Biblio "SEBO"
Thalia Robinson é uma órfã desamparada que cuida dos três filhos pequenos de sua prima Laetitia em troca de casa e comida. Mas sua vida toma outros rumos quando ela conhece Magnus, o Lorde d´Arenville. Magnus deseja ter uma família. Por isso pede para Laetitia apresentá-lo a debutantes que estivessem a altura de ser sua esposa, e principalmente, mãe de seus filhos e dona de seu coração. As coisas, porém, não acontecem de acordo com os planos da anfitriã. O Lorde ignora todas as convidadas, e, impressionado pelo modo amoroso com que Tellie cuida dos filhos da prima, decide que ela é a única mulher com quem realmente deseja se casar...
Yorkshire, fevereiro de 1803
— Meu senhor, eu... certamente Mr. Freddie...
— Mr. Freddie? — A voz crítica de lorde d’Arenville interrompeu a criada. Ela enrubesceu e ficou nervosa.
— Er... Reverendo Winstanley, eu quero dizer, senhor. Ele não o fará esperar muito, senhor, só que...
— Não precisa explicar — lorde d’Arenville disse-lhe friamente. — Eu não tenho dúvidas de que o reverendo Winstanley virá assim que puder. Eu esperarei.
Magnus, lorde d’Arenville, olhou à sua volta. Uma única janela estreita se abria para o cemitério, trazendo aos ocupantes da casa a sensação de morte.
Deus, quão insuportavelmente lúgubre, pensou Magnus, sentando-se em um sofá desconfortável. Será que todos os vigários vivem assim? Achava que não, mas não tinha certeza, pois o seu tipo de vida não o levava à intimidade com o clero. Bem ao contrário, na realidade. E se o seu mais antigo amigo, Freddie Winstanley, não tivesse vestido o colarinho clerical, Magnus ainda estaria na mais feliz ignorância.
Ele suspirou. Entediado e desassossegado, decidira em um ímpeto fazer a longa viagem até Yorkshire para visitar Freddie, a quem não via há anos. E agora, tendo chegado, se perguntava se fizera a coisa certa, visitando o apertado e miserável vicariato sem se anunciar.
— Quem está aí?
— Huooo, moço! — Quando olhou, as cortinas se abriram, e um rostinho travesso o espreitava.
Magnus piscou. Era uma criança bem pequena — uma menina, decidiu ele após um momento. Ele nunca tinha visto uma criança daquela idade. E apesar de estar totalmente desacostumado com a moda infantil, pareceu-lhe que esta parecia mais feminina que outra coisa. Tinha cabelos escuros e cacheados, e grandes olhos castanhos. E o olhava com o olhar ávido que tantas mulheres têm.
Ele fitou a porta, esperando que alguém chegasse e buscasse a criança para levá-la ao seu lugar.
— Huooo, moço! — a bonequinha repetia alto. Magnus arqueou uma sobrancelha. Ele pretendia responder. Mas como deveria se dirigir a uma criança?
— Como você vai? — disse, após um momento. Então, ela sorriu e se lançou para ele em uma corrida incerta. Horrorizado, Magnus ficou imóvel. Contrariamente a todas as suas expectativas, ela cruzou o cômodo sem cair, aterrissando em seus joelhos. Rindo para ele, acariciou suas calças de couro imaculadas com as mãos úmidas e imundas. Magnus recuou. Seu criado teria um ataque. Com certeza, as mãos da criança estavam imundas e grudentas. Magnus não sabia nada sobre crianças, mas tinha certeza daquilo.
— Colo, moço — a bonequinha levantou os braços, na clara expectativa de ser colocada no colo.
Magnus aprofundou a sua carranca em um olhar de raiva. A boneca retribuiu-lhe o olhar do mesmo modo.
— Colo, moço — repetiu. A pequena mão grudenta pegou em seu braço. — Colo! — exigiu novamente.
— Não, obrigado — disse Magnus, em seu tom mais frio e educado. Meu Deus, ninguém viria salvá-lo?
Fazendo um bico de choro, mostrou, aos olhos pessimistas de Magnus, todos os sinais evidentes de uma menina a ponto de explodir em lágrimas barulhentas de chantagem. Elas com certeza começavam cedo. Não era de se espantar que fossem tão hábeis nisso quando cresciam. O pequeno rosto se fechou. Ela estendeu um par de braços rechonchudos:
— Carinho!
Mais uma vez, sua exigência era bem clara. Cuidadosamente, ele a trouxe para mais perto de si, até que subitamente ela envolveu seu pescoço com os braços em um forte abraço que o surpreendeu. Em segundos, aninhou-se confortavelmente em seu colo, recostando-se em um de seus braços, ocupada em arruinar seu cachecol. Só levou meia hora para conseguir o que queria, Magnus disse a si mesmo, contrariado.
Ela conversava com ele sem parar em um fluxo confidente, uma mistura de inglês e linguagem de bebês, parando de vez em quando para fazer o que parecia ser uma pergunta. Magnus se viu respondendo. Senhor, se alguém o visse agora, ele nunca se conformaria. Mas não tinha escolha — não queria ver aquele rostinho se abater novamente.
Uma vez, ela se interrompeu no meio do que parecia ser uma história bem complicada e olhou para ele. Magnus se sentiu vagamente apreensivo, perguntando-se o que poderia fazer. Ela estendeu sua mão e traçou o vinco longo e vertical em sua face direita com um dedo pequeno e macio.
— “Que icho”? — Ele não sabia o que dizer. Uma ruga? Um vinco? Ninguém ousara referir-se a isso.
— Er... isso é minha bochecha.
Ela acompanhou o traçado do vinco mais uma vez, pensativa, depois pegou seu queixo em uma das mãos, virou sua cabeça, e fez o mesmo na outra face.
A tagarelice constante começou a diminuir e a cabecinha a oscilar. Subitamente, ela bocejou e se aconchegou melhor na curvatura de seus braços.
Por um momento Magnus se imobilizou, perguntando-se o que fazer, depois lentamente recomeçou a respirar. Sabia que era um homem poderoso — no sentido físico e social — mas nunca em sua vida fora subjugado pelo peso quente de uma criança adormecida. Era uma responsabilidade notável.
Sentou-se ali, imóvel, cerca de vinte minutos, até que uma vaga agitação soou no hall. Uma bela jovem olhou para dentro da sala, uma expressão arrasada em seu rosto. A mulher de Freddie. Joan. Jane. Ou era Jenny? Magnus estava quase certo de tê-la reconhecido. Ela viu a pequena forma adormecida em seus braços.
— Oh, graças a Deus! — exclamou — nós a procuramos por toda parte.
Voltou-se e chamou alguém na entrada.
— Martha, corra e diga a Mr. Freddie que a achamos. Ela se virou para Magnus. — Eu sinto tanto, lorde d`Arenville. Nós pensamos que ela havia ido para o jardim e todos estávamos lá fora, procurando. Ela lhe incomodou muito?
— Não, absolutamente. Foi um prazer. — E, para sua grande surpresa, descobriu que era verdade.
Londres, fevereiro de 1803.
— Eu preciso encontrar uma mulher, Tish.
— Oh, claro. Você está procurando a mulher de quem? — respondeu Laetitia, petulante.
— Eu estou falando de uma esposa. Sou capaz de encontrar minhas próprias aventuras, obrigado.
— Uma esposa? Você? Eu não acredito, Magnus! Há anos que você nem mesmo dirige a palavra a uma mulher respeitável!
— É por isso que quero sua ajuda agora. Quero que o casamento aconteça o mais rápido possível.
— O mais rápido possível? Céus! Você vai deixar as mamães casamenteiras agitadas! — disse ao primo. — Posso perguntar o que o levou a isso? Quero dizer, procurar uma esposa já é excepcional. Você deverá estabelecer sua prole logo, logo, mas tal pressa imprópria me parece... Não há... ah... nenhuma necessidade financeira neste casamento, há, Magnus?
— Não seja ridícula, Tish. Na realidade, é o que você acha. Decidi ter minha família.
— Você quer ter herdeiros, Magnus. Precisa de filhos homens. Você não gostaria de um bando de meninas, não é?
Um bando de meninas até que não soava mal mas também seria bom ter filhos homens, pensou, lembrando-se do menino de pernas fortes de Freddie, Sam.
A questão de ter um herdeiro fora, de fato, sua última preocupação, mesmo sendo o último de uma linhagem muito distinta. Até a sua viagem para Yorkshire, Magnus era totalmente indiferente ao fato de seu nome e título terminarem com ele. Só lhe deram, afinal, infelicidade durante a sua infância e juventude.
Era muito mais fácil, porém, deixar a sociedade acreditar que d’Arenville precisava de um herdeiro do que contar que uma linda criancinha grudenta achara uma fenda em sua armadura. Ele não precisava de nada nem de ninguém. Aprendera esta lição ainda muito jovem.
Era uma pena que ele precisasse pedir ajuda a Laetitia. Nunca gostara dela, só a encontrava quando o dever ou uma coincidência o exigia. Mas alguém precisava apresentá-lo a uma moça adequada, droga! Se ele queria filhos, teria que suportar o processo complicado e desagradável de adquirir uma esposa, e Laetitia poderia ajudar a apressar o processo com um mínimo de tumulto e incômodo.
— Você me ajudará, Tish?
— O que exatamente você tem em mente? A sociedade londrina? Bailes, festas elegantes e visitas matutinas? — ela riu. — Eu preciso confessar, não consigo imaginar você fazendo o papel de bonitinho com todas as mamães orgulhosas olhando, mas valerá a pena, mesmo que seja só pela diversão.
Ele tremeu por dentro à imagem que ela invocara, mas sua expressão permaneceu impassível.
— Não, nem tanto. Eu pensei que uma house party poderia resolver o assunto.
— Uma house party! — ela estremeceu delicadamente. — Eu detesto o campo nesta época do ano.
— Não precisa ser por muito tempo. Uma semana, mais ou menos, será suficiente.
— Uma semana! — Laetitia quase gritou. — Uma semana para fazer a corte a uma esposa!
Magnus cerrou os maxilares. Se houvesse outra maneira de fazê-lo, ele a teria preferido. Mas sua prima era uma jovem e, aparentemente, respeitável matrona da sociedade — exatamente o que ele precisava. Ninguém mais poderia apresentá-lo tão facilmente a moças adequadas. E ela poderia ajudá-lo a contornar o tédio da busca por um casamento, fazendo a corte sob os olhos de centenas de pessoas. Ele tremeu por dentro novamente. Laetitia poderia ser uma cabeça-de-vento e ele não gostava de lhe pedir ajuda mas ela era sua única opção.
— Você fará isso? — ele repetia.
— Sair da cidade pode ser complicado para mim. A temporada ainda não começou, mas nós temos muitos compromissos... — deu um olhar significativo para o espelho acima da lareira, em cuja moldura dourada estava pregada meia-dúzia de convites impressos. — E para organizar uma festa deste tipo em Mannigham, com tão pouco tempo... — ela suspirou. — Bem, é bastante trabalho, e eu precisaria de uma ajuda extra, você sabe... e George pode não gostar disso, pois será muito car...
— Eu cobrirei todas as despesas, é claro — Magnus interrompeu-a — e farei com que valha a pena para você também, Laetitia. Diamantes lhe tomariam mais fácil perder seus bailes e festas elegantes por uma semana ou duas?
Laetitia fez beicinho, contrariada por sua rudeza, mas incapaz de resistir à isca.
— Colar, brincos e bracelete. — Seus olhos frios encontraram os dela com indiferença cínica.
— Oh, Magnus, como você é vulgar! Como se eu quisesse dinheiro para ajudar meu primo.
— Então você não quer os diamantes?
— Não, não. Eu não disse isso. Naturalmente, se você quiser me presentear com alguma lembrancinha...
— Bem, então está decidido.
Uma careta desconcertada perturbou a impassividade de sua expressão.
— Eu acho que assim será melhor. De qualquer jeito, você convida algumas moças, e eu escolherei uma.
Laetitia estremeceu delicadamente.
— Tão sangue-frio, Magnus. Não me espanta que eles o chamem de Iceber... Você já está querendo ir embora? — disse Laetitia.
— Por que não? Está tudo decidido, não?
— Mas quais moças você quer que eu convide?
— Que droga, Tish, eu não sei. Este é o seu trabalho.
— Eu não acredito! Você quer que eu escolha uma esposa para você? — ela gritou estridentemente.
— Não, eu a escolherei dentre as moças que você convidar. Meu Deus, Tish, você não entendeu ainda? Sobre o que estamos falando há quinze minutos?
— Existe... quer dizer, você tem alguma exigência especial? — disse, finalmente.
— Ela deve ser sadia, é claro... de boa linhagem, naturalmente. Umm... bons dentes, razoavelmente inteligente, mas com um temperamento plácido... e quadris suficientemente largos, para a maternidade, você sabe.
Laetitia rangeu os dentes.
— Nós estamos falando de uma dama, não estamos? Ou você só está atrás de uma égua reprodutora?
— Mais ou menos isso, eu acho. Tenho pouco interesse na dama, somente em sua prole.
— Você nem mesmo se importa com sua aparência?
— Não especialmente. Apesar de pensar que prefiro alguém de boa aparência, ao menos passável. Mas não linda. Uma mulher bonita seria problema demais. Eu já conheci esposas bonitas demais para não me conscientizar da tentação que elas são... para os outros.
Laetitia não deixou de captar sua referência sutil.
— Eu farei o melhor possível — disse secamente.
O cavaleiro negro debruçou-se, pegou-a pela cintura e a içou para seu galante cavalo de batalha, longe do alcance dos lobos com as bocas cheias de baba que tentavam morder seus calcanhares.
— Dêem o fora, malditas bestas cruéis! — Ele gritava com uma excitante e profunda voz varonil. — Este bocado não é para vocês! Agüente firme, minha querida, você está segura comigo agora —murmurou em seus ouvidos, o hálito quente movendo os cachos em sua nuca. — Agora eu tenho você, Tallie, meu amorzinho, e nunca a deixarei.
Apertando-a estreitamente contra seu amplo e forte peito, abaixou sua boca em direção à dela...
— Miss, Miss Tallie, a senhora está bem?
Tallie saiu de seus devaneios com um sobressalto. Os botões que ela havia separado estavam espalhados pela mesa, e então ela se abaixou rapidamente para catá-los.
— Oh, sim, sim, perfeitamente. — Tallie, enrubescendo, apressou-se em acalmar o mordomo e a governanta. — Eu estava em um devaneio tolo, a milhas daqui, infelizmente.
O mordomo estendeu uma carta em uma bandeja.
— Uma carta, Miss Tallie. Da patroa.
Tallie sorriu. Brooks ainda se comportava como se fosse responsável pela grandiosa mansão de Londres, em vez de estar enfiado na casa de campo que pertencia à prima de Tallie, Laetitia. Tallie pegou a carta da bandeja e agradeceu. Querido Brooks — como se ela fosse a senhora da casa, recebendo correspondência na sala de estar, e não uma parenta pobre, tendo sonhos tolos, junto a uma jarra de botões velhos.
— Oh, não! — Tallie fechou os olhos, após ler a carta. Havia pensado que, já que o Natal passara, e Laetitia e George haviam voltado para a cidade, ela e as crianças ficariam em paz por vários meses.
— O que é, Miss Tallie? Más notícias?
— Não, não... ou ao menos nada trágico, de modo nenhum. — Tallie acalmou a velha governanta. Deu uma olhada rápida para Brooks e explicou: — A prima Laetitia escreveu para dizer que fará uma house party aqui. Nós devemos tomar todas as providências para receber seis ou sete moças, e suas mães, e um certo número de pais e cinco ou seis cavalheiros também, ela ainda não decidiu. E haverá um baile em duas semanas.
Mis. Wilmot estivera fazendo as contas.
— Acomodação e divertimento para até vinte cinco ou vinte e seis do grupo, e mais quase o dobro deste número de empregados, se nós só contarmos com um criado ou criada para cada cavalheiro ou dama. Por Deus, Miss Tallie, eu não sei como faremos.
Tallie assentiu, com uma expressão de mau pressentimento em seus olhos.
— Os hóspedes chegarão na próxima terça-feira. A prima Laetitia chegará na véspera.
— Na próxima terça-feira? Na próxima terça-feira! Meu Deus, Miss, o que faremos? Providências para sessenta ou mais pessoas se hospedarem, chegando na próxima terça-feira! Nós nunca conseguiremos, nunca!
— Sim, nós conseguiremos, Mrs. Wilmot. Nós não temos escolha, a senhora sabe disso. Minha prima, contudo, considerou todo o trabalho extra que isso acarretará para vocês dois e para todos os empregados.
— E para a senhora, Miss Tallie — acrescentou Brooks.
Ela sorriu. Sabia que ele estava certo.
— Ela me deu permissão para contratar toda a ajuda extra que precisarmos e para não pouparmos despesas, apesar de eu precisar manter o cálculo minucioso de todas elas.
— Não poupar despesas...
Tallie tentou se manter séria. O fato da prima Laetitia mostrar consideração suficiente por seus empregados, e contratar ajuda extra já era bastante surpreendente, mas não se preocupar com as despesas surpreenderia a qualquer um que a conhecesse.
— Não, pois ela diz que a house party é para seu primo, lorde d’Arenville, e ele deve pagar tudo.
— Ahh! — Brooks fechou a boca e fez uma expressão sábia.
— Lorde d’Arenville? Meu Deus, o que ele quer com uma house party cheia de moças? Oh, eu compreendo! Fazer a corte.
— Como? — disse Tallie, admirada.
— Ele está cortejando alguém, lorde d’Arenville. Deve estar interessado em uma destas moças, e quer passar algum tempo com ela antes de fazer o pedido.
— Bem, bem, então é isso. Um casal namorando na velha casa mais uma vez. — A face de Brooks se abriu em um sorriso sentimental.
— Por Deus, Mr. Brooks, o senhor é um romântico incurável, se é que eu já vi um — disse Mrs. Wilmot. — É tão difícil imaginar lorde d’Arenville perdido em um jovem sonho de amor quanto me ver voando pelos ares em um de meus pães-de-ló!
— E pôr que isso, Mrs. Wilmot? — perguntou.
— Por quê? Oh, sim, a senhorita nunca o encontrou, já, querida? Eu estou sempre esquecendo, a senhorita é parente pelo outro lado da família da madame. Bem, não perdeu muito... Eles o chamam de iceberg, sabia?
— Mas eu pensei que todas vocês, mulheres, o achassem tão bonito — começou Brooks.
— Bonito ele é, eu sempre disse — falou a governanta, sombria. — Mas apesar de ser tão bonito quanto a estátua de um deus grego, é tão quente e vivo quanto esta estátua, também! — balançou a cabeça e cerrou os lábios de maneira desaprovadora.
Mesmo intrigada, Tallie sabia que não deveria estimular a fofoca sobre os hóspedes de sua prima.
— Bem, então — ela disse —, ainda bem que nós não temos que nos preocupar com Lorde d’Arenville, a não ser gastar o seu dinheiro e presenteá-lo com as contas. E se nós não precisamos nos preocupar com os gastos, os empregados podem ser contratados na aldeia.
Mais tarde, naquela noitinha, enquanto ela saía vagarosamente dos aposentos das crianças, deixando seus três protegidos bocejando sonolentamente em suas camas, beijos amorosos de boa noite ainda úmidos em sua face, Tallie decidiu que deveria se controlar mais. Não podia continuar assim.
O grau de ressentimento que sentira naquela manhã a chocara. Era muito errado sentir-se assim. Deveria ser grata a Laetitia pelo muito que ela fizera — dando-lhe um lar, deixando-a cuidar das suas crianças... e esta era a casa dela, eram os filhos de Laetitia. Ela tinha o direito de visitá-la quando quisesse.
O problema era com Tallie. Sempre fora. Com suas pretensões extravagantes e seu faz-de-conta tolo e infantil. As coisas estavam fugindo do controle, e ela fingia, dia após dia, que as três adoráveis crianças eram suas. E que o pai delas, uma figura elegante e romântica, estava longe em alguma esplêndida aventura, lutando contra piratas. Sonhara freqüentemente com a maneira pela qual ele chegaria em casa em seu corcel negro como o carvão, trazendo presentes exóticos para ela e para os filhos. E quando eles tivessem colocado as crianças na cama, ele a tomaria nos braços e a beijaria carinhosamente e lhe diria que ela era sua bela...
Não. Isso precisava acabar. Ela não era a bela de ninguém, a querida de ninguém. O pai das crianças era o enfadonho George, um blefe, que bebia demais e beliscava o traseiro de Tallie cada vez que ela se distraía um pouco e passava perto dele. Ele nunca chegava perto das crianças, a não ser no Natal, quando dava a cada uma delas um ou dois shillings, e afagava suas cabeças. E a mãe delas era Laetitia, a bela, egoísta, charmosa Laetitia, um ornamento da elite londrina.
Tallie Robinson não era ninguém — uma prima distante sem um centavo em seu nome. Uma garota simples e comum, com nada a recomendá-la; uma garota que deveria ser grata por ter recebido uma casa no campo e três amáveis crianças para cuidar.
Nunca haveria um cavaleiro elegante, ou um belo príncipe, ela disse para si mesma asperamente. A sua maior esperança era que um fazendeiro e cavalheiro gentil a quisesse. Um viúvo, provavelmente, com filhos que precisassem de cuidados maternos e que a notasse na igreja.
Tallie olhou para suas mãos e sorriu com orgulho de suas unhas macias e elegantes. Este era um defeito, pelo menos, que corrigira desde que deixara a escola. Seu fazendeiro carinhoso ficaria orgulhoso... Que droga! Estava fazendo isso de novo. Tecendo fantasias com o mais fino dos fios. Perdendo tempo, quando havia mil e uma coisas a fazer na preparação da house party do primo de Laetitia. Tallie correu escada abaixo.
O Príncipe Russo estalou o seu chicote nas ancas arqueadas de seus belos cavalos, incitando-os a uma velocidade ainda maior. A carruagem oscilou perigosamente, mas o Príncipe não se importou — Não! Lorde d’Arenville não era um príncipe, Tallie disse a si mesma, asperamente. Ele era real. Ele não poderia aparecer em nenhuma de suas fantasias tolas.
Mas Mrs. Wilmot tinha razão — com certeza era bonito. Tallie esperou que sua prima a chamasse e a apresentasse ao seu hóspede de honra. Ele chegara apenas há alguns minutos, vestido com uma capa de viagem sem mangas e um chapéu alto de abas largas e onduladas, chegando pelo caminho em uma carruagem vistosa puxada por dois tordilhos bem combinados.
Ela o vira apear-se, jogando as rédeas para o cavalariço, e adiantando-se para inspecionar seus cavalos suados antes de se voltar para cumprimentar os anfitriões. Estas eram, então, suas prioridades — os cavalos antes das pessoas.
Porém, era absurdamente belo. Cabelos escuros, espessos e macios, cortados curto em volta de uma cabeça bem formada. O rosto claramente esculpido, duro em sua austeridade, o nariz longo e reto, e lábios firmes, sérios, finamente moldados. Seus maxilares também eram longos e quadrados, saindo do queixo de maneira brusca e descomprometida. Era alto, com pernas longas e duras de cavaleiro, e uma constituição física forte. Assim que tirou seu sobretudo, ela pode ver que os ombros largos não eram o efeito do estofamento, mas de uma musculatura bem desenvolvida. Um esportista, não um almofadinha... um rei pirata... Não! Um hóspede arrogante de sua prima arrogante.
Tallie observou-o cumprimentar Laetitia — um leve inclinar-se, uma sobrancelha arqueada e um mero toque dos lábios na mão. Ele não era um dos seus... namoricos, então. Tallie suspirou de alívio. Bom. Ela odiava quando sua prima a usava e as crianças para encobrir o que ela chamava de seus “pequenos flertes”.
Laetitia voltou-se para apresentá-lo àqueles da criadagem cujos nomes ele poderia precisar — o mordomo, a governanta etc. Tallie o observava, notando o modo como seus olhos de pestanas espessas passavam indiferentemente por Brooks e Mrs. Wilmot.
— E esta é uma prima distante, Miss Thalia Robinson, que mora aqui e toma conta das coisas para mim.
Tallie sorriu e fez uma reverência. Os frios olhos cinza pousaram sobre ela por meio segundo somente, e continuaram. Este não é um cavaleiro galante, mas um conde cruel, calculando friamente a desgraça da heroína. — Basta!
Mrs. Wilmot estava certa. O homem agia como se esperasse que o mundo todo caísse aos seus pés. Ela se questionava sobre qual das jovens damas era sua futura esposa. Não tinha preferência por nenhuma delas, mas não podia imaginar ninguém querendo se casar com este arrogante Iceberg.
— Thalia! — Sua prima tinha um tom contrariado. Tallie correu para dentro.
— Você me chamou, prima Laetitia? — ela não se permitiu olhar para lorde d’Arenville, apesar de estar muito consciente de sua presença ali perto.
— Eu pensei que havia sido clara!
Sua prima gesticulava, irritada. Tallie olhou para cima. Três pequenas cabeças apontavam através dos balaústres em completo desafio às ordens que Laetitia dera em relação às crianças. Elas não deveriam ser ouvidas nem vistas durante a house party.
— Seus filhos, Tish? — sua voz era profunda e ressonante. Em um homem de natureza mais quente, isso poderia ser muito atraente, pensou Tallie insolentemente. — Eles não querem descer? — acrescentou.
Tallie parou, enquanto o olhava, surpresa. O Iceberg estava interessado nos filhos de sua prima?
— Não, eles não querem — disse Laetitia, rapidamente. — Já passou da hora de eles irem para a cama, e esta é uma das pequenas tarefas de Thalia, certificar-se de que eles o façam. Thalia! Por favor!
Tallie correu escada acima. Hora de eles estarem na cama, com certeza! Às cinco da tarde? E uma de suas pequenas tarefas? Entre outras cem, mais ou menos, que sua prima exigia dela diariamente em troca de casa e comida. Alcançou o segundo patamar, onde duas menininhas e um menino estavam sentados. Observada por dois pares de olhos, ergueu a menor, que apenas aprendera a andar, pegou a outra pela mão e dirigiu-se ao quarto, o menino pulando e saltando à frente.
— Agora, Magnus — disse Laetitia —, Brooks lhe mostrará o seu quarto, e você pode se preparar para encontrar meus outros hóspedes no salão de jogos aproximadamente às seis.
— Uma bandeja de lanche já foi providenciada, Madame, com chá quente e café, sanduíches e conhaque — disse Brooks — e a água quente já está esperando lorde d’Arenville.
— Oh, bem, está bom, Brooks — disse Laetitia.
— Miss Tallie já providenciou isso para todos, madame. Ela fez o mesmo para todos os hóspedes — disse Brooks, escondendo um sorriso. — Apenas mais uma de suas pequenas tarefas. Faça o favor de me seguir, milorde. A madame o colocou no Quarto Azul.
— Thalia, você deverá comer à mesa nesta noite. O patife do Jimmy Fairfaz trouxe dois amigos com ele, e nós temos falta de damas. E você disse à cozinheira que devemos ter gansos além de frangos? Eu não tenho tempo de discutir o cardápio com ela, então você deve verificar isso. E providencie para que os hóspedes adicionais tenham as suas camas feitas. Estou exausta e preciso descansar antes do jantar. Meu Deus, eu espero que Magnus esteja grato pelo esforço que estou fazendo por ele. Ficarei feliz quando tudo tiver terminado.
— Eu não tenho nada para vestir para o jantar, prima.
— Meu Deus, menina, como se alguém fosse se importar com o que você veste. Você só vai completar o número de convidados.
— Eu só tenho um vestido de noite, prima, aquele que você me deu há muitos anos, e deve saber que ele não cabe em mim.
— Então o aumente, pelo amor de Deus! Ou vista um xale ou algo parecido sobre ele. Não espere que eu pense em tudo! Agora, me deixe imediatamente!
— Está bem, prima. — Tallie murmurou entre os dentes. Era contra a sua natureza submeter-se assim tão facilmente à grosseria de sua prima, mas a pobreza a ensinara a ter uma visão mais pragmática das coisas. Era insuportável ser tratada daquele modo. Por outro lado, Laetitia raramente estava presente, e a maior parte do ano só Tallie, as crianças e os empregados permaneciam em Maniúgham. Na verdade, tinha uma vida encantadora. Uma órfã sem um centavo deveria ser grata por ter um teto acima de sua cabeça. Não sentir-se grata era, sem dúvida, uma deficiência em seu caráter.
Tallie desceu as escadas correndo. Falou com a cozinheira sobre o cardápio, com Mrs. Wilmot sobre as providências para os hóspedes inesperados, e com Brooks sobre os vinhos para o jantar, depois correu novamente escada acima para cuidar de seu vestido.
Dez minutos mais tarde estava desesperada. Laetitia era menor do que ela, com uma imagem extremamente delicada de sílfide. O vestido verde pálido de musselina era muito decotado no peito e nos ombros, e caía frouxamente a partir de uma cintura alta. Em Tallie, o decote profundamente cavado ficava apertado, fazendo com que seus seios se tornassem incomodamente salientes. A cintura estava apertada demais.
Não era uma costureira exímia e, mesmo se o fosse, não poderia aumentar o que estava pequeno demais. Conseguiu encher o decote com renda velha, de maneira que este pelo menos a cobria decentemente, apesar de ainda estar apertado demais. Alinhavou um babado na bainha. Parecia bastante ridículo, mas ao menos cobriria seus quadris.
Finalmente se envolveu em um grande xale estampado para esconder o vestido apertado. Com certeza, seria suficiente para sobreviver ao jantar. Olhou-se no espelho e fechou seus olhos em um tormento momentâneo. Ela parecia um perfeito quebra-cabeça! — Ainda assim, disse a si mesma, Laetitia estava certa. Ninguém nem a notaria.
Magnus tomou outro gole de armagnac, e se questionou por quanto tempo ainda agüentaria o alvoroço de moças ao seu redor. Sua paciência estava no limite, e ele só poderia culpar a si mesmo por isso. A house party estava sendo um desastre.
Dez dias na companhia constante de moças distintas já teria sido suficientemente ruim — ele havia se preparado para esta penitência. Mas deveria ter pensado que Laetitia selecionaria um bando barulhento de damas como ela — mimadas, vãs, insípidas e tolas. Magnus estava quase rígido de tanto tédio.
E irritação — pois esperara poder observar as jovens de maneira não explícita, fazer uma seleção discreta e providenciar tranqüilamente um casamento. Ah! Que piada! Sua desprezível prima tinha tanta discrição quanto um papagaio!
Bustos leitosos erguiam-se, e estremeciam sob seu nariz a cada oportunidade. Ancas arredondadas saíam subitamente de seu esconderijo. E cada vez que ele entrava em um cômodo, pálpebras batiam tão fervorosamente que quase criavam uma corrente de ar. Ofereceram-lhe amostras de virtuosidade em harpa, piano e flauta, teve aquarelas colocadas sob o nariz, sua inspeção de especialista timidamente solicitada. Sua opinião masculina superior fora procurada e deferida em relação a todo tópico possivelmente existente, e seus pronunciamentos muito relutantes saudados com suspiros bajuladores e admiração melosa.
Elas o abordavam de manhã, ao meio-dia e à noite — no jardim, no salão de jogos, na sala de café da manhã — até mesmo, uma vez, atrás dos estábulos, onde um homem tinha o direito de esperar alguma paz e tranqülidade. Mas não adiantava — as damas elegíveis o emboscavam, aparentemente, em todo canto da propriedade.
Ainda assim, apesar da aversão opressiva à tarefa em suas mãos, Magnus estava determinado a escolher uma esposa.
O problema era que Magnus não conseguia imaginar nenhuma delas como mãe de seus filhos. E, como Laetitia, todas elas desprezavam a vida rural.
Isso era um problema. De certo modo, esperava que sua esposa vivesse em d’Arenville, com as crianças. Mesmo sabendo que poucas assim faziam. Sua própria mãe não o fizera.
A mulher de Freddie vivia aparentemente feliz, durante o ano todo, nas regiões selvagens de Yorkshire com seu marido e filhos. A felicidade óbvia das crianças provocara uma profunda impressão em Magnus — seus próprios pais vinham para casa em intervalos raros, cujas visitas eram a ruína de sua jovem existência.
Mas a mulher de Freddie parecia verdadeiramente amar seus filhos. A própria mãe de Magnus parecia amá-lo — na presença de outros. Assim, a mulher de Freddie poderia estar fingindo, mas ele não acreditava nisso. Ela também parecia amar ao marido. Mas Freddie era, Magnus sabia, uma pessoa digna de amor.
Não era assim com Magnus. Fora claramente uma criança indigna de amor, e, por isso, era um homem indigno de ser amado. Mas faria tudo ao seu alcance para assegurar a seus filhos uma chance de serem dignos de amor. E com isso de serem amados.
— Oh, que tarde acolhedora e deliciosa! — exclamou Laetitia. — Vamos passear no terraço antes do jantar. Venha Magnus, como meu hóspede de honra, você deve escoltar a dama de sua escolha.
Olhares femininos se voltaram para ele. Magnus amaldiçoou sua prima por tentar forçá-lo. Ela queria claramente o fim da house party para poder voltar à cidade e às milhares diversões por lá. Sorriu. Não dançaria conforme a música de nenhuma mulher.
— Então, como bom hóspede, eu devo estar sob os cuidados de minha charmosa anfitriã.
— Será que deveríamos, primo?
Ele tomou o seu braço, não lhe permitindo escolha.
Tallie seguiu sem graça o cortejo, se sentindo totalmente envergonhada. Várias das jovens olhavam seu vestido, sussurrando e dando risinhos sufocados com olhares de deboche. Suas mães a ignoraram completamente, e dois dos homens convidados fizeram sugestões impróprias.
Estava zangada, mas disse asperamente a si mesma que pouco adiantava expressar seus sentimentos — logo eles iriam embora, e seria deixada em paz novamente.
A pálida jovem marquesa mantinha seu queixo altivo, ignorando os vis insultos lançados a ela pelos canalhas ignorantes, enquanto a carroça rodava.
Tallie esgueirou-se discretamente para o canto do terraço, e olhou por cima da balaustrada de pedra para a área de grama recentemente cortada e para os bosques mais além. Era uma vista verdadeiramente encantadora...
— Aargh! Sai, besta nojenta! — os gritos de Laetitia enchiam o ar. — Alguém tire isso de mim! Aargh!
Tallie correu para ver o que acontecera.
O filhinho de sua prima, Georgie, obviamente fugira do seu quarto e fora passear com o cachorrinho que Tallie lhe dera várias semanas antes. Ele estava diante de sua mãe, estendendo pateticamente um buquê desordenado de galantos em sua direção, os sapatos e calças cor de nanquim cobertos com lama, assim como seu cachorrinho. Esta era a causa do barulho — marcas de patas enlameadas sujavam o vestido de seda amarelo claro de Laetitia.
Tallie ainda estava tentando abrir passagem entre a multidão de hóspedes, quando lorde d’Arenville pegou o cãozinho, o suspendeu pelo cangote para o garotinho. Ela alcançou a criança no momento em que o discurso furioso de sua mãe se desencadeou sobre ele.
— Como você ousa trazer este animal imundo para perto de mim, garoto mal-educado! Está vendo o que ele fez? Este vestido está arruinado!
O rostinho empalideceu em desespero. Sem dizer nada, Georgie oferecia o pequeno buquê de galantos. Laetitia o arrancou impacientemente de sua mão e o jogou no chão.
— Não tente me agradar, Georgie! Veja o que você fez? Olhe para este vestido! Foi usado pela primeira vez hoje, é de um dos mais finos estilistas de Londres, e custou o olho da cara! Por que um garoto mal-educado trouxe um animal nojento para um encontro civilizado? Quem lhe deu a permissão de sair do quarto?
As faces do menininho empalideceram ainda mais. Seu corpinho tremeu de terror ao sentir o veneno na voz de sua mãe. Seu rosto se franziu de medo e ele apertava fortemente o cãozinho contra seu peito, em desespero. Este chorou e se debateu, tentando se soltar.
Magnus observava, tenso como nunca estivera desde a época em que era um menininho. Sentiu pena do menino, mas não era seu papel interferir na disciplina de uma mãe a seu filho.
Seria difícil para o menino perder seu querido cãozinho, mas era provavelmente melhor para Georgie que ele aprendesse agora, e não mais tarde. Os animais de estimação eram com certeza usados como chantagem para o bom comportamento de alguém. Uma vez que o menino tivesse aprendido a não se importar tanto, sua vida seria mais fácil. Magnus com certeza o descobrira deste modo... apesar da aprendizagem ter sido muito dura... três animais de estimação morreram por causa de sua desobediência quando ele tinha oito anos.
Polly, sua companheira constante e sua melhor amiga, fora a última. Um dia a levara para caçar, em vez de terminar suas lições de grego, e seu pai mandara sacrificar Polly para ensinar a seu filho uma lição de responsabilidade. Magnus aprendera bem esta lição. Aos oito anos, aprendera a não se ligar a animais de estimação. Nem a mais nada.
— Eu sinto muito pelo acidente infeliz, prima.
— Você sente muito? — Laetitia continuou. — Sim, eu farei com que você sinta muito! As crianças são sua responsabilidade, então como pode ser que uma delas tenha tido a permissão de fugir do quarto?
Magnus encostou-se em uma grande urna de pedra, cruzou os braços e observou friamente a cena. Notou o modo como a deselegante priminha usou seu corpo para cobrir o da criança, protegendo-o de sua própria mãe. Era uma manobra interessante — para uma parenta pobre.
O menininho se apertava contra suas saias, o cãozinho enlameado ainda em seus braços. Magnus observou como a mão da moça repousou discretamente na nuca da criança. Ela a acariciou com pequenos movimentos tranqüilizadores. Magnus notou o menininho relaxar sob sua proteção. Tallie o segurou mais firmemente contra o corpo, ao mesmo tempo mantendo a fúria de sua prima focalizada em si. As palavras eram de desculpas, mas sua atitude sutilmente desafiadora.
Fascinante, pensou Magnus. Será que a moça não tinha consciência do que arriscava ao desafiar sua prima? E a criança nem era sua.
— O acidente foi minha culpa, prima — disse —, você não deve se zangar com o pobre Georgie, pois ele tinha a minha permissão para sair do quarto. E eu sinto muito por seu vestido estar sujo. Mas eu não posso permitir que o cãozinho seja morto.
— Você? Você não pode? — gaguejou Laetitia.
— Não, pois o cãozinho não pertence nem a Georgie, nem a você.
A criança olhou para a moça.
— O cãozinho é meu. Ele... foi um presente do... do pároco, e eu não posso permitir que destrua um presente por causa de um pouco de nervosismo...
— Você não pode permitir?
— Sim, cãezinhos serão sempre cãezinhos, e meninos e cães parecem atrair um ao outro, não é? É por isso que eu fiquei tão grata a Georgie, neste caso.
— Grata?
— Sim, muito grata, na realidade, porque eu tenho estado por demais atarefada ultimamente para exercitar cãozinho, e Georgie assumiu esta tarefa para mim, não é, querido Georgie?
Ela balançou a cabeça para cima e para baixo de maneira encorajadora, e ele, confuso, assentiu de volta.
— Sim, e qualquer dano que o cãozinho tenha feito em seu vestido deve ser posto em minha conta.
— Mas...
— Agora, Georgie, eu acho que você e o meu cãozinho já tiveram bastante excitação por uma noite, mas será que você faria mais uma coisa para mim?
Ele assentiu com a cabeça.
— Você poderia levar, er... Rover...
— Satan — Georgie a corrigiu.
— Sim, é claro, Satan. Você poderia por favor levar, er... Satan, para o canil e lavar a lama nele para mim? Como você vê, estou vestida para o jantar, e as damas não devem ir ao canil com seu melhor vestido.
Suas palavras tiveram o efeito infeliz de atrair a atenção de todos para o seu “melhor vestido”. Ouviram-se alguns risos de escárnio, que ela ignorou com o queixo em pé.
— O que é, meu amor? — disse.
Sentindo-se culpado, ele estendeu um dedo imundo e apontou para a lama que agora riscava o seu vestido. Ela olhou para baixo e riu, em um caloroso tom de despreocupação.
— Não se preocupe com isso, meu querido, quando a lama estiver seca, eu a escovarei até que saia. Agora, pelo amor de Deus, leve este cãozinho atentado, e limpe a vocês dois antes que outro acidente aconteça.
Aliviado, o menininho saiu correndo com o cãozinho apertado no peito.
— Você acha que é bom para você estar ao ar livre de noite em um vestido úmido e enlameado, prima? — interrompeu Tallie. — Não gostaria que você pegasse um resfriado, e você sabe que é extremamente suscetível a isso...
Batendo o pé, e com um safanão do vestido de seda amarelo-claro, Laetitia deixou o terraço, ordenando que sua criada fosse enviada a ela imediatamente.
Tallie dobrou-se, juntou as flores destruídas de Georgie e só então notou lorde d’Arenville.
Sua expressão era ilegível, e seus olhos cinzentos de pestanas espessas a observavam impassivelmente. Que homem horrível, pensou. Esperando para ver se há mais atração por vir. Levantou o queixo com frio desprezo e passou por ele sem dizer uma palavra.
— Bem, Magnus, que tal minhas candidatas?
Tallie se imobilizou. Enquanto escrevia os acontecimentos do dia em seu diário, a tinta acabara. Ela se esgueirou pela escada dos empregados até a biblioteca. Concentrada, ela não ouvira sua prima e lorde d’Arenville entrarem na biblioteca. Olhou em volta, mas eles estavam escondidos pelas pesadas cortinas de veludo, parcialmente puxadas através da alcova.
Ela se levantou para anunciar sua presença, mas estancou, lembrando-se do vestido maltrapilho que usava. Laetitia; ainda furiosa pelo modo com o qual Tallie a confrontara em relação a Georgie e o cãozinho, estimulara seus hóspedes a atormentarem Tallie ainda de maneira mais odiosa do que antes, e ela não agüentaria mais isso.
— Você sabe perfeitamente bem, Tish, que eu estou procurando uma esposa, não uma mulher caprichosa.
Tallie engoliu, envergonhada. Esta era uma conversa muito particular. Ninguém lhe agradeceria por ter ouvido isso. Talvez ela devesse se esgueirar para o terraço. Dirigiu-se para lá. Furtivamente, fez o ferrolho deslizar para trás e girou a maçaneta, mas esta não se moveu — a tramela estava emperrada.
— Bem, querido primo, qual delas tem os dentes, os quadris e o temperamento plácido que você requer na mãe de seus herdeiros? Todas têm linhagens impecáveis, pode ter certeza disso.
Era tarde demais para declarar sua presença agora.
— Quanto a estas exigências, a maioria de suas candidatas as cumpriria, apesar de Miss Kingsley ter os quadris estreitos demais.
O queixo de Tallie caiu. Exigências? Candidatas? Estas jovens lá fora haviam sido reunidas como candidatas?
Tallie estava enojada. Que tipo de homem escolheria uma esposa de maneira tão fria e desapaixonada? Mrs. Wilmot estava certa — ele era tão belo quanto uma estátua grega, mas obviamente tinha um coração de pedra para combinar. Tallie esperava ansiosamente que ele selecionasse Miss Fiffe-Temple como esposa.
Miss Fiffe-Temple era uma das mais belas jovens hóspedes e a que falava mais docemente — na presença dos outros. Na realidade, ela possuía um temperamento sórdido, era uma pequena harpia malévola, que descontava seu gênio nos empregados, fazendo exigências impossíveis com uma voz estridente, beliscando e batendo nas criadas mais jovens, do modo mais perverso possível. Na opinião de Tallie isso a transformava na perfeita esposa para lorde d’Arenville!
— Na realidade, eu passei a ver, ao refletir sobre isso, que minhas exigências eram inadequadas.
Talvez, ela tivesse sido precipitada demais ao julgá-lo, Tallie pensou.
— Jarretes fortes, talvez, Magnus? — Laetitia claramente tomara mais champanhe do que era adequado a uma dama. — Até onde você quer testá-las? Fazê-las saltar por cima de alguns obstáculos? Colocá-las em uma cerca ou duas? Ou perguntar-lhes se elas gostam de aveia? Eu acho que Miss Camegie tem sangue escocês. Com certeza ela gostará de aveia. — Tallie evitou rir alto demais.
— Muito engraçado, Tish — disse lorde d’Arenville secamente. — Eu não tenho nenhum interesse nas preferências culinárias de ninguém ao norte da fronteira, nem quero me preocupar com características físicas adicionais das jovens damas que você selecionou.
Os olhos de Tallie se arregalaram. Laetitia selecionara as jovens? Ele simplesmente esperava escolher uma? Sem se preocupar em fazer a corte? Que homem insuportável! Tão inflado em seu próprio conceito que não precisava considerar os sentimentos de nenhuma jovem dama, supondo que ela ficaria suficientemente lisonjeada apenas com seu pedido!
— Então, Magnus, que outros critérios você tem para a mãe de seus herdeiros?
— Ocorreu-me que a maioria de suas candidatas é bastante mimada, e costuma ter todas as suas vontades satisfeitas.
— Bem, naturalmente elas são um pouco mimadas, mas isso era de se esperar...
— Você não está entendendo, Tish. A maioria destas jovens damas considerou uma penitência quase intolerável vir para o campo.
— Bem, claro que sim, Magnus! — Laetitia replicou acerbamente. — Qualquer mulher acharia. Quem, em sua sã consciência, gostaria de se esvair no campo?
— Eu quero que a mãe dos meus filhos more com eles, e Londres não é um lugar para crianças.
— Que besteira!
— Você sabe que isso é verdade, Tish, você mesmo mantém seus filhos aqui no campo durante o ano todo.
— Sim, Magnus, as crianças moram aqui durante o ano todo, não eu. Eu entraria em depressão se ficasse enterrada aqui por um ano inteiro!
— E as crianças, elas não sentem falta dos cuidados de sua mãe?
Tallie teve que sufocar uma outra risada ao ouvir isso. Laetitia, uma mãe amorosa! As crianças a amariam se ela as deixasse.
— Naturalmente, eu passo tanto tempo quanto posso com meus queridos, mas eu também tenho minhas necessidades, Magnus. Tenho responsabilidades como esposa de George, e elas estão em Londres, o que não é minha culpa. Não pense que eu negligencio meus filhos, pois eu os deixo aos melhores cuidados.
— Sim, eu pude observar isso. — A voz de lorde d’Arenville era pensativa. — Sua robusta priminha.
Robusta! Como ele ousava? Robusta? Tallie se sentia mortalmente insultada. Ela podia não ser uma sílfide como Laetitia, mas não era robusta!
— Você está mudando de assunto, Magnus. — Robusta! Besta insensível!
— Você diria que alguma destas jovens damas concordaria em viver no campo por, digamos, dez anos?
— Dez anos? — A voz de Laetitia se elevou e tornou-se um grito horrorizado. — Nenhuma mulher em sua sã consciência concordaria com isso! Meu Deus, você quer uma freira, não uma esposa, não é? Seu pai tentou isso, se você se lembra, e se apegou a isso no máximo por seis meses, enquanto sua mãe o traía com cada cavalariço, cada garoto de estábulo e fazendeiro arrendatário no distrito. Além de satisfazê-lo, é o que eu digo. Não, você não pode estar pensando que isolar uma esposa no campo asseguraria sua fidelidade, não depois disso.
— Minha decisão não tem nada a ver nem com você, nem com minha mãe. É que minha esposa não pode se importar em passar os anos de crescimento de meus filhos em minha propriedade no campo com eles.
— Bem, poderia ter avisado, pois eu não teria me dado ao trabalho de fazer todo mundo perder tempo com esta charada ridícula. Eu estou muito zangada com você, Magnus. Eu deveria ter notado que não estava falando sério quanto a querer uma esposa.
— Eu estou falando muito sério.
— Bem, com certeza aqui você não encontraria nenhuma que aceitaria...
— Mas eu encontrei.
— Você o quê? Não me diga que alguma delas concordou com seus termos ultrajantes, Magnus! Oh, eu não posso acreditar nisso! Quem é ela? Não, não me diga, deixe-me adivinhar. Lady Helen... não. Ela é positivamente viciada na vida em sociedade. E não poderia possivelmente ser Miss Blakeney. Ninguém tão elegante concordaria em ser enterrado no campo por dez anos. Oh, eu desisto, Magnus, quem é ela?
Houve uma longa pausa. Tallie esperou com a respiração contida. Não podia imaginar nenhuma jovem dama concordando com termos tão desumanos.
Dez anos no campo, realmente! E ele se limitaria do mesmo modo às restrições da vida no campo? Tallie quase suspirou alto. Claro que não! Somente sua pobre mulher seria afastada da sociedade, criando seus herdeiros como uma boa égua reprodutora.
— Bem, Magnus, não me deixe esperando o dia todo. Que esposa você escolheu?
Tallie se debruçou, apoiada na maçaneta da porta, ansiosa para ouvir sua resposta.
— Eu decidi casar-me com...
Subitamente a tramela cedeu, e Tallie tropeçou para o lado de fora, na noite, perdendo sua resposta. Temendo que a escuta clandestina fosse descoberta, empurrou a porta, fechando-a, e esgueirou-se para longe. Um pouco irritada por ter perdido a melhor parte da fofoca, correu para a cozinha. Que infeliz jovem dama teria lorde d’Arenville escolhido para sua esposa? Ela logo descobriria, supunha. Quem quer que fosse, Tallie não a invejava. Isso nada tinha a ver com ela, exceto pelo fato de que a sua escolha assinalaria o final da house party. Todos os hóspedes desagradáveis voltariam para Londres, e ela retornaria à vida pacífica que levara antes. Tallie quase saltou de alegria a esta perspectiva.
Quando Tallie desceu para o café na manhã seguinte, ficou surpresa ao ver que vários hóspedes de sua prima já haviam se levantado. Parou no pórtico, sentindo-se desajeitada e malquista. Apesar disso, decidiu, esta era sua casa e tinha todo o direito de tomar o seu café.
Um súbito silêncio caiu sobre o lugar. Foi até o aparador e inspecionou o café da manhã, consciente dos olhares hostis perfurando suas costas. Após um momento, o zunir das conversas retomou.
—... ela até que soube se dar bem.
— Mas, minha querida, a gente se questiona quanto ao que ela precisamente fez para assegurar...
Eles estavam falando da esposa de lorde d’Arenville, Tallie pensou. Ele deve ter anunciado seu noivado no baile. Isso explicaria por que tantos haviam descido para o café da manhã. Sem dúvida desejavam partir.
— E, é claro, a pobre Tish está muito furiosa.
— Claro, minha querida. Você não estaria? Após tudo o que fez por ela, agora isso! Que ingratidão...
— Foi uma armadilha, sem dúvida.
— Oh, sem dúvida!
— Oh, sim, Brooks — Tallie sorriu para ele, e estendeu sua xícara para que a enchesse. Enquanto Brooks o fazia, Miss Fyffe-Temple, uma das que se sentavam ao lado de Tallie, deu-lhe uma cotovelada brusca. O café quente se derramou na mão e no braço da moça. Ela saltou, com um grito de dor.
— Oh, Miss Tallie! — exclamou Brooks.
— Como fui desajeitada! — murmurou Miss Fyffe-Temple. — Que marca vermelha feia! Eu espero que não deixe uma cicatriz...
— Sim, está bem vermelho e feio. Está doendo muito? — acrescentou Miss Carnegie.
— Oh! Que repugnante! Acho que vou desmaiar — exclamou a Honorável Miss Alderco. As outras imediatamente se juntaram em volta de Miss Aldercott.
Segurando as lágrimas, Tallie foi para a área de serviço. Mergulhou seu braço em um jarro de água fria e suspirou aliviada. Ainda doía bastante, mas ela não achava que a queimadura fosse muito grave. Mas por que Miss Fyffe-Temple fizera isso? Tallie não deixara de perceber o lampejo malvado de satisfação em seus olhos enquanto se desculpava.
— A senhorita está bem, Miss Tallie?
— Não é nada sério, Brooks, é verdade.
— Eu não sei como isso foi acontecer. Ela... meu braço simplesmente escorregou.
— Está tudo bem; eu sei de quem foi a culpa, Brooks. O que eu não entendo é por que ela fez isso.
— Eu acho que a senhorita deveria falar com sua prima, miss — disse. — Ela ainda está na cama, mas eu não tenho dúvidas de que a está esperando.
— Eu vou subir e encontrá-la, então, assim que tiver colocado um pouco de manteiga e uma gaze nesta queimadura — disse lentamente. A julgar pela expressão de Brooks, algo estava errado.
— Eu? — Tallie gritou. Olhou para sua prima, o queixo caindo, totalmente surpresa.
— Ah! — cuspiu Laetitia, segurando sua cabeça delicada. — Eu aposto que ele a conhece de outras maneiras, sua espertinha! No sentido bíblico! Por que então ele escolheria uma indigente, um nada como você?
Tallie arfou primeiro chocada, depois cada vez mais ultrajada. Uma coisa era lhe pedirem que engolisse uma história absurda — lorde d’Arenville querendo se casar com Tallie Robinson, realmente! Mas ser acusada de imoralidade!
— Deixe-me dizer-lhe uma coisa, prima — disse enfaticamente. — Primeiro, nenhum homem nunca me conheceu no sentido bíblico, e estou chocada com o fato de que você possa até mesmo sugerir algo assim. Segundo, não posso evitar acreditar que você esteja errada em relação às intenções de lorde d’Arenville.
— Você pensa que eu imaginaria algo tão horrível? — Tallie rangeu os dentes. Imaginação, sim! Ela não podia imaginar nenhum membro da aristocracia, principalmente o arrogante lorde d’Arenville, escolhendo a parente pobre de sua prima como esposa.
— Mas eu não troquei nem mesmo uma palavra com ele — exclamou Tallie.
— Eu não acredito — guinchou Laetitia.
— Prima! Eu dou a minha palavra! — Tallie tentou manter a voz em um tom calmo.
— Não minta, menina! Ele mesmo me disse que a escolheu.
Um pequeno nó frio de medo se alojou no estômago de Tallie. Ela nunca vira Laetitia tão furiosa antes, e conhecia bem sua prima. Havia algo de duro, de implacável nela. Este mal-entendido idiota — resultado de excesso de champanhe, sem dúvida, ou talvez de uma peça pregada por lorde d’Arenville — poderia ter terríveis conseqüências para ela.
— Bem, ou você não o entendeu bem, prima, ou então ele está lhe pregando uma peça odiosa.
— Uma brincadeira? — Laetitia bufou. — Magnus não brinca, não com casamento.
— Talvez você tenha tomado um pouco de champanhe demais, prima, e não tenha notado que ele estava lhe pregando uma peça. — Fez mais uma tentativa.
— Isso não faz sentido! Eu sei o que ouvi!
— Eu vou falar com ele e esclarecer o assunto de uma vez, está bem? — Tallie se levantou. Com certeza era alguma peça que lorde d’Arenville estava pregando em Laetitia. Tallie não se divertia com isso. Sua brincadeirinha já fizera com que se queimasse com café quente, e agora estava ameaçando seu trabalho na casa de Laetitia. Mas Sua Alteza pensaria nisso? Ele não!
Ele, a quem fora dado tudo o que seu coração desejava, desde quando nascera — não lhe ocorreria que algumas pessoas viviam em uma tênue linha entre sobrevivência e miséria. E o que estava entre Tallie e a pobreza abjeta era a boa vontade de sua prima, e nenhuma brincadeira descuidada a colocaria em jogo! Lorde Nariz-em-Pé logo aprenderia que ao menos uma pessoa não estava disposta a ter sua vida destruída por causa do capricho de um lorde!
Ela o encontrou na sala de estar do térreo, folheando indolentemente um jornal.
— Lorde d’Arenville — ela começou, fechando a porta firmemente atrás de si. — Eu acabei de falar com minha prima Laetitia...
Ele colocou o jornal educadamente de lado, levantou-se e veio em sua direção. A voz de Tallie desapareceu. Céus, ele era tão alto. Ela o notara mais cedo, é claro, mas agora, de pé, tão perto, pairando sobre ela...
— Ah, Miss Robinson. Bom dia. Não é um dia lindo? Sente-se, por favor.
Miss Robinson? Ele se lembrava de seu nome?
— Er, obrigada. — Tallie se permitiu que ele a guiasse até um divã baixo. Ele puxou uma cadeira à sua frente.
— Você desejava falar comigo?
Para seu grande embaraço, Tallie se sentiu enrubescer. Uma coisa era sair correndo declarando que logo esclareceria toda a confusão, e outra era confrontar-se com este aristocrata imaculado e polido sobre uma história totalmente impossível.
— Laetitia...? — ele sugeriu.
Tallie sentiu seu rubor se intensificar. Tudo isso já era ridículo demais. Ela tinha que escapar. Não podia perguntar a este homem se havia algo de verdadeiro no boato de que ele desejava se casar com ela. Isso era obviamente um erro. Sabia que estava sendo covarde, mas não podia imaginar esta criatura séria e fria considerando-a — mesmo em uma brincadeira — como uma esposa elegível. Por outro lado, Tallie não descartava a idéia de que sua prima pudesse estar querendo humilhá-la com esta história. Tallie já podia imaginar Laetitia entretendo seus amigos londrinos com a piada... Imagine, esta garota tola e estúpida acreditando realmente que Magnus desejava se casar com ela! Quando é só ele estalar os dedos para ter o melhor da sociedade!
— Er.... a prima Laetitia teve a impressão... — o olhar de Tallie caiu sobre o jornal. —... de que as empregadas se esqueceram de passar o jornal para o senhor, mas eu vejo que elas o fizeram, então eu me vou agora e direi a ela que tudo está... organizado.
Ela levantou-se para sair. Lorde d’Arenville também se levantou.
Céus! Ele estava ali novamente, de pé, tão perto dela que Tallie podia sentir o leve perfume penetrante de colônia masculina. Tallie deu um passo para trás e tropeçou no divã. Ele estendeu uma mão forte e a segurou pelo braço, até que se aprumasse e depois a liberou.
— Obrigada... tão estabanada... — murmurou, aturdida e contrariada consigo mesma por ser assim.
— Fique mais um momento, Miss Robinson. — Tallie olhou para cima, intrigada. Um vago sinal de alarme soou em sua mente quando viu o olhar cheio de intenções em seus olhos cinzentos e frios, mas ela o fez calar imediatamente. Sem dúvida ele tinha alguma queixa sobre um empregado.
Magnus notou a maneira tranqüila com a qual ela unira suas mãos, o que lhe pareceu um gesto feminino agradável. Todo o seu comportamento lhe agradava. Com certeza Laetitia lhe falara de sua decisão, e, enquanto, ao mesmo tempo, ele desejava que ela não o tivesse feito, as reações da moça confirmavam a sensatez de sua escolha. Não estava nem repleta de excitação vulgar, nem de agitação falsamente recatada.
— Você disse que falou com Laetitia? Claro, eu deveria ter esperado que ela não conseguisse manter isso só para ela.
Sem esperar por sua resposta, lorde d’Arenville, inesperadamente nervoso, começou a explicar.
— Seria melhor se o casamento acontecesse o mais rápido possível. É preciso três semanas para que os proclamas corram. Nós nos casaríamos nesta casa, e meu primo George a levaria ao altar. Eu preferiria algo pequeno, só minha família mais próxima — seu marido — e, é claro, quaisquer amigos ou parentes que você queira convidar...
Não podia ser verdade. Ela não estava sentada ali, ouvindo este homem frio e arrogante elaborar as providências para seu casamento. O casamento dela! O seu casamento com Tallie Robinson! Uma moça com a qual ele não trocara nem duas palavras. Mas ele nem mesmo lhe perguntara se ela queria se casar com ele! Após algum tempo, o choque se desvaneceu, e ela notou que estava furiosa. E extremamente mortificada. Sabia que a possibilidade de se casar era pequena. Morando no campo como administradora gratuita de Laetitia, tinha contato com muito poucos homens elegíveis, e, sem beleza nem fortuna para recomendá-la, suas possibilidades eram mínimas. Mas uma coisa era enfrentar a perspectiva de uma vida solitária e sem amor, outra, ser tão pouco considerada que nem mesmo merecesse a aparência de uma corte. Seus sentimentos e desejos significavam tão pouco para ele?
Lorde d’Arenville se levantou de sua cadeira e começou a andar para um lado e para o outro à sua frente, explicando as providências. Ele notou o rubor delicado de sua noiva, sua cabeça modestamente abaixada, e se cumprimentou novamente pela excelente escolha que fizera. Esta não era nenhuma dama mimada. Estava sentada ali, mansamente, ouvindo seus planos.
Como ele poderia ter sido tão tolo a ponto de considerar uma mulher sofisticada da sociedade para ser mãe de seus filhos? Thalia Robinson seria grata por sua oferta — ela não tinha ambição mundana, nenhum temperamento hipersensível.
Seus olhos passaram pela figura de Tallie. Era difícil dizer, por causa do horrível vestido que vestia, mas ela parecia robusta — certamente suficientemente robusta para sobreviver aos rigores do parto. E esta moça, ele acreditava, possuía a capacidade de amar, e ele precisava disso — para seus filhos. Lembrou-se da maneira carinhosa com a qual suas mãos acariciaram o jovem Georgie. Ele queria isso para seu filho... sim, para seu filho...
Suas mãos tremiam, ele notou. Magnus observou com aprovação quando ela entrelaçou os dedos com energia, esforçando-se para controlar suas emoções. Excelente. Autocontrole era algo bom em uma esposa.
Ele abrandou seu tom. Sem dúvida, tal disparidade em suas respectivas situações na vida a fizeram ficar um pouco nervosa, um pouco ansiosa por agradecer-lhe. Este pensamento não desagradou Magnus. Planejava tratá-la carinhosamente — seu nervosismo passaria com o tempo, e ela, sem dúvida, seria grata por sua indulgência. Seria um começo...
Então, ela deveria ser sua égua reprodutora tranqüila e complacente, não é? A mulher que ele planejava manter murada em sua abominável d’Arenville por dez anos ou mais! Ela não o seria de jeito nenhum!
A ousadia, a arrogância, a presunção do homem! Ele devia ter decidido que uma mulher simples e pobre lhe daria o mínimo de problemas — uma mulher sem perspectivas, mas com quadris, dentes e linhagem adequada para ser mãe de seus filhos. Uma mulher robusta!
Ela tinha vontade de saltar, arremessar ao longe seu pedido de cãs... não — Tallie Robinson, a parente pobre, não merecia um pedido, pois ele nem esperara por sua resposta. Apresentara à sua futura égua reprodutora uma suposição de casamento.
Bem, o que quer que fosse, ela o lançaria em sua cara! Sobre o que ele estava falando agora? A vista para o lago da casa de verão ao pôr-do-sol? Ah! Eu sinto tanto, lorde d’Arenville, ela lhe diria, mas até mesmo a deliciosa perspectiva de ver o lago dos patos de d’Arenville ao amanhecer não pode me tentar a casar com o senhor. Eu gostaria muito mais de permanecer solteira. Eu sinto muito desapontá-lo. E ela deslizaria para fora do cômodo, a cabeça erguida, deixando-o estupefato, furioso, rangendo os dentes de mortificação.
Não, decidiu. Muito submisso, direto demais. Ele merecia provar de seu próprio veneno. Nem se preocupara em falar com ela! Simplesmente informara Laetitia, sem dúvida se oferecendo para aliviá-la de sua parente pobre. Tallie fora queimada, abusada e acusada de completa imoralidade, tudo isso por causa de sua arrogância. Ele precisava descer um degrau ou dois de seu pedestal. Ou mesmo três!
Tallie ria consigo mesma, planejando a vingança — ela o deixaria no ar. Um homem com seu orgulho e importância detestaria ser obrigado a esperar.
Os hóspedes de Laetitia obviamente sabiam da escolha de lorde d’Arenville. Eles estariam esperando o anúncio.
Tallie divertiu-se com o pensamento — ela deixaria a todos esperando... esperando... e esperando. E eles se espantariam ao fazer seu futuro marido esperar, pois, é claro, jamais ocorreria a nenhum deles que ela fosse tão tola a ponto de recusar tal prêmio!
Sim, ela os faria, a todos, esperar. Isso seria perfeito para ele! Como seu orgulho sofreria — o grande lorde d’Arenville, prêmio do mercado de casamentos, cortejado e perseguido por cada mamãe casamenteira no país, rejeitado pela insignificante parente pobre!
— Os proclamas correriam imediatamente e o casamento seria marcado para daqui a três semanas. Você teria bastante tempo para organizar seu enxoval? — perguntou lorde d’Arenville.
Ela se levantou.
— Lorde d’Arenville. Eu lhe agradeço por seu muito... surpreendente... pedido de casamento. Será que eu posso pensar na minha resposta?
Sem esperar pela sua, Tallie falou correndo:
— Obrigada, eu lhe informarei assim que puder. — O queixo de Magnus caiu. — Até lá, eu gostaria de sugerir que o senhor não tome nenhuma providência irrevogável...
— Bem, o que ele falou? Era uma brincadeira, não era? — Laetitia puxou-a para uma ante-sala próxima.
— Não, infelizmente não era — disse ela, relutantemente. — Você estava completamente certa, prima, ele pensava em se casar comigo.
— Mas ele mudou de idéia?
— Não, não exatamente.
— Eu sabia! — Laetitia bateu com o pé. — Ele é um miserável egoísta! Como pode me colocar em tal posição? Cada uma das moças lá fora estava na expectativa diária de receber um pedido! Cada uma era um diamante de primeira qualidade, e ele escolhe você!
Tallie assentiu, ignorando o insulto. Ela compreendeu o quão tola sua prima se sentia. Lorde d’ Arenville era um grosseirão arrogante, egoísta e sem consideração.
— Eu recusarei o seu pedido. — Tallie sorriu de maneira tranqüilizadora.
— Recusar o pedido de Magnus?
— Sim.
— Você? Recusar meu primo Magnus? Lorde d’Arenville?
— Claro. Eu não desejo me casar com ele, então, você não precisa se perturbar com...
— Mas que desaforo e atrevimento! Sua cadela arrogante! Quem você pensa que é para recusar meu primo Magnus? Você, uma nulidade completa! Uma mera Robinson! Ele está tão acima de você quanto o sol está acima de... de... — sacudiu as mãos, frustrada. — Como você ousa pensar em me humilhar assim?
— Mas, prima, como pode a minha recusa ao pedido de lorde d’Arenville humilhá-la? — interrompeu-a, confusa com a abrupta mudança de opinião de sua prima.
— Não se sinta triunfante nem por um momento, sua mulher vil e insolente!
— Eu não estou me sentindo triunfante — disse Tallie, indignada. — Mas não entendo. Com certeza, se eu recusar o seu pedido, isso evitará a vergonha pelo fato das pessoas saberem que ele me preferiu às suas amigas, não? Nós podemos dizer que seus hóspedes compreenderam mal...
— Ela até mesmo tem a ousadia de gabar-se de sua conquista! — resmungou. — Já me é suficientemente mortificante que o meu primo prefira esta maltrapilha insignificante a minhas amigas, mas que ela recuse seu pedido! Não, não! Isso é demais!
Voltou-se para encarar Tallie, as mãos na cintura.
— Eu não pensei que acabaria nisso quando a acolhi. Arrume suas coisas e esteja fora daqui em uma hora. John, o cocheiro, a levará de volta à aldeia onde você morou antes de ter se insinuado em meu lar.
— Por favor, prima, reconsidere. Não há nada para mim na aldeia.
— Você deveria ter pensado nisso antes de ter visado meu primo.
— Eu não o visei. Nem mesmo nunca falei com ele! Foi lorde d’Arenville quem...
— Não estou interessada em suas desculpas. Você tem uma hora. — Laetitia estava inflexível.
— Você não pode estar falando sério, prima! Eu não tenho para onde ir, para quem me voltar!
— E de quem é a culpa, me diga? Se eu soubesse que você era uma rapariga ingrata e maquinadora, nunca a aceitaria em minha casa. O assunto está encerrado. Uma hora.
— Prima! — gritou Tallie. — Será que você me escreveria uma carta de recomendação para que eu ao menos possa trabalhar como administradora?
— Que ousadia você tem! — cuspiu Laetitia. — Não, eu não o farei!
Magnus avançava com passos largos pela grama úmida, batendo enfurecidamente com o chicote contra sua bota. Ele havia planejado partir para uma longa cavalgada, mas se vira impaciente demais para esperar que um cavalariço selasse seu cavalo, então, em vez disso, saíra para uma caminhada.
Recordou a maneira como ela se sentara ali, ouvindo suas palavras com os olhos baixos, completamente doce e submissa, a nuca pálida à mostra, vulnerável e atraente. Seu cabelo na realidade não era castanho fechado, mas de uma doce cor de mel, com tendência a cachear. E quando finalmente ela olhou para ele, Magnus notou que tinha olhos bastante belos, da cor de âmbar profundo, com longas pestanas escuras.
Sim, ele ficara satisfeito com a sua escolha. Exatamente até o momento em que ela falou e revelou um lampejo de... gênio? Ressentimento?
A atrevida estava brincando com ele! Não tome providências irrevogáveis. Havia uma espécie de prazer malicioso no modo como dissera isso, apesar do sorriso doce. Ele continuou a caminhar, sombrio.
Durante quase toda a house party, a moça se mantivera tranqüila, dócil e obediente. Ele estava convencido de que este era seu estado habitual — deveria ser, com certeza — senão como teria sobrevivido, vivendo com Laetitia? E ela morava ali com as crianças o ano todo, sem se queixar.
Não. Com certeza imaginara sua raiva. Ele a surpreendera, isso era tudo. Deveria ter-lhe comunicado suas intenções com mais cuidado. E talvez tivesse sido um pouco rude — nunca pedira ninguém em casamento, e seu nervosismo inesperado o desequilibrara um pouco.
Deveria ter feito um discurso floreado e, então, um pedido formal, em vez de precipitar-se em seus planos. As mulheres fazem questão disso.
Sua boca contraiu-se quando se lembrou do modo como ela mantivera seu queixo tão erguido. Como se, com certeza, fosse recusar. Que mocinha atrevida! Um lampejo de gênio não lhe desagradava. Uma fêmea vivaz geralmente produz potros vivazes, e ele não queria que seus filhos fossem frouxos. Absolutamente não. E vira o ardor nela quando voara para o lado do pequeno Georgie, como uma jovem leoa defendendo sua cria.
Então, por que não conseguia afastar o sentimento de que estendera a mão para colher uma margarida, e, em vez disso, tocara em uma urtiga?
— Magnus? — a voz de Laetitia arrancou-o de seus devaneios.
— Desculpe, Tish, eu não reparei...
— Oh, não importa, eu preciso falar com você imediatamente, mas saia da grama molhada; ela arruinaria meus chinelos. Venha aqui, no quiosque, onde podemos estar a sós. Como você pode fazer isso, Magnus? Diante de todos os meus hóspedes! Eu poderia matá-lo! Você foi extremamente tolo, mas penso que nós podemos fazer isso parecer uma brincadeira, não de bom gosto, claro, mas uma brincadeirinha, enfim. Em todo caso, eu me livrei da garota — pelo que, quero acrescentar, você me deve infinita gratidão. Apesar de, conhecendo-o como conheço, você permanecer indiferente, como sempre....
Magnus interrompeu bruscamente a sua divagação.
— O que você quer dizer com “livrar-se da garota”com Você não está falando de Miss Robinson, está?
— Claro, Miss Robinson! — Laetitia torceu o nariz. — Ela tem sorte até de eu a reconhecê-la como prima. Bem, está tudo acabado, agora. Ela irá embora!
— O que? Aconteceu alguma emergência de família? Eu achei que ela era órfã.
— Oh, ela é. Nenhuma alma vivente sobrou, a não ser eu, e é o fim após sua total ingratidão e presunção.
— Então, por que ela está indo para esta aldeia?
— Eu creio que ela passou virtualmente toda a sua vida em uma escolinha estúpida lá. Seu pai era diplomata, você sabe, e viajava muito.
Pobre garotinha, pensou Magnus. Ele sabia o que era ser mandado para longe, indesejado, bem jovem.
— E ela quer visitar esta escola? Eu suponho que ela tenha amigos lá que deseje convidar para seu casamento. Eu não pensei nisso.
— Magnus, o que há de errado com você? O que importa para onde esta garota desgraçada vá?
— Tish, é claro que importa. Você não sabe que pedi a Miss Robinson que seja minha esposa?
— Claro que sim, e vai demorar muito tempo até que eu o perdoe por ter me feito de idiota, Magnus! Mas esta insignificante planeja fazer nós dois de idiotas, e isso eu não permitirei!
— O que você quer dizer com “fazer nós dois de idiotas”?
— Ela planeja recusar o seu pedido!
— O quê? — A onda instantânea de raiva pegou Magnus desprevenido. Ele a reprimiu. — Como você pode saber disso, Tish?
— Ela me disse isso, há nem mesmo quinze minutos atrás. Vangloriando-se! Você entende por que ela precisa ir embora daqui? Eu não verei uma Robinson vangloriar-se para o mundo que meu primo, lorde d’Arenville, não era suficientemente bom para ela!
— Você tem certeza? — Ele não esperara que nenhuma moça recusasse seu pedido... mas uma órfã sem um centavo? Vangloriando-se? Se fosse verdade, era mais que uma bofetada em seu rosto.
— Primeiro, ela se gabou de seu sucesso em tirar todas as minhas amigas do caminho ao armar uma cilada para você, e depois se vangloriou de como todos nós pareceríamos idiotas quando ela recusasse seu pedido. A rameira ingrata! Eu a teria afogado, se pudesse!
— Eu... eu preciso pensar nisso. Até que fale com você novamente, não faça nada.
— Não, não, querida Tallie, você não pode nos deixar... foi um mal-entendido idiota... O que nós faríamos sem você? O que as crianças fariam? E George e eu — oh, por favor, não deixe que meu vil primo Magnus se intrometa entre nós — ele é somente um frio e orgulhoso Iceberg! Você é parte da família, querida Tallie, e este é o seu lugar! Oh, não nos deixe, nós precisamos tanto de você...
— Eu... Mandaram-me ver se a senhorita já fez suas malas, miss. E mandou John, o cocheiro, aprontar-se e aos cavalos para uma longa viagem... Eu sinto tanto, miss...
— Está tudo bem, Lucy — disse Tallie debilmente. A realidade caía estrepitosa à sua volta. Laetitia não mudara de opinião. Tallie estava realmente sendo expulsa da casa de sua prima.
— Há uma mala em cima do guarda-roupa, se você pudesse colocar minhas roupas ali... eu... eu preciso tomar outras providências.
Alguns momentos mais tarde, esgueirou-se pela porta lateral, passou pelo gramado sul e foi para o labirinto dos jardins. Ninguém podia vê-la por cima das sebes altas. Chegou ao centro do labirinto, encolheu-se no banco de ferro batido e debulhou-se em lágrimas.
Perdera tudo — sua casa, suas crianças. Logo se tornaria uma indigente. Sempre fora uma, supunha, mas agora ficaria realmente miserável. Sem teto. Despedida e jogada fora como um gato indesejado.
Soluçou até não ter mais lágrimas, até seus soluços se tornarem uma massa dura em seu peito, tremendo ao sair dela a cada inspiração. Com o tempo, eles cessaram, vindo somente a cada minuto, em um eco do desespero que ela não podia mais suportar.
O que faria? Nesta mesma noite, a não ser que algum milagre acontecesse, seria deixada na praça da aldeia. Para onde iria? Onde dormiria? Inconscientemente, sua mão foi a sua boca e começou a roer as unhas. Ninguém na aldeia se lembraria dela. O vigário? Não, ela se lembrou — ele morrera logo depois de sua partida Um dos freqüentadores da igreja poderia se lembrar de seu rosto, mas isso era improvável. Um reconhecimento vago era o melhor que podia esperar de qualquer um na aldeia. E ninguém, provavelmente, a aceitaria em sua casa.
Não havia uma alma no mundo para quem ela pudesse se voltar.
Fora feliz na casa e Laetitia, mas sua felicidade fora baseada em uma mentira. Iludira-se ao crer que era parte da família — algo que sempre desejara. De fato, era um pouco melhor que uma criada. Não, pior — uma criada recebia pagamento. Mas assim, não tinha nada.
Cheia de auto-piedade, decidiu enfim. Havia uma maneira de sair desta confusão. Era a única solução possível Ela o sabia, soubera-o o tempo todo; simplesmente fora incapaz de enfrentar o pensamento até ter explorado todas as outras opções. Mas não havia outra solução Precisaria se casar com lorde d’Arenville.
Lorde d’Arenville. De olhos frios, voz fria, o belo lorde d’Arenville. Um íceberg frio e orgulhoso, que desejava simplesmente uma égua reprodutora para seus herdeiros. Não uma esposa. Não uma companheira, amorosa. Um recipiente que carregasse seus filhos. Um recipiente robusto! A boca de Tallie estremeceu e ela mordeu suas unhas para evitar chorar
Não haveria amor para Tallie agora — o amor com o qual sonhara por toda sua vida. Mas haveria segurança. E ao pensar em dormir no quintal da igreja naquela noite, a segurança tornara-se repentinamente mais importante que o amor.
Não, não haveria Príncipe Encantado para Tallie.
Oh, haveria filhos. Se Deus quisesse, pois crianças eram diferentes. Não se podia evitar amá-las. E elas não podiam evitar amar de volta. Crianças eram como cãezinhos, amorosos, travessos e infinitamente sedentos de amor.
Tallie sabia. Ela também tivera sede de amor por toda a sua vida, desde quando completara seis anos e fora enviada para o colégio.
Isso era algo esclarecer com lorde d’Arenville desde o início. Ela não lhe permitiria enviar seus filhos para a escola. Não até que eles fossem bastante crescidos — quatorze, quinze anos, algo assim. E ela lhes escreveria toda semana, e lhes enviaria lembranças especiais, para que compartilhassem com os colegas de quarto. Eles viriam para casa todas as férias e feriados. E trariam todos os colegas que não pudessem juntar-se a suas famílias.
E o amor de seus filhos deveria ser suficiente para ela, decidiu. Somente os afortunados, os sortudos deste mundo eram amados pelo que eram, afinal. Aqueles que encontravam um parceiro com o qual compartilhar sonhos secretos e idéias tolas. Aquelas que encontravam um homem para tratá-las com carinho. Tratar com carinho. Uma expressão tão bela, tão mágica. Tallie deu um suspiro profundo e trêmulo, e um soluço ficou preso em sua garganta.Tais sonhos eram para moças tolas. Ela esfregou seus olhos inchados com um lenço. Estava na hora de colocar seus sonhos e sua mocidade de lado.
Foi um lorde d’Arenville frio, quieto e mortificado que voltou do jardim meia hora após ter falado com Laetitia. A house party fora um desastre completo. Agora seu ego estava gravemente ferido porque uma garota sem um centavo não podia suportar a idéia de se casar com ele. Parte dele concordava com sua prima, de que ele gostaria de afogar Miss Thalia Robinson. Ou de estrangulá-la lentamente, tomando a sua garganta macia e leitosa entre as mãos nuas... Mas um sentimento inato de justiça lhe dizia que seria um enorme erro se ele permitisse que sua prima jogasse Thalia Robinson na rua, porque ela não desejava se casar com ele.
Ele dera alguns passos para dentro do labirinto, ouvindo, impotente, sem saber o que fazer.
Ele dissera a si mesmo que ela o merecera, gabando-se para Laetitia do modo pelo qual ela desprezaria sua oferta. Ele lhe fizera uma oferta decente — ela não precisava humilhá-lo publicamente. Ele, o melhor prêmio do mercado de casamento, caçado pelas mães casamenteiras e também por suas filhas! A maioria das moças se sentiria grata por um pedido seu, mas não Miss Thalia Robinson. Não. Ela planejava humilhá-lo — então estava colhendo o que semeara. Seu arrependimento viera tarde demais.
Magnus dissera tudo isso a si mesmo, mas isso não ajudara — ele simplesmente não podia suportar ouvir uma mulher soluçando.
A sua parte que não desejava estrangulá-la queria entrar no labirinto e falar com ela — e que idéia estúpida essa teria sido!
Magnus tinha certeza de que não saberia como tratar com alguém que chorasse assim.
— Tish, eu planejo retirar o meu pedido de casamento. Ela não pode me recusar se não houver oferta, então você não precisa se preocupar com nenhum insulto à honra da família. Ninguém saberá disso. Eu falarei com a garota antes que alguma providência irre... — ele estancou por um momento, lembrando-se de suas últimas palavras insolentes: não tome nenhuma providência irrevogável. Thalia Robinson não tivera a consciência de que estava proferindo sua própria condenação. — Envie-a imediatamente a mim.
— Mas Magnus...
— Imediatamente, Tish.
Magnus decidiu receber Miss Robinson na biblioteca. Ele lhe falaria ternamente, mostraria que não lhe guardaria rancor pelo fraco julgamento. Ela não saberia que, de algum modo, lhe ferira. Ele seria informal, relaxado, indiferente. Não a receberia em vestimentas formais, como um cavalheiro o faria normalmente ao receber de uma dama a resposta sobre seu pedido de casamento. Seus modos informais seriam comunicados pela mensagem silenciosa de suas calças de montaria.
Franziu a testa, tentando lembrar-se de todos os detalhes de sua conversa anterior. Um sorriso frio cresceu em sua face, quando notou que na realidade não lhe pedira que se casasse com ele. Não nestas palavras. Falara-lhe sobre a intenção de organizar uma cerimônia.
Usara o condicional. Graças aos céus. Poderia conseguir disfarçar isso. Ele faria com que Miss Robinson compreendesse que estava errada, que ele não lhe fizera uma oferta real.
Esta não era uma solução honesta, mas amaciaria as coisas com Laetitia — o suficiente para impedi-la de jogar a vil moça nas ruas. E então ele sairia correndo desta terrível house party, e nunca mais colocaria os olhos na maldita garota nem em sua detestável prima!
— Lorde d’Arenville?
Ela entrara na sala tão silenciosamente que Magnus foi pego de surpresa. Olhou, fascinado, para os olhos vermelhos que fugiam dos seus. Com esforço, controlou-se e começou a falar, sentindo-se desonesto e desconfortável enquanto o fazia.
— Miss Robinson, eu soube pela minha prima que a senhorita está com a impressão errada de que eu of...
— Lorde d’Arenville, eu aceito seu pedido de casamento — disse ela ao mesmo tempo.
O que acontecerá agora? Questionava-se Magnus. Honradamente, ele não poderia prosseguir com seu fingimento relutante de que não fizera nenhum pedido. Não era preciso — ela o aceitara. O resto era inevitável. Irrevogável. Irônico, isso. Ela podia cancelar o casamento, mas ele absolutamente não poderia fazer o mesmo. Lorde d’Arenville deveria casar-se com Miss Thalia Robinson. Thalia Robinson, que mais parecia uma mártir indo para o patíbulo do que uma noiva.
Esta descoberta foi como um chute em seus dentes. Mas esta aceitação miseravelmente triste o convencera como mil explicações não o fariam.
Não se pode dizer que Thalia Robinson, na realidade, preferia a pobreza a ele, mas era óbvio que a vitória fora por pouco. A moça parecia estar indo para a própria execução, pela expressão de seu rosto. Magnus fitou as feições abatidas, o nariz vermelho, o queixo resoluto e os lábios trêmulos, e sentiu sua raiva crescer. Foram-lhe necessárias muita angústia e determinação para que ela decidisse entre a pobreza desprezível e o casamento com lorde d’Arenville.
Fome e miséria — ou lorde d’Arenville!
E, finalmente, por um pouco, ou por um fio, lorde d’Arenville vencera. Sorte dele!
Magnus estava furioso. Ele não podia confiar em si mesmo para dizer mais nada a ela.
— Magnus, o quê...? — Laetitia estava em pé no corredor.
— Deseje-me felicidades! — lançou-lhe, ríspido.
— O quê?
— Eu estou em êxtase! — ele rosnou. — O casamento será em três semanas. Tome todas as providências. Nada é bom demais para minha noiva! — ele notou o vigário, de pé, ali: — O senhor, aí, Parson. Faça correr os proclamas, por favor. Eu voltarei em três semanas para a cerimônia.
Saiu rápido e se dirigiu aos estábulos. Laetitia foi atrás dele. Lorde d’Arenville montou em seu cavalo, e, sem aviso, nem preparações nem bagagem, partiu para d’Arenville Hall, decidido a enfrentar dois dias de viagem.
— Droga! —Tallie olhava seu reflexo. Ela trouxera um espelho de um dos salões e o escorara contra a parede. Ele lhe disse o que já suspeitava — que era a pior costureira no mundo, e que seu vestido de casamento parecia o café da manhã de um cão.
Tallie não tinha a mínima idéia das providências tomadas para seu casamento. Tentara várias vezes falar com sua prima, mas Laetitia ainda estava furiosa e lhe ordenara que ficasse longe de sua vista. Ninguém parecia lembrar-se de que a noiva não possuía um centavo em seu nome. Ela esperava que alguém se lembrasse de que a noiva precisava de um vestido adequado, mas enquanto o temido dia chegava cada vez mais perto, Tallie decidiu que era melhor tomar providências alternativas — só para se prevenir.
O sótão continha dúzias de arcas e chapeleiras, cheias de vestidos velhos e roupas de baile, relegados ali através dos anos. Ela e as crianças as revistavam freqüentemente, procurando enfeites. Tallie encontrara um belo vestido de baile de seda âmbar-claro, muito fora de moda, com anquinhas largas e muitas jardas de guarnições, mas ainda com bastante material bom, se fosse descosturado, para fazer um vestido de noiva.
Em outra arca, ela encontrara um par quase novo de chinelos azuis, que só apertavam seus pés um pouquinho, e um par manchado de longas luvas de cetim branco.
Ela riu com seu reflexo e deu várias piruetas. Não estava tão mal, afinal. Oh! A linha do pescoço estava um pouquinho torta, mas Tallie estava convencida de que só a pessoa mais crítica a notaria.
Ela examinou seu reflexo no espelho novamente, e puxou as longas luvas de cetim. Nunca vestira algo tão fino em sua vida. Olhou para as mangas com reprovação... Um xale! A echarpe de tecido de lantejoulas de Laetitia esconderia as mangas! Não estava precisamente na moda para vestidos de casamento, mas talvez os observadores pensassem isso. Afinal, ela estava se casando com um homem bem conhecido por sua elegância. A boca de Tallie secou quando ela observou seu reflexo.
Ela não estava simplesmente se casando com um homem... ela estava se casando com um Iceberg. No dia seguinte, pela manhã. E depois disso, ele a levaria para longe das crianças que ela amava tanto — as únicas criaturas no mundo que a amavam. No dia seguinte ela pertenceria somente a ele, juraria perante Deus e as testemunhas amá-lo, honrá-lo e obedecê-lo. Um homem que ela mal conhecia e de quem, com certeza, não gostava. Um homem frio, conhecido por não se importar com o sentimento alheio. Que desejava uma mulher com a qual não precisaria se preocupar, uma mulher que poderia engravidar e abandonar no tédio rural, enquanto se divertia em Londres, esperando pelo nascimento de seu herdeiro...
Tallie estremeceu. O que queria dizer engravidar? Ela sabia que mulheres tinham filhos, é claro, mas não fazia a mínima idéia de como isso acontecia. Ela vivera virtualmente sua vida inteira no Colégio Interno de Miss Fisher a Filhas de Cavalheiros, e o assunto nunca estiver no currículo da afetada solteirona.
Algumas teorias insistiam que a mulher carregava o bebê no seu estômago, por exemplo. Bem, se era assim — como elas tiravam o bebê de lá? Cortavam-no fora? Vomitavam-no?
Em todo caso, como os bebês chegavam lá primeiro? O homem plantava uma semente na mulher? Uma semente? Bebês não cresciam de sementes! Sim, eles o faziam, Amanda Forrest o dissera. Sua mãe lhe contara isso. Bem, como eles plantavam as sementes — eles as engoliam? Tallie suspeitava que esta fosse uma lenda de mulheres velhas — como a que dizia que, se você engolisse sementes de abóbora, os pés de abóbora cresceriam e sairiam por suas orelhas. Tallie comprovara que esta estava errada, comendo mais de vinte sementes e nem sinal de um pé de abóbora aparecer em seus ouvidos!
Não, Amanda não tinha certeza sobre a maneira pela qual as sementes eram plantadas, mas era parecido com o que os animais faziam, achava. Tallie gargalhou com esta. Animais plantando sementes? Ridículo.
Engravidar. Com certeza ela tinha o direito de saber como se fazia isso. Se sua mãe estivesse viva, ela poderia explicar, mas ela deixara somente algumas poucas cartas. E agora não era hora de pensar nisso... Primeiro ela devia se preocupar com a noite de núpcias.
Tallie decidiu perguntar a Mrs. Wilmot e, dando muitas voltas, abordou a questão.
— Que Deus lhe abençoe, Miss Tallie — a governanta enrubesceu. — Não é a mim que a senhorita deveria perguntar sobre estes assuntos. Eu nunca fui casada, minha querida. Todas as governantas são chamadas de senhora, casadas ou não... Mas Wilmot é meu nome de solteira. — Ela deu umas palmadinhas na mão de Tallie. — Vá perguntar à sua prima, miss. Ela vai esclarecer tudo.
Decidiu dirigir-se à sua prima e lhe perguntar sobre o assunto, apesar da hostilidade.
Laetitia deu uma olhada no rubor envergonhado de Tallie, e lançou-lhe impacientemente:
— Oh, Deus, livre-me das virgens choramingantes! Não faça esta cara horrível, menina, eu lhe contarei tudo o que precisa saber sobre sua noite de núpcias.
Puxou Tallie para o sofá ao seu lado, e sussurrou instruções detalhadas em seu ouvido. Após um momento, sentou-se pára trás e empurrou-a para longe.
Horrorizada, mas mortificada demais para fazer perguntas, ela virou-se para sair, mas quando alcançou a porta, Laetitia sibilou atrás dela:
— Assegure-se de que não desgraçará meu primo, ou sua família. Lembre-se: uma dama suporta isso em silêncio, sem se mover ou esquivar-se. Você está me ouvindo, menina?
Estas foram as últimas palavras que Laetitia lhe disse, e quanto mais pensava sobre elas, mais nervosa ficava. Suportar isso? Mas o que era isso? Suportar parecia algo bastante desagradável... E em silêncio? Por que ela sentiria vontade de gritar? Parecia doloroso.
— Miss, miss, ele chegou! — Lucy, a criada, colocou sua cabeça na porta, o rosto iluminado de excitação. — Seu noivo, miss, ele está aqui!
O coração de Tallie pareceu parar por um momento, então começou a bater duas vezes mais rápido. Ele estava lá. Ela poderia falar com ele, então — sobre a Itália — antes do casamento. Ela estava esperando exatamente por isso. Nas três semanas desde que ele se fora, galopando de maneira tão intemperada, ela se condenara freqüentemente por não ter esclarecido tudo antes do casamento, pois depois não teria a mínima chance de que ele concordasse com os pedidos de uma mulher que lhe jurasse obediência na igreja.
— Eu preciso vê-lo imediatamente — Tallie foi em direção à porta.
— Oh, miss, miss, a senhorita não pode! Dá má sorte, não importa o quão ansiosa a senhorita esteja por ver o belo cavalheiro novamente!
— Azar? Por quê? — Lucie apontou o vestido.
— Pelo fato do noivo ver a noiva em seu vestido, é claro. — Ela olhou mais detalhadamente o vestido de noiva e, franzindo as sobrancelhas, avançou para colocar uma das mangas no lugar. — A senhorita tem certeza de que iss...?
— Oh, não faz mal — disse Tallie. — Eu mudarei de vestido, Lucy, já que você diz que é tão importante, mas por favor, leve uma mensagem para lorde d’Arenville e diga-lhe que eu preciso falar com ele o mais rápido possível.... em particular.
— Claro que sim, Miss Tallie. Eu irei agora.
Tendo dito à criada irritantemente tímida que encontraria Miss Robinson no quiosque do jardim em vinte minutos, Magnus se perguntou por que a urgência. Sem dúvida tinha algo a ver com os enfeites de seu casamento. Ele se permitiu um fraco sorriso cínico e procurou em seu bolso o longo pacote. Ele estava bem à frente dela.
Magnus cavalgara para longe, totalmente enfurecido, logo após sua última entrevista com a futura esposa. Ainda estava zangado, mas sua raiva esfriara e se transformara em implacabilidade gélida. Thalia Robinson teria que aprender qual era o seu lugar. Se queria ser tratada como uma noiva desejava ser tratada, era melhor pisar bem de leve à sua volta, até que tivesse obtido o seu perdão. Franziu as sobrancelhas e apalpou o pacote. Ele deveria tornar os seus motivos para o presente muito claros para ela. Não queria que o entendesse mal.
Ocorrera-lhe uma semana antes que ela não teria nenhuma jóia. Era impensável que sua noiva usasse jóias baratas ou ordinárias em seu casamento, e por isso Magnus fizera uma busca na caixa de jóias de sua mãe até achar um lindo colar de pérolas, um brinco, e um bracelete combinados. Eram o perfeito presente de núpcias — e combinariam com qualquer coisa que ela usasse.
Do pouco que vira de sua roupa, Miss Robinson preferia um tipo estranho de adornos, mas o gosto de Laetitia era extraordinário e ela se asseguraria de que sua noiva não vestisse nada ultrajante. E, depois do casamento, ele mesmo supervisionaria seu guarda-roupa. O resto das jóias de sua mãe, ele lhe presentearia se e quando ela o merecesse.
— Lorde d’Arenville?
— Miss Robinson.
Ela fez uma reverência automática, tentando não fitá-lo. Esquecera-se de como ele era bonito.
— Eu tive a impressão de que você gostaria de conversar comigo, mas talvez só quisesse ver por si mesma que eu voltei. — Seu tom era maligno.
— Oh, não — respondeu Tallie no mesmo instante. — Eu acreditei em Lucy quando ela me disse que o senhor havia chegado. Ela sempre fala a verdade.
Ele não captou sua ironia.
— Lucy?
— A criada. Eu quis vê-lo em particular porque há coisas que precisamos esclarecer antes do casamento.
— Esclarecer? Há, realmente?
— Sim. O senhor foi embora tão repentinamente que eu não tive tempo de lhe falar sobre elas.
— Bem, eis-me aqui agora — Magnus resmungou.
— Elas... elas são muito importantes para mim, e eu não poderia concordar em me casar, a não ser que façamos deste modo.
— Eu tive a impressão de que você já havia concordado em se casar comigo, madame.
— Bem, eu aceitei, mas nós não terminamos nossa discussão, e o senhor se precipitou para fora da sala, e eu só descobri mais tarde que havia partido.
— Para d’Arenville Hall, madame. É melhor a senhora aprender a palavra, já que será sua casa pelo resto de sua vida.
Esta alusão velada ao encarceramento rural que planejara para ela enraiveceu Tallie. Ele não sabia que ela o ouvira na biblioteca naquele dia, contando à sua prima seus planos para a esposa e o herdeiro. Ela reconheceu sua ameaça.
— Ainda não é minha casa, e há algumas condições antes de eu concordar em torná-la meu lar.
— Condições! — Magnus sentia-se ultrajado. A atrevida estava tentando chantageá-lo. Por Deus, ela tinha uma cara de pau!
Ele se controlou com dificuldade, mantendo uma expressão impassível. Esperaria até saber suas “condições” — então lhe mostraria quem era o mestre!
Tallie o fitou, nervosa. Ele estava descontraidamente encostado na parede, parecendo relaxado e à vontade, mas havia uma expressão extremamente perturbadora em seus olhos. Ela não deveria ter falado de condições, deveria tê-las expressado de maneira mais tática. Ele estava contrariado. Ainda assim, essa era sua única oportunidade de se assegurar de que nem todos os seus sonhos terminassem no pó. Uma mulher no dia do seu casamento ainda possuía algum poder. Uma esposa não tinha nenhum.
— Há algumas cond... assuntos sobre os quais nós temos que concordar agora. A primeira diz respeito a filhos.
— Continue.
— Eu... eu sei que o senhor quer filhos... mas eu preciso dizer-lhe que não vou... — Tallie engoliu a seco com a expressão sombria em seu rosto, mas forçou-se a continuar. — Eu não permitirei que o senhor os mande para a escola.
Ele pensou que ela se recusaria a dar-lhe filhos, a compartilhar de sua cama. Não mandá-los para a escola? Será que ela pensava que isso era uma ameaça?
— E por que nossos filhos não deveriam ir para a escola? Você quer que eles cresçam ignorantes e sem educação?
— Claro que não. Eles devem ter aulas em casa, é claro, ministradas pela melhor e mais gentil administradora e professores. Eu não estou dizendo que eles não devam ir para a escola nunca, somente que não o devem fazê-lo enquanto ainda forem pequenos. Quando tiverem onze ou doze anos, talvez, mas não antes. Não, o senhor não precisa discutir. Eu sou totalmente inflexível quanto a esta questão. Eu não enviarei meus filhos para longe para serem educados por estranhos. E eu decidirei o momento. Oh, o senhor não precisa pensar que eu desejo prendê-los às cordas do meu avental; eu aprecio a força e a independência, e nutrirei estas qualidades em meus filhos, mas o senhor não tem idéia do dano que causa em uma criança muito pequena ficar longe de tudo o que lhe é familiar e dos que a amam.
Magnus arregalou os olhos. Ele se lembrava da solidão devastadora que sentiu no início quando foi enviado sozinho para a escola aos seis anos.
— Eu aceito — disse friamente.
A primeira batalha fora inesperadamente fácil. A seguinte seria um pouco mais difícil, pois ela não podia esquecer-se de que ouvira seu plano infame de murá-la em d’Arenville Hall por dez anos.
— O senhor disse que eu viveria em d’Arenville Hall pelo resto da minha vida... Bem, eu quero ir a Londres para uma curta visita uma vez por ano. Não mais que duas ou três semanas — ela acrescentou, com pressa. A expressão negra voltara. — Eu sei que o senhor preferiria que eu ficasse em d’Arenville Hall, e, na maior parte do tempo, eu o farei, mas eu nunca fui a Londres, e gostaria muito de visitar a cidade.
Ele não disse nada. Tallie acrescentou, rápido:
— A mãe de seus filhos não deve ignorar totalmente o mundo no qual eles entrarão.
Magnus estava estupefato. Ao contrário, ele esperava que a mãe de seus filhos aprendesse as maneiras do mundo educado o mais rápido possível. Por que ele desejaria que ela permanecesse ignorante? Ele não via qual era o seu ponto. Tinha algo a ver com visitar Londres. Somente por algumas semanas. Será que ela estava tentando dizer-lhe que não desejava entrar para a sociedade? O que a atrevida dizia não fazia sentido. Bem, a resposta não seria não para este pedido, ele tinha toda a intenção de levá-la imediatamente para Londres, encomendar roupas novas, apresentá-la à sociedade e ensinar-lhe como uma condessa deveria se comportar.
— Se o senhor me prender em d’Arenville, as pessoas fofocarão, e eu não gostaria que meus filhos descobrissem que as pessoas pensam que sua mãe é estranha, diferente ou mesmo louca — concluiu Tallie.
Prendê-la em d’Arenville? Será que a atrevida e tola pensava que ele tinha uma torre em d’Arenville Hall?
— Eu tenho todas as intenções de levá-la a Londres. Não desejo que pensem que minha esposa é uma reclusa social, madame, e quanto mais cedo você tiver consciência disso, melhor.
Tallie estava admirada. Em algum momento ele deveria ter mudado de idéia em relação a mantê-la em d’Arenville Hall por dez anos.
— Eu tenho a sua palavra em relação a isso, sir?
— Sim, madame — respondeu, irritado.
- Bem — Tallie sorriu triunfante. — Agora, meu próximo pedido pc de lhe parecer um pouco estranho... possivelmente um pouquinho caro... — ela disse.
Magnus fortalecido estava mentalmente. Os dois últimos “pedidos” haviam sido como ele esperara, meras bagatelas, com a intenção de amolecê-lo. Este seria o mais ruidoso.
— Eu sempre quis viajar — Tallie começou — e eu esperava que o senhor concordasse que na lua... em minha viagem de núpcias nós pudéssemos visitar alguns dos lugares que eu sempre sonhei ver. — Ela juntou as mãos em súplica inconsciente. — No continente.
Magnus relaxou. Então era isso. A moça queria ir a Paris. Não era surpreendente. Toda mulher que ele conhecera preferia roupas de festa, chapéus e perfumes franceses. E a guerra havia acabado... Ele deu de ombros mentalmente. Não seria difícil levá-la a Paris e comprar seu novo guarda-roupa. Seria até mesmo algo bom fazer com que ela adquirisse um toque de bronze urbano na sociedade parisiense antes de fazer seu debut em Londres.
— Está bem. Se Você quiser enfrentar a travessia do canal, iremos.
— O senhor não se importa mesmo?
— Nem um pouco.
— A viagem leva tempo. O senhor não poderá se importar com a inconveniência. Tem certeza?
A atrevida estava questionando sua palavra!
— Você tem minha palavra em relação a isso, Miss Robinson — respondeu.
— Então posso preparar o itinerário? Eu sei falar vaias línguas — disse, confidentemente. — Francês, italiano, um pouco de alemão e de holandês, que aprendi com uma garota dos Países Baixos na escola.
— Sobre que diabos você está falando? Você não precisará de todas estas línguas em Paris.
Tallie riu.
— Não em Paris, mas na Itália e nos outros lugares, claro. Eu não precisarei de intérprete em Paris. Eu lhe disse, eu falo francês fluentemente. E italiano.
— Você deseja viajar para a Itália?
— Sim, e Alemanha, Suíça, e talvez os Países Baixos na volta para a Inglaterra. Qualquer lugar, contanto que vamos à Itália, onde minha pobre mãe morreu. E, então, talvez possa descobrir, com certeza, se...
— Isso é o Grand Tour.
— Sim, há anos que eu quero fazê-lo.
— Bem, impossível! E perigoso demais. A Europa ainda está um caos por causa da guerra.
— Besteira. Está segura, desde que o Armistício foi assinado em Amiens. Vários dos conhecidos de minha prima partiram para Paris mesmo antes de ter sido assinado, e estão muito bem.
Magnus a encarou. Normalmente, as damas não sabiam nada sobre assuntos políticos. Ela não deveria questioná-lo em relação ao seu julgamento.
— Paris é uma coisa; o Grand Tour é diferente. Damas não fazem o Grand Tour — afirmou friamente.
— Bem, e lady Mary Wortley Montagu, lady Fetherstonhaugh e Mrs. Ann Radcliffe, que embarcou no Grand Tour com seu marido, no mesmo ano em que Robespierre foi guilhotinado, no mesmo ano em que Os mistérios de Udolfo foi publicado, eu creio.
— Aquele maldito livro idiota...
— Não é um livro idiota! É extremamente empolgante, assim como qualquer pessoa que não tenha água gelada em suas veias...
— Nós não estamos falando de lady Mary Montagu, ou lady Fetherstonhaugh, ou Mrs. Radcliffe. Estamos falando de minha mulher.
— Eu ainda não sou sua mulher! — Tallie interrompeu-o. — E você me deu sua palavra!
— Eu dei minha palavra para Paris...
— Eu nunca mencionei Paris, e você também não — argumentou Tallie. — Não até depois de você ter dado sua palavra. — Magnus pensou no que dissera. Maldição, a atrevida estava certa!
— Os rigores e dificuldades do Grand Tour tornam-no demasiado cansativo para que mulheres o façam.
— Isso não faz sentido. Eu li Cartas da Itália, e...
— Ah! — Magnus bufou. — O livro de Ann Miller foi escrito há trinta anos ou mais.
— Eu sei, pois minha mãe o leu durante o seu Grand Tour, quando se casou com meu pai. E era muito mais perigoso naquela época. Agora que o terror acabou, toda a Inglaterra está afluindo para o continente. — Seus olhos o desafiaram a contradizê-la.
— Será extremamente desconfortável — declarou Magnus. — Eu sei, porque viajei pelo continente. Você não imagina o estado das estradas... E as estalagens miseráveis, se você conseguir achar estalagens.
Tallie deu de ombros, despreocupada.
— Não parece ter-lhe feito nenhum mal. E se você estiver preocupado comigo, deixe-me lembrá-lo de que eu passei a maior parte de minha vida em um colégio para moças...
Apesar de sua raiva, ele riu.
— Você acha isso pior?
— Bem, havia algumas que eram perfeitas vac... — ela enrubesceu e se controlou. — Não, claro que não, mas era um local muito espartano, e eu sou mais forte do que pareço. — Ela o fixou com sua expressão mais determinada. Algumas semanas atrás ele a teria chamado de robusta. Agora, para livrar-se do inconveniente, ele sugeria que era delicada. Lorde d’Arenville descobriria que não podia jogar os dois jogos. — E, de qualquer jeito, o senhor prometeu.
Magnus praguejou baixo. Procurou uma saída e teve uma idéia súbita.
— Viagens são muito perigosas para damas em estado delicado — afirmou. Vejamos se ela consegue refutar esta.
Tallie parecia intrigada.
— Mas eu acabei de lhe dizer que sou mais forte do que pareço. Eu não sou nem um pouco delicada.
— Mas você pode ficar em estado delicado logo após seu casamento — disse.
— Mas por que, se eu estou forte, agora? Algo pequeno, como um casamento, não vai me enfraquecer... — Tallie empalideceu de repente, conscientizando-se do que ele queria dizer. Ele falava sobre aquilo. E ele esperava que ela ficasse mal depois de tê-lo suportado. Era pior, então, do que pensara. Não era somente que ela não podia se mover ou gritar enquanto o estivesse suportando, ela ainda poderia ficar mal algum tempo depois. Meu Deus! Deve ser terrível.
Magnus sentia-se envergonhado ao discutir a gravidez com tal inocente. Pelo menos ela era uma inocente. Mas ele claramente a aterrorizara ao levantar a questão e era obrigado a responder.
— Eu não tenho certeza, mas... eu... er... eu penso que muitas mulheres ficam mal nos primeiros meses.
Meses! Deve ser terrível. Mas como, então, as mulheres desejariam que suas filhas se casassem?
— E depois disso?
— Depois, eu acho que, normalmente, elas se sentem bem até ficarem de cama. — Magnus tirou um lenço para secar sua fronte. Ela estava abalada. Obviamente não lhe ocorrera que pudesse engravidar ainda no continente. Bata enquanto o ferro está quente, decidiu.
— Então, concordamos em que, se você ficar em estado delicado, o tour será cancelado, e voltaremos para a Inglaterra imediatamente.
Tallie mordeu os lábios. Ela era forte. Sua mãe o conseguira. Ela também o faria. E se estivesse realmente mal, não faria sentido viajar.
— Muito bem — concordou, reticente.
Magnus controlou-se para não esfregar as mãos em triunfo.
— E qual é a sua próxima “condição”?
— Não há mais. Você concordou com tudo, mais ou menos.
Magnus ficou espantado e vagamente desconfiado. Ele tinha certeza de que ela estava tramando algo realmente ultrajante.
Tallie levantou-se para sair.
— Obrigada por concordar em falar comigo. Você me aliviou... em relação a certas coisas. E me apavorou terrivelmente em relação a outras. — Ela abriu a porta.
Magnus se lembrou do estojo com a jóia em seu bolso.
— Você pode querer usar isso em seu casamento. Eles pertenceram à minha mãe — estendeu a caixa.
Tallie a abriu.
— Pérolas, que lindas. Muito obrigada. Eu as usarei amanhã, já que me pede.
Ele nunca vira uma mulher aceitar jóias desta maneira. Não houve gritos de alegria, nem abraços e beijos entusiasmados, nenhum teatro ou flerte. Não que ele quisesse isto de sua futura esposa.
Ele deveria estar feliz em descobrir que não era gananciosa nem interesseira. Sua fria aceitação era digna de uma dama bem educada... era exatamente como sua mãe aceitara as jóias de seu pai. E por que isso o contrariara tanto?
Ela aceitara seu presente de pérolas preciosas como uma criança recebendo uma maçã, com agradecimentos educados e mecânicos, como se estivesse pensando em outra coisa. Maldição, essa garota era um enigma para ele. Magnus não gostava de enigmas. E ele estava muito contrariado.
O velho Mr. Penworthy, o organista, toca o acorde de abertura, tão docemente no início que a congregação quase não o nota. A noiva chegou.
Os bancos estão apinhados com amigos da noiva, habitantes de locais longínquos que vieram para desejar-lhe sorte. Há dignitários estrangeiros, homens que conheciam o pai da noiva no exterior, que vêm para o seu casamento representando príncipes, duques — até mesmo o imperador.
Na alameda do outro lado do muro da igreja estão duas elegantes carruagens. Dizem que cada carruagem contém uma dama da aristocracia, cada uma delas uma herdeira. As damas choram. Sua beleza, sua riqueza e sua posição de nada serviram, pois o noivo escolheu sua noiva, e ela não é de rara beleza, nem mesmo rica ou aristocrática. Mas ela lhe oferece um prêmio que ele valoriza além das riquezas mundanas — seu coração. E ele lhe retribui com o seu.
O primeiro acorde chega ao final e a noiva entra na aléia central. A congregação se volta para olhar e sussurros baixos se espalham pela igreja. De onde está, a noiva pode ouvir somente fragmentos do que eles falam... “que vestido lindo....” “uma bela noiva...”
A música cresce novamente e ela começa sua lenta caminhada. Seu amado a espera. Ela anda com dignidade feliz e orgulhosa, a cabeça ao alto, sentindo como sempre se sente quando ele olha para ela: linda.
O compasso de Mr. Penworthy é perfeito; quando ela alcança o altar, a música soa seu crescendo final. As últimas notas ecoam em torno das vigas antigas de carvalho e seu amado coloca sua mão dentro da dele, murmurando: “Tallie, meu único verdadeiro amor, você está me tornando o homem mais feliz na terra.”
— Ai! Que inf... que diab... er, o que você pensa que está fazendo? — exclamou lorde d’Arenville, zangado, uma mão segurando o nariz — o nariz com o qual a mão enluvada de Tallie com certeza colidira. Seus olhos lacrimejavam com o impacto. Ele piscou para ela, depois pegou sua mão, que ainda pairava perigosamente perto de seu rosto.
Ele olhou para as mãos de Tallie, levou uma cuidadosamente ao nariz e cheirou-a.
— Bom Deus! Elas cheiram a café!
Por um momento arrebatador, pensara que a beijaria. Mas não podia ser. O Iceberg era incapaz de um gesto romântico deste tipo. Ele estava meramente inspecionando suas luvas.
— Continue com isso, homem — disse lorde d’Arenville para o vigário, secamente.
— Er, claro. Caros amigos, estamos aqui reunidos... — Pasmada, Tallie ficou ali, vendo-se ser casada com o Iceberg. E era um Iceberg muito genioso, também. Ele a estava realmente encarando com raiva. Claro, tinha razão de estar um pouco irritado, mas ela não tivera a intenção de bater-lhe no nariz, afinal.
Que coisa, pensou, desanimada, ele sempre parecia estar furioso com algo — especialmente com ela. Com os outros, mantinha-se frio, educado e, de maneira reservada, elegante. Isso não era um bom sinal.
Ainda assim, Tallie se controlou, pois este era o dia de seu casamento e ela se convencera a aproveitar cada momento dele. Começou a enumerar suas bênçãos mentalmente: o tempo estava quase ensolarado e o vento não estava frio demais. E seu vestido ficara muito bom, afinal — o tecido âmbar encantador era absolutamente perfeito Para sua cor e ela tinha certeza de que ninguém notaria os pequenos erros que cometera.
Todas as noivas eram felizes e alegres. Por isso convocara a sua fantasia — era uma de suas favoritas Ela esperava que todos tivessem acreditado em sua performance — não queria desapontá-los.
Estava curiosa para saber onde eles estavam sentados — estivera por demais envolvida em sua fantasia para notá-lo. Voltou sua cabeça para dar uma rápida olhada nos bancos atrás dela, procurando Mr. Brooks Mrs Wilmot e as crianças...
— Thalia! — A, mão de lorde d’Arenville a empurrou para que se voltasse novamente para o altar Tallie pestanejou ao olhá-lo por um momento. Sentia-se tonta, desolada, desorientada. Olhava impotente para lorde d’Arenville. Ele a fixava, a testa franzida, os olhos intensos. Uma mão segurava a dela. O outro braço deslizou à sua volta e se apertou em torno de sua cintura. Por um momento, pareceu a ela que ele podia ver dentro de sua própria alma. Ela estremeceu sob o olhar duro e fechou os olhos — a invasão era dolorosa demais. Por um momento ou dois, só teve consciência do frio da igreja e da pressão de seu braço sustentando-a. À distância, ela podia ouvir o vigário murmurando algo. Fechou seus olhos desejando de todo coração poder invocar sua fantasia novamente para lidar com isso. Lorde d’Arenville apertou-a levemente e Tallie abriu os olhos.
— Thalia Louise Robinson, você aceita receber este homem...? — entoou o vigário.
— Sim — e rapidamente repetiu após ele as palavras sobre amar, honrar e obedecer a lorde d’Arenville. Ela tremia.
Estava ligada para a vida a Magnus Phillip Audley St Clair, o Sétimo Conde d’Arenville. Uma onda de infelicidade profunda passou por ela. Seu casamento fora tão diferente do que havia esperado e sonhado. E ela não fazia questão de toda esta bobagem sobre candidatos rejeitados, convidados importantes e vestidos bonitos. Esta tolice nada tinha a ver com seus desejos. Tudo o que queria realmente era ser amada.
O resto fora meramente teatro, uma tentativa de se distrair. Mas não fizera muito sentido...
Ela sentiu sua luva ser suavemente retirada.
— Com esta aliança eu a desposo, com meu corpo eu a louvo... — sua voz era profunda e dura.
A aliança estava fria quando deslizou por seu dedo.
Estava casada.
Tallie olhou para seu marido. Ele fitava sua pequena mão, ainda descansando na sua, maior. Ela seguiu seu olhar e viu as fortes manchas marrons em seus dedos, vindas do tingimento que usara em suas luvas e renda. E no final de cada mão imunda estavam unhas feias e roídas. Era para elas que seu novo marido estava olhando — as mãos sujas e unhas horrivelmente roídas.
Ele colocou seu véu para trás e a beijou, uma pressão dura e breve em sua boca, depois se endireitou, tendo cumprido seu dever. Um nó subiu por sua garganta e ela mordeu os lábios para parar de tremer. Um casamento vergonhosamente frio e oco.
Mas, oh, ela nunca se sentira tão infeliz, ou só, em sua vida. Tallie sentiu uma lágrima rolar por suas faces, depois outra. Ela as enxugou rapidamente. Fitou a congregação esparsa e silenciosa, e deu um rápido olhar para a face sombria de seu novo marido. Um grupo esparso de aldeões pobres estava observando da parte posterior da igreja — vindos, possivelmente, na expectativa de presentes da parte do noivo rico e feliz.
Magnus realmente não estava feliz. Estava furioso. Estivera assim desde o momento em que Laetitia, desfalecendo artisticamente, afirmara que não poderia dar mais nenhum passo naquela manhã, que sua cabeça estava totalmente estilhaçada, e que a dor era simplesmente demais para que uma dama a pudesse suportar. Caíra sobre o sofá grego, revivendo só o suficiente para proibir que as crianças fossem levadas à igreja, afirmando que elas estavam ficando com alguma doença, uma mãe sempre o sabia. Seria a mais vil crueldade afastar os amados de sua mãe, quando ela se encontrava em tal agonia.
Magnus foi impotente diante desta barreira determinada de sensibilidade feminina. As crianças lhe pareciam perfeitamente saudáveis. Ele também não deixara de notar o desapontamento em seus rostinhos quando desceram as escadas vestidas em suas melhores roupas, e que a decisão de sua mãe foi anunciada.
Então Laetitia também decidira que não poderia poupar Mrs. Wilmot — a mão de ninguém era tão gentil e curativa quando se tratava de dor de cabeça. E, é claro, Brooks deveria ficar — alguém precisava cuidar da casa enquanto sua dona estivesse indisposta.
Magnus notara que Brooks e Mrs. Wilmot também ficaram esmagados pelo desapontamento. Eles também estavam vestidos em suas melhores roupas de domingo.
Magnus encolerizara-se, impotente. Não podia contrariar as ordens de uma mulher em sua própria casa, especialmente quando estas ordens diziam respeito a seus próprios filhos e criados.
Mas quando Laetitia dissera, com um fio trêmulo de voz, que não poderia passar sem o conforto da presença de seu marido nesta hora de enfermidade, Magnus interviera. Ele praticamente arrastara George para a carruagem, fazendo ouvido de mercador às lamúrias de Laetitia e ao tumulto de George. A curta viagem para a igreja fora completada em silêncio sombrio.
Ele entrou na igreja com um mau pressentimento. Suas suspeitas foram confirmadas. As únicas pessoas sentadas eram duas ou três que ele mesmo convidara — nenhuma delas especialmente próxima.
Não que ele tivesse muitos amigos íntimos — ele gostaria que Freddie estivesse ali com ele, mas este lhe enviara uma mensagem dizendo que havia uma epidemia de tifo na aldeia, e ele não poderia deixar sua mulher, seus filhos, nem sua paróquia naquele momento.
Então, as únicas pessoas sentadas na igreja eram alguns colegas do clube, um sujeito que conhecera em Oxford e que morava por perto, e o valete de Magnus, seu cavalariço e seu ajudante. Uma congregação de seis — três deles empregados, e todos homens.
Ele, não se importava nem um pouco — casamento era uma transação comercial, e requeria o mínimo de tumulto. Estava adquirindo uma esposa, e ela, riqueza, um título e segurança para a vida inteira. Mas mulheres colocam grandes expectativas em cerimônias de casamento. E a pequena Thalia Robinson não podia ser uma exceção; também estava certo disso.
Então, para onde fora todo mundo?
Que diabos Laetitia estava fazendo? Dissera-lhe que organizasse tudo, maldição! Ele lhe dera carta branca para as providências. E lhe enviara um colar de esmeraldas deslumbrante. Onde estavam todos os malditos convidados felizes?
O organista tocara os acordes de abertura, e Magnus voltara-se para olhar para Miss Thalia Robinson, sua noiva, de pé na entrada da igreja. Rindo, feliz. Beatificamente. Por um momento, ficou paralisado, olhando, aprisionado por seu sorriso deslumbrante — mesmo por trás do véu de renda que ela usava. Seu sorriso afastara todo pensamento contrariado de sua cabeça. Ela parecia radiante. Bela. E extremamente feliz. Era esta a mesma moça que ele ouvira soluçar? A moça que, com olhos vermelhos e pele manchada, aceitara seu pedido com uma vozinha de desafio? A moça que, a sangue frio, apresentara seu conjunto de condições somente dias antes do casamento? Mas, hoje, ela sorria...
A música enchera a igreja. Seu movimento o arrancara de seu pasmo, e, enquanto a via caminhar vagarosamente em sua direção, flutuando orgulhosamente ao som da música, ele gradualmente se conscientizara do que ela estava vestindo. E seu desagrado retornara lentamente.
Magnus não era um grande seguidor da moda feminina, mas sabia quando algo tinha a aparência correta. Ora, neste caso, tinha a aparência errada. Apesar de não poder bem detectar o que era. A pálida e tremeluzente cor âmbar não estava particularmente na moda, mas lhe caía bem. O tecido parecia rígido demais, mas este não era o problema...
Seus olhos foram atraídos para o decote, e por um momento ele não acreditou neles. Estava torto. Distintamente torto. E então, agora ele o notava, as mangas também — ou ao menos uma delas. E o caimento do vestido estava todo errado. Ela tinha uma bela pequena silhueta, observou de repente, mas seu vestido era atroz.
Sua raiva cresceu. Como Laetitia permitira que Thalia Robinson fosse para seu casamento usando um vestido desses? As mulheres sempre tentam ter a melhor aparência possível, mas o momento mais importante de todos, o dia que elas esperam ter uma bela aparência, é o dia de seu casamento.
Quanto mais sua noiva se aproximava, mais ele o notava. Manchas nas luvas, removidas inadequadamente. Um remendo na renda de seu véu. Uma bainha torta. Costura irregular... a lista crescera.
E apesar disso tudo, Thalia Robinson sorrira, como se este fosse realmente o dia mais feliz de sua vida.
Como se ela não estivesse usando uma horrível caricatura de vestido de casamento. Como se a igreja não estivesse virtualmente vazia de todos os que lhe desejavam felicidade. Como se ele fosse o homem que ela amava...
E, então, ela lhe batera no nariz tão fortemente que as lágrimas lhe vieram aos olhos, e ele ficou envergonhado, e resmungou algo que fez com que o sorriso saísse de seu rosto e a alegria fugisse de seu corpo. Ele o vira acontecer ante seus próprios olhos — em um momento ela estivera feliz e radiante, no outro infeliz.
Ele tentara evitar que ela notasse quão poucas pessoas estavam na igreja. Sabia exatamente o momento em que ela descobrira que não havia ninguém em seu lado da igreja. Que ninguém viera para ver Thalia Robinson se casar. A pequena mão enluvada que se mantinha nas suas, repentinamente, se apertou em torno de seus dedos. Ela não dera nenhum outro sinal, ficara ereta e esbelta, olhando para frente, para o vitral acima do altar, mas Magnus a sentiu tremer. Atrás do maldito véu ele a viu morder os lábios, lutando para, manter a compostura. Ele passara o braço à sua volta, e, instintivamente, ela se encostara a ele.
Este olhar patético e magoado que ela lhe dera penetrara até o âmago. Ele nunca o esqueceria.
Ela esperara convidados desejando-lhe felicidades — as crianças, a governanta e o mordomo, pelo menos. E estava vacilando sob o impacto cruel dos bancos vazios. E Magnus não pudera fazer nada quanto a isso.
Então ela tirara sua luva — sua atenção estivera em outro lugar naquele momento — e enfiara seu anel no dedo. Ela repetira os votos em uma vozinha desajeitada e, enquanto ele a ouvia, fitara seu anel, brilhando na mão pequena e manchada com as unhas infantilmente roídas. E se perguntara que diabo estava fazendo, casando-se com esta pequena órfã desconhecida, tão estranha a seu mundo cínico e sofisticado. E também muito inocente, vulnerável, e sozinha.
A carruagem balançava e saltava ao longo da estrada em um ritmo louco. Tallie estava se sentindo bastante desconfortável. Se isso era o que viajar acarretava... E isso era a Inglaterra, onde diziam que as estradas eram as melhores do mundo...
Sua mãe deveria ser mais forte do que ela pensara. Lorde d’Arenville não exagerara quando dissera que viagens eram algo difícil para uma dama. — Mas é claro! Era isso! A descoberta atravessou Tallie como um relâmpago. Essa era a razão para esta terrível jornada — com tanta pressa e no último minuto! Partindo no final da tarde, quando ninguém viajava no escuro a menos que não pudesse evitá-lo! Fingindo que brigara com Laetitia, e que não ficaria nem mais um momento em sua casa, enfiando Tallie na carruagem no dia de seu casamento, seu pequeno pacote de pertences logo atrás dela, e partindo em seu próprio cavalo como se os cães do inferno estivessem em sua perseguição. Que insensatez!
Como se lorde d’Arenville — o Iceberg — sempre arremetesse no campo com uma explosão de raiva. O homem era decididamente um exemplo de frio autocontrole. Ele deveria estar tentando amedrontá-la. Na véspera, não escondera sua oposição em relação a isso. Ah! Lorde d’Arenville descobriria que sua noiva não era tão simplória, estava atenta a suas maquinações ignóbeis! Ela teria o Grand Tour!
Tallie sentou-se, o desconforto esquecido à luz de sua descoberta. Por alguma razão sentiu-se imensamente alegre. De algum modo desconhecido, fora a causa de sua briga com a prima.
No momento em que eles chegaram da igreja, ele a mandara para o quarto com uma criada para refrescar-se, enquanto falava com Laetitia. Tallie, contrariada por ter sido despedida como uma criança, esgueirara-se para baixo para escutar atrás da porta, mas na realidade ouvira muito poucas palavras e se frustrara — somente o som das suas vozes. A dele era gélida, cortante, como se estivesse descompondo sua prima com sarcasmo, mas Tallie não podia entender a razão daquilo.
Pressionando um ouvido contra o espesso painel de madeira, Tallie tivera certeza de ouvir algo sobre um vestido. Seu vestido? Pressionou o ouvido mais fortemente contra a porta. Depois, ele dissera algo sobre uma imbecil da aldeia, então não poderia ter sido isso. E Laetitia negara sua responsabilidade quanto ao assunto, e rompera em lágrimas barulhentas.
Então, tudo fora um pretexto — Tallie estava convencida disso, e ensinaria a seu marido uma lição sobre tentar enganar mulheres em relação aos seus direitos prometidos. Ela abriu as venezianas que cobriam as janelas da carruagem. O som dos cascos dos cavalos galopando e o rangido das molas era quase ensurdecedor. Segurando firmemente as alças de couro, ela ajoelhou em seu assento e colocou a cabeça para fora da janela.
Ela inspirou profundamente várias vezes. O ar fresco da noite era completamente divertido, e sentiu uma má vibração quando o inspirou — Miss Fisher dizia sempre que o ar da noite continha uma energia maligna. Proibia estritamente suas alunas que o respirassem. Tallie enrolou as alças mais firmemente em volta de seus pulsos e se debruçou mais para fora, inspirando, feliz. Seu marido estava lá adiante em algum lugar, cavalgando seu próprio cavalo — para ele, esta não era uma viagem abafada em uma carruagem terrivelmente sacudida. As suas lanternas forneciam alguma luz, que lhe permitia ver a silhueta dos dois cavalos de trás, mas não havia sinal de lorde d’Arenville. Ele estava provavelmente bem adiante deles.
— Mas que diabos você pensa que está fazendo?
Virou a cabeça e observou que seu marido chegara perto da carruagem, tão perto que ela quase podia estender o braço e tocá-lo. Sua boca se abriu. Fitou-o, subitamente esquecida do balanço da carruagem. Este era o seu marido? Esta criatura de velocidade e poder, de sombras e luar — este era o Iceberg?
Ele cavalgava como se tivesse nascido em uma sela. Tallie ouvira esta expressão antes, mas nunca pudera imaginá-la. Observava, meio temerosa, o soberbo animal negro sob ele, brilhando com suor ao luar. Parecia enorme e muito feroz, suas patas galopando na noite. E ainda assim seu marido dominava este animal enorme e poderoso sem esforço.
Naquele instante soube exatamente como era um centauro.
Sempre os imaginara como criaturas bastante ridículas — mas isso... Ele era... magnífico.
Fitou o cavalo e o homem, galopando juntos na escuridão intermitente, ora uma misteriosa criatura negra da noite, ora um cavaleiro prateado e brilhante, beijado pelo luar. Ele cavalgava com a cabeça descoberta e cachos molhados de cabelo escuro apegavam-se romanticamente a sua fronte. Sua capacidade de cavalgar tão perto de uma carruagem, que corria e balançava, era mais do que Tallie podia compreender — parecia terrivelmente perigoso.
— Há algo errado? — gritou.
Ah! pensou Tallie. Sua esperança é vã, meu senhor.
— Não, nem um pouco... — ela gritou alto para ele, os cabelos chicoteando-lhe o rosto. — De fato, é monstruo...
— O que você disse? — ele gritou. — Você está bem?
— Eu estou per... perfeitamente bem, meu senhor! — gritou, enquanto era jogada para todos os lados nas almofadas de couro. — Esta vi... viagem é absolutamente deliciosa! Eu estou tendo... — arrastou-se de volta ao canto do assento e apertou os dedos contra a moldura da janela. — Eu estou me divertindo mara... maravilhosamente! É excitante demais!
— Nós pararemos em uma hora, mais ou menos.
Dormir! Tallie se esquecera — era sua noite de núpcias. E, em algum momento, esta noite, em uma estalagem desconhecida, lorde d’Arenville a conheceria, e ela se tornaria sua mulher. Subitamente, sua boca ficou seca.
A estalagem era pequena e antiga, com traves negras expostas e um teto quase caído. Lâmpadas espalhavam uma morna luz dourada e embaçada ao longo das pedras toscas. A carruagem parou no pátio, os cavalos esgotados, seu hálito vaporoso aparecendo na sombra.
A chuva piorara nas últimas horas. Lorde d’ Arenville esperava para ajudar Tallie a apear. Seu marido a puxou fortemente contra o corpo e fez com que o sobretudo ficasse sobre ela, protegendo-a da chuva.
A sensação era irresistível. Seu corpo irradiava calor, força e poder. E um odor — que não era nada desagradável, ela decidiu — de cavalo, lã molhada, couro e suor fresco masculino. Tallie deixou seu corpo encostar-se no dele, sabendo que seu comportamento era indecoroso. Ela sentia muito frio para discutir — e em todo caso, seu braço a envolvia como uma faixa de aço quente e ela não poderia sair dali se tentasse.
— Hospedeiro! — gritou lorde d’Arenville, empurrando-a para dentro. — Uma sala de estar particular e refrescos para minha esposa! — Ele a entregou aos cuidados de uma grande mulher cacarejante, a esposa do hospedeiro. Ela indicou à Tallie uma sala de estar pequena e confortável, com fogo crepitando na lareira.
Tremendo de frio, Tallie ficou tão perto do fogo quanto ousava. Ela olhou à sua volta. A estalagem podia ser velha, mas era limpa e quente. Bateram na porta e a mulher do hospedeiro entrou novamente apressada na sala, sacudiu-se em uma leve reverência, e colocou uma bandeja contendo um grande jarro fumegante, alguns limões cortados, um pequeno pote marrom, e várias canecas de estanho. Um aroma sedutor de vinho e frutos cítricos veio da jarra.
— Aqui está, milady. O senhor pediu algum vinho condimentado, e disse que a senhora deve torná-lo imediatamente e não esperar a sua chegada Ele está cuidando dos cavalos, fazendo tudo ficar no seu devido lugar. Nosso Jem pensa que é natal de tão lindos que os cavalos de Sua Senhoria são. Beba agora, milady. Isso aquecerá seu sangue.
Era muito estranho, pensou Tallie, ser chamada de milady, mas supunha que se acostumaria com isso. Tomou um gole da bebida fumegante com cuidado, depois sorriu para a mulher acima dela.
— Está delicioso! — disse docemente e tomou outro gole. A mulher falou:
— Que bom que senhora diz isso, milady, mas há mais limões se a senhora quiser, e mel, também, se estiver muito amargo...
— Não, não, está bom assim. — Tallie assegurou-lhe. — Obrigada.
A mulher do hospedeiro parecia inchar de alegria.
— É um prazer estar servindo uma dama tão gentil. Não é tão fácil agradar algumas senhoras, vou para a cozinha, milady, mas voltarei em um minuto com o jantar para Sua Senhoria e para a senhora. Eu tenho algumas galinhas gordas assando, e orelha de porco ensopada. — Ela franziu a testa e hesitou.
— Eu não fui avisada de sua chegada, milady, então, infelizmente, não tenho geléias, ou outros pratos delicados que uma dama poderia...
— Por favor, não se preocupe, Mrs...?
— Mrs. Farrow, milady.
— Mrs. Farrow, a senhora não precisa se preocupar com a falta de comidas delicadas de damas. Eu estou com tanta fome que comeria qualquer coisa que a senhora me desse, e tenho certeza de que lorde d’Arenville também. E, se ele não quiser — Tallie acrescentou, com um toque de travessura —, ele só deve culpar a si mesmo, não é? — Ela tomou outro gole de vinho condimentado. — Afinal, ele não lhe avisou suficientemente cedo de nossa chegada.
A mulher do hospedeiro, temendo ser implicada em qualquer crítica a um lorde, proferiu uma série de negações envergonhadas, e se retirou.
Tallie serviu-se novamente. Recostou-se em sua cadeira, aconchegando-se na pelúcia quente, lembrando-se da voz alta e fanhosa de Miss Fisher — uma dama nunca permite que sua coluna entre em contato com as costas da cadeira. —Tomou outro gole de vinho condimentado. Esta era a poção mais deliciosamente aquecedora e relaxante. Já provara vinho antes, e não gostara muito, mas este — os limões, o mel e a canela — faziam uma diferença deliciosa.
Ela tirou seus chinelos e enfiou os pés cobertos com meias embaixo de si — outra vez quebrando a etiqueta de Miss Fisher — e gozou do calor fornecido pelo fogo e pelo vinho condimentado. Que viagem interessante... Fechou seus olhos...
O elegante ladrão de estradas ribombou ao longo de uma delas na intrépida perseguição da carruagem que fugia. Ele balançava e pulava perigosamente, mas a princesa seqüestrada permanecia calma, sabendo que seu amado cavalgava vorazmente para resgatá-la.
Ela batia desesperadamente nas venezianas que o Conde malvado pregara nas janelas da carruagem, mas elas eram fortes demais para ela. Então, subitamente, crashl Com um saltar de madeira, as venezianas foram arrancadas pelo exterior. Rindo de alegria, a princesa perdida debruçou-se para fora.
— Minha amada! — ele chamou, com sua voz profunda e masculina. — Eu estou aqui. Coloque seus braços para fora.
Os dentes brancos brilhantes do ladrão de estrada cintilaram à luz da lua, e ela ouviu seu riso macio. Subitamente, foi tomada em um abraço forte e seguro, e levantada por braços potentes e para a garupa de seu garanhão galante.
— Frio, meu amorzinho? — ele murmurou e a puxou para perto de si. Sua força a sustentava e seu corpo a aquecia, cheirando a couro, lã molhada e suor masculino fresco.
— Você me pertence agora. Tallie, minha mais amada — ele disse —, e eu pertenço a você.
Magnus, tirando um par de luvas de couro encharcado de suas mãos, precisou abaixar sua cabeça ao passar pelo portal baixo e marcado de fumaça, quando entrou na sala de estar privada. Sua calça de montaria e suas botas de couro estavam salpicadas de lama.
— Ah, vinho cond... — estancou, vendo aquela que era sua esposa há dez horas encolhida em uma cadeira como um gatinho, os chinelos jogados descuidadamente, profundamente adormecida. Ficou de pé, olhando-a. Seu cabelo caía até os ombros. Cachos molhados e finos colavam-se à sua fronte pálida e agrupavam-se em volta de seu pescoço. Pestanas longas e escuras refrescavam suas bochechas, que estavam ruborizadas pelo calor do fogo. Ou talvez não, pensou estranhamente, enquanto se inclinava para tirar a caneca de estanho que pendia perigosamente de uma mão.
— Thalia — disse — Thalia — mais alto. Ela não se moveu. Decidiu deixá-la dormir até chegar o jantar.
Ele serviu-se de uma caneca de vinho condimentado e bebeu-a rápido, seus olhos na moça adormecida. Ela parecia exausta; ele não deveria ter infligido uma jornada tão longa à sua delicada noiva, especialmente no dia de seu casamento. Não à pequena Thalia Robins... não, Thalia St Clair é o que ela era agora, era especialmente delicada.
Ele balançou a cabeça, lembrando-se do modo como a pequena impetuosa se pendurara para fora da janela da carruagem, com o narizinho atrevido no ar, o cabelo chicoteando em volta de seu rosto. Sua pele estava molhada com a chuva, brilhando docemente ao luar, e ela gritara algo sem sentido sobre como estava gostando da viagem. Terrivelmente excitante, na verdade!
Magnus tomou um gole do vinho condimentado e observou sua mulher dormindo. Ele notara as poucas sardas sobre a ponte de seu nariz arrebitado. Era quase impossível crer que se casara com este pedacinho de gente. Não se sentia casado. E tinha tão pouco em comum com ela. Deveria que treiná-la, ele supunha, treiná-la até que se parecesse com as esposas... Ele franziu o rosto, considerando o modo como conhecera a maioria destas esposas... não, ele não queria absolutamente que ela se tornasse uma típica esposa da sociedade. Estaria condenada se a deixasse traí-lo. Esta lady d’Arenville não vagueia para longe de seu leito conjugal; ele providenciaria isso!
Tomou outro gole de vinho e fez uma careta. Estava quase frio. Debruçou-se em direção à lareira, e puxou o aquecedor escurecido em direção aos carvões. Thalia ponderou, observando as chamas tremularem e dançarem. Que nome estranho. Não combinava absolutamente com ela. Nunca balizaria um filho seu com tal nome... um filhe seu... Com alguma sorte ela poderia conceber naquela mesma noite...
O hospedeiro, Farrow, entrou com uma bandeja de pratos fumegantes. Magnus silenciosamente mostrou sua mulher adormecida. Farrow e vários subordinados obsequiosos colocaram talheres, pratos e copos que tiniam e ressoavam, enquanto o hospedeiro dava instruções em um sussurro rouco que poderia ser, provavelmente, ouvido no quarto contíguo. A nova lady d’Arenville continuava a dormir serenamente. Magnus tocou em seu ombro.
— Thalia, seu jantar chegou. — Ela não se moveu Ele a balançou gentilmente e ela se agitou, mas não acordou. Ela provavelmente estava faminta. Talvez fosse melhor deixá-la dormir durante o jantar.
Sim, este era o melhor plano. Ele a acordaria para ir para a cama, pois tinha toda intenção de consumar o casamento naquela noite. Quanto mais cedo ele a engravidasse, mais cedo ela se esqueceria desta insensatez de Grand Tour.
Magnus rodopiou um copo de vinho do Porto em sua mão, admirando as chamas bruxuleantes através do seu brilho cor de rubi, e repreendendo-se severamente por seu estado anormal de indecisão. Após um substancioso jantar e vários copos de bom vinho tinto, ele agora estava perfeitamente pronto para cumprir com sua tarefa de marido recém-casado. Mas ela ainda dormia. Franzindo o rosto, colocou seu copo e dirigiu-se à sua mulher. Sacudiu novamente seus ombros. Ela não se moveu; nem mesmo uma pestana estremeceu. Ele debruçou-se, colocou suas mãos embaixo dela e a levantou. Seus braços e pernas balançaram como se não tivessem ossos. Maldita garota — dormia como um morto.
Resmungando levemente, ele conseguiu abrir a porta. Carregou-a pelos degraus estreitos. A cama estava pronta, e com um suspiro de alívio ele a estendeu sobre o leito e a observou com um olhar pessimista.
Sua esposa estava morta para o mundo. Magnus a fixou, magoado. Não estava especialmente ansioso quanto à sua noite de núpcias — nunca tomara uma virgem antes, mas ausentando do ato, sua esposa não estava se mostrando cooperativa.
Além disso, tendo partido para sua lua-de-mel ofendido, ele não a provera com uma camareira. Provavelmente, teria que pedir à hospedeira que a despisse. E ele faria isso — droga — se quisesse que todos soubessem como passara sua noite de núpcias. Não ele só tinha uma escolha: deixá-la dormir com suas roupas e acordar como uma noiva ainda mais suja de manhã
Praguejando baixinho, Magnus desabotoou sua pelica maltrapilha. Ele a tirou e pendurou em um gancho. Precisou tatear para achar as presilhas de seu vestido, e maldisse silenciosamente os costureiros quando finalmente as encontrou sob seus braços. Fez o vestido escorregar por seus ombros e puxou-o para baixo, passando pelos quadris, depois o pendurou no mesmo gancho.
Sentindo-se agitado e impaciente, Magnus voltou-se para sua noiva e ficou paralisado, olhando-a. Ela estava deitada na cama, macia, doce e vulnerável. Seus cabelos estavam amontoados em uma massa rebelde, espalhados nos lençóis brancos, reluzindo, dourados, castanhos e cor de canela, como favos de mel. Sua pele brilhava, rosa-dourada, na luz tremeluzente das velas.
Sua boca ressecou enquanto fixava a forma adormecida. Esta era sua mulher, mas sentia-se como um ladrão em pé, encarando-a assim, complemente inocente e inconsciente.
Continuando o exame fitou seus braços rosados arremessados no alto dos travesseiros, e suas pernas longas e macias, levemente separadas e desaparecendo embaixo do lençol, mais acima percebeu os seios elevando-se leitosos e arredondados da gola de sua camisa...
Que inferno, ele pensou, olhando fixamente suas formas escondidas entre a bainha e gola da camisa e seu coração bateu forte. A camisa era sem mangas, com um cordel ajustável na gola. Ela estava apertada em seu peito e costelas, como se tivesse sido feita para uma pessoa menor.
Segundo as leis da decência, ele deveria deixá-la dormir pelo menos com sua camisa. Ela era uma virgem, modesta e pura. Um cavalheiro deveria mostrar respeito apropriado por sua esposa, somente levantando a bainha de sua camisola durante seus encontros conjugais. Era isso que ele esperara e planejara fazer, afinal. E ela estava adormecida. Somente um grosseirão a manteria nua sob seus olhos assim em sua noite de núpcias. Sem seu conhecimento ou assentimento. Sim, ele deveria decentemente permitir que ela dormisse com sua camisa, e não ficar ali olhando sua mulher como se ela fosse um show de strip-tease barato.
Sem mais nenhum pensamento, Magnus cortou as fitas que prendiam sua camisa e, com a respiração presa, puxou a roupa para baixo. Seus seios saltaram para fora, leitosos e magníficos, e sob seu olhar fascinado dois mamilos rosados se ergueram e endureceram no ar frio da noite. Ele a puxou mais, passando pelos quadris e por suas pernas. Com a boca seca e cheio de desejo, examinou o resto dela, sua cintura delgada, seu pequeno ventre curvo e atraente, os quadris deslumbrantes e o triângulo marrom-dourado de cachos.
Que inferno, pensou Magnus novamente, pasmado. Ela era linda. Sob todos as vestimentas horríveis que ela usava, ela era linda. Macia e desejável. E estava profundamente adormecida, e não havia nada no mundo que o fizesse aproveitar-se deste belo corpo.
Debruçou-se sobre ela, inalando o perfume de seu corpo, e fechou os olhos por um momento, saboreando-o. Ela cheirava a sabonete e a nada mais — somente a si mesma. A inocência. Era legalmente sua esposa, ligada a ele, aos olhos de Deus e da sociedade, disse a si mesmo. Magnus inspirou profundamente.
— Thalia — disse com urgência, em voz alta. Ela não se moveu. Segurou seus ombros com ambas as palmas e sacudiu-a. Os seios leitosos balançaram e estremeceram. Magnus gemeu enquanto a observava. Mas ela não acordou. Em vez disto, se contorceu um pouco, fazendo com que sua língua se colasse ao céu da boca, abraçando os travesseiros, encolhendo as pernas e presenteando-o com a visão de um deleitável bumbum de pêssego. O despertar de Magnus era duro como pedra e doía como o inferno.
Thalia. Como este nome lhe desagradava. Ele não combinava com a criança mal vestida com quem se casara, e com certeza não combinava com a sereia que descobrira. Talvez ele a chamasse por seu segundo nome — qual era? Lucy? Louise? Também não combinava.
Forçando-se se afastar da tentação em sua cama, Magnus inclinou-se para pegar as roupas de baixo que deixara cair. As meias estavam remendadas em vários lugares. Tanto a camisa como a anágua tinham vários remendos e inserções de materiais diferentes. Apesar de imaculadamente limpos e macios pelas muitas lavagens, eram feitos de tecido grosseiro, velho e muito usado. Nem um sinal de renda ou babados enfeitava a peça de roupa. E estas eram as peças íntimas que a noiva de lorde d’Arenville vestira no dia de seu casamento! Laetitia não poderia ter cuidado nem mesmo disso?
Correu em direção à porta, depois estancou. Olhou para as roupas íntimas no canto. Ele as inutilizara, cortando as fitas. O que pensaria ela quando acordasse? Praguejando, pegou-as e as colocou no bolso.
Ele deixou o quarto, batendo a porta, e desceu rápido, suas botas altas fazendo barulho nos degraus de madeira. Acordando o hospedeiro, pediu uma garrafa do melhor conhaque.
— Oh, eu estou extremamente faminta hoje de manhã — exclamou Tallie, pegando uma fatia de pão fresco e crocante, e passando nele uma generosa camada de manteiga. Tomou um grande gole de café e fechou os olhos, saboreando-o, depois mordeu o pão com evidente prazer.
Magnus a observava, amargo. Sua cabeça estava doendo por causa do conhaque.
— Será que eu posso lhe oferecer uma fatia deste excelente pão com manteiga, meu senhor? Eu não posso crer que seja bom para o senhor quebrar o seu jejum somente com cerveja amarga.
Magnus bufou e levou a caneca aos lábios. Tallie olhou com culpa para a travessa vazia à sua esquerda.
— Eu tenho certeza de que Mrs. Farrow ficaria encantada em fazer mais bacon e ovos.
Magnus fechou os olhos por um momento, incapaz de suportar até mesmo o pensamento de ovos gordurosos com bacon.
Tallie pegou o pote de mel. Enfiou uma colher e a girou habilmente, depois derramou o mel sobre o pão e a manteiga. Esta visão lembrou a Magnus seus cabelos sobre o travesseiro, brilhando à luz das velas. Fez uma carranca e silêncio.
— Mrs. Farrow disse que há porco frio, aves e um pouco de torta de cordeiro sobrando do jantar de ontem à noite, se você preferir. Eu sei que muitos cavalheiros preferem carne no café da manhã — persistiu Tallie. Magnus rolou os olhos e tomou outro grande gole da cerveja escura e amarga. — Eu preciso dizer — ela continuou —, o jantar de ontem à noite parecia bem delicioso. Por que o senhor não me acordou? Eu estava extremamente faminta, sabe. Não foi nada gentil de sua parte esquecer-me! — terminou, indignada, lambendo o mel de seus dedos.
Esquecê-la? Magnus fixou-a, estupefato. Abriu sua boca para responder, mas ela ainda não terminara.
— Eu teria preferido muito mais ser acordada. Então, no futuro, por favor, lembre-se de fazê-lo, se por acaso eu tirar uma soneca antes do jantar. — Tallie sorriu, para adoçar o impacto de seu pedido, resolvendo ser mais diplomática com ele, especialmente de manhã. Ele parecia ser uma daquelas pessoas cujo temperamento não apreciava conversas matutinas.
— O senhor não dormiu bem, milorde? — ela sorriu, simpática, para ele.
Magnus quase não conseguia falar. Sentia-se tão indignado e insultado que engasgou.
— A minha cama era bem confortável, apesar de eu ter acordado com um pouco de frio — enrubesceu e desviou os olhos. — Eu acho que Mrs. Farrow me colocou na cama. E ela deve ter pego minhas... er.... algumas coisas para lavar, porque eu não pude achá-las em lugar nenhum.
Encaminhou-se para o fogo e chutou alguns dos troncos. A fumaça penetrou no quarto.
— Milorde...
— Oh, pelo amor de Deus, vamos parar com esta besteira de “milorde”! — exclamou Magnus. — Você é minha esposa. Pode me chamar de Magnus, e eu a chamarei de Thalia. Combinados?
— Eu preferiria não ser chamada de Thalia.
— Como então eu deveria chamá-la? Lady d’Arenville, talvez?
— Por Deus, não! Eu nunca me lembraria de responder a isso.
Magnus franziu as sobrancelhas. Nunca se lembrar de responder ao seu título? Ele estava estupefato. Tallie percebeu que o ofendera.
— Eu suponho que é porque tudo isso é novo demais para mim. Não consigo ainda me ver como uma condessa — ela riu, brilhantemente, com falsa confiança.
— Mas nesse meio tempo eu não devo me dirigir a você como Thalia. Você preferiria Mrs. Robinson, talvez? — concluiu, ácido.
— Claro que não. É só que eu nunca gostei do nome Thalia.
— Por que esse nome?
— Eufrosina e Aglaia eram Graças.
— Bom para elas. Mas eu não vejo...
— E Thalia era uma das Graças, também.
— Graça é um nome normal. Eu não tenho nenhuma objeção em chamá-la de Graça.
— Mas eu não quero que você me chame de Graça!
— Bem, como então você quer que eu a chame? Eufro... alguma coisa ou Aglaia?
— Thalia, Eufrosina e Aglaia eram as três Graças, as filhas de Zeus e servas de outras deidades — explicou gravemente. — Minha mãe achou que seria romântico me dar o nome de uma delas.
— Romântico! Ela deve ter sido uma mulher muito criativa! — disse francamente. — Suponho que ela quisesse mais filhas para completar o conjunto. Você deve agradecer por ter nascido primeiro.
Tallie deu uma gargalhada.
— Então, se você não quer ser chamada de Thalia, qual é a minha alternativa, Lucy? — disse, satisfeito consigo mesmo por ter se lembrado de seu segundo nome.
— Não, eu não gosto de Louise também — hesitou. — Minhas amigas da escola e os filhos de minha prima me chamavam de Tallie, então você poderia chamar-me assim, se desejar.
— Tallie... Tallie... — disse ele pensativo, depois assentiu com a cabeça. — Sim, combina com você. Então, você me chamará de Magnus e eu a chamarei de Tallie, tudo bem?
— Combinado, milor... Magnus.
— Venha, vamos para Paris.
— O que é este cheiro tão diferente, milor... Magnus? — Tallie chamou-o da janela da carruagem. Magnus inspirou e balançou a cabeça.
— Eu não consigo sentir nenhum cheiro. O maldito mar abafa todos os outros cheiros.
— O mar? — exclamou Tallie. — Será que é o cheiro do mar que estou sentindo? Oh, que excitante! Eu nunca vi o mar, e sempre quis vê-lo! — debruçou-se para fora da janela.
Magnus observou-a, pensativo, por um momento.
— Por favor, diga-me mil... quero dizer, Magnus, de que lado é o mar?
— Você ainda não pode vê-lo — disse ele —, mas quando passarmos pelo alto da colina você deve ter uma rápida visão dele.
Os olhos de Tallie esquadrinhavam avidamente o horizonte que se aproximava. Então, em poucos momentos, ela viu uma linha azul brilhante, riscada em uma depressão nas colinas verdes.
— Oohh! — suspirou. Fixou o olhar no horizonte durante os quarenta minutos seguintes, captando visões estonteantes de azul e prata, até a carruagem parar no cume final, e o Canal da Mancha se estender diante dela em uma área brilhante e infinita. — Oohh!
Divertindo-se com sua atração ingênua, Magnus fez sinal ao cocheiro que parasse. Ele desmontou e abriu a porta para Tallie.
— Venha—disse, estendendo a mão. — Vamos parar por um momento para que você possa olhar à vontade. Este não é o verdadeiro mar, sabe. É somente o canal.
Ela voltou-se para encará-lo, maravilhada.
— Verdade? Mas é enorme! Eu não consigo ver o outro lado de jeito nenhum.
— No entanto...
— O Canal da Mancha... — inspirou reverentemente. — É muito maior que os mapas nos fazem acreditar.. logo ali está a Europa!
Ela correu de volta para a carruagem e escalou os degraus, esquecida do cavalariço.
A cidade de Dover não era especialmente inspiradora, na opinião de Magnus. Só havia duas hotelarias decentes, nas quais um cavalheiro poderia fazer sua esposa repousar em segurança — o Ship Inn e o King’s Head. O Ship Inn era o mais elegante dos dois, e foi para lá, naturalmente, que Magnus se dirigiu.
Para sua contrariedade, porém, a estalagem estava cheia. O hoteleiro explicou. Parecia que não houvera vento, nem mesmo uma brisa, por vários dias. O canal estava liso e vítreo, e as velas dos barcos flácidas, então, a estalagem, e toda a cidade, de fato, estava apinhada de pessoas esperando para partir para a França.
— Verifique novamente — disse lorde d’Arenville, colocando várias moedas sobre o balcão.
O nome de lorde d’Arenville não era desconhecido. Também não era hábito do Ship’s rejeitar cavalheiros da nobreza. O hoteleiro hesitou um momento, depois se inclinou para frente.
— Tudo o que eu posso oferecer a Vossa Senhoria é dividir um apartamento, infelizmente... por um pequeno reconhecimento, é claro. Há vários jovens cavalheiros que aceitariam acomodar Vossa Senhoria em troco de uma redução em sua tarifa, e a dama, sua esposa, seria, tenho certeza, bem-vinda a dormir com lady Entwhistle, uma viúva idosa da maior respeitabilidade. — Seus dedos rastejaram para o dinheiro.
— Dividir? — exclamou lorde d’Arenville, indignado, pegando de volta as moedas. Sua mulher dividir com alguma velha, uma citadina, sem dúvida alguma! A idéia era absurda. Sua condessa não compartilharia a cama com velhas desconhecidas! Ela a compartilharia com ele. Ou o faria, assim que ele resolvesse o problema. Ele já havia esperado bastante até agora.
A memória da suavidade nua de Tallie permaneceu com ele, e cada vez que a via, cada movimento seu causava-lhe desconforto — tudo de que necessitava era de uma cama e de sua esposa.
— Isso é tudo o que posso lhe oferecer, milorde. Sem o vento, os barcos não podem partir.
— Está bem, então — disse lorde d’Arenville, friamente. — Por favor, recomende-me alguma acomodação privada onde minha esposa possa ficar.
— Não sobrou nada, infelizmente, milorde. Os barcos estão parados aqui já há seis ou sete dias, e toda a cidade está completamente cheia, tão apertada quanto um carrapato, se me perdoa a expressão. Talvez o senhor encontre alguma coisa em uma das tabernas perto do mar, mas eu não o aconselharia a uma dama.
— Com certeza!
Mrs. Entwhistle era, como Magnus temera, uma moradora da cidade. Uma viúva que possuía no momento várias fábricas de lã e manufaturas — um fato que não hesitou em informá-los para o desgosto de Magnus. Falava com um arrazoado de “refinamento” que se intensificou quando descobriu a importante companhia na qual estaria. Também era tagarela até o ponto de se engasgar. Magnus só precisou ficar dez minutos com ela até entender por que seus três maridos morreram jovens — procurando a paz e silêncio da sepultura. Ela era, porém, totalmente respeitável e se deliciara em compartilhar seu quarto com uma jovem condessa. Então Magnus pode deixar sua esposa jantando em uma travessa no quarto da mulher, sem dúvidas em relação à sua segurança.
Ele mesmo passou uma noite extremamente frustrante. Levou horas para conseguir dormir, a imagem de sua esposa nua sendo a causa principal de sua insônia. Depois, quando finalmente caíra em um sono agitado, os jovens rapazes espertos com os quais ele compartilhava seu quarto entraram em tumulto, totalmente bêbados e falando no mais alto volume.
— Se vocês, jovens cavalheiros, não forem para a cama o mais rápido possível, e em silêncio, eu serei forçado a sair da minha — disse, com uma voz que congelou os jovens. — Eu não acredito que vocês gostariam das conseqüências. — Depois disso, o único som no quarto foi o de respirações furtivas.
Magnus deitou-se completamente acordado, curioso por saber que golpe de má sorte fizera com que acabasse dividindo um quarto com três idiotas bêbados enquanto sua mulher se enroscava na cama com uma velha vulgar.
Nunca se sentira tão desconfortável — nem tão frustrado — em sua vida. Exceto em sua noite de núpcias.
Um dos rapazes começou a roncar. Magnus cobriu a cabeça com o travesseiro.
O humor de lorde d’Arenville não era dos melhores quando entrou na sala de jantar pública lotada da estalagem para reunir-se à sua mulher no café da manhã. Passara uma noite bastante frustrante — novamente — e mesmo o fato de ter jogado para fora da cama o mais barulhento de seus companheiros falhara em vencer os roncos noturnos.
— Bom dia, milorde — Tallie saudou-o com um sorriso ensolarado. — Você dormiu melhor esta noite?
— Provavelmente você dormiu bem. Novamente — acrescentou, notando seus olhos brilhantes e sua pele clara e macia.
Ela balançou a cabeça afirmativamente, olhou rápido em volta da sala, depois se debruçou para frente e sussurrou:
— Não, nem um pouco, pois, você não vai acreditar: Mrs. Entwhistle ronca!
Magnus deu uma surpreendente gargalhada.
— Oh, mas é verdade — Tallie sussurrou e rolou os olhos. — E terrivelmente alto. — Deu uma olhada pela sala novamente e acrescentou, os olhos cheios de divertimento — parece que ela não suporta ficar quieta!
Apesar de seu mau humor, ele se viu sorrindo para ela.
— Meus companheiros fizeram a mesma coisa.
— Oh, então você entende. Eu não gosto nem um pouco deste som. E não pára, não é? Até você sentir que deseja sufocar a pessoa que está fazendo isso. — Levou outra garfada de salmão à boca e mastigou, pensativa, fitando-o com uma expressão inquisitiva.
— Você...? Eu quero dizer... nada.
— O quê...? — disse Magnus. Ela enrubesceu.
— Esqueci-me do que ia dizer. Er, você acha que o vento virá na hora certa hoje, milor... Magnus? Para que o navio parta, eu quero dizer. Está um belo dia de sol, em todo caso. Se não pudermos partir hoje, você pensa que poderíamos andar até as Western Hights? Eu ouvi dizer que a vista é espetacular, e que a caminhada é muito revigorante.
Magnus franziu as sobrancelhas. O que ela quase lhe perguntara? Algo a fizera enrubescer. Será que ela lhe perguntaria se ele roncava? Abriu sua boca para tranqüilizá-la.... depois a fechou, desconcertado. Não tinha a mínima idéia se roncava ou não.
Com certeza nunca ninguém lhe dissera que o fazia — mas raramente dormia com as mulheres com quem se envolvia.
Talvez ele roncasse. Será que sua esposa desejaria sufocá-lo em seu sono?
Logo após, eles subiram nas Western Hights, onde ela se extasiou com a vista.
Quanto mais tempo passava em companhia de sua esposa, mais seu desejo reprimido crescia. Ela era tão diferente das mulheres enfastiadas e cansadas de tudo que ele conhecia! Parecia encontrar um prazer inconsciente nas menores coisas, e ele não podia evitar se perguntar se ela reagiria com igual delícia aos prazeres que planejava apresentar-lhe — logo que tivesse privacidade para fazê-lo. Enquanto isso, sua mera visão, colocando uma concha no ouvido para ouvir o mar, passando por cima de uma cerca, ou correndo colina abaixo, rindo alto, divertindo-se, era suficiente para fazê-lo quase gemer alto. Tentou controlar a sua reação em relação a ela, mas a própria impossibilidade de fazê-lo o perturbava e o fazia ficar furioso.
Ele nunca esperara desejar sua mulher. Sentia que era improvável e tolo que um homem o fizesse... vira outros na escravidão dos encantos de suas esposas — seu pai, por exemplo — e observara que isso dava a elas infinita influência sobre seus maridos. Nenhuma mulher jamais possuíra o mínimo controle sobre Magnus, e nada mudaria isso. Não, esta queda inexplicável que ele sentia por sua mulher era meramente uma extravagância momentânea, como resultado da recente falta de companhia feminina. Passaria, assim que o casamento fosse consumado — se o fosse um dia!
Droga! Ele nunca desejara tanto fazer amor com uma mulher e nunca fora tão terrivelmente incapaz de encontrar uma oportunidade de fazê-lo.
Seu marido poderia estar se comportando como um urso com dor de cabeça, mas Tallie não se lamentava. Era claramente um homem difícil de se agradar, mas ela o sabia desde o início. De fato, o casamento com Lorde d’Arenville estava se revelando bem melhor do que esperara. Apesar de seu mau gênio, em geral, ela descobriu vários traços de seu caráter que achou bastante amáveis — lampejos inesperados de gentileza, como parar a carruagem para que ela pudesse olhar o mar, por exemplo.
Sim. Tallie pensou, era maravilhoso estar passeando pela cidade de braços dados com um cavalheiro bonito — ainda era quase impossível acreditar que um homem de aparência tão magnífica fosse seu marido. O calor que queimava dentro dela quando colocava a mão em seu braço, o encontro ocasional de seus corpos quando caminhavam — tudo isso era extremamente agradável.
Ela não podia evitar apreciar as diversas pequenas coisas que ele fazia. Como a maneira pela qual ele se posicionava protetoramente entre ela e a estrada, quando caminhavam. E a ajudava subir e descer degraus como se ela fosse algum tipo de criatura frágil e impotente, o que os céus sabiam que não era, mas ainda assim... era bom que fosse considerada assim, de vez em quando. E era ainda melhor pensar que talvez ele não mais a considerasse robusta...
Claro, provavelmente, tudo isso eram só boas maneiras. Sem dúvida, ele faria exatamente o mesmo por Mrs. Entwhistle — isto é, se ela parasse de falar algum dia. Ele tinha bons modos — quando queria.
Tallie suspirou. Havia momentos em que sentia como se seu novo marido e ela pudessem chegar a um entendimento, quando poderia encontrar algum grau de felicidade com ele afinal. Mas de repente se lembrava de que não era a esposa amada em sua lua-de-mel, mas uma necessidade inconveniente que o estava colocando em grandes apuros.
Então, disse a si mesma, reanimando-se, Dover era um local fascinante, e ela tinha coisas melhores a fazer do que se lamentar com devaneios sobre a disposição de seu marido. Não havia nada que pudesse fazer em relação a isso, afinal. Seria tola se desejasse algo mais era somente uma égua reprodutora para ele — ele o dissera à sua prima, naquela noite, na biblioteca. E, apesar de ele ter se cansado de explorar a cidade, ela ainda queria fazê-lo.
Cada manhã, Tallie fugia do Ship Inn para ir à beira-mar, aproveitando-se do fato de que seu marido acreditava que estava na companhia de Mrs. Entwhistle. Ele mesmo não conseguia suportar o tagarelar fútil da mulher.
Ela estava intensamente curiosa em relação a todo aspecto da vida marinha. Maravilhava-se com a maneira pela qual as mãos curtidas de sol dos marinheiros podiam dar nós nas redes finas e delicadas. Aprendeu a identificar bergantins, chalupas e escunas, e excitava-se ao ver os canhões do Revenue apontados para si. Os marinheiros faziam relatos excitantes de contrabandistas, navios afundados e tempestades.
Uma manhã, um marinheiro ofereceu-se para levá-la, remando, até um dos barcos, para mostrá-lo. Deliciada, Tallie aceitou, e ficou profundamente impressionada ao descobrir a maneira engenhosa pela qual seu interior fora decorado. O marinheiro a levava de volta para a margem quando ela notou o semblante irado de seu marido, esperando-a.
Quando o pequeno barco atingiu a margem, ele a içou, com a cara fechada, para a terra seca.
— Mas o que você pensa que está fazendo, madame?
— Explorando aquele grande barco lá — ela arquejou. — Eu estava realmente muito interess...
— Como você ousa sair desacompanhada? Não tem idéia do tipo de vilões e rufiões que freqüentam lugares assim?
Vilões e rufiões, realmente, pensou Tallie zangada Como se ela não soubesse muito bem reconhecer se uma pessoa era confiável. E, já que ele estava tão obviamente entediado com sua fascinação com as coisas náuticas, que alternativa ela tinha, a não ser ir sozinha? Ela agora era uma mulher casada, afinal, e tinha muito mais liberdade que uma garota solteira para ir aonde quisesse. Era somente porque ele tinha estas idéias estúpidas sobre seu comportamento ser mais adequado mais digno de uma condessa. Bem, era impossível passar de uma parente indesejada a uma condessa em poucos dias.
— Oh! Que nada! - retorquiu. — A maioria deles é muito gentil — sorriu e acenou para uma velha que estava sentada, fumando um cachimbo do lado de fora de uma taberna, sabendo que isso irritaria seu marido — Alo, Nell!
— Alô, Miss Tallie.
Magnus praguejou e acelerou seu passo, forçando Tallie a saltar e pular para acompanhar seu ritmo.
— Oh, aí estão vocês, meus queridos — começou Miss Entwhistle. Magnus curvou-se, bateu a porta e saiu pelo corredor, subindo o lance de escadas até seu próprio quarto, e já estava introduzindo Tallie ali quando estancou abruptamente, praguejando. Ela olhou por cima do marido. Meia dúzia de jovens elegantes estava espalhada pelo quarto, fumando, bebendo ou jogando cartas.
— Entre, velho amigo — chamou um deles, bêbado — E traga esta potranca bonitinha com você! — Magnus pareceu endurecer com uma raiva gélida
— O senhor está se referindo, sir, à minha esposa! — disse em um tom macio e selvagem. Isso subjugou os jovens cavalheiros, pensou Tallie. Ele a empurrou para longe e fechou a porta atrás de si. Magnus correu para baixo e intimou o hoteleiro:
— Seja gentil e leve-nos a um quarto particular imediatamente. Um no qual eu possa falar com minha esposa sem interrupção.
— Infelizmente — disse ele —, não há nenhum, milorde. As pessoas estão dormindo até nos quartos comunitários esta noite.
— Então apronte minha carruagem! — exaltou-se.
Na carruagem falou de sua maldade em fugir da estalagem sem seu conhecimento e sua perfídia em usar uma moradora da cidade maldita e tagarela para acobertá-la! Sua falta de decoro ao se aventurar sozinha nesta cidadezinha imunda.
Tallie ficou sentada ouvindo tudo.
—...e, em relação à extrema loucura de se aventurar a bordo de um navio estranho na companhia de... de um rufião tatuado com brincos de ouro em suas orelhas. O quê, qualquer coisa poderia ter acontecido com você! Você poderia ter sido raptada, ou pior. Um malvado como ele cortaria sua garganta tão logo olhasse para você!
— Oh, não, meu senhor, Jack pode parecer um pouco rude, mas na verdade ele é um sujeito decente sob todas aquelas tatuagens. Sua mulher na Jamaica deu a ele aqueles brincos...
— Ele poderia tê-la levado embora naquele barco...
— Navio. Um barco é muito men...
— Será que você vai me escutar, você, sua tola atrevida? — Magnus deu um soco na almofada de couro.
— Ele poderia tê-la drogado, raptado e vendido como uma escrava branca em algum porto estrangeiro!
Ela ouvira falar de escravas brancas, claro. Mas ela não estivera em tal perigo. Todos na costa sabiam onde fora.
— Mas como poderia ele, milor... com... — começou
— Muito fácil...
— Pois não há vento para que o navio parta ela — concluiu. — É por isso que não estamos ainda na França. Você esqueceu?
Magnus encarou-a, perplexo com a resposta. Ela fitou seu marido. Ele olhava pela janela uma expressão fechada no rosto. Obviamente, ele ainda não havia superado seus caprichos. Ela suspirou. Esperava-se que um homem tão belo tivesse um temperamento melhor, mas a menor coisinha parecia fazê-lo explodir. Ainda assim, qualquer um que houvesse sido educado no Colégio Interno de Miss Fisher para Filhas de Cavalheiros sabia tudo sobre mau gênio.
O som fez Magnus voltar-se e olhar para ela. Ela ergueu a cabeça e sorriu, inquisitiva, para ele.
Foi o sorriso que o fez, Magnus disse a si mesmo mais tarde. Era bastante óbvio que ela ainda não tinha idéia da imprudência de suas ações, do perigo no qual estivera. Seu semblante não mostrava o menor sinal de contrição. Seu gênio, mantido rigidamente sob controle, ultrapassou os limites novamente.
— E se este maldito rufião imundo tivesse decidido violá-la naquele barco? — rosnou ele. — O que você teria feito, hein?
— Oh, ele não faria nada assim — retorquiu Tallie zangada. — E se tivesse — ela encarou-o: — eu sei muito bem como lidar com estas coisas.
— O quê?
— Bem — ela começou, mas suas palavras lhe congelaram na garganta quando Magnus jogou-se sobre ela. Ele prendera suas mãos às costas e a empurrara para trás no assento da carruagem, seu corpo musculoso pressionando pesadamente o dela, enquanto suas pernas se agitavam.
— E se ele tivesse feito assim? — Magnus resmungou. — Seu corpo vulnerável sob o dele. Acessível a todo o seu desejo. — Ele apertou-se contra ela, os olhos devorando sua face.
Tallie sentiu algo duro pressionando seu ventre. Ela tentou esquivar-se. O rosto de seu marido pairava acima dela, escuro e zangado.
— E se ele fizesse isso com você? O que você teria feito, hein? — sua mão se moveu vagarosamente por seu seio, acariciando e apertando.
Tallie arfou, admirada. O que ele estava fazendo? Tomar tais liberdades com sua pessoa... Ela sabia sobre homens que tomavam liberdade com uma moça de Miss Fisher — ela nunca soubera exatamente o que era “liberdade”. E ela sabia muito bem qual era a resposta adequada para uma jovem dama bem educada nesta situação — só não tinha certeza se queria fazê-lo... ainda. Esta liberdade era incrivelmente prazerosa, e ela não queria interrompê-lo... ainda.
A grande mão quente explorando seus seios causou todo tipo de reações maravilhosas e febris em seu corpo. Especialmente, quando ele a tocava... assim. Oh!
Como marolas em um lago, as sensações começavam em seu peito e se irradiavam deliciosamente para fora. E para baixo. Ela ficou ali, deitada, extasiada, olhando para o rosto sombrio de seu marido, perdida nas sensações que suas carícias produziam.
— E se ele tivesse feito isso? — murmurou com voz grave, e pressionou fortemente os lábios nos dela.
Mesmo seu corpo pesando tanto em cima do dela a fazia sentir algo interessante... Meu Deus! Sua língua estava pressionando, tentando penetrar entre seus lábios... muito peculiar, extremamente... excitante. A sensação vibrava, passando de seu corpo para o dela que se sentia amolecer e derreter com prazer...
Sua língua penetrava novamente na boca de Tallie, fazendo arcos lentos e sensuais, tocando o céu de sua boca. enroscando-se em sua língua. Tallie gemeu, arrebatada, enquanto sensações maravilhosas a inundavam. Seus pulsos potentes a aprisionavam e ele se pressionava contra ela, em movimentos deliberados e rítmicos, seu corpo movendo-se ao compasso de sua língua. Tallie sentia-se lânguida, excitada e apreensiva tudo ao mesmo tempo.
Sua mão deixara-lhe os seios, ela notou de repente. Estava deslizando por suas pernas, por cima de suas meias... Já passara de seus joelhos e estava tocando sua pele nua! A mão se movia cada vez mais para cima, e ela tentou se desvencilhar dela, ao mesmo tempo sentindo vontade de pressionar-se mais contra ele. Ele gemeu, acariciando a pele de suas coxas com dedos quentes e fortes. As pernas de Tallie tremeram em resposta, depois se abriram, estremecendo. Sua mão se moveu mais para cima, circulando, pulsando, pressionando.
De repente, a carruagem balançou, e Tallie se conscientizou do que estava fazendo. E de onde estavam as mãos de Magnus! Enrijeceu-se, em choque. Ele estava realmente tomando liberdade! E Tallie sabia qual era o seu dever.
— Oh! — suspirou alto, depois desmoronou dramaticamente para trás sobre as almofadas da carruagem, o corpo mole, como se não tivesse ossos.
— Tallie? O que houve? Oh, Senhor! — ele se deixara levar. O mais leve toque de seus lábios nos dela, e a paixão que ele tentara reprimir tão duramente se desencadearam incontrolavelmente.
Completamente alarmado, Magnus sentou-se e passou a mão pelos cabelos, perguntando-se o que se fazia com fêmeas desfalecidas. Sais aromáticos, era disso que necessitava. Procurou em todos os cantos da carruagem, como se fosse aparecer magicamente uma garrafa deles, mas não achou.
Gritou para o cocheiro que parasse o coche, e, enquanto desacelerava, escancarou a porta.
Um som partindo de sua amada esposa o fez estancar. Ele não podia crer no que estava ouvindo. O som veio novamente. Magnus voltou-se, profundamente desconfiado, e olhou para ela. Com certeza, seu corpo se convulsionava — em risadas não exatamente silenciosas.
— Sua pequena bruxa! — exclamou, irado. — Você estava fingindo!
Tallie sentou-se, tateando por sua bolsa para pegar um lenço que limpasse seus olhos molhados.
Magnus a encarou, injuriado e incrédulo. Ela ria? Ria dele? Estivera perdido nas alturas da paixão... ela fingira um desmaio... e estava rindo!
— Você vê, meu senhor, eu não estava em perigo.
— Perigo de quê? — Agora mesmo ela estava em perigo de ser estrangulada! Por seu marido recém-casado!
— Da parte daquele marinheiro, claro — Tallie respondeu o mais enfaticamente que podia, pois seu corpo ainda tremia com o resquício de sua paixão.
Ela continuou:
— Se ele fizesse o que você disse que poderia fazer — o que você acaba de fazer comigo agora mesmo — eu teria fingido desmaiar, assim como fiz. Então, enquanto ele estivesse pensando no quê fazer, eu teria escapado.
Ela riu triunfantemente para ele e alisou suas saias, esperando que ele não notasse o tremor em suas mãos. Nunca soubera que um beijo poderia ser assim, mas nunca poderia deixá-lo saber o quão fortemente a afetara. Não queria desgostá-lo, afinal.
— Agora, podemos voltar para a cidade?
Ele ainda parecia querer matá-la, então ela disse:
— Você realmente não precisa se preocupar com minha segurança, meu senhor, pois não há necessidade, como pode ver. Eu aprendi como lidar com situações indesejadas quando estava na escola, sabe. Miss Fisher considerava isso muito importante. Claro, esta foi a primeira vez em que eu realmente precisei fazê-lo, mas acho que funcionou esplendidamente.
— Esplendidamente.
O belo pirata debruçou-se sobre ela, um cacho de cabelos escuros caindo sobre sua fronte. Seus olhos cinza-mar escureceram-se com paixão quando colocou sua boca sobre a dela...
— Não tema, meu amor — murmurou o pirata. Não era justo. Ela amava o mar.
—... e meu navio é grande e seguro...
— Oh! — Tallie protestou. Ela amava navios. —.... e ele cavalga as ondas como um golfinho...
— Oh, não, não, chega... — Tallie lamentou-se, infeliz. Ela fora traída — pelo navio, pelo mar!
— Aqui, pegue isso.
Os olhos de lorde d’Arenville estavam sombrios como o mar, preocupados, enquanto ele se debruçava sobre ela. Segurava uma bacia, e Tallie a pegou, agradecida, fechando seus olhos novamente para apagar a vista da lanterna balançando com o movimento do navio.
Ela dobrou-se sobre a bacia por um intervalo de tempo longo e doloroso, depois se sentiu sem fôlego. Com um pano frio e molhado gentilmente limpou sua boca, enquanto ela sentia mãos que apertavam o cobertor de maneira mais segura em torno de seu corpo trêmulo.
Braços quentes e fortes a apertaram e ela suspirou aliviada. Sentiu que alguém a levantava, e seus olhos abriram-se, alarmados.
— Está tudo bem. Eu a estou levando para cima para o deque. — Magnus murmurou, enquanto ela se agarrava ao seu pescoço em desespero.
— Não, não.
— Confie em mim, você se sentirá melhor ao ar livre — disse ele, e a carregou para fora da cabine pequena e escura. — Tallie tinha certeza de que morreria se tivesse que subir para o deque que se inclinava e balançava mas estava se sentindo por demais miserável e cansada para discutir. Ela morreria logo, de qualquer jeito Por que nunca ninguém lhe dissera que navegar era assim?
No deque, o vento estava forte e frio. Magnus a carregou para o parapeito do navio e encontrou um local para se sentar, segurando-a em seus braços. Respingos do mar esfriavam sua pele úmida. Magnus enxugou-a com seu lenço.
— Está se sentindo melhor?
Tallie estremeceu e se apoiou em seu peito Ela se sentia um pouco melhor. Seu estômago doía terrivelmente por causa de tudo o que saíra dele.
— Este é o tempo perfeito para navegar — disse ele. Ela o olhou, incrédula. Tempo perfeito?
— Segundo o capitão, este vento nos levará à França em menos de cinco horas — continuou. Ele olhou para ela e sorriu de leve. — E um pouco menos de duas horas a partir de agora.
— Duas horas — Tallie gemeu.
Ele riu — bem sem coração, pensou ela.
— Aqui, isto lhe ajudará a acalmar seu estômago.
Ele puxou um frasco de prata achatado, desatarraxou sua tampa e segurou-o em seus lábios.
— Não — ela sussurrou, virando os lábios para o outro lado. Não suportaria comer ou beber nada.
— Confie em mim. — Ele segurou seu queixo e derramou o que parecia a metade do conteúdo do frasco pela sua garganta.
Tallie estremeceu enquanto ele queimava sua garganta abaixo, e tossiu quando a bebida chegou em seu estômago vazio, privando-a por um momento de toda capacidade de respirar.
— O quê? — gaguejou indignada.
— Conhaque.
Ela cedeu e sentiu um calor espalhando-se por seu corpo que parecia expulsar a terrível náusea.
Ele fora tão gentil com ela, pensou, tonta. A última coisa que esperara de lorde d’Arenville era que ele se mostrasse tão gentil e simpático com seu mal-estar. Ele era uma pessoa tão melindrosa. Acreditara que cavalheiros eram assim.
Mas em vez disso, ele cuidara dela com uma competência silenciosa que, agora que pensava sobre isso, fazia com que quase quisesse chorar... Ela não podia se lembrar de ninguém que se importasse se Tallie Robinson estava bem ou mal, viva ou morta. E agora, este — este chamado Iceberg cuidara de suas necessidades com uma gentileza cuidadosa que quase lhe partiu o coração. Era maldade as pessoas o chamarem assim. Ele não o era, absolutamente. Ele era...
— Você é tão gentil... — ela murmurou, encostada em sua pele, sentindo as lágrimas surgirem, quentes, em suas pestanas.
Gentil? Ela dissera que ele era gentil? Magnus estava estupefato. Com certeza ouvira mal. Mudou levemente a posição com a qual a abraçava, envolvendo-a mais firmemente na curva de seu corpo, saboreando seu peso relaxado, a sensação de suas faces macias contra a pele. Cachos perdidos de seu cabelo batiam em seu queixo. Ele aspirou seu perfume, sabonete e mar, e o fraco amargor dos remanescentes de seu mal recente.
Pobre criancinha. Seu enjôo de mar fora um choque para ela. Ela estava excitada quando embarcaram, os olhos brilhando.
E ela pensava que ele era gentil... não foi gentileza o que fez cuidando dela, refletiu, pesaroso.
Sentiu seu corpo relaxar contra o dele. Ela adormecera. Em seus braços. Sua mulher.
Magnus observava as ondas, sentindo prazer com o respingar forte e salgado que batia em seu rosto. Puxou o cobertor para evitar que ela se molhasse. Nada fora como ele esperava, neste negócio de casamento. Deus, como fora simplório, pensando obter uma mulher apenas para lhe dar filhos. Ele só pensara nas crianças; quase não considerara sua esposa, exceto pensando encontrar uma mulher saudável que perturbaria sua vida o mínimo possível. Riu silenciosamente. Que idiota, pensar que uma mulher não perturbaria sua vida.
Talvez, se ele tivesse se casado com uma das candidatas de Laetitia... Era irônico pensar que ele escolhera Tallie porque ela tinha tão poucas expectativas. Ela simplesmente explodia de expectativas; este era o problema. Possuía uma sede de vida que o espantava.
Se ele tivesse escolhido uma das garotas de Laetitia, teria tido uma viagem de núpcias convencional. Mas, em vez de uma fria e sofisticada mulher que compreendia seu dever, ele escolhera esta criaturinha ingênua, que lançara sua vida no caos. Ele não notara o quão sozinha no mundo ela era.
E assim, por causa do despeito de Laetitia e de sua própria falta de previsão, ele precisara ser criada, cavalariço, enfermeiro e protetor de sua mulher. Tudo exceto marido. E por causa das estalagens cheias, do litoral malcheiroso, de cidades vulgares — sem mencionar sua noite de núpcias atrasada — ele estava sendo mal humorado e desagradável boa parte do tempo.
E ainda assim ela dizia que ele era gentil...
Ele não o era, é claro. Magnus o sabia. Juntamente com o conhecimento de seus deveres para com a sua linhagem, as terras e o nome de sua família, seu pai lhe impusera um rígido sentido de responsabilidade por aqueles que dele dependiam. E não havia dúvida na mente de Magnus de que sua esposa era mais dependente dele do que ninguém jamais o fora em sua vida. Gentil? Ela simplesmente não compreendia a noção de noblesse oblige.
Mas ele gostava do peso quente em seus braços.
Quando chegaram a Calais, ela já se havia recuperado quase completamente de seu enjôo.
Os oficiais franceses examinaram seus passaportes com uma expressão insultante de suspeita, e revistaram sua bagagem com mãos gananciosas. Um voltou-se para verificar as roupas de Tallie — enquanto ela as estava vestindo — e Magnus adiantou-se, com um rugido de aviso. Houve uma troca de resmungos, um pouco de ouro passou das mãos inglesas para as francesas e eles foram autorizados a partir. A cada passo na terra firme e segura Magnus verificava a excitação da esposa.
Observara que granadeiros marchavam, passando por eles. Parecia muito assustador e militar, com prodígio e um passo rígido e ameaçador.
Tallie observava as pessoas, as mulheres usavam adornos resplandecentes e belos chapéus engomados enfiados na cabeça.
Ela estava surpresa ao ver o quão amistosas e cordiais as pessoas pareciam, mas a Paz de Amiens fora assinada quase um ano antes, e as coisas, obviamente, haviam se acalmado.
Pararam para descansar numa hospedaria na estrada.
— Não estou com muita fome – declarou Tallei ao entrar na sala de Jantar Privada. O estômago estava bem mais calmo, mas ela ainda sentia uma sensação estranha. Magnus franziu o rosto, pediu café, ovos, bife e cerveja para ambos. O garçom ergueu os ombros à maneira franceza, com a dizer que eles não estavam mais na Inglaterra, e que franceses decentes não bebiam cerveja. Magnus ergueu os ombros à maneira inglesa em resposta, e não disse nada. Tallie esperou ate que o garçom saísse.
— Eu não quero comer, obrigada. Eu não estou com fome.
— Besteira—disse Magnus, estimulando-a. — Você comerá, e ponto final.
O garçom voltou em alguns momentos e colocou um prato de ovos pochés em sua frente. Magnus atacou um bife grande e mal passado. Tallie olhou-o minuciosamente e empurrou seus ovos para longe. Como ela poderia ter pensado que seu marido era gentil? Ela tinha certeza de que não tinha nada mais por dentro. Ninguém com um pouco de sensibilidade esperaria que ela comesse ovos fritos — ou que o observasse devorar um bife gorduroso — quando ela ainda se sentia tão delicada. Afastou seus olhos da visão nojenta.
Magnus chamou o garçom. Logo depois ele trouxe uma xícara de café cheiroso e fumegante, e um prato de pãezinhos franceses e os colocou na mesa. Tallie viu Magnus abrir os pãezinhos. Uma pequena nuvem de vapor escapou quando a casca dourada se quebrou. O odor era divino. Ele passou manteiga clara em um pedaço e, antes que ela soubesse o que pretendia, enfiou-o em sua boca. Relutantemente, ela mastigou e engoliu. Estava delicioso. Depois tomou um gole de café com leite. Estava maravilhoso — quente, forte e doce. Esvaziou a xícara, depois olhou para cima e viu seu marido a observando, um tênue olhar zombeteiro em seu rosto.
— Muito bom, está delicioso. E eu me sinto melhor.
Ele assentiu com a cabeça.
— A comida é a melhor coisa após um ataque de enjôo de mar. Você vai comer os ovos agora?
— Não, obrigada. Eu me contentarei com estes pãezinhos e com um pouco mais deste café delicioso.
— Apresse-se, então, pois nós não dormiremos aqui — disse Magnus. — A travessia de navio foi rápida — disse ele — mas não vai demorar em que esta cidade esteja tão apinhada quanto Dover. Eu tenho a intenção de começar a viagem para Paris o mais rápido possível, para evitar o inconveniente das estalagens cheias. Nós pararemos em Bolonha.
— Muito bem, eu adiarei meu banho até pouco antes de me retirar para dormir.
Magnus encontrou seus olhos em um olhar estranhamente tórrido por um momento, depois fitou seu prato.
— John Black está providenciando transporte com o agente de correio. Nós partiremos assim que conseguirmos uma carruagem e quatro cavalos.
A viagem ao longo da rota dos correios de Calais para Bolonha deliciou Tallie, apesar do forte aroma de cebolas que pairava no veículo.
— Poderia pensar que fazendas e campos são iguais em todo o mundo, mas não é assim, absolutamente, não é? — comentou com Magnus.
Ele assentiu, nunca tendo pensado no assunto antes. Se tivesse se casado com uma das amigas de Laetitia, sem dúvida estaria se desdobrando para distraí-la. Tallie era jovem, mas não o entediava.
O sol de fim de tarde brilhava no canal quando eles atingiram Bolonha. Encontraram a estalagem que o holeiro do Lion d’Argent recomendara. Magnus contratou um apartamento, pediu um jantar antecipado, depois saiu para um passeio enquanto a bonne indicava a Tallie um grande quarto e saía para providenciar seu banho.
Tallie explorou o lugar. Ele era espaçoso, com um pequeno quarto de vestir anexo. Era mais confortável que elegante, e continha uma enorme cama com um colchão de penas celestial. Em cima da cama havia travesseiros bastante estranhos — longos, redondos e estreitos — mais parecidos almofadas do que travesseiros. Ela se perguntou se a cama de Magnus tinha travesseiros adequados, e decidiu que, se os tivesse, pediria alguns emprestados.
Portas intermediárias levavam a uma sala de estar privada e a uma varanda estreita com vista para o mar. Tallie passou vários minutos agradáveis observando a paisagem até que a bonne voltou com uma pilha de toalhas macias. Atrás dela, subalternos entravam em tropa, carregando uma banheira esmaltada e baldes de água quente fumegante.
Tallie jogou-se na cama maravilhosamente macia e aconchegou-se sob o edredom espesso que a estalagem fornecia em vez de cobertores. Era muito leve e bastante insubstancial, se comparado com as roupas de cama de lã com as quais estava habituada.
Seu primeiro dia na França fora muito excitante, pois Magnus a levara para um passeio através da cidade antes de se sentarem para um jantar extremamente delicioso. Ela ouvira falar da cozinha francesa e agora a conhecia! Até mesmo legumes bem comuns adquiriam um esplendor novo sob a mão de um cozinheiro francês, com molhos sutis e deleitáveis. Sentou-se na cama, ao baterem à porta, puxando o edredom, que caíra até seu peito.
— Quem... er... qui est-ce? — disse, hesitante.
— Sou eu — disse a voz profunda de seu marido.
— E... entre.
Magnus entrou, fechando e trancando a porta atrás de si.
— Você quer alguma coisa, milor... er, Magnus?
— Este também é meu quarto.
— Mas só há uma cama.
— Eu sei.
— Mas...
— Nós somos casados, Tallie. Casais casados compartilham a cama.
Não era verdade. Sua prima Laetitia tinha sua própria cama. A única vez em que hóspedes casados compartilhavam camas era quando havia gente demais para as camas separadas...
— Oh — ela disse, e engoliu em seco.
— Eu me despirei aqui, está bem? — Magnus entrou no pequeno quarto de vestir, fechando a porta.
Havia uma expressão nos olhos do marido que ela já vira antes — na carruagem para Dover, quando ele a beijara daquele modo extraordinário.
Ela pensara sobre o beijo muitas vezes desde que acontecera. Sabia que as pessoas normalmente não beijavam daquele modo, com a língua dentro da boca do outro, e se perguntava se era assim que um homem colocava o bebê dentro da mulher. Amanda Forrest disse que sua mãe contara que isso acontecia quando um homem se punha dentro da mulher, e ele com certeza se pusera dentro dela. Estremeceu deliciosamente, lembrando-se do movimento ousado de sua língua.
Será que ela já tinha um bebê dentro de si? Provavelmente não, depois de todos aqueles vômitos no navio, então talvez ele fosse beijá-la daquele modo especial novamente. Ela não se importaria, absolutamente. Fora maravilhoso... Não sentira necessidade de esquivar-se, ou algo assim, como sua prima dissera que aconteceria.
A porta do quarto de vestir se abriu e Magnus apareceu, vestido em um chambre de seda escura.
— Vá mais para lá — disse docemente. Ele sentou-se no canto e lentamente desamarrou o cinto, olhando o tempo todo para ela. Tirou o chambre, e Tallie ofegou, desviando os olhos. Ele estava nu! Completamente nu. Ele levantou-se, e, nu, deu alguns passos em direção a uma cadeira, na qual deixou cair seu chambre. Tallie olhou-o rápida e furtivamente. Ela nunca vira um homem nu antes. Fora os músculos poderosos de seus ombros e suas costas e os membros longos e peludos, os homens não eram tão diferentes das mulheres, decidiu. Então ele se voltou. Seu marido não se parecia nada com o pequeno Georgie no banho!
Tallie notou de repente que ele a pegara olhando-o, e rapidamente virou sua cabeça para o outro lado, fechando os olhos também. Ele riu, e disse:
— Está tudo bem se você olhar, sabe.
Tallie não respondeu. Ela ficou deitada na cama, os olhos bem fechados, e sentiu-a afundar-se quando subiu nela. O corpo dele estava muito próximo do seu — ela podia sentir o calor irradiando-se dele.
— Você pode chegar mais para lá, por favor? — disse. Ainda ao sussurrou uma voz profunda em seu ouvido. — Suponho que é a minha vez de olhar, não é?
— S... sua vez... — gaguejou.
— Minha — ele confirmou. — Pessoas casadas fazem isso. — Vagarosamente, ele começou a desabotoar sua camisola, um botão – dois – três - até quase a sua cintura, quando ele terminou, e seus olhos estavam completamente fechados. — Não tenha medo — pediu docemente, e começou a acariciar suas faces. Ele se moveu para mais perto e ela podia sentir o calor sólido de seu corpo deitado sobre o dela. Ele se debruçou e beijou-a levemente na boca.
Suas mãos a acariciavam, tocando em suas faces, seu pescoço descendo Por seus braços, depois novamente em seu pescoço. Acariciou seus seios através do tecido da camisola movendo-se para frente e para trás com o seu toque mais macio e leve. Tallie sentia um forte tremor por todo o corpo. Beijou-a profundamente, tocou com sua língua a cavidade na base de seu pescoço’ e beijou-a novamente.
Ela sentiu o trilho úmido e quente de seus beijos no vale entre os seios, depois sua mão deslizou e tirou sua camisola. Ele se apoiou em um cotovelo por um momento, olhando.
— Linda.
Ele colocou uma mão quente e forte em taça primeiro sobre um seio e depois o outro, depois esfregou seus polegares gentilmente para frente e para trás por seus mamilos. Tellie os sentiu endurecerem, e arrepios de prazer correram por ela. Observou, tremendo, quando sua cabeça negra dobrou-se e repentinamente enterrou seu rosto em seus seios e fez sair um som profundo e grave de sua garganta. Ela nunca se sentira tão perto de nenhum ser humano. Queria colocar seus braços à sua volta, apertar sua cabeça contra si. Suas mãos se levantaram, estancaram, depois caíram incertas.
— Vamos tirar isso — disse ele, sentando-se. Ele estendeu a mão e puxou a camisola.
— Eu... não... Mas está frio... e este edredom é extremamente leve.
Ele puxou o edredom para baixo e olhou possessivamente para seu corpo com os olhos cinza de pestanas grossas, que pareciam queimar sua pele. Tallie tentou proteger-se, mas ele afastou suas mãos, dizendo:
— Eu sou seu marido, Tallie. Você não deve se esconder de mim.
Ele abaixou a boca sobre seus seios novamente, e Tallie quase saltou para fora de sua própria pele quando lanças de prazer a transpassaram. Ele gemeu silenciosamente, acariciando-a com mãos, boca e língua. Várias sensações espiralavam através dela, e ela estremecia convulsivamente. Que mágica ele estava praticando para fazê-la sentir-se assim?
Ele acariciou-a docemente, carinhosamente, e tão devagar... era... delicioso... em um momento ele diminuiu o ritmo, pareceu hesitar, e Tallie abriu os olhos. Ele também tinha os olhos fechados. Respirava pesadamente e rangia os dentes. Ela se perguntou por um segundo se ele sentia dor. Mas logo esqueceu este pensamento, porque — oh... a sensação de suas mãos quentes acariciando-a, alisando-a, tomando a forma de seu corpo, conhecendo-o. Ela agora sabia por que as pessoas chamavam isso de possuir— Magnus a estava possuindo. E era maravilhoso. Ela beijou, tímida, seus cabelos. Ele era quente, ligeiramente molhado de suor, e muito, muito agradável. Sua pele tinha o perfume da água de colônia que ele normalmente usava, e um cheiro mais profundo, almiscarado, que ela sabia que era o dele. Não reagiu, não lhe disse que parasse. Um homem tão potente, e ainda assim tão carinhoso. Ele passou a mão por seu estômago e costelas, e a pele ligeiramente áspera de suas palmas provocou uma fricção deliciosa em sua pele macia, depois a mergulhou entre suas coxas. Tremores passavam por ela, e, inconscientemente, suas pernas se abriram. Ele tocou-a entre as pernas e começou pequenos movimentos circulares que logo a faziam ofegar de excitação. Ela sentiu os seus dedos se moverem intimamente nas dobras de sua carne, e abriu mais as pernas.
Gemendo, ele abriu mais suas pernas e se colocou entre elas, suas mãos pulsando, acariciando e provocando sua boca quente e dura na dela. Ela sentiu algo duro e brusco pressionando-a entre as pernas.
— Eu não quero machucá-la, mas, da primeira vez, eu temo, é inevitável.
Ele pressionou, e ela quis esquivar-se, mas lembrou-se de não fazê-lo e manteve-se no lugar, em vez disso, ele pressionou mais forte, gemendo, e Tallie arfou. Ela se perguntava se doía tanto nele quanto nela, então parou de pensar nisso enquanto uma dor aguda passou por ela, que precisou se forçar a ficar imóvel.
— Está feito, agora — murmurou, e acariciou suas faces por um segundo. Tallie, ofegante, ficou aliviada, e esperou que ele saísse de dentro dela, bem como a coisa que a tensionava e machucava tão terrivelmente. Em vez disso, ele começou a mover-se dentro dela, para frente e para trás, vagarosamente no começo e depois cada vez mais rápido. Sua boca voltou a cobrir a dela, e ela notou que sua língua se movia no mesmo ritmo, criando estas maravilhosas sensações.
Agora já não doía tanto, mas um sentimento insuportável de tensão ainda crescia dentro dela, até pensou que fosse explodir. Este era seu marido, e ela agora era sua mulher, e isso era o que os maridos faziam para engravidá-las.
Ela o amava, descobriu. Ela queria gritar e cobrir seu rosto com beijos, mas não devia.
Seus movimentos fizeram um rápido crescendo, e ela se viu arquejando superficialmente no seu ritmo, sentindo como se algo estivesse para acontecer... como se ela estivesse sendo levada por alguma maré... Finalmente, com um gemido alto e ininteligível, seu marido deu uma estocada final, arqueando seu corpo sobre o dela, sua cabeça virada para trás, em dor — ou exultação, ela não tinha certeza do que era — e caiu pesadamente sobre ela.
Ele ainda estava dentro dela, podia senti-lo, apesar de não ser tão desconfortável agora. Ele jazia pesadamente sobre ela, que quase não conseguia respirar, mas Tallie decidiu que gostava da sensação de ser envolvida por sua força e seu calor. Sua cabeça estava enterrada no oco de seu pescoço. Ela levantou a mão e acariciou os cachos curtos de sua cabeça. Eles estavam molhados. Ela passou seus dedos pela lateral de seu pescoço e por seus ombros. Sua pele estava úmida e quente.
Ele suspirou e tremeu sob sua mão, e então se afastou dela. Ela sentiu sua retirada com uma sensação momentânea de perda.
— Você está bem? — perguntou, docemente.
Ela não podia encará-lo, sentindo-se por demais emocionada, então somente assentiu com a cabeça.
Ele saiu da cama. Iria voltar para o próprio quarto.
Ele voltou, ainda nu, trazendo um pedaço de pano. Ela queria vê-lo direito, ver exatamente como ele era e como tudo isso funcionava, agora que já sabia que sensações produzia. Ele voltou para a cama e estendeu a mão para suas coxas.
— Novamente? — Tallie saltou, desconcertada. Ele sorriu, pesaroso.
— Não, não nesta noite.
Ela sentou-se para trás, aliviada, depois se enrijeceu, chocada, quando ele abriu suas coxas e começou a limpá-la com um pano molhado. Ela estava úmida e dolorida ali, seu rosto queimava de vergonha, e ela tentou impedi-lo, mas ele não lhe deu atenção. Finalmente, terminou e se levantou. Ela olhou para o pano e viu, espantada, que havia traços de sangue nele.
Emmaline Pearce estava certa, pensou Tallie enquanto seu marido ia para o quarto de vestir. Todos aqueles castigos de Miss Fisher por suas mentiras — e Emmaline estivera certa o tempo todo. Havia sangue, e com certeza teria havido gritos se Laetitia não a tivesse avisado de que não eram permitidos.
Magnus voltou e deitou-se na cama ao seu lado, puxando a coberta sobre eles.
— E agora vamos dormir — disse, soprando a vela e virando-se de lado. Ele a puxou contra si, segurando-a pela cintura.
— Será que eu não deveria colocar minha camisola?
Ele a apertou mais fortemente contra si e passou a mão sobre sua cintura, segurando brevemente seu seio.
— Você não ficará com frio — murmurou, o hálito quente em sua orelha. — Agora, vamos, tente dormir.
— Seis meses? — a voz de Tallie elevou-se, surpresa. — Em Paris?
— A menos que você se encontre em uma situação delicada antes disso.
Tallie enrubesceu. Agora sabia o que ele queria dizer com condição delicada. Ela precisava chegar à Itália antes de ficar grávida.
— Eu não quero passar seis meses em Paris.
— Eu acho que você descobrirá que seis meses não é tempo bastante.
— Não, absolutamente — disse Tallie. — Seis meses é tempo demais. Se ficarmos em Paris este tempo todo, o inverno chegará e não cruzaremos os Alpes para chegar na Itália onde meus pais estão enterrados, até o ano que vem.
Magnus fixou-a por um momento.
— Que idade você tinha quando morreram?
— Onze anos, quase doze.
— E como foi?
— Eu não tenho bem certeza — disse, finalmente. — Acho que houve um acidente de carruagem.
— Você acha?
— As versões são conflitantes. A notificação oficial diz que sua carruagem virou e ambos morreram imediatamente, mas eu recebi uma carta de alguém que conhecia mamãe e que insinuou que ela morreu antes de papai... e não dos ferimentos do acidente...
— O que você quer dizer com isso?
— Eu só sei isso. Mas é por isso mesmo que eu desejo tanto ir para a Itália. Eu gostaria de visitar seus túmulos. — Havia muito mais, além disso, mas ela não queria explicá-lo.
Passara-se quase uma semana desde aquela noite memorável, e ele se mostrara tão frio, distante e bruto com ela que poderia quase pensar que tudo fora um sonho. Exceto pelo fato de seu corpo lhe dizer que não.
Mas ele não mais compartilhara sua cama. Ela realmente se casara com o Iceberg.
Magnus observara as expressões alternantes em suas feições e franziu o rosto novamente. Nada estava acontecendo como planejara. Seu desejo por sua mulher não fora saciado com aquela noite em Bolonha — ela só aguçara seu apetite por mais. Enquanto a observava lambendo o açúcar de seus dedinhos cor-de-rosa, e se sentira mais do que nunca como um adolescente exuberante.
Mas não deveria pensar nisso, disse a si mesmo, duramente. Ela era uma inocente virgem e ainda não estava curada — ele podia dizê-lo pela maneira como ficava tensa quando se aproximava dela. Esperaria até que tivessem chegado a Paris antes de compartilhar sua cama novamente. Era a única coisa decente a fazer.
Além disso, não tinha a intenção de se permitir cair prisioneiro dos charmes de uma mulher. Por aí vinha o desastre.
— Nós chegaremos a Paris amanhã. — Anunciou, levantando-se da mesa. — Partiremos desta estalagem nas primeiras horas da manhã. Então, é melhor que você vá dormir cedo. Eu lhe desejo boa noite, madame.
Madame. Tallie se levantou, com um nó na garganta causado por sua indiferença. Com uma voz rouca, murmurou um boa-noite e saiu da sala de estar.
— Tallie. Você vai gostar de Paris, eu sei. — disse Magnus, da porta. — Desde o início, você terá vários vestidos novos e finos, e chapéus etc.
— Oh, sim.
— Pense nisso: vestidos de seda, cetim e renda. O melhor que o dinheiro puder comprar.
Ela olhou para ele em silêncio.
— E luvas, chinelos, perfume francês. E bailes, festas elegantes e reuniões resplandecentes. Você gostará muito — insistiu, franzindo as sobrancelhas.
— Sim, meu senhor, se o senhor diz.
Maldita mulher! O que estava acontecendo com ela? Magnus a observava ir, via o balançar de seus quadris sob o lúgubre vestido que vestia. Estava vestida do modo menos atraente possível, e ele lhe prometera vestidos mais finos que o dinheiro podia comprar. Então, por que não podia lhe dar ao menos um sorriso? Todas as amantes que tivera no passado dariam gritinhos de alegria e jogariam seus braços em torno dele com tal oferta. Ela — sua mulher — respondera com um murmúrio indiferente de obediência!
Maldição! Ali estava ele, permitindo-se ser arrastado para o estrangeiro por causa dela, suportando estradas ruins, acomodações pobres e cavalos de boca dura, abrindo sua bolsa por causa dela, e — não menos importante — controlando seu desejo por causa dela!
E ela lhe era grata? Nem um pouco! Meditava no comportamento estranho de sua esposa enquanto se despia. Havia desejado uma mulher simples, conveniente, grata! Ah! Ela não era nada disso.
Ele sentou-se na cama. Ela o estava fazendo passar por uma grande inconveniência, pensou, arrancando furiosamente as longas botas. Tivera até mesmo que passar sem seu valete por causa de seu desejo apaixonado de ir à França — o tolo tivera medo demais de voltar ao seu país natal, tendo escapado de Madame Guillotine uma vez! Com alguma dificuldade, Magnus conseguiu tirar suas botas. E todo este tempo, pensou, apesar de seus próprios desejos e frustrações, ele a tratara com educação e consideração infalível.
Mas será que ela demonstrava o mínimo de gratidão pela generosidade e cuidado de seu marido? Não! Ela não! Magnus jogou as botas do outro lado do quarto. Ela saíra da cama sem um murmúrio, insensível aos prazeres que lhe oferecera... Mesmo agora ela fugia, preparando-se para dormir, feliz demais por afundar-se na cama sozinha. Ela teria tirado aquele vestido deselegante, as meias, fazendo-as deslizar por aquelas pernas macias e tornozelos delicados, a anágua e a camisa, e estaria provavelmente — agora mesmo — em pé, nua, quente, rosada e resplandecente, preparando-se para vestir aquela horrível e volumosa monstruosidade que chamava de camisola! Bem, ele não toleraria isso! Cruzou o hall que separava seu quarto do dela e escancarou a porta.
— Oh, Magnus! Há algo errado?
— Por que sua porta não está trancada? — perguntou-lhe, encarando-a, ultrajado. Ela estava debruçada sobre uma bacia de água, ensaboada até os cotovelos, vestida com aquela camisola horrível e um chambre ainda pior. Nem um centímetro de pele podia ser visto.
— Oh, eu devo ter esquecido.
— Tome cuidado para não esquecer no futuro. Qualquer um poderia ter simplesmente entrado.
— Alguém acabou de fazer isso.
— Quem foi? — gritou ele.
— Você, meu senhor.
— Ah, sim... bem... uumm... — disse ele, e andou de um lado para o outro do quarto, olhando para a cama limpa e intocada, e as roupas penduradas ordenadamente nos ganchos atrás da porta.
— O que você está fazendo?
— Somente lavando umas coisinhas.
— Para que você está fazendo isso? Minha mulher não lavará roupas!
— Não é nada, só algumas pecinhas! — disse ela, tentando sem sucesso escondê-las de sua vista. Eram suas roupas íntimas, ele notou, e reconheceu os remendos.
— Eu não me importo o que seja, mande a empregada fazê-lo.
— Mas eu não quero que ela veja — interrompeu, as faces rosadas de vergonha.
— Veja o quê? — disse ele, intrigado. Um pensamento lhe ocorreu. — Você não está... em seu período do mês?
O rosto de Tallie flamejou.
— Não — ofegou, horrorizada. Ela não tinha idéia de que homens sabiam destas coisas.
Magnus observou com indulgência suas faces enrubescidas. Sua pequena esposa inocente se perturbava à toa. Ele gostava bastante disso, achava isso muito excitante, apesar de não querer que ela soubesse. Deu de ombros.
— Então, o que você não quer que a empregada veja? — Tallie estava enfurecida com o inquérito frio.
— Não tem nada a ver com você. Eu sou livre para fazer o que quiser em meu quarto. Não há ninguém para me ver. Você não precisa se preocupar com o que as pessoas vão pensar.
— Você fará o que eu digo.
— Eu sou sua esposa, não uma escrava.
— Exatamente! E eu não deixarei que minha condessa lave roupas!
Por que ela queria lavar suas roupas íntimas? E o que não queria que as empregadas vissem? A verdade repentinamente lhe veio com a força de um soco no diafragma. Ela estava com vergonha. Não porque suas roupas íntimas precisassem ser lavadas, mas porque estivessem em condições tão horríveis — remendadas e terrivelmente feias. Ela era orgulhosa, a sua pequena esposa, orgulhosa demais para ver uma empregada ter pena dela por sua falta de vestimentas adequadas. No momento em que chegassem a Paris, ele lhe conseguiria os adornos mais finos que o dinheiro pudesse comprar.
— Está bem, então, eu tolerarei isso desta vez. Mas quando chegarmos a Paris, você deverá deixar todas as tarefas deste tipo para os criados.
Tallie olhou-o por um momento. Então, teve um pensamento agradável. Ele viera ao seu quarto. Estava sentado em sua cama. Vestindo um chambre.
Ele ia se deitar com ela novamente.
Com as mãos tremendo, ela rapidamente terminou de enxaguar sua camisa e sua anágua, a antecipação e a excitação crescendo dentro de si. Lançava-lhe pequenos olhares rápidos enquanto trabalhava. Suas mãos grandes e fortes remexiam nos objetos na mesa-de-cabeceira. Tallie tremeu de prazer. Ele a queria novamente.
— M... Magnus... — sussurrou.
— Não é cedo demais? Você não se importa? — Seu hálito acariciou a pele de Tallie. Sua voz era grave e profunda, e ressoava como música.
Tallie aprendeu duas coisas sobre o ato conjugal naquela noite. Primeiro, que não doía da segunda vez nem um pouco. E segundo, que era muito mais difícil para ela permanecer quieta e digna enquanto o que seu marido lhe evocava todo tipo de sentimentos maravilhosos e excitantes. Foi preciso toda a sua força de vontade, toda a concentração e determinação que possuía para ficar passivamente deitada sob ele, sem proferir um som, ou fazer um movimento, como sua prima lhe aconselhara que fizesse. Mas ela conseguiu.
O máximo que se permitiu foi dar vários beijos macios e úmidos em suas faces e maxilares — e isso somente depois que ele adormeceu.
Ela estava muito orgulhosa de seus esforços também. Queria tanto ser uma boa esposa para Magnus, queria tanto que ele se orgulhasse dela, que ele a respeitasse — até mesmo, talvez, que aprendesse a ama-la mesmo que só um pouquinho. Ele queria um filho, pelo que sabia... talvez passasse a se importar com ela se lhe desse um.
Ficou deitada no escuro, sentindo com prazer o braço de seu marido envolvendo-a pesadamente, seu peito e torso pressionando-lhe as costas, uma perna longa e cabeluda colocada entre as suas. Ela se perguntava se já estava grávida, e, se fosse o caso, como saberia.
A princesa olhou através das barras de sua prisão, ansiando por uma visão, um som que indicasse que alguém estava vindo resgatá-la. Mas tudo que podia ver ou ouvir eram as felizes celebrações dos aldeões abaixo dela. Não haveria resgate naquele dia para a princesa. Ela teria que permanecer ali, na torre mais alta do castelo do Conde Insensível. Uma mão musculosa estendeu-se e sem esforço arrancou as barras da janela, uma, duas, três.
— Tallie, meu amor — uma voz masculina excitante e profunda a chamou. Ela correu para a janela e olhou para fora. Ali, pendurado em uma corda, estava seu belo príncipe, os olhos cinzentos brilhando... Não! Cinzentos não! Azuis, talvez, ou marrons, ou verdes — qualquer cor, exceto cinza! Pessoas com olhos cinzentos eram egoístas. E descorteses. E terríveis!
Tallie sentou-se, irritada, perto da janela.
Lá fora, havia uma cidade enorme e exótica, e ela nunca estivera em uma cidade na vida. E onde estava? Presa dentro de uma sala abafada, que era de onde, sob as ordens de seu marido desagradável, ela não deveria sair até dar-lhe permissão! E onde estava ele?
Lá fora, lá estava ele! Explorando a cidade maravilhosamente excitante. Nas últimas quatro horas! Enquanto ela era obrigada a esperar.
Isso não era justo. Ele murmurara algo sobre preparativos a serem feitos antes de estar pronta para Paris e para sair na cidade, ele mesmo, aparentemente, não necessitando de preparativos para seu ego magnífico!
— Oops! Desculpa — ela arquejou, ao atirar uma almofada contra a porta e quase atingir Magnus, que deu-lhe um grande pacote amarrado com um barbante.
— Uma estilista estará aqui em uma hora, para vesti-la com algumas roupas decentes. Você precisará vestir isto antes que ela chegue. — Abriu o jornal e começou a lê-lo, como se não tivesse mais nada a lhe dizer.
Tallie, apertando o pacote em seu peito, fitou-o, subitamente confusa. Parte dela queria brigar com ele por deixá-la por tanto tempo sem nada para fazer, mas o grande pacote mole em seus braços a intrigava. Um presente? Não podia se lembrar da última vez em que alguém lhe dera um. Somente as pérolas do casamento. E agora, um presente, sem razão... Com os dedos trêmulos, desamarrou o barbante e abriu o invólucro. Coisas macias e sedosas escorregaram de seus dedos e caíram no chão.
— Oh! — ela ofegou, encantada. Inclinou-se e os pegou. Uma camisa — não, seis, em tecido macio e sedoso. E anáguas, em algodão fino e musselina, enfeitados com renda. Meias de seda, dúzias delas — seda! E seis camisolas finamente bordadas, tão finas e delicadas que podia-se quase ver através delas. Nunca vira iguais, exceto uma vez, em uma amiga de sua prima... E... Deus do céu!
Ela pegou os últimos itens e franziu as sobrancelhas, confusa. Estas, com certeza, não eram para ela... Mas elas, também, eram do algodão mais fino e delicado... algodão cor-de-rosa. Tallie tocou nas peças, espantada. Não podiam ser para seu marido, pois tinham renda, e, além disso, eram pequenas demais para ele. Mas ela nunca vestira nada assim... nunca ouvira algo assim, exceto em um sussurro escandalizado. Nem mesmo Laetitia usava roupas assim.
— Eu não posso vestir estas — sussurrou.
— Claro que pode. Faça-me o favor de ir ao seu quarto e de vesti-las imediatamente, madame. A estilista está chegando.
Em seu quarto, ela tirou as roupas e rapidamente deslizou para dentro de uma das novas combinações e de uma anágua, saboreando a sua sensação fresca e sedosa na pele. A combinação era apertada, com fendas sob os braços e laterais para acomodar a saliência de seus quadris. O decote era extremamente baixo e arrematado com uma pequena bainha de renda.
Olhou as outras peças na cama. Ceroulas! Para uma mulher! Cor-de-rosa, com renda fina francesa em torno de cada joelho. Nunca vira nada tão escandaloso em sua vida.
Ela inclinou-se, rápida, e com alguma dificuldade puxou-as para cima. Eram muito estranhas. Ela nunca sentira suas nádegas e pernas tão apertadas, tão restritas... Era realmente muito chocante. Tallie gostou bastante da sensação.
Mas como faria se tivesse que...? Deus do céu! Havia uma abertura. Que chocante! Mas prático, supôs.
Uma batida na porta fez com que corresse para trás do biombo em pânico.
— Qui est-cecom...
— Eu vim ver se... eh... se as coisas couberam. — Tallie, enrubescendo, aquiesceu, atrás da segurança do biombo.
— Sim, obrigada, elas couberam.
— Bem, deixe-me ver — disse ele, impaciente. Enrubescendo furiosamente, Tallie respirou fundo e saiu de detrás do biombo. Os olhos de Magnus se estreitaram quando ele assimilou a imagem de sua mulher vestida somente com finas roupas íntimas. A seda transparente da combinação nada fazia para esconder a saliência leitosa de seus seios ou o rosa-escuro de seus pequenos mamilos pontudos. Direcionou seu olhar para os quadris de Tallie e franziu o rosto, surpreso, quando viu o que parecia serem ceroulas cor-de-rosa sob suas anáguas.
Na realidade, ele mesmo não as escolhera, mas simplesmente encomendara à gerente do estabelecimento as roupas íntimas mais finas e atuais, segundo a moda de Paris. Assim, as ceroulas foram um choque.
— Tire suas anáguas — disse.
Magnus sentiu todo fôlego deixar seu corpo ao ver sua mulher vestida em roupas íntimas masculinas. Uma versão feminina de roupas masculinas, com certeza... mas nenhum homem nunca tivera esta aparência... Ele nunca vira nada tão erótico na vida. As ceroulas eram presas nos joelhos, e ele se perguntou até onde poderia passar suas mãos dentro delas. O material delicado envolvia as coxas de Tallie e sua pele brilhava por baixo do tecido fino. As ceroulas juntavam-se no ápice de suas coxas sobre uma forma em V sombria e inconfundivelmente feminina, e depois subiam mais apertadas contra a leve proeminência de seu ventre.
— Volte-se — disse, rouco.
Ela se virou devagar, os olhos ainda fechados.
— Você deixou cair suas novas anáguas no chão — disse, rouco, e ela dobrou-se para pegá-las. O material se apertou em suas nádegas e Magnus não pode mais se conter. Ele a abraçou por trás, fazendo correr mãos acariciadoras por seu corpo, segurando seus seios, moldando-os, buscando os mamilos que se enrijeciam.
— Magnus! — Tallie gritou, surpresa. — É dia.
Ignorando isso, ele a colocou em seus braços e a levou para a cama, suas mãos explorando febrilmente o corpo vestido de maneira escandalosa. Ele passou suas palmas sob os seus joelhos e deleitou-se na sensação macia e sedosa de suas coxas. Passou suas mãos por seu bumbum e entre suas pernas.
— Aha! — exclamou triunfantemente quando encontrou a abertura. Suas mãos a acariciaram.
— Mas você disse que a modista estava chegando.
— Dane-se a estilista! — Ele a acariciou.
— Mas...
— A estilista pode esperar! — Continuou a acariciá-la com uma das mãos, enquanto se despia e, então, a paixão saiu do seu controle e ele moveu-se dentro dela e se perdeu.
Tallie cerrou os dentes e se segurou, determinada a não desagradá-lo, movendo-se ou gritando. Estava cada vez mais difícil para ela se comportar como sabia que deveria. Mas era tão excitante... Tallie prendeu suas pernas em uma linha rígida e repetiu as palavras de sempre muitas vezes em sua cabeça.
A estilista, Mademoiselle Célestine, chegou — felizmente um pouco atrasada — com assistentes que drapejaram, colocaram alfinetes, cortaram e puxaram enquanto discutiam, com muitos gestos e imprecações gaulesas, exatamente como milady deveria ser vestida. Tallie estava escandalizada com a nova moda francesa. Parecia a ela que consistia somente de alguns bocados de tecido leve ou musselina, e ela se sentia quase nua ao usá-la. Mas a estilista e seus assistentes riram e lhe asseguraram de que tudo estava perfeitamente comme ilfaut, e milady não queria parecer fora de moda, não é?
Uma coisa era aparecer quase nua na frente de seu marido — ela estava se acostumando a isso — mas não podia se imaginar vestindo estas... estas coisinhas delgadas em público. Mas lhe asseguraram que ela precisava, e ela supunha que em Roma.... ou Paris....
Neste momento, porém, Magnus entrou no quarto.
— Eu pensei que poderia ver como... — ele estancou repentinamente, deu uma olhada longa e tórrida no novo vestido delgado de Tallie e falou: — Não! Não servirá. Absolutamente.
— Oh, mas, milor... — começou a estilista.
— Eu deveria ter feito meus pedidos mais claramente. Minha mulher precisa de roupas bem mais espessas que essa. — Sacudiu o tecido com desprezo. — Não se pensa isso ao olhá-la, mas ela tem uma constituição muito frágil. Ela pega resfriados à menor correnteza, e eu não lhe permitirei arriscar sua saúde por uma mera questão de moda. Não, eu quero que lady d’Arenville esteja vestida aquecida e com vestidos de gola alta em tecido espesso e quente — disse e saiu.
Uma constituição doentia, realmente! E isso de um homem que a chamara de robusta! E como ele ousava criticar suas roupas antigas, e depois dar à estilista ordens que assegurassem que ela parecesse tão fora de moda em suas novas roupas quanto nas antigas? De repente, Tallie sentiu-se perfeitamente confortável com a nova moda francesa, fina demais ou não.
— Ignore meu marido, por favor, Mademoiselle Célestine. Homens não têm a menor idéia de moda — disse firmemente. — Os vestidos serão como combinamos.
Mademoiselle Célestine sorriu astutamente.
— Ah, mas a senhora está brincando com fogo, milady. Alors. Talvez possamos fazer o decote um pouco menor, hein? E então, colocamos um forro, assim, por exemplo. — Ela pegou uma combinação opaca e a segurou no lugar. — Muitas mulheres usam meias cor da pele também. E, é claro, há suas belas ceroulas cor-de-rosa, suficientemente quentes para qualquer constituição frágil, e ainda assim, quando os cavalheiros olham, vêem somente a cor da pele... e eles se questionam... ah, oui, eles se perguntam... — Ela sorriu e fez uma expressão que dizia tudo. — Três chie et três respectable, então seu marido tão ciumento estará quase, mas não completamente, satisfeito. Maridos precisam terrivelmente proteger a constituição delicada de suas esposas.
Ela sentiu um pequeno brilho na região do seu coração.
A estilista e suas assistentes tagarelas finalmente saíram.
Em seguida chegou um cabeleireiro, que Magnus havia chamado.
Ele rodeou sua face mais de uma dúzia de vezes, arrumando seu cabelo, arrebatado pela textura de seu cacheado natural. Magnus se aventurou no quart no momento exato em que o cabeleireiro aproximava-se com as tesouras.
— Não ouse tosquiar estes cabelos lindos! — rosnou ele, e Mosieur Raymondo deixou cair suas tesouras de susto. Seguiu-se uma longa discussão sobre quanto exatamente Magnus toleraria que fosse cortado
Tallie permaneceu em silêncio, nada era culpa dela; ela estava gostando da discussão. Abelhudos! Ele mentira sobre sua fragilidade, agora isso em relação aos seus cabelos tão normais.
No fim, Magnus e Monsieur Raymondo chegaram acordo. Cachos curtos e leves ficariam em torno de seu rosto, enquanto o resto permaneceria bastante longo. Agradava a seu marido, e ainda assim teria a aparência desejada - a nova moda, assim como a nova Republica Francesa, homenageava os antigos gregos e os ideais romanos.
Tallie não podia acreditar no seu reflexo no espelho quando Monsieur Raymondo terminou. Seu rosto parecia ter uma forma diferente; ela parecia elegante... quase bonita.
Milady agora estava completamente a na moda. Tallie ficou um pouco preocupada de não ser capaz de fazer seus novos penteados, mas o seu marido chamou uma moça bem vestida e a apresentou como Monique, sua nova camareira e cabeleireira. O queixo de Tallie caiu. Ela nunca tivera em sua vida alguém que a vestisse.
Mas ela não teve tempo de questionar nada, pois um sapateiro chegou. Ele mediu seus pés e prometeu enviar uma dúzia de pares novos dentro de uma semana.
Magnus anunciou que, se a estilista entregasse os vestidos na data prometida, Monique poderia levar Tallie para fazer compras no dia seguinte.
— Eu não quero fazer compras amanhã — anunciou. — Eu não quero parecer ingrata, e na realidade sou muito grata por todas estas coisas lindas que você comprou para mim...
Magnus enrijeceu-se, desconfortável. Grande coisa, desejar uma mulher grata.
— Deve ter lhe custado um tremendo... — Ela ruborizou-se de repente e murmurou: — Sinto muito. Eu sei que é vulgar referir-se a dinheiro. Mas eu realmente agradeço por todas as compras que você fez para mim... não posso me lembrar de alguma vez em que alguém tenha me dado... — ela interrompeu-se e passou o seu pé no tapete turco. Seus olhos estavam brilhantes de lágrimas. Magnus percebeu antes que ela abaixasse a cabeça para escondê-las dele. — É somente... eu não quero perder mais tempo comprando... coisas. Eu quero... eu quero tanto ver Paris. Eu já estou aqui há um dia e uma noite inteira, e não vi nada, exceto este quarto. Será que não poderíamos...? — Seus olhos se fixaram nos dele, abertos com súplica. — Se eu vestisse um manto, ninguém poderia ver minhas roupas e você não precisaria se preocupar...
Magnus levantou-se, afrontado. Ela pensara que ele estava envergonhado por suas roupas, envergonhado de estar em sua companhia. Pensou que a tinha escondido, até que estivesse apta a ser vista. Para seu pesar, descobriu que havia algo de verdade na acusação silenciosa. Apesar de ele não estar envergonhado dela, somente queria que ela se sentisse igual àquelas que se vestiam com o melhor.
— Está quente demais para vestir um manto — disse —, mas se você quiser, podemos ver a cidade.
— Agora? — ela deixou escapar, surpresa.
— Sim, imediatamente. Se você não estiver cansada.
— Oh, não, eu não estou — disse ela, os olhos brilhando. — Oh, Magnus, obrigado. Eu vou só dar um jeito no meu cabelo.
— Eu só queria lhe agradar — disse ele, rigidamente. — Não pensei no que sentiria, presa aqui o dia inteiro, quando você estava tão ansiosa por nossa chegada.
O rosto de Tallie se entristeceu.
— Oh, não, eu não queria criticar... — Ele a interrompeu:
— Vamos? — disse, dando-lhe o braço.
Ela ficou encantada com Paris. Amou as ruas estreitas e as casas de pedra incrivelmente altas — algumas com até sete andares. Admirou os prédios públicos com os slogans de Liberte, Egalité, Fraternité e Indivisibilité escritos em todos eles. Gostou especialmente dos boulevards largos e elegantes, tão densamente plantados com árvores que os galhos quase se tocavam em arcos frescos e verdes. E sob estes galhos parecia haver um cenário constante de festividade. Pessoas passeavam pelos parques onde ela se deliciava com os “Teatros do Povo”, como eram chamados — barracas ao ar livre com ilusionistas, shows de marionetes, animais e música, sempre música sendo tocada em algum lugar, em um órgão, violino, gaita, tamborim ou flauta. E quando, finalmente, a noite caiu, Magnus a levou a um restaurante. Tallie fez seu primeiro jantar em Paris ao ar livre. E depois, eles caminharam, passeando, de volta até o hotel. E Magnus veio ao seu quarto.
Tallie retesou-se e rangeu os dentes. A tensão era incontrolável. Ela não podia agüentar muito mais. Seu corpo estava brilhando de suor. Agarrou os lençóis dos dois lados de seu corpo rígido e imaginou-os se rasgando sob sua pressão.
— Oh, pelo amor de Deus, termine logo com isso — arquejou. — Eu não agüento mais!
— Nunca fui tão insultado em toda minha vida.
— Bem, mas...
— Você pensa que é fácil para mim? Fazer amor toda noite com uma esposa tão fria e imóvel quanto um defunto?
— Eu não tenho idéia, pois nunca pensei nisso, apesar de me parecer que você não odeia exatamente o processo. Em todo caso, é muito difícil para mim, também! — Tallie estava enfurecida com sua crítica. — Você não imagina como é difícil. É pura tortura!
— Tortura? — os olhos cinza de Magnus brilharam de raiva. — Tortura, é isso?
Estava mortificado. Furioso. Ele queria rasgar o lençol e possuí-la violentamente até que gritasse por misericórdia!
Exceto pelo fato de que ela já o fizera!
Ele era seu marido, pelo amor de Deus! E ela sua mulher! Sua mulher! Ele tinha todo o direito de toma-la quando e como quisesse! E ela lhe devia filhos.
— Está bem, madame esposa — disse, rigidamente —, eu temo que a senhora seja obrigada a suportar mais dessa tortura até ficar grávida.
— Eu sei — retorquiu ela —, e se você se lembrar bem, eu não lhe disse que parasse. Disse que se apressasse e terminasse logo. Quanto mais rápido eu engravidar, melhor.
— Está bem, então...
Usou toda a habilidade e técnica de seu repertório, tocando-a, acariciando-a, excitando-a.
— Chega! — gritou ela, empurrando-o para longe, finalmente. — Eu não posso mais fazer isso.
— Fazer o quê? — gritou ele, frustrado. — Você não está fazendo nada.
— Bem, é claro que não estou fazendo nada. O que mais eu faria? E é preciso toda a minha concentração. Por que você não pode simplesmente acabar logo? É preciso levar tanto tempo?
Concentração? Magnus praguejou. E ela estava se queixando em relação ao tempo que ele levava? Se fosse isso, ela era a primeira mulher que conhecia que se queixava disso. Começou a colocar suas roupas.
— Agora eu entendo o que minha prima queria dizer. É simplesmente desumano esperar que as mulheres suportem isso dia após dia — disse Tallie.
— O que você quer dizer com “o que sua prima queria dizer”?
— Minha prima me avisou que meus deveres conjugais seriam difíceis e dolorosos.
Ele franziu o rosto.
— Dolorosos? Eu estou lhe causando dor?
— Não, dor não, precisamente. É... é., somente insuportável.
Ela continuou, resmungando zangada, voltada para os travesseiros, enquanto ele terminava de se vestir Magnus tentava bloquear suas palavras desagradáveis. Então, fazer amor com ele era insuportável para ela, não era? Então, seus ouvidos captaram uma frase que o deixou estarrecido:
—... ser forçada a ficar deitada ali toda noite, sem se mover nem emitir nenhum som, enquanto um marido provoca sensações maravilhosamente prazerosas
— O que você acabou de dizer? — perguntou. Ela o fitou. Havia lágrimas em seus olhos
— Você disse “sensações maravilhosamente prazerosas?
— Sim, bem... — Ela ficou vermelha Magnus a encarou com os olhos apertados
— Diga-me, Tallie. O que exatamente sua querida prima lhe disse sobre obrigações conjugais?
— Eu tentei permanecer quieta e digna, tentei mesmo. — Tallie balançou a cabeça. — Sinto muito ter achado isso tão difícil, mas... as coisas que você fez comigo...
Olhos âmbar arregalados, lavados de lágrimas encontraram os seus em um rápido e fugidio olhar, enquanto passava suas pequenas mãos por suas faces molhadas. Suas unhas estavam roídas até o sabugo.
Magnus sentiu como se alguém tivesse penetrado em seu peito e esmagado seu coração até que doesse.
— Por favor, milor... Magnus. Eu prometo que me controlarei e continuarei concentrada em recitar, isso ajuda.
— Recitar o quê ajuda?
Ela inclinou sua cabeça mais ainda. Ele queria beijá-la, mas estava muito perturbado.
— Você tem recitado tabuada?
— Sim — sussurrou ela.
— De maneira que não seja perturbada ao fazer amor comigo? E você pensa que isso me agradaria? Porque minha prima disse que eu não teria respeito por você se você reagisse a minhas caricias? E que você envergonharia sua família e a minha se fizesse algo a não ser ficar quieta como um defunto?
— Sim — ela fungou.
Magnus não sabia se ria ou explodia de raiva.
— Cadela! — praguejou violentamente.
Tallie recuou. Magnus o viu e praguejou novamente.
— Não estou falando de você, minha querida. — Ele adiantou-se e colocou a mão em seu ombro. Ele a sentiu tensa, e seu coração se apertou no peito novamente. Tão pequena, inocente e vulnerável.... e sua — toda sua — apesar da cadela de sua prima e de sua tentativa maliciosa de arruinar seu casamento.
— Venha aqui, meu amor — murmurou. — Eu não estou zangado. Não com você. Venha, não precisa mais ficar perturbada.
Ele passou gentilmente o braço em torno de seu corpo resistente e puxou-a para si.
— Minha prima é uma cadela desprezível e maliciosa — disse, docemente —, e o conselho que ela lhe deu estava completa e extremamente errado.
Os soluços pararam de repente.
— Ela fez isso para causar problemas entre nós. Mas ela não conseguiu, sabe? Porque eu não estou zangado com você; estou zangado com ela. Venha, Tallie, olhe para mim — murmurou, colocando um dedo gentil sob seu queixo. Vagarosamente ela o olhou, o rosto abatido e cheio de lágrimas, pálida, o nariz irritado, molhado e vermelho.
— Você não está zangado comigo? — sussurrou.
— Não. E você, está zangada comigo?
Ela o fitou, surpresa, e de repente as lágrimas voltaram aos seus olhos.
— Não, claro que não — murmurou, e com um pequeno engasgo de alívio caiu em seus braços. — Eu o amo, Magnus — gemeu, e, completamente extenuada, debulhou-se em lágrimas contra seu peito nu.
Eu o amo, Magnus.
A cabeça estava enfiada na curva entre seus ombros e seu pescoço, e ele podia sentir o calor e a umidade de suas lágrimas enquanto ela soluçava, apertando-o como se nunca o fosse deixar ir. Sua face descansava em seus cabelos, e ele fechou seus olhos e a segurou, e se perguntou o que havia acontecido com ele. Nunca se sentira assim em toda sua vida — tão ligado, tão vinculado, tão comprometido com outra alma — e sem ter a mínima idéia sobre o que fazer em relação a isso.
Não soube quanto tempo passou, mas, então, ela deixou seus braços e foi para trás do biombo para lavar o rosto. Ele estava estendido na cama, ouvindo os sons da água sendo espirrada, imaginando seus movimentos. Ele se sentia exausto, e por um momento covarde pensou em fugir para seu próprio quarto antes que ela voltasse. Já se sentara e estava se preparando para sair da cama quando ela voltou, vestida em uma camisola nova. O olhar de doce expectativa em seus olhos fez sua alma voar. Ela subiu na cama alta e se aconchegou ao seu lado.
— Então... — ela enrubesceu, incapaz de olhar-lhe nos olhos. — Se Laetitia estava errada... — ela passou o dedo para frente e para trás ao longo da bainha do lençol. — Como? Quer dizer, o que eu deveria...? Como você quer que eu me comporte quando nós... você sabe...
Magnus sentiu sua garganta se apertar. Ele se sentia em uma armadilha, em pânico. Que diabos deveria dizer? Visões das várias mulheres que conhecera passaram por sua mente. Cortesãs, mulheres casadas sofisticadas, viúvas — com rostos pintados, mentes vulgares e dedos rápidos e espertos. Mulheres do mundo, hábeis em dar prazer a um homem, que poderiam calcular as necessidades e desejos de um homem tão rápida e eficientemente quanto a sua renda.
Ele não queria ensinar à sua mulher os truques de seu comércio. Não suportaria imaginar esta inocente pequena Tallie aprendendo sincera e inteligentemente a melhor maneira de agradá-lo na cama, como estas mulheres o haviam feito. Mas ele precisava dizer algo, oferecer-lhe algum indício que substituísse o conselho venenoso de Laetitia...
— Magnus? — Ela insistiu que respondesse.
— Só... Simplesmente seja você mesma — ouviu-se dizer. — Tudo o que eu quero são suas reações sinceras.
Ela retribuiu seu olhar, perspicaz e em dúvida, esperando que explicasse mais.
— Não esconda nada — disse, sentindo de repente como se tivesse pisado em um terreno ainda mais perigoso. — Faça e diga exatamente o que sentir vontade.
— Sério? — disse ela, hesitante.
Ele retribuiu seu olhar, inseguro com sua aparente confiança. Se ela pudesse ser honesta para com ele, então faria mais do que qualquer mulher o fizera em sua vida, incluindo sua mãe.
— Será muito fácil — disse ela, sorrindo radiante e torcendo os dedos presos em sua mão. — Muito mais fácil do que a tabuada, eu posso lhe garantir.
Ele cobriu a boca de Tallie com um beijo.
Tallie acordou muito tarde na manhã seguinte. A luz do sol fluía através das cortinas abertas e projetava-se em placas de ouro ao longo do piso de seu quarto. Ela espreguiçou-se. Estava sozinha na cama, mas ao amanhecer ele fizera amor com ela novamente. E então a beijara, lhe dissera que voltasse a dormir e saíra.
Ela aprendera muito mais sobre o ato conjugal naquela noite. A mais importante de todas era que, uma vez que tivesse parado de lutar contra suas próprias reações, ele era excitantemente esplêndido. Sabia agora por que o vigário dissera que o casamento era um estado santo, pois houve momentos, enquanto seu marido fazia amor com ela, em que Tallie descobrira que não havia sensação mais maravilhosa no céu ou na terra. E depois, quando ela se deitara silenciosa nos braços quentes, fora como se ela estivesse flutuando em uma nuvem, como faziam os anjos.
Ela ficara com um pouco de medo no início, por causa da intensidade de suas reações, mas Magnus a tranqüilizara e a estimulara, e continuara com este maravilhoso acariciar e tocar. E então, ele também se tornara intenso, refletiu, sorrindo um sorriso feminino secreto.
Era muito excitante pensar que um ser magnífico como Magnus poderia ser levado a tal estado pela simples pequena Tallie Robinson, pensou, aconchegando-se nos travesseiros. Ela ainda podia sentir o seu cheiro neles, e se fechasse os olhos podia imaginar que ele ainda estava na cama com ela.
— Milady!
Tallie abriu os olhos. Sua nova criada, estava lá.
— Milady, seu café da manhã a espera.
Relutantemente ela sentou-se, depois, enrubescendo, puxou para si o lençol, lembrando-se de sua nudez. Monique não se mostrou surpresa, mas achegou-se com um chambre.
— Votre peignoir, milady.
Tallie supôs que uma camareira estivesse acostumada a ver pessoas sem nenhuma roupa; era ela quem precisava se acostumar a ser vista. Estava muito longe do estabelecimento de Miss Fisher, onde as alunas se vestiam e se despiam por baixo de suas camisolas volumosas, atrás de biombos cortinados. Mulheres casadas não possuíam nenhuma privacidade.
— Lorde d’Arenville disse que a senhora deve ir fazer compras após o café, milady. Eu pedi o banho e separei um vestido para a senhora. Pensei que talvez possamos ir primeiro ao estilista de chapéus, depois ao luveiro, e depois disso...
— Depois veremos — disse Tallie, decidindo que precisava ser firme em relação a esta história de compras. Comprar era muito bom, mas ela queria ver mais de Paris, também. — Onde está meu marido, você sabe? — perguntou, pegando um doce.
— Ele saiu, milady. E me pediu que lhe dissesse que voltaria a tempo de levá-la para jantar.
Jantar? Ela teria que esperar até o jantar para vê-lo?
— Oh, mas...
— Nós temos Claude, o lacaio, para nos escoltar, milady. — Monique tranqüilizou-a. — Milorde d’Arenville deixou instruções para que ele sempre a escolte, então a senhora não precisa se preocupar.
Parece que sim, pensou Tallie, desapontada. Escolta, sim! Um insignificante lacaio em vez de seu magnífico marido. Ela não queria explorar Paris com uma criada e um lacaio, queria Magnus.
— Muito bem, então. Eu suponho que teremos que levar o dia inteiro comprando — disse, tristemente. — Talvez, se nos apressarmos, possamos terminar tudo ainda hoje.
Monique lançou-lhe um olhar estranho, que Tallie ignorou. Claude a esperava no hall. Ela piscou, surpresa. Claude era o lacaio que menos parecia sê-lo. Era baixo, com um tórax de barril e longos braços pendurados, como os de um gorila. Seu rosto, também, possuía um tipo simiesco; a maioria de seus dentes estava faltando e sua pele era marcada com terríveis cicatrizes de varíola. Era o homem mais feio que Tallie já vira na vida.
Perguntando-se o que possivelmente teria possuído seu marido para contratar um lacaio com aparência tão estranha, Tallie deixou-se ser escoltada.
Um tropel de cavalos soava no solo frio, fazendo eco no silêncio sombrio do Bosque de Bolonha. Os cascos do cavalo suado lançavam pedaços de grama e de terra molhada. Galhos passavam por seus lados.
Mas não era possível ultrapassar os próprios pensamentos e medos, pensou Magnus, mesmo se ele tocasse seu cavalo na maior velocidade. Ele estava no limite. Ela o levara a isso. Continuou cavalgando, esquecido do que estava à sua volta.
Será que fora assim que começara com seu pai, também? Com uma declaração de amor de uma noiva inocente? Uma vida de controle, despedaçada em um instante...
Ele fez seu cavalo suado estancar e desmontou.
Ele gemeu. Será que seu pai também sentia esta brecha dolorida aberta nele? Esta lacuna, este abismo... de necessidade. Será que havia começado assim com ele?
Ele sabia como terminara — uma descida lenta e inevitável para o inferno... Um homem forte em honra e dignidade reduzido a.... ao quê? A um adorador escravizado, cuja felicidade, bem-estar e posição honra mesmo — dependiam, no final, inteiramente de sua mulher. Uma mulher que não se importava com nada, a não ser riqueza e prazeres da carne — com qualquer um sobre o qual seus olhos errantes pousassem.
Magnus não podia se lembrar de qualquer tempo em que seus pais não brigassem, demais e demoradamente, com recriminações amargas e cóleras violentas. E cada vez tudo terminava com sua mãe dando aquele sorriso provocante e tentador, o sorriso que o convidava para sua cama novamente. E seu pai aceitava, agradecido — honra, dignidade e auto-respeito esquecidos — até a próxima vez em que a encontrava com um lacaio bonito, um garoto de estábulo de boa aparência, um de seus amigos, ou mesmo um cigano de passagem.
Magnus crescera jurando que nunca deixaria que uma mulher o fizesse de idiota assim. Ele decidira nunca se casar, nunca permitir que uma mulher chegasse perto dele o suficiente para lhe causar tal dano.
Mas escolhera Tallie, a ingênua e inocente Tallie. Que minara suas defesas desde o momento em que se casara com ela.
Pequena órfã suja que era então, ele nunca suspeitara o quanto viria a desejá-la. Magnus fechou os olhos em desespero. Nunca desejara tanto uma mulher em sua vida. E isso fora antes da noite passada... a noite passada, quando ela aceitara seu abraço com uma alegria e uma paixão doce e amorosa que o fizera tremer por dentro. E mesmo agora, horas depois... Pensou que poderia saciar seu desejo por ela.... só a desejava mais...
Homem mundano que era, pensava que vivenciara tudo o que um homem e uma mulher podiam fazer juntos — nunca soubera que poderia ser assim, dois se tornando um, uma explosão de sensações e emoções preenchendo uma lacuna dentro dele.
Eu o amo, Magnus. Ele remontou em seu cavalo e esporeou-o.
Ele voltou à noite. Tallie ficou muito alegre ao vê-lo e correu para beijá-lo, mas seu rosto estava impassível e friamente educado.
— Você teve um bom dia?
— Eu... tudo bem — disse ela hesitante.
— Gostou das compras?
— N... eu... er... sim, eu acho que sim. Compramos bastante. Monique insistiu.
— Muito bem. Está quase na hora do jantar. Nós fomos convidados a jantar com amigos de Laetitia que também estão visitando Paris — lady Pamela Horton e seu marido lorde Jasper.
O que acontecera? Estava ele zangado com ela por alguma razão? Por que a tratava como um estranho educado o faria? Onde estava seu marido da noite anterior? O homem que a chamara de meu amorzinho — duas vezes — e a segurara carinhosamente nos braços, enquanto ela chorava? E depois, fizera amor magnífica e gloriosamente com ela — não uma vez, mas três em uma noite. Quatro, se fosse contar o maravilhoso episódio da manhã.
Ferida e confusa, Tallie foi vestida em suas novas roupas. Quando Monique deu o toque final em seu cabelo, olhou-se no espelho e adorou. Ela deveria estar excitada —jantaria com seu marido e os amigos dele.
Mas não se sentia absolutamente excitada... Oh! Era uma tolice afligir-se, Tallie disse a si mesma duramente. Não era sua culpa se não a amava — era um casamento de conveniência, afinal. Ele não fora cruel — nem mesmo rude ou irritável. Somente reservado e distante. E muito educado. Seria tolo permitir-se cair em desânimo porque seu marido estava sendo educado.
Com este pensamento estimulante, Tallie deixou seu quarto e encontrou o marido no hall de entrada.
— Lorde e lady d’Arenville. — O anúncio do lacaio causou um pequeno frisson no salão elegante e espaçoso. Lady Pamela, uma mulher alta e elegante, vestida em um vestido verde estonteante, adiantou-se e cumprimentou Magnus calorosamente.
— Magnus, seu malvado, você está atrasado. E esta é sua pequena esposa... Como vai você, minha querida? — lançou um olhar rápido e indiferente a Tallie, que imediatamente se sentiu pequena e simples, apesar de seu vestido elegante.
— Venha, Magnus, há uma dúzia de pessoas que querem revê-lo. Oh, e aqui está Jasper. Cuide de lady d’Arenville, meu querido.
Tallie observava com desalento, depois se lembrou de que não era comme ilfauí que uma esposa ficasse atrás do marido o tempo todo. Não queria envergonhá-lo, especialmente em seu primeiro compromisso social como casal. Voltou-se para sorrir a lorde Jasper.
— Champanhe, lady d’Arenville? — disse ele, e sem esperar por sua resposta, acenou para um lacaio e estendeu-lhe um copo.
— Isso resolverá o problema, minha querida. Agora, quem você quer encontrar? Alguém que conheça?
Tallie balançou a cabeça.
— Está bem — disse lorde Jasper e a dirigiu a um pequeno grupo de pessoas. Ele rapidamente a apresentou, e logo saiu.
Pareceu-lhe que se passara um século até que o jantar fosse finalmente anunciado. Tallie ficou realmente feliz com isso — Magnus viria buscá-la para jantar e ela poderia relaxar por algum tempo.
Tallie mergulhou sua colher no sorvete de limão e tentou não olhar para o outro lado da longa mesa onde seu marido se sentava. Com lady Pamela. Falando, sorrindo e mostrando todos os sinais de quem se divertia muito. Suspirando, voltou sua cabeça e gritou mais uma vez com seu vizinho. Ele era um general idoso, surdo como um poste. Sua surdez, porém, não evitou que ele fizesse pergunta após pergunta, obrigando-a a gritar respostas em sua corneta-acústica. Ela olhou para seu outro vizinho, um polaco alto, magro, de aparência depressiva, que não falava inglês, muito mal o francês.
Do outro lado da mesa, uma francesa cheia de vida aparentando meia-idade flertava alegremente com seus vizinhos. Seus olhos se cruzaram com os de Tallie várias vezes e ela sorriu amigavelmente.
Ela olhou para a cabeceira da mesa. Lady Pamela estava com a mão na manga de Magnus, sussurrando em seu ouvido.
Finalmente, as damas se retiraram para deixar os cavalheiros com seu vinho do Porto. Em todo caso, quase ninguém falava com ela.
Ela bem que poderia ser uma hotentote, se pensasse em tudo o que tinha em comum com estas pessoas, pensou, sorvendo seu chá. Lady Pamela era exatamente como Laetitia — tudo o que fazia era falar sobre pessoas que não estavam lá, e quanto mais sórdida fosse a história mais todos riam.
A princesa hotentote sentava-se acorrentada à cadeira dos invasores estrangeiros. Ela era uma refém para que seu marido, o príncipe de todos os Hotentotes, se comportasse bem, mas seu espírito não estava desanimado, pois não se sentia traída pela sua ausência. Estes eram seus inimigos, estas pessoas tolas e arrogantes que falavam tão livremente à sua frente.
Logo seu corajoso marido viria resgatá-la.
— Tallie, meu maior amor — ele diria — Deixe-me salvá-la destes malvados cujas línguas gracejam como macacos tagarelas. Você representa mais para mim que qualquer reino ou trono. Eu a levarei a um lugar longe daqui, onde possamos ficar sozinhos.
Os belos olhos cinzentos do príncipe de todos os Hotentotes se escureceriam, e ele se inclinaria e acrescentaria, nesta voz maravilhosamente profunda, que nunca deixava de fazer arrepios de prazer passarem através dela.
— E então, minha amada Tallie, nós faremos amor a noite toda, e novamente pela manhã, também...
Mas, ao final de uma noite muito longa, Magnus a levou para casa, desejou-lhe boa noite, perfeitamente educado, e foi para seu próprio quarto.
Sentindo-se infeliz, Tallie enroscou-se como um pequeno embrulho no meio da grande cama. Ficara claro durante a noite que Magnus estava zangado com ela.
Era como se ela o tivesse traído de algum modo... quase como se ele a odiasse. Tallie obviamente lhe falhara... mas não podia imaginar como.
Mas como poderia um homem passar a noite toda fazendo amor apaixonada e carinhosamente com sua mulher, e de manhã beijá-la e chamá-la de meu amorzinho, e depois voltar à tarde agindo como se ela tivesse tentado destruí-lo?
Quando tudo o que ela fizera fora amá-lo?
No dia seguinte, quando acordou, Monique trouxe-lhe a notícia de que seu marido fora para a casa de amigos perto de Versailles. Voltaria em uma semana. Ou duas.
Ha primeira noite após a partida de Magnus, Tallie chorou até dormir. Ela visitara uma galeria de arte durante o dia. Na segunda noite novamente chorou até dormir. Mas, durante o dia, ela fora a um show de marionetes ao ar livre e passeara no parque com Monique e Claude.
Na manhã seguinte, Tallie recebeu uma visita: a dama francesa que vira na casa de lady Pamela — Madame Girodoux. Tallie estava se sentindo extremamente deprimida.
Madame Girodoux entrou impetuosamente no quarto. Sentou-se ao lado de Tallie na chaise longue, e conversou por um pouco de tempo mas, no meio de uma história, ela subitamente estancou, pegou a mão de Tallie na dela e disse:
— Desculpe minha intromissão, minha querida, mas um dia eu fui uma jovem esposa infeliz, e eu reconheço os sintomas.
Com suas palavras, Tallie se debulhou em lágrimas.
— Agora, chérie — disse Madame Girodoux um pouco depois —, parece-me que seu jovem mordeu mais do que podia mastigar.
— O que a senhora quer dizer?
— Foi um mariage de convenance, n est-ce-pas? — Mas você se apaixonou, oui?
Tallie assentiu.
— Eu acho que talvez você não seja a única. Eu observei seu marido a olhando... não é o olhar de um homem indiferente. Eles o chamam de Iceberg, non?
Tallie assentiu com a cabeça.
— Bem, eu não vejo gelo nele quando a olha, minha querida. Eu vejo fogo. Oui. Fogo, com certeza. Absolument. E quando o gelo encontra o fogo, algo precisa se quebrar — e não é o fogo, acredite em mim. Seu marido está com medo, mas ele voltará, e o gelo desaparecerá.
Deu uns tapinhas na mão de Tallie.
— Ele não será capaz de ficar longe de você por muito tempo, petite. Ele voltará logo, e o gelo desaparecerá. Isso a fará feliz, non? — Fitou Tallie astutamente. — Sua cama está solitária, non?
Tallie sentiu um fluxo selvagem de rubor. Madame Girodoux gargalhou.
— Sim, foi o que pensei. A cama tem um meio de derreter o gelo. Posso dar-lhe um conselho? Eu fui casada duas vezes, sabe, e nas duas fui muito feliz, apesar da primeira ter começado mal.
Tallie assentiu.
— Sem dúvida, quando seu marido voltar, você estará pronta a fazer qualquer coisa para lhe agradar. Talvez seduzi-lo novamente.
Tallie enrubesceu mais uma vez.
— Isso não é vergonha, chérie, mas mulheres precisam usar seus cérebros tanto quanto seu corpo quando se trata de casamento. Não faz mal a um marido mantê-lo um pouco inseguro de vez em quando. Lembre-se disso quando seu marido voltar para você.
Tallie piscou. Magnus não a estava caçando — ao contrário; ele estava fugindo. Madame Girodoux levantou-se.
— Agora, minha querida, corra para cima e lave seu rosto. Meu sobrinho, Fabrice, estará aqui em trinta minutos para levar-nos a um concerto. Quando seu marido voltar a Paris você não vai querer que ele saiba que esteve sofrendo por ele. Eu tenho vários compromissos sociais planejados para você.
— A senhora foi tão boa para mim, madame, como posso agrade...?
— Ah, non. Todos somos estranhos no começo. Agora, corra para cima, criança, e lave seu rosto.
Fiel à sua palavra, Madame Girodoux cuidou de todo entretenimento de Tallie nos dez dias seguintes. Ela fez visitas matinais, foi a concertos, festas elegantes e soirées.
Mas Tallie começou a se sentir magoada. Não era correto tê-la deixado à sua sorte em uma cidade estranha. Obviamente sua noite de paixão não significara nada para ele. A noite mais maravilhosa de toda a sua vida, e, exatamente, no dia seguinte ele partira para algum alojamento de caça horrível.
E o pior era que ela ainda o amava — mesmo sendo um Iceberg de coração frio.
Dois dias mais tarde, à noite, Magnus voltou. Tallie estava no hall, saindo para um concerto. Lembrando-se do conselho de Madame Girodoux, saudou-o friamente. Ele respondeu com a mesma educação. Ele não deu uma palavra de explicação por sua ausência. Esta omissão deu a Tallie a coragem de que precisava.
Atordoado, furioso, Magnus observou-a alegremente entrar em uma carruagem estranha. Ele se mantivera ocupado durante o tempo, cavalgando, caçando, jogando cartas e bebendo. Mas à noite, só conseguia pensar na maneira doce e apaixonada pela qual ela reagira às suas carícias, e em suas palavras — Eu o amo, Magnus.
O abismo o chamava, ameaçador. A vontade de ouvir estas palavras novamente, porém, crescera nele até que se tornara quase incapaz de pensar em outra coisa.
Ele a imaginara mil vezes, seu olhar de surpresa, prazer e boas-vindas. Removeria cuidadosamente o chapéu e o casaco, tomando cuidado para não lhe mostrar o poder que tinha sobre ele. Ela estaria esperando ansiosamente, com aquele olhar doce de antecipação e desejo em seus olhos âmbar claro, seu corpo macio flutuando gentilmente em sua direção. Ele se forçaria a esperar... E o jantar seria temperado com expectativa e desejo. Então...
Em vez disso, maldição, ela o cumprimentara educadamente, conversara por cinco minutos sobre como estivera ocupada em sua ausência, e saíra para um concerto com alguma fêmea francesa maldita! E um almofadinha francês elegante!
— Onde, com todos os diabos esteve você, madame? E quem é o pilantra que acaba de ajudá-la a sair da carruagem?
Era o mesmo sujeito que a escoltara na noite passada. O rapaz que estaria morto agora se Magnus não a tivesse ouvido voltar na noite anterior aproximadamente às onze horas. Ele também a ouvira trancar a porta, o que o enfurecera, mas decidira lidar com isso de manhã.
— Eu lhe falei sobre isso a noite passada — disse, indignada.
— Eu não me lembro de termos combinado nada em relação a você sair em alguma hora especial da manhã. Para onde você foi? E com quem?
Tallie lembrou-se do conselho de Madame Girodoux em relação a brigas. Olhando em um espelho dourado, ela levou algum tempo consertando seu cabelo ainda molhado, consciente de que seu marido estava olhando furiosamente suas costas.
Ele teria que aprender que ela não gostava de que ele lhe falasse neste tom antes do café da manhã, especialmente quando sabia perfeitamente que não fizera nada errado. Ele poderia ter esquecido onde ela disse que iria, mas deveria saber que ela nunca dava um passo fora de casa sem Claude, seu gorila domado, a reboque.
Achando que seu cabelo estava bastante arrumado, foi até o aparador e selecionou pãezinhos quentes, ovos mexidos, kedgeree e depois sentou-se à mesa.
— Mmm, este kedgeree tem um cheiro delicioso. Você já o provou, milorde? — Se ela deveria ser madame, ele também deveria ser milorde, pensou, rebelde.
Ele bateu com o punho na mesa.
— Droga, Tallie, onde você foi? Você não estava em sua cama quando eu acordei.
A contrariedade de Tallie se dissipou em uma torrente de calor. Ele a quisera ao acordar. Ele sentira sua falta. Frustração. Era por isso que estava tão irritado.
— O senhor se lembra, milorde? — disse, depois de ter engolido. — Eu tinha o compromisso de visitar uma casa de banhos com Madame Girodoux.
— Às sete e meia da manhã?
— Sim, mas valeu a pena. Sabe? Eles perfumam a água do banho com qualquer perfume que se desejar: eau de cologne, água de rosas, lavanda, até mesmo água salgada, se você quiser, o que eu acho muito saudável.
Tallie enrubesceu, lembrando-se de como o garboso parfumier beijara sua mão e a chamara de Ia belle milady anglaise.
Magnus olhava a bela cor que aparecia em suas faces. Seu desejo por ela era quase intolerável.
— Mas eu pedi lírio dos vales, em vez disso. — Ela levantou o punho até o nariz e inalou. — Era um lugar absolutamente maravilhoso. Cada banho é grande e tão profundo que você pode ter água quente até quase o pescoço, só precisa se sentar naquela água deliciosamente perfumada e olhar para um delicado jardinzinho, simplesmente cheio de rosas vermelhas, totalmente privado, é claro. Eu nunca vi nada tão lindo e exótico. — Ela lembrou-se de sonhar como Magnus inspiraria seu cheiro, a tomaria nos braços e faria amor violenta e apaixonadamente com ela.
A expressão de Magnus se escureceu. Suas palavras pintavam um quadro muito vívido. Sua mulher, rosada e nua no banho, a pele escorregadia com a água e os óleos aromáticos, nuvens fragrantes de vapor volteando ao seu redor, e lá fora um jardim florido, dando a ilusão de estar ao ar livre. Parecia que o banho era suficientemente grande para ambos. Ele engoliu, sua boca subitamente seca, seu corpo latejando, dolorosamente excitado.
— E o maldito pilantra francês? — resmungou.
— Ele não é um pilantra, mas um jovem cavalheiro muito agradável, milorde. Fabrice Dubout, o sobrinho de Madame Girodoux. Eu... eu demorei um pouco demais no banho, e Madame Girodoux tinha outro compromisso, assim pediu a Fabrice que me acompanhasse até em casa.
— E por conta deste breve conhecimento você o chama de Fabrice? — ele rosnou.
— Sim!
— Oh! — ele estava ficando furioso.
Ele sabia perfeitamente que ela o amava — ela o dissera. E mesmo se não se tivesse apaixonado por um homem horrível e desconfiado, fizera seus votos de fidelidade e nunca os quebraria, não importa o quanto isso estivesse na moda. E mesmo se ela quisesse traí-lo, como poderia, quando era acompanhada a todo lugar por este onipresente Claude?
Não, Magnus estava somente sendo desagradável porque, quando voltara, ela não se comportara como ele esperara que o fizesse, e quando acordara ele não a encontrara. Madame Girodoux tinha razão — um pouco de incerteza era bom para um marido.
— Eu fui convidada para um thé esta manhã, milorde. Você gostaria de me acompanhar? Sendo ingleses, nós somos conhecidos por adorar chá...
— Quanto a mim, eu não suporto esta coisa...
— Eu sei, e apesar dos franceses firmemente acreditarem que seus thés são originais, qualquer semelhança com um chá inglês é meramente coincidência.
As mulheres parisienses parecem cobrir-se mais com cosméticos que com roupas. Para os olhos ingleses, seus vestidos deixavam as damas quase em estado natural, tão leves e quase transparentes que eram sem mangas e mostrando todo o seu colo. Era um pouco desconcertante dirigir-se a uma nobre viúva idosa vestida tão leve e inadequadamente quanto a uma das estátuas do Louvre — Tallie não sabia para onde olhar. Ela sorriu novamente, lembrando-se do rosto de seu marido quando ela aparecesse em seu próprio vestido francês de chá, que não tinha nem a metade da ousadia dos delas.
— E eu suponho que se não acompanhá-la a este maldito thé, aquele pilantra desgraçado o fará. — Sua voz estava eriçada com suspeita sombria.
— Sim, Fabrice me acompanhará... se eu lhe pedir.
— Humm! — Magnus brincou com a xícara de café por um momento. — Pode ser interessante ver como os franceses estragam um simples chá.
Tallie escondeu um sorriso.
— Neste caso, eu preciso correr e me trocar, pois temos que sair às dez. — Magnus observou-a sair, o balançar sedutor dos seus quadris e os cachos delgados caindo em volta de sua nuca. Um tênue perfume de lírio dos vales pairava no ar.
Dane-se tudo. Chocara-se ao se conscientizar do quão desolado ficara quando a procurara de manhã e descobrira que havia saído. Por um louco momento pensou que o deixara, e o sentimento de abandono e devastação ainda o atormentava.
Ela estava aprendendo truques femininos, descobriu. Obtendo para si um maldito sapo cicisbeo. E quando ele a questionara sobre isso, mostrara culpa ou perturbação? Não! Ela o encarara com aqueles grandes olhos âmbar e o fizera sentir-se todo quente, e se preocupara em falar sobre um banho grande para dois.
Fora um erro deixá-la sozinha em Paris. E talvez ela estivesse um pouco zangada com ele. Ela não era como sua mãe — não verdadeiramente. Ele era um tolo de até mesmo pensar nisso... Droga! Se era preciso chá para manter sua mulher onde ela devia ficar, então ele beberia litros daquela coisa nojenta.
— Madame Girodoux me convidou para passear sem destino esta noite — disse Tallie, quando voltaram para casa. Seu marido olhou furiosa e silenciosamente do canto da carruagem. Ele não dissera uma palavra desde que ela tirara seu manto ao chegar ao thé, e revelara seu novo vestido dourado claro de chá francês. Ele era perfeitamente respeitável.
Ele não dissera uma palavra a ninguém toda a tarde. Não tirara os olhos dela por nem um minuto. Tallie achara este olhar sombrio e gélido decididamente enervante, mas sua coragem fora estimulada pelos sorrisos e sinais de aprovação de Madame Girodoux.
Assim, Tallie mencionara sobre o passeio, sabendo bem que Magnus a desaprovaria.
Ele bufou, encolerizado.
— Madame Girodoux e seu maldito sobrinho afetado, eu suponho.
— Madame não mencionou quem mais ia à festa, mas não me surpreenderia se Fabrice fosse incluído.
— O que exatamente quer dizer “passear sem destino”?
— Não tenho toda certeza, mas penso que significa explorar as partes menos respeitáveis de Paris à noite.
Ainda um pouco nervosa com estas táticas, Tallie forçou-se a sorrir alegremente para ele. Desejava não ter que se valer de estratagemas para obter sua atenção... Seria maravilhoso se ele ansiasse por sua companhia tanto quanto ansiava pela dele... mas estava aprendendo a lutar com todas as armas que tinha pelo que queria. E se estratagemas fossem necessários, então assim seria.
Magnus olhou-a furiosamente.
— Eu penso que sei tanto sobre a vida noturna de Paris quanto madame ou seu precioso sobrinho. Você teria alguma objeção se eu a acompanhasse em meu próprio tour particular?
— Oh, Magnus, seria esplêndido! — exclamou Tallie e, saltando, jogou os braços à sua volta e deu um beijo fervente em sua boca.
Tornado de surpresa, Magnus hesitou por um momento. Tallie começou a se retirar, mas antes que pudesse fazê-lo, ele deu-lhe um abraço faminto e a beijou com paixão desenfreada. Pegou-a no colo, beijando-a intensamente, sua boca devorando a dela, uma mão grande e quente segurando sua cabeça em uma pressão firme e carinhosa, a outra possessivamente passeando por seu corpo, acariciando, buscando, levando-a ao limite do prazer.
— Oh, Magnus — ela suspirou, completamente dominada por sua reação inesperada. Ela o beijou com todo o amor do seu coração, a raiva esquecida.
A carruagem estancou e eles se separaram quando a porta foi aberta por um lacaio.
Ao entrar, ele pegou-a nos braços e subiu as escadas, parecendo nem mesmo notar seu peso. Ela se agarrou ao seu pescoço, tão diferente de seu Iceberg. Ele chutou a porta do quarto e a colocou com cuidado em sua cama.
Pegou o decote de seu vestido nos dedos longos e fortes, dizendo:
— Nunca mais você vestirá esta maldita coisa — e rasgou-o, abrindo-o, em um movimento dramático. Tallie estava extremamente excitada. Os olhos de Magnus escureceram enquanto se moviam por seu corpo parcialmente revelado.
Ele arrancou sua echarpe lindamente arrumada e jogou sua combinação longe.
— Eu acho, madame esposa, que todos os compromissos que você tiver marcado para esta tarde não serão cumpridos.
Tallie sorriu maliciosamente para ele.
— Sim, eu duvido que os cumpra.
Ele olhou-a surpreso por um momento e depois a fitou, faminto.
— Nem eu, minha querida. Nem eu — sussurrou, rouco, e cobriu sua boca com a dele.
Aquela noite, Magnus a levou para passear sem destino — após ter se certificado de que ela estava encapotada até as orelhas e abotoada até o pescoço. Dirigiu a carruagem a uma parte da cidade que Tallie nunca vira.
— Depois de você, minha querida — disse Magnus, parando em uma porta iluminada por lanternas coloridas. Ele a levou para baixo, a um local sombrio e misterioso chamado cabaré. Eles acharam uma mesa e pediram drinques. O de Tallie era verde-claro.
— Este não é do gosto de minha dama? — perguntou Magnus, levantando uma sobrancelha.
Incitada, ela o provou cuidadosamente, então sorriu:
— Tem gosto de menta.
Os dentes brancos de Magnus cintilaram à luz das velas.
— O que estas cortinas escondem? — perguntou ela.
— Espere e você verá.
Após alguns momentos, um anão apareceu, vestido como um turco, com um turbante vermelho. Gritando algo ininteligível, ele puxou as cortinas para o lado e aplausos esparsos encheram a sala quando uma mulher provocante e exótica apareceu. Ela estava vestida bem indecentemente, em cetim vermelho e rendas pretas. Cantou várias músicas e fez todos os homens rirem às gargalhadas, inclusive Magnus.
— Ela tem uma voz deliciosa—sussurrou Tallie —, eu mal posso compreender uma palavra. Será que pode me dizer sobre o que são as músicas?
Magnus olhou para ela, um vago sorriso no rosto, depois balançou a cabeça. Tallie abriu a boca para discutir, mas subitamente um grupo de dançarinas escandalosamente vestidas pulou para a pista de dança, rodopiando cachecóis brilhantes e dançando uma dança exótica ao ritmo de tambores e de música chorosa. Seus movimentos não deixaram dúvida a Tallie sobre o tema da dança, finalmente. Ela olhava, olhos abertos, sentindo suas faces se aquecerem. Magnus levantou-se, carrancudo, e disse bruscamente:
— Está na hora de continuarmos, eu acho.
— Oh, não, não pode ser a hora de ir ainda, já? — Ele olhou para ela, e sua expressão se descontraiu.
— Não, há muito mais para se ver, pequena andarilha. Somente não aqui, eu acho. Para fora, já.
Eles tomaram uma carruagem para um local ao lado do Sena, onde uma multidão de pessoas estava reunida em uma grande roda, olhando. Acrobatas vestidos em roupas finas e brilhantes saltavam e davam cambalhotas sobre um pano esfarrapado vermelho e dourado, enquanto um homem de uma perna só tocava sons alegres em um órgão. Depois, duas jovens surgiram, com a aparência de estudantes. Elas rodopiavam e lançavam tições em brasa, deixando trilhas de fogo no ar escuro da noite. E, finalmente, para satisfazer aos desejos da multidão, eles engoliram o fogo, depois o cuspiram em erupções de chamas.
Depois houve um show de marionetes com uma história sobre uma menina perdida na floresta, um dragão e um cavaleiro corajoso e ousado, e o coração de Tallie estava em sua boca. Ela sabia que eram só marionetes, mas assim mesmo abraçou Magnus fortemente, e alegrou-se com seu calor.
Eles assistiram tudo até o final, depois passearam ao longo do Sena, que corria silenciosamente.
Mais tarde, seguindo o som da música em uma aléia escura, chegaram a um pequeno jardim aberto, onde ciganos cantavam, saltavam e giravam sob tochas flamejantes, seus tornozelos batendo em um ritmo frenético, seus violões e gargantas toando com trágica paixão. Tallie achou-os muito emocionantes, mesmo não entendendo as palavras, e apertou o braço de seu marido.
E Magnus secou os olhos de Tallie e a levou para casa, e fez amor com ela, primeiro com uma urgência e paixão que a deixou arfando em êxtase, depois, mais tarde, com tanto carinho que ela se viu chorando novamente. Ele não secou suas lágrimas, mas beijou-as, e a estreitou nos braços até que ambos adormecessem.
Na noite seguinte, eles foram ao Théâtre Français para ver Fleury, o mais famoso ator francês. Era a primeira visita de Tallie ao teatro, ela o achou fantástico e maravilhoso. Seu marido quase não podia tirar os olhos de seu rosto extasiado, e quando ele a levou para casa naquela noite, fez amor com ela de forma lenta e sensual, se maravilhando com sua reação apaixonada.
Magnus a acompanhou a toda parte. Levou-a ao novo Falais Royale, que continha bibliotecas, casas de jogos, cafés, casas de penhores, joalheiros, sorveterias, galerias, teatros e até mesmo um clube de xadrez. Foram a bailes de gala e a bailes de máscaras. E a cada noite faziam amor mágica e carinhosamente.
E ela parecia feliz, Magnus pensou. Disse-lhe uma vez em doce exaustão que duas pessoas não poderiam se sentir mais próximas do que ao fazer amor. Ele queria dizer-lhe que também podia ser o sentimento mais solitário do mundo, que o fora para ele — até ela. Mas não pôde fazê-lo. E ela nunca mais falou as palavras pelas quais ambos ansiavam e que ambos temiam. Eu o amo, Magnus.
— Milady, quando a senhora acha que o bebê vai nascer?
— Bebê? O que você quer dizer com isso, Monique?
— Oui, a senhora está grávida, não, milady?
— Grávida? Eu não tenho a mínima idéia.
— Mas milady, eu estou com a senhora há mais de sete semanas agora.
— Sim, mais ou menos isso. Mas o que tem isso?
— Durante todo este tempo as suas regras não vieram.
— Muito inteligente de sua parte observar isso. Mas o que isso tem a ver com um bebê?
Monique explicou.
— Realmente? — exclamou Tallie. — Então é assim que se sabe...
— Oui, milady. A menos que suas regras sejam sempre irregulares.
— Não, nunca. Eu só pensei que eu não as tivesse tido porque me casei, ou porque estava viajando, ou algo assim.
Ela sentiu um arrepio de excitação. Um bebê. Que maravilha.
— Lorde d’Arenville vai ficar muito feliz, não? — Tallie estancou. Quando seu marido descobrisse que estava grávida, a levaria para a Inglaterra e para d’Arenville Hall. Ele o dissera em termos bem claros.
E chegar à Itália era quase tão importante para Tallie quanto seu bebê.
— Não, Monique — disse lentamente. — Eu não direi a meu marido agora. Será nosso pequeno segredo, está bem?
— Se a senhora quer assim, milady.
— Eu quero — disse Tallie, firmemente. — E agora, por favor, precisamos nos preparar para deixar Paris.
— Deixar Paris? — suspirou Monique.
— Sim, em três dias, eu acho — disse Tallie firmemente. — Você virá conosco, não? Para a Itália?
— Claro, Milady. Por que não? Eu nunca fui à Itália.
— Oh — disse Tallie, observando contente a paisagem que passava. — Isso realmente é muito mais agradável do que eu esperava.
Magnus sorriu. A viagem de barca fora sugerida por Luigi Maguire, o mordomo francês com mãe italiana e pai irlandês. Ele já estava provando seu valor.
— Eu lhe disse que seria mais fácil para os ossos que uma carruagem.
— Você tem razão, como sempre. Oh, o Ródano é um rio tão lindo. Quanto tempo você pensa que levará até que cheguemos à Itália?
Magnus franziu as sobrancelhas. Havia algo de estranho em relação à sua súbita pressa de chegar à Itália. Claro, ela lhe dissera uma vez que desejava ir lá — para visitar os túmulos de seus pais, ou algo assim.
Mas se eles quisessem chegar à Itália, teriam que cruzar a serra do monte Cenis. Magnus reprimiu um estremecimento. Ele odiava as alturas, e teria infinitamente preferido ir de navio, mas com a tendência de sua esposa ao enjôo de mar, isso estava fora de questão. Fora bastante difícil persuadi-la a viajar pelo Ródano em uma chata. Além disso, sempre havia o perigo de piratas no Mediterrâneo.
— De acordo com Monique, ficaremos nesta barca por pelo menos cinco dias — disse ele — até chegarmos a Avignon. E eu pensei que poderíamos descansar lá por mais ou menos uma semana. Você gostará de visitar o Falais dês Papes e vários outros lugares.
— Oh, não, eu não penso que isso me interessaria muito — respondeu Tallie falsamente. — Eu vi um grande número de palácios e mais um, mesmo se tiver pertencido a um papa, não é grande coisa.
— Eu ouvi — disse Magnus casualmente — que algumas pessoas preferem visitar o Falais dês Papes à luz do luar...
— Luz do luar? — Seus olhos se acenderam, como ele sabia que o fariam. Tallie pensou por um momento. — Talvez, se ficarmos só por um dia ou dois.
Magnus reprimiu um sorriso. Estava se tornando cada vez mais fácil calcular os gostos de sua mulher. Ele a observava enquanto ela voltava a cabeça para as margens do rio. Ele achara sua vida tão insossa e tediosa antes do casamento. Mas a fascinação clara de Tallie por tudo abrira seus olhos para uma série de pequenos prazeres e interesses, e ele estava começando a ver o mundo de forma diferente.
Após Avignon, eles voltaram à carruagem, que também fora transportada na barca. As estradas eram um pouco difíceis.
Tallie chamou Magnus, que cavalgava.
— Eu não acho que estes pobres cavalos possam nos puxar mais. Está ficando terrivelmente íngreme. O que faremos? — Ela olhou para as montanhas. — Eles, com certeza, não poderão levar-nos por cima destas montanhas.
— Nós pararemos na próxima aldeia — respondeu ele. — A carruagem será desmontada, e as mulas e os homens nos carregarão por cima da serra.
— Carregar a carruagem? — ela deu um gritinho, espantada. — Você está brincando comigo?
— Espere e verá — ele riu.
Eles pararam para passar a noite na próxima aldeia, e de manhã Tallie viu a carruagem sendo desmontada e amarrada com cordas em vários e enormes pacotes. Uma dúzia de homens e mulas estavam juntos do lado de fora da pequena estalagem. Havia muitos gritos e discussões enquanto os pacotes eram presos às mulas, sob a supervisão de Maguire.
— Oh, os pobrezinhos — disse Tallie, apertando a manga de Magnus em desespero. — Estes pacotes são grandes e pesados demais para estes queridos animaizinhos.
— Os carregadores sabem o que estão fazendo, minha querida, não se preocupe; todos eles, homens e animais, já fizeram esta viagem várias vezes antes.
— E como viajaremos?
— De mula, eu acho — replicou.
— Eu não sei montar uma mula.
— Você não tem escolha. Não há cavalos.
— Não faria nenhuma diferença se houvesse. Eu não sei cavalgar. Nunca estive no dorso de um animal.
— O quê, nunca?
Magnus foi até Maguire e ao carregador-chefe, e seguiu-se uma breve discussão. Maguire deu uma ordem, e um jovem emergiu de um celeiro próximo carregando uma cesta de vime grande e estranha. Ele começou a prendê-la no dorso da mula.
— Eu não vou passar pelos Alpes nisso!
— Então não adianta continuar. Vamos voltar imediatamente a Paris — respondeu Magnus.
Ela lhe deu um olhar sombrio, e Magnus pegou sua mulher nos braços e a colocou de lado na cesta.
— Pronto — disse, apertando uma espessa pele de urso em volta dela para protegê-la do frio. — Confortável como um inseto em um tapete.
Ela lhe deu um olhar terrível.
— Eu me sinto muito tola. Por que não podemos andar, como estes homens?
Ele não respondeu, mas olhou para onde Monique, com guinchos e risadinhas, estava sendo instalada do mesmo modo em outra mula.
— Oh, muito bom — disse Tallie, zangada. — Eu preciso me comportar, mas eu me sinto ridícula.
— Algumas vezes precisamos sacrificar a dignidade pela conveniência — disse Magnus, austeramente.
A subida era longa e tortuosa, o caminho se estreitava visivelmente até que pareceu a Tallie não ter mais que algumas polegadas de largura. Era impressionante como os carregadores sabiam onde ele estava, pois havia trilhas de cabras saindo dele quase a cada curva. Os homens se revezavam para carregar os enormes pacotes com seus pertences. A trilha era estreita e tortuosa, mas Tallie não tinha tempo de se preocupar. As paisagens mais maravilhosas e admiráveis estavam à sua volta, e novas delícias eram reveladas a cada curva do caminho e a cada pequeno pico ultrapassado. Ela nunca vira nada assim em sua vida — só a imaginara lendo livros como o de Mrs. Radcliffe.
E o silêncio parecia pairar no ar em volta deles. Ela podia ver algumas aves de rapina, um falcão ou uma águia talvez, circulando com paciência inflexível sobre um rochedo distante. Ela o observou inclinar-se e elevar-se sem esforço, depois mergulhar para fora de sua visão, e tremeu, imaginando alguma pobre criaturinha pega em suas garras. O ar era frio, revigorante e tão puro que ela se sentiu quase tonta ao respirá-lo. Tudo o que podia ouvir era o bater das botas pesadas dos homens e o som ocasional de uma ferradura de mula batendo contra as pedras.
Tallie nunca ouvira um eco tão soberbo. Não podia resistir a ele.
— Alôôôô! — chamou. O eco voltou para ela de uma dúzia de rochedos distantes. Adiante dela, Magnus voltou-se em sua mula e olhou para trás, como se estivesse preocupado. Ela acenou.
— Alôôô, eco! — chamou novamente e suas palavras voltaram para ela.
Um dos carregadores riu com seu rosto alegre e começou a cantar. Em segundos os outros se juntaram a ele, vozes vigorosas e viris, profundas e verdadeiras, soando através das montanhas com a alegria de serem jovens e fortes e de estarem vivos. Alguém lá na frente começou uma melodia e outro homem o acompanhou, depois outro. Um homem mais velho com uma espessa barba branca começou uma terceira linha da melodia, bem baixo profundo, e mais vozes uniram-se à sua. As montanhas devolviam o som, ampliando-o.
Tallie estava encantada. Sentou-se sem fala, bebendo a maravilha do que acontecia. Aqui estava a simples normal Tallie Robinson — que um dia pensara que não iria a lugar nenhum — e agora ali estava ela, quase no topo do mundo, observando o que com certeza era na das mais esplêndidas paisagens que se podia imaginar. E ouvindo a música mais gloriosa do mundo. E, acima, cavalgava seu belo e magnífico marido. E teria um bebê. O ar frio da montanha picava seus olhos, e ela precisou pegar um lenço para enxugá-los.
Era estranho como chorava facilmente nestes dias, pensou. Terminou de limpá-los, e depois, notando que um dos carregadores a observava, começou a bater palmas m suas mãos frias no ritmo da música, cantarolando de acordo com a melodia. Com os cantos, o tempo passou mais rápido, até que o último dos carregadores parou, e Magnus veio tirá-la da cesta.
— Você conseguia ouvir os cantos lá da frente? Não eram bonito demais? — disse, esticando seus membros endurecidos.
— Muito bonito — respondeu ele. — Você está bem aquecida? — Suas próprias mãos não estavam exatamente quentes, e ela ficou preocupada quando notou que ele parecia ter olhos cansados e preocupados.
— Você está bem? — perguntou ela.
— Peguei um resfriado, eu acho. Nada com que se preocupar. Agora, eu penso que estes sujeitos têm conhaque, ou alguma bebida local. Eu quero que você beba um pouco para manter o frio longe.
Agora os homens descarregavam as mulas e traziam liteiras toscas de vime presas a estacas também toscas. Eles gesticularam para Magnus, e Tallie adiantou-se relutantemente.
Em minutos estava instalada em uma delas, amarrada — por segurança, disseram — e enrolada na palha, bem como em peles de urso, para aquecer-se.
— Eu me sinto ridícula — disse. Magnus gargalhou e enrolou um xale grosso de lã em seu rosto.
— Você parece encantadora, minha querida. — Tallie quase não podia se mover, então dirigiu um olhar quase invisível a ele.
— Monsieur? — disse um carregador. Magnus voltou-se. O carregador apontou outra liteira. — Por favor, senhor, precisamos nos apressar.
— O quê? Eu não preciso desta maldita liteira! — disse Magnus, ultrajado.
— É a única maneira, monsieur. Ninguém que não tenha nascido nas montanhas pode acompanhar nosso ritmo. O senhor precisa ir na liteira.
Uma risadinha abafada partiu do pacote que era Tallie. Magnus hesitou, rígido de contrariedade.
— Uma pessoa inexperiente nos atrasará. E madame está ficando com frio, monsieur.
— Oh, está bem, seu maldito! — disse Magnus, e permitiu que o prendessem na liteira. Tallie observou, divertida, enquanto seu imaculado e elegante marido era amarrado em uma liteira e enrolado até parecer uma pilha de roupa velha. Dois carregadores içaram-na para os ombros com um golpe e continuaram.
— Oh, Magnus? — chamou Tallie. Magnus fitou-a.
— O quê? — lançou-lhe.
— Algumas vezes precisamos sacrificar a dignidade pela conveniência, meu querido — disse, solenemente.
Magnus praguejou e ordenou aos carregadores que continuassem.
— Não se preocupe, meu querido — disse, alto. — Você também parece encantador em sua liteira.
Ele praguejou novamente, e o riso de Tallie o seguiu.
De um lado, o caminho estreito e tortuoso acabava em um precipício sem fundo, do outro havia picos violentamente altos e lajes verticais de rocha. Não havia espaço para manobra; o menor passo em falso os faria mergulhar centenas de metros no precipício, perecer nas rochas dentadas abaixo. Os carregadores nem mesmo fizeram uma pausa ou piscaram quando Tallie ouviu o que estava certa de serem lobos uivando não muito longe. Ela quase não ousava respirar.
Deu um suspiro de alívio quando chegaram ao topo da serra e pararam rapidamente para uma pausa. A vista era soberba. Em todas as direções havia picos de montanhas — alguns brilhando com a neve — afilados contra o vívido e refrescante azul do céu. No outro lado, estava a França, lá embaixo em algum lugar a Itália, e ao longe os picos da Suíça. Era um momento memorável, pensou, excitada, um momento para contar aos seus filhos.
Finalmente, chegaram a uma pequena aldeia que se empoleirava na encosta das montanhas. Os carregadores, ofegantes, pousaram as liteiras. Ela procurou o seu marido. Correu para ele com as pernas endurecidas.
— Magnus, esta não foi a emoção mais terrív...? Magnus, você está bem?
Seu rosto estava extremamente pálido, os olhos fechados. Ele não se movia.
Ela tirou suas luvas e sentiu sua fronte com a mão. Apesar do frio do ar, ela estava quente e úmida.
— Magnus!
Ele abriu os olhos vagarosamente.
— Oh, você está aí — disse, e lutou para sair da liteira. Ela o ajudou, mas quando tentou se levantar, ele cambaleou, e teria caído se um dos carregadores não o tivesse segurado. Tallie estava muito assustada.
— Ele está passando mal! Maguire!
Maguire e o carregador-chefe vieram ao seu chamado e houve uma breve conversa.
— Ele está passando mal — repetiu Tallie. —Precisa de um médico. Será que podemos levá-lo a uma estalagem ou a algum outro lugar?
O carregador balançou a cabeça e olhou significativamente em volta. Tallie seguiu seu olhar. O vilarejo consistia em uma meia dúzia de pequenos chalés. Com certeza, não haveria médico ali. A ansiedade apertou sua garganta.
— Eu estou bem — murmurou Magnus com dificuldade. — Somente um pouco tonto, isso é tudo.
— Por favor, nos transporte a toda velocidade ao local mais próximo onde eu puder encontrar ajuda para meu marido — disse Tallie firmemente. — Imediatamente, por favor.
A viagem de descida da encosta da montanha foi um pesadelo para Tallie. Ela gostaria de saber notícias de seu marido, mas eram obrigados a andar em fila indiana.
Eles passaram vários outros pequenos vilarejos, mas Tallie nem mesmo os considerou. Ela precisava chegar à cidade mais próxima que fosse suficientemente grande para ter um médico apropriado. Quando eles iam mais devagar, mesmo por um momento, ela os apressava.
— Rápido, por favor, rápido!
Por fim, um dos carregadores apontou para longe.
— Doutor?
O homem assentiu em retorno:
— Dottore.
Tallie recuperou o fôlego.
— Oh, graças a Deus. Agora, por favor, corra.
Os homens trotavam adiante. Tallie não reparava na paisagem; seus olhos iam do pacote que era seu marido, depois para baixo, para a cidade, depois de volta. Subitamente ouviram-se tiros.
— O que está acontecendo? — perguntou. — Por favor, o que é? E por que paramos?
— Sem perguntas — gritou uma voz familiar em italiano rude acima dela. Ela elevou os olhos e viu um homem alto e moreno com um grande bigode apontando uma brilhante pistola prateada em sua direção. Ele era magro, mas tinha ombros largos e estava vestido em um uniforme esfarrapado; havia restos gastos de bordado amarelo pálido em sua jaqueta, que ela supunha que um dia tivesse sido bonita.
Houve um súbito alvoroço mais à frente e um único tiro soou. O coração de Tallie quase parou. Magnus! Mas ela não podia nem ver nem ouvir nada. O homem acima disse algo para outro fora de sua vista e saltou. Imediatamente, outra dúzia de homens apareceu. Cada um brandia uma arma.
— O que está acontecendo? Quem são eles?
— Banditti — disse.
— Banditti? — arfou Tallie.
— Homens maus. Moram lá em cima. — Ele cuspiu com desprezo. — Não são nosso povo.
Mais ordens soaram em dialeto e os carregadores se moveram lentamente para diante. Seria impossível escapar — somente uma pessoa por vez poderia se mover. Está fora, sem dúvida, uma emboscada planejada.
Os bandidos já haviam desarmado os guardas, e Tallie podia ver que dois carregadores estavam machucados, apesar de não parecerem gravemente feridos; eles ainda podiam andar, apesar de fazê-lo com alguma dificuldade. Os guardas pareciam ilesos.
O homem de uniforme dourado e esfarrapado deu uma ordem ríspida, e os carregadores e guardas foram levados para uma caverna na rocha e obrigados a sentar com as mãos na cabeça. Tallie suspirou com alívio. Eles não queriam matar ninguém — ainda.
Tiraram tudo que possuía algum valor, até mesmo as botas de couro fino de Magnus.
Presa em sua liteira, Tallie esperava impotente. As faixas que existiam para sua segurança agora a mantinham prisioneira. Ela se perguntava como Magnus estava passando, e lutava imperceptivelmente para escapar dos laços.
O líder dos bandidos enfiou sua pistola no cinto.
— Ana, o que temos aqui? — disse em um italiano com um sotaque estranho, mas surpreendentemente urbano. — Uma dama, não, duas damas — acrescentou, levantando uma coberta para descobrir Monique.
Ele fitou as liteiras contendo Magnus, Maguire, John Black e Guillaume, o valete de Magnus.
— E qual destes é o milorde inglês?
O milorde inglês? Como ele sabia que um dos viajantes era um milorde inglês?, perguntou-se Tallie ansiosamente. Seu mordomo, Luigi Maguire, afirmara que eles deveriam vestir-se como viajantes comuns.
— Naturalmente, já que nenhum viajante estrangeiro é precisamente pobre — dissera ele com seu sotaque estranho. — Não é uma grande idéia anunciar riqueza, então, aceite meu conselho, lorde d’Arenville, e viaje como um simples Monsieur d’Arenville. Ou mesmo Mr. Smith, se quiser. E em seu casaco e botas mais simples. Sua boa dama também, em seu manto e vestido mais simples e mais útil.
E eles haviam seguido seu conselho bastante sensato. Então, como este bandido sabia que havia um lorde inglês na viagem?
— Vamos, cavalheiros, eu sei que um de vocês é um milorde inglês, um pombo gordo para minha caçada.
Atrás de si, Tallie ouviu Monique gritando enquanto suas bijuterias eram roubadas. Uma bofetada soou e um bandido riu. John Black praguejou uma litania de maldições inglesas e avançou. Um tumulto ocorreu. Ouviu-se uma pancada e John Black caiu no chão, gemendo e apertando a cabeça. Guillaume e Maguire não se moveram. Guillaume parecia aterrorizado.
O líder dos bandidos voltou-se e tirou Magnus de sua liteira.
— Deixe-me, maldito! — resmungou Magnus, balançando enquanto ficava em pé, tentando rechaçar o bandido.
— Aha! Nosso arrogante milorde inglês, eu presumo — disse o líder dos bandidos em um francês excelente, e inclinou-se, de modo escarnecedor, enquanto tirava o cinto de dinheiro da cintura de Magnus.
— O senhor está bêbado, meu fino milorde inglês? Ou é um covarde, como o resto dos de sua espécie?
— Ele não é nada disso! Ele está passando mal! — Ela arrastou-se para fora e correu para seu marido, jogando seu corpo entre o dele e o do bandido.
— Deixe-o em paz. Ele está passando mal. Você não pode ver?
O bandido bufou. Seus olhos verdes se apertaram.
— Se não fosse isso ele teria atirado em você e o matado, seu malvado — disse Tallie ferozmente, colocando seu ombro embaixo do de Magnus, para sustentar sua forma oscilante.
O bandido olhou novamente para Magnus e cuspiu no chão.
— Bah! Olhe para ele! Está tremendo de medo!
— Está tremendo de febre! — Tallie retorquiu.
O líder dos bandidos bufou, incrédulo. Estendeu uma mão surpreendentemente limpa e pegou suas orelhas entre os dedos. Tallie gelou enquanto ele cuidadosamente lhe tirava os brincos de ouro. Então a levou ao seu pescoço, enfiando os dedos dentro da gola de seu vestido, e ela recuou.
— Tire suas mãos nojentas de minha mulher, seu rufião! — Magnus adiantou-se, o braço se estendendo em um soco desajeitado, mas bem armado. O bandido recuou e ficou segurando seu queixo, enquanto Tallie lutava para ajudar Magnus a recobrar o equilíbrio.
— Nós vamos levá-lo de qualquer jeito. — Inclinou-se e pegou o colar quebrado de Tallie.
— O que você quer dizer, levá-lo? Levar quem? Meu marido?
— Si.
— Não, pare! — gritou Tallie.
— Ele é um fino milorde inglês. Alguém pagará algum ouro por seu retorno seguro, si?
— Resgate? — suspirou Tallie. — Mas você não pode levá-lo. Ele está doente demais! Ele precisa de um médico imediatamente.
O bandido deu de ombros e voltou-se novamente.
— Não! — gritou Tallie, zangada. — Eu não vou permitir isso!
O bandido, virou-se novamente e olhou-a com franca surpresa. Riu, e um dente dourado brilhou na luz do sol.
— Você não o permitirá?
— Não, eu não o permitirei — retorquiu desafiadoramente, e moveu-se para juntar-se ao seu marido. — Você terá que me matar antes que eu lhe permita raptar meu marido!
— Cale a boca, mulher. Fique fora disso — Magnus murmurou zangado. Sua pele parecia branca e seca, mas havia um rubor febril em suas faces.
— Eu não o farei. Você não está em condições de ser arrastado para algum horrível covil de bandidos nas montanhas, e eu não permitiria!
Magnus cambaleou e praguejou, passando a mão impacientemente por sua fronte, limpando o suor.
— Segure a sua língua e espere com John Black.
— Eu não quero esperar com eles. Meu lugar é ao lado de meu marido.
O bandido adiantou-se e sem esforço puxou Tallie para seu lado. Magnus avançou para salvá-la, mas não conseguiu. Outro bandido esfarrapado veio e o segurou por trás.
— Deixe minha mulher, maldito — disse Magnus, com a boca fechada e cambaleando. — Toque em um fio de cabelo seu, e eu o matarei.
Os olhos brilhantes e verdes do líder dos bandidos se estreitaram e ele apertou mais o braço de Tallie.
— Oh, então o milorde inglês se importa com sua mulher, não? E ela com ele? Bom. Uma esposa amorosa se assegurará de que o resgate de seu marido seja pago rápido e sem problemas.
— Levem-no — ordenou.
— Não! Ele está doente! Ele morrerá se vocês o levarem — disse, desesperada. — Então como vocês vão receber seu precioso resgate?
— É um risco que correremos.
— Não é o seu risco! Eu não o permitirei! — O bandido riu, debochado.
— Como vai nos impedir, pequena milady inglesa?
— Leve-me no seu lugar — disse.
— Maldita mulher, segure sua... — O urro zangado de Magnus foi interrompido quando um farrapo foi enfiado em sua boca.
— Levá-la? — disse o líder, surpreso. Seus olhos verdes se apertaram.
— Que jogo você está jogando agora? — fitou Maguire, que não disse nada.
— Nenhum jogo — disse Tallie. — Você com certeza não irá embora sem um refém. Meu marido está doente demais para ir com você, mas eu não. É um arranjo perfeitamente sensato.
Magnus deu um rugido abafado. Seus olhos a fitaram por cima da mordaça, o rosto anormalmente pálido tornado pela raiva e preocupação frenética.
— Levar uma mulher como refém?
O bandido olhou-a desconfiado, passando um dedo em seu bigode espesso e escuro.
— Este é um dos seus jogos ingleses imorais, milady? A senhora pensa que é romântico vadiar com um bandido bonito pelas montanhas, é?
Tallie estava ultrajada.
— Não, claro que não! — gaguejou, indignada. — Como você ousa sugerir algo tão sórdido? Eu não daria dois passos com você se eu tivesse qualquer escolha, mas eu não o deixarei levar meu marido quando ele está doente!
— Mas e se ele estivesse bem..?
— Hah! — Tallie bufou. — Se ele estivesse bem você nunca nos teria feito prisioneiros, para começar! — Ela fitou Maguire com total desprezo, bem como o grupo silencioso de guardas que ele contratara para protegê-los. — Meu marido nunca teria se rendido sem luta decente!
— Está bem, então — disse ele —, nós a levaremos conosco e deixaremos seu marido amoroso para tratar do resgate.
Magnus alterou-se furiosamente, mas foi controlado por seus captores.
Tallie sentiu, a boca subitamente seca. Ela não pensara que os bandidos realmente concordassem em levá-la, e subitamente ficou aterrorizada. Mas ela se oferecera, e não havia realmente escolha.
— Está tudo bem, Magnus. Eu estou feliz em fazer isso — engoliu em seco novamente. Parecia haver um grande nó seco em sua garganta. — Por favor, tente não ficar zangado comigo. Eu não pude achar outra saída...
Magnus balançou a cabeça.
— Por favor, meu amor, eu... eu não quero que talvez nossos últimos momentos... Oh, por favor, não fique zangado comigo.
Lágrimas enchiam seus olhos enquanto ela colocava as mãos em suas faces. Ele ficou quieto, os olhos penetrando nos dela em uma mensagem silenciosa e frustrada.
— Eu o amo, Magnus — sussurrou, e apertou-se firmemente ao seu corpo, como se nunca o deixasse ir.
— Chega! — disse o bandido, e com outro beijo Tallie deixou Magnus, as lágrimas lhe descendo pelas faces.
O bandido fitou Magnus por um breve e solene momento.
— Ela não será tocada — disse, finalmente. — Somos bandidos, mas não fazemos mal a mulheres.
Ele pegou Tallie pelo braço e levou-a para longe.
— Mais non, non. Vocês não podem levar milady para as montanhas — gritou Monique.
O bandido a ignorou e continuou a caminhar.
— Elle est enceinte! — gritou Monique, desesperada. O bandido estancou. Fitou o rosto de Tallie, seu ventre, depois novamente seu rosto. Ela olhava para seu marido, os olhos cheios de uma mistura de alegria, ansiedade e súplica. O bandido largou o braço de Tallie, desgostoso, e dirigiu-se, com passos pesados, para Maguire. Seguiu-se uma discussão em uma língua que Tallie já ouvira em algum lugar.
— Você nos traiu, Maguire — ela gritou.
Maguire teve um sobressalto, olhou através da clareira pedregosa para ela, deu de ombros de um modo que sem dúvida imitava o do bandido.
— Ele... ele... é seu irmão — ela acusou. — Ele tem o mesmo rosto longo e fino e o mesmo nariz... e seus olhos são verdes, também, só não tão... — Sua voz se interrompeu.
O bandido voltou-se e sorriu maliciosamente, seu dente de ouro brilhando na luz.
— Correto, milady — disse em um inglês perfeito e ritmado. — Os irmãos Maguire a seu serviço. Eu sou António. — Ele se inclinou. — E meu irmãozinho Luigi.
Tallie o ignorou. Voltou-se para o antigo mordomo.
— Por que, Maguire? Por que você fez isso?
— As guerras acabaram e um homem precisa ganhar sua vida de algum modo. E nós não temos nenhum amor por lordes ingleses. Foi um lorde inglês quem enforcou nosso pai e avô.
Seu irmão bandido o interrompeu.
— E lordes ingleses nos têm provido com uma renda fixa, desde que passamos a morar nas montanhas.
Ele olhou para Tallie, depois para Magnus.
— Mas parece que teremos somente o que pudemos tirar das bagagens desta vez, pois uma coisa é manter um homem como refém, mas se um lorde inglês morrer conosco, teremos as autoridades nos caçando a cada passo. E eu não seqüestro mulheres grávidas.
Ele se voltou e gritou algumas ordens, e a clareira subitamente se tornou um vespeiro de tanta atividade, enquanto os bandidos empacotavam tudo o que pudesse ser carregado e de algum valor.
— Adieu, milord — disse Maguire, o bandido. — Eu o invejo por sua mulher; ela é um verdadeiro tesouro.
Ele pegou as mãos de Tallie e as beijou como se fosse um cavalheiro bem-nascido, e não um bandido de montanha. Num instante, os banditti se foram.
Tallie correu para aliviar Magnus de sua mordaça suja e de suas cordas.
Ele cuspiu a mordaça, arfando, e tentou dizer algo.
— Oh, ajudem-me, por favor — ela gritou para os carregadores. — Deixem-nos sair deste lugar terrível imediatamente. Eu preciso levar meu marido a um médico agora mesmo. Rápido, precisamos ir!
— Não... me... deixe.
Magnus pediu, rouco, fitando-a com um olhar selvagem e agoniado.
— Não... deixe... não... — e desmaiou, insensível.
— Signora, a febre baixou — o garboso médico grisalho inclinou-se para Tallie, falando com voz gentil.
Tallie fitou-o, espantada, a incompreensão completa em seu rosto.
— Significa que seu marido já passou a pior fase — o médico explicou. — Ele vai estar bem logo. Uma semana, talvez, e poderá se levantar. Ele precisa descansar.
Ele a olhou e seu rosto se adoçou.
— E a senhora também, signora. A senhora parece exausta.
Magnus iria melhorar. Ele viveria.
— Venha agora — disse o doutor. — Carlotta e o bom John Black ficarão aqui com seu marido, e sua criada a colocará na cama. A senhora precisa dormir.
Tallie assentiu. Havia somente três dias desde que chegara à cidade de Susa? Parecia muito mais... Uma viagem de pesadelo, descendo as montanhas com Magnus amarrado em uma mula, inconsciente, a cabeça balançando a cada sobressalto, fazendo-a ficar com medo de que ele quebrasse o pescoço. Mas ele não quebrara. Depois veio a busca infrutífera e interminável por uma casa que hospedaria um estranho sem dinheiro e com febre.
Graças a Deus por Carlotta, que era uma espécie de parente por casamento de um dos carregadores. Tallie passara pelo carregador, e, reunindo seu melhor italiano de estudante, suplicara a Carlotta que ajudasse seu marido. Carlotta olhou o rosto jovem de Tallie manchado de lágrimas e escancarou a porta.
Em instantes, ela já enviara um garoto correndo atrás do dottore, pedira vinho e refrescos para Tallie e os outros, e, com berros, supervisionara os homens carregando Magnus escada acima para um quarto. Quando o médico chegou, ela já despira o corpo trêmulo de Magnus com mãos firmes e maternais.
Ele examinou o paciente cuidadosamente. Para alívio de Tallie, declarou que o paciente não poderia sofrer sangria — ela odiava ver pessoas serem sangradas. Mas então, para seu horror, ele tirou de sua bolsa uma pequena caixa contendo meia-dúzia de sanguessugas, que aplicou à pele de Magnus com dedos hábeis. Ela vira, horrorizada, as sanguessugas incharem e engordarem, até que, finalmente, brilhantes e cheias, caíram, deixando um pingo de sangue no local onde estiveram. O doutor pegara cuidadosamente as sanguessugas gordas e as recolocara na caixa. Ele então sacudira um pó de aparência misteriosa, o misturara com vinho, adicionara várias gotas de uma garrafa espessa e esverdeada, e administrara a mistura através de um funil que colocara entre os dentes cerrados de Magnus.
— Láudano. Ele vai dormir agora.
E isso fora somente há três dias, Tallie pensou, incrédula. Tudo estava confuso para ela agora... dias e noites passadas ao lado de Magnus, vendo-o se debater, se virar e murmurar ininteligivelmente, passando-lhe uma esponja quando estava com calor, cobrindo-o quando tinha frio...
— Venha, signora, está na hora de dormir. Seu marido está a salvo agora — o doutor disse novamente.
O doutor exclamou algo baixinho e, franzindo a testa, inclinou-se para olhar mais de perto. Tallie rapidamente enfiou a mão em uma dobra da saia.
— Signora, a senhora permite? — Tallie negou com a cabeça e deu um passo atrás, mas o doutor a ignorou. Ele inclinou-se, gentilmente tirou sua mão do esconderijo e a examinou. Ele praguejou baixinho em italiano.
— Por que a senhora não disse nada? — disse, em uma voz baixa e zangada.
Tallie balançou a cabeça, envergonhada.
— Não é nada. Está um pouco rígida, só isso. — Carlotta chegou por trás dele e espiou curiosamente por cima de seus ombros. Ela arfou. A mão esquerda de Tallie estava negra e azul com hematomas, onde seu marido a segurara durante a febre. Vários dedos estavam inchados. Ela quase não os podia mover.
— Gelo para a mão da signora, imediatamente. — Tallie não tinha escolha, a não ser ser levada pelo abraço maternal. Colocou sua mão boa em seu ventre, sentindo o tênue inchaço embaixo dela. Um dia ela, também, cuidaria de seu filho do modo que Carlotta estava cuidando dela. Era um pensamento maravilhoso. Uma lágrima correu por suas faces. Oh, céus, ela estava mais cansada do que pensava.
Sua mão estava mergulhada em uma bacia de água gelada, e após a primeira dor excruciante, sentiu uma dormência abençoada. Após um momento, a sensação começou a voltar. Carlotta passou um ungüento malcheiroso e envolveu sua mão levemente em um pano, depois a colocou rapidamente dentro de uma camisola quente e enorme, e a pôs na cama.
— Signora... Carlotta, eu preciso agradecer-lhe — começou Tallie, mas Carlotta a calou e a fez gentilmente deitar-se novamente nos travesseiros, alisando seus cabelos com um gentil toque rítmico. Ela começou a cantarolar — uma canção de dormir. Era tolo, pois era uma mulher crescida e casada, e não uma criança, absolutamente... mas era muito confortador... Fechou os olhos e dormiu.
— Magnus, você precisa ficar na cama!
— Dane-se o médico. Eu não tenho a intenção de ficar atoa...
Magnus atirou para longe as cobertas e depois se levantou, trêmulo, segurando-se na cabeceira de madeira esculpida para se sustentar.
Tallie, apesar de sua ansiedade, viu-se sorrindo. O falecido marido de Carlotta fora evidentemente muito mais baixo que Magnus, pois sua camisola acabava bem acima dos seus joelhos.
— Você não deveria estar de pé antes do tempo.
— Estou muito só — falou, dando a ela um olhar quente.
Tallie enrubesceu. Desta vez, ela não conseguiu impedir o riso que fez tremer seus lábios. Ela, também, estivera sozinha na cama ao lado. Era incrível a rapidez com a qual uma pessoa se acostumava a compartilhar uma cama. Somente alguns meses atrás, ela fora incapaz de imaginar algo que não fosse uma invasão, uma inconveniência, uma invasão de privacidade... mas agora ela não desejava adormecer a não ser nos braços de seu marido, seus fortes braços. Ela amava a maneira pela qual ele a acordava por vezes de manhã... Bom dia, coração... sabendo que era o prelúdio do amor.
Ela amava demais estas manhãs, observando o foco de seus olhos sonolentos, depois pensativos, escurecendo-se neste cinza de tempestade que significava que ele queria fazer amor com ela. O olhar nunca deixava de excitá-la... E a sensação de seu maxilar não barbeado passando sensualmente contra a doçura de sua pele... um tremor de prazer passou através dela. Sim, ela se sentira sozinha em sua cama também.
— Pegue este chambre para mim, por favor — disse Magnus —, está frio.
O homem era impossível de teimoso! Ela não queria ajudá-lo, mas ele claramente se levantaria com ou sem a sua concordância, e estava frio. Relutante, ela foi fazer o que pedia, mas Magnus deu alguns passos e cambaleou perigosamente. Ela correu de volta para sua figura oscilante.
— Eu lhe disse que era cedo demais para se aventurar fora da cama — ralhou. — O médico disse que você precisa descansar por mais alguns dias e recuperar suas forças antes de tentar se mover.
— Charlatão maldito!
— Ele salvou sua vida.
— O que uma maldita sanguessuga de aldeia saberia fazer?
Ela o empurrou e ele caiu na cama.
Escondendo um sorriso de triunfo, ela inclinou-se para colocar suas pernas de volta na cama, mas com um golpe Magnus a puxou para cima de si.
— Assim é melhor — murmurou com doce satisfação, e cobriu sua boca com a dele.
Tallie desistiu de lutar. Oh, ela amava tanto este homem teimoso.
— Madonna mia! Pare com isso agora mesmo! Não está na hora!
Era Carlotta, à porta.
Magnus praguejou. Tallie tentou sair de seu abraço, mas ele se recusou a deixá-la ir. Logo agora sua força foi voltar, ela pensou, envergonhada.
— Signora Thalia, Signor Magnus, basta! Chega!
— Fora, que droga, signora! Agora! — replicou Magnus.
Carlotta o ignorou. Ela correu para a cama, repreendendo-o em voz baixa, e a puxou com força.
— Rápido! — sussurrou. — Amarre sua camisola. E o senhor, Signor Magnus... — ela se interrompeu e começou a colocar as cobertas sobre ele.
— Droga, mulher...
— Quieto! — gritou Carlotta. — É o padre.
— Que padre? Eu não tenho pai — retorquiu Magnus zangado. — Droga, mulher, que diabos pensa que está fazendo? — ele tentou retirar as mãos que estavam ocupadas abotoando sua camisola até o pescoço, mas Carlotta não se importava com isso.
— É o padre!
— Que o inferno e o diabo a confundam, mulher, eu lhe disse, eu não tenho pá...
A porta se abriu e um velho padre entrou. Ele aspergiu algumas gotas de líquido em volta do quarto, murmurando algo em latim.
— Água benta — sussurrou Carlotta.
Magnus fechou os olhos, resignado, e Tallie reprimiu um risinho. E se o padre tivesse simplesmente entrado e os encontrado como estavam?
— Como vai o senhor? — o padre disse em um inglês lento e enferrujado. — Eu sou o padre Astuto. Carlotta me disse que o senhor passa por uma difíc... — franziu a testa, depois seu rosto clareou —... convalescença.
Ele se inclinou, claramente deliciado por ter se lembrado de uma palavra tão complicada.
— Eu vim para entretê-lo com um pouco de conversação em inglês. Eu falo bem esta língua, não? Então, conversaremos. Você está sofrendo, meu filho — padre Astuto colocou uma mão fina e cheia de veias sobre a fronte de Magnus. — Não tente falar. Repouse e eu contarei a você minha vida e minhas viagens. Será muito interessante para um inglês. Eu nasci na pequena aldeia de...
Uma risada sufocada escapou de Tallie. Magnus olhou para ela com um olhar maligno. Colocando a mão sobre a boca, ela saiu correndo do quarto.
— Café, Signora Thalia? O padre, ele ficará ao menos três horas.
— Tr... três horas, Carlotta? — disse Tallie, com voz trêmula.
— Três, possivelmente quatro.
Ela deu um olhar malicioso para Tallie.
— Isso manterá seu marido quieto, não?
— A senhora quer dizer...?
— Dottore disse que ele precisa ficar na cama, sim? E quem melhor para mantê-lo lá que padre Astuto? Ele ama praticar o seu inglês. Virá todas as manhãs, pelo resto da semana.
Carlotta piscou um olho.
— E se o seu marido não dormir pelo resto da tarde, padre Astuto está perdendo seu talento.
— Carlotta, você é brilhante! — exclamou Tallie.
Ele estaria, fora do caminho por ao menos uma semana. Esta era a oportunidade pela qual estava esperando. Uma chance de retraçar os últimos passos de sua mãe.
— Signora Carlotta — disse, lentamente — meus pais morreram.
— Ah, pobre criança...
— Eles morreram na Itália.
— O quê? Na Itália? Não!
— Sim, em algum lugar entre Turim e as montanhas.
— Eh? Perto de Turim, você disse? — Tallie assentiu.
— Sim, mas eu não tenho certeza onde, exatamente. Perto de alguma pequena aldeia. Houve um acidente de carruagem. Foi aproximadamente há sete anos. Você ouviu sobre algo assim que tivesse acontecido aqui por perto?
Carlotta franziu o rosto.
— Você diz que a sua mamma e o seu papá morreram neste acidente? — Ela balançou a cabeça lentamente. — Eu me lembro de algo sobre a carruagem de um inglês... Foi perto da aldeia na qual o tio da cunhada de meu marido mora, mas eu não me lembro de nada sobre uma dama ter estado no coche. E eu saberia, sim, pois damas inglesas não são comuns nestas montanhas. Eu sinto muito, criança.
— Mas você se lembra de um acidente em que um inglês morreu? Aproximadamente há sete anos?
Carlotta assentiu.
Tallie deu um profundo suspiro.
— Carlotta, posso confiar em você?
Carlotta franziu as sobrancelhas e recuou, como se insultada.
— Mas claro...
— Ninguém, nem mesmo meu marido, sabe deste segredo — disse Tallie, apressada. — Especialmente meu marido.
— Eu juro pela roupa da Virgem Santa que manterei seu segredo até o túmulo — disse, fazendo rápido o sinal-da-cruz em seu peito. Ela cuspiu na sua palma, e a ofereceu a Tallie, que a apertou cuidadosamente.
— Eu pensava que meus pais haviam morrido juntos no acidente de coche, mas, alguns anos atrás, recebi uma carta que dizia que meu pai fora morto ali, mas minha mãe morrera uma semana antes, em uma pequena aldeia.
— Eu não ouvi isso.
— A carta dizia que ela morrera dando à luz... um garotinho. Dizia que meu pai acreditava que minha mãe lhe fora infiel, e que ele não teria um bastardo estrangeiro impingido a ele. — Ela fitou Carlotta nos olhos. — A carta disse que ele deixou o bebê para trás na aldeia na qual minha mãe foi enterrada.
Carlotta olhou, espantada. Ela balançou a cabeça, descrente com tais acontecimentos.
— Carlotta, você entende? Toda a minha vida eu não tive família, ninguém no mundo me pertenceu. Ninguém que me amasse.
— Mas seu marid...
— Não é a mesma coisa. Mas talvez, em alguma pequena aldeia perto daqui, haja um menininho que também pensa que não pertence a ninguém. Se a carta estiver certa, e se ele existir, ele tem uma irmã...
Seus olhos se encheram de lágrimas.
— Eu quero procurá-lo, Carlotta, e preciso de sua ajuda.
— Mas por que não esperar até que seu marido esteja bem?
— Ele não deve saber disso.
— Mas por que, querida?
— Eu sei que nós lhe dissemos que éramos Signor e Signora d’Arenville, mas a verdade é que, na Inglaterra, meu marido é um grande senhor, de uma família antiga e orgulhosa. Já foi suficientemente mau ele escolher uma insignificante como esposa, mas que sentimentos teria se esta insignificante quisesse procurar por seu meio-irmão bastardo?
E a única criança pela qual Magnus se interessava era um herdeiro para levar seu nome de família. Com certeza, ele não teria interesse em um bastardo de parentesco desconhecido, possivelmente meio estrangeiro e, provavelmente, criado em uma pequena aldeia suja de camponeses. Ela podia imaginar o que ele — e todos os outros — diriam. Mas se ela encontrasse seu irmão primeiro... Magnus não era o único que podia ser teimoso.
— Será que você realmente pensa que meu marido me ajudaria?
— Eu a ajudarei, querida, eu conheço estes grandes lordes orgulhosos. Se pudermos, acharemos seu irmãozinho. Mas você tem certeza de que o lorde lhe negaria abrigo?
— Abrigo, não — disse Tallie, com sentimento. — Em um orfanato ou escola, talvez. Mas se eu tiver um irmãozinho, eu quero mais dele. Eu nunca tive uma casa minha, mas farei tudo que puder para me assegurar de que meu irmão tenha uma. E se meu marido não gostar disso... — seus olhos encheram-se de lágrimas. — Eu não sei o que farei, mas eu não desistirei de meu irmão; bastardo ou não.
— Então, John Black, Monique, os sobrinhos de Carlotta e eu viajaremos a Turim com nossas cartas de crédito e de apresentação, e você ficará aqui com Carlotta.
— Mas... — Magnus, da cama, olhou furioso para ela.
— Magnus, você sabe que esta é a única possibilidade. Nós não podemos ir todos, pois Carlotta pensará que queremos fugir dela. Ela teve tanta perturbação e despesas por nossa causa. Eu estarei perfeitamente segura com os sobrinhos de Carlotta e com John Black.
— Sim, mas...
— Você preferiria que eu ficasse para trás, então... sozinha? Enquanto você arrisca sua saúde e a sua vida? Ou talvez seja adequado a você deixar que uma viúva sozinha nos sustente e a nossos criados.
— Não. Claro que não desejo isso. Isso me deixa louco, mas...
— Está bem, combinado — disse Tallie, decisiva. — Você não precisa se preocupar, Magnus. Eu não estou nem um pouco tentada a pegar sua bolsa e a continuar a viagem. Eu não tenho nenhuma intenção de abandoná-lo. E você não poderá estar sozinho, com o querido padre Astuto o visitando tão freqüentemente. Eu me pergunto se ele não poderia fazê-lo mais freqüentemente enquanto eu estiver fora?
— Me arreie com um pouco mais deste maldito padre, madame, e você se arrependerá do dia em que se casou comigo.
— Será? E você tem certeza de que eu já não me arrependo? — disse ela dando-lhe um beijo rápido em sua boca, saiu correndo do quarto, deixando Magnus frustrado e incomodado.
Droga, sua mulher estava bem decidida nestes últimos dias. Que diabos acontecera com a dependente criaturinha com quem se casara? Ele sentia falta dela. Droga — ainda estava fraco como um gatinho. Precisava recobrar as forças rapidamente, ou, da maneira que as coisas estavam acontecendo, sua mulher pensaria que era ela quem vestia as calças nesta família... já estava vestindo as ceroulas.
Ele sentiu seu corpo tremer quando se lembrou da visão dela nestas malditas e sedutoras ceroulas cor-de-rosa. Voltou para a cama, preparado para permitir-se uma fantasia em que sua esposa estava por cima dele, vestida somente em suas ceroulas cor-de-rosa, os cabelos caídos em volta de seus seios ousados e nus...
— Ah, Signor d’Arenville, o senhor está acordado!
— Padre Astuto — suspirou Magnus.
— Descanse, meu filho, e eu lhe contarei da cidade santa e da minha audiência com Sua Eminência. Era um dia frio e seco...
Magnus fechou os olhos e tentou recapturar sua fantasia...
— Eu estava vestindo uma nova sotaina... é esse o termo, não? Que eu comprara especialmente para a audiência...
Não adiantava. Era simplesmente impossível se permitir uma fantasia erótica quando se estava em uma cilada armada por um padre velho.
— E é claro que eu preparara um pequeno discurso para fazer para o Santo Padre. Até hoje eu me lembro, era assim...
Magnus curvou-se na cama, tentando bloquear a divagação do padre. Mas o sono o frustrou. Ele foi mantido acordado pelo último comentário de sua mulher.
Será que ela se arrependia do dia em que se casara com ele? Era um pensamento incômodo. Parecia a ele que estava bem feliz... mas nunca se poderia ter certeza com mulheres. Elas eram atrizes natas, segundo sua experiência. Nunca diziam o que pensavam... Apesar de sua mulher não ser como a maioria das outras... Ela era diferente... mas como, diferente? Será que podia fingir a felicidade de maneira tão consistente?
Esta sua fraqueza desgraçada — ele odiava a idéia de vê-la indo para Turim sozinha, com ninguém a não ser John Black e um grupo de sobrinhos de Carlotta para protegê-la. E se houvesse mais banditti na estrada?
Magnus fechou os seus olhos, revivendo o momento em que se conscientizara de que ele estava levando Tallie para as montanhas para fazê-la refém. Ele ainda o assombrava. Nunca se sentira tão furioso em toda sua vida... ou tão atemorizado... ou tão impotente.
Se vivesse até os cem anos nunca esqueceria o seu sorriso corajoso quando lhe dera um beijo de despedida. Eu o amo, Magnus. E, então, ela o abraçara como se ele fosse a coisa mais preciosa do mundo.
Ela se oferecera para ir. Para tomar seu lugar como refém. Porque pensara que se o levassem ele morreria com a febre nas montanhas.
Cada vez que pensava nisso, ele sentia... Ele não sabia o que sentia. Sem fôlego? Feliz? Orgulhoso? Claro. E ela foi salva porque estava grávida. Senhor, o que estava acontecendo com ele nestes dias? Ele deveria estar nas nuvens — afinal, uma criança sua, e era por isso que decidira tomar uma esposa. Ele tentou imaginar a criança, um filho de Tallie.
Ele pensou em sua ameaça brincalhona de abandoná-lo. Após o primeiro choque, ele não acreditara realmente nisso por um momento. Claro que ela não o deixaria. Ele sabia disso tanto quanto conhecia a si mesmo. Ela faria exatamente o que dissera que faria — iria diretamente a Turim, pegaria o dinheiro e voltaria imediatamente. De repente, ocorreu a Magnus que confiava nela; ele, na realidade, confiava em sua mulher.
Bom Deus! Quando acontecera? Quando ela se oferecera a tomar o seu lugar? Não. Ele rememorou tudo o que se passara. Não conseguia definir o momento exato, mas começara bem antes, então... ele confiava nela. A conscientização foi perturbadora. Seu coração batia mais rápido em seu peito e ele tremia, sentindo-se subitamente exposto e vulnerável. E se ela...? Não, ele não pensaria sobre isso. Não fazia sentido remoer o passado — ela era diferente; sua mulher era diferente. De algum modo, por algum incrível e maravilhoso golpe de sorte, ele conseguira para si uma esposa que era diferente de todas as mulheres que conhecera...E estava sobremodo grato por isso.
Ele confiava em sua esposa e ela estava grávida. Mas e se a perdesse?
A voz do padre soou, monótona, no fundo. Magnus lutava contra seus demônios, mergulhando do êxtase à dúvida, ao desespero, depois de volta ao êxtase, até que, por fim, Magnus finalmente adormeceu.
— Que diabos você está dizendo, a patroa não está com você? Onde está ela, então? Não me diga que você a deixou sozinha em Turim. Você sabe mais que isso, John! — Magnus fitou seu cocheiro, confuso e muito preocupado. Claro que não acreditara nem por um instante que sua esposa tivesse partido e o abandonado... mas onde estava ela? — Conta logo, homem, onde está ela?
— A patroa nunca foi a Turim — disse John Black finalmente.
— Nunca foi a Turim? O que você quer dizer com isso? Eu a vi partir.
John Black negou com a cabeça.
— Ela foi comigo por uma dúzia de milhas, mais ou menos, depois se desviou para as montanhas.
Magnus sentiu como se tivessem batido em seu peito com um martelo. Este maldito bastardo de olhos verdes, beijador de mãos!
— E você simplesmente a deixou ir? Sozinha?
— Não, milorde, claro que não — disse John Black indignado —, eu espero que saiba mais que isso. Ela tinha aquela empregada francesa com ela, e meia dúzia de parentes da viúva italiana, incluindo uma velha.
— O quê? — Magnus fitou seu cocheiro. Algo se desapertou em seu peito. Uma coisa era suspeitar que sua mulher houvesse fugido com algum maldito bandido de boa aparência, mas outra bem diferente era imaginá-la levando sua criada, uma velha senhora italiana e meia dúzia de parentes da eminentemente respeitável Carlotta com ela. Não era a maneira normal de se fugir com um amante. Mas sua esposa não era o tipo normal de esposa.
— Carlotta! — rugiu. — Que diabos você fez com minha mulher?
— Não se preocupe, Signor d’Arenville, sua esposa está perfeitamente segura. Ela foi fazer uma visita ao seu tio com a mulher do irmão mais velho de meu marido.
— Seu tio? — Magnus estava atônito. — Ela nunca me falou que tinha um tio morando na Itália.
— Não o tio de sua mulher, signor. O tio da cunhada de meu marido.
— O tio do marido de sua cunhada? Mas por que então...
— Não, não o tio do marido de minha cunhada... ele mora em Chiomonte... ele é um pedreiro, entende? Não, sua esposa foi visitar o tio da cunhada de meu marido.
— Eu não me importo nem um pouco com seus malditos parentes, madame. Eu quero minha mulher.
Carlotta se levantou e deu a ele um olhar magnífico de desprezo italiano.
— Eu não gosto que o senhor pragueje em minha casa, signor. Não importa que o senhor seja um grande senhor na Inglaterra.
Com imensa dignidade, começou a ir embora.
— Carlotta. Signora... Carlotta.
Ele se forçou a usar uma voz muito mais macia.
— Eu peço desculpas por praguejar em sua casa. — Ela puxou o ombro, o retraiu, magoada.
— E eu peço desculpas por qualquer ofensa que eu possa ter feito aos seus parentes. Eu tenho certeza de que eles são pessoas de valor e muito respeitáveis.
Ela retraiu o ombro novamente.
— Por favor, me desculpe. Eu não queria ofendê-la, signora, mas estou extremamente preocupado com minha esposa.
Carlotta se voltou e disse, rigidamente:
— Ela está com meus parentes, signor. Nada de mau lhe acontecerá, eu lhe asseguro.
— Eu sei — disse. — É somente que eu estou muito ansioso em relação a ela. Ela... ela está grávida, sabe.
— Grávida? — Então seu rosto se iluminou. — O senhor quer dizer, um bebê?
Magnus assentiu com a cabeça, desejando saber se estava falando a verdade ou não.
— Oh, signor, isso é maravilhoso. Não me espanta que o senhor esteja ansioso em relação à signora. Mas como o senhor deve estar feliz. Um bebê!
Magnus assentiu, e conseguiu dar o que esperava que se parecesse com um sorriso feliz. Mas ele estava por demais preocupado para perder mais tempo sorrindo para uma mulher cujos malditos parentes haviam levado Tallie para alguma aldeia de montanha distante.
— Então, você me diria agora, por favor, onde está minha esposa?
— Mas eu lhe disse, signor, ela está na aldeia de minha cunha...
— Chega de parentes, eu lhe suplico.
— Ela foi procurar o lugar onde sua mãe morreu. — Magnus perdeu o fôlego.
Então, aquele maldito patife de olhos verdes não a tivera, afinal. Fechou os olhos, aliviado. O lugar em que sua mãe morrera. Claro. Ela mencionara isso antes.
Mas por que ela não esperara até que ele estivesse suficientemente bem para acompanhá-la? Ele teria ido com ela. Sem dúvida. De fato, agora que pensava nisso, ele queria muito ir com ela. Ela precisava dele — não somente como companhia, mas para apoiá-la em sua dor.
Então, por que não o esperara? E por que fugira como o fizera, fingindo que ia a Turim?
Sua desconfiança aumentou. Ou havia algo estranho acontecendo, ou ele era um holandês. E ele era inglês até a alma, até o Conquistador. E antes dele.
Então, o que estava sua mulher fazendo, esta muIherzinha enganadora?
Tallie parou e fitou desolada o chalé prestes a cair. A pintura de cal era velha, suja, desprendendo-se em grandes pedaços. O telhado inclinado de telhas de madeira tinha buracos visíveis da trilha estreita abaixo. Uma porta oscilava, incerta, presa em uma dobradiça de couro, e o vento uivava nas venezianas quebradas.
Ela perdeu o ânimo. Voltou-se para seu guia.
— Eu pensei que você dissera que uma mulher morava aqui. Com um menininho.
O homem deu de ombros e murmurou algo em um dialeto incompreensível. Um dos sobrinhos de Carlotta traduziu.
— Ele disse que eles viviam aqui, mas não os visitava há um ano mais ou menos.
— Bem, mas é uma das pessoas da aldeia lá embaixo? Será que alguém sabe? — perguntou Tallie.
— Talvez.
Eles voltaram em seus passos para a aldeia abaixo, a aproximadamente cinco minutos de caminhada da casa em ruínas. Bateram de porta em porta, mas ninguém queria responder às perguntas feitas por uma jovem mulher estranha, uma estrangeira inglesa. Finalmente, chegaram em uma casa onde, após algum diálogo entre um sobrinho e o seu dono, uma conexão foi estabelecida; parecia envolver uma grande quantidade de primos e cunhados.
Tallie foi levada até um cômodo pequeno e limpo que parecia preencher as funções de cozinha, sala de estar e quarto de dormir. O cômodo estava quente e confortável, com tapetes coloridos feitos a mão no solo e na cama. A dona da casa lhe ofereceu uma vasilha com leite cremoso. Ela bebeu sofregamente.
— Muito obrigada, signora, estava delicioso. — Então, com os sobrinhos traduzindo, Tallie começou seu interrogatório.
— Si, Marta, que morava no chalé acima na montanha, morreu.
Não, ele não era seu marido; era seu irmão.
Um menininho? Si, havia um menininho. Seu miracolo bambino, ela o chamava assim. Ele ficara nove anos sem ter filhos, então, presto, um dia ela volta da igreja com um bebezinho.
Si, acontecera aproximadamente sete anos atrás. Não, o bebê era louro. O cabelo de Marta era escuro.
Não, o menininho não morrera.
Com o irmão? Não, ele não gostava da criança. Chamava-o de pequeno bastardo estrangeiro. Dizia que não era seu parente.
Só Deus sabe, signora. Em tempos como estes, muitas crianças perdem seus pais. Alguns correm selvagens nas montanhas. Aqueles que não têm parentes, é claro. Si, é uma tragédia, mas o que podemos fazer? Já se tem problemas demais alimentando os próprios sem procurar mais.
Que tipo de menino, signora? Um menino mau, com certeza. Mau? Eh, roubava minhas maçãs, andava nas minhas cabras, Madonna mia! Mas sempre alegre, sabe, assobiando, rindo. Si, signora, um menininho mau e feliz.
Si, claro. Se eu souber de algo... Faz muito tempo agora... mas, si, eu perguntarei.
No, no, de nada, signora. Vá com Deus.
— Eles estão chegando, signor. Sua mulher e meus sobrinhos, eles estão chegando, vê? — gesticulou Carlotta, triunfante. Magnus correu para a janela e olhou para fora, respirando pesadamente. Fazia quatro dias que descobrira que Tallie não fora a Turim.
— Sim, eu posso vê-la — resmungou.
O alívio, após dias e noites da ansiedade mais intensa, se transformou em raiva. Como ela ousava chegar como se absolutamente nada estivesse errado? Como se ela não tivesse simplesmente fugido, por bem ou por mal, com um bando de estrangeiros, deixando seu marido doente com um velho padre demente? Fingindo que fora visitar o túmulo de sua mãe. Depois, casualmente aparecendo, como se tivesse saído para um piquenique!
Ele foi até uma janela voltada para o lado oposto da casa, e olhou para ela, para as montanhas à distância. Atrás dele a porta se abriu. Magnus não se moveu; continuou olhando pela janela. Houve um curto silêncio.
— M.. Magnus? — disse ela, trêmula.
— Madame? — respondeu ele friamente, finalmente voltando-se para encará-la. — A senhora encontrou o que procurava?
— Oh, Magnus — ela chorou, e correu pelo quarto para se aninhar em seus braços abertos.
Ele a apertou contra si — forte — um nó seco em sua garganta. Ela se prendia a ele — fortemente — como o fizera quando estava para ser levada pelos bandidos, como se ela nunca o fosse deixar ir. Sua cabeça estava enterrada entre seu ombro e seu maxilar. Ela chorava; ele podia sentir o calor molhado das lágrimas em sua pele. Após um momento, ele se conscientizou da presença de Carlotta olhando com benevolência.
No quarto, ele queria jogá-la na cama, lançar-se ao seu lado, e possuí-la até que soubesse onde era seu lugar, a quem pertencia.
Magnus apalpou seu bolso e estendeu-lhe um lenço. Queria secar suas lágrimas, ou melhor ainda, beijá-las até que parassem, mas não podia se permitir dar um único passo em sua direção. Se o fizesse, estaria perdido para sempre, até onde sabia. Assim, estava preso a um redemoinho emocional que nunca sonhara ser possível. Não podia acreditar no quão fraco e irresoluto se sentia, em como era forte o impulso de somente tomá-la nos braços e esquecer a semana anterior. Perdoar e esquecer. Como seu pai. Perdoar o fato de que ela lhe mentira. Esquecer que fugira para as montanhas sem seu conhecimento ou permissão. Não, ele estava fraco, mas se fortaleceria. Nunca perdoaria e esqueceria.
Ele caminhou até a janela e ali ficou.
— Bem, madame, eu já lhe perguntei e repetirei a pergunta. Encontrou o que estava procurando? Encontrou o túmulo de sua mãe?
— Sim — sussurrou.
— E quando o achou, voltou diretamente para casa? — Ela hesitou, empalideceu, esfregou o rosto, abaixou os olhos e fez sinal que sim.
— Mentirosa! — ele bradou, batendo com o punho contra a parede.
Ela recuou, fitando-o com olhos enormes e assustados.
— Você encontrou a sepultura de sua mãe há oito dias! Eu mesmo a vi e falei com o padre sobre você. Oito dias, madame! Oito dias!
Ela abriu a boca, depois a fechou novamente, mordendo nervosamente seu lábio inferior de um modo que o deixou louco.
— Será que eu devo lhe dizer o que você fez nestes oito dias. Será? Você me traiu, madame. Traiu o nome que tomou no dia em que se casou. Quebrou os votos que fez diante de Deus e do homem.
— Tra.... traí seu nome? Então você sabe? Carlotta contou para você?
— Não, com certeza ela não contou. Vocês mulheres se unem em suas traições.
— Então, como...?
— Você pensa que sou idiota, madame? Eu descobri sozinho.
— Mas como você pode?
— Traição é algo com o que fui acostumado toda a minha vida. Eu acho que sou especialista nisso.
— Traição... eu tinha medo de que você pudesse interpretá-lo nestes termos — ela suspirou.
— Medo de que eu pudesse interpretá-lo nestes termos? — repetiu, incrédulo. — Por favor, como então eu poderia interpretá-lo?
Andava furiosamente no quarto.
— Eu pensava... esperava que você pudesse ser diferente... só...
— E eu esperava... acreditava que você fosse diferente, madame — disse ele, amargamente.
E ele se convencera de que ela não era uma atriz!
Ah!
— Bem, eu espero que você tenha aprendido sua lição. Ele se cansou de seus charmes em somente uma semana?
— Cansou-se de meus charmes? Que charmes? De quem você está falando?
Seu olhar esbugalhado de confusão e inocência o enraiveceu. Ele avançou para a cama, pegou-a pelos ombros, puxou-a para que ficasse de pé e a sacudiu, furioso.
— Aquele maldito irlandês de olhos verdes, claro! — Houve um longo silêncio enquanto encaravam um ao outro, depois, subitamente, seu rosto mostrou que ela começara a compreender. Estava boquiaberta.
— Você pensa que eu o traí... com aquele bandido?
— Eu sei disso — respondeu ele friamente.
— Você pensa que eu o traí! — ela passou por ele e marchou para o outro lado do quarto. Suas mãos tremiam, ela pegou um ornamento da estante, olhou com um olhar vazio para ele por um momento, sua boca se mexendo. Colocando o enfeite de volta com uma batida, ela se voltou. — Como você ousa? Oh, como ousa dizer isso? — ofegava, enquanto tentava se controlar. — Como se eu fosse algum dia traí-lo com outro homem!
Magnus a observava, desconfiado. Será que esta era outra boa encenação? Não parecia.
— E com esse... esse bandido! Oh!
— Então você nega? — disse friamente.
— Nego? Nego? — Ela pegou bruscamente o enfeite da estante e o jogou nele. Ele se desviou, e o objeto se quebrou na parede atrás dele.
— Não, eu não nego. Eu não tenho que negar nada; não há nada para negar! — ela gritou. — Eu não acredito que você nem mesmo pudesse pensar nisso.
— Então você não foi se encontrar com aquele bandido?
Ele se desviou de outro enfeite que foi jogado em sua cabeça e se sentiu inseguro. Nunca a vira assim antes. Não podia acreditar que fosse encenação. O nó frio alojado em seu peito começou a se desfazer.
— Então onde você foi nestes oito dias? — disse vagarosamente.
— Não lhe interessa — ela lançou-lhe.
— Me interessa sim. Eu sou seu marido. Aonde você vai me interessa.
— Oh, verdade? E você quer que eu lhe preste contas de cada momento? Bem, sinto muito decepcioná-lo, mas não explicarei cada instante de minha vida a uma besta horrível e desconfiada que acredita que eu sou... sou... Bem, a partir de agora, se você não puder me encontrar, vai achar que eu estou longe, divertindo-me com um amante, de preferência algum criminoso não barbeado. — Sua voz tremia com mágoa e ultraje.
Magnus a fitou. Ele não podia acreditar que ela não fosse total e extremamente sincera. Ela não o traíra. Ninguém podia ser tão boa atriz. O alívio o tomou. Ela pegou outro enfeite da estante e o segurou em ameaça.
— Eu acho que o falecido marido de Carlotta lhe deu isso em seu último aniversário de casamento — murmurou, mentindo.
Ela o olhou e subitamente chocada e culpada mordeu os lábios. Hesitante, pousou o objeto. Ele deu outro passo em sua direção, e ela imediatamente recuou.
— Não chegue perto de mim, Magnus — avisou.
— Eu pensei... eu estava... — ele passou as mãos pelos cabelos e inspirou novamente. — Eu estava preocupado com você, e quando eu fui até aquela igreja e descobri que você estivera lá três dias antes...
Achou difícil olhá-la nos olhos e teve que se forçar a fazê-lo.
— Eu não sabia onde você estava. Só sabia que não estava comigo... onde é o seu lugar. Eu fiquei... fiquei com ciúmes. Perdoe-me. Por favor.
O momento se estendeu interminavelmente. Magnus só podia ouvir o bater de seu coração no peito, e o fino e agudo grito de um pássaro longínquo soando ao vento. Ele a acusara do comportamento mais vil. Poderia, iria ela perdoá-lo? Ou esquecer? A confiança, uma vez destruída, não era facilmente recomposta. Quem entendia isso melhor que ele?
— Você estava com ciúmes? — ela sussurrou, afinal.
Ele assentiu.
— Oh, Magnus — ela se jogou em seus braços.
Magnus acordou após algum tempo. O sol do final da tarde entrava através das venezianas abertas, espalhando retângulos dourados de calor nas paredes e na cama. Ele estava deitado ali, saboreando o momento. Sua mulher recostava-se, quente e relaxada, em seu peito, o corpo enroscado nele como um gato pequeno e sensual.
Ela se mexeu.
— Magnus? — disse, sonolenta, e sorriu. — Eu o amo.
Mas esta... esta intimidade... quando a afeição simplesmente brotava dela, e pequenos beijos desajeitados o enchiam com esta doçura penetrante...
Ele sentia-se no limiar de... de quê? Do abismo?
Isso o aterrorizava, e ainda assim o enchia com uma fome voraz.
Ela o dissera novamente. Eu o amo, Magnus.
Estas eram somente palavras, disse a si mesmo. Mulheres as usavam o tempo todo. Parecia mais fácil para elas, fácil demais. Ele se lembrava das vezes em que ela o dissera; a primeira vez, quando ainda mal o conhecia, após a consumação de seu casamento.
E apesar de ele ter esperado que ela falasse novamente, a cada noite, desde então, temia-o, mas ansiando pelas palavras com uma fome que o aterrorizara, ela não o fizera.
Não até que estivera a ponto de ser tirada dele, por aquele bandido. Quando ele estava furioso e temendo por sua segurança. Ela o sussurrara então, quando lhe dera um beijo de adeus. Eu o amo, Magnus.
E agora, a terceira vez, após uma briga...
Ele ainda não sabia onde ela estivera naqueles oito dias. Ele se tornara um covarde, também, como seu pai.
Suas mãos o acariciaram e ele sentiu que seu corpo se excitou em resposta. Sim, ele poderia encontrar ali o esquecimento, o doce esquecimento. Magnus não precisou de mais nenhuma sugestão. Penetrou-a, e encontrou seu doce esquecimento.
— Signor d’Arenville e Signora Thalia, acordem! — Carlotta batia furiosamente na porta.
— Espere, eu já vou!
— Não, é urgente, signor, muito urgente! Por favor, signor, abra a porta!
Praguejando, Magnus colocou um chambre, avançou para a porta e a escancarou.
— O que significa todo este barulho, Carlotta?
— Signor, signora, eu sinto tanto perturbá-los, mas tenho notícias, notícias terríveis.
Tallie endireitou-se.
— Você quer dizer sobre...
— No, no, signora. Infelizmente não tenho notícias sobre ele ainda.
Magnus franziu o rosto. Ele?
— Não, esta notícia importante acaba de chegar de Turim. Eu a obtive de meu...
— Deixe-me adivinhar. O sobrinho da tia-avó da sobrinha do cunhado do tio de seu primo.
— Não, signor, eu a ouvi do meu vizinho que acaba de chegar de Turim. É a guerra, signor — disse Carlotta.
— O quê? — Magnus estava estarrecido. — Guerra?
— Meu vizinho disse que em Turim as ruas estão cheias de soldados. A Inglaterra e a França estão mais uma vez em guerra. E nós estamos em guerra, também. As tropas de Napoleão estão por todo o Piemonte.
Ela olhou para Tallie e novamente para ele.
— Vocês precisam fugir imediatamente, signor. Os soldados estão prendendo os estrangeiros para interrogatório.
Magnus praguejou novamente.
— Ele disse que passou por uma tropa de soldados na estrada. Eles estarão aqui em duas horas. Estão revistando as casas no caminho. Com certeza chegarão até aqui.
— Nós partiremos imediatamente — Magnus assegurou-lhe. — Você tem sido boa demais conosco, Carlotta. Nós não queremos causar nenhum problema a você.
— Oh, não, Signor Magnus. Eu não estou preocupada comigo mesma. Eu não gostaria de vê-los levados pelos soldados. Vocês precisam se esconder nas montanhas até o pôr-do-sol. É perigoso demais tentar alcançar a costa daqui. Meus sobrinhos os levarão à Suíça. Já está tudo organizado.
— Signora... Carlotta — disse. — A senhora é uma... uma rainha entre as mulheres. — Tomou sua mão e beijou-a levemente.
— Oh, signor — ela enrubesceu, perturbada. — Faz-se o que é possível. Agora, prepararei alguma comida para que vocês levem. Só embalem o que puderem carregar. Meus sobrinhos os encontrarão depois do pôr-do-sol, de maneira que ninguém os verá partir. Alguns de nossos vizinhos não têm honra. Se eles não virem, não poderão dizer em que direção vocês foram. A maioria esperará que vocês se dirijam para o sul, para a costa; há soldados demais no caminho, mas eles não sabem disso.
— Estaremos prontos em uma hora.
— Meu vizinho disse que Turim é só confusão. Damas inglesas estão desmaiando; os homens estão em pânico. — Fitou Magnus e Tallie orgulhosamente. — Não meus visitantes ingleses.
Menos de uma hora mais tarde, Magnus e Tallie estavam sentados em um feixe de palha em um pequeno celeiro, uma milha ao sul da cidade. Pertencia ao tio de Carlotta. Estavam esperando que John Black, Monique e os sobrinhos se encontrassem com eles após o pôr-do-sol. Então, partiriam para a Suíça. Tallie dera a Carlotta um adeus choroso. As duas mulheres se abraçaram, Carlotta sussurrando palavras de conforto no ouvido de Tallie, dizendo-lhe que prestaria atenção a qualquer notícia de seu irmãozinho.
Tallie estava sentada, mastigando uma haste de palha. Magnus olhava para ela, preocupado. Ela falara muito pouco desde que haviam partido.
— Não se preocupe. Não deixarei que nada de mau lhe aconteça — disse docemente.
— Eu sei. Eu não estava preocupada com isso.
O sentimento pesado voltou ao seu peito. Ela estava tão confiante e certa... Ele desejava estar tão seguro quanto ela.
— Você nunca descobriu o que eu estava fazendo quando não voltei nestes oito dias, não é? — disse.
Magnus sentiu como se tivesse sido socado no peito.
— Não, mas não faz ma...
— Eu estava procurando meu irmão.
— Seu irmão? — ele disse, espantado. Irmão? Era a última coisa que esperava. — Eu nunca soube que você tivesse um irmão.
— Nem eu, até alguns anos atrás. Bem, na realidade, eu não tinha certeza absoluta disso até alguns dias.
Ela se recostou nele e suspirou, e, instintivamente, ele colocou seu braço em volta dela.
—... e eu não tinha certeza se acreditava na carta ou não. Era tão incrível, mas eu não podia tirá-la da cabeça, e então quando chegamos aqui...
Ela contou como achara o túmulo de sua mãe, e encontrara um jovem padre que não a conhecera, mas que se lembrava da história. Ele acreditava que o órfão fora dado a uma mulher estéril — uma boa mulher, verdadeira filha da igreja.
— Mas o marido dela morreu e ela foi viver com seu irmão, que odiava o menininho. E então ela morreu, e seu irmão simplesmente foi embora e o abandonou.
Lágrimas brilhavam nas pestanas de Tallie.
— Deixou um garotinho de somente sete anos sozinho.
— O menininho morreu?
— Não, não que ninguém o saiba. — Ela o fitou em desespero. — Oh, Magnus, aparentemente há crianças vivendo selvagens nas montanhas desde a guerra, por que ninguém as acolhe. É terrível demais. Eu gostaria de poder fazer algo. Eu queria tanto ficar e procurar meu irmão.
— Nós temos que ir, querida. Você sabe disso. — Ela ficou calada.
— Se não por nossa própria segurança, então por esta criança. — Ele colocou sua mão em seu ventre e sentiu a onda de alegria, agora familiar e também de terror. Tanto quanto podia se lembrar, desde que fora um menininho, sempre se sentira só. Sozinho em um mundo deserto e frio.
Mas agora, havia duas pessoas que lhe pertenciam, duas pessoas de quem cuidar — e a quem proteger. Nunca sonhara que isso lhe aconteceria, nunca sonhara ser tão feliz. E tão grato.
Meia hora depois chegaram John Black, e alguns momentos mais tarde Monique, com um belo jovem sobrinho com ela. Depois, o resto dos sobrinhos se esgueirou sob a cobertura da escuridão, carregando bagagens e trazendo as mulas.
Eles partiram à luz do luar, em direção às montanhas.
— O capitão disse que chegaremos à Inglaterra amanhã — anunciou Magnus.
Tallie assentiu, mas não respondeu.
— Está uma noite gloriosa, não? — disse ele, olhando para as ondas agitadas pela lua.
— Mmm — assentiu sua mulher. O braço de Magnus a abraçava protetoramente, apoiando-a no balanço leve do navio. Eles haviam conseguido.
— Olhe, ali há traços de brilho de fogo na água — ele apontou e disse.
— Sim.
— São causados pelo movimento do navio. Você está vendo as borbulhas luminosas em nosso rastro?
— Sim — murmurou ela — muito bonito.
— E todas as estrelas estão no céu, tão claras e brilhantes. Quase tão claras como eram nas montanhas... mas não tão próximas. Eu penso que nunca estivemos tão próximos das estrelas quanto quando estávamos nas montanhas. Você se lembra quando disse que era como se você verdadeiramente pudesse estender as mãos e tocá-las?
Tallie suspirou.
— É difícil acreditar que tanto tempo passou... Algumas vezes parece uma semana ou um pouco mais, e outras... toda uma vida.
— Só se passaram dois meses — murmurou Magnus.
— Mas parece menos, não?
Magnus enfiou a mão livre sob seu manto, colocando-a na curva arredondada de sua barriga.
— Parece mais, para mim. — Tallie sorriu e encostou sua cabeça nele. — Você se comportou magnificamente, minha querida. — Magnus puxou-a para mais perto. Houve momentos em que pensara que não voltaria para casa.
A viagem fora muito mais longa que o previsto, e muito mais árdua, pois quando atingiram a fronteira Suíça descobriram que Napoleão invadira aquele país também. Dirigiram-se para a Lombardia, e depois em direção à fronteira austríaca. Precisaram fugir da estrada e se esconder dos soldados.
Uma vez passada a fronteira, dirigiram-se a Viena. De lá viajaram até Praga, depois para Dresden, e então para Berlim. De Berlim foram para a costa, e finalmente, em Husum, em Schleswig-Holstein, conseguiram assegurar uma passagem no navio Lark, apinhado de outros fugitivos — não somente ingleses, mas outros hostis às conquistas de Napoleão.
Eles embarcaram no navio com grande alívio, somente para passar as duas semanas seguintes ancorados, esperando pelo vento favorável. Mas agora, finalmente, após seis dias e seis noites de viagem, a Inglaterra estava à frente.
— Você se tornou uma navegante muito melhor, não? — Magnus estava determinado a animá-la.
— Eu penso que tem algo a ver com minha gravidez.
— Não está gostando desta linda noite, minha querida? Está com frio? Gostaria de voltar à sua cabine?
— Não, absolutamente. Você tem razão, meu amor. É uma noite linda — disse Tallie, tristemente.
No deque estavam amarrados com cordas à sua frente, protegidos em oleados, todos os papéis importantes a bordo — passaportes, regimentos, cartas e despachos. O capitão do Lark ordenara que fossem guardados a céu aberto, prontos a serem lançados no mar, caso o navio fosse abordado pelos franceses. Não era uma ameaça vaga, por que por dois dias o barco fora perseguido por cruzadores franceses. Na terceira noite, o Lark conseguira escapar.
E assim ela estava segura... mas seu irmãozinho ainda permanecia em perigo. Um menininho mau e feliz... sozinho nas montanhas. Ela esperava que houvesse muitas maçãs para que ele roubasse... mas o inverno estava chegando.
— Oh, eu espero que ele esteja bem.
Magnus franziu a testa. Ele sabia bem quem ele era. Ela falara sobre ele quase todos os dias desde quando deixaram a casa de Carlotta, assim mesmo — deprimida — indicando o quão constantemente ele estava em seus pensamentos. Ele desejava poder fazer algo, mas não sabia o quê.
— Sem dúvida um dos parentes de Carlotta o achará — disse ele, animando-a. — Eles aparecem nos locais mais inesperados.
Ele inclinou sua cabeça em direção ao casal em pé perto do parapeito na curvatura do navio — Monique e Gino, o belo sobrinho que os seguira até a Suíça e depois até a Áustria. Finalmente, em Berlim, convencera Monique a se casar com ele.
— Eu espero não ser obrigado a fornecer casa e trabalho para todos os parentes de Carlotta — murmurou Magnus, brincalhão. — Eu duvido que d’Arenville Hall seja suficientemente grande para todos eles.
Era quase um anticlímax desembarcar na cidadezinha plácida inglesa de Southwold, com sua pequena esquadra de barcos a vela, e sua fileira de cabines para banhistas arrumadas ao longo da praia.
Eles encontraram uma estalagem, e Magnus e Tallie entraram enquanto John Black foi contratar um coche e cavalos. O cheiro de pão fresco e carne assada informou-lhes que o jantar estava quase pronto.
— Está cheirando muito bem, não, minha querida? Um verdadeiro prazer, após toda esta comida estrangeira e nossas recentes rações de porco em conserva e biscoitos de navio.
Tallie deu-lhe um olhar de simples repreensão.
— Ao menos nós temos o bastante para comer. Nunca estivemos em perigo de morrer de fome.
Magnus rangeu os dentes. Não era sua culpa se não puderam ficar para procurar seu irmão, droga! E ele estava ficando cheio de se sentir culpado por isso. Ele precisava proteger sua mulher — e o filho que ainda não nascera! O que ela esperava que fizesse?
— Você não pode impedir seu irmão de morrer de fome ao morrer de fome também — disse, áspero.
— Oh, sim, eu sei bem disso! — retorquiu ela, subitamente zangada com a maneira pela qual ele tentava impedi-la de falar sobre seu irmão. — Uma criança mais importante: seu filho, o herdeiro do grande nome d’Arenville. Não algum pobre pequeno perdido, um bastardo meio-estrangeiro — Ela parou, colocando a mão sobre a boca, horrorizada pelo que lhe escapara subitamente.
— Um bastardo? Seu irmão é um bastardo? Ele só é um meio irmão, então?
— Não, ele é meu irmão! — insistiu ela, zangada. — Eu não me importo com o que mamãe possa ter feito, ou quem possa ter sido seu pai. Eu não dou a mínima para o que qualquer um diga, ele é meu irmão.
— Mas...
Ela empurrou a cadeira para longe da mesa e disse amargamente:
— Eu planejava nunca lhe dizer. Eu sabia como seria. A nobre família d’Arenville nunca poderá ser maculada por alguém como ele. Oh, não se importe em negá-lo, Magnus, eu posso ver na expressão do seu rosto o que você pensa. É por isso que eu nunca lhe disse porque era tão importante eu encontrar o túmulo de minha mãe, porque eu fui para as montanhas para procurá-lo sem a sua permissão.
— Eu não fui responsável por esta maldita guerra ter estourado novamente!
— Eu sei disso! Mas mesmo sem isso, você não me teria levado às montanhas para procurá-lo, teria?
— Não, provavelmente eu não teria permitido minha esposa grávida arrastar-se para todo lugar nas montanhas em uma busca infrutífera...
— Você o teria considerado um embaraço, não? — Ele assentiu com a cabeça.
— Eu pensei isso. Você o teria enviado para longe, para ficar escondido aos olhos do mundo, não? Colocado-o longe, em uma fazenda, com um arrendatário; quanto mais obscuro e distante melhor, sem dúvida. E você se pergunta por que eu não lhe disse.
Ela parecia ter tudo resolvido, pensou ele, entorpecido.
Ela bateu com o punho na mesa.
— Bem, não vou aceitar isso. Você está me ouvindo, Magnus? Assim que esta guerra terrível acabar, vou voltar lá, e eu mesma o procurarei até achá-lo. Você entende? E eu o trarei para casa e nós seremos uma família. Eu o amo, Magnus, mas se você não gostar disso, você pode... você pode me repudiar! — ela se debulhou em lágrimas e fugiu da sala.
Magnus ficou sentado ali, imóvel, o rosto rígido e duro. Então, era o que pensava dele, não? Que ele ficaria tão chocado com um meio-irmão bastardo... um meio-irmão bastardo desconhecido que significava mais para ela que... e que ele dava mais valor a seu nome de família que...
Você pode me repudiar. A escolha que ela esperava que fizesse. Sim, sua notícia fora surpresa para ele. Quem não ficaria chocado? Mas ele não dissera nada...
Ela ainda dizia amá-lo. Ele ainda achava a idéia aterrorizadora... mesmo se viera a depender completamente dela para sua felicidade. Felicidade. Seis meses atrás a felicidade fora um conceito estranho para Lorde d’Arenville de Arenville Hall. Como o amor...
Mas agora ele a amava.
E não podia dizê-lo com palavras.
Ela não acreditaria de nenhum modo, ele concluiu. Não depois do que acabara de revelar. Ela pensava que ele era um homem orgulhoso e frio que só se importava com seu nome de família. Sua leitura de seu caráter o chocara, o ferira... Porque havia um elemento de verdade... Ela esperara que ele repudiasse seu meio-irmão bastardo, e que a forçasse a fazer o mesmo. Seis meses atrás, antes de tê-la encontrado, ele poderia tê-lo feito. Há seis meses ele teria esperado que uma mulher sua não mais reconhecesse um meio-irmão bastardo nascido no estrangeiro, tanto quanto andasse nua na St. Jame’s Street. Mas isso fora há seis meses.
Muita coisa mudara em seis meses — principalmente lorde d’Arenville. Magnus esvaziou a caneca de cerveja ao seu lado e pediu outra. Ele sabia o que precisava fazer.
— Este é d’Arenville Hall? — Tallie olhou para fora da janela da carruagem, observando o edifício imponente com alguma agitação. Era enorme. Uma grande construção cinza, pesada, com pedras esculpidas e antigas. Tallie piscou. Ela não podia se imaginar dona de tão impressionante. E também um garotinho criado por camponeses italianos...
— E... é muito grande — disse, finalmente, dando um rápido olhar para ele. Ele ainda tinha... esta expressão de pedra no rosto.
Ele parecia profundamente ofendido por seu desejo de oferecer um lar ao seu irmão. Tallie ficava contrariada ao pensar nisso, e estava desesperada com sua frieza para com ela, mas decidira não se entregar a este sentimento.
Era sua culpa, ela sabia. Ela o contrariara com seu desafio, e ele a estava punindo com seus modos rígidos e formais. Tomara que compartilhassem mais uma vez da mesma cama. Suas diferenças tinham mais chances de serem acertadas ali, segundo sua experiência...
Tallie suspirou. Fazia tanto tempo... Tivera que compartilhar sua cabine no barco com três outras damas. Ela sentia falta dele em sua cama... sentia falta do conforto de acordar durante a noite, sentindo seu corpo quente ao seu lado, ouvindo sua respiração profunda e regular. Sentia-se sozinha na cama sem ele.
A carruagem entrou no caminho curvo de pedriscos, e uma fileira de criados brotou da casa e se alinhou.
— O nome do mordomo é Harris, e Mrs. Cobb é a governanta da casa. Eles receberão ordens suas — disse Magnus sério. Ele se adiantou solenemente, apresentando este ou aquele criado. Tudo era terrivelmente formal, Tallie pensou, enquanto recebia outra reverência. Ela dirigiu-se ao enorme hall de mármore. Seus passos ecoaram e ela tremeu.
— Você está com frio? — Magnus perguntou com solicitude gélida. — Harris, por favor, mostre a lady d’Arenville o Quarto Marrom. Eu presumo que você já acendeu o fogo?
— Sim, é claro, milorde. Por aqui, milady.
Tallie foi levada até o Quarto Marrom. Era enorme e sombrio, pois as janelas estavam cobertas com pesadas cortinas de veludo marrom. O quarto estava empilhado com peças de mobília grande, ornada, pesada. Tallie franziu o nariz. Tudo decorado no mesmo marrom escuro horrível. Esta era sua nova casa, e ela precisava se acostumar com isso. Além disso, tinha barreiras a superar com seu marido.
Alguns minutos mais tarde Magnus entrou, seguido por Mrs. Cobb, a governanta.
— Você está aquecida, agora? — perguntou. Tallie assentiu.
— Então Mrs. Cobb vai lhe mostrar o seu quarto. Você, com certeza, gostará de descansar. Eu pedi que levassem o seu jantar para cima — informou-a.
Não, Tallie queria gritar, eu não quero descansar, quero que você me mostre o resto de sua casa e me apresente seus lugares favoritos. Quero que me conte histórias de quando era um garotinho crescendo aqui, para que eu possa aprender a amar este mausoléu.
Mas não. Era claramente um aposento feminino, espalhafatoso, caro e elegante. As cadeiras eram pequenas, chiques, os pés como flautas delicadas e retorcidas. As janelas e a cama eram pintadas de branco e drapejadas com seda dourada. Grandes espelhos de moldura dourada estavam em todas as paredes. Tapetes brancos de pelúcia espalhavam-se pelo chão. Talhe odiou o quarto à primeira vista. Não poderia se sentir à vontade dormindo ali.
— De quem era este quarto? — perguntou a Mrs. CoTbb, como tentativa.
— Da mãe de Sua Excelência, milady.
— Oh! — disse ela. Magnus nunca lhe falara de sua mãe. Talvez achasse doloroso demais falar dela. Era difícil perder alguém que se ama realmente, e uma mãe era, especial.
— Como era ela?
— Não posso dizer, senhora. É melhor não perguntar muito sobre o passado. Somente uma lady d’ArenvilBe é importante agora. É melhor a senhora esquecer sobre o que já passou e continuar com sua vida, se me desculpa, milady. — Ela olhou detalhadamente para a cintura de Tallie.
— Espero que a senhora não me ache impertinente, milady, mas a senhora estaria esperando um acontecimento interessante em um futuro não muito distante?
— A senhora está falando do bebê?
Mrs. Cobb sorriu e assentiu com a cabeça.
— Eu bem que pensei. Boas notícias para d’Arenville, milady. Sua Excelência está feliz, eu espero. Posso contar aos outros criados?
— Não vejo por que não. Logo eles serão capazes de notar por si mesmos. Eu estou engordando tanto!
— Engordando? Besteira! Está vicejando! Uma alegria de se ver.
Mrs. Cobb assentiu com a cabeça novamente.
— Boas notícias que nos traz, pode ter certeza. Já faz tempo demais que não temos uma criança em d’Arenville.
— A senhora estava aqui quando M... lorde d’Arenville era um menino? — perguntou Tallie, ansiosa.
— Não realmente — disse Mrs. Cobb. — Só estou aqui há vinte anos, desde a festa de São Miguel.
— Vinte anos? Mas meu marido só tem vinte e nove. A senhora deve tê-lo conhecido quando era criança.
— Ele já havia partido para a escola quando eu cheguei.
Mandado para a escola com seis ou sete anos, o pobre garotinho, pensou Tallie. Ela tocou o ventre de maneira protetora. Aquela criança não seria enviada para a escola tão jovem.
— Mas nas férias...
— Eles não o convidavam freqüentemente para casa nas férias.
Convidado para casa? Como se fosse um hóspede?
— Não o convidavam para casa nas férias? — repetiu Tallie, horrorizada. — Mas por que não?
— A senhora nunca ouviu isso de mim, por favor, mas os criados do hall diziam que sua mãe não o podia suportar. E a palavra de sua mãe era lei para o lorde. Apesar de seus modos imorais.
Tallie quase não conseguia acreditar em seus ouvidos. Sua mãe não o suportava? E, por isso, Magnus não era freqüentemente convidado para sua casa nas férias? Ela nunca ouvira algo tão chocantemente egoísta e insensível em sua vida. Oh, com certeza Tallie passara a própria infância em uma escola, mas isso porque seus pais estavam sempre viajando, não porque não a suportassem. Ela tinha um pacote de cartas de sua mãe, amarrado com um laço, para prová-lo. Mas pobre Magnus. Pobre garotinho. Que tipo de mulher podia fazer isso com seu próprio filho?
Uma mulher terrível e cruel, e Tallie sabia que não poderia dormir nem um minuto sob seu vil dossel.
— Eu não dormirei aqui — disse, com decisão. — Por favor, encontre outro quarto.
— Mas o lorde disse...
— Pode informar ao lorde que eu não quis dormir no antigo quarto de sua mãe.
Tallie olhou em volta da sala de café da manhã com surpresa. Voltou-se para o mordomo.
— Lorde d’Arenville ainda não desceu?
— Sim, milady, ele quebrou seu jejum cedo. — Tallie sentou-se, sentindo-se bastante desesperada.
Era por sua própria culpa — ficara acordada na noite anterior, esperando que viesse até ela, e depois dormira demais de manhã.
— Eu suponho que o possa ver mais tarde, então.
— Ele tinha negócios urgentes esperando-o, milady. — No dia anterior Magnus tornara claro que desejava que ela tomasse as rédeas como dona do lugar. Graças ao hábito de delegação de Laetitia, ela não era totalmente inexperiente na arte de dirigir uma casa. Mas esta era, ao mesmo tempo, maior e muito mais nobre do que qualquer coisa que já tivesse visto antes.
Tallie olhou em volta da sala de café da manhã com um olhar crítico. Tinha uma vista bonita, aberta para o leste, recebendo a luz da manhã. E as janelas teriam deixado entrar bastante luz do sol se não tivessem, como todas as outras janelas ali, sido emolduradas com panos pesados. Tudo era tão sombrio.
Ela se perguntou como Magnus reagiria se ela pedisse sua permissão para fazer algumas mudanças. Sabia que homens não gostam de mudanças em suas casas. Apenas pediria a Mrs. Cobb que a guiasse em uma visita pelo Hall.
Ao fim do dia, Talhe estava cansada e empoeirada, mas vagamente satisfeita. Passara pelas despensas, pelas prensas de linho e pelos depósitos, e examinara a casa do sótão até o porão. Várias das suas sugestões e tentativas foram completamente aprovadas por Mrs. Cobb, e ela agora se sentia mais confiante em relação a discutir as mudanças na casa com Magnus. Faltava menos do que meia hora para o jantar, então ela correu para cima para se banhar e mudar de vestido. Magnus a vira amarrotada e suja o suficiente, e não parecera se importar, mas isso fora durante a viagem. Agora era diferente. Naquela noite jantariam em casa, juntos, pela primeira vez em sua vida de casados, e ela queria ter a melhor aparência possível.
Ela correu com seus preparativos e sentou-se impaciente em frente ao espelho enquanto Monique fazia seu cabelo, observando atentamente seu reflexo, esperando que sua aparência agradasse a Magnus.
Finalmente escolhera um vestido comprado por ele em Viena. Ficara um pouco usado durante a viagem, mas agora, em uma grande casa e com o cuidado de lavadeiras hábeis, parecia novo. O tecido era fino e delicado. Ele se prendia a seus seios e girava em torno de seus quadris. Parecia muito com o seu vestido de chá dourado de Paris, que Magnus arruinara tão dramaticamente.
Seus olhos encheram-se de lágrimas de reminiscência quando se lembrou de como ele a tomara nos braços e subira os degraus dois a dois. Será que este vestido também causaria uma noite de paixão surpreendente e esplêndida? Tallie fitou o vestido no espelho. Estava contando com esta reação naquela noite. Era a única maneira em que podia pensar, para quebrar a barreira gélida que se erguera entre eles. Falar não adiantaria, pois estava determinada a não ceder a ele, assim como imaginava que não cedesse a ela. Não, esta era a única maneira. E, talvez, então ele fosse capaz de perdoar sua intransigência.
Ela não tinha a intenção de ser mandada para seu quarto naquela noite, sozinha com uma bandeja de jantar, como uma criança malvada, para pensar sobre seus pecados. Não, seu marido podia estar descontente com seu desafio sobre o caso de seu irmão, mas ela tinha toda a intenção de seduzi-lo novamente.
Seu negócio urgente, fosse qual fosse, o mantivera longe de casa durante todo o dia. Ela imaginara seu primeiro dia em d’Arenville Hall — Magnus lhe mostraria tudo, contando-lhe histórias sobre isso e aquilo enquanto a apresentaria à sua nova casa, seu braço no dele, ou, melhor ainda, o braço dele a sua volta. Mrs. Cobb lhe mostrara a casa naquele dia, e não Magnus, mas Tallie estava determinada a que ele lhe mostrasse o resto. E, então, talvez ela conseguisse entender o homem que amava — descobrindo o menino e o que o tornara homem que era.
A pálida jovem princesa desceu vagarosamente a escada de mármore curvo. Seu vestido encantado de seda prendia-se à sua forma, sussurrando docemente a cada movimento. Abaixo dela, uma estátua de um lindo príncipe moreno a esperava, as feições de mármore frias e imóveis, os olhos cegos e inflexíveis, vítima de maldição de uma malvada bruxa de gelo.
A princesa chegou mais perto. A cada sussurro do vestido mágico, a cada centelha da luz dourada da vela, a estátua parecia se aquecer. Os olhos faiscavam e escureciam-se de um cinza gelado pálido para a cor do mar em tempestade. A cegueira saía dele e o mármore derretia, transformando-se em carne. Vagarosamente ele se moveu em sua direção, primeiro um passo, depois outro, depois saltava escada acima para ela.
— Tallie, meu maior amor, perdoe minha frieza. Eu preciso de seu calor, de seu amor.
E sua boca cobria a dela, e a maldição era quebrada...
Mas Magnus não estava esperando por ela ao pé da escada. Havia somente Harris, o mordomo. Magnus já deveria estar na sala de jantar. Ela estava um pouco atrasada por ter se preocupado demais com sua aparência. Ele deveria ter ficado impaciente.
— Boa noite, Harris. — Tallie sorriu. — Eu estou ansiosa pelo jantar. Os aromas vindos da cozinha mais cedo estavam deliciosos.
Ela correu para a sala de jantar.
— Milady — murmurou Harris.
— Meu marido não vem se juntar a mim?
— Eu lhe disse nesta manhã, milady, ele partiu para tratar de negócios urgentes.
— Mas seus negócios não podem demorar a noite toda, com certeza — disse ela. — Lorde d´Arenville precisa comer, não?
— Milord deixou d’ Arenville nesta manhã. Ele não disse quando retornaria.
— Deixou d’Arenville? — Tallie fitou o mordomo, partiu? Partiu para onde?
— A senhora não sabia, milady? — Tallie tentou um sorriso.
— Sim, claro que sabia, mas não que ele pretendia partir hoje. Eu pensei que ele ia... — Sentiu os lábios tremerem. — Um mal-entendido tolo, é tudo — murmurou, e abaixou a cabeça, como se estivesse fazendo uma prece silenciosa.
Para onde fora? E por quanto tempo? Todo o dia e a noite, obviamente. Mas sem uma palavra para ela?
Houve um curto silêncio. Ela se perguntava se Harris podia ouvir seu coração batendo. Parecia terrivelmente alto para ela.
Após um certo tempo, ele pigarreou e disse:
— Lorde d’ Arenville deixou uma carta para a senhora, milady. A senhora não recebeu?
— Uma carta?
— Sim, milady. Eu vou buscá-la imediatamente. — disse Harris, saindo rápido da sala. Ele voltou com a carta.
Ela abriu o envelope e começou a ler.
Minha querida lady d’Arenville: Lady d’Arenville. Não Tallie. Seu coração se abateu.
Você estava completamente adormecida quando fui ao seu quarto e não quis perturbar seu sono. Eu sei o quanto você precisa dele.
Não tanto quanto precisava de Magnus. Por que não poderia tê-la acordado?
Eu tenho negócios importantes a tratar e preciso partir para Londres logo de manhã. Não sei quando voltarei, mas tenha certeza de que o farei assim que meus negócios o permitirem.
Você terá muito com que se ocupar, mudando-se para o Hall e preparando os aposentos do bebê. Eu vi que você não dormiu no quarto designado a você. Tem minha total permissão para fazer quaisquer mudanças que desejar e gastar qualquer quantia que achar necessária
Além disso, você precisará encomendar um novo guarda-roupa.
Tallie olhou para seu vestido de chá dourado. E estava ficando um pouquinho apertado. Sim, ela supunha que precisaria de um novo guarda-roupa...
Você não sentirá falta de conselho ou de apoio masculino durante minha ausência, pois eu ofereci ao meu amigo mais antigo, Freddie Winstanley, morada em d’Arenville, e ele se mudou para o vicariato no mês passado.
Será que era uma opinião sobre seu gosto quanto a pessoas, ou uma ordem para que gostasse de seus amigos? Era difícil saber. Mas por que ele não estava ali para lhos apresentar? Quanto tempo pretendia ficar longe?
Eu farei todo o possível para voltar antes de você ter tido a criança, mas se não, meus pensamentos estarão com você.
Cuide-se, minha querida.
Seu marido afetuoso,
Ela só podia adivinhar o rabisco no pé da página — d’Arenville.
Ela percebeu Harris tirando o prato de sopa fria. Ele trouxe um prato de carne assada, fresca e quente, mas ela olhou-a e a empurrou para longe. Sentia-se doente.
Farei todo o possível para voltar antes de você ter a criança, mas se não, meus pensamentos estarão com você.
Harris tirou o segundo prato intocado e voltou com Mrs. Cobb e Monique. Tallie estava vagamente consciente de sussurros atrás dela, mas não podia tomar consciência de nada... nada exceto do fato de que Magnus a trouxera a d’Arenville Hall, e a deixara exatamente na manhã seguinte. Deixando uma carta fria e formal explicando que ele possivelmente poderia encontrar tempo de voltar depois que o seu herdeiro tivesse nascido.
Era como se ela o ouvisse novamente falar com Laetitia meses atrás... Ele queria uma mulher simples que ele engravidaria, e que moraria no campo... Mas ele não podia simplesmente tê-la deixado.
Um novo pensamento lhe ocorreu. Talvez sua frieza em relação a ela após suas diferenças de opinião sobre o seu irmãozinho fosse fingida... ou ao menos exagerada. Talvez mesmo então ele estivesse se preparando para deixá-la... sozinha...
— Milady — disse Monique ao seu lado. — A senhora está bem?
Tallie não respondeu.
— Sentindo-se um pouco mal, a pobre criancinha — disse Mrs. Cobb asperamente. Ela pegou o guardanapo de linho e gentilmente limpou o rosto com ele, que voltou molhado, e Tallie fitou-o, incrédula e confusa. Levou uma mão trêmula à face e encontrou lágrimas.
— Eu quero ir para a cama, por favor. Não me sinto muito bem.
Com as pernas bambas, ela se dirigiu à escada que descera tão cheia de esperança há apenas pouco tempo atrás. Ela pairava à sua frente agora, uma subida quase impossível. Obstinadamente ela deu um passo, depois outro, depois ainda outro.
— Tallie, minha querida, perdoe-me por chegar sem avisar...
Rapidamente ela se sentou, discretamente limpando seus olhos antes de voltar o rosto para a mulher do pastor, Janey Winstanley, que se tornara uma boa amiga nos meses precedentes.
Janey estancou no meio da frase. Sua expressão se fechou com preocupação quando ela viu o rosto desanimado de Tallie e seus olhos vermelhos.
— Oh, minha querida.
— Todas estas malditas mudanças na casa soltaram tanta poeira...
— Vou pedir chá e vamos tomá-lo na nova Sala Azul? Eu estou ansiosa por sua opinião.
Janey se deixou levar, um espasmo de perturbação em seu rosto. Ficou na porta, admirando a sala recentemente redecorada.
— Eu não acredito na mudança que você trouxe a esta casa, Tallie — disse. — Eu nunca gostei... quero dizer, esta casa sempre foi magnífica e impressionante, mas...
— Eu também não gostava dela.
— Me perdoe, eu não queria ser grosseira. Mas você fez uma diferença tão grande... Está tão leve e., tão agradável e acolhedora. Como você conseguiu, em suas condições?
— Não foi difícil. Meu marido me deu carta branca para fazer como eu quisesse com a casa, e tudo o que precisei fazer foi decidir as mudanças necessárias.
Tallie explicou o que conseguira, um pouco embaraçada por receber louvor por algo feito em um golpe de raiva. Durante o primeiro choque do abandono de Magnus, ela culpara a própria casa por sua infelicidade — a casa onde o menino Magnus não fora bem-vindo, onde o homem Magnus podia jogar sua mulher indesejada.
Se ele tivesse tido uma casa em vez de um hall de exposições antigo, Magnus talvez pudesse ter sido um homem diferente, um homem que se deixasse cuidar, mesmo que só um pouco, por sua mulher. Poderia não ser um lar para Magnus, mas ela estava determinada a que se tornasse um para seus filhos. E para ela mesma.
— Eu não consigo acreditar no que você fez — acrescentou Janey.
Tallie olhou para sua nova amiga com uma débil agitação. Fizera o que se propusera a fazer — tornar a infância de Magnus irreconhecível.
— Você transformou um mausoléu em um lar. — Tallie sorriu educadamente, mas sabia que as palavras de Janey não eram verdade. A casa estava mais agradável, mas ainda não era um lar. Um lar precisava de amor para aquecê-lo... e filhos. Ela colocou a mão sobre o ventre.
— Não falta muito mais, querida. Você... você tem alguma notícia de seu marido?
Tallie esfregou a mão sobre sua barriga inchada e fitou o jardim lá fora. Voltou-se para sua companheira e deu um sorriso brilhante, mas sem grande convicção.
— Oh, não. Mas ele está extremamente ocupado.
— Todos estes meses?
— Bem, homens não gostam de escrever cartas, eu acho. Em todo caso, dizem que nenhuma notícia significa boas notícias.
— Eu sinto muito entristecê-la. Só que não suporto vê-la tão infeliz.
— Infeliz? — disse Tallie, com voz trêmula. — Como poderia ser infeliz? Tenho uma casa linda, um lar seguro, dinheiro para gastar como quiser...
— Como se...
— Mas eu lhe expliquei antes, Janey. Eu sabia o que fazia quando me casei com Magnus. Eu sabia que ele planejava isso, que ele planejava me deixar aqui assim que ficasse grávida.
— É tão cruelmente injusto...
— Não! É tudo minha culpa. É que somente... eu tenho a tendência tola de me permitir estes devaneios bobos e infantis, e em minha tolice eu interpretei algo mais no comportamento de Magnus para comigo, é só. Mas ele nunca disse nada para me fazer acreditar que ele., ele me am... Ele nunca mentiu para mim. Só que eu entendi mal... ele... ele é tão educado... este é o problema. — Tallie assoou o nariz. — Esta poeira é chocante, não?
— Você sabe que não precisa enfrentar isso sozinha, querida. Eu vou...
— É muita bondade sua, mas eu não estarei sozinha, Janey. Meu marido disse que virá, se puder. Este filho representa muito para ele, sabe. — Tallie acrescentou, melancólica.— Ele precisa de um herdeiro. Os d’ Arenville são uma família terrivelmente antiga.
— Bem, em todo caso, tenha certeza de me avisar quando sentir a mínima dor.
— Ainda falta muito tempo. Monique disse que ainda há muitas semanas — disse Tallie. Pobre Monique, pensou Tallie. Ela também fora infeliz no amor.
— Uumm... Freddie escreveu para Magnus, sabia?
— Freddie sabe onde ele está? — Tallie fitou-a. Janey balançou a cabeça, arrependida.
— Não, ele mandou a carta para que os advogados de Magnus a entregassem. Era somente... somente sobre assuntos da paróquia — mentiu.
— Oh. Assuntos da paróquia. Claro.
— Eu preciso ir agora — disse Janey. — Sinto muito por não poder ficar mais...
— Não, não, claro, você precisa ir. Eu não quero mantê-la longe de seu querido marido e de seus dois lindos filhos. Deve ser maravilhoso... Foi muito bom você me visitar, Janey.
— Cuide-se, minha querida. — disse, e partiu. Cuide-se, minha querida. As últimas palavras de Magnus; suas últimas instruções escritas para ela. Tallie fechou os olhos. Era terrível o quão chorona sua condição a tornava. Passaria logo, disse a si mesma.
Isso e a triste dor pungente de saber que não era absolutamente amada nem valorizada, exceto como égua reprodutora.
Era sua própria culpa. Ele nunca dissera que a amava.
E não era como se ela tivesse algo por que chorar. Outros tinham problemas muito mais sérios — seu irmãozinho, por exemplo...
Tallie arfou subitamente quando um pezinho minúsculo a chutou do lado de dentro... ela deveria parar de remoer o passado e pensar somente no futuro, pois logo teria um bebezinho querido para amar. A dor passaria.
Tallie estava sentada no terraço aproveitando o sol de inverno, envolvida em vários xales, pois fazia frio.
Ela observava distraidamente um coche balançando ao longo da estrada que costeava a propriedade.
Sentou-se ereta quando a carruagem entrou pelo portão. Miles Fairbrother, o porteiro, saiu para falar com o condutor. Abriu o portão e a carruagem passou.
Por um momento terrível, extático, ocorreu a Tallie que poderia ser Magnus, voltando para o nascimento de seu filho, mas o coche era pequeno, fora de moda e gasto, e os cavalos não eram o tipo de animais que ele possuiria.
Tallie levantou-se com dificuldade da cadeira e caminhou, dando a volta na casa, até a frente. Harris também vira os visitantes, pois a porta principal fora escancarada e ele estava ali, esperando.
— Você sabe quem pode ser? — perguntou a ele.
— Não, milady. Nunca vi este coche antes. Espero que Fairbrother saiba o que está fazendo. Será que se importaria em esperar dentro de casa, milady?
— Sim. Eu sei que não é o correto eu esperar aqui assim, mas estou curiosa — respondeu Tallie. — Tenho certeza de que ficará tudo bem.
O coche veio rapidamente pelo caminho e estancou. O condutor, um rufião com a barba por fazer, um casaco riscado e um cachecol vermelho, apeou.
Tallie franziu o rosto. Parecia Gino, mas ele se virou para abaixar os degraus da carruagem e ela não pode mais ver seu rosto.
Tallie ficou olhando. Sentiu um arrepio de tensão e sua garganta se apertou. Um homem alto saiu do velho coche, com a aparência cansada, cabelos escuros e compridos demais e — ela soube sem vê-los — olhos cinzentos.
— Magnus!
Ele deu vários passos em sua direção, depois parou e fitou-a.
Tallie passou uma mão sobre seu ventre, consciente de sua aparência, mas não tirou os olhos de Magnus. Sua pele estava extraordinariamente bronzeada, mas, fora isso, ele parecia exausto. Não se barbeara por vários dias e seus olhos mostravam olheiras escuras. Seu rosto estava mais magro, também, quase esquelético. Um sobretudo esfarrapado envolvia seus ombros. Ele levantou uma mão em um cumprimento desastrado e fraco, e o casaco caiu de seus ombros. Ela notou que seu braço estava em uma espécie de tipóia.
— Magnus, você está machucado!
Magnus estendeu as mãos para trás para puxar alguém e disse algo. Em italiano.
Um rosto pequeno, afilado, não muito limpo apareceu, fazendo cara feia, depois se escondeu novamente atrás de Magnus. Tallie quase não podia respirar. O rosto apareceu novamente, examinando-a cuidadosamente. Tallie não se moveu. Após um momento, ele saiu, um minúsculo garotinho, vestindo roupas grandes demais. Um menino com cabelos marrons, mal cortados, cacheados, castanhos e listrados de sol. Um garotinho com sardas espalhadas sobre a ponta do nariz. Um menino de aproximadamente sete anos.
— Minha querida — disse Magnus — eu trouxe seu irmãozinho para você. Richard, esta é a sua irmã.
— Richard não, Ricardo — o menininho resmungou ferozmente, mas não tirou os olhos de Tallie.
— Claro, Ricardo — disse Tallie, sorrindo através das lágrimas. Ela abriu os braços. O garoto olhou para Magnus, que assentiu com a cabeça. O garotinho dirigiu-se vagarosamente para ela, desconfiado, olhando freqüentemente para trás, para Magnus, como se temendo que ele desaparecesse. A criança permitiu ser abraçada, mantendo-se rígida em seus braços por alguns instantes, como um pequeno e duro bloco de madeira. Pobre rapazinho. Assim que ela afrouxou o abraço, ele se esquivou e correu para Magnus, agarrando firmemente sua manga com a mãozinha suja. Estava claro que seu irmãozinho só confiava em uma pessoa. Magnus colocou uma mão gentil sobre o ombro da criança.
— Ele passou por tempos difíceis, minha querida — disse, docemente. — Não se ressinta com isso.
Tallie assentiu com a cabeça, sorrindo, o coração cheio demais para dizer algo. Lágrimas caíam por suas faces, mas eram lágrimas de alegria, não de pesar.
Magnus, o olhar intenso a penetrando, adiantou-se, pegou um grande lenço e cuidadosamente limpou seu rosto, envolvendo seu queixo com uma mão grande e quente. Ela ficou imóvel, bebendo o seu amado cheiro, o mover carinhoso de suas mãos em sua pele, seu hálito quente e entrecortado em seu rosto.
— Oh, Magnus — ela sussurrou, com voz trêmula, e elevou seu rosto cegamente em direção ao do marido. Com um gemido, ele a apertou contra si e cobriu sua boca com a dele.
Ele a beijou com fome, como se fosse incapaz de obter o suficiente dela, sua língua se movendo avidamente, possessivamente, satisfazendo uma necessidade desesperada, despertando desejos desesperados. Seus beijos queimavam sua boca, seu nariz, sua garganta, suas pálpebras molhadas, sua boca novamente; mantinha-a apertada a ele, pressionando seu corpo contra o dela, lembrando-se, exigindo.
Seus braços envolveram o pescoço do marido, puxando-o para mais perto, e ela se pressionou firmemente contra ele. Correu uma mão por seu cabelo longo e espesso, exultando na sua textura fresca e na amada forma de sua cabeça. Enfiou a outra mão pela abertura de sua camisa, ansiosa por sentir sua pele na dela novamente. Sentiu um golpe agudo.
— Que foi isso? — Magnus recuou subitamente e olhou para ela, chocado.
Tallie pegou a mão de Magnus e a colocou sobre seu ventre.
— Isso foi seu filho.
Ele a fitou, então deu um salto quando sentiu outro pequeno chute. Seus olhos se fixaram por um momento na saliência sob sua mão, depois encontraram os dela em um olhar de confusão maravilhada. O bebê chutou novamente, e Magnus teve outro sobressalto.
— Dói?
— Nem um pouco.
— Oh, Senhor!
Após alguns minutos, Tallie sentiu um movimento ao seu lado e olhou para baixo. Um rostinho sujo a olhava, zangado, e tentava chegar mais perto de Magnus. Gentilmente ela estendeu a mão para incluí-lo em seu abraço. Seu corpo estava rígido e resistente, como o de um animal selvagem, e ele segurava possessivamente a camisa de Magnus. Gentilmente ela tocou seus cabelos.
Tallie começou a acariciar a massa confusa dos cachos de mel, tão parecidos com os seus, e ele a deixou fazê-lo, ainda em alerta como uma criatura pronta a fugir ou a lutar. Ela continuou a acariciar seu cabelo, primeiro levemente, depois mais confiantemente, à medida que o sentia relaxar. Era a última coisa que esperaria fazer com seu irmão, ter de domá-lo como a um gato selvagem. Seu coração sangrava enquanto pensava na vida que ele devia ter levado, a vida que o fizera tão arredio e desconfiado.
Após algum tempo, ela o sentiu se insinuar entre ela e Magnus, e deixou a mão cair, desapontada. Seria preciso tempo para ganhar sua confiança, disse a si mesma. Vagarosamente, sem olhar para ela, ele pegou sua mão e a colocou novamente na cabeça. Tallie sentiu uma onda de alegria e começou a acariciá-lo novamente, sentindo-o se apoiar imperceptivelmente nela para receber suas carícias. Ele estava faminto por amor, observou. Ele não era o único.
— Vamos entrar? — disse Magnus, rouco. Moveu-se para longe, mas ele a puxou, seu braço sadio segurando-a firme ao seu lado. Um corpinho ossudo entocava-se entre eles, e Magnus sorriu e aliviou seu abraço, deixando espaço para o garotinho.
— Já vi que terei que aprender a dividi-la — murmurou.
Tallie sorriu para ele, trêmula.
— Eu também — disse, e então, sem uma nesga da luz da tarde que morria passando entre seus corpos, a pequena família se dirigiu lentamente para a casa.
— Gino e eu tomamos um atalho da rota pela qual nós fugimos — disse Magnus, bebendo um copo de vinho de Borgonha com prazer. — Para a Holanda, depois Westfália etc.
Tallie ouvia em silêncio, os olhos abertos. Viajar por milhas e milhas em território inimigo no meio da guerra, e ainda de noite parecia terrivelmente perigoso, e mesmo assim ele falava de sua jornada como se não fosse nada seu.
— Coma mais carne assada — ela instava com ele.
— Eu acho que o jovem Richard está provando ser o melhor garfo aqui.
O garoto olhou, fazendo uma careta.
— Não Richard: Ricardo!
— Logo ele se acostumará com seu nome inglês — disse Magnus.
— Ricardo — soou um murmúrio.
— E depois, para onde você foi?
— De volta por Veneza e, então, para o Piemonte. Carlotta lhe envia todo o seu amor, aliás.
— Não foi terrivelmente perigoso viajar assim?
— Oh, encontrávamos uma patrulha francesa de vez em quando, mas honestamente, minha querida, se você os visse: mais da metade dos recrutas de Napoleão são garotos imberbes arrancados de suas fazendas. E os oficiais não são cavalheiros, como os nossos. Não havia grande perigo.
Ele estava mentindo, pensou Tallie. Ela ouvira Freddie discutindo sobre a guerra. Poderia haver muitos jovens no exército de Napoleão, mas também havia muitos homens fortes. E se seus oficiais não fossem nobres de nascença, parecia-lhe que eles seriam ainda mais duros com um inglês pego no lugar errado.
— Levou algum tempo, mas afinal o encontrei; e meia dúzia de outros jovens órfãos. — Ele lançou-lhe um olhar estranho.
— Você nunca acreditará em quem estava tomando conta deles, providenciando para que não morressem de fome. Aquele bandido.
— Maguire? — Tallie estava pasmada. E intrigada.
— Difícil de acreditar, mas é verdade. De fato, foi ele quem me levou ao rapazinho... após ter feito um curativo em meu ferimento.
— Maguire tratou de seu ferimento? Ele não o causou, não é?
— Não, foi uma bala francesa. O bandido me arrastou para a segurança.
— Oh, eu sabia que ele era um sujeito nobre!
— Estranho você dizer isso — Magnus falou lentamente. — Ele diz ser da nobreza irlandesa. Bem, todos eles dizem isso, claro. Mas ainda assim, tomava conta deles. Eu o enviei de volta à Irlanda.
— Mas eles não o vão enforcar? Ele disse...
— Eu gostaria de vê-los tentar! Não, eu o contratei como administrador de minhas propriedades irlandesas, pelo resto da vida.
O queixo de Tallie caiu.
— O sujeito pode ser um maldito vilão, mas tem um bom coração — disse Magnus, áspero.
— Sim, é claro, e eu penso que esta foi uma idéia maravilhosa — exclamou Tallie, calorosamente. — E o que você fez com as outras crianças?
— Eles estão sob os melhores cuidados.
— Com quem? Maguire?
— Adivinhe.
Tallie pensou por um momento.
— Carlotta! Claro! Que idéia esplêndida, Magnus.
— Eu a deixei com cinco criancinhas famintas, cozinhando um monte de macarrão e cuidando deles com toda a capacidade de seu coração. Dei-lhe dinheiro, claro, para ajudar com as despesas.
Tallie fitou seu marido, maravilhada. Ainda quase não podia acreditar; não somente seu marido não a abandonara, mas arriscara sua vida mais de cem vezes para que ela pudesse se reunir ao irmão. Seu irmão bastardo, meio estrangeiro... E ele dera a uma viúva sem filhos cinco crianças necessitadas para cuidar. Ele até mesmo tirara Maguire de sua vida de crimes e lhe dera uma posição de respeito em seu país natal.
A própria contemplação de seus atos nobres parecia ser demais para ela. Ela observava o garotinho enquanto ele limpava o molho com um pedaço de pão, depois levantava o prato para lambê-lo. Com o rabo dos olhos ela viu Magnus fechar a cara e abrir a boca. Colocou a mão em seu braço.
— Haverá muito tempo para educá-lo.
A porta se escancarou e Harris entrou, trazendo um bolo, creme e geléia.
— O favorito de milorde — anunciou Harris. — A cozinheira o preparou especialmente para ele.
Tallie fitou seu marido. Parecia tão deliciado quanto Ricardo. Todos estes meses e não desconfiara de que ele tinha um fraco por doces.
Houve uma longa pausa na conversa, enquanto o bolo era tratado com o merecido respeito. Tallie, cujo próprio fraco por doces desaparecera durante a gravidez, observava seu marido e seu irmão comerem com gosto. Ela teve dificuldades em decidir qual dos dois gostou mais.
Seu irmãozinho ainda estava vestido com as roupas fora de tamanho. Haveria tempo suficiente no dia seguinte para encontrar uma vestimenta adequada. Mas ele parecia bem mais limpo no rosto e nas mãos, em todo caso.
Ele se parecia tanto com ela, refletiu. Não poderia haver qualquer dúvida de que eram irmão e irmã. Era um pensamento absolutamente maravilhoso — as pessoas olhariam para eles e saberiam que pertenciam um ao outro. Mas havia um sentimento peculiar, olhar para o outro lado da mesa e ver uma versão em miniatura de si mesma. O mesmo cabelo cacheado em uma dúzia de tons fulvos. O mesmo nariz pontudo e sardento — só que o dele não era arrebitado, como o dela. E os mesmos olhos. Os mesmos olhos! Este pensamento golpeou Tallie como uma bomba. Ricardo e ela tinham os mesmos olhos. E ela tinha os olhos de seu pai. E o cabelo cacheado e raiado de seu pai. E o nariz de seu pai. E assim também Ricardo. Ele era filho de seu pai!
Seu pai estava errado. Aquele era um irmão verdadeiro. Não era um bastardo. Alívio e alegria a encheram.
Ser um bastardo impediria sua aceitação na sociedade, sua chance de fazer um bom casamento, de abrir seu caminho no mundo.
— Magnus! — disse em uma voz baixa e excitada. — Ricardo parece exatamente comigo, não?
— Mas você é mais bonita.
— Obrigada, mas eu sou considerada a imagem de meu pai!
— Então seu pai estava errado. Fico encantado em ouvir isso e saber a verdade.
Ele inclinou-se e ergueu sua mão para beijá-la.
— Notícias excelentes para todos... Por que diabos você tem roído suas unhas novamente? Alguma coisa a tem contrariado? Ou alguém? Diga-me e eu cuidarei do assunto imediatamente. Diga-me, Tallie. Não adianta escondê-lo.
Ele brandia as unhas roídas em seu rosto, e passou o dedo sobre elas.
— Estas já são testemunho suficiente. Se alguém a estiver contrariando eu quero resolver a questão imediatamente. Eu não quero ver você contrariada. Você falou com Freddie sobre isso? Com certeza ele poderia ter resolvido o assunto para você.
Tallie puxou sua mão, sentindo-se bastante irritada. Será que pensava que podia simplesmente desaparecer de sua vida com uma nota fria e formal, e não contrariá-la? Ela arrancou sua mão da dele e se levantou.
— Está na hora de colocar este menino em um banho apropriado e depois na cama — disse.
— Não mude de assunto, mulher — resmungou Magnus com uma voz grave.
— Há hora e lugar para tudo — ela retorquiu —, e para isso também. Agora, Harris, será que você poderia providenciar água quente para o banho de lorde d’Arenville e também para o jovem Mestre Ricardo?
Ricardo olhou, rindo, só reconhecendo seu nome no que ela dissera.
— Si, Ricardo.
Ele deu a Magnus um olhar de triunfo.
— Não Richard — repetiu, e permitiu a Tallie que o pegasse pela mão e o levasse para fora da sala.
— Ele dormiu — disse Magnus, de pé na porta do quarto de Tallie.
Tallie assentiu.
— Bom — sussurrou. E você?, pensou. Onde você vai dormir?
— Você tinha razão; o cãozinho resolveu o problema. Os dois estão juntos, enfiados na cama.
— Boa idéia esta.
— Ummm... eu gosto do que fez com o quarto. — Tallie assentiu novamente. Havia um nó em sua garganta. Simples conversa superficial.
— Como um jardim no fundo do mar — disse ele. — Muito leve e arejado, toda esta musselina verde, não é? Muito bom. Eu pensei em dormir aqui com você esta noite. Você se importa?
Tallie fitou seu marido. Se ela se importava? Será que ele estava totalmente cego quanto a seus sentimentos em relação a ele?
— Eu quero dizer... — disse ele, desajeitado. — Er... eu sei que não podemos... Você não pode... Oh, Inferno! Eu sei que não podemos fazer amor, mas se você não se importar, eu gostaria muito de dormir abraçado a você esta noite.
Se eu não me importar? Ela não conseguia responder, somente balançou a cabeça, muda, e abriu os braços para ele. Ele a alcançou em dois passos e a puxou para dentro dos seus. Sua boca cobriu a dela... Após um momento, ele a levou para a cama e sentou-se. Ficou ali, olhando para ela.
— Houve momentos em que pensei que nunca faria isso de novo, nunca veria... — sua voz falhou e ele a apertou forte contra o peito.
— Eu também — sussurrou ela, esfregando seu rosto contra o queixo recentemente barbeado.
— Você pensou que nunca mais me veria? Mas você não sabia onde eu estava — disse surpreso.
— Não, não sabia.
— Então como...? — Ele franziu o rosto. — Por que, então, você pensou que eu não voltaria? Você não devia saber que eu havia voltado à Itália eu lhe disse claramente que fora a Londres a negócios.
— Eu sei o que você me disse — respondeu ríspida.
— Então...? Você parece zangada.
— Claro que estou zangada! — lançou-lhe. — Como você esperava que me sentisse quando recebi aquela carta?
— Eu não queria preocupá-la, então...
— Não queria me preocupar! Não queria me preocupar! — sua voz se elevou, indignada. — Você me jogou aqui e fugiu de noite como um criminoso, deixando-me uma nota que dizia que tinha negócios importantes e que eu devia continuar com minha vida! Como você esperava que eu me sentisse?
— Você pensou que eu a havia abandonado? — disse, lentamente.
Tallie assentiu com a cabeça.
— Que eu não me importava? — Ela assentiu novamente.
Ele levantou suas mãos, fazendo aparecer totalmente as feias unhas roídas entre seus dedos.
— Então essas... — ele as acariciou com seus polegares grandes e morenos —... são minha culpa.
Tallie não disse nada. Mordeu os lábios.
— Oh, Deus — gemeu Magnus. — Eu nunca pensei que você interpretaria isso assim.
— O que você esperava? — sussurrou ela. — Eu lhe disse que o amava.
— Mas...
— Mas, o quê?
— Mulheres dizem isso o tempo todo — falou Magnus após um momento.
— Bem, sinto muito se você não...
— Não diga nada! — murmurou ele. — Eu ouvi mais “eu te amo” do que posso me lembrar, começando com minha mãe — falou, com uma voz grave e rouca.
Tallie recuou um pouco, olhando-o tristonha.
— Mas eu pensei...
— Somente na frente dos outros, claro. Nestes momentos ela fingia ser louca por mim. Mas quanto ao resto... ela não suportava nem me ver.
— Mas por quê?
— Só Deus sabe. Eu comecei por destruir sua forma; lembro-me desta acusação.
Ele deu de ombros, indiferente, mas Tallie podia sentir as feridas antigas nele. Haviam-no marcado muito profundamente. Ela acariciou sua face.
— Oh, isso agora são águas passadas — disse ele —, mas eu suponho que isso me fez hesitar em... em confiar em uma mulher. Eu conheci muitas — continuou.— Aves do paraíso, prostitutas, este tipo de mulheres. Cada uma delas me disse que me amava. — Deu de ombros novamente. — Sempre quando queriam algo... alguma espécie de bugiganga, normalmente... Apesar de algumas vezes terem feito isso porque me haviam traído e queriam me acalmar com suas mentiras... E então eu me casei com você — disse, docemente, e sua voz mudou. — Eu não o havia planejado. Eu planejara pedir em casamento uma das moças de Laetitia.
— Por que você mudou de idéia? — sussurrou Tallie, se perguntando se ele lhe diria a verdade, como o ouvira falar com Laetitia naquela noite na biblioteca.
— Eu acho que foi o cãozinho. — Tallie recuou para fitá-lo.
— O cãozinho? — sentiu-se vagamente ofendida.
— Eu vi um garotinho cujo cãozinho colocara ambos em apuros. O cãozinho seria sacrificado como castigo pela desobediência da criança.
Tallie suspirou, lembrando-se.
— Eu sabia exatamente como aquele garotinho se sentia. Meu pai sacrificou vários de meus animaizinhos de estimação pela mesma razão. Em nossa família isso se chama “fazer o menino tornar-se um homem” — acrescentou amargamente. — Eu observei aquele menino, sabendo que a dor era inevitável. E, então, do nada, saltou uma jovem leoa defendendo seu filhote.
Tallie encostou-se em seu peito, os olhos mais uma vez molhados ao pensar no menino Magnus.
— Eu queria esta jovem leoa para meus próprios filhos — disse ele, finalmente. — Sabia que era tarde demais para mim, mas eles cresceriam sabendo como era ser... ser... — sua voz fragmentou-se em pedaços secos.
— Ser amado, Magnus. Amado. — Ele assentiu, dominado.
— E eles serão, eu prometo — Tallie sussurrou, colocando ambas as mãos no ventre. — Este já o é. — Ela segurou seu rosto nas mãos. — E você também, Magnus. Não é tarde demais para você, absolutamente. Eu o amo.
Ela fitou seus olhos atormentados e disse docemente:
— Você não tem idéia do quanto eu o amo. Você é tudo com que sonhei, sabe. Eu o amo, Magnus. Mesmo quando estava tão magoada quando você me deixou, e tão zangada com você, eu ainda o amava. Eu acho que sempre o amarei. Não importa se você não me ame também: meu amor é suficiente para nós dois.
— Mas...
— Não diga nada, não importa — disse ela.
— Importa, sim.
— Não.
— Deixe-me terminar... Eu nunca pensei que o casamento fosse assim... eu pensava que podia escolher uma mulher e continuar com minha vida, sem mudanças.
— Queria um herdeiro — assentiu ela.
— Não, não um herdeiro. Filhos. Se nós só tivéssemos uma menininha, eu estaria feliz. Se tivéssemos um bando de menininhas eu ficaria feliz do mesmo jeito.
— Você... você não quer um menino, então?
— Um menino também me faria muito feliz — assegurou-lhe. — Um filho homem, não um herdeiro. Eu quero uma criança. O sexo não importa. Meu pai me batia todas as manhãs, desde os cinco anos — disse ele, asperamente. — Era a maneira tradicional de se assegurar de que os herdeiros d’Arenville se tornassem suficientemente fortes para a posição.
— Mas isso é terrível — arfou ela. — Neste caso, eu estou feliz de que você tenha sido mandado tão cedo para a escola. Isso é absolutamente bárbaro.
Ele sorriu, um sorriso de fria reminiscência que fez Tallie estremecer.
— Oh, ele me mandava bater na escola, também. Todas as manhãs, exatamente às oito horas, exceto aos domingos. Até meu décimo oitavo aniversário.
— Oh, Magnus, isso é...
— Você entende agora porque eu não quero um herdeiro de d’Arenville?
— Eu o amo, Magnus; eu o amo.
Ele a deitou na cama e a beijou, cobrindo seu rosto, pescoço, seu peito com beijos. Segurou gentilmente seus seios.
— Estão maiores — murmurou, beijando-os em profusão. Acariciou seu ventre inchado.
— Eu quero vê-la... toda.
— Mas eu pareço...
— Você está linda, e eu quero vê-la — repetiu, e pegou a bainha de sua camisola. Vagarosamente a levantou, passando pelas pernas longas e esbeltas até os cachos fulvos em sua junção, e por cima do monte macio de seu ventre. Ele a levantou por sobre os seios leitosos e inchados, e os cachos caídos e riscados de mel. Jogou a camisola e se ajoelhou sobre ela. Então, ele somente a olhou, seus olhos se movendo sobre ela, absorvendo cada mudança, cada nuance de seu corpo. A vergonha de Tallie desapareceu.
— Eu o amo, Magnus.
— Eu queria ter estado aqui para ver todas estas mudanças — murmurou ele, acariciando seu corpo.
— Obrigada por me trazer o meu irmão. — Ela se arqueava contra sua mão como um gato. — Eu acho que ainda não o disse antes. Não entendo por que você quis fazê-lo, mas isso me fez muito feliz.
— Eu precisava.
— Precisava? Mas por quê? — Ela se levantou e começou a abrir sua camisa.
— Para... para lhe mostrar.
— Mostrar-me o quê? — suas mãos finalmente desfizeram o laço de sua camisa, e ela começou a desabotoar suas calças. A mão dele a interrompeu.
— Você não vê? — segurou levemente suas mãos. — Eu não poderia dizê-lo... as palavras... não querem dizer nada para mim. Eu não poderia dizê-lo, então eu precisava... mostrar a você.
— Mostrar-me o quê? — disse ela, docemente.
— Que eu... — ele parou. — Droga, você sabe o que estou tentando lhe dizer.
— Não, Magnus, eu não sei.
— Que eu...eu... Oh, droga! Que eu a amo, claro!
— Oh, Magnus! Oh, Magnus! — e se jogou em seus braços.
— Eu sei que não podemos fazer amor neste estágio de sua gravidez, mas... você acha...?
Tallie enrubesceu e assentiu, feliz.
— Eu tenho certeza de que está tudo bem... se você quiser.
— Eu quero. — E abaixou a cabeça para seus cachos.
— Magnus, o que você está...? — ela gemeu. Então, gemeu novamente. E meneou o corpo levemente, em um extático meneio. — Ohhh... Magnus....
Uma dama está sentada, fitando os campos ondulados, verdes e escuros além deles. Sua fronte lisa, pálida e sem sardas está franzida de preocupação.... não, é medo o que ela sente.
Um grito débil e lamentoso faz com que ela a levante como um gamo assustado. Ela coloca a mão no inocente bebê dormindo logo ao seu lado, e sussurra:
— Não temas, minha querida. Nossos bravos e galantes cavaleiros retornarão ilesos da busca.
Meu cavaleiro já esteve em uma busca antes, sabe — uma terrível, longa e perigosa busca — com perigos a cada curva — banditti ousados de olhos verdes, soldados inimigos sem nobreza e lobos ferozes. Mas meu cavaleiro voltou, triunfante e ileso, ou somente um pouquinho ferido — somente um ferimento superficial que se curou muito rapidamente.
O bebê gorgoleja e a dama se inclina para ele.
— Esta foi a busca mais maravilhosa no mundo, sabe, pois ele o fez para conquistar sua dama. Mas a dama já era sua, de coração e alma.
Mas esta busca também era por você, minha querida, você sabia disso? Pois você sabe o que meu bravo e galante cavaleiro trouxe das barbáries dos terríveis Alpés? Ele trouxe seu próprio pequeno cavaleiro, seu tio Ricardo, resgatado da Cidade da Prisão.
A dama volta sua cabeça e fita os bosques à luz que declina. Está ficando tarde e ela deseja que seu cavaleiro volte logo de sua última busca. E quando ele o fizer, correrá para ela com suas pernas longas e belas, e se inclinará e a beijará, dizendo: ”Oh, minha amada, eu voltei para você. Tallie, meu amor mais querido.”
— Tallie, voltamos, coração — disse Magnus.— Você estava dormindo?
— Não, eu...
— Olhe, Tallie, eu peguei três peixes enormes, três! — gritou Ricardo, excitado. — Este daqui logo que joguei o anzol. Magnus não pegou nem mesmo um. Eu... eu peguei tudo! Tudo sozinho. Olhe!
— Como você é inteligente, Ricardo. Agora vamos levá-los imediatamente para a cozinheira.
— Cozinheira! — exclamou ele, desdenhosamente.
— Ela não sabe como fazer o peixe ensopado de Carlotta! Ela só ferve o peixe em água salgada e chama isso de cozinhar. — Ele arfou com desprezo bem italiano. — Gino, ele tem alho e ervas, e óleo e vinho. Gino o fará como eu me lembro, só melhor, diz ele.
— Então leve-os imediatamente para Gino, meu amor, eu lhe suplico.
— Minha sobrinha tem o nome da água, não? Pequena Marina, o bebê da água. — Ele se inclinou sobre ela, e sussurrou algo em italiano, depois anunciou: — Eu lhe ensinarei a pescar e a nadar no ano que vem, quando estiver mais velha.
— Oh, mas... — começou Tallie.
— O que você quiser, Richard, mas leve estes peixes para Gino agora! — interrompeu Magnus.
— Richard não, Ricardo — retorquiu Ricardo automaticamente, e riu para Magnus, atrevido. Mas levou os peixes, assobiando.
Nos seis meses desde que chegara à Inglaterra, se tornara um novo menino, crescendo rapidamente, tornando-se um garoto saudável, alto e magricela. E sem qualquer resquício do medo e da desconfiança que trouxera com ele. Tallie o observou afastar-se, o coração cheio. Sua mãe adotiva devia tê-lo amado, também, ou ele não se teria recuperado tão rapidamente de suas provações. Era seu garoto mau e feliz novamente.
— Eu deveria ter dado este menino aos lobos quando tive a chance de fazê-lo — disse Magnus, asperamente.
— Oh, não, como você pode dizer isso? — disse Tallie, em tom de censura. — O que ele fez para contrariá-lo agora? Oh, eu não posso tolerar seus planos de ensinar Marina a nadar... não é bem apropriado para uma garotinha, mas...
— Ele me impediu de fazer isso — disse, e a beijou. Levantou-a de seu assento e sentou-se novamente, colocando-a no colo. — Eu chego de um dia de pescaria com um tagarela, e encontro minha linda mulher dormindo ao sol. Você estava sonhando com o quê, meu amor?
— Com meu bravo e galante cavaleiro, claro. — Magnus sentou-se ereto, quase derrubando-a de seu colo.
— Que cavaleiro? — disse, agourento. — Eu não sabia que você conhecia algum cavaleiro.
— Meu próprio sir Galahad. Um cavaleiro querido, bravo, maravilhoso, ocasionalmente muito teimoso. Às vezes, eu o chamo de Magnus.
Ela ergueu sua boca, e ele a devorou de um modo que fez todo seu corpo se arrepiar de prazer.
— Tenho notícias para você, meu amor — disse Magnus, após algum tempo. — Podem ser um choque.
— O que é? — Ela perscrutou seu rosto, ansiosa.
— Eu não sou seu cavaleiro, sabia?
— Sim, você é o meu cavaleiro — ela o tranqüilizou.
— Não sou — ele gemeu, os olhos dançando maliciosamente. — Eu sou seu conde.
E cobriu a boca de Tallie com a sua.
Anne Gracie
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