílio
"Habita uma cabana miserável.
Come pouco.
Cai enfermo de impaludismo, e este homem delgado, pálido, pobre, é a esperança e a força do povo brasileiro!"
OCTÁVIO BRANDÃO.
"Sus viejos amigos no Io comprenden ya. Y es que por encima de Ia apreciación divergente de Io actual, Prestes se destingue porque tiene conciencia de que está en crisis su viejo pensamiento. Busca otros caminos."
RODOLFO GHIOLDI
PARA trás ficou o Brasil. Agora são novos caminhos, amiga, os caminhos do exílio. Nessas três etapas do exílio de Prestes: La Gaiba, o Prata e a U.R.S.S., o seu pensamento vai andar um largo caminho, vai encontrar o seu porto de destino. Esse homem que penetrara os portões da imortalidade na frente da sua Coluna não sabia dormir sobre louros conquistados. Não saíra da Grande Marcha para um descanso em meio à admiração daqueles que aplaudiram seus feitos. Saíra inquieto e ávido de encontrar soluções para as inúmeras perguntas que fazia a si mesmo. Viera de realizar uma luta armada. Mas ele queria era encontrar a Revolução, aquela que fosse realmente capaz de solucionar os imensos problemas que ele vira e sentira. Saíra da vida desgraçada do interior do Brasil, procurava nos livros, agora, com uma insistência muito própria dele, as respostas às violentas perguntas que as populações famintas dos sertões brasileiros lhe haviam feito.
La Gaiba, amiga, ainda é a continuação imediata da Coluna. Quinhentos dos seus soldados ainda estão com ele, ainda são a sua preocupação de todos os dias. Eles tinham deixado terra e paz, lar e família, esposa, filhos, mãe e noiva, para o acompanharem naquela peregrinação imortal através do Brasil. Quando a maioria dos oficiais da Coluna desceram para outras terras mais civilizadas, em busca do conforto, dos remédios, da higiene e da tranqüilidade, que não conheciam desde há três anos, Luiz Carlos Prestes ficou em La Gaiba com os seus soldados. Se sentia responsável por eles, e o senso da responsabilidade é um meridiano em sua vida. Ele vai repatriá-los um por um, pondo-os não apenas no Brasil, mas enviando-os para a cidade, a vila, o povoado, a fazenda, onde eles haviam ingressado na Coluna. Mandando cada um não apenas para a Pátria, mas mandando-os para as suas casas. Assim não só fazia pelo soldado o mais que podia como enviava para os quatro cantos do país mensageiros da revolução, homens que iam contar nas suas terras o que tinha sido a Coluna e quão necessária era a Revolução para o Brasil. Os soldados, os oficiais e Prestes haviam chegado em La Gaiba mais pobremente vestidos que mendigos.42 As barbas de patriarca, os cabelos enormes, piolhentos, magros, as faces cavadas, os olhos fundos. A febre que estivera com eles durante os três anos da marcha e na qual muitas vezes eles foram buscar a força com que realizaram alguns dos mais audazes feitos da Coluna, agora, quando o cérebro não pede mais ao corpo todo o esforço de que é capaz, agora a febre abate os homens. Na margem dos rios palustres a maleita agarra-se na rabada da Coluna. Quando ela chegou, com suas alucinações de cocaína quatrocentos homens adoeceram. Apenas seis morreram. Os demais seguiram com mais aquele peso sobre os ombros magros. Por vezes buscavam nessa mesma febre a energia para continuar. Os demais já não sentiram quando o impaludismo se apossou deles. Aquele clima de febre era o clima normal da Coluna. Prestes fez a maior parte da Grande Marcha com 39 ou 40 graus de febre. Os homens iam tremendo de maleita e assim combatiam e derrotavam o inimigo. Não sentiam a febre, durante a travessia ela quase não foi um grande problema.
Mas em La Gaiba, no momento em que a Coluna terminava a sua caminhada, ela derrubou os homens. O impaludismo se fez sentir, seu enorme peso de febre e de delírio. Nas terras igualmente bravias do oriente boliviano, a maleita floresceu sobre a Coluna. Os homens esgotados se entregaram a ela. Deliravam vendo combates e marchas, os dias gloriosos de ontem. Esse foi o primeiro combate que Prestes travou no exílio: contra a maleita. É com Djalma Dutra, que ficara ao seu lado, médico e enfermeiro. Levanta o ânimo dos soldados mais que com suas palavras, com seu exemplo. Também ele tirita no frio enlouquecedor da febre palustre. Mas nem assim deixa de passar o dia na mais completa atividade, providenciando trabalho para todos, remédios, meios para que os soldados possam voltar ao Brasil.
O governo da Bolívia fizera grandes concessões de terras a uma companhia inglesa nessa zona do país. Era o mesmo caso da Ford na Amazônia, o governo entregando pedaços do país aos imperialismos poderosos. A Bolívia Concession tinha seus escritórios em Londres, apenas uns quantos ingleses discutiam em La Gaiba, entre uísques, como colonizar essas terras. Prestes se oferece para, com os seus homens, realizar trabalhos de colonização. Apesar da oposição dos engenheiros ingleses que aí se encontram, a Companhia o contrata por ordem de Londres. Ele não aceita emprego. Quer contratos. E assim é encarregado de sanear parte do país, de derrubar florestas, de construir estradas. Apenas uns poucos homens da Coluna vão ser empregados sob as ordens diretas da Companhia. Entre eles. Landucci, o curioso ex-capitão de artilharia do exército italiano que não suportara o clima fétido do fascismo e emigrara para o Brasil, incorporando-se ao movimento de 24 quando esse explodiu, sendo ajudante-de-ordens de Prestes durante quase toda a marcha da Coluna. Os demais trabalham com Prestes, sob contrato com a Companhia. Empreitam grandes trabalhos. Prestes reúne, após firmar cada contrato, os seus homens. Explica-lhes por quanto contratou o serviço, quanto vai pagar a cada um. Ele o general, ganha o mesmo que o mais humilde trabalhador. Nem um tostão mais. Não há também capataz. Para que, se cada homem tem consciência da sua responsabilidade, se sabe quanto todos e cada um vão receber pelo trabalho? Ali não existe desconfianças entre o chefe e os trabalhadores. Não há patrão. Há operários e técnicos, um técnico genial. Prestes inicia o seu segundo grande trabalho coletivo. Mais uma vez, como na marcha da Coluna, aliam-se o gênio de Luiz Carlos Prestes e a força dos trabalhadores. Os ex-soldados, atuais operários, sabem que Prestes não está à sua frente nem para enriquecer nem para explorá-los. Sabem que ele vive numa cabana tão pobre quanto a mais pobre de toda aquela terra, que veste farrapos como eles, que come a mesma comida que eles comem, que ganha exatamente o mesmo que cada um deles ganha e que, do pouco que lhe toca, ainda consegue tirar algo para ajudar os que já têm quase completo o dinheiro da repatriação. Sabem que ele não quis um tostão do dinheiro que chegou do Rio, da coleta em favor dos revolucionários. Esse dinheiro foi dividido entre todos, exceto Prestes. Os ex-soldados, operários de agora, sabem que Prestes é igual a eles em tudo, exceto que trabalha mais, muito mais que eles, que tem um número infinitamente maior de preocupações, que dirige tudo, que não dorme porque o tempo é pequeno, que não se cuida, não tem quase dentes, a febre o devora, não é um homem, é uma chama pura de amor pelos outros homens, amiga.
Dizer que o adoram é dizer pouco, negra. Para os operários da Bolivian's Company Limited, tanto para aqueles que vinham da Coluna, como para os bolivianos que viam o seu trabalho e a sua vida, ele era mais que o chefe, que o gênio, que o general, que o condutor. Era como um pai, um pai amigo, vivendo exclusivamente em função dos filhos. Nesses homens houve um sentimento que foi o amor levado ao seu extremo. Assim amavam a Luiz Carlos Prestes.
Iniciou o trabalho saneando a imensa zona do oriente boliviano. Derrubou florestas inteiras e assim expulsou dali o impaludismo. Depois abriu estradas, demarcou terras, e perfurou poços. Seu prestígio junto à Companhia, em Londres, subia a cada momento. Em compensação ele começou a sofrer a guerra surda de todos os que exploravam os operários. Os trabalhadores bolivianos abandonavam o trabalho direto com a companhia para virem servir às ordens do engenheiro Luiz Carlos Prestes, o general Prestes de ontem.
Quando ele iniciou seus contratos em La Gaiba, um operário ganhava um boliviano por dia. Ele elevou os salários, a três e a quatro bolivianos. Quadruplicou os salários e — numa contradição só possível num revolucionário do seu quilate — diminuiu o custo de vida. Antes os armazéns da Companhia ou de gente protegida pela Companhia exploravam preços absurdos, no clássico hábito de colocar o trabalhador sempre em dívida com o empregador. Esse é um processo de escravidão de toda a América, desde o Amazonas aos rios do Equador, desde os campos do sul do Chile aos cacauais da Bahia, desde os cafezais de São Paulo às plantações da Argentina. Prestes abriu armazéns. Mas não para escravizar ninguém. Para facilitar a vida dos seus operários. O comércio de Corumbá dá-lhe crédito. Ele vende, nos armazéns da Coluna, por preços quatro vezes mais baratos que os dos armazéns da Companhia ou dos filiados da Companhia. Sua presença em La Gaiba transforma profundamente a vida da região. Também os bolivianos escravizados daí vislumbram a manhã de liberdade. Viram o que a honestidade e o interesse pelos demais pode fazer: salários quatro vezes mais altos, custo de vida quatro vezes mais baixo.
Sucedem-se os contratos com a Bolivian's Company. Trabalhos que os engenheiros: haviam calculado para dois anos, Prestes os realiza em três meses. Os ex-combatentes da Coluna estão espalhados numa faixa de terra que envolve La Gaiba, Puerto Suárez, San Carlos, Vitoria e Santo Corazón. Miguel Costa, com uns quatro companheiros, está em Libres. Prestes, chefe, contratista engenheiro, fiscal, comerciante, operário, administrador, ainda tem tempo para realizar um amplo estudo sobre as precárias condições das fronteiras do Brasil nessa região, estudo profundo e, como tudo que ele realizava, de uma justeza absoluta. Envia o seu trabalho para o Ministério das Relações Exteriores. O revolucionário expatriado encontrava, no mundo de trabalhos que o envolviam, tempo para defender os interesses violados do Brasil. E tem tempo para estudar. Os seus admiradores do Brasil lhe enviam uma biblioteca. Livros de ciência, de literatura e, principalmente, livros de sociologia. Livros que começarão a lhe dar as respostas que ele necessita para os problemas do Brasil.
Rasga de estradas o oriente boliviano. Estradas para pedestres, estradas para animais, estradas para veículos, estradas para automóveis. Os poços são perfurados, a terra é lavrada, a mata desbravada, agora as moléstias fugiram dali. É o colonizador da desconhecida e bárbara região de La Gaiba. O revolucionário que se revelara o maior general da América revela-se agora um grande administrador. Com a sua presença a região floresce.
Sua preocupação dominante é a repatriação dos soldados da Coluna. Quase que diariamente um grupo se vai. Cada dia diminui o número de emigrados. Prestes resolveu que só sairá de La Gaiba quando o último dos seus homens estiver em terras do Brasil. A maioria dos oficiais já se encontra em Buenos Aires. Chamam-no com insistência. Ele se mantém junto aos seus soldados, administrando o seu trabalho, trabalhando com eles, embarcando-os para o Brasil. Em La Gaiba ficará todo o ano de 1927 e parte do ano de 28, até que todos os homens que fizeram a Coluna tenham regressado à Pátria. Só então pensará em sua saúde, nas terríveis condições de miséria em que vive. Antes só toma para si uma parte da noite quando se debruça sobre os livros, no pensamento a visão do Brasil que ele percorreu, a terrível visão dos sertanejos famelicos. Busca nos livros respostas às perguntas que encontra na Grande Marcha. O único tempo que não dedica à vida dos seus soldados ele o gasta para estudar, em estudar para o Brasil.
Que importam a febre e o desconforto para esse homem? Nele a grandeza moral, o sentido de responsabilidade, a ânsia de saber, são mais fortes que as moléstias, que a sujeira de uma cabana inabitável, que o desconforto, que a miséria em torno. Ele vive dessa força interior que faz os líderes, os santos e os heróis. Ante o assombro da América, o legendário general da Coluna Prestes, num absoluto desprezo de toda vaidade exterior, terminada sua travessia imperecível, não vai para as grandes capitais receber os cumprimentos dos militares assombrados, as ovações das multidões emocionadas, os oferecimentos dos políticos necessitando dele. Fica ao lado dos seus homens, igual a eles, preocupado dos seus destinos. Ante essa cabana miserável desfilam os representantes dos partido políticos do Brasil. Vêm os jornalistas, os admiradores. Verificam que Prestes não considera terminada sua tarefa de chefe da Coluna. La Gaiba ainda é um capítulo da imortal epopéia. A tarefa de Prestes só terminará quando o último homem partir em busca da sua terra natal, da alegria do seu lar. Assim ele o decidiu amiga.
Emocionante era a despedida de um homem. O combatente da Coluna que acompanhara seu general através do mistério do Brasil, que lutara, fora ferido, marchara a pé, a cavalo, no lombo de tardios jumentos e de cansados bois, que sofrerá a febre e que se curara da febre, que escapara de morrer mil vezes, que enfrentara todos os perigos sem uma vacilação no olhar, que nunca sentira o medo, esse homem agora treme, vacila e chora no momento de deixar os companheiros e de partir. No momento de despedir-se de Luiz Carlos Prestes.
Vem andando devagar, a mochila no ombro, os olhos presos no chão. No fim da tarde de trabalho, os que ainda vão ficar esperam-no para as despedidas. Ah!, amiga, despedir-se da Coluna é como despedir-se da amada, da mulher definitiva da vida de um homem! O que vai partir vem andando, na sua frente o povoado natal, a família saudosa, a mãe, a noiva. Mas deixar a Coluna, os homens que foram seus companheiros de três anos de heroísmo. . . E, mais que isso, ir para longe daquele que os conduzira, que os guiara, que os levara de vitória em vitória, que cuidara deles como um pai, que lhes ensinara tanto, que tanto lhes queria... Ah! amiga, nesse momento o soldado só tem um desejo: ficar.
Os abraços se sucedem. Relembram feitos:
— Aquele dia, te lembras? Vai de abraço em abraço:
— Até outra, companheiro. . .
— Que seja feliz. . .
E vem a despedida final, o abraço do general, as palavras boas de Luiz Carlos Prestes. O soldado que vai voltar à Pátria, o bravo que nunca tremeu nas batalhas, que nunca sentiu o frio do medo nas travessias mais duras, que venceu a febre, os animais da selva, da caatinga e das águas, que vadeou os rios, que transpôs montanhas, que atravessou entre queimadas, entre a seca, entre as enchentes, aquele que nunca chorou nem mesmo ao ver os companheiros mortos ao seu lado, agora, ao se despedir de Luiz Carlos Prestes, deixa que se desate aquele nó da garganta e que os soluços irrompam. Agora, para este soldado que parte, só há um desejo, amiga, em toda a vida: voltar a ver o general. De longe, na curva mais distante do caminho, ainda se volta para mirá-lo com enternecido olhar, com imenso amor...
E um dia, amiga, o último homem partiu. Quisera ficar, ao lado do seu general, quisera acompanhá-lo para outras terras. Nem o chamado insistente da família no vilarejo esquecido o comovia. Mas Prestes manda que ele vá. É mais necessário em terras do Brasil. Então, quando todos já se haviam repatriado, Luiz Carlos Prestes partiu também, a caminho da Argentina.
Os revolucionários do Brasil, os partidos políticos do Brasil, os revolucionários de toda a América Latina, os políticos de toda a América esperam-no com ansiedade. Ele é nesse momento o mais perfeito símbolo da angústia dos povos latino-americanos se rebelando contra os desmandos do poder. Mas, amiga, ele já é mais que essa ansiedade sem perspectivas. Ele é um homem que busca caminhos para sair da encruzilhada trágica dos problemas que a sua classe não fora capaz de resolver. Todos esses revolucionários sul-americanos, que haviam tomado parte em golpes armados nos seus países, que haviam fracassado, não pensam noutra coisa senão em novos golpes. Prestes, não. Ele pensa em problemas para os quais é necessário encontrar solução. Ele pensa em encontrar a fórmula que possa solucionar aquela equação de novo tipo. Por que fracassam essas revoluções? Por que sendo tamanhos os problemas são tão reduzidos os programas e as palavras de ordem? Por que, se uma revolução é vitoriosa, meses depois nada distingue os revolucionários no poder dos políticos derrubados do poder? Que há, por detrás disso tudo? Que filosofia de vida, que doutrina pode responder a todas essas perguntas? Qual poderá solucionar os problemas do povo?
Ele não era um homem em busca do poder. Era um homem em busca da felicidade do seu povo. Os revolucionários, os golpistas, os oposicionistas, os apristas do Peru, os aventureiros da Bolívia, os anarquistas do Paraguai, todos o procuram. Achavam que ele era o seu chefe natural, o homem indicado para impulsionar esses movimentos em toda a América.43 Ele conversa, discute, explica, esclarece. Mas não aceita nenhuma proposta, não toma nenhum compromisso. Quando todos, amiga, o cercavam como ao seu chefe e general, como à maior figura das revoluções americanas, ele não se julga ainda preparado para a Revolução. Ainda não sabe, realmente, que dizer ao seu povo, aos povos americanos. Procura. Procura com afinco e com persistência. Um caminho devia existir. Onde estava ele?
Representantes de todos os partidos brasileiros o cercam. Os seus companheiros de luta, que se encontravam no exílio, não se afastam dele, ainda é ele quem trata das suas vidas, de arranjar trabalho para um, de indicar livros para outro. Os que estão no Brasil, que conspiram e que encontram o momento propício a um golpe, mandam consultá-lo em Buenos Aires. O enviado traz um relatório, Prestes o lê e desaconselha o golpe. Ele já não acreditava nas "revoluções" em seco, no putsch pelo poder. E tal é o seu prestígio, a sua superioridade moral sobre todos os conspiradores, que estes acatam a sua opinião sem discutir. Em torno dele, revolucionários de todos os matizes. Todos os partidos compreendem a importância da adesão de Prestes às suas idéias. Com ele viria uma força nova para qualquer dessas agremiações. Sobre os livros, ele estuda, indiferente aos chamados.
E trabalha. Ganha a vida, a sua e a dos seus companheiros de exílio. Grande engenheiro, técnico indiscutido na sua profissão, consegue contratos. Em 1928 estava ele em Santa Fé. no interior argentino, dirigindo a construção de uma avenida na capital da província. Até aí vão procurá-lo os revolucionários americanos. Daí data a sua amizade com Oscar Creydt, o paraguaio, naquele momento também em busca de um caminho.44 Como todos, Creydt o procura na ânsia de encontrar o chefe da revolução latino-americana. Chegara de um Paraguai esmagado, faminto e sacudindo-se em levantes, golpes e tentativas de revoluções. Por lá ficara, desde a passagem da Coluna, o nome de Prestes. Esse nome que percorre a América, cercado de uma aura de heroísmo, vestido de lendas. Os revolucionários pequeno-burgueses americanos viam nele o grande caudilho pelo qual há tanto esperavam. Havia algo da busca de um Messias nessa peregrinação até Prestes. E, Creydt como os demais, como o aventureiro Maroff, os apristas do Peru, ao se defrontarem com esse homem jovem, magro, parecendo mais um professor que um general, sentem que Prestes não quer ser Messias, combate violentamente o "prestismo", achando que isso é uma palavra e não uma solução, procura nos livros que o cercam, no estudo dos problemas argentinos e dos partidos que ofereciam soluções a esses problemas, o caminho, o seu caminho, o caminho do seu povo e dos povos da América. Ele já saíra da fase messiânica da revolução, do golpe sem sentido dado ao acaso de uma possibilidade favorável. A sua luta não se limitara aos quartéis de uma capital. Ele percorrera todo um país, o maior da América Latina, o percorrera de sul a norte, de oeste a leste, durante três anos comera e dormira com os seus problemas. Vira que a sua "revolução", por mais bem-intencionada, não poderia vencer porque não poderia resolver os problemas que existiam. Não ocultou essa verdade a si mesmo, ao contrário a colocou diante de si como um médico que antes de mandar o doente para uma mesa de operação o passa nos raios X e o examina à procura de localizar e definir a moléstia, de encontrar o remédio justo. Assim ele. Não atribui a causas fáceis e momentâneas o fracasso dos levantes de 22 e 24. Não o atribui mesmo a fatores militares adversos. Algum motivo mais importante existia. Ele pôs o problema diante de si, iria resolvê-lo.
Era uma surpresa para esses revolucionários americanos. Alguns iriam evolver também, iriam encontrar o caminho certo. Creydt entre eles. Para estes, o exemplo de Luiz Carlos Prestes, o general glorioso, o chefe indiscutido, que confessava de início que ainda buscava o seu caminho, iria servir como nenhum outro. Iria ajudar a todos esses inquietos a se despirem das vaidades inúteis, a abrirem os olhos e procurar as soluções.
Já nesse tempo Prestes lia, numa ânsia de descoberta, literatura marxista. Em La Gaiba haviam chegado os primeiros livros. Na Argentina ele se enterrava neles, um mundo novo se lhe descortinava, No entanto não quis correr, quis estudar madura e detidamente, quis ver se realmente encontraria solução para TODOS os problemas.
Ao voltar a Buenos Aires, um ano depois, ocorre o seu encontro com Rodolfo Ghioldi. Essa amizade vai ser de uma importância primordial na sua formação.
Te falarei de Rodolfo Ghioldi, amiga. Quem não o conhece, quem não ouviu seu nome dito com alegria nas fábricas e nos campos da América? Dito com aquela voz com que se diz um verso heróico e "lírico? Mas, nós, brasileiros, o conhecemos nos dias de prisão. Lutando conosco pelo bem da nossa Pátria. Te direi apenas que ninguém foi mais amado nas prisões do Brasil que esse argentino de olhos puros e penetrantes e de voz mansa e amiga. Sobre as noites de torturas das prisões do Rio sua voz profunda e clara se elevava na certeza do futuro. Chamavam-no de "índio", talvez para marcar essa sua ligação tão completa com a terra e os problemas da América. Para lhe darem um nome continental também, um nome comum a todas as pátrias americanas. É o saber aprendido nos livros e o saber aprendido na vida. Lutando desde menino, estudando desde menino. Os livros não lhe tiraram a força humana de compreensão. Ninguém mais humano que ele. Ninguém mais lido que ele. Com aquela capacidade de viver e compreender os grandes problemas e, no mesmo momento, viver e compreender todos os pequenos problemas particulares. Um poeta, amiga, falou de sua "atmosfera azul, de nuvem" apesar de ninguém estar "mais plantado na terra em que vive".45 Os poetas sempre têm razão, amiga, e o que escreveu essas palavras é um grande poeta, voz do seu povo argentino. Atmosfera de nuvem nesse homem plantado na terra, com raízes na dor humana. Ninguém como ele estava apto para compreender e ser compreendido por Luiz Carlos Prestes. Em torno deste era uma atmosfera de tempestade, ele buscava o porto da bonança. Ninguém melhor que Rodolfo Ghioldi para marchar junto dele, aprendendo da sua experiência, ensinando-lhe do seu saber.
As divergências de Prestes com os demais exilados brasileiros irão em breve começar e logo se agravar. Agora todos os sábados conversa com Ghioldi e outros comunistas, apresentando os seus problemas, os problemas do Brasil, discutindo e aprendendo. Lê muito. Lê avidamente. Quando chega do trabalho — porque continua a exercer a sua profissão de engenheiro e a administrar as rendas parcas dos exilados — se joga sobre os livros, esquecendo a comida, o descanso, as diversões, na febre de aprender. E, como era de seu hábito, quer que os outros leiam. Distribui livros, cita trechos, vai palmilhando o seu caminho com a mesma precisão que o fizera um grande general e um grande engenheiro.
O movimento operário argentino é outro campo em que muito aprende. Antigo movimento esse, amiga. Ainda nos tempos da Primeira Internacional, Engels se correspondia com os líderes proletários do Prata. Os partidos Radicais, Socialista e Comunista são longamente observados por Prestes, que se aprofunda no estudo da política argentina. Por outro lado, estuda a experiência soviética. Dessas conversas, dessas análises, dessas aproximações, desses estudos, resulta que Prestes compreende a importância da classe operária na revolução, o seu papel de classe organicamente revolucionária. Vê que com o proletariado está, naturalmente, a hegemonia da revolução. Que a pequena e a média burguesia, e mesmo a burguesia nacional, se onerem salvar-se nesse momento do mundo, têm que cerrar fileiras ao lado da classe operária e acompanhá-la. Seu pensamento descortina novos horizontes, amiga. Esses anos de 28 e 29 são anos de intensos estudos. Prestes se debruça sobre os problemas, sobre os acontecimentos, sobre os livros. Não tem um momento de descanso. Sabe que sobre seus ombros pesa uma responsabilidade enorme. Nele estão fitos os olhos do povo brasileiro, até ele. chega o clamor do Brasil. É nele que confiam, herói aos 30 anos, esperança de seu povo.
No Brasil se processa então a agitação da Aliança Liberal. Provinha ela do trabalho realizado pela Coluna. O Presidente da República, Washington Luís, representante dos interesses dos latifundiários de café, ligados ao imperialismo inglês, escolhera para lhe suceder o governador de São Paulo, Júlio Prestes.
Os fazendeiros de gado de Minas e Rio Grande, os usineiros do nordeste, e por detrás deles o imperialismo norte-americano, não se conformaram com essa candidatura. Nasce a de Getúlio Vargas, então governador do Rio Grande do Sul, posto para o qual tinha vindo de um ministério de Washington Luís: o Ministério da Fazenda. A massa inquieta e sofredora do país acompanha essa candidatura cuja propaganda foi feita pela Aliança Liberal. Conhecendo perfeitamente a máquina eleitoral montada, da qual tantas vezes se haviam aproveitado, Vargas e os políticos gaúchos, mineiros e paraibanos que o acompanhavam — um Antônio Carlos, um Artur Bernardes, os Melo Franco, Batista Luzardo, João Pessoa, Seabra — sabiam perfeitamente que nunca venceriam as eleições por mais repercussão que tivesse a campanha e a propaganda. Eleições no Brasil ganhava o governo. Assim, desde logo, foram-se preparando para o movimento armado.
Havia dinheiro, os oposicionistas no governo de três Estados, havia soldados — as polícias militares desses Estados — havia o apoio de Wall Street. Só faltava mesmo o povo e esse foi chamado através de uma plataforma ampla, apresentado reivindicações concretas para a massa, inclusive para a massa trabalhadora. E, para garantia desse programa, foi largamente usado o nome de Prestes. Nos comícios, nos atos, nos artigos, nas conversas, os revolucionários de 30 não chegavam ao povo nem com o nome de Vargas, nem com o de Antônio Carlos, nem com o de Borges de Medeiros. Eram nomes gastos, o povo estava acostumado a ouvi-los ao lado dos de Bernardes, de Washington, de Júlio Prestes.
Apresentam o nome de Luiz Carlos Prestes. Em todos os momentos, enquanto ainda mantinham conversações com o chefe da Coluna, e depois quando este já os denunciara publicamente nos seus manifestos de maio e julho de 30, os "outubristas" usaram sempre perante o povo do nome acreditado . e seguido de Luiz Carlos Prestes, embora não sempre de maneira clara. E foi à base desse nome que conseguiram reunir em torno da Aliança Liberal os anseios e a adesão do povo brasileiro. Os oficiais revolucionários eram apresentados não apenas como Juarez Távora, como Eduardo Gomes, como João Alberto, como Cordeiro de Farias. Eram citados como Juarez, o subchefe do E.M. da Coluna, Cordeiro e João Alberto, heróis da Grande Marcha, todos eles como homens da confiança de Prestes, seus amigos e representantes do seu pensamento. A exploração que os políticos hábeis fizeram era torno desses oficiais que discordando naquele momento da linha política de Prestes que recusara sua colaboração do movimento de 30 por não crer nele) apoiaram a Aliança Liberal, vem mais urna vez mostrar o imenso prestígio de Luiz Carlos Prestes no seio da massa brasileira. Ao explodir a revolta os políticos que a dirigiam — apesar de tudo que Prestes já escrevera sobre eles — fazem correr, no país a notícia de que ele é o chefe militar do movimento, que vem à frente das tropas. Logo depois os políticos irão trair os "tenentistas" que os haviam acompanhado.
Repete-se o mesmo fenômeno dos primeiros tempos da República. Aí são os positivistas, pais ideológicos do "tenentismo", Constant e Floriano, que terminam por perder a República para os mesmos homens que eram donos da Monarquia. Idênticos foram os acontecimentos depois de 30. Os "tenentes" enganados, caso aprofundassem a análise da sua desilusão, veriam que a razão estava com Prestes quando denunciara essa "revolução" como uma farsa, quando negara seu apoio a da e quisera organizar novos quadros revolucionários que fizessem — esses, sim — a revolução agrária e antiimperialista que o Brasil reclamava no momento.
Prestes andara muito caminho nesse tempo de 28 e 29. Agora tinha uma formação marxista, ganhara novos elementos para a sua visão revolucionária: o proletariado, a massa, e também o seu partido de vanguarda. Já antes de lançar a sua adesão ao Partido Comunista do Brasil, ele aparece em público com líderes do Partido Comunista Argentino., ocupando a tribuna ao lado deles.46 Toma parte em comícios da Liga Antiimperialista. As suas discordâncias com os seus companheiros de revolução e de marcha se agravam. Esses pensam no movimento da Aliança Liberal como uma solução completa para o caso brasileiro.
No início da preparação revolucionária de 30, ele tem contato com os getulistas. Mas se desilude deles. Às suas propostas concretas de uma revolução antiimperialista, democrático-burguesa, eles respondem com evasivas, com adiamentos da discussão do verdadeiro programa da revolução. Prestes se afasta então e lança o seu manifesto de maio de 30. Nesse manifesto adere ao Partido Comunista do Brasil e declara que a hegemonia da revolução deve estar com o proletariado.
Mas ele compreendia, apesar dos detalhes extremistas que abundam na sua linguagem de então, que o momento não era para uma revolução soviética e sim para uma revolução democrático-burguesa. Daí vem a tentativa da fundação de um partido político que congregasse forças do proletariado, do campesinato, da pequena burguesia e da burguesia progressista. No manifesto de julho de 30, ele lança a Liga de Ação Revolucionária, partido com o qual queria contrabalançar a influência crescente da Aliança Liberal — que continuava a explorar o seu nome perante a massa — e com o qual pensava em preparar a revolução.47
A divergência entre eles e os "tenentes" chega ao seu ponto máximo. Osvaldo Aranha vem ao Prata e em Montevidéu recebe de Prestes a categórica recusa de colaborar com a revolução da Aliança Liberal. Logo depois ele reúne os exilados, seus companheiros de revoltas e da Coluna, e lhes explica a situação. Não prende ninguém, aqueles que queiram se juntar a esse movimento que o façam. Ele seguirá seu caminho já traçado. Agora encontrou as respostas às perguntas que fazia antes e não seria lógico que as esquecesse para tentar mais uma aventura desesperada. A grande maioria dos "tenentes" se compromete com a Aliança Liberal. Juarez Távora parte para o nordeste do Brasil onde irá ser o chefe do movimento de 30. Siqueira Campos vai agitar São Paulo e morrerá numa viagem para o Brasil. João Alberto e Cordeiro de Farias vão para o Rio Grande do Sul, de onde Miguel Costa partirá também chefiando as forças revoltosas.
Uns poucos apenas entre os revolucionários de 22 e 24, apóiam a Liga Revolucionária. Renato da Cunha Melo, Silo Meireles, uns poucos mais. Mas a Liga vai fracassar. O Partido Comunista desconfia dela, já há uma organização de vanguarda para chefiar a luta do proletariado, para que outra? Por outro lado, a massa seguia a Aliança Liberal, cuja propaganda e agitação eram enormes, enquanto a Liga, boicotada pelos jornais, sem imprensa, sem comícios, sua direção no exterior, era desconhecida. E, seguindo a Aliança Liberal, a massa estava certa de que seguia Prestes. Este, pouco depois, reconhece a inutilidade da Liga de Ação Revolucionária naquele momento. O movimento de 30 se processa, é vitorioso, em seguida os políticos começam a era das traições aos proclamados ideais revolucionários. Prestes, de Montevidéu, onde se encontra, denuncia essas traições uma a uma. Num manifesto faz uma análise da situação brasileira.48
Prestes tivera que deixar Buenos Aires porque, tendo sido entrevistado por uma agência jornalística norte-americana sobre o movimento argentino de 6 de setembro, o qualificara de reacionário e pró-imperialista. A entrevista nunca foi publicada mas a polícia recebeu uma cópia dela, o que deu margem a que Prestes tivesse que partir para Montevidéu.
Daí dirige uma carta circular aos seus amigos e companheiros das lutas anteriores. Esclarece seu pensamento, agora já é o marxista quem fala, sua linguagem é uma linguagem nova, esses anos de estudos, de experiências, de discussões, de erros, de busca de um caminho fizeram dele um revolucionário consciente. Agora já sabe o que o povo brasileiro precisa, já tem uma resposta para as perguntas que lhe fizerem. E nessa carta, convida aqueles que queiram vir colaborar com ele, na preparação da revolução brasileira, e a embarcarem para Montevidéu: Ainda é cedo, no entanto, amiga, nesse começo do ano de 31, para que os tenentes se dêem conta de que foram traídos e de que a razão está com Prestes.
Em Montevidéu ele explica, esclarece, estuda e agita. Os brasileiros que se vão desiludindo da "revolução" de 30 voltam a cercá-lo. Emissários chegam do Brasil. Ele, após a tentativa da Liga de Ação Revolucionária, trabalha em colaboração com o Partido Comunista do Brasil. À massa pequeno-burguesa e proletária que lhe pede uma palavra de ordem, ele indica como a única possível, a única certa, a aceitação da linha do Partido Comunista do Brasil, o apoio a esse partido, o cerrar fileiras em torno dele.49
Encontrara o seu caminho, amiga. Esse homem, para quem. a honestidade intelectual tem sido uma norma constante de vida, não tem a mínima vacilação em penetrar na difícil estrada que está na sua frente. É a única estrada possível pela qual o Brasil poderá marchar para a sua redenção e para o futuro. Nos dias da Coluna nunca ele duvidara de entrar por picadas intransponíveis quando esse era o único caminho certo. Tampouco agora, negra. Ele bem sabe que os seus amigos de ontem, ao vê-lo na linha justa da revolução, ao lado da classe operária, irão ser seus inimigos mais terríveis. Ele bem sabe que seu futuro de caudilho, que poderia chegar às mais altas posições militares e políticas dentro dos quadros de golpes sem outro sentido que a mudança de governantes, ele bem sabe que isso terminou no dia em que aderiu ao Partido Comunista. Ele sabe que vão acusá-lo de tudo, os mesmos que ontem o aclamaram como general e chefe. E não tardam as acusações. Acusam-no de desviar dinheiro que lhe fora fornecido. Realmente, já depois de Prestes haver declarado que não aceitaria tomar parte no movimento armado que a Aliança Libera! preparava, Getúlio Vargas envia-lhe, dos cofres públicos do Rio Grande do Sul, mil contos de réis, pensando obter seu apoio. Prestes deposita esse dinheiro num banco argentino. Esse é dinheiro dos cofres públicos para uma luta que — pensa Prestes — não vai trazer benefícios reais ao povo brasileiro. Restituí-lo a Vargas é dilapidá-lo nessa luta de Vargas pelo poder.
Prestes o deposita então num banco, nunca retira dele um só real para a sua vida ou para a vida dos companheiros, esse dinheiro fica intacto até 1935, quando vai ser utilizado no financiamento da Aliança Nacional Libertadora, isto é: quando vai ser útil ao povo brasileiro a quem pertencia.50
Prestes, ao aderir ao proletariado na sua revolução, sabe que todos os ódios dos donos da vida vão acirrar-se contra ele. Mas, quando aceita o marxismo como concepção de vida, quando encontra nele as respostas às suas perguntas, não tem um minuto de vacilação. É o mesmo general Luiz Carlos Prestes que atravessava por caminhos que faziam os demais estremecer. Ali está a verdade, ele a acompanhará.
Em Montevidéu ele prepara a sua viagem para a U.R.S.S. Lá, no distante país do norte, homens novos estavam construindo uma nova civilização. Os homens que haviam tomado pela estrada pela qual ele ingressava agora. Um novo mundo nascia, os problemas resolvidos, as soluções encontradas.
Prestes estudara as teorias, amiga, agora vai constatar a obra da revolução que nascera dessas teorias. No exílio, negra, ele aprende em função do Brasil. Sua inquietação encontrara os verdadeiros rumos. Já aprendeu nos livros, agora vai aprender na vida nova, na vida socialista que se constrói na pátria soviética.
Nesse momento que vai de 28 a 31, seus anos de exílio no Prata, o Brasil também se buscava a si mesmo. Fizera a experiência de 30. Novamente aquele clamor de desgraça e de desespero vai subir aos céus, pedindo justiça. Clamando pelo nome de Prestes. Ele se prepara para atender mais uma vez a esse clamor, amiga. Para mais uma vez se colocar à frente do seu povo.
Esse é o país da U.R.S.S., amiga, pátria dos trabalhadores do mundo, pátria da ciência, da arte, da cultura, da beleza e da liberdade. Pátria da justiça humana, sonho dos poetas que os operários e os camponeses fizeram realidade magnífica.
Antes, nessas terras brancas de neve, negras de petróleo e loiras de trigo, os homens eram escravos nos campos e nas fábricas, eram presos nas universidades e nas bibliotecas. Era desgraçada a vida desse povo, não havia riso nas bocas das mulheres, não havia alegria na face das crianças famintas. Um vento de fome e de opressão soprava por sobre as estepes da Rússia nos dias de ontem dos tzares e grão-duques. O chicote sobre os homens, os gritos das multidões silenciados pelo troar das metralhadoras varrendo o povo das praças públicas. Para uns poucos trabalhavam milhões, as madrugadas sobre a Rússia eram apenas a continuação de uma mesma noite de horrores. Céu sem estrelas, dia sem sol, aurora sem esperança. Como os homens do Brasil nos dias em que apareceu a Coluna, amiga, os homens da Rússia, homens de todas as cores, brancos, amarelos e cor de cobre, não viam uma estrela no céu sem caminhos. Era uma noite de séculos, vinha de um passado milenar, parecia eterna como a terra e como o mar. Também lá, amiga, os camponeses supersticiosos diziam como nos campos do Brasil:
— Destino é coisa feita lá em cima... Apontavam para o céu inclemente e concluíam:
— Ninguém pode mudar!
Ah!, amiga, o destino é coisa feita na terra, feita pelos donos da terra. São esses, os senhores do dinheiro e da vida, que escrevem nos seus livros de caixa o destino desgraçado dos trabalhadores e dos camponeses, da liberdade também. O destino é escrito por eles com letras de ouro.
Um dia, amiga, um homem veio e disse que o destino não era escrito no céu. Que essas leis que regem a vida são leis das mais terrenas, construídas pelos homens interessados nelas. Esse homem se chamava Karl Marx, lia Balzac, estudava a vida. E veio outro homem, nascido na noite da Rússia, e disse que se essas leis eram feitas por uma nova minoria contra uma maioria, no dia que esta quisesse poderia escrever as suas próprias leis, o seu próprio destino e então terminaria a noite, a madrugada irromperia sobre o mundo. Esse homem se chamava Vladimir Ilitch Ulianov, porém foi o seu nome de guerra, que era Lênin, que correu a Rússia de lado a lado, como um vento de esperança, igual, amiga, ao vento de esperança que se chama Prestes sob os céus do Brasil. E os operários, amiga, e os camponeses, e os artistas e os sábios, e os soldados e os marinheiros, descobriram com ele que o destino dos patrões está escrito na mão dos trabalhadores.
E, com letras de sangue, escreveram o novo destino dos homens sobre a terra. Destino da felicidade e da alegria, da fartura e do amor.
Antes aqui era a Rússia, amiga. Essa palavra queria dizer opressão e ódio, desgraça, fome em meio aos trigais, sede em meio à água dos rios, falta de roupa em meio aos teares tecendo. Raças inteiras escravizadas, nações dobradas ao chicote de um amo e uns poucos capatazes. Essa era a Rússia, amiga, há apenas vinte e poucos anos, parecendo uma coisa de centenas de anos atrás.
Na mão dos trabalhadores estava escrito o destino do mundo. Assim disse Lênin, e convidou a gente toda, os pastores de gado, os perfuradores de poços, os colhedores de trigo, os alfaiates e os garções, os operários das minas e das fábricas de brinquedos, os escritores de poemas e os escritores de livros sobre as plantas e sobre os minerais, os médicos e os professores, os romancistas e os barqueiros do Volga, os oficiais e os soldados, os marinheiros e as mucamas, todos os desgraçados do mundo e todos os que viam a desgraça do mundo, a apagar o destino sem beleza e a criar a felicidade sobre a terra. Convidou todos para a Revolução, festa dos pobres.
Foi assim, amiga, que este deixou de ser o país da Rússia, fome e escravidão, para ser o país da U.R.S.S., fartura e liberdade, alegria e amor.
Hoje aqui é a U.R.S.S., amiga, povos livres, pátrias e raças livres, homens felizes. Se acabaram os ricos e os pobres, hoje existem apenas homens na sua inteireza, donos da dignidade de viver. Durante vinte anos esses homens construíram um mundo novo. Essas crianças alegres nos campos e nas cidades da U.R.S.S. trazem o riso na boca e não saberão jamais, amiga, o que é a desgraça de nascer escravo. Hoje, negra, as hordas da escravidão se lançam assassinas contra o país da felicidade humana. Os donos da vida e do dinheiro querem apagar do mapa esse exemplo de como o destino é feito na terra pelos homens. Mas não o conseguirão nunca, amiga, porque o povo soviético, que soube construir a felicidade, sabe defender o seu direito a ela, o amor à liberdade vive no seu peito de aço, do aço de Stalin, sol do novo mundo.
Para esse país da U.R.S.S., amiga, para a pátria da liberdade, onde os problemas humanos eram encarados de frente e resolvidos com coragem, viajou Luiz Carlos Prestes, aquele que queria resolver os problemas do seu país e do seu povo, o que tinha ouvido, ele também, o convite de Vladimir Ilitch para a festa da revolução. Ele estudou essas teorias e vai trabalhar nessa realidade. Hão de se compreender bem esse país e esse homem. Ambos desejam a liberdade e a felicidade do homem sobre a terra.
Os anos de U.R.S.S. são anos felizes .para Luiz Carlos Prestes. Seus anos de U.R.S.S. são também anos de Brasil. Em função de sua pátria e do seu povo escravizado ele estuda, dia e noite, sem descanso. Chega em Moscou num dia, no outro estava trabalhando. Era engenheiro do Tzentralnii Soiuzstroy51. Essa organização que superintende as empresas de construções do país soviético, ao mesmo tempo que utilizava o seu trabalho de grande engenheiro, possibilitou-lhe viajar toda a U.R.S.S., conhecendo o país nos seus detalhes, vendo como eram atacados e resolvidos os problemas. Como engenheiro do Tzentralnii Soiuzstroy trabalhou na construção de diversas fábricas e usinas da região industrial de Moscou, dos distritos próximos, nas regiões longínquias, nas zonas imediatas aos Urais.
Estudou a língua russa num ritmo acelerado, vencendo sua pequena aptidão para o estudo de idiomas, porque ele queria tomar posse da experiência soviética na sua maior profundidade. E se entregou a um rígido programa de estudos. Estudava marxismo, e estudava a experiência soviética. Estudava-a em todos os seus detalhes, como engenheiro nas construções, nos campos da U.R.S.S. como homem que conhecia a vida do campo brasileiro. Como militar estudou profundamente a organização do Exército Vermelho, exército do povo, o primeiro do mundo, hoje revelando-se ao mundo emocionado com suas vitórias sobre as bestas hitleristas.
Estudava também organização política. Via as repúblicas soviéticas e as repúblicas populares, o gênio político dos trabalhadores. Estudava sem parar, sem descanso, ganhando experiência para o seu povo.
Esse homem, amiga, nunca fez nada pensando exclusivamente em si mesmo. Sempre realizou em função do seu povo, da felicidade do seu povo. Assim, nos seus dias de entusiasmo na U.R.S.S.
Chefe da revolução brasileira, chefe dos operários e do povo, agora não só vê com clareza absoluta os problemas brasileiros, como se sente dono das soluções para esses problemas. Sabe que a revolução democrático-burguesa, a revolução nacional libertadora, deve ser feita. Ao ser eleito, no sétimo congresso, para o Comitê Executivo da Internacional Comunista1, como uma das cabeças dirigentes do proletariado mundial, ao lado de Stalin, de Dmitrov e de Thorez, ele havia andado um longo caminho. Ontem era o capitão do exército, general de uma revolução sul-americana, engenheiro em Buenos Aires, hoje está plantado sobre os seus próprios pés. Sua voz não se dirige mais apenas aos desgraçados do Brasil, como nos dias da Coluna, aos desgraçados da América, como nos dias do exílio no Prata. Sua voz universal de Herói e de companheiro se dirige a todos os oprimidos do mundo. Da mais alta tribuna dos oprimidos, o Comitê Executivo da Internacional Comunista.52 Não foi essa, amiga, a estrada de um aventureiro. Foi a estrada de um gênio, em quem as qualidades de inteligência se aliavam às qualidades de caráter. Sua honestidade jamais discutida, seu gênio tantas vezes provado. Luiz Carlos Prestes, condutor do proletariado mundial.
Mas também e principalmente, amiga, Luiz Carlos Prestes, Herói e guia do seu povo. Até Moscou, onde ele trabalhava e estudava febrilmente, chegam os ecos do clamor do Brasil infelicitado. Seu nome como a única esperança, seu nome chegando dos sertões que ele percorrera com a Coluna, das cidades que ele levantara, dos rios e das montanhas, da selva e da caatinga. Seu nome atravessando os mares, um pedido de socorro. Seu povo o chama, necessita dele, sua presença, sua coragem, sua decisão, sua honestidade, seu saber e seu gênio.
No país da U.R.S.S., amiga, naqueles tempos existiram os traidores que o povo justiçou depois. Existiram aqueles que não pensavam na felicidade do povo e que, ávidos do poder, quiseram vender a pátria soviética aos inimigos da humanidade. Esse povo que havia construído um país em festa, na festa do trabalho, soube lutar contra esses traidores como luta hoje contra os assassinos nazis. Com a mesma seriedade e a mesma inflexibilidade. Luiz Carlos Prestes cooperou nessa luta, descobrindo um plano de sabotagem na construção de uma fábrica. Certa vez, amiga, ele foi enviado com uma comissão de técnicos para estudar as causas do mau andamento de uma obra. Numa região pantanosa, nas imediações de Ijevsky, capital do território autônomo dos Votiakos, estava sendo construída uma grande fábrica. O edifício, dada a natureza do terreno, era edificado sobre pilares. Mas ao chegar a certa altura, o edifício ruía e se fazia necessário recomeçar. Isso já se havia passado uma e duas vezes, com prejuízo para o povo que é o Poder no país da U.R.S.S. Prestes estuda o assunto com o mesmo rigor com que, no início da sua carreira, fiscalizara as construções de quartéis no sul do Brasil. E conclui que se trata de sabotagem, uma sabotagem muito bem organizada. O chefe da comissão, um engenheiro russo que vivera muitos anos no estrangeiro, discorda do seu parecer, se mostra contrariado, declara que não existe sabotagem nenhuma e seu laudo culpa o material, a mão-de-obra e a organização de trabalhos soviéticos. Prestes mantém o seu ponto de vista e logo depois tudo é descoberto, a sabotagem é comprovada, e o engenheiro-chefe surge com sua verdadeira fisionomia: um sabotador, um inimigo do povo.
Prestes marchou esses anos ao lado do povo soviético, vivendo sua vida, aprendendo dele, ajudando-o no que podia. Seja como engenheiro, construindo edifícios, seja como militar, estudando o Exército Vermelho53, seja como técnico descobrindo sabotagem, seja como simples criatura humana, o primeiro que era a se apresentar nos subotnks para os trabalhos de benefício público, nas horas extras e não remuneradas. Quando os demais voluntários chegavam, alegres de poder prestar mais uma colaboração à construção da vida soviética, já encontram Prestes, o herói lendário da América, o membro da Executiva da Internacional, a remover detritos dos poços do metropolitano em construção, a selecionar batatas nos grandes frigoríficos, a separar material velho nas construções. Feliz, em meio à alegria ambiente. Assim é ele, amiga, Luiz Carlos Prestes.
Os caminhos do exílio foram palmilhados por ele com a mesma coragem e a mesma confiança no futuro que os caminhos do interior do Brasil. Em 1934, quando começa a preparar a sua volta à pátria, ele se havia encontrado, agora não tinha mais a tortura de uma busca de soluções. Agora sabia o que o povo necessitava. Agora os problemas eram de fácil solução, nesses anos longe da pátria ele encontra as suas estradas, estradas do povo do Brasil. Assim como rasgara os caminhos do interior agreste, pelos quais transitam hoje os carros de boi, os cavalos e os automóveis, ele nos anos de exílio, rasgou os caminhos do pensamento político do Brasil.
O ciclo de movimentos sediciosos que vinha de 22 a 32, a derrota em 24, a Coluna de 24 a 27, a vitória de 30, a luta de 32, representava um Brasil em busca de si mesmo. Um ciclo que se encerrava para começar outro, o do Brasil sabendo o que deseja, se levantando por palavras de ordem concretas. Vai começar, amiga, o ano de 1935, anos da Aliança Nacional Libertadora e da revolução de novembro. Uma nova era, o começo da luta de um povo contra o imperialismo, pela libertação econômica da sua pátria.
De todas as partes do Brasil, amiga, clamam por ele. É o grande ausente que está em todos os corações. Nas casas pobres do nordeste, em torno do seu retrato, continuam a arder as velas da esperança. Os meninos que nascem recebem o seu nome. Milhares de crianças se chamam Luiz Carlos, no Brasil, ardendo de amor pelo seu Herói. Ardendo de esperança. Clamando por ele na voz dos homens e das mulheres diante de um presente desgraçado, sonhando um futuro melhor para seus filhos. Um clamor imenso, amiga, o traz das ruas de Moscou para a vida ideal no Rio de Janeiro. O seu povo necessitando dele. Um clamor, um pedido de socorro. Ressoando no coração de Luiz Carlos Prestes, amiga.
4ª. PARTE
Canto da Aliança Nacional Libertadora
"Queremos uma pátria livre! Queremos o Brasil emancipado da escravidão imperialista! Queremos a libertação social e nacional do povo brasileiro!"
(Do programa da ANL do Brasil.)
"Héroe de las épicas batallas del pueblo del Brasil."
BOLORES IBARRURI (La Pasionaria.)
"Nunca se vió un movimiento político tan espontâneo, tan imenso y tan solidário!"
JESUALDO
No ano heróico de 35, amiga, o povo do Brasil se recordou de um verso de Castro Alves. Um dia o poeta dissera que a "praça é do povo". É nela que o povo vem dizer da sua inquietação, do seu desespero, vem começar a sua revolução. No ano de 35, coberto pela bandeira da Aliança Nacional Libertadora, o povo do Brasil veio clamar nas praças públicas.
Lembra-te daqueles comícios, daqueles comícios nunca antes igualados, amiga, jamais superados depois. A multidão sobrava dos estádios pelas praças e ruas e daí clamava seu entusiasmo, sua adesão, sua esperança, que cresciam a cada palavra dos líderes. Muito pouca gente sabia, negra, que Luiz Carlos Prestes se encontrava no Brasil, mas como que a gente o adivinhava, havia em cada rosto um ar de alegre expectativa.
Ah!, amiga, que ninguém ouse dizer que o povo do Brasil não ama o seu Herói! Que não o ama até o delírio, num amor feito de gratidão e de esperança. Estão próximos esses dias, eles são ainda de hoje, quando as multidões, milhares e milhares de homens, se atiravam ávidos de ouvirem aquelas verdades, aos comícios da Aliança Nacional Libertadora, onde a palavra de Prestes ia ser dita. E o delírio que era, quando o seu nome, pronunciado entre as palavras de ordem de uma pátria livre, provava aos homens que aquele não era um movimento de aventureiros e traidores. Ali não existiam as palmas compradas das manifestações oficiais. Era um povo que se jogava na rua para aplaudir o nome do seu Herói e as idéias que ele pregava. Os corações cheios de esperança, aqueles corações tantas vezes traídos antes pelos políticos em quem confiaram. Sabiam que Prestes não era um político no sentido em que essa palavra é amesquinhada. Ele era um condutor de povos, um líder dos oprimidos, com o seu coração batia o coração da Pátria.
Os comícios da Aliança, amiga, os seus jornais, os seus manifestos, a imensa massa humana que a acompanhava! Foi o mais belo espetáculo de civismo do Brasil, seu grande momento patriótico. A Pátria estava em perigo, vendida, traída, escravizada. Luiz Carlos Prestes lançava a palavra de ordem de salvar a Pátria. Contra o imperialismo, contra o latifúndio, contra a escravidão dos campos e das cidades, pela libertação do povo brasileiro. E a multidão saiu à rua para aplaudir esse programa, para lutar por ele, para seguir o mais querido dos generais, o mais amado dos chefes. Foi como uma festa, amiga, não sei de outra comparação. Sei que foi alegre, dessa alegria comum a todos que nos faz apertar mãos desconhecidas na emoção dos comícios, abraçar aquele a quem nunca se viu antes mas que é um companheiro vibrando ao nosso lado. Foi alegre, era uma manhã radiosa se levantando sobre as nuvens de uma noite triste, sem lua e sem estrelas. Manhã da liberdade. Manhã de festa no Brasil.
Esse povo lírico e heróico, esse povo que sofre a escravidão há tantos anos, possui o encanto da palavra liberdade, ela o seduz como nenhuma outra. Liberdade era a voz da Aliança, era a voz sobre todas amada de Luiz Carlos Prestes. O povo vinha para a rua, o povo na praça de punhos para o alto rompendo cadeias.
Chegou o gaúcho de poncho e esporas. Dos ervais chegou o paranaense, o branco de Santa Catarina, o filho de italiano de São Paulo e o filho de bandeirante, os negros, mulatos e brancos da Bahia, os homens das usinas de Pernambuco, os que tinham sede no Ceará e os que lutavam nas selvas da Amazônia. Também chegaram de Goiás e Mato Grosso, das feiras de Sergipe e dos campos de Minas. Do Espírito Santo, de Alagoas nos romances de Graciliano Ramos. Da beira do mar, na cidade do Rio. De todas as partes do Brasil, amiga. Files vieram e marcharam todos, uma nova coluna, não eram desta vez mil e quinhentos homens, era um milhão e meio, na frente o general Luiz Carlos Prestes.
Bandeira da Aliança Nacional Libertadora mais uma vez desfraldada nesse ano de 35. Bandeira de Tiradentes nos dias da Inconfidência, sua dignidade na hora do suplício, nos degraus da forca. Bandeira de Zumbi dos Palmares na frente dos escravos fugidos na República imortal que os negros criaram. Bandeira de Benjamin Constant cobrindo os positivistas na manhã da República. Bandeira de Frei Caneca, bandeira dos Farrapos, bandeira da Confederação do Equador. Bandeira de Floriano Peixoto em defesa do povo. Bandeira da Coluna Prestes distribuindo justiça. Mais uma vez sobre o povo do Brasil a bandeira da Aliança Nacional Libertadora.
Vê, amiga, um milhão e meio de homens marcham sob essa bandeira. Vão oficiais, homens do exército e homens da marinha, Agildo e Sisson, Agliberto e Cascardo, vão soldados e marinheiros. Vão romancistas e sábios, jornalistas e poetas. Operários e camponeses, padres e comerciantes, médicos e engenheiros, choferes e estivadores. Vai gente de toda classe, vão ricos e pobres, todos os que têm um coração honesto trazem no peito o amor ao Brasil. E com eles vão, amiga, os heróis do passado. Os que durante os anos de Colônia, de Império e de República lutaram pelo povo, contra a opressão. Filipe dos Santos arrastado pela cauda de um cavalo nas ruas de Vila Rica, Tiradentes enforcado numa praça do Rio de Janeiro. Frei Caneca fuzilado contra um muro, Zumbi se atirando da montanha para não voltar a ser escravo. Pedro Ivo no seu cavalo negro. Constant discursando para os cadetes, Floriano fardado de marechal do povo. Vão eles também sob a bandeira da Aliança Nacional Libertadora, no ano heróico de 35. Na frente vai Prestes. Luiz Carlos, o Cavaleiro da Esperança.
Foi assim essa festa, amiga. A festa mais bonita do Brasil, a mais popular, a mais alegre. Era a festa da liberdade se processando nas ruas e nas praças. Alegria nas faces e nos corações.
Nesses dias, negra, os que traíram o povo, os que amavam a tirania, a escravidão e a fome, tremiam no poder. Suas faces amareladas nos conciliábulos amedrontados. Lá fora a multidão rebentava cadeias. Nos palácios de governo, os tiranos tremiam. A voz do povo na praça pública, gritando o nome de Prestes, punha um frio de morte no coração dos inimigos da Pátria. No ano de 35, amiga, ano do heroísmo e da esperança.
As ondas vinham bater mansamente no casco do navio, amiga. O céu do trópico se vestiu de estrelas, se cobriu de luar, para saudar Olga, a esposa de Luiz Carlos. As terras do Brasil estavam próximas, aquela já era uma noite brasileira, o Cruzeiro do Sul se confundia com o fogo-de-santelmo dos mastros. Luiz Carlos e Olga, da amurada, olhavam o céu. Queriam penetrar a noite e vislumbrar a terra, a terra colorida da pátria que sabiam não estar distante. No marulhar das águas pensavam já distinguir os sons da música brasileira, sambas e cocos, modinhas e cateretês, gemidos melódicos de uma raça misturada e sofredora. Ele lhe falava do Brasil. Das cidades e dos campos, contava com sua voz profunda dos homens que ele vira na Coluna, que vira nas margens do rio São Francisco, do heroísmo indômito, do lirismo infinito. Gente heróica e lírica. Luiz Carlos contava a Olga episódios a que assistira, nos sertões distantes, no exílio em La Gaiba. Falava das vivandeiras da Coluna, levando o fuzil dos homens, da loira austríaca Hermínia que se casara com o negro Firmino sob a magia do céu do Brasil.
Só agora, depois de muito ter combatido e de haver atravessado seu país, depois de ter procurado, numa angústia de febre, os caminhos para o seu povo e de tê-los encontrado, só agora, amiga, aos trinta e seis anos Luiz Carlos Prestes pensou no amor. Este, amiga, não buscara desesperadamente, como todos nós, no corpo das demais mulheres a mulher da sua vida. Ele estava demasiado ocupado procurando os caminhos da liberdade, os caminhos da felicidade do seu povo.
Mas um dia, numa cidade da Europa, ele viu uma moça alemã. E compreendeu que a sua esposa chegara, aquela que seria dona do seu coração, mãe de seus filhos, que velaria por ele, em cujo ombro ele repousaria do seu cansaço, junto a quem ele trabalharia pelo Brasil, recebendo dela o calor de sua solidariedade de esposa meiga e compreensiva. Se amaram numa primavera européia, as flores saudavam o casal de noivos, os pássaros vinham trinar à sua passagem, a primavera ia de cidade em cidade acompanhando-os pela Europa em busca do navio que os trouxesse ao Brasil. A primavera veio com eles até o porto, entregou-os à beleza do mar para que esse os entregasse à magia do Brasil.
Na amurada de bordo ele lhe fala da Pátria, da sua Pátria que agora é a Pátria de Olga Benário Prestes. Ela, que amou o moço brasileiro, aquele cujo destino era o próprio destino do Brasil, já se sentia poderosamente ligada àquela terra do marido, de encantos e de mistérios líricos, sua terra também desde que se unira a Luiz Carlos Prestes pelo casamento.
Falam do Brasil, próximas estão essas terras, costas de branca areia, sertões de verdes campos, céu de azul-anil. O moço brasileiro e a moça alemã estendem os olhos enternecidos querendo varar a negrura da noite e descobrir costas do Brasil. Ali, por detrás das estrelas, no rumo do Cruzeiro, está a Pátria. Ele aponta, sua mão de bússola, ela sorri um sorriso quente de carinho. Agora ele lhe fala do soldado Joel, o que lhe deu a farinha que tinha para comer, o burro que possuía para ganhar a vida e depois a própria vida, tudo que lhe restava no mundo! Ela se comove, são belas as histórias que ele conhece, as histórias que ele viveu! Ela se enleva na sua contemplação, seu rosto sereno, seus olhos ardentes! O Herói de um povo, para ela o bem-amado que seus olhos haviam descoberto numa rua européia num dia de primavera. Ela o aperta contra seu peito, como que a protegê-lo dos perigos futuros.54 Cai um raio de luar sobre os recém-casados. Lua do Brasil sobre Luiz e Olga.
Porque, amiga, essa é uma lua-de-mel diferente das demais. Eles não partem para distante dos homens, para o sossego de um esconderijo onde possam viver em dias de paz o seu amor. Eles partem para o Brasil, onde a entrada de Luiz está proibida, para lutar junto ao seu povo e na frente do seu povo pela libertação da Pátria. Eles partem para dias de vida ilegal, a polícia atrás dele, os inimigos a procurá-lo, no seu rastro não só os investigadores da polícia brasileira, no seu rastro homens da Gestapo e do Intelligence Service. Assim é essa lua-de-mel, amiga. Em meio aos perigos, em meio ao seu povo, nos dias da Aliança Nacional Libertadora, nos dias da revolução de novembro de trinta e cinco.
Essa moça alemã que deu seu coração ao general brasileiro não terá mais um dia de tranqüila paz. Seu coração viverá sempre estremecendo pelo seu marido. Nas noites de conspiração seu sono será leve na espera que ele chegue. Depois não suportará mais e o acompanhará para protegê-lo, ela é como um guarda-costas, bom sabe que, se ele é amado como ninguém ainda o fora por esse povo brasileiro, em troca é odiado e temido como ninguém pelos inimigos do povo. Na sombra das ruas conspirativas ela o acompanha, seus passos ao seu lado, ânimo e carinho.
Como aquela Anita Garibaldi que nasceu nos campos do Brasil e acompanhou o italiano José Garibaldi em todos os combates. Agora a Europa paga ao Brasil essa dívida antiga. Como o Herói da Itália encontrara no Brasil a sua esposa e companheira, a que defendia sua vida com a força do seu amor, assim, o Herói do Brasil encontrara na Europa a esposa e companheira, a que o protegerá nesses dias da revolução, a que, como Anita, está sempre junto dele, nos momentos mais difíceis. Anita Garibaldi. Olga Benário Prestes! Deixa que eu junte esses nomes, amiga! Eles soam da mesma maneira, representam um destino igual. O destino das esposas heróicas, daquelas que casaram com homens cuja vida pertence à liberdade.
Outras mulheres, amiga, possuem totalmente seus maridos, seu corpo, seu coração e seu pensamento, sua vida inteira. Não têm que dividi-lo com ninguém. Mas ai das mulheres, amiga, que casam com os Heróis e com os Poetas. Estas têm que possuir apenas instantes do esposo. A liberdade e a poesia são coisas dos homens, os prendem para sempre. O Herói tem o seu destino no campo de luta, a liberdade chama por ele com sua voz mais poderosa que a voz de qualquer mulher. É preciso que a mulher encha de compreensão o seu peito e saiba viver a vida do marido. Que se prepare para as horas mais duras de sofrimento e que saiba ter nessas horas uma dignidade igual à do seu esposo. Como tem sabido ter Olga Benário Prestes, da família de Anita Garibaldi. Para estas, o amor não vem cercado de exterioridades felizes. Ele se nutre de si mesmo e é necessário que ele seja grande como o mundo, imortal como o mar, para resistir aos embates da desgraça. De si mesmo, amiga, se nutre o amor de Olga por Luiz Carlos.
Estranha lua-de-mel! Partem para a luta, para os comícios, as conspirações e a Revolução. Na sua frente nem um projeto de tranqüila paz num lar sossegado. Na sua frente o mais incerto dos destinos. Todos os perigos, a vida ilegal, as casas provisórias, as noites de espera. Não importa, amiga. Mais poderoso que qualquer perigo e que qualquer desgraça á o amor, eterno sobre o mundo.
A noite do Brasil balança o barco como uma rede. O luar cai sobre Luiz Carlos e Olga como um presente do povo, presente de bodas. Com o instinto divinatório das mulheres que amam, Olga presente os dias negros do futuro. Ainda assim sorri feliz, amiga. Se arrima ao braço de Luiz Carlos, mais forte que qualquer desgraça é a força do amor. Na madrugada que desponta, surgem as costas de coqueiros do Brasil.
A vitória do movimento de 30 trouxera no seu bojo a contradição. Dessa contradição Getúlio Vargas ia viver, com ela ia manter-se no poder. Com a revolução de 30 vinham os "tenentes", amiga, os homens de 22, 24, 26, os homens da Coluna. Essa era a força popular de 30. Após a vitória, o "tenentismo" apareceu como ideologia, livros se escreveram sobre ele, artigos, fundaram-se clubes: o 5 de Julho, o 3 de Outubro. Mas com a vitória vinham também grandes forças reacionárias da oligarquia, da mineira, representada pelos políticos como Antônio Carlos, da gaúcha e da nordestina, os grandes usineiros como Lima Cavalcanti. A aliança dessas forças em busca do poder no movimento da candidatura Getúlio Vargas, que trouxera a luta armada, fora feita na base de um engano mútuo. Assim como em certos casamentos: a moça convencida de que o noivo é milionário, o rapaz jurando que os pais da noiva dormem sobre dinheiro. O "tenentismo" pensava aproveitar-se dessas forças políticas para com a sua ajuda chegar ao poder e depois liquidá-las. Essas forças queriam apenas aproveitar-se do prestígio militar e popular dos "tenentes". E, por detrás, o imperialismo em luta. O dinheiro americano, entrando para as arcas da revolução, através de empréstimos rio-grandenses, Wall Street pensando dar um golpe profundo no domínio da City que se fazia sentir através de São Paulo. Daí, por vezes a revolta de 30 dar á impressão de uma luta contra o predomínio paulista na economia nacional. No fundo eram Wall Street e a City em luta por uma colônia rica.
Os "tenentes", sabotados pelos oligarcas, donos do poder, mas sem um partido de massas que os prestigiasse, nada realizam. Demais, o programa da Aliança Liberal, por mais concreto que fosse, era ainda assim insuficiente para a inquietação do povo brasileiro, principalmente quando naquele momento já Prestes lançava os seus manifestos antiimperialistas e antilatifundistas.
A primeira hora da vitória é a hora dos "tenentes". Eles vinham à frente dos soldados, tinham todos os elementos para tomar o poder. A massa não via Getúlio Vargas, parecia ter-se esquecido dele. A manifestação na sua chegada ao Rio, comparada à que teve Juarez Távora, o chefe das forças do movimento no norte, foi uma passeata sem importância. Os homens populares eram Miguel Costa, Juarez, João Alberto, Eduardo Gomes, Cordeiro de Farias. Não era o retrato de Getúlio que se pregava nas paredes das casas. Era a reprodução daquele quadro célebre dos dezoito do Forte marchando para a morte sobre as areias de Copacabana.
Os políticos tinham vindo à revolta em busca de proveito. Eles a sabiam inevitável. Os mais inteligentes haviam compreendido perfeitamente que a Coluna despertara o país, deixara o germe da revolta no povo explorado. Se puseram então à frente dela, na esperança de conquistá-la para si e para os interesses que eles representavam. Assim o fizeram e com os melhores resultados.
É, amiga, dos mais curiosos o momento dos "tenentes" no poder. A reação que, com eles, dividia o governo, mas que estava evidentemente mais fraca, sem apoio popular, lança mão de todos os recursos para desmoralizar os "tenentes" perante o povo, tirando-lhes a sua base de massa. Começam levando ao ridículo o lado militar da revolta. Até hoje o movimento de 30 aparece perante o povo como uma revolta de governadores fugindo ante exércitos e chefes revolucionários que só existiam na sua imaginação. Deram a entender que se chegasse a haver a batalha de Itararé os "tenentes" seriam derrotados e assim transportaram a vitória militar das mãos dos tenentes para as mãos dos generais que haviam dado o golpe no Rio em 24 de outubro. Em realidade, nada disso se havia passado. Os "tenentes", com Juarez, Agildo Barata e Juraci Magalhães, haviam dominado militarmente o norte e o nordeste do Brasil. Haviam dominado Minas, onde encontravam em Virgílio de Melo Franco e Gustavo Capanema, forças intelectuais que os apoiavam. Haviam dominado o sul, Miguel Costa e João Alberto à frente das tropas, Oswaldo Aranha, o mais prestigiado dos chefes civis da revolta, sendo então um "tenentista".
Mas as oligarquias recorrem a todas as armas. Fazem uma campanha de ridículo contra Juarez, transformam suas vitórias no nordeste em anedotas mais ou menos pornográficas. Levantam a massa em São Paulo contra João Alberto, explorando sentimentos regionais e até separatistas. Quando Juraci Magalhães, por indicação de Juarez, vai para a interventoria da Bahia, os estudantes, a juventude, a massa popular, a mesma gente que pouco depois o iria estimar, defender e apoiar, o recebe com a maior das hostilidades, a oligarquia manejando o velho Seabra e o velho Seabra deixando-se manejar. Aí é também a exploração do regionalismo. No Pará recorrem a todos os meios contra Magalhães Barata, em Sergipe os grandes usineiros se unem contra Maynard Gomes.
Essas eram as posições que tinham os "tenentes": Juarez, espécie de ditador do norte e do nordeste; João Alberto, interventor em São Paulo, Juraci Magalhães na Bahia; José Américo de Almeida, o magnífico romancista, no Ministério da Viação e Obras Públicas, entrando em luta com as companhias estrangeiras; Ari Parreiras no Estado do Rio; Antenor Navarro na Paraíba; no Maranhão, Reis Perdigão e o padre Serra se sucedendo no governo; no Rio Grande do Norte, Irineu Jofily, corajoso e honesto; no Ceará, realizando um governo nitidamente popular, o coronel Moreira Lima, irmão do "Bacharel Feroz" da Coluna; no Espírito Santo, Punaro Gley; no Piauí, Landri Salles; além de ocuparem inúmeros postos de menor importância. Tinham eles uma porcentagem grande de poder. Eram, sem dúvida, a força mais poderosa do país naquele momento. A massa simpatizava com eles e se não os apoiou ainda mais entusiasticamente é que eles ficaram temerosos e não levantaram alto o seu programa em realizações imediatas. Ao contrário, fazem grandes concessões, de início, aos reacionários. Nos Estados onde fizeram um governo democrático ou popular — Juraci Magalhães na Bahia, Moreira Lima no Ceará, Antenor Navarro na Paraíba, Magalhães Barata no Pará, eles tiveram um apoio decidido da massa, e tão decidido que Juraci só irá ser derrubado em 1937.
De 1930 a 1932 o panorama é esse: os "tenentes" dividindo o poder com forças políticas imperialistas e latifundiárias, mas ainda assim com predomínio no governo. É o momento em que o gabinete de Vargas se apelida de Soviete na intimidade das reuniões. Quando José Américo abre luta contra a Light. Quando Irineu Jofily defende, contra a ganância dos politiqueiros, os dinheiros públicos. Quando havia uma liberdade de crítica, de opinião e de pensamento. Quando os próprios "tenentes" no poder diziam da necessidade de Prestes no país,55 sentiam que ele seria o homem para resolver bem a situação. Quando havia uma orientação do governo no sentido do povo.
As forças da reação tremiam. Encontraram seu apoio imediato em Getúlio Vargas, atado aos compromissos assumidos com Wall Street, atado aos compromissos assumidos com os políticos, namorando os oligarcas de São Paulo. Inicia-se uma política de entrega, abre-se luta contra os "tenentes" mesmo antes do movimento de 32. Põem-se todos os empecilhos aos interventores "tenentistas", procura-se desmoralizá-los. Pouco a pouco os reacionários ganham a hegemonia no governo.
Os aventureiros de todas as revoluções e de todos os governos estão, nessa hora, desorientados. Plínio Salgado, farmacêutico que vinha das gorjetas dos latifundiários do Partido Republicano Paulista, faz naquele momento, em um romance, o elogio de Prestes, quando a força do "tenentismo" parecia indicar que Prestes seria a solução para muito breve. Como essa solução tardaria, ele, logo depois, se vende ao Banco Germânico, para fundar o partido que o imperialismo nazi necessitava como base para a sua penetração, cada vez mais crescente, no país. Já antes houvera a tentativa frustrada das "legiões revolucionárias", os "camisas-pardas" de Francisco Campos, o Chico Ciência das montanhas de Minas, que desfilam umas poucas vezes pelas ruas de Belo Horizonte, sob as vaias da massa. Essa tentativa abortou porque Chico Campos queria conciliar política com as suas sucessivas paixões românticas, provinciano, babando-se por quanta mocinha bonita via nas ruas elegantes da corte, no seu deslumbramento de jurista de roça virado em político, de tabaréu em mesa e cama de grã-fino. Ainda era muito forte o "tenentismo" para que pudessem vingar as "legiões" mussolinescas de Campos. Esse teve que voltar aos seus versos, feitos de colaboração com o gordo poeta Augusto Frederico Schmidt. As legiões se desmoronaram entre os bíblicos poemas, as meninas jovens e inatingíveis do volumoso bardo e a luta imediata que, para tomar posse de um Ministério, Chico Campos sustentava contra um inimigo pessoal que, de chicote em punho, impedia, nas escadas do ex-Conselho Municipal, que o Ministro nomeado ditasse as suas "leis" sobre educação. Tendo afinal conseguido tomar posse, Chico Campos, o chefe fascista, o poeta neogrego de uma nova Helena, reforma a "educação" do país com um único decreto, seu primeiro decreto: transfere a si mesmo de professor de Direito da Faculdade de Minas para o mesmo posto na Universidade do Rio de Janeiro. E deitou-se a dormir e a contar sílabas de versos, coisa que tampouco Schmidt sabia fazer.
O momento do "tenentismo", o povo inquieto nas ruas clamando medidas, os reacionários de tentativa em tentativa procurando liquidar as forças populares, repetição no tempo do momento histórico da República, positivistas contra senhores de escravos, o povo com Floriano, os oligarcas conspirando, tramando, usando todas as armas é, sem dúvida, um dos instantes mais curiosos do Brasil moderno. Essa inquietação propicia o aparecimento da "moderna literatura brasileira". Os "modernistas", poetas e prosadores a serviço da grande burguesia e do imperialismo, desaparecem do cenário. Eles eram para o esotérico elogio das oligarquias no poder. No mesmo momento em que a estrela de um Francisco Campos desaparece, a voz dos "modernistas", voz muitas vezes efeminada e quase sempre em falsete, se cala. Como Francisco Campos, eles só irão surgir novamente nos dias de 37. Francisco Campos trará nas mãos a Constituição corporativa do Estado Novo, os "modernistas" irão ser novamente, como antes de 30, os "literatos" oficiais. No momento do "tenentismo", do povo querendo conhecer os seus problemas e as soluções para esses problemas, surgem dos quatro cantos do país vozes novas de escritores que irão levantar a geografia dramática da vida do Brasil. Gilberto Freyre, Artur Ramos e Edson Carneiro lançam novos rumos para os estudos sociológicos, históricos e econômicos. José Lins do Rego narra a vida das populações do açúcar. José Américo fizera já a história dos retirantes da seca. Raquel de Queiroz desvenda o Ceará. Dionélio Machado e Érico Veríssimo contam vidas do Rio Grande do Sul, Amando Fontes estuda as fábricas de Aracaju, Graciliano Ramos leva o romance nacional a uma altura antes desconhecida. Um "modernista" passando adiante do "modernismo" faz o necrológio do movimento e da burguesia do café em novelas candentes de sátira. Falo de Oswald de Andrade. Essa literatura nova, contra a qual a reação jogava o "romance introspectivo" de romancistas preocupados com mágicas bestas, vestidos com as calças frescas de Proust, encontrará em 1935 o seu apoio de massas no movimento da Aliança Nacional Libertadora, que permitirá tanto a José Lins, com Bangüê e O Moleque Ricardo, como a Graciliano Ramos, com Augústia, como a Érico Veríssimo com Caminhos Cruzados, os melhores momentos da sua criação artística.
Este é o ambiente do Brasil quando os reacionários, cada vez mais amedrontados, ante as forças revolucionárias do povo, se lançam à revolta de 32. Levantam uma magnífica bandeira: a Constituinte. Mas — é preciso notar — a Constituinte após uma revolta oligárquica vitoriosa. Não tentaram sequer uma campanha ideológica, uma campanha de imprensa e comícios, pedindo a Constituição. Se essa viesse naquele momento seria amplamente popular, levaria em conta os anseios da massa, principalmente aqueles anseios que o "tenentismo" representava. Uma prova disso havia sido o Congresso Revolucionário, presidido por Juarez, altamente positivo apesar da sua confusão, apesar dos quinta-colunistas, como Plínio Salgado, metidos dentro dele. Os oligarcas queriam uma Constituição, mas feita após terem eles vencido as forças populares. É difícil esconder esse lado profundamente contra-revolucionário do movimento de 32. Ele é a tentativa de liquidação pelas armas do "tenentismo". Isso apesar de vários "tenentes" haverem participado dele. Esse detalhe pode dar idéia da confusão daquele momento. A verdade é que os "tenentes" não tinham conseguido transformar o "tenentismo" numa doutrina. Era uma palavra e alguns fatos. Daí vários "tenentes" terem acompanhado o golpe paulista, no canto de sereia de "Constituição". Por detrás de tudo estavam os interesses ingleses movendo as cordas dos "constitucionalistas", querendo ganhar o terreno perdido para os ianques com o movimento de 30.
Mas a verdade é que já em 1932, quando estoura o movimento em São Paulo, Getúlio estava totalmente envolvido pelas forças reacionárias, latifundiárias e imperialistas. Os "tenentes" conseguem sair vitoriosos em 32. Mas essa vitória se transforma em derrota. Os "constitucionalistas" haviam lançado mão de todas as doutrinas para a sua revolta, até do separatismo. O verdadeiro ideólogo da revolta de 32 é um separatista.56 Vargas sentiu, com a sua habilidade de político frio, a força econômica e política dos latifundiários em armas. Sentiu por outro lado a fraqueza ideológica e a divisão dos "tenentes", sentiu que, vitoriosos esses totalmente, só restaria um caminho e uma perspectiva: Prestes e a revolução popular. E então, tendo alcançado a vitória militar contra os "constitucionalistas", ele trata, não de apoiar os "tenentes" e se apoiar neles, mas, sim, de ceder todas as reivindicações dos oligarcas. Dá a anistia, convoca a Constituinte. A força que ainda restava aos "tenentes" vai impedir que a Constituição de 34 tenha um caráter nitidamente reacionário. O liberalismo dessa carta constitucional decorre ainda da vitória militar dos "tenentes" em 32, da agitação da massa, da educação do povo nos problemas do Brasil que a literatura moderna vinha fazendo, da fraqueza em que estavam apesar de tudo as forças reacionárias. Mas, durante a Constituinte, Vargas negocia com elas. Os "tenentes" e as esquerdas não conseguem uma união. As forças democráticas e de esquerda na Constituinte têm todos os matizes, desde os liberais até os socialistas e comunistas.57 Não há uma união dessas forças e Getúlio Vargas tem que entregar-se aos latifundiários, os vencidos de ontem. Os seus mais ardorosos líderes na Constituinte não são, em verdade, os "tenentes" que haviam defendido seu governo de armas na mão. São os "paulistas" que haviam lutado contra ele. Com a sua eleição para Presidente da República, ele liquida o "tenentismo"; Juarez não é mais o ditador do norte. Vargas atende à Light e José Américo tem que deixar o Ministério da Viação. São Paulo é entregue aos mesmos homens que levantaram a bandeira de 32. A chefia de polícia vai para a mão do homem de confiança dos alemães, Filinto Müller. Em todos os Estados o "tenentismo", desunido, vem abaixo. As forças reacionárias se unem para derrubá-lo. Muitos "tenentes", aqueles que antes de serem revoluncionários eram aventureiros, se vendem e conservam assim uma parte do poder ou um cargo qualquer. Agora o espetáculo é outro. Idêntico ao da República, após a saída de Floriano do poder. Agora o Ministro da Justiça não é mais um representante do pensamento popular de 30. É Vicente Rao, um dos chefes da revolta de 32, que vai ditar logo depois a "lei monstro", procurando liquidar o que restava de democrático e de "tenentista" na carta constitucional de 1934.
Com o adubo do dinheiro nazi e sob a sombra protetora da polícia crescia o "integralismo".58 O imperialismo alemão era um termo novo na equação política do Brasil. Na preparação da guerra que desencadearia sobre o mundo, Hi-tler e os seus amos estudam o Brasil, com a sua percentagern de alemães em Santa Catarina, no Paraná e no Rio Grande do Sul, como a possível ponta de lança na América. A compra do chefe de polícia da capital, de uns quantos políticos, não lhes parecia bastante. A quinta-coluna no Brasil toma, o aspecto de um partido político. É a Ação Integralista Brasileira,/ os "camisas-verdes" de Plínio Salgado. O governo os incuba, pensando em se apoiar neles no dia de amanhã, como irá fazer em 37. A liquidação do "tenentismo" é uma etapa nessa política de manobras. Sua etapa superior é o desenvolvimento do "integralismo". É curioso constatar que o "integralismo" tem o apoio dos que representam mais imediatamente Wall Street, tem o apoio de Rao e dos que representam a City, tem o apoio entusiástico de Filinto e dos que representam Hitler. Plínio Salgado é apenas um caixeiro de Filinto e de Von Cossel, este instalado no Rio na chefia da espionagem alemã e do partido nacional-socialista. Plínio Salgado primeiro andara indeciso, sem saber para que lado sorririam as perspectivas mais imediatas do poder. Em 1931 está mascarado de anarquista, fala em Prestes e, como não tem um negócio melhor, arriba com os cobres de uma loteria da qual tiveram a ingenuidade de fazê-lo tesoureiro. Mas, diante do brilho dos marcos do Banco Germânico, ele veste de verde os nazis do sul e todos os desonestos do país. Alguns revolucionários vão atrás do palavreado fácil do integralismo. Esses irão dar-se conta logo depois do que é, em realidade, o partido de Plínio e o deixarão no momento da Aliança Nacional Libertadora. O integralismo mistura numa literatura de cordel o Minha Luta de Hitler, na provocação anticomunista, e o Por que me Ufano do Meu País, do conde de roda Afonso Celso, no papaguear de mentiras patrioteiras. Foi um carnaval retórico e triste, a desonestidade solta na rua, a polícia formando nas passeatas integralistas, fantasiada de verde sob as ordens arianas de Gustavo Barroso, campeão de corrida na Praça da Sé de São Paulo, no dia em que os operários paulistas demonstraram seu repúdio ao fascismo.
Nunca, em todo mundo, incluindo o "futurismo" de Marinetti no fáscio italiano, incluindo as teorias árias do nazismo alemão, nunca se escreveu tanta idiotice, tanta cretinice, em tão má literatura, como o fez o integralismo no Brasil. Foi um momento onde maior que o ridículo só era a desonestidade. Plínio Salgado, fuhrer de opereta, messias de teatro barato, tinha o micróbio da má literatura. Tendo fracassado nos seus plágios de Oswald de Andrade, convencido que não nascera para copiar boa literatura, plagia nesses anos o que há de pior em letra de fôrma no mundo. É a literatura mais imbecil que imaginar se possa.
Ao aparecer o integralismo, os "intelectuais" reacionários, os que apareciam com 1930, como o donzelo Otávio de Faria e o sabido San Tiago Dantas, riram de Plínio e do seu partido, achavam tudo aquilo magnificamente ridículo. Mas riram pouco tempo. Logo descobriram que, por detrás de Plínio, estavam Filinto, Von Cossel e Hitler, o dinheiro do imperialismo, a reação contra o povo. E então os San Tiagos, os Otávios e os Tassos da Silveira, o terço numa mão, os olhos fitos em Hitler, cantavam, em prosa e verso, loas ao chefe nacional, cansando as gargantas frágeis de mocinhos bonitos de tanto gritar anauês delirantes à passagem do esqueleto de Plínio e das gordas nádegas de Gustavo Barroso. Se misturavam, num abraço comovente possibilitado pelos marcos-ouro, aos Viveiros de Castro, Madeiras de Frei* tas e Carlos Maul, fracassados da literatura, que aqueles "aristocratas" antes tanto deprezavam. E não só esses. Também, atendendo ao possível chamado do poder, todos os céticos, aqueles que viam a vida sob um sorriso de desprezo, os "neutros" das conversas em livrarias, começaram a achar que Plínio não era tão idiota assim... E eles também bateram nos peitos contritamente. . .
O integralismo fazia todas as provocações. Armava os alemães do sul; eram armados pelos nazis da Alemanha. Sua literatura policial e provocativa era distribuída pelos canais oficiais. Plínio aconselhava leis de repressão à liberdade e ao povo, e o "constitucionalista" Rao as redigia apressadamente. Governantes viam com ternura, à qual se misturava uma secreta inveja, os desfiles verdes. O dinheiro corria, quem queria vender-se podia obter bons preços.
A liquidação do "tenentismo" se dera. O fechamento dos clubes "tenentistas" o afastamento dos líderes mais importantes dos cargos de governo, a compra sistemática dos que quiseram vender-se tinham reduzido a quase nada politicamente os verdadeiros vencedores do movimento de 30. Getúlio completara o primeiro ciclo da transformação do seu governo. Agora não mais se apoiava no povo e nos seus chefes "tenentistas". Agora tinha como resguardo os latifundiários, os imperialistas, os fascistas. Nesses quatro anos modificara-se a face do governo. Como nos anos iniciais da República, os senhores de escravos voltaram ao poder. Como os positivistas de então, os "tenentes" de agora tinham sido liquidados, o movimento tinha sido traído.
Novamente o povo só enxerga um caminho. Também os "tenentes" que não se haviam entregado à reação na volúpia de governar só viam um caminho. Um nome percorre o país de ponta a ponta. Como uma bandeira, como a única saída, como a única possibilidade de salvação. Um nome em todas as bocas. Mais uma vez o povo chama pelo Cavaleiro da Esperança. Ele que previra o que se passava, ele que não quisera unir-se aos inimigos do povo, ele que não quisera o poder contra o povo, ele que não se vendera, era a única esperança para os que temiam pela sorte do Brasil.
As finanças do país estão em crise. E a época dos créditos congelados e dos marcos compensados. É a época da queima do café, da vida por um preço absurdo, os salários miseráveis. É a ameaça do integralismo vendendo a pátria aos alemães. É a luta dos imperialismos entre si, cada qual querendo um quinhão maior no leilão do país.
Os "tenentes" mais conseqüentes, os que se deram conta do processo seguido pela revolução, diante da situação do país, da ameaça fascista, da liquidação da Constituição que Rao fazia metodicamente, unem-se às demais forças de esquerda, democratas verdadeiros, comunistas, socialistas e lançam as bases de um partido político anti-imperialista, anti-latifundiário, popular e amplo. Os partidos de esquerda, os elementos realmente democratas, cerram fileiras em torno dele.
Como uma resposta ao clamor do povo mais uma vez traído, às ameaças que pesavam sobre a Pátria, surge a Aliança Nacional Libertadora. E no seu comício de fundação, entre aclamações delirantes do povo que voltava a ter confiança, a Aliança proclama Luiz Carlos Prestes seu presidente de honra.
Agora, amiga, novamente corre um vento de esperança por todos os peitos, um tremor de frio no coração dos traidores.
A multidão se comprimia no Teatro João Caetano, silenciosa. Aqueles que estavam sentados, ou se apertavam em pé por entre os corredores que conduziam às cadeiras, eram amiga, os felizes que tinham conseguido entrar no teatro e conquistar um lugar. Uma multidão algumas vezes maior que a reunida no João Caetano se espalhava pela Praça Tira-dentes, transbordando do teatro, silenciosa também, esperando. Era gente de toda cor, brancos e negros, pardos e mulatos. Gente pobre, homens que haviam saído do trabalho árduo das fábricas, camponeses que haviam descido dos subúrbios, soldados, marinheiros, era gente rica ou gente remediada, comerciantes, oficiais do exército e da marinha, estudantes, intelectuais. Guardavam um silêncio de expectativa. Um grupo de "tenentes" e de homens de esquerda havia convidado o povo a assistir os lançamentos de um novo partido político que mais que um partido político era uma frente ampla de todos os que desejavam a libertação da Pátria e do povo.
Lá dentro, no palco do teatro, era lido o manifesto dos nacional-libertadores. A voz do orador, enérgica e clara, levava a todos aqueles corações a emoção de uma esperança.
Nos quatro anos que vinham de outubro de 30 a março de 35, a revolução que parecera vitoriosa havia sido vendida. O governo central já não se apoiava nos líderes revolucionários, naqueles em quem o povo confiava. Todas as esperanças concebidas em 30, o desabrochar da flor revolucionária cuja semente a Coluna deixara no seu rastro, haviam morrido aos poucos. Como uma ameaça nova e mais violenta e mais odiosa alastrava-se, levado pela mão da polícia, o integralismo, inimigo da pátria, inimigo do povo, inimigo da liberdade e da cultura, inimigo da beleza e do amor.
Nesse momento de perigo, do maior perigo, o povo, de toas as artes do Brasil, de norte a sul, de leste a oeste, das selvas do Amazonas aos pampas gaúchos, do Atlântico ao planalto central de Mato Grosso, murmurou, lembrou, disse e gritou um nome: Luiz Carlos Prestes.
Os "tenentistas" que se deram conta de como as conquistas populares estavam sendo liquidadas, aqueles que se conservavam com seus ideais e não se entregaram às forças da reação, as esquerdas que sentiam o perigo fascista nascendo dessa liquidação como o sustentáculo dela, acabavam de lançar uma força política destinada a apoiar a democracia, a realizá-la no Brasil, a afastar o perigo do fascismo. O povo se comprimia no Teatro João Caetano, transbordando pela Praça Tiradentes. O orador fala:
"A Aliança Nacional Libertadora tem um programa claro e definido. Ela quer o cancelamento das dívidas imperialistas; a nacionalização das empresas imperialistas; a liberdade em toda a sua plenitude; o direito do povo manifestar-se livremente; a entrega dos latifúndios ao povo laborioso que os cultiva; a liberdade de todas as camadas camponesas da exploração dos tributos feudais pagos pelo aforamento, pelo arrendamento da terra, etc; anulação total das dívidas agrícolas; a defesa da pequena e média propriedade contra a agiotagem, contra qualquer execução hipotecária." A cada reivindicação consignada, o manifesto era interrompido por aplausos. O povo sentia que as suas necessidades, que os seus problemas haviam sido tocados. Agora encontrava um programa para a sua luta que vinha sendo feita a trancos e barrancos. O "tenentismo" dava um passo enorme, ao juntar suas forças mais conseqüentes no movimento da Aliança Nacional Libertadora. A massa vibra a cada parágrafo:
"Queremos que a formidável quantia evadida do Brasil para os cofres dos magnatas estrangeiros seja empregada em benefício do próprio povo brasileiro, explorando as nossas riquezas e desenvolvendo as nossas forças produtivas, diminuindo todos os impostos que pesam sobre a nossa população laboriosa, e com isso, abaixando o custo de vida e desafogando o comércio; aumentando os salários e ordenados de todos os operários, empregados e funcionários; efetivando e ampliando todas as medidas de amparo e assistência social aos trabalhadores; desenvolvendo em enorme escala a industrialização."
Cada slogan, em meio aos aplausos, é murmurado ate a porta do teatro e alcança a praça onde a multidão logo o conhece e o acolhe com entusiasmo. Os gritos de aplausos são ouvidos muito longe, vão perturbar o sono dos que haviam vendido o país. A imensa massa humana que se aglomerara na Praça Tiradentes, silenciosa quando no teatro era lido o manifesto, se agita e aclama cada lema que o orador lança. O manifesto chega ao seu fim:
"Queremos uma pátria livre!"
Uma pátria livre, sim. Desde há séculos os homens brasileiros vinham lutando por uma pátria livre. Aquela praça onde estavam levava o nome de um desses primeiros lutadores. Também Tiradentes, o alferes mineiro, pensara, ele, que conhecia a vida desgraçada do povo sob o jugo da Corte portuguesa, em libertar a Pátria e pagara o seu sonho numa forca armada no Rio de Janeiro. Ali corra o sangue do mártir, dele nascera coragem e esperança.
"Queremos o Brasil Emancipado da Escravidão Imperialista!"
Sim, emancipado da escravidão moderna. Por isso lutara Floriano, lutaram os "tenentes" daquele tempo. Por isso deram seu sangue, suas vidas. Por isso, na sua confusão ideológica, mas na procura de um caminho, haviam-se levantado os "tenentes" de agora nos dias de 22 e 24, com Siqueira, na praia de Copacabana, com Miguel Costa, nas ruas de São Paulo, com Prestes, nos pampas do sul. Por isso haviam percorrido todo o país. Por isso haviam voltado em 30. E mais uma vez os políticos vendiam e entregavam o Brasil aos amos estrangeiros.
"Queremos a Libertação Social e Nacional do Povo Brasileiro! "
Sonho de hoje, realidade de amanhã. A multidão clama, amiga, está de pé. Assim grita o seu apoio, a sua adesão, a vontade de lutar. Mas falta algo. Sempre, em todos os momentos em que lhe prometeram e lhe convidaram para algo, ela pedia uma garantia. Um nome, o único nome que para ela representa a certeza de que o programa, os lemas, as promessas não seriam vãs e inócuas. Que seriam cumpridas. E a multidão, no teatro e na Praça, começa a gritar seu grito de guerra:
— Prestes! Prestes! Prestes! LUIZ CARLOS PRESTES!
Alguém, do palco diz:
-— Propomos o general Luiz Carlos Prestes para presidente de honra da Aliança Nacional Libertadora!
E a multidão em delírio aprova a indicação com um aplauso que parece não ter fim. Agora tem certeza de que esse partido não será traído, nem vendido, nem entregue. Que seu programa será cumprido. Que a sua revolução será profunda e bela. Agora que à sua frente está o seu general, o seu chefe, o seu líder, o seu Herói. Agora que novamente na frente do povo está Luiz Carlos Prestes. E nas ruas da cidade do Rio de Janeiro, por entre a multidão que se dissolve alegre e entusiasta, um nome fica vibrando, é o próprio coração da pátria: Prestes!
Fundada, amiga, em março de 1935, o seu manifesto assinado por um grupo de "tenentes" e de homens de esquerda,59 a Aliança Nacional Libertadora vai ter uma vida legal brevíssima, mas de uma intensidade antes desconhecida na história política do Brasil. Nos seus quatro meses e pouco de legalidade, a Aliança se transforma no maior partido político nacional de todos os tempos. Mais de um milhão e meio de brasileiros açodem ao seu chamado de união. Os partidos políticos de esquerda, comunista, socialista, democratas, se unem em torno de suas diretivas. A grande massa sem partido, a massa educada pela Coluna, cerra fileiras na Aliança. A moderna literatura brasileira a apóia. As mulheres em luta pelas suas reivindicações aderem ao grande movimento de Prestes. Mil e quinhentos núcleos da. Aliança são fundados em menos de quatro meses em todo o território brasileiro. Nos primeiros dias a afluência à sede da Aliança no Rio é tal que os seus funcionários não dão conta do serviço. Cinqüenta mil membros se inscrevem em poucos dias na cidade do Rio de Janeiro. Em São Paulo, onde Miguel Costa se põe à frente do movimento, a Aliança liquida o integralismo, transforma-se num partido poderosíssimo! Numa pequena cidade de veraneio como Petrópolis, duas mil e quinhentas pessoas entram imediatamente para os quadros aliancistas. A caravana da Aliança, que viaja o nordeste e o norte, é recebida sob apoteoses em cada cidade onde passa. Através do Clube de Cultura Moderna as forças intelectuais mais poderosas do país apóiam a Aliança. Jornais são fundados, revistas, folhetos e livros circulam por todo o Brasil. Consigo, a Aliança Nacional Libertadora leva a liberdade e a cultura. Motta Lima dirige A Manhã, o mais popular dos diários que já possuiu o Brasil, em São Paulo surge A Platéia e em Recife a Folha do Povo, corajosa e violenta. Deputados "tenentistas" dão seu apoio ao programa aliancista.60 Os revolucionários que ainda se encontram no poder simpatizam com o movimento. Inúmeros homens honestos que haviam sido enganados pela demagogia integralista abandonam as fileiras de Plínio Salgado para virem reforçar as da Aliança.
Os manifestos de Prestes, lançados a 13 de maio e a 5 de julho, em comícios memoráveis, alimentam a massa de esperança no futuro do Brasil. A aliança realiza uma obra política admirável, cujos resultados se sentem até hoje.
A palavra de ordem de um Governo Popular Nacional Revolucionário surge da própria massa aderente à Aliança. Era ele a conseqüência natural da plataforma aliancista. Diante dos esforços da reação para sustentar-se no poder, das limitações que a cada dia ela impunha à Constituição de 34, do prestígio que dava ao integralismo mantendo-o como uma espada sobre o pescoço do povo, das suas ligações cada dia maiores com os diversos imperialismos, o inglês, o alemão e o americano, o seu desprezo por qualquer tentativa de administração honesta, as manobras políticas cada dia mais sórdidas faziam com que a massa não acreditasse possível a realização de qualquer das suas reivindicações senão dentro de um governo novo. De um governo chefiado pelo homem que nunca a traíra, cuja vida era toda ela a dedicação ao povo, o lutar pelos seus interesses, de um governo de Prestes. Getúlio apoiava-se em uma trilogia trágica: Rao, Filinto e Plínio Salgado. Latifúndio, imperialismo e fascismo. O programa de um Governo Popular Nacional Revolucionário era exatamente o de combate a estes inimigos do povo. Prestes prometia:
"Anulação e desconhecimento das dívidas externas."
"Denúncia dos tratados antinacionais com o imperialismo."
"Nacionalização dos serviços públicos mais importantes e das empresas imperialistas que se não subordinem às leis do governo."
"Jornada máxima de trabalho de oito horas; seguro social: jubilações, etc; aumento de salários, salário igual para igual trabalho, garantia de salário mínimo, satisfação das necessidades do proletariado."
"Luta contra as condições escravistas e feudais do trabalho."
"Distribuição entre a população pobre, camponesa e operária, das terras e utilização das aguadas tomadas, sem indenização, aos imperialistas, aos grandes proprietários mais reacionários, inclusive os da Igreja, que lutem contra a libertação do Brasil, e a emancipação do seu povo."
"Devolução das terras arrebatadas pela violência aos índios!"
"Pelas mais amplas liberdades populares, pela completa liquidação de qualquer diferença ou privilégio de raça, de cor, de nacionalidade; pela mais completa liberdade religiosa e separação da Igreja do Estado."
"Contra toda e qualquer guerra imperialista e pela estreita união com as alianças nacionais libertadoras dos demais países da América Latina, e com todas as classes e povos oprimidos."
Esse, amiga, era o programa de governo de Luiz Carlos Prestes. Isso o que ele prometia ao povo, quando no comício de 5 de julho deu a palavra de ordem de "Todo o poder à Aliança Nacional Libertadora", à qual o povo respondeu com um complemento:»
"Com Luiz Carlos Prestes à frente!"
A impressão, amiga, que dava o movimento da Aliança Nacional Libertadora, tal o entusiasmo do povo, tal a força que vinha dele, era que o governo popular-revolucionário seria implantado com uma passeata. O ímpeto do integralismo, ímpeto que nascia do apoio oficial e da falta de desmascaramento da sua demagogia, decresceu de uma forma assombrosa. Com a Aliança, o integralismo estava fadado a um desaparecimento rápido do cenário político. As forças esquerdistas, as forças "tenentistas" e as forças democráticas se uniam cada vez mais em torno da Aliança e de Prestes. Os aventureiros de sempre, os oportunistas que têm o olfato sutil para perceber por onde corre o vento da vitória, batiam contritamente nos peitos e procuravam aproximar-se da Aliança. As forças da reação estavam literalmente estarrecidas ante a vitalidade revolucionária do povo brasileiro. A polícia desenvolvia uma violência antes desconhecida. Foi a época dos assassínios dos militantes revolucionários, esses mesmos assassínios, amiga, que hoje a polícia quer atirar sobre os ombros dos presos políticos. Foi a época das prisões a cada momento, mas nada disso era entrave para que o movimento crescesse a cada dia, os comícios reunindo multidões impressionantes, e os manifestos de Prestes circulando pelo país de mão em mão, lidos comovidamente. O diretório nacional da Aliança não tinha mãos a medir no trabalho estafante da organização. A Aliança fez nos quatro meses de sua legalidade uma educação política das massas brasileiras, educação que até hoje se sente na sua reação tão densa ao Estado Novo de moldes fascistas. Se o Brasil não foi entregue à Alemanha, se hoje o governo faz uma política pró-Nações Unidas, isso se deve fundamentalmente à massa que resistiu de uma forma heróica à fascistização do país e à sua entrega aos nazis. Trabalho ideológico feito pela Aliança, trabalho de Prestes. A Aliança deixou no povo uma força democrática e antifascista realmente poderosa, tão poderosa que se mantém viva através desses anos tão cruéis de reação organizada e cotidiana.
A quinta-coluna não se mantém inativa. Ante o crescimento impressionante da Aliança, ante o entusiasmo com que o povo marchava para o governo popular-revolucionário, o governo, por intermédio de Rao, toma a única medida que poderia colocar um entrave sério ao movimento nacional-libertador: coloca na ilegalidade a Aliança Nacional Libertadora por decreto de 11 de julho de 1935. É a lei de segurança, a "lei monstro", em plena execução. Os inimigos do povo se opunham aos partidos do povo, à sua vontade. Com o fechamento da Aliança como partido legal, vai iniciar-se o regime do cerceamento completo da liberdade, vai começar o governo ditatorial. Com a lei de segurança a Constituição era letra morta. Não existia na prática. Pela válvula do Congresso os deputados protestam inutilmente. É esse ambiente que vai precipitar os acontecimentos e levar o povo à insurreição de novembro.
Prestes entrara no Brasil em abril, e logo depois entrava Silo Meireles. Prestes vem diretamente para o Rio de Janeiro, Silo fica em Recife. Como em todos os grandes movimentos de libertação brasileira, alguns estrangeiros amigos da liberdade se encontram ao lado de Prestes: o ex-deputado alemão Artur Ernest Ewert, Rodolfo Ghioldi, líder operário argentino, Leon Vallée, o norte-americano Baron que seria assassinado pela polícia do Rio, atirado da sacada de um quarto andar.
A exploração feita em torno desses revolucionários estrangeiros que se encontravam no país e que emprestaram a sua colaboração ao movimento de novembro é a mais absurda e falsa historicamente. Com ela pretendeu inutilmente a polícia afastar a simpatia do povo do movimento aliancista. Como se fosse novidade na História do Brasil a colaboração de estrangeiros nos nossos maiores movimentos de libertação nacional. Na Inconfidência, o português Tomás Antônio Gonzaga é figura de primordial importância. Na Independência, o próprio Pedro I é um português, ingleses são lorde Cochrane, herói do Brasil e do Chile, francês é o general Labatut. Ligados aos norte-americanos estavam os estudantes brasileiros que sonharam a Independência nos dias de 1700. Africano era o primeiro dos Zumbis, na República dos Palmares Libero Badaró é italiano como italiano é Giuseppe Garibaldi na revolta dos Farroupilhas. Na Coluna, o ajudante-de-ordens de Prestes é Landucci, ex-capitão do exército da Itália. No levante de 24 existia em São Paulo um batalhão alemão. Por que somente o movimento de 35 estava impedido de contar com a colaboração de todos aqueles estrangeiros que amavam a liberdade? Era o próprio programa do governo nacional popular-revolucionário quem falava em abolir qualquer diferença de "raça, de cor e de nacionalidade". Amigos da liberdade, que por ela tinham lutado em várias partes do mundo, líderes do seu povo como o alemão Ewert, como o argentino Ghioldi, que se encontravam no Brasil, só podiam sentir simpatia e colaborar com o movimento de libertação do povo brasileiro. Toda a nossa história de povo está cheia de estrangeiros derramando o seu sangue junto ao nosso pela liberdade. Estrangeiros cujos nomes são cultuados ao lado dos nomes dos mártires brasileiros. Também o nome desses que em 35, amiga, se bateram conosco pela liberdade do Brasil, também eles não serão esquecidos no dia de amanhã. Eles são também heróis da liberdade no Brasil. Ewert a quem chamavam Berger, que deu mais que sua vida, deu sua razão pelo bem do Brasil, Ghioldi que sofreu nos cárceres imundos, entraram para a nossa História, estão ao lado de Garibaldi, de Libero Badaró, de todos os que sonharam a liberdade para essa pátria e para esse povo. São nossos, muito nossos, o seu sangue derramado o foi em bem do Brasil. Nenhuma exploração de mau nacionalismo poderá jamais fazer com que os brasileiros deixem de clamar pela liberdade de Berger, deixem de sentir amor pela figura de Rodolfo Ghioldi. Companheiros de Prestes na obra de libertação do Brasil, eles ficam ao lado do Cavaleiro da Esperança, entre os mais corajosos e os mais dignos revolucionários brasileiros que lutaram e sofreram pela Pátria.
Em torno de Prestes novamente se reúnem as figuras mais brilhantes entre os oficiais moços do exército. Homens que o haviam acompanhado desde os tempos da Coluna, generais como Miguel Costa, coronéis como Felipe Moreira Lima, homens que haviam participado de todos os movimentos armados desde 22 como Silo Meireles, Costa Leite, Cascardo, Trifino, homens que surgiram em 30 na frente dos tenentes, como Agildo Barata, Sisson e Agliberto Vieira de Azevedo. A preparação da insurreição se processa dentro de um ambiente do maior calor popular, da mais entusiástica adesão do povo. A Aliança na ilegalidade continua poderosa e viva.
Te disse que pouca gente sabia da presença de Prestes no país. Mas já te disse também que o povo adivinhava, que, na alegria de todos os semblantes, nos dias de 35, se poderia conhecer a proximidade do Herói, em todas as bocas o seu nome como o daquele que ia impedir que a Pátria fosse ainda desonrada, vendida e traída. Havia um ar de festa, o Brasil se preparava para governar o seu destino.
A Aliança Nacional Libertadora havia despertado a massa, fizera a sua educação política, levantara em cada homem o amor à Pátria, à liberdade e ao povo. Essa a sua tarefa realizada. Grande tarefa cuja repercussão se sente até hoje, amiga. Foi a força desses dias de entusiasmo que armou o povo do Brasil de suficiente resistência e dignidade para os dias de miséria e de desgraça que vieram depois, que duram até hoje. Foi a Aliança quem em grande parte impediu, anos depois, que o Brasil fosse entregue de pés e mãos atados a Hitler e a Mussolini. O Brasil ao lado das democracias é também fruto da Aliança Nacional Libertadora, amiga.
Luiz Carlos Prestes, amiga, o português Antônio Vilar, segundo o seu passaporte, trabalhava sem descanso nos dias de ilegalidade da Aliança. O terror policial se implantava no país, o integralismo em pânico com o crescendo revolucionário do povo fazia toda espécie de provocação, Vargas se apoiava cada vez mais nas forças latifundistas e imperialistas. Colocada na ilegalidade, a Aliança não se enfraqueceu. Ainda é ela quem centraliza a vida política do país. Sua marcha para um governo popular-revolucionário não sofre solução de continuidade. As primeiras eleições lhe darão sem dúvida uma vitória absoluta. No Congresso, a Aliança, por intermédio dos seus deputados, consegue uma vitória estrondosa ao pleitear que a Câmara peça ao Executivo o fechamento do integralismo, como partido antidemocrático. A proposta aliancista é aprovada, mas Vargas e seu Ministro da Justiça a desconhecem, vendo que o integralismo era naquele momento o partido em que a reação mais se apoiava. O integralismo se presta a tudo: denuncia, espiona, sabota, provoca. O povo, cada vez mais descontente com o governo, aclama a cada passo o nome de Prestes, já se vislumbra o seu governo popular-revolucionário conduzindo o país a dias felizes.
Os oficiais de Prestes açodem ao seu chamado. O seu general, aquele que cobrira de glórias o exército nacional com os feitos da Coluna, o gênio militar da América, o sábio e o homem de bem, encontra em todos os corações honestos, em todos os que conservam as tradições do exército democrático e popular de Floriano e Constant, partidários ardorosos.
Amiga, os traidores e os vendidos têm nos dias de hoje criado uma lenda em torno ao exército brasileiro. Com essa lenda querem afastá-lo do povo. Esse exército que sempre foi a vanguarda da liberdade no Brasil, o melhor e o maior defensor do povo, tantas vezes coberto de glória nos campos de guerra, nas revoluções ao lado do povo, cercado sempre pelo carinho da massa, o mais popular dos exércitos da América não pode ser julgado por umas quantas tristes exceções. 61 O exército é o que nasceu das lutas da Independência, que se fortaleceu nos campos de guerra, que se negou a perseguir os escravos fugidos, que fez a República com os positivistas, que defendeu a República contra os senhores de escravos, que fez os movimentos de 22 e de 24. o que marchou com a Coluna na epopéia da travessia do Brasil, o que se levantou em 30 e em 35. É o exército dos democratas de hoje que se opõem aos vendidos e aos traidores. É o exército de Manuel Rabelo fazendo o elogio da democracia em meio ao Estado Novo. É o exército de Prestes, ouvindo o grande prisioneiro no seu julgamento por um suposto crime militar e absolvendo-o com dignidade e com justiça. Esse é o exército, o verdadeiro, o grande exército do Brasil, aquele que é amigo do povo, que está ao seu lado, a quem o povo deve estima e respeito. Não, amiga, não vamos julgar levianamente o exército que é honra e glória da Pátria.
Nos dias de 35, a Aliança reunia suas forças para a campanha eleitoral para a Conquista pacífica do poder. A ilegalidade não interrompera suas atividades. Os núcleos aliancistas continuam a surgir, os jornais da Aliança e os que apoiam o seu programa continuam a ser os mais populares do país. O nome de Prestes é a esperança de todo o povo. Uma onda de greves se desencadeia no país em protesto contra a reação. A Aliança e Prestes são bandeiras dessas greves, dessa agitação imensa, desse entusiasmo que cresce a cada momento. O integralismo, após a multidão haver dissolvido umas quantas passeatas puxadas pela Polícia Especial, não tem mais coragem de sair à rua. Plínio, Rao e Filinto lançam a provocação anticomunista. Como a provocação contra os estrangeiros que milharam na revolução de 35, essa é mais uma campanha sórdida e indigna. A Aliança era uma ampla frente democrático-revolucionária. Reunia as forças democráticas mais conscientes e as forças de esquerda, socialistas e comunistas. Os comunistas — já que o seu Partido havia apoiado o programa aliancista — foram nacional-libertadores absolutamente coerentes com o programa que haviam apoiado. Trabalhavam pela transformação popular-revolucionária da mesma maneira que os democratas e os socialistas. Os argumentos mais batidos e mais ridículos são utilizados então pelo integralismo. Falam em ouro de Moscou quando sabem que o dinheiro empregado na Aliança fora aquele mesmo dinheiro que Vargas, então governador do Rio Grande, enviara a Buenos Aires numa tentativa de obter o apoio de Luiz Carlos Prestes em 1929. Batem na tecla de que Prestes é membro do Partido Comunista e dirigente da Internacional. Se esquecem que foi o próprio povo. de quem ele é o Herói, que aclamou seu nome para Presidente de Honra da Aliança. Esquecem também que em 1930 a Aliança Liberal tudo fez para ter à frente das suas tropas aquele que já se havia declarado publicamente comunista. Falam em Internacional quando é o povo brasileiro que está nas ruas lutando corpo a corpo contra as hordas integralistas e policiais, essas sim pagas com o dinheiro alemão. Falam em estrangeiros, quando agentes do Intelligence Service trabalham na polícia do Rio e agentes dessa polícia se "educam" na Gestapo. Os que mais falam em "estrangeiros" são os nazis alemães do sul. É uma sórdida provocação inútil. O povo a desconhece e tranqüilamente a Aliança marcha para o poder, entre o entusiasmo das massas.
Essa marcha é interrompida em defesa dos interesses do povo. Os operários de Natal se encontram em greve geral. Culminando seu terrorismo o governo reacionário do Estado do Rio Grande do Norte demite toda a Guarda Civil, democrática e amiga da população. Os sargentos e cabos do Batalhão de Caçadores local são também afastados das fileiras. O povo então toma armas e se levanta na insurreição de novembro. Os revoltosos dominam a cidade e o Estado. Pelo rádio pedem o apoio da Aliança Nacional Libertadora e de Prestes. Esperam do movimento libertador e do grande chefe que não os abandonem. O diretório estadual da Aliança vai ao encontro do pedido dos revolucionários e é implantado aí o governo popular-revolucionário. Esse governo durou quatro dias e mais uma vez provou concretamente qual era o verdadeiro sentido da revolução: um sentido nacional-libertador. Foi um governo "popular, foi nacional, foi revolucionário".62 Sua ação foi toda ela moldada dentro dessas palavras. Nunca se afastou delas. O povo o cercou e o apoiou.
Dois dias depois de iniciado o movimento de Natal, Silo Meireles levanta a bandeira revolucionária em Recife. Silo vinha dos dias de 22. Era dos cadetes que haviam tomado parte na revolta da Escola Militar daquele ano, no primeiro 5 de julho. Desde então sua vida tinha sido prisão e conspiração, até que, atendendo ao chamado de Prestes, veio, em 1931, para Buenos Aires onde trabalhou na preparação do movimento político que a Aliança iria lançar em 1935. Viaja pela Europa, volta ao Brasil, será ele o condutor da insurreição de novembro em Pernambuco. O povo de Pernambuco acompanha os revolucionários, luta-se nas ruas de Recife.
No Rio de Janeiro Luiz Carlos Prestes, amiga, em defesa do povo, ordena às guarnições militares que se levantem na madrugada de 27 de novembro.
Apesar da traição, das medidas preventivas tomadas pelo governo, os oficiais, os sargentos e os soldados obedecem às ordens de Luiz Carlos Prestes. Em várias unidades e revolta não chegou a realizar-se, os chefes presos pouco antes, as ligações perdidas com estas prisões. Costa Leite havia sido enviado pelo governo para o Rio Grande do Sul, afastado assim do Rio de Janeiro. Mas, com todas as dificuldades, amiga, os aliancistas saem em defesa dos homens do nordeste que lutavam pelo governo popular-revolucionário. A precipitação do movimento revolucionário iria sem dúvida, como realmente o fez, dar, com o seu fracasso, uma nova força à reação. Porém, por outro lado, a Aliança Nacional Libertadora não podia deixar de correr em defesa do povo de armas na mão lutando no nordeste pela liberdade. Prestes não podia, sem trair a confiança que nele depositavam, deixar de acudir ao apelo que os revolucionários de Natal e de Recife lhe faziam.
Na madrugada de 27 de novembro de 1935 o capitão Agliberto Vieira de Azevedo levanta a Escola de Aviação. No mesmo momento outro capitão, Agildo Barata, que estava preso no 3º. R. I., se põe à frente desse regimento na Praia Vermelha. Junto a Agliberto estão Sócrates da Silva, Benedito de Carvalho, Ivan Ribeiro, Dinarco Reis, Carlos França, Gay da Cunha, Válter Benjamin da Silva, oficiais da Escola, além de todos os sargentos, alunos e soldados.
No 3º. R. I. os revolucionários contam, entre outros, com Álvaro de Souza, Mário de Souza, Durval de Barros, David Medeiros Filho, Antônio Monteiro Tourinho, Leivas Otero, Celso Bicudo de Castro, José Gutman, Moraes Rego, Joaquim Silveira, Raul Pedroso e Tomás Meireles, morto heroicamente na luta.
A luta dura, amiga, toda a noite e toda a manhã de 27. Os aviões não podem voar por falta de gasolina, a Escola de Aviação é cercada por forças que deviam ter se revoltado. Também o 3º. R. I. é cercado e incendiado pelo governo. À uma hora da tarde a revolta estava perdida. Os oficiais revolucionários da Escola de Aviação lutam até o último momento, depois tomam pela estrada Rio—São Paulo onde está o edifício da Escola. Os do 3º. R. I. saem de dólmã aberto, um sorriso nos lábios em direção aos generais que os vão prender.
Há uma fotografia, amiga, que os mostra assim. Sorrindo, abraçados, marchando para diante das metralhadoras assestadas contra eles. O povo os aplaudiu quando eles passaram. Iam rindo, aquela insurreição derrotada era apenas o começo do movimento nacional-libertador. Também o movimento "tenentista" começara em 22 para vencer somente em 30. O povo confiava, sabia que Prestes velava sobre o seu destino. Vão rindo os oficiais, abraçados, a fisionomia aberta, o peito aberto também, haviam jogado suas vidas pela Pátria. Agildo vai na frente, o valente Agildo que mil vezes arriscara a vida.
Quero te falar, amiga, dos dois chefes militares, do chefe do 39 R. I.. o primeiro regimento do exército popular do Brasil, de Agildo Barata e do chefe da Escola de Aviação, de Agliberto Vieira de Azevedo. Hoje eles pagam na ilha de Fernando de Noronha, presídio perdido no meio do Atlântico, onde só as moléstias encontram um clima favorável, o seu gesto de revolta contra a venda da Pátria. Vinham eles de outros levantes. Oficiais de coragem e de conhecimentos comprovados, sabiam que somente Prestes era capaz de levar o Brasil aos seus grandes destinos. Ouviram seu chamado na noite do Rio, levantaram seus homens. Sobre eles, como corvos negros, os tiranos iriam banquetear-se na festa do seu ódio e do seu medo. Agliberto seria condenado a 27 anos. Agildo a 10. Mas esses nomes passaram a ser, desde esse dia 27 de novembro de 35, nomes imortais para o povo. Nunca mais foram ditos ao acaso. Desde então, junto com o nome de Prestes, eles são murmurados nas horas más, de desânimo, nas horas de terror e de miséria, nos dias desgraçados do império da reação, como símbolos de resistência, de coragem e de dignidade. Como bandeiras, amiga, Agildo e Agliberto. Desfraldadas sobre o Brasil na madrugada gloriosa de 27 de novembro de 1935. Quando, como um raio, Prestes cortou a noite, estrela da esperança, brilhando um momento sobre os homens, clareando o céu da Pátria, apontando o futuro.
Agora, amiga, é mais densa a noite. A reação se transforma era terror. Olga envolve Luiz Carlos no seu carinho, seus olhos de esposa seguem seus gestos mais mínimos, o perigo é enorme, a polícia o busca desesperadamente. Mas Luiz Carlos Prestes não pensa em fugir, em emigrar, em dar por perdida a revolução. O povo, em meio a todo o terror policial, murmura o seu nome e espera nele. Olga o vê partir para as conspirações, muitas vezes vai com ele, seu coração tremendo pelo marido e pela filha que já leva no ventre.
Enquanto as prisões enchem-se, Prestes reorganiza os quadros revolucionários, refaz as ligações, prepara novamente soldados, oficiais e povo para marcharem contra o governo de opressão e de vingança. Seus dias são cheios de trabalho. Os chefes aliancistas estão presos, os dirigentes revolucionários são levados pela polícia, os oficiais dos quais o governo duvida são afastados dos seus postos. Prestes desdobra-se para cobrir todos esses claros, para impedir que o movimento revolucionário se desmorone. Um vento de esperança ainda percorre o país. A Aliança Nacional Libertadora ainda existe e trabalha e conspira. Em meio à noite de terror um homem não treme, nem pára de trabalhar. Em suas mãos se enfeixa uma enorme responsabilidade: é o chefe, aquele em que o povo confia e espera. Os dias de desgraça se abatem sobre o país, mas a esperança não morre porque ele ainda está em liberdade e o povo crê nele e sabe que enquanto ele estiver livre o Brasil está se libertando, se preparando para romper as cadeias e partir para a felicidade.
Sobre Luiz Carlos Prestes se debruça a sombra de Olga a cercá-lo de carinho, de ânimo, a protegê-lo com seu sorriso, com a sua presença, com o seu amor. Em torno de Luiz Carlos Prestes, amiga, o povo esperando nele. Da sua liberdade vive a esperança do povo. Se ele está livre nada está perdido. Se ele está livre é que a madrugada de 27 de novembro foi apenas o primeiro clarão da aurora que chegará breve. Assim pensa o povo, amiga, nos dias de terror que se abatem sobre o Brasil.
E o prendem, amiga, e o encarceram e o torturam e o emparedam e o condenam. E ainda assim o povo tem esperança, ainda confia e ainda crê. Tem os olhos postos no grande prisioneiro, sabe que ele é o homem indicado para mudar a face do destino do Brasil. Enquanto ele estiver vivo, amiga, o Brasil está vivo, vive da sua dignidade na prisão, do seu heroísmo no sofrimento, clama pela sua boca com sua voz profunda nos tribunais, chicoteia com as suas palavras cortantes com a verdade os verdugos do povo, confia com a sua confiança no futuro da Pátria. Se ele está vivo é que vivo está o Brasil. É que os dias de 35 foram apenas a madrugada do dia da liberdade. Dia próximo, amiga, quando esse prisioneiro rebentar as cadeias, as suas e as do povo, dia em que Luiz Carlos Prestes trará novamente o sol para o Brasil e terminará com a noite da desgraça. O povo sabe, amiga, que o destino do Brasil não pode ser escrito pelos traidores. Na mão do povo, na mão de Prestes, está escrito o destino da Pátria. E também o destino dos tiranos, negra. Se ele está vivo é que a liberdade não morreu e não tardará a rasgar os densos véus da noite. Assim pensa o povo, amiga, o povo que não se engana nunca porque com o povo está o gênio dos poetas e a força dos Heróis. A liberdade, entre grades, na prisão de Luiz Carlos Prestes. Romperá as grades um dia.
5ª. PARTE
O Cavaleiro da Esperança
"Chamado ao mundo! Chamado aos povos!
Salvemos Luiz Carlos Prestes!"
ROMAIN ROLLAND
"Em Méjico hay una nina
Que Anita Prestes se llama.
"Ah los pueblos, mestros pueblos
Con su nina rescatada!
Ahora hay que guardaria bien
Contra el ódio y Ia desgracia.
Ahora hay que darle su padre
Y su madre, la alemana.
Ahora hay que salvarle a Prestes
La cabeza amenazada."
MIRTA AGUIRRE
"Não, eu não sou daqueles que a descrença
Para sempre curvou, e sobre a cinza
Debruçam-se a chorar."
FAGUNDES VARELA
Amiga, reclina a cabeça no meu ombro. Agora vou-te falar de coisas tristes, te direi de homens pequenos, tão pequenos que perderam a sua fisionomia de homens, os seus sentimentos de homens, são como vermes ferozes, odiosos e desprezíveis, nojentos e perigosos. Vou-te falar dos anos de prisão, de torturas, de indignidade humana, destes anos que se estenderam como uma capa de lama sobre o Brasil. Dos homens que se envolveram nessa lama, se vestiram com ela para a realização de tudo que degrada e envilece o ser humano. Amiga, vou-te falar de coisas tristes, te direi de homens que nos fazem descrer no destino da humanidade. Dos torturadores, dos sem coração, dos que nasceram homens do conúbio de vermes com feras. Com a máscara de ser humano, apenas.63
Disse mal, amiga, quando te disse que eles fazem descrer do destino da humanidade. Fariam, amiga, se ao lado deles, sofrendo as torturas que eles impõem, não se levantassem outros homens, os presos, os torturados, os emparedados, os assassinados, cheios de uma grandeza, de uma dignidade humana de uma força de caráter tamanhas, que mais que nunca acreditamos no homem e no seu destino sobre o mundo.
Vou-te falar, amiga, dos assassinos. Daqueles que matam friamente, devagarinho, no gozo do crime. Daqueles que torturam, daqueles que mandam torturar, e gozam com isso como se estivessem na cama com uma mulher amada. Te falarei também dos que não resistiram às torturas e traíram. São coisas tristes, amiga, degradantes e pequenas. Mesquinhas como todas as coisas dos tiranos e da escravidão. Encherei teu coração de tristeza na narração dessas misérias e dessas podridões.
Mas, negra minha, tão bela, te direi também dos homens que sofreram as torturas pelo bem do seu povo. Que por ele foram mortos, que por ele foram assassinados aos poucos, nos cárceres imundos. Te mostrarei homens pequenos como vermes, sedentos de sangue, monstruosos. Mas te mostrarei também homens na sua grandeza total, gigantes de coração e de caráter, imensos na sua dignidade, estrelas sobre essa noite, sobre a lama como um raio de luz que não se mancha nunca, que brilha sempre, é sempre límpido e formoso. Nunca os homens desceram tanto como nesses anos, amiga. Nunca os homens subiram tanto, amiga, foram tão grandes e tão belos, tão dignos e tão heróicos, como nesses anos.
Tuas lágrimas e teu ódio pelos assassinos serão pequenos diante do amor e da admiração que estes homens vão te merecer. Odiarás e desprezarás os outros, os torturadores. Mas que é esse ódio em vista do amor pelos que se levantam em meio a toda a imundície, limpos de coração, nem uma gota de sujeira sobre eles, luz no charco imundo com o mesmo brilho intenso?
Amiga, nunca os homens se mostram tão nus como nos dias da desgraça. Nesses dias eles se despem de todos os sentimentos superficiais e exteriores. Fica só o que é profundo e primordial no seu ser. De Luiz Carlos Prestes, de outros de quem te falarei igualmente, ficaram grandeza e dignidade, glória do homem. Amiga, que imenso orgulho de ser homem quando são homens Luiz Carlos Prestes e seus companheiros! Esses honram a sua espécie, honram a humanidade.
Reclina a cabeça no meu ombro, amiga. Vê, vai no alto do céu a lua amarela, no seu rastro sobre as águas veleja um barco negro. Ouve, negra, como os homens podem vencer os dias de desgraça, podem ser felizes e fazer os demais felizes com o seu exemplo nos dias de tirania, de morte e de torturas. Vê a luz brilhando sobre a lama, amiga.
De cima do morro viam-se as luzes da cidade. Era lindo o Rio de Janeiro, curvas de lâmpadas elétricas bordeando o mar verde onde o luar irrompia prateado. O rumor da vida da cidade, buzinas de autos, gritos de vendedores de jornais, a sirene de uma assistência, o ruído dos bondes superlotados, vozes longínquas de homens, a gargalhada distante de uma mulher, chegava todo esse rumor de vida até os ouvidos de Auguste e ela parou um instante a subida, para absorver esse sopro de vida que o vento trazia da cidade. Seu rosto irreconhecível, chagado de socos, os olhos negros, os cabelos desgrenhados, quase sorriu. Mas os homens a empurraram com brutalidade e ela recomeçou a caminhada, já não via a cidade ante seus olhos lá embaixo, já não ouvia o rumor de vida que subia do Largo da Carioca. Agora se encontrava de novo, após aquele breve minuto em que sentira o espetáculo da vida, jogada dentro da sua realidade. Os pés se arrastavam na subida. Era difícil, ela estava infinitamente cansada, cada passo acordava as dores que iam pelo seu corpo. Doía-lhe tudo, nunca ela havia imaginado que a dor pudesse ser tão grande, ser tamanha. Doía-lhe tudo, os pés pareciam-lhe enormes, tinha a impressão de que estava amarrada com cadeias. Fazia um esforço desesperado, um esforço como se fora levantar um peso imenso. O passo tardava, o corpo doía todo, agora ela não via mais nem as luzes da cidade, nem o luar sobre o mar, não ouvia nenhum ruído. Sua única sensação era uma dor por todo o corpo e aqueles pés pesadas, de chumbo, que não se moviam.
Tentou mais uma vez. Era uma subida, seu rosto se contraiu num ricto doloroso. Os farrapos que vestia se abanaram com o vento, ela sentiu que seu coração ia parar. No seu rosto de trapo, sereno rosto de mulher dias antes, quase passa um sorriso de alegria. A morte seria o fim, com ela viria o descanso como um sonho bom e interminável. Tentou mais uma vez, os pés não se moviam, só a dor se movia pelo seu corpo presente e todo-poderosa. O chefe dos policiais se aproximou. Então os homens se acercaram mais, eram os homens da Polícia Especial. Um a empurrou pelos ombros:
— Anda!
Ela sabia mal a língua do país mas dava para compreender. Fez outro esforço, maior, imensamente maior. A dor se prolongou, fina e violenta. O corpo se jogou para a frente mas os pés não se moveram e ela caiu, o rosto contra a terra, a boca semi-aberta se enchendo de barro e mato seco. O chefe disse com sua voz gritante:
— Isso é comédia. Faz ela levantar.
Os homens da polícia caíram em cima de Auguste aos socos. Pegavam na cabeça, nos ombros, nos rins, era bom bater nos rins, pensava um deles, o mais forte. Outro dava-lhe pontapés nas nádegas. O chefe se aproximou mais, agora estava diante dela, soltou o pé na sua cabeça:
— Levanta, puta!
Sim, ela sentia. Mas não chegava perfeitamente a ter consciência dos homens que a espancavam. Sentia apenas a dor indo de um ponto a outro; aqui deviam ser os rins; por que doía-lhe tanto o pescoço, que peso tão grande se abatia sobre ela? Eram dez homens, amiga, pisavam-na, gritavam nomes, será mesmo que lá embaixo está uma cidade que vive, homens que andam, mulheres que riem e choram? Aqui parece um outro mundo, uma mulher estendida no chão, dez homens fardados que se abatem sobre ela numa chuva de pancadas. Dão com as mãos, dão com canos de borracha. E o chefe frio, elegante, risonho, que esmaga o rosto desta mulher com os pés calçados de grossas botinas. E os nomes, os palavrões, dominando todo o rumor de vida que vem da cidade.
— Levanta!
Ela tem uma leve consciência do que se passa.
Com um esforço enorme traz a memória sobre a dor e sente que a espancam. Compreende também que querem que ela se levante e continue a caminhada. Sua cabeça é suspendida com um pontapé. Ela vai se incorporando aos poucos, vai se levantando entre as pancadas, o corpo atendendo ao apelo desesperado da vontade. É uma frágil mulher, amiga. Talvez nem seja mais, exteriormente, uma mulher. Nem parece um ser humano, seu rosto inchado de pancadas, seu corpo quebrado de sofrimento, seus olhos fundos, suas faces cavadas de fome. Antes era uma mulher forte. Auguste Elise Fwert, a esposa de Ewert, do alemão a que chamavam de Harry Berger. Talvez ninguém reconheça nesse trapo humano, que se levanta aos poucos entre os canos de borracha que caíam sobre ela, uma mulher, flor da espécie humana. É um corpo exangue, coberto de farrapos. Mas no peito um coração grande como um mundo. Dele vem essa força maior que a dor que a levanta e a faz marchar. É infinita essa subida. Nunca terminará, pensa ela, levará anos e anos. O chefe dos policiais comenta para os homens suados:
— Não disse que era uma comédia?...
E dá-lhe um pontapé e ela novamente cai e agora sobe se arrastando, de quatro, se agarrando nos capins em torno. Os homens se divertem chutando suas nádegas magras, fazendo comparações sujas. E riem, e gargalham, e estão felizes e alegres. E não beberam, estão lúcidos, e se dizem homens, amiga.
Assim vão. É uma lúgubre procissão na noite de lua. Os rins. . . Por que doem tanto os rins?... Havia uma aldeia na Alemanha, era linda, linda, linda, a gente ria nas ruas, conversava nas esquinas, bebia cerveja. Será que houve mesmo isso em algum tempo, por mais remoto que fosse? Ela se lembra da China, morava lá, o povo gentil se libertando. Aquelas conversas longas, de sutis delicadezas. Não, não houve nada disso, nada, nada, só há a dor sobre o mundo e homens fortes que riem e gargalham e torturam. E ela sobe, os joelhos sangram ao contato com as pedras da ladeira. Vem de lá debaixo, de um cubículo imundo no quartel da Polícia Especial. Era meia-noite, não foi preciso que a despertassem. Ela já despertara sozinha, sabia que aquela era a hora de apanhar, de apanhar até de manhã, todas as noites invariavelmente. Durava mais de um mês e duraria mais de um ano. Pouco antes da meia-noite ela acordava e vivia os minutos de espera, os minutos de angústia, os minutos mais desgraçados ainda que as horas seguintes quando os homens a despiriam e deixariam cair sobre seu corpo frágil de mulher os canos de borracha, as mãos com soqueiras, os pés calçados de sapatos pesados. Depois, quando já fosse alta a manhã e ela, inconsciente, já não sentisse a dor das pancadas, três ou quatro vezes despertada dos desmaios com injeções, três ou quatro vezes recomeçado o alegre afã dos homens que batiam, a traziam de rastros para o cubículo onde somente a dor, a fome e a sede habitavam com ela. Também hoje ela despertara antes. Havia passado aqueles momentos terríveis de espera. Finalmente eles chegaram, e mandaram que ela saísse. Mas desta vez não a despiram logo e não começaram de imediato a bater-lhe. Se dirigiram para o morro atrás do quartel, iniciavam a subida da ladeira. Auguste procura inutilmente imaginar o que a espera.
Foi aquela subida espantosa pela ladeira íngreme. Ela vai de quatro, os policiais riem, pilheriam, um mais crapuloso enfia a mão entre as nádegas magras da mulher num gesto obsceno. Ela sobe, sangram suas mãos, sangram seus joelhos, sangra seu rosto.
E enfim chegaram. Ela logo viu os homens, um grupo enorme, policiais fardados, alguns seguravam enxadas. Mas não viu logo o marido, Berger, cercado pelos policiais. Ela sabia que ele estava magro, marcado de pancadas, havia apanhado mais que ela, algumas vezes haviam apanhado juntos. Mas nem chegou a reconhecê-lo de imediato. Harry Berger estava uma posta de sangue. Antes era um homem gordo. Agora estava magro, os farrapos voavam em torno dele, e estava curvado, que seu cubículo era o vão de uma escada de ferro na Polícia Especial,64 onde ele não podia nem pôr-se de pé nem deitar-se. Estava roto de pancadas, era impossível descrevê-lo, porque não se pode descrever, amiga, o estado de um homem quando nem a sua esposa o reconheceu.
Mas a trouxeram para perto dele e ela, sob aquela camada de dor, aquela massa informe, descobriu por fim algo do rosto do marido. Agora não estavam apenas os homens da Polícia Especial. Estavam os delegados da Polícia Civil, até o chefe viera para esse interrogatório que devia ser decisivo. Se adiantou, falou com sua voz suave:
— Agora já se sabe de tudo. É melhor vocês contarem também o que sabem. Não adianta esconder. Digam onde está Prestes. Quem são os outros revolucionários? Digam o que sabem porque, realmente, nós já sabemos tudo.
Marido e mulher se olham, Harry faz um esforço e sorri. Ela compreende que aquela espantosa careta é um sorriso de ânimo e sorri também. Fala em alemão:
— Têm-te torturado muito? — há na sua voz uma ternura imensa, um amor profundo e denso.
Ele vai responder mas os policiais não dão tempo. O chefe descobre segredos imensos nessa frase, conspirações perigosíssimas. Os homens não esperam nem o seu gesto, já caíram sobre Harry vibrando os canos de borracha, o arrastam para longe da mulher. O chefe fala, agora sua voz não é suave:
— Então, não querem contar nada?
Faz um gesto para os homens, eles despem Harry e Auguste, os dois surgem nus em frente a todos. Os policiais riem, fazem pilhérias. A lua ilumina a cena. Entre socos dão uma enxada a Auguste. E mandam que ela cave a sepultura do marido. Auguste fica parada, a enxada numa mão, um vento frio sobre o corpo nu. Berger diz de longe, em alemão:
— Não te importes, minha amiga, vamos morrer mas o povo não morre. Ele se libertará.
Então ela tem forças. Suas mãos se apertam contra a enxada e cava, enquanto dão no seu marido. São horas de trabalho. O corpo dói, quer ceder, mas a vontade é mais poderosa. Está pronto. O chefe manda formar o pelotão de fuzilamento. Harry Berger, nu, é colocado diante da cova que sua esposa cavou. Querem vendar-lhe os olhos, ele não aceita. Os soldados formam, um tenente da polícia comanda as ordens. Quando só falta dar a ordem de "fogo" o chefe diz:
— Ainda há tempo de falar.
Berger sorri para sua mulher, dá-lhe adeus.
Mas a ordem de fogo não vem. O chefe ruge de raiva, os seus dentes batem de ódio. Aqueles dois prisioneiros torturados, nus e fracos são mais fortes que ele e que os seus homens escolhidos a dedo pela sua força e tamanho. Que força desconhecida é essa que vem do coração desse homem e dessa mulher, mais forte que a dor, que a ameaça de morte, que todas as torturas? O chefe tem ódio no seu coração. Se sente pequeno e por isso tem mais ódio. Mas sorri porque ele possuía ainda uma arma. Manda que tragam Berger de junto da cova. Levam-no para perto de Auguste. E o chefe entrega a mulher aos homens como bestas. Que a usem na vista do marido. Auguste sorri para Harry, os segredos que eles conhecem a polícia não os terá jamais. Ela cerra os olhos, os homens abrem os de Harry para que ele veja. Os policiais se abatem sobre ela. Agora a lua se escondeu atrás de uma nuvem, amiga, para não ver o horror da cena. O chefe sorri mas logo treme de ódio porque nem assim esses dois dizem uma palavra. E novamente são as pancadas, socos, canos de borracha, culatra de fuzil. Os corpos rolam no sangue, os gemidos são abafados com as gargalhadas.
E depois tomam de Auguste e lhe cortam os seios. E torturam Harry no sexo. Isso, amiga, quando já a madrugada se levantava sobre a cidade do Rio de Janeiro. Era no morro de Santo Antônio, nos terrenos da Polícia Especial. Deformaram o sexo de Berger, cortaram os seios de Auguste. Nem uma palavra saiu da boca deles, nem um nome, nem uma indicação. Sim, amiga, a lua voltou, sua pura luz sobre o espetáculo imundo. Porque ela queria encher seus olhos do espetáculo da grandeza desse homem e dessa mulher. A lua voltou, agora que os policiais cortam os seios dela devagarinho, com as suas navalhas, agora que cortaram o sexo dele lentamente, o chefe sorrindo, os homens sorrindo. Mas, nos corações miseráveis o ódio ante aquela grandeza humana. Aquele homem e aquela mulher são mais fortes que eles.
— Alemães desgraçados — diz um polícia.
E enterra a navalha, pula o bico do seio da mulher como uma flor despetalada. Jorra o sangue no morro de Santo Antônio. A madrugada surge por entre a dor.
"Posso afirmar que até agora todos os presos são tratados com benignidade... "
GETÚLIO VARGAS
(Discurso em 12 de maio de 1936)
A Harry Berger, ex-deputado alemão, puseram louco. Nunca um ser humano foi de tal maneira torturado. A polícia requintou-se nos seus jardins de suplícios. Suplícios físicos, suplícios morais. Te contarei de uma noite, foram inúmeras noites se sucedendo diariamente. Trancado no socavão de uma escada, na Polícia Especial, onde não podia respirar, onde não podia se pôr de pé, tampouco se deitar, apanhando diariamente, tendo as unhas arrancadas a alicate, o sexo torturado com torqueses, vendo a sua esposa ser torturada na sua vista, ser violentada pelos policiais, ter os peitos cortados, ele perdeu a razão. Homem feito de aço e de honra. Ficou na polícia, amiga, a fama desse alemão. Até os tiras que o torturaram falam dele com respeito, como de alguém cujas convicções estão acima de toda a dor possível. Queriam que ele delatasse. Tudo lhe fizeram, tudo o que possas imaginar e o que não poderás imaginar jamais. Nunca sua boca, nem a doce boca de sua esposa transformada em pasto para os instintos bestiais dos policiais, nunca essas bocas se abriram para dizer uma só palavra.65 Auguste Elise foi morrer na Alemanha das torturas sofridas no Brasil. Berger, homem forte e resistente, perdeu trinta quilos em poucos meses, perdeu a razão. Hoje é usado como instrumento de tortura contra Prestes, próximas as duas celas. Berger fala dia e noite, rompe a cabeça contra a parede. E essa é a única presença humana que Prestes sente próximo a si. Imagina, amiga, a profundeza desse sofrimento.
Tudo que o homem transformado em fera pode inventar para criar sofrimento foi aplicado em Harry Berger e sua esposa. Velas acesas sobre as nádegas, alfinetes entre as unhas e os dedos, cigarros apagados nas suas costas, vandalismos sexuais, delírio de maldade.
Bando de torturadores recrutados entre os criminosos mais eficientes. Dos chefes ao último tira. Dos que formaram o Tribunal de Segurança aos investigadores sem importância. Nomes que dá nojo dizer. Desonra da espécie humana, indignidade vivendo, bestas vestidas de homens, excrescência de podridões, hálito fétido de latrinas.
Lama, sujeira, lixo, miséria, chagas podres, carne leprosa, pus de feridas, vômito e escarro, podridão humana, excremento de prostíbulos! Mais vale, amiga, encher a boca de sujeira que pronunciar o nome desses vermes com coração de feras, soltos sobre o Brasil, sua repugnante presença envilecendo a Pátria. Os assassinos! Frios assassinos, covardes assassinos, bestiais e degenerados! Qualquer palavra suja, qualquer imundo substantivo, é doce palavra de poema lírico ao lado desses nomes podres! Leprosos por dentro, a lepra no coração infame.
Havia um estudante ianque, amiga, a polícia desconfiou que ele podia saber onde estava Prestes. Ele não o podia dizer, tudo indica que ele nem sequer o sabia. A polícia esgotou contra ele o seu "jardim de suplício". Mil "sessões espíritas"66 foram feitas para arrancar-lhe o nome da rua e o número da casa de Prestes. Victor Allan Baron, o estudante ianque, suportou heroicamente todas as torturas. A polícia brasileira se sentia algo diminuída ante os investigadores do Intelligence Service e da Gestapo que se encontravam no Rio, colaborando com a polícia política. E então recorreu a um médico de nome,67 pedindo-lhe a sua ajuda técnica. O médico tentou resistir, mas a pressão policial e as promessas que lhe fizeram terminaram por vencer sua consciência. E, daí por diante, ele orientou as torturas aplicadas em Victor Allan Baron. Aplicaram-lhe o "soro da verdade" várias vezes. Estraçalharam seus nervos, com reativos poderosos, ora excitantes, ora deprimentes. Baron não falava. Dia e noite o interrogavam, em meio às injeções que o médico lhe aplicava. Baron já não via nada, já não ouvia, tinha sono, cansaço e dor. E o interrogatório não parava. Dias e dias. Noites e noites, as injeções se sucedendo. Nada lhe davam para comer, nada para beber, nem um minuto para dormir, nem um instante de sossego. Nem assim ele falou. O médico já não podia suportar a visão daquele suplício. Pediu que o deixassem ir. Mas a polícia precisava dele e ele teve que continuar ajudando a torturar um ser humano. Quando Baron já se encontrava quase totalmente inconsciente, deram-lhe bebidas fortes para ver se assim, embriagado, ele falava. Injeções de insulina eram aplicadas uma sobre a outra. Baron não falou. Então a polícia desesperada voltou às pancadas, abandonando os métodos do médico. Deram-lhe até matá-lo. Depois jogaram seu corpo do terceiro andar da Polícia Central, para dizer ao público que ele se havia suicidado, como se fosse possível um homem cercado de investigadores, trancado num cubículo, suicidar-se. Quem se suicidou, amiga, sob o peso da sua consciência, bradando, foi o médico que se prestara a ajudar e orientar a polícia nas torturas científicas aplicadas em Victor Allan Baron. Deu um tiro na cabeça para assim poder deixar de ver, dia e noite, na sua frente, aquele corpo exangue de jovem que apanhava, tinha fome, tinha sede, e no qual ele injetava entorpecentes e excitantes. Os outros torturadores não se mataram. Já estavam acostumados à tarefa.
A Silo Meireles emparedaram em Recife. Os policiais de Recife não ficaram nada a dever aos do Rio e aos de São Paulo. Silo Meireles, o cadete glorioso de 22, o conspirador de todos os levantes até 30, o chefe da insurreição de 35 no Recife, foi colocado numa pequena cela de dupla porta de ferro, sem grades. Apenas um pequeno buraco gradeado no fundo da cela deixava entrar uma quantidade insignificante de ar. Assim ele passou um ano sem ver ninguém, gritando pelo cano da latrina para os companheiros nas outras celas. Davam-lhe comida uma vez por dia, uma vez por semana limpavam-lhe a cela e a latrina, quando o faziam.
O que havia de melhor no Brasil estava preso. Como as prisões não chegassem, o maior navio da frota do Lóide Brasileiro, o Pedro 1, foi transformado em prisão no meio da Baía da Guanabara. Fábricas abandonadas em São Paulo viraram presídios políticos de fama trágica, como o Maria Zélia. Cárceres de torturas indescritíveis, onde a fome era a melhor companheira, onde as surras substituíam as refeições num novo processo de alimentação. O Pedro I, a Casa de Correção, a Detenção, os quartéis da Polícia Militar e da Polícia Especial, as salas de detidos da Polícia Civil. Homens com as costas negras de pancadas, com queimaduras de acetileno nas nádegas, com as unhas arrancadas. Homens que haviam saído de mesas de operação em hospitais para o presídio e aí, apesar de enfermos, foram logo torturados. Homens doentes, magros, tuberculosos ou se tuberculizando. E aí estava, amiga, o que havia de melhor no Brasil nas letras, nas ciências, no exército, na marinha. Ao lado de milhares de operários, camponeses, soldados e marinheiros. Os mais brilhantes professores universitários, arrancados, por um decreto, das cátedras que haviam conquistado por concursos, escritores de larga popularidade, oficiais do exército e da marinha, médicos, engenheiros, padres, estudantes, funcionários públicos e bancários. Dormindo pelo chão, sem um lençol que os cobrisse, morando duzentos numa sala onde cabiam cinqüenta. Amontoados uns sobre os outros, sem direito a nada, senão a apanhar e a serem torturados.
As prisões nessa longa noite de desgraça sobre o Brasil não foram apenas um meio de vingança política e pessoal, de quanto policial e quanto fascismo existiam no país infelicitado. Foram também um meio de vida e de fazer fortuna. Inúmeros judeus ricos foram presos exclusivamente para que suas famílias pudessem ser procuradas por investigadores, a mando dos chefes, investigadores que ofereciam a liberdade do preso em troca de muitos contos de réis. Assim entrou muito dinheiro para os cofres dos "defensores da civilização". Policiais mobilaram as suas casas com móveis e objetos trazidos das casas de presos políticos. Os espancamentos são sem conta, as torturas são inúmeras, os roubos não são menores, amiga.
Amiga, não vou contar-te a vida nas prisões. A lua partiria de novo e ainda eu não te teria narrado uma pequena parcela dos casos ocorridos, da miséria de uns e do heroísmo de outros. É uma história longa e dolorosa, miserável e heróica, que um dia alguém há escrever. Por que não será um dos muitos escritores que foram colocados, propositadamente, em salas ao lado daquelas em que os operários, soldados e marinheiros eram torturados? Durante a noite acordavam os escritores presos para que eles pudessem ouvir os gritos, os uivos de dor, as maldições dos seus companheiros espancados.68 Muitas vezes eles viam os homens serem levados do seu lado, andando pelos seus pés, um olhar triste mas firme. E os viam voltar depois, quando silenciavam os gemidos, arrastados pelos polícias, negros de pancadas, com braços partidos, rosto rasgado, o sangue grudando a roupa no corpo. Muitos viram esses espetáculos, poetas e romancistas, jornalistas e sábios. Outros viram ainda pior. A Graciliano Ramos, o maior romancista do Brasil, trouxeram de Alagoas, devido a uma simples denúncia de um integralista. Em Recife, Newton Cavalcanti fez questão de insultá-lo. Daí veio no porão de um navio entre criminosos comuns, assassinos, ladrões e pederastas. No Rio mandaram-no para a Colônia de Dois Rios, onde os presos políticos eram sujeitos a trabalhos forçados sob o chicote de policiais bêbedos. Graciliano Ramos não teve mais saúde. Crime da polícia brasileira contra um dos maiores escritores americanos.
Um dia alguém escreverá a odisséia trágica desses anos de tortura, dessa noite de terror, desse cotidiano de espancamentos. Falará dos que ficaram deformados e doentes, uma lista imensa de nomes. Falará do heroísmo de Rodolfo Ghioldi, da coragem de Carmem Ghioldi, daqueles extraordinários seres que foram Berger e Auguste Elise. Das mulheres presas e torturadas, dos deputados arrancados da Câmara, do senador insultado e agredido na prisão.69 Falará do Vovô, o estivador maranhense de 94 anos, e dos meninos da Escola Militar, que apanhavam sorrindo. Falará de Dionélio Machado, o grande escritor, de Agildo, de Agliberto, dos que fizeram as grandes greves de fome, dos que não se dobraram nunca.
Falará da Colônia de Dois Rios. Doença e dor. Falará de Fernando de Noronha, o presídio no meio do mar. Falará do quartel da Polícia Especial com sua câmara de torturas. Falará das salas de detidos da Polícia Central. Dos que perderam a vida, dos que perderam a saúde, dos que foram deformados, dos que ficaram aleijados e tuberculosos.
Contará daquelas noites quando os gemidos dos torturados partiam da polícia para o mar, gemidos que cobriam as vozes da cidade. Falará dessa imensa noite de terror. Quando a liberdade, a cultura, a beleza e a dignidade humana foram insultadas pelo governo do Brasil. Quando sobre os homens esse governo soltou mesquinhos vermes e ferozes animais. E então todo o povo saberá. Ninguém se engane sobre isso, amiga. Um dia o mundo ainda se espantará quando a história desses crimes for contada.
Noite de terror, amiga. Imensa noite irrespirável. Ninguém abria a boca para falar, a polícia tinha todos os direitos, o povo não tinha direito nenhum. No silêncio amedrontado das casas, comentava-se em voz baixa os crimes do governo. Sobre o país passava um hálito de desgraça. No ar andavam os ais dos supliciados, milhares de homens morrendo nas prisões infectas.
Não foram, porém, apenas anos e anos de crime e de bestialidade. Foram também de infelicidade e de estupidez. Esses anos que se estendem pelos tempos afora, uma cultura esmagada, uma literatura proibida, uma arte limitada nos seus assuntos. A polícia buscava desesperadamente Luiz Carlos Prestes. Mas buscava também, da mesma maneira desesperada, a dois escritores nacionais, um poeta e um romancista. E a um terrível agitador estrangeiro ao qual queria fazer o mesmo que vinham fazendo a Berger, a Ghioldi e a Baron. O poeta era Castro Alves, que por volta de 1868 dissera que a "liberdade não morre" e que os "frutos do mundo são comuns a todos". Era impossível encontrá-lo porque ele morrera em 1871, aos vinte e quatro anos de idade. Mas a polícia não sabia disso e os tiras levavam o seu nome encabeçando a lista dos que deviam procurar e prender. O romancista era Raul Pompéia, o ardoroso florianista dos começos da República, o que se suicidara no início do século quando assistiu às forças da reação, às forças dos senhores de escravos, tomarem novamente o poder. Mas, apesar disso e dado o conhecimento que os atuais donos do poder tinham do país e dos seus homens gloriosos, o nome de Raul Pompéia estava na lista de "perigosos". E quanto ao estrangeiro que devia sofrer a mesma sorte que Berger, era apenas Victor Hugo, autor, segundo a polícia, de um livro extremista, chamado Os Miseráveis, onde Filinto, Rao e outros eram atacados violentamente. Desse a polícia tinha ódio pessoal... Ali! se o encontrasse. . .
Foi durante essa noite de terror, amiga, noite de estupidez também, que um dos mais ardorosos e inteligentes deputados70 do Governo pediu, da tribuna da Câmara, a imediata prisão de um capitão de engenharia, devido a uma página que este senhor escrevera. Tratava-se do capitão Euclides da Cunha, também conhecido como escritor, já que havia escrito Os Sertões, o maior livro do Brasil, clássico e glorioso. Não era só a polícia que desconhecia em que época haviam vivido os grandes escritores nacionais e estrangeiros. Tampouco os intelectuais da reação sabiam que Euclides da Cunha fora assassinado muitos anos antes.
Noite de terror e de estupidez. Noite de tirania sobre o Brasil. Um clima latrinário e bestial. Mas vive a esperança. A liberdade não morre, foi o poeta quem disse, e por isso a polícia o procurava. Ela está presa, emparedada nas prisões brasileiras. Está presa com Luiz Carlos Prestes, na sua cela sem ar e sem luz. Mas nessa cela todo o Brasil tem os olhos fitos. Nela está o Cavaleiro da Esperança, dela sairá a liberdade mais bela ainda, amiga.
Na casa suburbana, Olga caminha para o marido, senta-se ao seu lado. O silêncio da rua pacata entra pela janela semi-aberta. A noite de lua é romântica, o som de uma serenata vem de muito longe. Olga tem um sorriso triste, um pressentimento no coração. Luiz Carlos Prestes trabalha curvado sobre papéis, escrevendo. Ela o olha de perto, agora, vê o brilho intenso dos seus olhos. Sabe o que ele está pensando, que nada está perdido, que apesar das prisões, das torturas, da reação desencadeada, o povo anseia por liberdade, o povo quer lutar pelas suas reivindicações. Muitos companheiros caíram, vários foram assassinados pela polícia, outros estão sendo brutalmente martirizados. Mas os quadros se renovam no mesmo momento, o povo produz novos líderes e novos condutores. Luiz Carlos Prestes, o chefe, o general, o condutor e a esperança de seu povo, trabalha infatigavelmente, sua mesa atestada de papéis.
Alguém bate na porta, as pancadas combinadas. Olga levanta-se e vai abrir. O companheiro entra, entrega os papéis que traz e parte em seguida. Pela porta aberta a voz que canta entrou de súbito na casa, rolou um pedaço de serenata na sala pobre.
"Implorar só a Deus...
Mesmo assim às vezes não sou atendido..."
Olga fica ouvindo: é um samba que o povo canta na rua. Toda a dor, todo o sofrimento humano vêm nele, nessa música cheia de infinita tristeza, de infinito desespero. O coração de Olga se confrange no pressentimento mau. Hoje ela queria estar alegre. Tinha por que estar alegre e, no entanto, seu coração se aperta, espera algo mau. Sobre os papéis que o visitante trouxe, se debruça Prestes. Responde a cartas, manda ordens, procura ligações novas, estabelece novamente contatos, está pondo em marcha todo o aparelho de luta do povo. Esperam nele, ele nunca decepcionou o seu povo.
Quando termina de trabalhar, toma da mão de Olga, que está sentada ao seu lado. Seus olhos ardentes se enchem de ternura, sua voz se enche de carinho:
— Não estás cansada? Vai dormir, eu ainda tenho o que fazer... Vai descansar. . .
Mas ela tem algo que lhe dizer. . . Gostaria de estar inteiramente alegre, de que esse pressentimento mau não apertasse como uma mão pesada o seu coração de esposa.
— Tenho uma notícia que te dar... Ele sorri:
— Diz. . .
Ela recosta a cabeça no seu ombro:
— Vamos ter um filho, sabe?
Alegria nos olhos dele, as mãos que se apertam, as bocas num beijo doce de felicidade. Um filho... Gerado nesses momentos de inquietação e de luta, quando ela o amparava com o seu carinho. Durante um momento ficam os dois em silêncio, um silêncio bom, no gozo tranqüilo daquela certeza de que uma criança ia nascer, filha do amor de Luiz Carlos e Olga.
Pela fresta da janela semi-aberta, novamente a voz que canta o samba triste penetra como uma mensagem. Olga sente de súbito que alguma desgraça vai suceder. Se aperta contra o marido, lhe diz de seu medo. Ele sorri:
— Não tenhas medo. . . Agora nada de mau nos pode suceder... Vamos ter um filho. . .
— Uma filha — responde Olga.
E novamente a felicidade enche a casa. Será um menino ou uma menina? A discussão entre risos. Ele a deixa para voltar ao trabalho, seu povo espera nele, Prestes não tem tempo sequer para um momento de alegria familiar. Ele vai andando, ela corre, se abraça nele, agora o samba parou subitamente e ela sente um frio de medo percorrer-lhe o corpo.
Na porta batem pancadas violentas. Os homens entram, são cinqüenta, são cem, trazem metralhadoras, com uma apontam para o peito de Prestes. Olga cobre o marido com o seu corpo, oferece seu coração à pontaria da metralhadora.
Em Copacabana eles chegaram numa casa vazia. Prestes já se havia mudado. Os investigadores estrangeiros, os da Gestapo e 03 do Intelligence Service, que haviam localizado a casa de Prestes, se lançaram novamente ao trabalho. A polícia do Rio se declarava impotente para descobri-lo. Nada adiantara matar Baron, nada adiantara torturar Berger, cortar os seios de Auguste Elise. Nada adiantara matar marinheiros, matar operários, matar soldados. Mas um dos investigadores estrangeiros chegou com a boa notícia. Conseguira localizar a rua. Restava descobrir a casa. Houve na Polícia Central e na Polícia Especial uma preparação idêntica àquela que haveria se fossem partir para uma guerra. Os homens, e são centenas deles, vão armados de metralhadoras. Vai toda a Polícia Especial, vão todos os da Delegacia de Ordem Política e Social. Cercam a rua por completo, ante o assombro do subúrbio do Méier. Prendem todos aqueles que passam pela rua ou tentam atravessar a linha de policiais. Parece uma guerra, homens invadindo uma cidade inimiga. Ninguém diria que iam prender apenas um homem. Antes, o que vai chefiando71 ouvira do chefe as ordens terminantes: "Matá-lo à menor tentativa de resistência." Tinha certeza que Prestes resistiria e assim se livrariam dele. Mas, se por acaso ele não resistisse, então que o matassem no caminho, diriam depois que ele "tentara fugir". O chefe tinha um especial interesse em matá-lo. Certa vez, em anos distantes, Luiz Carlos Prestes o expulsara da Coluna como covarde e traidor.
Os investigadores vão de casa em casa, assustando as famílias, varejando os lares, até que entram na casa onde Luiz Carlos e Olga falam do filho por nascer. O tira aponta a metralhadora contra o peito de Prestes, mas encontra o peito de Olga na defesa da vida do marido. Cercado, Prestes é preso. Olga vai com ele, não abandona seu braço um só minuto. Mais atrás vai a velha empregada, Júlia dos Santos, presa também. O primeiro lance dos policiais fracassou.
Não puderam matá-lo, já que não houvera resistência à prisão. É necessário matá-lo, agora, na viagem para a polícia. E tentam separar marido e mulher, levá-los em carros diferentes. Aí estão os automóveis. Num irá Prestes, nesse devem matá-lo. Mas como fazê-lo se Olga não se desprende dele, não o solta, ela sabe perfeitamente o que os policiais desejam? Primeiro pedem. Ela nem responde. Logo depois tentam separá-los brutalmente, à força. E nem assim conseguem, amiga, maior que tudo é a força do amor. Não houve força capaz de arrancá-la do lado do seu marido. Os investigadores se desesperam. Assim não poderão cumprir as ordens terminantes do chefe. Assim não poderão assassinar Luiz Carlos Prestes sem testemunhas. Tentam todos os esforços para separar Olga do marido. Inútil. O amor dá-lhe uma força de gigante. A certeza de que dentro do seu ventre leva um filho faz dela, daquela frágil mulher, o lutador mais poderoso do mundo. Agarrada a Luiz Carlos, nada os pode separar. Foi assim, amiga, que naquela noite de março de 1936. Olga Benário Prestes salvou, para o povo do Brasil, a vida de Luiz Carlos Prestes. Na noite da sua prisão, na mesma noite em que ela lhe disse que ia ter um filho. Quando as últimas estrelas se apagaram no céu do Brasil e a liberdade, e a democracia, e a cultura, a beleza e o amor foram encarcerados, correntes nos pés, grilhetas nas mãos. Olga impediu que matassem nesse dia a esperança de liberdade, de democracia, de cultura, de beleza e de amor sobre o Brasil. Seu corpo frágil de mulher protegendo â própria existência da Pátria, amiga.
Somente na Polícia Central, quando já não havia como matá-lo sem que o país o soubesse, puderam arrancar Olga do lado de Prestes e levá-la para uma cela.
Nessa noite, amiga, as metralhadoras estavam assestadas em direção aos presos políticos nas salas de detidos. Todos os tiras haviam sido chamados apressadamente para guardar o corredor da delegacia. Sem dúvida, amiga, esse governo odiava muito Prestes. Mas o temia mais ainda, a sua presença bastava para que acreditassem pequeno todo o aparato policial, nunca antes visto no país, que haviam empregado contra os demais presos. Tinham-lhe um medo de morte. Medo que aumentou ao vê-lo chegar vivo. Esperavam ansiosos a notícia que ele fora "morto quando tentava fugir" ou "quando resistia à prisão". Já o chefe havia mandado preparar as notas para a imprensa. Agora, que o viam chegar, tremiam de medo, ante esse prisioneiro indefeso. Prestes passava entre os policiais acovardados com um gesto de absoluto desprezo. Às pressas arrumaram uma sala para o interrogatório. Os policiais espiavam o homem delgado e tranqüilo que passava cercado pelos policiais gigantescos da Polícia Especial. Se recordavam que, presas aos lábios daquele homem, do que ele dissesse, presas à esperança de sua ação viviam as populações do país. Sabiam que no interior, nos sertões, o seu retrato estava entre velas, como o de um santo,72 que os camponeses conservavam como relíquias objetos em que ele havia tocado. Tinham a intuição que estavam prendendo todo um povo ao prendê-lo. De longe o oravam com medo. Ele ia tranqüilo, seu gesto sereno. E assim, diante do delegado e do Procurador Criminal, que haviam chegado às pressas, ele assumiu inteira responsabilidade não só pelo manifesto de 5 de julho, da Aliança Nacional Libertadora, como a "inteira responsabilidade política" do movimento revolucionário de novembro, tanto no Rio como no nordeste. Fez, ante os policiais acovardados, a sua patriótica profissão de fé. Disse dos seus ideais e das necessidades do povo brasileiro.
Novamente o aparato policial se movimenta para levá-lo a um sórdido cubículo da Polícia Especial, Ia começar o seu longo martírio. Ia começar também a mais impressionante fase da sua vida, aquela que o coloca ao lado das maiores figuras da humanidade. Com a sua prisão, o governo consegue que seja decretado o "estado de guerra". Os últimos vestígios de legalidade desaparecem do país. O Brasil mergulha na noite. Agora, amiga, restava somente a esperança brilhando com aquelas velas que iluminam nas horas de desespero o retrato do Herói nas casas pobres do nordeste.
Desde então começou o período de incomunicabilidade.73 No cubículo imundo em que o deixaram, ele iria passar mais de um ano sem falar a pessoa alguma. Nenhum outro, amiga, que não fosse Luiz Carlos Prestes, teria resistido à terrível prova que são esses anos de prisão, de Í936 até hoje.
Primeiro foi a Polícia Especial. No vão de uma escada estava Berger, tratado como um cão raivoso. Puseram Prestes numa célula, ante ele um homem que não lhe dirigia a palavra, que estava ali apenas para ouvir o que ele dissesse, para guardar e anotar uma a uma as suas palavras e levá-las ao chefe de polícia, Filinto Müller.
Impossibilitado de falar fosse com quem fosse, sem ver ninguém mais que o espião postado no outro lado, sem saber da sua esposa grávida e presa, sem poder ler nem jornal nem livro, sem ter com que escrever, sem poder sequer receber as cartas que sua mãe lhe escrevia. Num pequeno calabouço sem ar nem luz. Só uma coisa quebrava a sua solidão. Era, à noite, quando os policiais chegavam e abriam a porta do seu cubículo, permitindo que ele viesse até o corredor que as metralhadoras limitavam. E mal ele saía começavam a espancar na sua vista outros presos políticos, seus amigos e companheiros. Traziam marinheiros que haviam sido expulsos da Armada como revolucionários e, ante a cela de Prestes, queimavam as suas nádegas com acetileno. Sabiam que Prestes se atiraria sobre os policiais. E assim tinham o gosto de sujeitá-lo, de jogá-lo dentro do cárcere, onde ele não tinha como não escutar as palavras soluçadas, os uivos de dor dos martirizados. Aos seus protestos os policiais respondiam com palavrões e gargalhadas. Berger enlouquecia no vão de uma escada. Quiseram enlouquecer também Luiz Carlos Prestes.74
Quiseram matá-lo aos poucos, quebrar a sua resistência orgânica e moral, liquidar o Herói porque enquanto ele estivesse vivo, o perigo não desapareceria para os tiranos.
De 1936 a 1937, quando é transferido para a Correção, onde outros martírios o esperam, ele vive na Polícia Especial os seus dias sem ver ninguém, sem falar com ninguém, sem ler, sem escrever, sem nada saber do mundo, sem nada saber dos seus entes queridos. Que teria acontecido com sua esposa? Ela levara no ventre uma vida humana. Que lhe teriam feito? E sua mãe, longe da Pátria, que seria dela? E que martírios sofria o seu povo, que estaria acontecendo com ele? Seus dias eram esses pensamentos terríveis, essa solidão imensa, essa incerteza sobre tudo e sobre todos.
Suas noites eram a visão da bestialidade dos policiais torturando presos, queimando, cortando, surrando corpos humanos, marinheiros, operários e intelectuais que haviam desejado, como ele, libertar o Brasil.
Amiga, quando olhares para esse quartel da Polícia Especial de tão infame memória não o olhes somente com ódio. Que no teu olhar vá também amor e carinho. Aqui o Herói provou que era digno de chefiar o seu povo, de estar à frente dos que se libertavam. Aqui ele sofreu pela sua gente, aqui ele nos ensinou uma lição de heroísmo. Aqui ainda mais cresceu a sua figura humana de gigante. Não é apenas o Gênio e o Herói. É a fortaleza moral sobrepujando-se a qualquer dor. Em nenhum momento, por maior que fossem os sofrimentos, ele vacilou. Conservou sua integridade em todos os instantes. E a conserva até hoje. Assombrou o mundo com a sua grandeza. É um dos heróis desse século, a maior figura da América moderna.
Os processos contra ele eram feitos em meio a documentos falsificados, a testemunhas compradas, a depoimentos de traidores, com a cumplicidade dos juizes de um tribunal vergonhoso, o Tribunal de Segurança. Esses não são juizes, amiga. São policiais que vestiram a toga numa última humilhação à justiça brasileira.
Processavam-no também pelo crime de deserção. E um dia, de repente, ele é chamado para ser julgado por este crime, não na sala de um tribunal mas numa sala da própria Polícia Especial. Prestes já havia sido absolvido, em agosto de 1936, desse mesmo imaginário crime. Daquela vez não compareceu ao julgamento porque a polícia declarou ao tribunal que ele "era um réu de condução difícil, mesmo sob custódia". A sentença de absolvição foi, tão simplesmente, anulada pelo governo e os militares que o absolveram passaram à categoria de suspeitos. Agora outro júri militar o espera numa sala da Polícia Especial para novo julgamento. O "tribunal" improvisado dista apenas 50 passos da sua célula. Prestes chega, cercado de policiais armados de metralhadoras e bombas de gás. Está sereno, seu rosto absolutamente tranqüilo. Magro, há quase um ano75 que sofre o indescritível na prisão. O Presidente do Tribunal fala:
— Pode sentar-se, capitão.
— Estou bem assim — responde Prestes, e continua de pé, cercado de dezenas de policiais.
O coronel Faria Júnior, que é um dos juizes, lhe informa que, de acordo com a lei, o Tribunal lhe concede amplo direito de defesa, que pode nomear um advogado se quiser.
Prestes sorri e diz:
— Mas se eu não sei sequer do que se trata. ..
— O senhor vai responder a um Conselho de Justiça.
— E como posso sabê-lo, se faz um ano que me encontro segregado do mundo, completamente incomunicável, em meio a este terror policial? Antes de pensar em nomear um advogado devo saber, pelos menos, o crime de que me acusam.
Um juiz lhe explica: crime de deserção, segundo o artigo 117 do Código Penal Militar. Explicam-lhe também que a sentença que o absolvera em agosto de 36 fora anulada.
Prestes tem um gesto irônico e esclarece:
— Os senhores não ignoram a minha situação. Estando rigorosamente incomunicável, como poderei defender-me? Há treze anos que estou afastado da vida militar. Estou informado que a lei, nesse período, sofreu modificações e eu necessito pelo menos conhecê-la para poder defender-me.
Um juiz declara que os códigos não sofreram nenhuma modificação, mas o fiscal interrompe para dizer que Prestes tem razão, que houve modificações, e que ele acha que a bem da Justiça a sessão deve ser levantada e que o Tribunal deve facilitar a Prestes todos os meios de defesa. Prestes ainda fala sobre a sua situação, a do país, a de todos os que defendem a liberdade no Brasil.
Volta para o cubículo e agora, ante essa sua vitória, os policiais requintam-se em maldades, trazem novamente presos para serem espancados na sua vista. O governo pretende vingar-se desse processo de deserção pelo qual não o conseguem condenar com o processo por crime político que o Tribunal de Segurança prepara-se para julgar.
Tribunal de Segurança. . . Para dizer o que ele é, basta, amiga, que saibas que os juizes não sentenciam à base de provas e, sim, de acordo com a sua consciência. Como se eles tivessem consciência...76 esses juizes improvisados, miseráveis títeres nas mãos da polícia. As sentenças que o Tribunal de Segurança vai ditar foram enviadas muito antes por Filinto Müller. Há presos que já sabem quantos anos vão cumprir porque os investigadores por vezes falavam, em comentários irônicos, nos corredores da polícia. Assim funciona o Tribunal de Segurança.
Em janeiro de 37 Prestes é trazido à presença de Raul Machado, literato fracassado, poeta medíocre que odeia todos aqueles que conquistaram um nome, já que ele nunca o pôde fazer. Capacho da tirania, único juiz civil que cometeu a indignidade de aceitar o cargo de membro do Tribunal de Segurança. Raul Machado vem para qualificar Prestes. O escrevente é o mesmo que o ouviu no interrogatório, o mesmo é o Procurador. Só o delegado foi substituído por Raul Machado. Como no interrogatório, é numa sala da Polícia que o juiz o ouve. Que diferença existe então entre este tribunal e a polícia? Dão a Prestes três dias para organizar a sua defesa, apresentar provas, estudá-las com o seu advogado77.
Em verdade, amiga, seria monstruoso se antes não fosse ridículo. Esse acusado nunca viu o seu advogado nem vai poder vê-lo senão muito depois de julgado. Não tem sequer um lápis com que escrever, não se comunica com ninguém, não sabe sequer do que o acusam e tem três dias para organizar sua defesa. Prestes recusa-se a participar dessa farsa trágica.
O seu advogado, quando tenta vê-lo, é repelido violentamente pela polícia. E o governo quer que o mundo acredite que houve um processo legal de julgamento... Processo mais cínico e mais ilegal que mesmo o de Dmitrov na Alemanha nazi.
O Tribunal de Segurança Nacional o condena a dezesseis anos e oito meses de prisão. Será pouco ainda para o medo que o governo lhe tem. Depois conseguirão outro processo e o condenarão a mais trinta anos.
Os olhos do Brasil se voltam para este homem que sofre no quartel da Polícia Especial. Nada sabe da sua esposa. Teria nascido seu filho, que fim teria levado? Nada sabe de sua mãe que anda em terras estranhas lutando pela sua liberdade. Nada sabe do que se passa no mundo, não pode ler, não se avista com ninguém. Fala sozinho em voz alta para não perder a lembrança da voz humana. Até ele só chegam os gritos dos torturados. Ante seus olhos, somente a visão dos homens surrados e martirizados. Mas ele resiste, não é apenas um homem, amiga. É um povo. Concebido, criado e alimentado pelas necessidades de um povo, ele tem a força da liberdade. Resiste a todos os sofrimentos. Sua figura cresce cada vez mais, se alteia imensa sobre o Brasil. Esperança, amiga.
A notícia correu primeiro pela sala onde estavam as mulheres, amiga. Mas logo se estendeu por toda a Detenção e daí chegou à Casa de Correção: iam levar Olga Benário Prestes, a esposa de Luiz Carlos. A polícia entrou na sala, Romano à frente dos investigadores, para buscá-la. Ela se recusou a sair.
Fazia seis meses que ela estava presa, na incerteza do destino do marido, longe dele, um filho no ventre, nem uma sombra de esperança na sua frente. Agora a vinham buscar. Ali, pelo menos, ela tinha a presença amiga, o carinho das companheiras de prisão, as esposas de vários presos: Carmem Ghioldi, Eugênia Álvaro Moreira, Rosa Meireles, muitas outras. Haviam trazido também Auguste Elise Ewert e as mulheres a viam acordar pelo meio da noite, nas horas em que, na Polícia Especial, costumavam espancá-la. Acordava e se punha a chorar, em soluços nervosos, Auguste sabia que àquela hora Harry estava sendo torturado, arrancado do vão de escada onde arrastava o que lhe haviam deixado de vida, para servir de gozo aos policiais degenerados. Um dia levaram Auguste Elise. Elas viram quando a companheira partiu, as faces desfeitas, antes fora uma mulher de formoso porte, hoje era um trapo de gente que as torturas haviam deformado. Depois só vagas notícias que davam conta de que Auguste havia sido deportada para a Alemanha, onde morrera ao chegar. Agora vêm buscar Olga.
Carmem Ghioldi mobiliza as companheiras. Estas avisam aos presos políticos, o protesto começa. São milhares de homens presos na Correção e na Detenção que gritam, que protestam, que clamam. Pelas grades dos cubículos gritam para a rua. Adivinham que Olga vai ser deportada, que a vão mandar para a Alemanha nazi. É verdade que ela é brasileira já que casou com um brasileiro. Assim o diz a lei, mas, amiga, de que vale a lei para os tiranos? Os presos protestam, Olga se recusa a abandonar a cama. Já não pode quase andar, a gravidez a torna pesada, uma gravidez sem cuidados, passada na prisão, com alimentação má e deficiente, sem tratamento médico, sem nenhum conforto, com o coração despedaçado. Os investigadores inventam mentiras. Declaram que ela vai para uma casa de saúde, para uma maternidade onde terá a criança. Desde as nove horas da noite que as prisões gritam fazendo o trânsito parar na rua. Afinal às três horas da madrugada a polícia consente que Olga seja acompanhada por um dos médicos presos e por uma das senhoras, também presa. Assim saem, e logo se dão conta que tudo não passou de um blefe. Mal saem da Correção, o médico e a senhora são trancados num carro celular e enviados para a Polícia Central e Olga é mandada para bordo de um navio que parte para a Alemanha.
Negaram-lhe o conforto de ver o marido. Negaram-lhe o direito de lhe escrever uma carta de despedida. Meteram-na no porão do barco. Era um cargueiro alemão. Ela estava a quase um mês do parto e ainda assim teve que suportar trinta dias de viagem num porão imundo, sem poder respirar um pouco de ar puro, sem que nem uma vez sequer viessem limpar aquele canto sujo em que a largaram. Com o jogo do navio — pequeno cargueiro no mar revolto — ela, grávida e doente, vomitava e sobre esse vômito teve que dormir os trinta dias que durou a viagem. Saída das mãos de títeres para as mãos de Himmler.
Presa no Brasil em começos de 1936, Olga não pôde ser acusada de nenhum crime. Nem mesmo um desses crimes políticos, que a polícia do Brasil era tão fértil em imaginar, foi possível lhe atribuir. Era uma mulher casada que cuidava da casa, do seu marido, que tratava dele, dava-lhe a alegria do seu carinho e do seu desvelo. Além disso era uma mulher que levava no seu ventre uma vida humana, filha do amor de Olga e Luiz Carlos Prestes. Um problema para os donos do país, amiga. Eis uma mulher que fora a mais dedicada, a mais meiga e a mais corajosa das esposas. Nenhum crime cometera nem mesmo perante as leis que eles haviam criado para castigar aos homens que em 1935 se levantaram em armas para defender o povo dos desmandos do poder. Essa mulher no Brasil, em liberdade, seria um espetáculo a mais para comover e irritar o povo que continua a clamar pela liberdade de Prestes. Mandaram-na então para a Alemanha, num cargueiro que ia diretamente de um porto brasileiro a um porto alemão, já que o governo tinha medo não só do povo do Brasil, como também dos demais povos do mundo, de todo homem livre em qualquer parte onde ele estivesse. Um ser humano que levava outro no ventre. Material para torturas.
Nenhum crime lhe encontraram os verdugos. Em verdade, amiga, Olga tinha um crime tremendo, um imperdoável crime para aqueles que se fecharam na noite da tirania. O crime do amor. Eu bem sei e tu o sabes, amiga, que não há nada de mais esplêndido e magnífico que o amor. É o sol e é o céu, é a descoberta de súbito de todas as coisas que até então não havíamos sentido na sua máxima beleza: a descoberta do luar nas noites de verão, a descoberta da primavera brotando dos ramos, subindo da terra, a descoberta das flores, dos versos, das carícias ingênuas e doces. E pelo amor, amiga, nós o sabemos, deixamos tudo para tudo ganharmos. Assim fez Olga. Seguiu 0 seu .amado que era o ser mais digno de amor na terra. Seguiu seus passos que eram os passos da liberdade, muito tinha ele que fazer, muito precisava do seu amor para construir a sua obra. Ela nada mais fez que ser digna e boa, a melhor das esposas, a mais amante, a mais terna, a mais fiel. Esposa é uma palavra bela, todos o dizem.
Mas há homens, amiga, que o dizem também, que falam em voz alta e bem sonante sobre as virtudes da esposa, Que falam em lealdade, em dignidade e doçura. Que dizem que só para a defesa dessas virtudes vivem e usufruem dos empregos, dos cargos, das posições. Desconfia desses homens, amiga, porque os seus discursos são falsos e o seu amor à virtude é tão-somente amor aos empregos, aos cargos e às posições. Amor ao mando. Tudo que é nobreza, dignidade e doçura verdadeiras é odioso para esses homens. Por isso odiaram Olga, a sua dignidade, a sua nobreza, a sua doçura de esposa. Amiga, os opressores se apossaram de todas as palavras do mundo, até delas se tornaram donos. Da memória dos grandes homens e dos santos também, E em nome deles falam e cometem crimes e cometem baixezas. Assim fizeram com Olga e com Luiz. Ela era digna e fiel, doce e carinhosa. Os que arrogam coragem tiveram medo das mulheres do seu país. Se deixassem a esposa perto do esposo toda a gente veria que ela era digna, leal e amante. Nasceria uma criança, filha do Herói do povo. E em torno de Olga e da criança se uniriam as mãos das mulheres, as lágrimas dos olhos ternos das mulheres afogariam os opressores de coração morto para o amor, para a dignidade, para a amizade e para a lealdade.
Torturavam Prestes, era seu ódio maior, porque era seu medo maior. E torturavam Olga, a esposa de Luiz que trazia no centre uma criança filha daquele amor. Descobriram então o maravilhoso presente, o regalo ideal, para mandar ao grande tirano Adolf, E enviaram-lhe Olga com o filho no ventre. Com certeza o grande tirano ficaria feliz. Um ser humano que levava outro dentro de si para que ele os torturasse à vontade. Assim fazem, amiga, os tiranos quando querem imitar os homens.
No cargueiro que reproduzia as viagens dantescas dos navios negreiros, Olga dormia sobre a sujeira dos vômitos, sentia dentro de si aquela vida bulindo, fruto do seu amor. No Brasil, nas mãos mesquinhas dos inimigos do povo, nas mãos desses homens que odeiam tudo que representa dignidade" e beleza, ficava seu marido que era a própria dignidade e a própria beleza da vida. E ela, com um filho no ventre, ia para as mãos de um louco feroz que desgraçava sua pátria de nascimento. Um mês no porão infecto, sem ar, sem luz, como um fardo jogado sobre as sujeiras. Ouvindo os hinos hitleristas, as saudações odiosas, viajando para o próprio inferno.
Um dia, amiga, ela viu costas da Alemanha, sentiu as brisas de Hamburgo. Se lembrou de outros tempos, quando estas eram costas felizes onde corria o vento da liberdade. Hoje só a desgraça as habita. Olga se sobrepunha à sua própria fraqueza e vivia. Vivia para o marido preso no Brasil, para a filha que ia nascer na prisão.
A Gestapo estava no cais para receber o presente da polícia brasileira. Olga foi posta na sombria prisão de Barnimstrasse, onde a 27 de novembro de 1936, no dia em que o levante do Rio de Janeiro cumpria seu primeiro aniversário, nasceu a filha de Luiz Carlos Prestes. Nasceu na prisão, iria crescer no exílio.
Olga a chamou de Anita Leocádia em homenagem a duas mulheres fortes: a Anita Garibaldi, a companheira do grande lutador, e a Leocádia Prestes, a mãe heróica de Luiz Carlos Prestes. Conseguira que a criança nascesse sadia e robusta, que não trouxesse as marcas dos martírios, dos sustos, da tragédia que ela estava vivendo. Agora cumpria-lhe criá-la, fazê-la digna do pai e da avô, do povo do Brasil que considerava essa criança sua filha mais amada. Olga estava sozinha no mundo, nada sabia do marido, nada sabia, amiga, dos entes queridos, nada sabia da sorte que ia ter. Mas se atirou à tarefa de criar a filha. Com a mesma coragem com que acompanhara Luiz Carlos Prestes nas noites sombrias de terror do início de 36, após o fracasso da revolução.
Porém, dias depois, faltou-lhe o leite nos seios magros.
Sua alimentação deficiente, uma bebida pardacenta pela manhã à qual os nazis chamavam de café, um pouco de pão inferior e uma sopa de legumes secos, ao meio-dia, e mais nada durante todo o dia — não lhe permitia criar a filha.
Depois de cada mamada a criança gritava, desesperadamente, de fome. Começou Anita Leocádia a emagrecer ante os olhos estupefatos da mãe ansiosa, dessa mãe que nada podia fazer para salvar a filha. Nas noites de Barnimstrasse, noites de prisão longe de todos os entes queridos, Olga cantava para aplacar o choro faminto de Anita, aquelas cantigas de ninar que Luiz Carlos lhe ensinara:
"Xô, xô, bicho-papão.
Sai de cima do telhado,
Deixa nenen dormir seu sono sossegado. .. "
Cantigas de ninar do Brasil distante, onde estava Luiz... As lágrimas corriam pela face de Olga, enquanto Anita chorava de fome. Sua voz suave se elevava da prisão lúgubre de Barnimstrasse, adormecia os presos, calmava os sofrimentos infinitos. A pequena Anita, magra e esfomeada, terminava por dormir, seu rosto lavado de lágrimas. Lavado de lágrimas também, amiga, o rosto de Olga, vendo a filha morrer de inanição. Seus seios que não tinham sustento para a sua filha. Nas refeições viscosas e malcheirosas a fome não chegava, mas Olga comia toda a comida na esperança de assim ter leite com que alimentar sua filha, único bem que os homens haviam lhe deixado. Quando Anita adormecia. Olga a fitava na cela imunda. Via-a magra e fenecendo como uma flor sem sol e sem água. Sabia que ela ia morrer. E seus soluços doloridos, saídos do coração rasgado, substituíam as cantigas de ninar na noite sombria de Barnimstrasse.
Anita não morreu, amiga, porque Leocádia Prestes conseguiu pôr-se em comunicação com Olga e passou a lhe enviar alimentos. Assim se salvou a vida da criança e em breve a filha de Prestes era chamada pelos presos de "pequeno raio de sol de Barnimstrasse".
"Raio de sol" que sofria uma infância de miséria. Quando Anita tinha oito meses os nazis transferiram Olga para uma outra cela mais úmida e mais suja ainda. Aí não existia água corrente e tudo que Olga tinha para o seu asseio e o da criança, para a sua sede e para a de Anita, era um balde de água por dia. Se faltasse havia que esperar o outro dia... Quantas noites não foi preciso adormecer com cantigas de ninar do nordeste do Brasil a menina sequiosa, chorando por um gole de água...
Anita aprendeu a engatinhar no chão de cimento duro e áspero. Suas mãos inocentes conheceram os calos antes que as mãos de qualquer outro ser humano. Mãozinhas grossas e inchadas daquele roçar contínuo no cimento úmido. Assim era, amiga, a vida de mãe e filha na prisão nazi na Alemanha.
Nesse tempo já Leocádia, a avó, revolvia céus e terras procurando reaver a neta, desenvolvia a sua extraordinária campanha na Europa pela conquista deste ser inocente. Mas a Gestapo de nada disso informava a Olga para que essa mulher não pudesse ter uma alegria por menor que fosse no meio dos seus sofrimentos. Fora para sofrer que a tinham mandado para Hitler. Que sofresse pois... E então lhe disseram que quando Anita completasse dez meses não poderia continuar com ela. Que seria internada num orfanato nazi e pelos nazis seria educada. Esse foi o maior sofrimento. Faltavam dois meses e esses dois.meses foram uma morte todos os dias, a espera cruel do momento em que levassem a filha para uma daquelas escolas de maldade e de ódio. Imagina, amiga, o sofrimento sem medidas dessa mãe a quem vão arrebatar a filha, que vai vê-la partir pela mão dos inimigos para viver no meio da infâmia e da maldade. Dessa mulher que já tem o marido preso numa situação em que não se encontram nem os animais ferozes. Que está ela mesmo presa, sofrendo todos os horrores físicos e todos esses horrores morais. Quando a enviaram, como um presente régio, ao grande tirano da Alemanha, sabia que esse tiraria dela o máximo de sofrimento para a sua alegria de tarado. Nas noites de prisão rolam as lágrimas de Olga sobre o destino de Anita.
Anita começa a andar e a falar. Os carinhos de Olga, os seus cuidados, foram mais fortes que a maldade humana. A criança é bela e sadia, é o "raio de sol" da prisão. Tem um ano e não a levaram ainda. Uma leve esperança começa a brotar no coração angustiado de Olga.
Porém, de repente, na manhã de 21 de janeiro de 1938, o diretor da prisão aparece na sua cela e manda que ela prepare a criança. Era chegada a hora de se separar de sua filha. Olga não sabia que na sala de espera, protestando porque queria vê-la, se encontrava Dona Leocádia Prestes, a quem Anita ia ser entregue.78 O diretor, num requinte de maldade, que não ocorreria nem a uma hiena, diz a Olga que a criança, como ele já lhe havia avisado, ia para um orfanato nazi. Olga resiste a entregá-la mas ele a toma brutalmente e deixa que Olga soluce na cela como uma louca.
E assim, feito uma louca, viveu meses de angústias, certa de que sua filha estava nas mãos dos bárbaros. Suas noites eram desgraçadas como ainda não o foram as noites de nenhuma mulher, amiga. Meses inteiros viveu assim, imagina!
Até que um dia a Gestapo permitiu que ela recebesse uma carta de Leocádia, uma das muitas que a sogra lhe escrevia, e pela qual soube que Anita estava com a avó. Dia de alegria que pagou todos os dias de desgraça. E Olga mais uma vez resolveu se sobrepor a toda a dor e todo sofrimento para viver pelo seu marido e pela sua filha.
Não tardou que a arrancassem da prisão de Barnimstrasse para o campo de concentração de Ravensbrück, em Fürstenberg, Mecklenburg, ao norte de Berlim, iniciando-se sua vida de "trabalhos forçados". Aí as enfermidades, devidas ao frio, à fome e a toda sorte de privações, derrubaram-na várias vezes, várias vezes esteve à morte. Mas a sua vontade de viver para rever o marido e a filha tem sido maior que os sofrimentos e as moléstias. Não perde a esperança. Seu marido é o Cavaleiro da Esperança de todo um povo. Dela também. Da lembrança dele, das raras cartas que dele e da sogra lhe foram entregues,79 ela se alimenta de esperança. E da certeza também, amiga, de que um dia o povo rebentará as cadeias e se libertará dos tiranos, Essa é uma verdade que Luiz Carlos Prestes lhe ensinou. Dessa certeza vive a sua esperança, nessa certeza reside a sua vida.
Uma vez ela escreveu do campo de concentração estas palavras tão dolorosas: "O apetite e o sono não me faltam". E acrescentou noutra carta: "Sou feliz porque trabalho muito, assim não há tempo para pensar. Quando regresso de noite, apenas tenho vontade de deitar-me e durmo como uma pedra, pelo que sou feliz também." Amargas palavras de mulher, mas por detrás delas, amiga, lateja uma esperança. No coração dessa grande esposa e mãe. Olga Benário Prestes, tão digna mulher de Luiz Carlos Prestes!
O tintureiro entrou no pátio da Correção, Agliberto e Agildo embarcaram. Minutos depois entrou outro carro celular, desta vez foi Rodolfo Ghioldi. Iam, amiga, para o julgamento de apelação do processo que os condenara no Tribunal de Segurança. Os advogados haviam apelado para o Superior Tribunal Militar e diante dele os presos resolveram defender-se. Esse era um tribunal de larga tradição no país, constituído realmente por juizes. Não fora improvisado para condenar, como o de Segurança. Por isso diante do Superior Tribunal Militar, os presos políticos resolveram defender-se. Nesse dia será julgada a apelação de Luiz Carlos Prestes, Harry Berger, Rodolfo Ghioldi, Agildo Barata e Agliberto Vieira de Azevedo. Prestes está condenado a dezesseis anos e oito meses, Harry Berger a treze anos e quatro meses, Rodolfo Ghioldi a quatro anos e quatro meses, Agildo Barata a dez anos, e Agliberto Vieira a vinte e sete anos e seis meses. São considerados Prestes, Agildo e Agliberto, com Silo Meireles em Recife, os chefes do levante militar. E Berger e Ghioldi são particularmente perseguidos devido à sua condição de estrangeiros. Hoje eles partem em busca de um tribunal livre, que não fosse apenas uma dependência da polícia como o é o Tribunal de Segurança.
Do pátio da Correção o tintureiro que levava Rodolfo Ghioldi encaminhou-se para o pátio da Polícia Central. Aí ficou parado uns minutos. Até que um policial abriu a porta e ordenou:
— Desça. . .
Rodolfo desceu, outro tintureiro já o esperava. Esse era um daqueles tintureiros divididos em celas e numa delas Rodolfo foi colocado. Havia outro vulto. Um vulto magro e curvado. Rodolfo varou a escuridão com os olhos, estava quase ao lado do vulto mas não o reconheceu. Forçou a vista.
Não sabia quem era. Só se deu conta que era Harry Berger, que ele conhecia tão bem, quando a voz falou em alemão:
— É você, Ghioldi?
A surpresa foi maior que Rodolfo:
— Não o tinha reconhecido...
Berger sorriu seu sorriso triste, perguntou:
— Lhe espancaram muito? A mim me espancaram como nunca pensei possível...
Agora o tintureiro andava a caminho do Tribunal Militar. Rodolfo olhava o homem ao seu lado. Antes era um homem forte e gordo. Hoje era um resto de ser humano, deformado. Berger voltou a falar, sua voz tinha um tom trágico dentro da escuridão do carro celular que cortava as ruas velozmente:
— E minha mulher?
A pergunta ressoava dramaticamente dentro do tintureiro. As notícias sobre Auguste Elise, depois que ela havia sido mandada para a Alemanha, eram desencontradas. Umas diziam aquilo que era a verdade: que ela morrera mal chegara à prisão alemã, em conseqüência das torturas sofridas no Brasil. Outras davam-na como viva. Rodolfo transmitiu a melhor das versões, a mais otimista. Sua voz tentou ser alegre no tintureiro, onde a luz que penetrava pelos pequenos respiradouros fazia arabescos estranhos:
— Está em Paris. . . Foi arrancada do navio em Marselha. . .
A voz de Berger veio estrangulada:
— Não creio...
O silêncio durou um longo, um imenso segundo. Depois aquela voz repetiu uma, duas, três vezes:
— Não creio... Não creio... Não posso acreditar... Silêncio novamente. Chegava de longe o ruído da cidade penetrando pelas frestas com os raios de luz. A voz de Berger, pesada como um martelo:
— Ela morreu... Tenho certeza de que ela morreu... Voltou a perguntar:
— Lhe torturaram muito, Ghioldi? A mim me fizeram o que nunca imaginei possível. Penso que não vou resistir e vou morrer. Deram-me muito na cabeça... principalmente na cabeça... Mesmo que eu não morra tenho certeza de que vou ficar louco... Tenho certeza... Vou ficar louco...
O ar pesado no tintureiro. A voz de Berger ressoava, havia algo nela que lembrava a Ghioldi as vozes do teatro grego de tragédia. Da cidade, pelas frestas do carro celular, chegava um rumor de vida. Mas ali dentro era a tragédia. O resto de uma gargalhada veio morrer dentro do tintureiro. A voz de Berger. ..
— Há noites em que já tenho alucinações. .. Vou ficar louco. Tenho absoluta certeza... Absoluta... Louco...
O carro celular parou, eles saltaram entre policiais. Vinham palavras, gritos, ordens, buzinar de automóveis. Rodolfo Ghioldi não ouvia nada. Nos seus ouvidos ressoavam apenas aquelas palavras de Harry Berger: "Vou ficar louco... louco...".80
A Polícia Especial e a Polícia Civil haviam tomado conta de todas as ruas adjacentes. Não passavam automóveis a não ser os que conduziam policiais. Não circulavam pedestres, a gente havia sido tangida das redondezas do tribunal.
Na parte do fundo da sala, amiga, estavam sobre um estrado circular os juizes militares: generais e advogados de renome que haviam sido escolhidos para aquele posto. E numa suprema afronta ao exército e à justiça, por detrás "desses juizes estavam os homens da Polícia. Civil e da Polícia Especial, a intimidá-los. Por detrás da cadeira do Presidente se encontrava Romano, da Polícia Civil, e o comandante Queiroz, da Polícia Especial. Ao lado direito dos juizes estava a assistência e acontece, amiga, que a assistência era formada na sua quase totalidade por investigadores e homens da Polícia Especial. Se estendiam ao lado da parede da direita e na parede que ficava em frente aos juizes. Ao lado da parede esquerda estavam os presos. Guardavam a seguinte ordem, partindo do ponto mais distante dos juizes: Agildo, Agliberto, Ghioldi, Berger, o ex-Secretário do Partido Comunista e ao seu lado uma cadeira vazia. Em frente, uma tribuna onde os acusados deviam falar. Cada um tinha quinze minutos para se defender de acusações tremendas. Atrás dos acusados os homens da Polícia Especial. Três atrás de cada um dos presos. Assim estava esse Tribunal livrei
E, de súbito, se produz um burburinho na sala, gritos e vozes clamando. É Luiz Carlos Prestes que entra. Sangra na boca, os policiais aproveitaram-se da confusão no saltar do carro celular quando quiseram corrê-lo para ver se ele trazia armas, ele que vinha de um cubículo da Polícia Especial! E soquearam-no na boca. Agora o trazem arrastado, ele se defende, grita para os juizes:
— Generais, isso é um insulto ao exército. .. Meu pai foi militar, eu fui militar, os policiais que me batem estão insultando o próprio exército do Brasil. ..
Os policiais o arrastam, sua boca sangra, ele se livra dos que o pegam. E então, amiga, uma criança que está na assistência, filha de um outro preso político, abandona a mão da mãe que a segura e corre entre os policiais e se abraça nas pernas de Prestes, soluçando.
Os juizes intervém, os policiais são separados de Prestes, este continua a falar:
— É uma indignidade o que está sucedendo no Brasil. É uma infâmia sem conta, é um crime demasiado grande...
Os outros acusados, quando ele entrou, tentaram levantar-se para o saudar e para ajudá-lo a atravessar a sala. Os homens da Polícia Especial os forçaram a ficar sentados. Tudo isso se passava, amiga, no Superior Tribunal Militar do Brasil, diante de velhos generais e velhos juristas, honra do exército e honra da justiça, sobre os quais o governo cuspia seu desprezo.
O Presidente do Tribunal faz um apelo a Prestes para que ele se sente, que logo falará. Prestes atende e a acusação começa o seu libelo que dura duas longas horas. Depois Prestes fala. Tem quinze minutos, mas o que ele diz é tão emocionante, tão poderoso e dramático, que ele fala, ante os juizes totalmente dominados pelo fogo da sua palavra, durante 45 minutos. Não se defende. Acusa. Sua voz vibra como um látego de fogo. Contra os inimigos do povo. Os poucos assistentes que não são da polícia choram de emoção.
É o Cavaleiro da Esperança que alenta com suas palavras todo o Brasil escravizado.81
Suas acusações contra a polícia queimam como brasa. Ele aponta os policiais atrás do Tribunal. Aponta um a um, descreve os seus crimes. O acusado levanta a sua voz para acusar. É todo o povo do Brasil que, pela voz do seu Herói, acusa um governo criminoso. Que pede contas. Que aponta para o dia de amanhã. O dia da liberdade.
O libelo contra a polícia, contra os crimes do governo, estremece as paredes do Tribunal. Há lágrimas na assistência, os juizes estão presos das palavras de Prestes. Esqueceram até que por detrás deles se debruçam Romano e Queiroz, e os policiais, como uma ameaça a qualquer tentativa de fazer justiça, a qualquer mostra de simpatia pelos presos.
Quando termina de denunciar perante o país os crimes do governo, Prestes inicia a sua defesa. Lê a carta que escrevera ao seu advogado ex-officio, Dr. Sobral Pinto, carta que lhe fora arrebatada das mãos pela polícia quando ele tentara entregá-la ao seu destinatário. Prestes a havia reconstituído e agora a lê, seu libelo valente, sua defesa magistral, sua profissão de fé.
Começa dizendo nessa carta, que os presentes ouvem cortados de emoção, da sua vontade de falar ao povo brasileiro:
"— ... ninguém mais do que eu deseja explicar de público e bem alto, perante o povo brasileiro e toda a opinião pública mundial, seus gestos e atitudes. Permitam-me os senhores do governo, os seus lacaios da Polícia ou do Tribunal de Repressão82 que eu fale; que examine o processo onde estão acumuladas ou forjadas pela polícia as provas de meus crimes; que eu ouça e possa inquirir as testemunhas que a Acusação tenha por bem apresentar; que sejam chamadas à presença do Tribunal, que realmente me queira julgar, as testemunhas de defesa, numerosas, que posso apresentar e cuja inquirição desejo fazer; que tudo isto se processe de público e perante os representantes da imprensa nacional e estrangeira e depois disto, então, lavrem a sentença que eu merecer. Não sou eu, Dr. Sobral Pinto, quem teme a luz da publicidade nem o exame meticuloso da opinião pública sobre todos os meus gestos e atitudes. Pelo contrário, eu só desejo expor, com todas as minúcias, os detalhes todos de minha vida de revolucionário. E, se são verdadeiras as acusações que a Polícia e os Himalayas,83 com a sua imprensa contra mim lançam, se sou um vendido, ou bandido, ou um louco, por que não me deixam livremente expor os meus gestos e atitudes?"
A pergunta fica boiando no ar. Eis um homem que o governo apresenta ao país e ao mundo como um criminoso de crimes inconfessáveis, como um ser monstruoso. Mas, por que então o processo desse homem e dos seus crimes é feito longe do público, às escondidas, sob um estado de guerra, com a imprensa amordaçada, com a polícia desencadeando o terror sobre o povo? Prestes mostra a verdadeira situação, aponta os verdadeiros criminosos:
"São justamente aqueles que me acusam, que me caluniam, que contra mim e contra o meu Partido, à sombra de um regime de exceção e sob a proteção dos gases e das metralhadoras policiais, fazem a mais torpe e infame campanha de difamação, são justamente os senhores do governo, os que me atam de pés e mãos, amordaçam-me com violência inaudita e mandam depois que um senhor Raul Machado venha gritar aos meus ouvidos numa reunião clandestina que se realizou a 29 de dezembro de 1936 aqui,84 neste antro de torturas e assassinatos, sob a evidente coação da chibata policial e ante o riso alvar dos policiais da reação: 'Vamos, defende-te, que estou sendo pago para te julgar!' "
Aí está retratado um governo, um Tribunal e um homem que se diz juiz. O governo do estado de guerra, o Tribunal de Segurança Nacional, o juiz Raul Machado. Prestes recorda a farsa trágica daquela noite na Polícia Especial. Quando Raul Machado, plantando-se sobre a sua própria miséria, gritava cinicamente que estava "pago" para julgá-lo, ou seja, para condená-lo. Quando o pequeno homem confessava que nada mais era que um mísero instrumento traindo a tradição de justiça dos tribunais do Brasil. Sobre essa podridão a voz de Prestes na acusação para todo o Brasil, para todo o mundo:
"Ora, no pântano em que nos achamos atualmente tudo tresanda a venalidade, covardia e baixeza, e é com dificuldade ingente que os homens dignos conseguem evitar o lodo getulista que os cerceia, porque nem mesmo da Imprensa ou do Parlamento, que sempre foram as últimas trincheiras de onde pela palavra escrita ou oral era possível a um ou outro mais audacioso lutar contra os déspotas, já não resta mais coisa alguma no regime policial em que vivemos. E a ditadura vai, então, utilizando com escândalo, com desembaraço e sem peias os serviços de todos aqueles que, ou por ignorância (a pior das ignorâncias, porque não aquela da grande maioria dos nossos patrícios que ainda não puderam aprender a ler, mas que a vão suprindo com a intuição da sua inteligência, geralmente tão lúcida, e com o que aprendem na fábrica e no campo onde tudo produzem e tudo fazem), ou por erros de educação, ou por fraqueza de caráter são facilmente influenciados pelo brilho fútil das posições ou pelos proventos materiais que delas lhes advêm."
"O esteio máximo da ditadura, a sua polícia, que parece ser dirigida por profissionais da traição, orienta toda a sua atividade, no sentido de querer fazer de todos os nossos concidadãos, pela violência ou pela astúcia, seres indignos ou covardes. E por isso tortura, vingativa, os que não se sabem dobrar e, numa mania verdadeiramente doentia, que não poupa nem mesmo os 'amigos' do governo, procura apresentar homens que foram sempre considerados dignos e honrados como vis e miseráveis traidores."
Suas palavras vibram no Tribunal. Saem pelas frestas das janelas fechadas, lavam do corpo imenso do Brasil a lama com que o cobrem. É todo um povo, pela voz do seu Herói, que rasga com o bisturi da verdade a carne podre de um governo, que o expõe nu e fétido perante a opinião mundial. Nesse dia, pela voz de Prestes, pela voz que se lhe seguiu dos seus companheiros, a liberdade, a coragem, a dignidade provaram que ainda existiam no Brasil no peito dos prisioneiros, que não eram apenas palavras vãs e sem sentido. Prestes cita Castro Alves, cita Gonçalves Dias, os gênios poéticos da raça, os que impedirão que, sob essa capa de lama, a dignidade do Brasil desapareça. Um raça que deu aqueles gênios não perecerá. Uma raça que deu, amiga, também Luiz Carlos Prestes.
Faz o elogio dos poetas, o elogio do exército, o elogio do povo brasileiro, dos grandes heróis do passado. Mostra o que há de podre no Brasil, mas mostra também o lado são, o povo esmagado mas querendo se levantar. É um libelo, mas é também um canto de esperança. Mensagem do Cavaleiro da Esperança ao seu povo. Mensagem poderosa que irrompe da sala trancada do Tribunal e vai rolar sobre as ruas, sobre os campos, sobre as cidades e os latifúndios, eletrizando as populações, levantando os ânimos, enchendo os homens de fé e confiança. Como um raio de luz, amiga, cortando a lama podre dos charcos.
Sua voz e seu exemplo:
"Para mim, na situação toda particular em que me encontro, o essencial é que se saiba que eu continuo lutando contra os que exploram e oprimem o nosso povo. Não me permitem falar? Não posso orientar com a palavra do meu Partido os milhões de concidadãos que a desejam ouvir? Pela minha atitude, então, eu procurarei fazer sentir ao nosso povo o quanto é necessário atualmente lutar pelos seus direitos constitucionais, contra a legislação terrorista da ditadura, pela liberdade dos perseguidos políticos e contra os policiais da reação."
Os raros assistentes que se encontram em meio aos policiais aplaudem com os olhos cheios de lágrimas, os corações cheio de confiança. Os policiais abafam brutalmente as palmas, os juizes se repõem lentamente da sua comoção. Prestes senta-se, ali está o chefe do povo brasileiro. Se ele já não o fosse, teria nesse momento grandioso conquistado o direito de marchar na frente do seu povo pelos caminhos da liberdade. Mas por esses caminhos já de há muitos anos ele vinha conduzindo o Brasil. Apenas, agora como nos dias da Coluna, ele abre picadas por onde o povo vai marchar em meio aos pantanais de lama infecta. Picadas que serão a larga estrada da liberdade no dia de amanhã, amiga.
E dão a palavra a Harry Berger. É como um cadáver que se levantasse do túmulo. Tem menos trinta quilos que no dia em que foi preso. Pensavam em matá-lo, em fazer calar para sempre a sua voz com as torturas mais bestiais. Mas ela se levanta de novo, varonil e severa, voz da Verdade, voz do Povo. Fala em inglês. O intérprete deturpa seu pensamento. Várias vezes Prestes e Rodolfo Ghioldi protestam contra as traições do intérprete de encomenda. Termina dizendo da sua confiança no povo brasileiro, nos povos do mundo:
"— Qualquer que seja a minha situação, espancado como tenho sido, como serei ainda, com certeza; torturado diariamente; em caminho de uma morte bárbara; na certeza de que minha razão não resistirá a todo esse martírio; na certeza de que me aproximo a cada dia da loucura; quero, nessa hora em que me permitem falar, reafirmar a minha confiança no povo brasileiro, tão corajoso, digno e honesto, e no proletariado mundial, que, passe o que passe, conquistará a vitória final, libertando a humanidade da fome e da opressão!"
Foram essas, amiga, as suas palavras finais. O intérprete, sob os protestos de Prestes e de Ghioldi, as deturpava cinicamente. Mas que valia a sua deturpação diante do espetáculo desse homem marcado de torturas, fisicamente liquidado, mas que se levantava sobre os seus acusadores com tamanha grandeza? Sua voz arrepia até mesmo os policiais.
E fala Agildo, o herói do 3º. R. I. Começa lembrando que todo o Tribunal, os assistentes, e eles, os presos, haviam sido testemunhas da agressão ao general Luiz Carlos Prestes. E pede aos juizes que mandem prender imediatamente os policiais que agrediram ante eles um preso que é também a maior figura do país. Que seja lavrado o flagrante da agressão e iniciado o processo. Cala-se, esperando. Os juizes não se movem, a sua voz vibra violenta no Tribunal como uma bofetada:
— Como é? E a minha solicitação? Lavra-se ou não o flagrante delito?
E, ante o assombro de todos, o Presidente do Tribunal, desorientado, consulta Romano, o chefe dos investigadores que está atrás da sua cadeira. Romano dá ordens. E o Presidente responde a Agildo que depois tratariam do assunto. E então o comandante do Primeiro Regimento do Exército Popular do Brasil inicia sua defesa e a dos seus companheiros na insurreição de 35. Agildo põe abaixo a exploração do governo de que a revolução de 35 fosse comunista. Explica as causas do levante de Natal e da revolta de Recife. Mostra por que a Aliança Nacional Libertadora, pela sua direção militar, resolveu apoiar o movimento do nordeste e ordenar o levante dos quartéis do Rio. Lembra que a exploração anticomunista já havia aparecido em movimentos anteriores. Também o movimento de 30 havia sido acusado de comunista e o de 32 não escapara tampouco. Do movimento de 30 chegaram a dizer que era chefiado por Bela Khun, o comunista húngaro. Defende o governo nacional revolucionário de Natal, e sob a sua responsabilidade de oficial do exército que lutara em 30 e em 32, afirma:
"— O movimento de novembro de 1935 não foi comunista, foi nacional-libertador. Aspirava ao poder para instaurar, não uma ditadura proletária mas um governo democrático-nacionalista, em que estivessem representadas todas as correntes de opinião legitimamente nacionais."
Agildo examina também a situação do país naquele momento, a ameaça fascista que logo depois iria tornar-se em realidade, as ligações do governo com o nazismo, o abandono da defesa nacional, e pergunta, encerrando seu libelo:
"A quem corresponde comparecer ante a justiça como réus do crime infame de traição à Pátria?"
A pergunta é respondida pelo povo do Brasil, em meio ao terror aos governantes do país.
E chega a vez de Agliberto. O Comandante da Escola de Aviação, que estava condenado a 27 anos e meses de prisão, aquele sobre quem o governo quisera lançar o ódio dos seus colegas do exército, Agliberto, símbolo de bravura e lealdade, defende a Aliança Nacional Libertadora, mostra por que ela apareceu no país, por que se desenvolveu, por que o povo a apoiou. Está ainda em meio da sua defesa quando o Tribunal, mal terminados os quinze minutos concedidos a cada réu, lhe cassa a palavra, impedindo-o de continuar.
E fala Rodolfo Ghioldi.85 Irônico, ele se diverte com as confusões de Virgulino Himalaya, o promotor, em torno da figura do revolucionário chinês Van Mine, que a polícia e o Tribunal de Segurança haviam transformado num holandês. Fala na solidariedade do proletariado mundial para com a U.R.S.S., mas põe abaixo de uma vez toda a sórdida mistificação da polícia em torno da revolução de 35. Prova como a Internacional Comunista nada tem a ver com o movimento. Mostra as falsificações que foram feitas no discurso de Van Mine. Sua defesa é uma peça de formosa literatura e de sutil ironia. Tão bem feita que até um juiz do Tribunal Militar a deseja ler mais cuidadosamente, encantado com a sua beleza e a sua justeza jurídica. Diz por que, sendo comunista, ele se sentiu no dever de colaborar com o povo brasileiro na sua luta de libertação. Ele viu e sentiu a ânsia de liberdade desse povo. Se colocou, como criatura humana que também ama a liberdade, ao seu lado no seu momento de luta. O final do seu discurso é comovente, de profunda beleza, de intensa força revolucionária:
"— De trinta meses de permanência no Brasil passei vinte no cárcere. A malícia poderia dizer que deste grande país só conheço o regime penitenciário. Mas, na Casa de Detenção, conheci brasileiros de todas as latitudes e profissões e das mais diversas orientações políticas. Aprendi a conhecer mais intimamente os anelos e sentimentos do povo brasileiro, ao qual me sinto ligado definitivamente pela mais viva simpatia e solidariedade. Vi quão profunda é essa sua vontade de libertação nacional. Comunista argentino que se orgulha de sê-lo, me sinto igualmente cidadão da América Latina, que quero livre de ameaças fascistas, de prepotências imperialistas, do atraso econômico e cultural. Vítima das limitações do direito de asilo, luto pelo império das liberdades públicas. E, se me permitissem uma esperança nesta hora sombria em que assaltam nações como os bandoleiros assaltam os caminhantes nas estradas, em que alguns estados-maiores buscam situar a Mandchuria na América, e em que obscuras forças internas conspiram contra a dignidade e a integridade de nossos povos, diria que confio na capacidade dos homens conscientes de nossos países para unificar a paz continental e para repelir ameaças de agressões intoleráveis. Se há uma consciência continental, que eles a impulsionem e desenvolvam criando as bases de uma livre confederação de Repúblicas antiimperialistas na América Latina."
Com a defesa de Ghioldi a sessão está terminada. O Presidente do Tribunal manda que o público saia. E se retiram exatamente nove pessoas, de entre as dezenas de pessoas que aparecem como público. É que os demais são investigadores e policiais da Polícia Especial vestidos à paisana. Então sobre a cabeça do Presidente do Tribunal, o comandante Queiroz estende o seu pescoço e mais uma vez insulta o exército e a justiça nas pessoas dos generais-juizes que ali estão, ao tomar a palavra e ordenar, aos berros, que os policiais que fazem de público também se retirem.
Os presos são levados. Mas não para a Detenção de onde, exceto Prestes e Berger, haviam vindo. São levados para a Polícia Especial para serem espancados. O que só não acontecer porque entre os assistentes do julgamento estava o major Edmundo Macedo Soares, do gabinete do Ministro Macedo Soares, que ao saber que fora dada pela polícia ordem para conduzir e espancar os presos na Polícia Especial, corre ao gabinete do Ministro onde relata os fatos. Macedo Soares, o único ministro que procurou tratar os presos políticos como seres humanos, ordena que sejam levados às prisões de onde vieram e proíbe que sejam castigados. Mas paia o conseguir, o major Edmundo, que levava a ordem do Ministro, tem que sustentar uma violenta discussão com Filinto Müller, o chefe de polícia, que queria se vingar das verdades ditas pelos acusados. O major Edmundo é obrigado a lançar mão de toda a autoridade do Ministro e da sua próprio autoridade de patente superior ao capitão que fora expulso da Coluna Prestes no ano de 24 e que agora se vingava dessa expulsão por covardia e traição, torturando Prestes e seus companheiros.
A voz dos presos, voz alta e magnífica da liberdade, não morreu entre as quatro paredes do Tribunal Militar. Não importa, amiga, que sob a coação da polícia, o Tribunal mantivesse as sentenças condenatórias lavradas pelo Tribunal de Segurança. Nesse dia Prestes havia rasgado caminhos na noite de terror, caminhos pelos quais o povo iria marchar, na luta pela liberdade. Pelos quais marchamos hoje, amiga.
Quando a Câmara dos Deputados e o Senado, amiga, aceitaram, nos últimos dias de 1935, a provocação anticomunista do governo, suicidaram-se, encerraram realmente as suas atividades na vida política do país. Não foi a 10 de novembro de 1937 que o governo liquidou as Câmaras, terminando com a representação do povo. Foram as próprias Câmaras que se liquidaram quando votaram o estado de sítio e logo depois o estado de guerra, em abril de 1936 entregando quatro deputados e um senador à sanha da polícia.
A Câmara e o Senado ainda eram obstáculos poderosos à ação nefanda do governo. Aí os homens de mais coragem denunciavam os crimes da polícia. Através da tribuna da Câmara falaram até os presos políticos, em cartas enviadas das prisões por vias ilegais aos deputados assombrados perante tanta vileza e tanta bestialidade contra os revolucionários. Na Câmara a voz de João Mangabeira, a de Otávio da Silveira, a de Domingos Velasco, a de Abguar Bastos, a de Café Filho, no Senado a impressionante acusação de Abel Chermont. Através dessas vozes livres da Câmara e do Senado, o país foi informado dos crimes que eram praticados. Então a polícia exigiu o estado de guerra. A prisão de Prestes era o seu trunfo. Falsificou documentos, pressionou, o integralismo agitou-se num mar de provocações. Os deputados e senadores amedrontaram se e votaram o estado de guerra. E, mal o votaram, sentiram os efeitos. O primeiro golpe vibrado com a nova arma foi contra a Câmara e contra o Senado. Na mesma noite da decretação do estado de guerra quatro deputados eram presos e um senador era preso e agredido na polícia.
Apoiada nos oligarcas desejando uma ditadura, apoiada no integralismo que via abrir-se para ele as portas do poder, já que era cada vez mais o partido em que o governo e reação se sustentavam, apoiada internacionalmente na Alemanha e no pacto antikomintern, o nazismo cantando loas ao governo brasileiro, Hitler pondo trezentos aviões à sua disposição se deles necessitasse para reprimir qualquer movimento democrático, Hitler recebendo o presente do acordo dos marcos compensados (realizado por um integralista), apoiada por um pequeno grupo de altas patentes que conspirava com os integralistas, a reação governamental atingiu seu momento culminante.
A preparação do golpe de 10 de novembro começou em 1935, quando o governo criou para a palavra "comunismo" a mais ampla acepção. Comunista era todo aquele, democrata, liberal ou socialista, homem de esquerda ou homem de centro, que se opunha aos desmandos do poder. Nas prisões abarrotadas estava gente de toda cor política. Agora não eram somente os aliancistas e os revolucionários de novembro que sofriam torturas nos cárceres. Os oposicionistas de todos os matizes eram englobados dentro da mesma definição: comunistas. O prefeito do Distrito Federal, Pedro Ernesto, médico que alcançara uma larga estima da população devido à sua gestão preocupada com a saúde e a educação do povo, pagava no cárcere a sombra que, com sua popularidade, fazia aos fascistas. Anísio Teixeira, Secretário de Educação do Distrito Federal, responsável pela obra educacional aí realizada, teve que se demitir da Secretaria sob a acusação de "comunista". O governo usava agora dessa provocação para se manter no poder.
O integralismo conspirava. Apoiava o governo, mas ao mesmo tempo almejava o poder. O chefe de polícia e alguns generais eram comensais da mesa de Plínio Salgado e viam nele o homem que poderia realizar os seus sonhos: o Brasil ligado definitivamente à sorte da Alemanha, o Brasil fascista.
Mas Vargas também se dava conta do que se passava. E, se utilizava o integralismo, não tinha o menor desejo de entregar-lhe o poder. Por outro lado, por maiores que fossem as suas concessões ao imperialismo alemão, ele tinha profundas obrigações para com os Estados Unidos. Era um jogo complicado e sutil, realizado à base da perseguição contra todos os democratas.
O povo, acorrentado e emudecido, esperava cada momento de aragem democrática para se manifestar amplamente. Assim, quando Juraci Magalhães, remanescente do "tenentismo" que continuava no governo da Bahia, fecha o integralismo nesse Estado, após pôr à mostra uma conspiração dos "verdes" contra o governo, o povo o apoia entusiasticamente. Foi essa pressão popular, essa angústia que se transformava em gritos, que abriu os olhos da Câmara e do Senado fazendo com que, ao terminar o prazo do segundo estado de guerra, não fosse concedido o terceiro. O período governamental de Vargas se aproximava do fim e o povo correu às ruas na vibração de duas candidaturas democráticas. Parte dos presos políticos sem processo é posta em liberdade. O Brasil começa a respirar e a respirar profundamente, o amor à liberdade é um sentimento profundo no coração desse povo, amiga.
As candidaturas à presidência em 1937, com as campanhas que as rodeavam, eram a prova mais cabal do amor à democracia e à liberdade, por parte do povo brasileiro. Dois candidatos se apresentaram: o governador de São Paulo, Armando Sales de Oliveira, e o então ministro do Tribunal de Contas e ex-ministro da Viação, José Américo de Almeida. Também o integralismo fez do seu ridículo führer candidato. Em torno das duas candidaturas democráticas o povo se juntou em comícios memoráveis. Na Esplanada do Castelo, José Américo leu a sua plataforma popular. Foi uma tarde de delírio. Por seu lado, Armando Sales prometia uma administração liberal, onde não se renovassem os crimes do governo de então. A campanha se desenvolvera dentro de um ambiente de exaltação democrática, o povo acorrendo com um entusiasmo transbordante aos comícios, às juntas eleitorais para se alistar, o povo querendo respirar. É o momento em que Macedo Soares substitui Rao no Ministério da Justiça, visita os presos políticos, interessa-se pela sua sorte, abre luta contra o chefe de polícia.
José Américo reuniu em torno da sua candidatura o povo pobre do Brasil. Pela voz do integralismo, as grandes companhias estrangeiras fizeram espalhar o boato que também José Américo era "comunista". José Américo vinha do nordeste dramático das secas e da miséria total. O povo brasileiro primeiro o conheceu como romancista, descrevendo a vida desgraçada das populações nordestinas, iniciador de toda a literatura moderna do Brasil. A Bagaceira, seu romance clássico, andava pela sétima edição em poucos anos, milhares de exemplares devorados pela gente ansiosa de conhecer a verdade sobre a vida do Brasil. Agora é a ele que o povo vai buscar como seu candidato. Homem de integridade jamais discutida, com uma enorme vontade de acertar, homem do povo, tendo saído dele, artista que havia vivido os problemas da terra e do homem, ele respondia, sem dúvida, aos melhores anseios de libertação do povo brasileiro naquele momento.
A parte da massa que não apoiava José Américo estava com Armando Sales, governador de São Paulo, interessado nos problemas do país, homem culto e político hábil, governante preocupado com a cultura, com a infância, tendo realizado na sua administração em São Paulo obras culturais e sociais de certa envergadura. Realmente essas candidaturas não resultavam apenas de conchavos políticos. Um calor popular as cercava. Elas demonstravam quanto estava vivo no coração do povo o amor à liberdade e à democracia.
Então Getúlio procura o apoio de Plínio Salgado. Em torno de si o Chefe de Polícia, Góes Monteiro, Dutra e Newton Cavalcanti, os oligarcas. Macedo Soares demite-se, Getúlio chama Francisco Campos, que surge com uma Constituição fascista sob o sovaco jurídico. As entrevistas entre Plínio e Campos se sucedem, o integralismo é a base de massa em que Getúlio vai apoiar-se para o seu golpe de Estado.86
Nesse momento faltou mais uma vez unidade às forças democráticas do país. Quando já era mais que evidente que Vargas, sob os aplausos dos países do eixo e com a cooperação das forças políticas desses países no Brasil, respaldado no integralismo, ia dar um golpe de Estado de molde fascista, os democratas divididos nas duas candidaturas não souberam unir-se. Tinham na mão os três Estados mais poderosos do Brasil: São Paulo, do qual era governador um dos candidatos, Armando Sales; Rio Grande do Sul, onde Flores da Cunha o apoiava, e Bahia, onde Juraci Magalhães era o campeão da candidatura José Américo. E com Juraci estava Carlos Lima, governador de Pernambuco.
A união das forças democráticas, que as esquerdas, que os homens de Prestes aconselhavam, teria impossibilitado o golpe do Estado Novo. A fraqueza do governo era evidente. Sua política internacional, de franca simpatia pelo Eixo, fazia com que os Estados Unidos desconfiassem dele. Faltou exclusivamente tato político aos candidatos e aos que os apoiavam. As esquerdas gritavam por união democrática como a fórmula única de salvação. Os políticos se obstinavam em manter as duas candidaturas. O governo mais uma vez lançou contra elas — contra as duas ao mesmo tempo — a acusação de estarem dirigidas pelos "comunistas". Ante a provocação que, se houvesse uma visão clara dos candidatos, daria lugar a uma união de todas as forças democráticas nacionais, os candidatos se apressam a fazer concessões enormes aos provocadores, certos de que esse era o caminho para que houvesse eleições. Os sabotadores se aproveitam das debilidades dos candidatos para lançarem a idéia de modificações do regime.
O integralismo fazia passeatas na rua. Navios alemães deixaram armas nos portos de Paraná e Santa Catarina. Von Cossel, o enviado de Hitler para chefiar sua política no Brasil, havia ganho a medalha de ouro destinada ao nazi que fizesse melhor trabalho no estrangeiro. Ele não só havia criado 87 núcleos nazis de grande importância entre os alemães do Brasil, como havia formado o Partido Integralista.
Góes Monteiro surge com um documento ridículo e cretino, atribuído ao Komintern, com os planos mais idiotas para uma "revolução comunista no Brasil". Esse "documento" é enviado à Câmara e ao Senado. Francisco Campos nesse momento estuda com Plínio Salgado a Constituição corporativa do país.
As Câmaras, que já haviam iniciado seu processo de suicídio em 1935, o completam agora votando mais uma vez o estado de guerra. Ainda havia tempo para uma união das forças democráticas. Os elementos da esquerda, cuja visão não se havia obscurecido e que enxergavam o perigo, procuram convencer os chefes democráticos das duas correntes da urgente necessidade de uma frente única.87 Mas os candidatos à presidência confiam nas garantias de que as "eleições presidenciais se realizariam". Acreditam nessas garantias e na que lhes dá a pequena ala integralista do exército, que era a autora do documento. Em vez de se unirem, os candidatos fazem novas concessões, declaram que estão dispostos — eles também — a combater o suposto "perigo vermelho".
Diante do que os integralistas saem à rua, armados de punhais, ornados com a cruz suástica, com fuzis alemães, Newton Cavalcanti é enviado para fechar as Câmaras, e Vargas dá, tranqüilamente, o golpe de Estado. A 10 de novembro é comunicado ao país e ao povo que já não existe a República do Brasil, agora existe o Estado Novo corporativo, com uma constituição copiada da italiana e da portuguesa, sob os ardentes aplausos e votos de felicidade da Alemanha e da Itália.88 Vão começar, amiga, os anos ainda mais desgraçados do Estado Novo. O Estado Novo se caracteriza pelo desejo de arrancar do brasileiro todas as suas qualidades de caráter. É o regime do suborno, da absoluta e cínica despreocupação pelos interesses do país e do povo, é o regime da servilidade, da bajulação e da torpeza no seu máximo. Tirania na América. Degradante e criminosa.
Um dia. amiga, quando ele cruzava os ínvios sertões na epopéia da Coluna, o povo desesperado o chamou de Cavaleiro da Esperança. Esperança do Brasil, do povo pedindo liberdade. Estrela da manhã na noite de desgraça, rio de águas límpidas em meio à seca que mata os homens, coração humano entre os corações de feras de instintos desencadeados. Com o Estado Novo, amiga, nos dias de desgraças sobre o Brasil, transbordamento de lama e de vilania sobre a Pátria, novamente dos quatro cantos, do norte, sul, este e oeste, o povo desesperado, esfomeado e amarrado a cadeias, o chama de Cavaleiro da Esperança.
Um dia, amiga, na marcha da Coluna, ele encontrou um homem em Goiás, amarrado a um tronco, os pés e as mãos e o pescoço. Fazia onze anos que um juiz bêbedo o condenara apesar da sua inocência. Com o Estado Novo também, amiga, o povo do Brasil se encontra amarrado num tronco, os pés, as mãos e o pescoço. Pés, mãos e pescoço, amiga, mas não o coração. Livre, livre como o vento, como a estrela e o mar, o coração do povo brasileiro pulsa com o seu Herói, pulsa pela liberdade, livre coração rebelde. Na prisão imunda, incomunicável e torturado, enfermo e longe de todos os seus, sobre ele a infâmia de acusações odiosas, sofrendo todos os martírios que pode inventar a imaginação doentia dos vermes traidores, Luiz Carlos Prestes, Cavaleiro da Esperança do Brasil, tem o coração livre, pulsando pelo seu povo, pulsando pela sua pátria, pulsando pela liberdade. Seu coração de aço e sangue, humano e inquebrantável. Gênio e Herói, escrevendo com sua grandeza infinita o maior poema da raça brasileira. Nos versos de Castro Alves se construiu a liberdade do Brasil. Nos atos de Luiz Carlos Prestes, nos anos de ontem na epopéia da Grande Marcha, nos anos de hoje na epopéia da sua dignidade na prisão e no sofrimento, a liberdade se alimenta e se faz carne e sangue do povo brasileiro. Do coração livre de Luiz Carlos Prestes se estende a liberdade sobre o Brasil. Ela é, amiga, essa estrela nova, de rutilante brilho, que enxergas no céu da Pátria.
Nas casas pobres do interior desgraçado, amiga, a liberdade vive, luz vermelha das velas que ardem iluminando o retrato do Herói. Vive no carinho com que guardam os objetos que ele tocou, na voz dos pobres todos chamando por ele, dos camponeses que já não viram bandidos. No coração do povo, amiga, gravada com a força do heroísmo está a inscrição que nenhum sofrimento apaga: "Povo, o teu Herói é o Cavaleiro da Esperança." Inscrição que se aprofunda a cada dia, a cada ato da traição dos quinta-colunistas, a cada gesto coberto de nobreza do prisioneiro de coração de aço.
Sangue do seu coração alimentando o Brasil. De Luiz Carlos Prestes, negra, nos alimentos de esperança, de confiança, de coragem. A lama da vileza, a dor das torturas, a sujeira dos subornos não podem caber nos nossos corações lavados de toda a indignidade pela dignidade de Luiz Carlos Prestes.
De entre a podridão e o sofrimento, amiga, da mais sórdida podridão e do mais profundo sofrimento, Luiz Carlos Prestes se levanta, sua figura imensa, sua grandeza sem par. O poeta disse, amiga, que a liberdade, cada vez que a tirania a pisoteia e a martiriza, mais forte do chão se levanta. Assim Luiz Carlos Prestes. Eis o Herói, amiga, aquele que o povo concebe, alimenta e cria. Eis o filho do povo, a imagem do povo, a quem os sofrimentos não dobram, as ofertas dos tiranos não tentam. Eis a liberdade de pé entre as grades, vivendo no coração dos homens de pés e mãos atados. Sobre os homens pequenos e miseráveis que se banqueteiam com a carne do povo, eis que Luiz Carlos Prestes se alça, a liberdade com ele, com ele a esperança. Com o povo, amiga, sobre os tiranos, sobre os sofrimentos, sobre a miséria, sobre o terror, o Cavaleiro da Esperança.
Já te disse, amiga, que a prisão e os sofrimentos despem os homens de todos os sentimentos exteriores e superficiais. Fica tão-somente o que está profundamente arraigado no coração do homem preso e torturado. Ai daquele, amiga, que traga apenas a máscara de homem digno, de homem de caráter, de amigo da liberdade e do povo! Ai daquele, negra, que traga a máscara de Herói! Ai dele no dia da prisão e do sofrimento. Essa máscara de enganos cairá ante os primeiros sofrimentos, ante as primeiras ofertas sedutoras e vis. Só aquele que tem um coração de aço e um caráter de bronze, a liberdade no peito, o heroísmo como uma condição de vida, só esse se conservará na sua altura de homem, na prisão e no sofrimento. Assim Luiz Carlos Prestes, Herói do Brasil!
Ninguém mais temido que ele, amiga. Adorado pelo povo, acreditado como ninguém o fora antes. Então os tiranos que desejam enganar o povo o quiseram comprar. Em meio aos sofrimentos lhe ofereceram tudo: o poder, a glória, o conforto, a alegria do mundo. Tudo, Contanto que ele se colocasse contra o povo. Ele nada aceitou, não houve ouro que o comprasse, não houve alegria que o dobrasse. Então tudo lhe fizeram, todos os sofrimentos, todos os insultos, a bestialidade solta contra ele. Ele não se dobrou, sua cabeça altiva, seu coração de aço, coração do povo.
Esse não traz a máscara de Herói posta sobre o rosto num engano trágico. Este é o Herói, aquele que foi alimentado, concebido e criado pelo povo e que, agora, alimenta o povo com o seu coração e com a sua grandeza.
Assim é o Herói, amiga. O povo o concebe, é o filho do povo. nasce das suas necessidades. E depois, na frente do povo, na frente da liberdade, é o pai do povo, alimentado-o com seu exemplo e seu valor.
Amiga, é dele que vivemos. Dele vem a esperança que respiramos, a nossa força de luta. Nos seus ardentes olhos nós vemos o futuro do Brasil. Esses olhos que as grades da prisão, que o emparedamento em vida, que a impossibilidade de ver as paisagens do mundo e as paisagens dos homens, não limitaram na sua perspectiva magnífica. Ele está de pé, é o Brasil quem está de pé, a liberdade também. Nunca se curvou, nunca se vendeu, não se vende, nem se curva a liberdade, amiga. Ela é milenar como o homem, é eterna como o gênio e a memória dos Heróis. Ela é o povo, amiga. É Luiz Carlos Prestes. Ele nasceu com o primeiro herói da terra brasileira, não morrerá nunca porque o povo não morre.
Vivemos dele, nós, o povo. Os escritores do povo, voz da gente escravizada. Vivemos dele, nós, o povo, os soldados, os camponeses que o viram já duas vezes sob os céus do Brasil. Os operários que ele conduz, os ricos e os pobres, todos os que amam a liberdade e a pátria. É dele que vivemos. Nos alimentamos da sua dignidade, do seu caráter límpido, da sua inteireza moral, da força da sua confiança, da sua superioridade no sofrimento, da sua certeza no povo do seu gênio. Todo o Brasil vive desse prisioneiro, nunca um homem foi tão grande nos dias de desgraças como Luiz Carlos Prestes. Mesmo aqueles que pensam noutros nomes quando pensam no futuro do Brasil, mesmo esses se alimentam de esperança, do exemplo de Luiz Carlos Prestes. É ele quem permite o sonho do Brasil, quem possibilita a existência da dignidade sobre a lama, da liberdade da noite de terror.
Herói, amiga! Essa coisa tão grande, tão bela e tão difícil! Herói! Hoje como ontem, como amanhã, é nele que esperamos. O povo, um dia, o chamou de Cavaleiro da Esperança. Mais que nunca, hoje, como um grito, como um clamor, esse nome sobre o Brasil. Como uma luz na noite de desgraça. Cobrindo o desespero e a miséria. Rasgando estradas de libertação. Como uma luz na noite. Como um farol em meio ao mar de naufrágios, como uma estrela no céu de tempestade, como um coração latejando de amor. Cavaleiro da Esperança.
O povo do mundo inteiro, amiga, protestou contra a prisão brutal a que o submeteram. Na Polícia Especial ele vira monstruosidades sem conta, sofrerá sofrimentos indescritíveis. Os seus companheiros espancados à sua vista, os juizes que entraram para o julgar declarando que o vinham condenar numa farsa ignóbil, sem poder escrever para sua esposa, para sua mãe, para suas irmãs, sem saber sequer se sua filha havia nascido, se Olga estava ainda viva na prisão alemã. Sem se comunicar com ninguém, impedido de ver até seu advogado.
Um dia mudaram-no de prisão. O protesto do mundo amedrontava os tiranos. No coração dos tiranos só há lugar para o ódio ao povo e para o medo ao povo. Quando o povo saiu à rua nos dias da campanha presidencial de 37, transferiram Prestes de prisão. O povo do Brasil, e os povos livres de todo o mundo protestavam contra o seu encarceramento entre as torturas da Polícia Especial. Construíram então na Casa de Correção, no pavilhão dos tuberculosos, na enfermaria, uma cela para Prestes. Cela medieval, de paredes grossíssimas como as de um castelo antigo, triangular, sem ar e sem luz, a pequena abertura gradeada, coberta com tela de arame para que fosse impossível ao preso vislumbrar a luz exterior. Essa abertura olha para um pequeno pátio da Penitenciária. Não dá para a rua, para que assim ele não possa nunca ver o movimento das gentes lá embaixo. Porta de chapa de ferro. Devido aos insistentes protestos do mundo inteiro e aos protestos do seu advogado ex-officio, entregaram-lhe algumas cartas de sua mãe e de sua esposa. E permitiram que de quando em vez ele lhes escrevesse.
Um homem, amiga, de coração e de coragem, lutara por ele no Brasil. Não pode existir um brasileiro amigo da liberdade que não sinta simpatia por Sobral Pinto. Esse foi indicado pela Ordem dos Advogados para defender ex-officio Luiz Carlos Prestes. Era um advogado de larga tradição no foro do Rio de Janeiro. Católico que ouviu realmente as palavras de Cristo, que não andava nas igrejas apenas para conquistar mais um título com que subir junto aos donos do poder, católico que não explora o nome de Cristo como uma desculpa para infâmias e misérias, verdadeiro cristão, ele compreendeu que estava ante um novo Calvário e soube sentir toda a grandeza que vinha desse prisioneiro. E soube, fiel à sua missão de advogado, honrando uma carreira tão desmoralizada por outros, honrando uma religião e um Deus que outros tantas vezes têm vendido, soube lutar para que o seu defendido, os seus defendidos, já que sobre os seus ombros caiu também a tarefa de defender Harry Berger, fossem tratados como seres humanos. Não o conseguiu, a miséria dos homens é espantosa. Porém, apesar de injuriado, de incomodado de todas as maneiras, de desacatado e de ter que lutar com os policiais, apesar de processado, ele não se amedrontou e continuou lutando.
Quando foi entregue a ele a defesa de Prestes, os que só conheciam os católicos que vendiam Cristo diariamente nos leilões públicos dos empregos e das ambições, acreditaram que Sobral Pinto iria ser um títere a mais na farsa trágica que se representava. É que não conheciam esse católico, esse cristão, esse homem. Como ele soube admirar e compreender Prestes! Como tem sabido defendê-lo! Mil vezes tem protestado, mil vezes tem-se dirigido aos poderes competentes, mil vezes tem-se batido pela justiça. Esse tem honrado no Brasil a palavra catolicismo e o nome de Cristo.
Quando, em 1937, o ministro da Justiça visitou Prestes no seu cubículo da Polícia Especial e lhe comunicou que ordenara a sua transferência para a Casa de Correção, Prestes lhe fez um pedido que dá uma marca da sua grandeza. Berger estava louco, uma psicose de situação, para ele mais que ninguém era necessária a transferência de presídio. E então Prestes pede ao ministro que em vez dele seja Harry Berger o transferido. Também, tempos depois, já na Correção, quando as autoridades brasileiras respondiam a Sobral Pinto que não davam um tratamento adequado a Berger porque esse não tinha com que pagar casas de saúde e médicos, Prestes pôs à disposição de Berger todo o dinheiro que tinha consigo, que sua mãe lhe havia enviado do exílio. Mas, como se tratava apenas de um pretexto das autoridades, não aceitaram e até hoje Berger continua na mesma situação.
Construíram uma cela especial para Prestes. Próximo aos tuberculosos para ver se assim ele contrai a enfermidade e morre. Paredes grossíssimas, paredes construídas pelo medo de que o povo o liberte. E dividiram essa cela ao meio e num dos lados puseram um investigador que o vigia dia e noite. Próxima está a cela de Harry Berger. Essa presença humana, amiga, tão trágica, é a única que Prestes sente próxima a si. O seu amigo e companheiro que enlouqueceu. O companheiro estrangeiro que ele trouxera consigo, que a polícia levara à loucura e à tuberculose com as torturas bárbaras. Berger passa os dias batendo com a cabeça contra as paredes, narrando as torturas que sofreu, que a esposa sofreu, fazendo comícios em inglês, gritando de súbito como se estivesse vendo a esposa ser martirizada, trágica presença ao lado de Prestes, separada dele apenas por uns quantos metros. Na mesma galeria da prisão, só os dois e os carcereiros. Prestes vê quando, após cinco ou seis dias de gritos, de clamores, de romper a cabeça contra as paredes, de Berger se exaltando na sua loucura, vê quando os policiais passam para dar-lhe as injeções que o farão dormir durante dias e que apressam a sua morte. A presença trágica de Harry Berger louco é a única presença humana que Prestes sente diariamente. Imagina, amiga, o tamanho do seu sofrimento cotidiano, sofrimento que dura desde há quatro anos, desde que o transferiram dos outros sofrimentos na Polícia Especial.
Uma célula à "prova de fuga". Escura, fria, doentia. Com guarda à vista, num pátio próximo, com um tira ao lado. Nenhuma visão humana lhe é permitida. Nenhuma visão da natureza tampouco. Durante os dois primeiros anos, os anos da Polícia Especial, nenhum jornal, nem um livro, nem um lápis com que escrever. Hoje permitem-lhe um jornal que passa, apesar de todos os jornais do Brasil serem censurados, por uma nova censura da polícia. Um que outro livro deixam-no ler. Mas não permitem que escreva o livro de matemáticas que ele deseja escrever para a mocidade do seu país. A sua correspondência com a família vive sujeita aos caprichos da polícia. De quando em vez a proíbem. Por meses e meses ele fica sem nada saber de sua esposa, sem nada saber de sua mãe e de sua filha.89
Assim é a sua vida, amiga. Vida de torturas e de martírios. Certa vez ele escreveu a Dona Leocádia: "Oh! se eu pudesse ao menos gozar da tranqüilidade que é de supor existisse no isolamento total a que estou condenado..."
Porque nem a tranqüilidade existe, amiga. Os processos com que procuram afastá-lo do povo continuam. Tiram-no da prisão para ser ouvido acerca de acusações sórdidas e infames. O Chefe de Polícia demite e prende um Diretor da Casa de Correção porque este não perseguia Prestes como ele desejava. E nomeia outro, um homem que se celebriza por sua brutalidade quando diretor da Colônia Correcional de Dois Rios, o presídio de mais tenebrosa memória.90 E durante dia e noite, dia e noite de incertezas sobre a vida dos seus, sobre a vida do Brasil e do seu povo, ele ouve ao seu lado, na cela próxima, a presença de Harry Berger, falando, narrando aos gritos as torturas a que sujeitaram Auguste Elise Ewert. Assim vive Prestes, amiga.
Nada lhe é permitido. Sequer falar com seu advogado para se defender dos contínuos processos que lhe movem. As cartas que lhe escreve ficam dias e dias nas mãos da polícia.91 Assiste aos funcionários policiais se lançarem contra o seu advogado para tomarem-lhe à força documentos. Assim e a sua vida, amiga.
Aqueles presos doentes, que estão nas proximidades da sua cela, vivem na revolta do que fazem com Prestes. Um cabo da Polícia Militar, prisioneiro comum, de nome Diogo, condenado por crime cometido no quartel, que contraiu a tuberculose na prisão, viveu meses e meses nas proximidades da célula de Prestes. E sentiu a grandeza do espetáculo da imensa dignidade do prisioneiro. E fez dele seu ídolo, apesar de nunca o haver visto, apenas pelo que sentia processar-se em torno de si. Esse preso presencia diariamente um dos guardas da penitenciária negar tudo que lhe pedia Prestes, as coisas mais simples e mais necessárias à vida humana. O cabo duas vezes chamou a atenção do guarda. Perguntava-lhe por que ele fazia aquilo. O guarda ria na sua cara, continuava na sua profissão mesquinha. Um dia o cabo, preso e tuberculoso, não resistiu. Se atracou com o guarda, deu-lhe até que o ódio que enchia seu coração se tornasse menor. Os presos comuns têm um respeito imenso por aquele prisioneiro invisível. Tudo fazem para melhorar a sua vida.92
E os presos políticos, os que estão solidários com Prestes e são seus soldados, todas as vezes que podem, fazem chegar até ele a expressão da sua solidariedade e da sua esperança. Todas as noites, reunidos, saúdam num grande grito o seu chefe preso. Quando partiram da Casa de Correção para o inferno de Fernando de Noronha, arrancados de surpresa da cama tarde da noite, sem saber para onde iam sendo levados, temerosos de que fossem para as geladeiras da polícia, para novas surras, cercados por tiras e por homens da Polícia Especial metralhadoras dentro do pátio, eles não saíram sem fazer uma manifestação ao seu general. Eram duas horas da manhã e os que iam para a vida entre as enfermidades em Fernando de Noronha, a ilha fúnebre no meio do mar, saíam entre os soldados um a um. Iam calados. Mas quando passavam pela enfermaria, junto ao calabouço de Prestes, todos pararam e o grito encheu a penitenciária:
— Viva o general Luiz Carlos Prestes!
Mas estas coisas, esses protestos de solidariedade, o carinho do povo brasileiro, os protestos do mundo inteiro irritam os traidores, fazem com que eles se vinguem na pessoa de Prestes.
Não têm coragem de fuzilá-lo, sabem que o povo se levantará. Não têm coragem de matá-lo de encontro a um muro, têm medo do povo. Então querem matá-lo aos poucos, querem enlouquecê-lo. Para isso puseram Berger ao seu lado, não deixam que ele fale com ninguém, dão-lhe uma comida contra-indicada para os seus males do fígado, puseram-no no pavilhão dos tuberculosos. Para matá-lo ou para enlouquecê-lo, castigam-no tirando-lhe o direito de escrever e de receber cartas, de ler jornais, de ler livros. Dão-lhe uma comida miserável, negam-lhe um tratamento de ser humano.
Mas, ah!, amiga, os carcereiros não sabem medir os homens. Os traidores e os tiranos, os inimigos do povo sobre o povo, não sabem de que barro são feitos os heróis. Não sabem que força estranha corre pelo sangue de homens como Luiz Carlos Prestes! Pensaram em comprá-lo, não o puderam comprar. Pensaram em dobrá-lo, não o puderam dobrar. Pensam em matá-lo mesquinhamente, covardemente. Pensam em enlouquecê-lo. Ele resiste, amiga, é o povo brasileiro quem resiste, é a liberdade que resiste. Seis anos já vão de torturas sem fim, de martírios sem conta. Seis anos em que ele salvou a dignidade da Pátria, elevou bem alto o caráter, a força, a coragem de um povo. Os tiranos, amiga, esquecem que ele é o Herói do povo, o Cavaleiro da Esperança, que é imortal como o povo. Mas o povo, esse que já o viu duas vezes sob o céu da Pátria, sabe que o verá pela terceira vez, no seu cavalo negro, rasgando os caminhos da liberdade. Rotas as grades da prisão, terminados os dias de dor e de desgraça sobre o Brasil. Ainda o veremos, amiga, o Cavaleiro da Esperança!
Haviam-no condenado, amiga, a 16 anos e 8 meses de prisão. Dessa prisão pior que a morte, incomunicável, sofrendo todos os castigos, tratado como um animal feroz e não como um ser humano. Mas a sua grandeza no sofrimento era um espetáculo que animava o povo e o fazia odiar ainda mais a tirania. Mais que nunca o povo via naquele prisioneiro o seu líder, o seu chefe, o seu general, o seu Herói.
Dezesseis anos e oito meses. . . Era pouco, amiga, para o ódio que lhe tinham, era pouco para o medo que lhe tinham. Os que rodeados dos seus sabujos tremem à simples menção do nome de Luiz Carlos Prestes sentiam o ódio do povo até eles, o amor do povo até o prisioneiro inquebrantável. O povo, que odiava a ditadura, odiou ainda mais o Estado Novo de molde fascista. O clamor pela liberdade de Prestes subia do país, chegava do estrangeiro, a tirania tremia no seu medo de morte. No seu medo de morte à liberdade, ao povo, a Luiz Carlos Prestes.
As farsas preparadas pelos tiranos, como grandes golpes teatrais, só não são risíveis porque são trágicas, porque se vestem do sangue do povo. Assim a farsa que imaginaram para afastar o povo de Luiz Carlos Prestes. Ridícula, porque nem perceberam que o povo não acreditava neles, a sua palavra não lhes merecia nenhum crédito. Ridícula, porque não perceberam que jogando lama sobre o líder do povo essa lama iria cobrir os que a atiravam. Esqueceram-se de que ninguém pode cuspir sobre o que está muito mais alto que ele. Assim, amiga, aconteceu no Brasil. Seria ridículo e cômico se não fosse trágico.
Um dia a polícia anunciou ao povo que Luiz Carlos Prestes era responsável por um assassínio. O povo riu na cara da polícia, riu dos "documentos" apresentados. Desde há muito o povo conhecia a gênese desses "documentos". À base de um deles fora implantado o Estado Novo. Apoiando-se em sórdidos traidores vendidos, mais sórdidos que os próprios policiais, aproveitando a imprensa sob censura, o rádio sob censura, o livro sob censura, aproveitando o tribunal fantoche, o terror policial que impede que se possa falar, o governo inicia o processo absurdo. Como uma estrela no céu, o vulto poderoso de Luiz Carlos Prestes na sua dignidade, na sua decência jamais abalada. Imagina a cena, amiga. Os verdugos. cercados dos gigantescos policiais encomendados de propósito, a cuspir para o céu na esperança de atingir o rosto do Herói. E o cuspo a voltar, a cair no rosto dos verdugos e dos seus acólitos, lavá-los de lama.
Acusavam Luiz Carlos Prestes de ser o autor intelectual da morte de Elza Fernandes, uma jovem que fora detida em 35. Ninguém soube como morreu Elza Fernandes. Soube-se, sim, que ela foi presa em 1935 e que desapareceu na polícia. Depois da prisão de Prestes, em 1936, a polícia um dia tentou levantar, como uma pedra de escândalo, o mistério do seu destino. Mas estava fresca na memória das gentes a prisão de Elza e os anteriores assassinatos praticados nos subterrâneos e nos calabouços da polícia. Seria muito perigoso atribuir naquela hora a sua morte aos revolucionários. A polícia não pôde levar a provocação adiante. Mas, em 1940, a desenterrou nos arquivos da Central e declarou que ela havia sido assassinada pelos revolucionários a mando de Luiz Carlos Prestes. Sob torturas e promessas uns quantos indivíduos declararam que era verdade. A polícia empunhou uma carta que disse ser de Luiz Carlos Prestes. Se bem a carta não falasse em nenhum momento nem em Elza Fernandes nem em morte, falsificação grosseira como os demais "documentos" do Estado Novo. Ela foi o motivo da condenação de Luiz Carlos Prestes a mais 30 anos de prisão, perfazendo um total de 46 anos e 8 meses.
Na sua estupidez ou no seu desprezo pela inteligência do povo, os falsificadores datam a carta de quando Luiz Carlos Prestes estava preso no quartel da Polícia Especial, isso é, quando estava totalmente incomunicável, de sentinela à vista, sem nenhum objeto com que escrever, nem um lápis, quanto mais caneta e tinta. . . Mas é, amiga, que a polícia não podia datar esta carta de antes, já que toda a gente sabia que Elza estava presa naqueles dias de 1935 e 1936. A sua liberdade foi anunciada após a prisão de Prestes. Não era, pois, possível à polícia dar à carta falsificada uma data que não fosse posterior à sua anunciada liberdade. E então já estava Prestes preso, incomunicável no quartel da Polícia Especial.
À base desse "documento" ridículo o Tribunal de Segurança o condenou a 30 anos de prisão celular. Não admira, amiga, porque esse não é um tribunal. É um balcão onde a justiça é vendida por baixo preço.
Primeiro quiseram fazer sensação para ver se assim afastavam de Prestes o amor do povo. Os traidores, que haviam saído das torturas para virarem galãs de cinema em filmes de provocação, se masturbaram em sensacionais estrevistas à imprensa onde, com um absurdo luxo de detalhes, narravam o "seu" crime. Os jornais controlados abriram colunas ao caso escandaloso e sensacional. E para fazerem mais completa a provocação os policiais reuniram uma noite os jornalistas e mandaram buscar na sua cela Luiz Carlos Prestes, que de nada sabia, nem das acusações que lhe faziam, nem da traição daqueles homens que eram feitos do mesmo barro que a polícia. Chegou tranqüilo e sereno, sua cabeça altiva, seus olhos ardentes, suas palavras de fogo. O delegado de Ordem Política e Social exibe-lhe a carta. Os jornalistas se aproximam, os tiras sorriem felizes. Prestes apenas a olha, faz um gesto de infinito desprezo ante aquela sórdida mistificação e diz serenamente:
— Todos conhecem o meu caráter e a minha vida. Podem perfeitamente julgar se-eu sou ou não o autor disso.. .
Eis um homem, amiga, que sempre tomou a responsabilidade completa dos seus atos e dos atos realizados devido a ordens suas. Nunca fugiu a essa responsabilidade em momento algum. Ainda em 36 tomou toda a responsabilidade do movimento de novembro de 1935. Se tivesse ele alguma coisa a ver com a eliminação de uma revolucionária que a polícia declarava traidora, ele não a negaria, não a negaria com certeza.
Os jornalistas agora estão convencidos de que Prestes nada tem a ver com a morte de Elza Fernandes, A polícia ainda tenta recorrer aos que havia comprado e que ali estavam para acusá-lo. Mas Prestes nem os olha e sai da sala, sem ligar aos tiras, sem se preocupar sequer com a sua condição de prisioneiro. O delegado está embasbacado, os jornalistas estão entusiasmados. Luiz Carlos Prestes sai tranqüilamente, os tiras só voltam do seu espanto quando ele já está no corredor, onde o vão alcançar para levá-lo novamente para a sua cela triangular no pavilhão dos tuberculosos na Casa de Correção.
Apesar do fracasso monumental da provocação, a polícia leva o processo adiante. Monstruosidade jurídica, um "crime de assassinato" sendo julgado por um Tribunal de exceção.
É que se fosse, como manda a lei, julgado por um Tribunal comum, o júri formado por cidadãos, a defesa com seus amplos direitos, não haveria condenação possível. E o governo, tendo fracassado no seu intento de colocar Prestes mal perante o povo, agora quer vingar-se condenando-o mais uma vez. O processo vai ao Tribunal de Segurança.
O Tribunal está reunido, Prestes chega no carro celular. O povo o vê passar, magro, doente, mas de cabeça altiva, o gesto sereno, um sorriso nos lábios. Não pôde ver o seu advogado um só momento. Deste processo, tudo que ele sabe lhe foi dito naquela noite na polícia nos poucos minutos em que ele estava presente à sessão fracassada onde pensaram em pô-lo no ridículo. O advogado tenta aproximar-se dele, começa a lhe explicar algo, os policiais o afastam brutalmente. O Tribunal dá início à sessão. O juiz que vai julgar Prestes é Maynard Gomes, o ex-tenente revolucionário de Sergipe, que se levantou duas vezes em apoio de Prestes nos anos de 24 e 26. As primeiras palavras de Prestes são para ele.
Esperavam, amiga, vê-lo humilhado perante este Tribunal, a pedir melhoria para as suas condições de prisioneiro, a procurar explicar a burla e a falsificação da polícia, a discutir os "documentos" inventados. Os inimigos do povo preparavam-se para gozar o grande líder humilhado. Triste engano, amiga, daqueles que medem os homens pela sua mesma medida. Prestes primeiro verbara com palavras candentes a atitude de Maynard Gomes, ex-revolucionário que ele encontra agora se prestando ao sujo papel de juiz do Tribunal de Segurança. Maynard esconde o rosto de vergonha, está de todas as cores, não sabe para onde olhar.
E eis que Prestes se volta para o povo que enche o Tribunal, amiga. Escolheram para julgá-lo o dia 7 de novembro, aniversário da Revolução Russa. E Luiz Carlos Prestes levanta a sua voz, mais uma vez fala para o seu povo:
"Quero aproveitar a oportunidade que me dão de falar ao povo brasileiro para render homenagens à data de hoje, uma das maiores de toda a história, dia do vigésimo terceiro aniversário da grande Revolução Russa, que libertou um povo da tirania..."
Os juizes amedrontados mandam que ele se cale. Cassam-lhe a palavra. Mas de entre os assistentes partem os gritos de "Viva Luiz Carlos Prestes!". Uma senhora é presa quando gritava, chorando de emoção, o nome do grande líder. Há um burburinho no Tribunal, o povo aplaude o seu Herói. A polícia retira às pressas Luiz Carlos Prestes e o Tribunal o condena sem a sua presença.93
Aos 16 anos e 8 meses que ele já tinha de pena, juntaram mais 30 anos. Não importa, amiga. Mais valeram as suas palavras saindo desse Tribunal para o meio do povo. Mais valeram os "vivas" do povo ao seu líder, a prisão de uma senhora .que gritava o seu nome. Porque o coração da quinta-coluna estremeceu de medo nesse dia. Nesse dia Luiz Carlos Prestes provou que os anos de prisão e de torturas não abateram seu ânimo, nem a sua fé no povo. E o povo mostrou que nenhuma provocação, por mais suja que seja, é capaz de afastá-lo do seu chefe, é capaz de fazer diminuir, quanto mais apagar, o imenso amor que o povo do Brasil sente por Luiz Carlos Prestes. Condenaram-no a mais 30 anos. Não importa, amiga. Nesse 7 de novembro de 1940 mais uma vez o povo e Luiz Carlos Prestes se encontraram unidos no mesmo amor e na mesma ânsia de liberdade para o Brasil.
Na voz dos poetas, na voz dos líderes, na voz dos sábios, na voz dos governantes, na voz dos artistas, na voz dos jovens, das mulheres e dos homens, o mundo protestou e protesta contra o crime que no Brasil se comete. Uma ditadura tem como prisioneiro o maior líder antifascista da América, gênio e herói do Novo Mundo, Bolívar na nova Independência americana. A humanidade toda protesta, amiga, através das mais ilustres vozes do mundo. Os poetas e os sábios, os governantes, os grandes soldados, os condutores do povo. Um protesto imenso e universal. Grito que vem de todas as partes e ressoa no céu do Brasil, com uma acusação da liberdade contra a tirania.
Da Europa, da Ásia e da América, de toda parte vem esse clamor pela liberdade do Herói. De todas as partes telegramas, cantos, artigos e poemas, comícios e reuniões, pedindo que seja entregue novamente ao carinho da humanidade um dos seus grandes filhos.
A obra imortal de Prestes, seja a obra de militar de gênio, seja a obra de educação social e política do seu povo, rompeu as fronteiras do Brasil para se tornar propriedade de todos os homens do mundo. Assim como os poemas eternos não pertencem a ninguém e são de todos, assim os feitos heróicos são bens de toda a humanidade, amiga. Assim a obra de Prestes. A Grande Marcha da Coluna é um dos orgulhos do mundo militar moderno. O gênio de Prestes pertence aos homens todos, muito tem ele ainda que dar à humanidade, sua prisão não é apenas um crime contra o Brasil. É um crime contra o mundo, amiga, um crime contra a liberdade.
Por isso, de todas as partes mulheres e homens clamam por ele. Protestos, pedidos, poemas e cantos: pela liberdade de Luiz Carlos Prestes. Seu nome em ruas e praças da Espanha Republicana. Seu nome num Comitê de Ajuda à U.R.S.S., em Buenos Aires. Seu nome nos cartazes de comícios antinazistas, seu nome vitoriado pelo povo onde quer que se reúnam homens livres. Seu nome pronunciado na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos, na China onde os guerrilheiros reproduzem os feitos da Coluna, no Chile, no México onde os seus estão exilados, na Tcheco-Eslováquia, na Noruega e na Bélgica. Seu nome em todos os países do mundo como uma bandeira. De todas as partes chega o clamor imenso: liberdade para o Herói! Os poetas o exigem:
"! Libertad para el Héroe! Yo Io exijo
con todos los motores de mi canto.
! Libertad para el Héroe! — grita el mundo,
y hay temblor de estrella en cada mano."
É a voz argentina de Raul González Tunon, amiga. É a voz de Mirta Aguirre, chegando de Cuba:
"Derrota fué de los nazis,
y fué derrota de Vargas.
De impotência y de furor,
con dientes finos de rabia,
los enemigos de Prestes
se mordian las entranas."
É a poderosa voz de José Portogalo, em nome dos operários da América, convidando os homens para libertar o Herói:
"Por Ia paloma herida y por los rios,
y por ti, companero, por tu mano,
por la mia e por tu sangre, rescatemos
al Héroe de la cárcel del tirano;
rescatemos su sangre, su celeste,
su limpio aliento de astro,
ese aliento que suena en las espigas
y se alarga sonoro en los sertões.
Por eso aclaro, amigos
América en un grito ha de salvado!"
Voz dos poetas da América e do mundo. Voz dos escritores e dos sábios: Romain Rolland, André Malraux, Lange-vin, Francês Jourdain, Alvarez del Vayo, Franz Boas, Upton Sinclair, Clifford MacAvoy, Jacques Roumain e os negros do Haiti, milhares de escritores do mundo: Guillén, Neruda. Alberti e Serafín Garcia, os poetas negros dos Estados Unidos, os poetas loiros da Escandinávia. La Pasionaria, em nome do povo da Espanha, Marinelo, em nome do povo de Cuba, Lázaro Cárdenas e o Congresso do México, em nome do grande povo mexicano. Deputados e senadores da Argentina, partidos de várias tendências políticas, deputados ingleses, universitários, artistas de cinema e jogadores de futebol. Dolores dei Rio e Isidoro Langara, senhoras de alta sociedade e operários de fábricas. Grandes diários e pequenos jornais de classe. Escritores reunidos em Congresso na Argentina, escritores criando em todo o inundo. Todos protestando contra a prisão e o martírio do Herói. O poeta Angel Cruchaga Santa Maria, o crítico Luís Alberto Sánchez, o Chile e o Peru. O colombiano César Uribe Piedrahita, o uruguaio Jusualdo, homens de todos os países. Mulheres de todos os países: Tereza Kelman, Sofia Macroff, Maria Rosa Olivier, Lila Guerrero, Júlia Arévalo, Sofia Arza-relo, Maria Luísa Carneli, Clara Porset e Justina de Garay.
E os povos... O povo exigindo a sua liberdade nos comícios e nas reuniões. O povo clamando por ele, o povo contra a ditadura que o assassina lentamente. O mundo inteiro, amiga, exigindo a sua liberdade.
E na frente de todos, magnífica figura de mulher, lutando pelo seu filho, pela vida e pela liberdade de seu filho, vai Leocádia Prestes, setenta anos gloriosos. Vê, amiga, é uma velha mulher de cabelos encanecidos, de rosto marcado pela dor. Quem tem um filho bem pode compreender a sua angústia. Um filho é carne da nossa carne, é sangue do nosso sangue, é o nosso coração vivendo noutro corpo. Extraordinária figura humana essa velha Leocádia Prestes, que, sem um minuto de desânimo, de desespero ou de descanso, luta pela liberdade de Luiz Carlos Prestes, seu filho. Digna mãe de tão grande homem!
Nas terras distantes do México, livres terras de América, vive Leocádia Prestes, setenta anos sem paz e sem alegria. Junto de si sua neta, Anita Leocádia Prestes, filha de um prisioneiro de Müller e de uma prisioneira de Himmler, resgatada por esta velha e pelos povos do mundo das mãos dos assassinos. Essa pequena Anita e essa velha Leocádia vivem no mais brutal e no mais angustioso sofrimento que uma mãe e uma filha possam imaginar.
Desde que seu filho foi preso, Leocádia anda pelo mundo, pedindo pela sua liberdade, lutando pela sua liberdade. Essa velha de quase setenta anos é hoje, amiga, uma das grandes figuras da América. No futuro, quando se falar das mulheres que honraram e dignificaram o Novo Mundo, não se poderá esquecer essa magnífica e esplêndida figura de mãe e avó, clamando pela liberdade do filho, da nora e da neta. Na idade em que a maioria das mulheres estão pacatamente em casa, gozando de toda a felicidade familiar, em torno o espetáculo alegre de uma família nascida do seu ventre, alimentada do seu carinho, nessa idade essa velha Leocádia sai pelo mundo afora, expulsa da sua terra, impedida de voltar a ela, impedida de ver seu filho, de ajudá-lo nas suas horas solitárias de sofrimento, impedida de ver sua nora, de gozar um sorriso da sua neta. Dedicou esses últimos e heróicos anos da sua vida a resgatar de mãos criminosas as suas pessoas queridas.
Primeiro foi a luta pela neta. O maior dos crimes seria deixar essa criança ser sacrificada aos instintos assassinos dos nazis. Eles amariam fazer da filha de Luiz Carlos Prestes. Herói do povo e da liberdade, um monstro nazi, inimigo do povo e da liberdade. Na Europa de há três anos, cheia de tantos problemas, às portas da guerra, na Europa que tinha de ouvir tantas vozes diversas e trágicas, a voz dessa velha Leocádia foi tão poderosa no seu sofrimento que se fez ouvir, Procurou gente de toda espécie, movimentou Paris, visitou todos que podiam fazer algo pelos seus, falou em comícios, ela, essa mãe brasileira acostumada à vida no interior de sua casa. E procurou o povo. Falou para as imensas massas humanas, para a gente pobre que sabe o que é o sofrimento e por isso mesmo o valoriza. E o povo salvou Anita. O povo, com o seu clamor, arrancou essa criança inocente das mãos dos assassinos e a entregou à avó.
Uma vitória do povo mas também uma vitória dessa velha Leocádia, amiga!
Foi ela, a mãe do grande líder antinazista da América, até a Alemanha. Foi até o campo onde sua nora está presa e recuperou a sua neta, se bem nessa hora de infinita alegria seu coração sangrasse, já que nesse mesmo campo ficava Olga, esposa de seu filho, tão cara ao seu sentimento.
Não bastou, porém, a Leocádia essa vitória. Três seres humanos tinha que arrancar de mãos criminosas, e apenas um estava a salvo. Não silenciou a sua voz com essa vitória. Ao contrário, a presença, o calor da presença da neta, lhe deu ainda mais coragem e ânimo. Do México sua voz ressoa para toda a América, para todo o mundo, e tão sofrida e poderosa é essa voz que se faz ouvir apesar dos bombardeios, dos gritos da guerra que enchem os nossos ouvidos. Grita pela liberdade de Luiz Carlos Prestes, pela liberdade de Olga Benário Prestes.
Nós sabemos demasiado, amiga, que inúmeras vozes clamam da Europa, da Ásia, da África e da Oceania, dramáticos gritos pelos sofrimentos causados pela guerra. Mas sabemos também que essa guerra foi gerada e alimentada sobre o mundo pela besta nazi e que, sem que ela seja destruída, a maldade não deixará de ser dona e senhora da terra. Esse imenso grito que vem dos campos de guerra, dos países invadidos, dos países sacrificados, é ao mesmo tempo para nós, americanos, um brado de alerta. Hoje sobre a Europa se estende a desgraça que é o nazismo. E o nazismo acreditou que o dia da América já havia chegado. Mas, amiga, os soldados soviéticos começam a dar fim ao monstro criminoso. E a América se une para combatê-lo. Os nazis pretendem precipitar a desgraça da escravidão sobre as pátrias da América. Por isso, muito mais nos são caras e necessárias hoje a vida e a liberdade dos líderes antinazistas americanos. Daqueles que em nossos países se levantaram e se levantam contra a besta nazi.
Têm num imundo cárcere, no Brasil, um dos maiores líderes democráticos da América. Esse homem tem atrás de si uma tradição mais que heróica, uma tradição épica. Numa pátria de grandes soldados ele foi e é o maior dos soldados, herdeiro de Floriano Peixoto. Numa terra de lutadores pela liberdade ele foi e é o maior dos lutadores, herdeiro de Tira-dentes. Gênio militar, homem de honra, cultivando a dignidade dos líderes antinazistas americanos. Daqueles que em nos-fazer-se amar por milhões de criaturas, o animador, o homem cheio de qualidades humanas, aquele que soube sempre estar junto de seu povo, na frente de seu povo. Luiz Carlos Prestes é uma das garantias de liberdade e democracia na América. Para o povo do Brasil, o meu povo, o teu povo, negra, ele é a garantia da felicidade e por isso o chamaram de Cavaleiro da Esperança. Tê-lo preso, como o têm, é tirar a um povo seu general, é dar à barbaria nazista uma incomparável arma. É um dever das democracias e dos democratas americanos, de todos aqueles que amam a liberdade, a cultura, a beleza e a dignidade da vida, libertar Luiz Carlos Prestes, prisioneiro do fascismo no Brasil.
Não é a minha pobre voz, amiga, de contador de histórias, que lança esses clamores tão verdadeiros sobre a América. É a voz poderosa de uma velha, poderosa voz de mulher e mãe! É um clamor de desespero e de esperança que chega das terras do México, da boca dessa impressionante Leocádia, mãe de Luiz Carlos Prestes, da boca desta pequena Anita, filha que apenas viu sua mãe sofrer num campo de concentração, filha que nunca viu seu pai, que nasceu na prisão e cresce no exílio, longe da Pátria, a quem só terríveis notícias rodeiam.
Podes, amiga, imaginar mais trágica velhice, mais dramática infância que estas de Leocádia e de Anita? De quando em vez Leocádia tem uma carta do filho. É irregular essa correspondência, depende do humor dos que o conservam preso. Por vezes, e não são raras vezes, passam-se meses sem que essa mãe saiba do seu filho. Outras cartas trazem notícias tristes: ele está mais enfermo, nada sabe do mundo, tiraram-lhe os poucos livros que lhe davam, tiraram-lhe os diários. E após uma carta desta se sucedem os meses sem que outras cheguem. E Leocádia sabe que a ela não compete chorar, nem se entregar ao desespero. Que tem que se sobrepor ao seu sofrimento e continuar sua luta pela liberdade do filho.94
Imagina, amiga, essa velha mãe que não tem nem direito de chorar! No tempo da escravidão, no Brasil, um poeta falou sobre as mães negras, aquelas desgraçadas mulheres que não tinham o direito sequer de acarinhar os filhos. Assim está Leocádia. Não permitem sequer que ela volte ao Brasil e vá atender ao seu filho prisioneiro. Nem um direito, nem o de morar no seu país, na sua terra, para estar ao lado do filho. Tem que estar longe, viver na incerteza, seus dias cheios de angústias da chegada de uma notícia fatal. Os carcereiros de Prestes não estão apenas martirizando e assassinando Luiz Carlos Prestes. Estão também martirizando e assassinando uma velha mulher cujo único crime é amar seu filho. Assassinaram-na da maneira mais miserável: deixando-a sempre na dúvida da sorte do filho, sabotando as cartas que ele lhe envia, caluniando o seu nome. É alguma coisa de bárbaro, mas, amiga, atravessávamos no Brasil uma sombria noite de desgraça. Estávamos sofrendo a experiência fascista e assim aprendemos a amar ainda mais a liberdade. Quando o grito que vem da boca dos povos do mundo, que vem da boca de Leocádia e de Anita, da mãe a quem arrancaram o filho, e da filha a quem arrancaram o pai, quando esse grito libertar Luiz Carlos Prestes, nós saberemos, amiga, valorizar a liberdade, já que sofremos a escravidão,
Esse grito pela liberdade de Prestes vem da boca de Leocádia, gloriosa na sua velhice, mas vem igualmente da boca dessa inocente Anita. Imagina, amiga, essa infância: nem uma hora boa, nem uma hora de completa alegria, de completa felicidade. No momento em que sua avó consegue arrancá-la das mãos do nazismo esse mesmo momento é triste, pois em mão dos bárbaros fica sua mãe. E esse, no entanto, é, em toda a sua breve vida, o único momento em que a existência lhe deu algo. Os homens tiraram-lhe pai e mãe, nunca viu sua pátria, o espetáculo de sua avó angustiada e sofredora é a única coisa boa que lhe resta. Assim é a infância de Anita, esperando ver um sorriso nos lábios da avó, consciente já do destino de seu pai e do destino de Olga. Um ser totalmente inocente sofrendo como um criminoso de inúmeros crimes. E essa menina de poucos anos é quem clama ao mundo pedindo pela liberdade de Luiz Carlos Prestes, amiga.
Grito do mundo todo.95 Pela liberdade do Herói. Para que possamos tê-lo ao nosso lado nessa hora terrível de luta contra os inimigos da felicidade do homem, contra os inimigos da beleza, da cultura e da liberdade do homem. Voz que vem dos quatro cantos do mundo, voz dos poetas, dos escritores, dos sábios. Dos líderes, dos generais, dos soldados. Dos almirantes e dos marinheiros. Dos operários, dos camponeses, dos marítimos e dos técnicos. Voz de todos os homens livres, de todas as mulheres de sensibilidade, de todos os jovens do mundo. Voz também, amiga, poderosa e profunda de Leocádia Prestes, mãe gloriosa e martirizada. Voz também, amiga, doce, inocente e sofredora de Anita Prestes, a menina a quem os assassinos arrancaram pai e mãe. Voz também, amigado povo.
Grito imenso sobre o mundo, sobre a América, sobre o Brasil.
Povo heróico do Brasil, amiga! Nos anos de terror o governo tentou plantar no solo da pátria a árvore daninha do fascismo. De 1937 até hoje esse tem sido o desesperado esforço da quinta-coluna. O povo recusou o fascismo, não se entregou jamais, seu livre coração rebelde! Num regime policial, sem nenhuma espécie de direitos, sem garantias sequer de vida, sem leis que o protejam, com a justiça desvirtuada, o povo se opôs ao fascismo, colocou-o no ridículo, se riu dele, impediu que os traidores entregassem o Brasil ao eixo Roma-Berlim, colocou o Brasil na senda dos países democráticos. Esforço heróico de um povo: levar um governo regido por uma Constituição corporativa a abandonar os seus aliados naturais e a apoiar as democracias. Não resta a ninguém amiga, direito de se enganar diante destes fatos. A posição internacional do Brasil de hoje não se deve ao Estado Novo, prenhe de quinta-colunistas, prenhe de germanófilos, indigestado com o apoio do integralismo. A atual posição internacional do Brasil, no que ela tem de simpático às democracias, deve-se ao povo, o povo a quem a Aliança Nacional Libertadora educou politicamente em 1935. A certeza de que esse povo jamais aceitaria ser levado a apoiar os nazis da Alemanha, os fascistas da Itália, os assassinos japoneses é que impeliu os governantes a abandonarem no meio do caminho a fúnebre procissão do Eixo, aventura que seria fatal a qualquer governo. Getúlio Vargas se encontrou numa difícil encruzilhada. As forças comprometidas com o nazismo queriam arrastar o Brasil a uma posição internacional à qual o povo se opunha violentamente. No primeiro momento Vargas pareceu acreditar na vitória alemã e inclinar-se para o Eixo. É o momento dos seus discursos de junho e setembro de 1940. Quando as rádios nazistas respondiam aos discursos do presidente Roosevelt citando trechos de discursos de Vargas. Mas, ao mesmo tempo crescia a reação do povo. Vargas, com o tato político que o caracteriza, soube compreender perfeitamente que o povo do Brasil nunca embarcaria na aventura nazista. Viu com que apoio enorme o povo cercava Osvaldo Aranha que lutava bravamente pela aproximação com os Estados Unidos, por uma política americanista. No seu momento de indecisão, Vargas sentiu a grande manifestação do povo baiano a Juraci Magalhães, líder democrático, sentiu o repúdio do povo a uma política de colaboração com o Eixo. Quando o povo paulista incendiou diários fascistas, Vargas tomou o pulso da opinião nacional e mudou os rumos da sua política internacional. Como terá que mudar os rumos da sua política interna se pretende conservar-se no poder.
No Rio Grande do Sul o povo apoiava entusiasticamente a política antinazista de Cordeiro de Farias e Coelho de Souza. Cordeiro de Farias, comandante de regimento $a Coluna Prestes, desmarcara a infiltração nazi no sul, apesar da guerra que contra ele movem os quinta-colunistas infiltrados no governo.
O apoio do governo ao Eixo tê-lo-ia derrubado. O Brasil se levantaria e partiria para o lado dos povos livres que lutam pela felicidade do homem sobre a terra. Para o lado dos Estados Unidos, lutando contra o nazismo, para o lado da Inglaterra democrática, para o lado dos países invadidos mas não vencidos. Vargas o compreendeu a tempo, ao mesmo tempo que o prestígio militar do nazismo ruía nos campos da U.R.S.S., estraçalhado pelo gênio de Stalin.
Getúlio Vargas conduz então sua política num sentido de apoio às democracias. Mas, apesar de quanto tem feito ultimamente nesse sentido, os quinta-colunistas infiltrados no governo continuam a sabotar sua política. Impediram que de início ela tivesse a eficiência necessária. Getúlio Vargas, sequer realmente uma aproximação com o povo e uma cooperação com ele, terá forçosamente que modificar os rumos da política interna do país. Desmascarar os quinta-colunistas, os elementos nazis, os advogados dos japoneses, os criados da Embaixada Italiana. Terá que democratizar o país, não se pode combater o fascismo tolerando-o em casa. Terá que anistiar os líderes antifascistas que estão presos exatamente porque se levantaram no Brasil contra o perigo fascista.
Como ter preso Luiz Carlos Prestes no momento em que a Pátria corre perigo? Como ter entre grades o maior líder antifascista da América, como ter entre grades o maior general da América, no momento em que se luta contra o fascismo, no momento em que a Pátria em perigo necessita do gênio do seu general? Getúlio Vargas só apagará do povo a desconfiança que este lhe tem no dia em que mudar os rumos da sua política interna. Terá que fazê-lo. O povo o levará a isso, como o levou a apoiar as democracias e a lutar contra o Eixo.
Esse povo aprendeu da boca de Luiz Carlos Prestes que nenhum perigo é maior que o perigo fascista, que nenhuma desgraça é maior que a desgraça fascista. "Prestes disse", costumam lembrar os brasileiros quando querem reforçar uma afirmação. Prestes disse que o fascismo era a desgraça sobre o mundo. E eis que o povo brasileiro, humilhado e sofrido, reagiu e resistiu à definitiva implantação do fascismo, resistiu e impediu a aliança do Brasil com a Alemanha, a Itália e o Japão.
A Constituição corporativa do Estado Novo encontrou sempre uma inabalável resistência no povo. Povo heróico, amiga. Hoje esse povo luta contra a quinta-coluna.
Vê, amiga, a liberdade já vem. Ela está sendo construída pelos soldados soviéticos acabando com o fascismo sobre a terra, está sendo construída pelos povos democráticos da América, da Ásia e Europa. Pelos marinheiros ingleses, filhos do mar sem derrotas, pelos aviadores americanos, defensores da democracia, pelos soldados chineses na epopéia da guerra da China, pelos iugoslavos, pelos tchecos, pelos franceses matando alemães nas ruas de Paris, pelos poloneses, pelos holandeses tão valentes, pelos gregos e noruegueses, "pelos russos defendendo a felicidade que construíram. Na frente vem Stalin, uma bandeira e um coração. Já vem a liberdade, amiga, se aproxima o fim da noite. Já vem sobre o cais, os olhos já a descortinam, ela vem com a madrugada, a estrela da manhã surge nos céus.
Surge nos céus, amiga, também no céu do Brasil, e vai brilhar através das telas de arame, das grades de ferro das pequenas aberturas da célula de prisioneiro de Luiz Carlos Prestes.
Quarenta e seis anos e oito meses de condenação. Quando o condenaram no segundo processo, ele escreveu a Dona Leocádia essas palavras tão belas e tão emocionantes:
"Esta sentença me livra dos últimos resquícios de orgulho ou de vaidade que eu ainda possuía, e me arroja definitivamente no mar imenso dos mais humildes e desgraçados. E isto, sinceramente, não me desgosta..."
Amanhã é o dia dos mais humildes, amiga, dos que até agora só foram explorados pelo homem, para quem a vida só foi desgraça, humilhações e martírios. Amanhã, amiga, é o dia de Luiz Carlos Prestes, condutor do povo brasileiro, de um povo martirizado, humilhado, ofendido na sua dignidade, castigado na sua honra. Amanhã, ao lado de todo o povo brasileiro na mais ampla unidade nacional. Amanhã, amiga, Luiz Carlos Prestes partirá novamente da sua cela, ao seu lado irá a Coluna, serão milhões e milhões de homens, desde o Rio Grande do Sul até o Amazonas, desde o Rio de Janeiro até Mato Grosso!
Para acalmar os protestos do mundo, permitiram que um jornalista o entrevistasse na sua cela.96 O jornalista lhe pergunta qual a sua posição diante da política internacional. Prestes responde que, como é claro, apóia todos os países em luta contra o nazismo. Apóia Roosevelt na América, neste momento.
— Então que se deve fazer, general Prestes?
— Decretar a mobilização agora mesmo; alistar cem mil, duzentos mil homens; colocar toda a nação em armas. Compreende?
Fala na necessidade de aumentar o número das fábricas de armas, sugere medidas práticas e eficazes.
Lá está ele, amiga, na prisão. Sobre as grades de ferro por onde penetra um pouco de ar, as telas de arame impedem que ele veja a paisagem bela da cidade. Mas nada impede que seus olhos profundos vejam o desenrolar da vida, sintam e analisem e julguem os acontecimentos, que vejam o caminho a seguir.
Quando sua voz fala, amiga, é o gênio do povo que fala por ela, condutor da sua gente, general do Brasil, Herói da América!
Lá está ele na prisão imunda. Não lhe permitem falar nem com seu advogado, não lhe permitem escrever os livros que deseja escrever, cortam sua correspondência com a família, castigam-no de todas as maneiras, desde que começou a guerra ele não sabe da sua esposa, processam-no e julgam-no à sua revelia, dão-lhe uma comida insuficiente e contra-indicada para as suas enfermidades, puseram-no nas proximidades dos tuberculosos para ver se o contagiavam, puseram ao seu lado o companheiro que enlouqueceu com as torturas para ver se assim o enlouqueciam também. Fizeram-lhe tudo que se pode fazer a um ser humano, a um animal para experiências de laboratórios de cientistas degenerados, trataram-no como a um cão hidrófobo. Lançaram sobre ele lama e lodo, pensando que assim afastavam dele o povo, que assim o tornariam impotente e inofensivo. Não tiveram coragem de matá-lo, temem o povo que se levantará para vingar a morte do seu Herói. Mas assassinam-no lentamente, com uma crueldade inaudita. Mantêm sua velha mãe numa tortura selvagem, mantêm ele sob regime inumano.
Não conseguiram dobrá-lo, não conseguiram afastar o povo dele. Todos os sofrimentos não diminuíram sua profunda visão do mundo e dos homens. Todas as misérias não diminuíram o amor que o povo lhe tem, a confiança que deposita nele, a certeza de que o verá novamente partir pelos campos do Brasil na batalha definitiva da liberdade.
Lembra, amiga, de outras noites. Em outros portos, em portos da Pátria, nesses dias de desgraça. Por vezes o desespero se infiltrava nos nossos corações: quando um conhecido traía e mergulhava no lodo e se vestia de lama. Então o nome de Prestes repetido por alguém que passava, a lembrança de uma atitude sua, era bastante para trazer novamente esperança e a certeza no amanhã. Seu povo não fraquejou porque ele o sustentou com o seu exemplo. Seu povo se alimentou do seu heroísmo. Viveu dele, sua carne e seu sangue, seu coração de aço, o Gênio e o Herói.
Lembra, amiga, de outras noites. Quando uma estrela nova, de formosura nunca vista, brilhou nos céus do Brasil. Os negros no cais apontavam as estrelas do céu nas noites de Iemanjá: era o Cruzeiro do Sul, era Vésper, era Marte, milhares de estrelas brilhando sobre o mar, sobre os portos, sobre os campos, no sertão, nas cidades, nas montanhas e nos rios. Os negros sabiam outros nomes para as estrelas: aquela é Castro Alves, a outra se chama Zumbi dos Palmares, lá estão Pedro Ivo e Tiradentes, Frei Caneca e Felipe dos Santos. Os heróis da Pátria, os poetas da liberdade, os homens valentes e dignos, estrelas no céu, estrelas no coração dos homens. E uma nova estrela, mais formosa e mais brilhante, límpida luz iluminando a noite. Os negros se riram, um tinha um P enorme tatuado no peito. Tu perguntaste se era um milagre, amiga. "Um milagre te respondi — um milagre do povo." Os negros soltaram sua gargalhada ampla, riram depois no quais, a gargalhada dos negros rolou sobre o mar, despertou Iemanjá que veio para junto de nós. Então o negro disse o nome daquela estrela: se chama Luiz Carlos Prestes, sua luz vem de uma cela imunda, banha o Brasil de esperança. Se chama aquela estrela Cavaleiro da Esperança, da esperança do Brasil, amiga.
Sua voz de condor, sua voz de poeta, sua voz de soldado, sua voz de general. Sua voz sobre o Brasil no seu exemplo de dignidade. Um jornalista lhe perguntou, faz pouco, amiga, se queria pedir alguma coisa por intermédio do seu jornal. Ele respondeu, sua voz sofrida:
— Quanto à minha pessoa nada tenho a pedir. Quanto à situação de minha esposa eu exijo que a retirem do campo de concentração para onde a mandaram. O México está disposto a recebê-la.
Mostrou a cela imunda e miserável:
— Vivo aqui sem que meus olhos tenham uma perspectiva, em um buraco, rodeado de paredes. O ódio dos ingleses a Napoleão foi selvagem. Porém, ainda assim, deram-lhe uma ilha. Meus inimigos me tratam com maior ódio que a Napoleão os seus.
Na prisão imunda não está ele apenas, amiga. Está o povo do Brasil, a liberdade, a beleza, a cultura, a dignidade da vida. E da prisão, como uma estrela de poderoso brilho e de límpida luz, ele espalha sobre o Brasil a esperança.
Amanhã, amiga, é o dia da liberdade. Sob os céus do Brasil, rotas as cadeias da escravidão, Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, partirá na frente do seu povo para a festa de construir uma Pátria feliz, livre da escravidão, pátria da alegria, do trabalho, da liberdade e do amor! Amanhã, amiga, o veremos novamente à frente do povo libertado, o Cavaleiro da Esperança.
Um dia, amiga, te narrarei o resto desta história. No dia da liberdade, quando o Herói partir novamente no seio do povo para a festa da democracia. Te falei dele nos dias de luta, de triunfo, de exílio e de sofrimento. Te disse da sua grandeza, do seu gênio, do seu heroísmo. E, agora que o conheces, jamais o desespero habitará o teu coração por mais densa que seja a noite da tirania. Sabes que em breve despontará o amanhã da liberdade. Quando ele e o povo romperem as cadeias e partirem. Iremos com eles, negra, será uma festa, cordial e alegre, a liberdade e o amor.
É preciso libertar o Herói, negra minha. As noites serão de tristeza enquanto ele estiver prisioneiro. Nas areias dos portos, no cais e no campo, nas montanhas e rios, só se ouvirão ais de tristeza enquanto ele estiver preso. Negra do meu desejo, esposa do meu coração, companheira dos dias bons e dos dias maus, agora que a madrugada desponta e a lua parte novamente no rumo do Brasil, clama com tua voz de melodia, para a América, para o mundo, pedindo a liberdade do Herói. Liberdade para o Cavaleiro da Esperança, para o povo do Brasil que está preso com ele!
Quando amanhã ele partir novamente no seio do povo, amiga, as noites serão doces noites de amor, nas areias do cais os ais serão suspiros de amantes. Nas noite de hoje, de tristeza e de dor, gritemos pela sua liberdade. Levanta a tua voz, amiga, clama comigo, com toda a gente do cais, com todos os povos livres do mundo, clama até que teu grito seja ouvido:
— LIBERDADE PARA LUIZ CARLOS PRESTES!
Buenos Aires, 3 de janeiro de 1942 (no dia do quadragésimo quarto aniversário de Prestes)
1 O Poeta Alceu Wamosy, por exemplo.
2 O exército era um organismo muito mais democrático que a marinha de então. Os soldados eram recrutados ao deus-dará entre os trabalhadores e os camponeses, ascendiam na carreira devido aos feitos de armas, viravam muitas vezes oficiais de alta patente, quase sempre muito competentes, muito bravos, mas sem nenhuma cultura geral, por vezes apenas sabendo ler. Mesmo os oficiais de curso provinham de famílias mais pobres, já que o exército era uma carreira barata; onde o cadete além de ter o "enxoval" de graça ainda recebia soldo. O contrário da marinha, de mais difícil entrada para um moço pobre, o "aspirante" devendo comprar seu enxoval e sem perceber vencimentos. Demais o exército estava sempre no país, por vezes em longínquas regiões do interior, mais em contato com os problemas e com o povo. A marinha ficava nas viagens pelo estrangeiro ou nos portos, os centros mais civilizados. Aliás, é preciso notar que entre os próprios oficiais do exército havia duas tendências: os oficiais "nobres", proprietários de terras e títulos, sempre conservadores, e os oficiais pobres, homens do povo que juntamente com os oficiais mais cultos, os "filósofos", os "doutores do exército", como os chamavam na época, faziam a maioria progressista.
3 Luiz Carlos foi sempre o neto preferido de Dona Ermelinda. Essa senhora, que vinha de uma família patriarcal, evoluiu com as idéias e com o evoluir do seu neto. Acompanhou dia a dia, com enorme carinho, a sua carreira, interessando-se por ele nos momentos mais difíceis, no exílio, no cárcere, quando o ódio da reação procurava asfixiar a voz e impedir os gestos de Prestes. Basta dizer que na sua velhice interessou-se pelo marxismo e pelo seu estudo, ao saber que Luiz Carlos havia abraçado essa doutrina. E às outras velhas que vinham lhe dizer que isso era uma invenção do diabo, uma coisa excomungada, ela refutava dizendo que "se Luiz Carlos havia seguido essa idéia é que era sem dúvida uma boa e generosa idéia". Nunca duvidou do neto um só momento. Quando, em 1936, Prestes foi preso, ela foi a primeira pessoa a escrever-lhe, solidarizando-se com ele. Tinha então quase noventa anos. E sua voz clamou várias vezes, perante os donos do poder no Brasil, pedindo justiça para o neto. A Macedo Soares, quando este era ministro do Exterior, escreveu para que ele se interessasse a fim de evitar que a filha de Prestes fosse internada num orfanato nazi, na Alemanha. Ao general Andrade Neves, para que este interviesse no sentido de que cessassem os maus-tratos dispensados a Luiz Carlos na prisão. Poucas semanas antes de morrer ainda mandou uma carta a Prestes, escrita com sua mão tremente, porém carta de um coração firme, solidária com o neto na hora em que a ditadura policial do Brasil tentava sujar o seu caráter com uma acusação miserável, no momento em que o condenavam a mais 30 anos de prisão.Dona Ermelinda faleceu no ano de 1941, aos 92 anos de idade.
4 Sobre a atitude de Pedro II em relação à abolição escreve Teixeira Mendes (Teixeira Mendes — Benjamin Constant — Esboço de uma apreciação sintética da vida e da obra do Fundador da República Brasileira — Rio de Janeiro, 1892) o seguinte: "Assim, o abolicionismo do ex-imperador levou até 1856 para acabar com o tráfico negreiro, apesar da enérgica intervenção da Inglaterra; até 1864 para emancipar os africanos livres; até o fim de 1871 para libertar os escravos da nação e os dados em usufruto à coroa, para impedir de um modo imperfeito a dissolução da família escrava, e para decretar a liberdade dos nascituros de mulher cativa, sujeitando-os, porém, ao domínio corruptor do senhor até 21 anos. Esse tíbio abolicionismo ainda em 1885 taxava o preço da libertação dos seus concidadãos escravizados, acautelando a cobiça dos verdugos deles; e em 1886 apenas em parte revogava uma perversa legislação criminal. Não lhe repugnou abusar da situação crítica da República Oriental do Uruguai para impor a esta em nome da Santíssima e Indivisível Trindade, a entrega dos escravos que lá fossem buscar abrigo contra a tirania de seus algozes; e nem se pejou de promulgar o decreto de 6 de novembro de 1866 que retirou do cativeiro os escravos da nação para mandá-los morrer em defesa do pavilhão imperial. Não admira quem teve coração e inteligência capazes de conciliar abolicionismo com semelhantes torpezas escravocratas se ufane de jamais haver hesitado em harmonizar os atributos contraditórios de um deus constitucional, feito à sua imagem e semelhança. Mas o que é inadmissível é que se procure fazer de um monarca nessas condições um tipo legendário de dedicação cívica e de elevação filosófica, lançando falsamente sobre sua pátria a responsabilidade exclusiva dos erros cuja máxima parte compete a ele. Se alguma dúvida pudesse existir sobre tal responsabilidade, bastaria para dissipá-la o silêncio das falas do trono quanto à abolição, apesar de várias manifestações na Câmara, no Senado, e na Imprensa, em prol dos escravos, até que a validade imperial fosse incitada pela mensagem da Junta Francesa de emancipação, em junho de 1876. E não é simplesmente inadmissível, é revoltante que os disputadores do produto do trabalho escravo, e que tiram da campanha abolicionista o seu lustre, tentem agora obscurecer a verdadeira origem das transformações políticas de sua nação, atribuindo-as a ignóbeis paixões. Basta, porém, que os contemporâneos reflitam que o ascendente social de móveis tão vis tornaria impossível qualquer nobre evolução, para que os autores e propagadores da pueril legenda imperial se consumam ao atrito de seus inofensivos despeitos aristocráticos".
5 Esses incríveis sonetos de Pedro II, que figuram por vezes em mitologias, costumam ser atribuídos ao Conde de Afonso Celso. Dizem que este os escrevia, e o Imperador apenas os assinava. De qualquer maneira são sonetos horríveis. Mesmo porque uma qualidade que faltava totalmente ao Conde de Afonso Celso, gigolô da monarquia e do clericalismo, era exatamente qualquer vocação poética. Esse conde papal foi o mais soporífero dos homens, que escreveram no Brasil.
6 Transcrevo aqui, sobre Luiz Carlos, a seguinte frase que me inundou Dona Leocádia Prestes: "Luiz Carlos foi um menino alegre brincalhão como todos os da sua idade. Possuía essa alegria tranqüila e resignada das crianças pobres que sabem que têm de conformar-se com bonecos de papel, porque os outros, bonitos, custam caro. Porém desde pequeno demonstrou uma compreensão da vida fora do comum. Era sensato, criterioso, muito sensível."
7 Sobre o assunto escreve o capitão José Rodrigues, que foi contemporâneo de Luiz Carlos Prestes na Escola Militar (Capitão J. Rodrigues — Luiz Carlos Prestes, Sua Passagem Pela Escola Militar — 2ª. edição — Livraria S. Paulo — Paraíba do Norte — 1929): "Havia curiiosidade de saber quais eram os melhores alunos da turma. Murmurava-se que, não obstante a sua graduação maior, não era o comandante o melhor aluno, mas sim o major, que era Luiz Carlos Prestes". ( mais adiante: "Por ocasião da escolha das armas, Prestes escolhe a Engenharia; o seu competidor, preferindo ser o primeiro em qualquer outra arma a ser o segundo na Engenharia escolhe a Artilharia, onde obtém o primeiro lugar no fim do curso. Não era ele uma mediocridade, mas um verdadeiro talento, como o tem provado até hoje. Obteve o primeiro lugar na turma de Artilharia, colocação que obteve mais tarde na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais e também na Escola de Estado-Maior, competindo com colegas de grande valor. Mus era um talento e Prestes era um gênio!"
8 Sobre o quanto queriam a Prestes na Escola diz bem a seguinte frase do capitão José Rodrigues (ob. cit.): "Coberto de louros, distinto nas mais difíceis cadeiras do primeiro ano, adorado pelos colegas, admirado pelos professores.. "
9 O major Antônio José Osório, professor de Prestes na Escola Militar, traça o seguinte perfil do seu aluno: "Sempre sereno, como que absorvido em pensamentos interiores ou alheio ao que se passava em derredor; olhar firme e animado de expressão de bondade; gestos sem amplitude e poucas palavras pronunciadas pausadamente, como quem cultiva a virtude de falar e calar sempre a propósito — tais e tantos eram os característicos que se observavam no trato com esse jovem realmente singular, que, em palestras, não se perdia jamais em banalidades, senão versando matéria de reflexão, como se fora mais avançado em anos e carregado de responsabilidades". (Prefácio ao livro do capitão José Rodrigues.)
10 Escreve J. E. Normano (Evolução Econômica do Brasil — Editora Nacional — São Paulo — 1939) sobre a borracha no Brasil: "Nenhum dos produtos de consumo brasileiros teve uma história calma e pacífica, mas a agitada tragédia da borracha amazonense não tem nada que se lhe possa comparar. Está permanentemente envolvida com fatos políticos. Recorda-me os conflitos com o Peru e Bolívia, a sua localização no campo do interesse internacional, nas vizinhanças da concessão americana (concessão Ford), as concessões japonesas, e os interesses das companhias inglesas de navegação." E mais adiante: "A alta do preço acelerou a vitória da borracha cultivada sobre a borracha nativa. No ano de 1909, a borracha das plantações inglesas e holandesas entrou no mercado mundial; em 1910 era vendida mais barata do que a borracha brasileira."
11 Segundo Normano (ob. cit.}, o número de fazendas de mais de um milhão de pés de café, em 1927, é de 21 com um total de 34 milhões de cafeeiros. E as fazendas entre 100.000 pés e um milhão são apenas 2.398. Ou seja, para esses 2.400 homens trabalhavam mais ou menos um milhão de pessoas.
12 Vários desses artigos se encontram reunidos num volume intitulado Bagatelas, livro realmente precioso e geralmente desconhecido.
13 Luiz Carlos Prestes se encontrava no momento da revolução de 1922 gravemente atacado de tifo e este foi o único motivo por que não tomou parte no levante.
14 Era comandante do forte o capitão Euclides Hermes. O governo inundou convidá-lo a ir a Palácio, com a liberdade garantida, para discutir a possibilidade de um acordo com os revolucionários. Chegando ao Palácio foi preso pelos governistas. As promessas de respeito à sua liberdade, de que ele, se fracassassem as negociações, poderia voltar ao forte, eram apenas uma cilada.
15 Os oficiais e ex-soldados do Forte do Leme, em vista de a artilharia deste forte não se encontrar em estado de enfrentar uma luta, se encerraram num bonde, baixaram as cortinas, atravessaram Copacabana e foram reunir-se aos companheiros do Forte de Copacabana.
16 Dos "18 do Forte" 16 morrem no combate. Apenas Siqueira Campos e Eduardo Gomes, gravemente feridos, conseguem escapar com vida.
17 Por vezes, no seu interessantíssimo livro sobre a Coluna, Lourenço Moreira Lima (Lourenço Moreira Lima — Marchas e Combates — Editora do Globo — Pelotas, 1931) faz verdadeiros discursos contra a indiferença do povo em relação à Coluna, nos primeiros tempos da marcha, indiferença que lhe parece resultar de o povo estar vendido ao governo. Não compreendeu o autor que o povo, no momento inicial da Coluna, não tinha idéia do que ela era e de que diretivas era portadora. É o próprio Moreira Lima quem, na continuação do seu livro, à proporção que a Coluna penetra pelo interior e atende às necessidades e nos problemas mais imediatos do povo, queimando processo de terra, libertando gente, etc, vai notar que o povo começa a apoiar a Coluna para logo depois apoiá-la entusiasticamente, ingressando nas suas fileiras, protegendo-a. Quanto mais a Coluna viu, compreendeu e tentou solucionar problemas existentes, tanto mais o povo a apoiou. Ao terminar a marcha a Coluna era adorada.
18 Muito curioso é o detalhe que narra Lourenço Moreira Lima no seu tão documentado livro sobre a Coluna. Conta ele com a sua curiosa prosa de advogado, militar e jornalista, referindo-se a episódios da manhã de 5 de julho de 24 em São Pauto:
"Dizia-se que três mil obreiros se tinham mandado oferecer ao general Isidoro, e que este não aceitara os seus serviços com receio de ser desvirtuado aquele movimento pela irrupção de um levante bolchevista."
Aliás, é interessante notar que até a chegada de Prestes para o meio dos revolucionários, a revolta era quase que a própria confusão. Os revolucionários não só não sabiam perfeitamente o que queriam, como agiam da maneira mais alucinada possível. Alguns fatos bastam para comprová-lo: Segundo Moreira Lima (ob. cit) o velho João Francisco se nega a cumprir uma ordem do comando revolucionário porque "ele era um general e aquilo era coisa para ser feita por um coronel". Isidoro c Miguel Costa trocam de mal e depois ficam de bem, a propósito de coisas insignificantes. O comando revolucionário considera a revolta perdida no mesmo momento em que o governo foge da cidade. Um soldado, após um tiroteio em que baixou dois inimigos, vem perguntar a Isidoro se por acaso não é um criminoso. Os revolucionários do encouraçado São Paulo não bombardeiam a cidade do Rio por sentimentalismo. No entanto, quase ao mesmo tempo, na revolta de Prestes no sul, Um dos seus oficiais bombardeia uma cidade na qual se encontrava a sua própria esposa nos dias de dar à luz. Esse oficial colocava o seu dever revolucionário acima de qualquer sentimentalismo. O contraste entre essa decisão revolucionária e o "não-saber-que-fazer" dos comandados de outros chefes nos demais setores da revolução é tão vidente que não preciso me demorar nele.
19 Na sua marcha para o Paraná, a Coluna do Rio Grande havia perdido mais de metade dos seus efetivos, e haviam morrido em combate os seguintes oficiais: Anibal Benévolo, Mário Portela, Santos Paiva e Ernesto Pinto.
20 Sobre o papel de Prestes na Coluna escreve Moreira Lima (ob. cit.):
"A opinião de Prestes era sempre predominante nesses conselhos." E noutro ponto: "A sua atividade (de Prestes) era inigualável, resolvendo todos os assuntos dos mais transcendentes aos mais simples. Tudo sofria a sua influência. Aparecia em toda parte, na vanguarda, nos flancos, no centro, na retaguarda."
O comando da Coluna ficou, nesta ocasião, assim constituído:
Comandante: general Miguel Costa.
Chefe do Estado-Maior: coronel Luiz Carlos Prestes.
Subchefe do Estado-Maior: Juarez Távora.
Secretário: Lourenço Moreira Lima.
Os destacamentos tinham os seguintes comandantes:
1º.) Comandante: Oswaldo Cordeiro de Farias; fiscal: major Virgílio dos Santos.
2º.) Comandante: João Alberto; fiscal: major Manuel Lira.
3º.) Comandante: Siqueira Campos; fiscal: capitão Trifino Correia.
4º.) Comandante: Djalma Dutra; fiscal: major Ari Freire.
Pertenciam ao Estado-Maior os maiores Paulo Kruger e Peri, os capitães Costa e Landucci e os tenentes Sadi, Nicácio e Morgado. Chefiava a segunda seção de M. P. o tenente João de Souza.
21 Sobre as "potreadas" escreve Moreira Lima (ob. cit.): "...lembro-me de três que atravessaram longas zonas até atingir a Coluna: a do sargento Menotti, que se apartou com dez homens ao norte de Goiás, indo se reunir perto da fronteira de Mato Grosso, tendo perdido três companheiros em combate; a do capitão Euclides Krebis, com quinze homens, saída igualmente do norte de Goiás, reunindo-se já naquele Estado, com quatro perdas; e a que se separou com quinze camaradas a oeste de Mato Grosso, tendo percorrido a vasta zona que vai de Porto Esperidião à fazenda de Escalvados, onde a encontrei na minha volta de Libres, quando seguia em busca da Coluna."
22 Todos os nomes e todos os fatos (como aliás todos os nomes e todos os fatos deste livro) são autênticos. Eu os encontrei no livro de Moreira Lima (ob. cit.). Como detalhe, vale a pena citar que o único regimento onde as vivandeiras nunca conseguiram se estabelecer foi no de Siqueira Campos. Siqueira as expulsou violentamente, achava que elas perturbavam os homens e atrapalhavam a marcha. Elas, como vingança, o apelidaram de "olho de gato" e "barba de arame".
23 Trecho de uma entrevista concedida por Luiz Carlos Prestes, quando já em La Gaiba, na Bolívia, a um enviado especial de A Esquerda, diário que Pedro Motta Lima, o grande jornalista da Revolução, dirigia no Rio de Janeiro. Essa entrevista foi publicada em janeiro de 1928. Como detalhe, acrescento que estou informado de que o jornalista que entrevistou Prestes foi o escritor Astrojildo Pereira, um dos melhores ensaístas do Brasil, ao tempo Secretário-Geral do Partido Comunista do Brasil. Outro detalhe curioso: a pessoa que, com tanta coragem, procurou na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro a coleção de A Esquerda daquele ano para copiar essa entrevista e me enviar, não conseguiu encontrar exemplares do referido jornal na Biblioteca. Teve que copiá-la de uma transcrição feita na época pelo jornal do Sr. Carlos de Lima Cavalcanti, o Diário da Manhã, do Recife. A pessoa se interessou em saber que fim tinham levado os exemplares do diário de Motta Lima, que forçosamente deviam existir na Biblioteca. Foi informada então que esses exemplares haviam sido queimados pelo Estado Novo.
24 Transcrevo uma carta de um admirador a Prestes, para que o leitor tenha idéia do carinho com que o tratavam pessoas que nunca o tinham visto ou que o tinham tratado uma ou duas vezes, na marcha, mas para as quais ele era a única fonte de esperanças:
"P. Seguro, 18 de dezembro de 1925.
Ilmo"? Sr. Cel. Prestes.
Saudações.
Desejo-lhe que tenhas feito ótima viagem até Barão de Grajaú, ficarei sempre lembrando-me do distintíssimo coronel, de cuja lembrança e para mais uma prova de amizade na pracinha em frente de minha casa vou preparar como uma lembrança sagrada um monumento e escrever "PRAÇA CORONEL PRESTES", para ali então mais tarde se Deus me ajudar mandar preparar uma estátua, para tornar mais brilhante a praçazinha. Confio portanto que o Coronel aprovará o meu ideal.
Fineza desculpar-me, e fica aqui sempre um criado inteiramente às suas dignas e apreciadas ordens.
De Vmce.
Amo. Cro. Obro. atrazc.
Raimundo Ramos."
Como essa, Prestes recebia centenas de cartas.
25 Na cidade de Carolina, Moreira Lima (ob. cit.) ouviu de velho vaqueiro a seguinte frase — no momento em que o fogo devorava os livros de impostos — a respeito de processos injustos: — "Seu capitão, eu já tenho setenta e oito anos e inté hoje foi a coisa mió que vi fazê na Carolina, porquê os dêrêitos são um despotismo."
26 É um oficial governista, o tenente-coronel Elísio Sobreira quem, num relatório (citado por Moreira Lima — ob. cit.), conta do que são formadas as forças governistas. O tenente-coronel está revoltado com o que vê. Escreve: "Ser-me-ia dispensado dizer a V. Exa. que a tropa do coronel Pedro Silvino (chefe político local) não conduzia dinheiro nem para comprar um cigarro, se assim me posso expressar.
Daí a minha preocupação em acautelar os haveres dos nossos sertanejos. Era que os 'patriotas' extorquiam àqueles que lhes não davam por vontade, conforme documento em meu poder. Eles, os 'patriotas', satirizavam as famílias e arrombavam as portas, como fizeram no município de Souza, em a casa do coronel Apromano, a quem deram prejuízos incalculáveis.
Ameaçaram de morte o coronel Emídio Sarmento, se este não lhes entregasse o que exigiam. Estabeleceram o regime das requisições, prática essa que nos deu prejuízos talvez superiores aos que nos deram os rebeldes, a menos que o coronel Pedro Silvino ainda as venha a pagar. Foram vítimas desse ciclone patriótico as cidades de Souza, Pombal e a vila de Piancó, os povoados de São José de Lagoa Tapada, Caruna, e Santana de Garrotes. Alguns quilômetros deste último, os prefalados 'patriotas´ simularam um tiroteio, motivando a retirada dos negociantes moradores do povoado, onde eles chegaram somente para expandir o saque e a desonra, atentada pelo estupro de uma mocinha. Não foram menos infelizes Misericórdia, Princesa e Patos."
27 Landulfo Prata ouviu de um camponês do nordeste a seguinte frase (Landulfo Prata — Lampião — Ariel, editora — Rio) sobre as desgraças do sertanejo: "Seu doutô, o sertão veve debaixo de uma carga pesada. De um lado Lampião e a seca. De outro lado a polícia... " Como cito de memória, longe dos meus livros, não garanto pela transcrição das palavras. Mas o sentido da frase é esse.
28 As lendas contadas neste capítulo ou são citadas por Moreira Lima (ob. cit.) ou foram ouvidas por mim no nordeste. O á-bê-cê que cito eu o recolhi em Conceição da Feira, Bahia, em 1934.
29 Esse recorde é conquistado no dia 29 e superado no dia 1º. de junho.
30 Atendendo à possível curiosidade de algum leitor, tomo um dos números que tenho na minha frente do Cinco de Julho, devido à gentileza de Rosa Meireles, a cujo arquivo eles pertencem, e dou uma resenha da matéria contida: um artigo sobre a data de 5 de julho (esse número, casualmente, corresponde a 5 de julho de 1926), uma notícia da morte de Cleto Campeio, com seu clichê, uma nota sobre a morte de Waldemar de Paula Lima, um quadro com os Motivos e Ideais da Revolução, um artigo sob o título A Revolução é Invencível, um estudo sobre a situação militar da Coluna Prestes, um chamado de um revolucionário sob o título de Pelo Brasil, uma outra nota sobre o levante da Paraíba e a transcrição do manifesto dos revolucionários que não chegou a ser distribuído ao povo, a transcrição de trechos de um discurso do deputado Azevedo Lima, na Câmara, uma nota sobre Maynard Gomes, uma nota sobre José de Barros, operário que faleceu na revolta de Cleto Campeio. E por fim uma pasquinada contra Bernardes. Isso tudo em quatro pequenas páginas.
31 Não tenho nenhum documento que me leve a afirmar que o Partido Comunista do Brasil tenha apoiado oficialmente o levante de Cleto, não tenho tampouco nenhum documento que prove o contrário. Agora, tenho documentos que mostram que comunistas pernambucanos tomaram parte nesse levante. Aliás é de notar que muitos operários se juntaram aos revolucionários. E mais: que Josias Leão, o homem que estabelece a ligação entre Cleto e Prestes, era, naquele momento, membro do Partido Comunista do Brasil, do qual iria se afastar depois.
32 Numa nota que, a meu pedido, Pedro Motta Lima escreveu sobre o Cinco de Julho, na qual, modestamente, se coloca num segundo plano, informa entre outras coisas: "A polícia instituiu um prêmio de 50 contos para quem oferecesse uma pista que conduzisse à sua oficina ou apontasse os seus redatores e principais distribuidores. Entre os que trabalhavam no jornal se devem destacar como elementos de maior eficiência o fundador e redator principal, Antônio Bernardo Canelas, e Paulo Motta Lima, que tinha então apenas 16 anos e tomou a responsabilidade da distribuição geral e da ligação do aparelho do jornal com a massa de leitores, contribuintes, fornecedores de papel, tinta, etc." Quanto a Canelas, informa Pedro Motta Lima: "Canelas se sujeitou a viver encerrado num quartinho, nos fundos de uma casa do subúrbio, onde instalou a pequena oficina, comia, dormia, vivia — privado de tudo — só aparecendo às poucas pessoas autorizadas a falar-lhe nesse esconderijo." Diz ainda Pedro Motta Lima: "...sempre enérgico em suas críticas, bem informado sobre a marcha dos acontecimentos militares e políticos, e pontual: o Cinco de Julho foi talvez o mais pontual semanário que já teve o Rio de Janeiro."
33 Sobre esta marcha Siqueira escreveu uma memorável carta a Prestes, de Buenos Aires (30 de abril de 1927). É onde ele comunica a Prestes haver dado seu nome a uma estação de estrada; de ferro. Diz: "Oficialmente mudei o nome da estação (Pires do Rio) para 'Prestes'; não sei se eles (os governistas) respeitarão a idéia." Nessa carta Siqueira dá conta não só da sua marcha, com todos os detalhes técnicos, como narra as pilhérias feitas com os governistas, os telegramas passados para assustar o inimigo, etc. É uma carta preciosa.
34 Entrevista de Prestes concedida a um jornalista chileno (José Joaquim da Silva) e publicada em La Nación, de Santiago, em 28 de dezembro de 1941.
35 Muitos meninos se incorporavam de quando em vez à Coluna, acompanhando-a largos trechos, alguns praticando verdadeiros heroísmos. Sobre o assunto escreve Moreira Lima (ob. cit.): "Durante a marcha muitos meninos de 12 a 14 anos se incorporavam à Coluna, distinguindo-se alguns pela sua bravura. Entre outros lembro-me dos seguintes: Jaguncinho e Aldo, aos quais já me referi atrás, Tibúrcio maranhense, Pedrinho e José Tomás de Aquino, piauienses. O último desses meninos foi promovido a anspeçada por ato de bravura."
36 Sobre a Coluna Prestes escreveu Romain Rolland, no seu chamado ao mundo pela liberdade de Luiz Carlos Prestes, em 1936: "Os ditadores do Brasil que crêem poder, graças ao dinheiro dos seus amos, os capitalistas da Europa e da América, graças ao silêncio comprado da imprensa cúmplice, afogar na sombra o jovem Herói da Independência, se enganam assombrosamente sobre a repercussão mundial da sua epopéia, e sobre o amor que rodeia a figura legendária do Cavaleiro da Esperança. Luiz Carlos Prestes entrou vivo no Panteão da História. Os séculos cantarão a canção de heroísmo dos Quinhentos da Coluna Prestes, e sua marcha de três anos através da imensidade do Brasil, desde o Paraná ao Atlântico. A unidade das raças e das almas do Brasil se forjou através dela. Insensatos seriam os amos do Brasil, que não vissem que ao golpear Luiz Carlos Prestes é o Brasil mesmo que golpeiam. É mais! Um Luiz Carlos Prestes nos é sagrado. Pertence a toda a humanidade. Quem o golpeia, golpeia toda humanidade."
37 Para que o leitor faça uma idéia perfeita da curiosa e admirável figura que era Lourenço Moreira Lima, transcrevo na íntegra a carta que ele dirigiu a Prestes, em 1935. Transcrevo-a do processo que lhe foi movido pelo governo após a revolução de novembro de 35 e do qual resultou sua condenação a, se não me falha a memória, 3 anos de prisão — (Polícia Civil do Distrito Federal — A Insurreição de 27 de Novembro — Relatório do Delegado Eurico Bellens Porto — Rio de Janeiro, 1936):
"Meu caro Prestes: Respondo a sua carta de julho próximo. Estou de pleno acordo com você e já venho, há muito, trabalhando pela vitória da revolução. Confio no triunfo. A mocidade e o povo estão inteiramente ao nosso lado. Os elementos retrógrados se acham cm pânico. Econômica e financeiramente o Brasil está falido. E o saque por parte do governo é absoluto. Para a esquerda é a frase que se ouve em todas as bocas. Estou certo de que, se você entrar no Brasil, à frente de uma Coluna, esta camorra cairá com a maior facilidade. Enfim, pode contar comigo para a paz e para a guerra. Filipe manda-lhe grande abraço.
Queira aceitar um abraço do seu velho amigo e camarada.
— a) Lourenço Moreira Lima."
38 Entrevista citada.
39 Entrevista citada.
40 O jornalista que entrevistou Prestes, Astrojildo Pereira, um dos homens que melhor escrevem e pensam no Brasil, teve o seguinte comentário sobre essas frases de Prestes: "Estas coisas ditas por Prestes têm uma importância fundamental. Elas mostram que a Revolução, para Prestes, não é um mero motim militar. Ela é um fenômeno social infinitamente mais complexo. Para resolver os problemas nacionais, a Revolução tem que ser um vasto e profundo movimento popular em que o elemento militar desempenhe o papel — já de si imenso — de dínamo propulsor. Evidentemente, movimento desta natureza, assim amplo e difícil, não pode ser obra de um simples momento de exaltação. Ele exige, pelo contrário, longa, paciente, laboriosa preparação. E a esta preparação devem consagrar-se, coordenadamente, todas as forças progressistas, do país." {Entrevista citada.)
41l Esse é o motivo de um poema de Raul Bopp. O titulo é Buena Dicha.
42 Sobre o estado físico e a maneira como vestia Prestes transcrevo dois depoimentos. Um de uma reportagem da Agência Brasileira, distribuída à imprensa no dia 3 de janeiro de 1928 e que diz: "E, nesse empenho, percorreu (Prestes) léguas e léguas debaixo de chuva, algumas vezes, outras vezes ardendo em febre (em La Gaiba para conseguir trabalho para os soldados). Ã noite num pouso ou em plena mata, estendia no chão a sua capa molhada e dormia até o clarear do dia, quando acordava e partia. Uma família que o encontrou então neste estado de saúde e pobreza, andrajoso e de barba crescida, deixou-se tomar de medo. Enquanto a mãe o atendia, receosa, as filhas, já moças, corriam para o mato, julgando-o um malfeitor. Mas, logo desfez a impressão às primeiras palavras. E hoje essa senhora que é D. Ana Rossi, mato-grossense, residindo em San Martin, recorda, tristemente, esse lúgubre encontro, depois que soube tratar-se do general Prestes, esse homem bom de quem tanto se ouve falar".
O outro é de Moreira Lima que encontrou novamente a Coluna em La Gaiba, quando da sua volta da missão que, Prestes lhe confiara (ob. cit.): "Clousét (um francês empregado da companhia em La Gaiba), depois de saber de quem se tratava, levou Prestes para sua casa, deixando-o só, por alguns instantes, na sala de visitas. A mulher de Clousét, uma boa senhora boliviana, de grande simplicidade, apareceu na sala e vendo aquele homenzinho barbudo e mais ou menos maltrapilho, de botas rasgadas, indagou de donde viera; e, ao saber que procedia de Santo Corazón, perguntou-lhe se não trouxera queijos para vender, por ser costume das pessoas vindas daquela vila os conduzirem para negócio. Prestes respondeu-lhe que não. Nesse momento surgiu Jean Clousét que, ao ouvir aquela conversa, disse a sua mulher que aquele homem era o general Prestes."
43 Escreve sobre Prestes nessa época, Rodolfo Ghioldi: "No solo los brasilenos Io buscan. Los uruguayos, los paraguayos, los bolivianos. Creydt se lo aproxima. Los revolucionários sudamericanos lo reconocen como el mayor; lo admiran, esperan su consejo."
44 Sobre o seu primeiro encontro com Prestes escreve Oscar Creydt (Três etapas de una vida heróica — in El Siglo, Santiago do Chile, 10 de janeiro de 1941): "Conocí a Luiz Carlos Prestes en el ano 1928, en la ciudad de Santa Fé, Rep. Argentina. Dirigia, en calidad de ingeniero, ia construción de una importante avenida en esa ciudad, capital de la província de Santa Fé. Me habló de la situación econômica del Brasil, de la crisis del café, de la instabilidad del régimen gubernativo imperante, demonstrando una fé serena en el porvenir. En esa época, Prestes comenzaba a interesarse en Ia lectura de literatura marxista. Estaba en un período de análisis, de autoexamen, de crítica retrospectiva. "
45 Palavras de Raul Gonzales Tufion (Salutación a Rodolfo Ghioldi, in Canciones dei tercer frente, Editorial Problemas, Buenos Aires, 1941). A estrofe completa diz:
"Nunca vi compahero más magnífico que este,
más puro y más plantado en la tierra en que vive:
y él tiene, sin embargo, como tienen los ninos,
una atmosfera azul, casi aérea, de nube."
46 Escreve Oscar Creydt (artigo citado, 2* parte): "Fué en el Salón Auguesteo, con motivo de un ato público organizado por la Liga Antiimperialista. Prestes pronuncio un discurso sobre Ia situación del Brasil, planteando ya la necesidad de una revolución de caráter anti-imperialista y agrário. Esto éra un gran paso hacia adelante. Más grande aún lo fué por ei hecho de que Prestes en ese ato ocupo Ia tribuna justamente con Rodolfo Ghioldi, lider dei Partido Comunista Argentino, del partido de Ia clase obrera de la Argentina."
47 Transcrevo aqui alguns trechos do manifesto de Prestes lançando a Liga de Ação Revolucionária, em julho de 1930. O manifesto é datado de Buenos Aires e no Brasil foi publicado em diversos jornais, entre outros em O Jornal do Rio de Janeiro, edição de 2 de agosto de 1930. Diz Prestes: "Esse documento (se refere ao seu manifesto anterior, em que adere publicamente ao P.C.B.) declarou definitivamente findo para os verdadeiros revolucionários aquele sistema de golpes militares que inevitavelmente, embora contra a vontade dos seus chefes iniciais e aparentes, conduziram o movimento às mãos da classe exploradora e imperialistas e proclamou a supremacia incontestável das próprias massas exploradas à sua execução." Sobre a Liga de Ação Revolucionária diz: "A Liga de Ação Revolucionária, a cuja organização estamos neste momento dedicados, aparece, portanto, para corresponder à tarefa mais essencial que ficou indicada ao movimento emancipador das massas oprimidas do Brasil, pelo manifesto de maio. Passado o período preliminar da classificação do ambiente político e feito o levantamento inicial dos elementos que se dispunham a caminhar com firmeza no verdadeiro sentido revolucionário, torna-se urgente congregá-los na formação de um bloco destinado a preparar praticamente aquele levante generalizado das massas oprimidas, pela propaganda, pela agitação e pela organização efetiva e material das forças revolucionárias." E sobre as condições do Brasil escreve: "As condições peculiares à nossa categoria de país dominado pelos grandes senhores da terra, por um regime semifeudal de latifundiários ou da exploração das massas semi-escravizadas dos campos e ainda do país semicolonial dependendo do imperialismo, estabelecem como etapa imediata do movimento emancipador do Brasil a revolução agrária e antiimperialista. A dominação que esses latifundiários exercem sobre a ditadura política, apoiados no imperialismo, na terrível opressão do capitalismo estrangeiro, torna estes pontos os mais sensíveis do nosso sistema explorador e portanto aqueles sobre os quais se têm de concentrar os seus esforços revolucionários.'
48 No manifesto de 12 de março de 1931, publicado sob o título de A Realidade Brasileira, Prestes analisa longamente a situação econômica do Brasil. E conclui dizendo: "Só com a expulsão dos imperialistas, a desapropriação das grandes empresas nacionais e estrangeiras, o cancelamento sumário das dívidas imperialistas, em cujo pagamento se escoa todo o suor dos trabalhadores, será possível resolver a crise atual."
49 Escreve Prestes (A Realidade Brasileira, manifesto citado), em maio de 1931: "...a todos os revolucionários sinceros e honestos, à massa trabalhadora que nesse instante de desilusão e desespero se volta para mim, só posso indicar um caminho: a revolução agrária e antiimperialista, sob a hegemonia incontrastável do partido do proletariado, o Partido Comunista do Brasil, seção brasileira da Internacional Comunista. "
50 Sobre esse assunto escreve a irmã de Prestes, em uma carta aberta à imprensa americana (eu transcrevo de La Hora, Buenos Aires, 3 de janeiro de 1940), refutando calúnias de Carlos Lima Cavalcanti, embaixador do Brasil no México, referentes a Luiz Carlos Prestes: "... Prestes resolvió guardar la plata, contestando a los que Ia reclamabam que Ia plata pertenecia al pueblo y seria utilizada por él, un dia, en beneficio del pueblo." De hecho: fué con esa plata de las arcas del Estado de Rio Grande del Sur, que se financio al movimiento de Ia Alíanza Nacional Libertadora, autêntico movimiento de emancipación nacional. Eso fué declarado publicamente por Luiz Carlos Prestes, el 19 de setiembre de 1937, en el Supremo Tribunal Militar, al defenderse del cargo que se le hacía entonces de haber utilizado oro de Moscú en Ia revolucion de 1935. Y ni el sr. Getúlio Vargas ni el dr. Oswaldo Aranha se atreveron a desmentido, sino que este último hasta se vió precisado a confirmar la veracidad de los hechos denunciados por Luiz Carlos Prestes."
51 Truste de todas as empresas construtoras da U.R.S.S.
52 O Comitê Executivo da Internacional, eleito no sétimo congresso, entre outros nomes, contava dos seguintes: Stálin, Manuilski, Dmitrov, Kutusnen, Thorez, Salin Aboud, Cachin, Togliatti, Luiz Carlos Prestes, Mao Tsé-tung, José Diaz, Dolores Ibarruri, Bela Ktin, Pollit e Gotwald. Entre os suplentes dois latino-americanos: Rodolfo Ghioldi e o cubano Blás Roca.
53 Tenho aqui, diante de mim, um longo e magnífico artigo de Prestes sobre o Exército Vermelho, estudo escrito na U.R.S.S. e publicado pela revista Informaciones, de Montevidéu, no seu número de 1º. de julho de 1934. Hoje, quando o Exército Vermelho derrota as tropas hitleristas, ao ler esse artigo, de há sete anos, pode ver-se como Prestes soube calcular a força do exército da U.R.S.S. Em certo trecho diz Prestes: "Cuanto al material soldado, como ya hemos dicho, es indescutible Ia superioridad dei hombre soviético que lucha concientemente por la defensa de sus conquistas sobre los soldados de ejércitos imperialistas.. . "
54 Olga Benário, esposa de Prestes, é filha de um advogado de Munique, Leo Benário, já falecido, e de uma senhora da pequena aristocracia bávara. Olga nasceu a 12 de fevereiro de 1908. Uma pessoa que a conheceu nos dias de 35, no Brasil (não estou autorizado a citar o nome dessa pessoa), assim me escreve sobre ela: "Por ele (Luiz Carlos) não temeu arrostar os perigos da vida no Brasil, embora sabendo que arriscava tudo se fosse descoberta. Era a sua amiga, a sua companheira de leituras, a confidente segura, com quem podia se abrir livremente e cujos conselhos eram sempre acertados e oportunos. E também a sua protetora. Velava por ele dia e noite e o defendeu com o seu corpo, com perigo da própria vida, até no momento da prisão, quando o bando desenfreado dos investigadores invadiu a casa com as metralhadoras apontadas contra ele. Também foi Olga quem protegeu a sua vida quando, chegando o momento de subir nos automóveis que deviam conduzi-los à Polícia Central, negou-se a seguir num carro separado, abraçando-se com Luiz Carlos Prestes de tal forma que não houve força capaz de separá-los. Graças a ela, Luiz Carlos Prestes não foi encontrado 'morto misteriosamente' em sua casa ou abatido por 'tentativa de fuga' durante o trajeto para a Polícia."
Outras pessoas que conheceram Olga em diversas fases da sua vida, entre elas a poetisa Lila Guerrero que a conheceu na Europa, me informaram que Olga era uma criatura sã, risonha e alegre.
55 Em 1931 o hoje general Mendonça Lima, ministro da Viação e Obras Públicas, bebia à saúde de Prestes, "o grande ausente".
56 O verdadeiro teórico do movimento de 32 é Alfredo Élis Júnior, cuja obra toda respira separatismo (ver seus livros publicados na Brasiliana pela Editora Nacional).
57 Havia um deputado classista. Álvaro Ventura, estivador de Santa Catarina, que era filiado do Partido Comunista do Brasil.
58 É o próprio Plínio Salgado quem informa sobre essa proteção na Carta do Chefe Nacional da A. I. B. ao Sr. Presidente da República, publicada nos princípios de 38. Escreve ele entre outras coisas: "As relações entre o integralismo e o Presidente da República sempre foram, pela força da própria doutrina do sigma, as de respeito do primeiro pelo segundo e de acatamento do segundo pelo primeiro." E em outro trecho dá conta da sua colaboração com a polícia: "Eles (os integralistas) organizaram e fizeram funcionar um serviço secreto voluntário e sem remuneração (sic) de espionagem e vigilância contra o comunismo e dos resultantes desse esforço podem atestar a Va. Exa. o Chefe do Estado-Maior do Exército, os Chefes de Polícia e os Comandantes de Região Militar em todo o país." E depois continua: "Uma só cousa (desejam): continuar a prestar, pelos métodos adotados durante 5 anos e que surtiram tão magníficos efeitos — como ninguém poderá melhor atestar que Va. Exa. — os serviços (sic) à Nação..." Mais de uma vez nesse documento Plínio lembra a Getúlio que os integralistas foram o seu "sustentáculo", o seu "aliado", etc.
59 Assinavam o manifesto-programa da Aliança Nacional Libertadora a Comissão Provisória de Organização composta do capitão-tenente Hercolino Cascardo, capitão Amauriti Osório, capitão-tenente Roberto Henrique Sisson, jornalista Benjamin Soares Cabello, Dr. Francisco Mangabeira, Dr. Manuel Venancio Campos da Paz. O primeiro diretório nacional da Aliança foi composto desses mesmos nomes e de mais alguns outros, entre os quais recordo o do major Carlos da Costa Leite, o do capitão Trifino, o do capitão-tenente Muniz Freire e o do então estudante Ivan Pedro de Martins. Era presidente da Aliança o Comandante Cascardo, e secretário-geral o Comandante Sisson.
60 Os deputados federais que apoiaram a Aliança foram Abguar Bastos, romancista e deputado pelo Estado do Pará, capitão Domingos Velasco, deputado por Goiás, e o Dr. Otávio da Silveira, professor da Faculdade de Medicina do Paraná e deputado por este Estado.
61 Sobre o assunto escreve o tenente Antônio Monteiro Tourinho (in Prestes, oficial del ejército y "leader" del pueblo — Justicia, número de 3 de janeiro de 1942) o seguinte: "Todo aquél que estudia Ia Historia dei Brasil, confrontándola com Ias de otros países, se sorprenderá con el rol verdaderamente revolucionário que en ella ha jugado el Ejército, siempre aí lado del pueblo. Sus tradiciones democratas, sus revoluciones de contenido popular hacen de él um Ejército raro en el mundo."
62 Essas palavras são de Agildo Barata, o chefe do levante do 3º. R.I. do Rio, na sua defesa perante o Supremo Tribunal Militar. Realmente nada prova melhor que o caráter "comunista" emprestado pelo governo ao movimento de 35 era simples provocação. Disse Agildo, com a sua responsabilidade de oficial do exército de brilhante carreira e de chefe da insurreição de 35: "Pouco depois o povo e a tropa aclamam e instauram o governo popular nacional-revolucionário de Natal. Durou quatro dias. Foi popular, foi nacional, foi revolucionário. Que os detratores provem o contrário." E mais adiante: "No Rio Grande do Norte não foi organizado nenhum soviete; nenhum conselho obreiro com ação governamental. No governo revolucionário participaram funcionários públicos estaduais de alta categoria."
63 Todos os fatos narrados nos capítulos que se sucedem a este não são apenas absolutamente verdadeiros. São os que não podem sequer ser discutidos. Eu deixei de lado, sem aproveitar, todo e qualquer fato, de referência à vida nas prisões e ao tratamento dos presos, que não tivesse um elemento imediato de prova> Uma infinidade de fatos verídicos como os que narro aqui, eu não os aproveitei porque sobre eles não tinha provas imediatas. Os narrados por mim são fatos absolutamente comprovados.
64 Os fatos narrados neste capítulo, como em todos os demais, nada têm de imaginário. São baseados em fontes absolutamente fidedignas. Apenas tenho certeza de que nenhuma imaginação pode descrever o que sofreram os presos políticos no Brasil. E em especial o que sofreram Berger e sua esposa. Lembro apenas que o advogado Sobral Pinto, num dos requerimentos feitos em defesa de Berger, reclamou para ele a aplicação da lei de proteção aos animais. Já não pedia nada de referência a seres humanos. Pior que um animal se encontrava Berger. Num requerimento ao Dr. José Carlos de Macedo Soares, ministro da Justiça em 1937, antes do golpe de novembro dado por Vargas, e o único ministro que se preocupou com a sorte dos presos políticos, escreveu o Dr. Sobral Pinto: "Harry Berger está reduzido à humilhante condição de animal hidrófobo. A prisão que lhe deram é um socavão de uma escada no Quartel da Polícia Especial. Privado de ar renovado, de luz, e de movimento, nada lê, nem jornais, nem livros, nem revistas. Não o privaram só de toda e qualquer convivência humana. Foram além. Não lhe dão sequer cama e roupas. E a alimentação que lhe ministram é o que, na linguagem presidiária, chamam 'meia ração'."
65 Sobre a situação de Berger e o que ele sofreu transcrevo aqui trechos de documentos jurídicos do Dr. Sobral Pinto, petições a tribunais e a ministros. Um deles diz: "Tudo tenho feito, dentro das minhas energias e da minha limitada capacidade, para obter que as autoridades brasileiras tratem a Harry Berger e a Luiz Carlos Prestes como membros da espécie humana." Noutro, no documento em que pede que Berger seja mudado de prisão, devido ao seu estado de loucura, diz: "agora que perdeu a razão, e marcha a passos largos para o sepulcro onde por fim vai repousar". Há aí, como se vê, uma clara acusação de assassinato feita pelo ilustre advogado contra a polícia do Rio. Noutro documento o Dr. Sobral Pinto volta a pedir a mudança de Berger para um cárcere melhor. E fundamenta seu pedido no laudo dos médicos que, a mando do ministro do Interior e Justiça, examinaram Berger e declaram-no louco, sofrendo uma "psicose de situação".
66 "Sessões espíritas" era o nome que os policiais davam às sessões de torturas, aos interrogatórios.
67 Trata-se do Dr. Pontes de Miranda, que não podendo resistir ao remorso se suicidou algum tempo depois do assassínio de Victor Allan Baron.
68 Ainda em 1940 a polícia usou do mesmo processo para com o escritor Álvaro Moreira, que durante dois meses teve que ouvir todas as noites os gritos dos suoliciados. E não só os escritores eram sujeitos a isso. Também os oficiais do exército. No seu discurso perante a Câmara, em 11 de junho de 1937, o deputado João Mangabeira relatou: "Agulhas quentes nos dedos, golpes que fraturavam os membros e as costelas, descargas elétricas, "pontas de fogo". O capitão Válter Pompeu não podia dormir no seu quarto no hospital da polícia devido aos gemidos de um marinheiro que tinha as nádegas destroçadas. Suplícios repugnantes como os de mulheres completamente nuas e torturadas com alicates." O padre Macedo quando foi solto deu uma entrevista a O Radical onde disse: "Vi mais nesses oito meses de cárcere que o que os meus largos anos de contato com as chagas morais da humanidade me haviam demonstrado." E adiante: "Não, não são coisas que desejo narrar. Poderia dizer como Vieira, são coisas que mesmo supostas e imaginadas causam horror."
69 Foram presos quando do estabelecimento do estado de guerra o senador Abel Chermont, que foi agredido na Polícia Especial, e os deputados federais João Mangabeira, Otávio da Silveira, Domingos Velasco e Abguar Bastos.
70 Foi o deputado Adalberto Correia, um dos que mais se extremaram na perseguição aos revolucionários, que ao ouvir a leitura feita por outro deputado, de uma página de Euclides da Cunha, datada segundo creio de 1901, interpelou o orador perguntando quem escrevera aqueles conceitos "comunistas". O orador respondeu que o "capitão Euclides da Cunha, o autor de Os Sertões", e Adalberto Correia, excitadíssimo, gritou:
— É preciso prendê-lo imediatamente... Esse capitão é um comunista... É um inimigo da sociedade...
Parece anedota mas é fato. Também os crimes cometidos pela polícia, as torturas em massa, parecem invenções de uma imaginação delirante e são fatos autênticos.
71 Esse "chefe" Galvão que prendeu Prestes, com todo esse aparato, e que não pôde assassiná-lo como lhe haviam ordenado, devido à atitude de Olga, foi ele pouco depois assassinado por outro policial, policial este que minutos depois era liquidado também, na Polícia Central, atirado como Baron de um terceiro andar. O que consta, com visos de verdade, é que Galvão não soubera guardar segredo sobre as ordens recebidas em relação a Prestes quando da sua prisão. Que em roda de amigos dissera da raiva do "chefe" ao saber que Prestes não fora assassinado. E então fecharam a indiscreta boca de Galvão para sempre...
72 Sobre a verdadeira adoração com que os sertanejos tratam tudo que se encontra ligado a Prestes, transcrevo aqui uma informação que me envia o tenente Antônio Tourinho, que tão bem conhece o interior do Brasil: "Na Bahia, em Jacobina, há em uma casa uma cadeira presa à parede, quase no teto, como se fora um quadro. E o dono da casa mostra orgulhoso a todo visitante aquela cadeira onde Prestes se sentou quando ali passou a Coluna."
73 Escreve num documento de apelação perante o Tribunal Militar o Dr. Sobral Pinto, advogado de Prestes: "Preso, em março de 1936, este acusado (Prestes) se viu logo reduzido à mais rigorosa incomunicabilidade, — mantida dia e noite através de sentinela à vista. Desde então, não lançou mais a vista sobre qualquer jornal, não leu mais um só livro, não empunhou mais um só instrumento de escrita, não falou mais a nenhuma pessoa, não pôde sequer corresponder-se com sua própria mãe."
74 Numa carta dirigida ao Dr. Osvaldo Aranha. Ministro do Exterior, sobre o caso de Prestes, escreve o Dr. Sobral Pinto, seu advogado: "Harry Berger, Sr. Osvaldo Aranha, já perdeu a luz da razão. E receio muito que Luiz Carlos Prestes não sofra o mesmo destino.
75 O Conselho de Justiça se reuniu na Polícia Especial a 26 de março de 1937, às duas horas da tarde.
76 Sobre o Tribunal de Segurança Nacional do Brasil escreve o eminente advogado francês Marcel Willard, num livro curiosíssimo onde trata dos processos políticos mais monstruosos do mundo, entre os quais inclui o de Prestes (Marcel Willard — La Défense Acuse... — Paris, 1938): "A 1'école hitlérienne. En surenchère même sur les montres de 'droit' issus des cerveaux aryens du dr. Frank et du dr. Kerrl! Pas de défense orale. Limitation à cinq du nombre des témoins à décrarge, qui doivent se présenter spontanément, sans citation. Droit pour de tribunal de rejeter les questions de Ia défense lorsqu'elles lui semblent susceptibles, non seulement d'excéder les cadres du procès, mais d'en prolonger le cours. Faculte de condamnation sans preuve, par 'libre conviction*."
77 Escreve o Dr. Sobral Pinto (apelação citada): "Com Luiz Carlos Prestes, entretanto, tudo se faz diferentemente. Não obstante se achar preso numa situação de absoluta incomunicabilidade, não conhecer nada das acusações contra ele levantadas, não poder entender- se, livre ou restritamente, com parentes, amigos ou partidários, e não dispor sequer de um lápis, de uma caneta, ou de um pedaço de papel, para as mais ligeiras notas, o prazo que lhe concedem para imprimir rumo à sua defesa, trocar idéias com o advogado que lhe dão ex-officio e que ele nem sequer conhece, é o de três dias!"
78 Dona Leocádia e seus advogados tudo fizeram na prisão para que fosse a própria Olga quem lhes entregasse a criança, assim essa mãe martirizada teria a certeza de que a filha ia ficar com a avó. O diretor da prisão respondeu, textualmente: "Estão pedindo impossíveis.
79 Olga Benário Prestes foi assassinada pelos nazis em 1944.
80 Este capítulo é feito à base de informações de alguém que tomou parte nos acontecimentos narrados: Rodolfo Ghioldi. Quanto aos trechos dos discursos citados, eles foram tomados de transcrições feitas na imprensa argentina, exceto a carta de Prestes ao Dr. Sobral Pinto que ele leu nessa sessão, da qual possuo uma cópia, enviada por uma pessoa do Brasil. Exceto também as palavras de Berger que foram reconstruídas por mim à base das recordações de Rodolfo Ghioldi. Pode ser que as palavras de Berger não sejam exatamente as mesmas que transcrevo, mas o seu sentido era exatamente esse.
81 Comentando esse julgamento escreve sobre Prestes o advogado francês Marcel Willard (ob. cit.): "Le jeune héros de Ia délivrance, de 1'indépendence, le nouveau Bolívar de 1'Amérique latine. Luiz Carlos Prestes, mérite et posséde 1'amour des masses brésíliennes. II incarne leurs intsrêts et leurs aspirations profondes, leur volonté de libération sociafe et nationale. An a beau d'efforcer d'étouffer sa voix, elle porte haut et loin. Elle est entendue, non seulement et maigré le secret, malgré Ia censure, dans toutes les régions, par tout le peuple de cet immense pays semi-féodal et semi-colonial (grand comme 1'Europe et peuplé comme Ia France) dont 1'avenir est illimité, mais encore dans tout le nouveau continent, dans les deux continents, dans toutes les parties du monde."
82 Prestes se refere ao Tribunal de Segurança.
83 Prestes se refere a Virgulino Himalaya, procurador do Tribunal de Segurança.
84 Prestes se refere ao quartel da Polícia Especial onde estava preso.
85 Escreve Marcel Willard (ob. cit.) sobre a defesa de Rodolfo Ghioldi: "Quant à Rodolfo Ghioldi, nous possédons son remarquable plaidoyer, qui est un modele de mesure, d'ironie et de fierté."
86 É o próprio Plínio Salgado, o "Chefe Nacional", que narra (manifesto citado): "O Dr. Francisco Campos, dizendo sempre falar após entendimento com V. Ex? (Getúlio), pediu o meu apoio para o Golpe de Estado e a minha opinião sobre a Constituição dando-me 24 horas para a resposta."
87 Nas vésperas do golpe de 10 de novembro Pedro Motta Lima, condenado já pelo Tribunal de Segurança, e ainda escondido no país, tenta convencer o general Flores da Cunha da necessidade de uma frente única democrática.
88 Messagero, jornal fascista italiano, escrevia sobre o golpe de 10 de novembro: "Os círculos norte-americanos da Europa olham os acontecimentos do Brasil como um grave golpe, não somente para a política de Roosevelt, como também para a doutrina norte-americana que pretende que o fascismo é um produto europeu que não pode ser exportado para o Novo Mundo." E o Popolo d'Italia esclarecia, pela voz do presidente do Senado italiano, Federzoni, que havia recentemente visitado o Brasil: "É indubitável que as escolas e a imprensa fascistas italianas contribuíam, em forma material, para a criação do Estado Novo brasileiro." Quanto aos alemães, chegaram a anunciar que o Brasil ia aderir ao Eixo, por intermédio do pacto antikomintern.
89 Numa outra petição ao ministro da Justiça escreve o Dr. Sobral Pinto: "Excetuados os funcionários encarregados da sua guarda, ele a ninguém fala, com ninguém se comunica, a não ser por cartas, e isto mesmo de vez em quando, com sua velha mãe, exilada atualmente, no México. Esta própria correspondência epistolar — onde, para evitar retenções injustificadas, só são tratados assuntos exclusivamente familiares — é interceptada meses seguidos, a fim de mergulhar mãe e filho em agonias atrozes permanentes, pela ausência, em que ambos ficam, de notícias recíprocas. Enquanto os demais presos sentenciados políticos dispõem da mais absoluta liberdade de movimento, e de comunicação entre si, dentro dos presídios do Estado, e os que se acham nas prisões desta capital podem receber as visitas dos. seus parentes e amigos, Luiz Carlos Prestes vive segregado de todo e qualquer convívio humano, entregue, deste modo, a um isolamento alucinador, não se lhe permitindo sequer falar a seu advogado, senão através de licenças especiais, que levam meses a serem concedidas, e, quando o são, apresentam-se com as restrições que estão sendo agora denunciadas pela décima vez."
E num excelente artigo, muito bem documentado, sobre a vida de Prestes na prisão, escreve Dona Maria Luísa Carneli (Luiz Carlos Prestes en la celda triangular, México, 1941) o seguinte, de referência à suspensão sistemática que sofre a sua correspondência com Dona Leocádia: "Y, sin embargo, esta correspondência familiar, el único contacto de Luiz Carlos Prestes con la vida, se lo suspende por meses y meses... Durante los primeros catorce meses de prisión la incomunicación fué total. En vano su madre exigia y pedia se reconsiderasse esa medida tan atroz. Las ordenes eran terminantes y partian dei propio Getúlio Vargas que odiaba y temia a un tiempo ai gran leader recluído. Más tarde, iniciada al fin Ia correspondência esta quedaba sujeta a los más curiosos arbítrios y contingências. Así, en 1937 fué suspendida por 30 dias; en 1938 por más de três meses; en 1939 cerca de seis meses; en 1940 treinta dias; y este ano de 1940 ya ha habido dos meses de suspensión."
90 Numa carta ao Sr. Osvaldo Aranha, ministro do Exterior, escreve o advogado de Prestes: "Com o advento, porém, do golpe de estado vitorioso de 10 de novembro, o capitão Filinto Müller fez prender nessa mesma manha de 10 de novembro, o então diretor da Casa de Correção, Dr. Carlos de Lassance, sob a falsa alegação de que se mostrava "frouxo" em face de Luiz Carlos Prestes e conseguia fazer nomear para, dirigir aquele presídio o selvagem tenente Caneppa, que se notabilizara- pelas suas brutalidades, na administração da Colônia Correcional de Dois Rios, na ilha Grande, onde não passara, até então, de submissa criatura do chefe de polícia desta capital."
91 Numa petição ao ministro da Justiça escreve o Dr. Sobral Pinto: "Nem mesmo quando teve de oferecer embargos ao acórdão do Supremo Tribunal Militar, que confirmara a condenação de Luiz Carlos Prestes a 16 anos e 8 meses de prisão, imposta pelo Tribunal de Segurança Nacional, pôde o Suplicante avistar-se com o seu cliente para com ele conversar sobre a orientação e o rumo que deveria seguir neste último e derradeiro recurso que a legislação do país lhe permitia utilizar. As próprias imunidades da Defesa são ostensiva e impunemente desrespeitadas, porquanto a censura da Casa de Correção se faz exercer, cheia de rigor, sobre as cartas que Luiz Carlos Prestes, de vez em quando, dirige a seu patrono, sendo ainda de notar que tais cartas levam seis e mais dias para percorrer a ridícula distância que vai da Rua Frei Caneca para a Rua da Assembléia."
92 O tenente Antônio Tourinho, que esteve muito tempo preso na Casa de Correção, escreve-me sobre o assunto: "Aliás os presos comuns em geral fazem o que podem por ele (Prestes). Seja o faxina, o cabeleireiro, e mesmo a comida eles procuravam na cozinha melhorá-la por sua conta."
93 Sobre o que disse Prestes nesse julgamento, escreve Rodolfo Ghioldi (A un ano de distancia in Orientación, Buenos Aires, 1941): "Poças fueron las palabras, pero claras y puras como una esperanza, perfectas de solidariedad y terribles de acusación. Aún deben de estar ardiendo en Ia conciencia de Ia comparsa bárbara. Poças fueron, pero fundamentales. Pertenecen a aquellas que definen la grandeza moral de un hombre y que marcan ei tono de una época. "
E a revista A hora, de Buenos Aires, escreveu na época do processo e da condenação o seguinte: "La endeblez jurídica de los argumentos que se esgrimieron para afrentarlo (a Prestes) con esta última condena que se ha pretendido infamante, surge con una evidencia tal que en lugar de manchar al detenido sé vuelve contra los propios acusadores."
94 Sobre Dona Leocádia Prestes escreve Enrique Zamora {La madre de Prestes, in El Siglo, Santiago do Chile, 19 de janeiro de 1941): "Hay una espécie de santidad en esta mujer, anciana ya, de cabellos blancos y vestidos negros, que vive su vida en una lucha tremenda y continua por su hijo. En su castellano imperfecto, suavizado por un dulce acento português, hay sin embargo reciedumbre cuando se trata de su hijo, de hablar de 'mi hijo', (dice ese mi hijo con un fervor en que se mezcla ei amor maternal y la admiración hacia el héroe), y de aquellos que lo han puesto en una obscura prisión, en donde vive, en donde muere dia a dia fisicamente, desde hace más de cinco anos."
95 Tenho na minha mesa de trabalho, diante de mim. uma parte do que se escreveu no mundo, artigos, folhetos, conferências, poemas, entrevistas, prospectos, manifestos, periódicos, transcrições de cartas, telegramas, etc, clamando pela liberdade de Prestes. Tão-somente as assinaturas ilustres e as assinaturas de admiradores e de populares encheriam volumes se eu as fosse citar uma por uma. Só da Argentina foi enviado um pedido a Vargas com mais de dez mil firmas. E enormes volumes daria esse material de artigos, conferências e folhetos, se fosse reunido em livros. Há páginas comoventes e páginas de grande beleza. Em todo esse enorme material há um sopro admirável de liberdade. E em cada linha se sente a importância e a grandeza da figura de Luiz Carlos Prestes que se faz admirar por gente tão distinta e de tão diversa altura intelectual. Por todos aqueles que amam o heroísmo, a beleza e a dignidade. De Dolores dei Rio à mais humilde operária, de Lázaro Cárdenas ao camponês mais rude. De Batista ao soldado raso. De Romain Rolland e André Malraux ao homem que mal sabe assinar o nome. Do ídolo popular Langara ao garção desconhecido. Homens de todas as raças e de todos os matizes políticos. Unidos todos na admiração ao Herói brasileiro, pedindo todos pela sua liberdade. Hão de libertá-lo, com certeza.
96 Trata-se de uma entrevista obtida por um jornalista chileno de nome José Joaquim da Silva e publicada em La Nación, de Santiago, em 28 de dezembro de 1941.
Jorge Amado
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