Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
"GRAAL"
Volume I
O CAVALEIRO SEM NOME
O "Cavaleiro sem Nome" é o primeiro volume da série "Graal", de Christian de Montella, que reconta ao leitor de todas as idades a fascinante lenda de Lancelot. Somos apresentados a um menino órfão, filho de um rei que morreu de desgosto, que se tornará um dos mais enigmáticos e heróicos cavaleiros do Rei Arthur. Ele é criado nos domínios da fada Vivian, que o educa como um perfeito cavaleiro e só o chama de A Criança. Um dia, segundo a profecia de Merlin, partirá ele em busca do Graal e finalmente descobrirá o próprio nome. Passará por provações, vencerá inimigos, monstros e sortilégios. Porém, no caminho, encontrará Morgana, a mais temível das vilãs. E será apresentado a um sentimento ao qual não conseguirá resistir: o amor.
Christian de Montella tece sua trama com respeito à emocionante lenda de Lancelot, mas isso não o impede de utilizar sua imaginação para recriar de forma original um dos mitos mais famosos de todos os tempos. Com um texto acessível a jovens e adultos, o autor faz de "O Cavaleiro sem Nome" - o primeiro volume da série "Graal", que prosseguirá com "A Neve e o Sangue" (agosto), "A Nau do Leão" (setembro) e "A Revanche das Sombras" (outubro) - uma aventura inesquecível.
O Seqüestro
— Majestade! Olhe!
A pequena tropa de cavaleiros acabara de deixar o Bosque de Val. Estavam se aproximando da margem de um grande lago, conhecido como o lago de Diane, cuja superfície imóvel, sob a luz da lua e das estrelas, brilhava como mercúrio. Com o barulho dos cascos, os animais da noite calaram-se. Reinava um silêncio extraordinário, onde só se ouvia a respiração dos cavalos e o sopro, assoviando nos galhos das árvores, de um vento redemoinhante e fresco.
O rei Ban de Bénoic, que galopava à frente, reteve a montaria.
Hoël, seu escudeiro, estendia o braço na direção do leste, indicando-lhe além dos cimos do bosque um grande halo avermelhado incendiando o céu.
Era cedo demais para a aurora despontar. O rei Ban compreendeu imediatamente o que se passava, mas recusou-se inicialmente a acreditar.
— Senhora, espere-me aqui.
Sua mulher, Helena, acalmou a égua que escavava o chão. Ban viu-a pálida, inquieta. Pensou em como ela era jovem e ele velho, e que, de agora em diante, não sabia quanto tempo ainda poderia protegê-la. Quis dizer que a amava; as palavras não atravessaram seus lábios. Colocou sua larga mão enluvada sobre um pequeno pacote de tecido quente que ela trazia contra si.
— Cuide de nosso filho.
Sob a palma, sentiu o bebê mexer suavemente a cabeça. O futuro da minha linhagem, pensou o rei. Só ele tem importância neste momento. E, retirando rapidamente a mão, esporeou o cavalo.
Os homens e Helena o viram, uma silhueta rápida e negra contra o céu claro de uma noite de verão, galopar até o alto de uma colina acima do bosque e do lago.
O espetáculo que se ofereceu a seus olhos o encheu de raiva e desgosto: Trèbe, seu castelo, estava em chamas. O incêndio, que devastava as muralhas e as torres, elevava-se em longas e breves labaredas cor de enxofre ao longo do torreão, criando uma aurora de fogo e de sangue que rasgava a noite. Fui traído, ele pensava. Pelo meu próprio senescal*. Perdi tudo. Estou sozinho.
Há vários anos, Ban de Bénoic enfrentava Claudas, rei da Terra Deserta. Claudas lutara durante muito tempo contra Uther-Pendragon, seu suserano* e seu rei. Fora vencido: Uther era servido e aconselhado por um filho do diabo, que sabia tudo do passado e previa o futuro: Merlin. Ruminando a derrota, Claudas esperara a morte de Uther e a partida de Merlin levando uma vida de eremita no fundo das florestas. Depois retomara sua guerra de conquista e destruição, certo de que o jovem Arthur, filho adúltero de Uther e jovem rei sem experiência, em guerra com o rei da Escócia, não agiria contra ele.
Durante semanas, Claudas e suas tropas tinham sitiado Trèbe. Ban de Bénoic, compreendendo que não podia resistir muito tempo, decidira, naquela noite, sair em segredo do castelo e ir solicitar a ajuda do novo e jovem rei, Arthur, acompanhado de alguns homens, de sua mulher Helena e do filho deles, nascido poucos meses antes. Deixara a guarda de Trèbe com seu senescal. E eis que, mal passara uma hora de sua partida, o castelo ardia.
— Fui traído — murmurou Ban. — Meu senescal abriu as portas para Claudas. Que promessa teria recebi do em troca de sua felonia*? A regalia de uma parte das minhas terras? Minha própria mulher?
Sentiu de repente uma violenta dor nas costas, que se irradiou até o braço esquerdo e lhe queimou o peito. Tinha dificuldade para respirar. Lentamente, com precaução, desceu do cavalo. Cambaleou, andando até o alto da colina. Não conseguia desviar os olhos do incêndio, de seu castelo, lá adiante, no horizonte, desmoronando nas chamas como um pedaço de madeira, como um feixe de lenha na lareira. Toda a sua vida, todo o seu poder estavam sendo consumidos. Ele tentara ser um rei justo e bom. E agora, Claudas, seu pior inimigo...
A dor no peito se tornou tão forte que ele caiu de joelhos. Arrancou a luva da mão direita. Colocou a mão sobre o coração. A vida está me escapando, pensou. Vou morrer. E Helena? E meu filho?
Pareceu-lhe então que seu coração, seu peito e sua cabeça inteira pegavam fogo como Trèbe. Antes mesmo de o coração parar de bater, soube que ia morrer. Mas não pensou nem um segundo em sua própria morte: pensou — e foi uma dor bem maior do que a dor daquela vida que o abandonava — que seu filho, naquele momento, estava órfão.
Desabou no chão. O cavalo, assustado, disparou, trotou por um momento, para a frente e para trás, perto do corpo de seu cavaleiro, e, de repente, como que enfurecido, avançou sobre a colina.
Na beira do lago, os homens tinham visto seu rei descer do cavalo e depois desabar com o rosto na terra. Helena também.
— O que está acontecendo com ele?
O jovem escudeiro aproximou sua montaria da montaria da rainha.
— Senhora, permita-me ir até ele!
— Eu o acompanho — disse Helena. — Espere por mim.
Ergueu a criança que carregava contra si e a estendeu a um dos homens.
— Confio-o a você. Será responsável pela vida dele. O homem — um velho sargento corpulento de mãos pesadas e calosas de tanto ter manuseado a espada — tomou o bebê nos braços, desajeitadamente. Helena esporeou imediatamente o cavalo e, seguida de Hoël, o fez escalar a colina.
Chegando perto de Ban, desmontou e se ajoelhou do seu lado. Teve um pensamento sobre seu filho — o filho deles — e, levantando rapidamente os olhos, notou que o velho sargento descera do cavalo e depositara o recém-nascido junto da margem do lago.
— O órfão...
De bruços na relva, Ban tentava levantar a cabeça. Helena levou os lábios até seu ouvido.
— Estou aqui. Com você. Levante-se — murmurou. — Temos um longo caminho a percorrer.
Ele fez um esforço para se virar sobre as costas, ajudado pelo escudeiro, que chorava. Avistando a mulher, disse para si mesmo mais uma vez que era bela e jovem, e repetiu, num estertor:
— O órfão...
— O que você está dizendo, Ban? — tornou ela, aproximando o ouvido da boca do rei. — Não compreendi...
— Helena... Meu filho é um...
E esse estertor, o último, escapou dos lábios do rei pelas sílabas da última palavra que ele pronunciou: "ór...fão". Helena teve a sensação de que era a própria alma de Ban de Bénoic, escapando de seus despojos, que lhe cochichava a palavra derradeira. Instinto, premonição? Ela levantou rapidamente a cabeça, procurando discernir, na beira do lago de mercúrio, o filho envolto em cueiros brancos.
Os gritos repentinos, e o barulho dos cascos. Estão saindo do bosque, pensou, aterrorizada. Eles nos seguiram!
Da orla das árvores surgiram cerca de vinte cavaleiros, com a espada, a clava ou a lança na mão, bradando por morte. Helena se levantou. Os homens de Claudas — grandes guerreiros de barba e tranças louras ou ruivas, e enfeitados com peles de urso e elmos com longos chifres de búfalo — se precipitaram sobre a escolta de Ban como uma tempestade. Desfechavam golpes com os braços, visando tanto aos soldados como aos cavalos, que abatiam de um só golpe de clava sobre o pescoço.
— Hoël! — berrou Helena.
O escudeiro pegou-a pelo braço.
— Suba na sela, Senhora. É preciso fugir. Imediatamente.
— Meu filho! — gritou ela, soltando-se.
Ela subiu novamente na égua e ele bateu-lhe na garupa.
— Ande!
Ela desceu a colina. Na direção da batalha — o combate sangrento onde os homens de Ban, tomados de surpresa, caíam um após o outro, sob os golpes de clava e de espada dos assaltantes. Ela não tinha medo. Pensava na última palavra do rei, seu marido: "órfão". Não via nem os Guerreiros Ruivos de pele de urso, nem sua própria escolta dizimada: via apenas o minúsculo ponto branco — um bebê, cueiros, uma coberta para mantê-lo aquecido — que um velho sargento defendia com todo o vigor e que era seu filho — o filho que Ban lhe dera, não um órfão.
Enquanto ela se preparava para entrar no meio da luta, a égua parou de repente, sacudiu o pescoço, empinou. Agarrando-se à crina, num ato desesperado, Helena conseguiu se manter na sela e viu de repente as riscas de fogo que se abatiam como uma tormenta sobre toda a batalha, homens e cavalos. Os guerreiros de Claudas eram os únicos tocados: suas peles de urso ficavam em chamas como estopa, como óleo, suas clavas e lanças ardiam nos punhos como se tivessem sido atingidas por raios que caíam sobre as armas. Helena deveu ao pavor da égua ter escapado ao dilúvio de chamas. Tratou de dominá-la, permanecendo sempre com uma única idéia na cabeça: salvar o filho, recolhê-lo, lá longe, na beira do lago.
— É um prodígio! — gritou o escudeiro que a alcançara e cujo cavalo também se recusava a avançar.
Uma nuvem que até então escondia a lua deslizou no céu escuro, revelando numa luz de prata a superfície do lago. Não havia nenhuma embarcação, nenhum arqueiro. Jorrando da água, com um assovio de serpentes, as flechas explodiam no céu. Depois de descreverem uma parábola vermelha e dourada, quase invisível aos olhos de tão rápida, elas tornavam a cair de repente sobre os guerreiros de Claudas.
— O lago está atirando flechas — disse o escudeiro. — Feitiçaria...
Mas Helena só compreendia uma coisa: o lago enviava-lhes reforços. Inesperados, improváveis, desconhecidos. Implacáveis.
E, enquanto os matadores de Claudas fugiam desordenadamente, perseguidos por aquela tempestade de flechas e de fogo, Helena viu uma moça de longos cabelos louros e soltos emergir tranqüilamente das águas e caminhar até a areia da margem. Ela parou a pouca distância do local onde a criança tinha sido depositada. Estava vestida como um homem, com uma couraça* brilhando como prata polida e calções* de tecido fino e branco.
Ela se ajoelhou junto da criança, afastou os panos que lhe cobriam o rosto e o corpo, depois a segurou, nua, em seus braços.
— É meu filho! — gritou Helena.
Mas, mesmo sob chicotadas, a égua se recusou a se aproximar um passo que fosse da margem. Irritada, furiosa e inquieta, Helena saltou ao chão.
— A criança que você está segurando é o filho do rei Ban de Bénoic! — exclamou.
A moça disfarçada de homem embalou delicadamente o bebê contra o peito e respondeu:
— O rei Ban morreu. Este menino é órfão.
— Eu sou a mãe! — replicou Helena.
Quis dar um passo à frente, mas uma força estranha a impediu de avançar.
— Helena — disse a moça —, você é a mãe, claro: pelo sangue. Neste momento, eu serei a mãe pelo espírito. Ele é seu filho e da brilhante linhagem do rei Ban. Não o estou seqüestrando, Helena. Vou fazer dele o que ele deve ser.
— Devolva meu filho!
Helena ainda tentou dar um passo: a mesma força, que ela não compreendia, a retinha no lugar.
— Esta criança não tem mais pai — disse-lhe a moça loura recuando passo a passo na água lisa e brilhante do lago. — Mas tem um destino. Confie em mim: graças a mim, ele será cumprido.
Com a criança nos braços, ela mergulhou lentamente, inexoravelmente. Helena gritou:
— Não! Por que quer afogar o meu filho? Não!
Sem responder, a moça virou-lhe as costas e, depois, pouco depois, desapareceu nas profundezas do lago, sem deixar nenhum sulco.
Somente três homens tinham sobrevivido ao combate. Esgotados pelos golpes dados e recebidos, cambaleavam entre os despojos com peles de urso que ainda crepitavam, com um cheiro penetrante de gordura queimada. Não havia bruma: a noite e a água estavam perfeitamente claras e calmas. Helena, finalmente libertada do encantamento que a havia paralisado, conseguiu se aproximar da margem.
Havia perdido Ban. Havia perdido o filho. Caiu de joelhos na beira da água e chorou. Um cavalo parou bem perto dela e soprou com força pelas ventas. Helena levantou a cabeça. Era Hoël, o escudeiro.
— Senhora — disse-lhe —, outros guerreiros de Claudas podem chegar. Devemos seguir para Camelot*, como o rei queria.
Ela não respondeu. Ergueu-se lentamente. O olhar perdido sobre o espelho liso e escuro do lago, procurando uma última vez enxergar ao menos a sombra da mulher Com a criança nos braços, ela mergulhou lentamente, inexoravelmente. Helena gritou:
— Não! Por que quer afogar o meu filho? Não! Sem responder, a moça virou-lhe as costas e, depois, pouco depois, desapareceu nas profundezas do lago, sem deixar nenhum sulco.
Somente três homens tinham sobrevivido ao combate. Esgotados pelos golpes dados e recebidos, cambaleavam entre os despojos com peles de urso que ainda crepitavam, com um cheiro penetrante de gordura queimada. Não havia bruma: a noite e a água estavam perfeitamente claras e calmas. Helena, finalmente libertada do encantamento que a havia paralisado, conseguiu se aproximar da margem.
Havia perdido Ban. Havia perdido o filho. Caiu de joelhos na beira da água e chorou. Um cavalo parou bem perto dela e soprou com força pelas ventas. Helena levantou a cabeça. Era Hoël, o escudeiro.
— Senhora — disse-lhe —, outros guerreiros de Claudas podem chegar. Devemos seguir para Camelot*, como o rei queria.
Ela não respondeu. Ergueu-se lentamente. O olhar perdido sobre o espelho liso e escuro do lago, procurando uma última vez enxergar ao menos a sombra da mulher que lhe levara o filho. Não viu nada. Nada parecia haver acontecido. Só o massacre dos Guerreiros Ruivos e a ausência de seu filho testemunhavam a intervenção dos arqueiros invisíveis.
— Conhece essa moça? — perguntou a Hoël.
— Não, Senhora. Mas dizem que...
O homem hesitou. Lançou um olhar para os lados da orla do Bosque de Val. Temia que outros guerreiros de Claudas surgissem. Temia também, e mais profundamente, aquela discussão sobre o prodígio das flechas e da mulher loura. O que sabia a respeito resultava de longas conversas que surpreendera, durante seu serviço, entre o rei Ban e certos visitantes, cavaleiros de Uther-Pendragon. E o que havia guardado o apavorava, da mesma maneira que o fascinava.
— Escute, Senhora... Dizem que sob esse lago há um reino. De uma fada.
— Uma fada? Por que uma fada iria querer afogar meu filho?
— Ignoro. Dizem que ela tem grandes poderes. E que os obtém do grande Merlin em pessoa.
— Merlin? O filho do diabo?
— Merlin teria amado essa moça, dizem. Ela se chama Vivian.
O escudeiro tinha a maior dificuldade em dominar seu cavalo, que parecia reagir cada vez que o nome de Merlin era pronunciado. Escavava o chão, sacudia a cabeça, como se o simples som do nome "Merlin" o picasse como um enxame de varejeiras. Helena avançou, furiosa, e segurou o animal pelas ventas.
— Se ela obtém seus poderes dele, então Merlin pode me ajudar. Onde posso encontrá-lo? Fale, Hoël!
— Não vai encontrá-lo, Senhora.
Ela soltara as ventas do cavalo que, controlado, não se mexia mais.
— Por quê?
— Vivian, dizem, o teria seduzido para que ele lhe ensinasse sua magia. E, quando soube o que desejava saber, aprisionou-o para sempre com a ajuda de seus próprios sortilégios.
Helena, desamparada, calou-se por um instante, deixando correr o olhar sobre o lago que a aurora nascente começava a tingir de cor-de-rosa.
— O que é preciso que eu faça, Hoël?
— Afastemo-nos daqui, Senhora. Tomemos a estrada para Camelot.
A aurora despontava quando Helena e sua magra escolta — três soldados e o escudeiro — penetraram em uma floresta tão densa que pareciam estar entrando de novo na noite. O tronco das árvores era negro; por vezes escutavam piar uma coruja, uivar um lobo, fugir um pequeno animal noturno, um grupo de perdizes de repente bater as asas, irromper a poucos metros dos cavalos e se dispersar na direção das folhagens que mal deixavam filtrar a luz do dia.
De repente, na curva do caminho, o cavalo de Hoël, que caminhava à frente, relinchou. Pouco depois, três silhuetas apareceram entre as árvores.
Eram três mulheres: duas freiras e sua abadessa. Elas avistaram a pequena escolta, sem se assustar. Deliberadamente, a abadessa, mulher alta de porte nobre, aproximou-se dos cavalos. Ao primeiro olhar, reconheceu Helena, que encontrara diversas vezes em Trèbe, o castelo do rei Ban.
Depois de saudá-la, perguntou-lhe o que ela fazia ali, tão longe de suas terras e acompanhada de tão magra escolta. Helena, então, cedeu à fadiga e ao sofrimento. Desceu da montaria, precipitou-se na direção da abadessa e caiu de joelhos diante dela. Começou a chorar.
Com doçura, a abadessa pousou a mão sobre sua cabeça.
— Levante-se, Senhora. Eu lhe peço. A rainha obedeceu.
— Seque suas lágrimas. E explique-se. Com uma voz apagada, Helena murmurou:
O rei, meu marido, morreu esta noite... Trèbe foi tomado por Claudas e incendiado... E nosso filho... Nosso filho...
Não conseguiu dizer mais nada. As lágrimas recomeçaram a correr sobre seu rosto. A abadessa se aproximou dela e a tomou nos braços. Manteve-a muito tempo abraçada contra si, deixando-a chorar à vontade. Depois, quando os soluços cessaram, murmurou-lhe no ouvido:
— Acompanhe-me à nossa abadia. A senhora não tem mais castelo nem reino. Aceite nossa hospitalidade. Nós a ajudaremos a suportar o luto.
— Senhora — replicou Helena —, eu lhe agradeço, mas devo ir até a corte de Arthur. Ban era seu vassalo; Arthur o vingará.
— O rei não poderá fazer nada pela senhora. Ele está em guerra com o rei da Escócia e um dos reis da Irlanda. Segundo algumas notícias, corre o risco de perder seu reino de Logres. Não terá cavaleiros para combater Claudas.
Vendo que Helena, com essas palavras, parecia ainda mais desesperada, a abadessa a segurou gentilmente pelo braço e a reconduziu à montaria.
— Siga-me, Senhora, com sua escolta. Acredite em mim: é melhor para a senhora deixar este mundo no qual está sozinha e sem apoio. Conosco, na abadia, a senhora reencontrará a paz em Deus.
O Lago
Hoël, o escudeiro, dissera a verdade: Vivian era o que a superstição chamava de "fada". Contudo, era uma moça muito jovem de carne e osso, não um ser sobrenatural. Obtinha seus poderes de Merlin, que, com efeito, a amara. Ela praticava um grande número de encantamentos, e o primeiro deles, o mais espetacular, era aquele lago onde mergulhara com o filho de Ban e de Helena.
Ela chamava seu lago de ilusão. Sua superfície lisa como metal dissimulava um vale onde um rio cheio de peixes corria entre as belas e ricas casas de um vilarejo e contornava o castelo. A água imóvel e gelada existia somente para todos os que acreditavam em sua realidade. Vivian, que havia criado sua ilusão, e sua gente, que aquela ilusão poupava, podiam emergir ali e depois sair sem ser mais incomodados do que se atravessassem um ligeiro nevoeiro. Os outros, caídos na armadilha da crença na realidade daquela água, afogavam-se. Nenhuma terra no mundo era melhor protegida do que o Lago. O encantamento equivalia a todas as muralhas.
De volta a seu castelo, Vivian confiou imediatamente o menino a uma ama-de-leite. Nada disse às pessoas de seu círculo, nem de onde ele vinha nem qual era seu nome. Só sua criada, Saraide, foi posta a par: Vivian sabia que um dia, quando chegasse a época, Saraide a ajudaria em seus desígnios.
Assim que o filho de Ban de Bénoic e Helena completou três anos, Vivian o confiou a um preceptor.
Era uma criança especialmente grande e bem desenvolvida para a idade, ágil, hábil com as mãos assim como com as palavras. Porém, apesar de sua energia e força física, ela exibia uma grande docilidade toda vez que Vivian, que ele acreditava ser sua mãe, lhe dava um conselho ou uma ordem. Aquele menino já refletia praticamente como um homem e, dentro do domínio de Vivian, todos o haviam adotado como se ele fosse o filho que a fada guerreira jamais teria: quando passavam por ele, no pátio do castelo ou nos caminhos escarpados dando a volta ao lago de ilusão, paravam para saudá-lo e gostavam de conversar com ele, pois era uma maravilha escutar aquele garoto responder com uma voz ponderada e pausada a todas as perguntas que lhe faziam — e outra maravilha contemplá-lo, tão pequeno, mas já tão bonito e tão bem formado.
Ninguém na ilha conhecia seu nome. Vivian o chamava "a criança". Todos o chamavam "a criança". E ele mesmo, a quem todos sempre chamaram assim, se apresentava do mesmo modo: "Eu sou Acriança."
Caradoc, seu preceptor, teve como primeira tarefa lhe ensinar a se conduzir como o filho de um fidalgo. Não foi propriamente difícil. Acriança se comportava naturalmente como um príncipe. Um príncipe bem-comportado, sem caprichos nem pretensão — simplesmente a consciência de ser um personagem incomum e a modéstia de só deixar transparecer uma tranqüila segurança e muita atenção com todos, mesmo um simples filho de pescador lançando suas linhas dentro do rio. Amavam-no ainda mais, pois à medida que crescia mostrava, mesmo sem saber, as qualidades de um príncipe, tornando-se cada vez mais sorridente, encantador, amistoso.
Logo se tornou suficientemente forte para que Caradoc lhe confiasse um arco e flechas e o conduzisse a uma margem do lago, na floresta. Conhecendo seu aluno, o preceptor não ficou surpreso com sua habilidade de caçador. Na realidade, ele havia subestimado seus talentos e sua força física. Muito depressa, trocou o pequeno arco infantil que tinha mandado fabricar para ele por uma arma mais alta e que atirava mais longe.
Daquelas saídas do Lago, Acriança trazia lebres, perdizes e toda espécie de aves que atingia em pleno vôo. Adorava o instante em que, num múltiplo bater de asas, os alvos se lhe ofereciam, acreditando encontrar refúgio no céu: esticava o arco, escolhia a ave, seus dedos soltavam a corda, e a flecha voava como um outro pássaro, alcançando-a no vôo, traspassando o que não era mais do que um ponto escuro contra o cinza ofuscante do céu; depois, a perdiz era abatida e Acriança corria para chegar antes dos batedores, para descobri-la no meio dos arbustos, numa clareira, com as asas distendidas, sangue escorrendo do bico. Ele a segurava nas mãos. Ela estava quente.
Trazia sua caça para o castelo. Vivian o acolhia com muitos cumprimentos. De noite, à mesa comprida, ele tinha a satisfação de se alimentar, e de alimentar os outros convivas, com suas próprias lebres e perdizes. Não completara dez anos, mas já sabia que sobreviveria em qualquer lugar dentro de uma floresta, e bem, graças a seus próprios talentos de caçador e de arqueiro.
Quando a noite caía, os serviçais acendiam algumas tochas, que ardiam contra as paredes de pedra inundando a sala* com uma luz avermelhada e um odor animal penetrante. Lâmpadas de sebo, grossas e amarelas, eram dispostas sobre a mesa. Caradoc, então, ensinava a Acriança os jogos que desenvolviam o espírito e compeliam o corpo à paciência.
No triquetraque*, Acriança nem sempre ganhava; revoltava-se com os dados de chifre quando estes o traíam; com a sorte, injusta, que o fazia tirar um número que não era o que desejava. Então, Caradoc batia diversas vezes na mesa:
— Acalme-se, Acriança. Um fidalgo deve aprender a perder com dignidade.
— Não há nenhuma dignidade na derrota! — gritava Acriança.
Caradoc se preparava para lhe fazer um sermão, mas, com o canto do olho, via Vivian que ria, a quem aquela veemência e audácia faziam rir. Caradoc se calava.
Caradoc se calava também quando jogava xadrez com Acriança. Havia lhe ensinado as regras desde os quatro anos, a instâncias de Vivian. Não acreditava que um pirralho daquela idade pudesse compreender e menos ainda apreciar as sutilezas de um jogo inventado por reis que governavam uma parte do mundo tão longínqua que ele sequer tinha certeza de sua existência. O Oriente. Lá onde o sol se levanta, lá onde ninguém, sob o risco de cair dentro das trevas, prosseguira viagem, a não ser aquele — um desconhecido, um fabulador — que trouxera esse jogo de estratégia guerreira até as brumas das ilhas do setentrião*.
Acriança, segundo seu hábito de criança bem-comportada e determinada, escutara atentamente as regras, manuseara com seus dedinhos gorduchos as peças de madeira e de chifre, uma depois da outra, enquanto seu preceptor lhe explicava suas forças e suas fraquezas, as particularidades de seu deslocamento. Depois dissera simplesmente: "Vamos jogar." E jogaram.
Claro, a primeira partida Acriança perdera. Porque Acriança era uma criança, e o filho de um rei: quisera construir sua vitória com a ajuda de cavaleiros, de nobres — os mais valorosos e os mais corajosos dos combatentes, segundo ele. Fora vencido pela rainha e pelas torres de seu adversário. E quando, muito satisfeito consigo mesmo, Caradoc dissera, colocando seu bispo preto perto do rei branco: "O rei está morto", Acriança berrara que nenhum bufão, nunca, abatera um rei, e que aquele jogo não tinha nenhum sentido. Com um lado da mão, varrera as peças do tabuleiro.
Um dos defeitos de Acriança, quando se tornasse um homem e carregasse finalmente seu nome verdadeiro, acabara de se revelar naquela primeira partida de xadrez: a impaciência. A audácia só tem valor nos homens de temperamento frio. Neste caso, ela é o resultado de uma decisão, de uma reflexão: o homem frio, racional, só transgride as regras e seu próprio temperamento depois de pesar os prós e os contras, e só depois de concluir que "o contra" é provavelmente a melhor solução, e a mais honrosa, para ganhar.
Nas partidas seguintes, Acriança abandonou, contra a vontade, sua preferência pelos cavaleiros e seus curiosos movimentos sobre o tabuleiro. Concentrou-se na rainha. É fácil para qualquer iniciante compreender que essa peça é a mais livre e a mais forte de todas. Esse mesmo iniciante em geral utiliza-a demais, todo o tempo em que ela está no jogo, correndo ao longo das fileiras e das diagonais, mortífera, inatingível — até o momento em que a vê presa em seu próprio jogo.
Acriança não cometeu tal erro: via na sua rainha branca uma representação da mãe Vivian, e a fez jogar como Vivian, segundo ele, teria jogado. Nada de ataques intempestivos, nada de longos saltos transversais no tabuleiro. Ao contrário: deslocamentos quase invisíveis, durante os quais os bispos e as torres lhe davam sustentação. Depois, enquanto pareciam andar em círculos, de casa em casa, pelo prazer de andar em círculos, ele colocou um de seus cavaleiros — um nobre — no centro da partida, e o outro, protegido pelo primeiro, entre a rainha e o rei adversários.
— O rei está morto, creio — disse com sua voz aflautada de criança.
Caradoc viu com estupefação que havia perdido. Conteve sua fúria e foi deitar-se.
— Estou desonrado — disse, com uma voz sem expressão. — Há dois dias, cavalgo para reencontrar a corte do rei Claudas, onde devo testemunhar contra o assassino de meu padrinho. Esta manhã, à aurora, caí em uma emboscada. Quiseram me matar antes que eu chegasse ao castelo de Claudas. Consegui me soltar, e creio haver matado dois dos meus assaltantes.
Diante dessas palavras, Acriança o olhou com mais consideração. Mas, se esse varlete era tão valente quanto pretendia, por que chorava? Ele mesmo, Acriança, não se lembrava de jamais ter derramado uma lágrima — ou então, ele seria tão jovem que ainda não tinha o domínio de si mesmo. Decidiu fazer-lhe a pergunta:
— Por que está chorando, Senhor? Conduziu-se como um cavalheiro, mesmo ainda não sendo um. Deveria estar orgulhoso de si mesmo.
Cada vez mais espantado com o tom calmo e adulto do menino, o moço se ergueu e enxugou vigorosamente as lágrimas.
— Tem razão, jovem príncipe. Sinto vergonha das minhas lágrimas.
— Então não precisa derramá-las — replicou Acriança encolhendo os ombros.
Um pouco envergonhado, o varlete endireitou-se.
— Não choro por mim mesmo. Choro por meu padrinho, que não será vingado de seu assassino.
— Por que não seria?
O varlete mostrou sua montaria suando, com os olhos saltando das órbitas, as patas tremendo.
— Meu cavalo não agüenta mais. Jamais chegarei a tempo ao castelo de Claudas.
— É só isso? — perguntou Acriança, com um risinho de mofa.
Foi até a própria montaria e tratou imediatamente de tirar os despojos do cabrito montes que havia atado ali.
— Ajude-me, Senhor. A dois, faremos mais rápido.
Sem compreender, o varlete obedeceu. Ao terminarem de desamarrar o animal, Acriança mandou-o ajudar a colocá-lo sobre o cavalo esgotado.
— Por que isso?
— Porque é importante que eu leve minha caça. Desta vez, o varlete achou que compreendera. Corou violentamente, muito embaraçado.
— Jovem príncipe, isso significa que...?
— Sim. Estou lhe dando meu rocim. É o melhor das cavalariças da minha mãe. Ele vai conduzi-lo até onde precisa ir.
— Eu não posso...
— Vamos! — fez Acriança com um gesto de irritação. — Não perca tempo com protestos. Nem com agradecimentos. Aceite, suba na sela e galope.
O varlete não ousou mais acrescentar uma palavra. Colocou o cabrito sobre seu próprio cavalo, fixou-o solidamente e depois, sob o olhar severo do menino, pôs o pé no estribo e montou o rocim.
— Obrigado, jovem príncipe! Diga-me seu nome, vou me lembrar sempre do senhor.
— Não tenho nome. Chamam-me de Acriança. E minha mãe, às vezes, me chama "belo filho de rei". Não sei por quê.
— Porque é o que o senhor é! — exclamou o varlete. — Basta olhá-lo e escutá-lo para saber que é de alto nascimento e de enorme valor.
Acriança permaneceu impassível com o cumprimento. Contentou-se em levantar a mão e, virando-se, falar:
— Adeus, Senhor. Que o que tem a fazer seja bem feito.
Ouviu seu rocim se afastar a galope na direção das colinas do leste. Segurou o cavalo do varlete pela brida e prosseguiu seu caminho.
Pensou nas últimas palavras do jovem: "O senhor é de alto nascimento e de enorme valor." Até então, Acriança nunca tinha pensado na questão do próprio nome. Estava acostumado a não ter nome. Vivian o cercara de tanto amor e atenções que ele não podia suspeitar que ela lhe escondesse alguma coisa. Mas, ele pensava, por que, de fato, me chamar de Acriança ou de "belo filho de rei"? Por que eu não tenho nome? Que segredo há por trás disso?
Que desonra, talvez? Meu nome é tão carregado de vergonha que ninguém quer pronunciá-lo? Quem é meu pai, se eu sou "filho de rei"?
Enquanto assim refletia, ao longo da orla de um bosque, deu de cara com um velho que saía do bosque, com o arco e a aljava na mão, montado em um cavalo cinza e seguido de dois magníficos lebréus*. Acriança saudou-o.
— De onde vem assim, jovem príncipe? — perguntou-lhe o velho.
— O senhor está vendo: eu cacei o cabrito montes. O velho lançou um olhar ao corpo morto do animal
amarrado em cima do cavalo, e suspirou.
— Teve sorte. Ou é melhor caçador do que eu. A manhã inteira, bati a floresta à procura de caça. E estou voltando de mãos vazias.
— São coisas que acontecem — disse Acriança.
— Claro, mas hoje eu caso minha filha. E contava comemorar as núpcias com uma perdiz, uma corça, um javali, talvez, até um cabrito montes tão bonito e gordo quanto o seu.
Acriança se ajoelhou para acariciar um dos lebréus. Era de um cinzento de cinza fresca, esperto e nervoso. Sua espinha tremia sob a mão do menino, que sentia na palma toda a velocidade e resistência do animal, como uma energia pronta a ser utilizada, como a promessa de mil corridas na frente dos cavalos.
— O que vai fazer? — perguntou.
— Não sei mais — suspirou novamente o velho. — Tenho tanta vergonha que não ouso voltar para casa.
Acriança se levantou e ergueu o olhar. O homem franziu os olhos, examinando-o.
— Jovem príncipe, como se chama? Seu rosto me parece familiar.
— Senhor, eu não tenho nome e nós nunca nos encontramos.
— Mas me parece...
O velho não disse mais nada. Provavelmente nunca tinha visto aquele menino, mas notava nele uma semelhança com... Não atinava com quem.
Enquanto isso, Acriança foi até seu cavalo e começou a desfazer os nós da corda que amarrava o corpo do animal.
— O varlete não precisava ter tido tanto trabalho em amarrá-lo — disse para si, sorrindo.
Depois, virou-se para o velho:
— Senhor, se quiser me dar um grande prazer, aceite este cabrito e leve-o para as núpcias de sua filha.
— Obrigado, jovem príncipe. Mas não posso aceitar. Esse cabrito é seu: o senhor o desentocou, perseguiu e acuou.
— Pouco importa. Tive a minha parte de prazer. E, aliás, não estou oferecendo este cabrito ao senhor mesmo, mas à sua filha. Vai me deixar aborrecido se não aceitar.
O velho nunca cruzara com um menino que se expressasse com tanta autoridade e naturalidade. Estava surpreso de nunca ter ouvido falar dele por aquelas paragens. Uma criança como aquela não passa despercebida. Mas a polidez o impedia de fazer perguntas. Desceu da montaria e se aproximou de Acriança.
— Jovem príncipe, não quero lhe fazer uma afronta. Portanto, aceito esse cabrito. Em troca, quero lhe dar de presente um de meus lebréus. Escolha. Eles são rápidos, resistentes, afetuosos.
— São belos cães — disse Acriança, esforçando-se para disfarçar o prazer que sentia com aquele presente.
Pois Acriança, apesar de tudo, continuava em certas circunstâncias uma criança e, sem a sua educação e auto-domínio, teria facilmente pulado de alegria. Apontou ao acaso para um dos lebréus, para não dar a impressão de escolher o melhor.
— Este aqui virá comigo.
— Como quiser, jovem príncipe.
E, enquanto Acriança brincava com o lebréu, atirando-lhe um pedaço de madeira pelo prazer de admirar a agilidade de seu corpo magro e a velocidade de sua corrida, o velho levava o cabrito até o próprio cavalo. Logo em seguida, eles se separaram. Acriança retomou a estrada do Lago. O velho embrenhou-se no bosque.
Mal atingiu a primeira clareira, a memória, repentina, voltou-lhe. Ban. Ban de Bénoic. Aquela criança extraordinária era parecida com o rei Ban de Bénoic, a quem o velho, anos antes, servira como sargento, e que vira morrer de desgosto, uma noite, olhando Trèbe em chamas.
O velho puxou com força a brida de seu cavalo, levando-o a refazer o caminho. Na orla do bosque ele parou, procurando com os olhos através do vale estreito as silhuetas da criança, do rocim e dos cães, o lebréu e o braço. Não os viu em lugar algum. Ao longe, no fundo do vale, brilhava a superfície de um lago.
O velho se lembrou daquela noite longínqua, quando a rainha Helena lhe confiara o recém-nascido, deixara-o sob sua guarda, e que ele, louco, colocara junto da margem para combater os matadores ruivos de Claudas. O antigo desgosto de haver perdido ao mesmo tempo seu rei e o filho do rei oprimiu-lhe o coração. Depois pensou novamente na estranha semelhança do menino do cabrito com Ban, em sua nobreza e em sua segurança. Então respirou melhor, de repente; pareceu-lhe que o céu estava mais claro, seu coração mais leve.
Virou a brida para voltar para casa, onde a festa o aguardava, e disse a si mesmo que um dia — tinha a partir de agora o pressentimento — Claudas seria expulso de Bénoic e de Trèbe, e o rei Ban vingado.
— Pela Santa Cruz, você não fará nunca mais tamanha bobagem, acredite em mim.
Caradoc, o preceptor, avançou sobre Acriança e o esbofeteou com força. Sob a violência do golpe, o menino escorregou da sela e caiu no chão. Sem um grito, sem uma palavra, sem sequer levar a mão à face queimando e vermelha, ele se levantou. Com o queixo erguido, a boca firme, enfrentou Caradoc olhando-o nos olhos.
Na volta ao Lago, encontrara Caradoc e os outros caçadores na encruzilhada de dois caminhos. A queda do cavalo deixara o preceptor de péssimo humor, mas isso não foi nada diante do furor que o acometeu quando Acriança lhe contou ter dado o cabrito a um velho que encontrara e trocado seu excelente rocim pela montaria semimorta do varlete.
— Quem lhe deu o direito de oferecer o cabrito? E o cavalo? Eram a caça e o cavalo da Dama Vivian. Nada o permitia dispor deles!
— Minha mãe me chama de "belo filho de rei". Para honrá-la, eu me conduzo como tal — replicou orgulhosamente Acriança.
Foi então que recebeu a bofetada que o jogou fora do cavalo. Pouco depois, novamente em pé e sustentando o olhar de Caradoc, ele disse com calma:
— Aliás, pouco me importam um cavalo e uma caça. O velho me ofereceu esse lebréu, que vale bem dois cavalos e duas caças.
Caradoc se enfureceu com essa insolência. Ergueu sua varinha e bateu com toda a força na espinha do lebréu. O cão soltou um gemido de dor e se encolheu no solo. Suas costas ficaram marcadas com uma longa ferida sangrando.
— Senhor — gritou Acriança —, bata em mim o quanto quiser, se acredita que mereço! Mas eu o proíbo de tocar nesse cachorro!
— Você me proíbe? — urrou Caradoc.
As narinas do menino fremiam de raiva contida.
— Tome cuidado, Senhor!
— Você vai ver quem é que manda!
Caradoc levantou de novo a varinha sobre o lebréu, que gemia de terror. Com um gesto seco, Acriança segurou o arco que carregava a tiracolo. E, antes que o preceptor tivesse tempo de atingir o flanco do cachorro, acertou-lhe um golpe tão violento na cabeça que o arco se partiu e Caradoc, atordoado, desabou. Da testa à têmpora, uma ferida sangrava, parecida com a que ele infligira ao cão.
Antes que os caçadores que acompanhavam Caradoc pudessem intervir, Acriança correu para a montaria do preceptor, saltou com presteza sobre a sela e partiu a galope, seguido de seu braço e do lebréu.
Estava tomado por uma raiva como jamais conhecera, de que não se acreditava capaz. Galopou por muito tempo pelas colinas.
Aquela longa cavalgada sem destino acalmou a cólera de Acriança. Quando voltou ao castelo da Dama do Lago, não pensava mais no caso, só em contar a ela seus dois encontros no caminho e fazê-la admirar o magnífico lebréu que o velho lhe dera.
Mas, quando chegou à sala, Caradoc, seu preceptor, já se encontrava junto dela. Com o rosto ensangüentado, parecia estar com um humor ainda mais terrível que de hábito.
— Finalmente você chegou — exclamou Vivian assim que ele surgiu diante dela. — Aproxime-se.
Ela tinha um ar severo que ele nunca a vira mostrar a seu respeito. Obedeceu, avançando até ela.
— Seu mestre me contou o que você fez. Quem o autorizou a doar meu melhor cavalo e a caça que você realizou em meu nome? Explique-se.
— Senhora — replicou com firmeza Acriança —, fiz o que julguei ser o certo. Se a senhora e meu mestre não estão satisfeitos, gostaria então que me explicassem por que me chamam sempre de "belo filho de rei".
— Ser chamado assim lhe daria todos os direitos, segundo você?
— Me dá o direito de me conduzir como filho de rei. Vivian admirou o orgulho do menino, mas não deixou transparecer. Continuou, num tom de desaprovação
— É seu direito, na sua opinião, bater em seu mestre? Eu o confiei à guarda dele e à sua autoridade. Deve obedecer-lhe em tudo.
Os olhos de Acriança faiscaram de raiva.
— É direito dele bater no meu lebréu? Que ele me bata, se tiver vontade, para mim tanto faz. Os golpes recebidos de uma pessoa dessas não têm nenhuma importância. Mas que ele trate de não tocar em um cão que me foi dado, pois eu reagirei da mesma maneira!
Vivian não esperava dele outra resposta, que revelava sua natureza orgulhosa e forte. Contudo, não queria fazê-lo crer que tudo lhe era permitido.
— Vai fazer as pazes com Caradoc. Ele é o mestre que escolhi para você e, por conta disso, você lhe deve respeito.
Acriança lançou um olhar de desprezo para o preceptor.
— Em consideração à senhora, eu me submeterei. Mas esteja certa do seguinte: se alguma outra vez esse que a senhora me impôs como mestre encostar a mão em meu lebréu ou no que quer que seja que me pertença, partirei daqui na mesma hora. Sei que sou capaz de viver por mim mesmo, em qualquer outro lugar, e não tenho disposição para suportar um mestre.
Com essas palavras, deu as costas. Ia deixando a sala quando Vivian o chamou. Com um sinal, ela despediu Caradoc, que obedeceu de má vontade. Assim que ele saiu, a Dama desfranziu as sobrancelhas e sorriu para Acriança.
— Você tem razão, belo filho de rei. Apesar da sua idade, vejo perfeitamente que você já não precisa de um preceptor. Agora me escute: eu o faço, a partir deste instante, único mestre de si mesmo. Hoje, você acabou de provar que está à altura, pela coragem e pela generosidade, do homem de quem é filho.
Acriança empalideceu de emoção. Era a primeira vez que Vivian mencionava diante dele essa sombra enigmática, esse fantasma desconhecido que havia sido seu pai.
— Quem é esse homem, Senhora? Diga-me o seu nome.
A Dama do Lago o olhou com ternura. Ele se mantinha ereto, o queixo erguido, as narinas frementes, aguardando uma revelação. Ela sacudiu docemente a cabeça.
— Não, Acriança. Ainda não está na hora.
O Cavaleiro sem Nome
A Viagem
A escolta era esplêndida. Todos que a viram passar falariam dela durante muito tempo como a mais bela e a mais nobre que tinham visto a vida inteira. Quarenta cavalos brancos carregavam quarenta cavaleiros, varletes, escudeiros e sargentos, todos vestidos de branco. Num duplo alinhamento, eles acompanhavam uma liteira também coberta de estofados brancos, onde viajavam a Dama do Lago e três de suas serviçais. A seu lado cavalgava um jovem, igualmente vestido de branco, e carregando um escudo marcado com duas listas vermelhas.
Acriança crescera, tornara-se forte, mais bonito ainda, se é que era possível. Acabara de fazer dezoito anos. Dois dias antes, Vivian o chamara e lhe anunciara a viagem que mandara preparar em tamanho sigilo que ele nada ficara sabendo. Chegara a hora, ela lhe dissera, de ir à corte do rei Arthur, que o faria cavaleiro. Ele alcançara a idade da educação. Interrompendo as demonstrações de alegria do jovem, ela havia lhe mostrado a espada que mandara forjar para ele: longa e leve ao mesmo tempo, de um manuseio tão dócil que parecia não ter peso algum no punho. Acriança se divertira atacando à sua volta inimigos imaginários. Rindo, Vivian lhe pedira para devolver a espada: ele só teria o direito de carregá-la quando o rei Arthur tivesse feito dele um cavaleiro.
A viagem duraria doze dias: seria necessário atravessar numerosas planícies, colinas e florestas antes de chegar ao porto, no norte do país, onde a escolta embarcaria para o reino de Logres, do outro lado do mar. Depois tomariam o caminho para Camelot, a cidade de Arthur, a fim de chegar lá na véspera de São João, festa durante a qual o rei armaria numerosos jovens varletes.
Vivian, que abandonava freqüentemente o conforto de sua liteira para cavalgar junto de Acriança, não tinha medo do cansaço e dos perigos daquela travessia. Ela ria muito, brincava com o rapaz, às vezes o desafiava em um galope na subida de uma colina. Nunca parecera tão feliz. Mas era para melhor esconder a melancolia: ela sabia que assim que seu "belo filho de rei" fosse cavaleiro, ele iria servir ao rei Arthur e ela o perderia, não o veria mais todos os dias no Lago. Ligara-se a ele como se fosse de fato seu filho.
Contudo, não tinha escolha senão se separar dele. Acriança devia cumprir seu destino, ela o formara para isso.
Na tarde do décimo primeiro dia, quando tinham atravessado o mar e descansavam em Lawenor, um castelo situado a vinte léguas inglesas de Camelot, ela estava tão triste com a idéia de que no dia seguinte estaria de novo sozinha, que não conseguiu conciliar o sono. Então desceu às cavalariças, montou em pêlo sua égua branca e partiu a galope na charneca noite adentro. Ali, longe de todos os olhares, branca sombra rasgando a escuridão, ela deixou correr as lágrimas. Nunca tinha chorado até então.
Voltou pouco antes da aurora, deixou a égua esgotada aos cuidados dos palafreneiros e subiu para o quarto onde dormia o rapaz. Na claridade dourada de uma vela de sebo, contemplou-o dormindo. Nos anos de sua infância, acontecia-lhe com freqüência de chegar perto do leito de Acriança e ficar admirando sua beleza, pensando no futuro que o aguardava. Dessa vez, ela sabia que não teria mais a oportunidade de vê-lo assim, e tentava imprimir para sempre sua imagem no coração. Finalmente, com um suspiro, acordou-o.
— Belo filho de rei, preciso falar com você.
Ele abriu os olhos, sorriu de prazer ao ver Vivian e colocou sua mão sobre a dela, que estava pousada na beira do leito.
— Já estamos partindo? — ele perguntou.
— Daqui a pouco. Antes do meio-dia estaremos em Camelot. Mas antes disso ainda preciso lhe dizer uma coisa.
Ele se ergueu sobre o leito, imediatamente atento.
— Pode falar.
— Não vou lhe ensinar as virtudes do cavaleiro. Você tem todas elas, creio, caso contrário eu não o estaria conduzindo à corte de Arthur. Mas devo lembrá-lo de um princípio de que nunca deverá se esquecer.
Ela se sentou junto dele. Encostou docemente sua mão branca no peito do rapaz.
— Um cavaleiro — disse — tem dois corações: um duro e denso como um diamante, o outro maleável e tenro como a cera quente. Com o coração de diamante, ele sabe ser brutal, violento e cruel. Com o coração de cera, ele sabe ser bom, condoer-se dos sofrimentos e das penas, remediá-los, sabe quando é preciso demonstrar doçura e humildade.
— Compreendo.
— Ótimo. Mas lembre-se sempre de que você deve ser brutal, violento e cruel com os que são brutais, violentos e cruéis. E terno com os que o são, doce com os doces,bom com os fracos, os infelizes e os deserdados. Se alguma vez se mostrar fraco diante dos cruéis, ou cruel diante dos fracos, perderá não somente o direito de ser chamado de cavaleiro, como também sua alma.
— Compreendo — ele repetiu.
— Tenho certeza disso.
Contra a vontade, retirou a mão do peito do jovem. Levantou-se e prosseguiu:
— Eu prometi que um dia você conheceria seu nome e o de seu pai. Esse dia está para chegar. Não posso lhe dizer nada, pois deverá saber por si mesmo. Na corte de Arthur, será chamado simplesmente de varlete.
— O rei não vai ficar zangado por eu não lhe dizer meu nome?
— Os acontecimentos, amanhã, serão tão surpreendentes e tão rápidos que ele não terá tempo.
— Como sabe, Senhora?
Vivian hesitou. Devia lhe falar de Merlin, do amor que ela lhe inspirara, das artimanhas que empregara para o seduzir, trair e finalmente aprisionar? Não. Ele ainda não vivera o bastante para compreender o que se passa, talvez, entre dois seres fora do comum que se atraem e se enfrentam ao mesmo tempo.
— Conheci há muito tempo um homem fora do comum que possuía a assustadora faculdade de prever o futuro. Ele me falou de você antes mesmo do seu nascimento e me fez o relato das aventuras que você vai viver amanhã.
O rapaz saltou do leito.
— Então me conte, Senhora! O que vai me acontecer? Vai ser coisa boa ou ruim?
— Sou obrigada a me calar. Se lhe confiasse o que esse homem me disse, seria o suficiente para modificar seu futuro.
— Portanto... A senhora sabe tudo a meu respeito, até as circunstâncias e a hora da minha morte?
— Não, tranqüilize-se. Conheço apenas o desenrolar de alguns dias à frente e algumas proezas* que, possivelmente, você realizará mais tarde.
— Por que "possivelmente"? Não é o meu futuro? Vivian levantou lentamente a mão e tocou-lhe a face.
— Um futuro assim nunca é certo. Uma fraqueza da sua parte, ou uma deslealdade, e tudo será posto a perder.
— Não vou ser fraco nem desleal!
Ela sorriu com uma espécie de tristeza.
— É o que espero, belo filho de rei. É o que espero. Depois, deu-lhe um beijo nos lábios e saiu.
A apresentação
Quando entrou em Camelot pela Porta Galesa, a escolta da Dama do Lago causou grande impressão. Estavam lá reunidos alguns dos cavaleiros mais famosos da corte: Yvain o Grande, filho do rei Uriens; o senescal Ké; Tohort, filho de Ares rei de Autice; Lucain de Bouteiller; Béduier o Condestável e muitos outros, dentre os quais Garvain, sobrinho de Arthur, célebre por seus feitos na guerra e junto às damas. Foi ele quem primeiro se aproximou da escolta, cujos cavaleiros avançavam de dois em dois, em seus trajes imaculados, precedendo Vivian e Acriança.
Reconhecendo Garvain pelas descrições que lhe haviam sido feitas, a Dama do Lago deixou a escolta entrar na aldeia na direção da fortaleza e, seguida de dois passos por Acriança, avançou ao seu encontro.
Quando foram saudados e apresentados, Garvain lhe perguntou a razão de sua vinda à corte, com tão esplêndida comitiva.
— Estou aqui porque festejamos o dia de São João, Senhor, e porque o rei armará amanhã novos cavaleiros. Conduza-me até ele, por favor, quero apresentar-lhe esse varlete.
Ela lhe apontou o rapaz que se mantinha mais atrás, com uma mão na rédea de seu rocim, a outra segurando o escudo marcado com duas listas vermelhas. Garvain aproximou seu cavalo de Acriança e o examinou com uma expressão simultaneamente brincalhona e admirativa.
— Belo e sólido moço, Senhora. O rei ficará feliz de tê-lo entre seus cavaleiros, creio. Mas por que ele não praticou seu serviço de varlete junto dele, de acordo com o uso?
— Ele o fez junto a mim e eu pedirei que carregue as armas que lhe dei.
— Exigência inabitual, Senhora. É preciso que esse jovem seja excepcional.
Depois, dirigindo-se ao rapaz, perguntou:
— Como você se chama?
— Não tenha medo — interveio Vivian —, ele é de alta linhagem.
Garvain examinou mais um instante o varlete, que permaneceu impassível sob o exame.
— Ele tem, de fato, a postura — admitiu por fim. A Dama esporeou sua égua.
— Vamos, Senhor. Temos pressa de ser apresentados ao rei.
Quando Vivian e a criança entraram no castelo, cerca de vinte varletes, acompanhados de seus escudeiros, esperavam a chegada do rei.
Um grande número de donzelas tinha se juntado em volta da sala. Haviam vindo para admirar os jovens, comparar suas posturas e seus rostos, trocar comentários e risos, avaliar entre elas qual o que mais lhes agradava, qual saberia mostrar seu valor na ocasião do próximo torneio.
Uma dizia: "Eis o que será meu campeão. Ele tem belas costas." Uma outra fazia um trejeito: "Eu prefiro o louro, atrás dele. Tem as faces tão rosadas!" Outra ainda retorquia: "Não é pela cor das faces que se vê o cavaleiro! Olhem as pernas do moreno, lá adiante: deve se sustentar bem no solo e na sela." E riam.
Pararam de rir quando Acriança entrou e, conduzido por Vivian, abriu caminho até a primeira fila. Não disseram mais uma palavra. Elas o comiam com os olhos. Nunca tinham visto um jovem com tão perfeitas e sólidas proporções, de olhar tão límpido, com uma segurança tão tranqüila. Compreenderam que todas o queriam para campeão durante o próximo torneio em que os novos cavaleiros se enfrentariam. E que apenas uma — talvez — obteria esse prazer. Invejaram-se antecipadamente. Viam apenas um único varlete, imaginavam-se todas como rivais.
Finalmente, Arthur fez sua entrada, com a rainha Guinevere apoiada no braço. As donzelas então concordaram em tirar os olhos do belo varlete desconhecido.
Não olharam para o rei, mas para Guinevere. Todas gostariam de se parecer com ela. Arthur a desposara muito jovem e, por um milagre que desejavam que lhes acontecesse também, ela continuara jovem. Guinevere nunca parecia ter mais de dezoito anos. A idade dos jovens que seriam armados hoje e que elas sabiam que não as olhariam mais depois que ela tivesse entrado. Nunca tinham visto outra mulher como ela, em quem se aliavam as qualidades mais contraditórias: forte e delicada, doce e autoritária, loura com pele de morena, sorridente e severa, moça e mulher, rainha e princesa. Mesmo assim, não detestavam Guinevere: sonhavam em se parecer com ela — e nisso residia a prova definitiva de seu encanto, de sua educação e naturalidade.
As donzelas não foram as únicas a concentrar os olhares sobre a rainha. Nenhum dos varletes, nenhum dos escudeiros ou dos homens e jovens presentes na sala conseguiu deixar de contemplá-la. Houve um grande silêncio, semelhante àquele que caracteriza o respeito pelo rei. Claro, a presença de Arthur, o melhor soberano e o mais valoroso desde Pendragon, tinha seu papel naquele silêncio repentino. Afinal, os varletes haviam vindo por causa dele, porque não havia melhor suserano do que Arthur, e nenhuma honra maior do que ser feito cavaleiro por ele. Mas a beleza da rainha era tamanha que qualquer rapaz, ao vê-la, sonhava em se tornar Arthur, para ser amado por ela.
Garvain prevenira o rei da presença na corte da Dama do Lago. Ele lhe descrevera a sóbria magnificência de sua escolta e o porte do varlete que ela conduzira a Camelot para que fosse feito cavaleiro. Arthur conhecia os poderes de Vivian; sabia que Merlin, que nos primeiros anos de seu reinado tinha sido seu melhor conselheiro, a amara a ponto de perder a própria liberdade — e ele, Arthur, acabara perdendo um homem ao qual devia seu trono e suas primeiras vitórias.
Então, ele se aproximou primeiro da Dama do Lago. Ela não era nem sua vassala nem sua inimiga. Era bem mais do que isso: uma mulher livre, uma mágica, e o único ser no mundo que se mostrara capaz de vencer Merlin, "o filho do diabo". Arthur a respeitava e temia. Ser um grande rei não consiste apenas em ganhar todas as batalhas, todas as guerras: trata-se também — sobretudo — de ser um grande político, de saber trazer para sua causa os possíveis e perigosos adversários.
— Senhora — disse ele a Vivian —, nada poderia me proporcionar maior prazer do que sua presença aqui. Garvain me preveniu que a senhora me traria um varlete. É esse jovem?
Acriança endireitou os ombros quando o rei o apontou. Mas teve dificuldade em desviar os olhos da rainha. Desde que ela se aproximara, ao lado de Arthur, não parará de olhá-la, disfarçadamente. Claro, ele não era o único. Mas Guinevere havia lhe retribuído o olhar, e ele sentira-se como que deslumbrado.
— Esse varlete — disse Vivian — irá servi-lo como ninguém jamais o fez.
— Tenho muitos cavaleiros à minha volta. E os melhores. Deus faça com que ele, com o passar dos anos, alcance suas proezas.
— Os anos em nada o mudarão — replicou Vivian. — Sua proeza não tem igual.
Um pouco surpreso com tanta segurança, Arthur sorriu e colocou a mão sobre o ombro de Acriança.
—-Dama Vivian parece tê-lo em altíssima estima. Quais são seu nome e sua linhagem?
— Ele não pode lhe responder — declarou Vivian. — Ele não os conhece. É a seu serviço que ficará sabendo.
— Que enigma é esse?
— Ignoro, Sire*. É uma profecia que ouvi da boca do grande Merlin.
Cada vez mais espantado, Arthur lançou um último olhar intrigado para o varlete. Depois chamou seu sobrinho Garvain.
— Leve esse menino e prepare-o para a cerimônia. Em voz baixa, perguntou-lhe:
— O que acha dele?
— Se ele mostrar tanto valor em combate quanto na aparência, o senhor não terá mais belo cavaleiro a seu serviço.
O rei se virou para Guinevere.
— E a senhora, também acredita nisso? Ela baixou os olhos.
— É bem possível — murmurou.
Enquanto em toda parte pelas ruas de Camelot se falava do varlete que não tinha nome e da grande impressão que causara, Garvain levou-o para jantar consigo. Fez-lhe inúmeras perguntas sobre sua infância, sua educação e a vida que levara junto da Dama do Lago, às quais o rapaz respondeu com simplicidade. Ele evocou com entusiasmo suas caças pelas florestas e nas colinas, e logo Garvain, que, sempre que podia, adorava caçar o javali e o cabrito montes, se sentiu cativado por aquele varlete e pela precisão e vivacidade de seus relatos.
— Nós vamos caçar juntos. Você vai ver, a caça não falta nas florestas de Logres.
— Ficarei feliz de caçar em sua companhia, Senhor. Mas, principalmente, tenho pressa de lutar do seu lado.
Garvain sacudiu a cabeça.
— Talvez você logo venha a ter a oportunidade. O norte do reino foi atacado, mês passado. Dezenas de homens, mulheres e crianças estão agora nas mãos do agressor. Assim que as festas de São João terminarem, será necessário que alguns de nós vão libertá-los.
— Quem é esse inimigo do rei?
— Meleagrant, filho de Elfride de Gorre. Ele foi varlete em Camelot, há alguns anos. Estava a serviço de Ké, o senescal. Seu orgulho e brutalidade eram tamanhos, e a indulgência de Ké em relação a ele tão culpável, que o rei o dispensou.
Acriança bateu com o punho sobre a mesa.
— Eu o desafiarei em pessoa! Garvain desatou a rir.
— Calma, menino! Os cavaleiros novos devem primeiro fazer suas provas. Meleagrant será morto antes de você obter o direito de enfrentá-lo!
Baixando a voz, ele se curvou por baixo da mesa.
— Só existe um único cavaleiro capaz de fazer frente a esse louco Meleagrant: eu.
Piscou um olho.
— Pode acreditar em mim: minha maior qualidade é a modéstia...
Depois que caiu a noite, eles se levantaram da mesa para ir até a igreja. Lá, segundo a tradição, Acriança fez vigília a noite inteira. Garvain não o deixou nem por um instante. De manhã, conduziu-o a um quarto e lhe disse para repousar até a hora da missa solene, quando ele faria parte do cortejo do rei.
Acriança caiu na mesma hora num sono profundo. Teve somente um sonho: estava na sala, de armadura, carregando o escudo de duas listas vermelhas, e, na hora em que recebia a espada, a que Vivian mandara forjar para ele, o rei desaparecia do sonho para dar lugar aos grandes olhos claros e ao rosto sem defeito de Guinevere...
— O que ficou sabendo sobre esse varlete?
Palha fresca fora espalhada no chão. A rainha estava sentada na beira da cama. Ela mandara chamar Garvain.
— Senhora, ele me pareceu possuir todas as qualidades para que o rei o faça cavaleiro.
— Provavelmente — disse Guinevere com irritação. — Não é isso que estou lhe perguntando. Ele lhe disse alguma coisa que esclarecesse o mistério de seu nascimento e de seu nome?
— Nem uma palavra, Senhora. Ele cresceu e viveu no Lago. Suas distrações favoritas são o xadrez e a caça. Falamos de cabritos monteses, javalis e cavalos.
— Você nunca vai mudar, Garvain. Só pensa nos prazeres.
Ele baixou a cabeça, ofendido.
— Perdão, Senhora. Eu ignorava que o rei quisesse que eu interrogasse o varlete a respeito de seu nome e nascimento.
— Você não se perguntou por que Vivian o trouxe para nós e o impôs sem nos revelar quem ele é?
— Que impressão tem? De que se trata de uma armadilha?
— Lembre-se do que ela fez a Merlin. Por que não urdiria uma nova intriga, dessa vez contra Arthur?
Garvain pareceu refletir por um instante.
— Creio — disse finalmente — que, se há uma intriga, esse rapaz nada tem a ver com ela. Ele é direto, franco, quase infantil ainda. Cheio de um arrebatamento que será preciso disciplinar.
— Então por que nos esconde seu nome? Garvain encolheu os ombros.
— Porque ele mesmo o desconhece. Ou porque um juramento o impede de revelá-lo.
Guinevere deu alguns passos. O cheiro forte da palha impregnava a peça.
— Não é preciso se preocupar com o rei — acrescentou Garvain.
Ela parou, observando-o como se não o visse, perdida em um sonho. Pouco à vontade, Garvain repetiu:
— Não se preocupe, Senhora.
Ela pareceu voltar à realidade. Examinou atentamente o cavaleiro.
— Não é por causa do rei que estou preocupada... Depois, com um gesto distraído, fez sinal para que
Garvain a deixasse. Ao se ver sozinha, aproximou-se da janela de largo vão, que se abria, abaixo, sobre os jardins de Camelot. Desde que despertara, naquela manhã, o sonho que tivera não a deixava mais: o sonho com uma espada flamejante que ela tomava nas mãos, e suas mãos sangravam, mas mesmo assim ela não sentia a mínima dor, ao contrário, sentia uma exaltação muito forte e muito doce ao mesmo tempo, ao estender a espada ao varlete desconhecido...
A espada
Durante a missa solene, Acriança se sentiu inexplicavelmente nervoso. Tinha o sonho na cabeça e se perguntava qual poderia ser seu significado. Acreditava nos presságios e nas premonições. Mas esta última o inquietava: por que a rainha substituía o rei para lhe entregar a espada?
Terminada a missa solene, ele seguiu Garvain até o castelo. Subiram ao seu quarto. Lá, o cavaleiro o ajudou a se armar dos pés à cabeça, como requeria a cerimônia. Acriança portava sobre a loriga* de malha de prata uma cota e um mantel de tecido branco e, no braço, o escudo cor de neve com duas listas vermelhas.
Garvain, afastando as mãos com admiração, assegurou-lhe que ele seria o mais notável e o mais notado dentro de poucos instantes. Ia apanhar a espada, que Arthur, após a armação, daria ao novo cavaleiro, quando uma voz exclamou às suas costas:
— Deixe-me beijá-lo uma última vez, belo filho de rei. Era Vivian, que deslizara sem ruído para dentro da peça. Trajava um suntuoso vestido branco guarnecido de arminho. Acriança abraçou-a com alegria — misturada, contudo, a um sentimento estranho: de repente, sem que pudesse se controlar, repugnava-lhe o beijo que a Dama lhe dava nos lábios. E, quando se afastou, talvez um pouco depressa demais, ele deu-se conta de que, desde que avistara a rainha Guinevere, não achava mais Vivian tão bonita assim. Não achava mais que nenhuma mulher podia ser comparada a ela.
— Não se preocupe — cochichou-lhe Vivian. — Sei o que se passa no seu coração e não sofro com isso. Tem que ser assim. Este dia decidirá seu destino. Saiba vivê-lo como é preciso.
Antes que ele pudesse lhe responder, ela pegou Garvain pelo braço e o acompanhou até a porta.
— Senhor, eu lhe confio esse varlete. Creio que o rei o espera.
Acriança alcançou-os. Com o escudo carregado no braço esquerdo — e a mão direita vazia.
Os vinte varletes estavam alinhados no centro da sala. Carregavam suas mais belas armas*, aquelas cujas cores eles deveriam defender nos torneios, assim como na batalha.
Todos haviam feito o longo aprendizado dos filhos da realeza. Até os sete anos, permaneceram no castelo sob-a guarda das mulheres, da ama-de-leite, da mãe e dos serviçais. A partir daquela idade, acompanharam seus pais a toda parte — salvo nos campos de batalha. Fora assim que tinham aprendido a montar a cavalo, a caçar, a manejar o arco e a espada. No dia em que completaram 14 anos, foram confiados a seu suserano, o rei Arthur. Se os pais lhes tivessem ensinado as atividades que fariam deles homens, e aguerrido seus corpos, na corte de Arthur teriam feito o verdadeiro aprendizado que os conduziria à cavalaria.
Tinham mostrado ser, para o rei e seu círculo, serviçais mudos, dóceis e incansáveis. Tinham sido encarregados de acordar seu mestre, lavá-lo e vesti-lo; tinham cuidado de seus cavalos, tinham-nos alimentado, tratado e arreado; haviam servido à mesa, onde tinham por a função principal cortar as carnes. Para a caça, tinham treinado as matilhas de cães, os bracos e os lebréus, ensinado os falcões a obedecer e a pousar sobre seus punhos enluvados,-e, depois, retirados os capuzes que os cegavam, a procurar-suas presas em pleno vôo e trazê-las. No torneio e na guerra, cuidaram das armas de seu senhor. Só haviam assistido às batalhas de longe, como espectadores, E hoje, finalmente, depois que o rei os tivesse armado, obteriam o direito de combater a seu lado e de justar* no meio dos outros.
Acriança chegou por último e se colocou na extremidade da fila. Era o único que não tinha sido formado por nenhum mestre; era o único que não tinha sido varlete de Arthur. E era uma honra extraordinária o fato de o rei aceitá-lo apesar de tudo — uma honra oferecida à Dama do Lago. Acriança também sabia, sendo o vigésimo primeiro e o último, que teria de se mostrar o primeiro em tudo, e o melhor. Isso não lhe desagradava. Ao contrário. Tinha pressa em receber a espada das mãos do rei e de colocá-la a seu serviço.
O ritual era simples e de aparência brutal. Arthur parava diante de cada varlete que, então, colocava um joelho no chão. O rei lhe dizia simplesmente: "Em nome de Deus, eu o faço cavaleiro" e lhe administrava a pancada*: um soco com o punho fechado que atingia o rapaz no pescoço ou nas costas — "o único soco que um cavaleiro deve receber sem devolver". Simbolizava o dom da cavalaria. Dali em diante, o novo cavaleiro estava obrigado a responder a qualquer provocação, a qualquer ultraje.
Quando finalmente Arthur chegou até ele, Acriança ajoelhou-se lentamente e inclinou humildemente a testa. Seu coração bateu mais forte quando ouviu as palavras sagradas:
— Em nome de Deus, eu o faço cavaleiro.
O rei desferiu-lhe no pescoço uma pancada mais violenta do que havia aplicado nos outros varletes. Mas Acriança não se mexeu sob o choque, não estremeceu com a dor. Um rumor de admiração correu entre as donzelas que assistiam à cerimônia. Arthur estendeu as mãos e ergueu ele mesmo Acriança.
— Você está pronto para ter um lugar, um dia, na Távola Redonda. Será que me daria o prazer, neste momento, de me informar seu nome?
— Sire, só posso repetir o que lhe disse a Dama: ignoro tudo sobre minhas origens.
Arthur observou-o pensativamente.
— Não quero crer que você esteja mentindo.
— Não estou mentindo, Sire.
— Ótimo.
O rei foi ter com Guinevere, que estava ao fundo, sobre o estrado que havia sido recoberto de folhas verdes e frescas. Era tempo de terminar a cerimônia com o dom, nas próprias mãos, da espada.
Nesse instante, o olhar de Acriança cruzou com o da rainha. Percebeu nele ao mesmo tempo doçura, desafio e uma espécie de inquietação. Na mesma hora ele desviou os olhos. Lembrou-se do seu sonho. Guinevere lhe entregava a espada.
A espada.
Acriança empalideceu. A espada. Esquecera a espada lá em cima, dentro do quarto, depois da visita imprevista de Vivian. Hesitou muito pouco. Não poderia suportar a vergonha de ver o rei vir a ele de mãos vazias.
Saindo da fila, viu que a Dama do Lago, do outro lado da sala, o observava com o que lhe pareceu uma atenção divertida. Enquanto abria passagem entre os cavaleiros que assistiam à armação, alguém o segurou firmemente pelo braço.
— Aonde você vai? Era Garvain.
— Esqueci minha espada. Vou apanhá-la.
— Não gosto disso. É um mau presságio.
— Perdoe-me, Senhor.
— Vá depressa.
A criança correu pelas escadas. De início, perdeu-se — o castelo era muito grande, bem maior do que o de Vivian. Deu meia-volta várias vezes, avistou um sargento, pediu informações. Finalmente, chegou ao quarto.
A espada estava pousada sobre a mesa. Um raio de sol fazia luzir sua lâmina de aço. Acriança segurou-a e, com a arma na mão, precipitou-se pelas escadas e corredores estreitos.
Quando alcançou o alto dos largos degraus de pedra que desciam até a sala, ele se imobilizou, estupefato. Empurrando e derrubando com o peitoral de seu cavalo negro os sargentos que tentavam mantê-lo à porta, um cavaleiro vestido e armado de preto acabara de irromper na sala.
O desafio
— Rei Arthur, quando nos vimos pela última vez, eu tinha quinze anos! Mas acho que você me reconhece. Eu deveria estar hoje entre esses cavaleiros novos, se você não tivesse me feito a afronta de me expulsar!
Um nome percorreu a sala, levado de boca em boca:
— Meleagrant...
— Sim, Meleagrant, príncipe de Gorre! — bradou o cavaleiro negro levantando a espada. — Aquele que você desonrou quando ele veio se colocar a seu serviço. Aquele que você quis cobrir de vergonha. Aquele a quem você recusou se tornar seu cavaleiro!
Seu cavalo de batalha pateava de impaciência. Os cascos, estalando sobre o chão de pedras, soltavam breves faíscas. As donzelas recuaram desordenadamente para o mais longe possível. Os cavaleiros, antigos e novos,juntaram-se diante do rei, prontos para protegê-lo de um ato de loucura do Cavaleiro Negro.
Mas ele dominava tão bem sua montaria quanto sua cólera. Falava alto, com uma voz rude. Cabeça descoberta, cabeleira de azeviche muito longa e solta sobre os ombros, parecia um só com seu cavalo, um só corpo poderoso e escuro. Seus olhos de cor indefinida tornavam sua fisionomia indecifrável. Se o olho esquerdo, cor de avelã, parecia calmo e refletido, o olho direito, azul como um céu antes da tempestade, concentrava toda a sua violência e sua cólera.
— O que você quer? — gritou Arthur.
— Eu quero — deteve-se ao pronunciar essa palavra, deixou-a em suspenso e a repetiu —, eu quero, Rei Arthur, provar que você cometeu o pior dos erros me dispensando. Eu quero escarnecer do seu orgulho e do orgulho de seus vassalos.
De repente, Meleagrant e seu cavalo se imobilizaram. Nenhum músculo do animal, nenhum traço do cavaleiro se mexiam. Ele falava com uma voz baixa, calma e ainda assim infinitamente ameaçadora:
— Rei Arthur, eu tenho prisioneiros em minhas terras, você sabe, muita gente sua. Não vim aqui com a intenção de devolvê-los. Vim lhe mostrar que você não tem nem a força nem a coragem para libertá-los. Vim desafiá-lo.
Ouviu-se um murmúrio entre os cavaleiros. Garvain e, junto dele, o senescal Ké deram um passo à frente, com a mão no punho da espada. Meleagrant sorriu-lhes com desprezo e prosseguiu:
— Rei, se há aqui um único cavaleiro capaz de enfrentar meu desafio e me vencer, então eu faço o juramento de que sua gente lhe será devolvida, sã e salva. Mas imponho uma condição.
— Pode falar — disse Arthur.
— Quando esse cavaleiro vier me enfrentar, daqui a pouco, na floresta ao norte de Camelot, ele virá acompanhado da rainha Guinevere. E, se eu o vencer — e, creia-me, eu o vencerei —, terei conquistado a rainha e a levarei cativa para Gorre!
Dito isso, Meleagrant puxou as rédeas e seu cavalo recuou lentamente em direção à entrada da sala. Ele contemplava com satisfação a impressão que produzira. Ninguém dizia uma palavra. Nem mesmo Garvain, cujo punho soltara a espada.
— Pois bem — exclamou Meleagrant, sem deixar de fazer recuar sua montaria —... ninguém? Ninguém nesta assembléia vai ter a coragem?
Do alto dos degraus, Acriança assistira a toda a cena, e a indignação dera lugar à raiva — uma raiva que ele nunca mais havia experimentado desde o longínquo dia em que Caradoc, seu mestre, havia batido em seu lebréu.
Varreu a sala com o olhar: não, esse cavaleiro negro tinha razão, ninguém, ninguém parecia querer enfrentar o desafio. Acriança não compreendia nada. Sentiu uma grande vergonha por todos aqueles cavaleiros. O silêncio deles já havia durado demais. Não estavam se dando conta de que de agora em diante seriam vistos como medrosos?
Acriança se precipitou sobre os degraus, com a espada à mão. Estava pronto para se atirar imediatamente sobre Meleagrant. Não refletia mais. Estava inteiramente possuído por uma raiva que lhe turvava a vista e o espírito. Mas, quando já se aproximava dos cavaleiros reunidos em volta do rei e se preparava para berrar sua resposta ao desafio de Meleagrant, uma voz rouca declarou:
— Eu! Eu o enfrentarei, Meleagrant, para a honra de meu rei e a salvaguarda de minha rainha!
Era Ké, o senescal. Ele havia dado um passo adiante e, erguendo seus ombros curvados pelo tempo e pelas muitas e antigas batalhas, tirara a espada da bainha. Parado em pleno arrebatamento, Acriança permaneceu ali, com a respiração curta, o coração batendo forte, o sangue nas faces. Primeiro experimentou rancor contra o senescal. Como se ele roubasse seu combate. Depois se acalmou, vindo se colocar do lado de Garvain.
— Eis um homem corajoso — soprou-lhe no ouvido. — Por que não se ofereceu, Senhor?
Sobrancelhas franzidas, Garvain lhe fez sinal para que se calasse.
— Você não sabe o que está dizendo. Ké é corajoso, mas é idiota. Caiu na armadilha como uma criança.
— Que armadilha, Senhor? O combate não será leal?
— Observe o senescal, e observe Meleagrant. Consegue ver alguma coisa leal nesse enfrentamento?
— Mas é necessário que alguém aceite esse desafio!
— Cale-se, então. Eu mesmo não correria esse risco. Acriança decididamente não entendia mais nada.
—-Esse risco, Senhor? É o dever de um cavaleiro corrê-lo.
Exasperado, Garvain virou-se bruscamente para ele.
— O dever de um cavaleiro é proteger sua rainha, não entregá-la a um seqüestro.
Acriança não teve a oportunidade de replicar. Meleagrant, na porta da sala, exclamou:
— Estou vendo que não mudou, Senhor senescal, desde o tempo em que fui seu varlete. Tinha certeza disso, e fico muito satisfeito.
Ele riu e, bruscamente, fez o cavalo retornar.
— Eu o aguardo, Ké, no Bosque do Norte! Com a rainha!
Cavaleiro e montaria desapareceram com um barulho de galope.
Nada antes surpreendera tanto Acriança quanto a cena a que assistiu depois da partida de Meleagrant.
Ele esperara uma certa efervescência, que as pessoas começassem a preparar o senescal para aquele julgamento*. Não houve nada disso. Durante um momento, reinou a maior consternação. Ouviram-se donzelas chorando, outras as consolando. Os cavaleiros, com a expressão grave, evitavam fixar os olhos em Ké, em Arthur e na rainha. O próprio Ké, sozinho no centro da sala, parecia naquela hora se dar conta do que havia feito. O abatimento lhe curvava as costas ainda mais. Lançou um olhar triste à sua volta, viu que ninguém, fora aquele varlete desconhecido, ousava devolver-lhe o olhar, e então dirigiu os olhos para o rei.
Este o observou em silêncio. Não se sabia, pelo seu rosto, se sentia mais desgosto ou raiva. Depois ele fechou os olhos, recuperou o domínio de suas emoções e reabriu as pálpebras.
— Aproxime-se, Ké.
O senescal hesitou. Arthur lhe estendeu os braços — e Acriança admirou esse gesto do rei. Então Ké se atirou aos pés de Arthur, busto e cabeça inclinados para o chão.
— Perdoe-me, Sire. Eu não refleti. Segurando-o pelas axilas, Arthur levantou-o com doçura.
— Você fez o que o seu coração ditou.
— Não foi o meu coração, Sire... Foi meu velho sangue estúpido, minha burrice...
— Eu o conheço, Ké: cresci com você. Todos nós o conhecemos. Meleagrant também o conhece bem. Não podemos reclamar da sua natureza.
— Ele zombou de mim, Sire. Previu que se havia aqui algum idiota para responder ao seu desafio, este seria eu.
— Sim, ele zombou de você. Zombou de todos nós. É tarde demais para nos lamentarmos. Não podemos mais evitar esse julgamento que ele nos lançou como uma armadilha.
O senescal quis responder, mas o rei impediu-o com um gesto.
— Assunto encerrado. Pegue seu cavalo de batalha e arme-se. A rainha vai se preparar para segui-lo.
Com essas palavras, o senescal virou-se para Guinevere como uma criança em falta com a mãe. Inclinou-se novamente, com os punhos cerrados sobre o peito.
— Senhora, sou um velho asno. Mas eu a defenderei até a morte, se for preciso. Deus permita que eu tenha tanta força quanta burrice...
— Eu confio em você — disse simplesmente a rainha. Acompanhada de suas serviçais em lágrimas, ela se dirigiu para a escadaria. Ao cruzar com Acriança, fixou os olhos nele. Surpreso, perturbado, ele acreditou ler uma pergunta naquele olhar, que decifrou assim: quem é você? O que quer de mim? Estava quase pronto a responder, mas ela se virou como se quisesse impedi-lo e, com uma voz rápida, ordenou às serviçais que parassem de choramingar. Enquanto ele a observava subir as escadas, Vivian se aproximou.
— O que está achando deste dia? — murmurou. — Eu lhe preveni que iria surpreender você.
— O que devo fazer agora, Senhora?
— Cabe a você decidir. É um cavaleiro agora.
— Não, ainda não. Eu... eu não recebi a minha espada das mãos do rei...
— Recebeu a pancada. Quanto à sua espada...
A Dama sorriu misteriosamente. Acriança se impacientou.
— O que quer dizer, Senhora?
— Não se faça de tolo como o senescal.
— Não compreendo.
— A espada do cavaleiro está a serviço daquele que a carrega depois da armação.
— Sim... e daí?
— E daí, pense, belo filho de rei. Mas rápido. Vivian fez-lhe um carinho breve no rosto e se afastou.
Acriança, indeciso, perplexo, seguiu-a por um momento com o olhar. Depois levantou a cabeça para o alto da escadaria onde, um pouco antes, Guinevere desaparecera.
O Anão na CARROÇA
— Onde está o jovem cavaleiro? — perguntou Garvain. — Aquele que não tem nome.
Os cavalos tinham sido trazidos pelos escudeiros. Yvain pôs o pé no estribo e subiu na sela.
— Não sei, Garvain. A Dama do Lago também desapareceu.
Eram sete cavaleiros, alguns de armadura, outros apenas de cota, cavalgando suas montarias. Mais de três horas haviam se passado desde a partida do senescal Ké e da rainha Guinevere. O combate, com toda a certeza, já ocorrera. Não mais se contendo, Garvain solicitara a permissão de Arthur para ir o mais rápido possível até o Bosque do Norte, a fim de saber o que acontecera durante o julgamento.
— Sire, não podemos mais esperar. Respeitamos as regras do desafio. E se só eu tivesse que decidir...
— O que está querendo dizer, sobrinho?
— Nada, Sire. Simplesmente... Há circunstâncias em que se deve agir contra as regras.
—Você talvez possa. Não eu. Sou o rei de Logres e, por mais que isso me custe, devo respeitar as leis da cavalaria.
— Até perder a rainha...
Arthur batera com o punho na mesa.
— Nem mais uma palavra, Garvain! Ninguém, você me entende, ninguém sentirá tanta dor se Meleagrant capturar Guinevere! Mas não tenho escolha. De que autoridade poderia me prevalecer para transgredir as leis quando elas me são desfavoráveis?
— Perdoe-me, Sire. O senhor tem razão.
— Não foi nada. Você falou com franqueza, não fiquei aborrecido.
— Permita-me então interpretar a lei à minha maneira. Meleagrant obteve o combate que veio procurar. Nada me impede, neste momento, de persegui-lo, com alguns bons cavaleiros, e de recuperar-lhe a rainha.
— Você tem certeza absoluta de que Ké foi vencido...
— E se, por milagre, ele tiver ganho, então o trarei aqui, assim como a rainha, e festejaremos sua vitória. Deixe-me ir, Sire, eu lhe peço.
— Muito bem. Mas não posso acompanhá-lo: isto seria romper o pacto do julgamento, segundo o qual, se Meleagrant for o vencedor, ele levará Guinevere para Gorre.
— Compreendo, Sire. A vergonha de ter renegado o julgamento cairá somente sobre mim. Mas terei o prazer de acuar Meleagrant como um animal.
E assim os cavalos foram selados e aparelhados imediatamente. E Garvain, acompanhado de Yvain e de cinco outros cavaleiros, saiu a galope de Camelot em direção ao Bosque do Norte. Gostaria que o jovem cavaleiro sem nome estivesse cavalgando ao seu lado; ligara-se a ele e tinha vontade de vê-lo em ação, ou seja, manejando a espada — aquela espada que, estouvadamente, ele se esquecera de trazer para o rito da armação. Não o encontrara na sala, nem nas proximidades. Tinha ficado contrariado, sentindo-se como que traído.
Mas Garvain se esquecia tão depressa de seus rancores quanto se via tomado por raivas e, a caminho do Bosque do Norte, não pensava mais no caso. Tinha pressa de encontrar Ké. E sua cólera já estava toda ocupada com a impudência de Meleagrant, com a idiotice do senescal e com o comportamento do rei. Claro, Ké era o filho de Antor, o homem que educara Arthur, e isso explicava, sem desculpar, a indulgência do rei em relação às tolices daquele que ele havia acreditado por muito tempo ser seu irmão mais velho. Claro, ele também, Garvain, acreditava nas leis da cavalaria e havia feito o juramento de respeitá-las; mas devemos nos conformar ainda com essas leis quando um tipo como Meleagrant se serve delas para satisfazer sua natureza brutal e invejosa? Quando a vítima desse abuso é a rainha?
Não. Garvain não acreditava nisso.
Quando se aproximavam do Bosque do Norte, viram sair dele um cavalo, com a sela vazia, as rédeas soltas. Yvain fez sua montaria galopar. Alcançando-o perto de um riacho, segurou-o pelas rédeas e gritou para os outros que se tratava exatamente do cavalo de Ké.
— Há sangue nos loros* dos estribos! — acrescentou. — E a sela foi rasgada!
Sem mais se preocupar com o cavalo, Garvain penetrou no meio das árvores. Não reparava nos galhos que o prendiam enquanto passava. Chamou diversas vezes o nome do senescal. Não obteve resposta. Finalmente, avistou uma abertura de luz que indicava uma clareira próxima. Dirigiu-se para lá imediatamente.
O mato estava pisado, trabalhado, a terra revirada, sobre toda a extensão da clareira. Os dois pedaços de uma lança partida e os fragmentos de um escudo de madeira espalhados pelo chão. Garvain desceu de seu rocim. Na sombra azul da orla das árvores, viu um homem semi-estendido, as costas apoiadas contra um tronco de árvore. Correu até ele.
Ké havia retirado o elmo. Sua barba grisalha estava manchada de sangue. O ferro de uma lança traspassava-lhe o lado do corpo. Garvain acocorou-se ao lado dele.
— Será que o rei perdoará minha estupidez? — murmurou o senescal.
— Cale-se, senescal. E pare de se fazer de burro, vamos acabar acreditando. Meleagrant foi-se embora daqui há muito tempo?
— Sim, muito tempo... Nosso combate foi resolvido no primeiro assalto... Vejam...
Mostrou o ferro da lança fincado em suas entranhas.
— A rainha seguiu-o sem resistência?
— Ela não poderia resistir... Uns dez de seus homens aguardavam Meleagrant... Gigantes ruivos, montados em cavalos duas vezes mais fortes do que os nossos...
Yvain e os outros cavaleiros tinham, por sua vez, penetrado na clareira. Garvain chamou-os e, depois, deixando ali o senescal, montou novamente seu rocim.
—Yvain, cuide de Ké. Leve-o a Camelot.
— E você, Garvain?
— Eu parto no encalço de Meleagrant. Enquanto ele ainda não está muito à nossa frente.
— Não vá sozinho. Leve Erec e Cliges.
— Não. Meleagrant tem uma escolta que nem mesmo nós sete, juntos, seríamos loucos de enfrentar. Deixarei indicações sobre meu caminho. Assim que o rei puder, deve enviar trinta cavaleiros ao meu encontro. Adeus, Yvain!
As pegadas de Meleagrant e seus homens foram fáceis de seguir. Estavam provavelmente duas ou três léguas à frente e, a julgar pela distância entre as marcas e por sua profundidade, iam a grande velocidade. Garvain sabia que não os alcançaria antes da noite. Pouco lhe importava. Se fosse preciso persegui-los até o reino de Gorre, ele o faria.
O verão que principiava era quente e claro. A noite chegaria tarde. Garvain decidiu que caminharia até a escuridão ser completa. Tinha esperança de que Meleagrant fizesse uma parada antes dele.
Pouco depois do vau de um rio, transpôs um pequeno morro. Ali, atravessado no caminho, abaixo da encosta, jazia um cavalo branco. Garvain parou a montaria e saltou à terra. O animal, coberto de suor, morrera de esgotamento. Quanto tempo seu cavaleiro o teria feito galopar até que seu coração cedesse? Seu cavaleiro... Com uma olhada, Garvain examinou os arreios. Era isso mesmo. Já havia visto aquele rocim: na entrada da escolta da Dama do Lago em Camelot.
O cadáver do cavalo ainda estava quente. Garvain se levantou e olhou ao redor. O caminho, calçado em alguns lugares, descia até um valão, onde então desaparecia.
— É provável que ele não esteja muito longe... O jovem louco...
Garvain subiu de novo na sela. Pelo menos um ele iria alcançar dentro em breve...
Avistou-o, indo a passo firme, menos de uma légua mais adiante. Sentiu-se ao mesmo tempo aliviado e feliz por não ter se enganado. Nem sobre a identidade do cavaleiro que havia matado de cansaço sua montaria, nem sobre o valor que, desde o começo, percebera nele.
— Muito bem, jovem cavaleiro que não tem nome — disse —, eu achava que havia desaparecido no exato momento em que precisava de você!
Acriança deu meia-volta, com a mão no punho da espada. Estava suado, assim como seu cavalo morto. Teve um sobressalto ao reconhecer Garvain.
— Senhor? O que faz aqui?
— Eu devolvo a pergunta.
— Persigo Meleagrant.
— Você o persegue? A pé? — zombou Garvain.
— Meu rocim caiu, lá embaixo.
— Eu sei. Eu o vi. O que esperava, fazendo-o manter aquela velocidade?
Acriança pareceu desconcertado diante da pergunta.
— Alcançar Meleagrant, Senhor.
— Alcançá-lo? Meleagrant? E seus dez gigantes ruivos? E, claro, pretendia vencê-los sozinho?
— Não pensei nisso. Pensei apenas na sorte da rainha. Garvain contemplou-o com uma amistosa ironia.
— Tem certeza de que só lhe falta o nome? E a cabeça, o que fez dela?
Vexado, o rapaz ergueu violentamente os ombros, virou as costas para o cavaleiro e partiu de novo com grandes passos furiosos pelo caminho.
— Sabe em quem você me faz pensar? — gritou-lhe Garvain. — Em Ké, o senescal, quando tinha a sua idade. Rico em ousadia, pobre de espírito.
Sem diminuir o passo, Acriança replicou por cima do ombro:
— E sabe, Senhor, no que me fizeram pensar os famosos cavaleiros da Távola Redonda quando Meleagrant os desafiou?
Garvain esporeou o cavalo, que começou a trotar para alcançar o rapaz.
— Cuidado com o que fala, menino! Não pronuncie palavras de que possa se arrepender.
Acriança parou imediatamente. Virou-se para Garvain, com os olhos faiscando de raiva.
— Eis aí, Senhor, as palavras que eu gostaria de ter escutado quando o Cavaleiro negro estava na sua frente!
— E você, por que não as disse, afinal?
— Porque Ké falou muito depressa!
Garvain não pôde deixar de sorrir diante da indignação com que o rapaz falava, como se lhe tivessem roubado uma prerrogativa.
— Ké salvou a sua vida.
— Não. Arriscou inutilmente a dele. Eu teria vencido o julgamento e trazido de volta Guinevere.
— O orgulho desorienta você. Quem lhe permitiu a intimidade de chamar a rainha pelo nome?
Para espanto de Garvain, essa simples observação bastou para fazer Acriança se calar. Ele enrubesceu, baixou rapidamente os olhos e recomeçou a andar.
Garvain decidiu trotar atrás dele. Pela lógica, deveria ter lhe dado a ordem de fazer o caminho de volta. O lugar de um novo cavaleiro não era ali. Mas o que tinha aquele menino pouco comum a ver com a lógica? E depois, Garvain não estava descontente de ter um companheiro.
O crepúsculo da noite de São João alongava sem parar seus azuis já passados e seus primeiros toques de ouro. Em nenhum momento Acriança diminuíra o passo. Sua sombra se alongava à medida que o sol deslizava na direção do horizonte. Diversas vezes, Garvain tentara retomar a conversa. Tinha esbarrado em um silêncio esquivo. Mesmo a suas brincadeiras e provocações Acriança não respondia mais. Cansado, Garvain terminara desistindo.
Avistaram finalmente um grande vilarejo, que a luz do poente cobria de ouro e escarlate. Na primeira encruzilhada de caminhos, encontraram uma carroça conduzida por um anão. Com uma careta de desprezo, Garvain se afastou com sua montaria a fim de passar ao largo, mas Acriança se dirigiu resolutamente para a carroça.
— Ei, você! Não viu passar uma tropa de cavaleiros? O anão parou o cavalo de tração e examinou aquele
jovem em sua cota branca manchada de terra. Riu de escárnio.
— É possível. Como eram eles?
— Dez gigantes ruivos e um cavaleiro negro.
O anão coçou o queixo sem parar de olhar Acriança de forma zombeteira.
— Ah, não — disse. — Não era isso...
— Então você não os viu?
— Não. Ou melhor, o que eu vi foi uma dama.
— Uma dama? Muito bonita, loura, nobre, imperiosa e sensível?
O anão caiu na gargalhada. O riso fazia um barulho de matraca, um pavoroso estalido. Garvain exclamou:
— Venha comigo, cavaleiro! Está se vendo que ele faz troça de você, esse maldito nanico!
— Ei, grande senhor — tornou o anão —, tem que haver muitos malditos nanicos como eu, senão quem conduziria a carroça? E, por sinal, o retrato que o donzel me fez dessa dama foi tão carregado de sentimento, tão emocionante, que meu malvado coração de maldito nanico não resiste.
Dirigiu-se a Acriança:
— A dama que você descreveu tão lindamente, tenho quase certeza, é a que eu vi.
— Ela estava sozinha?
— Pensando bem, é possível que estivesse acompanhada de dez grandes bastardos ruivos e de um homem de preto... Sim, tenho quase certeza... Mas sou como você, donzel: meus olhos somente a viram!
Desatou novamente a rir. Acriança, apoiando-se com um pé sobre o timão da carroça, suspendeu-se bruscamente diante do anão e o agarrou pelo pescoço.
— Seu riso me desagrada! É melhor dizer quando os viu e para que lado foram!
O ladrão exorbitou comicamente os olhos e fez cara de quem não conseguia mais respirar, agitando exageradamente no ar seus braços curtos como cotos. Acriança soltou-o.
— Obrigado, jovem senhor — disse o anão fingindo humildade —, por não ter tirado minha miserável vida... Você é tão magnânimo — "E está tão apaixonado", disse ele, baixando a voz como um conspirador —, que não posso deixar de ajudá-lo. Você tocou meu coração, meu malvado coração de maldito nanico. Sim, eu sei para onde esses bastardos levaram sua dama.
Esperou um tempo, balançando longamente a cabeça, gozando o suspense.
— Então? — impacientou-se Acriança.
— Então?... Então, meu belo menino, se você faz mesmo questão, estou pronto a conduzi-lo até um lugar onde vai ficar sabendo o que quer saber.
— Vamos!
— Eu imponho uma pequena, minúscula, mas incontornável condição...
— Certo. Ande logo, fale.
O anão mordeu os lábios, contendo um sorriso mau, lançou um breve olhar na direção de Garvain e coçou sonhadoramente o nariz.
— É o seguinte: eu conduzo você se aceitar subir na carroça.
— Se é só isso... — disse Acriança, dando de ombros.
Pulou do timão e se dirigiu rapidamente para a parte de trás, a fim de subir.
— Não! — gritou-lhe Garvain. — Não suba! Acriança virou-se para ele com espanto.
— Por quê? Que mal há nisso?
— Então você nunca viu as carroças conduzidas por anões?
— Não, Senhor. Elas não existem no Lago.
— Esse anão está tentando humilhá-lo. Essa carroça é um pelourinho. São obrigados a subir nela os assassinos e traidores, os ladrões e bandidos das estradas. Exibem-nos em cima dela por toda a aldeia para cobri-los de vergonha antes da condenação.
— Eu não matei nem roubei ninguém, Senhor. Portanto, qual o mal de ser visto sobre esta carroça?
— Jovem idiota! Quando você entrar na aldeia, lá adiante, acha que, pelo seu rosto, vão adivinhar que não cometeu nenhum crime? Não suba nesse pelourinho, irá se desonrar.
Acriança não refletiu nem mais um instante.
— Farei o que devo fazer, se é para a salvaguarda da rainha.
E saltou em cima da carroça. O anão deu uma breve gargalhada e fez estalar o chicote. Seguiram na direção da aldeia. Garvain se viu tentado a deixá-los seguir sem ele,de tão furioso que estava com o jovem cavaleiro. Depois, lembrou-se de que também tinha partido em perseguição a Meleagrant e que, se aquele anão sabia de alguma coisa, era preciso de fato acompanhá-lo.
Mas fez seu cavalo seguir a passo, mantendo uma boa distância entre a carroça e ele.
O leito arriscado
— Então, cavaleiro? Vai ser enforcado?
— Não! Devem esfolá-lo!-
— Ou afogá-lo!
Uma fruta podre atingiu-o em pleno peito. A carroça atravessava a rua principal do vilarejo. A multidão se aglomerava à sua passagem. Saíam às pressas das casas para segui-la, berrando ameaças de morte e ofensas. Mulheres iam para as janelas e atiravam sobre o jovem cavaleiro todas as sujeiras que lhes caíam nas mãos.
— Ao suplício!
— Qual é o crime? — perguntavam ao anão. — Foi vencido em julgamento? Foi covarde, roubou, matou?
O anão não respondia. Apenas ria, ria, e aquele abominável riso excitava ainda mais os insultos e as vaias. Acriança, em pé e precariamente equilibrado na carroça, se esforçava para parecer natural. Seu primeiro gesto, à primeira injúria e ao primeiro punhado de lama recebido no queixo, tinha sido puxar a espada, saltar na rua e cortar as orelhas dos habitantes. Um simples pensamento havia retido sua mão e feito calar seu orgulho: Guinevere. Agüentava aquela vergonha por ela. Por ela, tinha que se deixar conduzir e aviltar pelo anão. Então fechou os olhos e não ouviu mais nada, refugiando-se em si mesmo como numa fortaleza.
— Chegamos, donzel.
Acriança reabriu as pálpebras. O anão apontava-lhe a ponte levadiça de um castelo no limite do vilarejo.
— Se quiser ter notícias de sua bem-amada, apresente-se à donzela que mora aqui.
— Ela não é minha bem-amada — defendeu-se o jovem. — Ela é minha rainha.
— Ah, sim?... Agora desça, apaixonado, você já me divertiu bastante.
Acriança obedeceu. A carroça se afastou na mesma hora. Enquanto ele se dirigia à ponte levadiça, Garvain, a cavalo, surgiu do seu lado.
— Está orgulhoso do que fez? O que deu em você? Acriança não respondeu. Estava perturbado, não pelos
insultos com que a multidão o havia infamado em cima do pelourinho, mas pelas palavras do anão: "sua bem-amada". Nunca, por ele mesmo, teria tido a audácia de pronunciá-las, ou mesmo de escrevê-las em seu coração. Contudo... Contudo, essas palavras tinham saído da boca imunda daquele nanico e não paravam mais de se revirar, dar voltas, se inflamar dentro de sua cabeça.
No pátio, três moças vestidas de escudeiro vieram ao encontro deles. Uma delas levou o cavalo de Garvain para as estrebarias; as outras os escoltaram até a ala sul do castelo. Acriança quis lhes fazer perguntas sobre a rainha e suas serviçais, mas Garvain impediu-o.
— Vamos primeiro saber onde estamos e quem é nossa anfitriã — soprou-lhe ao ouvido.— A pressa é raramente o melhor caminho para se conhecer a verdade. Confie em mim, uma vez na vida.
Deixaram-se, pois, conduzir pelas duas moças. Elas eram encantadoras e pouco loquazes. Levaram-nos para uma peça onde tudo tinha sido preparado para que pudessem tomar um banho. Depois, elas se retiraram.
Lavados, esfregados, refrescados, Garvain e Acriança descobriram no cômodo vizinho roupas novas que lhes eram destinadas. Vestiram-nas. Mal acabaram de se vestir, as duas moças reapareceram e pediram que as seguissem.
Foram introduzidos em uma sala onde a mesa tinha sido arrumada para a refeição. Uma donzela, muito morena, de olhos pretos perscrutadores, os acolheu. Garvain teve um imperceptível movimento de surpresa.
— Eu sou Errande — disse-lhes ela. — Este castelo é meu.
Garvain não respondeu na mesma hora. Depois, sem tirar os olhos dela, inclinou galantemente a cabeça.
— Donzela, sou Garvain, sobrinho do rei Arthur.
Já Acriança calou-se. Errande o olhou, esperou um momento, franziu o nariz, descontente.
— E o senhor, não vai se apresentar? Não tem um nome?
— Precisamente, Donzela.
— Perdão?
— De fato, eu não tenho nome.
Ela o examinou com uma surpresa que se transformou em desprezo.
— É provável que prefira calá-lo, e o senhor tem razão. Não se é mais digno do nome do pai quando se foi exposto sobre a carroça.
— Eu subi por minha vontade.
— Não creio no senhor. É preciso ser um louco para escolher essa vergonha, e o senhor não parece um deles.
— Não a obrigo a acreditar em mim, Donzela. Ela franziu os olhos.
— Não finja humildade, não lhe fica bem
Após o quê, estendeu graciosamente a mão para Garvain.
— Senhor, passemos à mesa. Vai me contar as últimas novidades de Camelot.
Ela o conduziu à cabeceira da mesa, onde o fez sentar-se junto dela. Com uma mão negligente, indicou a Acriança um lugar na outra extremidade, aquele que é destinado aos vavassalos*, e, em geral, às pessoas de pouca importância. Acriança ficou rubro de raiva.
— Está tentando me humilhar, Donzela.
— O senhor é bem exigente, para alguém que subiu na carroça e nem nome tem.
— Vou me sentar no lugar que mereço — resmungou o rapaz.
E, ilustrando a decisão com a ação, foi resolutamente se sentar diante de Garvain, à esquerda de Errande.
— Vou mandar expulsá-lo, Senhor — disse ela, com uma voz sem entonação.
— Se quer bem à sua gente — ele replicou —, mantenha-a longe de mim.
Errande virou-se para Garvain.
— Ele é louco, insolente ou simplesmente muito jovem?
Garvain começou a rir.
— Os três ao mesmo tempo, Donzela! E muito mais ainda! Creia-me, ele merece a lição que a senhorita acabou de lhe dar, mas não merece a afronta que está lhe fazendo.
—-Porque é o senhor, eu me inclino. Quanto ao senhor — acrescentou, dirigindo-se a Acriança —, coma. Mas não me dirija mais a palavra.
Ele se conformou com aquela ordem. Estava furioso, mas tinha fome e precisava recuperar suas forças para o prosseguimento da aventura. Escutou com ouvidos distraídos a conversa de Errande e Garvain. Eram apenas mexericos e historinhas sobre a vida da Corte. Garvain sabia contar, Errande ria muito, Acriança achava aqueles temas de uma futilidade inacreditável. Mais de uma vez teve vontade de intervir e de perguntar a Garvain por que ele não fazia as únicas perguntas interessantes: a donzela tinha visto Meleagrant e Guinevere? O que ela sabia que pudesse ajudá-los? Calou-se, entretanto. Primeiro, para não ter de suportar de Errande uma nova afronta. E sobretudo porque começava a aprender—aprender a virtude cavalheiresca que ainda lhe fazia falta: a paciência. Garvain o havia intimado a não dizer nada a respeito de Guinevere nem de Meleagrant enquanto não julgasse o momento apropriado. Ora, embora o cavaleiro lhe parecesse um pouco ridículo com suas histórias e tagarelices de mulher, ele o respeitava suficientemente para, daquela vez, seguir seu conselho. Decidiu, pois, ter paciência, dizendo a si mesmo que Garvain sabia o que estava fazendo e que, se não fazia as perguntas, era porque calculava que não devesse fazê-las.
A refeição terminada, Errande acompanhou Garvain e Acriança a seus quartos. Um leito magnificamente preparado aguardava o cavaleiro. Ele agradeceu e lhe desejou boa-noite. Em seguida, ela fez Acriança entrar em um cômodo afastada Também lá havia um leito muito macio e ricamente forrado. Errande lhe indicou um monte de palha atirado num canto da parede.
— É lá que o senhor vai dormir, cavaleiro sem nome.
— Por que não nesse leito? Parece-me bem mais confortável.
— E é. Mas ele não é para alguém que subiu na carroça.
— Pare com isto! — irritou-se ele. — Dormirei nesse leito, quer a senhora queira, quer não.
— Cometerá um grande erro.
— Afirmo-lhe que vou me deitar nele.
— E eu lhe afirmo que vai se arrepender.
— Quero ver! — gritou ele, avançando na direção do leito.
Errande não fez um gesto para detê-lo. Inclinou ligeiramente a cabeça e disse, num tom suave:
— Vai pagar muito caro.
Com essas palavras, deixou o quarto.
Acriança tirou a cota e os calções e se sentou sobre o leito. Era muito alto, coberto por uma espessa colcha amarela semeada de estrelas de ouro e bordada com uma pele que o rapaz acariciou e reconheceu como sendo de zibelina. Julgou que era um leito digno de um rei, portanto absolutamente digno dele. Acomodou-se, deliciado. As longas léguas percorridas a galope e depois a pé, mais a noite que passara em claro na véspera, o tinham deixado exausto.
Fechando os olhos, viu desenhar-se sob suas pálpebras a imagem de Guinevere — tão precisa que lhe pareceu estar ali, bem próxima. Quis falar-lhe, não encontrou palavras e, de repente, adormeceu.
Não se saberá jamais o que o despertou. A premonição de um sonho? Um instinto de seu corpo sempre à espreita, apesar do sonho? Pouco importa. Abriu de repente os olhos e, sem refletir, sem sequer saber o que estava fazendo, rolou rapidamente sobre si mesmo e se viu no chão.
Quase no mesmo instante, o barulho seco de uma mola que se desprende ressoou no teto. Uma lança mergulhou direto sobre o leito. Penetrou nele quase inteira, atravessando-o de um lado ao outro, no local exato onde, um segundo antes, Acriança estivera deitado.
Ele se pôs de pé. Esperou um pouco, com os olhos levantados para o teto. A escuridão do quarto era mal dissipada pelo fogo avermelhado da lareira. Ele não distinguia nada. Agarrou a lança e, com um só golpe, arrancou-a do leito. Foi somente então, olhando sua lâmina, de um pé de largura e afiada como uma foice, que o furor o tomou. Com a lança na mão, precipitou-se para fora do quarto, decidido a localizar Errande, não importava onde dormisse, e tomar satisfações.
Na curva de um corredor, uma sombra surgiu diante dele. Brandiu a lança, pronto a traspassá-la em quem quer que fosse.
— Cavaleiro? — chamou a voz de Garvain. — Eu ia procurá-lo.
— Senhor?
— O que está fazendo com essa arma?
Acriança lhe explicou em algumas palavras o destino ao qual acabara de escapar por milagre.
— A Providência o protege — comentou Garvain.
— Mas e o senhor, por que está de pé?
—-Tenho o sono leve como uma pluma. Venha. Desçamos. Eu lhe explicarei.
Garvain precedeu-o no corredor e encontrou a escadaria que levava à sala.
— Barulhos me despertaram. Um rumor de vozes, respiração de cavalos. Fui até minha janela. Vi sombras próximas das cavalariças. Contei cerca de quinze.
— O que o senhor acha...?
— A mesma coisa que você. Dormimos sem saber no mesmo castelo que Meleagrant e seus homens.
— E a rainha.
— Sim. Eles provavelmente estavam na ala norte.
Atravessaram a sala em passo acelerado. Quando chegaram ao pátio, as portas das cavalariças estavam soltas e a ponte levadiça abaixada. Perceberam, ao longe, o estrondo abafado de um volumoso tropel.
— Aos cavalos! — gritou Acriança. — Vamos atrás deles!
Garvain o reteve pelo braço.
— Espere!
— O tempo corre!
— Você não pode ir lá, cavaleiro!
— Porquê?
— Olhe para você...
Desconcertado, Acriança baixou a cabeça e se viu do jeito que estava: seminu. Garvain bateu-lhe nas costas.
— É melhor poupar o pudor da rainha — disse, sorrindo com um ar zombeteiro.
Depois de vestidos e armados, Garvain e Acriança percorreram o castelo à procura de Errande. Não a acharam em lugar algum. Só descobriram uma das três moças disfarçadas de escudeiros que os acolhera na chegada.
Ela lhes contou o que já suspeitavam: sim, Meleagrant e seus homens tinham jantado ali e se instalado na ala norte do castelo. Era, aliás, a razão, às instâncias da donzela, por que ela os tinha feito entrar na ala sul.
— Por que a Donzela nos enganou?
— Ela não os enganou, Senhor. Ela os reconheceu de longe e, vendo que o senhor era o famoso Garvain, quis poupá-lo de um encontro que lhe teria sido fatal.
— É muita consideração com a minha pessoa. Mas não teve tanta assim em relação ao meu companheiro. O leito que ela lhe ofereceu era um traspassador.
— Ela também o viu de longe. Ele estava em cima da carroça — declarou, como se isso explicasse tudo.
— Eu o preveni, cavaleiro — disse Garvain. — Subir naquela carroça foi uma idéia absurda.
Acriança ergueu os ombros com exasperação.
— Chega, não se fala mais em carroça... Já discutimos bastante. Enquanto falamos, Meleagrant se adianta a nós.
— Uma última coisa: onde está... Errande?
— Partiu com o senhor Meleagrant, Senhor.
— O que ela tem a ver com ele? — perguntou Acriança.
— Vai se encontrar com o filho em Gorre.
— Filho dela?
— Espere cavaleiro — interveio Garvain. — Preciso lhe falar.
Despediu-se da moça e chamou o rapaz à parte.
— Errande — confiou-lhe — não é donzela e muito menos Errande. Seu verdadeiro nome é Morgana.
— Por que esse mistério?
— Morgana é a meia-irmã do rei. Não freqüenta a Corte já há muito tempo. Eu era apenas uma criança quando ela deixou Camelot, mas assim que entramos na sala eu a reconheci. Por essa razão, não lhe fiz nenhuma pergunta a respeito da rainha nem de seus seqüestradores.
— Não compreendo...
— Morgana tem um filho da sua idade, Mordred. Ela deseja há muito tempo que ele suceda a Arthur no trono de Logres. Mas, se Arthur e Guinevere tiverem um filho, Mordred deverá renunciar a suas pretensões.
— E então?
— Provavelmente Morgana não vê com maus olhos o seqüestro de Guinevere. Eu me pergunto até se, mesmo que não tenha ajudado, não o teria sugerido a esse louco Meleagrant. Pode muito bem ter acontecido.
— É uma ignomínia! — enfureceu-se Acriança. — A própria irmã do rei?
— Ela é mais do que a irmã, e Mordred mais do que o sobrinho de Arthur... Você saberá um dia...
O REI PESCADOR
O Vau
A aurora surgia quando Garvain e Acriança deixaram o castelo de Errande. O jovem cavaleiro tomara emprestado um rocim de bela aparência, de pêlo cor de fogo. Tomaram um caminho calçado de pedras que os levou a uma floresta. Pelos galhos partidos, pelo mato pisoteado de um lado e do outro da estrada, viram que Meleagrant e seus homens tinham passado por ali.
Ficaram em silêncio. Garvain, por natureza e por civilidade, teria conversado de bom grado, mas deu-se conta de que Acriança estava tão fortemente encerrado em seus próprios pensamentos que teria permanecido surdo a suas observações. O rapaz deixava o cavalo seguir à vontade, nada vendo em torno de si. Por diversas vezes bateu com a cabeça em um galho mais baixo. Nem a dor, nem o susto, nem o riso que o incidente repetido provocavam em Garvain o faziam sair de sua profunda melancolia.
Na saída da floresta, o sol estava alto no céu. Aproximaram-se de um rio. Sem prestar maior atenção, Acriança empurrava o cavalo na água quando Garvain veio segurá-lo pela rédea e trazê-lo de volta à margem.
— O que você tem na cabeça? Quer se afogar? Acriança piscou diversas vezes. Saiu finalmente de seu sonho.
— O que está dizendo, Senhor?
— Estou dizendo que a sua companhia é a mais aborrecida que já tive na vida. Está pensando no quê, afinal?
O rapaz corou e não respondeu. Não podia confessar que, desde que partiram, a lembrança de Guinevere o obcecava. E que aquelas palavras do anão — "sua bem-amada" —, de tanto darem voltas em sua cabeça, haviam cavado um lugar tão grande que ele não tinha mais olhos nem ouvidos para o que o cercava. Esporeou o cavalo, afastando-se, a fim de disfarçar seu embaraço.
— Venha, Senhor. Tem razão, esse rio é muito fundo. Vamos procurar um vau mais acima.
Garvain tinha grande experiência no amor das donzelas e das damas. Era tido com razão como o cavaleiro mais galante e mais cortejado de Camelot. Mas sua maneira de amar era despreocupada, brincalhona e versátil. E, se ninguém falava de amor melhor do que ele, era porque ele se comprazia com suas próprias palavras, seus sedutores e hábeis discursos, e com os efeitos que produziam sobre aquelas, numerosas e variadas, a quem ele os dirigia. Mas sua experiência e sutileza de nada serviam para compreender, ou simplesmente adivinhar, o que perturbava o coração tão jovem, tão sério e tão íntegro de seu companheiro. Mesmo as alusões do anão a um eventual amor do jovem cavaleiro pela rainha tinham lhe parecido não mais do que provocações ignóbeis. Como lhe passaria pela cabeça que Acriança, mal chegado a Camelot e armado pelo rei, pudesse cometer a deslealdade de amar Guinevere, esposa do rei? Acreditou, portanto, que Acriança estava simplesmente com o sono atrasado, que se ressentia ainda das léguas e léguas percorridas a passos largos na véspera.
Ao atravessarem um bosque de salgueiros, descobriram um vau. A água transparente corria em magros fios por entre as grandes pedras chatas. Acriança guiou seu cavalo por ali.
Da outra margem, uma voz roufenha e grave gritou-lhe:
— Cavaleiro, eu tomo conta do vau! Ninguém passa!
Eles viram, saindo do abrigo dos rochedos onde até então se mantivera, um Guerreiro Ruivo, barbudo, largo como um boi e montado num cavalo com peitoral e quartelas mais volumosos do que os de um animal de trabalho. Carregava o escudo da casa de Gorre: um leopardo arrastando o focinho sobre um fundo de areia. (Em termos de brasão: leopardo erguido sobre as patas traseiras, vermelho, sobre fundo preto.)
O rocim de Acriança começou a beber a água clara que turbilhonava em torno dos seus cascos. Garvain aproximou o seu contra o flanco do outro.
— Cavaleiros, retrocedam! Para fora do vau! Ou terei que arrebentar suas cabeças!
— Esse grande saxão* não tem modos mesmo — disse Garvain apoiando os cotovelos sobre o pescoço de seu animal. — Acredita que ainda assim ele seja um cavaleiro?
— Cavaleiro ou não, concordo com o senhor: as maneiras dele também me desagradam.
— Não é? Contudo, ele me parece um pouco grande demais para você... O que acha?
— Eu digo que, quando eu o tiver jogado no chão, vai lhe parecer bem pequeno.
— Oh! Oh! Estou vendo que recuperou a língua. Mas será que seu braço está tão acordado quanto ela?
— Quer a prova?
— Não aguce minha curiosidade. Vejamos o que você vale.
Imediatamente, Acriança fez o rocim entrar no vau. O Guerreiro Ruivo empunhou a lança.
— Menino, eu avisei!
— Estava me aborrecendo na outra margem. A sua me parece mais divertida.
— Está me desafiando?
— Vim me divertir. Minha espada já estava ficando entorpecida dentro da bainha.
Acriança ouviu o riso aprovador de Garvain às suas costas. Já havia transposto a metade do vau quando o Guerreiro Ruivo, apontando a lança, atacou-o. Eram tão pesados, sua montaria e ele, que o solo tremeu. Acriança segurou com força a rédea, o mais curta possível, e manteve a espada pronta. No momento em que o guerreiro entrava no vau, espalhando muita água, arremeteu com o rocim pela esquerda, protegendo com elegância o busto para evitar a lâmina da lança — que passou tão perto que sua cota e pele foram rasgadas na cintura — e, erguendo-se subitamente sobre a sela, atingiu o adversário por trás do ombro e na nuca. Atordoado, o guerreiro caiu pesadamente dentro do rio.
O rapaz saltou na mesma hora dentro do rio, deixando seu cavalo ir para a outra margem. Saía sangue de sua cota branca, no quadril. Mas ele não se preocupava. Com a espada alta, avançou em direção ao guerreiro, que se levantava e puxava uma espada de longa lâmina.
— Você me atingiu à traição, garoto!
— Cale-se, saxão. E mostre-me se se agüenta melhor nos pés do que a cavalo.
O Guerreiro Ruivo se jogou para a frente. Dessa vez, o cavaleiro escolheu o enfrentamento. Jogou-se para adiante também, e o choque das lâminas e dos corpos por pouco lhe foi fatal. Muito leve, parecia que se chocava contra uma parede. Viu-se projetado para trás e caiu de costas sobre uma pedra do vau. Ignorou a dor — e fez bem: só teve tempo de aparar o golpe de espada que lhe assentava o adversário, depois de rolar sobre o lado, antes de se pôr novamente sobre os pés.
— Olhe como está encharcado, cavaleiro! — gritou-lhe a voz zombeteira de Garvain. — Vai se resfriar, isto se o seu saxão o deixar viver!
— Não se preocupe, Senhor! O jogo me aquece!
O guerreiro voltou à carga. As espadas se entrechocaram. Uma vez, duas vezes, dez vezes. O saxão parecia incansável, cada um de seus golpes mais poderoso do que o outro. Acriança recuava sob o assalto. No trigésimo golpe, sentiu o braço fraquejar. No trigésimo primeiro, não conseguiu se defender e recebeu um corte no ombro.
No mesmo instante, viu-se morto. Ora, morrer, pensou, teria pouca importância se não tivesse um juramento a cumprir. Minha vida pertence a Guinevere; ninguém, a não ser ela, tem o direito de tomá-la de mim.
Um golpe simulado à direita, um golpe simulado à esquerda: o saxão atingiu duas vezes seguidas o vazio, acabando por perder o equilíbrio. Pôs um joelho dentro da água. A espada de Acriança abateu-se sobre sua nuca e cortou-lhe a cabeça.
— Finalmente! — exclamou Garvain. —Já estava perdendo a paciência.
O jovem cavaleiro vacilava, imóvel, com os olhos fixos no corpo decapitado desabando lentamente dentro do vau. Nunca tinha matado um homem.
O ANEL
— Agora sabemos que estamos seguindo a pista certa — disse Garvain.
Tinham retomado a estrada, depois de atravessado o rio. Acriança ainda estava inteiramente perturbado pelo que tinha feito e por ter visto rolar a cabeça hirsuta do saxão dentro da água do vau. Nada confessou a Garvain, que ele supunha afeito há muito tempo a essa espécie de incidente.
— Apesar de tudo — prosseguiu o cavaleiro —, seu comportamento me agradou. Com um pouco de prática, vai se safar mais depressa da próxima vez.
Acriança não respondeu. Eles cavalgaram muitas léguas dentro da floresta. Os rastros da passagem de Meleagrant e seu grupo eram numerosos e muito visíveis. Podia-se dizer que o Cavaleiro Negro lhes abria o caminho até ele. Alcançaram finalmente o limite das árvores.
Uma colina se erguia um pouco mais longe, encimada por uma torre solitária.
— Vamos subir lá no alto — disse Garvain. — De lá teremos uma ampla visão destas terras.
Eles esporearam seus cavalos. Os animais escalaram num galope ritmado o flanco da colina. A porta da torre estava aberta. À volta toda, os espinheiros, as urtigas e as ervas daninhas indicavam um local há muito tempo abandonado. Eles puseram os pés no chão.
— Vamos, cavaleiro. Tire sua espada da bainha. Desconfio de emboscadas.
Com precaução, transpuseram a entrada da torre. Havia no interior uma sala circular, no mesmo nível, onde uma pequena mesa tinha sido posta. Um copo e uma tigela de prata estavam dispostos sobre uma curta toalha branca, perto de um pão partido e de uma garrafa de vinho claro cheia pela metade.
— Olá! — gritou Garvain. — Há alguém aqui?
Sua voz ecoou entre as grossas paredes de pedra. Ele repetiu a pergunta. Não obteve nenhuma resposta.
Nesse entretempo, Acriança tinha se aproximado da mesa.
— Venha ver, cavaleiro!
Garvain chegou até ele, não sem dar uma última olhada desconfiada ao redor. Acriança mostrou-lhe uma ponta da toalha.
— Está bordada com um V E olhe o copo e a tigela: o mesmo V está gravado. Não compreendo...
— O que haveria para compreender?
— É o monograma de Vivian, minha Dama. Diante daquelas palavras, Garvain deu uma nova olhada rápida em torno deles.
— O que faria ela aqui? Como nos teria precedido?
— O senhor não ignora, cavaleiro, que ela dispõe de certos poderes...
— Parece. Você sabe melhor do que eu. Calaram-se por um instante, inspecionando a sala com os olhos, depois o começo de uma escadaria de madeira que levava, em caracol, aos andares.
— Vamos olhar — disse Garvain.
Subiram os primeiros degraus lentamente, cabeça levantada, preparados para qualquer encontro. O dia luminoso de verão caía em cheio e com força de uma abertura existente no topo da torre. Eles não distinguiram nenhuma sombra suspeita acima deles.
Atravessaram os dois patamares. Sobre cada um, viram uma porta. Tentaram abri-las; elas lhes ofereceram resistência. Prosseguiram a subida até o alto da torre.
Acriança foi o primeiro a se apoiar nas ameias. O horizonte parecia muito afastado, como se fosse empurrado pela altura da qual ele o contemplava. Para além das colinas cada vez mais baixas, distinguia-se uma lista de um bege pálido, encimada por uma lista azul-cobalto que acompanhava o azul mais claro do céu.
— É o mar — disse Acriança.
— Sim. Eu não o preveni? O reino de Gorre é uma ilha.
— E aquele castelo, cavaleiro?
Acriança apontava a silhueta maciça e minúscula de um solar que parecia estar próximo da costa, ao longe, na direção norte. Era bastante visível, tanto mais que, apesar da distância, as terras em volta dele eram cinzentas, desmaiadas, sem árvores nem prados. Garvain fez uma careta.
— É Corbenic, o antigo castelo do rei Pellès. Ninguém mais vai lá.
— Por quê?
—A Terra Gaste é uma terra maldita. Não sei que falta Pellès cometeu, mas há anos nenhuma árvore, nenhum matinho brota em seu domínio.
Garvain virou-se.
— Vamos partir. Já perdemos bastante tempo.
— Espere!
Acriança se debruçara de repente entre duas ameias.
— Olhe! Lá longe!
Garvain procurou com os olhos o ponto que o rapaz lhe indicava, com a mão estendida no vazio. Saindo do abrigo de um bosque, a menos de um quarto de légua, viu cavaleiros. Não teve nenhuma dificuldade em reconhecer, andando à frente, um cavaleiro negro montado em um cavalo de batalha igualmente negro. Mesmo de tão longe, a estatura dos saxões que o acompanhavam continuava impressionante. Não bastava, contudo, para dissimular completamente a silhueta da amazona que estavam cercando. Percebia-se apenas, sobre o azul-real de seu manto, a mancha luminosa de seus cabelos louros.
— Eles estão bem perto! — gritou Acriança. — Podemos alcançá-los antes de chegarem ao mar.
Acriança debruçava-se tanto sobre a ameia* que Garvain temeu que despencasse no vazio. Segurou-o vigorosamente e o puxou para trás.
— Decididamente, você é louco, meu menino!
— A rainha está lá. Vamos, cavaleiro!
— Um instante de paciência, por favor. Há algo que me parece...
Não concluiu a frase e, franzindo os olhos, observou a longínqua escolta de Meleagrant.
— É como eu pensava...
— O quê, cavaleiro?
— Conte os saxões: não são mais do que sete,
— E daí?
— E daí que, se deixamos de lado o do vau, o total deveria ser nove. Onde estão os outros dois?
— O que importa? Voltemos aos cavalos!
E, antes que pudesse dizer mais uma palavra, Acriança se precipitou sobre a escadaria de madeira. Resmungando de irritação, Garvain seguiu-o. Não se habituava às maneiras rudes do rapaz. Estava acostumado com cavaleiros recentemente armados mostrando mais humildade, paciência e respeito. Aquele só sabia obedecer aos seus impulsos. Como se tivesse apenas uma pressa: pôr-se em situação de perigo.
Mal Garvain terminara de fazer essa reflexão, os acontecimentos se encarregaram de ilustrá-la: tinham entrado no espaço entre o segundo e o terceiro patamar quando, quase ao mesmo tempo, abriram-se duas portas. A do segundo, depois a do primeiro. De cada uma irrompeu um saxão ruivo, com um machado na mão.
— Estão aí — suspirou Garvain — os dois que faltavam para completar a conta...
Quanto a Acriança, não esperou o tempo de uma frase nem de uma palavra. Atirou-se sobre o saxão do primeiro patamar, saltando por cima dos últimos degraus que os separavam. Surpreendido pela audácia, o Guerreiro Ruivo deu, instintivamente, dois passos para trás. Foram-lhe imediatamente fatais: Acriança rolou sobre o assoalho e atingiu-o sob o joelho. Com a barriga da perna cortada, o saxão despencou para trás. Rolou a escada de costas, caindo pesadamente sobre a laje da sala. Tentou se levantar; tinha apenas uma perna para usar. O rapaz já estava diante dele e lhe partia o capacete e o crânio com o fio da espada.
Subiu em seguida ao primeiro patamar. Acima, viu Garvain duelando com o outro saxão. Este atacava a grandes golpes de machado, cuja lâmina assobiava como uma serpente, por vezes bem perto do queixo ou do peito de Garvain.
— Vamos, Senhor! — gritou Acriança. — O senhor está muito lento se defendendo desse brutamontes!
Ferido em seu amor-próprio, Garvain atacou com mais vigor, forçando o guerreiro a interromper o assalto.
— Eu o aguardava — replicou —, a fim de que você assistisse à lição!
O machado do saxão roçou-lhe o quadril. Ele deu um passo de lado.
— De fato — disse Acriança —, bela lição de dança, Senhor!
Garvain corou de raiva. Sua lâmina cortou o ombro do adversário. Acriança procurava uma outra brincadeira, quando sentiu que alguém lhe tocava o braço. Deu meia-volta, a espada em riste.
— Saraide?
Era a serviçal preferida de Vivian. A mulher pousou o indicador sobre os lábios e cochichou-lhe:
— Venha, cavaleiro. Preciso falar-lhe.
Ela recuou para a peça do primeiro andar. Após um momento de hesitação, Acriança foi até ela, reembainhando a espada.
— O que está fazendo aqui?
—A Dama me enviou para esperá-lo. Estava jantando na sala quando os dois saxões surgiram e me fizeram prisioneira.
— Como você chegou aqui antes de nós? Cavalgamos a toda a velocidade desde ontem.
Saraide sorriu.
— Deixei Camelot bem antes do senhor. A Dama sabia que sua aventura o conduziria até aqui.
Acriança quase retorquiu que, ao partir, a aventura não tinha começado, mas calou-se. Vivian não lhe dissera que conhecia antecipadamente as peripécias que ele iria viver?
— Você tem uma mensagem para mim?
— Sim, cavaleiro. Mas esperemos seu amigo para anunciá-la.
Acriança balançou a cabeça, fez-lhe um sinal para esperar um instante, voltou ao patamar e gritou para Garvain, que ainda se batia com o saxão:
— Senhor, estou cansado de esperar!
Depois, divertido com sua fala — e vingado das troças de Garvain durante o combate no vau —, voltou para junto da serviçal.
— Dê-me a mão, por favor — pediu-lhe ela. Espantado, ele a estendeu. Ela a tomou, virou a palma para o ar e depositou ali um minúsculo objeto. Ele olhou: era um anel de prata.
— A Dama me mandou entregá-lo ao senhor. Guarde-o com cuidado. Mas não o coloque no dedo antes de chegado o momento.
— Qual seja?
— O senhor saberá.
— Eu saberei! Decididamente, a todas as perguntas que faço, sempre me respondem: "Você saberá quando chegar o momento"! É irritante, de fato.
Eles escutaram um grande estrondo de madeira quebrada. Depois, um grito de agonia. Um instante mais tarde, Garvain, suando, com um ombro sangrando e lanhado na face esquerda, entrou na peça.
—Até que enfim! — ironizou Acriança.
Garvain ergueu o queixo e se fez de desentendido. Avistou a serviçal.
— Quem é?
O rapaz explicou-lhe em algumas palavras. Sem mencionar o anel de Vivian.
— E qual é a mensagem? — perguntou Garvain, alisando delicadamente a ferida de sua face, temeroso de que ela o desfigurasse e abalasse seu poder de sedução junto às damas da corte.
— O reino de Gorre é uma ilha — disse Saraide.
— Eu sei. E daí? Nós vamos conseguir achar um barco.
— As correntes são tantas e tão traidoras na travessia, que os senhores não conseguirão alcançar a outra margem. Uma balsa permitirá que Meleagrant retorne a seu reino. Podem bem imaginar que ele não a deixará em seguida à disposição dos senhores.
— O que você propõe?
—-Existem duas outras passagens para alcançar Gorre. Mas são muito perigosas.
— Ora! — falou Garvain, com ar de desprezo. Vexado por ter levado mais tempo e gasto mais suor para se livrar do seu saxão do que Acriança para abater o dele, esquecia-se da inteligente prudência que todo cavaleiro deve demonstrar, e só aguardava uma nova e rápida ocasião para demonstrar sua proeza.
— Tão perigosas — prosseguiu Saraide — que ninguém pode se vangloriar de tê-las atravessado com sucesso.
— Chega de conversa — rosnou Garvain. — Vá direto ao ponto.
— Ao sul se encontra uma passagem que se chama Ponte debaixo D'água. É um caminho traçado a um pé e meio da superfície da terra. Às vezes é mais profundo e o viajante se vê efetivamente sob a água. Além disso, não é possível se afastar dele nem por um passo: ele é mais estreito do que os ombros de um homem e cercado de cada lado por um abismo. Um passo em falso e o afogamento é certo.
— Bem. Fale-nos da outra passagem.
— É pior, Senhor.
— Bem, então...
— Ela fica no norte. Chama-se a Ponte da Espada. Nenhum nome lhe conviria melhor, pois, de fato, ela é cortante como uma lâmina. É impossível atravessá-la sem se ferir gravemente.
— E, naturalmente — falou Garvain —, se cairmos nela, é igualmente dentro de um abismo onde também nos afogaremos?
— Compreendeu bem, Senhor.
Garvain examinou Saraide com um ar preocupado, depois se virou para Acriança.
—-O que acha? Entre dois males, escolhamos o menor: passaremos pela Ponte debaixo D'água.
Acriança balançou pensativamente a cabeça.
— Creio, Senhor, que é melhor que nos separemos. Teremos mais chances de que um de nós, ao menos, tenha sucesso.
— Mais uma loucura! Como é que você pretende atravessar uma ponte feita de uma lâmina? Voando como um estorninho?
— Quando estiver lá, eu decidirei, Senhor.
— Isso é típico de você! Vamos agir, depois refletiremos! Acriança enfrentou-o olhando-o direto nos olhos, o olhar obstinado.
— Já tomei minha decisão.
— Como quiser! Então, vá ser retalhado como um assado!
— Vai ser um prazer obedecer-lhe, Senhor.
O CEMITÉRIO FUTURO
Quando o sol acabara de passar o ponto alto do meio-dia, Garvain e Acriança chegaram à encruzilhada de sete estradas. Saraide os havia prevenido de que era ali que seus caminhos deveriam se separar. A estrada mais ao norte conduzia à Ponte da Espada, a mais ao sul, à Ponte debaixo D'água.
— Tem certeza de que fez a escolha certa? — perguntou Garvain.
Acriança deu um risinho de desafio irônico.
— Vou lhe responder como já me disseram ontem: eu saberei quando o momento chegar.
Garvain simplesmente assentiu com um meneio de cabeça e guiou seu cavalo para a estrada que ia na direção sul. Virou-se uma última vez:
— Quanto a mim, estou indo embora com uma última pergunta: você é um desmiolado ou o menino mais esperto que já encontrei?
— Senhor...
— Sim, já sei: eu saberei quando o momento chegar! E, esporeando seu rocim, Garvain partiu num rápido galope.
Acriança cavalgou até o anoitecer. Pensava, por ter avistado o mar do alto da torre, que o alcançaria ainda naquela noite. Contudo, não chegou a sair da floresta para onde a estrada do norte o havia conduzido rapidamente. Acendeu um fogo em uma pequena clareira, ali assou uma lebre que havia apanhado pouco antes do crepúsculo e jantou sozinho, o que, pensou, nunca lhe acontecera antes.
Aquela solidão não lhe desagradava. Podia finalmente sonhar à vontade com Guinevere sem temer que uma palavra pronunciada por descuido levasse Garvain a suspeitar do objeto de seus devaneios. Desde o primeiro olhar que trocara com ela, na ocasião de sua apresentação ao rei, ele experimentara um sentimento ao mesmo tempo doce, violento e desconhecido. Não tinha sabido — ousado? — dar-lhe um nome até o anão da carroça zombar dele. Amor. Era uma palavra que ele acreditava reservada aos cavaleiros dos quais Caradoc, seu preceptor, e Vivian lhe haviam contado longamente as aventuras em sua infância, cavaleiros que mereciam esse Amor depois, e somente depois, de ter vencido dragões e gigantes, escapado às traições e aos sortilégios, provado cem vezes sua valentia. Ele descobria que o Amor era como um raio caído direto sobre o coração, uma revelação e não uma recompensa, o começo das provações e não seu fim supremo.
Quando, na véspera, em Camelot, a rainha subira ao quarto para se aprontar a fim de seguir o senescal Ké até o Bosque do Norte, Acriança esgueirara-se até ele. Esperara, escondido no corredor, até que as serviçais, em lágrimas, tivessem deixado o cômodo, depois entrara e, por respeito, mas também porque não tinha forças para enfrentar os olhos de Guinevere, pusera imediatamente um joelho no chão e curvara a nuca.
A rainha não o havia mandado embora, como temera. Finalmente, com uma voz perturbada — e ele não soubera se aquela perturbação estava relacionada à provação que a esperava ou à própria presença dele —, ela lhe perguntara o que ele queria. Levantando então a cabeça, ele lhe apresentara a espada. "Senhora, seria uma grande honra receber esta espada de suas mãos." Ela hesitara, antes de lembrá-lo que ele recebera a armação do rei e que, conseqüentemente, devia também receber dele a espada. "Senhora, que meu braço seja posto a seu serviço. Cinja-me a espada, e assegurarei sua salvaguarda."
Dessa vez, ela rira. Oh, um riso leve, breve, sem zombaria. Ele a olhara nos olhos e neles havia lido aquela perturbação ouvida anteriormente em sua voz. Compreendera que só as conveniências e o respeito ao rei ainda a impediam de concordar com seu pedido. Desde então, deixara-se guiar por esse instinto muito doce que o levava irresistivelmente até ela. Tinha se erguido, aproximado, estendido a ela a espada, a lâmina pousada sobre suas palmas abertas. Ela baixara os olhos; ele percebera sua respiração rápida, sufocada. "Eu lhe suplico, Senhora."
Sem uma palavra, ela estendera as mãos. E, no gesto de segurar a espada, tocara as dele. Imperceptível roçar que lhe pareceu a mais ardente das carícias. Erguendo finalmente as pálpebras e o olhando no rosto, ela dissera as palavras que ele esperava: "Eu o faço meu cavaleiro." Colocara-lhe a espada na cintura, sem que eles deixassem de se olhar nos olhos.
"Faça-me um favor, cavaleiro. Não prive Ké de seu julgamento, não rompa o juramento: seria uma falta imperdoável."
Ele lhe obedecera. Tendo partido pouco depois de Ké e Guinevere, permanecera na entrada do Bosque do Norte pelo tempo necessário ao combate. Fervia de impaciência — e desse outro sentimento, ao qual o anão ainda não tinha dado nome. Finalmente entrando na clareira, tinha visto Ké no chão, ensangüentado, havia-o carregado para a sombra e o recostado em um tronco, depois partido em perseguição a Meleagrant — à procura de Guinevere.
Amor. Amor, Amor, Amor, repetia para si a meia voz, sozinho na noite da floresta, diante das brasas do fogo que morria.
Maravilhava-se com aquele estranho sentimento que tinha o dom de suscitar a presença de Guinevere como se ela estivesse próxima dele e, ao mesmo tempo, avivar a dor de sua ausência e a preocupação com sua sorte. Não se importava com seu destino pessoal: ele não sabia, mas era uma marca de sua Eleição. Desejava somente consagrar sua espada e sua vida a Guinevere: ele também não sabia disso, e teria se recusado a ouvi-lo, mas era o seu erro.
A criança partiu novamente de manhã. Percorreu ainda várias léguas antes de alcançar a orla dos bosques.
Um caminho coberto de pedras passava não muito distante. Seguiu-o, atravessou um vale, chegou até um rio quase seco. Chegando à margem, o céu de repente escureceu. Levantou a cabeça: grandes nuvens negras deslizavam lentamente no céu, ocultando o sol. Ele esporeou o rocim.
O cavalo resfolegou. Acriança, irritado, o esporeou até fazê-lo sangrar. Sem maior sucesso. O animal começara a tremer. O rapaz saltou no chão, puxou o cavalo pela brida e caminhou pela água muito baixa do rio.
Sentiu um frio glacial nos tornozelos. Deu mais dois passos, forçando o rocim a segui-lo. A água não era apenas mais fria do que o gelo, era também densa como mercúrio. Em certos locais, coloria-se estranhamente e desaparecia sob os pés, como se alguma vida inquieta e dissimulada a animasse, fazendo fugir o leito do rio. Acriança sentia as pernas se entorpecerem. O frio já gelava suas entranhas e ele compreendeu que, quando tivesse alcançado o peito, seu coração gelaria. Teve a breve tentação de recuar, de desistir.
A lembrança de Guinevere e a busca a ser consumada pouparam-no daquela covardia. Puxando a brida com todas as forças, pôs-se a correr apesar da resistência ansiosa do cavalo. Naquele momento, o frio lhe tirava o fôlego e ele não sentia mais a parte inferior de seu corpo. Corria, mas como se estivesse sobre pernas de pedra.
Num último impulso, jogou-se sobre a borda oposta. Largou a brida: o rocim, relinchando de terror, partiu com um breve galope cambaleante e caiu sobre a relva. Acriança se arrastou pela margem puxando as pernas, que não o sustentavam mais devido à água mortífera.
Levou algum tempo para se reaquecer, estendido no prado. Viu ao longe seu cavalo parar pouco a pouco de tremer, e depois se erguer com um sobressalto. Tentou levantar-se, por sua vez, o que conseguiu sem muito esforço, estremecendo.
Pensou em seguida que nunca tinha visto um rio parecido, que ele devia estar sob o encanto de alguma maldição; recuperou o cavalo, acariciou-lhe o pescoço e o tranqüilizou a meia voz, e, depois, sem sequer se voltar e não pensando mais naquele contratempo, retomou o caminho.
Não chegou a ir muito longe. Cercando o cume de uma colina larga e baixa, uma muralha o fez parar. Era construída com pedras negras, alta como quatro homens. Acriança começou a dar a volta à colina. A leste, descobriu uma grande porta cujos dois batentes estavam abertos. Sem hesitar, entrou no recinto. Ele dava para um segundo muro.
Um barulho surdo fez o rocim ter um sobressalto e Acriança se virar: a grande porta se fechara atrás dele. Contudo, não percebeu ninguém, nem notou qualquer sistema de correntes que permitissem agir a distância sobre os batentes. Acima dele, o céu estava naquele momento negro como a noite, carregado de faíscas cor de enxofre. Um ribombo ecoou através das nuvens.
Acriança desceu do cavalo e empurrou a grade que permitia atravessar o segundo muro. Com a mão na bainha da espada, à espreita, entrou com precaução.
O local era grande como um vilarejo, mas, em vez de casas, Acriança viu apenas tumbas. Dezenas de tumbas. Dispostas em círculos concêntricos, as lápides funerárias, muito simples, de pedra branca, cercavam uma capela, também ela branca, parecida com um castelo de tamanho muito pequeno. O trovão explodiu duas vezes no céu, enquanto Acriança se aproximava das tumbas.
Sobre cada uma estava gravada sempre a mesma inscrição: Aqui descansará o cavaleiro seguida de um nome. Avançando cada vez mais depressa entre as lápides, estupefato, pouco à vontade, o rapaz leu: Cliges, Sagremor, Hector, Girflet, Erec, Ké... Todos cavaleiros de Arthur, que ele encontrara em Camelot, bem vivos. Bréhu, Caradigas, Tohort, Béduier, Lucain... Entre as tumbas do último círculo, perto da capela, encontrou o nome de Yvain, depois o de Garvain.
Um a um, os sucessivos relâmpagos rasgavam a escuridão da tempestade. Acriança olhou à sua volta, naquela luminosidade fulgurante, as pedras do cemitério alinhadas até o sopé da muralha. Pela primeira vez na vida sentiu alguma coisa que se parecia com medo. Acriança estava pronto para enfrentar qualquer que fosse o adversário com as armas na mão, mas, naquele lugar deserto, fúnebre, em torno do qual se abatiam os relâmpagos, não sabia que atitude tomar nem o que significava a aventura. Então, agiu como sua natureza mandava: foi adiante.
Quatro outras tumbas se encontravam na base da capela. Duas à esquerda, duas à direita da entrada. Sobre as da esquerda ele leu a mesma inscrição e estes nomes: Perceval e Galahad. Cavaleiros que ele não conhecia.
As lápides da direita tinham sido encaixadas tão próximo uma da outra que suas bordas se tocavam, fazendo com que parecessem somente uma. Uma nova série de relâmpagos varou o céu, quando ele se curvou para decifrar os nomes gravados.
No primeiro que leu, seu vago pavor se transformou em angústia: Guinevere.
Recuou, sobressaltado. De recusa e de desgosto. Seu coração não podia suportar o que seus olhos tinham visto. Não podia imaginar a morte daquela que amava. Sem sequer lançar um olhar à segunda lápide, puxou a espada, levantou a cabeça para a tempestade e procurou palavras para desafiá-la — como teria desafiado a morte.
Mas foi ela que lhe falou — ao menos, assustado, ele acreditou de início.
— Cavaleiro! Cavaleiro, venha até mim!
— Quem fala?
— Cavaleiro! Aqui, na capela!
O pavor de Acriança se dissipou na hora. Era uma voz de moça, uma voz ao mesmo tempo doce e urgente. Finalmente a aventura lhe pareceu se tornar de novo humana. Ele entrou na capela.
Do interior, ela parecia muito maior do que suas proporções permitiam supor. Acriança deu alguns passos ao acaso na escuridão: houve uma crepitação e ele viu sete tochas se acenderem, suspensas nas paredes.
A capela estava vazia, com exceção de um altar sumário feito com uma tábua de madeira bruta. Atrás desse altar, amarrada pelos punhos a uma corrente presa na parede, uma moça de vestido verde chamou-o:
— Cavaleiro...
Ele se precipitou ao seu encontro. Ela era loura, e seus olhos de um azul intenso brilhavam estranhamente na penumbra, refletindo as chamas rubras das tochas. Com a ponta da sua adaga, Acriança forçou os braceletes de ferro.
— Quem a fez prisioneira, Donzela? Não vi ninguém aqui, a não ser... a não ser sobre as tumbas os nomes de cem cavaleiros que, no entanto, ainda estão bem vivos...
— Baudemagus o mago lançou um sortilégio sobre este lugar.
— Quem é esse Baudemagus?
— O conselheiro do príncipe Meleagrant de Gorre.
— De novo esse Meleagrant! — enfureceu-se Acriança. — O que ele tem contra a senhorita?
A donzela teve um arrepio. O cavaleiro retirou sua capa e colocou-a sobre os ombros dela. A moça lhe dirigiu um fraco sorriso de agradecimento, e seus olhares se encontraram: ela o examinou com tanta intensidade que ele baixou os olhos primeiro, embaraçado.
— Então, cavaleiro, viu as tumbas? Leu os nomes?
— Sim...
Ele se lembrou do nome de Guinevere, e a angústia voltou a atacar seu coração.
— Chegou a ler o seu, cavaleiro?
— Não. Isso, aliás, é impossível.
— Por quê? O senhor não é cavaleiro do rei Arthur, como todos os que têm um lugar marcado neste cemitério?
— Eu sou cavaleiro de Arthur — reconheceu ele.
— Então seu nome necessariamente figura sobre uma dessas tumbas.
— Eu lhe digo que isso é impossível. Agora me responda: qual o motivo para Meleagrant infligir-lhe esse tratamento?
Ela o contemplou novamente, com seus grandes olhos de um azul de oceano, séria e parecendo interrogativa. Depois, decidiu se explicar.
— Eu estava de passagem na casa do filho do senhor daqui, Galehot, quando Meleagrant chegou, ontem à tarde. Ele conduzia uma escolta de numerosos saxões ruivos e mantinha cativa uma Dama, que nós na mesma hora reconhecemos: a rainha Guinevere. Galehot é um varlete e seu pai, um vassalo de Meleagrant, portanto lhe deve obediência e hospitalidade. Mas, quando ele viu quem era a prisioneira, declarou que não se tornaria cúmplice daquele seqüestro e que Meleagrant deveria partir imediatamente. O Cavaleiro Negro, o senhor decerto sabe, não é de temperamento conciliador. Enfureceu-se e ameaçou arrasar Sorelois, a aldeia. Teria feito isso, se uma outra escolta não tivesse chegado naquele preciso momento. Ela vinha encontrar Meleagrant. À frente estavam Dama Morgana, seu filho Mordred e Baudemagus o mago. Dama Morgana informou-se sobre as razões do furor do Cavaleiro Negro. E, quando tomou conhecimento, riu e disse a Galehot: "Vassalo, já que você tem tanto respeito por Arthur e seus cavaleiros fanfarrões, vamos lhe conceder uma grande honra: que esta aldeia se torne um santuário à glória deles. Póstuma!" Com um gesto, ela ordenou a Baudemagus que pronunciasse certos encantamentos. Como o senhor sabe, cavaleiro, Dama Morgana é necromante*. Foi assim que a aldeia se metamorfoseou neste cemitério de mortos futuros...
— Morgana... — murmurou Acriança. —A senhorita sabe por que ela detesta tanto Arthur? Afinal, ele é irmão dela!
A jovem sorriu misteriosamente.
— Não creio que Dama Morgana deteste o irmão, cavaleiro. Ela detesta seu amante.
--Acriança franziu as sobrancelhas.
— O que está querendo dizer? Não compreendo... Ela colocou a mão sobre a dele.
— Existem coisas que é melhor não falar...
Os dedos da moça lhe acariciavam ternamente o punho. Perturbado, Acriança não fez mais nenhuma pergunta e retirou bruscamente a mão.
— Vamos embora daqui — disse, virando-se. — Este cemitério me apavora.
— Não podemos, cavaleiro!
— Confie em mim. Nem a tempestade nem as portas me reterão.
Ela agarrou-o pelo punho. Nos seus olhos, agora, havia mais do que o simples reflexo das tochas acesas.
— Eu confio no senhor, pode acreditar em mim. O senhor é quem eu esperava.
— Estava me esperando?
— Diga-me seu nome — suplicou ela — e terei certeza de que é mesmo o senhor.
A situação desagradava a Acriança, deixando-o pouco à vontade. Não ousava sustentar o olhar ávido, devorador, da moça e não sabia como, sem ofendê-la, obrigá-la a largar seu punho.
— Pergunte tudo que quiser, mas meu nome é impossível. Partamos agora.
Ela o reteve com uma força que o surpreendeu.
— Guarde o segredo do seu nome, se isso lhe agrada. Mas agora deixe-me cobrar sua promessa.
Ele mordeu os lábios, furioso consigo mesmo. "Pergunte tudo que quiser", dissera sem refletir.
— O que a senhorita quer? — perguntou num tom desafiador.
— Meu desejo principal, o senhor saberá mais tarde. Quero em primeiro lugar que quebre os encantamentos de Baudemagus.
— Como eu poderia? Não sou mago.
— O senhor é cavaleiro, isso basta. Venha! Puxando-o pelo pulso, levou-o até uma pequena
porta de ferro que ele não tinha visto no escuro e que a ajudou a empurrar, de tão pesada que era. Ainda na entrada, os dois recuaram de pavor: um concerto de vozes ora agudas, ora graves, soltando gritos lancinantes, lamentos carregados de uma dor desconhecida deste mundo, rodopiava numa pequena sala de paredes de cobre, brilhando como brasas sob o efeito de uma luz cuja fonte era invisível.
— Que lugar é este? — exclamou Acriança. A mão da moça tremia sobre seu punho.
— São os diabos e os mortos sem sepultura que Morgana e Baudemagus conjuraram...
Acriança se recompôs: entrou na sala, com as mãos tapando os ouvidos, para escapar dos gritos e dos lamentos que lhe gelavam o coração. No centro, viu o buraco negro de um poço. A moça o conduziu até a borda. Com precaução, ele retirou as mãos das orelhas. Parecia-lhe que as vozes de terror eram feitas de uma carne intangível e gelada e lhe roçavam pavorosamente a testa, o pescoço, os lábios.
— Desça dentro desse poço, cavaleiro, e quebrará os feitiços.
Ele não tinha escolha senão obedecer. Era a regra: qualquer promessa feita por um cavaleiro devia ser mantida.
— Eu lhe repito, Donzela, que nada posso contra os poderes de um mago. O que está me pedindo é inútil.
— E eu lhe repito, cavaleiro, que o senhor quebrará o sortilégio. Basta que encontre as chaves.
— Chaves?
— Vejamos, o senhor bem sabe que todos os encantamentos têm uma chave, ou de onde o senhor saiu? A menos que esteja levantando tantas dificuldades por estar com medo...
Era exatamente a frase que era necessário pronunciar para fazer Acriança se decidir. Ele levantou o queixo, endireitou os ombros, fez o gesto supérfluo de expulsar as vozes que turbilhonavam nos seus ouvidos como quem espanta moscas e, com um ar desdenhoso, disse à moça:
— Se há uma chave, considere-a desde logo em suas mãos.
Após o quê, sentou-se na borda do poço, suspendeu no pescoço seu escudo branco com duas listas vermelhas, agarrou-se à corrente que descia para as obscuras profundezas e começou a afundar no meio das trevas e no âmago dos gritos infernais — até desaparecer da vista da moça.
Pôs os pés no fundo do poço. Largou a corrente. Acima dele, não mais do que um fraco ponto de luminosidade avermelhada. À sua esquerda, distinguiu a entrada de um corredor subterrâneo. As vozes o ensurdeciam e foi preciso pensar muito em Guinevere para impedi-las de tomar conta de seu coração e lá insuflar um desespero tão profundo que o teria feito desejar apenas morrer. A imagem clara, azul e dourada da rainha lhe dava alegria suficiente para resistir. Embrenhou-se no subterrâneo.
Não tinha dado dois passos quando um grande barulho de tremor de terra cobriu as vozes e o fez perder o equilíbrio. À sua volta pedras de todos os tamanhos se desprenderam das paredes; uma viga desabou às suas costas. Ele se precipitou para a frente. Teve a sensação de penetrar na direção da própria fonte dos lamentos e dos gritos, como quem nada contra a corrente, enquanto à sua passagem, como se o perseguisse, o subterrâneo ia desabando com um barulho e uma poeira de fim do mundo. De repente, o corredor fez uma curva para a esquerda: uma luz ofuscante o cegou.
Ele não via mais nada, mas mesmo assim continuou a correr. Desembocou finalmente em uma grande caverna. Num último e demorado estrondo de pedras de construção e vigas desabadas, o subterrâneo fechou-se atrás dele.
A estranha luz não provinha daquela caverna, mas de um corredor, do lado oposto. Foi avançando, seus olhos se acostumaram à intensidade da luz e ele distinguiu, guardando a entrada do segundo subterrâneo, dois cavaleiros de armadura, com a espada em punho, um na frente do outro a três passos de distância.
— Senhores! — disse-lhes. — Vim quebrar os encantamentos! Tratem de se proteger, se quiserem me impedir!
Para seu espanto, nem um nem outro respondeu ao seu desafio. Permaneceram imóveis, impassíveis.
— Então, Senhores! São surdos?
Avançou alguns passos, lentamente. Ia repetir seu desafio, contrariado com o silêncio desdenhoso dos cavaleiros, quando, juntos, eles levantaram as espadas acima dos ombros, prontos para golpear, o que produziu um curioso tinido de metal.
Mais um passo: observou-os atentamente. Claro, tinha visto desde que entrara que eles eram de uma altura fora do comum — pelo menos mais altos em duas cabeças do que o mais forte dos saxões de Meleagrant. O que compreendeu então foi que aqueles cavaleiros eram, em suma, apenas suas armaduras e seus elmos. Eles luziam como as paredes da sala do poço.
— Cavaleiros de cobre... — murmurou, perplexo. — Estátuas...
Porém, estátuas dotadas de movimento. Deu-se conta disso assim que chegou bem perto da primeira delas. A espada, que não era de cobre e sim de aço, abateu-se sobre ele com a velocidade de um raio. Só teve tempo de proteger a cabeça com o escudo. Uma ponta do escudo foi simplesmente cortada; a lâmina feriu o ombro de Acriança.
Ele se jogou no chão, fora do alcance da arma que, com o mesmo tinido de metal, elevara-se e atacava novamente. Acriança tornou a se pôr de pé. A segunda estátua de cobre mantinha-se à entrada do corredor subterrâneo. Como passar?
Não refletiu por muito tempo. Levantou o escudo à altura da cabeça e, tomando impulso, correu o mais rápido que pôde em direção ao subterrâneo. Ouviu o estalo de uma fechadura, depois o assobio da espada fendendo o ar. Bem atrás dele. Acreditou sentir o frio da lâmina roçando suas costas.
Pouco importava, tinha passado.
Caminhou na direção da luz. Na direção das vozes, seus gritos, suas lamentações.
Aquele outro subterrâneo era mais curto que o anterior, e não desabou. Alcançou o umbral de um quarto. No centro erguia-se uma pilastra de cobre, diante da qual estava uma moça — de cobre, também.
Acriança aproximou-se prudentemente da estátua. Um novo estalo... Ele teve o reflexo de dar um passo para trás. Os lábios de cobre se entreabriram e uma voz, doce e sem timbre, mas mesmo assim perfeitamente audível na barulheira infernal dos diabos e dos mortos — como se ela lhe falasse ao ouvido —, lhe disse:
— Cavaleiro, a chave grande abre o pilar. A pequena abre o cofre.
Um outro estalo... A mão de cobre lhe apresentou as duas chaves. Após um momento de hesitação, ele avançou para apanhá-las. Mas os dedos de cobre fecharam-se novamente com um golpe seco. Um instante depois, um rugido enorme fez tremer as paredes do quarto — e as vozes, os gritos, os queixumes, como que aterrorizados, se calaram.
Um ser como Acriança jamais havia imaginado nem em seus pesadelos acabara de surgir por trás do pilar. Sobre o corpo musculoso de um homem de pele mais negra do que o carvão, rugiam três cabeças de molossos*. Ele desprendia um fedor pavoroso de carniça — de carnes apodrecidas e de enxofre. De seus três focinhos com caninos parecidos com adagas, saíam curtas chamas azuladas; seus três pares de olhos flamejavam com um vermelho incandescente. Segurava um machado na mão negra e com garras.
— Pela Santa Cruz — exclamou Acriança, para criar coragem —, você é um homem ou três cachorros? Seja lá o que for, você é de uma feiúra e de um odor repugnantes!
O monstro replicou-lhe com um triplo rugido. Acriança segurou com mais força as correias do escudo sobre o antebraço. O monstro, depois de ter cuspido três chamas de furor, levantou o machado. Atiraram-se um sobre o outro.
O choque foi terrível. Mas Acriança teve a sorte ou a habilidade de aparar com a espada a machadada e de bater violentamente com o escudo nos três focinhos do cão. O cavaleiro e o monstro, saltando um em cima do outro, terminaram projetados no chão. Acriança foi o primeiro a se levantar. Deu um salto para evitar o machado que tentava lhe cortar os tornozelos e atirou-se, com a espada em riste, sobre o monstro. A lâmina se enterrou no peito até a empunhadura. Os três focinhos exalaram um triplo gemido e um triplo sopro horrivelmente nauseabundo. Engulhado, asfixiado, com as entranhas reviradas de asco, Acriança rolou de lado imediatamente.
Tossiu, cuspiu, quase vomitou, depois se levantou. O ser de cabeças de molosso não se mexia mais. O vermelho de seus olhos foi escurecendo como brasas que se transformam em cinzas. A pata com garras largou o machado.
As vozes infernais, pouco a pouco crescendo, reiniciaram seus gritos e lamentos.
Acriança arrancou a espada do peito do monstro, recolocou-a na bainha e retornou para junto da moça de cobre. Com um estalo, os dedos da mão direita se afastaram, oferecendo-lhe as chaves.
Ele virou a maior delas na fechadura do pilar central. Ele se abriu, então, como uma porta de batente duplo, revelando um grande cofre preto. Acriança acocorou-se e, com a ajuda da pequena chave, desfez sua tranca. Depois, levantou a tampa.
As vozes, os gritos, os lamentos jorraram dele com tanta força que Acriança caiu de costas. No mesmo instante, o teto do quarto se abriu para o céu tumultuoso e negro da tempestade. Atônito, Acriança viu fumaças fantasmagóricas se elevarem do cofre em colunas espiraladas, em meio a um clamor de libertação — como o canto, numa única nota ressoante, de cem mil gargantas invisíveis —, na direção das nuvens baixas marcadas por relâmpagos. Elas se misturaram às nuvens, dando voltas. O trovão rugiu, o raio iluminou a penumbra de tempestade e luto, alcançando tudo ao mesmo tempo.
Depois, subitamente aspirados, devorados por um turbilhão central, nuvens e fantasmas se evaporaram. Acriança, respirando depressa, com o coração aos pulos, olhava sem compreender o céu que de repente voltara a ficar azul-claro e calmo.
O NOME
Uma escadaria apareceu, levando do quarto até o exterior. Acriança percebeu que o pilar, a estátua de cobre e o cadáver do monstro tinham se volatilizado. Saiu para o ar livre.
A moça o esperava lá fora, no alto da escadaria. Um sorriso iluminava seu bonito rosto e ela estendeu os braços para o cavaleiro. Mas o que ele descobriu em torno de si o espantou demais para que pudesse prestar atenção nela.
Não havia mais cemitério. Agora, no lugar das tumbas, casas se elevavam, agradáveis e floridas, inundadas por um sol brilhante de verão. Uns após outros, homens, mulheres, crianças saíam, piscando os olhos como se voltassem de um profundo sono. A mulher reencontrava o marido; o irmão, a irmã; a criança, sua mãe, e, com exclamações de alegria, se seguravam nos braços, se abraçavam, riam até as lágrimas. A aldeia era local de grandes reencontros.
A moça, embora ferida pela indiferença que lhe demonstrava o cavaleiro, explicou-lhe:
— O senhor quebrou o encantamento. Essas pessoas estão livres graças ao senhor. Devem ter vivido horas de pavor.
— A senhorita acha? — perguntou ingenuamente Acriança. — Para onde será que Morgana e Baudemagus os enviou?
— Prefiro não saber de nada. E duvido que tenham conservado a lembrança. Venha, cavaleiro. É preciso que se faça conhecer.
Ele fez um gesto de irritação.
— Para quê? Já perdi bastante tempo. Tenho um juramento a cumprir, preciso partir novamente o quanto antes.
— Uma vez chegada a Gorre, a rainha não vai mais dar um passo. Um dia a mais ou a menos, qual a diferença?
Ele a olhou com raiva.
— O que tem a ver com isso, Donzela? E, para começar, quem lhe disse que eu ia a Gorre por causa da rainha?
— Saiba que eu sei, isto é o bastante.
— Eu a acho insolente e indiscreta!
O sorriso da moça se desfez. Uma tristeza inesperada escureceu seus olhos azuis.
— Perdoe-me, cavaleiro. Não me deteste.
— Que eu a deteste, não faz grande diferença! Em menos de uma hora, não nos veremos mais.
— E o senhor terá me esquecido...
Ela disse isso com tamanha melancolia que Acriança franziu as sobrancelhas e a examinou com mais atenção.
— O que se passa com a senhorita? Ela baixou os olhos.
— O que se passa comigo — disse — é que eu não o detesto...
Cada vez mais atrapalhado, Acriança levantou os ombros.
— Não me detesta? É o que espero mesmo, pois, afinal, eu a salvei!
— Era seu dever, cavaleiro.
Ele corou diante desse apelo à ordem.
— De fato — prosseguiu, embaraçado. — Eu tinha que libertá-la. E não tenho o direito de lhe exigir a menor gratidão... Mas, de todo modo, afinal, sua atitude é bem estranha! "Eu não o detesto!" Isso é jeito de falar?
— Há um outro, mas o cavaleiro não irá me permitir.
— Um novo mistério! — exasperou-se ele. — Fale de uma vez, em vez de pretender saber melhor do que eu o que permitirei ou não!
— O cavaleiro vai se zangar...
— Impossível! Eu já estou furioso!
Acriança agitou a mão vigorosamente diante de si.
— Vamos, fale, fale!
Ela deu um suspiro e levantou os olhos, retomando de repente seu delicado sorriso.
— Já que está me obrigando... É isto: eu o amo, cavaleiro.
— Ridículo!
Ele esperava tão pouco uma declaração daquelas que a palavra lhe viera espontaneamente aos lábios. E, como a situação era nova e ele ignorava como se comportar, não encontrou nada melhor do que repetir:
— Ridículo, ridículo, ri-dí-cu-lo.
— Por que seria ridículo?
— Mas, Donzela, eu, hã... Só nos conhecemos há uma hora!
— O senhor não se apaixonou pela rainha desde o primeiro olhar?
— Quem lhe...?
— O senhor não se lançou a essa aventura e a esses perigos sem que ela tivesse lhe dito uma única palavra de amor?
— Como é que a senhorita sabe...?
— Quer que eu lhe diga, cavaleiro? O senhor é um bobo e eu o amo. E nem eu nem o senhor podemos fazer nada.
Com essas palavras, ela segurou uma ponta do vestido, levantou-a sobre o calcanhar e se foi com um passo marcial em direção à praça da aldeia. Vermelho de raiva e de confusão, Acriança deixou-a partir, o tempo de recuperar o domínio de suas emoções. Depois a seguiu, decidido a alcançá-la e a concluir aquela conversa a seu favor.
No lugar da capela se erguia agora um pequeno solar ladeado por duas torrezinhas e coroado por uma frágil guarita de pedra. Um jovem saiu de lá, cambaleando ligeiramente. Quando viu a moça, seu rosto se iluminou e ele se apressou ao seu encontro. Tomou-lhe as mãos e as apertou contra o peito.
— Ellan, você está bem! Estava tão preocupado com você... Não sei o que me deu ao me opor a Meleagrant, deveria primeiro ter pensado em você, em sua segurança...
— Acredite-me — ela lhe respondeu —, estou orgulhosa de você. Não teria aceito que se comportasse diferente.
— Ellan... — recomeçou o varlete, levando, num impulso de ternura, as mãos da moça aos lábios.
Ela pareceu querer retirá-las, mas, avistando Acriança que chegava até eles, reprimiu o gesto de retirada e, ao contrário, deixou o rapaz lhe beijar os dedos.
— Preciso apresentar-lhe aquele que quebrou o encantamento de Morgana — ela disse, quando Acriança estava ao seu lado.
O varlete virou-se para ele.
— Cavaleiro, eu me chamo Galehot. Nós lhe devemos mais do que a vida: nossa alma. Passamos, creio, algum tempo nos Infernos...
Ele estremeceu com essa lembrança. Ellan, a moça, apontou-lhe Acriança.
— O cavaleiro vem de Camelot, Mas ele não me disse o seu nome.
— Assim como a senhorita também não me disse o seu, Ellan — retorquiu Acriança, esperando assim encerrar o assunto.
— O senhor não me perguntou, cavaleiro.
— É verdade que a senhorita não me deu tempo — replicou, ele friamente. — Falando bobagens sem parar, esqueceu-se da simples polidez.
— Delicadeza, cavaleiro! — interveio Galehot. — Não fale neste tom com a minha donzela.
Acriança, um pouco surpreso, olhou-os um de cada vez.
— Sua donzela?
— Vamos nos casar no outono — declarou Galehot passando um braço protetor pela cintura de Ellan.
Acriança reprimiu um sorriso e se inclinou.
— Neste caso, aceite minhas desculpas e meus cumprimentos. Peço-lhes permissão para retomar meu caminho. Estão me aguardando.
— Não! — disse Ellan com firmeza. Desprendeu-se do abraço de Galehot.
— Não — repetiu, num tom mais baixo. — O senhor não pode ir embora, cavaleiro. E você — acrescentou ela, na direção de Galehot — não pode se casar comigo.
— Por quê? — exclamaram juntos os dois rapazes. Ela tomou a mão de Galehot na sua mão esquerda:
— Tenho muito carinho e amizade por você, Galehot. Depois a de Acriança na sua mão direita:
— Mas é o senhor que eu amo, cavaleiro.
Com um mesmo movimento, cada um retirou a própria mão, como que picados por uma abelha. Galehot, muito pálido, encarou Acriança.
— É verdade?
— Eu lhe asseguro que a situação me desagrada tanto quanto ao senhor.
— Como, cavaleiro? — gritou Galehot, indignado. — Ousa desprezar o amor da donzela para a qual eu ofereceria meu coração e minha vida?
Acriança procurou uma escapatória. Não sabia por que aquele varlete, tão doce quanto arrebatado, agradara-lhe desde o início. Não queria feri-lo nem em seus sentimentos nem em seu corpo. Se as leis da cavalaria lhe permitissem, seria Ellan que ele teria de bom grado esbofeteado por haver deliberadamente provocado aquele mal-entendido.
— Acredite que não desprezo seu amor por ela. De minha parte, sei suficientemente o que o amor significa. Mais uma vez, deixem-me ir embora. Isso resolverá a questão.
— Está me tomando por um covarde, cavaleiro, ou por um grosseirão? — indignou-se Galehot. — A questão é muito grave: ela será resolvida com a espada na mão!
O rapaz puxou a arma e a apontou para Acriança.
— Bata-se, cavaleiro!
— Fora de questão! Não me bato com um varlete.
— Puxe sua espada!
Acriança deu de ombros com exasperação e virou as costas. Sem mais fazer caso de Galehot nem de Ellan, começou a atravessar a praça. As pessoas da aldeia, alertadas pela altercação, tinham se aglomerado, curiosas, inquietas, cochichando que o jovem senhor mal tinha resolvido os encantamentos de Morgana e não achara nada de melhor a fazer do que desafiar um cavaleiro de Arthur.
— Ninguém me vira as costas! — gritou Galehot.
Alcançou Acriança e barrou-lhe o caminho. O cavaleiro afastou-se para contorná-lo. Com um passo de lado, Galehot postou-se diante dele.
— Bata-se de uma vez! Está me humilhando!
— Ninguém jamais me deu uma ordem, varlete — replicou Acriança, procurando ainda evitar o rapaz.
— Eu o obrigarei a se bater comigo!
Com a face da lâmina, golpeou o quadril do cavaleiro. Este deu um breve grito de surpresa e indignação.
— Deixe-me passar de uma vez! Não se comporte como um imbecil!
— É a segunda vez que o senhor me insulta! — disse Galehot golpeando-o de novo no quadril. — Não haverá uma terceira!
Acriança fechou os olhos e deu um longo suspiro, enquanto passava a mão no quadril.
— Ninguém jamais me deu uma palmada, varlete, desde meu preceptor.
— Fizeram mal.
—Já que pensa assim...
E, de repente, sem que nada no instante anterior tivesse anunciado o gesto, Acriança agarrou a lâmina de Galehot com a mão esquerda nua e, sem se importar com o sangue que escorria entre seus dedos, arrancou-lhe a espada sem esforço. Segurou-a pela empunhadura com a mão direita e espetou a ponta na garganta de Galehot. Uma lágrima de sangue brotou, correndo lentamente pelo seu pescoço.
— Você foi muito longe, varlete. Vai me obrigar a matá-lo.
— Não! Eu lhe suplico, cavaleiro! — gritou a voz de Ellan.
Ela se precipitara. Juntou as mãos.
—A culpa é minha! Não deveria ter falado como falei...
— É tarde demais para se dar conta disso. Acriança, fingindo um sorriso malvado, apertou um
pouco mais a ponta da espada na garganta de Galehot. Para sua satisfação, o varlete, embora muito pálido, não hesitou, nem pediu clemência*. Era um menino, decerto ingênuo e desajeitado em combate, mas corajoso.
— Poupe-o, cavaleiro! Eu não achava que a questão ia chegar a este ponto!
— Não achava? Então é porque a senhorita é boba?
— Sim... eu sou muito boba.
— Por que fala pelo prazer pueril de falar, sem saber o que está dizendo?
— Sim... falei sem saber o que estava dizendo... Acriança balançou a cabeça, fingindo o maior dos embaraços.
— Uma pena... Verdadeiramente uma pena... Se a senhorita tivesse compreendido sua bobagem mais cedo, não teríamos chegado até este ponto e eu não estaria obrigado a matar esse varlete. Uma pena...
Ellan se atirou de joelhos.
— Eu lhe imploro, não o mate...
Com um ar exageradamente preocupado, Acriança raspou a ponta da espada no queixo de Galehot.
— Vejamos — disse. — Tem que haver uma solução... Mas a senhorita não a aceitará.
— Aceito tudo que o senhor quiser!
— Não, é impossível. A senhorita mesma disse, ainda agora.
— Fale, cavaleiro! Exija! Eu lhe respondo sim antecipadamente.
— Verdade?
— Sim!
— Neste caso...
Acriança recolocou a ponta da lâmina na garganta do varlete.
— Ellan — disse —, vai me prometer se casar com Galehot, como havia previsto, no outono.
Ela hesitou. Olhou para Acriança, depois para Galehot. A espada entrou um pouco mais na minúscula ferida, fazendo correr um pouco de sangue.
— Eu prometo — disse ela finalmente.
— Ótimo! — tornou Acriança. — Para completar, vai também me prometer que essa questão entre nós está encerrada, essas bobagens que estava repetindo ainda agora.
— Eu... cavaleiro...
Ellan fazia um enorme esforço para se dominar. As palavras que ele a obrigava a repetir, o juramento que lhe exigia pareceram por um momento acima de suas forças.
— Prometa! Rápido!
Com uma voz apagada, ela recitou:
— Prometo que não lhe falarei mais de am...
— Basta! — cortou Acriança. — Não avilte mais esta palavra.
A moça de joelhos curvou a nuca e pareceu se encolher sobre si mesma. Acriança baixou a espada, devolveu-a a Galehot e se inclinou para levantar Ellan.
— Beije seu noivo — disse.
Os dois jovens, de início, não ousaram se olhar nos olhos. Acriança, com autoridade, segurou cada um pelo ombro e o empurrou para o outro. Como se não quisesse, os braços de Galehot se fecharam em torno da cintura de Ellan. Finalmente ela levantou a testa, olhou-o com uma doçura culpada e, erguendo-se de repente sobre a ponta dos pés, deu-lhe um beijo nos lábios. Os aldeões aplaudiram.
Era certo que Acriança não partiria nem tão cedo nem sozinho. Deixando o jovem casal se explicar em voz baixa, ele se foi por entre os aldeões que, discretamente, se dispersavam. Mas Ellan e Galehot correram atrás dele.
— O quê, agora? — resmungou.
— Cavaleiro — disse Galehot —, nós também temos que tomar a estrada. Vamos à casa do pai de Ellan. Podemos acompanhá-lo?
— Não seria prudente. Não quero que passem pelos perigos que me aguardam.
— Conceda-me esta honra. Eu estava a serviço do príncipe Meleagrant, mas agora não poderei mais me tornar seu cavaleiro. Aceite-me como seu varlete.
— Não necessito de ninguém a meu serviço. E depois, nós temos a mesma idade, Galehot, e eu sou cavaleiro há somente três dias.
— Não quero mais servir a outro cavaleiro que não seja o senhor.
Galehot pronunciou essas palavras com tanta nobreza e determinação que Acriança compreendeu que o ofenderia caso não aceitasse. Além do mais, aquele menino lhe agradava. E pensou que, uma vez chegados à casa do pai de Ellan, ele lhe pediria para esperar no local e partiria sozinho para Gorre — e a Ponte da Espada.
— Muito bem, Galehot. Mas apronte-se depressa, já fiquei tempo demais aqui.
Encerrando as demonstrações de gratidão e alegria do varlete, acompanhou-o até o pequeno solar. Ellan ia ao lado deles, sem dizer uma palavra. Acriança não olhava para ela.
Deixou os dois jovens entrarem sozinhos no solar, depois de lhes ter recomendado novamente que andassem mais depressa. Caminhou em volta dos fossos, com as mãos cruzadas nas costas, refletindo sobre as aventuras que havia vivido desde que deixara Camelot e tratando de ressuscitar a imagem bem-amada de Guinevere, pois se criticava por não pensar nela há cerca de uma hora. Lembrava-se com angústia da tumba onde o nome da rainha estava inscrito, quando, depois de ter dado a volta completa ao solar e se aproximado da grande porta pela direita, parou e empalideceu.
Ali, diante dele, encontrava-se uma pedra mortuária branca. A única que não desaparecera depois que ele quebrara os encantamentos.
Cheio de ansiedade, aproximou-se bem lentamente. Lembrou-se então que, depois de ter lido o nome de Guinevere, não havia lançado um olhar para a tumba do lado — que era tão próxima que as duas pareciam ser apenas uma. Inclinou-se, pensando achar ali o nome de Arthur. Mas o que leu foi isto:
Esta pedra será levantada
sem esforço apenas
pela mão Daquele que quebrará
os encantamentos.
Seu nome está inscrito dentro da tumba.
Ele pronunciou as duas frases a meia voz. Depois, examinou a pedra. Tinha a espessura de dois palmos, larga o suficiente para cobrir dois homens. Teriam sido necessários quatro saxões de Meleagrant para fazê-la deslizar.
Acocorou-se. Diante dele, na parte de baixo da lápide, um entalhe deixava lugar para se enfiar uma mão. Ele colocou a sua. Ela parecia se adaptar perfeitamente. Apertou o polegar contra a pedra e empurrou-a delicadamente para o alto.
Ela não pesava mais do que uma pluma. Admirado, ele ergueu-se, sem largar a pedra, e, sem esforço, suspendeu-a com os braços.
Dentro da tumba repousava um caixão de metal trabalhado com ouro, pedras preciosas e esmaltes. Acriança decifrou esta inscrição, em grandes letras de alabastro:
Aqui repousará Lancelot do Lago, Filho do rei Ban de Bénoic. Ele engendrará um leão Sobrepujando todos os cavaleiros.
— Eu sabia, cavaleiro. Você é Lancelot.
Repentinamente arrancado do estupor em que aquela revelação o havia mergulhado, o cavaleiro voltou-se e largou a lápide que, caindo pesadamente, partiu-se ao meio. Ellan, vestida para a viagem, repetiu-lhe:
— Você é Lancelot.
Ele a olhou como se procurasse no seu rosto uma resposta a todas as perguntas que, agora, davam-lhe voltas na cabeça.
— Eu sou Lancelot — murmurou.
Esse nome, que nunca tinha ouvido, pareceu-lhe estranhamente familiar — como um hábito tão longamente carregado que parece fazer parte do próprio corpo.
— Quem é Ban de Bénoic?
— Um rei traído por seu senescal e morto de desgosto quando sua cidade e seu castelo foram queimados.
— Ele era fraco, então?
— Não. Ele era bom. Amava mais do que tudo sua jovem mulher e o filho que ela acabara de lhe dar.
— Sua mulher... Minha mãe? Como se chamava ela? O que aconteceu com ela?
— Chama-se Helena. Ela chora o rei e seu filho há dezoito anos.
— Como sabe sobre mim tantas coisas que eu ignoro? Um lampejo misturado com rancor e pesar passou pelos olhos da moça — como se fosse uma nuvem que escurece e ameaça o oceano.
— Eu lhe disse que você era quem eu esperava. Mas você me proibiu de lhe falar do meu amor, Lancelot. Estou ligada a esse juramento que você me impôs como obrigação. Não responderei a nenhuma de suas perguntas.
— Por quê?
— Aceitando o meu amor, compartilhando-o, você teria aberto o caminho da Busca. Você fez uma outra escolha.
— Sim — afirmou Lancelot com veemência. — Eu amo Guinevere. Não posso fazer nada.
Os lábios de Ellan se contraíram sobre um sorriso mau.
— É culpa sua e é um erro. Guinevere casou-se com Arthur diante de Deus e você prestou juramento de fidelidade ao rei. Amar a rainha é cometer um duplo pecado: contra Deus e contra a cavalaria.
— Cale-se! Foi o próprio Deus que me pôs este amor no coração.
— Deus? Ou o demônio? Vivian, dizem, conheceu muito bem Merlin, o filho do diabo. Pense nisso, cavaleiro.
Ela não lhe deixou tempo de replicar. Correu para Galehot, que, armado, precedia os rocins que tinham sido preparados pelos escudeiros. Atirou-se em seus braços com uma violência que o desconcertou e o apertou com muita força nos braços.
— Vamos, então — disse. — Tenho pressa de rever meu pai.
O Rei Inválido
Deixaram a muralha da aldeia pela grande porta, a partir de então aberta, e seguiram por algum tempo o curso do rio cuja água maléfica por pouco não gelara o coração do cavaleiro. Ela corria, ligeira e transparente, libertada dos encantamentos. Sob o pretexto de abrir caminho e estar preparado para qualquer perigo, Lancelot cavalgava à frente. Poupava-se assim da companhia de Ellan. Não queria mais ouvir falar do seu amor por ele. Não queria mais sustentar seu olhar de desaprovação.
Entraram em um bosque cujas árvores logo ficaram mais esparsas. Algumas, cada vez mais numerosas à medida que os três cavaleiros avançavam, eram negras, desfolhadas, mortas. O canto dos passarinhos cessara. A própria terra não tinha mais relva, flores, plantas. Cor de cinza, ela voava numa fina poeira sob os cascos dos cavalos.
Pareceu a Lancelot que a noite caía mais depressa do que seria normal naquela estação. Ou, mais especificamente, que ela os esperava em algum lugar, depois daquela floresta morta, no final do fio ondulado do caminho, e que eles estavam indo ao seu encontro — uma noite perpétua, não negra, mas cinzenta como o solo, instalada para todo o sempre naquela terra desolada.
Quando tinham deixado para trás as últimas árvores negras de galhos nus, encontraram uma fonte. As últimas claridades do sol desmancharam-se na penumbra imóvel que cobria todas as coisas. A água da fonte parecia a única coisa viva naquela região. Correndo em uma bacia em forma de meia-lua, derramava-se por um bico e formava um córrego que descia para dentro do vale. Contudo, nem um único matinho crescia sobre suas margens pedregosas de basalto e obsidiana.
— Vamos dormir aqui e esperar o dia — disse Lancelot, saltando de seu rocim. — Ou será que a aurora não surge sobre esta terra?
— Haverá uma aurora, Senhor — disse Galehot. — Cinza como a noite: de um cinza mais claro. Nós entramos na Terra Gaste, o reino do pai de Ellan, o rei Pellès.
— O que o seu pai fez, Donzela, para sofrer esta maldição?
— Pergunte a ele, Lancelot, e ele mesmo lhe responderá.
Isso foi dito num tom que não admitia réplicas. Lancelot não insistiu. Segurando seu cavalo pela brida, conduziu-o à fonte. Dava-lhe pancadinhas no pescoço, maquinalmente, olhando-o beber, quando teve a impressão de distinguir um reflexo amarelo do outro lado do rebordo da fonte. Contornando o rocim, chegou perto do reflexo.
Era um pequeno pente de ouro. Reconheceu-o na mesma hora: ele enfeitava os cabelos da rainha Guinevere quando ela lhe dera a espada. Alguns cabelos, parecendo do mais fino ouro, do mais precioso e mais raro, estavam presos nele. Ele os acariciou delicadamente entre o polegar e o indicador. Estava prestes a levá-los aos lábios quando escutou um ligeiro barulho de passos às suas costas. Fechou na mão com força os cabelos e o pente de ouro.
— Refletiu, cavaleiro?
Ellan estava diante dele e, apesar da estranha sombra da tarde, seus olhos brilhavam com uma chama azul.
— Refleti sobre o quê?
— Sobre o destino que fez com que nos encontrássemos.
— Meu destino não é o seu, se é o que está querendo dizer.
— Contudo, se não tivesse me libertado, eu não teria lhe mostrado o poço dos encantamentos e você não teria lido seu nome naquela tumba.
— Com relação a isso, eu também não o teria lido se o monstro com cabeças de cachorro tivesse me matado.
— Você está agindo de má-fé, Lancelot.
— De boa ou de má-fé, dediquei minha fé inteiramente à rainha. Não vamos mais falar disso, por favor!
Ela deu um passo em direção a ele. Sustentava o olhar com um ardor que ele sonhava em encontrar um dia no de Guinevere. Ele ficara perturbado, contudo, como se esse amor que ele não compartilhava o unisse, em um recôndito segredo de seu coração, a Ellan.
— Lancelot, uma última vez, deixe-me alertá-lo: embora acredite estar escolhendo o amor, está escolhendo apenas o erro. Se você é um cavaleiro leal, deveria sê-lo antes de mais nada ao seu rei.
— Chega! Você zomba muito da minha fidelidade ao rei: tudo isso não é senão um pretexto para me desviar de Guinevere.
— É para o seu bem, cavaleiro, somente para o seu bem que você deve se afastar da rainha!
— Que bem me adviria se eu rompesse o juramento que fiz a ela? Eu seria apenas um animal errante, sem vínculos nem objetivo.
— Você manteria um coração puro.
— Um coração puro? Para que me serviria um coração que não estivesse a todo instante cheio da imagem de Guinevere? Um coração puro é um coração vazio. Preferiria arrancá-lo com minhas próprias mãos!
— Lancelot, só um coração puro, um coração de criança dentro de um corpo de cavaleiro, um coração leal e bom, poderá consumar a Busca...
— Do que está falando?
Ela entreabriu os lábios, como se fosse responder, mas, baixando de repente as pálpebras, mudou de idéia.
— Não posso lhe contar mais nada se não renunciar a seu amor pela rainha.
Ele acariciou o rebordo da bacia — mantendo o outro punho solidamente fechado sobre o pente de ouro.
— Sua insistência me perturba, Ellan, confesso. E também o interesse que demonstra por mim, apesar... apesar da minha franqueza a seu respeito. Conhece então um segredo tão grande que vale que eu renegue meus sentimentos, que renegue a mim mesmo?
— Você não se renegará, Lancelot — ela respondeu com fervor. — Ao contrário: você se tornará aquele que deve ser!
Ele balançou preocupadamente a cabeça. Parecia refletir.
— Talvez você tenha razão. Talvez eu deva renunciar a esse amor, uma vez que você me assegura que ele também é minha perdição...
— Você o faria, Lancelot? Você renunciaria a ele?
— Se eu renunciar, você me revelará o grande segredo?
— Claro, uma vez que ele não é meu, mas seu... se merecer.
Lancelot levantou a cabeça para o céu cor de cinza. Não viu nenhuma estrela.
— Ellan — disse com gravidade —, eu acredito em você. Acredito que esse segredo é mais importante e maior do que meu amor por Guinevere.
— Sim, cavaleiro, creia em mim.
Com os olhos sempre voltados para o céu, ele prosseguiu:
— Eu deveria, portanto, renunciar a esse amor?
— Sim, renuncie a ele, Lancelot! O que vai obter em troca é um tesouro sem igual em nossa vida.
Baixando lentamente a testa, ele contemplou os olhos exaltados da moça.
— Olhe — disse, abrindo a mão e estendendo a palma onde luzia o pente de ouro. — Não quero outro tesouro, Ellan. Sim, eu renuncio: eu renuncio a ouvir o seu segredo.
De início, ela pareceu não compreender. Seus olhos se abriram ainda mais, dentro deles a chama interior queimou mais forte, e depois, como se tivesse se consumido inteiramente, apagou-se de repente. O rosto de Ellan se contraiu num esgar de cólera e despeito.
— Loucura! — exclamou. — Você é louco... Ele lhe estendeu a mão.
— Ellan...
— Deixe-me! E fugiu.
Lancelot olhou-a desaparecer dentro da noite cor de cinza. Apertou a mão sobre o pente de ouro e os cabelos de Guinevere, perguntando-se qual a diferença, afinal de contas, entre a loucura e o seu amor.
Tão longe quanto conseguiam ver, o caminho seguia sempre reto. A planície cinzenta que acabavam de atravessar continuava a perder de vista.
— Tem certeza — perguntou Lancelot — de que o castelo de seu pai está perto?
Ela não lhe respondeu. Com o rosto escondido sob um véu que a cobria até os ombros, não lhe dirigira a palavra desde a partida de madrugada. Galehot trouxe seu cavalo para perto do rocim do cavaleiro.
A feição do céu mudara. Riscas mais luminosas, traços cor de cobre, violeta, clareavam-no em certos locais.
— Avancemos, Senhor. Estamos quase em Corbenic. Eles trotaram ainda um quarto de légua. Finalmente, Lancelot acreditou distinguir diante
deles, na extensão cinzenta e pálida, uma espécie de forma trêmula, uma miragem escura e em movimento. Apressou o passo.
Pouco a pouco, a forma se tornou precisa, a miragem se solidificou. Mas não foi senão quando estavam a quase uma flechada de distância que a imagem durante tanto tempo indecisa se transformou completamente em uma alta e larguíssima torre quadrada, de pedras negras, ladeada por duas pequenas torres e cercada pela água verde de um fosso.
Então, Ellan chicoteou o cavalo e ultrapassou a galope o rocim de Lancelot. Com o longo véu esvoaçando atrás dela como uma auriflama*, atravessou a ponte levadiça e precipitou-se pela grande porta.
— Ellan! — gritou Galehot.
Era inútil chamá-la. Seu cavalo e ela desapareceram, silhuetas minúsculas engolidas pela imensa torre quadrada.
— Posso lhe perguntar o que Ellan tem contra o senhor?
Lancelot leu tanta franqueza e confusão no rosto do varlete, que fez um gesto tranqüilizador e lhe pousou fraternalmente a mão sobre o ombro.
— Fique tranqüilo. Ellan se casará com você, assim que tiver esquecido as emoções e as loucuras que provocaram nela os encantamentos de Morgana.
Quando eles, por sua vez, chegaram junto da ponte levadiça, Lancelot e o varlete viram quatro escudeiros de pé, um pouco abaixo da beira do fosso, segurando uma imensa capa escarlate. Sobre a água, onde cresciam nenúfares brancos — as primeiras plantas que encontravam desde a véspera e a floresta morta —, um velho de barba cinzenta pescava, sentado no fundo de um barco. Lancelot saudou-o.
— Sou Lancelot do Lago, cavaleiro de Arthur. Vim acompanhando Ellan à casa do rei Pellès.
— Sim — disse o ancião com uma voz amável —, vi minha filha entrar como uma fúria no castelo. Achei que estava fugindo de você. Mas, bom dia, cavaleiro. Sou Pellès. Bom dia, Galehot.
O rei fez um sinal: imediatamente dois dos escudeiros agarraram uma corda presa na beira do fosso e puxaram o barco até a margem. Os dois outros escudeiros subiram com cuidado no barco, enrolaram o ancião com a capa escarlate, e depois o ergueram e o colocaram em terra firme. Lancelot viu então que as pernas dele eram magras e sem vida.
O rei Pellès deu-lhe um sorriso e apontou a ponte levadiça.
— Entre e deixe seu rocim na cavalariça, cavaleiro. Vou encontrá-lo com o meu passo. Minha montaria também tem quatro patas — acrescentou, passando o braço em torno dos ombros dos escudeiros que o carregavam.
Lancelot obedeceu. No pátio, quatro varletes o acolheram e recolheram suas armas: um tomou o elmo, um outro o escudo, o terceiro sua loriga. O quarto cobriu-lhe os ombros com um manto da mesma cor escarlate da capa do rei. Galehot levou os rocins para as cavalariças, enquanto o cavaleiro era conduzido até a torre.
Havia ali a maior sala que já tinha visto. Era quadrada como a torre, mas, quando se entrava nela, parecia grande demais para nela caber. Na lareira, cujo pano de proteção era sustentado por quatro colunas pretas, quatro cabritos estavam sendo assados ao mesmo tempo. Lancelot estimou que as paredes eram pelo menos quatro vezes mais altas do que as da sala onde o rei Arthur o recepcionara. Quatrocentos homens teriam podido instalar-se ali confortavelmente em volta da chaminé.
Mas o que mais surpreendeu o cavaleiro foi ver o velho rei Pellès já instalado sobre um imenso leito quadrado disposto no centro da sala. Uma veste preta tinha substituído a capa escarlate. Pellès estava displicentemente deitado de lado, apoiado num cotovelo.
— Meu amigo — disse a Lancelot —, não leve a mal se eu não me levantar para recebê-lo.
— Por favor, Sire, não tem a menor importância.
— Aproxime-se, aproxime-se. Sente-se perto de mim. Quando Lancelot se viu sentado na beira do leito,
Pellès deu-lhe um tapinha na mão com bondade.
— Conte-me, meu amigo, as aventuras que o trouxeram até mim.
— Sire, eu deixei Camelot no dia de São João. E não parei de cavalgar desde então.
— Nenhum encontro no caminho, bom ou mau?
— Alguns. Precisei algumas vezes desentorpecer minha espada.
Pellès deu um riso de aprovação.
— Não duvido! O senhor tem a fisionomia de um moço honesto, porém pouco acomodado. E, diga-me, para onde está indo? Longe?
— Para o reino de Gorre.
— Sei... Mas sabia que é muito difícil entrar em Gorre?
— Disseram-me que existe uma ponte, no final de suas terras, que se chama Ponte da Espada.
— Uma ponte que ninguém jamais conseguiu atravessar, não lhe disseram também?
— Juro que quando eu a tiver atravessado ninguém mais falará isso.
— Maravilhoso! — exclamou o rei.
Rindo de satisfação, ele examinou Lancelot. O cavaleiro, que não compreendia a reação do rei e via brilhar nos olhos dele a mesma chama exaltada dos olhos de Ellan, sorriu-lhe com um ar interrogativo.
— Meu amigo — disse Pellès —, há anos eu janto sozinho nesta grande sala deserta. Desde que minhas pernas...
Mostrou-lhe as pernas mortas cobertas pela veste preta.
— Creio que esta noite vou abrir uma exceção. Sim, sim, sim... Tenho mesmo certeza. Jantaremos juntos.
Riu novamente, alegremente — desconcertando um pouco mais Lancelot, que dizia a si mesmo que, se fosse ele, não acharia motivo para rir, tendo perdido o uso das pernas e reinando sobre uma terra de cinzas.
Pellès fez um breve sinal aos quatro varletes que até então tinham se mantido diante da enorme lareira com quatro colunas e quatro cabritos. Os que seguravam as armas de Lancelot as depositaram ao pé do leito, depois todos os quatro se afastaram e deixaram a sala pela parede do fundo, onde se abria uma porta que Lancelot não reparara até então.
— Cavaleiro — disse o rei —, que aventura é essa que o leva até Gorre e o faz escolher a Ponte da Espada?
— Sire, tenho um juramento a cumprir.
— Um juramento a Arthur?
— Não posso lhe dizer mais nada.
— Por que esse silêncio?
— É meu segredo. Um cavaleiro deve saber se calar em certas ocasiões.
Pellès não insistiu. Quanto a Lancelot, preferia omitir seu juramento à rainha. Desde sua partida de Camelot, havia encontrado tantas pessoas que pareciam saber muito mais sobre seu destino do que ele mesmo podia imaginar, que não confiava mais: não queria dar a Pellès a oportunidade de perturbar suas resoluções com perguntas ou revelações que ele agora temia pudessem afastá-lo da rainha, ou que o rei lhe apresentasse toda sorte de motivos para ele renunciar ao seu amor. Não que esse amor não fosse inabalável, mas temia ter que justificá-lo. Sim, diante de Deus, Ellan tinha razão: amar a rainha era enganar o rei e seu juramento de fidelidade. Ela o havia convencido. Mas todos os raciocínios da Terra nada podiam contra este fato: ele amava Guinevere com um amor tal que estava pronto a vivê-lo e nele perder sua honra e sua alma.
Enquanto estava inteiramente imerso nessas reflexões, em que lutavam uma última vez dentro dele o amor e o dever, um dos quatro varletes entrou na sala, com uma lança na mão. Era longa, sólida e branca, armada com uma lâmina de quatro faces biseladas. O rapaz atravessou lentamente a peça, a alguns passos do leito. Com um olhar distraído, Lancelot notou que uma gota de sangue saía da ponta da lâmina e corria ao longo da lança, até a mão do varlete. E aquela gota vermelha não parava de brotar, mas sem jamais cair no chão, sem que a própria lâmina chegasse a ficar ensangüentada, como se não viesse de uma ferida infligida pela lança, mas nascesse inexoravelmente de sua própria ponta.
Teve o vago sentimento de que o fato era surpreendente, mas, apesar de a mão de Pellès segurar com firmeza seu braço, não fez nenhuma pergunta. O varlete da lança que sangrava deixou a sala; a mão do rei deixou o antebraço de Lancelot.
Pouco depois, os três outros varletes apareceram. Dois deles carregavam candelabros de ouro onde queimavam em cada um quatro velas. O terceiro, afastado, tinha nas mãos um prato côncavo, desses que são chamados de graal. Quando ele entrou na sala, em seguida aos varletes que carregavam os candelabros, a chama das oito velas produziu uma intensa luz, tão clara e tão branca que bastou para iluminar toda aquela imensa sala. Quando Lancelot viu o curioso prodígio, desejou com esperança e melancolia que, quando revisse Guinevere, seu coração não ficasse menos iluminado do que aquela sala, que ele queimaria com mais intensidade e ficaria mais claro ainda do que aquelas velas. E, em meio àquela repentina labareda de amor que fez surgir, sem ele saber, um sorriso encantado em seu rosto, mal viu passar perto dele o graal, mal percebeu que tinha pedras preciosas engastadas e incrustações de esmalte negro, mal ouviu o suspiro desapontado do rei Pellès enquanto os varletes desapareciam pela porta onde o varlete da lança que sangrava desaparecera antes deles.
— Ouvi dizer — murmurou Pellès — que se pode tanto calar quanto falar, conforme a ocasião...
Lancelot acreditou que o rei tentava voltar ao assunto das suas razões para ir a Gorre, e por isso não respondeu. Sustentou o olhar curioso de Pellès com a firme intenção de não pronunciar uma palavra que fosse sobre o caso.
— É pena, cavaleiro — disse simplesmente o rei.
Levantou a mão, como se lamentasse: novos varletes entraram. Arrumaram uma mesa de marfim ao longo do leito e trouxeram toalhas que foram estendidas enquanto o rei e Lancelot lavavam as mãos em água quente. O primeiro prato foi uma perna de cervo com pimenta, acompanhada de um vinho rascante servido em taças de ouro.
Lancelot tinha fome e começou a comer com grande apetite, interrompendo-se por vezes entre dois bocados para responder ao rei que o interrogava, sem entusiasmo, sobre sua infância no Lago. Tinha recobrado o bom humor e só pensava na madrugada do dia seguinte, que o veria partir para a Ponte da Espada — do outro lado da qual ele se imaginava libertando depressa Guinevere. Assim, estava empolgado demais com sua força jovem e com suas próximas aventuras para se dar conta da tristeza que velava os olhos e a voz de Pellès. E, se a tivesse visto, aliás, também não teria compreendido...
A POÇÃO ENGANADORA
Terminada a refeição, o rei Pellès declarou que estava cansado, que o cavaleiro deveria estar ainda mais cansado e que deveria ir dormir. Lancelot compreendeu que o despediam, mas não se perguntou por que mereceria aquela súbita frieza do rei. Saudou-o com educação e seguiu os quatro varletes ao longo de intermináveis passagens e escadarias labirínticas.
Seu quarto ficava no topo de uma das pequenas torres que ladeavam a torre principal. A cama parecia confortável — mas Lancelot teria se deitado em cima da pedra, tão exausto estava. Preparava-se para se despir quando bateram à sua porta.
Era Ellan. Ele a viu entrar com um certo desprazer. Temia que ela lhe falasse de novo de seu amor e do grande segredo que ele havia optado por ignorar. Mas ela lhe sorriu com perfeita gentileza e lhe mostrou as duas taças que segurava nas mãos.
— Lancelot, eu queria que você me perdoasse. Comportei-me mal com você.
— Por favor, Donzela, não falemos mais disso.
— Tem razão. Vamos esquecer tudo isso. Permita que eu me torne sua amiga.
Ela lhe estendeu uma das taças.
— Aceitaria beber à nossa reconciliação?
— Ellan, nada me daria maior prazer. Emocionado, ele pegou a taça. Ela continha um vinho claro, de um amarelo acobreado, que desprendia um perfume entontecedor.
— Fico feliz — disse — que tenha se rendido às evidências. Eu não quis feri-la, Ellan, não pude agir de outra forma.
— Eu sei, cavaleiro. Seu sentimento é forte demais para que eu insista em lutar contra ele. Portanto, decidi fazê-lo meu aliado.
Ele se sentia aliviado demais por ela confessar os próprios erros e perdoar os dele para tomar cuidado com as palavras que ela empregava. Ergueu a taça alegremente.
— À nossa aliança!
— A você, Lancelot!
Ela molhou docemente o lábio na taça, sem tirar os olhos dele. Ele sorriu e bebeu de um trago. A bebida era mais forte do que ele esperava, e tinha um gosto agradável, porém desconhecido. A cabeça se revirou por um instante, as paredes pareceram se mexer à sua volta, mas depois ele voltou ao normal e viu que Ellan o observava com atenção. Sentiu em relação a ela como que um impulso de ternura que o surpreendeu.
Ela tomou a taça dele.
— Eu o deixo — disse. — Durma, você precisa disso. Que os sonhos lhe sejam propícios.
Saiu do quarto. Fechou a porta atrás de si.
Lancelot levou a mão à testa. Estava quente. Seria febre, cansaço? Entretanto, não se sentia doente: estava sereno, as veias invadidas por uma grande doçura que o entorpecia. Tirou a camisa e os calções e meteu-se na cama.
Nunca um colchão lhe parecera tão macio. Dormiu assim que encostou a cabeça no travesseiro e se perdeu na mesma hora em um sonho...
Por trás das pálpebras fechadas, o quarto clareou de um jeito resplandecente, revelando tecidos azul cor do céu, semeados de estrelas, pendurados nas paredes, no teto e pelo chão. Volutas perfumadas se elevavam de parte nenhuma, cercavam a cama, roçavam o rosto de Lancelot, proporcionando-lhe um bem-estar assombroso. Começou a rir baixinho e sentiu que alguém lhe tocava o ombro. Não teve um sobressalto, não se assustou, não parou de rir daquele prazer suave cujo perfume de ervas frescas e de rosas o embriagava. Virou-se lentamente no leito e, antes mesmo de vê-la, loura, calma e séria, soube que era ela e murmurou:
— Guinevere...
Ela estava sentada junto dele. Vestia apenas um longo véu, translúcido, que deixava ver a brancura de leite de seus ombros, de seu busto e de seu ventre. Ela lhe acariciou a testa.
— Esperei por você durante muito tempo — disse a ele.
Ele não respondeu imediatamente. Temia interromper a deliciosa carícia em sua testa. Nunca se sentira tão feliz, tão tranqüilo, tão presente no mundo. Sonhou que renunciaria a todas as batalhas, a todas as justas, se obtivesse a graça de permanecer assim até o fim dos tempos.
A mão de Guinevere deixou sua testa. Com a ponta dos dedos, percorreu seu rosto, queixo, pescoço, ombro, parou no seu peito.
— Eu o amo, Lancelot.
Ela se estendeu lentamente ao seu lado. Ele não ousava sequer pestanejar. A respiração tépida de Guinevere lhe aquecia o côncavo da orelha, irradiando-se por todo o corpo. Onde estavam aquelas palavras que ela lhe cochichava, a ordem suave que ela lhe dava?
— Me ame, você também.
Ele passou um braço em volta da cintura dela. Os dedos roçaram seus quadris; a palma reconheceu ternamente sua redondez.
Ela pousou os lábios sobre os dele. Ele sentiu de novo o gosto inesperado do vinho que bebera antes de adormecer. Mas, antes mesmo que a mínima suspeita pudesse tomar forma, ela se apertou contra ele que, fora de si de felicidade, se deixou levar por seu calor vigoroso e sensual.
Dormiu até de manhã. A madrugada já tinha surgido há muito tempo quando ele abriu os olhos. Não havia o menor barulho no castelo. Ninguém, nem varlete nem escudeiro, viera acordá-lo como de hábito. Ergueu-se e se lembrou de repente do seu sonho — com tamanha precisão de detalhes, sensações, lembranças, que lhe pareceu mais verdadeiro do que a realidade que o cercava. Ainda tinha na boca o gosto do vinho de Ellan, e a cabeça nebulosa.
Começou a afastar a coberta para se levantar: interrompeu o gesto. Perto dele havia a marca de um corpo que não podia ser o seu. Tocou nela: estava quente. O travesseiro também estava amassado. Os sonhos, por mais poderosos que sejam, não deixam vestígios — ou apenas no espírito e no coração. Nem vestígios, disse para si mesmo, inclinando-se bastante sobre o travesseiro, nem cabelos.
Pegou um fio com a ponta dos dedos, longo cabelo louro cuja extremidade cacheada se enrolou em volta do seu polegar. Seu coração deu um pulo no peito com essa descoberta. Guinevere... Então não fora um sonho? De fato a tivera nos braços? Por meio de que sortilégio ela pudera encontrá-lo neste quarto — e por que fugira antes de ele acordar?
Saltou da cama, apanhou os calções, revistou apressadamente os bolsos. Finalmente tirou de lá o que procurava: o pequeno pente de ouro. Aproximou-o dos olhos e comparou o cabelo encontrado no travesseiro com os que tinham ficado presos na jóia duplamente preciosa.
Não eram os mesmos. O louro mais pálido de um o fazia parecer desbotado, junto do louro mais forte e dourado dos outros.
Em Lancelot, a decepção inicial deu lugar à cólera. Tinha sido enganado.
— Enganado, enganado, enganado! — urrou, furioso.
E, vestindo-se às pressas, não teve nenhuma dificuldade em reconstituir o que realmente tinha se passado: Ellan, sob o pretexto de uma reconciliação, o havia feito beber uma poção — era isso que explicava o repentino impulso de ternura que sentira por ela assim que acabara de beber o vinho, a exaltação e o sono instantâneo. Em seguida, tão logo ficara sob o efeito da bebida mágica, ela se introduzira no seu quarto, sabendo que o sortilégio o faria confundi-la com a rainha. Ele a havia tocado, acariciado, beijado. Ele a havia amado como jurara só amar Guinevere.
Ela o enganara. Mas, o que era infinitamente mais grave, e o desesperou quando compreendeu, é que ele havia, conseqüentemente, enganado a rainha. Seu amor, portanto, era tão frágil e tão fraco que um engodo tão grosseiro pudera iludi-lo?
Atravessou rapidamente passagens, desceu escadas, entrou em quartos, chamou. Não havia ninguém no castelo. Os cômodos estavam vazios de presenças e móveis, os corredores e as escadas estavam desertos.
Depois de se perder diversas vezes, de ter andado em círculos, Lancelot terminou por ir dar, por acaso, na grande sala. Estava coberta de escombros e de folhas mortas, abandonada. Dentro da enorme lareira de quatro colunas, restava apenas um monte de cinzas, empoeiradas, lembrança de um fogo já antigo. As altas paredes estavam comidas por um mofo esverdeado, desprendendo umidade e salitre. Tufos de plantas selvagens cresciam entre as lajes do chão, muitas delas quebradas e desconjuntadas.
Ninguém morava ali havia muitos anos. Lancelot avançou com um passo decidido em direção ao grande leito quadrado disposto no centro. A cobertura estava estragada em alguns lugares; aranhas haviam tecido suas teias sobre os montantes de ébano. O elmo, o escudo e a loriga de Lancelot o esperavam no próprio local onde os varletes de Pellès os tinham deixado. Ao se inclinar para apanhá-los, o cavaleiro colocou as mãos sobre o colchão: o leito se desfez com um sinistro estalar de madeira podre, desprendendo uma nuvem de poeira.
— Ah, o senhor está aí!
Galehot surgiu pela porta principal, as abas da camisa soltas, a cota na mão, despenteado, desarrumado como alguém saído da cama em sobressalto. Lancelot caminhou até ele com um ar feroz que fez o rapaz recuar.
— Que brincadeira é esta? — gritou o cavaleiro. — Onde estão Pellès, Ellan e sua gente?
— Não sei, Senhor... Sua voz me despertou ainda agora. Nunca tinha dormido assim tão profundamente. Vesti-me às pressas para encontrá-lo, me perdi, e... estou aqui.
— Explique-me essa diabrura — ordenou Lancelot, mostrando com um gesto amplo a sala destruída. — Nós dormimos cem anos?
— Não sei mais do que o senhor...
— Mas você conhece Ellan e o pai dela?
— Somente Ellan, Senhor, e nunca tinha vindo aqui. Eu a encontrei há uma semana. Ela entrou na minha aldeia sozinha, sem escolta. Na ausência de meu pai, eu lhe dei hospitalidade.
—Tive a impressão de que você ia se casar com ela no outono...
— Sim, Senhor. Eu... Eu a achei sedutora, e depois...
— E depois? Fale de uma vez!
— E depois, uma noite, após uma refeição em que bebemos um vinho proveniente da Terra Gaste, tive um sonho... Um sonho maravilhoso, Senhor...
Lancelot soltou uma gargalhada sem alegria.-
— Ah! Nem me conte o que se seguiu, eu adivinho: de manhã, você estava completamente apaixonado por ela, e a pediu em casamento.
— Como sabe, Senhor?
— É que eu também bebi um vinho dessa terra sem vinhas... Como é que você sabia tantas coisas a respeito da Terra Gaste e do castelo?
— Foi Ellan quem me contou tudo, nos dias que precederam a chegada de Meleagrant. Depois a sua. Ela contava tão bem que eu tinha a impressão de ter vivido aqui...
— Ela representou bem.
— Representou, Senhor?
— É isso mesmo, representou! Ela precisava de você. Se eu não tivesse simpatizado com você, se eu não tivesse me afligido por ter quase cortado a sua garganta por causa de um mal-entendido orquestrado por ela mesma, acredita que eu a teria seguido até aqui? Teria fugido dela na mesma hora. Maldita...
— Por favor, Senhor, não insulte Ellan.
— Que diferença faz? Você se livrou dela, no momento, e tanto melhor para você.
O varlete enfiava desajeitadamente uma aba da camisa para dentro do calção.
— Senhor, é que... É que eu a amo, compreende?
— Você a ama? É um idiota? Não compreende que seu amor nasceu de uma poção que ela o fez beber? Você não está apaixonado, Galehot, está é embriagado. Em pouco tempo estará sóbrio de novo.
— Não acredito, Senhor. Pouco importa a poção: eu a amo.
Lancelot deu de ombros e se dirigiu a passos largos para a saída.
— Imbecil...
O cavaleiro atravessou o pátio. As cavalariças estavam semidestruídas, mas ele encontrou ali seu rocim e o de Galehot. O varlete se precipitou para selar e arrear as duas montarias, enquanto Lancelot, sempre possuído pela raiva, percorria o pátio vociferando insultos. Desde o começo da aventura, todo mundo o controlava como queria. Todo mundo — menos ele! — sabia o que tinha acontecido e o que iria acontecer. Todo mundo se servia dele. Quanto a ele, avançava direto para as trevas, tendo como único ponto de referência, única luz a alcançar, Guinevere. Era isso! — decidiu. — Era exatamente isso: de agora em diante, vou me concentrar unicamente em reconquistar de Meleagrant a rainha. Não libertarei mais donzelas, não combaterei mais monstros infernais, deixarei os encantamentos seguirem seu curso. Está dito!
Galehot saiu das cavalariças em ruínas, trazendo os dois cavalos arreados. Lancelot saltou na sela.
— Volte para casa! Retorne a Sorelois. Não se preocupe com Meleagrant, eu mesmo vou resolver o destino dele, pode confiar em mim!
Galehot montou em seu cavalo e balançou negativamente a cabeça.
— Não há hipótese, Senhor, de eu deixá-lo partir sozinho.
— E eu lhe digo para voltar para casa. Obedeça!
— Não, Senhor.
— Não me obrigue a lhe cortar as orelhas, bobalhão! — Aja como quiser, vou segui-lo de qualquer maneira.
— Seu bronco cabeça-dura! Não preciso de você e é melhor que se mantenha bem afastado de mim.
— Ao contrário, Senhor. Quanto mais perto estiver do senhor, maiores as chances de rever Ellan.
— O que está querendo dizer?
— Eu não esqueci, Senhor, que Ellan o ama. Tenho certeza de que ela fará tudo para revê-lo. Portanto, quanto mais perto estiver do senhor, mais...
— Seu raciocínio não se sustenta. Quer que eu lhe explique por quê? Porque se a sua Ellan ousar se aproximar a menos de cem passos, abrirei a garganta dela. É assim que deseja revê-la?
— Não fará isso, Senhor — respondeu tranqüilamente Galehot. — O senhor é um cavaleiro.
Com essas palavras, fez o cavalo andar. Lancelot deixou-o atravessar a ponte levadiça e depois, encolhendo mais uma vez os ombros, chicoteou sua montaria para alcançá-lo.
Os fossos do castelo estavam ressecados. O mato crescia aqui e ali, onde, na véspera, floresciam nenúfares.
— Aonde vamos, Senhor?
— Seguimos novamente o caminho do norte. A Ponte da Espada me aguarda. E minha rainha.
A ILHA DE GORRE
A ponte da espada
Lancelot e o varlete cavalgaram até o crepúsculo. Depois do meio-dia, tinham finalmente deixado a Terra Gaste e seu solo de cinza. Passado o vau de um rio impetuoso, entraram sob as folhagens de uma floresta densa, sem encontrar sequer uma alma viva. O caminho os levava direto para o norte, e o verão se tornava mais pálido, a temperatura mais fresca.
Quando saíram da floresta, viram se estender diante deles uma charneca acidentada cujas urzes, giestas e fetos tinham crescido até o meio da estrada. Evidentemente, ninguém passava por aquele caminho havia muito tempo. O vento noroeste soprava vapores de maresia que lhes melavam a pele nua do rosto e das mãos.
— O mar não está mais muito longe — disse Galehot.
— Antes de amanhã estarei em Gorre.
Impaciente, Lancelot apressou o passo do rocim. Os cascos do animal quase não faziam barulho no espesso tapete de fetos. Podia-se acreditar que eles voavam junto ao solo. Galehot custava a segui-los. A silhueta branca do cavaleiro se destacava como um fantasma por entre os verdes-escuros e os ocres da vegetação e em face do céu acinzentado por uma tempestade.
Choveu durante horas, até o cair da tarde. Quando as nuvens finalmente se rasgaram, dando passagem aos ouros vermelhos do poente, Galehot viu Lancelot reter subitamente o cavalo e o imobilizar. O varlete diminuiu a velocidade de sua montaria e, a passo, chegou junto do cavaleiro no ponto extremo de uma falésia. Ao olhar de relance um pouco abaixo, teve um instante de vertigem, tão longe a curta praia da maré baixa lhe pareceu estar de seus pés.
— Aí está Gorre!
A ilha tinha a forma de uma montanha surgida do mar. No cume, os muros de uma fortaleza encimada por um torreão dominavam as construções erguidas sobre seus flancos até a costa, onde um curto molhe abrigava um porto sem navio. O movimento do mar dentro do canal balançava a pedra preta do pontão. As ondas, mais altas do que três barcos, chocavam-se em uma espuma avermelhada pelo sol do crepúsculo, como se fosse sangue.
— Um lugar que não está me agradando — falou Galehot, estremecendo.
— Parece-se com o dono.
Lancelot examinou os arredores. Com uma exclamação satisfeita, apontou um lugar mais ao norte.
— A ponte, Galehot! Vamos!
Sem esperar, esporeou o cavalo. Galehot o seguiu, antes mesmo de ter visto o que lhe mostrava Lancelot. E, quando trotava na beira do precipício marinho, ele a avistou, perguntando-se se uma coisa daquelas seria possível.
A Ponte da Espada não havia usurpado seu nome. Era uma lâmina de aço, faiscante de brancura, mal chegando à largura de duas espadas comuns, mas com o comprimento de no mínimo três arremessos de lança. Plantada na própria falésia, a cerca de um pé do cume, ficava acima das ondas negras com reflexos de prata que se entrechocavam, se batiam, arrebentavam uma na outra no meio do canal. Apesar da noite que caía, a lâmina da ponte era tão brilhante que não se distinguia perfeitamente a outra extremidade, fixada na montanha da ilha, a um terço de sua altura.
Quando o varlete chegou, Lancelot já tinha descido do cavalo e, com as mãos nos quadris, examinava a ponte. Galehot desmontou também e veio se colocar ao lado dele. Avançou prudentemente até a beira da falésia. De perto, a lâmina lhe pareceu ainda mais ameaçadora: seus dois gumes eram tão afiados que não tinham a espessura de um fio.
— Dê-me meu escudo — ordenou-lhe Lancelot — e prenda-o nas minhas costas.
— Ora, Senhor, não está esperando atravessar essa ponte!
— Por que eu vim aqui, na sua opinião? Trate de me obedecer.
— Se quiser cometer uma loucura, espere ao menos até amanhã. No dia claro, depois de uma boa noite de sono, talvez consiga ser mais sensato...
— Faça seu serviço de varlete e guarde para si seus conselhos de matrona.
De má vontade, Galehot foi até o rocim do cavaleiro, apanhou o escudo de listas vermelhas e voltou para junto da borda.
— A noite já vai chegar, Senhor. Com um tempo assim, não enxergará sequer os próprios pés.
Lancelot, sem se dar ao trabalho de responder, virou-lhe as costas e, com um gesto, mostrou onde ele deveria prender o escudo. Galehot obedeceu, procurando um novo argumento para impedir o cavaleiro de tentar a impossível aventura.
— Agora — disse Lancelot experimentando a solidez das correias fixadas em suas costas — me ajude a tirar as manoplas, os sapatos e os pés da armadura. Com todo este ferro, fico desajeitado como um peru sem cabeça.
— Não acha, Senhor, que pode existir uma passagem mais... menos.... enfim, uma passagem de verdade, e não essa armadilha cortante, para alcançar Gorre?
— Há uma — respondeu Lancelot retirando as manoplas. — A Ponte debaixo D'Água. Fica ao sul. Mas é Garvain que vai por ela.
— Garvain? O famoso, o célebre Garvain? — exclamou Galehot, acocorando-se para retirar os sapatos de ferro do cavaleiro.
— Na verdade, Galehot, é inútil me esperar aqui. Leve meu rocim com você. Siga a orla até essa Ponte debaixo D'Água. Trate de descobrir se Garvain conseguiu passar. Em seguida, tome a direção de Camelot. Você deverá encontrar no caminho um grupo de cavaleiros que partiram em reforço. Conte a eles o que sabe.
O rapaz se ergueu de um salto, segurando nas mãos os sapatos e seus ferros protetores.
— Não posso abandoná-lo, Senhor!
Lancelot encarou-o resolutamente e sorriu-lhe com amizade.
— Ou dentro em pouco terei caído dentro do mar, ou livrarei a rainha; nos dois casos, não passarei de novo por essa ponte. Faça o que estou lhe dizendo. Quando tudo estiver terminado, eu mesmo pedirei ao rei Arthur que o aceite entre seus cavaleiros.
Galehot arregalou os olhos, maravilhado.-— Está dizendo a verdade, Senhor?
— Não vá se alegrando tão depressa. Você me deve um combate — disse Lancelot, rindo. — Quando estivermos em pé de igualdade, vou aplicar-lhe um corretivo!
— Com grande prazer, cavaleiro!
Galehot desobedeceu à ordem de partir imediatamente. Fingiu afastar-se, e depois, quando viu a sombra branca do cavaleiro transpor a borda da falésia e de repente desaparecer, voltou rapidamente. Deixou ali os dois cavalos e correu até a borda.
Lancelot avançava lentamente sobre a ponte. Mãos e pés nus, progredia engatinhando, agarrado com força na lâmina afiada como uma foice, desprezando a dor. Suas palmas, seus dedos, a planta de seus pés já sangravam abundantemente. Galehot via com angústia os rastros vermelhos que escorriam da lâmina, atrás do cavaleiro. Queria chamá-lo, mas se conteve: não havia outra saída para Lancelot, a não ser continuar ou cair no mar. Não podia nem recuar nem voltar sobre aquela lâmina estreita. Mas, pensou Galehot, se ele chegar ao final da passagem, o que adiantará? Não terá mais nem uma gota de sangue no corpo...
Lancelot, por sua vez, não pensava em nada. Principalmente na pavorosa dor que lhe destruía pés e mãos, permanentemente renovada à medida que avançava. Pensava apenas numa imagem, numa imagem única e fortalecedora, a de Guinevere tal como a havia visto e conhecido em sonhos na noite precedente. Pouco importava que tivesse sido um engodo. Ellan o havia enganado, é certo, mas a imagem e o prazer que ele havia sentido não mentiam. Ellan roubara-lhe os gestos de amor, nada mais: o amor era destinado a uma outra, e tinha sido ela, Ellan, no fundo, que se contentara com um simulacro. Assim, pendurado muito alto acima das ondas tumultuosas da passagem, cercado por um nevoeiro sulfuroso que subia ao mesmo tempo em que descia a noite, com as mãos e os pés retalhados até o osso, Lancelot via apenas o azul e o ouro de um quarto, a doce brancura de um corpo, sentia apenas a plenitude de um amor compartilhado.
Quando ele chegou aproximadamente ao meio da Ponte da Espada, Galehot não mais o distinguiu. O denso nevoeiro e a escuridão o ocultaram de sua vista.
— Meu filho, você agiria com cortesia se parasse de se obstinar.
A rainha Elfride de Gorre repousava em um leito, perto da lareira. Era uma mulher de mais de oitenta anos, que havia reinado sozinha por meio século e que fora festejada em toda parte, das Terras Altas da Escócia até Logres, pelo espírito fino e penetrante e pelo senso de honra. Uma doença de que não se é curado, a velhice, obrigara-a a abandonar o exercício do poder a seu filho e, em certas tardes de cansaço, quando ela via como Meleagrant usava e abusava dele, desejava morrer logo, antes que o orgulho, a inveja e a brutalidade tivessem devastado sua ilha.
— Que Deus me castigue, minha mãe, se a escutar! Não tenho vontade de reinar toda a minha vida sobre este enorme rochedo lúgubre. Tenho intenções mais altas e um destino maior!
Meleagrant percorria a sala de um lado ao outro, como um animal numa jaula. Morgana, languidamente estendida em uma almofada, o observava com um olhar entrecerrado, fixo e mineral de gato, ao mesmo tempo passando ternamente a mão nos cabelos desarrumados de Mordred, seu filho, sentado no chão junto dela. Mordred era um rapaz de rosto emaciado, com olhos de um verde líquido e incerto, de cabelos negros como as asas do corvo, de boca desdenhosa e sensual. Ele parecia se aborrecer mortalmente — mas essa era sua expressão costumeira.
—Arthur respeitou o julgamento — prosseguiu a rainha Elfride. — Considere que o humilhou suficientemente e devolva-lhe Guinevere.
— Arthur é um pérfido e um traidor! — rugiu Meleagrant. — Ele lançou seus cavaleiros no meu encalço, a despeito das leis do julgamento! Não tenho nenhum respeito por ele.
A velha Elfride voltou os olhos na direção de Morgana.
— Foi a senhora, creio, que encontrou esses cavaleiros?
— Eram dois — ela respondeu. — Garvain, o sobrinho de Arthur. E um outro, um cavaleiro novo, que afirma não ter nome.
Elfride estremeceu.
— Não tem nome? — repetiu. — Tem certeza? Sabe o que isso significa?
Morgana fez um gesto de enfado.
— Conheço tanto quanto a senhora as predições de Merlin. E daí? Estou em boa posição para saber que é possível impedi-las de se realizarem.
Acariciou a face de Mordred, que inclinou a nuca para trás com os olhos fechados, como um gato ronronando.
— Olhe a minha criança. Ela nasceu a despeito das predições desse filho do diabo. O futuro, Elfride, nem sempre está escrito antecipadamente. Há seres fora do comum — eu sou um deles — que o moldam conforme sua vontade.
— Ou a expensas dos outros — murmurou a rainha para si mesma. E prosseguiu, mais alto: — Creio ter compreendido que esse cavaleiro passou com sucesso pela prova do Leito Arriscado? E Baudemagus me advertiu que os encantamentos do Cemitério foram desfeitos...
— Esse cavaleiro precisa ter alguma diversão — disse desdenhosamente Morgana.
— E se ele encontrar o castelo do Santo Graal?
— Não tenha medo. Se tomar o caminho que acredito que tomará, deve passar pela Terra Gaste, onde do castelo só resta uma ruína.
— Ninguém sabe onde está o Graal. Portanto, ele pode estar em qualquer lugar.
— Onde quer que esteja, tenha certeza, minha boa Elfride, de que esse cavaleiro não fará as Duas Perguntas.
— Como pode saber?
Morgana deu um risinho de malignidade zombeteira.
— Lembre-se da profecia de Merlin: "Um Cavaleiro sem nome levará a termo a Busca do Santo Graal", claro. Mas ele acrescentou: "Ele terá o coração puro." Não pretendo que nosso cavaleirozinho tenha um coração negro, não. Digamos que ele tem o coração todo pintado de azul e ouro...
— Seja mais clara, Morgana. O que está querendo dizer?
— Eu lhe digo, minha boa Elfride, que o Graal do cavaleirozinho se chama Guinevere. E que, conseqüentemente, não me surpreende que a próxima prova que ele vá se infligir seja a Ponte da Espada.
Meleagrant, que tinha escutado a conversa com uma atenção cada vez maior, saltou como um lobo na direção da almofada de Morgana.
— Por que não me advertiu disso, Senhora?
— Ora! E você precisava saber de tudo? Nós unimos nossos interesses, só isso. Você queria a guerra contra Arthur, eu lhe forneci o pretexto. Quanto a mim, quero o Graal, para meu querido Mordred.
— Tem certeza de que esse cavaleiro vai tentar atravessar a Ponte da Espada? Baudemagus não viu nada, nem nos astros, nem no vôo ou nas entranhas dos pássaros.
— Seu Baudemagus é um mago de pouca envergadura, Meleagrant. Sem mim, acredita que ele teria conseguido fazer surgir o prodígio do cemitério futuro? É um simples executante. Não se esqueça de que a sombra de Merlin — esteja onde estiver, em alguma prisão enfeitiçada onde o enfiou Vivian — protege o cavaleirozinho do Lago...
— Que Deus me condene! Mesmo assim, a senhora deveria ter me advertido!
— Meleagrant, por favor...
Mordred tinha aberto as pálpebras: seus olhos verdes, que tinham parecido líquidos um pouco antes, tornaram-se minerais. Semi-estendido no chão, os ombros apoiados na almofada de Morgana, com o corpo aparentemente relaxado, olhava de esguelha Meleagrant dos pés à cabeça. Sua voz soou carregada de uma curiosa lassidão ameaçadora.
— Não grite nos meus ouvidos... É extremamente desagradável...
Meleagrant não sustentou seu olhar mais do que alguns instantes. Vencido, virou a cabeça e, com um passo furioso, se dirigiu para a porta.
— Reúno alguns homens e vou para a Ponte da Espada. Se, por milagre ou com a ajuda do filho do diabo, ele a atravessou, eu o impedirei de ir mais longe!
Ele saiu e foi ouvido berrando ordens nos corredores. Morgana voltou a acariciar os cabelos do filho, que fechou outra vez os olhos, de novo tão fluidos quanto uma água, e disse à velha rainha Elfride:
— Como um filho desses pode ter saído do seu ventre? Ele se parece com o pai?
— Bem — replicou Elfride —, Mordred também não se parece com o dele.
— Não é? — exclamou Morgana, como se se tratasse de um elogio. — Eu me dediquei a reprimir nele tudo que pudesse me lembrar Arthur. A virtude do meu meio-irmão é rígida e enfadonha. Aprecio a flexibilidade, as surpresas e certos divertimentos...
Elfride não fez nenhum comentário. Virou os olhos cansados para o fogo da lareira.
— Diga-me, Morgana... O que acontecerá com o meu filho quando ele tiver deixado de lhe ser útil?
—A senhora me entristece, minha boa Elfride. Parece até que desconfia de mim...
Morgana pronunciara isso com um tom tão teatral que Mordred, com os olhos sempre fechados, não pôde deixar de rir. Apesar da proximidade do fogo, a velha rainha sentiu frio.
O nevoeiro se dissipava ligeiramente. Lancelot continuava avançando. Seus pés e suas mãos não eram mais do que chagas ensangüentadas. O sofrimento terminara predominando sobre a imagem benfazeja da rainha, que, pouco a pouco, dissipara-se, desordenada, dissolvida. O cavaleiro permanecia agora sozinho consigo mesmo, sozinho com sua dor, suspenso acima de um abismo negro de onde subiam os bramidos e os gritos da tempestade.
Ele pronunciou a meia voz o nome bem-amado:
— Guinevere...
Não lhe serviu para nada. Não era mais do que uma palavra sem carne, sílabas que não despertavam nada. Desesperado, imobilizou-se, relaxando um instante a força de sua mão direita.
Na mesma hora deslizou sobre o lado, perdendo o equilíbrio. Foi preciso agarrar a lâmina com mais vigor ainda para não despencar no vazio. Acreditou que seus dedos iriam ser decepados. Soltou um uivo — não por causa da dor, mas porque seu coração não tinha mais sangue suficiente para reter a lembrança e a esperança de Guinevere.
Um rugido lhe respondeu e o impediu de ceder definitivamente ao esgotamento. Levantou a cabeça, escrutou a noite e a bruma, distinguiu duas silhuetas que pensou de início tratar-se de enormes cães. O nevoeiro se dissipou mais, repelido pelo noroeste que soprava em turbilhões. Viu então as jubas e compreendeu que dois leões o esperavam na outra margem.
A outra margem...
Se via distintamente aqueles leões, então era porque quase alcançara o objetivo.
Esse pensamento lhe devolveu o vigor. Estava bem próximo da ilha. Era preciso avançar mais. Leões o aguardavam? E daí? Uma coisa depois da outra. Sempre haveria tempo de enfrentá-los quando finalmente tivesse posto os pés sobre a terra firme.
Em um último esforço, atirou-se para a frente, agarrando a espada como quem se agarra a uma corda. Alguns instantes mais tarde, percebeu o solo em ligeiro declive, alguns pés abaixo dele. Abriu os dedos e, com um gemido, deixou-se cair. Rolou sobre o talude, não teve forças para se sustentar; o escudo que carregava sobre as costas atingiu um rochedo que o fez parar. Ficou assim, estendido, diante do céu negro. Acreditou que nunca mais ia se mexer, achando que não tinha mais sangue suficiente no corpo para fazer um gesto a mais, e que esperava a morte.
Um novo rugido, bem próximo, o desentorpeceu. A idéia de servir de refeição a leões desagradou-lhe o suficiente para que conseguisse se erguer contra o rochedo e, com os dedos que não eram mais do que sangue e ossos, tratar de soltar as correias que retinham o escudo.
Conseguiu-o ao preço de novos e atrozes sofrimentos. Levantando os olhos, percebeu a sombra dos leões acima dele, perto da extremidade da ponte. Quis puxar a espada. Estava presa sob o rochedo, ele não tinha quase mais forças, não conseguiu. Então lançou um rápido olhar à sua volta, à procura de uma pedra para se defender.
Os leões rugiram de novo, descendo tranqüilamente a encosta, com o focinho para cima, farejando sangue. Uma pedra... Uma pedra... Lancelot não viu nenhuma, mas viu uma luz prateada brilhando na relva, perto de seu quadril. O anel.
O anel de Vivian que a serviçal Saraide lhe dera. Caído de seu bolso.
Os leões se aproximavam. Lancelot segurou o anel com a ponta dos dedos, com dificuldade. Suas mãos tremiam, só conseguia dominá-las com muito esforço.
Viu os leões se juntarem, prontos para saltar.
— Rápido...
Finalmente conseguiu colocar o anel no dedo mínimo de sua mão esquerda.
— Rápido! Mais rápido!
À frente de uma tropa de dez saxões, Meleagrant descia as ruelas estreitas da aldeia. Cinco Guerreiros Ruivos carregavam tochas que faziam correr sombras espectrais sobre os muros das casas.
O Cavaleiro Negro segurava a espada na mão. Corria mais depressa do que os altos saxões e precisava parar nas encruzilhadas para esperá-los.
— Rápido, mais rápido!
Berrava sua ordem com furor. De tempos em tempos, procurava adivinhar, ao norte, mais abaixo, a cintilação da Ponte da Espada. O nevoeiro era denso demais; a noite, escura demais.
— Rápido! Mais rápido!
Finalmente passaram pelas últimas casas da aldeia. Embrenharam-se pelo caminho escarpado que descia em direção à entrada da ponte. O noroeste os atingia em pleno rosto, como se procurasse detê-los, e Meleagrant, possuído por um ódio de demente, começou a imprecar contra a tempestade, o vento, o ar.
— Rápido! Mais rápido!
Estavam contornando uma massa rochosa em relevo sobre o flanco da ilha quando uma forte luz verde iluminou rapidamente o local onde começava a ponte, ainda longe adiante deles. Estupefatos, imobilizaram-se, duvidando de início do que tinham visto.
Não duvidaram durante muito tempo: a ofuscação tinha sido tão forte que, mesmo por trás das pálpebras baixadas, uma luminosidade verde continuava a dançar, impressa em suas retinas.
— Curado...
Lancelot não podia acreditar. Contemplava as mãos, agitava os dedos: estavam brancos, sãos, sem cicatrizes. Experimentou um passo de dança burlesca: seus pés o sustentavam sem dor.
Quando pusera o anel de Vivian no dedo mínimo, uma grande chama verde o envolvera, como que derramada de seu próprio corpo. Isso mal durara um instante. E suas feridas tinham se fechado, um sangue novo correra em suas veias, seu espírito reencontrara toda a lucidez do despertar.
Quanto aos leões, tinham desaparecido. Ou melhor, tinham se metamorfoseado em dois jovens lebréus que vieram, abanando a cauda, pedir-lhe afagos.
Lancelot teria permanecido ali de muito boa vontade, maravilhando-se com o prodígio e com seu vigor ressuscitado, se não tivesse percebido, à distância de um arremesso de flecha acima dele, as chamas de uma porção de tochas. Elas clareavam as couraças e os elmos acobreados de uma dezena de saxões, revelando a sinistra sombra negra de Meleagrant. O cavaleiro arrancou sua espada do rochedo em que estava presa, recolocou-a na bainha, pôs o escudo no ombro e subiu a passos largos o talude da encosta.
Sua intenção era contornar a ilha pelo leste. Era preciso de início evitar o enfrentamento com Meleagrant e seus saxões. Não duvidava que o Cavaleiro Negro estivesse decidido a assassiná-lo já naquela noite, a despeito de todas as regras da cavalaria. Mas Lancelot queria um combate cara a cara, um novo julgamento que invalidasse o que o senescal Ké perdera. Para isso, devia reunir todas as condições necessárias e desfazer as ciladas de que Meleagrant era capaz.
Fora isso, Lancelot não tinha qualquer estratégia especial. Fiel a seu temperamento, não refletira sobre nada antecipadamente, nada previra, nada preparara. Confiava no curso dos acontecimentos.
Atravessou sucessivamente diversas matas de pinheiros suspensas no flanco da ilha. Logo deixou de ver a luminosidade das tochas dos saxões. Provavelmente estavam descendo na Ponte da Espada. Isso lhe deixava tempo para tomar a dianteira.
Logo se viu ao abrigo do vento. Isso significava que havia progredido e contornado a ilha. Daquele lado, a falésia era abrupta e caía a pique dentro do mar. Lancelot começou a escalar a encosta, percorrendo um estreito atalho coberto de pedras. Avançava em meio a um nevoeiro que o noroeste não conseguira dissipar. Não enxergava quatro passos à sua frente.
Depois, na curva de uma passagem estreita, percebeu uma porta de madeira reforçada com ferro. Dois sargentos em armas a protegiam, lanças em punho. Lancelot se acocorou por trás de uma moita de espinheiros. A construção era de uma só peça, maciça, feita de grandes pedras cinzentas mal talhadas, desprovida de janelas ou de seteiras.
Lancelot perguntou-se o que podia haver lá dentro. Deslizou sem ruído até uma outra moita, mais próxima da porta. Estava bem escondido, vigiando os dois sargentos, quando percebeu um barulho às suas costas. Não teve tempo de se virar.
Alguém se atirou em cima ele. Caiu no chão, atordoado. Por reflexo, deu uma violenta cotovelada no agressor, que gemeu baixinho. Aproveitou para mudar de posição, e viu uma espada se abatendo sobre ele. Segurou no ar o punho de seu adversário, imobilizando-o no último instante: o fio da lâmina parou a menos de um palmo de sua testa.
— Você? Você passou? — sussurrou então uma voz familiar.
— Senhor?
Garvain afastou-se de Lancelot, que lhe largou o punho.
— Então você conseguiu — disse em voz baixa.
— O senhor também, parece.
— Engoli tanta água atravessando aquela maldita passagem que estou espantado por não ter feito o mar secar. E minhas articulações devem ter enferrujado, ou você não teria me ouvido chegar...
— É a velhice que as enferruja, Senhor.
— Insolente. E você, como foi lá?
— Segui o seu conselho: esvoacei como um estorninho.
— Não me surpreende. Você tem o cérebro deles. Depois, riram silenciosamente e apertaram-se as mãos.
— Sinto-me contente por não estar sozinho — sussurrou Garvain. — Esta ilha é sinistra.
— O que espera fazer, Senhor?
Garvain esticou o dedo na direção da pesada construção cega.
— Entrar lá. É a prisão de Gorre. Os súditos de Arthur que Meleagrant capturou estão lá dentro. E alguns de meus amigos.
Pôs a mão no ombro de Lancelot.
— O que tem a dizer, cavaleiro sem nome?
— Eu digo, Senhor, que tenho um nome desde ontem: Lancelot. E que o acompanho.
— Então vamos, Lancelot.
Sem precisar entrar em acordo, escolheram a tática de aproximação mais simples. Deixaram o esconderijo e, com uma atitude desenvolta, foram ao encontro dos dois sargentos.
— Ninguém passa! — advertiu um dos guardas, apontando a lança na direção deles.
— Vamos, vamos — disse Garvain afetando amabilidade. — O príncipe Meleagrant nos mandou aqui.
Compreendendo pelo porte e pela voz que se tratava de um cavaleiro, os sargentos hesitaram. Meleagrant, chefe deles, voltara a Gorre na companhia de diversos estrangeiros; eles não queriam cometer uma inconveniência. Garvain e Lancelot, sorridentes, andaram tranqüilamente até eles.
Em seguida, bastaram alguns instantes, alguns gestos, para arrancar deles as lanças e matá-los. Garvain pegou as chaves na cintura de um dos sargentos. A maior abriu a grande porta.
Insinuaram-se com cautela em um corredor mal iluminado por três velas de sebo colocadas sobre uma mesa. Depois de uma curva à direita, uma abertura dava em uma pequena peça de onde chegavam os risos e as conversas de vários homens. Deslizando ao longo da parede, eles se aproximaram. Garvain arriscou uma olhada para dentro da sala.
Três sargentos sentavam-se em volta de um cântaro de vinho. Pareciam estar de bom humor. Garvain fez um breve sinal com a cabeça para Lancelot. Num mesmo impulso, irromperam na sala.
As espadas assoviaram. Um sargento teve a cabeça cortada na hora; um outro, a nuca; o terceiro, que se levantara do banco, recebeu o golpe em pleno coração.
— Dois para mim, um para você — disse Garvain. — Não estou assim tão enferrujado.
Com a ajuda de uma outra chave, abriu a grade que barrava o acesso a um estreito corredor. Dessa vez Lancelot caminhou à frente, com a espada em uma mão e uma vela de chama bruxuleante na outra. O corredor era estreito, úmido e fedorento, tão escuro que poderia ser tomado por uma passagem subterrânea.
Os dois cavaleiros chegaram finalmente embaixo de uma escada em caracol. Cautelosamente, começaram a subi-la, Lancelot sempre à frente.
Na metade dela, o rumor indistinto de duas vozes parou-os, a tempo de Lancelot apagar a vela. Era melhor que sua luminosidade não avisasse quem quer que fosse da presença deles. Na escuridão mais completa, retomaram a subida.
O corredor que descobriram no alto da escada estava imerso em uma claridade avermelhada. Portas de ferro se alternavam, de cada lado, com tochas em sua maior parte apagadas. Somente as duas últimas, no fundo, espalhavam uma fraca luz, iluminando três novos guardas em armas.
— Como procederemos? — perguntou Garvain em voz baixa. — Tem alguma preferência?
— Sim, Senhor. À direita, sempre em frente.
E, deixando Garvain espantado, Lancelot começou a subir o corredor em passo de ataque, soltando um longo grito de assalto. Os sargentos, atônitos, viram surgir da penumbra pardacenta um ser ululante, branco como um espectro. Quando, na claridade das tochas, reconheceram que era um homem, e muito jovem, era tarde demais. O primeiro sargento estava morto antes mesmo de pôr a mão na espada; o segundo viu voar a sua sob o golpe que recebeu e, recuando de terror, foi traspassado pela lâmina que o terceiro apontava desesperadamente para se defender. E o terceiro, assim desarmado, caiu de joelhos e implorou clemência.
Lancelot reteve a espada.
— Você tem presença de espírito— reconheceu. Recolocou a espada na bainha.
— Levante-se.
O sargento obedeceu com presteza. Empurrado por Lancelot, viu-se diante de Garvain, que fazia uma careta de irritação.
— Bem que você podia ter me esperado — resmungou.
— Quis poupar suas velhas pernas, Senhor. Garvain levantou os ombros com desdém — mas com
um brilho de divertimento no olhar.
— Quando tivermos voltado para Camelot — disse —, justaremos um com o outro. Você rirá menos.
Depois, empurrou o sargento.
— Vamos, comece a abrir todas as portas para nós.
O ESPELHO DOS AMANTES
Meleagrant voltou ao castelo em um estado de enorme agitação. Ia resmungando sozinho enquanto atravessava o pátio. Empurrou no chão um escudeiro que veio retirar-lhe as armas e entrou na sala.
Sua mãe, a rainha Elfride, estava sozinha no seu leito próximo da chaminé, cochilando. Sem considerar a idade e o cansaço dela, Meleagrant sacudiu-a pelos ombros.
— Onde está Morgana?
Elfride piscou lentamente. Meleagrant tinha a fisionomia tensa, um ricto nos lábios; nunca seus olhos de cor incerta foram tão contraditórios: enquanto o olho azul brilhava de raiva assassina, o olho castanho estava turvo, cheio de dúvida e angústia.
— O que há com você, meu filho? Até parece que cruzou com o diabo...
— O diabo! — vociferou Meleagrant. — Sim, é isso mesmo, minha mãe: uma de suas criaturas ronda a ilha... Responda-me: onde está essa feiticeira Morgana?
— Creio que ela foi fazer uma visita a Guinevere. Ele fez um gesto de raiva impotente.
— Guinevere é minha cativa! Ela não tem que lhe falar!
Elfride pegou docemente em sua mão.
— Responda-me por sua vez: alguém atravessou a Ponte da Espada?
Meleagrant retirou brutalmente a mão.
— Uma criatura do diabo, estou lhe dizendo! Um incubo*!
— Não — disse Elfride em voz baixa. — Uma criatura de Deus.
— Patacoadas! — urrou Meleagrant.
E, enquanto corria para a escada, salmodiando sem parar as palavras "incubo" e "patacoadas", Elfride acrescentou para si mesma:
— O Eleito.
— O que está fazendo aí, Senhora? Eu lhe proibi este quarto!
Morgana olhou para Meleagrant com uma ironia tranqüila.
— Acalme-se, meu amigo. E entre ou saia, mas não fique assim na porta. Guinevere e eu estávamos tendo uma conversa de mulheres, mas não se sinta demais, por favor.
Meleagrant devolveu o olhar com um azedume feroz e, caminhando pelo quarto, virou a cabeça para Guinevere, que estava sentada junto da lareira, com as mãos cruzadas no regaço, impassível.
— Arthur é um mentiroso e um velhaco, Senhora — soltou, ríspido.
Ela não teve outra reação senão um leve levantar de sobrancelhas. O que decuplicou o ressentimento do Cavaleiro Negro. Ele fez uma careta.
— Ele não levou em conta nenhuma das leis do julgamento. Mal saímos de Camelot, lançou seus cavaleiros no nosso encalço!
— Não posso imaginar — disse ela com uma voz neutra. — Pois, se fosse assim, eles o teriam alcançado e partido em pedaços.
— O orgulho — rosnou ele. — Sempre esse orgulho... Não o suporto mais!
Deu um passo na direção dela, com a mão levantada.
— Controle-se, Meleagrant — interveio Morgana. — Controle um pouco os seus destemperos, eles me cansam. E conte-nos, em vez disso, em termos precisos e com um tom mais polido, o que o está deixando nesse estado.
Ele baixou lentamente a mão. Acalmou-se. Ficou um instante sem dizer nada, depois esfregou rudemente o rosto.
— Alguém atravessou a Ponte da Espada. Havia sangue na lâmina, sangue no chão, sangue sobre um rochedo. No lugar dos leões encontrei dois lebréus. Mas ninguém, nenhum outro vestígio, nenhum corpo!
— Achava que ia encontrar um cadáver?
— Uma pessoa não pode perder tanto sangue e ainda estar viva!
— Uma pessoa, uma vez que você gosta de falar assim, pode, contudo, ter transformado os leões em bonitos cães de companhia. Pare de esconder de si mesmo a realidade, Meleagrant: um cavaleiro de Arthur chegou a Gorre e você terá que enfrentá-lo em julgamento.
— Eu o estriparei como fiz com Ké!
— Espero que sim, meu amigo. Mas temo que esse tal cavaleiro seja um adversário mais sólido do que o senescal.
— Não compreendo, Senhora: até parece que deseja minha derrota. Somos aliados ou não?
O rosto de Morgana se fechou.
— Tenho por princípio só me aliar aos vencedores. Se quiser que permaneçamos... "amigos", aja adequadamente.
Ela agitou os dedos, como quem dispensa um serviçal.
— Agora, saia. A solução de seus aborrecimentos não está neste quarto.
— Não me subestime, Morgana... Um dia, não terá a audácia de me humilhar, eu lhe juro.
Depois dessas palavras, que soaram mais desrespeitosas do que ameaçadoras, Meleagrant saiu. Morgana sorriu pacificamente para Guinevere.
— Tem nervos mas nenhum equilíbrio, não lhe parece? Esse pobre Meleagrant está numa situação difícil demais para ele. Ora! Azar o dele... Ele nos terá servido, a você como a mim, minha cara.
— Não tenho nada em comum com esse indivíduo — disse a rainha com frieza.
— Oh, tem sim! Mais do que pensa... Se ele não tivesse ido oportunamente lançar seu desafio no dia da armação, seu cavaleirozinho sem nome não teria tido a ocasião de colocar, tão valentemente!, a espada a seu serviço. Ele a teria amado, claro, mas em silêncio, humildemente, rondando a Corte como uma alma penada, e você só teria lhe concedido uns poucos olhares, aqui e ali, em nome dessa crueldade própria das mulheres bonitas, que elas chamam de "caridade do coração".
As maçãs do rosto de Guinevere ficaram róseas.
— Está dizendo disparates, Morgana.
— Não só não estou dizendo disparates, minha cara, como a estou vendo muito perturbada neste instante.
— Cale-se...
— Não lhe tiro a razão — disse Morgana rindo. — Compreendo-a muito bem. Arthur, meu irmão, é um homem tão aborrecido. Tão... banalmente moral. E sempre se escondendo atrás de seus cavaleiros, sob o pretexto de que sua "alta" função o obriga à imparcialidade...
Como se não quisesse mais ouvir, Guinevere se levantou de seu assento e foi se esconder no parapeito da janela, no outro lado do quarto. Morgana levantou-se também e se aproximou lentamente dela.
— Eu também, minha cara, se um cavaleiro tão bonito, tão bravo e tão jovem se tomasse de paixão pela minha pessoa, talvez não resistisse. Ficaria envaidecida, sim... Emocionada... Tocada no coração...
Aproximou-se de Guinevere. Permaneceu atrás dela, pousando a mão em seu braço, chegando a boca ao seu ouvido:
— Está tremendo, minha cara?... O amor é um sentimento difícil, não acha? Entregue-se a seus desejos e tudo se tornará simples...
— Por que está fazendo isso? — murmurou Guinevere, com uma voz alterada. — Que mal está procurando cometer?
— Mal? Claro que não. Não lhe desejo mal.
— Tem raiva de Arthur.
— Arthur é problema meu. Pense em si. Pense no jovem cavaleiro e nas provas que ele lhe deu de um amor sem igual... O rei, o casamento, sua fidelidade, tudo isso não é nada ao lado da aventura que a aguarda.
Deixando Guinevere em seu debate interior, Morgana recuou passo a passo na sombra do quarto. Quando viu a rainha colocar a mão no peito e seu perfil se iluminar com um sorriso ainda indeciso mas muito terno, ela soube que havia ganho.
Quando chegaram ao molhe, o noroeste havia dissipado inteiramente o nevoeiro; o céu estava cheio de estrelas. Garvain e Lancelot caminhavam à frente, seguidos dos cavaleiros Cadoain, Bréhu e Caradigas, e da centena de homens, mulheres e crianças que eles tinham tirado dos calabouços de Gorre. Uma parte deles carregava armas tomadas da guarnição da prisão, após um combate curto porém brutal. No caminho, tinham caído em cima de seis saxões, que tiveram o prazer de retalhar em pedaços.
Lancelot e Garvain foram os primeiros a chegar ao embarcadouro. A barcaça não fora recolhida. Era uma vasta embarcação capaz de conter vinte cavalos e o dobro de homens.
— Caradigas — disse Garvain dirigindo-se a um dos cavaleiros —, Cadoain vai ajudá-lo a colocar toda essa gente a bordo.
Virou-se para Bréhu, enquanto Caradigas começava a fazer a multidão entrar na barcaça.
— Bréhu — disse-lhe —, você assumirá o comando. Leve todos esses súditos de Arthur para Logres.
— E você, Garvain?
— Eu fico aqui. Lancelot e eu temos, ambos, um juramento a cumprir.
— Deixe-me prestar-lhe auxílio.
— Eu lhe agradeço, Bréhu, mas você será mais útil acompanhando essa gente.
Deu-lhe um abraço. Apertaram-se nos braços, bateram-se nas costas.
— Talvez você encontre Yvain e alguns outros. Diga-lhes para tomarem a barca, se eu não estiver na margem quando eles chegarem.
Depois, ele levou Bréhu até o molhe e o empurrou junto com os últimos homens que subiam a bordo da barcaça. Com a ajuda de Lancelot, soltou as amarras. Fizeram um grande sinal para os três cavaleiros, que lhes responderam do mesmo jeito. Logo em seguida, Caradigas e Cadoain empunharam as talhas que comandavam as duas correntes que puxavam a barca. A embarcação se afastou na enseada do porto, ao encontro das ondas que quebravam no canal.
— E agora? — perguntou Garvain.
Lancelot apontou-lhe, a leste, o horizonte que a luz nascente tornava róseo.
— A aurora não vai tardar, Senhor. Logo será hora de fazer o que devemos.
Lancelot e Garvain se apresentaram na grande porta do castelo de Gorre à hora em que os primeiros raios de sol clareavam o torreão e as torres.
— Quem vem lá?
Os dois cavaleiros avistaram um saxão postado junto da muralha.
— Sou Garvain, e esse é Lancelot, cavaleiros do rei Arthur! Viemos falar com Meleagrant, príncipe de Gorre!
O saxão, sem responder, desapareceu por trás das seteiras.
— Devemos estar preparados para uma nova cilada — disse Lancelot.
— Talvez não. Conheço a rainha Elfride. Ela não deixará o filho desonrar sua casa.
— Deus o ouça.
Pouco depois, a ponte levadiça começou a baixar. Com um grande barulho de correntes e o choque surdo da madeira sobre a pedra, ela deu-lhes passagem por cima da água dos fossos.
No pátio, pelo menos cinqüenta saxões estavam alinhados em duas fileiras, com o machado no cinto e o pique* na mão. Sem olhar nem à direita nem à esquerda, e com um passo propositalmente tranqüilo, Garvain e Lancelot desfilaram no meio daquela temível ala de honra. Alguns Guerreiros Ruivos riram de escárnio, outros murmuraram injúrias, um deles cuspiu aos pés de Lancelot. Prontamente, Garvain segurou o ombro do jovem, que corara de cólera e levara a mão à espada.
— Não lhes dê pretexto para o matarem — soprou-lhe. Chegaram à entrada da sala. Entraram juntos, um ao lado do outro.
Meleagrant estava sozinho. Sentado perto da lareira, uma perna negligentemente cruzada sobre a outra, afetava a mais perfeita desenvoltura. Ele acolheu os dois cavaleiros com um risinho sarcástico.
— Ei-los finalmente aqui... Eu entendi direito que vocês chegaram ontem à noite em minhas terras? Por que não se apresentaram em minha casa? Desprezaram minha hospitalidade?
— Se quer saber o que penso dela — replicou Garvain —, saiba que uma centena de seus "hóspedes" encerraram a agradável estada em seus calabouços e que, neste exato momento, estão a caminho de Logres.
A boca de Meleagrant se torceu de furor; agarrou os braços de seu assento. Esqueceu-se totalmente de fingir despreocupação.
— Vocês soltaram meus cativos? — bradou. — Não tinham o direito! Eu venci o julgamento que me concedeu a completa disponibilidade da liberdade e da vida deles!
— Julgamento medíocre, o que o fez enfrentar Ké.
— Um julgamento é um julgamento! É a lei de Deus! Meleagrant levantou-se e avançou, passo a passo, na direção de Garvain.
— E afinal, cavaleiro, nada o impedia de responder ao meu desafio no lugar de Ké... Foi a sua covardia que colocou o senescal em tão má situação.
As narinas de Garvain fremiram; sua testa Corou. Mas ele se conteve e respondeu, o mais calmamente possível:
— Só enfrento os verdadeiros cavaleiros.
— Ah! — exclamou Meleagrant, levantando teatralmente os braços. — Os "verdadeiros cavaleiros" são os da Távola Redonda, claro! Que belo argumento para justificar sua covardia!
Fingiu refletir e prosseguiu, com uma voz mais baixa:
— O que está acontecendo, messire* Garvain? Está aqui porque mudou de opinião? Veio me cobrar esse julgamento diante do qual você tremeu em Camelot?
— Na verdade, vim levar a rainha de volta à Corte. Mas não me importo de enfrentá-lo.
— Curioso raciocínio. Uma coisa não acontece sem a outra, me parece.
Lancelot deu um passo à frente.
— Ao menos desta vez, você está dizendo a verdade. Vai haver um julgamento. Eu sou o seu adversário.
O olho azul bem fechado, o olho castanho atento, Meleagrant o examinou dos pés à cabeça, como se descobrisse sua existência.
— Quem é você?
— Lancelot do Lago, cavaleiro de Arthur — respondeu orgulhosamente o rapaz.
— Ora vejam... Um nome que me é desconhecido... Teria sido você que atravessou a Ponte da Espada?
— Ontem, ao cair da noite.
— Deixe-me ver suas mãos.
Lancelot estendeu as palmas. Meleagrant lançou-lhes um olhar breve, depois sorriu, irônico.
— Elas não têm um arranhão. Você está mentindo.
— Estou dizendo a verdade. Atravessei a Ponte da Espada e seus dois leões se tornaram mansos como cães. Lebréus, precisamente.
— Está mentindo! — gritou Meleagrant. — Ou então é um feiticeiro, uma criatura do diabo! E está querendo, pretendendo, incubo, que eu lhe conceda um julgamento diante de Deus?
— Eu exijo.
— Blasfêmia! Vou mandar esquartejá-lo e jogarei seus membros no mar!
Lancelot avançou três passos e, muito depressa, esbofeteou Meleagrant com toda a força. O Cavaleiro Negro titubeou sob o golpe.
— Agora, Senhor, está obrigado a se bater — disse Lancelot.
Com a mão no rosto, Meleagrant pareceu se encolher todo e começou a berrar:
— Nunca! NUNCA! Levem-no, degolem-no, estripem-no!
Com esses gritos, saxões se precipitaram na sala, com o machado ou o pique na mão. Garvain e Lancelot recuaram rapidamente. De costas para a lareira, puxaram a espada, prontos a defender bravamente suas vidas.
— MATEM-NOS!
Os cinqüenta saxões, ombro contra ombro, avançaram.
— Pelo sangue de Cristo, meu filho, chame imediatamente sua malta de assassinos!
A velha rainha Elfride entrara. Vacilante, curvada, apoiava-se no braço de uma mulher jovem e alta, de porte nobre e vestida de azul-real. Lancelot se viu tomado de tal felicidade e de tal alívio ao reconhecer Guinevere que se esqueceu na hora de Meleagrant e de seus cinqüenta Guerreiros Ruivos — como se só existisse ela na sala.
— Meu filho — prosseguiu Elfride —, enquanto eu estiver viva, defenderei a honra de minha casa. Não haverá assassinato nem esquartejamento em minha ilha. Saiam, saxões! Vocês ainda não são os donos desta terra.
Sua voz, embora baixa e fraca, tinha mais autoridade natural do que todos os gritos de Meleagrant. Os Guerreiros Ruivos obedeceram e desapareceram da sala. Elfride, sustentada pela rainha impassível e silenciosa, aproximou-se de Meleagrant que, prostrado, ainda com a mão no rosto ardente da bofetada de Lancelot, não dissera uma palavra para se opor à mãe.
— Você tem a brutalidade dos fracos, meu filho, e é tarde demais para que eu espere modificá-lo. Mas não aceitarei que ultraje nosso nome. Esse cavaleiro o desafiou. Apronte-se para o julgamento.
— Mas, minha mãe... Estou dizendo que é uma criatura do diabo, um enviado de Merlin... O julgamento será deturpado...
Elfride dirigiu-se a Lancelot.
— Cavaleiro, jura sobre a Fé que se baterá de forma justa, sem recorrer a sortilégios e encantamentos?
O rapaz não respondeu. Não tinha escutado. Estava fascinado por Guinevere, só prestava atenção nela. Desde que ela entrara de braço com Elfride, não tinha levantado os olhos para ele. Ele esperava, esperava, mendigava aquele olhar. Finalmente conseguiu, enquanto Elfride repetia: "Cavaleiro, você jura?" — e bem mais ainda: pois Guinevere lhe sorriu, um sorriso que dissipou todas as dúvidas e todas as angústias. Um sorriso que lhe dizia: "Jura para mim que me ama tanto quanto eu o amo?"
— Eu juro! — declarou em voz alta e clara.
— Agora — murmurou Morgana se dirigindo a Mordred —, vamos ver Baudemagus...
Tinham assistido a toda a cena de um balcão disfarçado acima da sala. Enquanto cada um se retirava — Lancelot e Garvain para o pátio para preparar o combate; Elfride e Guinevere para um corredor estreito que levava ao quarto da velha rainha; Meleagrant para um canto onde dois saxões vieram lhe trazer suas armas —, Morgana e Mordred subiram para a torre e entraram nos aposentos do mago.
Baudemagus era um homenzinho insignificante, calvo, trajando uma veste de lã grosseira e manchada. Estava remexendo objetos no meio da sua bagunça — vasos para destilações, alambiques, cadáveres de sapos, de corujas e de gatos, livros de magia e duendes, mandrágoras e buquês de funcho —, quando Morgana surgiu do seu lado. Teve um sobressalto e levou a mão ao coração.
— A senhora me assustou, Ama...
Ela franziu o nariz com desprezo e contemplou seu sortimento de charlatão.
— Está na hora, Baudemagus.
— Na hora? — repetiu o homenzinho, atônito. — Na hora de quê?
— De se fazer útil — soprou-lhe Mordred, surgido de repente do outro lado.
— Você se lembra do que eu lhe disse naquela noite? — prosseguiu Morgana.
— O quê? Ah, sim, Ama! O espelho.
— Não se esqueça: você faz um pouco de teatro, eu cuido do resto.
Ela tirou de dentro do manto um pequeno espelho com moldura de obsidiana. Entregou-o a Baudemagus, que o segurou com cuidado. Ele o colocou diante do rosto.
— Está tudo preto, Ama! Ela o empurrou para a porta.
— Claro, imbecil. Um miserável como você não lhe interessa.
Mordred abriu a porta e — por nada, por puro divertimento — empurrou o homenzinho no estreito corredor.
— Ande. E nada de trapalhadas!
Baudemagus tropeçou, apertou o espelhinho contra o peito e tomou a escada que levava ao quarto de Guinevere.
— A rainha vai voltar para o rei — cantarolou Mordred. — É pena... a menos que Meleagrant vença o julgamento...
— Ainda preciso de Guinevere. Ela será nossa arma contra Arthur. O importante, neste momento, é afastar esse cavaleirozinho...
— Acredita, minha mãe, que ele seja o Eleito?
Morgana segurou o filho pela cintura. Ele era mais alto do que ela duas cabeças, mas ela o aconchegou a si como se fosse apenas um garotinho.
— Talvez ele seja o Eleito, mas você é meu Preferido. Beijou-o no pescoço.
— Você terá o Graal, meu amor, eu lhe prometo...
Os saxões tinham se enfileirado ao longo dos muros, em toda a volta do pátio. Numerosos cavalos de guerra haviam sido trazidos das cavalariças. Garvain os examinou pessoalmente, estimando sua velocidade, equilíbrio e força, e escolheu um cavalo branco como a neve. Estava arreado para a justa: antolhos, bridas curtas, sela com a parte posterior mais elevada, estribos de ferro. Conduziu-o ao lado norte do pátio, onde Lancelot o aguardava.
O jovem cavaleiro se cobrira com uma simples couraça. Carregava no braço esquerdo o escudo branco com as duas listas vermelhas e, sob o braço direito, um capacete sem viseira, somente provido de um nasal* de couro.
No lado sul, Meleagrant já tinha subido em sua montaria. Trajava uma armadura completa, de um preto fosco, como seu elmo e seu escudo com o leopardo rastejante. O cavalo empinava seguidamente, tão nervoso, instável e preto quanto seu cavaleiro.
— Uma vez que você nunca justou — disse Garvain acompanhando Lancelot até o cavalo de batalha branco —, lembre-se bem de meu conselho: seu escudo é tão importante quanto sua lança. Meleagrant não vai procurar derrubá-lo, e sim traspassá-lo.
Lancelot o escutava distraidamente. Levantava a cabeça, à direita, à esquerda, com os olhos franzidos, a ponto de Garvain se irritar.
— Preste atenção, ao menos uma vez! Parece que você está olhando as moscas voando.
— Perdoe-me, Senhor. Estou procurando a rainha.
— Volte-se.
Foi o que Lancelot fez e então enxergou Guinevere em uma janela da torre, acima dele. Ela estava longe demais para que a visse sorrir, mas sua simples presença bastava.
— A cavalo, agora! — disse-lhe Garvain. Lancelot saltou na sela. Empunhou firmemente o escudo. Garvain lhe entregou a lança. Ele a firmou sob a axila. Em frente, do outro lado do pátio, o Cavaleiro Negro fez o mesmo.
Garvain ergueu o braço. E o abaixou logo em seguida.
— Vá!
Esporeados até sangrar, os dois cavalos saltaram para a frente. Avançaram tão depressa e com tanto ímpeto um sobre o outro que os galopes pareceram muito curtos e o encontro prodigioso quando, forçados a manter o alinhamento por seus cavaleiros, chocaram-se peitoral contra peitoral, ao que as lanças e os escudos voaram em estilhaços. O choque foi tamanho que as rédeas, os estribos, os arções* e cilhas das selas, tudo cedeu. Lancelot e o Cavaleiro Negro, projetados nos ares, foram parar no solo. Os cavalos, enlouquecidos, relinchando e feridos, se mordiam no pescoço, para depois dispararem, soltos, cada um para o seu lado.
Meio tonto com a queda, Lancelot levantou-se cambaleando. Desfez-se do escudo quebrado, puxou a espada e olhou Meleagrant também se pôr de pé. O Cavaleiro Negro ergueu a viseira de seu elmo. Nunca o desacordo de seus olhos diferentes parecera tão gritante, reflexo de sua alma dupla — brutal e fraca. Lancelot compreendeu que nunca tinha odiado tanto um homem, e que nenhum homem o odiaria tanto. Num mesmo impulso, precipitaram-se um sobre o outro como se fossem dois javalis.
As lâminas, as couraças se chocaram. Os dois combatentes tiveram que se separar, recuar, mas foi para partir de novo para o assalto. Eles se atacavam a grandes golpes de espada; às vezes, um parecia estar em vantagem. O outro então se afastava com um salto, para em seguida se atirar de novo sobre o adversário, obrigando-o a ações desesperadas. Até sua nova vez de ceder, para recobrar o fôlego e o ardor.
Durante muito tempo o combate permaneceu indeciso aos olhos dos espectadores. Os saxões acreditavam na vitória de seu príncipe, e o encorajavam com gritos. Garvain esperava a de Lancelot, mas começava a duvidar, surpreso com a valentia de Meleagrant. Pensou como era triste um cavaleiro daqueles ter o coração invejoso, e só se tornar indomável quando forçado como um cervo encurralado.
Nesse momento, Lancelot, aparentemente esgotado, recuou diversos passos, deixando se abaterem o braço e a espada. Meleagrant soltou um berro atroz, no qual se misturavam violência e contentamento. Tinha certeza de ter ganho. Garvain baixou a cabeça, para não ver a morte de seu protegido — seu amigo.
— Cavaleiro!
O grito de Guinevere ressoou no pátio, atravessando com uma nota aguda as vaias dos saxões. Lancelot, como saído de um sonho, ergueu subitamente a espada e aparou o golpe mortal que lhe assentava Meleagrant. Depois, com o ombro, empurrou-o para trás e golpeou duas, três, dez vezes, com uma rapidez e uma força extraordinárias. Os saxões calaram-se. Lancelot fez Meleagrant recuar até o centro do pátio. O Cavaleiro Negro vacilava. Recebeu um golpe cortante no ombro, que fez o ferro se partir como uma casca de ovo. Ele dobrou o joelho. O sangue jorrava da ferida, avermelhando a manga e a couraça negras. Um segundo golpe arrancou a viseira de seu elmo. Ele levantou o braço para revidar o golpe. Não teve tempo: a lâmina de Lancelot entrou no seu olho azul e lhe atravessou o crânio.
Quando o Cavaleiro Negro, seu seqüestrador, desabou na terra batida do pátio, Guinevere experimentou tamanha emoção — uma felicidade que ela não conhecia desde o dia, já longínquo, em que Arthur havia lhe pedido a mão — que voltou para o quarto, de medo de não poder se conter quando o jovem cavaleiro levantasse os olhos para obter sua homenagem.
Ela temia aquele amor, e o havia combatido a cada dia desde seu seqüestro, pois sabia que não tinha direito a ele, a não ser traindo a fidelidade ao rei. Mas combater um amor é pensar nele sempre, é guardá-lo no espírito e no coração a cada segundo. E como resistir a ele, no momento em que o jovem cavaleiro realizara tantas proezas, arriscando dez vezes a vida por ela, vencendo Meleagrant?
Protegida dos olhares, pôs as mãos no rosto ardente, depois sobre o peito oprimido. Era preciso recuperar o domínio sobre si mesma. Claro, desde o instante em que ele havia lhe oferecido a espada e ela havia passado as mãos sobre a lâmina, amara o jovem cavaleiro, mas ninguém — sobretudo Garvain, modelo de cavalaria — devia conceber qualquer suspeita. Ainda não estava pronta para os atos, terríveis, e sem perdão aos olhos da Corte e do mundo, que aquele amor — ela agora aceitava a evidência — dentro em breve lhe exigiria: renunciar ao trono e à ternura do rei, feri-lo gravemente em sua honra e em seu coração, levar com o jovem cavaleiro uma vida afastada de todos, sem esperança de retorno.
Pouco a pouco sua respiração se acalmou, suas faces se refrescaram. Primeiro, disse a si mesma, devo descer para ver o cavaleiro e lhe agradecer. Fazê-lo compreender, de uma maneira perceptível só para ele, que seu amor é compartilhado. Isso não será difícil, bastará que nossos olhares se cruzem, se reconheçam, se toquem... Em seguida... Em seguida, voltar com ele a Camelot, e eu me explicarei diante de Arthur.
Tomadas as resoluções, ela inspirou profundamente para se assegurar de que tinha recuperado a calma mais perfeita. Sua educação de filha de rei, sua experiência de rainha tinham lhe ensinado a dissimular sob uma máscara de polidez seus desejos, assim como seus ódios. Ela foi até a porta.
Foi então que bateram.
Ela já havia visto uma vez o sujeitinho ridículo e desajeitado que entrou, em Sorelois, a aldeia que os encantamentos tinham transformado em cemitério. Ele só lhe inspirara nojo.
— Senhora — ele disse, inclinando-se diversas vezes —, perdoe-me por perturbá-la em um momento destes.
— O que você quer?
— Mostrar-lhe uma coisa, Senhora.
— Mais tarde.
Ela fez um gesto para afastá-lo. Para sua surpresa, Baudemagus permaneceu diante da porta.
— Acredite que, se eu pudesse... Mas, mais tarde será tarde demais, Senhora. A senhora deveria ver... a coisa imediatamente.
— Mais uma de suas ações de feiticeiro? Não me interessa.
— Eu lhe garanto, eu lhe garanto, Senhora, que esta aqui vai lhe interessar.
Baixou misteriosamente a voz:
— Eu não queria que uma mulher tão bela como a senhora, uma tão nobre rainha, cometesse um erro irreparável porque eu não soube me fazer entender... Escute-me, Senhora, por favor. E principalmente: olhe.
Agitou o pequeno espelho de obsidiana. Guinevere recuou, de tão brusco que foi o gesto.
— Olhe, Senhora... Olhe no espelho...
A contragosto, ela levou os olhos ao oval negro. Ia retorquir a Baudemagus que não se podia ver nada ali, quando a superfície da obsidiana se iluminou de repente. Tornou-se vermelha, depois violeta, depois azul. Sobre o azul se formaram estrelas de ouro. Uma forma se desenhou: ela reconheceu um leito. E, nesse leito, deitado nu, com os olhos fechados e rindo como se sonhasse, o jovem cavaleiro.
Com o coração palpitando, ela aproximou a mão da imagem, como que para acariciá-la com a ponta dos dedos. Nesse instante, uma outra silhueta apareceu no espelho. Uma moça, também nua, com uma pele muito branca, semicoberta por um véu — ou desvelada — pela musseline de uma longa manta.
Guinevere tornou a fechar os dedos, retirou a mão, pousou o punho no peito. No espelho, a moça se sentara na cama e acariciava a testa do jovem cavaleiro. A rainha desejou intensamente que ele despertasse e a mandasse embora. Era ela, Guinevere, que ele amava! Aquela moça — e agora ela lhe acariciava a face, o pescoço, o ombro, o peito — não tinha nenhum direito de tocar nele!
Mas ele ria, dentro do espelho, ele ria, encantado e como em êxtase, e passou o braço em volta dos quadris da moça. Puxou-a para si, e ela se aconchegou voluptuosamente contra ele.
Ele a beijou.
— Não!
Guinevere, com o outro lado do punho, afastou violentamente o espelho. Ele escapou dos dedos de Baudemagus. Caiu sobre as pedras do chão, onde se partiu.
Como meu coração, ela pensou, olhando os brilhos de obsidiana se apagarem e se tornarem negros.
Baudemagus jogou-se de joelhos no chão para recolher febrilmente os pedaços de pedra.
— O que nós fizemos, Senhora? — gemeu. — O que nós fizemos?
A NEGAÇÃO
Enquanto vários saxões transportavam os despojos de Meleagrant, Garvain ajudou Lancelot a retirar a couraça. O cavaleiro, esgotado pelo combate, deixou-o agir sem responder aos cumprimentos de seu companheiro. Parecia não se dar conta de nada do que se passava em torno dele.
— E então? — disse-lhe Garvain. — Você venceu o julgamento, mas, pela expressão, até parece que perdeu!
Lancelot lançou para ele um olhar triste.
— Eu ganhei, sim... Mas não estou vendo mais a rainha na janela...
Garvain bateu-lhe no ombro.
— É apenas isso? Às vezes você se conduz de fato como uma criança. Se ela não está na janela é porque desceu para receber sua homenagem e felicitá-lo.
Arrastou Lancelot até a entrada da sala.
— Vamos. E não se esqueça de que uma das qualidades cavalheirescas mais apreciadas pela rainha é a modéstia. Triunfe, mas com humildade. Se ela pede para você se tornar cavaleiro a seu serviço, é porque sua reputação em Logres vale quase tanto quanto a minha!
Lancelot, realegrado pelas palavras de Garvain, recuperou o sorriso e, entrando na sala, procurou na mesma hora os olhos de sua bem-amada. Viu apenas a rainha Elfride, estendida sobre o leito perto da lareira, em torno do qual se desvelavam três serviçais.
Decepcionado, porém consciente de seus deveres, chegou até a cabeceira de Elfride. A velha mulher mal respirava. Apenas seus olhos permaneciam vivos no seu rosto de mil rugas e manchas.
— Aproxime-se, Lancelot — ela disse com uma voz fraca.
Ele ajoelhou-se junto dela e segurou a mão que ela lhe estendia.
— O julgamento, Senhora, lhe tirou seu filho. Sinto remorsos pelo sofrimento que lhe causei.
— Meu sofrimento é o de uma rainha mais do que de uma mãe. Meleagrant foi um filho dominado por seus desejos. Agora, Gorre é um reino sem soberano. O que vai acontecer com a minha ilha, o que vai acontecer com a minha gente e com o meu povo?
— Nada tema, Senhora. A rainha Guinevere, Garvain e eu testemunharemos sua justiça e sua bondade junto ao rei Arthur. Ele saberá cuidar de Gorre, de sua segurança e de sua prosperidade.
— Eu lhe agradeço, Lancelot. Você é o cavaleiro que eu gostaria de ter tido como filho... Escute-me: há inúmeros sinais em torno de você. Saiba interpretá-los. Não se afaste da Busca.
Apertou a mão de Lancelot entre as suas.
— Morrerei tendo visto, admirado e tocado o Eleito...
— O Eleito, Senhora? Explique-me.
— A resposta a todos esses enigmas está em seu coração...
Fechou lentamente os olhos. Um último sopro, contido, escapou de seus lábios. Suas mãos soltaram as de Lancelot e caíram de novo sobre o peito.
Lancelot se levantou e se afastou. As serviçais caíram de joelhos e choraram, rezando pela rainha morta.
Garvain tocou o braço de Lancelot.
— Vamos nos retirar. Vamos ao encontro da rainha.
Deixaram a sala. Garvain preferiu nada revelar a respeito de seu espanto ao jovem companheiro: era infreqüente que uma dama — e sobretudo Guinevere — não viesse imediatamente após a vitória de seu campeão. Temia vagamente algum ardil preparado contra eles por Meleagrant ajudado por seus saxões.
Seus temores foram de curta duração: na escadaria, viram Guinevere descendo. Lancelot, com o coração em festa, apressou o passo. Sem notar de início o ar contrariado da rainha, Garvain disse alegremente:
— Senhora, eis Lancelot, ele veio para vê-la! Deve ser um prazer para a senhora!
Com os lábios apertados, o olhar glacial, ela o olhou atentamente.
— Por quê? Ele cumpriu seu dever de cavaleiro, o que mais?
— Senhora, ele reconquistou-a de Meleagrant, e a senhora pôde ver que o combate foi um dos mais duros a que assisti.
— Ele teria preferido que fosse fácil? — ironizou ela.
— Não é o que eu queria dizer, Senhora — tornou Garvain, surpreso e consternado com a atitude da rainha. — E, se me permite, lembro-lhe de que não está certo acolhê-lo assim friamente. Ele arriscou vinte vezes a própria vida para socorrê-la.
— Pois bem, se esperava minha gratidão, perdeu seu tempo.
— Senhora, a senhora não pode...
— Garvain! — ela o interrompeu secamente. — Não tenho lições a receber de você. Ajo como quero e não tenho que lhe dar razões.
Ferido em sua amizade por Lancelot e em seu senso de cortesia*, Garvain não se deixou intimidar.
— Contudo, gostaria bastante de conhecê-las, pois essas razões, Senhora, podem estar fundadas apenas em um erro ou em um capricho!
A rainha corou de indignação. Lancelot segurou Garvain pelo ombro.
— Deixe, Senhor. Não se desentenda com a rainha por minha causa.
Muito pálido, ele falava com uma voz cansada e sem entonação. Pela primeira vez desde o começo da conversa, Guinevere lhe dirigiu o olhar. Mas ele teria preferido que continuasse a ignorá-lo, tanto mal aquele olhar lhe fez.
— Talvez você tenha algo a dizer, Lancelot, pois, ao que parece, encontrou este nome no caminho.
Ele baixou a cabeça.
— Apenas, Senhora, que estou triste.
— Triste? Eis uma disposição inteiramente fora de propósito! Depois de todas as suas proezas, só vai se falar de você em Camelot, e as donzelas vão brigar para obter seus favores.
— Não fará diferença para mim, Senhora. Guinevere hesitou. Contemplou por um instante a testa baixa, humilde, do cavaleiro, e criticou-se por ainda achá-lo tão bonito, tão atraente — ele, que a havia enganado.
— Quer me fazer crer que desdenha o amor, Lancelot?
— Não, Senhora. Muito pelo contrário.
— O que isso significa?
Ele balançou lentamente a cabeça e não respondeu.
— Fale!
— Eu... Meu coração está tomado, Senhora.
— Ama alguém? — ela perguntou sem conseguir impedir um ligeiro tremor na voz.
— Sim, amo.
Perturbada, Guinevere fez um sinal discreto a Garvain, que compreendeu que as confissões do jovem cavaleiro haviam se tornado muito íntimas e, por discrição, se retirou. Lancelot e Guinevere se viram a sós; ele continuava, com a cabeça sempre inclinada, embaixo na escada; ela estava alguns degraus acima dele.
— Quer dizer que você já deu seu coração. As moças da Corte vão ficar infelizes... Como se chama ela?
— Não posso pronunciar o nome dela, Senhora.
— Por que tanta vergonha? Estamos sozinhos, você e eu. Habitualmente, um apaixonado aborrece todo mundo por só querer falar daquela que ama.
— É que, justamente, Senhora, ela não me ama.
— Como pode saber? Ela lhe disse?
— Há olhares e atitudes que valem por todas as palavras.
— É essa a razão de sua tristeza?
— Sim, Senhora.
— Talvez eu possa interceder a seu favor junto dela. Diga-me seu nome.
— Ela não pode escutá-la.
— Por quê?
— Porque, se ela tivesse um coração para escutar, minha tristeza desapareceria neste preciso instante.
Guinevere estremeceu. "Neste preciso instante"... O que isso significava, senão que...? Teria sido estúpida, insensata por ter se deixado levar pelas bruxarias de Baudemagus, por ter acreditado nas miragens que ele fizera aparecer no espelho de obsidiana, por ter se deixado tomar pelo ciúme desmedido, pelo amor desmedido que sentia? Vejamos... Era preciso se certificar.
— Pois bem — fingiu estar gracejando —, você está numa situação complicada, cavaleiro. Talvez devesse tomar uma decisão e esquecer essa orgulhosa.
— Impossível, Senhora. Não tenho nem a força nem a vontade.
Guinevere desceu os degraus e chegou junto de Lancelot. Sentia as mãos tremendo de desejo de tocar o rosto do jovem. Todo aquele mistério, aquelas respostas com meias palavras se pareciam, agora ela tinha certeza, com uma confissão que não ousasse ser expressa. Mais uma palavra, uma só palavra dele, e o mal-entendido estaria dissipado.
— Será, cavaleiro, que não se esqueceu do essencial?
— O essencial, Senhora?
— Sim. Alguma vez chegou a lhe dizer que a amava? Lancelot ergueu a cabeça. Sentia como uma espécie de queimadura a proximidade de Guinevere. Não teve coragem de olhar para ela, arriscar-se à dor provocada por aqueles olhos distantes, gelados, com os quais ela o havia acolhido fazia pouco. Estava errado. Não havia mais frieza nem distância naqueles olhos.
Lembrou-se do sonho, no castelo de Pellès, o encantamento da poção e da felicidade fictícia que havia conhecido nos braços da falsa Guinevere.
— Sim, Senhora, uma noite, eu disse a ela...
A rainha fechou os olhos. Ela também, com essas palavras, reviu a imagem do quarto e da cama onde Lancelot tomava a moça nos braços e a beijava. Nunca teria acreditado que o ciúme pudesse ferir tanto. Ela se distanciou de Lancelot.
— Então, cavaleiro, você vai conhecer a dor de ser enganado, traído, desdenhado.
— O que posso fazer, Senhora?
— Nada—disse ela em voz baixa. — Sofra.
Algumas horas mais tarde, Guinevere, Garvain e Lancelot deixaram o castelo de Gorre, onde estava sendo preparada a vigília fúnebre da rainha Elfride e de seu filho Meleagrant. Não viram Morgana e Mordred assistirem à partida deles do alto do torreão.
— Ai, que desolador! — ridicularizava Mordred. — Destruímos uma bela paixão, minha mãe...
— São Lancelot e Guinevere que quero destruir. À espera da vez de Arthur.
— Tudo virá a seu tempo...
A rainha e os dois cavaleiros subiram em uma barca e atravessaram o canal sem transtornos. Desde a morte do Cavaleiro Negro, as ondas tinham se acalmado. O mar estava liso como um lago em volta de Gorre.
Com o rosto fechado, Guinevere não pronunciara uma palavra até o desembarque sobre a margem. Lancelot também se calara, o rosto taciturno, o olhar ausente. Quanto a Garvain, desistiu bem depressa de tentar conversar.
Fixaram as amarras perto da barcaça e escalaram o cume da falésia por um caminho instável e perigoso. Lá no alto, várias tendas coloridas tinham sido erguidas. Garvain reconheceu de longe Yvain e Bréhu vindo ao seu encontro.
Os dois cavaleiros saudaram a rainha, souberam das novidades e depois abraçaram Garvain. Ele tratou de repeli-los, apontando Lancelot.
— Apresento-lhes o herói da aventura! Ele venceu Meleagrant em julgamento e conseguiu algumas outras ninharias, sob minha sábia direção.
— Cavaleiro — exclamou Yvain tomando as mãos de Lancelot —, mal recebeu um nome e já o tornou célebre! Você conheceu os perigos e os combates da cavalaria, agora está na hora de saborear os prazeres, os festins e a glória!
Lancelot forçou com dificuldade um sorriso.
— Obrigado, Yvain, por sua acolhida. Garvain segurou-o amavelmente pelos ombros.
— Vamos, não faça essa cara! Dentro de uma semana estaremos em Camelot e descansaremos nossas espadas.
— Não acredito — declarou a rainha. —Yvain, Bréhu e você, com certeza, vão me escoltar a Camelot no caminho de volta. Já Lancelot, não irá a Camelot.
— Por quê, Senhora? — espantou-se Garvain. — Todo mundo o espera lá, e o rei desejará vê-lo.
— Seu rapaz tem coisa melhor para fazer, se o compreendi bem. Algo a ver com uma moça.
— Que ele a traga à Corte!
Guinevere estendeu a mão a Yvain para indicar que a conversa, para ela, estava encerrada.
— Acompanhe-me ao acampamento. Tenho pressa em partir daqui. Você também, Garvain, venha.
Yvain obedeceu e, apresentando a mão à rainha, conduziu-a em direção às tendas. Garvain, furibundo, não os seguiu imediatamente.
— Até parece que a companhia de Meleagrant afetou seu humor — resmungou, falando de Guinevere.
— Não fale mal da rainha, Senhor — disse Lancelot.
— É você quem vai me ensinar? Da maneira como ela o trata?
— Não posso fazer nada, Senhor. Ela me detesta. Garvain deu de ombros.
— Capricho de mulher! Espere um mês ou dois, e volte a Camelot. Verá que ela terá esquecido tudo.
— Penso em nunca mais voltar à Corte, Senhor.
— Pare de me chamar de "Senhor", você é cavaleiro como eu. E pare de se atormentar. Seu lugar é em Camelot, do nosso lado. Nem o rei, nem eu! aceitaremos dispensar sua espada.
— Obrigado, S...
Mas, diante das sobrancelhas franzidas do amigo, corrigiu:
— Garvain. Obrigado, Garvain.
No acampamento, os escudeiros estavam ocupados em desmontar as tendas.
— O que vai fazer? Sabe aonde vai?
— Deixe-me um cavalo e tudo irá bem.
— Até logo, Lancelot. Garvain lhe deu um abraço.
Depois, o rapaz se afastou em direção à beira da falésia.
— Adeus — disse.
Permaneceu durante muito tempo diante do mar. Diversas vezes teve a tentação de se atirar no vazio. Nada mais o reteria neste mundo, se não tivesse o amor de Guinevere. O dia estava quente e ensolarado, mas ele sentia frio — um frio que nascia em seu peito.
Quando afinal se afastou da falésia e da tentação do suicídio e se virou, o acampamento havia desaparecido. Um rocim branco, todo arreado, pastava tranqüilamente a relva rara da charneca. Garvain e os cavaleiros tinham partido. E Guinevere também.
O VALE SEM VOLTA
Uma Lenda
O verão passou. Foi muito quente, sem nuvens. Os vales e os prados, os montes e as colinas eram de um verde reluzente salpicado dos azuis, vermelhos e amarelos intensos das flores. Mesmo assim, as nascentes não secavam, mas corriam vigorosas e claras, jorrando em locais que nunca tinham sido vistos desde a Idade de Ouro.
Foi o começo de um excepcional período de paz em Logres e nos reinos circundantes. O rei Arthur não tinha inimigos — ou acreditava não ter. Dizia-se que ele organizava festim após festim, justas seguidas de torneios, e que a vida nunca tinha sido tão doce em seus castelos de Camelot e de Carduel, nem o rei tão apaixonado pela esposa reencontrada. Dizia-se também que Guinevere, marcada pelo seqüestro, tinha mudado: sua beleza se tornara mais adulta, seus traços, mais austeros, nunca sua pele estivera tão branca. Somente Garvain, apesar de sua bondade e alegria naturais, parecia tocado por uma melancolia que lhe estragava os prazeres. Em certas manhãs, ele se levantava de madrugada, bem antes da Corte que havia rido e dançado a noite inteira, e se postava por muito tempo sobre uma torre de vigia. Esperava em vão o retorno de seu amigo Lancelot.
O outono chegou. Os vales, as florestas e as colinas se amarelaram, avermelharam, acastanharam. O céu carregou-se de nuvens de oceano, de início macias e rápidas, em seguida cinzentas e baixas, pesadas de temporais. Nas lareiras de Camelot acumularam-se gravetos e lenhas, arderam os primeiros fogos, iluminando as grandes salas frias com suas chamas crepitantes, semoventes, amarelas.
Os cavaleiros começaram a se aborrecer. Banquetes demais, justas demais os haviam cansado. O próprio humor do rei havia mudado; era visto em certas noites vagando pelos corredores estreitos, sombrio, preocupado, como se retardasse permanentemente o momento de se juntar a Guinevere no quarto deles. Da rainha não se sabia mais nada. Ela não aparecia mais na Corte. Suas serviçais cochichavam, jurando segredo, que ela só se levantava da cama para sentar perto da janela e, com os olhos fixos para além das muralhas, perder o olhar como se esperasse alguém, alguma coisa, um acontecimento ou um homem que lhe devolvesse o gosto de retomar sua existência de rainha e de mulher.
Então, os cavaleiros desertaram de Camelot e partiram, em seguida a Garvain, para longas caçadas pelos caminhos lamacentos e no meio das folhas mortas, até os confins do reino. À tarde, em volta de um bivaque onde se assavam perdizes ou lebres, evocavam com nostalgia "o tempo antigo", não ousando ainda lamentar em voz alta a época em que guerreavam, em que ser cavaleiro tinha um sentido. Yvain, Bréhu ou Caradigas, então, interrogavam Garvain, pela milésima vez, sobre as circunstâncias da perseguição de Meleagrant e sua derrota em julgamento; pela milésima vez, caprichando em novos detalhes, inventando alguns, Garvain lhes contava as proezas de Lancelot do Lago. E, pela milésima vez, eles se extasiavam com o relato, que fazia reviver neles a esperança de conhecer semelhantes aventuras.
Foi durante uma dessas caçadas, quando seguia as fumaças1 de um cervo em uma floresta da Cornualha e se vira inesperadamente só diante do mar, que a primeira neve do inverno) começou a cair. Eram desses grandes flocos leves e turbilhonantes que, na sua infância, sua babá chamava de "penas de anjos". A mulher não ia à igreja; acreditava nos deuses antigos, os que conferem seus poderes aos druidas. Para zombar da religião nova, ela dizia a Garvain criança quando chegava a primeira neve: "Olhe seu Bom Deus: ele vai se regalar com um bom guisado esta noite; está desplumando seus anjos." E, durante muito tempo, o pequeno Garvain imaginara os arcanjos Miguel e Gabriel como duas galinhas gigantes brandindo uma espada.
Sonhava com aquilo, olhando os flocos embranquecerem a floresta e a praia, quando percebeu uma forma pálida, espectral, deslocando-se lentamente em direção ao limite das árvores. Sua primeira idéia, nascida do devaneio ("É um anjo..."), assustou-o um pouco. Depois, chamou-se de velho imbecil e tocou seu rocim na direção do espectro.
Este também o havia visto, pois parou para aguardá-lo. Quanto mais seu cavalo se aproximava, mais Garvain o fazia apressar o passo: perturbado, reconheceu aquela capa e cota brancas, aquela estatura ao mesmo tempo esbelta e sólida; e quando, entre duas borrascas de neve, viu as duas listas vermelhas do escudo, não se conteve mais e gritou:
— Lancelot!
Saltou do rocim e se precipitou sobre o cavaleiro. Ele o abraçou.
— Lancelot! Meu amigo! Pensei que tivesse morrido!
Apertou-o com toda a força contra o peito, com uma extraordinária emoção.
— Você voltou! Até que enfim!
Mas Lancelot não retribuía seu abraço. Permanecia ali, sem um movimento, tão rígido quanto uma estátua. Garvain, embaraçado, soltou-o e recuou um passo. Sua alegria esvaía-se.
— Não me reconhece? — perguntou.
— Claro que o reconheço, Garvain.
O cavaleiro disse isso sem a menor entonação de prazer ou de amizade. Admitia um fato, tão-somente.
Garvain o examinou com mais atenção. Ele estava com a cabeça descoberta, apesar da neve que embranquecia sua cabeleira como a de um homem muito velho que tivesse mantido a fisionomia de adolescente. Tinha emagrecido. Uma barba malcuidada e esparsa crescia em suas faces encovadas. Suas órbitas fundas acentuavam buracos de sombra onde luziam olhos fixos, de um castanho amarelado, que, como os das feras em repouso, pareciam absortos em um sonho imóvel.
Pouco à vontade, Garvain forçou um tom jovial:
— Então, cavaleiro, decidiu voltar a Camelot? Falei tanto de você lá que todo mundo o espera com impaciência!
— Estou aqui por acaso.
— Ah... — fez Garvain, desapontado. — Mas você sabe o que se diz? O acaso...
— Estou indo de novo para o norte.
— Sem cavalo?
— Ele foi morto em combate, ainda agora. Persegui durante dez dias um duque saxão e dois de seus cavaleiros. Por isso é que vim parar aqui.
— Saxões? Você não sabe que eles fizeram um acordo com Arthur e que não estamos mais em guerra?
— Eu faço minha guerra pessoal, Garvain. Que esses homens que eu matei sejam ou não saxões, não tem nenhuma importância. Nos últimos meses, enfrentei cavaleiros na Escócia e na Irlanda.
— Por que motivo?
— Minha busca também é pessoal.
Garvain tocou-lhe o braço e lhe mostrou o limite da floresta.
— Não vamos ficar aqui sob a neve. Vamos para o abrigo das árvores. Faremos um fogo e conversaremos.
— Já lhe disse, Garvain. Vou embora de novo. Apanhou o escudo que havia depositado no solo e colocou-o sobre o ombro.
— Adeus, cavaleiro.
Afastou-se. A neve fresca chegava-lhe aos tornozelos.
— Quando vai voltar? — gritou-lhe Garvain.
Não obteve resposta. Lancelot desvaneceu-se pouco a pouco como um fantasma.
— Qual é sua busca, cavaleiro? O que procura, pelo sangue de Cristo?
— A morte, Garvain — replicou a voz longínqua de Lancelot. — A morte em combate. Procuro o cavaleiro que me vencerá e me libertará.
— Do que quer se libertar?
— De mim mesmo. Quem sabe, Garvain? Talvez um dia você venha a ser meu caridoso vencedor!
— Não conte com isso!
A silhueta lívida do cavaleiro desapareceu completamente na brancura opaca dos flocos de neve. Garvain o chamou ainda diversas vezes: "Lancelot!" Mas ele sabia — seu desgosto sabia — que seus gritos seriam inúteis.
Lancelot tinha falado a verdade: ao longo dos últimos meses, ele percorrera a maior parte das terras ao norte e a oeste de Logres, até a Irlanda. Assim que cruzava com um cavaleiro, desafiava-o. Obtinha sempre a vitória e jamais concedia clemência: já se falava daquele Cavaleiro Branco que se recusava a dizer o próprio nome aos adversários e era impiedoso com eles. Era tão temido que corriam mil histórias sobre ele, acrescentando-se feitos inventados aos que realizava quase todos os dias. E essas histórias se deslocavam tão depressa, de vigília em vigília, que alcançavam por vezes antes dele terras onde ainda não tinha passado. Acreditava-se então em uma lenda, e a imaginação dos contadores provocava risos e arrepios. Em seus jogos de espada de madeira, as crianças brigavam para fazer o papel do Terrível Cavaleiro Branco. Ninguém ria mais, porém estremecia com mais intensidade, quando ele aparecia uma manhã, em uma encruzilhada ou na grande porta de um castelo, lançava seu desafio, e depois jogava no chão e degolava o adversário.
Alguns cavaleiros da Escócia e da Irlanda logo disseram que o Cavaleiro Branco era um homem a ser vencido a qualquer preço. Iam no seu encalço. Sabiam que a vitória sobre ele lhes valeria uma tal reputação que seus nomes sobreviveriam durante séculos nas lendas. Foram derrotados um após o outro. Outros decidiram se aliar e terminar com aquela ameaça incessante que ocupava suas noites e desvalorizava suas próprias proezas. Desprezando as leis da cavalaria, armavam-lhe emboscadas, assaltavam-no em grupos de três, cinco, dez. Nada conseguiam. O Cavaleiro Branco só deixava mortos atrás dele.
Os cavaleiros sobreviventes, os que tinham tido a sorte de não cruzar com ele nas estradas, engoliam sua vergonha e passavam a viver encerrados em seus castelos. Caso o Cavaleiro Branco aparecesse para lançar seu desafio, mandavam suspender a ponte levadiça. Abrigados pelas ameias, machicoulis* e seleiras*, mandavam seus arqueiros atirarem até que ele resolvesse ir embora.
E, assim, Lancelot não teve mais adversários. Foi obrigado a descer para o sul, onde encontraria saxões para enfrentar. Sua vida era apenas uma sucessão de curtas noites de sono, sempre à espreita, de viagens através das florestas e das charnecas, e de combates de morte. Uma noite — ele, que não sonhava desde sua partida de Gorre —, teve um sonho no qual combatia um cavaleiro de cobre, uma daquelas estátuas mecânicas que guardavam o subterrâneo do cemitério dos mortos futuros. O enfrentamento estava indeciso; tinham a mesma força. Um rasgo feito pela espada arrancara o elmo do cavaleiro de cobre. E ele se reconheceu. Era ele. Era ele, Lancelot, que habitava a armadura da estátua. Ele se batia consigo mesmo. Acordou e soube que seria um combate sem fim e sem vencedor.
Depois de seu encontro fortuito com Garvain, na primeira noite do inverno, atravessou a floresta sem perder tempo para dormir um pouco. Queria tomar a maior distância possível entre Garvain e ele, entre um passado de que ele não fazia mais parte e seu presente ao qual recusava qualquer outro futuro que não fosse a morte. De manhã, encontrou um cavaleiro da Cornualha e, bêbado de fadiga e de nojo de si mesmo e dos combates permanentemente recomeçados, desafiou-o, matou-o e tomou seu cavalo.
Decidiu continuar em direção ao norte. A neve cobria tudo com um sinistro silêncio. Não viu uma única pegada em toda parte por onde passou. Nem sequer a marca de uma raposa ou de uma ave. Pouco a pouco adormeceu, com o queixo sobre o peito, embalado pelo passo do rocim que seguia sempre em frente por aquela extensão virgem e branca.
A súbita imobilidade de seu cavalo despertou-o. A noite tinha caído. Diante dele, destacando-se sobre a planície nevada, mais negras do que o céu, erguiam-se as ruínas do castelo onde havia um dia jantado com o rei Pellès, onde, em uma certa noite..
Expulsou a lembrança com um resmungo e com um balançar de cabeça. Segurou a brida e puxou o freio para obrigar o rocim a sair daquele local onde ele havia conhecido um amor enganador. Mas viu, passando de janela em janela, no alto de uma das torrinhas, a luz trêmula de uma tocha.
Esporeou a montaria. Atravessaram a ponte levadiça e entraram no pátio. A neve era espessa naquele local, tão alta que o cavalo se enterrava nela até os jarretes. Lancelot desmontou e entrou na sala.
Estava muito escuro para que conseguisse distinguir o que quer que fosse, até mesmo a chaminé de quatro colunas. Avançou resolutamente na escuridão. O barulho de seus passos estalava nas pedras do chão, cercando-o de ecos. Achou sem tatear a porta que procurava.
Começou a percorrer no escuro os estreitos corredores e as escadas. Não via nada, mas não hesitou nem uma vez. Seus passos pareciam conduzi-lo com a maior segurança.
Seus olhos finalmente encontraram algo parecido com luz. Era o halo de uma tocha, pintando de ocre as sombras móveis no vão de uma porta. Lancelot avançou pelo corredor.
O quarto onde queimava a tocha era parcamente mobiliado com um colchão de palha, um banco e uma pequena mesa, à qual Galehot estava sentado, comendo em uma tigela.
— O que está fazendo aqui? — perguntou Lancelot. O varlete não mostrou nenhuma surpresa. Sorriu
abertamente para o cavaleiro, como se tivessem se despedido uma hora antes, e fez-lhe sinal para entrar.
— Deve estar como fome, não, Senhor? Estou assando uma lebre. Venha, sente no meu lugar — acrescentou, levantando-se do banco.
— Continue sentado. E me responda.
— O que estou fazendo aqui? Como vê, eu me instalei!
— Estranha idéia.
— Boa idéia, o senhor quer dizer! Eu tinha esperança de que um dia o senhor passaria de novo por aqui. E tinha razão.
— Estava me esperando?
— Desde o começo do outono. Depois que o deixei na Ponte da Espada, fui até Camelot. Primeiro, esperei pelo senhor lá. Quando a rainha voltou, falou-se muito do senhor. Tinha certeza de que ia voltar. Assisti a torneios que o senhor teria vencido sem esforço.
Lancelot sentou-se no banco de pedra da lareira. Aqueceu as mãos ao calor das brasas.
— Você não se apresentou? — perguntou.
— O senhor tinha dito que ia me apresentar ao rei. Eu não iria passar por cima da sua polidez, Senhor. E depois, no começo do outono, percebi que não adiantava esperar. Passei por Sorelois, o domínio de meu pai: ninguém o tinha visto. Então decidi vir para este castelo.
— Por quê? Se eu não tivesse dormido o dia inteiro em cima do meu cavalo, ele não teria me conduzido até aqui por acaso e você não me veria.
— Mas o fato é que acabou dormindo sobre o cavalo e ele o trouxe para cá. Agora, só me falta esperar por Ellan.
— Ellan! — rosnou Lancelot. — Proíbo-o de pronunciar esse nome.
— Perdão, Senhor... Mas não paro de pensar em Ellan. O senhor é a primeira pessoa que vejo há semanas e não pude resistir ao prazer de falar dela.
— Continua maluco o bastante para ainda amá-la? Está se vendo que os efeitos da poção que ela o fez beber são poderosos... Quanto a mim, o que bebi me embriagou só por uma noite, depois se transformou em ódio.
— Ellan também o fez beber uma poção, Senhor?
— Você bem sabe que ela pretendia me amar! E, como eu a repelia, ela apelou, aqui mesmo neste castelo, à magia e à astúcia para alcançar seus fins!
Galehot baixou o rosto sobre a tigela. Lancelot percebeu sua súbita tristeza e se arrependeu de ter falado demais — ele, que não dirigia mais a palavra a ninguém há meses, a não ser para lançar seu desafio e recusar em seguida a graça ao vencido.
— Peço perdão, Galehot, se o feri. Não devia ter lhe contado isso. E, afinal, por que eu teria tanta raiva de Ellan? Ao menos ela me amou... E hoje compreendo o mal que lhe causei desprezando-a. Hoje sei o que significa amar sem ser correspondido...
— O senhor? O senhor, o mais audaz e o mais belo dos cavaleiros de Logres e de toda a Terra, ama e é recusado? É impossível.
Lancelot observou por um momento as brasas avermelhadas.
— Não — suspirou. — O meu amor é que era impossível.
— Não consigo imaginar isso, Senhor. Todas as moças e damas de Camelot só sonham com o senhor!
— Menos uma.
— Qual? Ela se escondeu tão bem que nunca a encontrei!
— Se você tivesse se apresentado como meu varlete, a teria visto.
Galehot coçou a testa, perplexo.
— Confesso, Senhor, que... Diga-me o nome dela, não consigo...
Lancelot hesitou, depois deu de ombros, cansado.
— Para você posso dizer, vai guardar o segredo. — Juro, Senhor!
— Aquela que eu amo se chama Guinevere.
— A... a... a rainha? — gaguejou Galehot.
O cavaleiro balançou afirmativamente a cabeça, sem olhá-lo.
— Mas como é possível? A rainha... a... mulher do rei? Mas... mas... mas como é que isso foi acontecer?
Lancelot riu tristemente.
— Você fala como se eu fosse a vítima de um acidente ou de uma doença... No fundo, você não está errado. Esse amor me corrói como um mal incurável.
De repente, fez no ar um gesto de cólera.
— Chega de falar sobre isso! Galehot se aproximou dele.
— Ao contrário, Senhor, acredite-me: é preciso falar com alguém. Vai aliviar um pouco seu coração, e, talvez, ao fazer o relato, descubra coisas que não tenha compreendido até então.
— Não há nada para se compreender. Ela me odeia, só isso.
— Um ódio não pode nascer sem mais nem menos, sem motivo. O que fez a ela?
— Pus minha espada a seu serviço, me bati por causa dela, libertei-a de Meleagrant.
Galehot acocorou-se perto do cavaleiro e recomeçou, com uma voz paciente:
— Eu sei de tudo isso, Senhor. Mas é um relato um pouco rápido, um pouco... simples. Tente acrescentar mais palavras, mais cuidado, mais explicações e detalhes.
— Sabe que, desse jeito, está me obrigando a reviver tudo, a reavivar sentimentos que sufoco há meses?
— Sim, Senhor — disse gravemente Galehot. — Mas, acredite-me, é necessário.
Lancelot recostou-se na parede da lareira e fechou os olhos.
— Então, escute-me...
—... E então ela foi embora de braço dado com Yvain. Nunca mais a vi.
Galehot fez um longo silêncio depois do relato de Lancelot. Tinha se sentado no chão, os joelhos entre os braços cruzados, de costas para as brasas. O cavaleiro deixou o banco de pedra, saiu da lareira e caminhou até a janela. Do lado de fora, a noite estava absolutamente silenciosa.
— O que acha? — perguntou.
— Eu acho, Senhor, que há nesta história sombras que me desagradam. Furtivas... Maléficas... Poderosas...
— O que está dizendo?
Galehot se pôs novamente de pé, massageando os quartos.
— Nós, o senhor e eu, um de cada vez, encontramos Morgana. Ao senhor, sob o nome de Errande, ela ofereceu uma hospitalidade onde o senhor poderia ter perdido a vida. Ela lhe escondeu a presença de Meleagrant e de sua cativa, e em seguida fugiu na companhia deles. Depois disso, fui eu que a encontrei. Ela veio a Sorelois e pronunciou seus encantamentos. Ou melhor, os fez pronunciar por Baudemagus, o mago de Meleagrant.
— Sei de tudo isso. E daí?
— Morgana e seu filho Mordred: para onde foram, segundo o senhor, ao deixar o cemitério futuro? Vejo somente uma resposta: eles acompanharam Meleagrant, portanto foram para Gorre. Contudo, diga-me, o senhor não os viu?
— Não.
— Mas eles estavam lá, estou convencido disso. Mas, estando lá, por que Morgana não interveio, por que não usou de seus poderes para ajudar seu aliado, o Cavaleiro Negro? Por que, mais estranho ainda, ela não se apresentou?
— Explique-me, tenho a impressão de que você tem uma idéia.
— Uma simples ideiazinha, Senhor. Muitas coisas me escapam, provavelmente. Mas creio, em todo caso, que Morgana zombava de Meleagrant e de seus desentendimentos com o senhor. Ela perseguia um outro objetivo. Qual? Não sei. O que sei — que qualquer um sabe —, em compensação, é que ela detesta seu irmão Arthur, e o que sinto, conseqüentemente, é que é ele que ela contava atingir através do senhor e da rainha Guinevere.
Galehot passou um indicador preocupado sobre os lábios.
— Há no meu raciocínio, contudo, um detalhe que parece contradizer isso...
— Qual?
— É que, se me permite usar de franqueza, um amor compartilhado entre a rainha e o senhor necessariamente estaria a favor dos interesses de Morgana.
— Não diga bobagens!
— Perdoe-me, Senhor, mas é a verdade. Se o senhor tivesse tomado a rainha do rei, teria lhe tirado também uma parte de sua força e de sua autoridade.
— Sim — murmurou Lancelot, de cabeça baixa. — Apesar de tudo, sei que você tem razão... Mas todas as especulações não servem para nada. A verdade é que a rainha não me amou. Bem pior: ela me odeia! E quer saber de uma coisa? Morgana provavelmente raciocinou como você. Seu plano fracassou por causa desse ódio da rainha. Por melhor feiticeira que ela seja, não teria podido insuflar a menor simpatia por mim no coração de Guinevere.
— É possível, Senhor. Assim como o contrário. Mas, pessoalmente, creio que Morgana é bem mais sábia em matéria de ódio do que de amor. Se ela inspirou um sentimento na rainha, só pode ser de ódio. Tão brutal. E tão absurdo.
— Verdade? — exclamou Lancelot, de repente cheio de esperança. — Acredita mesmo?
Agarrou Galehot pelos ombros e sacudiu-o alegremente, mas depois, bem depressa, uma sombra passou pelo seu rosto.
— Não... Você não acredita nisso. Está dizendo por amizade por mim... De que serviria a Morgana o fato de a rainha me detestar?
— Para vencê-lo, Senhor. Pelas armas, o senhor é invencível. Os encantamentos? O senhor os quebra e o poder da Dama Vivian o protege. Ela só poderia atingi-lo no mais profundo de si mesmo.
— O que foi que fiz a ela? Por que ela me quer mal? Eu ignorava sua existência antes de encontrá-la!
— Mas parece que ela conhecia a sua, Senhor, e que quis se livrar dela.
Lancelot apoiou-se de costas na abertura da janela. Com os braços cruzados, o queixo no punho, refletiu.
— Admitamos que você não esteja enganado... Como posso lutar contra Morgana, obrigá-la a arrancar do coração de Guinevere o ódio que ela semeou?
— Volte para casa, Senhor. Volte para o Lago. —Você só tem a fuga a me propor?
— Não se trata exatamente de fugir! Pelo contrário, o senhor vai se bater. Com a ajuda da única pessoa, além de Merlin, capaz de desfazer os poderes de Morgana.
Lancelot pulou em cima de Galehot.
— Vivian! — gritou.
Apertou o varlete nos braços e quase o sufocou de gratidão.
A PRISÃO DE AR
Nos dias que se seguiram, Lancelot refez em sentido contrário a viagem que havia realizado à época de São João. Mas nenhuma escolta esplêndida de varletes, escudeiros e sargentos de cota branca o acompanhava. Ia sozinho, coberto por um manto de tecido sujo de semanas de errância, apertado em uma loriga marcada com os cem traços de golpes de espada e lança que o haviam ferido durante os combates que se tinha infligido como penitência. Fez uma primeira parada no castelo de Lawenor, onde lhe pareceu estranho não lançar nenhum desafio, mas apenas solicitar humildemente a hospitalidade do barão do local, e finalmente dormir sem temer ser assassinado durante o sono. No dia seguinte, embarcava para atravessar o mar.
Arrumava com grande cuidado as montarias que trocava a cada manhã. A viagem durou apenas seis dias. Na madrugada do sétimo, avistou o Lago.
A neve, lá também, recobria a floresta do Bosque de Val e as colinas das vizinhanças. Uma fina camada de gelo cintilava na superfície do lago. Lancelot empurrou seu rocim na água O cavalo, assustado, resistiu. O cavaleiro desceu e, puxando-o pela rédea, forçou-o a entrar na ilusão mágica.
Seguiram um caminho entre prados e bosques que o inverno jamais tocaria. O ar ressoava com o canto dos passarinhos que tinham se refugiado aos milhares naquele abrigo sempre verdejante e tranqüilo. Lembranças da infância afluíram ao coração de Lancelot — daquele período encantado de sua vida quando só precisava correr atrás do cervo, passear perto do rio, sonhar com um futuro de feitos e proezas. Compreendeu que Galehot lhe dera um bom conselho, e que fizera bem em escutá-lo.
A primeira pessoa que viu ao se aproximar do castelo do Lago, ele reconheceu na mesma hora pela maneira particular de andar com as costas curvadas, as mãos na altura dos rins, sacudindo a cabeça como se debatesse com pensamentos adversos.
— Mestre Caradoc! — chamou.
O preceptor parou onde estava, reconheceu-o com estupor, depois soltou um riso inesperado.
— Acriança! Acriança! Você voltou!
Abriu os braços como se quisesse abraçá-lo, mudou de idéia no último instante e mais ou menos adotou sua fisionomia familiar: sobrancelhas franzidas, lábios severos.
— E você chega assim? Sem avisar? Quando todo mundo o imaginava morto e o chora há meses!
Lancelot pousou a mão no ombro dele.
— Mestre, estou vivo, como o senhor está vendo. Mas tem razão: até hoje eu estava morto. Morto para mim mesmo.
— Resolveu filosofar, agora? — retorquiu Caradoc. — Não combina com você. É o mesmo que uma armadura em mim.
Empurrou seu antigo aluno na direção da entrada do castelo.
— Em vez de ficar aí perorando, melhor correr para ver a Dama Vivian. Vá! Corra!
E Lancelot obedeceu: correu. Atravessou a sala, saltou as escadas, correu através dos corredores, seguido pelas exclamações de alegria e de boas-vindas do pessoal de Vivian. Deu um beijo de passagem na gorda bochecha de maçã madura de sua babá, saudou com a mão a criada Saraide, tocou amistosamente as costas ou a nuca dos varletes junto dos quais crescera. Chegou finalmente ao quarto de Vivian.
— Minha mãe! — gritou, atirando-se à sua cabeceira.
Ela estava deitada, imóvel e lívida, sobre o leito. Grandes olheiras roxas sublinhavam seus olhos cinzentos e febris. Ela o olhou sem dizer nada, sem que um traço de seu rosto se mexesse. Uma lágrima saiu-lhe dos olhos.
A gota escorreu sobre a face e Vivian segurou Lancelot contra seu corpo.
— Não me chame mais assim. Você agora sabe quem é sua verdadeira mãe.
— Esse jovem Galehot é um rapaz inteligente — ela lhe disse, quando ele contou suas aventuras desde que haviam se separado em Camelot.
Na verdade, Vivian freqüentemente soubera antes dele de fatos de seu relato. Ela já conhecia muitas coisas, que tinham se propagado até o Lago. Enquanto Lancelot vagueava pelas estradas da Escócia e da Irlanda, sua reputação se espalhava por toda a Inglaterra e a Gália*. Vivian soubera de sua vitória sobre Meleagrant, da libertação de Guinevere, inúmeros detalhes anteriores; como também de sua ausência de Camelot todo o verão, quando se festejava a paz reencontrada, e dos rumores, cada vez mais seguros, anunciando sua morte. Supunham-no afogado, decapitado, estripado, caído na poeira, transformado em fonte de água quente: só a variedade e a incoerência dessas mortes tinham permitido a Vivian manter a esperança de revê-lo um dia.
— A senhora também acredita que foi Morgana quem tramou tudo?
— Tenho essa impressão.
— Mas por quê? — exclamou Lancelot. — Não sou nada para ela, não poderia lhe fazer nenhum mal!
— Você não sabe tudo a seu próprio respeito.
— O que eu deveria saber, afinal? — enfureceu-se ele. — Ficam todos, desde que cheguei a Camelot, me falando por enigmas!
Vivian hesitou.
— É difícil — disse ela.
— O que é difícil?
Ela pareceu tomar uma resolução.
— Desde que você nasceu, eu o eduquei para que concluísse uma busca a que um único homem na Terra estaria destinado. Uma das condições, belo filho de rei, era que você crescesse afastado do mundo, a fim de jamais ouvir falar dessa busca, de sua natureza e de seu objeto.
— É um absurdo! Como eu poderia encontrar o que não estou procurando, que não seria sequer capaz de reconhecer caso visse?
— Este é justamente o sentido da busca, Lancelot. É a seu coração, seu coração puro, que esse cavaleiro de Deus deve confiar seu destino. Somente seu coração lhe dirá que a busca foi completada, que encontrou o que buscava. Os que cruzaram com você no caminho, se lhe falaram de maneira obscura, que lhe pareceu misteriosa e talvez despropositada, é porque acreditaram reconhecer em você esse Eleito, e não puderam lhe dizer mais nada para não esvaziar o sentido da busca, e, por isso mesmo, desviá-lo do caminho para sempre. Lancelot balançou a cabeça,
— Em suma, essa discussão é inútil? A senhora não vai esclarecer mais nada a respeito do que sou? Mas, no fundo, tem tanta certeza de que sou esse que chama de... o Eleito?
Vivian fez um silêncio pensativo.
— Não, Lancelot, não tenho assim tanta certeza... Entenda, quando você estava fazendo seu relato ainda agora, acreditei ver chegar o instante em que me contaria que fez as Duas Perguntas que lhe teriam entregue o objeto da Busca. Pois a ocasião lhe foi dada. Mas você não a aproveitou. Seu coração nada lhe soprou.
— Quando foi isso, Senhora? Diga-me.
— Não tenho o direito de dizer. Uma única pessoa, se ela achar necessário, pode assumir essa responsabilidade.
— Quem?
— Aquele que pronunciou a profecia.
Lancelot nunca tinha descido aos porões do castelo do Lago. Pelo menos, não assim tão fundo. A um sinal e uma palavra de Vivian, uma parede abrira-se diante deles,e ela o precedera em intermináveis escadarias verticais, estranhamente iluminadas como em pleno dia. Estamos descendo ao inferno, ele poderia ter pensado, se não estivessem sendo banhados por aquela luz ao mesmo tempo suave e clara, primaveril.
Finalmente, quando ele acreditava nunca mais chegar ao fim daquela lenta queda no centro do mundo, desembocaram numa clareira. Lancelot levantou a cabeça: em vez de uma abóbada, viu um céu azul sem nuvens descendo em um vasto hemisfério por trás de carvalhos que disfarçavam um horizonte impossível. No centro da clareira erguia-se uma cabana de madeira, não longe da qual corria a água prateada de uma nascente. Um velho em calções e camisa estava enchendo um cântaro.
Vivian parou a uns vinte passos dele. Lancelot, inteiramente absorvido pelo quadro silvestre cuja existência era incompreensível tão fundo debaixo da terra, prosseguiu seu caminho, com o nariz no ar. Bateu violentamente contra uma parede. Mas não havia parede. O velho, com o cântaro na mão, começou a rir, enquanto Lancelot, esfregando com uma mão o galo na testa, com a outra experimentava a solidez da parede invisível.
— Você devia avisar suas visitas, Vivian — falou a voz brincalhona do velho.
—Vejo com prazer que está de bom humor, Merlin — ela respondeu, no mesmo tom. — Está brincando de quê, hoje? De velho eremita?
Merlin fingiu tirar a poeira das manchas de sua camisa.
— Se tivesse sabido que vinha me ver, teria escolhido um outro papel. Mas, desde que você me trancou nesta prisão de ar, cada instante que chega é uma surpresa para mim. É muito repousante, muito refrescante. De tanto prever o futuro, acabei perdendo pouco a pouco o gosto de viver. Ah... — ironizou — ... é que a vida de filho do diabo não é vida!
— Isso não impede que você saiba muito bem por que viemos ver você.
O velho lhe sorriu, suspendeu o cântaro para mostrá-lo e se virou para a cabana.
— Estou preparando uma infusão de menta. Planta agradável, picante como você, Vivian. Vou ferver esta água.
Desapareceu dentro da cabana.
— Quem é esse Merlin? — perguntou Lancelot. — E o que ele faz aqui?
— É um velho amigo — disse ela simplesmente.
Um moço louro, bem-formado, elegantemente vestido com uma cota esmeralda e calções imaculados, saiu da cabana.
— E esse aí? — espantou-se Lancelot. — Quem é?
— Sempre Merlin. Ele escolhia freqüentemente essa aparência na época em que éramos... muito próximos.
Com voz mais alta, ela se dirigiu a Merlin:
— Está tentando me seduzir?
— Apenas lembrá-la de um tempo feliz.
— E foi, de fato?
— Desde que você me isolou do mundo e eu não posso mais ler o futuro no coração dos homens — disse ele com uma voz fúnebre —, refugiei-me no passado, Vivian. Rumino uma saudade de você...
— Muito emocionante. Ele desatou a rir de repente.
— Não é?
— Humorista.
Contente consigo mesmo, sentou-se despreocupadamente na beira da fonte. Divertia-se passando os dedos na água corrente.
— Pode falar, Vivian.
— Não, nós é que queremos ouvir você.
— Verdade? Nenhuma conversinha preliminar? Gosto tanto do som da sua voz...
— Queremos ouvir você, Merlin — repetiu pacientemente Vivian.
Ele secou os dedos na cota, tentou diversas posições sobre o declive gramado, decidiu se estender de lado, o cotovelo encostado no chão, a face na mão.
— Era uma vez — começou, em falso tom sonhador — o filho de um rei morto de desgosto recolhido por uma casta donzela que vivia no fundo de um lago de ilusão. Ela o educou como um perfeito cavaleiro. Um homem, tido como o mais sábio e o mais sagaz do mundo, desmentindo essa lisonjeira reputação, cometeu o erro de amar a casta donzela, e de lhe revelar, louco por obter seus favores, alguns de seus poderes e de lhe confiar sua mais secreta profecia. E a profecia dizia que essa criança seria O Eleito ao qual seria concedida a graça de fazer as Duas Perguntas que o fariam receber o Santo Graal.
Merlin se sentou com as pernas cruzadas e se espreguiçou, soltando um suspiro sonoro.
— Veja você, jovem Lancelot, o Santo Graal é um prato sagrado. Foi nele que Cristo fez sua última refeição, durante a Ceia, na companhia dos apóstolos. Foi nele que Ele realizou pela última vez o Milagre da Eucaristia: o pão se tornou seu corpo, ou seja, a própria substância de Deus. Como você sabe, um dos apóstolos, Judas, traiu-o e Cristo morreu na cruz para que se realizasse o Milagre da Ressurreição.
Ele se calou, olhando um chapim pousar na beira da fonte e mergulhar o bico.
— O Graal onde se consumou o Milagre foi preservado pelos discípulos de Cristo, escondido, preciosamente conservado. Um dia, José de Arimatéia, que o guardava, desembarcou com alguns homens nas margens da Inglaterra. Escondeu o Graal em um local que só ele conhecia. Mais tarde, fundou a Távola Redonda, em torno da qual se sentavam o rei e seus melhores cavaleiros. Ele exigiu que um lugar ficasse vago, o Assento Arriscado, onde só poderia se sentar aquele que tivesse descoberto o Graal e o depositado no centro dessa Távola Redonda. Muitos homens quiseram se apoderar pela força do Assento Arriscado: foram imediatamente devorados pelo inferno. Só o descobridor do Graal, o Eleito, obterá essa graça divina. Então, dizem, mil anos de felicidade reinarão na Terra.
O chapim voou. Seguindo-o com o olhar, Merlin se pôs de pé.
— Há quatro séculos em busca do Graal, os cavaleiros aprenderam, freqüentemente por experiência própria, que têm de enfrentar diversas provas ao longo do caminho. Elas são numerosas, não vou listá-las para você, até porque não são sempre as mesmas de acordo com os cavaleiros. Falemos, por exemplo, do dia em que, ainda criança, você deu sem hesitar seu belo rocim a um jovem varlete que ia assistir ao processo de um assassino, depois um magnífico e gordo cabrito montes, que você encurralara, a um velho que ia casar a filha.
— Nada de mais — respondeu Lancelot.
— Que outra criança além de você teria feito isso? Falemos em seguida do Leito Arriscado. Ele causou mais mortes do que um século de justa. Você venceu essa prova, não?
— Sim — disse Lancelot. — Não sei ainda como escapei da armadilha daquela lança.
— Porque você tinha que escapar. Da mesma maneira que quebrou os encantamentos do cemitério dos mortos futuros. Por que acha que a tumba onde seu nome estava inscrito foi a única a não desaparecer com os sortilégios de Morgana? Porque era a sua, e Morgana não tinha nenhum poder sobre ela. Durante todo o tempo, aquela tumba esperou que alguém levantasse sua pedra. Se você não fosse o Eleito - ou, melhor dizendo, "o Eventual" — um outro nome apareceria a)i
— O que você entende por Eventual", Merlin? — interveio Vivian. — Você não tinha me falado disso...
Ele sorriu ingenuamente.
— Ah, não?... Considerando que não me esqueci de lhe confiar outros detalhes... Mas, retomemos esta breve... elucidação pela ordem. Quarta, prova: a Ponte da Espada. Foi lá — bravo! — que você provou a maior coragem. E foi pena... Porque era inútil.
— Por quê, Merlin?
— As provas são em um total de três. Como a Santa Trindade de Deus.
Ele contou nos dedos:
— A doação do rocim e do cabrito, dá um. O Leito Arriscado, são dois. E o cemitério futuro: três. Meu pobre jovem amigo, por que se aventurar naquela Ponte da Espada?
— Eu precisava libertar a rainha!
— Hummm... A rainha, a rainha... A bela Guinevere... Quando eu a apresentei a Arthur, ela era a mulher mais encantadora da Inglaterra. Ela mudou muito?
Antes que Lancelot lhe respondesse, ele prosseguiu:
— Não, certamente que não. A se acreditar no amor que você sente por ela... Mas voltemos ao nosso assunto, quero dizer: à Busca do Graal. Você se hospedou, creio, em Corbenic, no castelo do rei Pellès?
— Prefiro não me lembrar disso.
— Você tem suas razões. Ao risco de agravar seus remorsos, vou acrescentar mais uma. Quando Pellès o convidou para jantar com ele, seus varletes atravessaram a sala. O primeiro carregava uma lança. Estou enganado?
— Ela sangrava, eu me lembro... Era estranho.
— Pelo menos você não estava completamente cego. Em seguida, um outro varlete, precedido de dois outros carregando candelabros, passou diante de você. Você o viu também? O que ele carregava?
— Um... um prato. Um prato de ouro enfeitado de pedras preciosas...
— Um prato. E o que mais?
— Um... Um graal! Pelo sangue de Cristo!
— A blasfêmia vem bem a propósito — sorriu Merlin. — Sim, Lancelot: seus olhos viram passar a Lança que sangra com o sangue de Cristo ferido por um romano sobre a cruz, e o Santo Graal. E seus olhos permaneceram cegos. E você não fez as Duas Perguntas, no entanto tão simples, que Pellès esperava de você. Em que diabo estava pensando, bobinho?
— Eu pensava... Eu sonhava com Guinevere.
— Chegamos lá! O amor! O Amor... Eu não o culpo; Vivian lhe dirá como sucumbi a esse mal que nos torna surdos, cegos e bobos.
— Não seja amargo — disse Vivian. — E explique-me por quê, quando me confiou a profecia, você me garantiu que o Eleito amaria e seria amado pela rainha.
— Pequena precaução. Pequena prova suplementar cuja invenção é absolutamente pessoal...
— Então você me enganou?
— Nesse jogo, Vivian, foi você que ganhou a partida. Não me queira mal se um resto de lucidez me inspirou essa artimanha.
— Por causa de você e de sua... de sua falta de confiança — indignou-se ela — forcei Lancelot a se pôr a serviço de Guinevere! Por causa de você ele se desviou da Busca! Por causa de você o Eleito não obterá jamais o Santo Graal!
— Você me atribui poder demais, cara Vivian. Eu seria incapaz de impedir o Eleito de completar sua Busca. O Eleito, você compreende, não poderá se dizer "eleito de Deus" senão quando o Graal estiver em suas mãos. Antes disso é apenas um "Eventual". Nenhum "Eventual" antes de Lancelot levou tão longe seu percurso, nenhum chegou a ver com os próprios olhos a Lança e o Graal. Por um fio ele não voltou a Camelot e se sentou no Assento Arriscado. Um fio que se chama amor.
— Velho louco miserável! Ele lhe deu um sorriso triste.
—Tem razão. Paremos com esta comédia.
E, diante dos olhos de Lancelot e Vivian, o belo jovem elegante se metamorfoseou de novo no ancião de calções e camisa sujos.
— Cavaleiro — disse, sentando-se penosamente na beira da fonte —, talvez você ache neste momento que eu sou seu inimigo, mas não se engane. Simplesmente sugeri a Vivian um caminho que ela lhe mostrou e no qual você entrou por sua própria vontade, eu diria mesmo com uma notável audácia. Não pode mais voltar atrás. Conseqüentemente, como observaria um futuro marechal chamado La Palice, eu o aconselho a seguir adiante. Você ama Guinevere? Reconquiste-a.
— Impossível.
— Por quê?
— Eu nunca a conquistei. Ela me odeia.
— Ah, você é tão estúpido quanto eu... Há tanto ódio por você no coração de Guinevere quanto amor sincero por minha velha carcaça no coração de Vivian.
— Como pode saber?
— Vou lhe contar uma história. Vai ser a última, já falei demais. É o seguinte: há muito tempo atrás eu era o conselheiro do rei Uther-Pendragon. Era um homem com desejos de uma violência extrema, que eu nem sempre sabia disciplinar. Um dia ele viu a mulher do duque da Cornualha, Igraine. Ela era muito bonita. Ele a desejou imediatamente. Mas ela era fiel. Usei então a minha magia para dar a Uther a aparência do marido. Na noite seguinte, ela o amou, acreditando que ele era o duque da Cornualha, seu esposo. Daquela noite nasceu a criança que se tornaria Arthur. Mas Morgana, a filha do duque e de Igraine, surpreendera-os juntos. Ela viera ao mundo com poderes que dissipavam meus encantamentos mais simples: viu que o homem que dormia com sua mãe era Uther. Desenvolveu um ódio feroz, que se estendeu ao meio-irmão. Mais tarde, quando ele se tornou um rapaz e começou seu reinado, ela o seduziu e teve um filho dele: Mordred. Era o primeiro ato de sua vingança.
"Morgana persegue um duplo objetivo: colocar Mordred no trono de Arthur e permitir-lhe tomar o Graal. Esse menino, evidentemente, nada tem do 'coração puro' do Eleito que a profecia anuncia. Pouco importa a Morgana. Para ela não faz diferença que reinem mil anos de felicidade no mundo. Seu elemento é o Mal. O Mal que se abaterá sobre o mundo caso um outro que não o Eleito subtraia o Graal.
"O aparecimento do jovem cavaleiro sem nome, no dia de São João, apavorou-a. Ela conhece cada termo da profecia. Ela lhe infligiu a prova do Leito Arriscado, que você venceu com sucesso. Ela soube, desde então, que devia se livrar de você. Mas ela ignora onde está o Graal e também não conseguiu saber que ele tinha sido apresentado a você no castelo de Pellès, e que você não tinha feito as Duas Perguntas. Você não era mais o Eleito, não podia mais atrapalhar os projetos dela, mas ela ignorava isso. Quis atingi-lo no seu único ponto fraco: o amor por Guinevere.
"Pois a rainha amou você, meu menino. Mais do que tudo no mundo. Mais do que Arthur. Mais do que sua honra e sua vida. Porém, mais forte do que o amor é o ciúme. Morgana sabe disso, pois é especialista em maus sentimentos. Ela lhe mostrou a noite que você passou com Ellan, a filha do Rei Pescador. Você conhece o resultado..."
— Ellan! — rosnou Lancelot. — Queria jamais ter vivido aquela noite...
— Você está errado, meu menino! Aquela noite com ela era necessária.
— Para quê?
Merlin agitou os dedos com abatimento.
— São coisas que não lhe dizem mais respeito... É isso. Já falei bastante. Está tudo dito.
Ergueu-se e partiu a passos lentos em direção à sua cabana.
— Adeus, meu menino. E tome cuidado com Morgana.
Lancelot não achou nada para responder. Seu coração estava agitado demais com aquelas palavras de Merlin, as únicas, talvez, que realmente o haviam tocado: "Guinevere amou você. Mais do que tudo no mundo." Ele tinha apenas uma pressa: apresentar-se diante da rainha, explicar-se com ela, dissipar o mal-entendido que os separava. Foi em direção à escada que levava para fora da prisão de ar.
Vivian hesitou em segui-lo. Quando Merlin abria a porta da cabana, ela o chamou:
— Merlin!
Ele se virou, sorrindo-lhe.
— Merlin, eu queria lhe dizer...
— Sim?
— Que eu de fato amei você. Ele balançou a cabeça.
— Quando? — perguntou.
— Algumas vezes...
Ele riu mansamente e entrou na cabana.
O VALE SEM VOLTA
Lancelot descansou uma noite no Lago. Vivian e ele tinham passado o dia juntos, sem falar muito, tentando simplesmente aproveitar aquelas horas subtraídas do destino de homem e de cavaleiro de Lancelot. Estavam passeando pelo campo, na beira do rio, quando Vivian lhe perguntara:
— Está zangado comigo?
— Por que razão estaria zangado com a senhora?
— Por tê-lo desviado da Busca.
— Minha busca é diferente, só isso. Não falemos mais disso.
À noite, eles jantaram na sala e depois Lancelot jogou uma partida de xadrez com Caradoc. Ele deixou o preceptor ganhar — ou talvez já estivesse preocupado demais em encontrar uma maneira de obter uma entrevista com Guinevere e de explicar a ela o mal-entendido, para se interessar pela partida. Como a rainha — dizia para si sem cessar — podia sentir ciúme, se ele a enganara com ela mesma?
Na manhã do oitavo dia desde sua partida de Lawenor, ele foi embora antes que Vivian acordasse, para evitar as despedidas. Cavalgava um rocim, pensando num outro bem distante. Cinco dias lhe bastaram para chegar às fronteiras do reino de Logres, do outro lado do mar.
A neve derretera, dando lugar a uma paisagem de caminhos lamacentos, árvores desfolhadas, relva amarela e rara. A noite estava próxima. Lancelot não parou em Lawenor; decidiu prosseguir imediatamente sua viagem até Camelot.
No crepúsculo, ele atravessava uma planície quando foi dar em uma encruzilhada de dois caminhos. Ali, negros na penumbra, esperavam, imóveis, uma carroça, o animal e o condutor. O anão.
Ele parecia cochilar sobre seu banco, as rédeas frouxamente enroladas nos dedos. Quando Lancelot passou perto dele, acordou sobressaltado.
— Ora vejam, o donzel! — exclamou. — Está perdido, para ainda cavalgar numa hora destas?
— O que está fazendo aqui? É bem longe do local onde nos encontramos da primeira vez.
— Ora, a carroça é necessária em todos os lugares! Seria muito simples se os ladrões, os criminosos e os traidores cometessem seus crimes sempre no mesmo lugar! E você, cavaleiro, o que faz nestas paragens? Sempre à procura da dama bem-amada?
— Quem sabe? Mas nunca mais subirei na sua carroça, aconteça o que acontecer!
O anão soltou seu riso de matraca.
— O cavaleiro me divertiu bastante naquele dia! Não tenho com tanta freqüência assim a oportunidade de rir no meu emprego... Você deve amar sua dama mais do que a si mesmo para ter se humilhado daquela maneira!
— Mais do que a mim mesmo, você disse bem.
— De todo modo, espero que ela o acolha como você merece, dentro em pouco, quando chegar a Karahais.
Enquanto ele dizia isso, estendia os bracinhos na direção do oeste.
— Está enganado — replicou Lancelot, mostrando com o queixo a direção oposta. — Vou encontrá-la em Camelot.
— Como quiser, cavaleiro. Mas, se a sua dama é quem eu penso, a que eu vi no dia de São João com os bastardos ruivos e o Cavaleiro Negro, ela passou ainda agora com seu séquito a caminho de Karahais.
— Tem certeza? O que é Karahais? Fica longe?
— Você chegará lá de madrugada. É uma das residências de inverno do rei. Mais aconchegante do que as grandes salas geladas de Camelot.
Lancelot, olhando alternadamente a leste e a oeste, hesitava.
— Por que confiaria em você? — perguntou. Novo riso do anão.
— Não tenha medo! Eu o enganei, em São João? E lhe dou a informação de graça desta vez! Mas, se prefere ir a Camelot, é seu direito. Acompanhe-me, também vou para lá.
Fez as rédeas estalarem sobre o dorso do animal, que estremeceu em direção ao leste. Lancelot hesitou ainda, fez o rocim seguir atrás da carroça, lançou um olhar por cima do ombro, não soube o que fazer e perguntou:
— Tem certeza do que está dizendo?
— Tão certo quanto você está louco de amor, cavaleiro! Então, Lancelot tomou a decisão. Partiu em direção ao oeste. O riso do anão foi se enfraquecendo na noite fechada.
Forçando o passo, Lancelot esperava alcançar Guinevere e sua escolta bem antes da aurora. Curvado sobre o pescoço do rocim, parecia formar com ele um mesmo corpo, e tinha a impressão embriagante de que era ele que galopava, era ele que entrava pela noite como uma flecha no encalço de seu amor.
Não viu a fenda no solo. Ela barrava o caminho com uma água lamacenta, lodosa e profunda. O cavalo tropeçou. Desabou em plena corrida, fazendo o cavaleiro rolar sobre o talude. Quando, meio atordoado, Lancelot se levantou, compreendeu na mesma hora que não tinha mais montaria. Ela jazia atravessada na estrada, os olhos brancos, o pescoço quebrado.
O cavaleiro recuperou o escudo preso ao arção* da sela, passou-o pelo pescoço e retomou o caminho a pé.
Um sol pálido e frio despertou Lancelot. Após algumas horas de caminhada, o esgotamento o havia forçado a uma parada. Tinha confeccionado um colchão de fetos sob as árvores e, enrolado no manto e no capuz, terminara por adormecer.
Ergueu-se, esfregando o rosto, e teve a impressão de se lembrar de um sonho desagradável — mas as imagens lhe escaparam. Deixou o abrigo das árvores para retomar a estrada.
Na margem, avistou um pequeno vale entre duas colinas baixas cobertas de pinheiros. A entrada do vale era formada por um muro de pedras brancas. Uma pequena porta estava aberta no final do caminho.
Ao se aproximar, Lancelot aspirou perfumes que o surpreenderam: ali não era o lugar deles, em pleno inverno — perfumes de flores em plena maturidade, intensos e persistentes como à época de São João. Ele estacou diante da abertura da porta, novamente surpreso: uma baforada de ar estivai aqueceu-lhe o rosto e as mãos. Deu mais um passo e entrou.
No interior do muro de pedras brancas um grande jardim descia sobre a encosta pouco íngreme do vale. Rosas, centáureas, prímulas, pervincas formavam canteiros coloridos, por entre os quais serpenteavam córregos naturais. Fazia tanto calor que Lancelot se desfez de seu capuz e de seu manto e os depositou sobre um dos bancos de mármore cor-de-rosa dispostos ao acaso sob os roseirais, as glicínias, os ramos de videiras virgens. Concluiu que o anão não havia mentido: o local, com efeito, era "aconchegante". O rei e Guinevere deviam passar ali invernos mais amenos do que as primaveras de Camelot.
Um atalho de saibro azul-pálido, ladeado de miosótis e junquilhos, serpenteava em direção a uma mata de altos carvalhos centenários. Lancelot disse para si mesmo que o solar de Karahais provavelmente ficava atrás daquelas árvores.
Não foi mais longe do que a fronteira dos primeiros carvalhos. Ali, em uma minúscula clareira sombreada,uma fonte jorrava dentro de um tanque do mesmo mármore rosa dos bancos. Sobre o parapeito, uma mulher jovem estava sentada como amazona, juntando flores em um buquê.
Claro, era Guinevere. Desde que entrara no jardim, Lancelot não duvidara um único instante que finalmente a reveria. Aquele paraíso sobre a Terra só podia abrigar o lazer e o repouso da mulher que ele amava. Sentiu-se grato ao anão e à Providência que o havia colocado em seu caminho por haver organizado seu reencontro — e as confissões que iriam se seguir — em lugar assim tão encantador, tão alegre, tão longe do mundo.
Ela não o tinha visto. Continuava, sonhadoramente, a formar seu buquê. Lancelot se aproximou sem barulho. Ela não levantou a cabeça. Parecia cantarolar, com os lábios entreabertos, mas tão baixo que ele não ouvia nada. Sentou-se atrás dela, bem perto, sobre o parapeito.
Sua longa cabeleira de ouro estava jogada como uma echarpe sobre os ombros, descobrindo a nuca branca e delicada. Ele resistiu à vontade de tocá-la. Era preciso não assustá-la. Primeiro devia tranqüilizá-la, depois encontrar as palavras que tocariam seu coração, desenraizando o rancor ciumento que Morgana havia semeado nele.
— Guinevere...
Praticamente só cochichara o nome dela, de tanto que temia sua primeira reação. Ela não teve um sobressalto,nem um gesto, a não ser, sempre o mesmo, o de escolher uma flor e lhe dar lugar no buquê. Ele repetiu, mais alto:
— Guinevere.
Dessa vez, ela virou ligeiramente os ombros. Ele sorriu, procurando pelas palavras que começariam seu pleito. Mas ela não olhou para ele. Limpou com a mão a frente do vestido, levantou os olhos para a copa das árvores e sorriu como quem sorri para si mesma ou para um sonho. Ele baixou timidamente a cabeça.
— Eu sei, Guinevere, que a senhora tinha resolvido nunca mais falar comigo, nunca mais me ver. Respeitei durante muito tempo seu voto, mesmo sem conhecer o motivo...
Ela permaneceu impassível, como se ele não existisse. Pôs-se de pé e caminhou lentamente em direção ao jardim. Desamparado, Lancelot seguiu-a, a um passo de distância.
— Por que está fingindo indiferença? Deixe-me ao menos explicar. Conceda-me esta graça.
Sua cabeleira brilhou quando Guinevere deixou a sombra dos carvalhos. Ela prosseguiu despreocupadamente o passeio pelo atalho de saibro azul.
— Quando, depois do julgamento contra Meleagrant, a senhora me perguntou — prosseguiu Lancelot —, eu lhe afirmei, é verdade, que meu coração estava tomado. Por que não compreendeu que era à senhora que ele pertencia? Como não sentiu que seu desdém, sua crueldade comigo me impediam, a não ser por meias palavras, de lhe confessar uma verdade muito doce, mas mesmo assim terrível? A senhora foi enganada, e eu também. Escute-me...
Mas ela não escutava nada. Aproximou-se de um banco, sob um caramanchão de glicínias, e largou ali seu buquê. Depois, olhou em volta os canteiros coloridos. Seu rosto estava imerso em uma serenidade que nada parecia poder atingir.
— Pare com esse jogo, Senhora, eu lhe peço — suplicou Lancelot. — Volte seus olhos para mim e ouça o que acabo de lhe dizer.
Nem essas palavras nem o tom de sua voz pareceram tocá-la. Ela passou a mão nos cabelos, juntando-os sobre o ombro: eles esconderam a nuca e caíram até as costas. O desespero e a humilhação invadiram Lancelot. Sentiu subir em si uma raiva impotente e deu dois passos rápidos para se colocar resolutamente diante de Guinevere.
— Pela última vez, Senhora, digne-se me escutar!
Estavam face a face. Olhou-a nos olhos, não procurando ver neles sequer amizade ou compaixão, mas somente interesse. Não viu nada. Nada além de uma serena transparência, como se ele fosse desprovido de qualquer realidade, de qualquer substância. O olhar da rainha atravessava-o sem enxergá-lo. Ele cerrou os punhos e pronunciou a meia voz as únicas palavras que sempre quisera dizer a ela, as únicas que tinham um sentido para ele agora:
— Guinevere, eu a amo...
Então ela piscou os olhos duas vezes. Um sorriso se desenhou nos seus lábios. Lancelot, tremendo de emoção, abriu os braços — para acolhê-la. Para apertá-la contra si. Não tinha mais nada para falar, para se justificar, explicar. Bastava se tocarem e se reconhecerem.
Seus olhos não deixaram mais os dela. Ela deu um passo na direção dele. Com a alegria de um prisioneiro que é libertado e que reencontra a luz, ele fechou os braços em volta dela.
Mas suas mãos nada encontraram. Nem tecido nem carne. Sempre sorridente, o rosto da rainha se aproximou do dele. E o atravessou. Ele viu horrorizado o corpo de Guinevere, intangível fantasma, penetrar seu próprio corpo e desaparecer. Soltou um grito assustador.
Um riso maldoso lhe respondeu.
Ele deu meia-volta. Todos os seus membros tremiam. Viu Guinevere, de costas, recomeçando seu passeio por entre as flores. E, mais além, sentada em um banco do outro lado da alameda de saibro azul, Morgana.
— Curiosa experiência, não é, cavaleiro? No espaço de um instante eu lhe ofereci o fim supremo ao qual aspiram as paixões: a fusão do amor! Mas parece que isso não lhe agradou, ingrato...
— O que você fez com a rainha?
— Com Guinevere? Nada. Neste exato momento, ela se encontra em Camelot, no lugar que é o dela: no leito do rei, meu irmão. O que você vê aqui não é senão uma ilusão. Mas, no fundo, Lancelot, será que o amor é mais do que uma ilusão, mais do que eflúvios de um espírito doente e estúpido, algo além da imagem de uma aborrecida perfeição que não é, como o Diabo gosta, deste mundo?
Lancelot puxou a espada e avançou para Morgana. Ela elevou a mão sem se emocionar.
— Refreie seus impulsos, cavaleiro. Não se resolve tudo com estocadas e cortes.
Com um último salto, ele estava diante dela. Golpeou-a. Sua lâmina atravessou a imagem de Morgana como a imagem de Guinevere atravessara a sua própria.
— Eu o tinha prevenido... Reembainhe seu armamento. E escute, não pretendo me demorar aqui: todas essas cores, esses perfumes, o exagero desses canteiros e flores, tudo isto me enoja.
Ele recolocou docilmente a espada na bainha. Sentia-se subitamente esvaziado de toda força, de todo desejo, de toda revolta.
— Você é um rapaz muito agitado, Lancelot. Por isso resolvi oferecer-lhe repouso. Um repouso muito, muito longo. Este jardim será a partir de agora sua prisão. Poderá cultivar à vontade seu desolador amor pela rainha.
Lancelot não pôde deixar de virar a cabeça na direção do alto do vale. Olhou a falsa Guinevere se inclinar para colher junquilhos.
— Sim — disse Morgana. — Ela está aqui. Fique satisfeito, me agradeça: ela ficará neste jardim tanto tempo quanto você ficar encerrado nele. O que acha do favor que estou lhe fazendo? Guinevere não o deixará mais, não é magnífico? Oh, claro, haverá pequenos inconvenientes: não poderá tocá-la, e, se falar com ela, ela não responderá. Mas qual a importância disso, uma vez que a única verdadeira Guinevere reside em seu coração, como dizem os maus poetas...
Lancelot desviou o olhar da imagem de Guinevere e o pousou sobre Morgana.
— Vou matá-la.
— Que otimismo... Enquanto espera, bem-vindo ao Vale sem Volta!
E Morgana desapareceu.
Mais tarde, Lancelot procurou a porta por onde tinha entrado no jardim. Ela não existia mais. O próprio muro havia triplicado de altura. Na outra extremidade do vale, depois do bosque de carvalhos, o cavaleiro descobriu um pomar, fechado com um muro parecido. Ao longo do vale, os pinheiros cresciam tão cerrados sobre as duas encostas que nem mesmo uma criança poderia se esgueirar entre seus troncos. Lancelot se rendeu às evidências: a evasão era impossível.
Nos primeiros dias, evitou com cuidado se aproximar de Guinevere — de sua imagem imaterial. Compreendeu bem depressa que, da aurora ao crepúsculo, ela repetia perpetuamente os mesmos gestos, colhia as mesmas flores, se sentava sobre o mesmo banco e no mesmo lugar sobre o parapeito da fonte, sorria e arrumava os cabelos sempre nos mesmos momentos. Ele tratava sempre de estar no lugar mais afastado de seus deslocamentos. Encontrava refúgio freqüentemente no pomar, cujos frutos o alimentavam. A falsa Guinevere só se aventurava ali uma única vez; colhia sempre a mesma maçã vermelha, dava uma dentada e mastigava, depois a esquecia sobre um banco.
Depois de algum tempo, o abatimento deu lugar à raiva. Lancelot começou a berrar ameaças e insultos a Morgana, desafiou-a a aparecer, exigiu que enviasse um de seus cavaleiros para enfrentá-lo em julgamento. Seus gritos não serviram para nada. Morgana não voltou. Ele se cansou.
Passou alguns dias prostrado em um canto recuado do pomar. Dormitava, não se alimentava mais, não pensava em mais nada, a não ser em morrer. Mas nem seu desespero produzia efeito sobre os encantamentos do jardim. Lancelot se deu conta bem cedo de que nunca tinha fome, que podia jejuar sem emagrecer nem enfraquecer. Estava condenado a viver — pelo menos enquanto fosse esse o prazer de Morgana.
Então, uma noite, veio-lhe uma idéia.
— Espere, Senhora, vou ajudá-la a colher esta flor. Lancelot se inclinou sobre o canteiro de pervincas e,
tomando cuidado para não roçar os dedos de Guinevere, cortou o caule ao mesmo tempo que ela.
— Pegue, Senhora. O azul vai sobressair no meio destes junquilhos como o ouro do seu cabelo realça o brilho de seus olhos.
Ela colocou a flor dentro do buquê. Sorriu, como para lhe agradecer o cumprimento. Recomeçou o passeio pela alameda. Lancelot acompanhou-a, com as mãos cruzadas às costas, parando quando ela parava, sentando-se do seu lado quando ela descansava em um banco. Ele conversava calmamente, falava do Lago e de Vivian, de seus encontros no caminho de Gorre, das altas terras da Escócia e da verde Irlanda. Algumas vezes, até brincava e tinha o prazer de a ver sorrir. Outras vezes, permanecia perto dela em silêncio, como sabem fazer dois seres cujos humores combinam tão bem que não há a mínima necessidade de falar.
Deixava-a pouco antes do crepúsculo, desejava-lhe boa-noite e voltava para o pomar. Ali, na noite que caía, preparava meticulosamente o desenrolar do dia seguinte.
Pois foi assim que ele escolhera lutar contra o suplício perpétuo que Morgana lhe havia infligido: recusando-se a ficar um espectador impotente.
Uma vez que acabara por conhecer de cor e salteado cada passo, cada movimento, cada sorriso, cada piscar de olhos da falsa Guinevere, pôde então fingir participar de seus passeios. Fundir-se, confundir-se no desenrolar de seus dias. Brincar ou cumprimentá-la uns poucos segundos apenas antes de ela sorrir — e poder acreditar que era para ele que ela sorria. Sentar-se um pouco antes dela em um banco e lhe propor ficar junto dela — ele terminava tendo a sensação de que ela respondia amavelmente a seu convite. Apontar-lhe esta ou aquela flor — e olhá-la se inclinar para colher a flor que ele mesmo escolhera. Morder a maçã que todos os dias ela esquecia no mesmo lugar. Se alguém entrasse naquele jardim e os visse juntos, teria ido embora sem ousar incomodá-los, convencido da harmonia extraordinária do casal. Jamais, teria declarado, se tinha visto no mundo tamanho entendimento, tamanha paz, um amor ao mesmo tempo tão intenso e tão reservado.
Os anos se passaram. Lancelot perdeu pouco a pouco o ar de adolescente. Sua beleza de homem só se tornou mais notável e mais de acordo com o inalterável brilho de sua companheira silenciosa e tão atenta.
A bem da verdade, algumas vezes, de noite, o cavaleiro chorava. E, no dia seguinte, não ia ao encontro de Guinevere. Obrigava-se a tomar coragem. Ainda teria de viver muitos e muitos dias naquele jardim. Até a libertação?
Christian de Montella
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