Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CAVALHEIRO DE DOMINGO / Irving Wallace
O CAVALHEIRO DE DOMINGO / Irving Wallace

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

“O maior, o melhor, ou o primeiro. . . ” as histórias que constituem este livro, perguntei a mim mesmo que título lhe daria. Imediatamente me veio à memória uma anedota que ouvi sobre o conhecido ator e homem de grande inteligência que foi John Barrymore. Um amigo seu morrera, após prolongada enfermidade, e Barrymore, embora contrariado, foi ao enterro. Ficou na entrada com outros velhotes amigos do morto, observando, de esguelha, as cerimônias no cemitério. Quando tudoLca terminou, e os amigos começaram a debandar, Barrymore notou que um velhote trêmulo permanecia junto à sepultura, olhando para ela fixamente. Barrymore aproximou-se, sorrateiro, inclinou-se e segredou-lhe: “Acho que nem vale a pena ir para casa!” Uma vez que o meu projetado livro representava, de certo modo, uma despedida da minha carreira de colaborador de revistas, um adeus amigável e saudoso a uma determinada época em que os escritores podiam tratar os seus temas sem sentirem a ameaça nuclear russo-americana suspensa sobre a cabeça, pensei em intitular meu livro Nem vale a pena ir para casa!, acrescentando-lhe o subtítulo: “Um último olhar sobre certas pessoas, lugares e coisas que havia no mundo antes do Dilúvio”. Ao começar a trabalhar nele, porém, logo descobri que esse título não servia. Uma vez que os casos que observara e investigara durante vinte anos eram, na sua maioria, não casos de outras épocas, mas sim do nosso tempo, tão vivos como eu, o tom de despedida e nostalgia não me pareceu próprio. Compreendi, felizmente, que o tom ideal devia ser menos grandioso, menos pessimista, mais pessoal — e chamei a este livro O Cavalheiro de Domingo. Segundo as leis do século XVII, na Inglaterra, um indivíduo que não pagasse suas dívidas corria o risco de ser preso e julgado. Se fosse condenado, podia ser preso em qualquer dia da semana, exceto num: o domingo, que era o Dia do Senhor. Em consequência disso, os caloteiros declarados costumavam viver escondidos durante os seis dias da semana, mas aos domingos apareciam em público como qualquer cavalheiro próspero. Podiam respirar o ar livre, misturarse nas ruas e nas cervejarias com os seus concidadãos, sem temer qualquer ameaça da parte do trono. Existiram muitos destes Cavalheiros de Domingo tal como eram conhecidos, e entre os mais famosos está Daniel Defoe, pioneiro do jornalismo e do panfleto, autor de Vida e aventuras estranhas e surpreendentes de Robinson Crusoé, marinheiro, natural de York.  

#
#
#

#
#
#

 Em 1692, tendo a sua companhia de tecidos uma dívida de dezessete mil libras, e estando à beira da falência, Daniel Defoe viu-se forçado a manter-se escondido das autoridades durante os seis dias da semana, num bairro de Bristol, aparecendo em público apenas no domingo, dia em que era senhor de si e podia passear com dignidade, “ataviado segundo a moda da época, de cabeleira ao vento, rendas e espada na cinta”. Quando os credores se deram por satisfeitos, voltou a ser senhor de si, tornando-se um cavalheiro completo em todos os dias da semana. Durante a minha carreira de vinte anos como colaborador free-lance de revistas dos Estados Unidos e da Grã- Bretanha, enquanto durou essa longa aprendizagem até me tornar apenas um escritor de livros, também eu, num certo sentido, podia me considerar um Cavalheiro de Domingo, tal como Daniel Defoe. Nesses anos acidentados e difíceis, imaginava e escrevia artigos e histórias, destinados a preencher os espaços livres entre os anúncios dos periódicos mais populares e a esclarecer superficialmente o atormentado Homem da Rua, e também conseguir o dinheiro necessário para meu sustento e da família. As horas perdidas eram demasiado longas e o pagamento excessivamente reduzido e incerto. Pelo meu primeiro artigo publicado, aos quinze anos, recebi cinco dólares. Por um dos últimos, aos trinta e cinco, pagaram-me três mil. Foi este o máximo e o mínimo que me pagaram, embora como mínimo se deva considerar os casos em que nada recebi. Quando era muito jovem, costumava estudar os diversos periódicos, tentando descobrir as espécies de assunto que mais poderiam interessá-los, e depois engendrava as histórias — investigava, planejava o trabalho, e depois submetia- o à apreciação das publicações a que os destinara. Uns eram aceitos, outros não, mas eu me sentia animado com o fato de ver o meu nome impresso, com o lucro módico que auferia, com o conhecimento que ia adquirindo nas entrevistas e pesquisas. Dessa forma, consegui ganhar dinheiro para as minhas extravagâncias enquanto estive no colégio em Ke- nosha, no Wisconsin; vivi num sótão durante o tempo que frequentei a Universidade da Califórnia, em Berkeley; consegui aguentar-me num modesto quarto de hotel em Los Angeles; e fiz uma viagem de nove meses com tudo pago, escrevendo e pesquisando, através do México, Guatemala, Honduras, Panamá, Colômbia e Cuba. Mais tarde, depois de adquirir mais experiência e o desejo, que em breve se tornou uma obsessão, de escrever bem, passei a produzir menos, mas a lutar com não menor energia. Comecei a escrever as minhas histórias para as revistas de uma forma mais profunda e cuidada, construindo- as com mais perfeição. À medida que as revistas importantes principiaram a aceitar minhas obras, modifiquei alguns dos métodos, mas apenas a parte técnica, não os princípios. Antes apresentava eu próprio os meus artigos aos editores, o que era um método nada profissional e lento, que me colocava à mercê das suas decisões autocráticas sobre a remuneração e o que eu devia alterar no que escrevia. Agora atingira uma fase de produção que me permitia arranjar um agente literário em Nova York. Este passou a ser o meu intermediário junto ao mercado. Antigamente costumava escrever um artigo só porque me parecia apropriado para um certo jornal. Passei, a conselho desse agente, a apresentar como amostra apenas uma ou duas páginas com um resumo das ideias da história, antes de proceder à pesquisa e de escrevêla toda. Esse método revelou-se econômico. Poupava-me dias e semanas em tempo e energias, que seriam perdidas se escrevesse sobre assuntos já tratados, ou que se pudessem considerar tabus ou que não lhes interessassem. Só depois de um jornal ter aprovado um projeto eu o preparava e escrevia. Mas nem sempre esse método me garantia a publicação do trabalho e o pagamento respectivo. No caso de o artigo não corresponder à expectativa da amostra, era devolvido e não me pagavam. Só nestes últimos sete ou oito anos, depois de haver adquirido uma fama regular e escrever para The Saturday Evening Post, Reader’s Digest, Collier’s, Esquire, Cosmopolitan, é que comecei a receber garantias de remuneração de projetos apresentados. Várias revistas passaram a prometer pagamento pelos meus artigos, quer fossem publicados ou não. A maior parte, no entanto, pagava-me por inteiro só no caso de o artigo ser publicado, do contrário recebia apenas um quarto, mas eram-me garantidas as despesas com os trabalhos de pesquisa realizados. No auge da minha carreira de colaborador de revistas, noventa por cento do que escrevia nos seis dias da semana — mais como ganha-pão do que por prazer, embora não me recorde de haver escrito algo que não me desse um certo prazer — baseavam-se em ideias minhas, que depois moldava de acordo com as características dos editores e do público a que se destinavam.
Só uma em cada dez produções me era diretamente sugerida pelos editores, como uma encomenda especial que consideravam adequada ao meu talento. Assim, a revista Collie’s, em 1946, achou que seria interessante publicar uma série de três artigos sobre a Princesa Elizabeth, agora rainha da Inglaterra, e me encarregou disso. De Paris, dirigi-me para o Palácio de Buckingham, a fim de fazer estudos e depois escrever os artigos. Por outro lado, na mesma ocasião, achei que a revista CollieEs estaria interessada num artigo sobre a Legião Estrangeira francesa, no qual se mostrasse que ex-nazistas alemães dominavam inteiramente as fileiras da organização. Quando lhes apresentei a ideia, os editores da CollieEs aprovaram-na com tanto entusiasmo como se ela tivesse partido da própria redação em Manhattan. Não interessava a maneira como eu obtinha as encomendas, a verdade é que o que eu escrevia durante os seis dias da semana era destinado a ser vendido em certos mercados, a ser publicado para render-me dinheiro que me evitasse a miséria, a bancarrota, a falência: todas as versões do século XX da prisão infligida aos devedores do século XVII. Nunca senti que isso fosse um tipo de prostituição literária, tal como os outros colaboradores de revistas, jornais, escritores e pessoal do rádio e da televisão também não julgam estar se prostituindo. Era um emprego tão respeitável como o dos repórteres das revistas e dos jornais. Tratava-se de uma adaptação razoável a uma necessidade do dia-a-dia, uma maneira de sobreviver e alcançar a segurança tanto para mim como para os meus familiares. Ainda me recordo da legenda escrita num peso de papéis, oferta de uma companhia de seguros, que meu pai tinha sobre a mesa do escritório quando eu era pequeno: “O mundo não paga salário a ninguém”. E assim, nós, os escritores, escrevíamos porque isso representava um trabalho, e tentávamos — tal como outros fazem nas mesmas circunstâncias — ganhar o pão de cada dia com honra, integridade e espírito criador, tanto quanto possível dentro das restrições comerciais impostas pelas revistas e jornais de todo o mundo. Havia momentos de compromissos bastante mesquinhos e depois dores de consciência, é claro. Recordo-me muitas vezes de uma personagem de W. Somerset Maugham que afirmava: “Um verdadeiro artista prefere deixar a mãe morrer de fome, mas não escreve porcarias”. Pelo visto, William Faulkner leu esta passagem ou partilhava desta doutrina, pois, em 1956, declarou a um repórter da Paris Review que um escritor só tinha responsabilidade para com a sua arte, acrescentando: “Todo o resto ele deita fora: honra, amor-próprio, decência, segurança, felicidade, tudo, para conseguir escrever a sua obra. Se um escritor tiver de roubar a própria mãe não hesitará. A Ode sobre uma urna grega vale todas as velhas senhoras do mundo”. Foi precisamente porque acreditava nessa responsabilidade do escritor para com a sua arte, assim como acreditava também nas outras obrigações além da de escrever, foi por causa deste sentimento ambivalente em face do meu trabalho que decidi considerar que os seis dias da semana bastavam para me evitar a pena de cadeia aplicada aos devedores. Considerava que o sétimo dia era meu. E quase todos os domingos, durante esses vinte anos, apliquei-me em histórias e artigos mais honestos, embora menos comerciais, porque eram inteiramente meus. Aos domingos escrevia sem pensar conscientemente em qualquer periódico ou em qualquer espécie de leitor; escrevia artigos e histórias que só interessavam a mim. Sempre esperei que um dia viessem a público, que viessem a ser pagos, mas, se não o fossem, não importava. Nestas páginas irão todos travar conhecimento com o escritor no momento em que ele encarnava o Cavalheiro de Domingo — e por “cavalheiro” não entendo aqui a definição do dicionário: “um homem bem-educado, de bons sentimentos, boas maneiras e boa posição social”; entendo, sim, o cavalheiro que era Defoe aos domingos, segundo a minha definição. “Um homem honesto, cheio de sensibilidade, atormentado pela insegurança, resolvido a ser um dia uma alma livre e independente, a falar e a escrever o que lhe ia no pensamento e no coração, sem receios nem compromissos, escrevendo de acordo com a verdade ou com os seus próprios desejos”. Até que cheguei a uma altura da vida em que os domingos já não bastavam, em que o fato de ser cavalheiro apenas um dia da semana me afligia. Deixei de escrever para revistas e jornais e passei a escrever apenas livros, porque estes representam o último refúgio do escritor que deseja expressar-se a seu modo, sem compromissos com organizações, sem a preocupação de agradar a qualquer público em especial. Se alguém conseguir escrever os livros que deseja sem fazer concessões, e ganhar a sua vida ainda que modestamente, raciocinava eu, essa pessoa poderá considerar- se um cavalheiro, um homem livre e independente, não apenas um dia na semana, mas durante os sete dias completos. Quando comecei a minha carreira de romancista, ouvi meus colegas escritores com obra publicada dizerem que eu buscava uma utopia. Poucos escritores, muito poucos, na América, escrevem suas obras sem incorrer no castigo aplicado aos devedores. Disseram-me que existiam homens que escreviam livros e, ao mesmo tempo, davam aulas, ou tinham quem trabalhasse para eles, ou haviam herdado uma fortuna; que havia mulheres escritoras, mas que tinham maridos com empregos seguros; e crianças que escreviam livros, mas dispunham de cama, mesa e uma pensão mensal. A ideia de um autor sem vencimentos conseguir sobreviver era uma loucura impraticável. Não acreditei nesses meus veteranos colegas escritores das horas vagas. Pensei que tais afirmações não passavam de consequência do seu ressentimento, uma espécie de cinismo filho do fracasso. Enganava-me. A verdade é que, ao deixar os jornais e revistas para me dedicar inteiramente aos livros, acreditando que isso seria praticável, tinha obrigação de saber que não era. Para ser inteiramente franco, não era a primeira vez que ia escrever um livro. Fizera-o já logo depois da puberdade. No colégio e depois na universidade, aos domingos, durante os anos em que trabalhara para os jornais. Mas ninguém quis publicar nenhum. Hoje, olhando para trás, admiro-me e assusto-me com a quantidade de livros que escrevi na solidão de tantos quartos pequenos e estranhos e com a maneira como todos foram definitiva e totalmente recusados, com algumas raras palavras de encorajamento. Aos dezessete anos escrevi metade de um livro, Heróis de hoje, que relata a vida dos homens que mais admiração me inspiravam, desde Clarence Darrow até Walter Reed. Foi rejeitado. Aos dezoito escrevi metade de outro livro, Desculpe, está errado, no qual punha a nu a falsidade das crendices populares. Foi recusado. Aos dezenove escrevi o meu primeiro livro completo, A minha senda da aventura, relato de uma expedição que fizera na selva de Honduras. Recusado. Aos vinte escrevi outro livro completo, O Cavalheiro de Domingo, sim senhor, uma biografia de Daniel Defoe. Recusado. Aos vinte e dois escrevi o terceiro livro, Férias romanas, uma narrativa biográfica dos primeiros doze césares. Recusado. Com a mesma idade compilei e tornei a escrever um livro, Etcétera, uma coleção de artigos recentes e outros já publicados em revistas. Foi recusado. Aos vinte e cinco escrevi Mein Kampf do Japão, uma descrição documentada do Plano Tanaka. Foi igualmente recusado. Aos vinte e sete escrevi um volume extenso, intitulado Sem calças. Era um relato ingênuo de minhas recordações de várias pessoas célebres que conhecera e entrevistara ao longo da minha carreira. Recusado. Aos vinte e quatro escrevi dois capítulos de um romance, Gabrielle, que era a história da bela assassina francesa Gabrielle Bompard. Sentia-me desanimado e nunca apresentei esta amostra a nenhum editor. Durante todos estes anos escrevi pelo menos um ou dois capítulos de meia dúzia de romances, mas me sentia pouco seguro e nunca os acabei nem apresentei aos editores. Aqui tem, leitor, a minha ilustre biografia no momento em que, com a idade de trinta e sete anos, abandonei cavalheirescamente a colaboração nas revistas para escrever livros a sério. Na realidade eu sempre escrevera “a sério”, porém na idade de trinta e sete anos o esforço era mais “sério”, porque desejava que minha nova carreira fosse um verdadeiro emprego, e sentia que possuía mais experiência, mais compreensão, mais sensatez e mais entusiasmo do que quando era jovem. Entre 1953 e 1959, escrevi e publiquei quatro livros: três biografias e um romance. Todos alcançaram resultados mais do que modestos, tanto do ponto de vista da crítica como financeiro, e não renderam tanto dinheiro como o que poderia ter ganho num ano escrevendo com outra finalidade. Afinal, meus amigos tinham razão. Não se podia ganhar a vida escrevendo livros — assim como uma semana não podia ter só domingos —, no entanto descobri que, mesmo que não vivesse dos livros, eu não podia viver sem eles. Do primeiro livro até o quarto, fiz tudo o que podia para arranjar tempo que me permitisse escrever outro e manter minha mulher, meus dois filhos e outros parentes. Esquadrinhei todos os meandros literários e pseudoliterários em busca de dinheiro para comprar domingos, que significavam mais livros. Voltara as costas às revistas e tive que procurar outras fontes de renda. Escrevi inúmeros projetos e argumentos para o cinema. Criei muitos argumentos para os principais produtores. E escrevi, de encomenda, dez histórias para a televisão. Não estou me lamentando. Era uma espécie de doce inferno, um meio diabólico, dominado pela falsidade, pela política, pela mesquinhez, pela ladroeira, pelo cretinismo, onde o escritor sofria desconsideração, falta de respeito, desdém, mas onde ganhava mais dinheiro do que em qualquer outra parte. Também encontrava nesse meio muitas pessoas, honestas, de espírito criador, e, por vezes, o resultado dos seus talentos era um filme que igualava ou excedia em valor artístico os melhores livros ou peças teatrais. Mas esses talentos e seus produtos eram minoria. Nessa época, trabalhei mais e durante mais tempo do que em todos os anos de colaboração nas revistas, pois precisava ganhar o necessário para viver e para escrever livros. Para mim, que preferia trabalhar sozinho a adaptar-me aos outros, subir ou descer, mas às minhas custas, e não colaborar com outros escritores, diretores, produtores e atores, foi um período bastante infeliz. Achei que ganhar dinheiro era uma tarefa emocionalmente muito pesada. Como colaborador de revistas, ao menos trabalhava como um hábil operário durante os seis dias da semana e sabia que o sétimo seria domingo. Naquele mundo frenético e competitivo do celuloide não havia domingos. No entanto, apesar de tudo, consegui algumas vitórias. Logrei arranjar tempo (não aos domingos, mas à noite), para escrever os meus primeiros quatro livros. E aprendi muito mais do que sabia sobre o diálogo, as cenas, a construção da história (embora tenha esquecido também muitas coisas que teria de aprender de novo, relacionadas com a análise subjetiva, as descrições, os monólogos interiores e a necessidade de fazer a história surgir através das personagens, em vez de apresentá-las como acessórias do enredo).
Despedi-me dessa época com todos esses conhecimentos e com os quatro livros laboriosamente terminados, além da resolução, firme e quase selvagem, de escrever livros e nada mais. Deixei aquele mundo trazendo tudo menos uma coisa, precisamente o que me levara para lá: dinheiro. Com menos senso prático e mais louco do que nunca, pus-me a escrever livros com alicerces tão sólidos como estes: uma casa por pagar, uma reduzida conta no banco e um desejo feroz de escrever um quinto livro, um romance que me deixava possesso e açambarcava todos os sentidos. Escrevi este quinto livro que se tornou imediatamente um best seller internacional. Aí estava o milagre com que sonhara na juventude. Finalmente livre, independente, confiante, escrevi um livro, e outro, e outro, e outro, e cada um deles foi um best seller internacional. Graças a uma sorte espantosa, combinada com o amor ao que estava fazendo, conseguira transformar em domingos os sete dias da semana. Após ter deixado as revistas, e depois o cinema e a televisão, e desde que trabalho por conta própria como romancista, não se passa um mês sem que eu receba uma carta de Nova York ou de Hollywood, perguntando se não estaria interessado em escrever uma série de artigos ou contos ou a produzir algum filme baseado nas minhas próprias ideias ou a criar e a dirigir um programa de televisão. Senti- me sempre lisonjeado com semelhantes ofertas, mas recusei- as sistematicamente, porque custara-me muito conquistar a semana toda de domingos para querer trocá-la por mais dinheiro. Não é minha intenção afirmar que só os escritores de romances são livres e independentes. Há duas condições para que um homem possa se considerar independente: a primeira é ser jovem e não ter responsabilidades; a segunda, possuir maturidade e uma conta razoável no banco, ou prestígio suficiente para não recear ninguém neste mundo. Existe uma meia dúzia de escritores que trabalham para revistas, para o cinema e para a televisão e que escrevem o que querem, mas são muito poucos. Encontram-se peças teatrais que são inteiramente obra do seu autor, embora alguns que eu conheço tenham-me afirmado que a censura de suas produções existe como cláusula do contrato, mas que não chega a efetivar-se. Se um dramaturgo procura um ator de grande nome ou um diretor, com a intenção de ver sua peça representada na Broadway, ou se precisa que qualquer deles lhe assegure o respectivo êxito, esse ator ou diretor pode exigir grandes cortes ou transformações. O autor vê- se entre aceitar o que os outros exigem dele, a fim de ver a obra representada, ou recusar, arriscando-se a que a peça nunca seja vista pelo público. Existem, porém, volto a afirmar, casos excepcionais em que um escritor é um nome ilustre e tem uma espinha que não se dobra. Nesse caso, é capaz de ver a sua peça representada tal como a escreveu. No mundo dos livros é menos necessário uma pessoa curvar-se aos desejos dos outros. O romancista não tem ator nem diretor a entravá-lo, apenas um agente ou editor. Ao contrário do produtor teatral, que necessita de um investimento bastante grande, o editor de livros pode publicar um romance por um preço relativamente módico e não tem razões para ficar tão desconfiado quando se trata de se arriscar a imprimir uma obra que pode não lhe agradar inteiramente. No entanto, a bem da verdade, um escritor de ficção só pode manter uma integridade completa quando o editor precisa mais dele do que ele do editor. Se um escritor escreve uma biografia à sua maneira e o editor teima em que transforme radicalmente certas passagens, a fim de colocá- las ao nível de suas próprias ideias, o escritor muitas vezes transige para ver sua obra impressa. Claro que nem sempre lhe põem a faca no peito. Muitas vezes permite-se que o escritor mantenha certas coisas que os editores não aprovam, simplesmente porque têm um respeito tradicional pela individualidade e pela mística do artista criador; e os escritores frequentemente apressam-se a executar a maior parte das modificações sugeridas, porque não se sentem muito seguros da qualidade do que escreveram ou porque acham que as sugestões de um editor experiente devem melhorar o seu trabalho. Embora de menor importância, existem, no campo editorial, certos compromissos oriundos dos preconceitos pessoais do editor ou das preocupações econômicas do agente. Após anos preparando e escrevendo o meu primeiro livro publicado, Os fabulosos originais, e ao receber um contrato das mãos de Alfred A. Knopf, sentime deveras surpreso ao ver que ele exigia que eu sacrificasse um pouco da minha autonomia criadora antes de o livro ir para o prelo, pedido baseado em motivos puramente econômicos. Fiquei admirado, porque sempre considerara Knopf um editor independente, que respeitava a prosa bem-escrita. Não tinha compreendido que ele era também, por necessidade, um negociante hábil e duro, tal como a maioria dos outros editores. Muito embora meu livro não fosse extraordinariamente longo, o Sr. Knopf teimava em querê-lo muito mais curto, para tornar a sua publicação muito mais barata e maiores os seus lucros (recordome de que eu receberia nove e meio por cento do preço da capa). Aquele era o meu primeiro livro em vias de ser publicado. Temendo que nunca chegasse a ver a luz do dia se eu teimasse em defender a Palavra contra o Livro Caixa, concordei. Dos nove capítulos fui obrigado a cortar inteiramente um e dois quintos de outro. Eu precisava mais do editor do que ele de mim e, contra a vontade, anuí. Anos depois, quando já tinha muitos livros publicados e um público numeroso, foram muitos os editores que precisaram de mim mais do que eu deles, e meu novo agente sugeriu que meu romance O prêmio ganharia bastante se eu introduzisse duas grandes modificações no original antes de ir para a tipografia. Não se tratava de um pedido arrogante, mas de sugestões bemintencionadas, no sentido de melhorá- lo do ponto de vista literário. Após ter considerado demoradamente estas duas sugestões, recusei a primeira por considerá-la contrária à minha visão da história. No entanto, concordei em que a segunda era uma ideia inteligente, que valia a pena ser meditada, e resolvi voltar a escrever algumas passagens. A diferença importante nisto é que eu não estava mais sendo obrigado a modificar um único parágrafo como condição para a publicação do trabalho, e a resolução de emendar era inteiramente minha. Nunca encontrei em nenhum outro campo uma liberdade tão completa. Uma vez que o fato de eu me tornar unicamente escritor constituía um impulso decisivo na minha carreira, não tinha o menor desejo de voltar a colaborar em revistas. Após a publicação do meu primeiro livro escrevi apenas quatro artigos para revistas, nenhum semelhante aos que publicava no tempo em que trabalhava neles seis dias na semana, nem aos que se encontram neste livro e foram produzidos no domingo. Meus artigos recentes são mais subjetivos do que objetivos, referem-se à criação dos meus livros e foram inspirados por uma necessidade momentânea de defender ou explicar certos temas. A única exceção talvez seja o último que escrevi, sobre uma experiência pessoal, e que é o último capítulo deste livro. O artigo foi motivado menos por um desejo de explicar de que maneira eu tinha preparado o meu romance O homem, do que pôr no papel, mais para mim do que para qualquer outra pessoa, a recordação das visitas que fizera ao Presidente John Kennedy na Casa Branca, pouco antes de ser assassinado. Recapitulando os vinte anos passados escrevendo para jornais e revistas como ganha-pão, acho-me em condições de apreciar todos os prazeres que daí tirei e todas as dificuldades que suportei. Já me referi à parte mais desagradável dessa carreira, ou seja, à falta de oportunidade para escrever como queria, sobre assuntos que me agradavam. Havia ainda outros aspectos que me exasperavam. Um deles era a atitude dos editores, colocando sempre o artigo ou o conto num plano inferior ao dos anúncios. Claro que as histórias interessantes eram necessárias para atrair o grande público, o qual, por sua vez, traria lucros em anúncios. Se à última hora, porém, fossem recebidos muitos anúncios, os contos previstos para essa edição eram cortados e a sua publicação adiada friamente, sem o menor respeito para com os efeitos antiliterários ou prejuízo que este procedimento poderia causar aos contos. O último artigo que escrevi para uma revista, bastante extenso, um encontro que tivera em Essen, na Alemanha, com Alfred Krupp, foi transformado, em virtude deste ponto de vista comercial, numa reportagem em miniatura, quase ininteligível. Quando o artigo saiu, senti um profundo desgosto, pensando no que diriam os leitores ao verem uma história tão incompleta e superficial, ignorando que o que eu escrevera era uma coisa completamente diversa. Outro percalço, raro mas terrível, era a censura. Acon- tecia-me às vezes escrever um artigo contrário às ideias políticas dos editores ou que continha matéria que podia ser considerada ofensiva para um grande anunciante, para um editor importante ou para a sua mulher. Nesse caso, ou o artigo era rejeitado sem apelação ou a passagem ofensiva era cortada sem consideração pelo fato de a história ficar desconexa ou desequilibrada. No verão de 1949, deu-se comigo um caso exemplar do que se passava com a censura. Escrevi um artigo sobre a controvérsia que se estabelecera em torno da atribuição do prêmio Nobel concedido pela Suécia e pela Noruega. A certa altura, tentava avaliar a imparcialidade dos juizes do prêmio Nobel a partir de estatísticas de votos, e concluí que os juizes haviam favorecido os candidatos escandinavos ou germânicos e boicotado sempre os escritores e cientistas russos, visto que a Rússia, tanto nos tempos da monarquia como do comunismo, fora sempre inimiga histórica da Suécia. A Suécia atribuíra aos russos apenas um prêmio e meio na medicina, nenhum na química, nenhum na física e também um só na literatura (este a um russo-branco, Ivan Búnin, que vivia no exílio, ao passo que Leão Tolstói fora recusado nove vezes e Tchékhov e Górki, ignorados). Os editores da Collier’s aceitaram esse artigo tão objetivo, mas aquela passagem caiu sob os olhos de um administrador, sem funções editoriais, que ficou louco de raiva. Decretou que o autor do artigo devia ser um simpatizante comunista (por que não um czarista?) e que, assinado ou não, o artigo tinha de ser recusado. Só depois de ver que seus colegas levariam a melhor, consentiu em que o artigo saísse, mas com a parte em que eu me referia ao fato de os juizes suecos se revelarem anti-russos cortada. Tratava-se de uma censura injusta, mas submeti-me para salvar o resto do artigo, bem como a remuneração que receberia. Só depois de entrar no mundo livre dos romances pude contar a história toda do prêmio Nobel, tecendo os fatos omitidos com uma trama de romance, na minha obra O prêmio. Mas isto só catorze anos depois. Recordo-me de uma entrevista que fiz em 1946 com o falecido escritor Raymond Chandler, o brilhante autor de histórias policiais “duras” e criador do detetive particular Philip Mariowe. Eu apreciava-o e admirava-o sem reservas e achei-o deliciosamente ingênuo nas suas opiniões sobre si mesmo, sobre sua habilidade de escritor, e sobre seus camaradas nas letras. Ao terminar meu artigo,
sentia-me particularmente satisfeito com a seguinte passagem: “O assunto favorito de Chandler são as histórias policiais e seus adeptos. Não se poupa a si próprio nem aos outros. “ ‘S. S. Van Dine? Não consigo lê-lo. Philo Vance é simplesmente detestável. Não passa de uma imitação barata do inglês vulgar. Dorothy Sayers? Gosto dela como escritora, mas suas histórias não prestam para nada. Agatha Chris- tie? Suas intrigas são falsas e, o que é pior, deixam-nos enganados. Muito embora o Assassinato àe Roger Ackroyd se possa considerar um belo achado. Ngaio Marsh? Li-a durante algum tempo, mas agora considero-a enfadonha. Freeman Wills Crofts? É um chato! R. Austin Freeman? Um autêntico caipira, mas um dos meus preferidos. Rex Stout? Gostei da Liga dos homens aterrados, depois cansei-me dos seus livros. Apreciei sempre Archie, mas Nero Wolfe e suas excentricidades começam a aborrecer-me. Claro que é difícil inventar excentricidades através de uma longa série de histórias. Ellery Queen? Não gosto dele. A. Co- nan Doyle? Nunca partilhei da admiração que todos sentem por Sherlock Holmes. Erle Stanley Gardner? Gosto dos livros que escreveu sob o pseudônimo de A. A. Fair, mas seu Perry Mason já cheira mal. Erle é muito sensível e provavelmente deixará de falar comigo. Dashiell Hammett? Talvez ele me tenha influenciado um pouco. É estupendo, mas acho que podia fazer ainda melhor. Raymond Chandler? Sua especialidade é insultar as pessoas. Suas intrigas não prestam, constrói mal e acha mais fácil criticar do que construir.’ ” Enquanto preparava meu artigo, um jornalista de Nova York soube dessa passagem explosiva e referiu-se a ela na imprensa. No dia seguinte, Chandler telefonava-me insistindo em que cortasse imediatamente aquela passagem excessivamente franca. Concordara que tinha dito tudo aquilo e me dera licença de publicar, mas agora alguns dos seus companheiros das letras tinham-no convencido de que uma ingenuidade total não era uma virtude. Anuí contra a vontade a esta censura e fui obrigado a apresentar ao público um Raymond Chandler muito menos franco. O que mais me custava quando escrevia para as revistas era a desonestidade permanente, mas indispensável para se sobreviver naquele meio, que consistia em elaborar todos os artigos a partir de um ponto de vista definido. A necessidade de submeter cada artigo a uma teoria mantém-se ainda hoje. Mas no tempo em que eu escrevia para elas isso era mais indispensável, embora se praticasse com menos crueza. Não bastava pensar num bom assunto e depois desenvolvê- lo à nossa maneira. Para ter certeza de que sua obra seria aceita, o escritor tinha de descobrir antecipadamente qual quer coisa sobre o assunto que escolhera que pudesse ser considerada fora do comum ou curiosa — uma espécie de “gancho”. Uma vez aceita a proposta, mediante este ponto de vista préfabricado, o autor tinha que realizar pesquisas c fazer entrevistas, de modo a provar a validade da sua teoria e a construir uma história baseada nos fatos apresentados. No caso de o escritor verificar posteriormente que a teoria era válida e tão importante como lhe parecera antes, trabalhava-a com sua prosa e apresentava-a com toda a honestidade. Se, pelo contrário, descobrisse que se enganara sobre a verdade ou a importância do seu ponto de vista, podia arriscarse a apresentar outra teoria, outro ponto de vista (diferente do que oferecera ao editor) e a esperar que fosse aceita, ou então, como acontecia na maior parte das vezes, podia distorcer certos fatos, em prejuízo de suas próprias convicções, de molde a apoiar a teoria que apresentara antes. Esta cumplicidade entre editor e escritor tinha como resultado uma obra que não era totalmente desonesta, mas cuja veracidade fora deturpada por uma ideia preconcebida, pelo fato de se insistir mais no que interessava e não no que lealmente existia.
Na carreira de escritor de revistas eu era tão culpado por participar desta técnica como qualquer dos meus colegas. Não pretendo arranjar atenuantes, estou simplesmente pedindo desculpas e cito um fato que talvez me atenue a culpa. Tal como a maioria dos meus companheiros, eu não utilizava uma teoria quando a considerava inteiramente falsa. Só fundamentava minhas histórias em fatos exatos. Mas, apesar disso, meus pontos de vista eram constantemente deturpados pelos editores e eu sofria pressões sem conta. Aconteceu isso quando escrevi um artigo, para uma revista de grande nome, sobre os bascos, essa raça estranha e misteriosa. (Não são espanhóis, nem franceses. Ninguém possui uma ideia estabelecida sobre de onde vieram. Os arqueólogos nada encontram gravado em pedra nem qualquer monumento; os historiadores não possuem relatos sobre eles; os lilólogos não descobrem a causa da sua pronúncia gutural.) Este povo atrevido efetuou um trabalho de sapa na Espanha, lutando para se tornar independente da ditadura de I''ranco e do seu fascismo opressor. Minha teoria sustentava que esses bascos eram católicos, no entanto desafiaram o Vaticano ao se unir aos grupos de esquerda no seu esforço para derrubar o regime católico de Franco. Em Paris e em San Sebastián, reuni provas de que minha teoria estava certa. Escrevi um artigo sobre isso e apresentei-o à revista que prometera publicálo. Os editores aceitaram minha teoria, e as respectivas provas, apreciaram-na até, mas mostraram-se receosos da reação nos meios católicos internacionais. Depois de muita reflexão, os editores começaram a cortar e a condensar meu trabalho. O que ficou, depois de o artigo ter sido publicado, deixara de ser a história de um povo que fazia parte da Espanha, que era católico e no entanto combatia Franco, mas sim um trabalho dedicado quase por inteiro aos bascos como raça. O ponto principal do meu artigo, isto é, os católicos em revolta contra um governante católico, fora reduzido a uma simples passagem. Mas devo dizer que, mesmo assim, o jornal deu provas de uma certa coragem ao publicar aquelas escassas linhas. O pecado, se assim se pode chamar, foi exclusivamente de natureza político-editorial. Porém, ao permitir que fizessem os cortes, creio que tive uma certa parte de culpa na deturpação do que se iniciara como uma reportagem bem-equili- brada. Só nos apercebemos da gravidade das nossas faltas quando somos vítimas de outras do mesmo gênero. Tal como eu próprio fizera, houve também quem escrevesse a meu respeito. Eu publicara alguns romances que foram lidos e discutidos em várias línguas e por milhões de pessoas. Fora sempre leal para com os novos escritores de revistas e para com os editores — respeitava os seus pontos de vista. Nos fins de 1963, meu editor de Nova York telefonou- me dizendo que uma revista de grande prestígio estava interessada em publicar um artigo biográfico a meu respeito. Desejaria eu cooperar? Decidi que sim, pois ser apresentado assim em público como uma personagem importante ou um bicho de jardim zoológico era lisonjeiro e útil, pois tornar- me-ia mais conhecido. No entanto, não foi sem um certo receio que concordei em receber o repórter que devia entre- vistar-me. A dita revista tinha fama de publicar muitas vezes artigos alicerçados apenas nas opiniões dos editores e em boatos sem fundamento. Fia via, contudo, também algumas excelentes biografias de autores contemporâneos. Foi minha mulher quem primeiro traduziu meus receios secretos: “Qual será a ideia deles? Devem ter alguma!”, declarou ela. O jovem repórter passou comigo e com meus amigos três dias, que foram um nunca acabar de perguntas e respostas. Ao cabo do primeiro dia, eu ainda não
tinha descoberto nada. Só no dia seguinte, quando ele começou a entrevistar meus amigos, é que sua ideia preconcebida começou a luzir ao longe. A ideia dele, ou da revista, era apresentar-me como exemplo vivo dessa nova vaga da literatura comercial, uma espécie de paxá nada literário que se alimenta de manjares exóticos, tais como línguas de pavão, champanha e caviar, rodeado de concubinas seminuas, servido por uma legião de criados e que apenas de vez em quando se limita a consultar o seu fichário, a fim de produzir outro livro para engordar a sua conta bancária. Contudo, confessou-me o repórter, nem eu nem o meu estilo de vida estavam de acordo com as ideias preconcebidas do seu jornal, ideias adquiridas em face de meus livros e da publicidade feita sobre meus rendimentos. O jovem via-se frente ao clássico dilema do colaborador de revistas. Que fazer? Desistir da história? Manter o ponto de vista inicial e escrever mentiras? Estabelecer um meio-termo entre os fatos e os desejos dos patrões? Estava na França quando recebi um exemplar da revi a que continha o tal artigo a meu respeito. Meus amigos consideraram-no favorável e até amistoso. Apesar disso, a intenção perversa transparecia: existia um grupo de autores, do qual eu fazia parte, que haviam descoberto a maneira de lazer fortuna escrevendo romances segundo uma fórmula comercial. Se os romancistas de fama possuíssem uma fórmula, nunca teriam fracassos, e não conheço nenhum que não os haja experimentado. Se os romancistas célebres não tivessem outro fim a não ser o dinheiro, se os movesse apenas o desejo de grandeza e não uma necessidade de se exprimir honestamente, achariam tal processo admirável, pois pou- par-lhes-ia tempo, preocupação, torturas íntimas, às vezes, por causa de uma só palavra, e lhes daria a possibilidade de escrever três livros no tempo de um. Desta forma, com um pouco de sorte, conseguiriam auferir três vezes mais lucros. No entanto, não conheço um único exemplo de escritor que se tenha deixado influenciar por esta teoria econômica. A teoria, baseada numa ideia preconcebida, escrita para despertar o interesse dos leitores, revelava-se fantasiosa e inteiramente desprovida de fundamento. Como consequência disto, mal saiu meu livro seguinte, um terço dos críticos, influenciados pelo artigo a meu respeito, encetaram discussões acerca da chamada “fórmula” de best seller. Embora nem todos estes críticos acreditassem no ponto de vista do periódico, o fato de o haverem dito em letra de fôrma foi o bastante para me roubar alguns leitores sérios. Nem as referências favoráveis de uma vasta imprensa, nem o enorme sucesso que este meu livro teve tanto nos Estados Unidos como no estrangeiro conseguiram impedir completamente o prejuízo temporário. Como colaborador de revistas, sempre me revoltou o fato de meus patrões exigirem de mim trabalhos que contivessem uma afirmação definida. Como romancista, minha revolta tornou-se maior ainda. Essa necessidade permanente de provar uma teoria, bem como a falta de respeito pelo escritor e a censura às suas palavras, e, acima de tudo, a impossibilidade quase constante de se escrever o que se quer, foram as razões que me levaram a abandonar as revistas. E nunca me arrependi. No entanto, não seria justo se afirmasse não ter tirado prazer de minha experiência de duas décadas como colaborador de revistas. Entre 1931 e 1953, publiquei cerca de quinhentos artigos e contos. Suponho ter produzido também quase igual número de outros artigos que nunca publiquei, embora representem, alguns deles, o meu melhor trabalho dos domingos. Quando rapaz, antes de 1940, costumava trabalhar para qualquer jornal que me pagasse: Horse and Jockey
Magazine, American Farm, Youth Magazine, Catholic Digest, Current Psychology and Psychoanalysis, For Men Only, Ken, Modem Mechanics, Thrilling Sports, Modem Screen. Mais tarde, meu campo de trabalho, se bem que já variado, melhorou em prestígio e expansão: The Saturday Evening Post, American Mercury, Esquire, Liberty Magazine, Collier’s, Coronet, The Rotarian, Saturday Re- view of Literature, American Legion Magazine, Cosmopo- litan, Literary Cavalcade, Pageant, ReadePs Digest, This Week, True. Em busca de histórias, viajei por todo lado, colecionei aventuras, conhecimentos, contatei personalidades estranhas e famosas, passei horas e dias fascinantes, adquiri experiência impossível de alcançar em qualquer outra atividade. Lembro-me de ter passado dois dias tormentosos subindo os cinco mil metros do monte Ixtaccihuatl, perto da Cidade do México. Também me recordo de haver acompanhado uma expedição nas selvas de Honduras, a fim de descobrir um capricho da natureza chamado Fonte do Sangue. Recordo-me, um ano antes de Pearl Harbour, de ter entrevistado secretamente, em Nanquim, um americano especializado no sistema japonês de intoxicar a população da China ocupada com ópio e heroína, e de ter sido interrogado pela polícia japonesa em consequência de minha curio- s idade. Recordo-me também de ter tido, alguns meses antes da mesma batalha, uma longa entrevista com Yosuke Mat- suoka, ministro dos Negócios Exteriores do Japão, que assinara com Hitler o Pacto do Eixo, cuja fúria me fez descon- liar de que sua pátria estava em vias de declarar guerra aos listados Unidos. Lembro-me de Aleksandr Kerenski, da nossa conversa num quarto de hotel de Los Angeles e da amargura que sentia per não ter podido vencer Lênin e o bolchevismo da Kússia. Recordo-me de Leni Riefenstahl, que teve a gentileza de levantar a saia até o umbigo para me mostrar uma cicatriz cirúrgica e que ficou escandalizada quando lhe perguntei se fora amante de Hitler. Lembro-me também de uma tarde em casa de W. C. Fields, quando ele me mostrou as caricaturas emolduradas das pessoas célebres que odiava, algumas pornográficas, todas cobertas com cortinas discretas, sendo uma de Eleanor Roosevelt. Em seguida, o ator caiu num estado de inconsciência devido à bebedeira. Recordo-me de Diego Rivera ter ficado furioso por ter de interromper certo quadro, um nu, que estava pintando no seu estúdio, mas que depois veio, simpático e amável, debaixo de chuva, conceder-me uma entrevista no Hotel Kilz da Cidade do México. Recordo uma conversa em voz Inúxa com três membros do partido clandestino anti-Franco, num discreto restaurante nos arredores de Madri, e das sen- linelas da polícia falangista à espreita. Lembro-me de ter feito uma visita guiada aos estúdios do sótão de Picasso, na Rue des Grands-Augustins, em Paris, durante a qual ele explicava em voz soturna as fases da sua obra, de olhos marejados de lágrimas pela notícia da morte da mulher de um amigo, na Suíça, naquela mesma manhã. Lembro-me de um certo quarto no Palácio de Buckingham, em Londres, d<- um célebre croupier de um cassino em Monte Cario, de um monsenhor no jornal Osservatore Romano, no Vaticano, de uma senhora lendária em certo bistrot de Montmartre. Tudo isto é apenas uma pequena parte de todas as boas recordações que conservo daquelas duas décadas. Muitas pessoas, locais e instituições, que não mencionei aqui e luzem parte desses anos, encontram-se incluídas com todos os pormenores nas páginas deste volume. Incluem-se nele histórias verídicas que eu considero as mais interessantes e inesquecíveis entre as minhas narrativas como Cavalheiro de Domingo. São vinte ao todo, essas narrativas. Nove já foram publicadas de forma abreviada.
Aqui aparecem na íntegra. As onze restantes ainda não foram publicadas. Três delas vendi-as a revistas, mas, por um motivo ou por outro, nunca foram publicadas na América. A cada um destes capítulos acrescentei epílogos ou pós-escritos, cujo título genérico é “O que aconteceu depois”. Quando comecei a reler estes artigos, senti uma curiosidade tremenda de saber o que tinha acontecido às minhas personagens, depois de trinta anos. Que teria sido feito das duas velhinhas que, quando jovens, haviam dirigido a mais espetacular casa de má fama de toda a América? Que sucedera ao jovem operado de uma lobotomia pré-frontal? Onde teria ido parar o grande detetive que vivia em Lyons? Qual o destino daquele juiz do prêmio Nobel que adorava Hitler? O que teria acontecido à união das gueixas? E ao Expresso do Oriente? E à minha coluna preferida de anúncios no Times de Londres? E assim, desde 1963 até 1965, segui a pista dos heróis de meus artigos, a fim de descobrir o que teriam feito desde o tempo em que escrevera a seu respeito até hoje. Estas histórias são uma miscelânea das minhas aventuras pessoais e das descobertas que fiz sobre pessoas e lugares que despertaram a minha curiosidade. Uma vez que os assuntos subjetivos são pouco apreciados pelas revistas populares, grande parte das pequenas obras deste volume são reais e objetivas no estilo. Trata-se de entrevistas, narrativas, impressões sobre assuntos que me intrigaram então e que ainda hoje me interessam. Por que razão, hoje, os teria escolhido? Não sei ao certo. Talvez minha seleção tenha se baseado sempre no instinto. Ou talvez nunca tenha esquecido o que o editor de uma grande revista certa vez me disse. Pedira-lhe eu que me dissesse que parâmetros devia ter para saber se um assunto agradaria ao seu ilustre periódico. Ao que ele replicou: “Estamos interessados em tudo que se possa considerar o maior, o melhor ou o primeiro”. Perguntei então: “Ou o mais fora do comum?” E ele respondeu-me: “Sim, ou o mais fora do comum”. Ainda que tenha aplicado este critério à maior parte de meus artigos em meu trabalho diário, não se deu o mesmo, pelo menos inteiramente, com os de domingo, que se lecionei neste livro, a não ser que o tenha feito inconscien- l cmente. Aqui estão, pois, duas décadas de domingos, em que um certo homem passeava “ataviado segundo o costume da época, de cabeleira ao vento, rendas e espada na cinta”, desde o romper do dia até a noite, gozando estes curtos momentos em que era senhor de si, durante os quais podia falar sobre o que gostava ou de quem gostava dele.
II O Cavalheiro de Domingo na sua terra
2 Duas velhinhas simpáticas Quando, em fevereiro de 1902, o Príncipe Henrique da Prússia chegou a Nova York, para receber o iate construído para o irmão, o Cáiser Guilherme II, imperador da Alemanha, alguns jornalistas perguntaram-lhe qual o lugar da América que mais gostaria de visitar. Os repórteres preparavam-se para ouvir a clássica resposta: a Casa Branca, as cataratas do Niágara ou o Grande Canion. Em vez disso, porém, o príncipe retorquiu: — O que eu mais gostaria de visitar? Acho que o Everleigh Club de Chicago. Os representantes da imprensa ficaram mudos de espanto e logo a seguir delirantes de alegria. E, dali em diante, passaram a adorar o príncipe. Pois não ignoravam, eles e toda a população masculina dos Estados Unidos (e, pelo visto, da Europa), que o Everleigh Club não constituía uma atração de que se pudesse falar abertamente, nem tampouco era um clube masculino qualquer. Tratava-se, como disse certo jornal, de um clube “de que nunca ninguém se fez sócio. . . nem se demitiu”, era “um lugar proibido de Chicago: uma casa de má fama, mas também de fama mundial”. Depois de oferecer ao governo dos Estados Unidos uma estátua de Frederico, o Grande, o Príncipe Henrique da Prússia recebeu em troca o seu presente. Foi levado até Chicago, colocou uma coroa de flores no Monumento a Lincoln, “aguentou” uma recepção no Clube Germânia, fez todas as visitas protocolares e, por fim, viu o seu desejo realizado. À meia-noite do dia 3 de março de 1902, o Príncipe Henrique da Prússia era convidado de honra de uma grande festa — a imprensa local chamou-a “orgia” — oferecida pelas duas irmãs, oriundas do sul, que dirigiam o Everleigh Club, a que assistiu todo o pessoal da casa: trinta beldades destituídas de complexos. Foi uma noite comprida e delirante. Dez dançarinas vestidas de peles de gazela, e batendo pratos com fúria, distraíram o príncipe, enquanto ele conversava solenemente e discutia Schiller com Aida e Minna Everleigh, proprietárias da famosa casa. Mais tarde, no decorrer da noite, num momento de grande euforia, o príncipe fez um brinde ao cáiser (e às duas Everleigh), bebeu champanha no sapatinho prateado de uma das moças, tornando popular um costume que iria atingir o auge em 1920. Para o príncipe, foi uma data memorável. Para as irmãs Everleigh, a visita real não passara de um acontecimento agradável. . . mas comum. Durante os doze anos de sua existência, raras semanas o Everleigh Club deixou de receber uma celebridade, quer americana, quer estrangeira. Nos dois anos que precederam a visita do príncipe e nos dez que se seguiram, todos os forasteiros ilustres, vindos de todas as nações, após as visitas oficiais, coroavam a sua estadia com uma ida ao Everleigh Club. A popularidade do clube era merecida, porque raros bordéis podiam competir com sua opulência e hospitalidade. Nos seus áureos tempos, o Everleigh Club era constantemente comparado a outras maisons de joie rivais, tanto da América como do estrangeiro, mas saía sempre vencedor. Entre os competidores nacionais havia o The Castle, em St. Louis, dirigido pela negra e afável Babe Connors, cujos dentes eram obturados com diamantes. Nesta casa de prazer, Paderewski acompanhara ao piano os cânticos obscenos das pensionistas, e foi nas suas salas que certo dia se redigiu um programa republicano. Ali, as jovens mulatas, “de saias compridas, dançavam sobre um espelho, sem roupas de baixo”. A Casa de Todas as Nações, de Budapeste, podia ser considerada rival do Everleigh Club. Em sua sala de entrada havia “retratos das mulheres nuas, para que os
clientes pudessem fazer a sua escolha. Bastava apertar um botão por baixo do quadro e este apagava-se imediatamente, mostrando assim ao visitante seguinte que aquela senhora estava ocupada”. No entanto, apesar desta renhida competição, o Everleigh Club de Chicago, desde o seu nascimento, em 1900, até o seu ocaso, em 1910, foi sempre o bordel mais conhecido e original do mundo inteiro, destronando qualquer outro estabelecimento do gênero que algum dia tivesse existido ou viria a existir de Paris a Xangai. As fundadoras do clube, “as duas ‘madames’ mais famosas da história da América”, conforme lhes chamava Polly Addler, eram filhas de um advogado famoso, natural do Kentucky: Aida (a quem a imprensa se referia muitas vezes como Ada) Everleigh, nascera em fevereiro de 1876, e Minna Everleigh, em julho de 1878. As duas frequentaram na adolescência uma escola secundária do sul, onde se distin- I MI iram na declamação e na arte de representar. Quanto à amizade e ternura que dedicavam uma à outra, eram quase tão unidas como irmãs siamesas. “Rivalidade fraterna” era uma expressão ainda desconhecida na linguagem comum. Por isso, quando Minna, aos dezenove anos, se apaixonou e veio a casar-se com um cavalheiro do sul, ninguém se surpreendeu ao ver que Aida, de vinte e dois, se casava igualmente com um irmão do cunhado. O casamento de Minna foi de curta duração. “O marido era um bruto, desconfiado e ciumento”, afirmou um amigo seu. Poucas semanas após a lua-de-mel, Minna abandonava o marido e sua velha casa do Kentucky e ia para Washington. Não é de admirar também que, dali a uma semana, e pelas mesmas razões, Aida deixasse o marido para juntar-se à irmã. Durante alguns meses percorreram o país representando, de Nova York ao Texas. Desiludidas da vida fatigante do teatro ambulante, desanimadas com a falta de oportunidades, começaram a procurar um ganha-pão mais estável e digno. Seguiu-se então uma série de acontecimentos que viriam obrigá-las a encarnar novos papéis. Quando iam a caminho de Omaha, onde deviam exibir- se na Exposição Internacional Trans-Mississípi, receberam a notícia de que seu pai morrera, deixando em testamento uma herança de trinta e cinco mil dólares. Enquanto faziam planos sobre a melhor maneira de empregar o dinheiro de forma lucrativa, um comentário ouvido certa vez de uma atriz sugeriu-lhes uma ideia. Lamentavase esta de que os pais considerassem a carreira do palco tão degradante como a de prostituta ou cafetina. Embora de início se limitassem a falar no caso com ar de brincadeira, não tardou que começassem a discutir mais a sério a ideia de investir a herança numa profissão que, muito embora não se pudesse considerar mais respeitável do que a de atriz, era, pelo menos, muito mais rendosa. Antes, contudo, de investigarem este possível negócio, quiseram conhecer outras pessoas e aprender tudo que parecesse proveitoso. Em Omaha, abandonaram a companhia de teatro e instalaram-se na cidade. Graças aos conhecimentos da família, conseguiram ser convidadas para os jantares e festas que se realizavam nas melhores famílias de Omaha. Porém a beleza e a vivacidade das duas irmãs não foram muito apreciadas pelas senhoras casadas, não tardando que fossem postas à parte pelas damas da classe média. Minna começou então a falar em se vingar a sério daquelas puritanas, fundando uma casa que seus vis maridos se sentiriam satisfeitíssimos de frequentar. Mas não foi apenas o desejo de dar uma lição a meia dúzia de criaturas esnobes que levou as duas irmãs Everleigh à prostituição. Segundo um dos seus
melhores amigos e confidentes, Charles Washburn, nessa altura repórter policial do Tribune de Chicago, o que as arrastou para aquele modo de vida foi o ressentimento profundo que sentiam pelos homens. “Duvido que tanto Minna como Aida tenham esquecido algum dia o tratamento brutal que os respectivos maridos lhes infligiram”, escrevia Washburn numa antiga biografia das duas irmãs. “Ambas sentiam um ódio profundo e inveterado pelos homens, do qual não conseguiam se libertar. Embora elas próprias não o confessassem, todas as suas ações indicavam um objetivo determinado. A maneira como estudavam os homens, sua opinião sobre os caprichos masculinos e o empenho de apanhá-los dentro de seus salões eram a própria atitude da aranha em face da mosca.” Em Omaha, Minna Everleigh fez um estudo rápido, mas esclarecedor, das atrações que era possível oferecer aos homens que assistiam à gigantesca Exposição Trans-Missis- sípi, que custara dois milhões de dólares, e considerouas bastante escassas. Resolveu melhorá-las. Comprou um bordel pouco rendoso, mas que ficava perto da exposição. Com o resto da herança restaurou a casa meio arruinada, redeco- rou-a, passou a fornecer comidas e vinhos de melhor qualidade, e contratou as mais belas e charmosas mulheres, muitas recrutadas entre as atrizes ambulantes que já conhecia. Então ela e a irmã Aida abriram as suas portas. Os grupos de homens que frequentavam a exposição não tardaram a aprender o caminho para os salões das Everleigh. Quando o certame terminou, Minna e Aida haviam elevado o seu capital de trinta e cinco mil dólares para se- lenta e cinco mil, o que constitui uma soma considerável em qualquer época, mas que no fim do século representava uma fortuna. Verificaram nessa altura que a clientela diminuía. Não liavia muitos capitalistas entre os habitantes de Omaha, e ms Everleigh começaram a procurar outro local mais digno de suas qualidades. Ao estudarem os mapas, não encontraram nenhum lugar onde não existisse já uma casa onde se podia obter o que elas tinham para oferecer. Regressaram a Washington e pediram conselho a Cleo Maitland, a mais próspera “madame” da capital. Sem hesitação, esta aconse- Iliou-as a experimentar Chicago. Essa metrópole — a Pérola da Pradaria, no dizer de Herbert Asbury — possuía uma zona proibida de grande classe e com vastas dimensões, num distrito político bastante tolerante, a região conhecida pelo nome de Levee. Para pessoas audaciosas, as possibilidades eram ilimitadas. E, acima de tudo — acrescentara Madame Maitland —, por coincidência ela sabia que vagara uma casa que se poderia obter praticamente de graça. O prédio disponível em Chicago consistia, na verdade, de duas casas de pedra, com três andares, cinquenta quartos e uma larga escadaria na frente. Ficava situada na Dear- born Street, número 2 131, e fora edificada em 1890 por uma tal Lizzie Allen, cafetina de profissão, para oferecer diversão suplementar aos visitantes da Exposição Mundial Columbiana realizada em Chicago em 1893. Encerrada a exposição e pouco antes de morrer, a dita “madame” alugara a casa e vendera a mobília a uma colega, chamada Effie Hankins. Esta, por sua vez, já velha e muito rica, queria aposentar-se e mostrou-se pronta a negociar com as Everleigh. Pediu pelo seu enorme prostíbulo um preço muito baixo: cinquenta e cinco mil dólares pela mobília, as mulheres, a boa vontade e ao mesmo tempo um aluguel a longo prazo de quinhentos dólares por mês. No dia 1° de fevereiro de 1900, o Everleigh Club de Chicago foi solenemente inaugurado, e nesse mesmo dia começou a sua lendária história. Foi também a estréia de Minna e Aida sob o nome Everleigh. Seu sobrenome era muito vulgar. Portanto, na véspera da inauguração do negócio, procuraram qualquer nome mais
sonante e apropriado às circunstâncias. Uma das suas queridas avós terminava sempre as cartas que lhes escrevia com estas palavras: “Everly yours” (Em inglês, "sempre sua". (N. do T.) Por isso optaram por Everly, escrito com terminação diferente. Antes da inauguração, a casa sofrerá grandes transformações. As criadas brancas de Effie Hankins foram substituídas por pessoal negro e as mulheres de Madame Hankins (prostitutas gastas e grosseiras) cederam seu lugar às cola- boradoras de Aida (bonitas e experientes. . . e não amadoras.. . as mais talentosas do país. . . que usavam caros vestidos de noite). A cozinha era da melhor qualidade; os vinhos, importados; a hospitalidade obedecia às tradições do sul; o mobiliário e a decoração não se podiam comparar com as de nenhum outro bordel do mundo. Para abrilhantar a noite da inauguração, um senador de Washington envioulhes flores. As principais companhias vinícolas do meio-este e os comerciantes forneceram- lhes gratuitamente as melhores comidas e vinhos. Os primeiros fregueses, um grupo de milionários criadores de gado do Texas, gastaram, em poucas horas, cerca de trezentos dólares. A despeito do frio de rachar, as irmãs Everleigh ganharam nessa noite mil dólares. Para as duas estreantes, com vinte e dois e vinte e quatro anos, era uma estréia auspiciosa. Durante os doze anos de atividade que se seguiram à abertura, o Everleigh Club conquistou fama mundial, em grande parte devido ao virtuosismo e ao bom gosto das proprietárias, à extraordinária perícia de suas colaboradoras, ao requinte do serviço e ao esplendor do ambiente. Para cada cavalheiro desejoso de se evadir através dos prazeres da carne, esse clube não representava apenas uma reles casa de má fama. Uma vez lá dentro, o cliente libertava-se imediatamente de quaisquer preconceitos sobre os baixos intuitos comerciais das proprietárias. O ambiente, algo de intermédio entre um clube masculino e uma residência de damas da alta-roda, proporcionava-lhe cultura, beleza, intimidade doméstica, bem-estar. . . e havia ainda o prazer sensual, tudo envolvido no véu do mais exótico romance. Desde o momento em que o freguês entrava no Everleigh Club, nenhum esforço era poupado para lhe cativar os sentidos. Os cinquenta quartos da casa, instalados em três andares, haviam sido decorados por Minna Everleigh para representarem um paraíso do Oriente Médio e cativarem a vista, o ouvido, o paladar e as emoções do cliente. Os quartos, os adornos, os requintes não satisfaziam todas as exigências de cada homem. Ofereciam, sim, qualquer coisa ao gosto de cada um, segundo as suas posses e as suas necessidades. No primeiro andar havia doze salas espaçosas, chamadas Sala Dourada, Prateada, Cor de Cobre, Mourisca, Verde, Cor-de-Rosa, Vermelha, Azul, Egípcia, Chinesa, Japonesa, Oriental. A primeira tinha mobília dourada, aquários com um filete de ouro, escarradeiras de ouro dezoito quilates, que haviam custado seiscentos e cinquenta dólares cada uma, cabides de ouro e um piano dourado que valia quinze mil dólares. A Sala Cor de Cobre era toda forrada com placas daquele metal. A Mourisca ostentava tapetes orientais de preços incalculáveis. A Sala Azul possuía divãs dessa cor e gravuras de Gibson (Charles Dana Gibson, pintor e ilustrador americano, 1867-1944. (N. do T.) Depois, no segundo andar, havia uma galeria de arte com uma cópia do Apoio e Dafne, de Bernini, uma biblioteca com mais de mií livros, na sua maioria clássicos (biografias, história, poesia e romance, todos escolhidos por Minna), uma vasta sala de jantar guarnecida com baixela de prata e uma grande sala de
baile turca, com um jirau de madeira formando mosaico, no centro da qual havia um repuxo. Para alcançarem os boudoirs do amor, no terceiro andar, os clientes subiam uma escadaria de mogno, atapetada e ladeada de palmeiras e estátuas gregas. Em cada um dos trinta quartos, o cliente e a mulher que escolhera desfrutavam da maior intimidade, do luxo mais extraordinário. Todos possuíam uma cama de cobre com incrustações de mármore, teto forrado de espelho, um chuveiro e uma banheira dourada, rosas frescas nas jarras, quadros a óleo importados da Europa, e campainhas para poderem mandar vir champanha. Além disso, cada um possuía a sua particularidade: ora um pulverizador de perfume sobre o leito; ora um foco de luz prateada incidindo sobre o mesmo; ora um colchão turco autêntico no chão, coberto por um cobertor de caxemira branca. E, em ocasiões especiais, Minna Everleigh, que tinha mania de borboletas, largava alguns desses insetos vivos, que ficavam voando loucamente pela casa. Depois da primeira visita a este opulento palácio, Jack Lait, que mais tarde viria a ser editor do Mirror, de Nova York, exclamou apaixonadamente (e sacrilegamente): — Minna e Aida Everleigh são para o prazer o que Cristo é para a cristandade! O visitante que chegasse ao Everleigh Club nunca ia diretamente da entrada a um quarto do terceiro andar. Da- va-se-lhe a ilusão — pelo menos até apresentarem a conta — de ser convidado de honra de um jantar oferecido por uma casa rica. Edgar Lee Masters, autor da Spoon River anthology, recordou, em 1944, seis anos antes de morrer, uma visita às irmãs Everleigh. Masters, com trinta anos quando o clube se achava no apogeu, fez uma descrição de sua visita ao bordel. Observou que Minna se impunha como “a personalidade de maior relevo, a figura mais impressionante”. Muitas vezes, disse ele, “era ela quem vinha à porta quando tocavam a campainha. Seu andar era semelhante ao rastejar incerto de uma lagarta”. Extremamente magra, tinha os cabelos negros, crespos, e um rosto de feições delicadas. Seu cumprimento habitual era sempre: — Como vai, meu rapaz? O “rapaz” acabava indo mesmo muito bem. Não tardava a compreender que teria de gastar pelo menos cinquenta dólares naquela noite. No salão de baile turco, junto à fonte com repuxo, ou em qualquer das salas de várias cores, acabava por mandar vir uma garrafa de vinho francês que custava doze dólares (mais tarde, se encomendasse a segunda, lá em cima, num dos quartos, o preço subiria para quinze). Depois de trocar umas graçolas com amigos ou conhecidos, escutava a música de um dos três quartetos da casa. O freguês era servido principescamente por criados e criadas negras, e depois “fisgado”, embora de forma sutil e digna, por uma das trinta beldades da casa. Se ia resolvido a jantar no clube, e com outros intuitos mais agradáveis ainda, levavam-no depois para a sala de jantar. Ali, sobre toalhas adamascadas, eram-lhe servidos faisão ou peru assado, ou galinha-da-índia acompanhada de mais vinho. O jantar, não incluindo o vinho nem a companhia feminina, custava no mínimo cinquenta dólares. Finalmente, depois de satisfeitos todos os apetites salvo um, o hóspede masculino fazia a sua escolha entre as moças ainda disponíveis. O preço dos serviços da jovem e da ocupação do quarto ficava em cinquenta dólares, aos quais se esperava que ele acrescentasse uma polpuda gorjeta.
A moça entregava metade dos rendimentos às patroas e ficava com o resto. A acreditar nos documentos da época, poucos foram os clientes que se queixaram do preço. Todos saíam satisfeitos, pois as trinta colaboradoras das irmãs Everleigh eram competentes em todos os sentidos. Na biografia das duas, escrita por um velho amigo delas, Charles Washburn, intitulada Entre para a minha sala, contase o modo empregado por Aida para recrutar as colaboradoras do seu clube. “Sou eu própria quem vai falar com elas”, dizia Aida. “Antes de virem para minha casa, exijo que tenham trabalhado noutra antes. Não gosto de amadoras. Moças inexperientes e jovens viúvas são muito inclinadas a aceitar propostas de casamento e a ir embora. Temos sempre uma lista de substitutas à espera. “Uma moça, para ser admitida, deve ter um rosto bonito, boa figura e parecer bem de fato à noite. Se é viciada em drogas ou bebida, não entra. Não nos falta nunca pessoal.” A verdade é que as Everleigh quase nada deixavam ao acaso. Beleza, saúde e experiência no amor não era o bastante para qualquer mulher se tornar uma prostituta Everleigh. Todas as semanas as duas irmãs davam às pensionistas uma aula de maquilagem, vestuário, costumes do sul, e exigiam que lessem os livros da biblioteca do clube. Segundo Charles Washburn, era Minna que fazia às recém-chegadas uma preleção sobre como comportar-se: “Sejam bem-educadas, pacientes e esqueçam-se do que estão fazendo aqui. Nós queremos sempre que cada uma das moças seja apresentada como deve ser a cada hóspede. Nada de formar fila para serem escolhidas. O Everleigh Club não é um lugar para ralé: caixeiros em férias ou homens sem talão de cheques. “Sei que a princípio vai ser difícil. Isso significa que as meninas terão de usar uma linguagem de senhoras da alta-roda. Têm a noite inteira por sua conta, e um cliente de cinquenta dólares vale mais do que cinco de dez. Cansa menos. Mais tarde hão de me agradecer esses conselhos. Vocês só têm juventude e beleza. Conservem-nas o mais possível. Mantenham-se respeitáveis a todo o custo. . . Nós fornecemos os clientes. Tratem de diverti-los. Cedam, mas com interesse e mistério. Quero que as moças tenham orgulho de pertencerem ao Everleigh Club.” As moças sentiam-se verdadeiras senhoras da sociedade e os clientes que desfrutavam de sua companhia eram do mesmo parecer. Estes, portanto, eram recrutados no mais alto escalão de todas as profissões e negócios. E compreendese bem que alguns dos mais célebres, “um certo ator famoso, um conhecido crítico teatral e um romancista de nome, bem como um distinto aviador da época”, não quisessem que sua condição de cliente fosse tornada pública. E assim se fez. Muitos outros, porém, sentiam-se tão encantados ao falar de suas aventuras no Everleigh Club como se recordassem os tempos de estudante nas universidades de Harvard ou Yale. Edgar Lee Masters recordava-se de um famoso advogado de Chicago que ia passar no clube suas férias anuais. Fatigado quase até a loucura das causas que lhe vinham parar às mãos, procurava Minna e entregava-lhe uma nota de quinhentos dólares. Fechava-se naquele lugar onde podia beber vinho, comer frango assado e discutir as coisas da vida com Maxine, Gertrude ou Virginia. O clube tornou-se um antro de milionários. Em 1905, Marshall Field Junior, de trinta e sete anos, foi encontrado só em sua casa, morto por uma bala no abdômen. Apareceram manchetes nos jornais, insinuando que ele fora
assassinado no Everleigh Club e depois transportado para a sua casa, muito embora Minna afirmasse que Field nunca frequentara o clube e a polícia declarasse que morrera de um tiro acidental que ele mesmo disparara. Para as irmãs Everleigh, era uma vida alegre e rendosa, se bem que nem sempre muito fácil. Acontecia-lhes frequentemente serem perseguidas por outras proprietárias de bordéis, por criminosos ou puritanos. Em 1910, Nathaniel Moore, filho de um magnata de Rock Island, foi assassinado noutro bordel. Em seguida, roubaram-no e fizeram todos os esforços para esconder o cadáver na casa das irmãs Everleigh. Estas, porém, avisadas por alguns amigos, impediram o embuste. De outra vez, as proprietárias foram assaltadas por um viciado em drogas, e só o raciocínio rápido de Aida evitou que ficassem sem as joias. Outra noite ainda, um hóspede desceu as escadas em roupas de baixo, gritando que a casa estava pegando fogo. Quando isto chegou aos ouvidos do editor do Tribune de Chicago, este quis mandar imediatamente alguns repórteres ao local. Mas acabou por descobrir que três repórteres já estavam de serviço no clube naquele mesmo momento. Eram, porém, os puritanos que criavam os maiores problemas às Everleigh. Alguns eram inofensivos, como Lucy Page Gaston, presidente da Liga Contra o Fumo, que entrou pelo clube gritando: “Só você pode impedir suas moças de irem para o inferno!” Minna inquiriu: “Como, minha senhora?” E a Srta. Gaston: “Proibindo-lhes que fumem!” Havia outros mais perigosos. Gipsy Smith, evangelista londrino, invadiu Chicago e arrastou consigo multidões, pregando-lhes: “Um homem que frequente as zonas proibidas da cidade não tem o direito de conviver com pessoas decentes durante o dia!” Para que a juventude travasse conhecimento com o vício que grassava em sua terra, Smith levou vinte mil pessoas para visitar o bairro dos prostíbulos, para que vissem o inferno com seus próprios olhos. Depois da marcha, pelo menos um quarto dos homens que nunca tinham ido ali ficaram para trás, e muitos fizeram nessa mesma noite sua estréia no pecado dentro do Everleigh Club. Minna declarou então à imprensa: “Ficamos satisfeitas, mas deu-me tristeza ver tantos jovens simpáticos aqui pela primeira vez”. Para resistir aos ataques dos seus inimigos, as irmãs Everleigh compravam descaradamente a proteção da polícia e dos políticos. Minna declarou certa vez que, em doze anos, as casas de prostituição tinham pago quinze milhões de dólares pela proteção. Desta soma, cento e vinte mil dólares foram desembolsados pelas irmãs Everleigh, fora outras quantias destinadas a comprar legisladores do Estado em Springfield e a convencê-los a votar contra os projetos de lei desfavoráveis aos bordéis. A maior parte desse dinheiro fora parar nas mãos de dois vereadores da cidade. Estes, por seu turno, haviam comprado a força policial da cidade e os legisladores. Apesar desta constante sangria dos seus recursos, as irmãs Everleigh tinham um lucro anual (no tempo em que o imposto de renda era baixíssimo) de cento e vinte mil dólares. Apesar de viverem no luxo, esse dinheiro era destinado em primeiro lugar aos clientes. Quanto a elas, tinham o maior cuidado com o dinheiro e investiam-no com toda a segurança. Se os negócios tivessem continuado a prosperar como de início, teriam chegado à meia-idade várias vezes milionárias. Mas não foi o que aconteceu. Surgiu no país uma nova mentalidade, uma crescente noção de orgulho cívico que veio abalar profundamente os cidadãos de
Chicago. As Igrejas de todos os credos uniram-se para exercer a sua pressão, e o Conselho de Chicago viu-se coagido a instituir uma Comissão contra o Vício. Esta apresentou um relatório de trezentas e noventa e nove páginas, no ano de 1910. Só em Chicago, afirmava ele, existiam mil e vinte bordéis, ocupados por quatro mil prostitutas, dirigidos por mil oitocen- tas e oitenta madames, entre as mais distintas das quais se contavam Minna e Aida Everleigh. A comissão condenava de maneira inequívoca este comércio da carne, afirmando: “Não admira que uma moça que ganha apenas seis dólares por semana com o seu trabalho se sinta tentada a vender o corpo por vinte e cinco dólares, quando sabe que há quem esteja disposto a pagá-los e que a procura é grande”. Esse relatório pouca importância teve enquanto não foi eleito um novo prefeito, Carter Harrison, cheio de ideias puritanas. A princípio, sua atuação foi lenta, limitando-se a uma proclamação geral ordenando que as “mulheres de má vida” se retirassem das suas zonas de atividade e as “casas duvidosas” fechassem. Hesitava ainda em mandar fechar um dos mais famosos locais de atração da cidade, até que um dia alguém lhe mostrou uma brochura ilustrada que as Everleigh publicavam e distribuíam. Mal acreditando em seus olhos, o Prefeito Harrison leu: “Embora não se trate de um edifício extremamente imponente por fora, no seu interior a casa é suntuosa. O número 2 131 da Dearborn Street há muito desfruta de grande fama, em virtude do seu luxuoso mobiliário, quadros valiosos, estátuas e decoração artística. . . Aquecimento central no inverno e ventiladores elétricos no verão: nesta luxuosa residência nunca se sente frio nem calor excessivos ... Os membros do Everleigh Club podem considerar- se pessoas extremamente felizes”. O descaramento deste anúncio enfureceu o Prefeito Harrison e levou-o a entrar em ação. Convocou o chefe de polícia e os vereadores. Exigiu deles que o Everleigh Club fosse fechado imediatamente. Não admitia argumentos nem pedidos. O Everleigh Club tinha de desaparecer da cidade e as duas irmãs deviam ser expulsas para sempre. Não se podia apelar dessa ordem. A 24 de outubro de 1912, Minna e Aida foram informadas de que chegara o fim. Seus protetores já não tinham mais força para defendê- las. . . muito embora se afigurasse possível que, mediante uns vinte mil dólares, habilmente distribuídos, ainda se pudesse cancelar por uns tempos a ordem de fechamento. Minna recusou. Já que tudo acabara, estava pronta a retirar-se. As trinta moças desfizeram-se em lágrimas. E a porta principal fechouse para os “sócios”, a mobília foi coberta, a criadagem despedida e as moças despachadas com armas e bagagens para outras casas de menor categoria, em outras cidades mais hospitaleiras. Minna e Aida decidiram ir à Europa, para visitar Roma, e descansar, adquirir mais cultura, e esperar uma mudança da situação em Chicago. Regressaram depois de seis meses, e, sabendo que mais uma vez dispunham de proteção, resolveram abrir um Everleigh Club no bairro oeste de Chicago. Era agosto de 1912. Mas, ao verem que, além da quantia inicial que fora exigida, seus protetores pretendiam juntar outros quarenta mil dólares, e ao verificarem que o governo da cidade estava mais intransigente do que nunca, as Everleigh acharam impossível um entendimento. Venderam em leilão a luxuosa mobília — tudo, salvo o adorado piano de Aida e a cama de cobre, com engastes de mármore, que pertencia a Minna, os livros encadernados, os quadros preferidos de ambas e mais algumas recordações —, saindo de Chicago de uma vez por todas. Não iam, contudo, de mãos abanando. Fora o produto da venda da mobília
e outros objetos, que montava a cento e cinquenta mil dólares, deixavam o meiooeste com um milhão de dólares em dinheiro, duzentos mil em joias, e vinte e cinco mil em notas promissórias de clientes de confiança. Levavam também gratas recordações, nenhum ressentimento e uma grande dose de experiência em relação ao sexo oposto. Minna ficara sabendo, pelo menos, que a maioria dos homens “prefere jogar todos os dias a entreter- se com mulheres”. Isto talvez porque os dados fossem menos imprevisíveis e menos perigosos do que as mulheres. As duas irmãs atribuíam o seu êxito aos homens casados que frequentavam o clube, mas que poderiam ter ganho mais um milhão se não fossem as malditas mulheres casadas que faziam concorrência às suas moças. Alguma das duas proprietárias teria tido alguma vez relações amorosas com qualquer dos clientes? Minna nada dizia a esse respeito. Aida falava frequentemente em um jovem e rico apaixonado que queria levá-la como sua mulher para Nova York. Por que teria se recusado a legalizar a união? “Meu noivo tinha grande implicância com nosso piano dourado. Dizia que era feio. Nunca pude lhe perdoar semelhante coisa!” Em 1913, depois de se retirarem dos negócios, Minna Everleigh contava trinta e sete anos e Aida, trinta e nove. Só aspiravam viver em paz e anonimamente. Mas a princípio não conseguiram uma coisa nem outra. O passado recente seguia-as por toda parte. Quando um amigo íntimo, e antigo cliente, “Big” Jim Colosimo — um gângster simpático —, foi assassinado em seu restaurante italiano, em 1920, dizia-se que por um antigo sócio ou pelo jovem Al Capone, as Everleigh foram procuradas pela polícia e interrogadas. Quando uma prostituta que trabalhara no clube durante seis anos foi assassinada em Nova Orleans, tendo- lhe sido cortadas as mãos e roubadas as joias, as irmãs Everleigh viram-se mais uma vez interrogadas pela polícia. Quando Mrs. W. E. D. Stokes quis divorciar-se do marido milionário e ele a acusara de ter sido outrora uma das “moças das Everleigh”, as duas irmãs foram perseguidas pela imprensa sensacionalista ávida de escândalos. Acabaram compreendendo que a tranquilidade só era possível vivendo o mais anonimamente possível. E, tendo fechado o Everleigh Club, deixaram também para sempre o seu nome. Depois de enterrar o passado, depois de adotar outro nome, passaram a ser duas mulheres ricas e independentes que moravam no Central Park, em Nova York. As irmãs Everleigh desapareceram tão completamente de circulação que, depois de algumas décadas, todos as julgavam mortas. Com exceção dos antigos frequentadores do velho clube, todos as haviam esquecido. No entanto, de tempos em tempos, aparecia na imprensa um indício de que se encontravam bem vivas. Em 1936, Charles Washburn afirmava no seu livro Entre para a minha sala que as duas ainda viviam e que falara com elas. Vira a cama que restava, toda em cobre e com incrustações de mármore, o piano dourado, os livros, os quadros a óleo e a estátua de Ber- nini, Apoio e Dafne. Afirmava que elas viajavam muito, escreviam, assistiam a espetáculos na Broadway, liam livros e jornais. Haviam perdido parte da fortuna na crise financeira de 1929, mas restavam-lhes as joias. Recebiam muito pouco. “Possuem uma casa em Nova York, e tudo o que pretendem até o fim da vida é um teto que as abrigue e uma garrafa de champanha por semana”. Em 1944 resolvi investigar se as irmãs Everleigh ainda estavam vivas e, em caso afirmativo, saber que nome haviam adotado e onde residiam. Talvez me tivesse inspirado na aventura de um cidadão de Boston, o Capitão Edward Silsbee, admirador apaixonado de Shelley, que, cinquenta e sete anos após a morte do
poeta e cinquenta e cinco depois da de Byron, descobrira que a amiga de Shelley, Claire Clairmont, também amante de Byron, ainda vivia em Flo- rença, com oitenta e dois anos. Foi visitá-la, e isto, por sua vez, inspirou Henry James a escrever sua novela The Aspern Papers. Nesta obra, o autor-narrador descobre que a amante de um grande poeta romântico, há muito desaparecido, ainda vive em Veneza e vai lá para conhecê-la. Segundo afirmava o herói de Henry James, “foi uma coisa estranha para mim descobrir que. . . ela ainda existia: foi como se me dissessem que Mrs. Siddons, ou a Rainha Carolina ou a célebre Lady Hamilton viviam ainda, pois parecia-me que cia pertencia a uma geração já extinta”. Foi por isso que me senti inspirado a ir encontrar-me com Minna e Aida Everleigh, quase meio século depois de haverem reinado como as duas mais importantes agentes do prazer masculino que a história registra. Em abril de 1944, sendo eu então sargento do Departamento de Comunicações do Exército dos Estados Unidos, fui despachado para servir em Nova York e Washington. Antes dessa missão especial, já andava com ideia de escrever uma peça de teatro vagamente inspirada na vida das irmãs Everleigh e no seu clube. Nas noites livres escrevi notas esparsas para a construção da peça, notas fragmentárias, mas entre as quais se destacava o seguinte: “Cenário do primeiro ato: a Sala Dourada do Everleigh Club, em 1905. . . Problemas e conflitos que afligem as duas irmãs: um cavalheiro simpático pretende casar-se com Aida Everleigh e afastá-la daquele meio. . . Um juiz imaginário, inspirado na figura real de um advogado de Chicago que passa todos os anos suas férias no clube, é obrigado a interrompê-las certa vez em que o escolhem para chefe da Comissão Contra o Vício que vai investigar o clube. . . Minna procura resolver os problemas de um cliente que se dá mal com a mulher. . . Uma ‘madame’ nova e perigosa, de outro bordel, tenta mandar fazer um assalto ao clube e raptar as melhores moças das irmãs Everleigh. . . Inimigos do bairro e um puritano da cidade pretendem atirar a culpa de um assassinato para cima das Everleigh. . . finalmente, para culminar, uma sobrinha delas, muito séria r respeitável, vem visitá-las, acompanhada pelo irmão mais velho, com a intenção de ficar hospedada em casa das suas respeitáveis tias Everleigh, pois acaba de chegar do Kentucky, para conhecer a família de um jovem rico que pretende casar com ela (o pai do rapaz é milionário, fabricante de carne em conserva)... As duas irmãs ficam aterradas sem saber como esconder da sobrinha a profissão que exercem e a verdadeira natureza da sua casa. Vêem-se tendo de inventar uma forma de disfarçar de qualquer maneira o bordel e as raparigas, talvez montando uma fachada falsa. . . A cena final do primeiro ato é a chegada da sobrinha, precisamente no auge de uma situação crítica no clube. . . O segundo ato acaba quando o futuro sogro da sobrinha, o fabricante de carne em conserva, frequentador ocasional do clube, descobre a futura nora entre as prostitutas. . . No terceiro ato, Minna é obrigada a salvar o casamento da sobrinha ao mesmo tempo que resolve uma crise política municipal, evitando também que o clube seja fechado”. Uma vez que escolhera as irmãs Everleigh como personagens de minha peça, e seu clube como cenário, aproveitando alguns episódios autênticos da vida delas, tinha forçosamente de descobrir o seu paradeiro. No caso de ainda existirem, necessitava de sua autorização para escrever a peça. Mais importante do que tudo para mim, com peça ou sem ela, era o desejo que tinha de as conhecer, para satisfazer minha curiosidade. Sabendo que ia ser mandado para o leste, durante pouco tempo, a serviço do exército, tratei de saber se existiria alguém que tivesse conhecido as irmãs
Everleigh nos seus tempos áureos e me pudesse informar se ainda viviam ali e, caso afirmativo, como poderia chegar a elas. Escrevi pois a Charles Washburn e a Edward Lee Masters, mas não obtive resposta de nenhum deles. Lembrei-me então de Jack Lait, editor do Mirror de Nova York. Ele as conhecera e talvez soubesse do seu paradeiro. Pensei, porém, que não seria aconselhável procurá-lo sem conhecêlo. No caso de ele saber do segredo das irmãs Everleigh, não seria leal revelá- lo a um estranho. Por isso procurei como intermediário um amigo comum, e o descobri na pessoa de um conhecido relações-públicas, o falecido Mack Millar. Dali a uma semana, já em Nova York, telefonei a Lait, no Mirror, invocando o nome de nosso amigo comum. Disse que gostaria de lhe falar durante alguns minutos sobre um assunto pessoal. Fui encontrá-lo sentado à mesa, de lápis e papel em punho, com um ar muito ativo e desconfiado. Mal lhe falei no assunto que me trazia ali, sorriu e tornou-se mais amável. Mas ao mesmo tempo cauteloso. Expliquei-lhe por que motivo desejava conhecer as irmãs Everleigh e o que pretendia delas. Lait escutou-me, sem no en- lanto se comprometer a coisa nenhuma. — Diga-me ao menos se ainda vivem — perguntei. — Claro. Os vizinhos julgam-nas duas senhoras velhas, excêntricas e independentes. Ninguém conhece o seu passado. Para todos os que as rodeiam não passam de duas encantadoras velhotas. — Gostaria que me dissesse como poderei falar-lhes. Lait observou-me durante um bom tempo e depois endireitou-se de repente na cadeira giratória: — Muito bem, sargento. Você tem cara de pessoa honesta, pelo menos parece-me. Lembre-se ao menos de guardar segredo e de ser discreto. — Prometo! — Muito bem. O nome delas é Minna e Aida Lester. Têm uma casa de pedra na 71st Street, número 20. Quer lambem o telefone? Sim, senhor! É Endicott 29970. Mas cuidado, não vá apresentar-se assim sem mais nem menos. Acho que não conseguiria nada. Escreva-lhes uma carta. Pode servir-se do meu nome. Apresente-se, e diga-lhes quais são os seus projetos. Depois espere com calma. Agradeci, reconhecido, a Jack Lait e fui-me embora. No dia seguinte, antes de ter tempo de escrever ou de tele- fonar às Everleigh, fui chamado de novo à sede do Departamento de Comunicações do Exército, em Los Angeles. Durante a primeira semana que passei naquela cidade, escrevi com todo o vagar uma carta longa e muito amável à Srta. Minna Lester, para o número 20 da 71st Street, em Nova York. Dali a menos de uma semana tinha a resposta. Vinha, tal como todas as outras cartas que mais tarde receberia das irmãs Everleigh, metida num volumoso envelope de papel pardo, com lacre prateado. A carta, escrita com tinta azul, era um conjunto de garranchos disparatados e quase indecifráveis, com letras enormes. Essa primeira carta, e todas as que se seguiram, era espontânea, as frases extravagantes e a pontuação muitíssimo original. Minna, a irmã que sempre escrevia, desprezava os parágrafos, as vírgulas e os pontos e vírgulas, mas, em contrapartida, adorava as reticências, os parêntesis e os pontos de exclamação. Reproduzo sua carta na íntegra. O que se segue ocupava na realidade vinte páginas de tamanho regular, escritas pela mão generosa de Minna:
Nova York, domingo, 7 de maio de 1944 Ao Sargento Irving Wallace Caro Senhor Sua carta, dirigida a mim e a minha irmã Aida — está aqui na minha frente. . . É bem certo o ditado: "Uma carta é o espelho da alma de quem a escreveu”. . . Sua carta revela cultura, boa educação, inteligência, gênio literário e dramático. . . Daí minha resposta pronta e sincera. . . Caro Sargento Wallace. O passado de Aida e Minna Lester nada tem a ver com o Everleigh Club da Dearborn Street, em Chicago, Illinois. . . Tanto eu como Aida Lester vivemos ambas em Chicago durante a primeira década deste nosso século XX — mas de uma maneira muito diferente da vida que levaram as duas famosas e excêntricas irmãs... Nosso tempo é precioso — "tempo é dinheiro” —•, basta dizer-lhe que, muitas vezes, surgiram boatos ligando nossas vidas puritanas com a carreira sensacional das irmãs a que o senhor se refere em sua carta!! Eu e Aida viajamos pela Europa antes da Primeira Guerra Mundial — mas acabamos por regressar à nossa querida terra — fixamos residência em Nova York, na nossa casa atual, número 20, 71st Street, desde 1915. . . Entretanto novamente surgiram boatos a relacionarem-nos com as irmãs proprietárias da casa da Dearborn Street!!! Finalmente resolvemos — eu e Aida Lester — tomar uma atitude — localizamos as irmãs da Dearborn Street — Chicago!!! Elas provaram sua inocência no fato de seus nomes serem relacionados com os nossos — não perderei mais tempo com explicações — mexericos do bairro sul — seus inimigos — tinham procurado causar-lhes aborrecimentos — ajudados por conluio político com um gângster do Levee!!! Essas tais duas irmãs vivem também na cidade de Nova York!!! Mantêm-se retiradas de tudo, receosas ainda dos seus velhos inimigos — Desde o craque de 1929 sofreram pesadas perdas em virtude de algumas falências fraudulentas em empresas onde tinham investido os capitais... Depois de receber sua carta fui visitar as duas irmãs a quem ela era dirigida. . . Elas recordam-se de terem tido a honra de conhecer Mr. Jack Lait do Mirror de Nova York — distinto articulista — jornalista — autor de renome. . . Minha irmã Aida Lester e eu nunca tivemos o gosto de conhecê-lo — esperamos ainda vir a têlo. . . Para encurtar — caro Sargento Wallace, as irmãs que o senhor deseja conhecer querem a todo o custo evitar a publicidade. . . (As irmãs Everleigh). Muito embora se interessem pelo seu projeto de apresentar numa peça de teatro o Everleigh Club, pedem-lhe desculpas!!! Perguntei-lhes se não deviam levar em conta o auxílio financeiro que poderiam obter pela assistência prestada ao senhor no que diz respeito ao ambiente do clube da Dearborn Street em Chicago. Responderam-me que possuem um álbum de fotografias das salas e quartos do Everleigh Club estão dispostas a cedê-lo — mas têm de evitar a todo o custo a publicidade — Finalmente concordaram em vender o álbum — a pronto pagamento — e não em troca de lucros e percentagens depois que a peça for à cena: Caro Sargento Wallace —• fiz-lhe um relato minucioso da minha visita às irmãs Everleigh, com as quais meu nome c o da minha irmã Aida Lester tantas vezes tem sido confundido . . . Junto incluo alguns recortes que atestam como o passado deve ser esquecido nessa nossa era das velocidades!! Esqueça o Everleigh Club e seu antigo esplendor, que se pode apreciar no álbum que elas lá têm!!! Não foi Byron quem disse: “O passado nada é, mas o futuro não é senão o passado”!!! No entanto, se estiver interessado nas fotografias do Lverleigh Club, faça
me saber!!!! Note bem — o nome das irmãs Everleigh eram Mary e Alice!!! Os nomes Aida e Minna foram adotados por causa dos nossos, meu e de minha irmã Aida Lester quando ambas éramos damas da "alta” em Chicago, há muitos anos!!! E agora — perdoe-me esta carta tão comprida, caro Irving Wallace!!! Perdoeme não ter papel de carta adequado ao seu elegante papel aéreo — tão interessante, com o seu selo especial!!! Se ainda deseja esse tal álbum — responda caro Sargento Wallace... Se fosse meu cedia-o de graça com a maior boa vontade!!! Oxalá consiga o que deseja!!! Diga-me se recebeu esta minha carta!!! Sua admiradora sincera, Minna Lester. Os onze recortes a que Minna se referia consistiam em uma história da Associated Press sobre um oficial de serviço no sul do Pacífico, que queria escutar a voz do filho, com quatro dias de idade, ao telefone, e que nada conseguira ouvir até que acabou pedindo à esposa que batesse na criança; uma fotografia de jornal de um filme de Mickey Rooney; um anúncio bastante ousado recomendando a boa qualidade de uma certa marca de calcinhas; uma fotografia de jornal onde se via o Major James Stewart sendo condecorado por um tenente-coronel; outra biografia de uma artista do rádio; o anúncio de um livro recentemente publicado sobre os fuzileiros navais; fotografias de várias cenas de um filme intitulado The Hitler gang; uma caricatura política de Adolf Hitler; mais outras três de Himmler, Goebbels e Hitler à beira da derrota; e finalmente uma foto da seção de teatro de The New York Times, mostrando o elenco de cinco comédias musicais de grande êxito, de autoria de Richard Rod- gers e Oscar Hammerstein II. Senti-me estranhamente comovido com essa primeira carta daquela dama de sessenta e seis anos, antiga dona do mais elegante bordel de todo o mundo — comovido pela sua história complicada e ingênua em que afirmava terem sido damas da “alta” e haverem conhecido as verdadeiras Everleigh, dando-se ainda hoje com elas. Comoveram-me também as suas citações vulgares e a necessidade de venderem o precioso álbum com fotografias do Everleigh Club. Quis escrever-lhes imediatamente, dizer-lhes fosse o que fosse, mas uma carta bem redigida e amável. No entanto não o fiz logo, e não tardou que me visse impossibilitado de fazê-lo. Fui obrigado a deslocar-me constantemente de um lado para o outro, em visita a várias instalações do exército, para recolher material necessário para alguns filmes militares de grande urgência. Nunca mais dispus de tempo nem de energia para me ocupar de Minna Lester, amiga de Minna Everleigh. Além disso, comecei a ter dúvidas sobre minha projetada peça, a respeito da possibilidade de conseguir obter direitos legais para me utilizar do Everleigh Club, servindo-me das declarações de uma verdadeira Everleigh, mas que negava a sua identidade. Perguntava a mim mesmo em que medida o que Minna me escrevera representava uma mentira consciente, baseada na prudência, ou até que ponto se poderia considerar como prova de sublimação dos desejos de uma velhota que toda a vida sonhara com uma identidade que nunca fora a sua? Estaria eu disposto a ver-me envolvido com essa pessoa? Não sabia, nem tinha tempo para pensar. Meu tempo pertencia todo ao exército. Até que, de súbito, em fins de 1945, tive que me decidir. Fui transferido de Los Angeles para o mesmo posto em Long Island, Nova York, que ficava muito perto do número 20 da 71st Street, e das damas da “alta” chamadas Aida e Minna Lester. Descobri que a peça que eu tinha em mente era um pretexto, mas de menor importância. Se conseguisse entrar em contato com as verdadeiras Aida e Minna Everleigh e obter delas os direitos relativos à peça, tanto melhor. Mas o que me
interessava, o que espicaçava a curiosidade teimosa que habita em cada escritor, era o desejo de conhecer o maior número possível de coisas sobre essas irmãs notáveis e lendárias, essas doces relíquias de um passado obsceno. Pouco depois de chegar a Nova York, no primeiro domingo que tive disponível — 15 de dezembro de 1945 —, sentei-me à mesa do meu quarto, no Royalton Hotel, na 14"' Street, e comecei a escrever à “minha cara Minna Les- ler”. Acabava de tomar uma decisão. Entraria no jogo delas, aceitaria as suas condições. “Não sei se se recorda de mim”, começava por lhe dizer na minha carta. “É sem dúvida com um sentimento de culpa que estou escrevendo só agora. Mas, se me permite refres- i ai-lhe a memória, recordar-lhe-ia que, no ano passado, quando estive de passagem por Nova York, no mês de maio, trabalhando como escritor para o exército dos Estados Unidos, consegui obter seu endereço por intermédio de Mr. Jack l.ait. . .”, em seguida explicava-lhe ao longo de quatro páginas por que motivo não pudera escrever às duas irmãs durante quase vinte meses, falava-lhes do desejo que mantinha de escrever a tal peça de teatro, que estava ansioso por comprar o tal álbum de fotografias (no caso de o seu preço não ser exorbitante) e que agora, de regresso a Nova York, "teria muito prazer em visitá-las para conversar”. Na noite seguinte, às sete horas, acabava de chegar do trabalho no quartel e preparava-me para ir jantar fora, quando o telefone tocou. Peguei no fone e esqueci o jantar. A voz, no outro lado do fio, era a de Minna Everleigh. Ainda conservo as notas que escrevi imediatamente após a conversa: “Minna parece muito velha”, observei. “Sua voz é trêmula, com altos e baixos, e assemelha-se muito à de Joseph Jefferson, naqueles discos antigos, editados pela Linguaphone. Às vezes dá uns guinchos, porém suas frases são vincadas e claras, frequentemente interrompidas por gargalhadas agudas. Fala em staccato.” — Recebemos sua maravilhosa carta — dizia Minna ao telefone —, queremos agradecer. É a carta mais bela que nos escreveram. Quanto ao assunto de que nos fala, as irmãs Everleigh, tenho de informá-lo, partiram para a Flórida, onde se demoram alguns meses. Mas eu e Aida estamos em contato com elas. Vamos comunicar-lhes seu pedido e depois lhe transmitiremos o resultado. Afirmei-lhe que lhe ficava imensamente grato pelo seu papel de intermediária entre mim e as Everleigh. Ela ouviu-me e no fim perguntou: — Você não é católico, é? — Não, não sou. — Logo vi. Bem, é que os católicos e os puritanos do nosso país não devem gostar nada da peça que você quer escrever. A Igreja Católica tem muita força, sabe? E cada vez mais. Controlam tudo. E são contra as pessoas do tipo das Everleigh. Contudo, meu querido Irving, quando vivia em Chicago, algumas das mulheres mais belas da nossa sociedade pertenciam à mesma classe das Everleigh. E eram todas contra as Everleigh! Elas não o mereciam, eu sei! É como essa coisa de julgar os nazistas pelos crimes de guerra. Muitos não fizeram mais do que executar ordens. Não quero dizer que não fossem culpados. São culpados, sim, senhor. Mas cumpriam ordens, compreende? Não podiam fazer outra coisa. Com as irmãs Everleigh aconteceu o mesmo, não podiam fazer outra coisa. Eu ia lhe dizer que sentia uma grande admiração pelas irmãs Everleigh, mas ela interrompeu-me.
— Sabe, Irving, existem três livros escritos sobre elas: um é Entre para a minha sala. Deveria ter-se chamado O clube. Outro é A Pérola da Pradaria. Há também outro, Os senhores do Levee. A maior parte do que ali se diz é um punhado de mentiras e falsidades. Mas ainda assim o melhor de todos é o Entre para a minha sala. . . Quanto à sua peça, estou pensando uma coisa que você podia ir fazendo. Li quatro volumes escritos por Paul Eldridge e publicados por HaldemanJulius, que imprime esses tais Pequenos Livros Azuis. Não são bem livros, mas uma espécie de folhetos. É, no entanto, literatura da boa, que se pode perfeitamente adaptar para o teatro. Escrevi a Eldridge, revelando-lhe minha opinião sobre sua obra realmente talentosa. Ele ensina línguas românicas aqui mesmo em Nova York. Depois, de uma maneira viva, embora confusa, Minna pôs-se a representar ao telefone, repetindo as falas de algumas das personagens, com as devidas mudanças de voz, de uma das obras de Eldridge, acabando por me contar o enredo das outras três. — Sabe que estou escrevendo um livro há sete anos? — prosseguiu. — Chama-se Poetas, profetas e deuses. Tenho lido muita coisa. Já li três mil livros que tenho em casa e dei duas vezes a volta ao mundo, uma em 1909 e outra em 1912. Sou inteiramente livre-pensadora, não acredito em histórias da carochinha. Você também é livre-pensador, não? — Bem, sou, mas. . . — Meu livro é uma autêntica heresia. Acho que vou entregá-lo a HaldemanJulius para que o publique. É o gênero dele. Espero terminá-lo no próximo ano e depois ofereço-lhe um exemplar autografado. — É muito amável de sua parte. — Você tem a sua peça na cabeça, Irving. Mas no fundo não está convencido de que seja viável, não é? Já viu alguma fotografia das irmãs Everleigh? — Não, nunca vi. — Uma tinha o cabelo castanho e a outra, louro. Seria difícil alguém reconhecê-las no palco. Eram moças muito estranhas e não foram nada felizes. Sua vida está cheia de tragédias. Deixaram Chicago em 1911, com uma fortuna de meio milhão de dólares. Perderam a maior parte em investimentos infelizes, mas não pense que ficaram pobres. Vivem bem e conservaram todas as suas joias. Não vivem na penúria nem dependem de ninguém. Fiquei aliviado ao ouvir isto e quis dizê-lo a Minna, mas ela nunca se calava: — Demos aqui algumas festas nos anos 30, porém, em 1933, quando começou a guerra, acabamos com elas. Só saímos de vez em quando para ir ao teatro. Acha estranho? Mas quero acabar o meu livro. Nossas amigas estão sempre nos convidando para recepções, reuniões em clubes, chás, mas tenho de recusar tudo. . . Mandamos vir mais oito exemplares dos livros de Eldridge. São uma surpresa para O leitor. Pelo Ano-Novo vou mandar-lhe um de presente. Iddridge é um Guy de Maupassant moderno. Vi aquela fita, the Dolly sisters, você viu também? Não pude deixar de rir com a figura da Betty Grable e aquela outra, como se chama ela? oh, sim, June Haver. Exatamente. São de tal modo desavergonhadas... As mulheres, no nosso tempo, não eram assim. Lembro-me daquele velho ditado: “Uma mulher acaba sempre por ser aquilo que o homem vê nela”. Pois bem, hoje em dia, Irving, o que eles querem é desavergonhadas, e não ficam desiludidos!
Soltou uma grande gargalhada, mas logo ficou séria: — Que idade tem você? — inquiriu. — Trinta. — Trinta? — Soltou nova risada amigável. — Que idade maravilhosa! — Calou-se e depois acrescentou: — Hei de falar com as Everleigh. Talvez você consiga o que pretende. Mas vá trabalhando noutras coisas. Há mais peixe no mar do que se consegue pescar. Boas festas, meu caro! E obrigada pela sua bela carta, a mais perfeita que recebemos em toda a nossa vida. Adeus, querido, até breve. Atordoado, mas satisfeito com o primeiro contato com Minna Everleigh, só pensava em como lhe falar novamente. Passou-se uma semana sem que ela voltasse a me telefonar. Mas eu não me esquecia delas e, como faltavam apenas três dias para o Natal, dirigi-me a uma livraria da Fifth Avenue e comprei as edições de luxo dos Sonetos do português, de Elizabeth Barrett Browning, e de Canção de Natal, de Dickens, e enviei a Minna e Aida Lester. No dia seguinte, domingo, seis dias depois do telefonema de Minna, estava na entrada do Royalton comprando fumo de cachimbo, quando me chamaram ao telefone. Disseram-me que uma tal Srta. Lester desejava falar-me. Embora esta segunda conversa fosse mais breve do que a primeira, não teve um significado menor, visto que, finalmente, falei com Aida, a dos cabelos louros e do piano dourado. Minna começou por dizer que tinha me mandado uma coisa. Chegara-lhe a última encomenda que fizera dos Pequenos Livros Azuis, e ela enviara-me alguns de Eldridge, que eu poderia aproveitar para uma adaptação para teatro. Antes que tivesse tempo de lhe agradecer, começou a recordar coisas de sua vida e da de sua irmã: — Éramos cinco irmãs — dizia ela. — Todas desejavam ser alguma coisa na vida, e eu não era exceção. Tal como esse jovem ator da Califórnia com quem tenho me correspondido. Ele dirigiu-se a nós, tal como você, julgando que éramos as irmãs Everleigh. Fiz-lhe ver o engano. Daí em diante, passou a mandar-nos fotografias e cestos de frutas. Além de ator, desejava também escrever. E a verdade é que escreve bem. Desconfio que tem algo de semita. Estou convencida de que os maiores poetas, escritores e atores eram semitas. Infelizmente, eu e a Aida somos arianas. Você o que é, Irving? Semita? — Indubitavelmente — respondi. Minna riu-se: — Gosto dessa palavra, “indubitavelmente”. Tenho a impressão de que você vai longe. . . Escute, Irving, quero que fale também com minha irmã Aida. Ela vale mil vezes mais do que eu. Vou ligar para ela. Está lá embaixo na biblioteca, junto dos nossos livros, e vai falar-lhe do outro iclefone, enquanto mantenho este também ligado. Espero que se entendam, mesmo sem nunca se terem visto. Bem, mio desligue. . . Esperei, preparando-me para enfrentar Aida, a desconhecida, e, súbito, ouvi uma voz suave e bem-modulada, com um leve sotaque do sul. Era Aida Everleigh e achei-a uma simpatia. Depois das apresentações de praxe, referi-me ii peça que tencionava escrever. Afirmou-me que os assuntos de negócios geralmente estavam a cargo de Minna. Quis saber o que eu achava do inverno em Nova York e escutou com interesse minhas impressões. Quando terminei, disse- me também o que pensava sobre Nova York:
— Estamos aqui há vinte e cinco anos e assistimos a muitas transformações. Acho que passou a haver gente demais. Pode ser bom para os jovens, que gostam de multidões. Mas para nós é incômodo. Fui muitas vezes à sua cidade de Los Angeles e gosto do clima. A última foi para visitar meu irmão que morreu em 1935, pouco depois dessa visita. Minna, que estivera escutando no outro telefone, meteu-se na conversa. Ela não gostava de Los Angeles porque I lollywood fazia parte de Los Angeles e Hollywood estava cheia de atores. — Em geral não gosto de atores. Você não é ator, é? — inquiriu Minna. — Não, felizmente. — Bem, os atores. . . têm todos qualquer coisa de Jack Barrymore. Assumem mil disfarces diferentes. Quando jovem também representei. Mas agora estou escrevendo e espero que alguém queira publicar minha obra. Irving, você vai ficar célebre com o que escreve. Estou convencida de que vai surgir desta guerra uma nova literatura. Tal como I lemingway e todos os que surgiram da Primeira Guerra Mundial, esta agora vai dar origem a qualquer coisa inteiramente nova. Dali a pouco foi Aida quem pôs fim à conversa, dizendo: — Você tem uma voz simpática, Irving. Se dispuser de alguma fotografia sua, gostaria que nos mandasse. É muito interessante conhecer o rosto das pessoas com quem só falamos pelo telefone ou por cartas. . . Desejo-lhe sinceramente um feliz Natal e muita saúde nestes próximos anos. Poupe-a bem, isso é muito importante. Nós não temos nos saído nada mal nesse assunto. Faça o que lhe digo. O dia de Natal, naquele ano, caiu numa sexta-feira. Muitos de nós tivemos licença nesse dia e eu resolvi passá-lo no meu quarto do hotel, descansando, lendo e pondo a correspondência em dia. À uma da tarde o telefone tocou e, no momento de atender, desejei que fosse Minna Everleigh. Meu desejo foi atendido. Minha interlocutora mostrou-se muito viva, animada, e conversou comigo durante mais de trinta minutos, o que foi quase um monólogo da parte dela. — Acabo precisamente de almoçar com Aida — declarou Minna. — Tomamos apenas café. Nos dias santos não comemos, nem nos intervalos das refeições, e é talvez por isso que me sinto tão bem hoje. Mas no dia 29 de dezembro começamos a festejar o Ano-Novo. Tenho uma garrafa de champanha de 1926, fantástica, que vamos beber nesse dia. . . Estava lendo ao café da manhã quando chegaram seus presentes de Natal — Sonetos do português, de Eliza- beth Barrett Browning, e Canção de Natal, de Charles Dic- kens. Oh, meu caro amigo, não imagina como sou louca por aquelas edições! Tenho que lhe pedir muitas desculpas porque os que lhe enviei não passam de uns exemplares sem valor dos Pequenos Livros Azuis. Esse Haldeman é um velhote excêntrico. Publicou um milhão de livros e eu já lhe comprei mais de mil.. . Aida estava comigo quando abri seu pacote, e eu disse que era preciso telefonar-lhe, mas ela retorquiu: “Minna, espero que você não incomode o Sargento Wallace no dia de Natal!” Mas eu não prometi que não telefonaria. Atualmente não converso com ninguém. Falo com você porque o estimo, Irving. E mais uma vez obrigada pelos livrinhos. A encardenação é de uma cor tão bonita! Vou guardá-los toda a vida como um tesouro. Perguntei-lhe se iam à casa de alguém ou esperavam visitas no dia de Natal. — Não — respondeu Minna. — Não recebemos ninguém. Resolvi viver encerrada num castelo de silêncio até acabar o meu livro. . . Você voltou a ler a
história de Jesus? Sabe que antes estava convencida de que os dois ladrões que morreram crucificados junto dele talvez fossem seus discípulos, que roubavam dos ricos para dar aos pobres. . . Quanto a mim, não me impressionam os crimes contra a Immanidade; o que não suporto é a hipocrisia. . . Tem visto o que se passa na Europa? Anarquia é uma coisa; revolução, ludo bem! agora, niilismo é demais! E quando há gente que morre de fome e de frio. . . De repente resvalou para a autobiografia: — Irving, você sabia que meu pai era advogado e falava sete línguas? E que eu já lia correntemente aos cinco anos? Casei-me muito nova, antes de fazer dezessete, com u m malvado de um homem muito rico, mas não tardamos a nos divorciar. Mas sempre me senti irmã de todos os homens e acho que você é um dos meus irmãos mais novos. . . Eu e Aida nascemos lá na Virgínia e considero-o meu irmão. Perdi um, de verdade. Aida contou-lhe, não? Km 1679, depois da Restauração, Carlos II da Inglaterra cedeu cinquenta e nove hectares de terra na Virgínia a dois irmãos que emigraram para o Novo Mundo. Foi essa a origem de nossa família. Meus antepassados morreram todos loucos, alcoólatras ou na Guerra Civil. Minha avó era gau- lesa. Tinha duzentas escravas, mas gostava dos negros. No entanto, costumava dizer ao capataz negro: “Não concordo cm mandar os negros rio abaixo e vendê-los, mas se te npanho maltratando os teus companheiros, ponho-te a bordo e te mando embora!...” O último filho de minha família nasceu quando minha mãe morria. Mais uma brusca transição e Minna voltou a discutir livros, filmes e a censura: — Gosto de Eldridge porque, embora bastante ousado, nunca emprega palavras grosseiras, como fazem tantos escritores depois da Primeira Guerra Mundial. Não aprecio palavras feias, e você?. . . No entanto, acho que o maior defeito de Hollywood é a censura. Não se pode censurar a literatura nem as ideias. Mas devem-se cortar as palavras obscenas, e acho que o palco voltará a ocupar o lugar que ocupava antes e que o artista criador pode fazer mais no palco do que em Hollywood. . . E agora, Irving, vou fazer- lhe uma coisa que nunca fiz a ninguém: enviar-lhe um exemplar de um livro intitulado A mais velha profissão do mundo. Leia-o, leia-o com atenção. Verá que o tomará mais tolerante e compreensivo. No dia seguinte eu ainda estava de licença e trabalhando no meu quarto do hotel quando Minna me telefonou de novo. Ela e Aida tinham muito trabalho porque haviam recebido mais de cem cartões de boas-festas que precisavam agradecer. Mas adiava a tarefa porque continuava a pensar em livros, no seu romance, e queria discutir o assunto mais detalhadamente. — Já leu Strange fruit, de Lillian Smith? — perguntou-me. — Acho que está todo errado, tal como aquela peça de teatro Deep are the roots. Conheço bem as negras e sei que seriam capazes de matar qualquer branca que lhes roubasse o homem. Já leu o Amsterdam New? É um jornal de negros. Acho-o explosivo, Irving. No seu íntimo, todos os negros odeiam os brancos. Isso é a realidade pura. Não acredito em ilusões. . . Lembro-me de ter lido um romance recente publicado pela Harper and Brothers. Tem um homem que entra pelo quarto adentro, despe-se, bate na barriga e diz à mulher o que você sabe. As palavras autênticas, isto num livro da Harper! Quando mostrei a passagem à Clara, minha datilografa, ela exclamou: “Santo Deus! Que palavrão! ...” Mas, se pensarmos bem, que mal há nessa palavra?. . . Os jornais que eu lhe aconselho são o Herald Tri- bune de Nova
York pela manhã, o Journal American, à tarde. Esse tal Cholly Knickerbocker é bastante atrevido. Todas as noites, durante um hora, leio-o em voz alta para Aida ouvir. Pela leitura das revistas vejo que Hollywood cada vez tem menos nível. Hoje o que se pretende é realismo. Lembra-se daquela frase de Maupassant: “Que pálido és, comparado com a vida. . .”! Sabe que sou parente de Edgar Allan Poe? Vai rir-se, com certeza, mas é verdade. Da parte de minha mãe somos aparentados com a mãe de Poe. O fato de falar na mãe fez Minna recordar outros membros da família. — Tive uma irmã, Lula, que tocava violino. Ficou com o braço paralisado aos dezenove anos e mais tarde morreu. Eu tinha quinze anos. Quis suicidar-me, mas Aida não me deixou. Quando eu tinha quinze anos, Aida, dezessete e Lula, dezenove, um dia, lá na Virgínia, Lula começou a tocar violino à meia-noite e continuou até de manhã; foi depois disso que ficou com o braço paralítico. Nessa mesma noite, no hotel, um negro morrera queimado e em frente, na igreja, eu vi as crianças e os adultos brancos rindo diante dos ossos carbonizados. Desde esse dia nunca mais entrei numa igreja, e quando eu morrer não consinto que levem meu corpo para lá. Conto tudo isso numa parte de meu livro que se chama “O Reino dos Sonhos”, com a diferença de que, neste, Lula se chama Lucy. Cada capítulo de meu livro termina com uma opinião favorável acerca de Shelley. A melhor citação é de Elizabeth Barrett Browning. . . Mas estávamos falando de ir à igreja. Quando alguém me diz que eu devia frequentá-la, respondo: “Já li o Velho e o Novo Testamento, mas também li a Inquisição!. . .” Eu e Aida temos parentes que são uns amores, e é como se fossem netos. Ajudamos financeiramente alguns, embora não sejamos ricas. Tenho uma cunhada, uma moça nova ainda, que é franco-mexicana e vive em Los Angeles. Quando recebe a nossa mesada, escrevenos sempre, dizendo: “Vocês vieram de novo até nós num tapete voador, como de costume...” Se um dia deixar de ter dinheiro, em lugar de deixar que me levem para um asilo de velhas, prefiro abrir o bico de gás. Depois Minna falou a esmo de vários assuntos. Recordava-se do princípio da Primeira Guerra Mundial: — No 1° de agosto de 1914, em Charlotteville, na Virgínia, eu e Aida passávamos por uma banca de jornais quando vimos as manchetes. Exclamei: “Meu Deus! Rebentou a guerra na Europa”. E Aida respondeu: “Não dura dois meses”. Mas eu respondi: “Não, Aida. Pode crer que vai durar uns dois séculos!” Minna falava ainda da sua paixão pela música: “Prefiro a música instrumental à voz humana. Veja só o que fez o tempo à voz do Caruso, e veja o que ele faz a um violino: melhora-o e torna-o mais sensível. E então a viola, a voz da paixão e do amor, adoro-a, acima de tudo!” Falava da vida social: “Eu e Aida pertencemos a dez associações femininas, mas depois da guerra não voltamos a nenhuma reunião”. E, finalmente, referiu-se aos homens: “Irving, gosto muito dos homens. Não calcula como estimo o sexo a que você pertence!” Depois disto passou-se o dia de Ano-Novo, minha licença terminou e logo estava de novo envolvido nas atividades do exército. Passaram-se duas semanas e meia sem que recebesse qualquer telefonema de Minna Everleigh, até que um dia, ao regressar ao hotel, encontrei um envelope de papel pardo com uma letra desconhecida para mim. Ãbri-o e li o que se segue: Nova York, sábado, 12 de janeiro de 1946 Ao Sargento Irving Wallace Cordiais saudações de Aida e Minna Lester, acompanhadas dos melhores desejos de prosperidade. Depois da nossa ultima conversa telefônica tenho estado bastante doente, com gripe — acompanhada de uma forte congestão
pulmonar! Minha irmã Aida é que estã escrevendo o que eu dito, pois encontrome ainda de cama e muito mal. . . Minha irmã Aida foi ontem ao correio e despachou-lhe os volumes de Eldridge que eu lhe prometera e A mais antiga profissão do mundo, de Joseph McCabe. ]unto incluo o cartão com o endereço de Haldeman-fulius. . . Editor e livreiro do homem livre americano. . . Peço-lhe que dedique sua atenção aos livros de Eldridge, se é que lhe interessam. — Desculpe os meus garranchos — estou nervosa! Caro Irving Wallace —• Já viu pelo que ficou escrito acima que não sou nada boa em “ditado”! Pode telefonar-nos assim que receba a encomenda dos livros que lhe enviei, e a essa altura espero poder dizer-lhe que minha querida irmã se encontra em franca convalescença. Sua amiga, Aida Lester. Tel. Endicott 2-9970 Logo que pude telefonei a Minna Everleigh, para saber se estava melhor (disse-me que sim) e para informá-la de que iria deixar Nova York dali a menos de uma semana, ao ser desmobilizado. Ela mostrou-se satisfeita com meu regresso à vida civil e só lamentava que eu tivesse de me ausentar para a Califórnia. Sua voz pareceu-me mais fraca do que de costume e o monólogo, desconexo. — Embora eu seja da Virgínia, não sou intolerante. Sei, porém, que todas as negras detestam as brancas. Quanto ao fato de Desdêmona beijar Paul Robson no Otelo, é coisa que nem quero ver!. . . Tenho dezenove volumes de poemas chineses na biblioteca e aprendi setecentos de cor. Meu preferido é o que o Imperador Ming mais estimava. . . Penso muitas vezes na Revolta dos Boxers (Revolta fracassada na China, em 1900, contra o poder e a presença de estrangeiros, cujo resultado foi apenas obrigar a China a fazer concessões econômicas e territoriais. - N. do T.) e no cerco da embaixada, em que mulheres bonitas foram despidas e raptadas pelos mongóis. Chang Kai-chek é um patife, um demônio miserável. Tenho o dossiê dele completo, esse malvado tár- iaro! Como deve saber, Stálin disse a F. D. Roosevelt: “Não partilho sua estima por Chang”. O pai de Hitler foi outro demônio... Uma mulher precisa da mão de um homem para guiá-la, especialmente nos negócios. Em 1929 e em 1931 perdemos uma fortuna em hipotecas. Em meio milhão de dólares que tínhamos investido, recuperamos apenas três centavos por dólar. Depositei nossas joias para reforçar nosso crédito, mas tive muito medo de subir a um arranha-céu, receosa de que alguém fosse atrás de mim e as roubasse. . . Gosto de saber que Somerset Maugham é um dos seus autores preferidos. Possui uma mentalidade muito requintada. É o pai do estilo. Contudo vi Chuva no cinema e não gostei. A apresentação que ele fez de Sadie Thompson como uma prostituta reles é uma tolice. . . Muito bem, Irving, então vai voltar à vida civil. Que quer que lhe diga, senão que estarei com você em espírito no próximo sábado, quando lhe derem a sua honrosa baixa? Felicidades, Irving. Felicidades! Voltei à Califórnia dali a duas semanas, e sete meses depois estava na Europa. Só dali a um ano e meio consegui tempo para entrar em contato mais uma vez com as irmãs Everleigh, escrevendo-lhes uma longa carta relatando minha viagem ao estrangeiro. Não me referi ao projeto da peça teatral. Enviei a carta e
pus-me à espera. Passaram-se quase duas semanas antes de receber o conhecido envelope de papel pardo muito volumoso, endereçado pela mão fantasista de Minna. A carta era assim: Nova York, segunda-feira, 4 de agosto de 1947 Caro Irving Wallace Recebida a sua encantadora missiva escrita de Hollywood e datada de 24 de julho. . . Sua mensagem cordial causou-nos surpresa. . . fulguei que havia se esquecido de mim e de minha irma Aida. . . Recordo-me de você e dos vários assuntos que tratamos por telefone em 1946, em Nova York. . . Li sua interessantíssima carta à minha irmá. . . Ficamos impressionadas e entusiasmadas com a sua eloquente narrativa das aventuras que viveu depois de haver falado conosco. . . Resumindo — depois da nossa última conversa — foi desmobilizado do exército — enviado para longe de Nova York — e, passados três dias, voltava à vida civil. — Regressou à sua casa — junto de Silvia, sua mulher — e resolveu fazer uma viagem pela Europa. . . Encomen- daram-lhe artigos para a Saturday Evening Post e para a Collier’s — depois partiu de barco com destino à Suécia — uma longa e apaixonante viagem. . . Andou nove meses pela Europa — partiu de Estocolmo, atravessou de trem a Alemanha ocupada — depois foi até Paris — demorou-se ali quatro meses —- partiu para a Espanha — passou de Madri para a Riviera francesa — depois foi para Pisa e dali para Roma. . . Em seguida dirigiu-se à Suíça — Berna e Lausanne — depois de novo para Paris — e finalmente para Londres . . . Tanto eu como a minha irmã Aida apreciamos história e literatura — caro Irving Wallace —• também nós viajamos através da Europa e da Ásia — ficamos admiradas por nos dizer que no meio de tantas aventuras consegue escrever artigos para revistas. . . Está então de regresso a Hollywood junto de Silvia, sua mulher! Eu e minha irmã lemos a sua série de artigos na Collier’s Magazine — sobre a Princesa Elizabeth — herdeira do trono da Inglaterra — e do Tenente Philip Mountbatten — que começou em março de 1947. . . Seu estilo é soberbo, colossal — caro autor, parabéns!!! 0 senhor possui autêntico gênio literário. . . Apreciamos imensamente — as duas fotografias que nos enviou, caro Irving — tiradas durante a viagem — uma em Paris — a outra junto do quadro de Rafael que representava a amante dele em Roma. . . Gostamos muito delas. . . Estão ótimas. . . Aquela em que você está fumando um cigarro lembra Jacob Weiss, cujo retrato lhe envio (Weiss foi um jovem membro do Irgun judeu, enforcado pelos ingleses na Palestina.). . . Que horror, toda esta perseguição e martírio infligido aos povos semitas — a raça mais nobre do mundo... É a chamada civilização cristã vista por dentro!!! — “O Urso que caminha como o homem”, segundo Kippling, a Rússia há de destruir a Inglaterra e a América. . . um dia. Desculpe — meu caro Irving Wallace — meu negro pessimismo — tenho seguido a história dos semitas ao longo de cinco mil anos de perseguições infernais — vinte milhões pereceram na funesta Inquisição — se a raça humana não consegue superar tamanha bestialidade, então deixem que a bomba atômica arrase tudo. . . Desculpe a minha neurose de hoje. . . Queria lhe esconder esta tristeza que sinto e responder à sua carta tão espontânea de uma maneira mais animada — agradecer-lhe por se ter lembrado de nós com tanta amizade — julguei que havia nos esquecido em meio à sua vida tão ocupada e absorvente. . . Quando voltar a Nova York — em setembro ou outubro, para encontrar seus editores — pode telefonar-nos quando quiser. . .
No que diz respeito às pessoas mencionadas em sua conversa ao telefone em 1946 — aconselho-o a não desperdiçar os seus dotes literários com peças teatrais ou livros acerca delas — no entanto, se ainda mantiver a disposição de escrever alguma série de artigos contando a história da vida delas — essas pessoas continuam a viver em Nova York e eu poderei comunicar-lhe qual a sua atitude em face da publicidade!!! Entretanto — fique com a certeza de que tem o nosso apreço e admiração incondicionais — a nossa amizade eterna. . . Diga-nos se esta resposta à sua tão amável carta lhe chegou às mãos. . . Telefone-me quando vier a Nova York —- Endicott 2-9970. — Desejamos as maiores felicidades para você e para todos os que estima. . . Que veja sempre todos os seus desejos plenamente realizados. . . Sinceramente amiga, Minna Lester. P. S. — Segunda-feira, 4 de agosto de 1947 Já alguma vez escreveu alguma coisa para a revista The American Weekly? Pertence às edições do New Journal American Magazines??? E muito popular e tem grande cir- culaçãou! Envio juntamente um artigo de Cholly Knickerbocker tirado do jornal do Hearst —• o Journal American que fala de Philip Mountbatten — o príncipe da Grécia — contando sua visita aqui em 1938 — seu entusiasmo por Cobina Wright Jr.. . . Tem uma grande piada!!! Quando escrever conte-nos as suas impressões. . . Depois desta carta, a não ser a troca de cartões de boas- festas, nunca mais recebi qualquer comunicação das irmãs liverleigh. Estava inteiramente absorvido em meus esforços para me tornar um escritor e descuidei da correspondência com Aida e Minna. Não tive possibilidade de ir a Nova York, tal como lhes prometera, e portanto não voltei a falar- lhes pelo telefone. Continuava com a intenção de lhes escrever, até que, pouco mais de um ano após haver recebido a última carta de Minha Everleigh, soube que tinha morrido. Enviei a Aida as minhas condolências e acrescentei mais uma nota necrológica a tantas já publicadas. Muito embora eu tivesse nascido em Chicago, depois do Everleigh Club ter fechado para sempre as suas portas e as duas irmãs terem abandonado a cidade, sentia que fazia de certo modo parte dessa época e que desempenhara um papel em suas vidas. Meu pai, meu tio, meus parentes masculinos mais chegados tinham conhecido, pelo menos de nome, o célebre bordel de milionários, onde príncipes e senadores, campeões esportivos e escritores vinham utilizar-se do piano dourado, das escar- radeiras de luxo, da rica biblioteca, dos suntuosos quartos, das trinta deslumbrantes moças, e gozar a convivência das proprietárias. Comprazia-me em acreditar que todo aquele luxo, todas aquelas maravilhas não haviam pertencido exclusivamente aos nossos pais e avós. Eu fora um dos felizes que as haviam partilhado. Porque eu também conhecera as irmãs Everleigh. É certo que as conhecera com duas décadas de atraso, quando fingiam chamar-se Lester, quando haviam se transformado em duas respeitáveis senhoras idosas, que pertenciam a dez clubes femininos e viviam numa solidão digna, perto do Central Park, em Nova York. No entanto, por seu intermédio, em cartas ou conversas telefônicas, acabara por conhecer intimamente seus inimigos, sua admiração por Maupassant, Byron e Shelley, seus pontos de vista sobre as mulheres, o racismo, sua distinta aversão pelo obsceno
e o meio familiar em que haviam crescido na Virgínia. Conhecera-as, e agora sentia saudades delas, de Minna, que desaparecera do mundo, e perguntava a mim próprio o que teria sido feito de Aida. Para mim fora uma experiência inesquecível essa amizade com as duas simpáticas velhotas. Ao recordá-las, lembrei-me de uma observação de Wilson Mizner: “Deve tratar-se sempre uma prostituta como uma senhora, e uma senhora como uma prostituta”. E isto fiquei eu sabendo acerca de minhas amigas: nunca qualquer homem se sentira na necessidade de tratá-las como senhoras. A despeito do lugar que ocupam na história, eram indubitavelmente duas damas da Virgínia, tinham-no sido em Chicago, na juventude, e depois em Nova York, já velhas, quando recebiam amigavelmente um escritor curioso que as admirava e se encontrava em missão do exército. O que aconteceu depois. . . Os fragmentos dessas memórias foram escritos logo após a morte de Minna Everleigh, em 1948, e só há pouco os organizei. Comecei a escrever esta história, por assim dizer, aos domingos. Não a escrevi para ninguém, apenas para mim, pelo menos até há pouco. Se quiser relatar tudo o que aconteceu desde 1948, tenho de me reportar à época do falecimento de Minna l.verleigh. A morte de Minna foi largamente noticiada pela imprensa, despojando-a do seu pseudônimo depois de tantas décadas e deixando Aida dali em diante e eternamente uma Kverleigh. Minna morreu a 16 de setembro de 1948, e o The New York Times deu ao falecimento dela grande relevo. Dizia assim a notícia: “Minna Everleigh, antiga proprietária, juntamente com sua irmã Aida, do Everleigh Club de Chicago, um marco que assinala o período de 1900 a 1911, morreu ontem no I lospital de Park Nest, com setenta anos. Viveu nesta cidade, sob um nome suposto, durante mais de vinte e cinco anos. “O Everleigh Club foi fechado durante uma campanha puritana, em 1911. Situava-se na Dearborn Street e era frequentado pelos magnatas do gado, por atores e membros da realeza. Foi célebre pelos seus números de variedades, pela música que apresentava e pela taxa de cem dólares, no mínimo, por noite. “Miss Everleigh e a irmã, oriundas de uma importante família da Virgínia, viviam modesta e discretamente, sendo sua principal distração ir ao teatro e escrever poesia. Quando o clube foi fechado, as irmãs confessaram que haviam ganho um milhão de dólares e que tencionavam passar o resto da vida o mais anonimamente possível — desejavam que todos se convencessem da morte das irmãs Everleigh.” O Daily News, de Nova York, dizia que Minna deixava alguns quadros a óleo, um piano dourado e diamantes avaliados em cem mil dólares, e recordava o que ela afirmara alguns anos atrás: “Gosto de ver os velhos amigos, mas não os antigos clientes”. A revista Time, dando honras de manchete à notícia fúnebre, que intitulava “O preço do pecado”, dizia que o Everleigh Club fora “o mais luxuoso bordel que os Estados Unidos jamais tinha visto”, e concluía: “Minna morreu na semana passada. . . como um herdeira digna e abastada. Aida mandou o corpo da irmã para a Virgínia, a fim de ser sepultada como convinha a uma grande dama do sul”. Como já disse, mandara a minha carta de pêsames para Aida, endereçada à sua antiga casa e com o nome de Aida Lester. Não fazia a menor ideia se ela a
teria ou não recebido. Aida parecia ter-se volatizado na atmosfera. Até que, dali a três meses, recebi um envelope aéreo, cujo remetente era: “Aida Lester, 71st Street, número 20, Nova York”. Porém o carimbo do correio era de Charlottesville, Virgínia, datado de 31 de dezembro de 1948. Dentro encontrei um cartão à moda antiga com a frase: “Com os melhores votos para o ano de 1949. Da nossa família para a sua, com toda a amizade de Aida e Minna Lester”. Nada mais, e foi tudo que voltei a saber de Aida Everleigh. Mas isto esclareceu-me sobre sua morte e seu futuro: para o mundo prosaico lá de fora, Minna podia ser considerada morta. Para Aida, porém, nunca morreria e, quanto à própria Aida, ela continuaria a ser para sempre, “com toda a amizade, Minna e Aida Lester”. Depois de receber este bilhete, continuei a pensar na morte de Minna e resolvi escrever uma recordação breve e pessoal de Minna, dedicada ao pessoal de teatro por quem sempre se interessara, sentindo sempre com ela uma certa afinidade (exceto o desprezo que tinha pelos atores). Nesse tempo, um amigo meu, conhecido agente publicitário, chamado Irving Hoffman, dirigia uma seção muito curiosa, intitulada Contos de Hoffman, no The Hollywood Repórter, que dava notícias sobre atores de cinema e, de modo geral, de toda a gente ligada ao teatro. Hoffman muitas vezes me pedira artigos e eu algumas vezes lhe fizera a vontade. Agora era eu que desejava escrever mais um. Redigi minha despedida a Minna Everleigh, e Hoffman publicou-a no seu jornal. Nunca julguei que isto pudesse levar-me ao conhecimento da atual sucessora de Minna Everleigh, mas foi o que sucedeu. Poucos dias depois de ter saído o artigo, recebi um telefonema de uma pessoa desconhecida, com uma voz máscula e velada. Percebi logo tratar-se duma mulher, que era nada mais nada menos do que Polly Adler, uma figura de destaque desde 1920 até 1944, e que fora a cafetina mais importante de toda a cidade de Nova York, dirigindo um grupo de moças bonitas que trabalhavam como prostitutas em magníficos apartamentos. Seus amigos, dos quais um ou dois eram também clientes, pertenciam a todas as classes, desde pugilistas, como Mickey Walker, até gângsteres, como Al Capone, Frank Costello e Dutch Schultz, ou mesmo gente de teatro, como Wallace Beery e Robert Benchley. Expulsa de Manhattan, em 1944, passara os últimos cinco anos retirada numa modesta vivenda de Burbank, na Califórnia, enquanto procurava obter um diploma universitário, frequentando as aulas noturnas de uma universidade de Los Angeles. Nesse momento parece que estava terminando uma autobiografia em que contava suas aventuras como vendedora de prazer. A certa altura do livro, fazia referências às suas predecessoras mais afamadas, as irmãs Everleigh. Não estava satisfeita com essa parte e desejava ampliá-la. Antes, porém, de haver lido meu artigo no Hollywood Repórter, não sabia como conseguir os dados que lhe faltavam. O que me vinha pedir agora era licença para se utilizar de algumas passagens minhas no seu capítulo referente às irmãs Everleigh. Concedi imediatamente. Quando Polly Adler publicou, em 1953, seu livro Uma certa casa suspeita, este logo transformou-se num best seller. Numa nota na página 314 encontrei uma referência à minha modesta contribuição para a epopéia das Everleigh. Polly Adler escrevia: “Até a morte de Minna, em 1948, apenas meia dúzia de amigos seguros sabiam quem eram as duas respeitáveis solteironas que viviam numa casa perto do Central Park, em Nova York. Devo esta informação a Irving Wallace, um dos poucos que estavam informados do segredo”.
Depois disto, tornei-me amigo íntimo de Polly Adler, uma solteirona judia, de meia-idade, gorducha, ansiosa por se instruir cada vez mais. Costumava muitas vezes sentar-me em sua salinha, lendo seus intermináveis livros de notas, e a empanturrar-me com o delicioso fígado de galinha picado que cozinhava divinamente, enquanto me fazia perguntas sem fim sobre a profissão de escritor e as manas Everleigh. E eu, quando acabava de comer, interrogava-a sobre sua vida como cafetina .— aquela parte proibida e escandalosa que não havia no livro. Ela falava-me livremente das moças, dos seus ilustres clientes e expunha-me a sua filosofia a respeito da vida sexual dos homens e das mulheres. Por vezes Polly Adler pedia-me conselhos sobre o segundo livro que estava preparando e que era a continuação do primeiro. Este segundo livro referia-se às prostitutas que haviam trabalhado para ela e ao que acontecera a cada uma. Ela atravessara a América de um lado ao outro, munida de um gravador, entrevistando as moças — uma se viciara em drogas, outra tornara-se a respeitável esposa de um rico corretor da Bolsa, etc. Tal como o de Minna Everleigh, este livro escandaloso nunca viria a ser publicado. Noutra ocasião, Polly participou-me, radiante, que acabara de ter uma conversa deliciosa: Alfred C. Kinsey, sexólogo conhecido em todo o mundo, visitara Los Angeles e quisera conhecê-la. Ela concordara. Convidara-o para um jantar com comidas judaicas e ele aceitara imediatamente. — Um homem formidável, esse tal Dr. Kinsey — declarou-me ela. — Tínhamos muitíssimas coisas a discutir um com o outro. Mas imagine! Achei-o extraordinariamente empertigado e puritano, e tenho de lhe confessar uma coisa. Em certos aspectos, parece-se com você. Não deixou nem uma migalha do meu fígado picado! Polly Adler seguia minha carreira de escritor com tanta avidez como eu outrora acompanhara a dela. Quando publiquei meu segundo livro, uma biografia de várias figuras excêntricas e não-conformistas americanas, Polly comprou uma dúzia de exemplares e pediu-me para autografá-los. Depois escreveu-me dizendo: “Obrigada por ter autografado os livros para meus amigos. Contribuir para a divulgação do Square peg é um prazer. Lamento dispor de pouco tempo. Já não posso fazer o mesmo que antes. “O seu livro merece ser conhecido! Fiquei entusiasmada com ele! Gostei sobretudo de Victoria Woodhull (antiga prostituta defensora do amor livre e dos direitos da mulher, que se candidatou à presidência dos Estados Unidos em 1872); que mulher aquela! Felizmente já não era viva no meu tempo! Nunca seria possível superá-la!” Uma das últimas vezes que soube de Polly Adler — pouco antes de sua prematura morte, em junho de 1962 — foi por ocasião do aparecimento do meu romance O Relatório Chapman. O livro relatava as consequências da visita de um grupo de pesquisadores sobre assuntos sexuais junto a uma série de mulheres de Los Angeles. Polly leu-o de uma só vez e depois telefonou-me ainda cheia de excitação: — Irving! — exclamava ela. — Adorei seu livro! Aonde você foi buscar tantos conhecimentos? Você sabe mais sobre sexo do que eu! — Protestei, mas ela prosseguiu: — Irving, todas as mulheres deviam ler este livro. Mandei-o a algumas das minhas antigas pequenas e a velhas rivais. — Eu agradeci. Depois de uma pausa ela continuou: -— Gostaria de ter mandado também um à pobre Aida Everleigh. Que pena, talvez o que aconteceu fosse dos males o menor, já que Minna morreu. — Concordei que também tinha muita pena de Aida e sabia no meu
íntimo que tudo acontecera da melhor maneira, pois, no princípio daquele ano, mais de onze anos após a morte de Minna Everleigh, Aida também falecera. Tinha oitenta e quatro anos quando morreu em 3 de janeiro de 1960, embora os jornais de Chicago fossem pouco amáveis, atribuindo-lhe noventa e nove, e o New York Times lhe desse noventa e três. A notícia do falecimento de Aida não teve tanta repercussão como o de Minna. Charles Washburn, repórter e velho amigo das irmãs Everleigh, ao saber da morte, escreveu a primeira notícia para o Tribune de Chicago, e quase todas as outras notícias foram tiradas desta. O artigo de Washburn, que apareceu no Tribune, a 6 de janeiro de 1960, dizia o seguinte: “Aida Everleigh, a mais velha das irmãs do mesmo nome e uma das mais notáveis damas de todos os tempos, foi enterrada discretamente na terça-feira passada, numa sepultura junto à da irmã Minna, num pequeno cemitério da Virgínia, perto de Washington. “Depois de ter vivido secretamente durante cinquenta anos, quis continuar anônima na morte. Apenas alguns parentes estiveram presentes ao enterro. Minna morrera em Nova York, a 16 de setembro de 1948.” A seguir, recordava alguns dos episódios burlescos da história do Everleigh Club e continuava: “Depois da morte de Minna, Aida voltara para junto da família, na Virgínia. Morreu no domingo, já com idade muito avançada, mas só na terça-feira fomos informados da sua morte. As poucas fotografias dela que existiam haviam sido enviadas recentemente ao Sunday Tribune, de Chicago, para serem arquivadas. Outros testemunhos da sua identidade há muito tinham sido destruídos”. Depois falava das moças do clube. “As sereias do Everleigh Club usavam roupas de noite e eram apresentadas aos clientes com todas as etiquetas. Os preços eram no mínimo de vinte e cinco dólares para quem subisse as escadas de mogno até o andar superior. Isto, no tempo em que uma cerveja custava um níquel e um uísque dez centavos”. Finalmente recordava uma frase de espírito da mais velha das Everleigh. Quando o clube teve de fechar, Aida fez um discurso de despedida a todo o pessoal e as suas últimas palavras foram estas: “Fomos todos aposentados”(O original inglês diz: “We are going from bawd to worse — •retirement”. O que, traduzido, seria: “Vamos de mal a pior — aposentados". Simplesmente, ela, por ironia, fez um trocadilho e em lugar de “bad” (mau) diz “bawd” (licencioso - N. do T.) No número 20 da 71st Street não voltaria a abrir-se uma garrafa de champanha na véspera do Ano-Novo, nem numa certa casa na Virgínia. Gostaria de saber o que foi feito do piano dourado de Aida, bem como do manuscrito de Minna, Poetas, profetas e deuses. E também pergunto a mim mesmo quem terá agora o número de telefone Endicott 2-9970.
3 Os mutilados O capitão afirmara-me, pouco antes de minha partida em viagem de serviço, que eu não teria de me ocupar de cirurgias. “Nada de cirurgias”, ele declarara. “Eu também não posso com cirurgias. Causam-me vômitos. Não. Só assuntos relacionados com membros artificiais.” Mas quando, após vinte horas de viagem, cheguei à Estação Terminus, em Atlanta, já sabia que tudo ia correr mal. Esperara, em princípio, encontrar um tempo claro, porém o dia estava de um cinzento sujo, a chuva caía aos borbotões e as pessoas agrupavam-se, com ar desconsolado, em volta dos armazéns. Dirigi-me a um café para beber um copo de leite com torradas, e depois achei que seria tarde demais para chegar a meu destino. Resolvi telefonar para o hospital, mas o coronel não estava. Deixara o número do telefone de sua residência. Liguei para lá e foi sua mulher quem me atendeu. Ele acabara de sair. Eu era o tal sargento de Nova York? Muito bem, o marido tentara arranjar-me um quarto, e ela julgava que conseguira um no Hotel Briarcliff. Agradeci. Liguei para o Briarcliff e responderam-me que tinha um quarto reservado e a diária era de cinco dólares e meio; pensei: Santo Deus! Cinco dólares e meio e o governo só paga dois dólares por dia. Mas fiquei com ele. Continuava a chover. Junto à calçada da estação havia muitos táxis. Eram automóveis como outros quaisquer. Não tinham pintura amarela nem luzes na capota e os motoristas não usavam boné. Entrei no primeiro. O motorista perguntou-me: — O senhor não é daqui? Respondi que não. Pôs o motor a trabalhar e informou: — Isto é a parte velha da cidade. A estação fica na parte velha. Aceitei suas desculpas e começamos a subir a colina, deixando para trás a parte velha. O motorista observou minha farda pelo retrovisor. — Está de licença? — perguntou. Respondi que não; depois pensei em explicar-lhe quem era para impressioná-lo: — Sou escritor e pertenço ao Departamento de Comunicações. Vou trabalhar no Hospital Lawson durante algumas semanas, para reunir material para fazer um filme. — Sobre os mutilados? — Sim. Mostrou-se realmente impressionado: — E depois aparecerá nos cinemas? Pensei no que ele diria se soubesse que o título do filme era Construção e utilização de próteses provisórias. Mas respondi que não, tratava-se apenas de um filme educativo para ser exibido a especialistas. No Briarcliff — “o melhor hotel de Atlanta” — desempenhei-me prontamente de minha obrigação. Enchi meia dúzia de postais, com as bobagens de praxe de um americano de Nova York que visita pela primeira vez a Geórgia:
“Cheguei são e salvo, com minha máquina de escrever e meu saco de viagem... ” Livre deste trabalho, perguntei como é que se ia para o Hospital Lawson e fui informado de que ficava a uns trinta quilômetros da cidade. Tomei um ônibus na Ponce de León Avenue e, quando inquiri da velhota que ia sentada atrás de mim onde é que havia baldeação, ela respondeu-me que vivia em Atlanta há vinte e cinco anos, mas que desejaria morrer em Long Beach, na Califórnia. Fora lá em visita no verão anterior e, quando as pessoas ficavam sabendo que ela era da Geórgia, todos perguntavam quando é que aquele Estado entrara para a União. Percebi que era uma brincadeira e comecei a achar graça também. Voltei a perguntar-lhe onde é que havia baldeação, e ela respondeu-me que era no cruzamento da Rua do Pesse- gueiro de Leste com a Rua do Pessegueiro de Oeste, e que até em Long Beach todos sabiam onde ficava a Rua do Pessegueiro. Agradeci e quando ia me levantar para sair ela me pediu que reparasse bem no que era a hospitalidade da gente do sul. Dali em diante todas as vezes que qualquer velhota me ouvia fazendo perguntas com o meu sotaque do meio- oeste, mostrava-se logo muito solícita. As mulheres jovens, que em geral tinham pernas bonitas, guardavam uma certa reserva, como se receassem que eu estivesse ali para pôr fogo novamente em Atlanta. Era infalível que minhas idosas cicerones, depois de me darem as instruções, se despedissem sempre com a mesma frase feita: — É isto a hospitalidade da gente do sul. Quando contei isso numa carta a minha mulher, que ficara na Califórnia, ela respondeu-me um pouco azedamente: — Espere a reação quando descobrirem que você é judeu! A certa altura mudei para outro ônibus. Depois de uma hora os ocupantes deste estavam reduzidos a um punhado de mães e esposas de soldados que se dirigiam ao Hospital Lawson, para a visita diária aos doentes. No fim daquela linha eu e as mulheres descemos para mudarmos mais uma vez de veículo. Podíamos escolher entre uma caminhonete militar, que não tinha horário, ou um dos velhos táxis que estavam estacionados ali perto. Começara outra vez a chover e eu me abriguei sob um telheiro juntamente com as mulheres. Elas agruparamse de um lado e eu fiquei do outro, sozinho. A certa altura, vi duas delas olhando para as minhas pernas. Comecei a sentir-me pouco à vontade e decidi tomar um táxi. O aspecto do Hospital Lawson foi uma desilusão. Eu imaginara um edifício sólido, imponente, como os hospitais das cidades. Em vez disso, deparei com um aglomerado de construções baixas e sem estética, de madeira, espalhadas ao longo de uma rua de paralelepípedos. Parecia uma floresta de casernas, sem princípio nem fim. Mais tarde, fiquei sabendo que o Lawson era um dos sete hospitais militares que albergavam mutilados dos Estados Unidos. Antes da guerra existiam cinco, e depois construíram mais dois. Esses centro de mutilados, que desfrutavam nessa altura de grandes facilidades, espalhavam-se por todo o país: Nova York, Mi- chigan, Utah. Naquela época, neles eram tratados os quinze mil mutilados vítimas da Segunda Guerra Mundial. Destes, cerca de dez mil eram soldados que haviam perdido, na sua maioria, uma perna ou as duas, em virtude de ferimentos causados por bombas da artilharia ou minas terrestres. O Hospital Lawson tinha capacidade de três mil e trezentos leitos, e durante o período que ali permaneci abrigava dois mil e setecentos doentes, a maioria soldados que haviam sido distinguidos em virtude de serviços prestados além
mar. Havia ainda outros enfermos da família de militares, de que o exército se encarregava também. O número de mutilados era relativamente reduzido, no entanto dominava toda a vida do hospital. Era minha obrigação, antes de mais nada, dirigir-me ao coronel que chefiava o Pavilhão dos Serviços Ortopédicos. O coronel, um homem baixo, magro, ossudo, com tipo do Missouri, aparentava de trinta a quarenta anos. Seu cabelo, embora não estivesse cortado à escovinha, dava essa ideia, e os olhos tinham um tom azul. O perfil lembrava a face simpática, embora demasiado magra, de um homem de Nean- derthal. Estagiara durante cinco anos num estabelecimento médico de St. Louis, antes da guerra, e depois alistara-se no exército, para ficar livre do ano de serviço obrigatório na reserva. Só depois de entrar para o exército é que se especializara em cirurgia ortopédica. Estava ali há quatro anos e meio e sentia-se um pouco atordoado. Eu já o conhecera no quartel-general dos serviços cinematográficos em Nova York, e pensava que aquele seu ar atordoado se devia ao fato de se encontrar subitamente em presença de figuras de Hollywood e à maneira disparatada e perturbadora como aquela gente falava. Em Nova York ele teria o ar de um banqueiro de Boston rodeado do pessoal da Metro-Goldwin-Mayer, tentando usar termos cinematográficos, o que o tornava ainda mais goldwinesco. Porém, ali em Lawson, no seu próprio elemento, embora mostrasse de vez em quando uns lampejos de autoridade e confiança em si próprio, continuava a revelar um certo atordoamento, que diagnostiquei crônico. Quando cheguei, ele estava certo de que ia dar baixa dentro de quatro semanas e sentia-se calmamente feliz. Pensava em levar a mulher e os três filhos para St. Louis e trabalhar em cirurgia ortopédica. — Em quatro anos de guerra — dizia ele — tivemos quinze mil mutilados. Porém, na América, há quarenta mil casos de amputações por ano. Vou ter, pela primeira vez, a oportunidade de me ocupar de diversos grupos, até de crianças, podendo estudar o assunto nos seus vários aspectos. — Por vezes, mostrava-se preocupado com o fato de trabalhar por conta própria: — Sinto-me uma espécie de charlatão — afirmava. — Não percebo nada da psicologia dos clientes. Provavelmente nunca conseguirei arranjar clientela. Ainda acabarei vendendo jornais! — Depois lembrava-se de que tinha economias suficientes para comprar uma casinha modesta, e isso o animava. Confessava ingenuamente ter entrado para o exército recém-casado, com apenas cinco dólares no bolso. Quando a minha visita ao hospital terminou, seu projeto de montar uma clínica particular morrera no nascedouro. O cirurgião-general acabara de nomeálo definitivamente para o cargo. Fazia parte do pessoal indispensável. Tinham licenciado gente demais nos serviços médicos e agora necessitavam de todos os restantes. Isso depois de quatro anos e meio! O coronel recebeu a notícia com um sorriso nos lábios, mas senti muita pena dele embora pareça incrível, dentro do exército, um sargento ter pena de um coronel. Após a nomeação, o sujeito parecia mais preocupado do que nunca. Embora estivesse ligado ao nosso filme e fosse encarregado de sua fiscalização, deixavame entregue a mim próprio, durante horas a fio, sempre que lhe surgia um caso clínico digno de interesse. Ou então uma radiografia fora do comum. O coronel colecionava radiografias, tal como outros homens colecionam gravuras de nus artísticos ou estampas raras. Qualquer chapa, por mais vulgar que fosse, interessava-o e deixava-o esquecido do tempo, resmungando sozinho e abanando a cabeça. Certo dia, no meio de uma entrevista, um oficial-médico
meteu a cabeça pela porta, dizendo que um sargento ia ter alta. Isso provocou grande alarme no coronel, que mandou logo chamar o tal sargento à sua presença, acompanhado da respectiva ficha clínica. Assim que este apareceu, um pouco assustado com a ordem, o coronel só quis que ele lhe mostrasse as radiografias: — Lembro-me muito bem de você, sargento! — disse ele, segurando contra a luz uma das chapas. — Você teve uma fratura do ilíaco que mais tarde se repetiu e. . . — aqui mergulhou num silêncio estático, contemplando as fraturas do paciente. Por fim, depois de passar um tempo estalando a língua, selecionou três horríveis e interessantíssimas radiografias, colocou-as de lado para o seu álbum, e mandou o sargento embora para a vida civil. Noutra ocasião, ao ouvir dizer que um antigo seleiro do Kentucky, que perdera ambas as pernas em serviço, ia ser desmobilizado, o coronel cancelou um compromisso importante para examinar o sujeito mais uma vez. Mais tarde confessou-me que o levara para o campo e o fotografara com filme colorido. — O sujeito sai-se muito bem com amputação bilateral — explicava-me. — O pior foi quando quis fazê-lo andar a cavalo; não conseguiu montar sem ajuda. Vai ter uma vida dura! — Depois sorriu, embevecido. — Mas eu lhe tirei fotos magníficas! Seu maior projeto cinematográfico, além daquele em que estávamos trabalhando, era um filme sobre os mutilados que conhecera durante a guerra. E mostrou-me o esquema que organizara. Esse documentário incluiria os dois mutilados quádruplos que existiam nos Estados Unidos; um perdera os quatro membros ao pisar numa mina terrestre na guerra do Pacífico, e encontrava-se ainda no Hospital Geral de Percy Jones; o outro sofrerá um desastre de aviação durante o inverno, no Maine, e ficara sem braços nem pernas, em virtude do congelamento. Este regressara à vida civil. O coronel queria também incluir no filme seis mutilados tríplices da Segunda Guerra Mundial. — Um deles vive aqui mesmo, perto de Lawson — dizia ele com entusiasmo. — Foi ponta-direita do time de futebol da Universidade da Geórgia e, durante a Batalha do Bulge, ia morrendo congelado. Tiveram que lhe amputar três membros; só o tronco escapou. Afirmava que pretendia iniciar com esse filme uma série de películas médicas. Desejava que, dentro de cinco anos, o governo lhe mandasse de novo técnicos de cinema para filmar todos esses mutilados após a readaptação. Per- guntou-me se eu não achava que isso daria um belo filme, e disse-lhe que sim. O estreito gabinete dele passou também a ser o meu durante a minha estadia ali, por isso o reduzido recinto transformou-se numa espécie de casa de pesadelo. Era mo- biliado com uma mesa comum, algumas cadeiras e uma mesa de exames coberta por um lençol. No alto de um armário via-se uma coisa horrível. Era um recipiente quadrado, de vidro, cheio de um líquido amarelo, dentro do qual flutuava algo semelhante a uma haste de três ramos, com raízes. No primeiro dia em que entrei ali, aproximei-me para ler o rótulo escrito à máquina, colado ao vidro. Segundo a obscura linguagem médica, julguei relacionar-se com o caso clínico de um cabo do Alabama, de vinte e oito anos, de raça branca, que morrera em 1943. Senti um choque ao perceber subitamente que aquele objeto que ali estava boiando fazia parte do cabo. Parecia impossível, porque não se assemelhava com coisa alguma. Cheguei à conclusão de que se tratava de um osso humano qualquer e imediatamente me senti agoniado.
Comecei a experimentar uma atração especial pela Coisa. Lia o rótulo meia dúzia de vezes por dia e a cada vez ficava nauseado. Por fim, acabei por mudar minhas coisas para a sala do outro lado do corredor e a usar a máquina de escrever de uma auxiliar do exército. Meu principal problema durante a estadia no hospital consistia em aprender a maneira de falar do lugar. Enquanto a maioria dos doentes teimava em empregar a linguagem da caserna e, portanto, eu podia compreendê-los, os médicos e os mecânicos dos aparelhos ortopédicos com quem eu estava em contato permanente conversavam entre si num inglês mais obscuro do que o de Chaucer no original. Os dois termos mais empregados eram “mutilados” e “próteses”. Qualquer paciente a quem tivessem cortado um membro era, naturalmente, um “mutilado” e os membros artificiais que iam do braço até a mão e da coxa até o pé (e, segundo me informaram depois, os dentes postiços também estavam incluídos nessa categoria) chamavam-se “próteses”. O vocabulário era rico e imenso. Aos braços chamavam “extremidades superiores” e às pernas, “extremidades inferiores”. Todos os mutilados eram divididos em categorias especiais: assim, um AJ era um soldado cuja perna fora cortada abaixo do joelho e um AC um doente a quem tinham amputado o braço abaixo do cotovelo. Para mim, o mais difícil de fixar foi a designação CJ. Pelo visto, queria dizer amputado acima do joelho. Havia ainda outras designações, como por exemplo "syme", que se aplicava aos que haviam tido o pé amputado sem perda do calcanhar, “desarticulação do quadril”, etc. O termo mais revoltante, e muito usado pelos médicos, era “guilhotinado”. Quando um soldado ferido no campo de batalha tinha de sofrer amputação imediata, “guilhotinavamlhe” o membro, ou seja, serravam-no ali mesmo sem mais cerimônia, e a operação para adaptar o coto ao membro artificial ficava para mais tarde. O mais difícil na linguagem, para um sujeito esquisito e sentimental como eu, era a maneira indiferente como a empregavam. Os cirurgiões, em Lawson, discutiam tudo com menos recato do que usavam para mandar vir um bife para o almoço. Percebi que, para eles, uma operação, mais um homem sem uma perna, constituía um acontecimento tão banal como se barbearem todas as manhãs, e era natural que assim fosse. Para os não iniciados, porém, isto era chocante. Certa tarde, depois da maior parte do pessoal ter ido embora para casa ou se recolhido às casernas, acompanhei o coronel em suas últimas visitas naquele dia. íamos atravessando o depósito dos membros artificais e, antes de apagar as luzes de cada seção, ele descrevia-me uma ou outra coisa mais interessante. Na última sala avistei uma monstruosidade absolutamente medieval, um esqueleto de aço e couro, com a mais complicada rede de correias que jamais vi. Perguntei ao coronel para que servia aquilo, e ele, aproximando-se, começou a resmungar entre dentes: — Este é o pior de todos — informou. — Trata-se de uma prótese para um homem que fica paralítico da cintura para baixo. Isto ajuda-o a manter-se de pé. Na realidade, não adianta muito, mas que podemos fazer? — Depois de apagar as luzes, quando íamos saindo, disse: — Acho que esses paralíticos fariam melhor se nos deixassem cortar-lhes as pernas. Assim se moveriam com mais facilidade. Não respondi nada. Uma outra vez, o coronel fez-me observar um caso de desarticulação do quadril. Tratava-se de um rapaz louro, alto, simpático, que nem sorria nem reclamava e se deixou observar por nós com o mesmo desinteresse de um monstro de circo. Tinha uma perna cortada na altura do quadril. Usava um
aparelho complicado, que se adaptava à anca por meio de um encaixe de couro, e uma perna de fibra amarela. O coronel pediu-lhe uma pequena caminhada. O rapaz obedeceu rapidamente, com um ar profissional, mas o aparelho obriga- vao a caminhar aos solavancos. O coronel agradeceu e nos despedimos. — Esse rapaz tem uma maneira de andar engraçada. Vamos pô-lo no fim do filme. — No meio do corredor, porém, deteve-se subitamente, exclamando: — Esqueci-me de mandá-lo fazer o melhor. Deve funcionar bem no cinema, para mostrar as limitações desses aparelhos. Perguntei do que se tratava. O coronel ccndnuava parado, a abanar a cabeça: — Queria que você o tivesse visto correr. Quando tenta, cai de cara no chão! O incidente que mais me impressionou foi o menos importante de todos. Conheci um tenente que trabalhava no hospital e vivia com a mulher no mesmo hotel onde eu estava hospedado. Tornamo-nos imediatamente amigos, porque ele, oriundo de uma cidadezinha perto de Madison, no Wisconsin, frequentara a universidade de lá e conhecera um jogador de futebol que fora meu colega no colégio em Ke- nosha. Ofereceu-se para me levar no seu carro de regresso à cidade, evitando-me assim o enfadonho percurso de ônibus. Da primeira vez que fui com ele, levava também a secretária, uma senhora grisalha, de meia-idade. Ao dirigir-se ao estacionamento, voltou-se para ela e perguntou: — A propósito, Srta. Smith. Esqueci-me de ver se tinha alguma operação marcada para amanhã. A Srta. Smith abanou a cabeça: — Não, o senhor não está de serviço. Ele voltou a cabeça e continuou a falar comigo, enquanto eu, prestando-lhe só meia atenção, ia pensando: “Meu Deus! Em qualquer desses barracões encontra-se uma pessoa que vai ser operada, aguardando que lhe tirem um pedaço de uma perna e a levem num carrinho de mão (que farão às pernas que cortam?). Ali está alguém à espera, e os pais dessa pessoa encontram-se também esperando, ansiosos, bem como a mulher, a noiva ou um grupo de amigos. E o doente, antes de conseguir adormecer, pensa em tudo isso, sua vida toda depende dessa operação, enquanto eu aqui estou conversando com o cirurgião e ele pergunta se tem alguma operação marcada para amanhã, pois esqueceu-se de ver!” Quando entramos no carro, olhei para o tenente, um rapaz simpático, gorducho, vermelho, provavelmente exausto de trabalhar, ansioso por gozar todos os minutos de repouso, a mulher esperando-o no hotel, tendo provavelmente alguma visita bem disposta para jantar. Um tipo simpático. Porém, numa daquelas camas do hospital, outro homem aguardava que lhe marcassem a operação. Durante todo o caminho sen- ti-me estupidamente mal. O projeto do filme, que me ocupava todas as horas do dia e parte das que passava acordado à noite, dividia-se em duas partes. A primeira relativa às extremidades inferiores, a segunda, às superiores. Esta era a menos importante, visto existir bem o dobro de homens sem pernas do que sem braços. Além do que, as pernas artificiais eram bem mais complicadas. Cumpriram a promessa de não me obrigarem a assitir a operações. Nosso
filme relacionava-se apenas com a feitura e o emprego das próteses, mas tínhamos sempre em mente as intervenções cirúrgicas e a agonia dos doentes. Eu passava a maior parte do tempo na oficina dos membros artificiais. Esta consistia, em primeiro lugar, numa vasta sala de recepção onde reinava uma simpática irlandesa, auxiliar do exército, que era coxa. A seguir, separada por uma cortina branca, ficava a pequena sala onde se tiravam as medidas, que por sua vez dava para três salas, onde eram executadas as próteses. O processo era eficiente e simples. Um doente que voltasse de além-mar com uma perna cortada abaixo do joelho era tratado e em seguida operado no Hospital Lawson. Antes seria preciso esperar um ano ou mais para se poder adaptar uma perna postiça. Agora, cerca de dez semanas depois da última intervenção cirúrgica, era levado à oficina numa cadeira de rodas. Outras vezes ia de muletas. Se a redução do coto fosse uniforme, os nervos houvessem perdido a irritabilidade e o ferimento tivesse cicatrizado, estava pronto. Conduziam-no à sala das medidas, colocavam-lhe o coto sobre um papel pardo e desenhavam-no. A perna sã também era desenhada e medida. Depois levavam-no para a sala de gesso e mandavam-no sentar-se num banco. Enfiavam no coto uma meia de algodão justa e, sobre esta, aplicavam gesso. Assim que este secava, era retirado. O doente ia-se embora. Dali em diante já não era preciso mais nada dele. Na oficina conheci os soldados e os civis que trabalhavam nas próteses. Formavam um grupo muito estranho. O chefe do gesso, um sargento que se apresentava como Mr. Chandler, parecia um boxeador peso pesado, invencível. Ele já estava no negócio de membros artificiais antes da guerra. Seus auxiliares eram todos novatos. Um fora radiotécnico, outro mecânico. Um cabo, de grandes bigodes, natural de Long Island, tinha sido maquinista de metrô. A prótese era fabricada em poucos dias. A partir do molde em gesso, faziase uma cópia do coto do paciente e em volta deste colocavam-se correias de couro molhado que seriam depois ligadas à perna artificial. Em outras seções, iam-se fabricando mais acessórios. Faziam um pé de uma peça de madeira articulada no calcanhar por uma dobradiça. Este era então ligado à extremidade da perna artificial, de fibra, usualmente pré-fabricada, e o encaixe adaptado a essa perna. Acrescentava-se uma correia de couro que atava o aparelho ao coto do doente, e um cinto pélvico especial prendia aquilo ao corpo. Finalmente, tudo isso era provado no. próprio doente. A mais leve irritação cutânea obrigava a devolver o conjunto à oficina. Quando minha primeira prótese estava prestes a ser concluída (tratava-se de um complicado aparelho destinado a um mutilado CJ), perguntei, talvez ingenuamente, se os homens. . . bem, iam para a cama com aquela parafernália toda. O mecânico pareceu surpreso e disse que não. Depois percebeu a intenção da minha pergunta e acrescentou que aquilo não dava trabalho nenhum para tirar e pôr, já que bastava apertar e desapertar o cinto pélvico ao entrar ou sair da cama. Em Nova York ouvira muitas críticas àquelas próteses, mas ali em Lawson, na primeira vez em que alguém fez referência à sua falta de comodidade na minha presença, aproveitei a deixa. Falei nisso ao coronel, numa tarde em que deixávamos o hospital. Disse-lhe que lera um artigo numa revista, escrito por um jovem que perdera uma perna na Batalha de El Alamein, no qual afirmava que os feridos em campanha não recebiam os aparelhos de prótese a que tinham direito. Disse ao coronel que o autor do artigo acusava os aparelhos de serem demasiado pesados, frágeis, ruidosos e primitivos.
O coronel não respondeu. Continuou a andar a meu lado durante meio minuto, como se não me tivesse ouvido, até que por fim perguntou: — Estúpido? — Não, muito inteligente até — respondi. Calou-se outra vez e o assunto nunca mais foi ventilado entre nós. Não tentei voltar a ele, nem tampouco ouvi alguém referir-se a ele em Lawson. A segunda parte de meu filme, a construção e o emprego das próteses para as extremidades superiores, era relativamente mais simples. O doente que ficava sem um braço logo acima do cotovelo ajoelhava-se diante de uma mesa e colocava tanto o coto como o braço inteiro sobre um papel pardo estendido, no qual eram desenhados os seus contornos. A partir deste, executava-se o punho, um suporte para o coto do braço, uma armação de aço com dobradiças e um gancho. Depois de tudo ligado, o aparelho pesava pouco mais de um quilo. Meu informante na seção das extremidades superiores era um sargento magro, chamado Lukasch. Servia ali há trinta e sete meses e estava cansado. — Antes de vir para cá, nunca tinha visto uma prótese. Trabalhava em moldes de metal. Agora, olhe só. . . O que ele queria que eu visse era a pasta cinzenta que tirou de uma prateleira e abriu sobre a mesa. Ele fizera o primeiro braço artificial fabricado em Lawson, e estava tudo arquivado na pasta. O nome do doente e a data, junho de 1943. Lukasch virava as páginas. Cada uma delas estava cheia, de alto a baixo, e de ambos os lados, de nomes e datas. Lukasch fechou a pasta. — Setecentos braços, desde que aqui estou — declarou ele. Quando um doente adquiria um braço fabricado por Lukasch, este conduzia-o até a Seção de Terapia de Adaptação. Havia ali três salas espaçosas que lembravam um parque infantil em tamanho para adultos, onde se encontravam várias moças especializadas, vestidas de enfermeiras, e algumas senhoras de meia-idade que se moviam pelos bastidores. Nessa seção os mutilados praticavam, durante catorze dias, aprendendo a usar o braço artificial. Quem me guiou em minha primeira visita foi uma moça de Minnesota, Srta. Beardsley, morena, viva, bonita, que me ia dando todas as explicações. — Nossa tarefa consiste em treinar o mutilado, ensinando-o a usar convenientemente a sua prótese — declarou, com um ar profissional. Havia uma coisa com que se mostrava intolerante. Não conseguia ter paciência para aturar os mutilados com tendência a se lamentar da sorte. E, por outro lado, dava-nos as costas se não apreciássemos os sofrimentos dos rapazes. Simpatizei muito com ela. Reparando que usava um anel de noivado, perguntei a mim mesmo com que espécie de homem iria se casar. Primeiro achei que não devia ser soldado, mas depois achei que sim. Um soldado inteligente, sem dúvida, e também um mutilado. Mas nada lhe perguntei. Ela me aproximou de uma mesa. Sobre esta encontra- va-se um jogo de damas com pedras que pareciam ter sido desenhadas por um bêbado. Eram tão disformes como se tivessem sido atacadas de elefantíase. A Srta. Beardsley informou-me que se tratava de um jogo de damas especial que todos os que haviam amputado os braços eram obrigados a usar, porque ensínava-os a abrir e a fechar os ganchos. Levou-me a todas as seções, explicando que os que perdiam
os braços se viam obrigados a fazer tudo com os ganchos — guiar automóveis, mudar um pneu, vestir-se, trabalhar no jardim, usar um abridor de latas, pregar alfinetes de segurança, cortar com uma tesoura e lidar com diversas máquinas. Perguntei se havia alguma atividade que os homens praticassem em grupo, qualquer coisa possível de ser filmada, a fim de mostrar as dificuldades com que lutavam sem as próteses e a destreza que apresentavam depois de terem aprendido a usá-las. Ela disse que sim, havia um jogo, o pôquer. — Isso deve servir para o que o senhor pretende. Eles embaralham muito bem as cartas com os ganchos; sem eles seriam precisos dois parceiros para as embaralhar. Uma vez que as próteses eram tão úteis, perguntei qual a atitude dos doentes perante elas. A moça confessou, franzindo o nariz: — Eles detestam usar os braços postiços. Dizem que é como pôr uma sela num potrinho ou um espartilho numa menina. Alguns jogam fora as próteses quando saem daqui, mas é uma grande tolice, pois os braços postiços têm grande utilidade. Observei que talvez odiassem os ganchos, tal como os marinheiros detestam a farda. Ela concordou: muitos rapazes abandonavam os ganchos quando saíam de Lawson, substituindo-os por mãos artificiais, mais perfeitas, mas sem valor algum. — O gancho é funcional — declarava. — Os rapazes têm de aprender primeiro a habituar-se com ele, embora seja feio, e depois fazer com que os outros se habituem a vê-lo. Perguntei se havia homens casados preocupados com a maneira como a mulher aceitaria o gancho. A Srta. Beardsley mostrou-se indignada: — Claro que há homens casados, e as mulheres não se importam nada com o gancho! — Depois continuou: — Eu mesma vou me casar com um mutilado! O noivo dela fora sargento e agora estava em casa dos pais, em Chicago, e viria buscá-la em breve. Fiquei contente por ela. . . e também por ele. A Srta. Beardsley disse-me como era feito o exame dos mutilados: — No décimo quarto dia, o paciente é submetido a uma prova de aproveitamento. Uma espécie de gincana. Fica sozinho na sala e, em trinta minutos, tem de desempenhar catorze tarefas. Uma de nós vigia-o através de uma janela. Se se sair bem de todas, obtém o diploma. Volta à vida civil. E indicou-me as provas. Podiam ser consideradas simultaneamente comoventes e hercúleas. “Provas de aproveitamento. Verifique a correção de cada tarefa quando terminá-la. Tem de terminar a prova em trinta minutos: abrir e fechar a porta; apontar um lápis; cortar carne; pôr manteiga no pão; abrir uma torneira; encher um copo de água; dar o nó na gravata; fazer um embrulho com papel; atender o telefone; colocar o relógio no pulso. . . etc.” Quando ia saindo vi, no quadro de avisos, algumas comunicações de conferências dadas em Lawson por atletas com um só braço. Perguntei se isto ajudava a levantar o moral dos mutilados e a Srta. Beardsley respondeu que não, sobretudo se os oradores eram mutilados da Primeira Guerra Mundial. Os da última aborreciam-se com as narrativas. Diziam: “Que diabo, eles tiveram mais de vinte anos para aprender. Venham ver-nos daqui a vinte anos!” Porém os
mutilados desta guerra, que alcançavam bom aproveitamento no uso dos membros artificiais, revelavam-se bons auxilia- res no encorajamento dos colegas. Um certo oficial que ficara sem os dois braços e se servia das próteses com êxito viera ali três vezes falar aos rapazes. Por mais que fizesse, enquanto estive em Lawson, não consegui evitar encontros com os mutilados. Sobretudo das pernas. Fosse para onde fosse via-os em cadeiras de rodas, com os cotos saindo para fora das roupas, empurrados por membros do pessoal de Lawson; outros andando sozinhos nas cadeiras de roda com incrível velocidade. Quando se entrava numa sala, era comum encontrar-se lá um doente estendido numa mesa, à espera. Saía-se para fora e dava-se de cara com outro, já com os aparelhos, que vinha direto a nós, aos solavancos. O mesmo sucedia quando nos dirigíamos à cooperativa. Ali é que era pior. Todas as tardes eu costumava ir pelo corredor externo, atravessava a Enfermaria 10A e entrava na cantina. Lá estavam eles, em massa; filas e filas de cadeiras de rodas, outros com muletas, agrupados sobretudo junto da seção de bijuterias femininas ou do balcão de cigarros. Reunidos em vários grupos, mostra- vam-se eufóricos, alegres, comunicativos. Gritavam uns para os outros, fazendo piadas. Lembro-me de ter visto um sol dado atravessando a cantina, receando tropeçar em sua nova perna artificial, enquanto ao meu lado um mutilado gordo lhe berrava: — Anda para a frente, Tom! Mostra a essa perna quem é que manda nela! Mas ouvi dizer que, quando estavam sozinhos, era diferente. Muitos ficavam deprimidos, outros tornavam-se até paranóicos, desanimavam. Não era só o interminável período de hospitalização que se transformava num calvário, não era só a monotonia alucinante dos dias e das horas passadas entre ataduras, das dores, mas sobretudo a ideia do membro que desaparecera, irremediavelmente, para sempre, sem que houvesse poder do céu ou da terra capaz de restituí-lo, de pôr no lugar a carne e os ossos que haviam ocupado aquele espaço vazio. O próprio coronel tinha consciência dos problemas psicológicos de seus doentes. Ao estudarmos juntos a preparação do filme, um dia ditou-me a seguinte passagem: “Quando se trata de prótese, a qualidade do fabrico destas é o que menos importa. Interessa mais o cuidado na adaptação desta ao paciente e, acima de tudo, a reação deste. O êxito de um aparelho, o regresso do doente a uma vida útil e normal depende, sobretudo, da coragem de que ele dá provas, da sua perseverança, do seu equilíbrio, da sua força de vontade”. O coronel pediu-me que lhe lesse a passagem e eu obedeci. Ele replicou: — Essa última frase. . . substitua-a por: “O regresso do doente a uma vida relativamente útil e normal”. A pior situação pela qual passei junto dos mutilados foi na cantina, certa vez em que fui comprar um par de meias. Queria das grossas, tamanho doze, castanho-claras. A empregada disse-me que ali havia de tudo, exceto meias. Insisti. Mas ela tinha muito que fazer, e respondeu-me: —•Sargento, nesta cantina é raro alguém querer comprar meias. Viver entre mutilados tornou-se um pesadelo que ia aumentando a cada dia e a cada hora. Até ali, logo que me perguntavam o que fazia no exército, respondia orgulhoso que era escritor, que me ocupava de propaganda e orientava filmes de treinamento. Achava que o fato de ser escritor me fazia conservar minha qualidade civil, minha individualidade especial e superior à dos outros. Afirmava, assim, que não fazia parte do rebanho dos estúpidos. Era a minha maneira de
reagir ao fato de ser mandado de um lado para outro, em funções sem importância, durante três anos e três meses. Mas agora, entre os mutilados, senti-me de repente envergonhado e mesquinho. Sentia vergonha de tudo, da distância a que me encontrava do campo de batalha, das reportagens de segunda classe que haviam se transformado em filmes com a minha contribuição e, acima de tudo, sentia vergonha das minhas pernas. Tinha consciência de que eram gordas e exuberantes quando caminhava sobre elas, e de que os mutilados me olhavam com rancor. Fiquei contente quando fui embora. O trem corria velozmente. Cheguei à estação de Pensil- vânia já tarde, mas ainda havia gente em grupos por ali, à espera. Dirigi-me para a escada rolante, passei em frente de uma fila de lojas e saí para a rua. Caía neve, em flocos leves que remoinhavam. O chão estava escorregadio. Parei um momento observando as pessoas que iam e vinham, que corriam para casa em busca de conforto e de calor, do jantar e das conversas familiares. Resolvi seguir a pé pela Fifth Avenue até o meu hotel. Súbito, no meio da neve e do frio, aquelas duas semanas que acabara de viver pareceram-me absurdas, isoladas do resto da vida, tal como um sonho passado num vale oculto, já meio esquecido. Aqui, tudo era vida, todos se mexiam livremente, falavam, agitavam os jornais, conversavam, riam alto. Recomecei a andar e tive um arrepio. Comecei a andar mais depressa e, embora o chão estivesse escorregadio, não escorreguei. Ninguém olhava para as minhas pernas. O que aconteceu depois. . . “Os mutilados” foi uma narrativa começada em Atlanta e acabada em Nova York, dirigida primeiro só para mim, em que descrevia o meu último emprego como soldado do exército dos Estados Unidos. Dos três anos e quatro meses em que estive de serviço, um ano foi passado na força aérea escrevendo filmes de treinamento, e em seguida, fui transferido para o Departamento de Comunicações, onde colaborei em filmes de orientação e propaganda destinados às tropas. A despeito de todos os meus esforços para me fazerem correspondente além-mar do Yank, semanário das forças armadas, nunca me aproximei de um campo de batalha. O único combate que estive para travar foi com o meu superior, o conhecido, mas exasperan- te, Coronel Frank Capra. Durante o tempo em que fui destacado para Los Angeles, escrevi a maior parte do texto do filme Knotv your enemy Japan, e o Coronel Capra, ao enviar a lista dos autores para Washington, omitira por completo o meu nome, dando maior relevo a vários escritores civis muito conhecidos mas que tinham dado apenas uma pequena contribuição de natureza política. Nada podia fazer, se considerarmos que tantos homens haviam trabalhado pela pátria sem que ninguém o reconhecesse. No entanto, era irritantemente curioso ver como a mentalidade de Hollywood se mostrava até no exército, onde a maior parte dos componentes do meu grupo — como o Capitão John Huston e o Coronel Theodore Geisel — viviam à louca, metade do tempo brincando de soldados e a outra brincando de diretores, produtores, argu- mentistas. Muitos de nós também levávamos uma existência de doidos, mas noutro sentido. Todos os dias tínhamos de nos apresentar à chamada fardados, num estúdio alugado pelo Departamento de Comunicações. Era ali que escrevíamos histórias para filmes de propaganda,
que explicavam a nossos soldados por que razão lutavam e como deveriam proceder para escapar com vida — ou por que motivo estavam arriscados a morrer —, e depois, à noite, voltávamos para as nossas casinhas confortáveis mas acanhadas (visto não haver ali casernas), vivendo a vida de civis fardados, olhando atravessado à nossa volta para os outros civis, que continuavam a ganhar civilmente o seu dinheiro, livres das restrições da tropa. E contudo, todos nos sentíamos culpados em face dos verdadeiros militares, que, lá longe, sofriam e morriam em Iwo Jima ou em Anzio e que provavelmente não tiravam o menor proveito dos nossos filmes. Quando nossa missão em Hollywood terminou, foi com imenso alívio que soube da minha transferência para outro ponto. A 8 de novembro de 1945 mandaram-me para a Seção Fotográfica do Centro de Long Island, Nova York. Mas pouco ganhei com isso, pois naquele posto, que era outro estúdio cinematográfico adaptado, encontravam-se alguns oficiais voluntários, tais como William Saroyan, Irwin Shaw, John Cheever, Stanley Kramer, Gottfried Reinhardt, Carl Laemmle Jr. e outros mais. Nesses últimos três meses de minha carreira, visto não haver mais uma vez alojamento no posto, fiquei hospedado no Royalton Hotel, em Manhattan. Todas as noites, ao voltar no metrô dos meus afazeres em Long Island, era como se regressasse ao grande mundo. George Jean Nathan tinha uma suíte num andar. Robert Benchley morava noutro apartamento. E, pouco antes de minha partida para Atlanta, a velha mãe de Thomas Wolfe (a Eliza Gant do romance Olha para trás, anjo) hospedou-se no hotel. Encontrei-a certa noite no hall de entrada e apresentei-me com um certo aca- nhamento como “escritor” e “admirador” de seu filho. Desde esse dia falamos longamente acerca de Tom, como se este ainda fosse vivo e estivesse para chegar, apesar de ter morrido havia sete anos. Ela tinha algumas peças de teatro inéditas de Tom e viera a Nova York na esperança de encená-las ou publicá-las. Eu tinha o maior interesse em travar conhecimento mais estreito com Julia Wolfe — andava até amadurecendo o projeto de um romance baseado na vinda dela a Nova York —, mas não tinha que acontecer. Minha vida de soldado veio subitamente abafar meus projetos de escritor civil. O Departamento de Comunicações enviou-me para Atlanta, numa missão que seria a última, embora eu ainda não o soubesse, antes de ser desmobilizado em fevereiro de 1946. Mandaram-me seguir para Atlanta, para trabalhar, sob as ordens de um coronel do Hospital Lawson, no projeto de um filme chamado Construção e emprego das próteses provisórias. Seja como for, estive em Atlanta catorze dias. O que o exército ganhou com minha visita foi um filme de treinamento que dirigi durante as últimas duas semanas de serviço. Meu benefício daquela missão foi a experiência contada em “Os mutilados”, que escrevi para mim. Muito mais tarde, no romance O prêmio, quando procurava um local para situar a história do Professor Max Stratman e da sobrinha, que se encontrava em estado de choque psicológico, recordei- me dos problemas dos doentes do Hospital Lawson e foi aí que os fiz viver. O que perdi por causa dessa missão foi uma oportunidade de conhecer melhor a mãe de Thomas Wolfe, e talvez escrever um romance que poderia ter sido inspirado nela. Ao voltar ao Royalton, soube que, pouco depois de minha partida para Atlanta, ela se mudara para o Hotel Algonquin, que ficava em frente, e que falecera poucos dias antes de eu chegar. Julia Wolfe morrera. Ficara apenas Eliza Gant. Seria tolice tentar descrever como ela sobrevivera a Eugene Gant, uma vez que eu próprio já não podia lhe perguntar.
Com exceção de um dia em 1961, quando estava escrevendo O prêmio e quis reviver minha estadia em Atlanta, não voltara a ler “Os mutilados”, até pensar em incluir este artigo no presente volume. Nessa altura, pensei no que teria sido feito do meu coronel, que na época andava pela casa dos trinta e agora devia estar com mais de cinquenta. Em que se teria ocupado naquelas duas décadas depois de termos trabalhado juntos? Ficara ligado ao exército? Estaria dirigindo sua clínica particular em St. Louis? Continuaria a tratar de mutilados? Talvez nunca venha a sabê-lo, pois já nem sequer me lembro do seu nome. Que teria sido feito daquela coisa que ele conservava dentro de um frasco, em cima do armário de seu gabinete? E do tríplice mutilado que fora jogador de futebol da Universidade da Geórgia? E daqueles quinze mil cidadãos mutilados que albergava o Hospital de Atlanta no tempo em que eu ali estivera? Não sei quais as respostas, nem fiz o menor esforço para descobri-las. Não tive coragem. O que procurei saber, e consegui, foi que não voltaria a ver o Hospital Lawson tal como o conhecera. O médico diretor dos Serviços Administrativos dos Veteranos de Atlanta respondeu minha carta dizendo: “O Hospital Lawson, onde o Sr. Wallace esteve em 1945, deixou de existir, como instituição para veteranos, desde 1951. Em seu lugar inaugu- rou-se o Hospital de Atlanta, com uma capacidade de trezentos leitos onde todos os veteranos podem tratar-se, médica e cirurgicamente, de qualquer doença aguda. Embora os mutilados constituam uma pequena parte de sua população e se apliquem ainda algumas próteses, deixou de ser essa a sua especialidade”. Tentei por fim averiguar o que acontecera ao filme cujo texto eu escrevera. Não que estivesse interessado no que fora feito das bobinas de celuloide, mas sim em saber o que se passava quanto ao assunto sobre o qual escrevera •—• o progresso da técnica dos membros artificiais. Ter-se-ia verificado alguma melhoria na sua aplicação? Como estariam vivendo os inválidos que eu conhecera? E seus filhos e amigos, mutilados na Guerra da Coréia ou do Vietnam, estariam vivendo melhor (no que diz respeito à adaptação a um membro artificial) do que seus pais no fim da Segunda Guerra Mundial? Pelo visto, para os mutilados da Segunda Guerra Mundial a paz deixava muito a desejar. A maior parte deles “mostra grande desapontamento com o membro artificial que lhes foi fornecido”, confessava A. Bennett Wilson, Jr., membro da Comissão de Investigação e Desenvolvimento de Próteses. E acrescentava: “Uma vez que todos estamos familiarizados com os modernos mecanismos hidráulicos e elétricos, por mais complicados que sejam, parece-lhes incompreensível que nosso país, sempre tão pressuroso em inventar armas de destruição cada vez mais eficientes, haja falhado dessa forma lamentável no fornecimento de membros para substituir os que se perderam nas batalhas”. Como consequência dessa desilusão sofrida pelos veteranos e pelos seus médicos, exerceram-se fortes pressões sobre os responsáveis militares e sobre o Congresso, para que fosse estabelecido um programa científico para pesquisas no campo das próteses. Por iniciativa do chefe da cirurgia do exército, fez-se um apelo à Academia Nacional de Ciências (organização de cientistas instituída por Abraham Lincoln) e ao seu Conselho Nacional de Pesquisa (organizado por Woodrow Wilson). No período entre 1947 e 1964, os trabalhos referentes a membros artificiais deram grandes passos. Em 1961 existiam trinta e três “grupos que se ocupavam de diversas fases da pesquisa e desenvolvimento relacionados com membros artificiais”. Organizou-se também uma comissão, com seu próprio laboratório, que examinava e dava seu parecer sobre as novas invenções nas próteses. Havia até um jornal do governo intitulado Membros Artificiais.
Quais os resultados obtidos? Para começar, parece que o gancho que servia para substituir a mão foi pouco a pouco cedendo lugar à mão de borracha dotada de cinco dedos, três dos quais móveis, feitos de alumínio e aço, cobertos de feltro. Embora os cientistas afirmassem que o gancho era “mais funcional”, nem por isso ignoravam que os mutilados o achavam “horrível”, e por isso puseram-no de lado para que os doentes não se sentissem moralmente diminuídos. Os cientistas, porém, não desconheciam que a esperança, para os mutilados, vem de outra direção. Diz o Sr. Wilson, que também é engenheiro: “Há muito se reconheceu que a prótese, acionada por qualquer espécie de força alheia ao corpo humano (energia externa), representaria o primeiro grande passo na prótese das extremidades superiores”. E qual foi o avanço verificado? Nos Estados Unidos, a International Business Machines produziu em 1952 braços artificiais movidos eletricamente. Embora dessem resultado, o governo rejeitou-os porque “quem os utilizasse não poderia servir-se deles sem um pensamento consciente”. Desde então fala-se com muito otimismo em conseguir aplicar, em miniatura, os princípios dos mísseis teleguiados aos membros artificiais, ao mesmo tempo em que se trabalha no sentido de aproveitar as fontes de energia ocultas no corpo humano para controle desses membros dotados de movimento. Na Alemanha, a Clínica Ortopédica de Heidelberg fabricou um braço movimentado por ar comprimido. Trazido para os Estados Unidos e submetido a ligeiras modificações, foi experimentado em cento e cinquenta mutilados, dos quais cento e quarenta e oito foram capazes de utilizá-lo com êxito. Os inconvenientes desse braço, segundo os investigadores americanos, consistiam num problema de feedback sensorial e no fato de que não se acumula ar com a mesma facilidade com que se gera eletricidade. Na Rússia fez-se grande alarde de um braço com movimentos. Em 1960, o Dr. J. B. Reswick viu esse braço aplicado em Moscou. Depois relatou a seus colegas americanos que os russos se haviam recusado a revelar-lhe como funcionava o mecanismo, tendo apenas se “referido a um controle eletromiográfico”. Visto não ter conseguido se encontrar com os cientistas soviéticos nem apurar mais nada, o Dr. Reswick concluiu que o “aparelho não devia corresponder ao anunciado”. Talvez o membro artificial de origem estrangeira com mais futuro seja a chamada mão de Vaduz, movida a eletricidade e fabricada numa oficina particular de membros artificiais, em Vaduz, capital do reino liliputiano de Liechtenstein, na fronteira da Suíça. Segundo a opinião de cientistas americanos, o movimento de abrir e fechar dessa mão “é comandado pelo efeito das contrações musculares sobre um balão de plástico cheio de ar. O feedback obtém-se por meio de um servomecanismo que reflete a força. . .” Embora os cientistas americanos reconheçam que esse aparelho possui muitas qualidades apreciáveis, especialmente o tal sistema de feedback sensorial, não o consideram apto a ser largamente utilizado em virtude de “sua complexidade, de sua fragilidade aparente e limitada aplicação”. A esperança, julgam os técnicos, reside num membro movido eletricamente, visto ser a eletricidade a forma de energia que melhor se coaduna com o sistema nervoso do homem. Ao refletir sobre tudo isso, tantos anos após a minha estadia em Atlanta, posso apenas tirar a mais banal das conclusões: não se pode encontrar substituto
para o que a absurda guerra feita pelo homem rouba ao próprio homem, e o único aperfeiçoamento que os mutilados podem esperar seria acabar definitivamente com as guerras. É este o monumento que os mutilados merecem acima de tudo: que dentro em breve, sobre o armário do escritório de uma personalidade civil importante, se encontre, num líquido amarelo, dentro de um recipiente de vidro, um objeto repelente — um membro artificial que se tornou desnecessário e obsoleto, outrora designado por prótese, como relíquia de uma era ignorante e primitiva.
4 O detetive de santos Numa fria manhã de dezembro de 1946, um jovem padre americano, muito alto, chamado Eric O’Brien, seguia apressadamente pelas ruas estreitas de Sevilha, a caminho da biblioteca histórica conhecida pelo nome de Arquivos das índias. Nessa manhã, tal como nos vinte e cinco dias anteriores, o Padre O’Brien encontrava-se com seu colega, o Padre Maynard Geiger, e entravam na biblioteca, onde o Padre O’Brien preenchia a ficha obrigatória. — Hoje — dizia ele ao funcionário espanhol —, queremos consultar os documentos referentes às viagens marítimas dos espanhóis ao Novo Mundo no ano de 1749. O funcionário desaparecia dentro de uma sala que encerrava uma pequena parte dos cinquenta mil volumes de originais e documentos raros dos Arquivos das índias. O Padre O’Brien esperava ansiosamente. Após ter passado cinco anos entregue a buscas incansáveis, procurando informações sobre um homem, achava-se ele prestes a resolver o mistério histórico. Enquanto aguardava, o Padre O’Brien ia recordando os indícios que o haviam conduzido àquele momento. Descobrira, em primeiro lugar, que o santo homem que procurava embarcara em Cádis, no mês de setembro de 1749, num navio chamado Villasota, com destino a Veracruz, no México. Sabia que, visto naquele tempo não haver passaportes, todos os viajantes que se dirigiam ao Novo Mundo eram obrigados a passar por uma agência do governo, instalada em Sevilha, chamada Casa de Contratación. Essa agência exigia que cada viajante declarasse seu nome, profissão ou negócio, e todos esses dados ficavam registrados, assim como a descrição física do viajante. A questão que preocupava o Padre O’Brien era a seguinte: teria o indivíduo em causa sido registrado dessa forma? E faria parte do registro a sua descrição física? Quando o precioso maço de documentos chegou, o Padre O’Brien desatouo rapidamente. Com uma excitação cada vez maior, começou a procurar e a virar rapidamente as folhas. Nada. . . nada. . . até que, de repente, surgindo diante dele como se acabasse de transpor uma ponte de duzentos anos, saltou-lhe aos olhos um nome, originalmente escrito numa tinta que o tempo tornara castanha, assim como amarelara o papel. Um nome e uma descrição: JUNÍPERO SERRA, padre, cerca de trinta e seis anos, de altura média, pele morena, cabelos e olhos negros e barba rala. O Padre O’Brien e o seu colega mal podiam conter a alegria. Logo que foi possível, fotocopiaram a informação. Tratava-se de mais um elo na cadeia de provas que já haviam reunido. Nesse dia, após sete anos passados seguindo a pista de um homem que morrera havia cento e sessenta e quatro anos, depois de várias viagens à Califórnia, ao México, a Portugal, à Espanha, a Majorca e à Itália, de terem percorrido trinta e dois mil quilômetros de avião e andado duas semanas numa mula, de haverem consultado frades franciscanos e professores universitários de todo o mundo, o Padre O’Brien e seu companheiro tinham conseguido reunir oito mil e quinhentas páginas de material destinado a provar que um pre- decessor seu, pioneiro do faroeste americano, o Padre Junípero Serra, tinha merecimentos para ser considerado santo pela Igreja Católica. Ninguém sabe ao certo quantos santos há na Igreja Católica, embora certa autoridade tenha afirmado que andam por volta de vinte e cinco mil. A este
número, o Vaticano está sempre pronto a acrescentar mais um, ainda que tal admissão seja bastante difícil. Depara-se a meio caminho com um obstáculo canônico: — A santidade é uma meta que implica o processo legal mais complicado do mundo — dizia o Padre O’Brien. — O dia da canonização, com todas as suas pompas, pode muito bem marcar o termo de vários séculos de investigação. Todos os agrupamentos católicos existentes em qualquer parte do mundo estão em condições de propor uma pessoa qualquer, morta há um ano ou há mil. Tal proposta, porém, é inútil, a não ser que os autores estejam certos de que o candidato obedece aos requisitos da santidade: ter sido uma pessoa não só de virtudes invulgares, mas heróicas; encontrar-se aureolado por uma fama extraordinária ou por uma tradição de santidade; ter possuído em vida ou depois de morto o dom de realizar milagres. Se o candidato corresponde a estes requisitos, seu nome é apresentado ao postulador-geral da ordem respectiva, em Roma. O postulador-geral, por sua vez, nomeia um perito, que é sempre um padre residente nas vizinhanças do local onde viveu o candidato, a fim de investigar melhor. Este especialista passa a ser vice-postulador e funciona mais ou menos como um investigador particular, uma espécie de detetive de santos. A admissão do candidato entre os santos depende dos indícios e fatos que ele conseguir desencavar. Quando, em 1941, na véspera de Pearl Harbour, o Padre O’Brien, filho de um carpinteiro irlandês, foi escolhido como perito para investigar o caso — ou a causa, conforme a Igreja prefere chamar-lhe — do Padre Junípero Serra, viu-se diante de uma tarefa quase impossível. Os detetives comuns, que trabalham na era da fotografia e das impressões digitais, acham difícil investigar a vida privada de pessoas desaparecidas há um dia, uma semana ou um ano. O Padre O’Brien tinha por missão localizar um homem que morrera havia século e meio e provar, antes de mais nada, que ele existira como ser humano, para depois poder demonstrar que fora santo. Embora seus predecessores tivessem gasto sete anos em pesquisas preliminares, o Padre O’Brien levou outros sete para completar o seu processo. E foi relativamente rápido. Para se obter a canonização da Madre Cabrini, a primeira santa dos Estados Unidos, foram precisos vinte e cinco anos. E na Guatemala ainda se investiga um processo de canonização que teve início há dois séculos. O Padre O’Brien, porém, a partir de uma lenda, trouxe à luz, embora confusa, a história de uma vida. Hoje, no tribunal católico de Fresno, na Califórnia, os padres estão na posse de fatos suficientes para poder julgar um candidato que morreu em agosto de 1784. Tudo começou em 1934, quando os franciscanos da Califórnia decidiram que o Padre Junípero merecia ser canonizado, e propuseram seu nome ao postulador da ordem em Roma. Nessa época, tal como agora, muita gente deve ter se surpreendido por se haverem lembrado do nome do Padre Junípero. Que importância teria o fato de ele ser ou não canonizado? Certo dia, num sermão, o Padre O’Brien fez essa pergunta e deu a resposta: “Por que queremos que esse homem seja declarado santo? Deus encontra mais um motivo de glória na homenagem que prestamos a esse seu servo fiel. Para o Padre Serra isso representa o reconhecimento, coisa de que ele sempre fugiu neste mundo. Para nós, o proveito é grande. A Igreja pode apontá-lo como um guia que devemos seguir no caminho para o céu”.
Quando a proposta foi apresentada, os fatos superficiais sobre o Padre Serra pareciam demonstrar que havia razões de sobra para a canonização. Miguel José Serra nascera em novembro de 1713, na aldeia de Petra, na pequena ilha mediterrânea de Majorca. Hoje em dia, a viagem de Valência, na Espanha, até esta ilha faz-se de um dia para o outro, e fica a uma hora de vôo de Barcelona. Com a idade de dezessete anos, inspirado pelas narrativas dos missionários marti- rizados no Novo Mundo, Miguel José Serra ordenou-se na cidade de Palma de Majorca. Como é hábito, trocou seu nome, escolhendo o de Junípero. Sua primeira tarefa foi a de ensinar filosofia escolástica na universidade de Majorca. Certo dia, após ter permanecido ali sete anos, Junípero Serra foi abordado por um antigo aluno, o Padre Francisco Palou, que lhe pediu conselho sobre o seu desejo de se tornar missionário da Nova Espanha, isto é, o México, onde já se encontravam quatro mil francis- canos, empenhados na tarefa de acabar com os ídolos nativos. Em vez de um conselho, o Padre Serra ofereceu-se para acom- panhá-lo. Na viagem de Majorca até Cádis, e dali até o México, gastaram Junípero Serra e Francisco Palou noventa e nove dias. Chegaram a Veracruz a 6 de dezembro de 1749. Em vez de seguirem a cavalo para a Cidade do México, resolveram imitar São Francisco e ir a pé (quando há pouco o Padre O’Brien percorreu o mesmo caminho de automóvel, seguindo os passos do Padre Serra, declarou que o calor e as montanhas o haviam fatigado bastante). A caminhada do Padre Serra durou vinte e seis dias. Terminou não só com as pernas todas em ferida, em virtude das picadas dos insetos, mas ainda inchadíssimas por causa da fadiga. Tinha um pé e o tornozelo todo ulcerados, padecimento que lhe ficou até o fim da vida. Na Cidade do México, Padre Serra frequentou o Colégio de São Fernando, um estabelecimento franciscano, destinado à instrução dos novos frades, onde aprendeu alguns dialetos indígenas e técnica missionária. Ao fim de cinco meses foi enviado, juntamente com o Padre Palou, para as montanhas de Sierra Gorda, no México central, para dirigir cinco missões de catequese dos índios. Esse era um dos lugares mais inóspitos do Novo Mundo. O clima quente e úmido prejudicava grandemente sua saúde. Depois de haver percorrido o México durante anos, por amor de Cristo, o Padre Serra, tendo atingido a idade madura de cinquenta e quatro anos, foi nomeado para o posto mais importante que ocupou, o de dirigir treze missões na Baixa Califórnia. Começou percorrendo mil e seiscentos quilômetros em seis meses, para visitar suas missões. Em breve foi para o norte, onde é hoje o Estado da Califórnia. Encontrou aí um quadro desolador. Os índios viviam nus, comiam ratos e cobras, praticavam a poligamia, moravam em cabanas infectas, acreditavam em bruxarias e passavam a vida guerreando-se uns aos outros. No primeiro ano que passou em San Diego, o Padre Serra não conseguiu converter um único índio. Mas, por outro lado, dera início a uma grande obra. Por volta de 1769, no mesmo ano em que Daniel Boone, do outro lado da América, tentava infiltrar-se no Kentucky, o Padre Serra fundava a Missão de San Diego de Alcalá. Ao fim de quatro anos, no intuito de obter mais fundos dos superiores, seguia por mar de San Diego para San Blás. Percorreu depois a pé a distância que o separava da Cidade do México, voltando em seguida, também a pé, até San Diego, depois de andar quase quatro mil quilômetros apenas de sandálias. Por cinco vezes, embora enfraquecido pela doença, fez o caminho de San Diego até Monterey, a última delas já com setenta anos de idade. Nos quinze anos que viveu na Califórnia, ora manque- jando com a perna
doente (caminhou quase seis mil quilômetros, só nas cinco viagens que fez entre San Diego e San Francisco), ora lidando com índios hostis e governadores pouco compreensivos, o Padre Serra dotou a Califórnia com nove grandes missões e converteu seis mil nativos — trabalho colossal, tanto material como espiritual, que, no espaço de meio século, cresceu até se transformar numa cadeia de vinte e quatro missões e numa multidão de oitenta mil fiéis. Morreu no Carmelo, na tarde do dia 28 de agosto de 1784, com a idade de setenta e dois anos. O seu fatigado corpo repousava num leito formado por duas tábuas e até o fim considerava-se um servo de Deus “tíbio, perverso e inútil”. Eram esses os fatos concretos referentes ao candidato a santo. Foram suficientes para convencer o postulador-geral da ordem franciscana em Roma, o Padre Fortunato Scipioni, de que Junípero Serra merecia uma investigação mais completa. Em 1934, o Reverendo Augustine Hobrecht, historiador da Califórnia, foi nomeado para realizar os trabalhos preliminares. Hobrecht, porém, encontrava-se de tal modo assoberbado com outras tarefas da Igreja que não conseguiu dedicar grande tempo ao caso. A Igreja decidiu então nomear outra pessoa. “Quando o postulador-geral em Roma precisou de novo emissário”, relata o Padre O’Brien, “pediu ao superior provincial da Califórnia para lhe indicar alguém que conhecesse a vida do Padre Serra, assim como a história de seus primeiros tempos na Califórnia.” Uma vez que uma tarefa dessas exige grande perda de tempo e inúmeras viagens, é costume escolher-se uma pessoa jovem. Havia quarenta mil padres nos Estados Unidos, mas só sete foram encarregados até hoje dessa espécie de tarefa. No dia 6 de dezembro de 1941, o Padre Eric O’Brien, frade franciscano de vinte e nove anos, passou a ser o oitavo. O Padre O’Brien, que lembrava um jogador de futebol, parecia ter sido bem escolhido para o cargo. O pai, um irlandês nascido em Iowa, que emigrara para a Califórnia a fim de trabalhar num rancho e depois como carpinteiro, morava em Pomona, onde nasceu, em 1912, este seu filho, o mais novo de nove irmãos. Depois de terminar o curso secundário em Los Angeles, O’Brien ouvira o chamamento e sentira que tinha uma vocação a cumprir. Fez quatro anos de curso universitário e mais dois no Seminário de Santo Antônio, em Santa Barbara, seguidos de um ano de noviciado no mosteiro de San Luis Rey, onde ordenou-se. Depois, levou três anos estudando diversos assuntos, de psicologia a hebraico, e passou mais quatro anos no Seminário Maior das Missões, em Santa Bárbara, especializando-se em teologia e nas Escrituras, rezando missa e ocupando-se de outras cerimônias litúrgicas. A primeira missão do Padre O’Brien, depois de ordenado em 1939, foi ensinar grego, latim e literatura inglesa no Seminário de Santo Antônio. Permaneceu ali dois anos até 1941, ao ser nomeado vice-postulador na causa do Padre Junípero Serra. A primeira tarefa do Padre 0’Bríen como detetive de santos foi provar que Junípero Serra não só fora um católico extraordinariamente fervoroso, como existem muitos, mas ainda um católico de virtudes heróicas, que merecia ser considerado por toda a Igreja como um modelo a seguir. Todos os passos da sua vida foram analisados e sua história plenamente confirmada, antes de ser proposto para a canonização. O Padre O’Brien começou por ler mais informações sobre ele. A melhor fonte era uma biografia escrita em espanhol pelo maior amigo do Padre Serra, e
seu antigo aluno, o Padre Francisco Palou. Publicado na Cidade do México, em 1787, três anos após a morte do missionário, o volume está cheio de exemplos da sua fortaleza de ânimo e coragem. Como, por exemplo, a ocasião em que o acampamento de San Diego foi assaltado pelos índios e ele pediu que não matassem nenhum, pois era uma alma que se perdia para o batismo. E de outra vez, durante a missanuma aldeia mexicana, em que envenenaram o vinho, e o Padre Serra saiu carregado do altar. (Alguns investigadores atuais põem em dúvida este incidente, uma vez que, segundo parece, os padres não eram obrigados a beber o vinho, mas a levar simbolicamente o cálice aos lábios.) Aconteceu ainda que, a bordo de um navio que se dirigia ao Novo Mundo, teve uma controvérsia a propósito de religião com o comandante do barco, um protestante inglês, ocasião em que esteve a ponto de ser atirado pela amurada, por não querer submeter-se aos argumentos pouco filosóficos do outro. Havia muitas fontes de informação de que o Padre O’Brien poderia fazer uso. A biblioteca de quarenta mil volumes da missão de Santa Barbara não passava de uma amostra. Durante os sete anos seguintes, as leituras do Padre O’Brien variaram infinitamente, indo desde um pacote de cartas depositadas em Barcelona por um sobrinho do Padre Serra, em 1789, até as dezenas de livros da biblioteca da Sagrada Congregação para a Propagação da Fé na Cidade do Vaticano, passando por outros documentos relacionados com o Padre Serra, espalhados por todo o México e pelos Estados Unidos. Tudo o que o Padre O’Brien encontrou de aproveitável nesses livros e documentos copiou ou microfilmou. Quando, com a ajuda de seus colaboradores, terminou as leituras, no verão de 1948, o Padre O’Brien possuía notas ou fotocópias do material reunidas em oitenta e cinco mil páginas. A fim de verificar a autenticidade dos manuscritos originais e, o que era mais importante, para recolher antigas histórias, o Padre O’Brien foi quatro vezes ao México e fez inúmeras viagens pela costa da Califórnia, bem como várias visitas a Portugal, Espanha, Majorca e Itália. Em todos os pontos da terra onde o Padre Serra vivera, trabalhara, caminhara, há duzentos anos, o Padre O’Brien tentava hoje viver, trabalhar e caminhar também. Investigava no próprio local todos os pontos obscuros da vida do Padre Serra. O Padre O’Brien passou a maior parte do tempo no México, país onde encontrava as maiores dificuldades, mas que aprendeu a amar intensamente. Embora nunca tivesse chegado a correr perigo de vida, apesar de se tratar de um país anticlerical, passou por várias dificuldades. É proibido usar vestes eclesiásticas no México; por isso, ao chegar à fronteira, o Padre O’Brien retirava o colarinho de padre. — Era engraçado usar gravata —- disse ele. Andava de terno preto, como os dos advogados e dos médicos mexicanos. Um dos períodos menos documentados da longa vida do Padre Serra eram os nove anos a partir de 1750, que ele passou como missionário nas montanhas da Sierra Gorda, no México central. — Havia questões que eu tinha de elucidar se quisesse provar o nosso caso em tribunal —• dizia o Padre O’Brien. — Haveria ali ainda vestígios do trabalho do Padre Serra? Que teria sido feito das igrejas que ele construíra? O povo continuaria a venerar a sua memória? Existiriam alguns escritos seus? As investigações nunca estariam completas antes de se encontrar a resposta para estas perguntas. Havia histórias sobre roubos, assassinatos, animais ferozes, cobras peçonhentas, doenças, climas insalubres. Além disso, eu não soubera de mais nenhum branco que ali tivesse estado depois do Padre Serra. A viagem era inevitável. Em fevereiro de 1946, com o patrocínio do Governador Warren, da
Califórnia, obtive cartas de recomendação do Presidente Camacho, do México, para os governadores dos Estados mexicanos onde ia trabalhar. Parti, pois, para Sierra Gorda. Acompanhado pelo Padre Hugh Noonan, capelão do exército em Porto Rico, agora de licença, o Padre O’Brien dirigiu-se de trem de San Luis Potosí até Rio Verde, a zona mais setentrional do campo de ação do Padre Serra no México. Os dois padres chegaram à primeira aldeia ao pôr-do-sol, numa charrete de duas rodas, em que iam sentados com os pés quase na garupa do cavalo, pois ali não havia táxis. — Seguíamos pelo meio de casas azuis, verdes e cor-de- rosa, construídas na beira da estrada, em meio a uma nuvem de poeira através da qual começavam a brilhar pequenos lampiões — recorda o Padre O’Brien. — Nas esquinas, já que o carro não tinha buzina, o cocheiro punha o cabo do chicote nos raios das rodas, fazendo um ruído de reco-reco que avisava os transeuntes da nossa aproximação. Há muito que a velha igreja perdera todos os documentos relacionados com o Padre Serra. Parece que haviam sido queimados pelos revolucionários. Por isso, no dia seguinte, fomos embora, numa perua, pela estrada mais incrível que se possa conceber. Dirigimo-nos a Jalpán, aldeia conhecida pelo nome de Xal- pán no tempo do Padre Serra, onde ele estabelecera seu quartel-general. Em Jalpán, que possuía luz elétrica, mas não telefone, nem telégrafo, nem rádio, encontramos uma população amável, vivendo em cabanas de um só cômodo, feitas de ramos, com tetos de folhas de palmeiras e chão de terra. O Padre O’Brien descobriu ali a maior das cinco primeiras missões de que o Padre Serra fora encarregado, com sua igreja em forma de cruz, conhecida pelo nome de Santiago de Jalpán. Embora os arquivos existentes aí fossem bastante reduzidos, o Padre O’Brien desencavou um retrato a óleo que julgou ser do Padre Serra, e que devia ter duzentos anos. “Não tinha nenhum título ou assinatura”, escreveu o Padre O’Brien em suas notas, “mas o quadro é muito antigo. Representa um padre de pé, segurando uma grande cruz. O rosto é de um homem jovem — o Padre Serra contava apenas trinta e seis anos quando foi para Jalpán. Havia, porém, um mistério: o padre do quadro está vestido de azul, e todos os que leram suas cartas sabem como ele insistia em que as imagens de São Francisco existentes em suas igrejas estivessem vestidas com um hábito cinzento. Era desta cor que o santo andava vestido, bem como a maioria de seus discípulos.” O hábito azul do quadro de Jalpán, num homem que preferia o cinzento, tornava tudo incompreensível. O Padre O’Brien continuava num beco sem saída, quando veio em seu auxílio um especialista no Padre Serra, da ilha de Majorca, com uma carta que resolvia o problema: “O azul é a cor do hábito dos franciscanos de Majorca. Diz-se que isso constitui um privilégio papal, concedido aos franciscanos daquela ilha em virtude de sua grande devoção à Santa Virgem”. Além de Jalpán, o Padre O’Brien e o Padre Noonan percorreram as regiões mais primitivas da Sierra Gorda. Viajavam montados em mulas, e as distâncias não eram avaliadas por quilômetros, mas pelo tempo que uma mula levava a percorrê-las, de aldeia em aldeia. O Padre O’Brien não montava a cavalo havia catorze anos e tinha o lado de dentro das pernas todo machucado. Os dois padres americanos percorreram longos caminhos solitários, subiram ásperas montanhas e, certa noite de chuva torrencial, dormiram na melhor casa da aldeia de Saucillo. — Nunca mais esquecerei essa noite — diz o Padre O’Brien. — O quarto
estava cheio de imagens de santos e tinha também uma máquina de costura Singer. O vento uivava no teto. A luz era de velas e o chão, como sempre, de terra batida. Eu tentava dormir numa cama formada por correias de couro cruzadas. Lembrava uma raquete de tênis monstruosa. E as pulgas, que infestavam tudo, provavelmente nunca tinham ouvido dizer que o ddt era fatal. O Padre O’Brien achava os habitantes da Sierra Gorda corteses e bemeducados. Graças ao seu auxílio e a um guia chamado Primitivo (“pagávamos-lhe um dólar por dia, o que inflacionou Sierra Gorda”), o Padre O’Brien descobriu e fotografou preciosos documentos relativos ao Padre Serra, encontrou restos de um aqueduto que ele construíra e visitou e inspecionou as cinco missões por ele edificadas por volta de 1750. Embora a viagem ao México possa ser considerada sua aventura mais agradável durante aqueles sete anos de pesquisas, sua estadia na Espanha, em 1946, e a ida a Majorca, em princípios de 1947, constituíram etapa mais produtiva. Após um desastre de aviação na Irlanda, do qual escapou ileso, o Padre O’Brien chegou a Madri. Ficou hospedado na Igreja de San Francisco el Grande, a maior da cidade, que fora um centro franciscano no tempo do Padre Serra. Seu primeiro contato com a Espanha teve lugar quando os fotógrafos dos principais jornais de Madri e Barcelona foram em massa a seu quarto, para fotografá-lo. Fosse qual fosse o local onde ele se colocava, não pareciam satisfeitos. Obrigavam-no a mudar de um lado para o outro, até que começou a protestar. Só quando as fotografias apareceram nos jornais, é que o Padre O’Brien compreendeu a manobra. Os fotógrafos tinham se esforçado, com êxito, para colocá- lo debaixo de um retrato emoldurado do General Franco. O Padre O’Brien e seu assistente, o Padre Maynard Geiger, chefe da comissão histórica do Padre Serra na Califórnia, evitavam as discussões políticas. Achavam Madri muito semelhante a Boston e, por outro lado, eles próprios eram alvo de grande curiosidade. Durante sua estadia em Madri, e depois em Sevilha (onde descobriram as únicas descrições existentes do Padre Serra), o Padre O’Brien e o Padre Geiger microfilmaram duas mil páginas de material. O único contratempo que o Padre O’Brien sofreu, relacionado com a Espanha, deu-se muito mais tarde, quando concordou em fazer uma conferência sobre sua viagem no Newman Club de Santa Barbara, Califórnia. Como estava se fazendo muita propaganda sobre a conferência, o Padre O’Brien teve receio de que suas palavras fossem deturpadas, e por isso forneceu aos jornalistas algumas cópias do texto. “Não vim aqui para falar a favor do regime de Franco na Espanha”, afirmava a certa altura. “Uma vez que possuo, há mais de um século, antepassados americanos, amo a democracia tal como nós a vivemos e odeio todas as formas de totalitarismo... Algumas pessoas com quem tive contato na Espanha diziamme que Franco não era um ditador, que o último ditador fora Primo de Rivera. Outros afirmavam que Franco era um ditador, mas que sua usurpação do poder se justificava pelos excessos cometidos sob a República. Havia quem declarasse que, embora ele tivesse assumido o poder de maneira justificável, agora já não tinha o direito de continuar; prolongara demais seu mandato. Outros ainda eram de opinião que ele assumira o governo indevidamente, que não tinha nem nunca teria direito a governar. . . Porque não sou um observador político competente, porque estive muito ocupado com os meus modestos trabalhos sobre o papel que certo homem exerceu na história da Califórnia, porque sinto que minhas observações superficiais nenhum valor teriam para aquilo de que mais se
necessita hoje — o bom entendimento entre as nações —, peço que me dispensem de formular qualquer observação”. Na manhã seguinte, a imprensa deturpava totalmente seu discurso. Alguns jornalistas chamavam-no de fascista. O Padre O’Brien jurou a si próprio nunca mais fazer outra conferência sobre a Espanha, e até hoje cumpriu sua promessa. De Valência, na Espanha, o Padre O’Brien embarcou para a ilha de Majorca, no Mediterrâneo, berço do Padre Serra, onde este fora ordenado e ensinara até partir para o Novo Mundo. Ali os documentos referentes ao candidato a santo encontravam-se sobretudo nas mãos de famílias particulares e não nas bibliotecas. O Padre O’Brien teve de descobrir quais eram essas pessoas. Seu contato mais notável foi com um marquês que voltou de propósito de Madri, onde estava passando férias, para lhe mostrar pessoalmente os documentos do século XVIII que possuía. — Nunca mais esquecerei sua casa — dizia o Padre O’Brien. — Uma sala, com o dobro da altura das nossas casas americanas, toda forrada de tapeçarias de damasco vermelho, espelhos com molduras douradas e quadros de Goya. O velho marquês guardava os documentos referentes ao Padre Serra nos arquivos da família, dos quais só ele tinha a chave. Foi ao andar superior buscá-los e depois não nos deixou ficar a sós com eles: sentou-se, muito hirto, numa cadeira à nossa frente, e ali permaneceu durante longas horas, enquanto tomávamos notas e tirávamos fotocópias. No entanto, a parte mais valiosa das descobertas foram feitas no mosteiro de São Filipe Néri. O Padre O’Brien sabia há muito tempo que, enquanto professor da universidade, o Padre Serra dera aulas de filosofia baseadas nas ideias do teólogo escocês Duns Scotus. Foi daí que ele partiu. Onde estariam arquivadas essas tais lições de filosofia? Qual o seu conteúdo? Ainda existiriam? Em Majorca, o Padre O’Brien conheceu alguns sacerdotes que tinham encontrado notas de antigas conferências publicadas em latim num total de mil cento e sessenta páginas, e conseguiu saber, dessa maneira, o que o Padre Serra ensinava como pedagogo. Depois de haver provado que a vida do Padre Serra fora tão heróica como virtuosa, restava-lhe ainda provar outros pontos importantes. O primeiro — e esse conseguiu demonstrar — era que o Padre Serra nunca recebera honras da Igreja sem autorização, tais como a de ser chamado São Junípero pelos padres ou ter seu retrato pintado com uma auréola em volta da cabeça. Em seguida, pediramlhe que mandasse exumar o corpo do Padre Serra e que fizesse um relatório de suas descobertas. Desde a morte do santo homem, em 1784, sua sepultura, no Carmelo da Califórnia, fora aberta por duas vezes, a última em 1884, no centésimo primeiro aniversário de sua morte, quando veio de San Francisco uma caravana de dignitários para observar o corpo. A terceira vez que a sepultura foi aberta, houve uma longa e complicada operação que se revestiu de grande expectativa para o Padre O’Brien. Havia outros dois corpos em caixões separados. O primeiro era de um amigo de Majorca, Frei Crespi. O segundo, do sucessor do Padre Serra como “presidente” das missões da Califórnia, Frei Fermín de Lasuéen. Conseguiria distinguir um dos três corpos como sendo o do Padre Serra? Nas duas ocasiões em que o túmulo fora aberto, as descrições tinham sido vagas. Havia ainda outro ponto de interrogação: um daqueles seria mesmo o seu corpo? Corria uma lenda segundo a qual os espanhóis, ao abandonar a Califórnia, haviam roubado o corpo do Padre Serra, levando-o para bordo de um navio ancorado ali perto, que depois afundara. Afirmava-se que um sobrevivente referira-se a isso num livro. O Padre
O’Brien procurou localizar esse livro e chegou até um índio cujo avô fora batizado pelo Padre Serra. O índio declarou que o livro fora emprestado e se perdera. No dia 1° de setembro de 1943, o Padre O’Brien, na presença de dois eminentes antropólogos, dois ortopedistas americanos e diversos membros do clero católico, abriu a sepultura e os caixões. Embora as autoridades tenham sido obrigadas a jurar que guardariam o mais completo segredo do que vissem, o Padre O’Brien confessa que o corpo do Padre Serra foi identificado com base numa dúzia de argumentos, uns positivos outros negativos. A sepultura esteve aberta seis dias, o exército tirou fotografias para o Padre O’Brien e, finalmente, deixaram o Padre Serra em paz, encerrado numa urna de cobre hermeticamente fechada. Outra pergunta que o Padre O’Brien teve de responder foi a seguinte: o que dizia o povo sobre o Padre Serra antes de 1934, quando começou a trabalhar pela sua causa? — Isso era muito importante para a nossa causa — diz o Padre O’Brien. — A Igreja não admite nenhum candidato a santo a não ser que se prove ter gozado durante a vida e logo a seguir à morte da fama de santidade e de ter operado milagres. A fim de descobrir se o Padre Serra possuía ou não fama de santidade, o Padre O’Brien percorreu a Califórnia de ponta a ponta, durante nove meses, em 1943 e 1944, entrevistando membros das famílias mais antigas do Estado. Conversou com cento e cinquenta e um californianos, na sua maioria índios ou espanhóis, que haviam escutado as primeiras histórias sobre o Padre Serra da boca de outros membros da família. O cidadão mais velho que o Padre O’Brien entrevistou foi uma índia de cento e quatro anos, de San Juan Bautista. — A ocasião em que me senti mais perto do Padre Serra foi quando entrevistei a neta da Sra. Peres de Guillén de Mariner, com noventa anos. Quando lhe falei, em 1943, recordava tudo o que a avó lhe contara sòbre o Padre Serra. A Sra. Mariner fora outrora grande proprietária em Pasa- dena e em Altadena. Nascera na Baixa Califórnia e viera para a missão do Padre Serra, onde permanecera durante a sua juventude. Assim, conhecera-o de perto. Pois bem, a Sra. Mariner ainda vivera muito tempo depois da morte do Padre Serra. Casara-se três vezes e conservara um cérebro lúcido e uma memória excelente, já depois de ter completado cem anos. Contara muitas histórias sobre o Padre Serra à neta, e esta, que tinha noventa anos, era ainda capaz de reproduzi-las. Havia outras histórias transmitidas oralmente, através dos membros de várias famílias, que contavam como o Padre Serra curava os doentes, bastando fazer-lhes o sinal-da- cruz. Narrava também a tradição a forma como o santo homem, com suas palavras, desafiara uns ursos furiosos que perseguiam alguns índios, e como as colheitas produziam bem após as rezas do Padre Serra, que utilizava sua grande influência junto de Deus. A despeito de todos estes relatos verbais da capacidade do Padre Serra para fazer milagres, bem como de sua reputação de santidade e virtude, faltava ainda ao Padre O’Brien a etapa mais difícil de suas investigações. Tinha de apresentar provas concludentes e científicas de seis milagres executados pelo santo homem depois da morte. Mas o que a Igreja considera milagre? — Um milagre — diz o Padre O’Brien — é um acontecimento extraordinário visível em si e não só nos seus efeitos, o qual só pode ser explicado pela intervenção especial de Deus. Desta forma houve santos que, tal como Nosso
Senhor, caminharam sobre as águas, curaram os doentes pelo simples contato e ressuscitaram os mortos. No entanto, a maior parte dos milagres atuais, apresentados como prova de santidade, são curas de doentes ou de defeitos físicos. A pesquisa desses seis milagres, o mínimo requerido pela Igreja, investigação que podia prosseguir enquanto as outras provas eram cuidadosamente examinadas por uma série de tribunais eclesiásticos, veio a ser o obstáculo mais formidável da tarefa do Padre O’Brien. No caso da Madre Cabrini, os milagres foram descobertos e autenticados pela Igreja durante as duas décadas que se seguiram à sua morte, em 1917. Assim que o Padre O’Brien fez saber que desejava investigar quaisquer curas milagrosas atribuídas ao Padre Serra, começou a receber muitas cartas. Poucas satisfaziam às rígidas exigências da Igreja: que os milagres fossem confirmados por testemunhas oculares, submetidos ao escrutínio de investigadores científicos e explicáveis apenas como resultado de uma intervenção divina. Cerca de setenta e cinco por cento da correspondência do Padre O’Brien a respeito dos milagres vinha da Califórnia; o resto, de vinte e seis Estados diferentes, bem como da Espanha, do México, da Irlanda e da Austrália. A maior parte das cartas recebidas relatavam apenas fatos triviais: o caso do jovem na Cidade do México que rezou ao Padre Serra e conseguiu emprego; da família em Los Angeles que encontrou casa para morar; do homem em Baltimore que se curou de úlcera no estômago; do sujeito de Oakland que rezou ao Padre Serra e cujo peso aumentou de quarenta e cinco quilos para setenta. Poucos casos mereciam ser investigados mais a fundo. Quando algum impressionava o Padre O’Brien, ele mostrava a carta a um médico seu amigo de Santa Barbara. Se este encontrava interesse, o Padre O’Brien encetava correspondência. Há pouco sua curiosidade foi despertada pela história de uma mulher da Califórnia que havia caído de um edifício bastante alto, há vinte anos, e machucara seriamente ambas as pernas, mal podendo andar. Dirigira-se ao túmulo do Padre Serra e, depois de fazer a sua oração, começara a andar e largara para sempre as muletas. — Não lhe dê importância — dissera o médico abanando a cabeça. — Ela sofreu um choque nervoso durante vinte anos. A visita ao túmulo do Padre Serra, a confiança, a autossugestão, venceram o choque. Não considero isso um milagre. — Depois, como sempre, o médico despediu- se do Padre O’Brien com o conselho tantas vezes repetido: — Espere até saber de qualquer coisa que realmente o deixe estarrecido, qualquer coisa que os psicólogos não consigam explicar. Depois então investigue. Certa vez, não há muito tempo, o Padre O’Brien soube de um fato que o deixou realmente admirado. Veio descrito numa carta vinda de Majorca e que começava assim: “Tem esta por objetivo relatar a cura, segundo parece, miraculosa, operada na vista de uma doente, pelo Frei Junípero Serra. Trata-se de uma irmã franciscana de Majorca, de setenta e quatro anos, natural de Petra e atualmente residindo em Ariany”. A carta prosseguia, explicando que, em abril de 1945, a irmã, ao passar perto de uns lenhadores, fora atingida por uma lasca de madeira num dos olhos. Depois de fazer uso de alguns remédios domésticos, consultara um especialista, que lhe declarara não haver esperança de cura. Teria que extrair um dos olhos. A irmã fora aconselhada por algumas pessoas amigas a invocar o Padre Serra e,
cerca das três da manhã, como continuasse com dores muito fortes, ela rezara mais uma vez. A dor desapareceu de súbito e, ao levantar-se, via perfeitamente. Quando visitara de novo o especialista, este mostrara-se admirado: “A ciência médica não pode explicar esta cura!”, declarara. “A que santo a senhora rezou?” Ao chegar a Majorca o Padre O’Brien foi procurar o oftalmologista, para conseguir o testemunho médico que a Igreja exige. Este, receando a censura de seus colegas, mostrou-se irritado e pouco cooperativo, declarando asperamente ao Padre O’Brien: “Olhe, padre, os meus clientes, quando precisam de milagres, vêm a mim!” A derradeira tarefa do Padre O’Brien, antes de apresentar a causa de Junípero Serra perante os tribunais da Igreja, era preparar uma minuta oficial chamada “articuli”. Essa minuta compreendia duzentos pontos relativos às virtudes do Padre Serra — um item intitulado “Fé”, seguido de vinte e uma perguntas; outros focando, por exemplo, a “Esperança”, a “Fortaleza”, o “Amor de Deus”, todos seguidos de várias perguntas. Em lugar de percorrer as oito mil e quinhentas páginas dos seus documentos, em busca das respostas para incluir nos articuli, o Padre O’Brien consultava simplesmente um dos seus quatro fichários. Neles estava condensado o melhor das oito mil e quinhentas páginas. Cada ficha compunha-se de um cartão amarelo, que relatava as próprias palavras do Padre Serra, e de um cartão cor de salmão, que continha as palavras de outras pessoas. O Padre O’Brien terminou a minuta, escrita em latim, no mês de agosto de 1948. Um alto dignitário de Roma, fransciscano especializado em questões dessa natureza, veio da Itália até a Califórnia, e passou dez dias lendo e discutindo os articuli do Padre O’Brien. Ultimamente, foram feitos outros acréscimos à minuta que foi então apresentada ao que se chama o tribunal de primeira instância num processo de canonização, isto é, o tribunal da diocese de Monterey-Fresno, da Califórnia. Este tribunal, que funciona a portas fechadas, por vezes presidido pelo próprio bispo, composto por três padres nomeados por este, prosseguiu seus trabalhos até o fim da primavera de 1949, ou talvez mesmo depois disto. Houve antes outros casos que se notabilizaram pela demora — a causa de Santa Teresa de Lisieux, nessa altura do processo, prolongou-se por cento e nove sessões, cada uma de cerca de seis horas para confirmar sua fama de santidade (cujas provas escritas ocupam um total de três mil páginas em letra miúda). Reunidas todas as provas e com o processo correndo nesse tribunal, o Padre O’Brien sentiu pela primeira vez que progredia um pouco. — O tribunal de Fresno é apenas, digamos, uma agência de recepção — declara ele. — Se esbarramos aí com uma parede, se vemos que a causa não tem fundamento, o bispo limita-se a mandar dizer a Roma que ordene o cancelamento de todas as investigações. Mas isso talvez não aconteça neste caso. O tribunal de Fresno aprovará os nossos articuli. Se se der por satisfeito, o bispo enviará um relatório à Sagrada Congregação dos Ritos, em Roma. Depois disso, no Vaticano, seguir-se-á, provavelmente durante três anos, uma complicada série de passos legais, incluindo o estudo dos escritos do Padre Serra feito por dois teólogos em busca de erros contra a fé, três sessões do tribunal que discutirão suas virtudes heróicas, mais outras três que se ocuparão dos milagres, e uma sessão final da congregação na presença do papa. Quando o candidato tiver sido aprovado sucessivamente nas diversas categorias de servo de Deus, venerável e bem-aventurado, acaba por fim sendo canonizado numa cerimônia magnífica em que o papa celebra missa e ordena aos fiéis que venerem
o novo santo. Quando a causa do Padre Serra deixar Fresno, a caminho de Roma, o Padre O’Brien seguirá com ela. Assistirá à defesa dos teólogos, visto que grande parte do material está escrito em espanhol, língua em que ele é especialista, e também porque muitas coisas estão ligadas com a Califórnia, outro assunto em que ele é mais versado do que a maioria das autoridades romanas. Habitará Roma, trabalhará dentro do Vaticano e travará uma longa batalha com seu superinimigo, uma espécie de acusador, um padre especializado em direito canônico, nomeado como delegado da fé, mais conhecido pela designação de “advogado do Diabo”. Um delegado da Igreja é quem atualmente desempenha este papel em Fresno. Outros o retomarão em Roma. O papel ingrato de “advogado do Diabo” consiste em estudar a minuta que lhe é apresentada, em procurar-lhe os pontos fracos, e em provar que o candidato em questão não merece ser canonizado. Em Fresno, o Padre O’Brien não tem licença para discutir com o “advogado do Diabo”. Em Roma, porém, conceder-lhe-ão a oportunidade de réplica. O Padre O’Brien já calcula quais são as objeções que o “advogado do Diabo”, em Fresno, levantará ao caso do Padre Serra. — Vai dizer que ele tinha mau gênio, que era cioso de sua autoridade, que empregava táticas discutíveis ao governar os índios da Califórnia. Investigará os documentos e descobrirá que existiam muitas divergências entre o Padre Serra e os governadores da Califórnia, e assim provará seu feitio irascível. Chegará mesmo a ponto de afirmar que ele era egoísta. Tenho certeza de que vai fazer um cavalo de batalha daquela jornada que o Padre Serra fez de Vera- cruz até a Cidade do México, há duzentos anos, em que arruinou a perna e arriscou a vida. O “advogado do Diabo” vai declarar que essa jornada foi uma teimosia, uma imprudência, uma espécie de suicídio, uma falta contra o quinto mandamento. No entanto, estou certo de que o Padre Serra resistirá a todas as acusações. Era teimoso como todo bom espanhol. Se se mostrava irascível era por estar com a razão. Cometeu faltas, mas agia de boa-fé. Estamos em presença de um ser humano e não de uma máquina sem alma. Atualmente, embora esteja assistindo à apresentação do seu caso no tribunal de Fresno, o Padre O’Brien arranja tempo para cumprir um horário capaz de causar um colapso nervoso a um autômato. Os sete anos de investigações não conseguiram quebrar-lhe as energias. Aos trinta e seis anos, seu enorme corpo, de um metro e oitenta de altura, continua tão incansável como antigamente. A despeito dos óculos sem aros, seu rosto quadrado e vermelho lhe dá um aspecto de quem passa a vida ao ar livre, e, no entanto, quase não sai de casa. Levanta-se às cinco da manhã, de um catre escondido atrás dos fichários e de três estatuetas do Padre Serra. Depois de se vestir, ele e os sessenta componentes da missão dirigem-se à capela, onde, durante duas horas, rezam, meditam meia hora, cantam o breviário e depois comem uma pequena refeição. A missão cria galinhas, vacas, e os irmãos leigos cozinham para os outros. Depois de passar os olhos nos jornais do dia, o Padre O’Brien começa a trabalhar das sete e meia até o meio-dia. Seguem-se mais orações na capela, meia hora para almoçar, outra vez uma oração, conversa com os outros padres, uma curta sesta, nova leitura do breviário, seguida de oração. Depois volta a sentar-se à mesa, das duas às cinco e meia. À noite, nova meditação, seguida de meia hora para jantar em silêncio. Dirigem-se todos em procissão à capela, onde rezam, e quase todos vão descansar, menos o Padre O’Brien. Das oito à meia-noite, trabalha
com uma interrupção apenas para tomar café e conversar um pouco. O que faz durante esses longos períodos de trabalho? Nos últimos sete anos pesquisou a vida do Padre Serra e resta-lhe agora ainda muito que fazer relacionado com o caso. Tem que escrever artigos para a imprensa católica, faltalhe ainda descobrir os seis milagres, precisa estudar a lei canônica sobre as canonizações. Cabe-lhe distribuir os panfletos que escreveu, para promover orações ao Padre Serra, traduzidos já para quatro línguas, e dirigidos a novecentos e trinta e oito mil fiéis. Certas organizações pedem- lhe que pronuncie conferências. Comprometeu-se a fazer duzentas e cinquenta delas, e não é seu costume dizer luga- res-comuns. Sua sinceridade faz por vezes estremecer os ouvintes. Há pouco recordou que existem ainda algumas famílias antigas na Califórnia que em nada diferem das “velhas matronas empertigadas que nos massacram os ouvidos falando de seus antepassados do Mayflower”. E começou a falar na vaidade dos antepassados: — Algumas de nossas famílias mais antigas e orgulhosas deste ou de qualquer outro Estado descendem de pessoas que, se fossem vivas, seriam totalmente ignoradas ou marginalizadas. A névoa do tempo pode diminuir, mas nunca deturpar ou esconder os fatos. Certos soldados espanhóis tornaram-se célebres em toda a Califórnia por sua crueza ou imoralidade. Alguns homens desse tempo fizeram fortuna às custas de rancheiros pouco espertos. Deve ser por esta razão que tantas das nossas mais antigas famílias têm uma espécie de “lei” que as obriga a ter um advogado em cada geração. A tarefa mais extenuante para o Padre O’Brien, neste momento, é a correspondência. Corresponde-se com especialistas no Padre Serra no México, na Espanha e na França. Interessa-lhe também manter o contato com os outros sete “detetives de santos” que existem nos Estados Unidos. Entre estes, um dos mais interessantes é o Reverendo John J. Wynne, professor da Universidade Fordham, que dedicou vinte e cinco anos tentando canonizar Catherine Tekakwtha, conhecida pela designação de Lírio dos Mohawks, morta em 1680. O Padre O’Brien continua a manter contato com o vice-postulador, Padre Salvador Burgio, que está promovendo a canonização da Madre Seton, uma viúva com uns poucos filhos que se fez freira, fundou as Irmãs de Caridade e é antepassada de Franklin D. Roosevelt. Morreu em 1812. Embora saiba quão lentamente têm avançado outras causas de canonização americanas, o Padre O’Brien não desanima. Encoraja-o o fato de que há dois anos foram promovidos a santos trinta padres martirizados na Revolta dos Boxers na China, vinte e oito dos quais eram franciscanos. O Padre O’Brien reza para que o próximo venha a ser o seu companheiro de Majorca, com quem conviveu durante sete anos de trabalho intenso. Esta difícil investigação, embora ele não a julgue assim, operou uma transformação no Padre O’Brien. Sente pelo menos que o Padre Serra o influencia de certo modo. — Ele é para mim uma fonte constante de censura. Faz-me sentir que não tenho feito grande coisa, desperta em mim vontade de revelar para com Deus uma generosidade semelhante à sua. Gostaria de voltar para Sierra Gorda, no México, para viver e trabalhar entre aquela gente, tal como fez o Padre Serra, não para ser como ele, mas porque esse é o meu desejo. O que aconteceu depois. . . Uma vez que me sentia fascinado pelos complicadíssimos ritos, formais e inflexíveis, da Igreja Católica — da mesma forma que me interesso pelo
mecanismo, igualmente complexo, do Partido Comunista, da General Motors, do Rotary Internacional e da Fundação Nobel —, segui as atividades do Vaticano com uma atenção constante. Visitei o Vaticano e investiguei seu funcionamento, escrevi e publiquei histórias sobre o pontífice, seus jornais diários, o gabinete da censura. Acima de tudo, intrigava-me o processo através do qual a Igreja Católica eleva um dos seus à veneração universal. Já em 1949 senti essa curiosidade, porque ao saber que uma amiga de minha mulher trabalhava como secretária do Padre Eric O’Brien, fiquei imediatamente com vontade de saber mais coisas sobre ele e suas atividades. Falei com a amiga da minha mulher (que pouco depois foi ser freira e há dias me mandou um cartão de Páscoa), interroguei-a sobre seu trabalho e obtive então as primeiras informações a respeito da causa do Padre Junípero Serra. Os poucos conhecimentos que adquiri só fizeram aumentar minha curiosidade. Senti que tinha de me encontrar o mais breve possível com o Padre O’Brien, e de escrever a respeito dele e de toda a evolução que transforma um simples mortal num santo. O Padre Õ’Brien prestou-se logo a um encontro que teve lugar em minha sala de visitas. Estimulado por algumas doses de bebida e pelas minhas perguntas, o simpático e jovem sacerdote excedeu a simples eloquência. Seguiram-se outros encontros e não tardou que eu aumentasse meus conhecimentos com minhas próprias investigações e com material colhido em leituras sobre o processo de santificação e sobre a vida do candidato Junípero Serra. Escrevi então a primeira versão de minha história. Não sendo católico, ela vinha recheada, sem que o fizesse de propósito, de pequenos erros e heresias. O Padre O’Brien ficou aterrado e com razão. Como bom servo de Cristo, dotado de paciência e compreensão, e desejoso de popularizar a causa de Junípero Serra, não repudiou meus escritos. Aconselhou-me a rever e corrigir os fatos, o que eu me apressei a fazer. Ao mostrar novamente o artigo que escrevera ao Padre O’Brien, este aprovou-o inteiramente. A história foi apresentada ao mercado através de meu agente. Foi e voltou. Tal como acontecera a tantos outros artigos meus, escritos sem ser por encomenda, mas apenas por prazer, este mereceu elogios, mas não foi aceito. Viram- no dois ou três editores. Estavam todos de acordo: não era comercial, não oferecia interesse para os jornais de grande circulação (muito lidos sobretudo por protestantes). Coloquei-o à parte, de má vontade, mas confiante de que um dia poderia incluí-lo num livro, quando o interesse comercial não constituísse o critério decisivo para a escolha de meus temas. Ao reeditar a história escrita havia dezesseis anos, tive curiosidade de saber — como acontecera com os outros antigos temas — o que sucedera ao Padre O’Brien e à causa do Padre Junípero Serra. Não voltara a encontrar-me com o dinâmico sacerdote desde 1949. De tempos em tempos, nestes últimos anos, lia de vez em quando nos jornais notícias de que a causa de Junípero Serra continuava a avançar vagarosamente. Mas a que distância se encontrava o Padre Serra do pedestal onde seus adeptos desejavam vê-lo? E que estariam fazendo, o que teriam alcançado? Embora o nome do Padre Serra aparecesse repetidas vezes nos jornais, o do seu defensor, o Padre O’Brien, não voltara a ser mencionado; isso há muitos anos. O que teria sido feito daquele escolástico-viajante da Igreja Católica Romana? As últimas notícias que me haviam chegado de suas atividades diziam que tinha terminado a minuta oficial, os articuli, onde eram expostas em latim as virtudes de Junípero Serra. Nessa altura o Padre O’Brien alimentava fortes esperanças de que o parecer do tribunal da diocese de Monterey-Fresno, na
Califórnia, aprovasse seus esforços e de que submetesse o caso à apreciação de Roma. Através de entrevistas e correspondência recente, acabo de saber que as esperanças do Padre O’Brien não eram injustificadas. O processo inicial no tribunal diocesano durou oito meses. O Padre O’Brien apresentou as investigações e testemunhos que obtivera e, no fim das sessões, havia mil duzentas e sessenta páginas de provas. Acabaram por se confirmar as virtudes heróicas do Padre Serra. Enviaram- se para Roma fotocópias dos volumosos relatórios do processo, a fim de serem estudadas pela Sagrada Congregação dos Ritos. Esse foi o maior triunfo do Padre O’Brien após tão árduo trabalho em favor da causa, e sua vitória obteve como recompensa uma pequena honra secular: no verão de 1950 a Universidade de São Boaventura conferiu-lhe o título honorário de doutor em letras. Esse primeiro triunfo não amoleceu o Padre O’Brien. No prosseguimento de sua luta, o Padre O’Brien trocara a Califórnia, sua pátria e terra adotiva do Padre Serra, pela arena política, refinada e cheia de obstáculos da Cidade do Vaticano, em Roma. Segundo o Padre O’Brien ultimamente me relatou, chegou à Cidade Eterna em setembro de 1950, onde permaneceu durante quatro anos. Nesse período, realizou o “trabalho histórico da causa”. Um exemplar de suas investigações, reduzidas a fotocópias, encontrava-se na sede da Ordem Franciscana, enquanto outro era estudado no gabinete do relator-geral da Sagrada Congregação dos Ritos. A atividade do Padre O’Brien, durante esses quatro anos, esteve dividida — por um lado gastava parte de seu tempo e energia no prosseguimento da pesquisa de novos fatos sobre Junípero Serra, nos arquivos do Vaticano; por outro, trabalhava na propaganda da causa, chamando para ela a atenção das forças do Vaticano (e afinal de todo o mundo). Correspondia-se incansavelmente com prelados da América Latina e com organizações dos Estados Unidos, pedindo “cartas comendatórias” e apoio para a causa do Padre Serra. No campo da propaganda, seu maior feito foi realizar uma série de doze palestras sobre o Padre Serra na Rádio do Vaticano. Em abril de 1954, o Padre Eric O’Brien deixou Roma e regressou aos Estados Unidos. Quando chegou à Califórnia, seu papel como chefe e vice-postulador da causa terminara. Ignoro se foi ele ou não que pediu para ser exonerado daquele cargo espinhoso ou se foi a Igreja que entendeu substituí-lo, por uma questão de rotina. Em todo caso, o que ele iniciara como um jovem sacerdote de vinte e nove anos, terminava, pela parte que lhe tocava, aos quarenta e dois. Realizara um trabalho de pioneiro. Viajara por muitas terras, lera e escrevera sem parar. Fizera um impressionante total de quinhentos discursos sobre a causa. Seus irmãos franciscanos prestaram-lhe homenagem pública. Diziam sobre ele: “Durante dezesseis anos esse frade zeloso empregou todos os seus talentos desenhando uma auréola de santidade em volta da cabeça do Padre Junípero Serra. Se se deve a alguém o fato de a causa do Padre Serra se encontrar bem encaminhada, esse alguém é o antigo vice-postulador”. Depois de ser exonerado dos trabalhos da causa, em 1954, o Padre O’Brien foi viver no Retiro do Padre Serra, em Malibu, na Califórnia, e é ali que mora e passa seus dias tranquilamente, na oração contemplativa, dedicando seu tempo aos leigos e escrevendo. Tudo quanto escreve, claro, refere-se a seu velho amigo, Junípero Serra. Afirma um número recente do Apóstolo da Califórnia, um boletim que mantém todos os adeptos da causa do Padre Serra a par dos progressos
realizados no processo de sua canonização: “A estatura ascética do candidato apresentado para a canonização é o fator mais importante aos olhos da Sagrada Congregação dos Ritos. Esse aspecto particular do Padre Junípero Serra foi a especialidade do Padre O’Brien, O.F.M. É sua intenção escrever uma ‘vida’ ascética do Apóstolo da Califórnia. Os amigos da causa não só lhe desejam os maiores triunfos na realização desse elevado projeto, como o secundam com as suas orações...” A causa segue seu curso. Os jogadores mudam, mas o objetivo é o mesmo. Só quatro anos depois de o padre O’Brien ter se retirado para sua terra, do outro lado do oceano, é que foi nomeado um substituto. Em julho de 1958, o Reverendo Noel F. Moholy era nomeado novo vice-postulador da causa. Esse sacerdote, um homem magro e forte, de meia-idade, natural de San Francisco, não era alheio à causa de Junípero Serra. Após ser ordenado, em 1941, o Padre Moholy passou a ensinar línguas e teologia na Califórnia, realizou trabalhos universitários em Quebec e depois voltou ao ensino — porém, durante cinco anos, colaborara com o Padre O’Brien. Durante todo o tempo em que este estivera em Roma, e mais de um ano depois disso, o Padre Moholy desempenhara o papel de administrador americano da causa. Em 1961, o Padre Moholy convidou para a função de seu assistente o Padre Florian Guest, também professor, que foi mandado a Roma a fim de continuar a fase histórica de seu trabalho. Ali, o Padre Guest descobriu que o primeiro obstáculo a transpor era a necessidade urgente de traduzir para o italiano todas as descobertas sobre o Padre Serra. Tomou a si essa obrigação, porém, pouco mais de um ano após haver chegado a Roma, adoeceu e foi obrigado a regressar a Los Angeles. Hoje, o Padre Guest, que trabalha na Igreja de San José, em Los Angeles, prossegue lentamente na tradução do volumoso processo do Padre Serra. Segundo ele próprio explicou, “a parte histórica da causa do Padre Serra vai ser compilada em dois volumes, em italiano. Do primeiro constará a tradução dos documentos mais importantes relativos à causa. Do segundo, as provas históricas de que o Padre Junípero Serra praticava virtudes heróicas. Quando os dois volumes ficarem prontos, a causa do Padre Serra estará canonicamente apresentada. Devido, em parte, ao fato de a Sagrada Congregação dos Ritos ter de se ocupar de muitos processos, esse trabalho deverá prolongar-se por alguns anos. Só os franciscanos defendem a causa de cento e noventa candidatos às honras dos altares”. Devido à competição com tantos candidatos à canonização, e porque são exigidos milagres para a beatificação e canonização do Padre Serra, alguns adeptos da causa acreditam que se passarão mais uns dez anos antes que o Apóstolo da Califórnia seja apresentado ao tribunal de Roma. Mas são todos muito experientes na virtude da paciência. Recordam-se de que foram precisos quinhentos anos para que Joana d’Arc ascendesse a santa. Sabem que decorreram quarenta anos antes da canonização do Papa Pio X. No entanto, é mais animador o caso da Madre Elizabeth Seton — nova-iorquina nascida protestante e convertida ao catolicismo, que teve cinco filhos do marido, enviuvou e veio a morrer em Baltimore, em 1921 —, que levou apenas vinte e três anos para alcançar a beatificação, prelúdio quase certo da canonização. A causa da Madre Seton foi apresentada em 1940, tendo sido beatificada pelo Papa Toão XXIII em 1963. Os adeptos do Padre Serra não desconhecem os obstáculos que têm de vencer. Desde a fundação da Igreja de São Pedro, o Vaticano elevou à dignidade de santos cerca de vinte e cinco mil de seus fiéis. Durante os três séculos e meio em que a Igreja tem registrado os seus santos, contam-se pouco menos de
duzentos que tenham sido canonizados. A despeito desses precedentes negativos, e do fato de existirem perto de mil e duzentos candidatos lutando neste momento pela canonização, e a despeito de que cento e noventa desses candidatos sejam da mesma ordem, os franciscanos da Califórnia estão confiantes em que o Padre Serra acabará canonizado. Decorreram cento e oitenta anos desde que o Padre Serra, esse “inútil servo de Deus”, como ele se designava, morreu no Carmelo da Califórnia. Passaram apenas trinta desde que a Ordem Franciscana começou a tentar provar que o Padre Junípero era digno da veneração e das orações internacionais. Mais dez anos de esforços não parece muito tempo se comparados com a grandeza do triunfo em perspectiva. Então, se a raça humana subsistir, haverá tempo para os que acreditam gozarem a alegria de seguir seu exemplo e pedirem os milagres de que julgam capaz aquele velho padre, coxo e corajoso, natural de Majorca e habitante da Califórnia, com o resplendor que deu tanto trabalho para ser conquistado. Amém.
5 Viajando às custas dos outros Certo dia do ano de 1890, a Srta. Nellie Bly, repórter do World, de Nova York, chegou esbaforida ao Brooklyn, num trem especial, vinda de San Francisco. Depois de vencer mil dificuldades, conseguira bater a imaginária figura de Phileas Fogg em sua viagem de volta ao mundo em oitenta dias. Viajara em torno da Terra, em apenas setenta e dois dias, seis horas e onze minutos. Esperava-a a imortalidade. Nesse mesmo ano, outro viajante, rodeado de menos publicidade, dava também os primeiros passos na estrada da fama. Tratava-se de Burton Holmes, que estreara em público exibindo fotografias panorâmicas e contando anedotas (“Através da Europa com uma Kodak”) no Camera Club de Chicago. Holmes, embora menos espetacular do que sua rival, estava destinado a destronar dentro em breve a viajante número 1 de toda a América. Hoje, Nellie Bly e Burton Holmes possuem uma coisa em comum: são vagabundos lendários relegados ao passado brumoso e poeirento da era do “cavalo de ferro” e dos vapores com rodas. Mas enquanto a Srta. Bly não passa hoje de um mito do folclore, há milhões de pessoas capazes de atestar que Burton Holmes, com a idade de setenta e seis anos, ainda está em contato permanente com a nossa geração. Se nos recordarmos de que Holmes foi contemporâneo da Srta. Bly, que fazia das viagens seu modo de vida, no tempo que William McKinley, John L. Sullivan e o Almirante Dewey governavam os Estados Unidos, e em que Tony Pastor, Lillie Langtry e Lillian Russel estavam à frente do mundo das diversões, toma-se ao mesmo tempo estranho e tranquilizador pegar um jornal diário de 1946 e encontrar, entre dois anúncios de conferências com títulos no gênero “Stálin visto por dentro” ou “Eu fui o dentista de Hitler”, o aviso calmo de que amanhã à noite Burton Holmes tem ainda alguma coisa a dizer acerca da “Bela ilha de Bali”. Burton Holmes, um senhor vivaz, impecável, atarracado, com uma barba grisalha, falando com clareza, é uma das sete maravilhas do mundo das diversões. Como turista anônimo, Burton Holmes atravessou o Atlântico trinta vezes e o Pacífico vinte, além de ter dado a volta completa ao mundo seis vezes. Passou cinquenta e cinco verões no estrangeiro e filmou cento e cinquenta mil metros de negativos. Foi o primeiro a introduzir uma máquina de filmar na Rússia e no Japão. Assistiu, em 1890, ao Auto da Paixão, que se representa regularmente, de dez em dez anos, em Oberammergau, e presenciou as primeiras Olimpíadas modernas em Atenas, no ano de 1896. Viajou no primeiro trem transiberiano e fotografou o primeiro festival da aviação em Rheims. Como fruto dessas viagens, Burton Holmes pronunciou aproximadamente oito mil conferências, que totalizaram, segundo um cálculo feito pela revista Variety, cinco milhões de dólares em três invernos. Uma vez que detesta ser chamado conferencista — “Sou um ator”, repete ele, “e tenho representado o meu papel em palcos mais legítimos do que um tablado” —, inventou a palavra “viajólogo” para descrever sua atividade. Sua profissão de “viajólogo” valeu-lhe tal popularidade que mantém o recorde da carreira mais duradoura no campo das diversões. Burton Holmes enfrentou a dura competição das grandes comédias, do teatro, do cinema mudo, do rádio, do cinema sonoro e conseguiu resistir a tudo. Numa idade em que a maioria dos homens se retiram para a intimidade das
pantufas ou são escravos da pressão arterial, Burton Holmes mantém-se mais ativo e popular do que nunca. Na temporada que acabou, iniciada em San Francisco, em setembro de 1945, e que terminou em abril de 1946, em Nova York, Holmes apareceu em público cento e oitenta e sete vezes, num número recorde. Faz uma média de seis sessões “viajológicas” por semana, falando durante duas horas em cada uma. Nunca uma conferência sua foi cancelada ou adiada, salvo uma vez, em 1935, quando, ao atravessar de avião o Dust Bowl (taça de areia), região deserta das grandes planícies dos Estados Unidos - N. do T.), sofreu um ataque de laringite e não pôde pronunciar duas conferências em universidades. Nunca deixou de comparecer a nenhuma cujos ingressos fossem pagos. Há sete anos, quando fraturou um de seus velhos membros num desastre de automóvel, na Finlândia, pensou-se que Holmes desistiria de suas andanças. Quando se soube da notícia, foi como se se espalhasse o boato de que Papai Noel deixaria de realizar sua visita de todos os anos. Porém, no início da temporada de 1939, Burton Holmes fez sua aparição no palco, numa cadeira de rodas, e, sem abandoná-la (durante cento e vinte nove aparições), proferiu sua palestra sobre viagens, enquanto numa tela a seu lado eram projetados filmes de dezesseis milímetros. Hoje há poucas probabilidades de que qualquer coisa, a não ser a morte, possa afastar Holmes de seu fiel auditório. Mesmo fora da temporada de inverno, Holmes está se preparando agora para a sua nova série de cento e cinquenta conferências ilustradas em dezessete Estados diferentes. Antes da Segunda Guerra Mundial, acompanhado pela mulher, Margaret Oliver, de trinta e dois anos, Holmes realizava excursões pelo Extremo Oriente ou pela Europa. Enquanto seus assistentes faziam os filmes, ele ia acumulando material nos cadernos de notas. Meses depois, comunicava suas descobertas ao público interessado, ao preço máximo de um dólar e meio por pessoa. Declarada a guerra, Holmes modificou seus planos. Acabou com as viagens fora da América. Nesse ano, com exceção de uma volta por Las Vegas, onde fotografou pessoalmente as proezas dos vaqueiros e das belas starlets no festival anual de Eldorado, Holmes ordenou a seus assistentes que realizassem todas as viagens em seu lugar. Ainda há pouco, uma equipe, chefiada pelo diretor Thayer Soule, que lutou na guerra como fuzileiro naval, trouxe a Holmes uma enorme quantidade de filmes sobre o México. Ano passado, outra equipe, após seis meses de estadia no Brasil, realizou para Holmes magníficos filmes. Entrementes, outros grupos estão terminando alguns filmes sobre o Vale dos Mortos, as índias Ocidentais, e o rio Mississípi. Num prédio que fica atrás de sua grande casa, no topo da colina de Hollywood, Holmes trabalha noite e dia, revelando negativos, cortando, revelando e escrevendo novamente conferências que devem acompanhar a projeção dos filmes, durante o inverno. Está muito atarefado para poder planejar a sua próxima viagem. Além disso, não lhe parece conveniente visitar por enquanto a Europa. — Por mim, não me importava — diz ele. -— Mas acho que o público não se interessa. Meu público pretende distrair-se agradavelmente, evadir-se, quer luz e suavidade, beleza e encanto. Por enquanto, na Europa, existe muita miséria e tristeza, e deixo ao cuidado das revistas e dos jornais cinematográficos da Fox a sua revelação. Por mim, esperarei até que volte o tempo dos turistas. Quando recomeçar as viagens, pretende ir a três ou quatro lugares acessíveis que ainda não visitou. Um deles é o Taiti, onde esteve prestes a ir uma dúzia de vezes, e os outros dois são o Iraque e o Irã. Outro país que ainda não
conhece nem tem desejo de conhecer é o primitivo Afeganistão. De todas as cidades do mundo, a que mais gostaria de visitar de novo é Quioto, antiga capital do Japão. Recorda que os primeiros filmes feitos no Japão foram os que ele próprio rodou nessa cidade em 1899. Outras cidades para onde deseja voltar são Roma e Veneza. A única ilha de que sente saudades é a de Bali, “o único e estranho lugar da Terra onde uma pessoa pode se considerar verdadeiramente fora do mundo”. Ao preparar seus futuros temas, Holmes analisa atentamente as causas do êxito dos antigos. Na temporada passada, as duas conferências mais populares no leste dos Estados Unidos foram “Califórnia” e “Aventuras no México”. A primeira rendeu cinco mil e cem dólares nas duas vezes que a proferiu em Chicago; a última encheu o Civic Audi- torium de St. Louis, com trezentos e cinquenta futuros senores e senoritas. Holmes pretende voltar a aproveitar esses temas, revistos, na próxima temporada, acrescentando-lhes alguns elementos inéditos sobre os Estados Unidos e a América Latina. Pôs de lado tudo quanto se relaciona com a guerra. Parece-lhe, por exemplo, que o que disser sobre as ilhas, outrora exóticas, do Pacífico pode receber um acolhimento duvidoso da parte do público: — As pessoas ainda se recordam de todas aquelas cruzes brancas que viram no cine-jornal sobre Iwo Jima e Guadalcanal. Cada temporada tem seus obstáculos e a próxima deve ter um novo público saturado de viagens, constituído pelos ex-soldados desiludidos. Muitos deles, bem como suas famílias, sabem agora que o paraíso das ilhas dos mares do sul significa mosquitos e malária. Sabem que a Europa significa lama e ruínas e não romance. No entanto, ele confia em conquistar de novo este público. — Os veteranos da Segunda Guerra Mundial virão assistir às minhas sessões “viajológicas”, tal como faziam seus pais. Depois da Primeira Guerra Mundial fiz palestras com paisagens da França e os ex-soldados dos Estados Unidos gostavam muito delas. Mas acho que não podemos comparar essa guerra com a última. A primeira não passou de uma pequena discussão entre cavalheiros. Nesta, será difícil alguém esquecer tanta desgraça e tantas atrocidades. Sei que não posso fazer minha palestra sobre a Itália na frente de homens que viram esse país como uma pocilga, mas, para mim, a Itália é sempre belíssima e encontro nela coisas que eles não conseguem ver, coitados! E como poderia ser de outra maneira?. . . No entanto a memória é curta; um dia esses rapazes esquecerão tudo o que sofreram e virão assistir às minhas palestras, não para assobiar em sinal de protesto, mas para um passatempo agradável e para se distraírem. Enquanto Burton Holmes prepara o espetáculo, seu agente, um tipo franzino e dinâmico chamado Walter Everest, trabalha para arranjar contratos. Entra em contato com organizações interessadas em financiar uma série de conferências, marca as datas e combina horários, e muitas vezes aluga ele próprio os recintos. Prefere as cidades onde Holmes é mais popular, como Nova York, Boston, Filadélfia, Chicago, Los Angeles. Por outro lado, é cauteloso com os centros onde Holmes não foi bem aceito em outros tempos: Toledo, Cleveland, Indianapolis, Cincinnati. O único lugar que Holmes evita inteiramente é Pomona, na Califórnia, onde certo sábado ele se viu frente a uma sala quase vazia. O fenômeno de uns lugares serem bons e outros ruins é inexplicável. Em certos casos deve existir uma razão para o fracasso, e então Holmes tenta resolvê-lo. Quando San Francisco parecia desinteressada dele, apurou-se que as conferências de Holmes coincidiam com a temporada de ópera. No ano passado alugou um teatro uma semana antes de a ópera começar. Apareceu oito vezes em público e
teve lucros consideráveis. Holmes, quando inicia sua temporada habitual, torna- se uma máquina de moto-contínuo. Deixando a mulher em casa, viaja com o agente, Everest, e um operador, indo para o oeste no cumprimento de contratos, no seu Cadillac, fazendo longas viagens de avião, seguindo os longos circuitos do leste por estrada de ferro. Holmes gosta de impressionar outros mais novos do que ele com a atividade que tem em certas semanas. Se fala em Detroit numa noite de terça- feira, está em Chicago na quarta à tarde, em Milwaukee na quinta, de novo em Chicago na sexta e no sábado, para a matinê. Depois segue para Kansas City no domingo, para St. Louis na segunda, e no regresso cumpre um contrato em Detroit, na terça. Esse vaivém incansável (com as noites de sábado livres para assistir a um cine-jornal e “ver o que vai pelo mundo”) parece dar vida a Holmes, mas extenua seus colaboradores. Certa manhã da temporada passada, após várias semanas de trens e viagens, Walter Everest foi despertado às seis horas por um carregador. Ergueu-se meio tonto de sono e sentou- se na beira do beliche, tentando enfiar os sapatos. Tinha o aspecto de um homem que acabasse de atravessar a pé uma enorme floresta. Ergueu os olhos vermelhos e deparou, no corredor, com a figura de Holmes, já impecavelmente vestido e bem disposto. Este sorriu e observou: — Já sei, Walter. Esta vida é estafante. Qualquer dia pegamos um trem e fugimos de tudo isto. Durante tantos anos de viagens, Holmes aprendeu a conhecer intimamente o público. É de opinião que ele se compõe sobretudo de gente viajada, que deseja saborear de novo as paisagens deslumbrantes que há pelo mundo. Através de Burton, conseguem reviver suas próprias viagens. Para outros, Holmes funciona como uma amostra prévia. Esperam viajar um dia e querem saber quais são os melhores lugares que devem visitar durante seu passeio de três meses pelo Equador. Há ainda alguns, poucos, que assistem a uma conferência de Holmes apenas para apontar com azedume as coisas belas de que ele se esqueceu de falar. — Isso lhes dá prazer — declara Holmes, muito satisfeito. O público de amanhã virá a ser precisamente o mesmo que escutou Holmes no ano passado. Todas as gerações, sucessivamente, herdam Burton Holmes. Suas conferências, em geral, têm muito de reunião comemorativa, de encontro familiar, onde se projetam filmes. Suas sessões “viajológicas” típicas começam precisamente três minutos depois das oito e meia numa sala deslumbrantemente iluminada. Esses três minutos destinam-se a esperar os retardatários. Holmes, impecavelmente vestido, vem dos bastidores e avança até o centro do palco. As pessoas aplaudem. Todos parecem conhecê-lo e já saber do que vai falar. Holmes sorri. É uma figura sólida, decente, bem- parecida. Sua barbicha domina a cena. Usa-a em todas as temporadas. Fala com vivacidade. Declara que aquela é a sua terceira conferência na quinquagésima temporada de sua atividade. Anuncia o tema: “Aventuras no México”. Dirige-se a um dos lados do palco, onde se encontra o microfone. As luzes baixam. A sala fica escura. Além da quinta fila, Holmes não é mais visto. O filme colorido de dezesseis milímetros começa a ser projetado na tela. Depois do título e das apresentações, abre com a paisagem vista através do pára-brisas de um automóvel percorrendo a Rodovia Pan-Americana de Monterey. O próprio Holmes faz a trilha sonora. Suas palavras, a que ele dá um leve tom teatral, têm a intimidade de quem estivesse falando numa sala particular. Intercala as passagens descritas com pequenas anedotas. Quando aparecem as flores e as
laranjeiras do México, diz: — Temos aqui movimento e palavras, mas deveríamos experimentar também o gosto e o cheiro — e dá uma pequena gargalhada. O filme que ele vai comentando verbalmente é uma montagem sobre as coisas mexicanas. Vê-se uma mulher vendendo tortilhas e depois a maneira de prepará-las. Assiste-se a uma tourada, mas sem a morte do touro. Contempla- se o Popocatepetl coberto de neve, agora à venda pela pechincha de quinze milhões de dólares. Vemos as pirâmides junto à Cidade do México, mais velhas do que as do Egito, construídas pelos antigo toltecas, que iam para a guerra com espadas de madeira para não matar os inimigos. Os filmes de Holmes duram duas horas, com um intervalo. O que os torna mais interessantes são a escuridão, os pormenores, as curiosidades. Há dois ingredientes que ele põe sistematicamente de lado: um é a aventura; o outro, a política. Holmes nunca é um orador espetacular. — Não quero nada de perigoso. Não me interessa competir com os exploradores, arriscar a pele, ser o único ou o primeiro a chegar. Deixo aos cuidados dos outros vencer o Himalaia, o Amazonas, o pólo norte. Eles é que abrem caminho para mim. Eu não passo de um turista, que segue um pouco na frente da multidão, mas não muito. Há anos Holmes pensou que era explorador e sentia-se muito entusiasmado com isso, confessa ele agora, um tanto envergonhado. O caso passou-se numa região inexplorada da Rodésia. Holmes julgara ter descoberto um lugar onde nunca estrangeiro nenhum estivera. Espetou a bandeira do Clube dos Exploradores, todo entusiasmado. Preparou cuidadosamente a máquina e, quando se preparava para disparar, deu com os olhos num objeto no chão: uma caixa vazia de filme Kodak. Tratou de arrumar a bagagem e até hoje nunca mais saiu dos caminhos já trilhados. Quanto à política, nunca se refere a ela em suas palestras. Afirma que não lhe interessa, nem a ele nem a seu público. — Quando discutimos política, acabamos sempre por nos ofender uns aos outros. Mesmo depois da terceira viagem que fez pela Rússia, recusou-se a falar de política. — Sou um viajante — explicou ele — e não um estudante de assuntos políticos ou econômicos. Para mim, o comunismo representa apenas mais um ponto de vista que fui observar. No entanto, os amigos de Holmes sabem que ele, no íntimo, tem um remédio para os males do mundo. Anima-se quando fala no padrão-ouro, afirmando que só ele pode tornar a sociedade próspera. De tempos em tempos, quando lhe dá na cabeça, infringe seus princípios e faz uma certa propaganda a favor do padrão-ouro, durante uma inofensiva sessão “viajológica”. Quando se entusiasma, Holmes confessa que houve uma época em que se deixou levar pela política. Foi há vinte anos, durante a Lei Seca. Embora não seja um bebedor inveterado, Holmes aprecia o álcool desde os dezesseis anos. Desde então, tem o costume de, à noitinha, antes de jantar, se servir de um ou dois uísques. Só uma vez passou da conta, e o resultado foi desastroso. — Quem é capaz de beber três é capaz de beber trezentos — afirma ele hoje.
Na opinião de Holmes, a Lei Seca era um insulto à vida civilizada. Seus auditórios, nessa época, ficavam muitas vezes escandalizados ao ouvi-lo exaltar as virtudes da liberdade na bebida, isso no meio de um plácido discurso sobre Oberammergau ou a Lapônia. — Por vezes, uma senhora indignada vinha devolver os ingressos. Mas havia outras, mais inteligentes, que ficavam nos seus lugares. Essa rebeldia de Holmes não era mais do que o resultado de seu triunfo pessoal. Nascido em janeiro de 1870, de uma família abastada e cosmopolita de Chicago, cedo conquistou a independência. O pai, alto funcionário de um grande banco, tornou-se bastante conhecido ao conceder a George Pullman o crédito para transformar seus antigos vagões de trem nos primeiros carros-leitos Pullman, dotados de todo o luxo, e também por ter recusado metade dos lucros em troca do auxílio financeiro que prestara. Ainda hoje Burton Holmes se arrepia ao pensar no dinheiro que poderia ter poupado em passagens de carro-leitos durante suas viagens. O interesse de Holmes pelos espetáculos foi despertado aos nove anos, quando a avó levou-o a uma conferência de John L. Stoddard sobre o Auto da Paixão, em Oberam- mergau. O jovem Holmes modificou-se por completo desde então. Depois da primeira visita à longínqua Flórida e à Califórnia, abandonou os estudos e, acompanhado pela avó, encetou a primeira viagem ao estrangeiro. Contava dezesseis anos e levava os olhos bem abertos. A avó, que viajara muito na companhia do marido, um negociante de vinhos, visitara a França, o Egito e descera o Volga. Essa viagem pela Europa, porém, seria eclipsada, quatro anos mais tarde, por uma outra mais importante. No primeiro dia que passou em Munique, Holmes avistou John L. Stoddard atravessando o vestíbulo do hotel em que se hospedara. Foi como se tivesse conhecido o seu Criador em carne e osso. Ainda hoje, depois de quase meio século, quando Holmes fala de Stoddard, sua voz assume um tom de veneração. Durante dezoito anos, no século XIX, Stoddard dominou o reino das conferências, que acompanhava de projeções luminosas em branco e preto. Para os ouvintes, velhos ou jovens, ele representava a figura mais romântica da América. Mais tarde, em Oberammergau, Holmes assistiu, ao lado de Stoddard, aos quinze atos do Auto da Paixão, e tornaram-se amigos. Quando Holmes regressou aos Estados Unidos, alguns meses depois de Nelly Bly ter feito o seu triunfante regresso ao Brooklyn, Holmes mostrou a alguns companheiros do Chicago Camera Club uns negativos excelentes que tirara durante suas viagens. Eles ficaram impressionados e sugeriram-lhe que os exibisse em público. — Para quebrar o silêncio e tornar a sessão aceitável — diz Holmes —, escrevi um relato de minha viagem e o li, enquanto o operador ia apresentando as fotos. Essa palestra, que rendeu ao clube trezentos e cinquenta dólares, foi a primeira sessão “viajológica” de Holmes. Ele, contudo, considera que sua estréia ocorreu apenas dali a três anos, ao aparecer por conta própria, com projeções em cores. Depois dessa apresentação no Camera Club, Holmes não ingressou logo na carreira de “viajólogo”. Ainda não estava em condições de avaliar as possibilidades que as viagens lhe ofereciam. Experimentou primeiro ser vendedor de terrenos, mas não foi bem sucedido. Trabalhou, ganhando oito dólares por semana, como fotógrafo substituto. Em 1902, sedento de viajar, conseguiu que a família o deixasse fazer uma visita de seis meses ao Japão. A bordo teve a
agradável surpresa de encontrar John L. Stoddard, que se dirigia também ao Japão. Estreitaram mais a amizade que os unia, embora vissem os japoneses com olhos diferentes. O mais velho dos dois amigos considerava o Japão exótico, estranho, desconfortável, quase repelente, conforme viria Stoddard a escrever anos depois, ao passo que, para o mais jovem, constituía uma terra de sonhos. Stoddard convidou Holmes a prosseguir na sua companhia a volta ao mundo, mas este amava o Japão e preferiu ficar ali. Quando Holmes regressou a Chicago estava no auge a Exposição Mundial de Colúmbia de 1893. Passou sete meses sob as novas lâmpadas elétricas de Edison, ouvindo Lillian Russel cantar, escutando os discursos de Susan B. Anthony (Sufragista americana -N. do T.) Com interesse crescente, observava Jim Brady comer, Anthony Constock (Moralista americano fundador de uma sociedade contra o vício- N. do T.) protestar contra as diversões, e Alexander Dowie proclamar-se o terceiro Profeta Elias. Em meio a toda essa euforia, surgiu a depressão financeira. O pai de Holmes foi uma de suas vítimas. — Tive de me virar sozinho •— declarou Holmes. — O estúdio fotográfico oferecia-me novamente o lugar por quinze dólares por semana. Mas eu não queria trabalhar. Continuava com a cabeça cheia de minha viagem ao Japão e das coisas orientais que vira na exposição. Lembrei-me de Stoddard. Pensei nos slides que mandara colorir à mão em Tóquio. Era isso mesmo! E não se podia chamar àquilo trabalho. Aluguei uma sala e fiz-me conferencista de viagens. Holmes enviou pelo correio dois mil convites impressos em cartões com poemas japoneses. Os destinatários eram convidados a assistir a duas conferências ilustradas, ao preço de um dólar e meio cada, intituladas: “Japão. O campo e as cidades”. Venderam-se todas as entradas, e Holmes arrecadou setecentos dólares. Durante quatro anos lutou para conseguir organizar conferências com regularidade, mas os êxitos foram escassos. Em 1897, quando se encontrava à beira da derrota, ocorreram dois casos que viriam modificar-lhe a carreira. Primeiro, John L. Stoddard aposentou-se, deixando o campo livre a um possível sucessor. Em segundo lugar, Holmes conseguiu obter projeções em cores por um novo processo. Conforme anunciava no convite, juntamente com a palestra, “serão apresentadas fotografias coloridas que constituem um novo milagre, criando a ilusão da vida e reproduzindo o movimento”. Munido desses filmes em que as figuras se moviam aos solavancos — cenas da atuação dos bombeiros em Omaha, uma parada da polícia de Chicago, italianos comendo espaguete, durando cada bobina vinte e cinco segundos, com um intervalo de quatro minutos entre uma e outra —, Burton Holmes tomou de assalto os redutos de Stoddard no leste. Stoddard veio escutá-lo e observar o novo tipo de fotografias. E, tal como o Marechal Foch, que considerara o avião “uma brincadeira sem futuro nenhum”, Stoddard não achava que o cinema pudesse vir a impor-se. No entanto, auxiliou Holmes, intercedendo para que conseguisse alugar um teatro de Manhattan. Depois disso, Stoddard retirou-se para o Tirol austríaco, e Holmes continuou a arrebanhar os seus ouvintes de Boston e de Filadélfia e a conquistar outros novos por todo o país. Depois de ter garantido seu êxito, Holmes começou a reunir material com um vigor que lhe valeu um lugar na história dos mais infatigáveis viajantes. Em 1900, sentado num restaurante da Exposição de Paris que imitava um vagão de
trem russo, enquanto bebia vodca ao mesmo tempo que uma paisagem colorida da Sibéria deslizava diante de sua janela, deixou-se entusiasmar por aquele anúncio do novo trem transiberiano e comprou uma passagem. Em 1901, essa viagem era um pesadelo. Após dez dias passados no trem transiberiano, que avançava à velocidade de pouco mais de dezessete quilômetros por hora, Holmes teve de se mudar para outro, numa linha em construção, em que andou durante cinco dias, viajando em seguida mais vinte e sete dias de navio, pelo rio Amur. Gastou ao todo quarenta e dois dias e meio para ir de Moscou a Vladivostok. Nessa viagem, porém, viveu um grande momento quando se encontrou com o Conde Leão Tolstói, em Iásnaia Po- liana, sua propriedade perto de Tula. Num jantar em Moscou, Holmes conhecera Albert J. Beveridge, o belo senador de Indiana. Beveridge levava uma carta de apresentação para Tolstói e convidara Holmes para acompanhá-lo, com sua enorme máquina de filmar de sessenta milímetros. Os dois americanos ficaram surpresos ao encontrar a propriedade de Tolstói completamente arruinada. Em seguida, foram obrigados a esperar duas horas. Surgiu por fim Tolstói, com sua barba branca e aos seus setenta e três anos (morreria nove anos depois). Vestia-se como um mujique. Convidou os visitantes para almoçar e falou-lhes num inglês corrente. Da conversa de toda aquela manhã, Holmes só conservou na memória uma observação. Foi quando Tolstói declarou: — Não deviam existir leis. Nenhum homem tem o direito de condenar outro. A liberdade absoluta de cada indivíduo é a única coisa que pode redimir o mundo. Cristo foi um grande mestre, nada mais! Enquanto Tolstói continuava a falar, Holmes instalou sua máquina de filmar. Tolstói até então nunca vira nenhuma. Pôs-se muito hirto, como se fosse posar para um daguer- reótipo. Quando supôs que a chapa estivesse impressionada, continuou a conversar, e foi então que Holmes começou realmente a filmagem. Essa fita, de um valor incalculável, nunca chegou a ser projetada. O Senador Beveridge era então possível candidato à presidência. Seus correligionários receavam que esse filme, em que ele aparecia junto a um radical russo, pudesse ser utilizado pela propaganda contrária. O filme foi tirado de Holmes e destruído. Mais tarde, não tendo sido sequer indicado para a candidatura, Beveridge escreveu a Holmes pedindo desculpas “pela destruição de uma lembrança tão viva daquele grande russo”. Em 1934, pagando uma diária de dez dólares por dia, Holmes passou vinte e um dias na moderna Rússia soviética. Apreciou muitíssimo o balé, as omeletes russas, a lei contra gorjeta e a ausência de assaltos. Foi visitar duas vezes o túmulo de Lênin, onde este se encontra embalsamado, pois fascinava-o o espetáculo “da sua cabeça repousada sobre uma almofada vermelha como a de um homem cansado que tivesse adormecido”. Embora o nome de Holmes tivesse já aparecido em dezoito livros, esta última travessia da Rússia despertou-lhe o desejo de escrever seu primeiro e único livro original. Os dezoito profusamente ilustrados constituíam uma coleção e eram uma coletânea de suas palestras. O único livro completo que escreveu, A Rússia do viajante, publicado em 1934, foi um fracasso. Holmes comprou os exemplares restantes e agora oferece-os aos visitantes, com as mais variadas dedicatórias. Se está sério, escreve: “Viajar é possuir o mundo”. Se quer brincar, diz o seguinte: “Com a amizade de Tovarich Burtonovitch Holmeski”. Nos últimos cinquenta anos, Holmes assistiu e participou de uma série de fatos: as festas das bodas de ouro da Rainha Vitória, em Londres, a estadia do
Almirante Dewey em Hong Kong, a aparição do primeiro automóvel na Dinamarca, e uma violenta erupção do Vesúvio, que fotografou. Em 1918, envergando a farda dos correspondentes de guerra, fotografou cenas de combate na frente ocidental, e seus filmes superam de longe os dos jornalistas do exército, mal equipados. Em 1923, ao entrar pela primeira vez num avião, teve a experiência mais perigosa de sua vida, quando ia caindo entre Toulouse e Rabat. Mais tarde, em Berlim, foi descobrir que o dólar americano valia dez milhões de marcos, e na África entrevistou o Imperador Hailé Selassié, em francês. E, mais perto de sua terra, voou trinta e dois mil quilômetros sobre as Américas Central e do Sul. Das centenas de sessões “viajológicas” que Holmes proferiu, a mais popular foi sobre “O Canal do Panamá”. Realizou-a em 1912, quando se cavava “a grande fossa”. Acerca de assuntos menos palpitantes, a mais bem acolhida foi a obra-prima clássica sobre Oberammergau, seguida de perto por suas palestras ilustradas a respeito de “Frivolidades de Paris”, dos “Canais de Veneza”, de “O campo na Inglaterra”, e, acima de todos, das “Aventuras no México”. Burton Holmes confessa que seu maior fracasso foi uma sessão “viajológica” muito complicada sobre o Sião, embora nela aparecesse tudo menos o rei. Entre outras conferências malogradas estão as que proferiu sobre a índia, Birmânia, Etiópia, e, por estranho que pareça, a ilha de Bali. Os dois únicos assuntos nacionais malsucedidos foram “Dixie”, em 1915, e “Século das Exposições do Progresso”, em 1932. Enfim, a percentagem dos triunfos obtidos por Holmes com seus temas é tão elevada que ele nunca deparou com qualquer espécie de concorrência digna de nota. Um de seus rivais morreu, o outro aposentou-se há oito anos. — Sou o único sobrevivente dos homens da lanterna mágica — afirma ele. Dos da nova geração, acha Richard Halliburton digno de lhe suceder: —• Esse merece levar a bandeira — declara Holmes. — Tem boa figura, uma sólida formação clássica, é inteli- lente, interessante, e executou de fato todas essas façanhas incríveis. Halliburton, que subiu o Matterhorn, atravessou a nado o Helesponto, seguiu o caminho de Cortés através do México, acompanha-se de projeções durante as palestras. — Eu lhe disse que jogasse fora as projeções — afirma Holmes. — É melhor sem elas. Seu discurso parece-me suficientemente colorido. Quando Halliburton morreu ao tentar atravessar o Pacífico num junco chinês, Holmes resolveu proferir uma palestra ilustrada sobre “As românticas aventuras de Richard Halliburton”. Acompanhava-se de suas próprias fotografias, mas utilizou o texto escrito por Halliburton. — Redundou tudo num tremendo fracasso — lamen- tou-se Holmes. — Os milhares de admiradores que ele tinha não estavam a fim de me ouvir, e os meus não queriam ouvir falar dele. Durante algum tempo, Hollywood parecia constituir a maior ameaça contra os “viajólogos”. Holmes anulou essa ameaça com uma aliança com os estúdios. Assinou um contrato com a Paramount e, entre os anos de 1915 e 1921, realizou vinte e duas viagens curtas em cada ano. Depois, com o advento do cinema sonoro, Holmes entrou em negociações com a Metro-Goldwyn-Mayer e proferiu uma série de sessões “viajológicas”, em francês, inglês, italiano e espanhol. No
ano de 1933, estreou na rádio, e em 1944 apareceu pela primeira vez na televisão. Hoje, tranquilo, com a certeza de ser uma instituição, Holmes passa cada vez mais tempo em sua estranha casa de madeira chamada “Topside”, numa colina a um quilômetro do movimentado Hollywood Boulevard. Essa casa, com doze salas, foi, no tempo das estrelas do cinema mudo, clube de equitação. Pertenceu durante seis anos a Francis X. Bushman (que a dotou com a primeira piscina de Hollywood, onde hoje Holmes deixa as crianças das redondezas brincarem), e foi adquirida por Holmes em 1930. — Eu tinha feito aquele contrato com a MGM, e isso me rendia umas centenas de milhares de dólares. Ora, todos que assinam um contrato com um estúdio arranjam imediatamente uma grande casa, um grande carro e uma pequena loura. Comprei o carro e a casa, mas a loura foi apenas uma aquisição mental. Durante anos, Holmes possuíra um apartamento de duas peças em Manhattan, cheio de preciosidades javanesas e budistas, a que ele chamava “Nirvana”. Antes do desastre de Pearl Harbour, Holmes vendeu o apartamento com a respectiva coleção, no valor de dois milhões de dólares, a Robert Ripley, caricaturista e colecionador. Agora, nos seus raros momentos de ócio, Holmes gosta de sentar com a mulher na varanda de sua casa de Hollywood e conversar. Antes de conhecê-la, boatos espalhados por toda parte afirmavam que ele ia se casar com a célebre Elsie de Wolfe, atriz, decoradora de milionários, amiga de Oscar Wilde e de Sarah Bernhard, que mais tarde veio a ser Lady Mendl. Um dia, em Denver, lembra Holmes, um repórter perguntou-lhe se estava noivo de Elsie de Wolfe. Ele replicou secamente que não. Nessa mesma noite uma manchete enorme anunciava: “Burton Holmes recusa casar-se com Elsie de Wolfe!” Pouco depois, Holmes conheceu Margaret Oliver, que, sendo surda, dedicara-se à fotografia. Em 1914, após uma declaração de amor ao luar, na coberta de um navio, casou- se na cidade de Nova York, levando a noiva para passar uma prosaica lua-de-mel em sua cidade natal, Atlantic City, para daí a dias embarcarem para uma longa viagem pelo estrangeiro. Quando a mulher vai às compras, Holmes fica percorrendo a propriedade, observa as suas cinquenta e quatro palmeiras, volta para a varanda, onde bebe um uísque, enquanto folheia o National Geographic, brinca com os gatos ou consulta um guia linguístico. Fala correntemente seis línguas, incluindo algumas escandinavas, e deseja aprender mais. Nunca lê livros de viagens. — Conforme disse Pierre Loti, “não leio, pode estra- gar-me o estilo” — explica ele. Gosta de receber visitas, mas muitas vezes espanta-se com alusões aos seus contemporâneos de outras eras. — Esta reunião no jardim recorda-me aquela na qual conheci o Imperador Meiji — declara ele. Meiji, o avô de Hirohito, foi quem abriu o Japão ao Comodoro Perry. Quando alguém lhe pede um conselho sobre qual país deve visitar, Holmes diz-lhe invariavelmente que vejam primeiro a América. — Para que ir ao monte San Michel? Já viram Mon- ticello? Porém, quando está sozinho na varanda com a mulher e seus colaboradores, longe ainda do trabalho da temporada seguinte, desaperta um
pouco o seu roupão azul, respira fundo e olha pensativo para a cidade, lá embaixo, banhada de sol. — Fiquem sabendo que isto é o que há de mais belo — diz baixinho. — Nada se compara a esta paisagem de Los Angeles. É o paraíso. Era capaz de ficar aqui sentado até o fim da vida. — Mas logo acrescenta: — Tenho ainda tanto que fazer e tanto para ver. Se ao menos me dessem mais três dúzias de anos. . . se eu pudesse conhecer melhor o mundo todo. . . O que aconteceu depois. . . Apenas em parte o desejo de Burton Holmes foi satisfeito, no que dizia respeito a mais três dúzias de anos. Depois de ter sido publicada a minha história no Satmday Evening Post, em maio de 1947, Burton Holmes ainda viveu mais onze anos. No entanto, não sei de nada que ele tenha feito ou tentado fazer que alterasse a história. Um ano após o nosso último encontro, Burton Holmes continuou ainda a apresentar pessoalmente suas amadas sessões “viajológicas”. Depois deixou os palcos para trabalhar na Burton Holmes Travelogues Corporation, com a função de conselheiro. Apenas dois anos antes de morrer abandonou o trabalho por completo. Durante cerca de sessenta anos fora o Enviado de Todos. E com essa tarefa gozara muito a vida e ganhara cinco milhões de dólares. Aos oitenta e oito anos de idade, incapaz de abandonar sua colina sobre o Hollywood Boulevard, estava pronto para a última viagem. Morreu em 1958, e foi incinerado, segundo seu desejo. Seus restos mortais, suas cinzas, foram depositados numa urna siamesa de que muito gostava enquanto vivo. Burton Holmes deixava atrás de si algo mais do que um simples punhado de cinzas. Deixava um Nome, um grande público que permanecia fiel a esse nome, e uma organização, a Burton Holmes Travelogues Corporation, que tinha como tarefa continuar a servir a esse público. Hoje, essa corporação compõe-se de quatro pessoas, e todas elas foram íntimas dele em vida. O membro principal da organização, no entanto o menos ativo, é a viúva do Grande Viajante, Margaret O. Holmes, que foi sua esposa durante quarenta e quatro anos. Com oitenta e seis anos, ela ainda continua morando no alto da colina. Embora controle a corporação, seu tempo é quase todo passado na recordação das antigas glórias e percorrendo, de quando em quando, os três hectares da propriedade, ou então, se faz calor, nadando um pouco na piscina. As únicas ocasiões em que sai de sua reclusão e desce do “Topside” para o novo e confuso mundo de ruas e antenas de televisão, é quando a Burton Holmes Travelogues Corporation apresenta em Los Angeles uma nova série de sessões “viajológicas”. Às vezes também quer ver o que fazem os concorrentes e introduzse numa assistência onde um jovem qualquer discursa, acompanhado por um novo filme, tentando competir com o grande Nome. A organização Holmes é dirigida por três homens enérgicos, que, por terem conhecido e respeitado Holmes, sabem muito bem o que havia de valioso no passado, bem como o que é necessário no presente e para o futuro. O presidente é Robert Mallett, antigo correspondente no estrangeiro, que entrevistou Sir Winston Churchill e o General de Gaulle. A principal tarefa de Mallett são as finanças da corporação. Porém, às vezes, quando lhe dá na cabeça, também sobe ao tablado. Ainda há pouco fez pessoalmente conferências sobre a Suécia e o Japão. O membro menos conhecido da corporação, que dirigia as sessões quando Holmes ainda era vivo e continua na mesma função, é Walter T. Everest. O mais
exótico de todos, André de la Varre, possui uma estranha semelhança com o Mestre. As características de Burton Holmes — a barba, a posição ereta e a locução clara — encontram-se todas em De la Varre, que realizou cento e vinte curtametragens sobre viagens para três estúdios cinematográficos antes de trabalhar com Burton Holmes. Hoje De la Varre produz grande parte dos filmes da corporação e apresenta pessoalmente alguns (tais como os rodados na Itália ou na Suíça). Esses homens consideram a organização Holmes como a principal produtora de sessões “viajológi- cas” dos Estados Unidos. Se o espírito de Burton Holmes voltasse à Terra, ficaria satisfeito com a maneira como seus herdeiros continuam sua obra. Quase nada mudou. Se seu espírito tivesse visitado a Academia de Música de Filadélfia e assistisse à série comemorativa do sétimo aniversário da organização, com cinco temas diferentes, apresentados durante quatro semanas, de janeiro a fevereiro de 1963, não teria ficado desiludido. Pelo preço máximo de dois dólares por noite, ou oito dólares por cinco sessões, teria visto Robert Mallett apresentar “O novo e progressista Japão da atualidade” e depois “O país das maravilhas da América”, o “Noroeste do Pacífico” e ainda a “Grande digressão através da maravilhosa Suécia”. Em noites alternadas a alma de Holmes teria visto André de la Varre apresentar “Suíça, recreio do mundo”, assim como “A Sicília e seus arredores”. No entanto, os herdeiros de Burton Holmes, embora mantenham certas tradições do Mestre — como apresentar sempre o filme original e não cópias, fazer narração de pé junto à tela, em lugar de se deixarem conquistar pela trilha sonora, e aparecendo sempre de casaca e gravata branca —, procuram ao mesmo tempo acompanhar os tempos modernos. Para começar, apresentam todos os anos cinco novos filmes. Não exibem cópias das antigas fitas de Holmes, as quais mantêm de reserva. Quando perguntei a um membro da corporação se algum material de Holmes ainda se encontrava em bom estado ou se era utilizado hoje, respondeu-me: — Usamos frequentemente pequenas porções de filmes rodados por Holmes nos primeiros tempos do cinema. Quando realizaram há pouco “Uma volta pela cidade de Londres”, não resistiram e incluíram alguns trechos filmados por Holmes, em que aparecia a Rainha Vitória. Ao fazerem “Terras do Nilo”, introduziram algumas cenas da coroação de Hailé Selassié, em 1933, rodadas pelo único operador de cinema presente: o próprio Burton Holmes. Às vezes os herdeiros também utilizam certas passagens das palestras de Holmes, como abertura de suas narrativas atuais. Além de utilizarem novos filmes mais apropriados, os herdeiros introduziram outras mudanças nas sessões “viajológicas”. Quando lhes recordei o que Burton Holmes me afirmara sobre os dois ingredientes que sempre evitara empregar em seus filmes — aventura e política —, tive a impressão de que os herdeiros (que teimam em dizer que esse lema “continua em vigor”, mas admitem que “isto não quer dizer que se evite mostrar um país sob a sua verdadeira perspectiva”) não se proíbem de instilar um pouco de aventura e política em seus trabalhos. Desconfiei que, por essas palavras, confessavam que, sendo a vida uma coisa real, concreta, o romantismo e a evasão tinham que aceitar também a realidade mais séria da era nuclear. Um dos membros da organização Holmes foi mais sincero sobre a mudança que se operara: — No ano passado apresentamos um filme sobre Hong Kong — disse ele — , e não mostrávamos apenas as atrações turísticas habituais, fazíamos também
uma análise profunda dos problemas habitacionais e da ameaça que constitui a fronteira com a China Vermelha, ali tão perto. Sabemos que o público se interessa mais pelo que vai pelo mundo e pelos cidadãos de outros países, do que antes da Segunda Guerra Mundial. Já não basta apresentar imagens de cartão-postal sobre qualquer coisa. Houve um tempo, claro, em que bastava o colorido para interessar o público. Hoje as coisas estão mudadas. Mas continuamos a seguir o princípio de dar a sensação de que se está fazendo uma viagem, utilizando cenas onde se mostram turistas entrando num trem ou num avião, e desfrutando as atrações do país. De um modo geral, nosso público compõe-se de pessoas que já viajaram muito ou querem viajar. Nossas descrições também incluem sugestões valiosas para o futuro turista. Ao recordar-me de que Holmes me afirmara ter menos popularidade em Cincinnati, Cleveland, Indianapolis e Toledo do que em qualquer outro lugar, e que evitava cuidadosamente ir a Pomona, na Califórnia, perguntei se tinha havido alguma alteração geográfica quanto à popularidade das sessões “viajológicas” depois da morte de seu criador. Os herdeiros observaram apenas que as “boas”, ou as “más” cidades eram apenas fruto da propaganda e do auxílio local, e que as grandes cidades eram, em geral, “boas”, inclusive Filadélfia, que se podia considerar uma das melhores. Reconheciam que seu êxito era maior nas cidades onde a origem étnica das comunidades tinha mais afinidades com o filme: em outras palavras, os assuntos escandinavos tinham enorme sucesso em Minneapolis, e os alemães, em Chicago e arredores. A equipe Burton Holmes confessava ver-se a braços com dois problemas que o mestre não teve de enfrentar no seu tempo. O primeiro é o dinheiro que custa um filme, hoje, a maior parte do qual corresponde ao grande aumento do preço dos transportes e da vida no estrangeiro. O segundo problema, e o mais grave, é a maneira de viver da população dos Estados Unidos, que afeta diretamente o público dos espetáculos Burton Holmes e o itinerário das conferências. Os espectadores estão se mudando da cidade para o campo. — Muitos chefes de família — confessa o sucessor de Burton Holmes — acham desagradável percorrer uma porção de quilômetros desde os subúrbios até o centro de uma grande metrópole. Em algumas das grandes cidades do leste, as pessoas mais velhas sentem-se pouco dispostas a sair à noite, em virtude das notícias de crimes e violências que aparecem nos jornais. Para contrabalançar esse êxodo urbano, a organização Burton Holmes resolveu ir atrás dos espectadores até nos subúrbios. Hoje em dia, ao mesmo tempo em que a bilheteria de Chicago apresenta um declínio, a perda é compensada pelo lucro das conferências proferidas ante as comunidades suburbanas da Grande Chicago. Um inimigo que Burton Holmes nunca se viu obrigado a combater foi o dragão que me pareceu constituir a maior ameaça para os seus herdeiros. Fui eu quem me referi primeiro a esse dragão. E empreguei a terrível palavra: “televisão”. Perguntei: — Por que motivo as pessoas continuarão a sair de suas casas, para assistirem a uma sessão “viajológica” ao vivo, quando a televisão pode lhes mostrar de graça, dentro de suas casas, as mesmas maravilhas? Burton Holmes não sofreu os efeitos de semelhante competição. Mas vocês, sim. Que tencionam fazer? Os herdeiros de Burton Holmes não me pareceram muito preocupados. Os filmes da televisão, afirmaram, em geral têm uma fotografia ruim e são
prejudicados pelos constantes anúncios. O verdadeiro admirador das conferências de viagens não quer ver o seu filme sobre Quioto ou o Taj Mahal, ou o Matterhorn, estragado pelos constantes elogios às maravilhas de um novo detergente ou do mais moderno cigarro com filtro. O verdadeiro público das sessões “viajológicas” prefere o filme original, em que a ilusão não é interrompida a todo momento. O filme de televisão pago, sem anúncios comerciais, é outra coisa. Percebi que, neste caso, os sucessores de Burton Holmes estão prontos a colaborar e não a competir. — Temos seguido com enorme interesse o desenvolvimento da televisão — disseram. — Parece-nos ser essa a solução para o nosso problema, que consiste em chegar às grandes populações inacessíveis das pequenas cidades. A despeito dessas afirmações tranquilizadoras quanto ao brilhante futuro da sessão “viajológica”, sinto-me preocupado e apreensivo. Talvez os herdeiros da Burton Holmes Corporation estejam tomando a única atitude possível. Talvez tenham se atualizado, e a qualidade técnica das filmagens e da projeção sejam melhores do que no passado, e seus temas possuam a extraordinária dimensão da atualidade. No entanto, receio que, para poder competir com a televisão, os “viajólogos” tenham de possuir uma personalidade única, dinâmica, persuasiva e colorida, em torno da qual se possa criar um culto. Quando um “viajólogo” aparece hoje num teatro, é mais uma diversão, não um acontecimento. Em outros tempos, quando Burton Holmes chegava, era uma festa, como a visita rara de um tio rico e ilustre que vinha de longe, que podia ver e fazer tudo o que quisesse, mas que estava ali, pronto a mostrar aos parentes pobres todas as maravilhas que contemplara. Tenho saudades de Burton Holmes — e o mesmo se passa com o seu público, tenho certeza —, tal como sentimos saudades do Conde Leon Tolstói, do Almirante Dewey, do Imperador Meiji, que povoaram esse tempo de antigamente, em que a vida era mais simples e segura e o mundo guardava ainda os seus segredos. Recordo-me de que, por ocasião da morte de Burton Holmes, em 1958, a revista Life lhe dedicou duas páginas ilustradas. Via-se ali o homem que exercera tão grande influência sobre a nossa juventude: Burton Holmes imerso numa banheira japonesa, Burton Holmes em Seul, envergando os trajes de luto coreanos, Burton Holmes vestido de soldado grego, em Atenas. Antes da Segunda Guerra Mundial, o mundo ainda era grande e as suas maravilhas — as pirâmides do Egito, a Acrópole de Atenas, o sagrado monte Fujiyama do Japão — encontravam-se a grande distância. Muitos homens tinham não só a possibilidade de admirá-los, como de desfrutar a aventura e o romance que os envolvia, mas de segunda- mão, por meio de leituras ou filmes, ou ainda ouvindo as histórias contadas pelo “viajólogo”. E havia muita gente que pagava para se evadir do trabalho do dia-a-dia e gozar o prazer de visitar os mundos exóticos que lhe eram oferecidos por ele. A isso se deve o êxito de Burton Holmes. Após a Segunda Guerra Mundial, tudo mudou. Durante ela, os filhos e filhas dos ouvintes de Holmes foram arrancados de suas existências e transportados para as antigas cidades da Europa, para os desertos da África, para as ilhas do Pacífico, e viram esses lugares remotos com os olhos cínicos da realidade. Estiveram onde esteve o “viajólogo”, e tudo o que essa gente viu e viveu nada tinha de romântico nem de aventuroso. Desiludidos, regressaram à pátria e, durante muito tempo, a maior parte deles não teve paciência para suportar narrativas fantásticas, proferidas por profissionais, ou para aderir à credulidade inveterada dos mais velhos, coitados, que não conheciam outra coisa. Por volta de 1950, os antigos e fiéis ouvintes dos “viajólogos” estavam
prestes a extinguir-se. Seus sucessores não se haviam convertido a essa forma de escapismo e a nova geração parecia mais interessada na filosofia do ver- com-ospróprios-olhos, dada a revolução nos meios de transporte. Os membros da nova geração e seus rebentos são pouco inclinados a ouvir aventuras contadas do alto de um pódio ou a ver lugares célebres registrados no celuloide colorido, quando, em menos tempo do que levariam para assistir a uma sessão “viajológica”, podem visitar pessoalmente, de avião a jato e por vezes a preços módicos, a Mesquita de Santa Sofia, em Istambul, a Gruta Azul, de Capri, ou as Torres do Silêncio parses, em Bombaim. As maravilhas do mundo tornaram-se de repente acessíveis a todos os que possuam umas modestas economias ou um bom crédito no banco. Numa palavra, estou sugerindo que uma guerra internacional e o avião a jato, auxiliados pela televisão, e a ausência de uma grande personalidade podem ser as causas da morte da sessão “viajológica”, tal como a inventou e popularizou Burton Holmes. Felizmente não foi isso que causou a morte de Burton Holmes. Viveu muitos anos, mas ainda assim morreu cedo — isto é, morreu a tempo de evitar que desaparecesse na obscuridade. Burton Holmes não durou mais do que seu público fiel, e escapou assim à dura sorte de se transformar num anacronismo. Em vez disso, tal como Nellie Bly, passou a ser uma lenda americana, e, como lenda, não como corporação, Burton Holmes desfrutará da imortalidade.
6 O herói dos folhetins É pouco provável que alguém encontre o nome de Gilbert Patten em muitos dicionários biográficos ou em qualquer obra séria de crítica literária. No entanto, a sua pena, talvez a mais prolífica de todos os autores americanos, teve o mérito de criar uma figura cujo nome passou a fazer parte da nossa linguagem diária e cujas façanhas serviram de estímulo a grande parte dos homens eminentes da América de hoje. Gilbert Patten, que poucas vezes assinou obras com o seu nome e nunca recebeu um centavo de porcentagem pela maioria dos seus seiscentos e quarenta e oito livros publicados, morreu esquecido há uma meia dúzia de anos, com mais de setenta e oito anos. A figura por ele criada, porém, ainda vive e será imortal, pois foi Gilbert Patten quem deu realidade a Frank Merriwell. E foi por intermédio do imaginário Frank Merriwell, exemplo de vida impecável e de ações cavalheirescas, ás do críquete, que Patten pôs sua marca indelével no pensamento e na ação dos americanos. Christy Matheson, Woodrow Wilson e Babe Ruth foram dos primeiros e mais fanáticos discípulos de Frank Merriwell. O. O. Mclntyre, Al Smith, Floyd Gibbons e Wendell Wilkie olhavam Merriwell com veneração, como um farol a apontar o bem, situado logo abaixo da Igreja e da mãe. Hoje, John L. Collyer, presidente da B. F. Goodrich Company, confessa que foi para a universidade e teve êxito na indústria por causa do estímulo que encontrou na leitura de Frank Merriwell. James Knott fundou sua cadeia de hotéis, Jed Harris tornou-se conhecido como produtor na Broadway e Eddie Eagen desistiu do pugilismo profissional em troca da Universidade de Yale e da fama, tudo por causa de uma primeira inspiração dada pelo herói de Gilbert Patten. — Foi Frank Merriwell quem deu forma às minhas ambições de vida digna — confessa Eagen em sua autobiografia. — As virtudes sobre-humanas de Merriwell eram para mim precedentes muito mais importantes do que os dez mandamentos. Nos cinquenta e cinco anos de sua vida fictícia, Frank Merriwell serviu incansavelmente os seus concidadãos, através de uma série de folhetos, revistas, jornais, quadrinhos e rádio. Hoje, em Hollywood, uma grande companhia produtora, a Frank Merriwell Enterprises, dirigida pelo único filho de Patten ainda vivo, fará em breve uma série para a televisão com o eterno Frank — e toda uma geração de americanos, que não leram seus livros, irá beber nele a mesma inspiração que animou seus pais. Não há dúvida de que Frank Merriwell passou a fazer parte do patrimônio nacional, da mesma forma que Huckle- berry Finn, Tarzan e Mickey Mouse. Embora a fama de Merriwell se renove, o nome de seu autor vai desaparecendo com os anos. No entanto, para se conhecer bem Merriwell, é necessário apurar como nasceu, é preciso conhecer esse curioso autor, há tanto esquecido, que um dia o inventou e o fez viver. William Gilbert Patten nasceu no Maine em 1866, filho de um casal de pacifistas convictos. O pai, um homenzarrão de um metro e noventa de altura, que conhecera Lincoln, queria fazer dele carpinteiro. A mãe desejava vê-lo padre. Literariamente, veio a ser as duas coisas. Detestava o colégio, e os professores tinham-no um pouco na conta de retardado mental. Em casa, porém, lia tudo que lhe caía nas mãos, principalmente Dickens e Hawthorne. Queria escrever um grande romance, tão extenso como A letra escarlate. Aos dezesseis anos começou
uma narrativa baseada no beisebol, que não tardou a pôr de lado. A verdade é que fora preco- cemente encaminhado para essa vida sedentária em virtude das convicções pacifistas dos pais. Transformou-se num ra- pazola desengonçado de um metro e oitenta de altura e não tinha licença de competir com os outros. Sua única distração, além de manejar o lápis, era dirigir a equipe de beisebol de Camden, conduzindo-a à vitória. Enquanto, por assim dizer, desmamava esses jogadores novatos, Patten conseguiu formar pelo menos meia dúzia deles, que vieram depois a jogar em ligas importantes — e foi daí também que nasceu a incomparável figura de Merriwell. Ainda adolescente, Patten fundou um jornal semanal, The Corina Owl, e um ano depois tinha uma dívida de novecentos dólares. Por sorte, esse periódico concorria com um rival, que quis comprá-lo, e Patten aceitou. Sempre desejoso de escrever, manifestou seu intuito de viver só da pena. O pai deu-lhe um mês para fazer a experiência; se fracassasse seguiria outro rumo. Assim estimulado, o jovem Patten meteu mãos à obra, e em quatro dias escreveu dois contos: “Um homem mau” e “O orgulho de Sandy Fiat”, que vendeu a um semanário de Nova York por três dólares cada um. Entusiasmado, terminou então seu romance sobre o beisebol, que lhe rendeu cinquenta dólares, logo seguido de outro, que vendeu por setenta e cinco. Depois disso nunca mais pensou em estudar, casou-se com sua amiga de infância Corinna, e não tardou a ganhar anualmente a quantia de dois mil e setecentos dólares, escrevendo histórias policiais e de cowboys em quantidades maciças. Depois ergueu os olhos para mais alto. Foi para a Broadway e tornou-se autor teatral. Escreveu uma peça sobre uma mulher casada, insuportável, a que chamou Os homens dos milhões, que teve uma carreira efêmera em New Haven, onde foi vaiada pelos estudantes de Yale. Esse fracasso atraiu outros: após ter sido obrigado a deixar a casa onde vivia por falta de pagamento do aluguel, e tendo que sustentar pai e mãe inválidos, além da mulher, Patten voltou, embora contrariado, a escrever romances. Não era sua intenção ficar nisso, mas apenas ganhar alguns dólares para endireitar a vida. Sob o pseudônimo de Wyoming Will, escrevinhava, uma após outras, inúmeras aventuras passadas no oeste, a cento e cinquenta dólares cada, por conta dos editores Beadle e Adams. Depois de abandonar essa editora, em virtude de uma discussão por causa de um adiantamento de dez dólares, passou a fabricar aventuras para a Street & Smith. Esses novos patrões apreciavam seu trabalho e sugeriram que escrevesse uma série de contos juvenis cuja personagem principal, sempre a mesma, “deveria ter um nome sugestivo, tal como Dick Lightheart, Gay Dashleigh ou Jack Harkaway”. Os editores sugeriam que o herói se visse envolvido em aventuras enquanto frequentava uma academia militar, herdando depois “uma soma considerável de dinheiro” e abandonando temporariamente os estudos. “Um pequeno romance de amor no meio da história também não seria mal”, diziam eles numa carta a Patten. “Uma vez que o nosso herói inicie suas viagens, podemos envolvê-lo numa infinidade de peripécias. Depois de as termos publicado todas em vinte ou trinta números, é possível fazê-lo voltar à universidade — por exemplo, a de Yale, de onde poderá partir para novas aventuras pelos mares do sul ou outro lugar qualquer.” Patten refletiu durante algum tempo. Depois, em quatro dias cozinhou seu primeiro grande romance de vinte mil palavras, sob o pseudônimo de Burt L. Standish. O herói, apresentado logo na primeira página — “Seu rosto era franco, aberto e atraente, porém o brilho de alegria que habitualmente lhe iluminava os olhos estava neste momento embaciado por uma expressão de desprezo” —, era nada mais nada menos que o incomparável Frank Merriwell. A data era a de 18 de
abril de 1896. “Reuni as qualidades principais que devia possuir: franqueza e alegria naturais, um corpo e uma alma sãos — e assim surgiu o nome, Frank Merriwell”(Em inglês, há um trocadilho neste nome: “frank” significa "franco”; “merry”, "alegre”, e “well” quer dizer "bem” - N. do T.), recordava Patten mais tarde. Embora a figura fosse imaginária, algumas de suas qualidades mais espetaculares haviam sido copiadas do famoso atleta índio Louie Sockalexis, que jogara beisebol sob a direção de Patten, no Maine, contratado pelos Cleve- land Spiders, da primeira divisão. Louie deixara-se levar por alguns amigos e trocara sua dieta de leite pelo uísque, tornando-se alcoólatra, e acabara pedindo esmolas pelas ruas de Hartford. Patten atribuiu a Frank Merriwell algumas das proezas do atleta índio, mas não seus problemas. Merriwell não fumava nem bebia. “Eu desejava apresentar um rapaz sem vícios”, declarava Patten, “mas que não se conduzisse como um puritano.” E mais adiante: “Quando idealizei Frank Merriwell, creio ter acertado no que todo jovem americano desejaria ser. Reparem que não digo o que todo jovem deveria ser. Era essa a ideia: um conceito moral em cada história. Porém meu jovem herói não pregava moral; limitava-se a ser o retrato ideal que cada rapaz fazia de si próprio”. Frank Merriwell foi apresentado aos leitores americanos no momento em que descia de um trem em Fardale, onde estudaria. Logo no primeiro parágrafo, viu um brutamontes, Bart Hodge, dar um pontapé num cão e esmurrar um menino que vendia milho assado. Imediatamente Frank proferiu a primeira das milhares de palavras que viria a dizer no futuro: “Isso é uma covardia”. Estava declarada a guerra. Merriwell atirou o bruto ao chão com um direto no queixo. Esse murro fez Frank Merriwell entrar no coração de toda a jovem América. Tal como Byron, Patten adquiriu fama de um dia para o outro. O primeiro número do pequeno jornal semanal com capa em cores, Tip Top, que publicava as aventuras de Frank Merriwell ou os primeiros dias em Fardale, foi um êxito completo. Assim que os jovens leitores devoravam o episódio em que Merriwell vencia todas as tentativas no sentido de afastá-lo de Fardale, ou salvava a morena e rica Inza Burrage das garras de um cão danado, ou conseguia fugir de um cemitério subterrâneo onde ficara fechado, logo clamavam por mais. Em três meses, o Tip Top passou a ter uma tiragem de setenta e cinco mil exemplares, atingindo depois os cem mil, e Patten calculava que provavelmente cerca de quinhentos mil jovens liam semanalmente suas histórias. Centenas de adultos, depois de travarem conhecimento com o herói, batizaram seus filhos com os nomes de Frank Merriwell Smith ou Inza Jones. Milhares de atlas de geografia camuflavam, nas aulas, jornais com as histórias de Frank Merriwell, o que levava muitos professores a declarar, despeitados: “Nós ensinamos a ler, e escrever, e a contar segundo as aventuras de Merriwell”. Quando começou a escrever estas aventuras, Gilbert Patten queria dedicarlhes apenas quatro ou cinco dias por semana, reservando os restantes para outras obras mais sérias. A súbita popularidade que adquiriu a personagem, as exigências insaciáveis do público, que não parava de pedir mais aventuras, mais personagens, mais histórias, dominaram-no por completo. Merriwell transformou-se numa espécie de monstro, um Frankenstein que lhe consumia todas as horas e todas as energias. Patten comprometeu-se, por cinquenta dólares semanais, a entregar de sete
em sete dias uma história completa de vinte mil palavras. Depois de dezessete anos, tendo escrito já vinte milhões de palavras, continuava a cumprir seu contrato, embora o salário tivesse subido para cento e cinquenta dólares. Seu pseudônimo, o herói, as histórias eram propriedade exclusiva dos editores. Patten nunca recebeu percentagem durante toda essa maratona literária. Dois anos depois de passar para o papel as aventuras de Merriwell, seus dedos ficaram cheios de calos produzidos pelo contínuo esforço físico de escrever, e Patten teve de começar a ditar. Durante a manhã e o intervalo do almoço caminhava o equivalente a três quilômetros enquanto ditava para uma estenógrafa; à tarde revia, estudava e rabiscava notas para novos enredos. Inventara tantas personagens que ora entravam ora desapareciam de suas histórias, que teve que organizar um fichário. “Acontecia-me de vez em quando esquecer uma delas e cometer um erro”, contava ele. “E logo milhares de jovens caíam imediatamente em cima de mim. Certa vez matei o pai de Inza Burrage na África. Esqueci de riscar seu nome na ficha e, passado um ano, apresentei-o de novo. Choveram cartas indignadas. Por sorte eu não descrevera a cena da morte; por isso, no número seguinte, consegui explicar que fora tudo um engano e que o homem, afinal, não morrera.” Quase todas as narrativas de Merriwell foram escritas sob pressão. Quando ainda estava no Maine, às vezes Patten ia à última hora entregar os originais, ainda por corrigir, ao empregado do vagão do correio, no trem que seguia para Nova York. Numa ocasião, para conseguir gozar umas férias de quinze dias, escreveu cinquenta mil palavras numa semana. Mas ressaltava que se considerava muito cauteloso, comparado com alguns colegas. Ed Wheeler, para satisfazer um compromisso, escreveu uma vez um romance de trinta mil palavras em quarenta e oito horas, e o Coronel Prentiss Ingraham bateu-o depois, terminando uma história de Buffalo Bill de trinta e três mil palavras em vinte e quatro horas. Porém, embora não fosse o mais rápido dos escritores, Patten foi sem dúvida o mais prolífico de seu tempo. É certo que Alexandre Dumas (pai) escreveu mil e duzentos livros, mas tinha muita gente a escrever por ele. Patten, sozinho, produziu duzentos e oito das duzentas e quarenta e cinco aventuras de Frank Merriwell (cada volume tinha quatro dos episódios publicados no Tip Top), quatrocentos e quinze outros romances relatando as peripécias de figuras como Lerty Locke e Bill Brucke, e vinte e cinco volumes encadernados — ao todo quarenta milhões de palavras, metade das quais dedicadas a Merriwell, com um total aproximado de cento e trinta e sete milhões de exemplares. Os editores de Patten viviam com receio de vê-lo cair doente ou de que, por qualquer outra razão, falhasse no cumprimento de sua obrigação semanal. A fim. de se precaverem — tal como os produtores de cinema, que costumam ter doublés de seus atores principais —, os editores de Patten tinham sempre de reserva três pseudo-histórias de Merriwell. Esse escritor substituto, cujas histórias nunca foram necessárias, era Upton Sinclair. Esse pensar ininterrupto, essa constante busca de novas situações ao longo de dezessete anos, mantinha Patten em permanente estado de pressão psicológica. O período dos estudos preparatórios de Merriwell em Fardale foi relativamente fácil de narrar. Quando Frank conseguia arranjar tempo entre o boxe, as corridas, o futebol ou seu esporte favorito, o beisebol, dedicava-se a transformar inimigos em amigos. Bart Hodge, que atirara ao chão quando chegara à estação e cuja vida salvara mais tarde; Jack Diamond, que ainda continuava a reconhecer a Confederação; e Bruce Browning, um enorme Golias, foram todos convertidos pelas táticas missionárias de Merriwell.
Toda a América foi posta a par do passado de Merriwell logo no princípio da série. O pai fora um homem rico, dono de minas, que adquirira o vício do jogo e desaparecera no misterioso oeste. A herança de Merriwell limitava-se a uma pensão universitária, a um anel com uns desenhos esquisitos e um tutor excêntrico, o Professor Scotch. Em Fardale, um grupo misterioso de vadios tentou raptar Merriwell e roubar-lhe o anel. Escusado dizer que nosso herói venceu a todos. No devido tempo, Merriwell ingressou em Yale. O time de futebol nunca vira nada que se comparasse a ele. Jogava apenas os últimos minutos das partidas e ganhava todas, especialmente quando o adversário era Harvard. Na época das corridas, estava constantemente sendo raptado, deixavam-no inconsciente, amarrado, mas ele, como que por milagre, libertava-se sempre a tempo de ganhar triunfalmente a última etapa. O beisebol, porém, era a sua especialidade. Depois de Merriwell, nunca nenhum outro atleta chegou sequer a seus calcanhares. No seu duplo lançamento, impossível de agarrar, a bola descrevia duas curvas opostas enquanto seguia a caminho do alvo. Jogo após jogo, embora os vilões lhe dessem drogas, Merriwell conseguia fugir sempre de algum barracão distante ou de um subterrâneo, lutava com o vilão e o seu grupo, regressando a tempo ao campo. Costumava entrar cambaleando, sob uma trovoada de aplausos, quando Yale estava prestes a ser derrotada pelo adversário. Sempre que tudo parecia perdido, surgia Merri-well. Fazia o lançamento. Seguia-se a corrida de praxe. Meniwell!!! Merriwell ganhou tantas competições, jogando por Yale, que Heywood Broun se sentiu na obrigação de observar, alguns anos mais tarde: “Depois dos primeiros oito ou dez anos, os leitores começaram a queixar-se. Diziam que, embora sendo uma figura fictícia, Frank não devia manter-se na universidade durante tanto tempo. Oito anos é tempo demais para um homem permanecer universitário — mesmo em Yale”. Esta crítica provocou uma imediata e indignada resposta de Patten, que teimava que Frank não frequentara as aulas nem sequer um dia a mais além de quatro anos. Contudo, o fato de conservar Merriwell na universidade durante os quatro anos de praxe, embora suas atividades extra-escolares tivessem preenchido dezessete anos de sua vida, obrigava-o a enormes malabarismos literários. Quando a série atingiu o auge, Merriwell era já estudante universitário. Receando formá-lo demasiado cedo, o que o impossibilitaria de tomar parte noutros jogos universitários, Patten quebrou a cabeça para encontrar uma solução. Descobriu-a, de súbito, e tirou-o da universidade. As inscrições do anel que o nosso herói herdara eram, na verdade, o mapa de uma mina de ouro no oeste. Uma vez reproduzido num papel, o mapa foi cair nas mãos dos inimigos de Frank, que deixou a universidade às pressas a fim de chegar à mina antes deles. Depois de escapar de uma emboscada e de outros perigos, Frank registrou a posse legal da mina. E assim ficou sem ter o que fazer. Foi trabalhar numa estrada de ferro, onde conseguiu resolver uma greve. Capturou uma quadrilha de ladrões de trens. Na África, matou um leão, salvando assim a loura Elsie Bellwood, a encantadora filha de um capitão da marinha. Foi procurar os tesouros dos incas nas montanhas do Peru. Dali, partiu a toda a pressa para a Europa, a fim de enfrentar um feroz adversário. “Os movimentos de Frank Merriwell eram tão furtivos como os do inimigo. Mal apagou a luz, afastou rapidamente o corpo para o lado, e quando Bruant se atirou para cima da mesa, disposto a agarrá-lo, só encontrou o vácuo. A violência do salto, porém, fez com que a mesa imobilizasse Frank, que não foi capaz de se
libertar, e caíram ambos no chão. Bruant agarrou Merriwell pela garganta e apertou-a de tal maneira que o jovem americano pensou ter chegado seu derradeiro momento. . . Calculando cuidadosamente o golpe, Frank Merriwell atingiu Bruant, derrubando-o, sempre às escuras. Encaminhou-se para a porta, às apalpadelas, e arrebentou-a com o ombro. O velho que se encontrava na loja em frente ficou olhando para ele, de boca aberta. Frank disse-lhe com toda a calma: ‘Monsieur, o cavalheiro que ficou lá dentro precisa urgentemente dos cuidados de um bom cirurgião’.” Ao regressar a Yale, a tempo de obter mais uma vitória à última hora, contra Harvard, Merriwell soube que seu pai tornara a se casar e que, ao morrer, lhe deixara um irmão, em algum lugar nas montanhas Rochosas. Merriwell estava prestes a deixar a universidade e aquele meio-irmão fora inventado por Patten para poder continuar a série de aventuras. Após uma odisséia arrepiante, Frank conseguiu finalmente descobrir Dick, seu irmão meio selvagem e rebelde, de quinze anos de idade, que sabia conversar com os animais e estava sendo educado por um índio. Depois de matriculá-lo em Fardale, Merriwell terminou seu curso em Yale, percorreu o país obtendo vitórias desportivas para o seu grupo, e passou a dirigir o Lar Bloomfield para Rapazes Abandonados. Estes, a princípio, não o viam com bons olhos, mas acabaram por adorá-lo: finalmente casou-se e teve um filho, Frank Jr. A energia despendida por Merriwell nessas acrobacias teria exigido uma constituição de Hércules, ajudada por doses maciças de benzedrina. Merriwell não necessitou de uma coisa nem de outra. O segredo de seu triunfo era saber tomar previamente as medidas necessárias. Por exemplo, não bebia nada alcoólico. “No entanto, mostrei-o bebendo um dia, só para provar aos meus milhares de leitores que ele não era um menino modelo insuportável”, declara a certa altura Patten. “Nessa semana, porém, todo o país foi sacudido por um estremecimento de horror.” Além disso, Frank Merriwell não fumava e influenciava seu impressionável irmão Dick, levando-o a aconselhar a um companheiro de quarto: “Tucker, você é um bom rapaz e eu gosto de você, mas desejaria que acabasse com esses demônios embrulhados em papel e os tirasse da lista de seus amigos”. Merriwell também usava uma linguagem correta e nunca praguejava. A frase mais grosseira que jamais disse foi: “Raios que o partam!” Sua única fraqueza, herdada do pai, era o vício do jogo, que felizmente acabou por vencer também. Patten ofendia-se sempre quando zombavam da intrepidez de seu filho imaginário. “Riem da coragem de Frank”, observou numa entrevista. “Mas, na realidade, ele não é tão valente como parece. Tem medo muitas vezes. Mais importante que a coragem, é a lealdade, coisa que os rapazes apreciam acima de tudo. Por mais atrapalhado que esteja, Frank nunca pratica qualquer ação menos digna. Claro que eu trato de colocá-lo sempre em situações bastante difíceis em todas as histórias. Está constantemente metido em confusões e, a maioria das vezes, caso traísse os amigos, poderia ganhar milhões de dólares. Claro que ele nunca cede.” Merriwel, como todos os seus leitores devem estar lembrados, possuía um grande senso de humor, embora um pouco pesado. Era um ventríloquo hábil e gostava de pregar peças nos colegas. Certo dia botou uma tartaruga na cama de um companheiro bastante nervoso e depois rolou no chão de tanto rir. E soltava grandes gargalhadas ao ouvir o modo de falar do amigo Harry Rattleton, que era um trapalhão, e dizia: “Esmás taluco, quer dizer, estás maluco”.
Quanto às moças, Merriwell era um grande conquistador, sempre que possível. Mas a verdade é que nunca tinha tempo senão para arrebatá-las de cima de cavalos em disparada ou das mãos de raptores brutais. No entanto, conseguiu beijar Inza Burrage duas vezes, na época que passou em Fardale. Durante muito tempo não conseguia decidir-se entre a buliçosa Inza e a meiga Elsie. Patten estava a ponto de casá-lo com Elsie quando se ergueu uma tempestade de protestos que impediram o casamento. “Eu por mim preferia Elsie”, confessava Patten. “Mas recebia tantas cartas a favor de Inza, que tive de casá-lo com ela. Parecia que os leitores gostavam mais da moça ativa, como Inza, e não de Elsie, sempre agarrando-se a Frank como uma ostra.” Em 1913, Patten terminou o que começara em 1898, o que costumavam chamar “o mais longo folhetim que alguém jamais escreveu”. Depois de terem lançado outra revista do mesmo gênero, os editores Street & Smith contrataram três escritores para continuarem as aventuras de Merriwell. O meio irmão deste, Dick Merriwell, que nunca conseguira ser um ás no beisebol, bem como Frank Jr., que não passava de uma pálida amostra do que fora o pai, aguentaram ainda mais três anos de experiência e atribulações em Yale, antes de sucumbirem frente à ascensão do cinema. Patten ganhara pouco mais com Merriwell do que o necessário para viver. Agora voltava as costas ao seu velho amigo, para ver o que seria capaz de escrever sozinho. Foi, sucessivamente, editor de uma revista, roteirista em Holly- _ wood, e escritor independente. Aborrecido por ter sido ofuscado por Merriwell, ansioso por provar que era capaz de escrever sobre outros assuntos, começou a produzir, com êxito, artigos para as revistas True Story e Saucy Stories. “Esse gênero de literatura enojava-me, mas agradava aos editores, e conquistei um novo mercado.” Entretanto, regressara a seu primeiro amor, ou seja, escrever para o teatro. A peça O poder invisível foi aceita por Sam Harris, mas posta de lado em seguida, em virtude de uma greve de atores, e nunca mais foi à cena. Por fim, vendo que estava perdendo, Patten foi buscar Merriwell, para a derradeira jogada. Na realidade, Patten nunca deixara de pensar em Merriwell. Passara todo aquele tempo tomando conta dele, como uma galinha faz aos pinti- nhos. Certo dia, um editor da Junior Literary Guild fizera a seguinte acusação às aventuras de Merriwell: “São uma leitura demasiado vazia. Utilizam todos os velhos truques, já gastos, e quase não têm conteúdo. São piegas e artificio- sas”. Patten defendera a sua personagem afirmando que nunca conhecera qualquer criminoso que tivesse lido as histórias de Frank Merriwell. Obtendo finalmente os direitos autorais de Frank Merriwell, Patten voltou a pô-lo em cena nas histórias em quadrinhos, em artigos, no rádio. Em 1941, a pedido dos editores, escreveu um romance moderno, longo, chamado Mr. Frank Merriwell, no qual nosso herói reaparece, agora na meia-idade, morando numa casa chamada “O Ninho”, com sua mulher Inza. Merriwell tinha dois filhos, era presidente da Sociedade para a Expansão da Cidade e esforçava-se por salvar a América do isolacionismo. Era o velho Merriwell de sempre, que berrava para um advogado manhoso: “Esses estratagemas e essa ironia barata não hão de servir para nada, Sr. Grimshaw!” Neste romance, Merriwell batia com uma bengala em dois malandros e depois virava-se para os guarda- costas destes: “Vão embora, vocês não passam de joguetes nas mãos de um patife!” Por fim, voltava-se para aquele que “não podia deixar de erguer desdenhosamente um canto da boca” e que acaba também por levar uma surra do nosso velhinho. O livro não causou a menor agitação no mundo das letras americanas. Mas houve uma crítica, do Herald Tribune, de Nova York, que deu uma certa satisfação
ao velho escritor: “Quem quiser que leia todos esses romances utópicos onde se descrevem senhoras da sociedade sofrendo de manias capazes de fazer corar as meninas de colégio do interior; nós preferimos de longe a saudável emoção, as lágrimas irreprimíveis que Frank Merriwell nos provoca todas as vezes que o lemos”. Embora Gilbert Patten, que era alto, bem-apessoado, atlético, se mantivesse fisicamente semelhante a Frank Merriwell até o dia em que morreu, com setenta e oito anos, em 1945, em sua vida particular não se assemelhava em nada com sua personagem. Fumava como uma chaminé e era viciado no pôquer. Nunca se preocupou muito com os rapazes que constituíam seu público. Detestava viajar. Partiu por duas vezes para o oeste, a fim de arranjar cor local para as suas histórias, mas, da primeira vez, voltou de Omaha e da segunda, de Denver. Gostava de Mark Twain, mas não de Tom Sawyer. Apreciava as obras de Deadwood Dick, no entanto era de opinião que o maior rival deste, Horatio Alger, não construía boas tramas. Lamentava, acima de tudo, não ter feito um curso universitário. Considerava o riso o melhor remédio. “Acho que devemos dar todos os dias uma boa gargalhada. Isso para mim é uma espécie de válvula de escape”. Viveu intensamente e com prazer todos os dias de sua vida. “Esta foi sempre para mim uma grande aventura, mesmo quando era uma chatice. É a melhor coisa que se inventou até hoje.” Alguns anos antes de morrer, na Califórnia, alguém lhe perguntou se na verdade gostara de Frank Merriwell. “A princípio não”, respondeu. “Aquelas primeiras aventuras foram para mim uma brincadeira. Mas, quando comecei a ver que era lido por meio milhão de garotos, percebi que isso me permitia exercer sobre a juventude do meu país uma influência que nunca ninguém tivera. Sim, gostei de Frank Merriwell. E estimava-o por saber que qualquer rapaz, se lhe seguisse o exemplo, jamais faria qualquer coisa de que se envergonhasse.” O que aconteceu depois. . . Quando eu era garoto e vivia no Wisconsin, as histórias de Frank Merriwell ainda eram publicadas, mas sua popularidade dectescera. Lembro-me de que, nesse tempo, preferia outro herói, com ideias mais científicas: Tom Swift. Li também The red-head outfield, de Zane Grey, Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, Vitching in a pinch, de Christy Ma- thewson, até que, ainda na pré-adolescência, passei a O cão dos Baskervilles, de A. Conan Doyle, Vinte mil léguas submarinas, de Júlie Verne e Servidão humana, de W. Somerset Maugham. Entretanto, nos intervalos, ia lendo as aventuras de Frank Merriwell. Os folhetins ainda andavam em todas as mãos. Patten deixara de escrever três anos antes de eu nascer, porém podia-se comprar suas histórias na Tabacaria Becker, na rua principal da minha cidade, e eu as devorava sofregamente. O invencível Merriwell foi meu ídolo durante o tempo de colégio, e os ídolos da adolescência custam muito a morrer. Porém, à medida que os anos foram passando e que amadureci, fui verificando que ele era uma personagem impossível. No entanto, sentia-me incapaz de ridicularizá-lo, da mesma forma que nunca poderia renegar os melhores momentos de minha juventude; e quando, finalmente, escrevi a seu respeito, tive uma certa dificuldade em conseguir a objetividade necessária para negar sua pureza e perfeição. Intimamente, vivi sempre na convicção de que um dia viria a escrever a seu respeito e do tão mal apreciado gigante literário que o criara. Contudo, durante muitos anos não arranjei tempo. Numa pasta que intitulei “Merriwell-Patten”,
metia, de tempos em tempos, algumas notas ou recortes. Certo dia, em 1952, vim a saber que um conhecido meu, Ira Ura, agente cinematográfico, se associara a um produtor, Tony London, e que haviam adquirido os direitos para filmar as histórias de Frank Merriwell, destinadas a uma série para a televisão. Falei com eles, contei-lhes do meu interesse, e vim a saber que possuíam muitas informações sobre Patten e Merriwell, obtidas através da família do autor. Disse-lhes que gostaria de juntar aquele material ao meu, para escrever um artigo para uma importante revista. Eles acharam a ideia estupenda. Merriwell caíra no esquecimento e tudo o que se escrevesse sobre ele era uma boa propaganda para a série para a televisão. Quanto a mim, a possibilidade de uma série de televisão dava-me uma deixa e constituía um pretexto válido para escrever a história em que pensava há tanto tempo. Perguntei aos editores da Reader’s Digest se estariam interessados. Disseram que sim. Então comecei a escrever “O ídolo das histórias em quadrinhos”, que me deu um prazer extraordinário e que veio a ser publicado em janeiro de 1953. A publicação revelou-me que existiam por todo o país numerosos entusiastas e colecionadores das histórias de Patten. Um de meus amigos, o falecido Horace MacCoy, autor de Mas não se mata cavalo?, me telefonou, louco de entusiasmo, dizendo: “Caramba, Irving, que artigo fantástico sobre Patten! Já era tempo de alguém se lembrar dele. Que engraçado, conhecemo-nos há tanto tempo e não sabia que se interessava por ele. Você também ignorava que eu possuía uma coleção completa de todas as histórias que Gilbert Patten publicou!” Muito embora meu artigo me tivesse valido consideração dos fãs de Merriwell, e tivesse sido lido por milhões de pessoas, por outro lado não impressionou nada os responsáveis pela televisão. As aventuras de Merriwell nunca se concretizaram no vídeo. No entanto, um dos produtores desiludidos, Tony London, continuou a manter contato com a viúva do único filho que Patten deixara. A Sra. Harvan Barr Patten vivia em Vista, na Califórnia, e no porão da sua casa guardava tudo o que o sogro deixara em matéria de literatura. Uma vez que o interesse de Tony London por Patten e Merriwell não diminuíra durante os seis anos que se seguiram, foi a ele que a Sra. Patten se dirigiu em 1959, quando quis mudar-se e não sabia o que fazer dos velhos originais do sogro, que continuavam armazenados em vários caixotes, no seu porão. Tony London aceitou rever todo esse material que permanecera fechado durante dezoito anos. Pouco depois de ter explorado o porão da Sra. Patten, Tony telefonou-me. Depois da publicação do meu artigo sobre Patten, poucas vezes havíamos falado, por isso fiquei surpreso ao ouvi-lo. Notava-se na sua voz um incontido entusiasmo. Em suas buscas nos manuscritos no porão da Sra. Patten encontrara uma autobiografia inédita do criador de Frank Merriwell. O manuscrito estava cheio de informações pouco conhecidas ou mesmo totalmente ignoradas sobre Gilbert Patten, e tinha sido escrito com uma certa dose de ingenuidade, mesmo no que dizia respeito à sua vida particular. Patten revelava que fora obrigado a casar-se com sua primeira esposa, casamento que durara dez anos e do qual nascera seu único filho; que seu segundo casamento, com uma moça do sul, muito avoada, fora precipitado e terminara por causa da leviandade dela; e revelava que sua terceira mulher, Carol, filha de um oficial do exército e educada no estrangeiro, lhe proporcionara o tempo mais feliz de sua vida. Estranhamente, embora tivesse vivido até 1945, Patten terminava sua autobiografia em 1918. No entanto, acrescentara um trecho referente à sua terceira esposa, que resumia tudo o mais
que poderia ter dito: “Nossa lua-de-mel durou mais de vinte anos. Carol morreu no dia 21 de agosto de 1938”. Havia ainda muitos pormenores sobre suas histórias e as aventuras de Frank Merriwell, mas eu já sabia o suficiente para me convencer de que meu amigo fizera uma descoberta valiosa. Quando ele, finalmente, me perguntou: “Isso poderá ser publicado como livro?”, repliquei sem hesitar: “Sim, senhor”. Claro que seria necessário um editor, bem como um escritor para continuar a história a partir do ponto onde terminava a autobiografia, quando Patten contava cinquenta e dois anos, até sua morte, aos setenta e oito. Em virtude do meu interesse por Patten e Merriwell, do fato de eu já ter publicado cinco livros (três biografias), estando um deles, O Relatório Chapman, obtendo grande êxito nessa época, Tony perguntava se eu estaria interessado em preparar a biografia de Patten, a fim de ser publicada. Respondi-lhe que em outra ocasião teria dito imediatamente que sim, mas que agora, porém, estava inteiramente voltado para a ficção, vendo-me forçado a perder aquela oportunidade. Acrescentei que faria tudo o que estivesse ao meu alcance para que a obra fosse publicada. Após várias tentativas junto a amigos e escritores, pude finalmente pôr Tony London em contato com uma organização de escritores e, através dela, a história de Patten foi parar nas mãos competentes de Harriet Hinsdale, romancista e dramaturgo de Los Angeles. Em 1964, O pai de Vrank Merriwell, organizado por Harriet Hinsdale com a ajuda de Tony London, foi publicado pela University of Oklahoma Press. Li em suas páginas que, segundo informações da Sociedade Bíblica Americana, haviam sido vendidos pouco mais de quinhentos e quarenta e cinco milhões de exemplares do Livro Sagrado em cento e quarenta e três anos. No entanto, no curto prazo de menos de vinte anos, calculavam os editores que deviam ter sido vendidos cerca de quinhentos milhões de exemplares das aventuras de Merriwell. Os literatos que façam o que quiserem destes números (agora acrescidos com uma nova série de brochuras em que aparece de novo Frank Merriwell Jr.). Quanto a mim, sinto- me satisfeito por haver contribuído, embora modestamente, para fazer reviver, mesmo de maneira fugaz, nesta época de anti-heróis, o nobre, intrépido e impoluto Frank Merriwell.
7 Cortaram-lhe a consciência Os períodos de depressão mental — a “fossa”, como as pessoas os chamam — fazem parte da herança de todo ser humano, tal como a morte e os impostos. As pessoas normais, no entanto, conseguem livrar-se dela rápida e normalmente, graças, quase sempre, a uma bebida forte, a uma experiência nova, a uma boa notícia, a um pequeno passeio ou até apenas à perspectiva de um novo dia. Infelizmente, porém, esses pequenos remédios não dão resultado com todo mundo. Muitas vezes, as causas da depressão têm raízes demasiado profundas e suas consequências não permitem que a vítima reaja normalmente. Quando isso acontece, chama-se o médico da família, ou mesmo o psiquiatra, que receita insulina ou então eletro- choques. Quando nem essas medidas dão resultado, o doente atinge um estado de depressão mórbida e psicopática que o impede de executar até as mais simples tarefas da vida diária. A doença pode assumir diversas formas. O paciente fica obcecado por um núcleo de preocupações, agitado por inúmeros terrores ou perseguido por agonias de incerteza. Atinge o purgatório mental: não pode viver e não tem coragem para morrer. Algumas vezes, chega a tal estado de demência que se torna necessário interná-lo: fica louco; outras, passa a desejar a morte a ponto de se suicidar. Quando um ser humano atinge esse ponto, e todos os remédios parecem ter falhado, resta sempre um último recurso. Trata-se de uma operação drástica, relativamente indolor, que já foi praticada no mundo inteiro, em cerca de vinte mil indivíduos, pobres e ricos, indistintamente. É uma forma de psicocirurgia, conhecida pelo nome de lobo- tomia pré-frontal. Durante a operação, é utilizado um bisturi finíssimo, que corta os tecidos dos lóbulos frontais do cérebro que condicionam o comportamento social das pessoas, os quais partem do tálamo, uma área situada na parte posterior do cérebro e que se julga ser o centro das emoções. Os lóbulos frontais, a massa cinzenta que se abriga atrás da testa, são geralmente considerados como o alicerce da previsão e do conhecimento humano, da imaginação, da consciência, da expectativa, alicerce este que, se atacado por uma emoção dolorosa, torna-se uma fonte de apreensão e ansiedade. Quando se desligam esses lóbulos préfrontais do resto dos centros do cérebro, a pressão da dor e da preocupação mental desaparece. A lobotomia pré-frontal, praticada pela primeira vez em Lisboa, por Egas Moniz, um neurologista português já idoso, que por este fato recebeu o prêmio Nobel, é provavelmente o método mais radical até hoje inventado para aliviar a angústia mental. Essa operação não se limita a extrair um corpo estranho e nocivo. Na realidade, ela parece constituir uma incisão no verdadeiro centro da vida. O homem que se submete à lobotomia pré-frontal sai da anestesia transformado. Pode apresentar o mesmo aspecto físico, a mesma personalidade, porém, modifica-se por vezes totalmente. Há quem faça disso um bom juízo, visto que, de qualquer forma, o doente não podia viver com sua antiga personalidade. Outros afirmam que se trata de uma coisa má, de uma infração à obra do Criador cujas consequências não se podem prever. Desde que foi descoberta, a lobotomia pré-frontal tem dado lugar, em todo o mundo, a calorosas discussões. Os neuropsiquiatras que apóiam a operação justificam-se no fato de que a lobotomia pré-frontal evita a loucura e o suicídio, alivia a dor, reduzindo a ansiedade e destruindo a preocupação. Demonstram
dessa forma que ela contribui para a felicidade do homem. Dois dos mais importantes defensores dessa escola defendem a operação com convicção. “A lobotomia pré-frontal é uma operação de último recurso”, escrevem eles. “Deve ser feita apenas nos doentes em que não pode haver esperança de cura espontânea. Só se deve recorrer a ela em caso de ameaça de suicídio ou de invalidez, e apenas depois de haverem falhado todos os outros recursos. Deve ter-se em conta todas as mudanças de personalidade que inevitavelmente sobrevêm. Uma vez executada a operação, dizem esses advogados da lobotomia, os doentes ficam livres das antigas tensões, e pode-se dizer que a operação lhes tornou “a vida particularmente agradável, e gozam-na plenamente”. Por outro lado, existe a escola que prova, também com fatos, que a lobotomia pré-frontal transforma os doentes em seres preguiçosos, dóceis, inertes, muitas vezes inúteis, privando-os de suas qualidades anteriores, provocando-lhes por vezes convulsões, tornando-os indiferentes aos prazeres sociais, conferindo-lhes um comportamento agressivo, roubando-lhes a inteligência e a consciência. Há ainda aqueles que acusam a operação de interferir com a substância de Deus, e afirmam que ela, visto abolir as preocupações dos homens, deve também roubar-lhes a alma e a consciência. O maior número de críticos, porém, opõe-se menos à operação em si do que ao uso indiscriminado que se possa fazer dela. O Dr. Nolan D. C. Lewis, diretor do New York State Institute, declara: “Ultimamente têm sido submetidos a essa operação muitos casos recentes, sem que tenha sido efetuado previamente um exame psiquiátrico adequado. Uma aplicação assim vulgarizada de um método cirúrgico radical deveria ser limitada até que se obtenham maiores provas dos resultados conseguidos”. Nenhuma das correntes em litígio está em condições de fornecer provas estatísticas, muito embora a Administração da Divisão dos Veteranos, que já praticou mil e duzentas operações desta natureza, esteja em vias de computar os resultados. Suas conclusões poderão um dia ser úteis na justa apreciação desse método cirúrgico, pondo talvez um fim à controvérsia. No entanto, embora a observação dos resultados possa vir a demonstrar se as mudanças verificadas na personalidade justificam o resultado, duvida- se de que a estatística possa algum dia resolver o problema humano que ela implica. Ao tentarmos decidir se uma operação dessas teve bons ou maus resultados, que medida concreta poderemos empregar para medi-los? E de que ponto de vista partiremos para formar o nosso juízo? Do ponto de vista do doente, ou dos que o rodeiam? Ou do ponto de vista do médico que o tratou? Entre as vinte a trinta mil lobotomias pré-frontais realizadas nos Estados Unidos desde 1936, tive a oportunidade de entrar em contato estreito com um dos operados. A partir dos pormenores desse único caso, talvez o leitor consiga avaliar os benefícios e os malefícios da psicocirur- gia. Antes, porém, de apresentar a vida de Larry Cassidy, conforme resolvi chamá-lo, quero lembrar ao leitor que todos os fatos aqui relatados são reais e não fictícios. A verdadeira história de Larry Cassidy começou em 1943, quando, com vinte e nove anos, começou a sentir dores de cabeça, a ter súbitos ataques de choro, terríveis acessos de depressão, e a sofrer de uma incapacidade crescente para trabalhar ou para se divertir. A verdade, no entanto, como qualquer psiquiatra amador facilmente verificará e como o próprio Larry não tardou a ouvir da boca dos psicanalistas profissionais, é que tudo era causado pelas recordações nebulosas da infância.
O pai de Larry era um americano naturalizado, senhor de um gênio irascível, que vociferava quando se zangava, mas que revelava grande espírito de justiça quando conseguia dominar-se. Possuía um pequeno semanário muito próspero na cidade de Nova York, com o qual sustentava com fartura sua numerosa família. A mãe de Larry era uma criaturinha indecisa, que se mantinha à sombra, suave e tímida, estimada igualmente pelo pai e pelos filhos. Eram cinco irmãos. O mais velho chamava-se Tim. Larry era o segundo. O mais novo, Jack, nasceu quando Larry procedia de modo estranho em face dos destemperos de gênio e da severidade do pai. Se algum dos irmãos cometia uma tolice, Larry costumava acusar-se, enquanto o culpado se mantinha mudo. E, quando o castigavam, suportava o castigo estoicamente. Os outros soltavam gritos e derramavam as lágrimas normais, caso apanhassem. Porém, ninguém se lembra de ter visto Larry chorar. Os irmãos tinham uma coisa em comum: a má vontade do pai, cada qual por um motivo diferente, e o hábito de procurarem constantemente conforto junto à mãe. Todos eram inteligentes, mas Larry era extraordinariamente brilhante. Com nove anos já devorava a maioria dos clássicos. Aos domingos, quando a família se reunia para ouvir música sinfônica e os rapazes imitavam Toscanini regendo, Larry revelava-se o regente mais hábil e entusiasta. Tinha treze anos quando o pai subitamente ficou cego. O velho autocrata manteve-se, porém, ferozmente altivo; vestia-se sozinho, fazia a barba e continuava a ir ao jornal como se nada tivesse acontecido. Ninguém em casa se atrevia a falar de cegueira na sua frente. Pouco depois de haver entrado para o ginásio, Larry teve uma doença infecciosa. O médico da família declarou que o rapaz estudava demais e que ficaria bom depois de um período de repouso. No entanto, apesar da doença, Larry triunfava nos estudos, jogava tênis e nadava impecavelmente, gostava de futebol, adorava percorrer o Museu de Arte Moderna ou assistir a um filme especialmente recomendado pelo crítico da revista The New Yorker. Poucas vezes saía com moças e, quando acompanhava os irmãos ou os amigos a um baile, a um bar, nas noites de diversão, apenas seguia o grupo, nunca fazia parte dele. De tempos em tempos, fazia um esforço para participar, mas preferia seu papel de observador. Larry ambicionava ensinar um dia na universidade. (O pai opunha-se, dizendo que esse emprego rendia pouco e que esperava ver o filho entrar para o jornal assim que terminasse os estudos.) Em 1923, com dezoito anos, quando entrou para Princeton, Larry era um rapaz amável, nada egoísta, simpático, muito dado à introspecção, incapaz de exprimir o que pensava sem antes ter estudado o assunto sob todos os aspectos, e mesmo assim declarando sempre que não estava absolutamente seguro do que afirmava. Seu companheiro de quarto era um jovem mais enérgico, muito esperto, chamado Burt, filho do editor de uma revista de Nova York, o qual, a partir daí, se tornou seu maior amigo. Enquanto calouro, Larry escreveu uma carta para a família, a primeira de uma longa série, sobre a inutilidade’ da vida. Em casa não o levaram a sério. Um parente declarou, divertido: — Esse fedelho acaba de descobrir Schopenhauer. Jack, porém, recorda ainda o choque que aquela carta produziu na sua natureza juvenil. — Estava escrita de uma forma brilhante, terrivelmente lógica, e, nessa
época, pareceu-me irrespondível. Larry formou-se em língua inglesa. Pretendia ser professor, embora o pai continuasse a considerar isso um capricho pouco rendoso e alimentasse sempre a esperança de vê-lo dirigindo o jornal. Excetuando-se alguns jogos de tênis e golfe, Larry passava a vida mergulhado em livros, evitando a vida social. O seu QI era mais de 150, colocando-o muito perto da categoria dos gênios, visto que sessenta e seis por cento da população não passavam de uma média de 85 a 144. Um ensaio de sua autoria mereceu um prêmio universitário de trezentos dólares. Quando se formou na Universidade de Princeton, em 1936, estava incluído entre os dez melhores alunos do ano. No entanto, era o único que se comportava modestamente nas aulas. Depois de sair da universidade, a despeito dos apelos da família quanto ao jornal, Larry, em sociedade com Burt, arranjou um emprego que consistia em escrever histórias policiais destinadas às revistas publicadas pelo pai do amigo. Esse trabalho não tardou a aborrecê-lo, e por isso deixou-o. Empregou-se depois na seção de publicidade do World-Tele- gram, de Nova York, mas também não gostou e abandonou o lugar. Acabou por ir ajudar o pai a dirigir o seu jornal semanal. Tinha um horário muito irregular. Apresentava-se no escritório às dez da manhã e ao meio-dia dava o trabalho por terminado. Não tinha paciência para desempenhar suas funções, no entanto o que fazia era bem feito. Depois das duas horas no escritório, passava o resto do tempo em casa, lendo. Raramente saía, e às oito da noite estava na cama. Isso ocorreu em 1939. Nesse ano sua mãe morreu. Foi um duro golpe, não só para Larry como também para o pai e os irmãos. O pai amava a mulher profundamente, e para os rapazes foi como se se tivesse apagado a luz da casa. No ano que se seguiu, os seis homens, o pai e os cinco filhos, encontravam-se em volta da mesa, às refeições, e mal trocavam uma palavra entre si. O único sorriso que se via na casa era o de Elarriet, a empregada. Era uma moça feia e simples, de vinte e poucos anos, que nunca passara do quarto ano da escola e viera de sua aldeia no Ohio para Nova York. Ria a toda hora, entusiasmava-se facilmente e adorava Larry. Um ano após a morte da mãe, os rapazes abandonaram a casa, indo cada um para o seu lado. Larry cumpria cada vez com menos regularidade suas obrigações no jornal. Passava o tempo esquecido, lendo sozinho, devorando três ou quatro livros por dia, e tornava-se cada vez mais triste. Começou a ter fortes ataques de náuseas. Não segurava nada no estômago. Durante um certo período, vomitava sempre depois das refeições. O grupo dos três restantes teve de se separar. Jack arranjou colocação num colégio. Larry, acompanhado de Harriet, que insistia em cuidar dele, foi para Albuquerque, para junto do irmão mais velho. Continuava com a ideia de se tornar professor. O pai desfizera a casa e fora hospedar-se num hotel. Embora cego, continuava a viver num silêncio triste e cuidava sempre sozinho de si e do seu quarto. Dirigia-se todos os dias ao restaurante do hotel, sempre à mesma hora, e sentava-se à mesma mesa. Em Albuquerque, apesar da dedicação do irmão e de Harriet, Larry piorava a olhos vistos. Continuava a vomitar depois das refeições e mostrava-se cada vez mais triste. Tinha dores por toda parte. Teimava porém em não querer consultar um psiquiatra. Embora prevenido a respeito de todos os aspectos da doença, continuava, no entanto, a revelar falta de compreensão. Afirmava que as causas de seu estado eram físicas, não mentais, e que a psiquiatria, uma palavra que ainda estava longe de ter adquirido a popularidade de hoje, era uma coisa boa
apenas para os ricos ociosos e para os malucos. Depois do ataque dos japoneses a Pearl Harbour, Tim alistou-se no exército. Larry seguiu-lhe o exemplo. Recusaram-no em virtude de sua pressão arterial. Sozinho com Harriet, passou a sentir-se cada vez mais nervoso. Pouco a pouco, no entanto, ao observar a moça, sua ternura e seu constante bom humor, convenceu-se de que desejava casar- se com ela. Durante todo o tempo em que a moça servira a família, mal a notara. Todos eles, tanto Larry como os irmãos, a haviam acompanhado, de brincadeira, aos bailes e ao cinema. Nas primeiras semanas passadas no Novo México, embora tivessem mais intimidade e ele estivesse inteiramente dependente de Harriet, nunca deu mostras de desejar que as relações entre ambos ultrapassassem o capítulo da amizade. De fato, nunca sequer a convidara a sair. E, de repente, propôs-lhe casamento. Ela, que há muito o amava em segredo, aceitou prontamente. O juiz de paz casou-os no princípio de 1942. Harriet contribuiu um pouco para que o estado de espírito de Larry melhorasse, mas por pouco tempo. Sua alegria de viver, sua vitalidade animal, sua constante curiosidade estimularam-no a princípio. Mas não tardou a voltar a seu antigo estado depressivo e aos vômitos. Certa manhã, poucas semanas depois do casamento, saiu do banheiro empunhando uma navalha e declarou: — Vou matar-me. Harriet levou-o imediatamente a um clínico geral, que diagnosticou alguns males físicos, uma pressão bastante elevada, e receitou-lhe umas injeções e muito repouso. Em julho de 1942, Larry recebeu uma intimação do exército para apresentar-se. Ao comparecer perante a junta, acharam-no em condições muito piores do que quando fora recusado seis meses antes. Mas se o estado dele era ruim, o mesmo acontecia com o exército. Os médicos não fizeram caso de seus males e o declararam apto para todo serviço. Larry esteve no exército dos Estados Unidos durante quase seis meses. Não prestou nem um único dia de serviço militar ativo. Logo na manhã do dia seguinte a seu ingresso em Fort Bliss, no Texas, teve tamanho ataque de choro que o transferiram para o hospital militar do Texas, onde o internaram numa enfermaria de doentes mentais graves. Hoje a família está convencida de que, se sua loucura se deve a uma forte emoção, foi o fato de o terem colocado numa enfermaria de loucos de um hospital militar que provocou tudo. Harriet, que conservara o apartamento de Albuquerque e se empregara como caixeira numa loja, visitava-o sempre que podia. Ele fazia-lhe constantemente queixas da insensibilidade de certos oficiais e das enfermeiras da tropa. Um dia, chegou sua vez de ser desmobilizado. Porém alguém notou o seu Qi, o maior de todo o hospital, e a notícia logo passou de boca em boca: — Seu quociente de inteligência é muito alto, deve dar um bom oficial. Desesperado, Larry deixou de tomar os barbitúricos. Resolveu que, se não o desmobilizassem depressa, se suicidaria. Em dezembro de 1942 mandaram-no embora. Larry voltou para junto de Harriet, em Albuquerque. Trouxera do hospital alguns medicamentos leves que lhe haviam dado para atenuar as dores. Tomou todos, depois voltou às injeções receitadas pelo jovem médico que consultara antes de ir para o exército. Passava os dias lendo e fazendo palavras cruzadas. Dali a poucas semanas recebeu a notícia da morte do pai, no dia de Ano-Novo,
vítima de um acidente causado pela cegueira. O pai, que o dominara durante toda a vida, desaparecera. Larry estava finalmente livre. Mas era demasiado tarde. Ao receber a notícia, quase não mudou de expressão. Continuou fazendo palavras cruzadas. Depois adoeceu gravemente. Cada manhã era para ele um martírio. Não tinha coragem para sair da cama e enfrentar um novo dia. Assim que conseguia pôr-se de pé, passava a ter medo dos próprios pensamentos. — Os dias são uma tortura — confessava a Harriet. — Os pensamentos assaltam-me e não consigo ver-me livre deles — e continuava a chorar sem razão. Só tinha vontade de gritar. Transpirava muito e tinha as mãos sempre úmidas. Chegava a mudar de camisa seis vezes por dia. Desesperada, Harriet mandou chamar Jack, o irmão de Larry. A partir da chegada deste, travou-se uma corrida contra o tempo. Os dias tinham de passar o mais despercebidamente possível para o enfermo. Jack animava Larry a ficar acordado até altas horas, lendo, o que era fácil, já que ele temia o sono. Era capaz de ficar lendo até as três da madrugada, dormindo depois até a uma da tarde. Durante o dia, Larry evitava todos os livros que lhe pudessem provocar pensamentos introspectivos e mandava vir alguns volumes de uma biblioteca vizinha, de preferência policiais, que devorava durante o resto da tarde e da noite. Quando saiu de Albuquerque, tinha lido toda a literatura policial da biblioteca. Via todos os filmes que apareciam, jogava golfe todos os dias, até quase se transformar num campeão. Entretanto, o jovem médico que lhe receitara as injeções e mantinha com ele longas conversas estimulantes descobriu finalmente a origem da doença. Larry pedira que lhe receitasse tranquilizantes. — Dê-me qualquer coisa que me tire estas dores — suplicava. — Morfina, heroína, ópio, seja o que for. Só desejo viver cinco anos em paz e depois morrer! Por fim, o médico respondeu-lhe: — Larry, essas dores não têm nenhuma causa física. Experimente os choques ou então a psicanálise. Temos até um bom psicanalista aqui mesmo em Albuquerque. Larry foi consultá-lo. Teve de sujeitar-se a sessões três ou quatro vezes por semana durante oito meses. O primeiro dia foi o mais difícil. Depois de uma hora em companhia do psicanalista, Larry voltou para casa, onde se encontrava Jack. Vinha cambaleando, branco como uma folha de papel, e subitamente desatou a soluçar perdidamente. Jack correu ao seu encontro, assustado. — Que aconteceu Larry? Ele tirou do bolso um papel e entregou-o ao irmão. Jack lembra-se de ter visto um desenho imperfeito representando dois quadros de uma central telefônica. Num deles, os circuitos estavam devidamente ligados; no outro, os fios estavam todos emaranhados. O psiquiatra explicara a Larry que o cérebro humano se assemelhava ao primeiro quadro, em que os fios se achavam todos no seu lugar. No caso de Larry, porém, estes haviam se misturado, e era preciso arrumá-los como devia ser. — Daquele dia em diante — recordava Jack —, Larry começou a compreender que sua doença não era física mas sim mental. Ficou obcecado por essa ideia e passou de mal a pior. Durante esse período, houve apenas um intervalo no seu sofrimento. Foi
durante o sétimo mês da psicanálise e nada teve a ver com o tratamento. Harriet adoeceu com gripe e ficou duas semanas de cama. Larry tratou-a noite e dia e parecia tão satisfeito como nunca ninguém o vira durante anos. Pouco depois que Harriet ficou boa e voltou ao emprego na loja, Jack partiu também para se apresentar na companhia de transportes aéreos da Califórnia onde trabalhava. Larry voltou logo a seu marasmo habitual. O psiquiatra pouco avançava em suas descobertas. Estava certo de que Larry sofria de uma psicose depressiva, com acessos de an- 7 siedade. A raiz do mal fora provavelmente o domínio exercido pelo pai. Além disso, tinha um forte complexo de Édipo, como bem o provava seu casamento com Harriet, mais velha do que ele e na qual via a imagem da mãe adorada. O psiquiatra tinha pleno conhecimento da doença de Larry e conhecia a fundo os sintomas de sua psicose, mas duvidava dos resultados que ele poderia tirar da psicanálise. Foi durante uma tarde, já no fim do tratamento, que ele se referiu pela primeira vez a uma nova operação chamada lobotomia pré-frontal. Larry já não teria ouvido falar nisso? Pelo visto, não. Mas não tardou a ler tudo que podia a respeito. Ficou sabendo que, até 1935, os médicos pouco sabiam sobre as funções dos lóbulos frontais do cérebro humano, embora já tivessem descoberto que, quando esses lóbulos eram atingidos ou cortados em virtude da operação de um tumor, a mente do paciente ficava alterada. O Dr. Richard M. Brickner, neuropsiquiatra de Nova York, contava o caso de um corretor da Bolsa de quem extraíram um tumor, perdendo cerca de cem gramas de tecidos. Depois de curado, o doente revelara uma mudança completa da personalidade. Embora sua inteligência não tivesse sido atingida, perdera a capacidade de raciocinar tão logicamente como antes, perdera toda a consciência de si mesmo, tornando-se um gabola insuportável, indiferente à doença que sofrerá e a todas as preocupações em geral. Entretanto, em 1935, um grupo de pesquisadores, chefiados pelo Dr. Carlyle F. Jacobson e pelo Dr. John F. Fulton, realizara uma série de experiências num chimpanzé antes e depois de lhe removerem os lóbulos pré-frontais. Segundo o relatório médico dessa experiência, “antes da operação, se o animal cometia algum erro, gritava de raiva, urinava e defecava dentro da jaula, pisoteava as fezes, sacudia as grades e recusava-se a prosseguir nas experiências. Depois da operação, esse mesmo animal suportava as experiências até esgotar a paciência do pesquisador, cometia erro após erro sem o menor indício de qualquer contrariedade emocional”. Em 1936, um neurologista português de sessenta e um anos, o Dr. Egas Moniz, foi a Paris apresentar perante a Academia de Medicina o relatório da operação que realizara em pacientes que sofriam de doenças mentais, operação a que chamava lobotomia pré-frontal ou leucotomia, O Dr. Egas Moniz era professor universitário em Lisboa, autor de uma centena de trabalhos de medicina, fora ministro dos Estrangeiros de Portugal e trabalhava com a colaboração de um colega, o Dr. Almeida Lima. Ambos haviam feito furos do tamanho de um botão na testa do paciente, nos quais introduziram um bisturi aguçado e fino como uma agulha que cortava o tecido cerebral e as fibras nervosas que ligavam os lóbulos frontais às outras partes do cérebro. Tinham obtido resultados satisfatórios em casos de paranóia em doentes atacados da mania de perseguição, de esquizofrenia e de divisão de personalidade. O Dr. Egas Moniz descobrira que essa operação, ao mesmo tempo que fazia desaparecer no doente a capacidade de imaginar ou temer, curava-o também das preocupações e ansiedades. Em 1936, o Dr. Walter Freeman e o Dr. James W. Watts, da
Universidade George Washington, começaram a praticar nos Estados Unidos a lobotomia pré-frontal, e, no fim do mesmo ano, tinham feito vinte operações dessa espécie. Ao saber que o Dr. Freeman e o Dr. Watts eram os melhores especialistas em lobotomia nos Estados Unidos, Larry quis ler tudo sobre seus trabalhos. Na biblioteca de Albuquerque descobriu um exemplar da revista Time, publicada em fins do ano anterior, que trazia um artigo sobre o trabalho realizado pela equipe dos dois cirurgiões. Dizia assim: “Dos seus cento e trinta e seis casos, o Dr. Freeman e o Dr. Wattman consideram noventa e oito bastante satisfatórios, vinte e três de certo modo satisfatórios e doze fracassos. Apenas treze pacientes ainda se encontram internados em estabelecimentos para doenças mentais; a maior parte dos outros regressou às suas ocupações ou à vida doméstica, após períodos de incapacidade de um a seis anos”. Quando terminou a leitura, a decisão de Larry estava tomada. Não podia continuar assim. O cérebro tornara-se seu inimigo. Não lhe dava direito a descansar, a gozar a vida, a viver, enfim. Sepultava-o no medo, no medo do dia seguinte, no terror do mundo que o rodeava, de si próprio. Iria imediatamente para o leste submeter-se à lobotomia pré-frontal. Acompanhado por Harriet, dirigiu-se a Nova Jersey, onde se hospedou em casa de um irmão, desejoso de ajudá-lo. Foram juntos consultar dois psiquiatras, um de Filadélfia e outro de Nova York, a fim de obter informações sobre a lobotomia pré-frontal. Ambos se revelaram hostis à operação, considerando-a “demasiado radical para o caso”. Larry ficou desorientado. Sentia-se incapaz de viver, incapaz de escolher a morte, e a lobotomia parecera-lhe o último recurso de que podia lançar mão. Agora retiravam-lhe essa possibilidade e parecia não haver outra alternativa. De um dia para o outro, o espírito de Larry foi invadido por mil alternativas, e ele, agarrando-se a tudo e a todos, encetou sua dantesca viagem através do inferno. Enquanto Harriet permanecia junto ao cunhado em Nova Jersey, em janeiro de 1944, Larry dava entrada num grande hospital para doentes mentais de Nova York. Ali permaneceu durante um ano inteiro, sem se atrever a sair fora daquelas paredes nem uma única vez. Fora entregue aos cuidados de uma mulher. Pensouse que um psicanalista do sexo oposto talvez fosse melhor. Porém, ao cabo de muitos meses, ela confessou que o considerava um doente fora do alcance da psicanálise. Depois de convocada uma conferência médica, ficou resolvido que ele seria submetido a eletrochoques ou a choques de insulina. Os médicos aplicaram-lhe seis desses choques. No hospital declararam que, ali, nunca nenhum doente recebera tantos. Antes de descer para o andar inferior para ser submetido ao tratamento, Larry sentia-se apavorado. No entanto, logo após, esquecia tudo. Com o correr do tempo, o hospital passou a representar, para Larry, o mundo inteiro. Distraía-se lendo, jogando pingue-pongue e pintando. Fazia também alguns trabalhos manuais. E, ao mesmo tempo, afundava cada vez mais naquele estado depressivo de ansiedade. Ao fim de um ano, os médicos do hospital confessaram que nunca tinham tido um caso de internamento tão longo. As melhoras eram nulas, a despeito de alguns intervalos em que ele se mostrava verdadeiramente eufórico. Larry deixou por fim a clínica e voltou para junto de Harriet, em Nova Jersey. Dali em diante, seguindo todas as sugestões que lhe eram feitas, começou uma série interminável de tratamentos: tratou-se com um refugiado judeu alemão que seguia um método religioso misturado com psicologia. Esse médico tinha uma biblioteca de cerca de seis mil livros sobre Jesus Cristo e tentou insuflar em Larry a fé no futuro e em Deus. Tratou-se com um novo psiquiatra do Kentucky; e ainda com um simpático e compreensivo jovem psicanalista de Nova Jersey,
cujo relatório sobre Larry dizia o seguinte: “O paciente encontra-se num estado de agitação extrema. Passeia constantemente pelo quarto, chora, contorce grotescamente o rosto e lamenta-se com amargura dos pensamentos obcecantes que o assaltam. Declara: ‘Tudo para mim é uma tortura: os cordões dos seus sapatos, sua gravata, esse lenço de pescoço — sofro só de pensar nisso’. A princípio parecia tratar-se de um caso de suicida, embora a ansiedade não fosse a característica dominante da doença. Ao cabo de quatro meses, comecei a modificar meu diagnóstico. A doença parece-me mais grave do que um simples diagnóstico de ansiedade poderia levar a crer. Deve tratar-se de um caso de esquizofrenia pseudoneurótica”. Por fim, consultou até um curandeiro da Nova Inglaterra que obtinha curas maravilhosas introduzindo nas pessoas estranhos tubos e friccionando-as com drogas esquisitas. Depois de ter visitado esse curandeiro, Larry passou um período relativamente tranquilo. Mas tratava-se apenas do intervalo de costume e, quando a depressão assaltou-o novamente com todo o seu inferno de gritos, transpiração e dores abdominais espasmódicas, durante o qual ameaçava suici- dar-se, deixou também o curandeiro. Sua limitada vida social era também um fracasso. Certo dia, ao se encontrarem, ele e Harriet, com outro casal amigo de Nova York, Larry estava muito abatido moralmente, e começou a defender o suicídio. Isso não só estragou a noite, como também enfureceu o amigo, que acabou chamando-o de fanfarrão. Se queria suicidar-se, quem o impedia? O que ele queria era apenas despertar a piedade dos outros, tentando chamar sobre si as atenções gerais. Mais tarde, Harriet contou-me a maneira como Larry se comportara. O amigo não o compreendera. Dava-se o mesmo com muita gente. Se viam um homem sem um braço ou sem uma perna, compreendiam que se tratava de um deficiente. Não percebiam que, como alguns perdem um membro, Larry perdera qualquer coisa no cérebro. Não admitiam a existência de um deficiente mental. Viam-no aparentemente saudável, sabiam que era inteligente e afirmavam que bastava ele fazer um esforço para em breve ficar livre de tudo o que o atormentava. Era o mesmo que mandar um indivíduo sem pernas andar. Depois desse incidente, nunca mais ele voltou a reunir-se com nenhum casal amigo. O ano de 1945 estava no fim. Desde que abandonara o curandeiro, Larry não se encontrava sob os cuidados de nenhum médico, e Harriet achou que uma mudança de ambiente talvez lhe fizesse bem. Dali em diante passaram a mudarse de um lado para o outro. Foram para Tucson, no Arizona, a fim de visitarem Tim, agora desmobilizado. A viagem de trem foi um verdadeiro pesadelo. Larry estava num estado de verdadeiro terror, gritando a todo momento: “Matem-me! Matem-me!” Em Tucson, Larry pediu emprestado o automóvel de Tim e foi passear sozinho. Regressou horas mais tarde, empapado de suor. Andara no carro a mais de cem quilômetros por hora na esperança de que ele saísse da estrada. Mas isso não acontecera, nem ele tivera coragem de fazê-lo desviar. Em seguida, foram para a aldeia de Harriet, em Ohio, onde vivia sua numerosa família. Todos o receberam com carinho. Larry em breve se cansou de ler, de passear na perua do cunhado, começando de novo a falar com insistência em suicídio. Seguiram então para Nova Jersey, onde vivia outro dos irmãos de Larry. Ali, um psiquiatra administrou-lhe cerca de trinta e cinco choques insulínicos. Por fim, recusou-se a dar-lhe mais. Uma noite, Larry teve convulsões e o médico foi chamado às pressas. Visto que a psicanálise continuava a não dar resultados, Harriet e Jack (que acabava de ser desmobilizado) lembraram-se da hipnose. O psiquiatra vetou terminantemente essa solução. A família,
desesperada, internou Larry no Hospital dos Veteranos, em Lyons, Nova Jersey, onde ele permaneceu durante alguns meses, incapaz de se distrair das suas preocupações, piorando cada vez mais. Não foi Larry nem Jack, mas um médico desse hospital, quem finalmente voltou a trazer à baila a lobotomia pré- frontal. Esse médico enviou à administração do hospital, juntamente com a ficha clínica de Larry, um requerimento para que lhe fosse aplicada a lobotomia. O requerimento foi indeferido pela administração. Outro médico do mesmo hospital aconselhou particularmente que a lobotomia fosse feita fora, por médicos particulares. E recomendou uma equipe de psicocirurgiões do leste. Por motivos de natureza ética, chamarei esses médicos pelos nomes de Dr. Leon Goldsmith e Dr. Raymond Rodg- ers, situandoos em Boston. O médico militar considerava-os os mais competentes naquela matéria. Desesperados, Jack e Harriet quiseram ouvir a opinião de mais sete médicos sobre a utilidade ou inutilidade da operação. Quatro deram o seu parecer contra, e três, a favor. Quem iria decidir? Larry estava demasiado doente, demasiado esmagado pelo sofrimento para se interessar fosse pelo que fosse. Harriet sentia-se tão desorientada que não podia tomar uma decisão. Nesse caso todo o peso recaía sobre os ombros de Jack. Embora inexperiente, pesou os prós e os contras da operação com todo o cuidado. Os médicos, claro, não podiam garantir-lhe nada de concreto. A opinião dele sobre a lobotomia estava praticamente dividida ao meio. Mas ainda havia uma pergunta a fazer-lhes. Sem a operação, Larry teria alguma probabilidade de melhorar? A resposta unânime foi negativa. Poderia acontecer um milagre, mas as estatísticas não mencionavam milagres. Por outro lado, Larry podia terminar por suicidar-se, embora não considerassem essa hipótese muito provável. “Ele não tardará a chegar a um estado em que será forçoso inter- ná-lo para o resto da vida.” Era essa o opinião unânime. Tal perspectiva quanto ao futuro de Larry, aliada às suas contínuas pioras, apavorou Jack. A lobotomia só era válida quando o doente se mantinha ainda dentro da realidade. Larry perdia terreno dentro dela, e logo não valeria mais a pena operá-lo. O tempo era o fator principal. Jack não via outra alternativa. Nada mais lhe restava, não se podia confiar em nenhum outro tratamento menos drástico. A lobotomia era relativamente indolor, mais barata até do que uma simples extração das amígdalas, segundo afirmavam os médicos, e quase sem perigo, sendo a percentagem de morte apenas de três por cento. Fossem quais fossem as consequências, era fora de dúvida que a operação o libertaria da ansiedade. Larry foi consultado. Suas respostas eram quase incoerentes, mas concordava com tudo, até mesmo com a eutanásia. Harriet também foi consultada, bem como os restantes membros da família Cassidy, e, embora contrariados, todos concordaram em que nada mais havia a fazer. Na última semana de março de 1947, Jack e Harriet dirigiram-se a Boston, a fim de consultar o Dr. Goldsmith e o Dr. Rodgers. Na sala de espera, encontraram mais sete ou oito pessoas, na sua maioria membros da família de doentes. Estava lá, no entanto, uma senhora forte, de meia-idade, ela própria enferma, acompanhada pelo marido, com quem conversava constantemente em voz muito alta. Uma vez que os outros permaneciam calados, todos os olhos se voltavam para ela. A certa altura, ela fitou-os e exclamou: — Não se assustem que eu não estou maluca! Sinto- me ótima e estou muito feliz!
Jack trocou um olhar apreensivo com Harriet. O marido da senhora reparou nisso e logo arranjou um modo de sentar-se ao lado de Jack, a fim de lhe explicar: — Fique sabendo que ela ficou realmente bem desde que fez a lobotomia. Passou de novo a encontrar interesse na vida doméstica e às vezes até cozinha. Por fim, Jack e Harriet entraram no consultório. O Dr. Goldsmith era um sujeito de meia-idade, de óculos, magro e alto. Tratava-se do psiquiatra da equipe. Fazia os diagnósticos e planejava a operação. O cirurgião era o Dr. Rodgers, natural do Yowa, muito pesadão e com um ar bem- disposto. Quando Jack terminou o relato da doença de Larry e dos tratamentos a que ele se submetera, perguntou ao Dr. Goldsmith: — Essa operação trará melhoras a Larry? O Dr. Goldsmith tranquilizou-o, afirmando que tinham obtido sempre os maiores êxitos em casos como o de Larry, isto é, casos de ansiedade. Declarou que a lobotomia pré- frontal libertaria definitivamente Larry dos seus terrores e ânsias, mas avisou que poderia provocar no doente algumas modificações, alterando-lhe o sentido da responsabilidade, bem como a noção do bom comportamento em sociedade. Por exemplo, logo depois da operação, seria capaz de urinar em plena sala de visitas, em vez de ir ao banheiro. Também poderia ficar com uma certa falta de iniciativa e com a noção do tempo um pouco confundida. Recordar-se-ia da sua doença, mas como uma coisa muito remota. Lembrar-se-ia de ter sido operado, mas só quando alguém lhe falasse nisso e como se tivesse acontecido a uma outra pessoa. Poderia mesmo sentir-se incapaz de realizar qualquer trabalho de criação, tal como escrever. Na melhor das hipóteses, talvez ficasse em condições de desempenhar funções subalternas. Jack insistia em que a operação fosse feita imediatamente, antes que Larry perdesse de todo o juízo ou se suicidasse. O Dr. Goldsmith prometeu avisá-lo logo que estivesse livre ou que alguma operação fosse cancelada. Logo no dia seguinte, Jack recebeu em Nova York um telegrama anunciando uma desistência. Dali a duas semanas, Larry, acompanhado por Harriet e Jack, por outro irmão, que vivia em Nova Jersey, e pelo seu antigo companheiro de quarto, Burt, tomou um trem com destino a Newark. Pelo caminho, ia ficando cada vez mais agitado. Os companheiros vigiavam-no, por turnos, procurando distraí-lo. Mas o pensamento dele voltava sempre à operação. Temia fazê-la, e também não fazêla. — Vou me transformar num idiota — repetia a todo momento. Burt tentava animá-lo: — Larry, essa operação é a coisa mais maravilhosa que se inventou. Larry encolhia os ombros: — Se morrer nela não me importo. Se não morrer, ao menos nunca mais voltarei a ser o que sou. Chegaram a Boston à tarde. Era um dia enevoado. Tomaram um táxi para o hospital, onde Larry já tinha leito reservado. Dali telefonaram para o Dr. Goldsmith. Antes que ele chegasse, os parentes tiveram licença para ficar junto ao doente. Todos tentavam animá-lo. Já era noite quando o Dr. Goldsmith chegou, trazendo uma máquina fotográfica. Fechou-se com Larry, durante uma hora. Depois, o Dr. Rodgers foi reunir-se a eles. Durante essa conversa com os médicos, Larry sentiu-se
profundamente deprimido. Chorava, transpirava, deixava transparecer o desejo que tinha da morte. No fim da sessão, o Dr. Goldsmith preparou a máquina e tirou várias fotografias dele. Os retratos revelaram o rosto de um homem aterrado, perseguido. Na manhã seguinte chovia. Burt teve de regressar a Nova York por causa do emprego. Jack, Harriet e o outro irmão de Larry, que haviam passado a noite no hotel em frente ao hospital, foram cedo para a sala de espera. O Dr. Goldsmith e o Dr. Rodgers tinham uma outra lobotomia marcada para as nove da manhã. Larry era o segundo da lista. Às onze e quinze, já com a cabeça raspada e meio adormecido por uma anestesia fraca, Larry passou na maca em frente à mulher e aos irmãos, a caminho da sala de operações. Harriet desatou a chorar quase sem descanso durante as duas horas que se seguiram. O irmão de Larry que viera de Nova Jersey mostrava-se preocupado. Jack engoliu as lágrimas ao ver Larry desaparecer pela porta da sala de operações. Ainda hoje não se esqueceu do pensamento que lhe atravessou o cérebro nessa hora. Pensou: “Nunca mais voltarei a vê-lo como era e como sempre o amei durante toda a minha vida. Não tardará a sair daquela sala com o mesmo nome, a mesma cara, o mesmo corpo, mas transformado num ser diferente, e assim permanecerá para sempre, até o fim da existência”. Enquanto os três esperavam, o Dr. Goldsmith e o Dr. Rodgers inclinavamse sobre Larry, estendido na mesa de operações. O Dr. Rodgers marcara sobre o crânio raspado os lugares da trepanação. Injetou-se novocaína nessas áreas. Nada do que se seguiu fez Larry sofrer fisicamente. A anestesia local, aliada ao fato de o cérebro humano não ser sensível à dor, eram coisas a seu favor. O Dr. Rodgers fez as incisões iniciais, nas têmporas, por cima das orelhas. De cada lado do crânio foi retirada uma rodela de osso do tamanho de uma pequena moeda e o cérebro ficou à mostra. Aplicaram pinças de prata para fechar os vasos sanguíneos, evitando assim a hemorragia, enquanto o sangue derramado era enxugado rapidamente. O Dr. Rodgers introduziu nos buracos uma espécie de vareta côncava. Feito isso, enfiou também outro instrumento, o leucótomo, uma espécie de faca comprida. Começou depois a movê-la, cortando a fibra nervosa que liga os lóbulos frontais ao tálamo, que fica atrás do cérebro. À medida que o Dr. Rodgers ia fazendo a incisão, o Dr. Goldsmith falava continuamente com Larry, que se mantinha meio entorpecido. Interrogava-o sem parar, enquanto ele ia respondendo como podia. Essa sessão de perguntas e respostas durante a operação fazia parte da técnica. Pelas respostas ele ia avaliando até que ponto o paciente estava suficiente mente desorientado, e a que altura o corte era suficiente. O Dr. Goldsmith inquiria: — Por que nós o estamos operando? Larry respondia: — Não sei. — Onde se encontra o senhor neste momento? — Em Baltimore. — Sabe quem eu sou? Larry ergueu os olhos para aquele rosto emaciado e respondeu: — Sei, é Jesus Cristo.
Não era preciso cortar mais. Os lóbulos pré-frontais estavam suficientemente desligados dos outros centros. A incisão fora demorada — uma lobotomia profunda; Larry não voltaria a ser atormentado por receios nem ansiedades. Aquela faca afiada cortara-lhe todas as preocupações. Cortara-lhe também a antiga personalidade. Depois de terem examinado cuidadosamente as feridas, certificando-se de que não havia mais perda de sangue, as rodelas de osso foram colocadas no seu lugar e a pele, suturada. A lobotomia pré- frontal findara. Passavam dez minutos da uma hora. A operação durara quase duas horas. O Dr. Rodgers foi o primeiro a sair da sala e dirigiu-se a Harriet e aos dois irmãos do doente: — Está tudo pronto. Correu o melhor possível! Harriet e o outro cunhado desataram a chorar. Jack voltou as costas e caminhou apressadamente pelo corredor, até o banheiro dos homens, entrou, e encostou-se na parede, chorando durante vinte minutos. Dali a pouco todos haviam se recomposto. Esperavam poder ver Larry. Ele foi conduzido para fora da sala de operações. Vinha dormindo, e trazia a cabeça enfaixada. Não podiam dizer-lhe nada. Regressaram ao hotel e à noite voltaram ao hospital. Larry acordara e tiveram licença de entrar no quarto. Enquanto o observavam, ele abriu os olhos, fitou-os e desviou a vista. Mandaram-nos sair de novo. Na manhã seguinte, Jack foi o primeiro a ver Larry, que mostrava ainda certo ar ausente. Perguntou-lhe: — Sabe quem eu sou? Larry olhou-o atentamente e disse: — Olá, Jack! Tratado por enfermeiras especializadas que o vigiavam noite e dia, Larry permaneceu no hospital duas semanas. Jack e Harriet visitavam-no duas vezes por dia e, embora ele nunca falasse sem primeiro lhe dirigirem a palavra, começou pouco a pouco a reagir melhor. Sua docilidade impressionava Jack, que não podia esquecer a agitação que ele mostrava pouco tempo antes. Imaginou que o irmão ficara desinteressado de tudo, porém -e Dr. Goldsmith explicou- lhe que o cérebro de Larry estava apenas desorientado e que levaria alguns meses para recomporse. Jack declarou-me que compreendeu pela primeira vez a mudança apreciável que se operara no irmão quando, uma semana após a cirurgia, tentou conversar normalmente com ele. Durante a doença de Larry, Jack adotara com ele um ar brincalhão, selecionando as palavras que dizia. — Eu tinha o cuidado de nunca falar nada que pudesse preocupá-lo, entristecê-lo ou deprimi-lo — recorda Jack. — Habituei-me a nunca perguntar: “Como se sente hoje, Larry?” Pois bem, quando eu ia visitá-lo no hospital, ainda obedecia, sem me dar conta, a esse hábito. Perguntei então: “Que acha de uma partida de tênis, Larry?” O que eu queria era perguntar como estava, mas, como de costume, não diretamente. Vendo que ele não reagia à minha piada, percebi de repente que não precisava mais de evasivas. E, num impulso, inquiri: “Como se sente, Larry?” Ele não fez mais do que acenar com a cabeça e responder: “Ótimo! Ótimo!” Fiquei chocado e percebi então que ele já não era o mesmo. No dia em que Larry teve alta, Jack e Harriet estavam à espera dele na saída. O Dr. Goldsmith tirou-lhe uma fotografia. Sem ninguém pedir, Larry voltou-se para a máquina sorrindo. Aquela fotografia, que, depois de revelada, mostrou um
homem tranquilo, animado, parecia incrível posta ao lado da outra tirada duas semanas antes, na qual se via um rosto magro e torturado. O Dr. Goldsmith preveniu Harriet de que teria de tomar muitos cuidados quanto à vida de Larry. Ele não deveria ingerir bebidas alcoólicas, talvez fosse preciso ensinar-lhe de novo os hábitos de higiene, tais como fazer a barba, tomar banho, usar o vaso sanitário. Ao deixarem o hospital, Larry parecia muito bem-dis- posto. Não tinha ataduras e viam-se nitidamente as cicatrizes de ambos os lados. Ficariam escondidas quando os cabelos crescessem de novo. O rosto de Larry mostrava satisfação e ele parecia sentir-se em paz com o mundo. Harriet resolvera levá-lo para a casa da família dela, em Ohio, onde ihe seriam prestados os cuidados necessários à convalescença. Como tinham poucas horas até a partida do trem, Jack e Harriet combinaram a melhor maneira de entreter Larry. Resolveram visitar o Parlamento, em Beacon Hill, e depois sentar-se num jardim público e descansar. A princípio, tanto Jack como Harriet se sentiram pouco à vontade diante de Larry. Não conseguiam ficar descontraídos. Pareciam esperar a todo momento vê-lo aborrecido com qualquer coisa que dissessem. Só depois de entrarem num restaurante para almoçar é que perceberam que não havia nada capaz de contrariá-lo. Harriet perguntou-lhe o que desejava almoçar. Larry lançou os olhos para o cardápio e respondeu, sem o ler: — Qualquer coisa. Não me interessa. Comeu com apetite e, depois da refeição, Jack perguntou: — Como se sente? — Eu estou bem — respondeu, bem-humorado. Enquanto Jack regressava a Nova York, para procurar emprego, Larry e Harriet tomavam o trem para Ohio. Iam de novo viver com a família dela. Os parentes de Harriet não sabiam bem o que se passara. Não tinham noção da espécie de doença de que Larry sofrerá, nem por que motivo fora operado nem em que consistia essa intervenção com um nome tão esquisito. Mas tratava-se do marido de Harriet, estivera muito mal e isso bastava para que o tratassem, como acontecera antes de ser operado, com toda a consideração. A lobotomia e o tratamento haviam custado entre mil e mil e quinhentos dólares, o que deixara intacta apenas uma pequena parte das economias de Harriet e da herança de Larry. Ela empregou essa quantia restante numa padaria dos arredores. Larry não tinha paciência para auxiliá-la. Quando ia lá só atrapalhava. Recomeçou a acompanhar o cunhado quando saía na perua. Às vezes ia a uma loja que ficava perto, jogar no bilhar chinês ou ler as manchetes dos jornais. O Dr. Goldsmith prevenira a família de que ele iria interessar-se por histórias em quadrinhos. Mas ele nunca pegou em nenhuma, embora apreciasse cinema, fosse de que gênero fosse. Também nunca deu para urinar fora do banheiro. Por vezes, Larry dava enormes passeios. Quando regressava, Harriet vialhe os pés cobertos de bolhas, mas ele afirmava que não sentia nada. Parecia insensível à dor. Certo dia de muito frio saiu do quarto em mangas de camisa. A mãe de Harriet correu atrás dele, gritando: — Larry, por que não veste o casaco? Ele parou e respondeu:
— Sim, talvez não seja má ideia. — E entrou em casa para ir buscá-lo. Sua aparência exterior não lhe interessava. Era preciso que Harriet lhe recomendasse todos os dias que fizesse a barba. Quando se preparava para isso, depois de ter aberto a torneira, era capaz de ficar vendo a água correr durante uma hora. Mas julgava que tinham decorrido apenas uns minutos. Harriet sabia que os operados de lobotomia perdem a noção do tempo e muitos ficam fascinados pela água. Nunca bebia uísque. Harriet dissera que lhe fazia mal e ele nunca desobedecia. Quando saíam juntos, limitava-se a cheirar a cerveja dela. Às vezes era de difícil controle. Perdera, parecia, um certo sentido social. Na rua às vezes cortava o caminho dos estranhos, colocando-se à frente deles de punhos erguidos, numa atitude de pugilista, e ameaçava: — Querem ver como é um soco dos meus? Mas tinha sempre um ar bonachão, nunca agressivo. Os desconhecidos, porém, ignorando suas intenções, ficavam assustados. Havia na casa um menino de cinco anos com quem Larry brincava frequentemente. Fazia-lhe caretas e inventava nomes disparatados para fazê-lo rir. Em seguida escondia-lhe a bola e, quando o garoto reclamava, dava-lhe beliscões de brincadeira. Se a família se aborrecia e protestava, Larry metia-se também com eles, até que os nervos de todos começaram a fraquejar. A padaria, que rendera bem no primeiro mês, começou a decair, e Harriet teve que vendê-la. Nos últimos dez meses a moça perdera quase todo o dinheiro que lhe restava. Pensou que uma mudança de ares devia fazer bem a ambos e partiram para Nova York. Informado da vinda deles, Jack alugou-lhes um quarto na casa de uma senhora francesa, em Manhattan. Depois de instalados, Jack e Harriet levaram Larry duas vezes ao Dr. Goldsmith. Na presença do ex-doente, Harriet relatou alguns dos problemas e hábitos do marido. Não podia compreender as coisas que ele às vezes fazia. Sempre diante de Larry, o Dr. Goldsmith replicou: — Bem, deve lembrar-se de que, socialmente, Larry tem apenas dois anos e meio. Jack pensou que o médico dissera aquilo apenas para experimentar qual seria a reação de Larry, mas não houve qualquer reação. Mais adiante, o Dr. Goldsmith voltou-se para Larry e perguntou: — Você sabe fazer a barba sozinho, não é, Larry? Ele fitou-o muito sério e depois respondeu, de repente: — Eu tenho só dois anos e meio, doutor. Como quer que eu seja capaz de fazer a barba sozinho? O médico piscou o olho, e tanto Jack como Harriet ficaram de boca aberta. A fim de se sustentar e ao marido, Harriet empregou- se num restaurante. O trabalho era duro, das sete e meia da manhã até as quatro da tarde, e lhe causou uma estafa. Larry, sem ninguém que olhasse por ele durante o dia, estava sempre fazendo bobagens. Um dia entrou sozinho num restaurante de luxo e pediu os pratos mais caros. No fim disse que não tinha dinheiro para pagar. O gerente foi compreensivo. Pouco depois, encontrou um antigo amigo e convidou-o para almoçar. Comeram do bom e do melhor. Quando veio a conta, Larry confessou que não tinha um centavo.
Certa vez, ao chegar em casa, Harriet encontrou o marido com um olho negro e a cara toda roxa. Quis saber o que se passara. — Encontrei um sujeito, chamei-o de filho da puta e ele atacou-me — explicou Larry, satisfeito. — Jogou-me ao chão! Harriet ficou aflita. — E o que você fez depois? Larry respondeu, muito sério: — Depois? Não voltei mais a chamá-lo daquele nome! Antes da operação fora sempre delicado, modesto, nunca fazendo valer seus méritos. Agora, sempre que se envolvia em discussão, até mesmo amigável, acabava sempre gritando: — Eu tenho curso superior, fique sabendo! Você não passa de um sapateiro! Quando regressava do restaurante, à tarde, Harriet vinha sempre fisicamente arrasada. No entanto, tinha de preparar o jantar, cuidar da casa, das roupas de Larry e dar- lhe banho. Era obrigada a reparar os estragos de suas últimas aventuras e ouvir-lhe as queixas. À noite, embora ela estivesse quase dormindo em pé, ele queria que fossem dar grandes passeios até as duas ou três horas da manhã. Por vezes, ela concordava. Mas na maior parte dos dias sentiase incapaz e ia deitar-se sozinha. Ficava se virando na cama, preocupada com o que poderia acontecer ao marido. Estavam casados havia seis anos e durante esse tempo a pobre mulher nunca dormira nem uma só noite descansada. Não aguentava mais. Quando fora para casa dos Cassidy, há tantos anos, mesmo quando se casara com Larry, ainda era uma moça alegre, comunicativa, cheia de saúde e de esperança. Agora estava magra, esquelética, com os nervos arrasados. Confessou a Jack que não podia aguentar mais aquela vida. Ia deixar Larry. Sendo católica, não se divorciaria. Participou ao marido que ia se separar dele. Larry ficou triste, mas não muito. Era incapaz de sentir qualquer coisa profundamente. Disse que ela era uma ingrata. Dali a dois dias já não pensava mais no caso. Harriet mudou-se para a Nova Inglaterra, onde ainda hoje vive e trabalha. Larry nunca mais falou nela nem lhe escreve. Depois da partida de Harriet, Jack levou Larry consigo em sua vida errante de agente de seguros. Queria mantê-lo consigo por mais tempo, mas não conseguiu. Quando chegavam à casa de um cliente, Jack dizia: — Não demoro mais do que cinco minutos, Larry. Espere por mim. Não saia daqui! Larry concordava, satisfeito. Quando Jack voltava, dali a cinco ou dez minutos, Larry tinha desaparecido. Já andara dois ou três quarteirões, sem destino. Nessa altura, Jack estava apaixonado por uma moça que era modelo e que também tentou ajudar Larry. Levava- o ao cinema, a museus, a passeios no Central Park. Mas isso não bastava. Jack e os outros irmãos, que estavam a par de tudo, eram de opinião de que Larry precisava de uma vigilância constante. Conseguiram que fosse readmitido no Hospital dos Veteranos, em Lyons, Nova Jersey. Larry aceitou sua nova instalação com a maior docilidade. Depois de alguns meses, foi transferido para o Hospital de Veteranos de Roanoke, na Virgínia, onde se encarregavam especialmente da recuperação dos casos de lobotomia. No princípio de 1949, Jack casou-se com Susan e foram tentar a sorte na
Califórnia. Na viagem, pararam em Roanoke, a fim de visitar Larry. Este mostrou desejo de ir com eles. Não por motivos sentimentais: — Quero escrever argumentos para o Alan Ladd e ganhar cem mil dólares em cada um. Jack prometeu conseguir sua transferência para a Califórnia, e conseguiua nesse mesmo verão. Desde então, Larry passou a viver em Los Angeles e ainda hoje ali reside. Está internado, por sua livre vontade, no Hospital Neuropsiquiátrico de Brentwood, que tem ligações com o Hospital de Veteranos de Sautelle. Esteve primeiro numa enfermaria comum, aberta e sem guarda especial; porém, após duas tentativas de fuga, cercaram-no de mais cautelas. Da primeira vez, poupou durante algum tempo os seus cheques de invalidez e partiu para San Francisco, mas não tardou a voltar por sua livre vontade. Da segunda vez, foi sem dinheiro até Phoenix, onde vive o irmão, Tim. Como quase todos os internados de Sautelle, Larry cumpre um horário militar. Dorme com outros doentes, levanta-se cedo, agora já se barbeia rapidamente e bem, quase nunca toma banho no hospital e não se preocupa em mudar de roupa. Existem alguns grupos de psicoterapia entre os doentes, mas Larry não se interessa por eles. Uma vez prometeu aos médicos e à família que frequentaria algumas sessões. Assim fez durante dois ou três dias, depois não voltou mais. Como possuía o mais alto QI da enifermaria, nomearam-no ajudante de bibliotecário. Manteve-se no lugar durante apenas duas horas. — Não queremos obrigá-lo a fazer seja o que for — declarou um dos psiquiatras. — Isto aqui não é uma colônia penal. Há duas coisas a que ele se mantém fiel: o cinema e a comida. Nunca falta aos dois filmes que o hospital apresenta todas as semanas. Chega sempre na hora para as refeições e limpa o prato. Desde que foi operado, seu apetite é devorador. Seria capaz de ingerir seis ou sete refeições completas por dia. Quanto a outras atividades, no entanto, mostra pouca paciência. Antes gostava de jogar golfe. Há 'pouco, quando Jack levou-o a um campo de golfe, deu apenas duas ou três tacadas na bola, no segundo buraco tentou enfiá-la com a mão e depois foi sentarse dentro do automóvel. Ainda traz no bolso dois livros, restos de seu antigo hábito de leitura, mas pouco mais faz do que folheá-los. O que ainda lhe dá mais prazer é passear a pé. Percorre incansavelmente a cerca do hospital, chegando a andar, pelos cálculos de Jack, mais de quinze quilômetros por dia. Quando caminha não pensa, ou, se pensa alguma coisa, não se recorda. Tem poucos amigos no hospital. Só gosta dos doentes e dos médicos que mostram respeito pela sua inteligência, que acreditam nas queixas que faz e concordam com a elevada opinião que tem de si próprio. Quando outro doente, também operado de lobotomia como ele, duvidou de que tivesse frequentado a Universidade de Princeton, Larry deixou de falar com ele. Sente prazer em afirmar que é mais inteligente do que os médicos. Nas discussões com os outros doentes, faz alarde de opiniões momentâneas sugeridas por uma manchete de jornal e mostra-se extremamente dogmático sobre elas. Gosta de dar conselhos aos doentes. Quando vê que algum mostra um ar superior em face de outros, intervém: — Não se faça de importante. Veja onde a superioridade me trouxe: para este hotel de malucos. Chama ao hospital hotel de malucos ou casa de doidos.
Pelos funcionários sente um misto de respeito e desprezo. Quando a família percebeu que seus dentes estavam se estragando, embora não sentisse a menor dor, recusou-se a ir a um dentista do exército. — Eles não valem um tostão — declarou com desprezo. Os médicos militares, cheios de trabalho e sabendo que Larry tem de dar vazão ao seu mau humor, aceitam esses desabafos sem azedume. Larry esqueceu há muito seu antigo projeto de ser professor. No entanto, continua com ideias de escrever. Quando Burt, que dirige uma revista trimestral de Hollywood publicada em Nova York, soube disso, encomendou-lhe uma coisa simples. Mandou-lhe os dados biográficos de uma estrela de cinema, pedindo que escrevesse um resumo de umas quinhentas palavras. A matéria teve de ser corrigida e reescrita, mas Burt enviou-lhe um cheque. Durante muitos meses Larry recusou-se a descontar o cheque, pois preferia guardá-lo para mostrar aos outros doentes como prova de que era escritor. Quando Jack e Susan vinham visitá-lo, prometia sempre que, na semana seguinte, mostraria ao menos um parágrafo de um conto. Mas nunca cumpria a promessa. — Não quero escrever nada aqui nesta casa de malucos — afirmava. — Só quero fazer argumentos para Alan Ladd. Qualquer dia apresento-me na Paramount e digo que sou Larry Cassidy. Verão se não me recebem de braços abertos. A maior parte dos fins de semana, quer Susan, que começou a escrever sobre decoração, quer Jack, que passou a trabalhar para uma grande agência de relações públicas, vão buscar Larry no hospital, levando-o para uma casa de campo que compraram recentemente no vale de San Fernando, a vinte minutos de automóvel de Hollywood. Muitas vezes, logo no primeiro dia, Larry zanga-se com Jack. Começa por se lembrar de que Jack não o convidou para o casamento, quando se encontrava no leste: — Você teve medo que Susan me preferisse — diz ele. Ultimamente passou a dizer que Jack o prendia no hospital, com receio de que ele lhe tirasse o emprego. Quando tem esses súbitos ataques de mania de perseguição, ergue os punhos para Jack, que acaba por dizer: — Larry, sou teu irmão e teu amigo! Então Larry baixa os punhos e sorri como uma criança: — É verdade, Jack. Eu também sou teu amigo. Durante esses fins de semana Jack tem ocasião de avaliar a que ponto Larry se modificou para melhor e para pior. O Dr. Goldsmith prometera que o nível mental dele se estabilizaria ao cabo de três anos, e que tal como estivesse ficaria até o fim da vida. Hoje, com trinta e sete anos, quatro anos depois de ter feito a lobotomia, a nova personalidade de Larry deve ter estacionado. Agora, é indiscutivelmente mais feliz do que antes da operação. Seu rosto redondo tem uma aparência jovem, angelical, e começou a criar barriga. Nunca se mostra deprimido, raras vezes está triste, e só por breves momentos. Tanto do ponto de vista emocional como físico, está livre de dores. Suas raras manias de perseguição, sua falsa agressividade, a impaciência permanente que revela nas relações sociais não o impedem de estar livre de preocupações, de ser irresponsável e feliz. O preço dessa felicidade, claro, foi a perda de muitas das suas antigas faculdades. Continua a manter um alto nível de inteligência, porém as
manifestações desta são instáveis e misturam-se com tremendas provas de criancice. Quando atravessa um período melhor, a família pensa que está perto da cura, mas cai de súbito num estado de louca fantasia ou desata a falar sozinho. Antes da lobotomia, costumava acompanhar os concursos dos programas de rádio, e raramente errava uma pergunta. Sabia de cor, por exemplo, as menos conhecidas passagens de Shakespeare. Há pouco, quando alguém lhe pediu para recitar o monólogo “Ser ou não ser... ”, já não foi capaz. No entanto, pouco depois disso, ao passar com Jack em frente a uma biblioteca, leu a inscrição latina gravada por cima da entrada e traduziu-a impecavelmente. Noutra ocasião, quando Jack escrevia uma história publicitária em que falava de uma rainha imaginária e queria lembrar-se de um sinônimo da palavra “despir-se” relacionado com insetos, Larry ergueu os olhos e lembrou: — Não será ecdise? Jack foi procurar no dicionário e encontrou: “Ecdise, ato de largar a pele ou a crosta periodicamente, como sucede com a cobra e com certos insetos e crustáceos”. A família acabou por aprender a não esperar demais da inteligência de Larry, nem tampouco subestimá-la. Aceitou o fato de considerá-lo estúpido em certos dias e inteligente noutros, sem que se saiba por quê. Verificou também com satisfação que o seu senso de humor parece ter-se desenvolvido muitíssimo com a operação. Certo dia, ao conduzir seu automóvel em Beverly Hills, Jack cometeu uma pequena infração de trânsito. Um policial de moto foi em perseguição dele e passou-lhe uma descompostura. Mal o homem foi embora, Larry exclamou: — Esse sujeito está mesmo pedindo uma lobotomia! Quando discute política dentro do hospital, exalta-se contra a administração do país, e afirma que o presidente precisava de duas lobotomias por semana. Um dia em que saía do hospital no fim de semana, esqueceu qualquer coisa e teve o seguinte desabafo: — Preciso tratar da cabeça! — Depois, olhando em volta, acrescentou: — Não podia estar em melhor lugar! Embora sua mente tenha raízes presas ao passado, a memória mostra-se fortemente atingida. De tempos em tempos, recorda-se da operação: — Sinto-me satisfeito por ter sido operado. Mas se alguém pergunta por que não conversa com os outros doentes, replica logo: — Não se pode conversar com esses idiotas! Lembra-se de todos os parentes e amigos, embora sem grande apego a nenhum deles. Continua considerando Burt seu melhor amigo e a escrever-lhe uma vez por semana. Às vezes lembra-se de uma ou outra data importante, e nesses dias fica muito taciturno. No último aniversário de casamento de Susan e Jack, levantou-se de madrugada, saiu de casa, no vale de San Fernando, e caminhou a pé toda a distância que o separava de Hollywood. Procurou uma loja que abrisse aos domingos e escolheu um par de porta-livros muito bonito, regressando depois outra vez a pé com seu presente. Todos que o encontram pela primeira vez e não sabem da operação que sofreu tomam-no por um indivíduo perfeitamente normal. Consideram-no inteligente, jovial, embora por vezes egoísta e impaciente. Depois do segundo ou
terceiro encontro, começam a desconfiar de que ele deve ter qualquer falha, a achá-lo talvez um pouco excêntrico. Sua impaciência contínua, sua irresponsabilidade e falta de domínio acabam sempre por traí-lo. Durante muitos meses, por exemplo, Larry falava constantemente no desejo que tinha de ir ao Ciro’s, um clube noturno dos mais caros. Jack e Susan resolveram fazer-lhe uma surpresa no dia do aniversário. Foram buscá-lo no hospital, meteram-no na banheira e depois deram-lhe um terno novo. Em seguida levaram-no ao Ciro’s juntamente com um grupo de amigos. Ao cabo de dez minutos, Larry queria ir embora. Não tinha paciência sequer para estar no Ciro’s! Mais tarde, nessa mesma noite, aconteceu algo que revela bem a atitude de Larry para com o sexo oposto. Havia muito tempo que pedia a Jack que o pusesse em contato com uma moça sem preconceitos, e o irmão apresentou-o a uma ruiva totalmente destituída de inibições. Depois de o terem levado à casa dela, Jack e Susan sentaram-se no automóvel, dispostos a esperá-lo o tempo que fosse preciso. Larry, ao cabo de dois minutos, estava de volta. Jack mostrou- se admirado: — O quê? Tão depressa? Nem sequer lhe deu um beijo? Larry pareceu ofendido: — Um beijo? Você acha que sou algum garoto? O que mais aborrece as pessoas que estão em contato com Larry é sua falta de compostura em sociedade. Todos sabem que ele não deve beber, embora nestes últimos tempos tenha licença para provar um gole de vez em quando. Certa manhã de domingo, em que Jack e Susan tinham saído, uns vizinhos viram Larry na rua e convidaram-no para entrar e beber qualquer coisa. Ele bebeu um copo, depois o segundo e o terceiro. O uísque para ele tinha o mesmo gosto que o chá, e quando Jack o descobriu já havia ingerido seis copos e estava bêbado como um gambá. Jack botou-o na cama e, quando ele acordou passou-lhe uma descompostura: — Essas pessoas são simpáticas, mas eu não quero que você vá lá para beber. Eles gostam de tomar uns porres, mas isso faz mal a você! No domingo seguinte, quando Larry fazia o seu eterno passeio, os mesmos vizinhos voltaram a chamá-lo. Larry falou-lhes amavelmente e eles perguntaram se não queria beber qualquer coisa em sua companhia. Larry recusou muito dignamente, declarando: — Meu irmão diz que vocês gostam de tomar porre e que eu não devo ir à sua casa para beber! Nesse mesmo domingo, um pouco mais tarde, Larry voltou a dar provas de sua falta de tato. Susan, que era católica, levou-o à igreja. Larry ficou sentado ao lado dela, com toda a compostura, e ouviu o sermão no maior silêncio. Mas no fim começou a bater palmas. O padre ficou surpreso e todos olharam para ele. Susan ficou muito vermelha e segredou-lhe que não se deve bater palmas na igreja: — Por quê? — perguntou ele. — Esse sujeito disse meia dúzia de verdades! Assim é Larry Cassidy. Até que ponto poderemos considerar o seu caso semelhante ao dos outros operados de lobotomia pré-frontal? Embora os resultados variem de indivíduo para indivíduo, a verdade é que existem muitos pontos comuns entre os operados e Larry. Como prova disso, o Dr. Goldsmith e o Dr. Rodgers citam as descobertas de outros psicocirurgiões, especialmente dos
pioneiros, como é o caso do Dr. Freeman e do Dr. Watts, de Washington. Depois de terem praticado lobotomias em cerca de quatrocentos doentes, com os quais se mantêm em contato, esses médicos chegaram a certas conclusões: “Os operados de lobotomia transformam-se geralmente em pessoas bem- dispostas, com boas relações, afetuosas e comunicativas. São falantes, revelam espírito crítico e uma grande ausência de inibições. . . costumam adiar o que têm para fazer, tomam resoluções súbitas e dão suas opiniões sem pensar nas consequências. A mudança mais notável é uma certa inconsciência tanto no que se refere ao físico como a toda a sua personalidade no plano social. O doente volta da operação com uma personalidade pouco amadurecida, que a princípio está mal preparada para mantê-lo numa sociedade competitiva; nota-se, porém, com o correr do tempo, uma melhora contínua, de modo que, em metade dos casos, tor- na-se possível o regresso às antigas ocupações”. O vasto uso que se tem feito da psicocirurgia prova que ela é aceita por grande parte da classe médica. Em agosto de 1948, por ocasião da Primeira Conferência Internacional de Psicocirurgia, realizada em Lisboa, foram apresentados oito mil casos de lobotomia por diversos professores de diferentes nações, tais como a índia, a Suécia, a Tchecos- lováquia, a Nova Zelândia e o Japão. Os que defendem o método apóiam-se nas estatísticas. A estatística britânica, ao apurar os resultados das mil lobotomias praticadas em quarenta e três hospitais da Inglaterra e do País de Gales, registra que trinta e cinco por cento dos doentes haviam reassumido sua vida normal (desses, duzentos e quarenta e dois tinham sido capazes de voltar ao emprego ou à chefia do lar) e trinta e dois por cento encontravam-se ainda nos hospitais e experimentavam melhoras. O Dr. Freeman e o Dr. Watts declararam por diversas vezes que um terço dos casos apresenta cura, um terço melhora e o outro terço falha. “Existem variações de um pesquisador para outro e nos casos entre si”, concluíram o Dr. Freeman e seu companheiro, “mas os resultados são suficientemente satisfatórios para garantir o emprego da lobotomia pré-frontal em larga escala, para alívio dos inúmeros casos, por vezes crônicos, de doenças mentais que mantêm as enfermarias dos hospitais psiquiátricos cheias além de sua capacidade.” Contudo, os inimigos da lobotomia são igualmente numerosos. O Dr. Stanley D. Porteus, que estudou cinquenta e cinco casos no Hospital de Kaneoke, no Havaí, declarou: — Se em todo o mundo as pessoas se sujeitassem à lobotomia, isso significaria o fim do progresso. A indústria acabaria, com exceção dos níveis mais elementares. Uma população de preguiçosos bem-humorados não poderia dirigir a máquina complexa da vida moderna. O Dr. Nolan D. "C. Lewis é de opinião de que os candidatos à lobotomia deveriam ser cuidadosamente selecionados e operados apenas como último recurso. — Entretanto — afirma ele — o furor therapeuticus prossegue com um entusiasmo que pode tornar-se perigoso, a não ser que se examine com critério a situação e se divulguem os resultados desse exame. Um eminente psiquiatra da Filadélfia considera a lobotomia “sem utilidade” em casos recentes de doença mental, mas de grande valor quando nenhuma outra terapêutica conseguiu obter melhoras. O Dr. G. Rylander realizou pesquisas junto às famílias dos operados e ficou admirado com as mudanças de personalidade produzidas pela psicocirurgia. A
mulher de um doente que fez lobotomia lamenta-se: “Doutor, deram-me outro homem. Já não é o mesmo”. A mãe de uma moça lastima-se: “Ela é a minha filha, mas está diferente. Vejo-a junto de mim fisicamente, mas a alma ficou perdida. Todos os sentimentos profundos, toda a ternura, desapareceram”. Existem ainda outras objeções. Alguns católicos, como o Dr. R. 0’Rahilly, consideram a lobotomia moralmente desaconse- lhável. E desde que se soube que ela tem sido praticada em criminosos, o Dr. D. H. Winnicott protesta: “Que garantias temos nós de que um Bunyan na prisão terá licença de manter o cérebro intacto e a imaginação livre?” Pelo fato de sentir que foi o principal responsável pela decisão de lobotomia feita em Larry, Jack Cassidy mantém- se sempre a par dessa controvérsia entre médicos. Ainda não tem certeza se fez bem ou mal no que diz respeito a Larry. Aos sábados, quando Larry passa com ele os fins de semana, enquanto o irmão dorme no quarto de hóspedes, depois de Susan ter ido também para a cama, Jack fica muitas vezes sentado na sala, lendo o jornal. Mas confessa que, invariavelmente, seus pensamentos se voltam para Larry. Ao escutar sua respiração pesada, Jack, sem dar por isso, começa a reviver os acontecimentos dos últimos anos. Se tivesse esperado um pouco mais, pensa, quem sabe acabaria por se dar o milagre. Ou talvez as operações mais recentes dêem melhores resultados. Ele sabe que continua a praticar-se a lobotomia pré-frontal, mas que também têm-se tentado outras variantes, como a topectomia, a girectomia e a leucotomia transorbital. Nessa altura recorda-se de outra coisa. Revê o rosto de Larry antes da operação. Lembra-se da angústia daquela face e da ânsia que o irmão tinha de morrer. E tem certeza de que ele acabaria seus dias num manicômio, sofrendo até acabar louco, ou então teria recorrido ao suicídio. Além de tudo havia a questão do tempo. Se tivesse esperado, talvez fosse tarde demais para a lobotomia. Enquanto pensa nessas coisas, Jack tenta raciocinar. É sofrido ver no que Larry se transformou. Sim, porque ele era, por assim dizer, um gênio, embora seu gênio não tivesse um valor. Agora está embotado, deixou de ser o mes mo. Por outro lado, ainda tem muitos traços do que foi antes. E o que resta dele é um ser feliz, capaz de gozar certos prazeres, sem se importar com seu estado atual. Talvez isso seja melhor do que nada. Nessa altura da noite, Jack sente-se cansado e apaga a luz. Dirige-se no escuro para o quarto, perseguido pela respiração sonora de Larry. Teria procedido bem ou mal? Jack nunca conseguirá sabê-lo. De qualquer modo, é um problema difícil de resolver às duas da manhã. “Afinal de contas”, interroga-se Jack, “o que outro teria feito no meu lugar?” O que aconteceu depois. . . Quando entreguei esta história ao jornal The Saturday Evening Post, em maio de 1951, os editores mostraram-se encantados mas receosos quanto às suas implicações morais e religiosas. Encarregaram um editor associado de saber se a lobotomia era de fato um processo cirúrgico aceitável e se eu tinha exposto com exatidão o processo clínico de Larry Cassidy. Entre os especialistas em psiquiatria consultados sobre essa operação, o mais importante era um médico da universidade da Pensilvânia, que afirmou pelo telefone ao tal editor: “A lobotomia é um grande recurso para os que não têm outro modo de cura, que vivem puramente por instinto, que tentam matar-se ou assassinar alguém e vegetam como leões enjaulados”.
O editor repetiu essa conversa a Ben Hibbs, responsável pelo jornal, e recomendou-lhe que minha história fosse revista por um “psiquiatra atualizado, talvez um da universidade da Pensilvânia”. O Sr. Hibbs concordou e enviou-a ao tal psiquiatra. Dali a uma semana recebia a resposta do psiquiatra: “A psicocirurgia, sob a forma de lobotomia, lobecto- mia, topectomía ou lobotomia transorbital, etc., é um processo de tratamento usado e tem seu lugar na terapêutica da psiquiatria. Em relação ao problema geral do tratamento psiquiátrico, o lugar que ocupa pode ser comparado ao que representa a cirurgia cardíaca nas doenças do coração e a ablação total de um pulmão no tratamento da tuberculose. Contra esse tratamento não existem objeções psiquiátricas, nem argumentos morais ou religiosos. A lobotomia como processo está definitivamente aceita. O autor descreve incidentes do comportamento de um doénte que são bastante típicos...” The Saturday Evening Post aceitou imediatamente o meu artigo “Amputaram-lhe a consciência”. Primeiro, no entanto, pediram-me que fizesse algumas correções e certos cortes de vulto. Os artigos do Post, em média, nessa altura, não passavam de dezoito laudas datilografadas. Quando escrevi a história nem por um momento pensei em tamanho, porque estava resolvido a contá-la inteiramente à minha moda. Chegamos então a um acordo. Os editores do Post aceitaram publicar um artigo duplo, isto é, com trinta e seis laudas. Concordei em fazer alguns cortes, que muito me custaram. (Quando revi a história para publi- cá-la neste volume, tive vontade de incluir outra vez as mil palavras, mais ou menos, que cortara, obrigado, em 1951.) A 8 de julho de 1951 entreguei ao The Saturday Evening Post a versão já cortada. Sentia-me tão ligado à história que mal podia esperar sua publicação. Finalmente ela viu a luz do dia no The Saturday Evening Post, com data de 20 de outubro de 1951. Fizera-se uma alteração. Visto que o título inicial “Ampu- taramlhe a consciência” podia ser considerado discutível, colocou-se outro nome mais inofensivo, “A operação de último recurso”. A reação do público foi imediata. A despeito do que o leitor possa ter ouvido em contrário, o autor que escreve para jornais populares raras vezes entra em contato com o grande público anônimo dos que compram ou assinam o jornal. Um autor de contos ou artigos é apenas um dos muitos escritores que colaboram em cada número. Ainda que seu trabalho provoque certa reação, esta se perde na massa das produções que o rodeiam. Além disso, sua contribuição num só número semanal possui uma vida efêmera, visto que logo surge um novo número oferecendo outras maravilhas. O escritor não tarda a cair no esquecimento. Há, porém, exceções. E foi o que aconteceu com a publicação da história de Larry Cassidy. Enquanto um artigo normal costuma me valer meia dúzia de cartas de crítica ou apreciação, esse trabalho trouxe-me uma montanha de correspondência. A maior parte felicitando-me; os leitores tinham ficado profundamente impressionados. Algumas cartas, de médicos e de padres, discutiam a legitimidade da operação de Larry. Outras vinham de parentes ou amigos de alguns doentes mentais, cartas trágicas e impressionantes, pedindo mais esclarecimentos, o endereço e o verdadeiro nome do Dr. Goldsmith e do Dr. Rodgers, etc.. . . Os editores do The Saturday Evening Post informaram-me de que aquele artigo havia ultrapassado o máximo da correspondência dos leitores e encontrava-se entre os dois ou três trabalhos que mais controvérsia tinham provocado nos últimos dez anos.
No dia seguinte à publicação, escrevi de Los Angeles ao meu agente em Nova York: “A reação aqui ao artigo ‘A operação de último recurso’ foi espantosa e muito satisfatória”. A atitude de algumas das principais personagens da história interessou-me acima de tudo. O maior amigo de Larry, seu antigo companheiro de quarto na universidade, Burt, lá da sua mesa de editor em Nova York, preocupava- se com o fato de que a história poderia estar incompleta e dar a impressão de que Larry se achava melhor do que na realidade. O irmão mais novo de Larry, Jack, ficara contente por ver que a odisséia do irmão e o seu próprio dile-' ma eram levados ao conhecimento de todos e mostrava-se também agradecido por minha decisão de enviar parte do dinheiro que o artigo rendera para auxiliar as despesas do doente. Quanto a Larry Cassidy, o herói que sofrerá a loboto- mia e continuava no Hospital dos Veteranos, como tinha reagido à publicação da história? Não lhe foi ocultado esse fato. Ficou delirante ao ver impressa a sua biografia, embora eu lhe tivesse dado um nome suposto. Dentro do hospital conferia-lhe uma identidade verdadeira e reforçava a sua superioridade sobre os outros doentes. Durante o ano de 1951 andou sempre pelos corredores e enfermarias com um exemplar — o exemplar por excelência — do The Saturday Evening Post, que agitava na cara tanto dos outros doentes como dos psiquiatras, gritando: — Estão vendo o que está escrito aqui? Aqui diz toda a verdade! Estudei na Universidade de Princeton! Sou mais inteligente do que vocês! Vejam isto! The Saturday Evening Post não publica artigos sobre idiotas! Nos anos que se seguiram, quer falando, quer escrevendo a seu amigo Burt, declarava constantemente que o autor daquele artigo era um grande homem, tão importante como Burt ou como Dwight David Eisenhower, porque tinha tornado Larry “mundialmente conhecido”. Os primeiros médicos de vários lugares que haviam tratado de Larry leram a história e reconheceram logo seu antigo cliente. Um deles em especial, que se mostrara particularmente disposto a me fornecer informações quando comecei a escrever o artigo, mais tarde não concordou com a sua forma final. Quando lhe mostrei o original ficou espantado e aborrecido. Foi de opinião de que eu confiara demais nas informações da família e por isso acabara por apresentar “uma versão unilateral” dos fatos. Pedia-me que riscasse seu verdadeiro nome da história. Depois da espantosa afirmação de que Larry fora um caso fracassado de lobotomia (“incluído na mais baixa percentagem dos cinco por cento”), esse médico retirava-me toda a sua cooperação. Porém, depois da história ter sido publicada no jornal e de ver a reação favorável que obtivera, esse mesmo médico mudou completamente de atitude. Escreveu-me com o máximo descaramento, pedindo o meu empenho para a publicação de um artigo que escrevera sobre assuntos médicos. Senti-me muito pouco caridoso — hoje talvez não fizesse o mesmo — e joguei a carta fora. Desde então tenho procurado analisar a razão do meu procedimento para com esse médico e acho que o motivo foi o seguinte: ele ficara desiludido com o resultado da lobotomia de Larry, que aconselhara como a tantos outros, e desejava esquecer para sempre sua parte no caso. Por isso, por assim dizer, renegava o seu doente. Ao ver que meu artigo, publicado num jornal conservador, transformara Larry numa personalidade nacional, aceita pelo grande público como um objeto de interesse e piedade, o médico sentiu renascer uma espécie de
orgulho em face desse enteado que a princípio pusera à parte. Não sei se foi assim que as coisas se passaram, mas creio que sim. Era como se, até então, por não ter reagido bem à operação, Larry tivesse diminuído esse médico e todos os outros relacionados com o caso. Era como se Larry representasse uma censura viva à suposta magia onipotente da medicina. Larry falhara em relação a esse médico e ele, portanto, lavava as mãos. Quando, devido a uma série de circunstâncias, Larry se tornou uma figura popular, discutida e analisada, o médico reconsiderara e convencera-se talvez de que, de certo modo, a operação fora um êxito, que Larry era também um êxito. De certo modo, o artigo permitira que Larry fizesse outra vez parte da confraria, colocara de novo o cérebro estropiado, mas agora célebre, num lugar de honra e viera dizer que era melhor esquecer o resto. Pois bem, isso ocorreu em 1951, quando Larry Cassidy contava trinta e sete anos e sua recente personalidade, após a lobotomia, tinha apenas quatro anos — depois disso vivemos todos estes longos anos de tensão com o Presidente Eisenhower, o Presidente Kennedy e o Presidente Johnson — e hoje Larry Cassidy tem cinquenta e um anos e sua nova personalidade conta mais de dezoito. Em que medida ele foi afetado pela passagem do tempo? Como se encontra hoje? Não voltei a ter contatos pessoais com Larry. Pouco depois de se tornar “mundialmente conhecido”, deixou Los Angeles e só muito raramente, por intermédio de Burt ou do irmão Jack, eu tinha notícias dele. O que me chegava ao conhecimento, quase sempre sob a forma de uma anedota kafkiana, demonstravame que sua incrível odisséia em busca de paz — atormentado primeiro pelo seu cérebro inconsciente, umas vezes tragicômico, outras terrível, mas sempre lamentável, e hoje, de certo modo célebre — continuava sem descanso. Quando decidi incluir a história de Larry neste livro, pensei em investigar o que fora feito dele nos últimos catorze anos. Em 1951, Larry Cassidy estava há dois anos no Hospital Psiquiátrico Brentwood, em Los Angeles. Devemos nos lembrar de que duas vezes ele tentara fugir dessa instituição. Os fins de semana passados na companhia do irmão Jack, que ele olhava ora com raiva, ora com amizade, e a companhia da cunhada, Susan, não eram consolo bastante para ele. Continuava sob a guarda do governo, tecnicamente enclausurado entre os que ele considerava inferiores, e protestava contra o isolamento, ansioso por ser de novo um cidadão livre. O que aconteceu depois talvez tenha sido provocado pelos efeitos que minha história exerceu sobre ele. Veio causar-lhe uma revolta maior por sentir o seu gênio enclausurado. Fosse como fosse, Larry pedia continuamente que o deixassem sair do hospital, mas sem resultado. Um dia, em 1952, um companheiro de enfermaria, mais esperto, disse-lhe: — Você é inteligente demais para viver aqui. Não é justo. Por que você não se mexe? Embora Jack o tenha internado, ele não tem o direito de mantê-lo aqui contra a vontade. Legalmente, você continua responsável. Você é que assinou. Por que não assina outra vez pedindo para ir embora? Nenhuma força do mundo pode retê-lo aqui. Essa descoberta de que era senhor de si incitou Larry, estimulando-o a agir. Requereu alta. Assinou sua desistência de pensionista do governo, em troca da liberdade e da independência. Quando chegou aos ouvidos de Jack que o processo da saída do irmão do hospital estava em andamento, foi imediatamente procurar um oficial da Administração dos Veteranos. — Não podem lhe dar a liberdade — suplicava ele. — Trata-se de um irresponsável. Incapaz de ganhar a vida. Devem conservá-lo aqui.
O oficial abanou a cabeça: — Não podemos retê-lo contra a sua vontade. Quer ir embora. Jack irritou-se: — Ele não está em condições de querer isto ou aquilo nem de resolver nada por si. Os senhores não vêem isso? O governo não via nada. Nada, a não ser a lei. Os preparativos para a saída de Larry do hospital neuropsiquiátrico seguiram o seu curso. Num esforço desesperado para impedir o que lhe parecia uma catástrofe, Jack resolveu lutar com o governo dos Estados Unidos. Contratou um advogado e foi à justiça. Ao saber disso, Larry gastou grande parte do dinheiro de sua pensão de veterano que tinha guardado para pagar também um advogado. A questão foi rápida. A lei era a lei, e Larry ganhou. Em 1953, deram-lhe alta do hospital neuropsiquiátrico. Ressentido contra o mau irmão, uma espécie de Caim, que segundo imaginava, tinha inveja dele, Larry deixou Los Angeles. Estava certo de possuir em Nova York um amigo mais sincero, Burt, seu antigo companheiro de quarto em Princeton, homem rico e hoje editor de uma revista de nome. Burt, pensava Larry, apreciava suas qualidades de escritor e seria capaz de ajudá-lo a conquistar uma posição na sociedade. Embora preocupado, Burt revelou-se útil e compreensivo. Instalou Larry num apartamento novo e pouco dispendioso. Quis que ele economizasse sua pensão mensal do exército e concedeu-lhe uma mesada do seu bolso. Talvez a maneira como Larry esbanjava essa mesada tenha feito Burt recordar o estado do amigo. O dinheiro evaporava-se todo num dia. O senso de responsabilidade de Larry ficara numa sala de operações em Boston, seis anos atrás. Burt racionou a mesada de Larry, entregando-lhe apenas um cheque de quatro dólares todas as manhãs. Começou então a epopéia de Larry Cassidy, trabalhador independente. Seus sonhos de grandeza, de obter altos cargos de chefia, em breve ruíram por terra. Desde que foi para Nova York, há dez anos, até hoje, a carreira de Larry consistiu em conseguir apenas empregos modestos, que imediatamente abandona. A lobotomia roubou-lhe o discernimento necessário para levar a cabo e lutar seja pelo que for. Em nenhum ano conseguiu ganhar mais do que trezentos dólares. Vive quase que só da caridade de Burt e da pensão de veterano. Sua antiga personalidade, com um quociente de inteligência 150, seu desejo de vir a ser professor, sua ânsia de se suicidar, tudo isso, bom ou mau, lhe foi tirado para sempre. Agora, reduzido a um produto da lobotomia, dotado de um certo espírito beligerante mas ao mesmo tempo inteiramente refratário à ansiedade, resta-lhe uma inteligência tão instável que não pode desempenhar qualquer profissão. Burt não tardou a convencer-se de que Larry poderia desempenhar apenas pequenas tarefas. Tem sido caixeiro, guarda-noturno e contínuo. No entanto, nem isso ele consegue realizar por mais de três ou quatro dias. Na maioria dos casos é despedido porque se incompatibiliza com os patrões: faz alarde de sua educação superior e lastima-se do trabalho servil; ou então mostra-se excêntrico e instável no comportamento; ou ainda falta-lhe capacidade de se concentrar numa tarefa ou de permanecer no mesmo lugar durante um certo tempo. Além de intermináveis passeios por Manhattan, a atividade social e recreativa de Larry consiste em visitar Burt e sua família uma vez por semana. Uma ou duas horas antes do jantar, aparece, todo desmazelado e sujo, porque ninguém cuida dele nem ele cuida de si. Burt enche a banheira, despe-o, mete-o no banho, coloca suas roupas na máquina de lavar e na secadora. Enquanto lhe
passam o terno, Burt lava-lhe a cabeça, as costas e corta-lhe as unhas. Uma vez lavado e vestido, fica, segundo Burt, “como um cão de Pav- lov, esperando ouvir a sineta do jantar, passeando para cá e para lá, sempre falando”. Suas melhores conversas são de louvor a Burt, seu protetor, ao presidente dos Estados Unidos, ao poder militar da América, que é capaz de esmagar qualquer inimigo que apareça, aos livros que leu ultimamente. De vez em quando a agressividade latente desperta. Larry pára de repente, põe-se em posição de pugilista e, meio rindo, dirige-se ao suposto adversário. Se este é jovem, Larry diz: “Vais apanhar! Se te visse a arder nem sequer seria capaz de te urinar em cima!” Se acaso o inimigo invisível é idoso, Larry resmunga: “Ainda hei de mijar em tua cova!” Quem são esses inimigos invisíveis? Eles vão desde antigos funcionários da Administração dos Veteranos, até os doentes, outrora seus companheiros, o irmão Jack ou o Dr. Goldsmith e o Dr. Rodgers. Mas essa hostilidade é sem convicção. Ele não tarda a retomar o passeio e, enquanto espera pelo jantar, vai discursando sempre sobre o nível (muito baixo) da cultura americana. Essa rotina durou cinco anos. Os empregos efêmeros, os passeios intermináveis, as visitas a Burt eram como as fronteiras de Andorra na vida de Larry. Aconteceu então uma mudança dramática. Durante algum tempo, influenciado pelos jornais e pela sua própria fantasia, Larry Cassidy começou a pedir para ir ao estrangeiro. Enquanto pôde, Burt não fez caso dos apelos do amigo, até que, embora com muitos receios, cedeu, esperando que a mudança produzisse efeitos benéficos no seu estado. Burt planejou a primeira das três viagens que Larry fez à Europa. Com algumas economias de Larry e aproveitando os descontos da baixa estação, Burt dirigiu-se a uma agência de viagens de Nova York. Preparou o programa com todo cuidado, sem esquecer nada: percursos, hotéis, refeições, visitas de turismo. Depois entregou a Larry duas malas de roupa lavada e um talão de cheques de viagem. A primeira grande excursão, que incluía a Grã-Bretanha, a França e a Itália, correu bem. Houve apenas um ligeiro contratempo. Segundo conta Jack, o espírito tumultuado de Larry levou-o uma noite à cadeia em Paris. Segundo a versão de Burt, foi seu espírito irresponsável que causou o incidente, e ele não foi parar em cadeia alguma. Parece que Larry havia gasto todo o dinheiro de que dispunha e não pôde pagar a conta do hotel. Aconteceu uma cena desagradável, mas no fim o hotel limitou-se a confiscar- lhe a bagagem. Fora esse ligeiro incidente e uma pequena confusão quando ele pretendeu trocar as passagens por via aérea, tanto Larry como a Europa saíram ilesos dessa visita, e nosso amigo regressou a Nova York sem novidades e mais esclarecido. Animado com os resultados, Burt deu-lhe licença para voltar no ano seguinte. Não se passou nada de extraordinário durante a viagem, até chegar à Inglaterra. Ainda sob a influência de alguns conhecimentos literários um pouco confusos, Larry inscreveu-se numa excursão que partia de Londres para visitar Stratford on Avon. Durante o trajeto, travou conhecimento com uma senhora de meia-idade, baixinha, tímida, não de todo sem graça, uma secretária cheia de ideias românticas que estava ali gozando férias. Chamava-se Nellie. Aquele breve encontro num ambiente poético — foram companheiros de viagem apenas durante quarenta e oito horas — transformou-se, para ambos, em amor à primeira visita. No que diz respeito a Larry, essa mulher meiga, tão timidamente inglesa, tão pouco evoluída, no entanto terna e compreensiva, veio preencher o vácuo deixado pela sua esposa católica, Harriet, que o abandonara por uma questão de sobrevivência, cerca de dez anos antes. Visto através dos seus sentimentos neuróticos, Larry pareceu-lhe um viajante de Nova York bem-apessoado, culto, ao mesmo tempo interessante e interessado, tão prosaicamente romântico e instável
como ela, e que parecia um bom partido. No regresso a Londres, trocaram os endereços e doces promessas. Nellie voltou para a companhia dos pais e Larry para junto de Burt, em Nova York, onde começou uma campanha para conquistar a dama dos seus sonhos. O amor de ambos era mantido por correspondência. As cartas apaixonadas de Nellie chegavam diariamente. Uma vez que a lobotomia o despojara de qualquer constrangimento, as cartas dele eram muito terra-a-terra. Nellie não se sentia ofendida com isso, até que seus pais leram algumas e começaram a confiscá-las por considerarem-nas “pornográficas”. As cartas da moça eram diferentes. Segundo me confessou uma amiga de ambos, ela escrevia cartas amorosas do tipo das de Elizabeth Barrett Browning, enquanto as dele eram do nível de caserna. As cartas dela eram um grito da alma, as dele um apelo do baixoventre. “E, no fundo, o sentido de ambas não era muito diverso; tanto umas como as outras exprimiam um anseio idêntico.” Larry não podia esperar mais depois de um ano de correspondência com sua bem-amada Nellie. Decidiu visitá- la no seu habitat natural, a fim de mostrar à família da noiva que não era nenhum devasso e pedir a mão dela. Sem participar a ninguém seus planos, pediu a Burt que lhe proporcionasse mais um passeio à Inglaterra. Burt concordou e mandou-o a bordo de um transatlântico francês com destino a Southampton. Não tardou que Larry desembarcasse em Nova York de outro transatlântico, também francês, sem ter ao menos posto os pés em terra britânica ou os olhos em Nellie, que o esperava. As autoridades da Imigração inglesa não o deixaram desembarcar. Teria havido alguma intervenção da parte dos pais de Nellie ou dos parentes de Larry? Burt investigou, chegando à conclusão de que não fora uma coisa nem outra. Só o próprio Larry era o culpado do contratempo. Ao preencher um questionário, antes de desembarcar, respondera afirmativamente à pergunta: “Já esteve internado em alguma instituição para doentes mentais?” Em face disso, os funcionários da Imigração mandaram chamá- lo. Quem se apresentou foi um homem de ar espantado, com a barba por fazer, desmazelado, malcheiroso, que confessou não trazer dinheiro, mas se esqueceu de dizer que vinha com as despesas todas pagas. Cassaram-lhe logo a licença de desembarque e o estrangeiro indesejável foi recambiado para Nova York, enquanto Nellie se desesperava no cais. Porém amor contrariado é amor redobrado. Larry confessou seu plano. Tinha forçosamente de se casar com Nellie. Burt e os irmãos, Jack e Tim, tentaram dissuadi-lo. Mas a verdade é que o bisturi que seccionara os lóbulos pré-fron- tais de Larry embotara Hamlet, mas não tocara em Romeu. Desejava Nellie, ela também o desejava e, já que não podia ir até ela, a dama dos seus sonhos iria procurá-lo. Horrorizado com a ideia de ver juntos, sob o mesmo teto, seu amigo Larry e a pobre e ignorante Nellie, Burt deu o passo decisivo. Escreveu a Nellie contando a verdade. Relatava-lhe toda a história de Larry, incluindo pormenores clínicos sobre a operação, e ficou certo de que isso seria o fim do romance. Mas enganavase. Muito delicadamente, Nellie respondeu-lhe que estava familiarizada com casos de lobotomia. Durante a Segunda Guerra Mundial servira como voluntária numa instituição militar para doentes mentais e ajudara a tratar casos de lobotomia mais difíceis do que aquele. Depois de saber do problema, sentia-se ainda mais ansiosa para dar-lhe o seu carinho. Admirado, Burt continuou a escrever-lhe, e ao mesmo tempo pedia a vários antigos colegas da universidade e aos parentes de Larry que fizessem o mesmo. Toda a propaganda negativa,
porém, foi inútil. Nellie manteve-se inflexível: estava resolvida a abandonar a família, a deixar o emprego, o seu país, para corresponder ao apelo amoroso de Larry. Num último esforço para tirar as ilusões a Nellie, Burt telefonou para Londres — ainda hoje recorda, furioso, que essa conversa lhe custou cento e vinte e cinco dólares —, e falou com Nellie, falou, falou, tempo sem fim. Tentou diminuir as qualidades de Larry e acentuar os defeitos. Contou que ele esbofeteara a senhoria da casa onde morava, que tratava mal as pessoas que queriam ajudá-lo, que era incapaz de se conservar num emprego. Depois de Burt ter vendido o seu peixe, Nellie, sufocada de emoção, gritou através do cabo transatlântico: — Não quero saber do que o senhor diz! Tenho de ir para junto dele. Matome se não me deixarem ir para a América! Burt nada mais tinha a dizer. Depois de desligar o telefone sentiu-se perplexo em face do seu papel no futuro de Larry, tal como acontecera a Jack, há muitos anos, antes de tomar a decisão sobre a lobotomia. Ainda há pouco, ao recordar esse tempo, Burt me declarou: — Depois da comunicação transatlântica, eu tinha de fazer forçosamente o papel de Deus Todo-Poderoso. Na verdade não estava representando o papel de Deus, eu era Deus. Sabia que Nellie estava completamente desorientada, e muita gente nessas condições acaba por se suicidar, como ela ameaçara. Além do mais, estava convencido de que, se pudesse ajudar Larry, isso seria ótimo para todos. Ele estava vivendo sozinho na mais completa imundície. Fora a visita que me fazia uma vez por semana, quase não tinha contato humano com mais ninguém (embora tivesse outros muito pouco humanos com a senhoria e com os vizinhos). Larry era um caso desesperador. Os anos futuros eram muito pouco animadores. E, entretanto, aparecia Nellie proclamando que o amor é capaz de mover montanhas. — As pressões eram enormes de ambos os lados. Minha própria família e a de Larry sentiam-se arrepiadas com a ideia de me verem ajudar Nellie a vir para cá. Bem, a vinda dela estava nas minhas mãos, porque ela precisava de uma declaração em que eu dava garantias de que ela não viria a ser uma sobrecarga para o governo. Ao mesmo tempo, ela ameaçava-me com o suicídio e Larry estava desesperado. Tudo isso era um grande dilema. Já sabe o que eu resolvi, e só Deus no céu poderá dizer se fiz bem ou mal. O que Burt resolveu foi cooperar a sério na união de Larry e Nellie. Os problemas de Nellie começaram no momento em que pôs os pés em terra firme, em Nova York. Sentia-se tão nervosa que não foi capaz de se avistar com Larry no primeiro dia. Depois, foi Burt quem os reuniu, e Nellie ficou instalada no caótico apartamento de Larry. Ela não podia vir a ser sua esposa legal porque havia, em algum lugar, a outra, Harriet, cuja religião não a deixava divorciar-se. E, uma vez que Larry era legalmente irresponsável, não podia requerer o divórcio. Desde então, e ainda hoje, Larry e Nellie vivem numa situação de pecado. Um amigo que os viu uma semana depois que tinham se unido, afirmou: — Tive a impressão de que estavam atolados num lamaçal, e de que Larry tentava usá-la como tábua de salvação, mas quanto mais se agarrava, mais ela afundava no lodo.
De um dia para outro, a história de Nellie identificou- se com a de Larry. Ele apoiava-se nela e ela o ajudava, porém, tal como a sua antecessora, acabava por sucumbir ao peso. Nellie recebeu o primeiro choque ao ter de enfrentar as condições de sua nova vida no West Side de Nova York. Fora subitamente transferida de uma atmosfera limpa, desinfetada, impecável, eficientíssima e tipicamente inglesa, para um meio superlotado de imigrantes pobres e mal-educados. Mudara-se para um apartamento semimobiliado e sujo, cheio de percevejos. Nem sequer podia ter a ilusão de que viviam em romântica intimidade. As paredes pareciam de papelão. Durante o dia, chegavam até eles os sons do banheiro. Durante a noite, o ruído dos leitos torturava-a. A segunda coisa que a chocava era precisamente seu companheiro, que precisava mais de uma enfermeira do que de uma amante, que ora se mostrava inteligente ora incompreensível, cujos hábitos eram às vezes civilizados, outras de um animal selvagem. No entanto, ele a amava e ela também o amava, e a moça sentia-se disposta a moldar o que restava do antigo Larry, de modo a transformá-lo de novo num ser humano e num bom trabalhador. Ele sonhara um dia ser professor e falara com ela desse sonho. Nellie decidiu que faria dele um professor universitário ou pelo menos um bom mestre, para ambos poderem fugir daquele inferno. Larry prestou exame para a Universidade de Long Island, onde pretendia fazer o curso de estudos pedagógicos, e foi aceito. Nellie puxava ao máximo pelo que restava do seu quociente de inteligência, estudava com ele, e conseguiu que completasse os estudos necessários. Com o auxílio da companheira, obteve seu título de professor. Isso custara-lhes quinhentas libras, mas agora Larry estava apto a ganhar a vida. Concorreu a vários cargos. Compareceu a entrevistas. Uma vez a sós com o futuro patrão, tudo ia sempre por água abaixo. Os espertos compradores de cérebro humano viam logo que o dele não era confiável. Davamlhe credenciais, mas não lhe confiavam o emprego. Desmoralizada com essa derrota, Nellie insistia para que ao menos saíssem daquele atoleiro. Mudaram-se para um apartamento limpo, em Nova Jersey, que ficava perto da residência de um dos irmãos de Larry. Nellie continuava resolvida a fazer com que a vida de Larry deslanchasse. Ele, continuando a derreter suas economias, inscreveu-se na Escola de Licenciados dos Serviços Bibliotecários da Universidade de Rutgers. Nellie instigava-o constantemente a trabalhar, mas sem resultado. Larry foi mal nas provas e teve de sair do curso. Como estavam muito precisados de dinheiro, ele aceitou o emprego de gerente noturno num cinema. Sob a direção de Nellie, conservou o lugar durante dois meses. Depois, despediram-no. Os amigos, a esta altura, vieram em auxílio deles. Havia uma vaga na biblioteca da Universidade de Princeton. Larry foi indicado e convocado para uma entrevista. Pouco depois, um membro da biblioteca chamou Larry e, muito delicadamente, claro, explicou-lhe que a vaga deixara de existir porque o antigo ocupante voltara ao serviço. Numa palavra, Larry falara demais na entrevista. Surgiu outra possibilidade, um emprego nos Correios de Filadélfia, por isso o casal mudou-se para lá. Mais uma vez Larry voltou a abrir os livros, sempre com a ajuda de Nellie, e passou no exame. Com uma nota baixa, é certo. Os cargos eram preenchidos por ordem de classificação. Larry esperava sua vez com impaciência. De novo foi preciso dinheiro, e Nellie arranjou um emprego. A vida deles passou a ser isto: Nellie, muito frágil, medrosa e apagada, trabalhando, e Larry, agitado, furioso e ressentido, à espera. Passaram-se oito meses antes que os Correios mandassem chamá-lo. Seguiu-se a fatal entrevista. Larry falou demais
ainda desta vez. E ficou sem o emprego. Por fim, em Filadélfia a realidade acabou por aparecer aos olhos de Nellie. Ela chegou à conclusão de que os sonhos são para quem dorme e não para quem está acordado. Acabou por se convencer do que era afinal sua vida com Larry, que nunca poderia ser outra coisa. O peso dessa desilusão, juntamente com sua própria neurose, desanima- ram-na completamente. Um amigo deles de Filadélfia contou-me o resto. — Em cima daquele corpo frágil e daquela alma doente caíram as sete pragas do Egito. Teve períodos prolongados de suores, de arrepios, de insônia, de ataques violentos e assustadores de taquicardia. A tudo isso, ou talvez mesmo como sua consequência, seguiu-se um forte ataque de pior- réia cujo tratamento ficou em mil dólares. Teve de ser internada no hospital de Filadélfia. Em três semanas, deram-lhe alta como provavelmente curada mas achava-se ainda entregue ao mais negro desespero. Foi preciso continuar os tratamentos particulares; dez eletrochoques que lhe fizeram um bem extraordinário. Tudo isso se passou em 1962, ano que terminou com o aparecimento de mais um possível emprego para Larry, em Sacramento, na Califórnia. Larry e Nellie transferiram-se para lá. Assim se fechava o círculo de Larry. Voltava para o lugar de onde viera, mas, desta vez, não estava num hospital. O emprego em Sacramento não deu em nada. No entanto ele empregou-se temporariamente num armazém. Aconteceu então algo muito mais importante e melhor. Depois de estarem de relações cortadas durante dez anos, Jack e Larry fizeram as pazes no princípio de 1963. Os anos não tinham sido favoráveis a Jack desde que movera aquele processo contra a Administração dos Veteranos em Los Angeles a fim de manter Larry internado. Profissionalmente, ele triunfara. Enquanto trabalhava ainda anonimamente em publicidade, resolvera arriscar um vôo por conta própria. Abrira um escritório e, graças ao seu talento, alcançara grande sucesso. Mas outras dificuldades surgiram. O maior problema teve relação com a mulher. O outro eram suas próprias perturbações nervosas, agravadas pelo remorso de haver consentido na lobotomia do irmão. Para Jack, o casamento tornara-se insustentável, e ele e Susan acabaram por se separar e, em 1959, se divorciaram. Os remorsos tinham se tornado insuportáveis, e finalmente Jack fez um esforço para sair dessa situação. A psicocirurgia não era então vista com bons olhos, sobretudo a lobotomia, por isso a nova geração médica estava experimentando novos medicamentos, com ação sobre o cérebro, tais como e LSD, a mescalina, a psilocibila, os tranquilizantes e a clorpro- mazina. Jack resolveu sujeitar-se a tratamentos pelo LSD. Tomou nove doses ao todo. Confessou-me ele: — Quando comecei, sentia-me atormentado pelos remorsos. Tudo o que eu tinha dentro de mim relacionado com Larry saiu para fora, bem como outras coisas. No fim do tratamento, estava outro homem. Foi a coisa mais maravilhosa que me aconteceu na vida. Liberto da tensão nervosa pelo divórcio e pelo tratamento que fizera, Jack Cassidy casou-se com uma bela moça, também modelo, de quem teve um filho e uma filha, prosperou no negócio e, mais animado, resolveu pela primeira vez em dez anos encontrar-se com Larry. Dirigiu-se de avião a Sacramento, em 1963, para ver o irmão e conhecer Nellie. Relatou-me esse encontro: — Eu não via Larry há muito tempo. Estava receoso. Depois, mal o vi, o
dique arrebentou. Caímos nos braços um do outro. Ele tinha lágrimas nos olhos e eu, não me importo confessar, também chorei. Larry sentia-se muito orgulhoso pelo fato de seu irmão mais novo ter triunfado no meio das estrelas de cinema. Mostrava-se afetuoso e não restava nada de sua antiga hostilidade. Jack ficou entusiasmado com a mudança que julgava ter se operado em Larry. — Seu rosto parecia rechonchudo e pacífico; parecia mais novo. Ele é mais velho do que eu onze anos, mas parecia o mais novo. Durante os encontros que tiveram, Larry vinha sempre bem barbeado e suas roupas, embora velhas e puídas, esta- vam impecavelmente limpas. O pequeno apartamento no qual Larry e Nellie viviam, apesar de escassamente mobilia- do, estava em ordem e tinha um certo conforto. No fim dessa primeira visita, antes de regressar a Los Angeles, Jack comprou para o irmão um aparelho de televisão e uma estante de livros, visto que ele readquirira o hábito da leitura. Larry prometeu procurar um hipnotizador que seguisse uma orientação médica para tratar Nellie e, ao partir, Jack prometeu visitá-los de vez em quando e ajudálos monetariamente. Larry e Nellie ainda vivem em Sacramento. Larry passa os dias lendo romances, sobretudo policiais, e à procura de emprego. Ultimamente deu-lhe na cabeça editar livros, ou pelo menos ser assistente de um editor. À noite, ele e Nellie ficam sentados, imóveis, diante da televisão, e ambos gozam uma vida social dentro da sua própria sala. Economicamente, vão se arranjando com a pensão de veterano e com as mesadas de Burt e de Jack, além de um ou outro emprego que vão arranjando. Larry não recebe cuidados médicos especiais. De tempos em tempos, tem notícias do Dr. Goldsmith, que lhe escreve de Boston para informar-se de seus progressos, visando sobretudo suas estatísticas. Larry odeia os psiquiatras e raramente lhe responde. Uma vez foi Larry quem o procurou pedindo dinheiro, mas não recebeu resposta. Larry informou a Burt: — Escrevi ao Dr. Goldsmith comunicando-lhe que agora vivia em Sacramento e pedindo conselho quanto a um possível emprego. Ele sugeriu que me empregasse como varredor de ruas! E assim é Larry, presentemente. Perguntei a seus dois amigos mais íntimos, Burt, em Nova York, e Jack, em Los Angeles, qual sua opinião sobre o presente e o futuro de Larry. O primeiro mostra-se um pouco pessimista e o segundo, um tanto otimista. No entanto, ambos estão de acordo em afirmar que Nellie lhe foi muito útil, e o aproximou mais dos outros homens. Diz Burt: — Os progressos de Larry serão reais ou aparentes? Não sou profissional (duvido que alguém o seja), mas inclino-me a achar que são aparentes. Tirem-lhe a companhia de Nellie, o freio que ela lhe põe, os bons hábitos que exige dele, e verão como ele regride em uma semana. Na minha opinião, tudo se deve a Nellie. Estou certo de que a personalidade dele que conhecemos depois da lobotomia se mantém. Ela é que o domina e o ajuda a desempenhar o papel que ele desejaria ter em Nova York antes da vinda dela, se acaso tivesse encontrado alguém para contracenar com ele. Sabe o que significam as palavras “cerimônia” e “respeitabilidade”. São coisas que ele aprecia. Aprecia a cerimônia e a respeitabilidade, mas não tem nada a ver com isso. Nellie é que trata de tudo em lugar dele.
“Teria eu feito mal em trazer Nellie para junto dele? Não tive outro remédio. Foi um negócio. Só Larry ganhou com ele, e Nellie perdeu. Tenho algo a censurar ao Dr. Goldsmith e ao Dr. Rodgers? Por certo que não. Entre aquela autêntica ruína que passava a vida suando e gritando, antes da lobotomia, e essa criatura diminuída que arrastou outra para o seu nível, mas que por seu lado não conhece a dor, quem poderia escolher? De qualquer modo, ele desejava e ela estava disposta a morrer se não a deixassem vir. Tinha que ser.” Agora a opinião de Jack: — Claro, as limitações de Larry mantêm-se. Continua com a mesma incapacidade de conservar um emprego, a mesma incapacidade para se interessar demoradamente por qualquer coisa, a mesma necessidade de falar continuamente. Sim, de certo modo, é uma história que acaba bem, se assim podemos dizer. Eu sou dessa opinião. A vida que ele leva pode não ter significado para mim ou para qualquer outra pessoa normal. É demasiadamente limitada. Mas, para ele, em relação ao que era antes, está muito melhor do que em qualquer outra época desde que ficou adulto. Do seu ponto de vista, tem uma vida suportável, graças a Nellie. “Quanto à lobotomia, para a qual dei meu consentimento, em 1947, bem, isso já faz muito tempo. Aprendi desde então a suportar os remorsos de ter tomado essa decisão. Agora já me habituei. Mas fiquem sabendo que muitas vezes, oh, tantas vezes!, ainda penso que, se tivéssemos esperado, se tivéssemos esperado um pouco mais...”
 
III O Cavalheiro de Domingo no estrangeiro
 
8 A bíblia do turista No início da Segunda Guerra Mudial, quando foi encarregado por Hitler de varrer a Grã-Bretánha do mapa, Her- mann Goering tratou logo de arranjar uma boa lista de alvos. Não precisou ir longe. Em sua estante havia uma fonte de informações dos serviços de espionagem. Era um exemplar do guia turístico Londres e arredores, da Baedeker. Depois de estudá-lo, ordenou à Luftwaffe que destruísse todos os edifícios históricos e monumentos da Grã-Bretanha que estivessem assinalados com um asterisco no Baedeker. E foi assim que começaram os arrasadores ataques aéreos nazistas, depois conhecidos pelos ingleses como “os raids Baedeker”. Não é de espantar que Goering possuísse uma coleção de guias Baedeker. Quando estourou a guerra, mais de dois milhões de pessoas residentes em todas as cidades do mundo civilizado haviam comprado alguns dos oitenta e sete títulos diferentes dos famosos guias do tempo de paz, publicados em Leipzig. Ao contrário de Goering, a grande massa dessas pessoas era constituída por turistas, que consultavam os guias com respeito e os consideravam a bíblia dos forasteiros. Confiavam em seu moderno sistema de discriminar os lugares por meio de estrelas, a fim de poupar tempo nas viagens (duas estrelas significava “deve visitar-se” — por exemplo, o Lou- vre, o Krêmlin, as cataratas do Niágara; uma estrela significava “visitar se for possível” — o Jungfrau, a Universidade de Yale, algumas ruas do Cairo; sem estrelas — a casa de Tolstói, as docas de Chicago, o Albert Memorial, etc.). Os turistas usavam o Baedeker como se fosse cultura em pílulas (“Grande Muralha da China, terminada nos fins do século III a.C., como proteção contra as invasões dos hunos. Construída sobretudo de tijolos, encontra-se quase toda destruída. Sem estrelas”)- Os leitores confiavam plenamente em seus conselhos práticos. (Em Nápoles, “escolher de preferência as camas de ferro, por serem menos infestadas pelos inimigos do repouso”.) Mas, acima de tudo, os viajantes acreditavam piamente na exatidão do Baedeker. O exemplo dessa fé é uma caricatura alemã, representando um pai com a família, contemplando um castelo e uma catarata. Na mão do pai, um exemplar do Baedeker, com a fotografia ao contrário, primeiro a catarata e depois o castelo. O pai observava: “Vejam, esta paisagem está invertida!” Em menos de século e meio, a influência hipnótica exercida pelos guias Baedeker sobre os leitores tornou-se tão grande que os alemães levavam suas descrições tão a sério quanto os turistas. Certo dia o Cáiser Guilherme estava com seus ministros no Palácio de Potsdam. O relógio deu meio- dia e a banda do palácio começou a tocar lá fora. O Cáiser levantou-se imediatamente e disse: “Com licença, senhores. Tenho de aparecer à varanda. O Baedeker diz que eu costumo fazer isso a esta hora”. Mais recentemente, o dono de um restaurante na Floresta Negra, um quilômetro ao norte da estrada principal, verificou que, na nova edição do Baedeker, sua casa, por engano, figurava como estando situada um quilômetro ao sul. Vendo que os negócios caíam, encheu a estrada principal de tabuletas, indicando o caminho para o restaurante. Os turistas, porém, não se importavam com esses sinais e mantinham-se fiéis ao Baedeker. Por fim, desesperado, o proprietário do restaurante mudou-se para o local indicado no guia: um quilômetro ao sul da estrada. Essa fé dos leitores, essa submissão aos locais e à opinião do caderno de viagens não tardou a tornar o nome Baedeker um sinônimo internacional de guia
turístico. Nada feito antes ou depois atingiu sua fama — com seus trinta volumes em inglês e cinquenta e sete em francês e alemão. A despeito de sua popularidade histórica, durante algum tempo teve-se a impressão de que o Baedeker não resistiria à Segunda Guerra Mundial, pois Goering, pervertendo seu uso quase o arruinou. Os ingleses, furiosos com os "raids Baedeker”, e resolvidos a destruir as tipografias que o imprimiam, vingaram-se. Em 1943, a RAF atacou Leipzig, descarregando toneladas de bombas sobre as gráficas do Baedeker, reduzindo a cinzas século e meio de trabalhosas listas, mapas e plantas. Como se não bastasse, o Baedeker foi perseguido por uma ameaça ainda maior na Europa e na América do pós- guerra. Ao mesmo tempo que ele tentava reorganizar suas listas e melhorar suas finanças, indeciso se devia ou não abandonar o mundo dos turistas, súbito houve uma avalanche de um novo tipo de guia turístico. Esses guias eram, de um modo geral, “modernos”, ou seja, despretensiosos, eficientes, espirituosos e inteligentes. Muitas vezes os fatos ficavam ocultos sob uma opinião pessoal ou um preconceito. Em alguns volumes, a sabedoria e a arte substituíam a erudição. Outros eram totalmente insensíveis à cultura e à história. Embora procurassem ser exatos, poucos o conseguiam, e mesmo assim não se tratava daquela exatidão persistente, detalhada, exata, provada, teutônica, do antigo modelo de Leipzig. Foi o que bastou aos velhos herdeiros do clã Baedeker, o velho Hans e o Dr. Dietrich Baedeker, netos do fundador. Perceberam que ninguém conseguira igualá-los. Ninguém oferecera ainda ao vasto público o que ele mais desejava. E tomaram uma decisão. O guia Baedeker sairia de novo, pronto a ganhar a batalha dos turistas do pós-guerra. Mas a coisa não foi fácil. Ao retomar a publicação, o velho Hans Baedeker, por falta de fundos e de material, resolveu produzir em sua própria casa o primeiro volume. Instalado em Leipzig, cidade controlada pelos comunistas, obteve a aprovação russa para editar um guia da cidade. Foi obrigado a deixar que o prefeito comunista escrevesse o prefácio e teve que imprimi-los numa tipografia comunista. Visto que todos os alemães, mais cedo ou mais tarde, acabavam por ter de ir ao edifício do quartel-general russo, Hans assinalou o edifício num dos mapas da cidade. Assim que o guia foi posto à venda e que os soviéticos viram o mapa, logo prenderam Hans por atentado contra a segurança. Salvou a pele, mas cassaram-lhe a licença de editor. Desesperado, saiu da cidade e desapareceu no anonimato da zona russa, juntamente com o irmão, o Dr. Dietrich Baedeker. O velho Hans, porém, tinha um sobrinho, Karl, e o Dr. Dietrich, dois filhos, Hans e Otto, que viviam fora de Leipzig. Esses jovens Baedeker, materialmente livres das restrições russas, animados pelo sucesso do primeiro livro que a família publicara depois da guerra, tomaram a si a sobrevivência da firma. Karl Baedeker, veterano de guerra, bem- apessoado, com os seus quarenta e quatro anos, estabeleceu um novo quartel-general na zona britânica, fora de Hamburgo, no chalé do pai. O jovem Hans abriu a casa em Stuttgart, enquanto Otto, um jovem aristocrata de vinte e oito anos, ia se fixar em Londres. Lenta e pacientemente, nos sete anos que se seguiram, os livrinhos de capa vermelha, lacônicos, concisos, cheios de curiosidades e sempre fiéis à exatidão, voltaram a encher as estantes de todo o mundo. Depois do guia de Leipzig, foi publicada uma enorme série de guias turísticos da Alemanha, sobre Munique, Frankfurt, norte da Baviera e Schleswig- Holstein. Finalmente, fora do país, apareceu um guia de Londres, cópia do que fora publicado em 1862 e que agora
era reeditado simultaneamente em Hamburgo, Londres e Nova York. Ainda que a Saturday Review acusasse o guia do norte da Baviera de traduzir uma “oculta aspiração nacionalista” — porque os Baedeker, embora nunca tivessem sido pró-nazistas, insistiam muito no bombardeio aliado sobre a Alemanha —, a recepção geral foi entusiástica. O New York Times referia-se ao “nível invejável de erudição” e o En- quirer de Cincinnati confessava que, “depois de se ter conhecido o Baedeker, nenhum outro guia turístico podia nos satisfazer”. Animados com tudo isso, os três netos Baedeker estão organizando mais volumes populares sobre Paris, Suíça e Itália. Mas concordam em que até os editores de guias precisam de um guia. O deles foi o velho Karl Baedeker, que fundou a firma aos vinte e seis anos. Os bisnetos falam dele como se ainda fosse vivo e colaborasse ativamente com eles, o que é verdade, visto que seu nome figura como autor dos livros, embora tenha morrido em 1859. Karl Baedeker I, filho de um impressor nascido em Essex, em 1801, entrou para a Universidade de Heidelberg aos dezesseis anos, para se licenciar em filosofia e história; mais tarde, foi para Berlim estudar impressão. A parte mais importante desses estudos, no entanto, se desenvolveu fora das salas de aula. Seus colegas consideravam Baedeker um excêntrico por causa de suas contínuas caminhadas solitárias, durante as quais enchia dúzias de cadernos com fatos históricos, estatísticas, impressões pessoais. Aos vinte e seis anos, tendo que ganhar a vida, abriu uma livraria na movimentada cidade de Coblentz, que possuía a primeira linha de navios do Reno, já então muito utilizada pelos viajantes ingleses em férias, a caminho da Suíça. Farto da livraria, curioso por conhecer o Reno, Baedeker começou a perder cada vez mais tempo explorando-lhe as margens, anotando tudo o que via. Certa tarde de 1827, quando a livraria, por falta de gerência, estava prestes a falir, Baedeker passeava num barquinho a remo no Reno, quando avistou subitamente um cachorro que caíra na água. O dono, na margem, clamava por socorro. Baedeker remou até junto do animal e salvou-o. O dono, muito agradecido, disse chamar-se Dr. Wilhelm Klein e explicou ser autor de um novo guia turístico — A viagem do Reno, manual dos viajantes apressados —, que se destinava a turistas que utilizavam o novo serviço dos navios. O Dr. Klein ofereceu um exemplar do livrinho a Baedeker, que mais tarde lhe diria: “Eu salvei o seu cão, mas o senhor salvou o meu futuro com aquele livrinho”. Ao ler o guia do Reno, Baedeker verificou que era útil, mas incompleto. Achou que poderia fazer um cem vezes melhor. E sentiu imediatamente que seu desejo era combinar seus conhecimentos de editor com seu gosto de viajar e conhecer lugares. Ao saber que o Dr. Klein, muito doente, tencionava liquidar seu negócio, Baedeker tratou de reunir fundos. Vendeu a livraria, pediu dinheiro emprestado ao pai e comprou os direitos do guia de Klein. Reescreveu-o inteiramente, servindo-se das notas que reunira durante suas excursões pelo Reno, e acrescentando-lhes mapas pormenorizados. Manteve o nome do Dr. Klein nesta nova edição, publicou-a e aguardou. Não teve de esperar muito. Em três semanas vendeu toda a edição. Baedeker estava encantado. Descobrira sua vocação. Agora procurava novos mundos para conquistar. Embora soubesse que os guias de viagens não constituíam uma novidade (os peregrinos já os utilizavam na Idade Média), verificou que a espécie de livros que tinha em mente eram uma necessidade absoluta. As guerras napoleô- nicas haviam terminado e os cidadãos comuns, fartos de estar sempre no mesmo lugar, ansiavam por vicjar. Só existia um guia europeu aceitável, um manual sobre os
Países Baixos e a Alemanha, publicado por John Murray, editor inglês. Esse guia, porém, como outros de menor importância, era destinado a viajantes com dinheiro, tempo e instrução. Partia-se do princípio de que as pessoas possuíam carruagens de luxo, um conhecimento prévio das capitais da Europa e amigos ilustres no estrangeiro. Mas e os turistas da classe média? O lojista que dispõe apenas de quatro semanas de férias? O estudante com poucos meios? A moça de família que nunca pôs os pés fora de casa e não sabe nada de nada? Para esses, os países estrangeiros vizinhos eram como a impenetrável selva africana. Para o turista com pouco dinheiro e sem conhecimentos, cada dono de restaurante, cada guia, era como uma ave de rapina. Não existiam grandes agências de viagens que organizassem excursões em grupo. Não havia colunas nos jornais ou artigos nas revistas que lhes dessem conselhos úteis nem indicações. Se os viajantes dessa espécie se arriscavam a sair de sua terra, eram explorados e escarnecidos. Foi essa multidão crescente de turistas tímidos de todo o mundo que Baedeker teve em mente. Resolveu que iria torná-los “independentes dos donos de hotéis, dos intermediários e dos guias”. Mas compreendeu que, para conseguir isso, teria de saber primeiro se era de fato possível viajar rapidamente, com economia e conforto, e ao mesmo tempo visitar todos os lugares importantes e compreender o que se ia vendo. Partiu imediatamente para a sua primeira viagem pela Europa. Dali em diante, e sem interrupção, durante trinta e dois anos — deixando em casa a mulher, Emilie, os quatro filhos e as duas filhas —, andou por toda parte, observando, experimentando, anotando. Viajou a pé, de bicicleta, a cavalo e de diligência. Fez a primeira travessia da Bélgica em estrada de ferro, à velocidade incrível de oito quilômetros por hora. Por toda a Europa, seu rosto sério e redondo, de testa alta e olhos penetrantes, com a boca de lábios grossos, em cima de um corpo que parecia um barril, tornou-se familiar. Em viagem, envergava uma camisa de flanela, calças grosseiras, umas botas velhas e um casaco de viagem. Nas cidades mudava o traje para um casaco comprido preto e gravata da mesma cor. Preferia os quartos voltados para o sul, apreciava cerveja, corridas de cavalos, paisagens de montanha, Paris à noite e, acima de tudo, a honestidade. Nos seus guias, a honestidade vem logo a seguir à limpeza. Desmascarava tudo o que pudesse causar prejuízo aos turistas, e estes lhe eram gratos e confiavam plenamente nele. Malvestido e fingindo um sotaque de provinciano, registrava-se às vezes num hotel qualquer duvidoso de Zurique. Se fosse tratado com esnobismo, relegado a um quarto de segunda categoria, na companhia de percevejos, riscava imediatamente a estrela que acompanhava o nome do hotel no seu guia. Ia muitas vezes jantar incógnito nos restaurantes recomendados de Viena. Se lhe serviam uma sopa aguada, era mais outra estrela que desaparecia do livro. Apesar de essencialmente bem-educado, sabia ser duro como poucos. A princípio, censurava severamente os hotéis vagabundos. Quando a França baniu temporariamente os seus guias, mudou de tática, passando da crítica à omissão, limitando-se a observar secamente: “Quando um hotel não pode ser classificado com exatidão sem que o editor fique sujeito a represálias legais, seu nome não é incluído aqui”. Às vezes, não resistia a um comentário como este: “A aritmética dos criados deixa um pouco a desejar”. Além dos hoteleiros desonestos, outros vilões citados nos seus guias eram os bandidos que conduziam carruagens, os guias que levavam dinheiro a mais e
os punguistas. Mostrava-se igualmente adversário dos pedintes, das gorjetas excessivas e dos que deixavam de visitar os lugares marcados com duas estrelas. Dava avisos constantes contra os alojamentos eventuais: “O viajante não deve dormir em casas particulares a não ser em caso de absoluta necessidade. Por muito poético que seja dormir num palheiro, o ar frio da noite, os chocalhos das vacas, o grunhir dos porcos não proporcionam um repouso compensador”. A despeito desses percalços, nunca perdeu o entusiasmo pelas viagens. “A Europa, para mim, é como um jardim cheio de maravilhosas flores”, escrevia a um amigo. “Esforço-me por ser um bom jardineiro.” Que ele foi um bom jardineiro prova-o o interesse do público pelos seus meticulosos guias da Bélgica e da Holanda, da Alemanha, do Império Austro-Húngaro, da Suíça e finalmente de Paris, o último que ele próprio escreveu, quatro anos antes de morrer. Nesses volumes, a poesia caminha de mãos dadas com o senso prático, como se verifica neste aviso sobre Lourdes: “A procissão das velas oferece um espetáculo feérico (cautela com os punguistas)”. Não só o grande público, mas por vezes até nobres e celebridades adotaram os livrinhos vermelhos de Baedeker. Inúmeras pessoas ilustres, tais como Elizabeth Barrett Browning, Hawthorne, Carlyle, Dickens, Henry James, Mark Twain, Theodore Dreiser, fizeram o gr and tour com um Baedeker em punho. A maioria dos leitores preferiam o volume sobre a Suíça, seguido de perto pelo do Reno, e logo depois pelo de Paris. O guia da Suíça foi publicado pela primeira vez em 1844. Seu êxito e a popularidade de que desfruta há mais de um século (cento e vinte e oito edições) testemunham não só a atração que a Suíça exerce sobre o turista de classe média, como também o valor dos avisos e das sugestões de seu autor, e ainda a atenção que dispensa aos entusiastas da vida ao ar livre. “Seus mapas são os mais caros e valiosos que a firma produziu até hoje”, afirma Otto Baedeker, neto do velho Karl, que vive em Londres. “Cada um deles mostra claramente vários caminhos de montanha, quase todos percorridos pelo próprio autor. Os originais dos mapas foram destruídos durante a guerra e agora temos de fazer outros.” O velho Karl excedeu-se a si próprio neste volume. “Um pequeno saco de viagem basta para conter tudo o que é necessário para uma excursão de uma semana”, escrevia ele. “Um canivete com saca-rolhas, um abridor de latas, uma lanterna de bolso, luvas grossas, uma bússola e uma pequena farmácia, nada disso deve ser esquecido. Igualmente útil, ainda que dispensável, é um binóculo, material de costura, corda, e uma lanterna elétrica.” Porém, antes da partida, Karl avisa: “O viajante muito entusiasmado deve moderar o seu ímpeto logo de início”. Pois é preciso prever inúmeros problemas. Por exemplo, os pés do viajante. Contra o “ardor” excessivo, Karl sugere: “Os pés devem ser friccionados de manhã e à noite com aguardente e sebo. Esfregar com sabão a parte de dentro das meias também é outra boa proteção para a pele”. Quanto à comida: “A água gelada é perigosa e o leite frio também pode ser prejudicial. Um pouco de chá frio e moderadamente açucarado ou uma ameixa seca de quando em quando será o suficiente”. Contra a inevitável diarréia, Baedeker aconselha: “Quinze gotas de uma mistura de tintura de ópio...” Uma vez que os turistas continuavam a acorrer em massa para subir o Jungfrau e o Matterhorn, Karl preparava-os para enfrentar verdadeiros perigos, tais como um es- corregão ou uma avalanche. Em semelhantes casos, “deve ser dado o sinal de alarme agitando uma bandeira ou um lenço na ponta de um pau, assobiando ou acendendo uma luz (lanterna, fogueira, etc.)”. “Em caso de trovoada, é aconselhável procurar abrigo em qualquer lugar propício, evitando cuidadosamente as árvores isoladas e outros objetos proeminentes, sendo preferível, na montanha, deitar-se no chão ao comprido.” Finalmente, depois de
alcançado o cume e de ter regressado são e salvo, resta enfrentar o maior de todos os perigos: a gorjeta. Porém, o velho Karl, sempre atento ao bolso do viajante com poucos recursos, resolve a questão com tato: “No meio das montanhas da Suíça, o viajante avisado saberá quando deve oferecer a cigarreira ou o frasco de conhaque”. Com cinquenta e oito anos, depois de haver alcançado a imortalidade entre os homens obcecados pela mania de viajar, Karl Baedeker reuniu em torno de seu leito de morte, em Coblentz, os quatro filhos e disse-lhes: — Eu mostrei a Europa aos meus contemporâneos. Deixo a vocês a tarefa de lhes mostrar o resto do mundo. Dois dos filhos, Fritz e Karl II, empreenderam essa tarefa. Mas depois de Karl II ter sofrido uma insolação no Egito, Fritz passou a trabalhar sozinho. Embora Karl pai tenha fundado a firma e lhe dado todo o prestígio, foi Fritz quem tornou esse prestígio verdadeiramente internacional. Esforçava-se para que seus empregados raciocinassem não como alemães, mas como cidadãos do mundo. Começou, pois, a publicar edições inglesas e francesas dos guias. À medida que o automóvel e o trem iam suplantando a diligência e que o número dos turistas aumentava cada vez mais, percorrendo distâncias sempre maiores, alcançando o Extremo Oriente, a África, etc., a tarefa de Fritz Baedeker foi se complicando. Compreendeu que o guia turístico não podia ser obra de um homem só. Contratou editores estrangeiros, capazes de preparar os volumes sobre seus respectivos países, encarregando professores e outros especialistas de auxiliá-lo com capítulos especializados, assim como “observadores” para fornecer informações de menor importância. Ao preparar seu primeiro livro sobre Londres, em 1862, contratou cocheiros de carros de aluguel e varredores de rua para obter deles informações, o que lhe permitiu mais tarde escrever no guia: “O estrangeiro fica avisado de que não deve ir a certas casas pouco recomendáveis perto da Leicester Square, já que existem ali algumas de reputação duvidosa”. Ao preparar o volume Suécia e Noruega, em 1879, os seus “observadores” escandinavos relataram certos inconvenientes da região que Fritz comunicou aos leitores: “Os visitantes da Lapônia devem precaver-se com véus por causa das melgas”. Em Coblentz e depois em Leipzig, Fritz tinha vinte empregados para ajudálo a coordenar as informações que choviam de todos os lados. Estudou não só a área de Londres, mas também outros países, regiões e cidades, como a Palestina, o Egito, a Itália, a Suécia, a América do Norte, a Espanha, o Canadá, a Riviera, Constantinopla, a índia e a Rússia. Enquanto o melhor volume do pai era o da Suíça, foi Fritz quem organizou o melhor volume dos últimos tempos sobre o Egito, considerado pelo Mancbester Guardian como “um dos guias mais formidáveis que já se organizaram”. Esse volume, publicado pela primeira vez em 1878, teve oito edições, a última em 1929. O editor-assistente que trabalhou com Baedeker foi o Professor George Steindorff, egiptólogo, da Universidade de Leipzig, que depois se transferiu para Nova York. Através das quatrocentas e noventa e cinco páginas desse volume, desfila uma variedade infinita de assuntos, que vão desde os “cafés” árabes aos dialetos egípcios, ao Nilo, aos usos e costumes dos maometanos, às principais divindades e animais sagrados dos egípcios. Dedica capítulos inteiros aos hieróglifos e à arquitetura islâmica. Apesar desse primor de erudição, considerado por todos como uma obra de arte, nunca Fritz Baedeker esqueceu seu público principal. Existem no livro
mapas e plantas de cidades, e a Grande Pirâmide vem descrita de modo a satisfazer o turista mais sedentário. “A subida à pirâmide, embora fatigante, é perfeitamente segura”, afirma Fritz aos seus leitores. “O viajante escolhe dois entre os importunos beduí- nos e parte do canto que fica a nordeste. Ajudado pelos dois beduínos, começa a subir os degraus, chamando em caso de necessidade um terceiro (não paga mais por isso) que o empurrará por trás.” Muitas vezes, os guias querem apressar o turista, mas Fritz aconselha: “O viajante deve insistir em descansar sempre que sinta necessidade. ‘Calem-se, do contrário não pago nada!’ é uma frase que dará sempre resultado. Não se deve dar ouvidos às exigências quanto à bakshish (Gorjeta em turco ou egípcio - N. do T.), e é bom tomar conta dos bolsos”. Quanto à exploração do interior da pirâmide, Fritz avisa: “Os visitantes, sujeitos ainda que de longe a apoplexias ou a desmaios, e as senhoras que viajam sozinhas não devem arriscar-se a entrar nesses recintos fechados. O chão é por vezes escorregadio e o ar cheira horrivelmente a morcegos”. Além de ser o autor principal desse guia, considerado o melhor, Fritz ajudou também a elaborar grande número de outros com menos fama. Índia, publicado em 1914, foi o volume mais difícil e trabalhoso que a firma publicou. Levou quatro anos sendo preparado, e vendeu mal em virtude de haver poucos turistas dispostos a visitar aquela região. Palestina e Síria, publicados por Baedeker em 1875, obtiveram melhor resultado, embora tivessem ajudado a derrotar a pátria de Fritz na Primeira Guerra Mundial, visto que o General Allenby, grande admirador dos guias Baedeker, utilizou a edição de 1912 deste livro para combater os turcos. Itália, publicado por Fritz em 1872, revelou-se o livro mais discutido de toda a lista. Fritz considerava Nápoles muito pouco limpa, opressivamente quente em setembro e fervilhante de mendigos (os quais, escrevia ele, eram fáceis de enxotar com “um ligeiro movimento de cabeça para trás, acompanhado de uma expressão algo desdenhosa”). A Câmara do Comércio de Nápoles protestou oficialmente junto ao governo alemão. Ao mesmo tempo, os farmacêuticos italianos de Roma ameaçavam processar Baedeker por ter prevenido turistas de que deviam comprar seus remédios apenas em drogarias cujos proprietários fossem americanos ou britânicos. Os gondoleiros de Veneza sentiram-se igualmente ofendidos. Acusaram Baedeker de caluniar sua galanteria (ele limitarase a dizer que os gondoleiros muitas vezes eram incorretos para com as senhoras e a aconselhar os cavalheiros sensatos que as acompanhavam “a apresentar queixa” deles em vez de atirá-los ao canal). Baedeker, lamentavam-se, estava tirando-lhes o ganha-pão (ele apenas aconselhara cuidado, ao sair das gôndolas, com os “degraus escorregadios”, acrescentando a frase fatal: “A gorjeta não é obrigatória”). O guia sobre a América do Norte, que ficou em mais de cem mil dólares, publicado em 1893, foi a primeira incursão da firma no Novo Mundo, e o volume mereceu o maior cuidado do editor. O Visconde James Brice, embaixador britânico nos Estados Unidos, foi contratado para escrever um capítulo inteiro sobre a Constituição do país. Baedeker aconselhava a visita a muitos locais da América. Marcava com duas estrelas o Parque Nacional de Yellowstone, a Coleção Morse de Cerâmica Japonesa, em Boston, as cataratas do Niágara (“talvez a maravilha da natureza mais impressionante que existe na América”). Por outro lado, muita coisa o preocupava: “Faltam casas de banho públicas em Nova York, a arquitetura de San Francisco é abominável, as docas de Chicago só podem interessar a pessoas capazes de contemplar a sangue-frio autênticos assassinatos e san grias”. Assinalavam-se ainda mais barbaridades, porém felizmente, na
edição de 1909, Baedeker pôde acrescentar: “De um modo geral, o país oferece agora a mesma segurança que as regiões mais civilizadas da Europa e o porte de arma torna-se desnecessário”. O atual diretor dos guias Baedeker, Karl, confessa que o maior prejuízo da firma ocorreu nesse período: “Fritz Baedeker preparou, com uma enorme despesa, um guia sobre a Rússia, que apareceu em 1914, nas vésperas da guerra. Esse acontecimento e a ação do governo comunista não tardaram por desatualizar o livro. Perdemos uma fortuna”. No entanto, Rússia, juntamente com Teerã, Port Ar- thur e Pequim — manual para viajantes, continua a constituir uma curiosidade apaixonante do passado recente. Antes de 1914, não havia Cortina de Ferro (“o visto é válido para seis meses”) e os observadores de Baedeker conseguiram organizar quarenta mapas pormenorizados, setenta e oito plantas de cidades e quinhentos e noventa páginas de informações exatas. No entanto, os turistas eram avisados das possíveis dificuldades que iriam encontrar. “Não convém utilizar papel impresso para embrulhos, a fim de evitar suspeitas”. Fritz só encontrara um único hotel em Moscou merecedor de uma estrela. Quanto a visitas históricas, poucas aconselhava como importantes. Uma destas era o Kremlin: “No centro da cidade, sobre uma colina e dominando toda a cidade, ergue-se o Krêmlin (duas estrelas), no qual se encontram reunidas todas as reminiscências do passado de Moscou. Para os russos, o Krêmlin é um lugar sagrado”. Embora poucos turistas tivessem utilizado esse volume, houve um comprador que lhe achou utilidade. Foi o general inglês Staff, durante a Primeira Guerra Mundial, que comprou todos os exemplares que encontrou, a fim de iniciar seus oficiais nos costumes, usos e principais dados sobre os russos. Depois da morte de Fritz Baedeker, em 1925, seu filho Hans o substituiu, até 1946, ano em que se viu forçado a aposentar-se por causa dos comunistas. A partir daí ficou em seu lugar o sobrinho, Karl Baedeker, então com quarenta e quatro anos, em sociedade com os primos Otto e Hans. O atual Karl esteve no exército alemão durante a Segunda Guerra Mundial e estacionou nos Bálcãs com as forças de ocupação. Era encarregado de acompanhar os camaradas em visitas à Grécia, onde fez conferências sobre tudo o que via. E, pensando no futuro, procurava informar-se sobre certos lugares. Recorda-se de ter escalado cinco vezes uma montanha na Iugoslávia, com cerca de quatro mil metros de altitude, a fim de descobrir qual o caminho que oferecia uma melhor vista panorâmica, para recomendá-lo aos turistas num projetado guia dos Bálcãs. Hoje, Karl Baedeker trabalha, mas lutando com falta de recursos, na residência particular dos sogros, perto de Hamburgo, onde vive com a mulher e dois filhos. Confessa que está numa situação difícil. — Investimos tanto dinheiro nos guias que pouco nos resta de lucro. Já tivemos muitas propostas de banqueiros, que nos ofereceram capital, mas recusamos todas. Eles querem lucros rápidos e isso nos obrigaria a baixar de nível, o que não daria qualquer resultado. Tal como Karl, Otto e Hans preparam cuidadosamente seus novos guias de Paris, Suíça e Itália, continuando a seguir os moldes legados pelo fundador. Embora não estejam certos de aprovar muito o velho sistema de estrelas, ainda o seguem. — Este sistema de estrelas é o nosso ponto fraco — afirma Otto Baedeker. — Existem muitos turistas apressados que se convencem da necessidade de ver todos os locais marcados com duas estrelas, embora isso os chateie. E depois de
chateados põem a culpa no guia. Mas por que motivo vão a um museu de arte quando detestam a arte? Só porque vem marcado com duas estrelas? E, se gostam de ciência, por que não vão a um museu de ciência, ainda que não traga estrela nenhuma? No moderno guia de Londres, os velhos lugares, tais como a Torre de Londres, a Pedra de Rosetta, o Castelo de Windsor, tudo continua a manter a classificação de duas estrelas. Nos volumes futuros, o Coliseu de Roma, São Pedro e o Louvre vão passar a ter duas estrelas também. A família Baedeker, porém, confessa que essas estrelas poderão ser retiradas ou acrescentadas, depois de algumas décadas de reflexão. Os atuais Baedeker também seguem a política da crítica por omissão. — Não nos compete criticar o trabalho dos homens — afirma Otto. — Nada, na realidade, é mau. Quando não gostamos de alguma coisa, falamos dela moderadamente. A maior parte das vezes nem sequer a mencionamos. Essa regra passou a ser observada severamente depois da publicação do guia Baedeker sobre a Palestina e a Síria. Nesse volume, falando sobre um restaurante que se lhe revelou pouco honesto, Fritz Baedeker escreveu: “Proprietário árabe; combinem os preços antecipadamente”. Cheio de indignação, o árabe processou Baedeker por difamação e calúnia, ganhando uma boa indenização. Dali em diante, Baedeker instituiu sua política de omissão e baniu o nome do restaurante de seus futuros guias. O árabe, admirado com a omissão e ao ver a clientela diminuir, resolveu escrever a Fritz, oferecendo-se para lhe restituir o dinheiro se ele reintegrasse o seu restaurante no guia. Fritz recusou. Atualmente o que mais ocupa a família Baedeker é a investigação e não a crítica. As armadilhas abundam. — Afinal de contas onde está a verdade? É tudo uma questão de ponto de vista. Quem ganhou a Batalha de Wa- terloo? Depende do lugar onde se vive. Os ingleses afirmam que foi Wellington. Os alemães teimam que foi Bluecher. Devese a uma divergência de pontos de vista a maior demanda judicial em que nos vimos metidos quando duas cidades da Bélgica nos processaram em 1933. Essa famosa ação foi provocada por duas afirmações que vinham no guia Bélgica, edição de 1930. Primeiro, Baedeker afirmava que os cidadãos de Aarschot haviam matado um coronel alemão que comandava as forças de ocupação da cidade em 1914, e que os alemães, em represália, haviam executado cento e cinquenta e oito belgas e queimado a cidade. Em segundo lugar, Baedeker declarava que os habitantes de Dinant haviam disparado sobre as tropas que entravam na cidade e que, como vingança, os alemães tinham executado seiscentos e sessenta e nove cidadãos. Enraivecidos pelo que consideravam uma falsificação dos fatos, as municipalidades de Aarschot e Dinant contrataram dois antigos ministros da Justiça da Bélgica para representá-los e citaram Baedeker. O caso foi resolvido pelo tribunal de Bruxelas. Os belgas alegaram que o coronel alemão não fora morto por eles, mas por seus próprios homens, e que os alemães haviam sido alvejados não por belgas, mas sim por tropas francesas em retirada. Baedeker defendeu-se dizendo que as afirmações do guia eram baseadas em documentos de guerra alemães, que se haviam travado combates de guerrilhas nos Países Baixos, que a firma só tinha em vista promover o bom entendimento entre as nações. A sentença foi proferida contra Baedeker, que se viu obrigado a pagar as custas do processo, além de ter de mandar publicar a sentença em dez jornais europeus. Baedeker protestou através do Times de Londres e da Liga das Nações, mas teve de acabar por se submeter à decisão belga. Desde aí os editores
dos guias Baedeker nunca mais perderam de vista que os fatos podem ter duas interpretações. Ao prepararem os novos guias, confessam que tentam acompanhar as mudanças de gosto dos turistas. Cada geração considera um momento histórico com olhos diferentes. Habitualmente, existe concordância entre os turistas do passado e os de hoje. Mas, quando tal não se verifica, Baedeker é de opinião de que a divergência deve ser descoberta e anotada. Cita-se o Albert Memorial, em Londres, como o perfeito exemplo da inconstância dos viajantes. No volume Londres e seus arredores, de 1878, havia meia página consagrada ao Albert Memorial, que começava assim: “Ao sul dos Kensington Gardens, entre Queen’s Gate e Prince’s Gate, perto do local da Exposição de 1851, ergue-se o Albert Memorial estrela), magnífico monumento erigido a Albert, o falecido príncipe consorte (falecido em 1861), pelo povo inglês, e que custou cento e vinte mil libras”. Em 1930, o Albert Memorial estava reduzido a um quarto de página e já não era um “magnífico monumento”, mas apenas um “vistoso monumento”. Em 1951, o Albert Memorial ocupava apenas cinco curtas linhas, tinha sido destituído da sua única estrela e, embora continuasse a ser classificado de “vistoso”, Baedeker confessava que deixara de despertar a “admiração universal”. Embora os atuais Baedeker concordem em que vão mudando com os tempos e tentem estar a par do gosto moderno nos seus livrinhos vermelhos, permanecem inflexíveis quanto a uma certa tradição. Procuram ser tão exatos nos seus guias quanto o foi o velho Karl nos que publicou há mais de um século. Concordam plenamente com os versos de A. P. Herbert, escritos para uma cena de turismo, na comédia musical inglesa intitulada La vie parisienne: “Podem enganar-se os governos e os reis, Mas nunca o Sr. Baedeker”. O que aconteceu depois. . . Sempre me senti atraído pela lenda dos Baedeker. Já em 1953, quando sugeri à revista Reader’s Digest escrever uma história sobre o fundador da firma e sua família, bem como sobre seus livros, o projeto foi logo aceito. No verão de 1953, dirigi-me à Inglaterra, a fim de encontrar-me com Otto Baedeker, um dos três netos do fundador. Otto, então com vinte e oito anos, estava temporariamente de licença em Londres, trabalhando com a editora Allen & Unwin. Encontrava-se ali sobretudo para aperfeiçoar o inglês e adquirir conhecimentos sobre as técnicas editoriais da Inglaterra e dos Estados Unidos e, visto Sir Stanley Unwin, um dos chefes da companhia, ser velho amigo da família Baedeker, Otto era informado conscienciosamente. Obtive muitas informações na Europa continental para o meu artigo, mas foi Otto Baedeker, em Londres, quem me deu os melhores elementos. A história destinada à Reader’s foi bem recebida pelos editores. No entanto, apareceu apenas na edição alemã, por ser a única nação da Europa onde os guias Baedeker haviam reconquistado sua posição de antes da guerra. Meu interesse pela lenda Baedeker não se desvaneceu, e quando resolvi incluir sua história neste livro, o que seria a sua estréia em inglês, comecei a imaginar as possíveis modificações sofridas pela antiga firma alemã durante a passagem dos anos, desde 1952. Em 1964, descobri o paradeiro de Otto Baedeker, que havia regressado à pátria, e em 1965 fiz uma entrevista por escrito com ele. Fiquei sabendo que minha história publicada em alemão continuava válida, exata,
e que as únicas mudanças importantes diziam apenas respeito a alguns membros da família, à localização da firma e à expansão da editora. Em 1953, portanto dez anos após a destruição das oficinas principais de Leipzig, o mais velho dos três netos, Karl Baedeker, estava trabalhando numa casa pertencente à família da mulher, em Malente, uma estância termal em SchleswigHolstein. Quando se chegou à conclusão de que os guias Baedeker tinham tanta procura como antes e quando a primeira edição revista do pós-guerra começou a circular, Karl resolveu incrementar o negócio. Em 1956, fundou a Editora Karl Baedeker na cidade universitária de Friburgo, no sudoeste da Alemanha, onde ainda hoje se encontra e prospera. Karl, que tem agora cinquenta e seis anos, dirige a parte industrial, e delegou ao primo, de quarenta anos, Otto Baedeker, a chefia da parte editorial e das edições em língua estrangeira. O terceiro dos atuais Baedeker, Hans, de trinta e cinco anos, é o superintendente técnico e editorial de um ramo da firma existente em Stuttgart, a Baedekers Autofuhrer Verlag. Essa empresa é o resultado de uma sociedade que os Baedeker formaram com o Dr. Volkmar Mair, o primeiro editor europeu de mapas automobilísticos. Os Baedeker controlam a política editorial desse ramo subsidiário, que produz os Guias Turísticos Baedeker. Segundo Otto Baedeker, “essa aventura foi coroada de êxito. Os Guias Turísticos Baedeker constituíam de certo modo uma forma contínua de orientação para os motoristas e para os viajantes que não se demoram muito tempo no mesmo lugar e que preferem dar uma volta rápida pelo país”. Esses guias condensados para viagens de automóvel são a maior concessão que a família Baedeker fez, até hoje, à era do jato. Segundo explica a brochura, “quando foi publicado o primeiro guia Baedeker, os viajantes andavam de diligência, percorrendo cerca de vinte e cinco ou trinta quilômetros por dia. Agora pode-se atingir de automóvel, em poucas horas, o coração da Europa”. Esses guias especiais para motoristas compõem-se sobretudo de mapas de estradas, informações sobre as distâncias, listas de hotéis à beira das estradas. Existem desde 1953 edições inglesas destinadas à França, aos Países Baixos, à Itália, à Escandinávia, à Espanha, à Suíça, à Áustria e à Alemanha. Os mais populares das edições inglesas são os da Espanha e da França. Das edições alemãs, os da França e do norte da Itália. Fiquei pensando no que achariam de tudo isso os velhos Baedeker, que consideravam uma viagem de trem uma verdadeira aventura, e perguntei a Otto o que fora feito deles. Recordo-me de ter sabido notícias do pai de Karl, Hans Baedeker, de setenta e três anos, e do pai de Otto e de Hans, o Dr. Dietrich Baedeker. Haviam tentado ressuscitar a firma em Leipzig, após a Segunda Guerra Mundial e os russos lhes retiraram a licença de editores em virtude de uma “escorregadela” editorial e, segundo eu dissera no meu artigo, “haviam desaparecido no anonimato da zona oriental”. Vim a saber agora que o mais velho, Hans Baedeker, morreu em 1959, com setenta e cinco anos. E que o Dr. Dietrich ainda vive, mas está aposentado. Tinha curiosidade em saber qual o volume editorial dos filhos depois de terem se mudado para Friburgo. Recordava-me de que, entre 1827 e 1953, haviam sido publicados trinta guias em inglês e cinquenta e sete em francês e alemão. Que teria acontecido depois? — Desde que a firma retomou suas atividades depois da guerra — declarou Otto Baedeker —, saíram trinta e oito guias em alemão e dezoito em inglês, tendo cada um deles várias edições. Desde 1827 até 1964, foram publicados noventa e dois guias em alemão, trinta e três em francês, e quarenta e cinco em inglês. Isso
não parece muito, mas é preciso recordar que cada volume tem várias edições, alguns mais de quarenta, e que cada nova edição é inteiramente revista e constitui quase um livro novo. O número dessas edições deve, portanto, ser mais significativo: setecentas e quarenta edições alemãs, duzentas e sessenta e oito francesas e trezentas e trinta e uma inglesas — mil trezentas e dezenove edições ao todo. Se tivermos ainda presente que todos os novos títulos e a maior parte das novas edições passaram pelas mãos de um Baedeker, faremos uma ideia do trabalho executado por quatro gerações. Empregando as mesmas técnicas exaustivas de investigação que descrevi no meu primeiro artigo — com a diferença, afirma Otto, “do andamento ultrarápido deste mundo do pós-guerra, que tornou necessárias muitas pesquisas” — , os Baedeker mais novos publicaram, só em inglês, novos guias da Itália, da Córsega, do sul da Baviera, da Iugoslávia, da Escandinávia, bem como outros dedicados especialmente a certas cidades, entre elas Colônia, Frankfurt, Munique, Salzburgo e Berlim. Karl Baedeker I não teria reparos a fazer, calculamos nós, nos guias publicados pelos netos. Neles, poucas concessões se fazem aos turistas interessados na velocidade e na condensação. O Herald Tribune, de Nova York, elogia a “exatidão e a fidelidade tradicionais” dos guias Baedeker e considera os novos exemplares “um modelo do que deve ser um guia turístico”. Quando apareceu Itália, em 1963, o jornal The Listener, de Londres, considerou-o “o melhor, ainda o mais econômico, em suma. . . o mais simples e o mais erudito de todos os guias. . . que não deixa nada por ver, nenhum fato por assinalar, na sua análise de tudo”, objetando apenas que “o amontoado de informações que tem torna-o de certo modo um livro difícil de ler durante uma noite de inverno”. Dois guias Baedeker publicados recentemente em língua inglesa, um sobre a Escandinávia e outro sobre a Iugoslávia, obtiveram, na opinião dos editores americanos, “um relativo êxito neste país”, podendo atribuir-se isso ao fato de a Iugoslávia e a Escandinávia não serem regiões muito ao agrado dos viajantes americanos, como também à irritação que os americanos demonstram perante a exatidão alemã. De resto, em todo o mundo e especialmente na Europa, os guias Baedeker vendem com extraordinário êxito. O último a triunfar foi um sobre Berlim, com texto em alemão, publicado no princípio de 1964. Sua análise da grande capital era de tal modo pormenorizada que o presidente da Câmara dos Representantes de Berlim ofereceu um exemplar a cada membro. — Um ano depois de sua publicação — diz Otto Baedeker — estavam vendidos mais de dez mil exemplares, na sua maioria a berlinenses. Isso demonstra que o livro preenche um duplo fim: primeiro auxiliar o turista, em segundo lugar servir de ponto de referência. Hoje em dia, os guias Baedeker possuem tudo para atrair a atenção e a curiosidade dos leitores e os dólares dos turistas americanos. Nos próximos dez anos vão aparecer guias Baedeker, em inglês, sobre a Grã-Bretanha e as cidades de Londres, Paris e Roma. Como complemento, haverá também guias automobilísticos sobre a Alemanha, a Turquia e toda a Europa, em inglês. Para mim resta ainda uma só pergunta: continuarão a fazer uso do antigo sistema de estrelas para classificar os locais e, caso afirmativo, haverá algumas alterações nas estrelas que existem? A essa pergunta replicou finalmente Otto Baedeker:
— Não, o sistema de estrelas, tal como existe até hoje, não será modificado nos próximos dez anos. Claro que talvez algumas venham a desaparecer. Um certo pintor pode muito bem ter sido muito apreciado na virada do século e hoje ter decaído na preferência do público. Ou um edifício que, no momento da sua construção, constitua uma complicada obra de engenharia, pode depois passar despercebido. Mas essas são mudanças graduais que em nada afetam o sistema de estrelas na sua essência. Otto Baedeker prontificou-se a exemplificar o modo como o sistema de estrelas tem se mantido atualizado. — As pinturas pré-históricas nas cavernas de Altamira, Espanha, têm atualmente duas estrelas, ao passo que, antes da guerra, estavam apenas assinaladas com uma, porque, nessa altura, o interesse despertado pela arqueologia era menor do que hoje. Um novo local com duas estrelas é a Torre da Televisão em Stuttgart, que foi a primeira construção no seu gênero e representa um grande feito de engenharia. Depois, tal como sucedera há tantos anos em Londres, Otto Baedeker recordou-me que o sistema de estrelas não deve ser tomado demasiadamente em conta. — Claro que temos o máximo cuidado ao colocar as estrelas. Mas longe de nós achar que “quem viu os locais marcados com estrela viu tudo”, e que a cultura e o cenário de um país podem ser condensados em meia dúzia de locais marcados com estrelas. Digo isso porque já houve quem nos censurasse por induzirmos as pessoas a correr de uma estrela para outra. Consideramos isso uma injustiça. Em primeiro lugar, tentamos dar informações exatas, equilibradas, e indicar o que, na nossa opinião, é importante. Mas não podemos ser responsáveis pelo uso que as pessoas fazem dessas informações. Em segundo lugar, é naturalíssimo que os turistas americanos, por exemplo, dispondo de um tempo limitado para visitar a Europa, se restrinjam ao que salta mais à vista. Eu estava satisfeito. Poucas alterações se haviam verificado quanto ao Baedeker, desde 1953, ou até mesmo desde 1827. Numa nova época de afluência, uma época surpreendente de horizontes ilusórios, muitos de nós temos tendência para procurar o que é finito, conhecido, que nunca falha. A morte, sim. Os impostos, com certeza. E sempre o guia Baedeker. No meu livro, claro, o guia Baedeker tem duas estrelas.
9 O expresso das aventuras Uma noite, no fim do inverno de 1930, o trem internacional mais extraordinário que existe, ou seja, o Expresso do Oriente, que atravessava a Turquia na fase final de sua viagem de Paris até Istambul, foi apanhado por uma tempestade de neve. A princípio o granizo, e depois a própria neve, que caía em turbilhões, atapetaram os trilhos, e o Expresso do Oriente, depois de ter diminuído a marcha, acabou por parar de todo. Em redor do trem imóvel a tormenta crescia em intensidade. Dentro de poucas horas, a neve já se acumulara um pouco e pela madrugada obscurecia as janelas dos carros-lei- tos. Os treze passageiros — a maior parte dos outros desembarcara em Lausanne, Milão e Belgrado — encontravam- se cercados por uma fortaleza branca. Esses treze passageiros, conforme o pessoal da WagonsLits jurava mais tarde, representavam precisamente treze nações diversas. Um deles era uma condessa italiana muito magra, com roupas decotadíssi- mas; outro, um jovem diplomata inglês; o terceiro, um americano, advogado de uma companhia; e, entre os vários casais, encontrava-se um ex-oficial prussiano com sua linda noiva suíça. Os empregados do Expresso do Oriente, maquinistas, condutores, cozinheiros, etc., presididos pelo chefe do trem, reuniram imediatamente um conselho de guerra no carro- restaurante. Alguns já haviam sido bloqueados pela neve em viagens precedentes, até durante quatro dias, e sabiam que desta vez o bloqueio devia durar ainda mais. Sua primeira preocupação era evitar que os passageiros, estando presos dentro de uma muralha de neve e sendo de diversas nacionalidades, se tornassem irritáveis, turbulentos e até mesmo perigosos. Instituiu-se uma lei que logo foi anunciada, com toda a firmeza possível: os passageiros não deviam discutir política uns com os outros. Poderiam falar nostalgicamente de suas terras, dos amigos, de suas experiências; era permitido conversar sobre arte, literatura, ciência, sexo, esportes, mas nada de política. Isso constituía uma medida de segurança que o pessoal do Expresso do Oriente, eles próprios representando sete nacionalidades, observava em suas viagens entre Paris e Istambul e que evitara sempre atritos no decorrer de quase meio século. Estabelecida essa censura, todos puseram mãos à obra, misturando a esperança de socorro ao aborrecimento. Como depois se verificou, aborrecimento era coisa que não existia e o socorro demorou bastante. Deram ao primeiro cozinheiro poderes absolutos quanto ao racionamento. Em vez de três suntuosas refeições por dia, ele fornecia apenas um magro repasto, visto que o comboio, perto do fim da viagem, se encontrava com as reservas quase esgotadas. No sexto dia, o desastre parecia inevitável. Acabaram- se os víveres e, ao fim da tarde, tal como acontece nas mais fantásticas histórias de aventuras, os lobos começaram a uivar. No sétimo dia, ninguém conseguiu descansar. A neve derreteu, diminuiu ligeiramente de altura, e os passageiros, exaustos, ao espreitarem pelas janelas, avistaram os lobos, à distância, vagando em círculo à volta do trem. Os condutores foram buscar três espingardas e organizaram turnos de sentinela, nas plataformas abertas, entre os vagões. O problema da alimentação chegava a desesperar visto que não havia meio de comunicação com o mundo exterior nem como saber quando chegariam socorros. O carvão não tardou a esgotar-se também, e o trem passou a ficar gelado. Os passageiros estavam sozinhos, encolhidos dentro de seus compartimentos, e famintos. Quando a água faltou também, todo o otimismo desapareceu.
O pessoal do Expresso do Oriente não se desesperou. O segundo cozinheiro, com o engenho de um Robinson Cru- soé, resolveu o problema da água. Começou a derreter a neve, fervendo depois a água obtida, e isso já foi uma ajuda. Enquanto isso, os outros iam tentando escavar um túnel através da neve, porém os dois primeiros ruíram após meia dúzia de metros. Começaram a abrir um terceiro. Este, escorado com o mobiliário do trem — as cadeiras de veludo, as poltronas de seda, os beliches desmanchados — aguentou-se e, ao nono dia, os exploradores chegaram à luz. Os condutores, armados contra os lobos, saíram para fora e, após uma breve exploração, encontraram um caminho meio sólido. Pelo horário do trem, sabiam estar perto da aldeia de Tcherkeuy, e era essa sua única esperança. Dois condutores, envergando roupas leves e enterrando-se na neve por vezes até a cintura, partiram em busca de socorro. Os passageiros ficaram mais um dia encurralados no trem, à espera, ora passeando ora rezando. Até que o auxílio chegou. Os condutores, guiados por um lavrador turco, regressaram num trenó primitivo. Haviam encontrado a aldeia, comprado carne e carvão, e todos teriam cabrito assado para o jantar. Tinham telefonado contando o acidente e sabiam que o socorro estava a caminho, partindo de várias direções. No décimo dia, os soldados turcos, em trenós puxados por cavalos, chegaram com os primeiros socorros em alimentos e vestuário. No dia seguinte, veio um limpador de neve que partira da Suíça. Pouco depois, terminada a sua aventura, o famoso Expresso do Oriente, com duas semanas e meia de atraso, entrou em Istambul e desembarcou os seus treze exóticos e esgotados passageiros. Tais ocorrências, embora consideradas usuais pelo pessoal bem-treinado do Expresso do Oriente, constituem o material que envolve toda a literatura de suspense. Por exemplo, cinco anos após o incidente de Tcherkeuy, Agatha Christie, que muitas vezes acompanhava seu marido arqueólogo em suas viagens no Expresso do Oriente, a caminho de qualquer escavação no Oriente Próximo, escreveu um romance de suspense intitulado Assassinato no Expresso do Oriente. O mistério ali descrito, embora não seja baseado no caso de Tcherkeuy, foi pelo menos sugerido por algumas das tragédias do gênero que aconteceram ao Expresso do Oriente. “Nas altas montanhas da Iugoslávia”, lê-se na orelha de uma das edições do romance de Agatha Christie, “o Expresso do Oriente, que corria vertiginosamente em direção ao norte, foi detido por uma violenta tempestade e uma forte nevasca. Uma das cabines do vagão de Calais era ocupada pela mais interessante de todas as personagens das histórias policiais, Hercule Poirot. Noutro, jazia o corpo de um homem assassinado!” Entre as pessoas isoladas no comboio de Agatha Christie, encontrava-se um coronel britânico de regresso da índia, o diretor belga da Wagons-Lits, uma jovem dama inglesa de Bagdá, um agente comercial americano, uma princesa russa-branca, um diplomata húngaro, uma criada alemã, uma missionária sueca e, claro, o corpo esfaqueado. Os exigentes apreciadores desse gênero de história dirão que o livro de Agatha Christie exagerou um pouco. Contudo, o viajante experimentado não terá dúvidas em confirmar que o Expresso do Oriente é uma instituição que não desilude ninguém — ao contrário, oferece a todos uma experiência romântica, uma das poucas ainda possíveis, onde a realidade se mistura com a ficção. Sim, o Expresso do Oriente é simplesmente deslumbrante, e não qualquer atração vulgar. Não é tão rápido como o Super Chief, que parte da cidade de Los Angeles e atravessa os Estados Unidos, nem tão pontual como o Royal Scott, que vai de Londres a Edimburgo, nem tem um percurso tão longo como o
Transiberiano, que segue penosamente de Moscou até Vladivostok, em nove dias. Em vez de recordes de velocidade, longevidade ou distância, o Expresso do Oriente, o primeiro e o mais internacional de todos os trens, oferece-nos romance. Numa só viagem, que dura dois dias e três noites, o Expresso do Oriente atravessa sete fronteiras, mais do que qualquer outro trem do mundo. É o único cuja passagem de país para país foi estabelecida por tratados diplomáticos entre os governos e não simples contratos entre as companhias de estradas de ferro. Mais importante de tudo, ele une dois mundos. Ao ligar Paris, metrópole da Europa Ocidental, com Istambul, o colosso do Oriente Próximo, consegue que, pelo preço de uma simples passagem, as duas rivais se encontrem três vezes por semana! Além da viagem, além do tão apregoado luxo de suas instalações, há qualquer coisa que faz do Expresso do Oriente a mais colorida e dramática organização rolante da terra. São as pessoas que nele se encontram. Embora o Expresso do Oriente, tal como muitos dos seus mundanos similares da América, transporte a sua cota de agentes comerciais, sua especialidade continua a ser, tal como já era em 1883, os agentes secretos femininos envoltos em casacos de vison, os homens barbudos de monóculo, os rostos impenetráveis dos chefes dos cartéis de armamentos, as belas damas em apuros, as realezas em fuga. “Ah, se eu tivesse a pena de Balzac, saberia descrever esta cena”, suspira uma personagem de Agatha Christie, ao observar os tipos que viajam no Expresso do Oriente. “À nossa volta vêem-se pessoas de todas as classes, de todas as nacionalidades, misturadas. Dormem e comem sob o mesmo loto e não podem afastar-se umas das outras. Ao fim de três dias, separam-se, e cada qual segue o seu caminho, talvez para nunca mais se encontrarem.” Esse trem não faz nenhuma viagem que não tenha o seu drama estranho. O elenco das personagens, sobretudo antes da Segunda Guerra Mundial, incluía muitas vezes Franz von Papen, o Rei Miguel da Romênia, Greta Garbo, Tosca- nini, o Rei Jorge da Grécia, W. Somerset Maugham, Pierre Lavai, Sonia Henie, Edda Ciano, o Rei Gustavo da Suécia, Philippe Pétain, Lily Pons, o Barão Edouard de Rothschild, o Rei Bóris da Bulgária, a Duquesa de Kent, Maurice Che- valier, o Duque de Windsor, o Rei Afonso de Espanha, Mar- lene Dietrich. O pessoal do Expresso do Oriente lembra com amizade a figura do Papa Pio XII, habitual passageiro, ainda como Cardeal Pacelli. Costumava conversar com os condutores e com os companheiros de viagem, num francês corretíssimo, penetrando muitas vezes em suas vidas íntimas e escutando seus problemas. Depois, costumava retirar-se para a sua cabine, deixando a porta aberta, e viamno batendo a uma máquina de escrever portátil branca. Já o gordo Aga Khan, com os seus cento e vinte quilos, descendente direto de Maomé, não merecia do pessoal a mesma consideração. Aquela montanha deJcarne com olhos de coruja estava sempre distante, pouco comunicativo, e passava horas e horas imóvel, enquanto o secretário lia para ele em voz alta um livro ou um jornal qualquer. Muitas vezes viajavam também no trem o ex-Rei Carol e sua rechonchuda Pompadour, Magda Lupezco. Visto não viverem abertamente juntos na Romênia, procediam com a mesma discrição no Expresso do Oriente, viajando cada qual na sua cabine. A maioria dos passageiros, no entanto, não eram altas personalidades, mas nem por isso se tornavam menos interessantes. Havia a francesinha vestida por Schiaparelli, submersa num montão de orquídeas, que se despedia com um beijo do marido velho, deitava uma lágrima, subia para o trem e, mal este se punha em andamento, ia juntar-se a um jovem artista tcheco na cabine deste. Havia a
condessa francesa que fazia aquela viagem todos os meses, que abordava os ricos industriais durante o jantar e vivia dos valiosos presentes que conseguia extorquir-lhes. Havia também a condessa italiana espertalhona, fingindo-se de ingênua, que roubava joias. E o mais notável de todos, aquele pequeno inglês muito pacato, de cabelos vermelhos revoltos e sorriso fácil, que, quando o Expresso ia transpor uma ponte de grande altura, nos Alpes Suíços, caiu repentinamente do trem, indo encontrar a morte centenas de metros abaixo. A polícia francesa, sagazmente dirigida por Vidoc e Bertillon, investigou minuciosamente o trem, bem como todas as bagagens, à cata de indícios, interrogando todos. Mas nunca se soube por que motivo ele caiu, se saltou ou foi empurrado. Em virtude desses incidentes, e porque tudo acontece (e se encontra todo tipo de gente) no Expresso do Oriente, é que os escritores de aventuras internacionais, como Agatha Christie, Eric Ambler, Leslie Charteris, Georges Simenon, Graham Greene, continuam a dar lugar de relevo a esse trem nos seus romances. Pela mesma razão também, os produtores de Hollywood utilizaram esse grande hotel itinerante para cenário de filmes de suspense, e alguns dos clássicos do cinema inglês de aventuras (como Alfred Hitchcock em A mulher oculta e Carol Reed em Gestapo) ambientaram suas intrigas no Expresso do Oriente, ou numa imitação deste, embora tenham tomado liberdades dramáticas atrelando ao trem vagões diurnos carregados de gente (liberdade proletária que os proprietários do trem nunca permitiram nos dias faustosos de antes da guerra), de modo a poderem exibir ao mesmo tempo todos as personagens diante da câmara. Quando começou a Segunda Guerra Mundial, em setembro de 1939, e o Expresso do Oriente fez sua derradeira viagem de ida e volta de Paris a Istambul — “íamos apenas quatro no vagão-restaurante”, recorda uma jornalista americana que representava o Vatan de Istambul, “sendo dois deles americanos que comiam galinha” —, os funcionários belgas e franceses da companhia Wagons-Lits, proprietária do trem, temiam que este nunca mais voltasse a ser o que fora. Esses receios, originados pelo conhecimento de que Hitler cobiçava o famoso expresso, eram bem fundados. Quando Hitler invadiu a França, confiscou vagões de passageiros e de bagagem para uso dos altos funcionários do exército. No entanto, embora não seja fácil esconder um trem, os franceses conseguiram salvar alguns vagões do Expresso do Oriente, mandando-os para cidades como Lyon, Vichy e Dijon, e utilizando-os temporariamente para alojar refugiados da guerra. Nessa época esses vagões do Expresso do Oriente, juntamente com outros vagões da Wagons-Lits retirados de circulação, conseguiram abrigar mais de cinquenta e oito mil pessoas. Com a paz, os proprietários da Wagons-Lits começaram a reunir os restos dos seus efetivos. Trouxeram os vagões que estavam na Alemanha, nos Países Baixos e nos Bálcãs, assim como em todos os cantos da França, e, no mês de setembro de 1945, conseguiram reunir um simulacro bastante desmantelado do Expresso do Oriente que ia de Paris a Istambul. Após alguns meses de reparos nos estofamentos e de duas conferências oficiais em Lugano e Montreux, foi anunciado oficialmente que o Expresso do Oriente estava pronto a seguir três vezes por semana até Milão, ao mesmo tempo que outras composições do mesmo tipo se dirigiriam a Praga e a Viena. Com esse anúncio, havia uma leve esperança de que os passageiros românticos pudessem conseguir mais uma vez realizar uma viagem encantadora pelo preço de uma passagem simples, ou seja, cento e trinta e oito dólares. Hoje em dia, embora tenham passado por dúvidas terríveis, os românticos
podem ficar descansados. A despeito de intermináveis complicações — os russos criavam dificuldades na passagem do Expresso pela Áustria, os gregos declara vm que não seria possível reparar as pontes durante alguns «nos, o Marechal Tito recusava a licença para o trem atravessar a Iugoslávia, a não ser que os condutores fossem substituídos por pessoal iugoslavo e que se pagasse uma percentagem superior ao câmbio —, em janeiro de 1947, o Expresso do Oriente, depois de grandes reparos e ao cabo de muitas dificuldades, rangendo todas as articulações como uma velha atriz que volta mais uma vez ao palco, aqueceu as caldeiras para a sua histórica viagem ao Oriente Próximo. O pessoal multilíngue foi reunido às pressas, mas, em lugar da tradicional bagagem de malas de couro, notava-se agora uma tendência notável para os sacos de viagem e para as pastas, e a maior parte dos passageiros, nos primeiros dias, compunha-se de modestos homens de negócios, de oficiais do exército e de funcionários das estradas de ferro francesas. Com essa carga, o Expresso saiu, arquejante, da gelada Estação de Lyon, para atravessar a Europa desmantelada pela guerra. Os condutores percorriam mais uma vez os corredores apregoando: “Paris. . . Lyon. . . Lausanne. . . Milão. . . Trieste. . . Ljubljana. . . Zagreb. . . Belgrado... Sófia”. A partir de então, três vezes por semana, cinco vagões do Expresso do Oriente seguem até Sófia, na Bulgária. Aí, os passageiros desembarcam, sobem para os carros-leitos turcos e continuam viagem, de noite, atravessando um canto da Grécia, até Istambul. Atualmente, a companhia Wagons-Lits — à espera dos trezentos mil turistas americanos que a American Express Company anunciou que viriam visitar a Europa neste ano e com os olhos nos dólares que esses turistas irão gastar, segundo promessa do Departamento Americano do Comércio — imprimiu horários e folhetos com indicações sobre o antigo e sempre atual trajeto de Paris a Istambul, sem bal- deação na Bulgária, e anunciou oficialmente que essa viagem será reiniciada dentro de poucos meses. Antes da guerra um bilhete de primeira classe de Paris a Istambul custava cento e'trinta e oito dólares. O turista americano de hoje verificará que a compra da passagem já não é uma coisa assim tão simples, e que seu custo não é fixo. Em Paris, terá de ir ao prédio de cinco andares, na Place de la Madeleine, ou ao antigo escritório da American Express na Rue Scribe, e de esperar na fila durante uma hora para ser informado de que é necessário marcar a passagem com vinte e oito dias de antecedência e que esta não lhe dará o direito de viajar até o fim da linha. Em virtude das oscilações do câmbio, o turista só poderá comprar passagens com francos franceses, e reservar beliches no Expresso do Oriente até a Itália. Ali, adquirirá, com dólares americanos, um prolongamento de sua passagem até Belgrado, onde, utilizando moeda iugoslava, pagará o resto do percurso até Sófia. Isso, ao todo, custa cento e trinta e quatro dólares, mais ou menos, segundo as oscilações do câmbio, de modo que, no fim da viagem, de duas uma, ou está especializado em finanças ou então enlouqueceu. Em troca dessas acrobacias monetárias, o turista disporá das melhores instalações ferroviárias de toda a Europa atual, embora os viajantes veteranos garantam que, apesar de confortável, o Expresso do Oriente já não é nem sombra do que foi. Pelo menos por enquanto. Embora os carros-lei- tos de cinquenta e sete toneladas, cada um com onze cabines particulares, ainda sejam forrados de mogno e revestidos de tapeçarias caras, os retoques finais deixam bastante a desejar. Nos seus tempos áureos, havia chuveiros no trem. Hoje desapareceram. Antes da guerra, o Expresso do Oriente estava equipado com um vagão especial para cães. Agora os passageiros são obrigados a manter seus pequineses, foxes e galgos no chão das cabines.
Nos seus bons tempos, o jantar do Expresso do Oriente, servido em baixelas de prata brilhante, em boa porcelana, num compartimento cercado de espelhos e com cadeiras estofadas em couro, constituía um repasto rolante digno de Epicuro. Hoje em dia, se bem que continue a ser uma refeição atraente, perdeu por completo o requinte. O Expresso do Oriente, em certas viagens, muda de vagão-restaurante quatro vezes em cada percurso. Começa com um jantar francês, servido por garçons franceses, passa depois a um cardápio suíço, em seguida para a cozinha italiana, e finalmente para a comida iugoslava. Antes da guerra, o primeiro e o segundo chefe, de uniformes brancos, tomavam conta de seis aparadores, cada um correspondendo ao país que o Expresso atravessava e contendo as especialidades culinárias da região. Como cada nação européia tinha suas restrições alimentares e seus monopólios de bebida, todos os armários se encontravam cuidadosamente fechados à chave, exceto o que continha as especialidades e as bebidas do país que atravessavam naquele momento. Mal o Expresso do Oriente saía de Paris, os chefes de mesa tiravam vinhos franceses do armário francês, e os mordomos, de calças de veludo e sapatos de fivela, serviam-nos em taças de cristal belga durante as duas horas que durava o jantar. Quando o comboio atravessava a fronteira da Suíça, vinha a bordo um funcionário da alfândega francesa que fechava o armário francês, com a sua reserva de vinhos e licores; depois, um empregado da alfândega suíça vinha abrir o respectivo armário com seus queijos, chocolates e compotas. Quando o Expresso entrava na Itália, um suíço fechava o armário suíço e um italiano vinha abrir o armário de seu país. O mesmo se passava na Iugoslávia, na Bulgária e na Turquia. Hoje, esses armários já não fazem de modo algum as delícias dos gourmets. Os chefes do Expresso do Oriente já não preparam o antigo cardápio de oito entradas, omeletes, peixe, quatro pratos de carne à escolha e uma seleção dos melhores vinhos brancos e tintos do Velho Mundo, nem os garçons, de impecáveis luvas brancas, servem em ricas travessas de prata. Agora, em virtude do racionamento e da escassez de víveres, os jantares são frugais. Quando o Expresso do Oriente atravessa a França, o vagão-restaurante fornece, por cento e cinquenta francos ou um dólar e vinte e cinco cents, um cardápio que se compõe de sopa, carne ou peixe à escolha, dois acompanhamentos e uma maçã como sobremesa. A melhor refeição que se come no percurso, no caso de o passageiro estar disposto a levantar-se antes da aurora, é o desjejum servido na Suíça, onde se pode pedir tudo, desde café de primeira qualidade e ovos frescos, a manteiga autêntica e pão branco. Dali em diante, na Itália e através da Bulgária, a qualidade e a quantidade dos alimentos baixam sempre, ao passo que os funcionários locais encolhem os ombros e, no seu francês esquisito, explicam invariavelmente: “C’est la guerre”. A forma de pagamento dessas refeições é tão complicada quanto a comida é simples, visto que a moeda utilizada tem de ser a do país onde a refeição é servida. O Expresso do Oriente tem dois vagões de bagagem, mas o conteúdo destes, hoje, é diferente. Há dez anos, compunha-se de um conjunto de malas com rótulos coloridos e, pelo menos, um pequeno automóvel, um Opel alemão ou um Fiat italiano, sacos de ouro que eram transferidos de um banco francês para um banco sérvio e, por cima de tudo, como os espinhos de um porco-espinho, dúzias de esquis. Certa vez, no tempo em que o grande ditador da Turquia, Kemal Ataturk, que converteu as mesquitas em celeiros e acabou com a poligamia, decidiu ocidentalizar o seu país, o Expresso do Oriente recebeu a missão de transportar a sua mais estranha carga. Ataturk fazia o maior empenho em que o
fez desaparecesse; chegou mesmo a dar uma bofetada no ministro do Egito por ainda usá-lo. Por isso, todos os homens da Turquia estavam ansiosos por qualquer coisa com que cobrir a cabeça. As lojas de vestuário de Istambul e de Ancara enviaram um aflitivo s.o.s. às suas congêneres de toda a Europa. Num abrir e fechar de olhos, o Expresso do Oriente tinha o mais incrível carregamento que se possa imaginar: chapéus-coco londrinos, chapéus alemães, boinas à espanhola, bonés de pala polacos — tudo destinado aos crânios descobertos da Turquia. Hoje, a bagagem é um reflexo dos tempos. Um dos vagões leva centenas de caixotes de alimentos, bicicletas de segunda mão, carrinhos de bebê, incontáveis fardos de vestuário. As poucas malas, com restos de rótulos de Monte Cario e St.Moritz, já conheceram melhores dias. O segundo vagão é inteiramente destinado ao correio e transporta os sacos da correspondência da Europa Ocidental para o Oriente Próximo e Extremo Oriente. Nesse vagão, em virtude de um acordo internacional, todos os empregados são franceses. O que mais surpreende o turista americano nesse Expresso do Oriente é a diferença que ele tem dos trens de luxo da sua terra. Enquanto todos os trens de primeira classe americanos possuem beliches forrados de verde ou cor de ferrugem de ambos os lados de um corredor, no Expresso do Oriente não havia disso. Os assentos estofados, que à noite se transformam em beliche para dormir, são cabines particulares, semelhantes às cabines dos carros Pullman americanos. Hoje, os funcionários do Expresso ficam embaraçados com uma exceção temporária que se fez a essa regra tão conhecida. Em face da crise aguda dos transportes europeus, o trem viu-se obrigado a levar seis vagões comuns. Essa transigência com o povo, considerada como uma espécie de classe turística dos navios, não desperta no pessoal do trem qualquer espécie de comentário. Embora o Expresso possua agora aquecimento central, suas janelas não se fecham hermeticamente como as dos seus similares americanos de luxo, e podem ser abertas pelos passageiros. Certa vez, o Expresso fez a experiência de atrelar um vagão com as janelas seladas, mas teve logo de abandonar a ideia, pois os aficcionados do ar livre queixavam-se de que morreriam abafados. As cabines individuais, com instruções escritas em francês, inglês e alemão, não têm os banheiros ocultos, como os expressos americanos, nem tampouco têm banheiros separados para senhoras e cavalheiros. Existe apenas um único banheiro comum ao fundo de cada corredor. Embora se veja uma garrafa de água em cima de cada lavatório, esse detalhe é considerado um barbarismo americano, pois é costume que os passageiros, quando têm sede, mandem vir bebidas que o condutor lhes serve em suas cabines. O que mais espanta talvez o viajante americano é a ausência de empregados como existem na sua pátria. Ali, é o condutor de farda castanha que acumula as funções de conferente de passagens e de criado que prepara as camas. O vagão especial, tantas vezes ligado ao Expresso do Oriente, é outra instituição que causa estranheza ao viajante americano. Claro que, na América, se conhece toda espécie de vagões especiais. Os Estados Unidos podem até gabarse de construir alguns dos melhores do mundo. Muita gente recordará que Death Valley Scotty, ao regressar do deserto da Califórnia, alugou um vagão Pullman especial e foi nele para Nova York, jogando pelo caminho moedas de ouro e cédulas à população. Outros referir-se-ão às extravagâncias da Sra. Marjorie Post Davis, a maior acionista da General Foods Corporation e mulher de Joseph E. Davis, ex-embaixador na Rússia, que comprou para seu uso um vagão Pullman especial, que mandava desinfetar completamente antes de cada viagem, onde era servida por um empregado particular. E quase todos os americanos ouviram falar
no tão famoso vagão Pullman presidencial, utilizado inúmeras vezes por Franklin Delano Roosevelt e, com menos frequência, pelo Presidente Truman. Um vagão especial, na América, ainda é uma exceção, ao passo que no Expresso do Oriente passou a fazer parte da rotina. O vagão particular que mais vezes é ligado ao Expresso do Oriente é um salão cinzento construído para uso dos presidentes da França e dos estrangeiros de alta categoria. A personalidade que mais recentemente nele viajou foi Farida Zulficar, rainha do Egito, esposa do Rei Faruk I. O governo do seu país requereu a sua utilização pelas vias oficiais, pedido que foi imediatamente deferido, fornecendo-lhe também o governo francês, de acordo com a companhia Wagons- Lits, um destacamento da polícia da Sureté Nationale para acompanhá-la. A rainha ficou deslumbrada com tamanho luxo. Descobriu que o vagão era inteiramente forrado de mogno, com maravilhosos embutidos de cristal Lalique e todo iluminado com luz indireta. O vagão compunha-se unicamente de quatro compartimentos: um grande quarto de dormir mobiliado com uma cama verdadeira, em lugar do beliche, para uso da rainha; um banheiro privativo; um pequeno compartimento onde a criada ou a secretária podia dormir; e por fim uma sala de estar confortável, onde havia um cômodo cadeirão, uma secretária e várias poltronas. Pequenas celebridades e simples milionários não podem utilizar esse vagão, mas é possível alugar para uso particular um vagão de primeira classe. A fascinante Marina, a viúva grega do falecido Duque de Kent, viajava sempre num vagão reservado quando seguia de Londres para Atenas. Os melhores fregueses de vagões reservados foram os marajás da índia, que vinham de seu país, por mar, até a Turquia e depois seguiam por estrada de ferro pelo Expresso do Oriente até Paris. Certa vez, um rico marajá chegou a alugar um vagão-restaurante privativo ligado ao seu vagão-leito. Outro rico potentado indiano alugou um vagão inteiro da Wagons-Lits, com seus vinte e quatro beliches, pela quantia de três mil e quinhentos dólares, a fim de levar consigo, na maior intimidade, a mais estranha coleção de passageiros que o Expresso do Oriente jamais transportou de Istambul até Paris. M. Borlotti, um francês empregado do Expresso havia mais de vinte anos, chefe do trem nessa viagem, recorda-se dela com prazer: — Esse indiano, marajá ou o que quer que fosse, alugou aquele vagão especial com a condição de que todos os outros passageiros e o pessoal do Expresso, exceto eu, ficassem proibidos de entrar lá. Eu estava morto de curiosidade para ver o que transportava. Até que entrei para conferir as passagens e os passaportes, e então vi tudo. Que espetáculo! Ele trazia o harém inteirinho no Expresso do Oriente! Ali estavam elas, sete ao todo. E não me digam que os haréns modernos não têm mulheres bonitas! Eram todas as sete, jovens e belas, de tipo indo-europeu. Traziam véus, mas tão finos que se lhes podia ver o rosto. Cada uma tinha um diamante incrustado no lado direito do nariz e no lóbulo da orelha esquerda. Os diamantes não pareciam nada estranhos ali, pelo contrário, brilhavam por trás dos véus de uma maneira muito atraente. Eu me esforçava por parecer desinteressado. Afinal de contas, nós, os empregados do Expresso do Oriente, desfrutamos da fama de não nos surpreender com coisa alguma. Mas não podia deixar de olhar para elas, e as moças não paravam de dar risinhos e de me observar até que eu acabei de desempenhar a minha missão e saí. O pessoal do Expresso do Oriente, constituído por homens como M. Bórlotti, com sua coleção de histórias fantásticas, faz parte integrante do trem. Dos que trabalhavam nele antes do aparecimento de Hitler, a maioria regressou
ao seu posto. Faltam apenas os condutores alemães. O diretor de cada viagem do Expresso do Oriente é o chefe do trem, cujas funções se assemelham às do capitão de um navio, mas com mais autoridade. Dirige os condutores, resolve os problemas especiais dos passageiros, faz contato com as diversas estações do percurso, e no fim da viagem entrega um relatório nos escritórios da companhia em Paris. Alguns desses funcionários falam sete línguas. M. Borlotti, por exemplo, além do seu idioma nacional, o francês, aprendeu sozinho o alemão, o holandês, o italiano, o iugoslavo e o inglês. Os condutores, que viajam em cada vagão, subordinados às ordens do chefe do trem, são na maioria franceses e suíços, e devem pelo menos falar três línguas. O idioma oficial do trem é o francês, que todos têm de falar. As duas outras línguas são facultativas, mas quase todos falam o inglês e o alemão. As constantes viagens entre dois mundos acabaram por sofisticar os condutores do Expresso do Oriente, e a surpresa é uma emoção que eles quase desconhecem. Os empregados do novo Expresso do Oriente, que faz apenas viagens de ida e volta a Viena, têm de guiar o seu rebanho através de quatro zonas militares. Os condutores declaram que os soldados americanos, que sobem ao trem quase sempre cantando, são os que mais consternação causam aos viajantes. Estão habitualmente mascando chicletes e, como os passageiros dos Bálcãs desconhecem o que é isso, os condutores passam a vida explicando. Na mesma viagem, além do rio Enns, soldados russos, semelhantes a ursos, surgem de dentro das barracas para inspecionar os passes militares. Segundo afirmam os condutores, os soldados russos de Leningrado e de outras grandes cidades são rapazes inteligentes, porém os da Ásia seguram muitas vezes os passaportes de cabeça para baixo, fingindo lê-los, e aprovam-nos só porque são vermelhos. Os soldados russos são substituídos a cada semana, provavelmente para não serem contaminados pela decadência que se observa no Expresso do Oriente. Os condutores têm a obrigação de satisfazer quase todas as exigências dos passageiros sem pestanejar. Às vezes, uma personalidade importante de Paris pede-lhes que entreguem uma encomenda de champanha ou caviar a uma determinada pessoa em Sófia. Certo dia, Fritz Kreisler esqueceu um dos seus preciosos violinos na embaixada austríaca em Varsóvia. Só se lembrou dele depois de já estar no trem, e encarregou um dos condutores de tratar do caso. Passada uma semana, recebia o violino. Noutra ocasião, em que havia muitos lugares vagos, um milionário de Bucareste pediu ao condutor que lhe vendesse três cabines, uma para dormir, outra para trabalhar com o secretário e outra ainda para fumar. E certa vez Josephine Baker, a cantora mulata que veio de St. Louis deslumbrar Paris, dançando vestida apenas com um cacho de bananas, acordou morta de fome, às duas horas da manhã, e pediu sanduíches de queijo e cerveja. O condutor observou-lhe que aquele pedido a tal hora não era dos mais razoáveis. Ela então pediu que a levassem ao chefe, (que acordou bocejando) e prometeu que se ele fosse à cozinha arranjar alguma coisa para ela comer dançaria para ele. O chefe concordou prontamente, preparou-lhe a refeição e Josephine Baker, em troca, dançou no meio do vagão-restaurante, em camisola de dormir, enquanto o Expresso do Oriente seguia sua marcha ao encontro da alvorada. Em troca desses e de outros serviços, o pessoal do trem consegue acrescentar a seu salário generosas gorjetas. Na realidade, o problema da gorjeta é muitas vezes minuciosamente discutido e debatido pelos condutores, quando, no fim de cada viagem, reúnem-se no meio dos cestos de ostras e das garrafas de vinhos do Café Au Départ, da Estação de Lyon. Em vista disso, a questão da gorjeta no Expresso do Oriente possui uma crônica bastante completa. Os condutores divertem-se dividindo as gorjetas em categorias. Por exemplo, classificam quem
as dá segundo a sua nacionalidade. A maioria dos condutores parece concordar em que, antes da guerra, os viajantes mais generosos eram os alemães, não só os industriais, mas também os oficiais, como Von Papen e Funk. Por outro lado, consideram os sul-americanos, sobretudo os argentinos, como os mais pão-duros de todos os passageiros. — Talvez os bomens ricos da Argentina não enxerguem mais do que isso, ou devem ser avarentos por natureza. A maioria dos condutores acha que, como classe, as famílias reais de antes da guerra de 1914, como por exemplo o grãoduque da Rússia, ou a rainha da Áustria, ou qualquer Esterhazy, eram os passageiros mais generosos. Todos os empregados do Expresso do Oriente, desde o mais alto funcionário ao mais jovem dos condutores, concordam unanimemente em que as melhores gorjetas dadas pela gente de sangue azul vinham do Rei Bóris III da Bulgária, que era também a figura mais característica do Expresso do Oriente. Antes da guerra o Rei Bóris, que era um homem simpático de quarenta e poucos anos, declarou certa vez que um dos seus passatempos preferidos era “guiar locomotivas”. Costumava convidar o pessoal do trem para tomar chá na sua cabine e discutia com eles todos os pormenores do trem, como se fosse um brinquedo que lhe pertencesse. Na verdade, apaixonara-se pelo trem. Durante muitos anos, em todas as suas viagens entre Sófia e Paris, depois de ter-se aborrecido lendo uma pilha de jornais em seis línguas, deixava a mulher, a Rainha Giovanna, princesa de Sabóia, tricotando e percorria todos os vagões até chegar à locomotiva. Depois, na primeira parada, enfiava-se entre os dois maquinistas franceses e empunhava a alavanca do vapor. Isso aconteceu em inúmeras viagens, até começar a correr o boato de que o Expresso do Oriente era conduzido pelo rei da Bulgária. Ao saber disso, certos diplomatas investigaram o fato. Os governos da França e da Itália admoestaram oficialmente o Rei Bóris de que não devia guiar o trem nos seus territórios, pondo em risco tanto os passageiros como os transeuntes. Em sua primeira viagem depois dessa proibição, o Rei Bóris conservou-se muito reservado e passou o tempo dormindo enquanto atravessava a França, a Suíça, a Itália e a Iugoslávia. Porém, quando o Expresso chegou à Bulgária, onde sua palavra era lei, abandonou a cabine, vestiu um macacão limpo, dirigiu-se à locomotiva e tomou conta dos comandos até Sófia. O pessoal hoje chora a sua perda, mais do que qualquer outro passageiro morto na guerra. Acreditam piamente que foi assassinado pela Gestapo quando se recusou a entregar o exército búlgaro a Hitler. Entre os plebeus, quem dava gorjetas mais fabulosas era um certo Sr. Capile, um armador italiano, multimilionário, de Gênova. — Era um sujeito extraordinário — recorda o condutor. — Apreciava muito o nosso trem. No fim de cada viagem vinha à cozinha e, em meio às chaleiras e panelas, cumprimentava o chefe da cozinha, e gratificava-o, bem como aos seus ajudantes. Depois dava também gorjetas ao chefe do trem e ao condutor. Certa vez, numa viagem de dois dias, gastou mil dólares em gorjetas. Alguns dos condutores do Expresso do Oriente torna- ram-se celebridades no seu gênero. Talvez o mais famoso de todos seja M. Jean de Bonnefoy, que, durante os trinta e seis anos que passou no trem, teve contato com as grandes figuras deste mundo. Hoje, em suas memórias, recorda-se de que a Rainha Amélia, de Portugal, antes de reservar sua cabine no Expresso do Oriente, perguntava sempre se era ele quem estava de serviço nessa composição. Lembra-se ainda também de certa vez ter mandado parar o trem para ir buscar o Duque de Windsor, nessa época um rapazinho, que ficara por esquecimento na estação, em
Dijon. A fama de Bonnefoy espalhou-se em virtude dos versos que escrevia durante as longas e solitárias noites que passava no Expresso. Um de seus livros, Visões de Roma, valeu-lhe uma carta pessoal de Benito Mussolini, que o fez cavaleiro da Coroa da Itália. Passou a ser o único condutor condecorado do Expresso do Oriente. Hoje, aposentado, Bonnefoy tem saudades dos belos tempos. — Antes da Primeira Guerra Mundial — declara ele —, o Expresso do Oriente era verdadeiramente luxuoso, a parte superior das paredes dos vagões era pintada de branco e a de baixo forrada de madeira de teca. Todo o pessoal, tanto os condutores como os criados, usava luvas brancas. Hoje, tudo baixou de categoria. Às vezes, perto das onze da noite, Bonnefoy sai do seu apartamento e dirige-se à Estação de Lyon, para ver partir o grande comboio. No meio da estação, cheia de correntes de ar, lamenta a falta de entusiasmo nas despedidas. Até 1939, a largada do Expresso do Oriente era como a partida de um navio para uma travessia do Atlântico. Vinham bandos enormes de pessoas despedir-se dos amigos à saída do trem, cantava-se dentro das cabines, estouravam garrafas de champanha, reinavam na estação o barulho e o entusiasmo de uma festa de despedida. Hoje, a partida é calma e eficiente. A maior parte das pessoas não se desloca através da Europa por prazer. Vão em viagem de negócios e não há razão para tocarem fanfarras na partida. Quando o trem parte, lentamente — mais tarde atingirá a velocidade de oitenta quilômetros por hora (dantes costumava atingir cem, mas certas pontes e os trilhos não são de confiança) —, Jean Bonnefoy costuma dizer: — Bem, isso deixou completamente de ser o que era antes. Mesmo assim, há duas coisas que não se alteraram: os cenários, as maravilhosas paisagens e a organização que possibilita ao viajante o acesso às belezas naturais dos diversos países. A maior parte do pessoal da Wagons-Lits, ou porque está convencida do que afirma ou por motivos de natureza política, gosta de criticar a invisível organização a que serve. No entanto, com exceção dos funcionários superiores, que têm contato mais direto com a administração, poucos são os que têm algum conhecimento acerca de quem dirige o Expresso do Oriente. E os estranhos sabem ainda menos. Mas essa organização, tal como um oculto maquinismo, faz rodar incessantemente o Expresso do Oriente de Paris para Istambul e vice-versa, com precisão e sem uma falha, há precisamente sessenta e quatro anos. Presentemente, o Expresso pertence à Companhia Internacional de Wagons-Lits, sediada em Bruxelas e dirigida através de uma sucursal em Paris. O Expresso do Oriente está sob o controle direto de um francês muito rico chamado René MargotNoblemaire, cujo pai é gerente das Estradas de Ferro Francesas desde o final do século XIX. A Wagons-Lits foi concebida em 1872 por um engenheiro belga, Georges Nagelmackers, que, em visita aos Estados Unidos, vira os primeiros carros-leitos do mundo e resolvera construir, na Europa, um similar dô tipo Pullman. A ideia de Nagelmackers provocou risos no Velho Mundo, e ele quase chegou a abandonála, quando o Rei Leopoldo II mandou chamá-lo para discutir o projeto. O rei ficou entusiasmado e, dentro de um ano, o primeiro carro-leito da Wagons-Lits — dispondo de doze beliches, aquecido a carvão e iluminado a petróleo — entrava em circulação entre Ostende e Berlim. Foi um sucesso. E, em 1876, a companhia Wagons-Lits estava organizada tal como é hoje. O Rei Leopoldo foi um dos
primeiros acionistas e, com o prestígio do seu nome, a companhia conseguiu capitalizar a quantia de quatro milhões de francos belgas. Esse foi o princípio. Sete anos mais tarde, a companhia construía um trem inteiro — locomotiva a vapor, carros-lei- tos com capacidade para vinte e oito passageiros, um carro- restaurante com vinte e quatro lugares, dois vagões de bagagens — que garantia o transporte dos pioneiros pelo mesmo caminho histórico que haviam seguido os celtas, os hunos e os cruzados, partindo da França, percorrendo o norte dos Alpes, ao longo do Danúbio, até a Turquia. A 5 de junho de 1883, o primeiro trem internacional de luxo realizava a sua primeira viagem de teste de Paris a Munique, e dali a Budapeste, estabelecendo a ligação com um navio que atravessava o mar Negro, saindo de Varna até o que era então Constantinopla, em oitenta e uma horas e quarenta minutos. Precisamente quatro meses depois, o Expresso do Oriente era oficialmente inaugurado. A uma velocidade de.oitenta quilômetros por hora, ia de Paris a Bucareste, passando por Estrasburgo, Stuttgart, Munique, Salzburgo e Viena. Por toda parte houve festas em honra dos passageiros do cavalo de ferro da Europa. Em Szeged, na Hungria, os funcionários que serviam a comida foram postos de lado, enquanto um conjunto de onze músicos ciganos invadia o comboio e tocava valsas vienenses e czardas durante duas horas e meia. “Quando os músicos atacaram a Marselhesa”, relata um correspondente de Le Temps do século XIX, Opper de Blowitz, “o nosso cozinheiro francês, um sujeito barbudo, saiu da cozinha e, com a mão no peito e os olhos chamejantes no meio do rosto extático, cantou o hino com voz forte e sonora. Tivemos de mandá-lo à força para a cozinha, a fim de continuar a fazer o almoço. Os ciganos abandonaram o trem em Temesvar.” Em Bucareste, o Expresso do Oriente parou enquanto os passageiros eram levados ao palácio real romeno, para serem recebidos pelo Rei Carol I. Em Giurgiu, uma pequenina cidade às margens do Danúbio, os passageiros saíram do trem, atravessaram de ferryboat até Ruse, na margem búlgara, e seguiram noutra composição para Varna. Essa parte da viagem era particularmente arriscada, visto que os trilhos não estavam protegidos dos animais pelas costumeiras grades metálicas e era a locomotiva que enxotava o gado com uma enorme grade de ferro que levava presa à frente. Em Varna, numa enseada do mar Negro, os passageiros tiveram de transpor a pé um campo enlameado para embarcar num pequeno vapor que, a despeito do mar revolto, os levou em quinze minutos até o minarete de Constantinopla. O Oriente e o Ocidente haviam-se ligado num tempo total de setenta e sete horas e quarenta e nove minutos. Para organizar essa viagem, a companhia Wagons-Lits reunira-se com dirigentes das estradas de ferro e diplomatas do ducado de Baden, do reino de Wurttemberg e da Baviera, da Áustria e da Romênia. Nos sessenta e seis anos que se seguiram a esse tratado inicial, a Wagons-Lits, na resolução de problemas relativos à passagem das fronteiras e aos percursos do Expresso do Oriente, tem agido mais como um Estado soberano do que como uma simples companhia de estradas de ferro. Citamos o seguinte exemplo: em 1888, um dirigente da Wagons-Lits, M. de Richemont, dirigiu-se a Sófia, a fim de negociar com o Príncipe Fernando da Bulgária sobre uma nova linha que devia ir além da rota a vapor do mar Negro e levar o Expresso do Oriente, por terra, até a Turquia. Em virtude da pressa com que partira, M. de Richemont levava apenas dois temos comuns e logo foi avisado pelos assessores do príncipe de que não poderia apresentar-se no palácio com semelhante vestuário. Tratou de se informar e, ao saber que a farda era
considerada traje de cerimônia, mandou imediatamente seu pessoal do trem percorrer as ruas até encontrar qualquer coisa que se parecesse com uma farda. Os empregados regressaram trazendo um oficial da polícia búlgara que se prontificou a alugar a sua. Porém isso não bastava. M. de Richemont acrescentoulhe os acessórios dos condutores da Wagons-Lits — desde o boné até as fitas de serviço — e, tendo cumprido as recomendações dos assessores do príncipe, entrou no palácio real e curvou-se rigidamente diante do Príncipe Fernando. O príncipe olhou para aquele estranho uniforme, sorriu compreensivãmente e declarou: — Este é um país complicado! Depois disso, o acordo fez-se com toda a facilidade e dali a um ano o Expresso do Oriente ia diretamente por terra de Paris a Constantinopla, reduzindo o tempo de viagem em catorze horas. Ano após ano, efetuavam-se conferências entre a Wagons-Lits e os diversos governos da Europa, a fim de solucionar problemas de passaportes, de câmbio, de trânsito, de bagagens e de condutores. Foi resolvido que, no caso de um condutor cometer qualquer transgressão de pouca monta, não seria sumariamente expulso do trem, mas ficaria sujeito à lei extraterritorial, sob a jurisdição do tribunal de Genebra. Se cometesse um crime grave, assentou-se que ficaria sob a alçada das leis da nação através da qual o trem estivesse passando no momento do crime. Por exemplo, se um condutor estrangulasse uma dama inglesa enquanto o Ex- presSo fizesse a travessia da Iugoslávia, seria submetido a julgamento num tribunal de Belgrado. Em 1919, na Conferência de Paz de Versalhes, a Wagons-Lits assinou uma série de tratados internacionais e de contratos; o mais importante de todos permitiu que o trem encurtasse o tempo de viagem para Istambul, atravessando o mais comprido túnel dos Alpes, o Simplon. Em virtude de ter passado a utilizar essa passagem, cuja entrada era em Vaiais, na Suíça, e a saída no Piemonte, na Itália, o velho Expresso do Oriente passou a chamar-se oficialmente Sim- plonExpresso do Oriente, nome que a companhia hoje usa em documentos e na propaganda, mas que os viajantes teimam em ignorar. Outros tratados relacionam-se, na sua maioria, com diversos trens homônimos do Expresso do Oriente. Um viajante americano, ao percorrer a Europa, supondo existir apenas um Expresso do Oriente, sentiu-se deveras confun- so com a repetição do nome, pois dirigira-se a vários trens, homônimos daquele, que pareciam ir cada qual em uma direção. O fato é que não há nem nunca houve um só Expresso do Oriente. Existem vários que fazem o percurso de ida e volta entre o Oriente Próximo, três vezes na semana, e todos se chamam, com razão, Expresso do Oriente. Além disso, em tempo normal, há vagões da Wagons-Lits que andam entre Roma, Atenas e Berlim, ligados a outros trens, e que são atrelados, en route, ao Expresso do Oriente, continuando a fazer parte dele até Paris ou até Istambul. Pouco antes da guerra, o carro-leito especial do Expresso do Oriente, vindo de Berlim para ser atrelado ao Expresso, trazia muitas vezes judeus disfarçados, com documentos falsos, fugidos à perseguição hitlerista, assim como agentes secretos nazistas que viajavam dos Bálcãs para a França. Como medida de precaução, o vagão alemão ficava isolado do resto do trem, por uma porta fechada à chave. Hoje ainda existe um Expresso do Oriente que segue de Paris, por Munique, até Viena e Bucareste, e outro, gêmeo deste, o Expresso do Oriente de Altberg, que passa por Zurique, na Suíça, e chega a Viena em trinta e quatro horas. Para aumentar essa confusão, temos ainda outro trem de luxo, o Taurus Express, que recebe os passageiros que o Expresso do Oriente larga em
Istambul e depois os leva até o Cairo ou a Bagdá. Porém essas viagens ficam à. margem dos três grandes circuitos percorridos pelo trem de Paris a Istambul. Partindo à noite da Estação de Lyon, em Paris, o Expresso do Oriente passa por Dijon, atravessa a fronteira na estação de Frasne e interna-se nas montanhas da Suíça. Passa por Lausanne de madrugada, percorre a margem norte do lago de Genebra, passa por Montreux e entra no túnel de Sim- plon, que tem quase vinte quilômetros de comprimento. De manhã, o Expresso do Oriente rodeia o lago Maggiore e dirige-se para Milão. O turista americano que não conseguiu ver a França e a Suíça à noite, terá oportunidade de apreciar grande parte do norte da Itália. Durante esse primeiro dia, o Expresso do Oriente atravessa ou passa perto de cidades como Verona, Veneza, Trieste e, na segunda noite, deixa San Pietro dei Carso e entra na Iugoslávia. Os viajantes que passaram dormindo em Zagreb, capital da Croácia, irão almoçar, no fim da segunda manhã do percurso, em Belgrado, enquanto são atrelados aos trens os vagões que vieram de Ostende, Berlim, Praga, Viena e Budapeste. Se escutarem as conversas desses passageiros, terão muito que contar quando escreverem para casa: ficarão sabendo que Lidice é agora um viçoso campo de trigo, que a Princesa Gabriela de Es- terhazy dirige uma companhia de transportes em Budapeste, que a anedota anti-soviética que corre neste momento nos Bálcãs é a seguinte: “Stálin cometeu dois grandes erros: o de mostrar a Europa aos russos e os russos à Europa”. Ao passar da Iugoslávia para a Bulgária, os condutores mostrar-lhe-ão a sua curiosidade favorita, a pequena ilha de Ada-Kaleh, no meio do Danúbio, que ainda pertence à Turquia porque os diplomatas se esqueceram dela. Durante todo o segundo dia, o Expresso percorre a Bulgária e chega a Sófia antes do cair da noite. Se não gostar de se deitar cedo, o viajante pode jantar em Dikea, na Turquia, mas já deve estar dormindo quando o trem atravessar Pityrn, na Grécia. E na manhã seguinte, intrigado com as piastras, assaltado por vários dragomanos que lhe querem mostrar a Mesquita de Santa Sofia e as noventa e duas ruas do Grande Bazar, o turista poderá descer na maometana Istambul. Porém, embora tudo quanto viu entre Paris e Istambul passe a ter para ele tanta realidade com um postal ilustrado, o turista americano recordar-se-á vivamente do melhor espetáculo de todos: seus companheiros de viagem, tanto as personagens ilustres como os anônimos, e lembrar-se-á para sempre do que fizeram e disseram. Antes da guerra, Pierre Lavai, Philippe Pétain e o Marechal von Rundstedt viajaram um dia no mesmo vagão do Expresso do Oriente. Cantores e músicos enchiam muitas vezes o comboio. Lily Pons e Grace Moore encontraram-se nele um dia e houve quem as ouvisse cantar pelo caminho, enquanto se dirigiam às cidades da Itália onde tinham contratos a cumprir. Bruno Walter e Toscanini costumavam ir muitas vezes a Salzburgo. Paderewski, quase até morrer, era passageiro regular do Expresso. Quando vinha à sala de jantar, os companheiros de viagem podiam estar certos de que iriam assistir a um concerto mudo; enquanto conversava em francês, Paderewski não parava de bater com os dedos de uma das mãos no tampo da mesa, interpretando trechos de partituras e, para as pessoas presentes, constituía um passatempo tentar adivinhar de que música se tratava. Anthony Eden é lembrado como um dos mais elegantes passageiros do Expresso. Costumava reservar uma cabine só para ele, outra para a mulher e a terceira para o resto da família. Todos os dias punha um terno bem passado, conquistava as companheiras de viagem com as suas maneiras delicadas e falava
de política com o pessoal do trem. O falecido Cardeal Luigi Maglione, secretário de Estado do Vaticano, igualmente elegante e bem-apessoado, era muito mais terrível. “Nunca poderei me esquecer do cardeal”, afirmava certo passageiro. “Muito severo e rígido, todo jesuíta, estava sempre curvado sobre a Bíblia. E, quando olhava para nós, a gente ficava pensando, sem querer, na última vez que tinha ido à igreja.” Maurice Chevalier também costumava utilizar o Expresso naquele tempo, e, embora os companheiros de viagem simpatizassem com ele, era detestado pelo pessoal em virtude da sua má educação. “Certo dia vinham uns americanos no trem”, recorda um condutor, “marido, mulher e filhos; parecia gente de recursos. Conheciam Maurice Chevalier dos seus antigos filmes de Hollywood e mandaram-me entregar-lhe um cartão convidando-o para jantar ou tomar qualquer coisa com eles. Maurice Chevalier rasgou o cartão em pedacinhos e atirou-o fora, recusando-se a responder. Eu então arranjei uma desculpa delicada para apresentar aos americanos, mas aquilo foi uma atitude muito des- cortês da parte dele.” Outra artista que costumava viajar no Expresso do Oriente, desde os tempos em que trabalhava em Berlim, era Marlene Dietrich. Os viajantes masculinos enxameavam à volta dela e mandavam-lhe bílhetinhos amorosos por baixo da porta, porém ela mantinha-se indiferente e sempre sorrindo. Os representantes do governo consideravam o Expresso do Oriente como propriedade sua. O Dr. Eduardo Benes, o taciturno presidente da Tchecoslováquia, passava habitualmente quinze horas por dia trabalhando sobre as suas anotações, com a pasta ao lado, abarrotada de papéis; porém, durante algumas viagens, conversava com os companheiros e expunha teorias sobre o desarmamento e a união dos Estados europeus. Mas a maioria dos passageiros compunha-se de reis — chefes de nações como a Romênia, que compravam sempre passagem de primeira classe em lugar de ocuparem uma cabine particular —, magnatas das finanças, tais como os intermináveis Rothschild europeus, que os empregados do trem apreciavam de diversas maneiras (os Rothschild franceses eram tidos como pessoas muito empertigadas e frias, os austríacos eram simpáticos, afáveis e amigos de boas gorjetas). O Rei Gustavo da Suécia, na sua viagem anual a Monte Cario, via Paris, para ir jogar tênis sob o pseudônimo de Sr. G., encantava os outros passageiros com suas histórias de caça passadas na Suécia. O Rei Fernando da Bulgária ficou célebre pór possuir o apetite mais voraz que jamais se viu no Expresso. Comia sempre durante os cinco serviços do almoço e fazia o mesmo ao jantar. Concedeu muitas vezes condecorações aos chefes de mesa e aos condutores, por serviços prestados à coroa. Os numerosos vagões que .habitualmente eram atrelados ao Expresso em Belgrado costumavam transportar sempre sua carga de celebridades, personagens estranhas, com histórias curiosas. A composição mais prolifera em anedotas era a que provinha de Berlim. Karl Furstenberg, o banqueiro alemão, era um dos passageiros mais assíduos. Um dia, a fim de conseguir um certo isolamento, comprou os beliches que ficavam por cima e por baixo do seu. O trem ia lotado e um recém-chegado pediu ao velho Furstenberg que, dadas as circunstâncias, lhe permitisse ocupar o beliche superior, que ia vazio. Furstenberg, que viajava só por aquela noite, declarou: “Costumo sempre consultar o travesseiro antes de tomar uma decisão. Amanhã lhe darei uma resposta, cavalheiro”. O vagão de Berlim transportava sempre uma colmeia de passageiros cuja maior preocupação era o contrabando. Todas as pessoas queriam passar seus bens para fora da Alemanha nas barbas da Gestapo. Um artista romeno, agora em Hollywood, que era judeu e incorrera no desagrado de Hitler por se ter casado com uma moça alemã selecionada como sendo do “tipo mais perfeito de beleza
ariana”, sabia que tinha que se pôr a caminho enquanto fosse possível. Tudo o que possuía levava consigo, mas tinha certeza de que tudo lhe seria confiscado ao deixar Berlim. Pôs-se, portanto, a estudar cuidadosamente todos os trens que partiam dessa cidade e escolheu para a fuga o vagão que era atrelado ali ao Expresso do Oriente, simplesmente por ser o único onde havia uma possibilidade de ocultar o dinheiro. Sua tábua de salvação era uma placa de metal, com instruções aos passageiros, aparafusada na parede da cabine. Pensava o romeno que se tratava de um esconderijo seguro, à prova de todas as buscas. Trabalhou durante horas, desesperado, tentando desaparafusar a placa com um canivete, sempre com medo de que aparecesse algum condutor. Até que acabou por vencer. Enfiou lá as notas do banco, apara- fusou a placa de novo e sentou-se à espera. Chegaram à fronteira alemã. O funcionário da Alfândega entrou. Veio a Gestapo. Revistaram-no. Deram uma busca na cabine. Porém os nazistas não notaram a placa de metal e foram embora. O trem em breve passou a fronteira e o dinheiro do romeno salvou-se. Foi só então que o condutor meteu a cabeça pela porta entreaberta e disse: —- Espero que o senhor não tenha tido problemas com o seu dinheiro. O melhor local para escondê-lo é a placa na parede. É o que todo mundo faz, e aqueles animais caem sempre. — Piscou o olho e seguiu corredor abaixo. Antes da guerra, as personagens anônimas que frequentavam o Expresso do Oriente eram ainda mais interessantes do que as celebridades. M. Lebrun, um inspetor da Wagons-Lits que viajava de Istambul para Paris, tomou nota das pessoas que viajavam com ele na mesma cabine: um japonês que regressava do Iraque, um alfaiate de Berlim que fora a Bagdá tirar as medidas a alguns fregueses ricos que tinha ali, um professor da Pensilvânia que regressava de uma volta pelo Oriente Próximo, seguindo as pegadas de Alexandre, o Grande, e um nobre espanhol. A única celebridade do compartimento ia relativamente calada e retraída. Tratava-se do Sr. Lloyd George. Mas isso era nos bons tempos, lamentam hoje os funcionários da WagonsLits. E embora tenham decorrido apenas dez anos, pelo tom com que dizem isso, parece que foi há um século. Afirmam que a maioria dos viajantes de hoje são comerciantes que se dirigem a Zurique, ou italianos com passaportes precários, ou franceses que embarcam para comer melhor, ou representantes chineses na UNESCO. Queixam-se dos novos-ricos, “esses sanguessugas do mercado negro”, como eles lhes chamam, que dantes viajavam em terceira classe e agora invadem o Expresso do Oriente. — Só queria que visse — diz um dos conferentes do Expresso do Oriente — como esses novos-ricos pousam os pés no assento da frente, enchem o vagão de lixo e cospem no chão. Mas nós ficamos sempre em cima deles e os obrigamos a pagar tudo o que aparece sujo ou estragado. Esse conferente do Expresso é um velhote com um ar de bebê rosado, muito zeloso das suas obrigações, que há dias me levou à estação de Lyon para ver chegar o Expresso do Oriente que vinha de Sófia. À medida que os passageiros iam descendo do trem e passavam no meio de uma nuvem de vapor, evitando os carros de bagagem, o conferente interpelou o chefe do trem, um magricela com os dentes à mostra, dizendo-lhe: — Olha, este senhor que está comigo é escritor. Conte a ele que espécie de gente vinha nesta viagem. Eu já o avisei de que isto agora não é como antes. O chefe do trem cumprimeiltou-me com a cabeça, olhou para a lista dos passageiros e depois, numa voz impessoal, foi dizendo:
— A viagem foi calma. Direi que quarenta por cento dos atuais passageiros negociam no mercado negro ou fazem contrabando. O de sempre. Nossos 'condutores têm de se mostrar duros para lhes resistir. Lembra-se do que aconteceu em junho? Não? Jean-Pierre Coateval, o gângster, foi preso por utilizar catorze homens do nosso pessoal do Expresso do Oriente como contrabandistas de ouro, joias, moedas estrangeiras e até drogas, incluindo heroína, entre os vários países. A quadrilha distribuíra valores que montavam a trezentos milhões de francos. Bem, foi uma limpeza geral e agora nossos condutores estão acima de qualquer suspeita. Porém quarenta por cento dos passageiros, pelo menos, dedicam-se a essas atividades clandestinas. ' “‘Quem mais é que vinha? Oh, o de sempre. Funcionários do governo e dois correios diplomáticos com os bolsos abarrotados. Com esses a Alfândega não implica. Um coronel de regresso da índia. Àqueles - dois, que "Vão ali, vieram de Bueairesté, São judeus, terroristas da Palestina. Dizem que um vai para a Inglaterra dirigir uma companhia de sabotagem dos serviços públicos. Ah, sim, ainda há mais. Tem graça aquela professorinha turca. Entrou em Sofia. Uma mocinha muito nervosa. Na Iugoslávia puxou o alarme e fez o trem parar durante cinco minutos, de noite. Afirmou que tinha entrado um homem de sobretudo no seu compar- titnento, mas ela gritara e ele fugira, assustado. Uma coisa sem pé ném cabeça. Pois sé nós nem sequer conseguimos entrar porque ela fechara a porta por dentro! O condutor diz que viu um romance policial em cima da cama dela. Já uma vez aconteceu o mesmo, com uma moça inglesa que devia ter lido e ouvido muitas histórias a respeito do Expresso do Oriente, tudo tolices e disparates. Então, de noite, teve uma alucinação e puxou o alarme. Se o senhor quer histórias sobre o Expresso, venha cómigo ao café tomar um conhaque que lhe conto coisas dos tempos antigos e dos tipos de então.” Viramo-nos e eu quase esbarrei numa senhora. Uma morena, âltà e magra, de olhos negros e sorriso lânguido. Acabava de descer do trem e vestia um casaco de vison. Numa das mãos segurava um regalo da mesma pele e na outra, uma piteira de ouro. O.homem que Vinha atrás dela, limpando a cara gorda, coberta de suor, ia dizendò: Condessa, não acho direito que. .. Não ouví o festo porque o chefe do trCin do Expresso do Oriente caminhava a meu lado, tagarelando com utna voz muito aguda: —- Pois é verdade — dizia de. — O senhor devia ter vindo nos bons tempos de antes da guerra. . . O que aconteceu depois. . . Pouco depois que esta história foi publicada no Satur- day Evening Posi, em 12 de julho de 1947, encontrei por acaso meu amigo Joseph Wechsberg, conhecido escritor e grande garfo. Deu-me os parabéns, pelo- artigo sobre o Expresso do Oriente e disse-me que também gostaria de escrever sobre esse assunto. Efetivamente, passados uns anos, assim o fez. Depois da publicação da história de meu amigo Wechs- berg sobre o Expresso do Oriente, tivemos uma reunião no apartamento de um amigo comum, em Los Angeles. Nosso anfitrião disse-nos a certa altura: — Sinto-me satisfeito por reuni-los aqui, pois fiquei intrigada eóm uma coisa e espero que vocês me esclareçam. Ambos escreveram sobre o mesmo assunto, no entanto as versões slo totalmente contraditórias. Se não fosse por concordarem quanto às estatísticas e aos fatos históricos, eu diria que escreveram
sobre dois, Expressos do Oriente inteiramente diversos. Q de Irvíng é atraente; exótico, excitante. O de Joe parece que é. insípido, sem atrativos, maçante. O Expresso- db Oriente dq Irving oferece ao leitor a aventura e promete que o. trem não há de desmentir a sua lenda. O Expresso do Oriente, de. Joe só inculca. no leitor tédio e desapontamento, Qual de voeês: viu corretamente as coisas? Qual diz a verdade? Levantou-se viva discussão e, se bem me recordo, che- gou-se à conclusão de que víramos corretamente as coisas e ambos dizíamos, a verdade, O Expresso do Oriente que conhecêramos era apenas um. A diferença estava na mentalidade e na atitude dos, dois passageiros. Eu viajara num Expresso do Oriente romântico, porque eu epa até certo ponto um otimista e um sentimental; Wechsberg andara num trem enfadonho, porque também ele era, âté certo ponto, um sujeito de gosto refinado e um cínico! Não, era possível responder ao nosso amigo quando perguntava: “Qual de vocês diz a verdade?” Não era possível responder-lhe então nem tampouco hoje, porque ambos dizíamos a verdade — embora mais pelo que dizia respeito, a. nós próprios do que ao trem. Recordet-me çntão de uma frase cujo- autor.se ignora: “A verdade tem muitas faces, e todas são mentirosas”. Meu artigo era portanto uma das faces que eu vi do Expresso do Oriente. Nos dezoito, ou dezenove anos que decorreram depois de eu ter viajado pela primeira vez no Expresso do Oriente e haver escrito sua história* viajei nele e desfrutei tantas vezes; suas maravilhas que nem consigo contá-las, Fui nele de Paris a Milão e a Veneza, de Paris a Berlim, de Paris a Viena, ida e volta, e nunca me senti desiludido. Talvez protestasse em certas ocasiões ou deplorasse mesmo algumas lacunas quanto à comodidade dos passageiros, como por exemplo a falta de banheiros privativos, de ar-condicionado, de motores Diesel e de salas de estar comuns. Mas achei que essas falhas eram plenamente compensadas pelo que podíamos desfrutar e que não se encontra em nenhum outro trem: a incrível variedade dos cenários, a comida deliciosa, os vinhos extraordinários e, acima de tudo, as pessoas que conheci em cada viagem — a bela e provocante dançarina austríaca que regressava do Oriente, o homem de negócios iugoslavo atarracado que andava à procura do filho desaparecido dois dias antes na Itália, o condutor da Wagons-Lits que informava a todos que eu era Edgar Wallace, o inventor francês que falava de um encontro misterioso em Zurique, o diplomata russo que fingia que não me entendia quando lhe falava em inglês, mas que deixou a filha pequena brincar com a minha e depois lhe fez perguntas no inglês mais puro. Foi portanto com tristeza que soube do que estava acontecendo ao Expresso do Oriente, pelo menos segundo certas histórias que se liam nos jornais. Numa tarde de maio de 1961, com noventa passageiros a bordo, supunha-se que iria fazer a sua derradeira viagem da Estação do Leste, em Paris, até Budapeste. Sua última aparição em público fora muito falada na imprensa. Apontavam-se duas razões para acabar com o trem. Uma era o avião a jato, que lhe estava roubando a maior parte dos passageiros, a outra o fato de os funcionários da alfândega russa e os guardas da fronteira continuarem nele as suas buscas à cata de refugiados ou de contrabando; isso desmantelava parcialmente o trem todas as vezes que transpunha a Cortina de Ferro, o que dava lugar a atrasos e a transtornos que desanimavam tanto os passageiros como os responsáveis pela Wagons-Lits. Logo nos fins de maio, foi anunciado que o Expresso do Oriente, que ia de Paris, por Bucareste, até Veneza, Zagreb, Sófia e Istambul, fizera a sua derradeira viagem. Além de lamentar a perda do mais extraordinário trem do mundo, não conseguia compreender por que motivo o haviam desativado. É que, apesar da
concorrência das linhas aéreas e da interferência das autoridades comunistas, parecia-me que o Expresso do Oriente representava uma das poucas experiências aventurosas que ainda era possível realizar na Europa atual. Depois de passar em revista alguns acontecimentos relacionados com o trem depois de eu ter escrito o artigo sobre ele em 1947, fiquei com a impressão de que a aventura continuara a acompanhá-lo pelos anos afora. Em 1948, um adido militar dos Estados Unidos desaparecera do Expresso do Oriente de Altberg. Seu cadáver foi encontrado num túnel dos Alpes austríacos. Em 1962, alguns agentes comunistas prenderam um grupo de iugoslavos que tentavam fugir do seu país, escondidos nas caixas de metal das baterias, debaixo dos beliches. Apesar de todas estas coisas espantosas, meu amigo Joseph Wechsberg foi um dos muitos a escreverem o obi- tuário do trem: “A lenda do elegante Expresso do Oriente passou a ser uma história cansativa... O Expresso do Oriente perdeu grande parte da sua velocidade primitiva e praticamente até de sua elegância de outrora. Não passa agora de um trem econômico e vagaroso”. Havia uma revista que afirmava na notícia necrológica: “Sob a pressão da guerra- fria, o Expresso do Oriente. . . não poderá continuar a prestar-nos os mesmos serviços de antes. As janelas do trem já tremem; os vagões estão sujos e o pessoal já nem se lembra do que é uma boa gorjeta. Acrescente-se a isso que o avião invasor começou a transportar a todos — até espiões —• muito mais rápida e confortavelmente”. Meu velho amigo Art Buchwald, articulista e crítico profissional, que é um secreto romântico, tal como eu, lamentou muito as histórias que amesquinhavam o Expresso do Oriente. Quando, logo a seguir à despedida do trem, um viajante (que acabava precisamente de desembarcar do Expresso) disse a Buchwald que era inútil viajar nesse trem porque perdera todo o seu antigo encantamento, este, desolado, disse-me: — Mas se isso é verdade, então todos esses grandes livros que lemos, tais como o Expresso do Oriente, The lady vanishes e O comboio de Istambul, são mentirosos e nós fomos ludibriados. O amigo replicou com muita inteligência: — Não é tanto assim. Digam o que disserem, existe em cada um de nós qualquer coisa do Expresso do Oriente. Enquanto houver um livro de mistério para escrever, um filme para rodar, um programa de televisão para apresentar, o Expresso do Oriente continuará a nos falar à imaginação. Não acreditar no Expresso do Oriente? Seria o mesmo que renegar Papai Noel. O Expresso do Oriente vive e viverá eternamente. Daqui a mil ou mesmo dez mil anos ainda ele rodará nos seus trilhos por toda a Europa. Nunca se disse verdade maior. No entanto, um mistério permanece: terá o Expresso do Oriente desaparecido realmente? Creio que não, a despeito das notícias de sua morte. Ele vive ainda, não só no coração dos românticos — mas ainda nos horários da passagem dos Urais. No meu diário escrito em Florença e datado de 24 de agosto de 1964, leio o seguinte: “Tomei uma lancha a motor no Hotel Danieli, para a estação de trens de Veneza. O Expresso do Oriente já estava ali, vindo de Atenas. Tínhamos duas cabines. O Expresso do Oriente partiu de Veneza às doze e dez, com destino a Milão, Lausanne e Paris. . . O Expresso do Oriente levou-nos à Estação de Lyon, em Paris, onde chegamos às seis e vinte da manhã”. Há pouco tempo, para esclarecer a confusão causada pela notícia da morte do trem e de sua aparente ressurreição, consultei Oliver Chemiset, funcionário da Companhia Internacional dos Wagons-Lits em Paris. Segundo ele, essa notícia
necrológica publicada em 1962 era fruto de interpretações errôneas. O que terminara não fora a vida do trem; apenas se alterara o seu antigo percurso. O principal Expresso do Oriente já não vai de Paris a Istambul, via Viena e Budapeste. Segue simplesmente até Viena e não passa daí. O Expresso do Oriente de Altberg, que costumava seguir para Bucareste e Atenas, termina igualmente em Viena. E o Simplon-Expresso do Oriente, em lugar de ter entregue a alma ao Criador em 1962, sofreu apenas uma mudança de nome. Chama-se agora Expresso do Oriente Direto e, por cento e trinta e seis dólares, preço de uma passagem de primeira classe, o viajante sequioso de aventuras pode embarcar em Paris, passar por Lausanne, Milão, Viena, Trieste, Belgrado e Sófia e desembarcar em Istambul. Só quando M. Chemiset começou a falar de projetos destinados a tornar o Expresso do Oriente mais democrático e moderno — compartimentos de três beliches e preços mais baixos, lanchonetes e cafés em lugar de jantares — é que eu me pus a andar. Já ouvira o que queria; que haverá sempre, como ainda em 1964, um Expresso do Oriente à minha espera para ir gozar outro verão em Veneza. Sim, amigo. Existe ainda um Expresso do Oriente. Não faça caso das notícias necrológicas. São mentiras. Escute ainda uma coisa, amigo. Não faça caso dos boateiros. Acredite no que digo. Naquela última manhã, eu seguia no corredor do Expresso do Oriente, que atravessava a Suíça c a França, e querem saber uma coisa? Lá estava uma dama em apuros. A verdade é que ia apenas a caminho do banheiro. Mas en- vergava um comprido casaco de vison, um casaco de vison e nada mais, amigo. Quando estas coisas começarem a acontecer num avião, jogo fora minha passagem da WagonsLits e começo a voar. Mas, antes disso, não. Claro que não!
10 A Coluna da Agonia Até o dia em que, em 1933, pegou no seu jornal londrino, Times, e começou, como de costume, a ler os anúncios classificados da coluna de assuntos pessoais, o Sr. Peter Fleming, um jovem inglês esbelto e sonhador, levara uma vida relativamente monótona e sedentária. Fleming fizera parte dos estudos em Oxford, tivera um contrato com a BBC e um emprego de curta duração em Wall Street, Nova York. Agora, como editor literário do Spec- tator, de Londres, estava a salvo de todos os perigos, a não ser das cãibras de escritor. Às vezes jogava tênis, mas seu esporte favorito, dentro de casa, era ler os classificados de assuntos pessoais do Times. Naquela coluna, que era a mais famosa e importante do mundo no seu gênero, Peter Fleming encontrava um motivo de distração. “Que estranha espécie de criatura será esta que perdeu um lobo da Alsácia chamado Effie no Battersea Park?”, pensava enquanto lia. “E por que Bingo estáf tão desesperado? E para que Caixa A quer uma tartaruga?” Naquele dia especial, em 1933, quando lia como de costume todas aquelas românticas e misteriosas mensagens pessoais, deparou com uma que o fez subitamente aprumar- se na cadeira. Dizia o seguinte: “Expedição de exploração e caça, sob o comando de pessoa experimentada, parte em junho da Inglaterra, a fim de explorar os rios do centro do Brasil e, se possível, colher elementos sobre o destino do Coronel Fawcet; caça de toda espécie em abundância. Há duas vagas para caçadores; dão-se e exigem-se as melhores referências. Escrever para Caixa X, The Times, E. C. 4”. Pela primeira vez na vida Fleming não ficou ociosamente pensando, nem deixou que sua fantasia devaneasse sobre aquele anúncio. Em vez disso, tratou de respondê-lo. E assim, dentro de poucos meses, viu-se transportado para o meio da selva primitiva de Mato Grosso, no centro do Brasil. Aí, dirigido por um americano a quem chamou Major Pingle, Fleming atravessou rios a vau no meio de piranhas, espantou insetos importunos, e escondeu-se dos animais ferozes, sempre em busca de vestígios da passagem do famoso Coronel Fawcet, que desaparecera em 1925, quando procurava a célebre Cidade do Ouro. No fim da excursão, Peter Fleming escreveu um livro cheio de humor, Aventura brasileira, logo transformado em best seller. Além da fama e do dinheiro que o livro lhe valeu, tornou-se também explorador na Tartária e viajou depois pela Rússia, pelo Japão e pela China. Depois casou-se com Celia Johnson, que se tornaria, mais tarde, estrela de cinema, no filme Breve encontro. O anonimato, os sonhos e a vida sedentária estavam agora longe, tudo por causa dos classificados do Times de Londres. Claro que a história desse caso incomum não significa que a Coluna da Agonia, como é conhecida essa seção do Times, seja cura garantida contra o tédio. Mas, em consequência das antigas façanhas, essa coluna, tal como todas as suas similares, continua a ser um dos modernos reservatórios de romance e aventura ocultos no mundo real da bomba atômica, da inflação e do comunismo. Poucos leitores da Coluna da Agonia sucumbem realmente aos seus convites numerados. Peter Fleming foi uma das poucas exceções. A maioria dos leitores prefere gozar suas aventuras por conta de outros, sentados numa poltrona, ou no ônibus. Todos sabem que William Flazlitt, Charles Dickens, Thomas Hardy e o Cardeal Newman eram leitores assíduos dessa seção. O mesmo
se dava com Disraeli e com a Rainha Vitória. Hoje, a rainha da Inglaterra, ao ler a sua edição real do Times, impressa em papel especial, é uma adepta da Coluna da Agonia. Entre os chefes de Estado, o falecido Benito Mussoíini confessou que costumava lê-la. Winston Churchill, assim como outras dezenas de políticos, encontrava uma espécie de descontração na leitura daqueles anúncios. Talvez o mais célebre de todos os leitores tenha sido Sherlock Holmes, a quem ainda hoje se dirigem cartas, que todos os dias os Correios de Londres recebem com o endereço Baker Street, número 221. Na Aventura do polegar do engenheiro, o fiel Watson informa que “Sherlock Holmes se encontrava, como eu supunha, recostado na sala, de roupão, lendo a Coluna da Agonia do Times’’. Pondo o jornal de lado, Sherlock Holmes confessa: “Não leio nada a não ser as notícias de crimes e a Coluna da Agonia. Ela é mesmo muito instrutiva”. Tanto para os detetives como para os criminosos, a Coluna da Agonia foi sempre muito útil. Em 1916, Anna Maria Lesser, a bela Frauleín Doktor dos serviços secretos alemães, penetrou na Inglaterra em plena Primeira Guerra Mundial fazendo-se passar por irlandesa, com o respectivo sotaque e tudo. Em face de um boato de que os ingleses tinham inventado uma máquina revestida de ferro capaz de vencer a luta de trincheira na frente ocidental, Fraulein Doktor instalou-se numa aldeia perto de Hatfield Park. Conseguiu afastar o chefe dos escoteiros do local, ofereceu- se para substituí-lo e utilizou os seus inocentes subordinados para espionar as experiências secretas que se realizaram na presença de Jorge V e de Lorde Kitchener. Um dos escoteiros assistiu a tudo de cima de uma árvore e descreveu, com todos os pormenores, a Fraulein Doktor, o primeiro tanque fabricado, e a espiã passou a informação para a Alemanha. Quando as coisas se complicaram, Fraulein Doktor usou a Coluna da Agonia, pelo menos duas vezes, para comunicar suas descobertas a outros espiões que partiam para o continente. É sabido que algumas alemãs diplomadas pela infame escola de Elzbeth Schragmuller, em Antuérpia, mantiveram contato constante umas com as outras e com os chefes por meio da Coluna da Agonia, publicando mensagens estranhas, por saberem que, por mais misteriosas ou extravagantes que fossem, nunca levantariam suspeitas. Na Segunda Guerra Mundial, os agentes nazistas na Inglaterra tentaram repetir a façanha de seus antecessores. Os serviços secretos ingleses confessam que foram feitas algumas tentativas desse gênero e imediatamente foram tomadas providências para impedir a utilização da Coluna da Agonia pelos espiões inimigos. Anúncios estranhos ou suspeitos eram submetidos, pelo Times, à censura governamental. Mensagens misteriosas, dirigidas a pessoas que nunca haviam publicado nada na coluna, foram muitas vezes recusadas. Em muitos casos, tanto o Times como o serviço secreto inglês fizeram rápidas investigações sobre os antecedentes dos anunciantes. Hoje, a Scotland Yard utiliza a coluna como arma não- oficial na perseguição a assassinos, ladrões, chantagistas e aventureiros. Embora o Times não permita que se publiquem anúncios em línguas estrangeiras, admite-os em código ou cifra. Várias vezes, a Scotland Yard decifrou mensagens em código, descobrindo o que os criminosos comunicavam entre si. Certa vez, os detetives da Scotland Yard, depois de descobrirem o código de um chantagista, publicaram uma resposta falsa no mesmo código. O chantagista foi descoberto e preso. No entanto, a Scotland Yard não é a única entidade capaz de decifrar códigos. Por vezes, os leitores comuns, que consideram a Coluna da Agonia uma diversão superior às palavras cruzadas, tentam encontrar a chave de uma cifra.
Essa brincadeira é tão divertida quanto violar a correspondência de outra pessoa. De tempos em tempos, um brincalhão insere falsas mensagens, utilizando a mesma cifra, e atrapalha o início de um romance. Foi o que aconteceu, há noventa e quatro anos, e com tristes consequências. Havia dois namorados que se comunicavam assiduamente através da Coluna da Agonia. Seus recados eram cifrados. A 11 de fevereiro de 1853, comunicaram-se mais uma vez da seguinte maneira: “CENERENTOLA. Jsyng rd mifwy nx Xnhp mfaj ywnji yt kwfrj jcugfltyns Kwt dtz gzgy hfssty Xngfshj nx xfsjxy nk ymf ywzj hfzxj nx sty zxzujhyji; nk ny tgg xytwnjx bngg gj xnkyji yt ymj gyytr. It dtz wjrjrgiw tzw htzn’x knwxy uwtutznynts: ymnsp tk ny”. O vilão da história' ao que parece o pai da moça, reparou na mensagem, desconfiou da filha e do namorado, e resolveu dar-lhes uma lição. Estudou a linguagem cifrada, e verificou que ela era, na verdade, das mais simples. Baseavase num código primitivo utilizado por Júlio César. De posse da solução, o pai tirano, resolvido a provar ao jovem casal fugitivo que sabia o que estava sendo tramado, traduziu a mensagem cifrada e publicou-a assim mesmo na Coluna da Agonia. Dizia o seguinte: “CENERENTOLA. Tenho tentado arranjar uma explicação para lhe dar, e já sinto o coração doente, mas não consigo. O silêncio é preferível, se a verdadeira causa não for descoberta. Se tal acontecer, todas as histórias serão passadas a pente fino. Lembra-se da proposta do nosso primo? Pense nisso. N pstb Dtz”. Salvo a correção de alguns erros ortográficos imperdoáveis, o pai da jovem só acrescentou uma coisa. Eram as três últimas palavras, escritas no mesmo código que ele decifrara — N pstb Dtz — e que significavam “Sei quem você é”. Mas o pai não se deu por satisfeito. Dépois de descobrir o código e publicar a sua solução, resolveu responder ao texto com uma mensagem de sua autoria. A 19 de fevereiro dirigiu-se aos namorados, na Coluna da Agonia, nos seguintes termos: “CENERENTOLA. Que disparate! A proposta do seu primo é absurda. Arranjei uma explicação, que é verdadeira e satisfaz plenamente a ambas as partes, coisa que o silêncio nunca conseguiria. Basta de tolices”. Foi o fim. O 'casal nunca mais trocou recados misteriosos. Pelo visto, o pai tirano vencera, e o leitor assíduo viu- se obrigado a regressar tristemente aos anúncios mais come- zinhos, em que se pedia ao filbo pródigo o regresso ao lar ou então em que se recomendava “esta noite, no mesmo lugar, à hora do costume”. Hoje, embora possa ser considerada uma instituição inglesa aceita por todos, a Coluna da Agonia não é uma instituição exclusiva das ilhas Britânicas. Existem imitações nos jornais de todos os países civilizados do mundo e em todos os Estados da América. O americano que pretende viver sua aventura caseira pega o Daily News, de Nova York, o Tribune, de Chicago, ou o Chronicle, de San Francisco, e procura, deliciado, os anúncios pessoais; lê apenas variantes de uma ideia iniciada pelo Times de Londres em 1785. O contista americano O. Henry confessa que tirou muitas das suas ideias desse hábito de ler os classificados. A coluna de assuntos pessoais, como forma de divertimento barato e ponto de partida para divagações, faz hoje parte da vida americana. The New York Times sozinho recebe nem mais nem menos do que duas mil e quinhentas mensagens pessoais, e grande número dessas fazem parte da melhor tradição da Coluna da
Agonia. Algumas das mais recentes incluem um pedido de “casa mal-assombrada em Manhattan”, e outra procura compradores interessados em sessenta mil quilos de ossos de galinha limpos. Outro anúncio típico do New York Times pedia que “qualquer pessoa sa- bedora do paradeiro de Robert Charlton, visto pela última vez em Nova York, no ano de 1900, ou de algum dos seus descendentes, entrasse em contato com Gilbert Charlton (irmão), Brighton Avenue, 15, Petersham, Nova Gales do Sul, Austrália”. Passado um mês, o New York Times vinha a saber que os dois irmãos, separados durante quase meio século por muitos milhares de quilômetros, haviam se encontrado de novo através do anúncio. No outro extremo do país, o Times de Los Angeles, na sua coluna de assuntos pessoais, insere mensagens provocantes, que começam assim: “Sentese só? Envio pormenores gratuitamente”. Outras prometem com toda a facilidade as coisas mais estranhas. Para quem quiser dinheiro, por exemplo, “Capital em troca de diamantes”. Para os que procuram parentes, “investiga-se o paradeiro de pessoas desaparecidas” e, para os menos exigentes, “procura-se casa séria para menino de doze anos”. Em virtude do seu valor como diversão para os leitores e também como fonte de receita, a coluna de anúncios pessoais passou dos diários para as revistas populares e até para os jornais de comércio. Um semanário americano, o Saturday Review, apresenta alguns dos melhores exemplares dessas mensagens. Num número qualquer encontramos a seguinte: “Indivíduo do sexo masculino, invulgarmente estúpido, extremamente desajeitado, sem graça e inofensivo, procura senhora nas mesmas condições”. E também: “Senhora, cansada da aridez da vida urbana, deseja corresponder-se com as colinas verdes e distantes”. Encontramos também o anúncio de um detetive que se dispõe a fornecer “informações discretas” sobre “qualquer assunto, pessoa ou problema, em qualquer parte”. Essas versões americanas da Coluna da Agonia, embora boas, não são as melhores. O primeiro lugar continua a pertencer ao Times de Londres. Essa coluna tornou-se uma lenda que vai sempre aumentando, porque ultrapassa as imitações. Earl Derr Biggers, antes de criar a figura de Charlie Chan, utilizou a Coluna da Agonia como assunto e título de um romance policial. Tanto Edgar Wallace como Sir Arthur Conan Doyle buscavam nela elementos para as suas histórias. Ainda há poucos anos, dois psicólogos americanos foram buscar anúncios dessa natureza para ilustrar diferenças de caráter no seu extenso volume Intrigas e personalidades. Hoje em dia, a Coluna da Agonia aparece diariamente na primeira página do Times de Londres. Com as suas sete colunas de tipo miúdo, é a única primeira página de Londres, e uma das poucas do mundo, dedicada às mensagens pessoais. A terceira coluna da esquerda, conhecida como Coluna da Agonia, é encabeçada pelo título “Pessoal”. Abaixo desse cabeçalho, acha-se uma breve passagem da Bíblia, e todos os dias é transcrita uma citação diferente, apresentada pelos leitores. Uma citação típica, que apareceu numa edição recente, dizia assim: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti — Lucas VI, 31”. Os anúncios ocupam o lresto da coluna. Muitas pessoas querem publicar mensagens de trinta e quarenta linhas, mas estas são devolvidas, visto ser preciso uma razão especial para que se permita mais de cinco linhas ou trinta palavras. Os anúncios de versos são recusados, bem como os fac-símiles. A proibição destes últimos foi, no entanto, suspensa, mas apenas uma única vez, “no interesse da justiça”, em 1845. Um cavalheiro rico recebera três cartas de ameaças, cada uma delas escrita com letra diferente. Quis publicar os fac-símiles
dessas cartas, juntamente com a oferta de uma recompensa de cem libras a quem conseguisse identificar qualquer delas. A polícia achou que era uma boa ideia, e por isso o Times cedeu e publicou as cartas, com a letra original. O funcionário encarregado da Coluna da Agonia é um homenzinho baixo, grisalho, calado e prudente, já de idade, chamado Sr. L. Canna. Administra os anúncios pessoais do Times há mais de trinta anos e há dois foi encarregado da Coluna da Agonia. Seus domínios consistem numa sala ventilada demais (foi danificada por uma bomba da Luftwaffe durante um bombardeio), no edifício do Times, perto da Printing House Square, em Londres. A sala possui um balcão e guichês semelhantes aos dos Correios, onde a maioria dos anunciantes vai pessoalmente levar as suas mensagens. Poucos anúncios chegam pelo correio, alguns vindos dos Estados Unidos. Os americanos gostam de publicar anúncios oferecendo aos ingleses os seus trajes velhos para vender, mas o Sr. Canna não pode aceitá-los por causa da alfândega inglesa. O principal problema do Sr. Canna é a censura do pós- guerra. — A Coluna da Agonia não aceita ofertas de adoções — diz ele —, não dá guarida a rixas políticas nem a propostas matrimoniais ou a correspondência de corações solitários. Durante a guerra, segundo informa o Sr. Canna, a Coluna da Agonia estava cheia de anúncios matrimoniais de soldados americanos aquartelados na Inglaterra. — Os soldados costumavam descrever as moças que preferiam, a altura e o peso e, em muitos casos, sugeriam que um pequeno capital seria um ponto em favor da jovem. A maioria deles juntava ao texto a sua fotografia. Nós recusávamos tudo, explicando que o Times não aceitava aquela espécie de mensagem. O Sr. Canna está sempre atento a outras espécies de transgressão. Caso um homem pretenda repudiar as dívidas da mulher na Coluna da Agonia, sua declaração é submetida ao parecer de um advogado. Quando uma dona-de-casa deseja vender a mobília, tem de provar sua identidade e dar seu endereço, visto que o Times não quer que os lojistas se utilizem da sua coluna. Se, depois de um roubo, a vítima pretende declarar que quem fizer a entrega dos objetos roubados “será recompensado” e “não se farão perguntas”, o Sr. Canna recusará, visto que tal mensagem colocaria o Times na posição de acobertador de um crime. Diversas obras de pesquisa tentaram em vão analisar o caráter dessas mensagens que aparecem na Coluna da Agonia. A augusta Encyclopaedia Britannica descreve a Coluna da Agonia como uma seção dedicada a “anúncios de coisas perdidas e pedidos... e também um meio de transmitir pedidos matrimoniais”. Diante disso, o Sr. Canna sacode a cabeça: — Inteiramente falso e incorreto — declara ele. Nesse momento costuma puxar por uma brochura sobre a Coluna da Agonia, publicada pelo Times, a qual define com maior dramaticidade essa seção: “A parte mais humana da leitura encontra-se na nossa coluna de assuntos pessoais. É aí que aparece, em linguagem original, o próprio homem da rua”. A maior parte dos empregados do Times é de opinião que o espírito da coluna foi maravilhosamente captado pelo leitor habitual, Peter Fleming. “A Coluna da Agonia é um mundo de romances”, escreve Fleming, “através do qual os amantes desunidos correm constantemente para os encontros habituais, à hora habitual; um mundo onde se deixam constantemente joias nos
táxis que rodam para destinos por certo muito duvidosos; um mundo de cavalheirismo de outros tempos e de nobreza desesperada, povoado sobretudo por antigos estudantes de Eton e damas da nobreza; um mundo em que cada objeto possui um valor sentimental, cada jovem tem boa aparência e só se trocam as melhores referências; um mundo ansioso, urgente, misterioso; um mundo onde tudo pode acontecer.” É na verdade um mundo onde tudo acontece. Um mundo onde surgiu a seguinte mensagem (que teve a honra de transgredir as severas restrições do Times), que por si só é um romance ou o argumento de um filme: “Par do reino e sua esposa, enérgicos, competentes, ele com prática militar e de negócios, conhecimento de línguas (francês e alemão), ela, boa organizadora, dois anos e meio de prática de enfermagem (militar e hospitalar), desejam colocação em conjunto, com pensão; dispensam ordenado. Preferem Londres ou o sul ou sudoeste da Inglaterra”. Nos últimos anos, essa torrente de mensagens, ora dramáticas, ora curiosas, tem aumentado sempre. As preferidas do Sr. Canna incluem a oferta de uma minúscula ilha perto da costa continental espanhola e outra anunciando uma ilha nas Bahamas a preço reduzido. O Sr. Canna lembra-se também de um homem que, na Coluna da Agonia, pedia um papagaio, oferecendo quatro dólares por cada palavrão que o bicho soubesse dizer. O Sr. Canna arquiva muitas vezes os seus anúncios preferidos. Um deles é o seguinte: “Aluga- se um tigre adulto de Bengala criado na floresta. Muito ativo”. A Coluna da Agonia tem incluído anúncios oferecendo uma ninhada de leõezinhos para venda, um pedido de filhotes de macaco (pagos a cento e cinquenta dólares o quilo), um pedido de canecas para sabão de barba e uma oferta de compra de todas as harpas eólias que se pudessem obter. Por vezes, aparecem misteriosos anúncios do Imposto de Renda, acusando o recebimento de dinheiro enviado por pessoas que, tendo sonegado o imposto, se arrependem e enviam o dinheiro. Quando de minha recente visita ao Times de Londres, percorri inúmeras fichas relativas à coluna de assuntos pessoais. Um anunciante comum anunciava que tinha para vender um “Rolls-Royce usado” ou então um “vestido de noite usado apenas uma vez”. A maior parte eram ex-soldados à procura de “colocações bem-remuneradas”, incluindo um tenente-coronel que possuía “um carro possante” e um “ex- comandante da RAF que sofria de um excesso de inércia política”. Havia o jovem contabilista que, não tendo dinheiro para sustentar a mulher e duas filhas, desejava “contatar com um cavalheiro interessado em aceitar a hipoteca de minha casa”. Havia ainda uma pessoa possuidora de “relíquias de Nelson para vender, preferem-se compradores americanos”. Outro “anunciante desejoso de se libertar da tirania da posse, vende automóvel, quadros, máquinas fotográficas, selos, espingardas”. E, tal comó antes da guerra, uma “senhora licenciada em Oxford oferece-se para guiar um pequeno grupo de jovens em viagem de instrução à França, Suíça, Itália e Portugal”. Nessas colunas conheci gente muito interessante. Uma “senhora que recebe, mediante pagamento, hóspedes em sua bela casa de campo”. O “jovem oficial desmobilizado” que pede instruções sobre a “criação de cogumelos”. O “cavalheiro gago” que “deseja conhecer cavalheiro sofrendo do mesmo defeito, a fim de discutir com ele os processos de cura da doença comum”. Também encontrei uma “senhora de vinte e cinco anos, desejosa de conhecer o mundo”,
um “ex-major de vinte e nove anos” que se sente “isolado neste mundo de comercialismo moribundo” e uma “dama de quarenta e seis anos que sofre horrivelmente de ruídos dentro da cabeça”. Outras mensagens intrigam-nos com os seus dramas em meias palavras: “Definitivamente NÃO. Demasiado dogmática. Nada há de comum entre nós. O”.'' “C. A. Deve manter-se firme custe o que custar. Mãe desolada.” “Pretende-se alojamento para cavalheiro sujeito a crises alcoólicas. Pede-se vigilância.” “Agradeço a Nossa Senhora de Lourdes. H. B.” “Susan. Por favor, diga-me como está e o que faz. O tempo não mudou nada. Amo-a sempre. John.” “Residente em Hong Kong, tendo-lhe sido confiscada a livraria durante a ocupação japonesa, pretende negociar emprego.” “Esqueleto articulado, precisa-se.” Embora os anúncios atuais me pareçam cheios de possibilidades dramáticas, não passam de intrigas sem importância, comparados com os de outros tempos, mais patéticos, perversos ou cômicos. Apesar de a primeira coluna de mensagens pessoais do Times ter aparecido pela primeira vez em 1785, certos anúncios desse tipo já apareciam quando o jornal era ainda conhecido pelo nome de Daily Universal Re- gister. E, mesmo antes disso, foram publicadas mensagens pessoais muito estranhas, como a que apareceu em Londres, no ano de 1749, fazendo parte, ao que parece, dé uma gigantesca farsa. Nesse ano, várias pessoas célebres, incluindo o Duque de Portland e o Conde de Chesterfield, estavam sentadas no seu clube de Londres, discutindo a questão da credulidade humana. — Aposto — afirmava o duque — que, se um homem anunciar o maior disparate do mundo, haverá sempre palermas em Londres capazes de encher uma casa de espetáculos, ansiosos por assistir à façanha. O Conde de Chesterfield objetou: — Se alguém afirmar ser capaz de saltar para dentro de uma garrafa de um litro ninguém acreditará. Era um desafio ousado, mas o duque fez frente ao adversário. Teimou em que as pessoas seriam suficientemente ingênuas para acreditar nisso, e fez a aposta. Ambos escreveram o seguinte anúncio: “NO NOVO TEATRO DE HAYMARKET, na segunda-feira, 16, ver-se-á uma pessoa executar a coisa mais extraordinária do mundo, ou seja, apresentará aos espectadores uma garrafa comum que quem quiser examinará à vontade; esta garrafa será colocada sobre uma mesa no meio do palco e essa pessoa (sem perigo de equívoco) entrará dentro dela, à vista dos espectadores, e ficará cantando lá dentro; enquanto ela estiver lá dentro, todos poderão pegar na garrafa e verificar que esta não excede o tamanho comum. Às entradas serão vendidas no próprio teatro. O espetáculo começa às seis e meia”. O aparecimento de tal anúncio causou sensação em Londres, Houve grande
procura de entradas, que custavam sete xelins, e, na noite combinada, a plateia, os camarotes e as galerias encontravam-se apinhadas de gente. Esperaram com paciência até chegar a hora marcada e depois começaram a assobiar e a bater os pés no chão. O gerente do teatro apareceu, fez uma mesura, pediu desculpas pela demora e anunciou que o dinheiro seria restituído aos espectadores caso ò artista não aparecesse dentro de um quarto de hora. Passaram-se quinze minutos, trinta, uma hora. O público das galerias começou a assobiar ameaçadoramente. Um nobre atirou uma vela acesa do seu camarote para o palco. Depois, a assistência começou a levantar-se, arrancar os bancos e as cadeiras, a rasgar os estofados e os cortinados. Empilhada na rua, a mobília era transformada numa enorme fogueira. No meio da confusão houve alguém que fugiu com a verba da bilheteria. E o Duque de Portland ganhou a aposta. A partir daí e durante cento e sessenta e dois anos, a Coluna da Agonia conservou sempre o seu lugar, oferecendo campo para a imaginação dos leitores. Deu-se um caso muitíssimo romântico em 1795, ano em que, a 20 de agosto, pareceu no Times, que então contava dez anos de existência, a notícia que se segue: “À dama que na terça-feira de manhã, entre o meio-dia e a uma hora da tarde, foi abordada por um cavalheiro quase no alto da King Street, em Covent Garden, e que, após haverem caminhado juntos durante um bocado, se separaram abruptamente, pede-se o favor de escrever duas -linhas ao dito cavalheiro, dirigidas a A. B. no Café Turk’s Head, no Strand, onde a mensagem lhe será entregue, e na qual indicará o dia, a hora e o local onde ele poderá ter o prazer de encontrá-la de novo, pelo que lhe ficará muito grato”. Nossa imaginação delira. Quem seria aquele cavalheiro tão impetuoso? Vinha da província, sem dúvida, do contrário não passearia por aqueles lugares da cidade e não se teria dirigido a uma dama sozinha. E ela? “Quem seria a bela que causou tamanha impressão no cavalheiro que a abordou?”, pergunta um editor do Times. “As damas que se costuma encontrar por acaso em Covent Garden, sozinhas e de fácil abordagem, não são geralmente do tipo que exijam um apelo no Times para que as possamos encontrar outra vez. Quem seria ela? Clarissa Harlowe ou Moll Flanders? Uma condessa disfarçada? Uma criada disfarçada com os trajes da senhora (o século XVIII era fértil em casos desse tipo)? Uma jovem emigrada em apuros do outro lado do canal?” E o que teria ocasionado a súbita separação de ambos? A chegada da dama de companhia ou do marido? E, depois de ter sido publicada a mensagem, ter-se-iam voltado a ver? Qual seria o seguimento daquela tragicomédia? A Coluna da Agonia limitava-se a pôr a questão, a abrir o jogo. Cada leitor que arranjasse a resposta. Havia porém outros anúncios mais provocantes. Em 1795, apareceu uma mensagem simples, mas de certo modo aterradora: “Grande conjunto de joias belas e valiosas, propriedade da falecida Madame du Barry”. Essa dama tinha morrido com a cabeça cortada dois anos antes. E, em 1798, quando os anúncios matrimoniais eram ainda permitidos, um cavalheiro, dotado de certo humor, procurava esposa: “Sinto-me em perfeita saúde e sou bem constituído. Tenho, no entanto, uma certa fraqueza nos joelhos, ocasionada por um pontapé de uma avestruz”. E, no mesmo ano, apareceu divertida mensagem: “Foram encontrados dois porcos nadando no Tâmilsa, perto da Westminster Bridge. Quem os salvou espera uma recompensa razoável na taberna O Cisne, perto de Lambeth Church”. Em 1800, fazia-se o reclame de uma enorme série de medicamentos e novas invenções. Na Coluna da Agonia, um “facultativo” punha à venda o seu “Patent
Coestus”, que era um cinto elástico “usado pela minha família há mais de quinze anos, destinado a preservar das pressões os órgãos vitais e a fazer com que a silhueta mantenha aquela forma oval tão notável nas esculturas gregas”. Outro anúncio oferecia o “Fogão Mágico Soyer”, que “permite a um cavalheiro fazer o jantar dentro do bolso”. E mais sensacional ainda é o primeiro anúncio feito pelo gênio que inventou os suspensórios, “umas novas alças suspensivas, que seguram as calças sem ser preciso ajustá-las em volta da cintura e que as mantêm largas e no seu lugar”. Entre os anos de 1848 e 1900, a Coluna da Agonia vem recheada de anúncios estranhos e nunca vistos: “Tu não podias falar. Foi tudo tão rápido.” “Eu sou bom cavalheiro. O verde é a minha cor preferida. Preciso de dinheiro.” “Casa pequena. Perigo. Atravessa o mar.” “Estou morrendo hora a hora desde sexta-feira pela manhã. Onde estás e quando voltas? J. S.” “A minha bandeira está pregada e não atada ao mastro real. T.” “Pátio de Elampsthead Heath. Aconteceu uma coisa. Cravinho. Tudo me caiu em cima. Temos de procurar a nossa força no passado.” “T. deseja encontrar Bird. Infeliz.” “Se o jovem que deixou Islington no domingo à tarde se lembrar que tem mãe, fica informado de que não tardará a perder esse tesouro no caso de não escrever imediatamente dando informações ou de voltar à sua presença.” “Aviso-te de que deves cumprir a tua palavra, caso .contrário sofrerás as consequências. As leis foram feitas para banir os patifes da sociedade.” No entanto, durante a era vitoriana, as mensagens mais curiosas encadeavam-se, pois as partes interessadas correspondiam-se por esse processo. Os leitores liam a seção de anúncios com a mesma avidez que lhes despertavam os folhetins de Dickens. Por exemplo, entre julho e novembro de 1850, apareceram as seguintes mensagens: “A pomba de uma asa só morrerá se acaso o grou não voltar para defendêla dos seus inimigos.” “Somerset, S. B. O companheiro da pomba terá de bater asas para sempre, a não ser que se modifique a situação material.” “Basta, só encontrei neste mundo um homem honrado. Afasta-se sempre de mim. De coração frio e espírito mesquinho, perdeu aquilo que não poderia ser comprado por milhões nem por um império, mas que apenas uma palavra sua poderia ter tornado seu eternamente! Mas eu o perdôo. Vá em paz, que eu fico com o meu Redentor.” “O companheiro da pomba vem dizer-lhe um último adeus. Adeus, ilhas Britânicas, muito embora tal resolução não possa cumprir-se sem um desgosto profundo. W.” A série mais misteriosa compunha-se de três enigmáticas mensagens publicadas em três anos diferentes. Em março de 1849, no dia 24, lia-se o seguinte: “Não há capacho esta noite”. Um ano depois, a 28 de março de 1850, o misterioso correspondente declarava: “Capacho e feijões esta noite”. Dali a mais
um ano, a 28 de março de 1851, publicava-se apenas: “Capacho esta noite”. Os observadores da Coluna da Agonia especularam anos sobre essa série. Que significado teria a palavra “capacho”? Significaria a ausência de um pai severo, de um marido ciumento ou indicaria a vítima de um crime? A história não nos fornece outra resposta que não seja a do próprio leitor. A mais longa série de anúncios na Coluna da Agonia durou quinze anos, de 1850 a 1865, e foi publicada por um milionário excêntrico chamado E. J. Wilson. As mensagens sucederam-se (quando o Times admitia textos em línguas estrangeiras), escritas em francês, alemão e inglês, e contava-se nelas uma história triste. Wilson trabalhava na alfândega, possuía fortuna pessoal, casara e tivera uma filha. Vira-se envolvido num caso de contrabando e a mulher separarase dele. Durante quinze anos, tentou, através da Coluna da Agonia, fazê-la regressar ao lar. As mensagens seguiam-na quando ia de viagem a Estocolmo e a Paris e, nelas, o marido acusava-a abertamente de ter um amante. Ela replicava na Coluna da Agonia: “Está enganado, não amo ninguém; mantenho-me sempre fiel aos laços antigos. Abra uma ação contra mim e investigue. Mary”. Muitos dos anúncios de Wilson eram escritos em código: “ACHILLES vai ao leme. A corrupção afunda-se e a virtude vem à tona. E. J. W”. Finalmente, em outubro de 1865, depois de haver perdido o emprego, a fortuna e a saúde, Wilson arranjou como se encontrar com a mulher que não via há uma década e meia. O momento e o local do encontro foram marcados na Coluna da Agonia. Qualquer que tenha sido o resultado desse encontro, Wilson não publicou mais nada. E, hoje, outros lhe seguem as pegadas. No tipo miúdo da Coluna da Agonia e num vocabulário onde abundam as palavras “desesperado” e “morto de pesar”, os amantes desunidos continuam a encontrar-se, fazem-se ainda planos para ganhar milhões, continuam a vender-se belos chalés na Escócia, e os aventureiros que desejam tomar parte em “qualquer espécie de aventura lucrativa” continuam a ler as colunas cada vez mais consultadas das Hipotecas, dos Empregados do Estado, das Ofertas de Colocação. . . dos Nascimentos e dos Óbitos. O que aconteceu depois. . . Comecei a interessar-me pela Coluna da Agonia quando ainda morava em Athenaeum Court, perto do Green Park, e mais tarde no Hotel Savoy, em Londres, durante o rigoroso inverno de 1946 e 1947. A cidade sofria ainda os efeitos da Segunda Guerra Mundial e os víveres continuavam racionados. O preço normal de um jantar frugal no pós-guerra era de cinco xelins, muito embora, caso se fosse a um restaurante de mais categoria, o acréscimo de dois ou cinco • xelins fosse debitado como “despesas por conta da casa”. O almoço era sempre constituído por uma omelete de ovos em pó e chá. O jantar compunha-se de três pratos: sopa de purê de batata muito grossa, galinhá frita e um doce. Se o freguês queria pão para acompanhar o jantar, tinha de passar sem um dos pratos. Como sou um incorrigível comedor de pão, que não fazia parte das refeições, andava sempre esfomeado. Na verdade fiquei devendo o momento culminante dessa minha estadia em Londres ao correspondente de um jornal inglês relacionado com o Palácio de Buckingham. Esse jornalista apareceu no meu quarto de hotel, no dia de Ano- Novo de 1947, trazendo-me um generoso presente: um grande pão que subtraíra ao racionamento da mãe. Durante esses longos serões londrinos, enquanto observava o meu umbigo que cada dia se encolhia mais (perdi cerca de oito quilos durante esse período), procurava muitas vezes esquecer a fome mergulhado na leitura do Times. Uma vez que não me interessava por críquete, nem pela observação dos costumes dos pássaros, ou pelo programa do Partido Trabalhista, o passatempo não era dos mais divertidos. Até que descobri o que durante tanto tempo não me despertara a atenção: a Coluna da Agonia. Isso foi
para mim um apaixo- nante divertimento. E dali em diante passei a percorrer a Coluna da Agonia com a mesma unção com que o arcebispo de Canterbury lê o seu texto diário das Escrituras. Perdi o meu interesse pela comida porque possuía, agora, aquilo de que um escritor mais necessita: o alimento do espírito. Antes de deixar Londres, comecei a investigar sobre a Coluna da Agonia, entrevistando os empregados mais antigos do Times e passando horas a percorrer velhas edições do jornal. Mais tarde, em Los Angeles, no ano de 1948, escrevi minha história a respeito da mais célebre coluna de anúncios pessoais do mundo. Escrevi por prazer, como quem se dedica a um passatempo fora do comum, tal como colecionar botões de porcelana, madeixas de cabelo humano ou epitáfios de sepulturas. Depois reduzi a fichas a minha preciosa história, à espera de melhores tempos em que a tensão do pós- guerra e a atmosfera de trabalho constante fossem suplantadas por uma nova era de ócio e bem-estar. Quando preparava este livro, decidi que esse momento chegara. Muitos americanos, querendo evadir-se dos duros aspectos da vida, buscando uma diversão mental e uma fugaz tranquilidade de espírito, voltavam-se febrilmente para as palavras cruzadas, para as charadas, para os jogos matemáticos e para James Bond. Estes eram certamente os estimulantes, as pa- ciências, as diversões mais dignas de nota e, como último entretenimento, tinham todos os dias as sessões de anúncios pessoais, cópias da célebre Coluna da Agonia do Times de Londres. A verdade é que, nos últimos anos, descobri que existem cada dia mais americanos que lêem e comentam as coisas que julgaram de maior interesse na coluna de assuntos pessoais de seu jornal preferido. Acontece-me frequentemente ler num jornal a notícia de que, numa cidade qualquer, foi uma mensagem pessoal que levou à descoberta de um crime, à reunião de uma família separada, à localização de um herdeiro cujo paradeiro se desconhecia, à destruição de uma rede de espionagem ou ao princípio de uma aventura exótica. Em outubro de 1962, a cadeia de jornais Hearst publicou a história de um anúncio pessoal que aparecera cinco meses antes no Examiner de San Francisco, o qual ocasionou um desenlace raramente igualado e muito menos ultrapassado por qualquer escritor de ficção, por mais imaginação que tivesse. As circunstâncias que rodeavam essa dramática mensagem pessoal eram as seguintes: em 1945, um velho *antiquá- rio chamado Clarke fora encontrado morto em seu estabelecimento. Havia sido torturado e depois esfaqueado. Na loja encontraram duas espadas cinzeladas, com impressões digitais sangrentas. Em 1960, o FBI colheu as impressões digitais de um operário metalúrgico chamado Robert Lee Kidd, que vivia em Gary, no Estado de Indiana. As impressões digitais eram iguais às encontradas nas espadas da loja onde o anti- quário fora assassinado seis anos antes. As autoridades ficaram sabendo que Kidd, antigo marinheiro e grande bebedor, e sua dedicada esposa Gladys viviam em San Francisco na época do crime. Um ano depois haviam se mudado para Gary, onde Kidd arranjara um emprego estável. Acusado do crime, foi trazido para a Califórnia, julgado e condenado à câmara de gás. Depois de o Supremo Tribunal ter revogado a sentença em virtude de uma divergência de ordem técnica, fez-se um segundo julgamento. Neste, o júri absteve-se de dar o seu veredicto. Quando foi marcado o terceiro julgamento, Gladys Kidd, nessa altura já sem recursos, com a certeza absoluta de que o marido estava inocente, ficou desesperada. O que ela queria era encontrar um advogado extraordinário que acreditasse tanto como ela na inocência do marido. Visto não conhecer nenhum nessas condições, nem ter meios para contratá-lo, deu tratos à bola para resolver o problema. Faltavam
apenas oito semanas para o julgamento fatal. Quase à última hora, veio-lhe à ideia inserir um breve anúncio na coluna de assuntos pessoais do Examiner de San Francisco. Escreveu-o, pagou-o e, segundo a ordem de entrada, ele apareceu a 2 de maio de 1962: “Não quero que meu marido morra na câmara de gás por um crime que não cometeu. Por isso ofereço meus serviços durante dez anos como cozinheira, criada ou governanta a qualquer advogado de renome que o defenda e consiga que lhe façam justiça. 522, Hayes St. UN 3-9799”. O drama que palpitava naquela oferta perdida entre tantas outras fez com que o angustiante apelo e o oferecimento de Gladys fossem publicados em todas as primeiras páginas dos jornais de todo o país. Cinco advogados de fama vieram oferecer-lhe os seus serviços. Ela aceitou os de Vin- cent Hallinan, um dos mais notáveis e extraordinários crimi- nalistas de San Francisco, cidade onde existem bons advogados às centenas. Hallinan começou por provar que Kidd era um bom homem e ao mesmo tempo demonstrou que a polícia tivera pouco cuidado no curso das investigações, forçando a acusação de Kidd para encobrir sua negligência. No terceiro julgamento, o advogado de defesa interrogou um professor universitário e criminologista da Califórnia, que afirmou não ter nenhuma daquelas espadas servido como arma do crime. O advogado de Kidd interrogou então um especialista de antiguidades, no intuito de demonstrar que espadas como aquelas, sendo frequentemente compradas e vendidas pelos antiquários, passavam com facilidade de loja em loja. Interrogou por fim o próprio réu e ficou provado que Kidd e um amigo costumavam andar pelas lojas de antiguidades de San Francisco e que, certo dia, numa delas haviam visto aquelas espadas; de brincadeira, tinham pegado nelas, fingindo que se batiam em duelo, o que explicava as impressões digitais. Pelo visto, as espadas tinham ido parar na loja de Clarke, embora este não tivesse sido assassinado com nenhuma delas. O júri reuniu-se para deliberar e ao cabo de onze horas pronunciou-se pela inocência do réu. Porém, na hora do pagamento, Hallinan recusou a oferta de Gladys de dez anos de escravatura. Mais uma vez a coluna de assuntos pessoais servira não só aos românticos mas também à justiça. No entanto, não seria provável que existisse essa coluna de assuntos pessoais, ou qualquer outra em publicação no resto do mundo, capaz de servir os interesses individuais, tal como sucedeu aos Kidd, se a Coluna da Agonia do Times de Londres não tivesse tornado semelhantes mensagens habituais e populares. Não há muito tempo, comecei a pensar qual seria a situação atual dessa coluna, as regras que a governariam, se teria sofrido alguma alteração durante os dezessete anos decorridos depois de eu ter escrito sobre ela. Remeti questionários aos diretores do Times e não tardei a receber as respostas. Desde 1962 que o Times, bem como a sua seção de anúncios, ocupava um novo edifício não atingido pelas bombas. O Sr. Canna, o antigo encarregado que há trinta anos dirigia a Coluna da Agonia, quando da minha estada em Londres no ano de 1947, aposentara-se e deixara suas funções no Times em 1957. O Times não me pareceu disposto a mencionar o nome do seu sucessor, pois informoume: “Presentemente não há ninguém encarregado apenas da coluna de assuntos pessoais, portanto parece-nos descabido apresentar nomes”.
O local e o formato da coluna permanecem imutáveis, apesar das pressões muitas vezes exercidas pelo progresso — a disposição da primeira página e o corpo da letra usada continuam a ser os mesmos. Hoje os clientes não podem publicar uma mensagem com menos de duas linhas e pagam dezoito xelins e seis pence por linha de seis palavras. No entanto, em dezessete anos, foram postas de lado muitas proibições — tais como as referências à política, as línguas estrangeiras, os anúncios matrimoniais, e o limite máximo de cinco linhas. Um dos dirigentes do Times definiu-me da seguinte maneira essa nova orientação, mais liberal: “Presentemente não existem restrições quanto ao tamanho dos anúncios nem quanto à língua em que são escritos (desde que nos enviem uma tradução para ser arquivada nos nossos fichários); contudo, excluímos ainda qualquer espécie de fac-símile das colunas dos anúncios. Aceitamos também as mensagens de caráter político, bem como, dentro dos limites do equilíbrio e do bom gosto, as dos corações solitários, embora não me recorde agora de termos recebido qualquer exemplar dessa espécie. Os pedidos ou ofertas de adoção de crianças são proibidos no nosso país”. Porém, o melhor da Coluna da Agonia, o seu conteúdo mais interessante, resistiu à passagem do tempo. Ao estudar as mensagens pessoais de 1962, 1963, 1964 e 1965, senti-me tranquilo por verificar que essa coluna continua a ser um desfile de tipos dramáticos, provocantes, estranhos, cômicos, românticos e misteriosos. Apenas me intrigaram certas tendências. Embora o Times tivesse sempre permitido que a Coluna da Agonia servisse de praça pública aos assuntos individuais, resistiu porém severamente a qualquer invasão por parte dos verdadeiros comerciantes. No entanto, se não estou errado, pelo que respeita à interpretação de certos anúncios, esse avanço comercial começou já a fazer-se sub-repticiamente. No número do Times de setembro de 1964 li, primeiro com agrado, depois desiludido, o que se segue: “Deirdre — Siga em frente. Descobriu-se tudo — Hugo. Todos sabem o que se passa conosco. Todos concordam em que deves sair de Londres imediatamente. Vem trabalhar comigo fora da cidade. Dize aos patifes dos teus patrões que há mais casas no gênero da deles em Essex, Herts, etc! Ele que escreva a Mr. A. Galbraith para o Escritório de Colocações....” Para o verdadeiro admirador da Coluna da Agonia, um comércio tão indecente torna-se deplorável. Qualquer purista tem de considerar semelhante deturpação das funções da coluna como uma estupidez. No entanto, devo acrescentar que as vendas de objetos pessoais ou os pedidos de coisas fora do comum continuam revelando-se tão fascinantes e divertidos como antes. Basta- me apenas reproduzir uma amostra dos anúncios desse tipo que apareceram entre 1962 e 1964, para que os leitores assíduos se sintam tranquilos: “Tenda de lua-de-mel, nova em folha, nunca foi usada; custou 42 libras, vende-se por 34. Escrever para Caixa K 160.” “Título honorífico. Documentos antigos dando direito a usar um título honorífico com origem no século XIII; vende-se apenas a súditos britânicos que apresentem boas referências. Resposta para Caixa E 1470.” “Carruagem coberta ou coisa semelhante. Pede-se a quem não goste de ver as crianças abandonadas, enquanto os pais estão nos bares, o favor de emprestar duas carruagens cobertas para serem utilizadas para as crianças brincarem temporariamente. ’ ’
Infelizmente, descobri também que na Inglaterra começam a aparecer muitos avarentos. Um funcionário do Times revelou-me que “muita gente, nas vésperas do Natal, põe anúncios de boas-festas na coluna de assuntos pessoais em lugar de enviar cartões às pessoas amigas”. São exemplos disto as pessoas que, em 1962, enviaram o seguinte anúncio para a Coluna da Agonia: “C.T.P., N.J.S.L., T.A.M.E., I.M.O., D.I.A.H., por natureza indolentes, sentem-se demasiado cansados para enviar seus cartões de boasfestas”, e em seguida formulavam seus votos, em conjunto, a todo mundo. Ainda bem que, na semana do Natal, em 1964, outro casal inglês resgatava semelhante heresia, ao avisar aos leitores da Coluna da Agonia: “O Sr. e Sra. Frank Muir não mandarão este ano um anúncio para o Times. Em lugar disso, enviarão a seus amigos cartões de boas-festas”. Como sempre, não se passa uma semana sem que qualquer súdito inglês publique sua gratidão (por quaisquer misteriosos e secretos benefícios recebidos) ao Pai, ao Filho e a toda a Santíssima Trindade. Ao percorrer a Coluna da Agonia dos últimos anos encontro um tal F. M. T. declarando “Muitas graças ao Deus Todo-Poderoso por termos sido justiçados devido unicamente à Fé”, e J. B. proclamando: “Os meus agradecimentos a Nossa Senhora de Fátima, a São Judas e a Santo Antônio”, e J. A. N., que se afirma simplesmente: “Grato à liberdade religiosa da Inglaterra protestante”, e J. P., que implora, dramaticamente: “São Martinho de Porres, mestiço e filho ilegítimo, curai-nos da intolerância”. Ao fazer o balanço das colunas de assuntos pessoais dos últimos quatro anos, encontrei, ao lado de verdadeiros tesouros de matéria dramática, algumas pequenas mensagens capazes de obrigar cem Peter Flemings a empreender outras tantas estranhas aventuras. Aqui temos alguns exemplos recentes da Coluna da Agonia do Times: “Querida Rita — a mais bela jovem de 20 anos dos próximos 365 dias —, o meu amor eterno, John.” “Madame Serphoui Mendilian procura seu filho Antranik Mendilian, nascido em. . . na Turquia em 1910. Quem souber de qualquer indício relacionado com o seu paradeiro é favor contatar Mme Serphoui Mendilian. . . Marselha, 15c, França.” “Casal de trinta e muitos anos deseja tomar parte em alegre festa de Natal. Resposta para Caixa S 651.” “Caça ao crocodilo. Desejam-se informações em troca de um bom jantar. Resposta para Caixa P 1896.” “Dama deseja acompanhar debutante. Todas as vantagens. Escrever para Caixa M 1307.” “Perdeu-se passaporte persa num trem no sábado 7 de dezembro; quem encontrou é favor entregar na embaixada.” “MacGreen — Pede-se à Sra. MacGreen, de Londres, que teve a seu cargo Victor Robert Liukkonen, da Finlândia, por volta do ano de 1899, fazer o favor de entrar em contato com Mrs. Jenny Lind, Hersinkia Lusankatu, 17 C 19, Finlândia.” Finalmente, a 13 de maio de 1965, a coluna de assuntos pessoais do Times recebeu uma extraordinária prova de apreço por parte de uma americana. Nessa data, a Coluna da Agonia publicava o seguinte anúncio: “Nova York — Jovem da maior confiança e competência, entre 25 e 30 anos, precisa-se para tomar conta de menina de sete anos e garoto de quatro. Pode falar
inglês ou francês. Telefone: Hyde Park 3808 ou 9666, entre as dez e o meio-dia”. Este anúncio fora publicado por Mrs. John F. Kennedy. Certo de que haverá sempre uma Inglaterra, sinto-me satisfeito com a certeza de que também existirá sempre um mundo de infinitas maravilhas (duas linhas no mínimo, não se admitem fac-símiles).
11 O carro dos milionários Quando, em fevereiro de 1945, Franklin D. Roosevelt ofereceu ao Rei Ibn Saud, da Arábia Saudita, o magnífico presente de um avião C-47 inteiramente equipado, esse fato constituiu como que um desafio à diplomacia internacional. Winston Churchill achou que seu país não poderia ser vencido pelos Estados Unidos nos seus esforços para agradar o velho cavalo de guerra árabe. E, contudo, que poderia a Grã-Bretanha oferecer que não ficasse atrás do avião de Roosevelt? Churchill teve uma ideia. Se bem que Ibin Saud tivesse quinhentos automóveis de todas as marcas e modelos, sabia que não tinha o que tanto Churchill como todo o povo inglês e a maioria dos grandes deste mundo consideram o mais valioso produto da Inglaterra. E Churchill resolveu imediatamente oferecer a Ibn Saud um Rolls-Royce. Mas a ideia de Churchill revelou-se tão impraticável quanto fora entusiasticamente concebida. Enquanto Roosevelt estava em condições de entregar imediatamente o avião C-47, Churchill, ao regressar a Londres depois da conferência de cúpula, chegou à conclusão de que a fábrica Rolls- Royce em Crewe — bem como as de Derby e Glasgow — continuava (por ordem dele, precisamente) fabricando apenas motores para Spitfires, Hurricanes e Lancasters. E que nem uma só limusine fora fabricada desde o início da guerra. Para Churchill era uma situação embaraçosa, que punha a diplomacia em má situação. Churchill consultou o Ministério dos Armamentos e este, por sua vez, reuniu os diretores da Rolls-Royce. No fim foi decidido que a limusine de Ibn Saud teria prioridade sobre todo o resto. Imediatamente construiu-se, com a máxima rapidez, um único e deslumbrante Rolls-Royce, montado inteiramente à mão e em condições dificílimas. Os mais antigos operários da casa, abandonando os aviões, construíram o chassi, ao mesmo tempo em que os projetistas da Hooper & Co., que trabalha com a Rolls-Royce, se ocupavam da carroçaria. O resultado desse trabalho foi uma limusine modelo turismo, valendo dezoito mil setecentos e oitenta e sete dólares (incluindo o imposto), que faria a felicidade de qualquer motorista de domingo, mas dessa vez paramentada ao gosto de um rei. A carroçaria era pintada de verde metálico, com frisos mais escuros. O estribo era tão largo que nele se podia transportar de pé, em cada lado, com o carro em movimento, três guarda-costas. No banco de trás, havia uma taça de prata brilhante que se enchia com água vinda de um depósito de cobre, destinada às abluções que fazem parte dos ritos mao- metanos. Depois de utilizada, a água era despejada por um cano sob o chão do carro. Entre outros acessórios, tinha um ventilador para combater o calor do deserto, um rádio, três garrafas térmicas de alabastro e uma caixa com três escovas e um pente. “Tivemos o cuidado”, explicou-me um dos projetistas da Rolls-Royce, “de fazer as escovas com pêlos de náilon, porque o rei, sendo maometano, não poderia utilizar cerdas de porco.” O assento de trás fora concebido como um trono real, para um só ocupante, e suficientemente largo para que Ibn Saud pudesse sentar-se de pernas cruzadas, à moda árabe. Atualmente, quando Ibn Saud faz sua viagem anual a Meca, leva consigo toda a caravana de seus quinhentos automóveis: a maior parte deles — transportando as suas três esposas muçulmanas, muitas das cento e cinquenta de quem se divorciou e o seu vasto harém de armênias não-muçulma- nas e russas refugiadas — tem cortinas nas janelas, fechadas para esconder as mulheres de véu. À frente da caravana desliza o único Rolls-Royce que a Inglaterra fabricou
durante os seus anos de guerra, e no banco de trás vai sentado Ibn Saud, sozinho, sem cortinas, tentando disfarçar seu prazer evidente. — E ele pode dar-se por satisfeito — declarou um dos diretores da RollsRoyce —, porque ainda que ignore o fato de Churchill ter interrompido o nosso esforço de guerra por causa dele, sabe sem dúvida que possui o melhor carro do mundo. Essa ostentação, “o melhor carro do mundo”, que o pessoal da Rolls-Royce emprega na sua discreta propaganda, não tem, de fato, um significado muito exato. Ser o melhor carro do mundo implica ser o melhor numa comparação com outros; porém o Rolls-Royce não pode ser comparado com qualquer veículo produzido em massa. Acha-se sozinho, num campo especial, e é vendido por um preço que exclui qualquer rivalidade econômica com outros carros. Seu próprio nome passou a fazer parte da linguagem corrente e é utilizado em todos os ramos de negócio, desde a fabricação de aspiradores à de ioiôs, como sinônimo de “luxuoso”. Ele está para os outros carros como um iate para um barquinho a remo. Os ingleses não consideram o Rolls-Royce uma simples mercadoria: ele é uma instituição, envolta em tradições habilmente construídas. Depois da família real, encontra-se o fabuloso Rolls-Royce. E é a lista das celebridades internacionais (que vai desde marajás e presidentes a magnatas da indústria e chefes espirituais e profetas) proprietários desses carros que proporciona aos ingleses o principal sentimento de orgulho nacional. Os ingleses dizem, e não haverá quase ninguém que não concorde, que esse Rolls-Royce verde fez Ibn Saud entrar para uma das mais exclusivas irmandades do mundo. A verdade é que poucos donos de um Rolls-Royce não são famosos ou ricos, ou ambas as coisas. O Czar Nicolau II da Rússia, cujas rendas eram de cerca de um milhão de dólares por mês, foi um dos primeiros compradores. Em maio de 1914 adquiriu dois Rolls-Royce de sete lugares, ambos estofados de seda, no salão de vendas que a companhia possui em Paris, e mandou-os de navio para Moscou. O czar utilizava um para si e pôs o outro a serviço da mulher e de Raspútin. Na mesma época, o pai de Hirohito, o imperador louco Yoshihito, do Japão, mostrou sensatez suficiente para comprar um Rolls-Royce como seu carro oficial. Era cor de cereja e preto, com o crisântemo imperial pintado à mão, em dourado, sobre as duas portas, e, quando percorria as ruas das diversas cidades japonesas, os súditos iam espalhando à sua frente areia limpa. O mais célebre Rolls-Royce do tempo da Primeira Guerra, porém, era guiado por um plebeu. Tratava-se do Coronel T. E. Lawrence, o enigmático Lawrence da Arábia. O governo britânico emprestou-lhe nove Rolls-Royces para a sua campanha contra os turcos. Num só dia Lawrence desmantelou um regimento de cavalaria curdo, conquistou dois postos avançados turcos e explodiu duas pontes. Terminada a guerra, Lowell Thomas perguntou a Lawrence: — Há alguma coisa no mundo que possa ser comprada com dinheiro e que você queira ter? Lawrence sorriu e replicou pensativo: — Pode parecer infantilidade, mas gostaria de possuir um Rolls-Royce com pneus e gasolina suficiente para o resto da minha vida. Foi essa espécie de sentimento de reverência para com o luxuoso veículo que levou os amigos do ex-presidente americano Woodrow Wilson a cotizarem-se para lhe oferecer um Rolls-Royce, com votos de melhoras, quando ele já sofria da doença que acabaria por matá-lo.
Em quase todos os cantos da Terra, esse carro é privilégio de milionários e poderosos. Na Riviera, Aga Khan, chefe espiritual de dez milhões de muçulmanos conhecidos pelo nome de ismaelitas, possui um Rolls-Royce decorado. A família real do Sião tem também um, azul-claro, cheio de cromados. Foi comprado pelo Rei Rama VI, cujo amor por tudo o que era inglês o levava até a traduzir Shakespeare para o siamês. No Japão, Hirohito, à imitação do pai, possui também um Rolls-Royce, além de um Mercedes castanho. No México, o Presidente Alemán comprou um que fazia parte de uma remessa destinada ao Novo Mundo, por treze mil dólares, o que se pode considerar uma pechincha, visto que o preço subiu para dezoito mil setecentos e oitenta e sete dólares, poucas semanas depois. No Irã, Mohamed Reza Pahlevi, o xá reinante, passeia num Rolls-Royce modelo antigo e espaçoso, à prova de balas. O pai dele, que foi um déspota e um viciado em ópio, comprou o carro quando tomou o trono do Irã, em 1925, e costumava guiálo à frente de uma caravana de dezesseis carros. Certa vez em que foi obrigado a pernoitar numa aldeia, mandou matar a tiros todos os cães, para que o latido deles não o impedisse de dormir. Embora o automóvel seja considerado internacional, os ingleses, fiéis ao produto nacional, continuam a ser os melhores fregueses. O Rei Jorge VI, claro, tem um Rolls-Royce. Na verdade, o mesmo acontece com quase todos os membros da família real. Lorde Louis Mountbatten, o último vice-rei da índia, adquiriu o mais extraordinário de todos. Trata-se de um conversível que custou vinte mil dólares, com uma cabine para o motorista que pode ser removida nos raros momentos de bom tempo em Londres. Quando o carro estava sendo construído, Lorde Mountbatten andava à volta dele como um pai que espera o nascimento do filho. Foi ele quem determinou todas as dimensões do veículo, exigindo lugar para poder esticar as pernas à vontade e para sentar-se ereto quando ia de chapéu alto, e insistiu para que colocassem mapas no forro de madeira do banco. Outros ingleses seguiram o exemplo da família real. Sir Alexander Korda mandou construir um modelo seda prateado. Sir Malcolm Campbell adquiriu também um Rolls- Royce apenas para poder tirar o motor e instalá-lo num carro de corridas, batendo recordes de velocidade. Lorde Derby, que era inválido, tinha um Rolls-Royce construído sob encomenda para adaptar-se à sua enfermidade. O banco de trás era partido ao meio, podendo-se retirar uma metade para dar lugar a uma cadeira de rodas. Para não dar na vista, o estofamento da cadeira era igual ao do automóvel. Sempre que tinha de assistir a qualquer função pública, Lorde Derby fazia deslizar a cadeira de rodas para fora do automóvel por uma rampa especial que o motorista tirava do porta-malas. A procura que o Rolls-Royce tem na América só é excedida pela da própria Inglaterra. Antes da Primeira Guerra Mundial, ele já era vendido largamente nos Estados Unidos, e os diretores da companhia começaram a lançar a vista para as antigas colônias. Em 1919, a Rolls-Royce decidiu acelerar a entrega dos carros montando a fábrica Rolls-Royce of America, Inc., em Springfield, Massachusetts. A companhia, utilizando hábeis mecânicos, além dos veteranos da fábrica de Crewe, começou a trabalhar com um capital de três milhões e duzentos mil dólares. Garantia aos clientes a compra de um Rolls-Royce genuíno (apenas com a caixa de câmbio e o carburador modificados), embora pagassem um preço menor, livre de impostos. Os compradores americanos, porém, não morderam a isca. Queriam o autêntico, importado da Inglaterra. Ao cabo de alguns anos, os emigrantes Rolls- Royce fizeram as malas e voltaram à sua monárquica ilha, de onde nunca mais saíram. Grande parte da alta sociedade de Manhattan possui ou já possuiu um Rolls-Royce. A Sra. Cornelius Vanderbilt ainda anda num modelo de 1913 pintado
na cor tradicional dos Vanderbilt, o castanho. O falecido J. P. Morgan tinha um Rolls-Royce, e hoje quase todos os sócios de Morgan em Wall Street lhe seguem o exemplo. A Sra. Otto Kahn anda num modelo antigo que parece ter fugido de um álbum de família e que remonta a 1911. Uma das senhoras Woolworth possui um Rolls-Royce equipado com uma caixa de toalete modestamente recheada, no valor de três mil dólares, e um relógio elétrico que custou mil e duzentos. Em Hollywood, o Sr. Douglas Fairbanks, pai, foi um dos primeiros possuidores de um Rolls-Royce. Depois disso, o dilúvio! Na filmagem de Lady in the dark, realizado em cores e que era um misto do paraíso de Maomé e da loja do Papai Noel, necessitou-se de um carro de sonho. A Condessa di Frasso, uma beldade do mundo do cinema, alugou imediatamente o seu Rolls-Royce à Paramount por duzentos e quarenta dólares por dia. O carro, que custara cerca de vinte e oito mil dólares, tinha a carroçaria de alumínio, inteiriça. Outra figura de Hollywood, Constance Bennett, arranjava muitas vezes dinheiro alugando o seu não menos suntuoso e igualmente antigo Rolls-Royce, uma joia que custou quarenta mil dólares. Antes da guerra, Norma Shearer, Marlene Dietrich, Jack Warner e Joseph Schenk adquiriram Rolls- Royces em Nova York ou Paris. Muitos outros americanos também se deixaram atrair por semelhantes caprichos automobilísticos. Os irmãos Smith, reis das pastilhas para tosse, tinham um Rolls- Royce na garagem. George Baker, que uma vez foi preso como louco na Geórgia, e mais conhecido pelo nome de Divino Pai, teve uma limusine Rolls-Royce que valia vinte e dois mil e quinhentos dólares, que comprara de segunda mão por cento e cinquenta em 1933. Entre os mais fabulosos Rolls-Royces pertencentes a americanos, estavam os dois carros que William Randolph Hearst, de oitenta e quatro anos, comprou em Paris, para juntar aos seus quadros de Rembrandt, às suas zebras, ao seu trem particular de três vagões, à sua piscina de San Simeon, que custou um milhão de dólares. Cada um desses Rolls-Royces possuía, guardadas as devidas proporções, mais espelhos do que Versalhes. Na parte de trás, para uso dos passageiros, várias garrafas térmicas, caixas de toalete douradas cheias de pós e de pentes, uma pequena secretária com tampo de correr, uma mesinha que se puxava nas refeições e um bar portátil. Essas comodidades, porém, nada são em face das consideradas indispensáveis pelos príncipes da índia. Nos seus incríveis reinos em miniatura, esses monarcas modernos conduzem Rolls-Royces que poderiam muito bem ter sido construídos para uso do Rei Midas. O mais majestoso possuidor de um RollsRoyce, na índia, é o sétimo nixam de Haidera- bad, o homem mais rico do mundo, dono de um tesouro avaliado em dois milhões e meio de dólares, constituído de rubis, diamantes e ouro. Em lugar de uma manada de elefantes, o nizam possui cinquenta Rolls-Royces. Seu preferido é um modelo amarelo-canário, dotado de um trono alto. Tem trinta e seis anos, o que é impressionante, se pensarmos que o primeiro Rolls-Royce foi construído há apenas quarenta e três anos. Apesar da sua longevidade, esse carro rodou só duzentos quilômetros. Os inimigos do nizam dizem que ele é muito avarento para sair com ele à rua desde que lhe disseram quanto gasta, ou seja, quatro litros de gasolina a cada treze quilômetros. Seus amigos afirmam que ele não sai porque não tem para onde ir. Segundo os homens da Rolls- Royce, o carro mais luxuoso que venderam ao nizam tem “um chassi Londres-Edimburgo equipado com uma carroçaria especial para desfiles”. A carroçaria especial é feita de prata maciça. O capô é formado por um teto abobadado. O interior é revestido de brocado ouro-velho com cortinas de renda.
Os encostos abaixam e convertem-se em coxins. Na parte de trás há gavetas para guardar sapatos. Não se sabe quanto custou, mas é sem dúvida o Rolls-Royce mais incrível que existe, e provavelmente o mais caro veículo de quatro rodas do mundo. Grande parte dos outros seiscentos e sessenta e um príncipes da Índia possuem Rolls-Royces construídos para satisfazer suas excentricidades. Segundo afirmam os diretores da firma, o maior freguês em quantidade é o marajá de Patiala, um gigante de barbas negras que comanda os ferozes sikhs. Enquanto certo marajá comprou cinco Rolls-Royces de uma só vez (oferecendo de presente o que tinha ao seu jóquei preferido) e outro adquiriu seis, o marajá de Patiala comprou há pouco trinta e cinco Rolls-Royces novos. Esse marajá, que possui um canil com quatrocentos cães, uma pista de corridas privativa cuja despesa está orçada em quinhentos mil dólares por ano, tem os seus Rolls-Royces equipados com relógios suíços feitos à mão, caixas de medicamentos, e assentos forrados de tecidos preciosos e atapetados de pele de castor. Um deles é utilizado exclusivamente na caça. Tem faróis especiais para estontear os tigres, um teto móvel que permite ao marajá ficar de pé e atirar, janelas guarnecidas de redes de aço para evitar os ataques da caça graúda. O Rolls-Royce se tornou brinquedo dos poderosos do mundo, das celebridades e dos ricos. Mas quais serão as qualidades que o distinguem e o fazem tão popular entre essas classes chamadas superiores? O principal fator do seu êxito é a raridade cuidadosamente mantida. Desde o princípio, os fundadores da Rolls- Royce pensaram que, já que qualquer pessoa de nível de vida mediano está apta a comprar um carro de série razoável, devia existir, entre os membros das altas-rodas, um desejo de veículos exóticos que os colocasse num plano diferente dos simples mortais. Nesse sentido, entre 1904 e 1939, fabricaram apenas vinte e dois mil e oitocentos Rolls-Royces. Hoje em dia fabricam somente vinte carros por semana. A linha de montagem estilo Detroit e a produção em massa são coisas desconhecidas em Crewe. Quando alguns mecânicos americanos visitaram a fábrica Rolls antes da guerra, ficaram espantados por não verem linhas de montagem. “Isto é feito como se fosse um relógio de pulso!”, exclamaram. Seu preço exorbitante confere-lhe ainda maior status. Dos quatro modelos que a Rolls-Royce fabrica hoje, o mais barato, incluindo o imposto, custa dezesseis mil novecentos e noventa e oito dólares, e o mais caro, dezoito mil setecentos e oitenta e sete. O dinheiro que custa um Rolls-Royce novo seria suficiente para comprar vários carros americanos de grande categoria. É evidente que o seu elevado preço afasta concorrentes indesejáveis, ou seja, os que não chegam a possuir um milhão de dólares. A Rolls-Royce reserva para si o fabrico dos chassis e tem um contrato especial com três famosos fabricantes de carroçarias, Hooper Co., H. J. Mulliner e Park Ward & Co. que se encarregam do resto. Num futuro próximo, para baixar os preços, a Rolls-Royce projeta fabricar ela própria as carroçarias, entregando aos outros apenas a manufatura de modelos especiais. A Rolls-Royce Ltd. faz grandes sacrifícios para manter o exclusivismo do veículo. Há anos, no segredo das câmaras experimentais, em Crewe, um punhado de técnicos inventou um veículo pequeno, de apenas quinze cavalos, que ganhou sem o menor esforço o teste de estrada das vinte mil milhas. Esse novo protótipo era uma condensação do modelo grande e destinava-se a ser vendido pela décima parte do preço. Mas, em uma última análise, embora soubessem que a produção desse invento lhes traria grandes lucros, os diretores resolveram vetá-lo.
Achavam que esse preço módico faria com que todos pudessem possuir um RollsRoyce, anulando a característica de raridade da marca. E o modelo foi destruído. Outro motivo de interesse neste carro, sobretudo para os hedonistas, é seu aspecto luxuoso. Os quatro modelos variam apenas ligeiramente no desenho. O sedã tem uma cabine aberta para o motorista. O modelo esporte é o que transige mais com as linhas aerodinâmicas, pois seu capô é curvo, em vez de retangular, e os pára-lamas são ligeiramente oblongos. A limusine de turismo e a limusine fechada são uns carros enormes, quadrados e maciços. O Rolls-Royce comum é um carro de seis cilindros para sete passageiros, tanque de oitenta e um litros, e quatro marchas, além da marcha à ré. A carroçaria, de alumínio em vez de aço, não está sujeita a problemas de pintura ou ferrugem, e é tropi- calizada, o que impede a formação de fungos e evita os desgastes da umidade. Está equipado com um descongelador no pára-brisas que derrete o gelo, uma luz no painel que avisa quando o nível da gasolina baixa, tem o volante à direita e macacos hidráulicos dos lados. Tudo isso pode ser adquirido por dezoito mil setecen- tos e oitenta e sete dólares, nem mais nem menos. Porém, a grande promessa de luxo encontra-se nas seguintes linhas do catálogo da Rolls-Royce: “Podemos fornecer sugestões para outros modelos de carroçarias, de acordo com as exigências particulares dos clientes”. Grande parte destes têm “exigências particulares” e não olham o preço. Embora grande número de automóveis, por esse mundo afora, sejam fabricados sob encomenda para satisfazer diversos gostos excêntricos e dispendiosos, nenhum é especialmente equipado com tanta frequência e de maneira tão incrível como o Rolls-Royce. Certa dama inglesa mandou montar na parte traseira do seu Rolls-Royce um lavatório embutido, um vaso de noite e um armário e gelosias nas janelas, de modo a poder fechar-se hermeticamente. Um industrial inglês exigiu um cofre-forte. Um príncipe indiano quis o volante feito de dois dentes de elefante que mandou da fndia; outro mandou fazer as janelas de um vidro azul especial que permitia às esposas do seu harém verem sem serem vistas; e outro ainda exigiu a instalação de um pulverizador de perfume acionado eletricamente no banco de trás. O gaekwar de Baroda mandou estofar o seu carro com uma seda bordada à mão que custou cinquenta dólares o metro, ao passo que sua mulher enviava da índia para Londres uma amostra de seu esmalte de unhas, a fim de servir de modelo para a cor da pintura do carro. Uma rica família africana quis um Rolls-Royce com teto de lona e mandou fazer buracos por onde pudessem enfiar as cabeças e ver o lado de fora. Um potentado do Oriente Médio mandou instalar um assento nos estribos, destinado aos lacaios. Havia um Rolls-Royce que levava no porta-malas uma banheira desmontável; outro, apresentado na Feira Mundial de Nova York, possuía um bar para coquetéis, que aparecia acionando-se um botão eletrônico. Têm havido ainda muitos modelos equipados com tacos para golfe e suportes especiais para esquis. A despeito, porém, de todos esses acessórios, a maior parte deles ocultos à vista, o Rolls-Royce continua a ser o carro mais conservador do mercado. Não são só os apreciadores do luxo e da exclusividade que o preferem. É também o modelo favorito dos que adoram a tradição, a longevidade e a solidez. Talvez seja este, mais do que qualquer outro, o maior atrativo do Rolls-Royce. Ele nunca se submeteu com pletamente à moda aerodinâmica. Os ingleses que o fabri cam e utilizam conservam sua forma quadrada, antiga, sólida e discreta. Embora haja sofrido grandes modificações desde que foi criado, duas coisas permanecem inalteráveis: as linhas básicas da carroçaria, uma caixa estreita e retangular, não se modificou ao longo de quarenta e três anos de vida; a grade do radiador continua também a ser precisamente a mesma desde 1904. Essa grade tem sido
alvo de muitas discussões dentro da firma. Os engenheiros mais novos acham que sua forma quadrada é antiestética, desagradável, e que seu desenho está ultrapassado. Acham também que esse feitio cria dificuldades constantes na fabricação, que a moldagem dos cantos angulosos é complicada e que é necessário um maquinismo especial para fazer o cromado perfeitamente plano. A corrente contrária, que inclui os diretores da firma e os agentes de venda, declaram terminantemente: “Existe qualquer coisa de sólido e permanente neste radiador e, embora as modas e os carros sofram alterações, o Rolls-Royce permanece sempre o mesmo”. A Dama de Prata, a mascote erguida na tampa do radiador, é outro atrativo para os amantes da tradição. Tem mais de trinta anos de idade. Alguns donos de Rolls-Royce estimam-na tanto que a tiram e levam consigo quando vão jantar fora, receosos de que seja roubada. Isso deu lugar à lenda de que a mascote era feita de prata verdadeira e que valia muito dinheiro. A Dama de Prata, feita apenas de níquel cromado, tem um valor puramente sentimental. Esses elementos imutáveis, tais como a grade do radiador e a mascote, servem para dar ao Rolls-Royce um cunho de perenidade. Seus fabricantes afirmam que, enquanto os automóveis vulgares duram sete anos, não é raro haver Rolls- Royces com quinze e vinte anos ainda rodando e com um ar nada desatualizado. Na realidade, a Rolls-Royce conseguiu manter um modelo imutável, o Silver Ghost, durante dezenove anos, o que não aconteceu com nenhum outro na história do automóvel (incluindo o Ford modelo T, que foi fabricado durante dezoito anos). O modelo Silver Ghost apareceu em 1907 e até 1925-27 não sofreu qualquer alteração. Até mesmo nos anos 20, segundo dizem os engenheiros, esse modelo não parecia antiquado porque seu desenho original era muito adiantado para a época. Depois de dezenove anos, ainda possuía maior arranque do que qualquer outro carro do mundo: estando parado, alcançava em dezoito segundos a velocidade de 1,6 quilômetro por minuto. E, numa época em que os outros automóveis vibravam como uma dançarina de hula-hula, era possível equilibrar uma moeda em pé no capô, com o motor em marcha lenta. Há um fato que mantém o Rolls-Royce popular entre as pessoas de sangue azul. É a garantia única por três anos que acompanha cada carro novo. Se qualquer coisa se estragar durante esse tempo, os reparos ou substituições são inteiramente grátis. Os diretores da companhia gostam de afirmar que podem dar essa garantia porque a alta qualidade do trabalho executado pelos seus dez mil empregados o permite. Como certa vez Sir Henry Royce afirmou: “Seria impossível fabricar um carro ruim, porque o porteiro não o deixaria sair”. Apenas a fábrica Rolls-Royce em Crewe fabrica automóveis (as de Derby e Glasgow só fabricam motores de avião), e ali o trabalho é esmeradíssimo. Certas peças chegam a ser experimentadas oito vezes antes de saírem da oficina Nenhum chassi abandona Crewe sem ter percorrido oitenta quilômetros com uma carroçaria especial que amplia todos os ruídos suspeitos do motor e da transmissão. O teste final consiste num percurso de trinta e dois mil quilômetros consecutivos através das íngremes colinas do Berkshire e do trânsito de Londres, nas estradas da França e nas gargantas alpinas da Suíça. Como recompensa desses cuidados, Patrick Baltour conseguiu conduzir um Rolls-Royce até a índia sem qualquer problema, e Humphrey Symons levou um de Londres até Nairobi, no Quênia, voltando depois à Inglaterra, sem colocar “uma só gota de água no radiador”. A Rolls-Royce possui postos de serviço em Bruxelas, Roma, Zurique, Oslo, Lisboa, Copenhague, Nova York, Bombaim e, “durante a temporada”, em Cannes
e Biarritz. Para trabalhar nesses estabelecimentos, os rapazes ingleses têm de começar sua aprendizagem aos quinze anos, devem ser operários especializados aos vinte e um, e só então são mandados para qualquer canto do mundo. Os chefes das oficinas têm de voltar a Crewe de tempos em tempos, como os antigos estudantes de Eton, para manter contato. A Rolls-Royce Ltd. é dirigida mais como um clube masculino do que como uma fábrica de automóveis. Isso não implica o desprezo pelos lucros. A firma nunca deixou de ganhar dinheiro. Quem teve visão suficiente para investir vinte e oito mil na firma Rolls-Royce, hoje, quarenta anos depois, poderá vender essas ações por duzentos e cinquenta mil. (Isso, porém, é como uma gota de água no oceano, comparado com a valorização dos investimentos em outras companhias menos conservadoras.) Muitos dos lucros da Rolls- Royce são reinvestidos para manter o conforto e a fama do carro. Existe em Londres, há mais de vinte anos, uma escola para uso exclusivo dos compradores, de suas famílias e de seus motoristas, onde é possível assistir a conferências sobre a lubrificação e a conservação do motor, e também a experiências de laboratório relativas ao fabrico do chassi. Depois do curso completo, doze dias, cada proprietário ou motorista recebe um emblema de prata. Outro pormenor curioso é o serviço de inspeção. Durante o período de três anos de garantia, um representante da Rolls-Royce (“que habitualmente possui curso secundário”) faz uma visita anual ao dono do carro. “Muito bom dia a Vossa Graça”, começa o inspetor. “Como estão os faisões nesta linda manhã?” Depois de passar uma hora conversando sobre a instabilidade dos faisões, sobre os ases do clube de golfe, sobre a conduta escandalosa dos chefes trabalhistas, o inspetor inicia delicadamente o seu inquérito sobre a saúde do automóvel. Habitualmente, nessa altura, o homem extrai de sua pasta um macacão impecável, enfia-o, metese debaixo do carro, examina-o e depois leva o dono para dar uma volta enquanto vai delicadamente dando-lhe a entender em que medida o carro não tem sido convenientemente tratado. A camaradagem com que a Rolls-Royce trata os seus clientes também se observa entre os empregados. Dentro da nova fábrica gigantesca de Crewe, nas oficinas de aviões em Derby, e na fábrica de peças em Londres, onde se encontram também os principais escritórios de vendas, todos os dirigentes da companhia ou das seções principais, por mais ou mencjs importantes que sejam, dirigem-se uns aos outros por meio de iniciais. Essa regra foi estabelecida há mais de vinte anos, quando alguns membros da firma, que haviam recebido do rei títulos de nobreza, começaram a sentir-se pouco à vontade ao ouvir os antigos colaboradores tratarem- nos por "sir”. O diretor-geral de Crewe, Ernest Hives, que começou dirigindo os carros em experiência e boje se tornou a pessoa mais diretamente responsável pela sua produção, é conhecido por E. H. Porém, o homem que ainda hoje dirige tudo, embora tenha morrido há catorze anos, continua a ser R. — Sir Henry Royce, que ainda hoje é o patrão. Em 1947, os diretores tiveram uma reunião muito importante em Londres. Tratava-se de discutir uma mudança técnica, uma inovação radical no Rolls-Royce do pós-guerra. A maioria era pela transformação, porém a minoria recusava- se a concordar, e não chegaram a conclusão alguma. Por fim, um dos diretores ergueuse e disse: — A maioria concorda com a mudança, mas a coisa mais importante é saber: Henry Royce aprovaria? Dali a momentos todos os presentes acabaram concordando em que Henry Royce não teria aprovado a inovação, e assim, tendo a maioria retirado os seus
votos, a modificação foi rejeitada por unanimidade. Royce possuía uma personalidade fortíssima, brilhante e dogmática, e a maioria dos homens que hoje dirigem a fábrica seguem-lhe o caminho. Através deles sente-se ainda sua influência. Outro elemento que permite a Royce dirigir a fábrica lá de sua sepultura é a “bíblia”. Antes da Primeira Guerra Mundial, Henry Royce teve um esgotamento sério devido a excesso de trabalho. Só lhe davam três meses de vida. Viveu ainda vinte anos, mas não voltou a aproximar-se das fábricas Rolls-Royce. Passou a viver numa villa no sul da França, construída no estilo inglês, à beira-mar, rodeado por uma equipe de três projetistas da fábrica e duas secretárias particulares. Royce dirigia a fábrica por correspondência, recordando-se de tudo e discutindo até a posição das máquinas lá dentro. Em 1915, depois de Royce ter escrito uma porção de cartas relativas aos primeiros modelos de motor de aviação produzidos por ele, os diretores da firma reuniram religiosamente essa correspondência e mandaram-na imprimir num volume de trezentas e uma páginas. Fizeram-se apenas seis cópias encadernadas em couro, cada uma delas com estas palavras gravadas na capa azul: “Particular e confidencial”. Essas seis cópias foram distribuídas pelos dirigentes das equipes de projetistas e engenheiros, a fim de serem utilizadas como obras de consulta. Encontram-se fechadas à chave e são consideradas a “bíblia” da empresa. Os diretores costumam afirmar: “Este é um dos mais secretos documentos de engenharia do mundo”. Frederick Henry Royce era filho de um moleiro e nasceu em 1863. Após frequentar a escola durante um ano apenas, viu-se na necessidade de trabalhar como contínuo, estafeta, aprendiz das estradas de ferro, torneiro e operário eletricista, até que, com vinte e um anos, inventou um dínamo aperfeiçoado que lhe rendeu bom dinheiro e lhe permitiu casar-se. Vaíendo-se dessa súbita prosperidade, comprou um carro francês, mas, sentindo-se descontente com ele, examinou-o a fundo, descobriu os defeitos e resolveu construir ele mesmo outro melhor. No dia 4 de abril de 1904, experimentou o seu primeiro automóvel fabricado à mão. Percorreu os vinte e quatro quilômetros que iam de sua oficina, em Manchester, até sua casa, seguido de outro carro, com receio de uma avaria pelo caminho. Mas tal não aconteceu, e assim nascia o primeiro Rolls-Royce. Com esse carro, Royce não tinha a pretensão de apresentar nada de novo ao mundo. Royce não era um pioneiro. Queria, sim, oferecer qualquer coisa de aperfeiçoado, de melhor. Num tempo em que os automóveis rangiam, chiavam, batiam por todos os lados, Royce fabricou um carro silencioso, que deslizava suavemente, um luxuoso veículo de dez cavalos e dois cilindros. Nesse mesmo ano, Royce foi apresentado a um jovem chamado Charles Rolls, terceiro filho de um rico barão. Rolls era um fervoroso adepto das experiências em balão, bem como corredor de automóveis e bicicletas, e tinha se associado a um amigo, Claude Johnson, homem culto e bibliófilo, tendo ambos aberto o maior salão de vendas de automóveis de Londres. Rolls e Johnson vendiam Panhards e Minervas, mas quando deram uma volta no novo carro de Royce ficaram maravilhados. Em março de 1906, fundavam a Rolls- Royce Ltd., com um capital de duzentos e quarenta mil dólares. O novo carro, cujos modelos eram vendidos por um preço que ia de mil quinhentos e oitenta a três mil quinhentos e sessenta dólares, era para se chamar Rolls-RoyceJohn- son, mas o nome era comprido demais e foi reduzido simplesmente a RollsRoyce, porque sugeria “alta qualidade, luxo e qualquer coisa de britânico”. Em 1910, depois de ter sido levado a dar o seu primeiro passeio de avião, tripulado por Wilbur Wright, em Le Mans, na França, Charles Rolls esqueceu-se do
novo automóvel que estava financiando. Comprou um avião Wright Brothers só para si e, em julho desse mesmo ano, quando tentava controlá-lo durante um vôo turbulento, morreu, com apenas trinta e três anos. Claude Johnson faleceu também antes dos trinta. Por isso, Henry Royce, depois de escapar da doença a que aludimos, começou a dirigir por correspondência sua fábrica, que crescia cada vez mais. Royce era um homem fantástico. Podia considerar-se engenheiro embora nada soubesse de matemática. “Nunca me utilizei de uma régua de cálculos”, afirmava. Começou a aprender flauta porque se interessava pelas ondas de som e deixou de ir à igreja porque, dizia ele, “não se pode ser bom engenheiro e continuar a ir à igreja”. Detestava os desperdícios e a falta de eficiência. Certo dia, ao ver um empregado limpando desajeitadamente o chão de uma loja, arrancou- lhe a vassoura das mãos e demonstrou-lhe como é que se fazia. Odiava o golfe e o tênis, por serem passatempos inúteis, e apoiava a jardinagem. Quandõ morreu, no ano de 1933, deixou a quantia espantosamente módica de quatrocentos e cinquenta mil dólares. Sua morte provocou apenas uma leve modificação no Rolls-Royce. A marca da frente, uma pequena placa de metal sobre a grade do radiador, que era em prata e com dois RR gravados a vermelho, no ano de seu falecimento passou a ter os RR em preto. E assim se tem mantido até hoje. Presentemente são os motores de avião — o primeiro dos quais Royce terminou em 1915 —, mais do que os de automóvel, que dão à companhia os maiores lucros. Os motores Rolls-Royce entraram para a história. Combateram os aviões alemães sobre a França, na Primeira Guerra Mundial. Ajudaram Alcook e Brown a atravessar pela primeira vez o Atlântico, em 1919, oito anos antes de Lindberg. Durante a Segunda Guerra Mundial, a Rolls-Royce fabricou vinte mil motores por ano, ou seja, um milhão de cavalos-motor por semana. Foi o único motor que combateu a Luftwaffe e ajudou a ganhar a Batalha da Grã-Bretanha. Hoje, os aviões equipados com motores Rolls-Royce batem todos os recordes no mundo. Mas, apesar de ser o avião o que lhes dá 'mais dinheiro, os fabricantes passam a maior parte do tempo ocupados com o automóvel. Foi o seu primeiro amor. Todas as energias são dedicadas ao modelo que desejam construir no futuro. “A principal modificação a introduzir no carro do pós-guerra”, afirma W. A. Robothan, engenheiro-chefe de Crewe, “será torná-lo mais simples. Hoje em dia são quase sempre os donos que dirigem. Nós nos esforçamos por aumentar a durabilidade. Nosso objetivo para o carro do pós-guerra é conseguir que ele possa percorrer cento e sessenta mil quilômetros sem precisar de uma revisão, o que significa mais ou menos dez anos de vida.” Não há muito, um jornalista inglês resumiu assim as maravilhosas qualidades da Rolls-Royce Ltd.: “Ela é tão britânica como o clima”, concluía. “Representa o mais alto grau de precisão no trabalho, e no entanto pode voltarse para a produção em massa quando quiser. Seu nome significa luxo para os civis, e contudo seus produtos fizeram-nos ganhar as batalhas aéreas que salvaram a Grã-Bretanha e a humanidade. Serve às elites, mas é dirigida por trabalhadores. Quem não souber o que é a Rolls-Royce ignora o que é a GrãBretanha.” O que aconteceu depois... Uma versão ligeiramente mais curta desta história sobre a Rolls-Royce apareceu no Saturday Evening Post, no dia 8 de novembro de 1947. Quando fiz as
pesquisas necessárias para escrever o artigo, meio ano antes, em Londres, achara os homens da Rolls-Royce, apesar de amáveis, pouco cooperativos. Nessa altura, explicava o Inside Information, órgão particular da Curtis Publishing Company: “Para Wallace, educado como todo bom americano num ambiente de publicidade e propaganda, a relutância dos fabricantes constituiu uma surpresa. Disseram-lhe que a Rolls-Royce praticamente não dá informações às revistas britânicas e nenhuma em absoluto aos jornais. — São muito esquisitos a esse respeito — afirma ele. — Não consegui obter nenhuma informação e nenhum dos operários quis me falar dos carros que a fábrica construíra para os príncipes indianos e outros clientes. O escritor tentou explicar com toda a paciência aos gerentes que seu negócio não podia de forma alguma ser prejudicado por um artigo de revista, e que provavelmente muitas pessoas nos Estados Unidos deviam estar mal informadas sobre a companhia e os altos preços de seus modelos. Talvez os processos especiais de que se servia Wallace quanto a propaganda e a melhoramentos técnicos impressionassem os americanos; fosse como fosse, o ar indiferente dos funcionários transformou-se, embora com uns resquícios de reserva, numa colaboração amigável. — Assim que consegui dominá-los — é Wallace quem afirma —, a coisa logo se espalhou em Londres. Poucos dias depois, o editor de um importante diário londrino procurou- o no Hotel Savoy. Disse ter ouvido dizer que ele estava escrevendo um artigo sobre a Rolls-Royce, destinado ao Satur- day Evening Post, e que se encontrava ali colhendo material. O editor perguntou então a Wallace: — Você acha que posso mandar um repórter entrevistá-lo, meu caro colega? — Mas por que entrevistar-me? Não sou eu o herói da história. — Ora! Essa será a única maneira de se saber qualquer coisa sobre a RollsRoyce! — afirmou o editor.” De fato, passado um ano, a revista inglesa John Buli viu-se obrigada a entrar em contato comigo, nos Estados Unidos, pedindo licença para transcrever meu artigo, informando os leitores sobre uma das grandes instituições da GrãBretanha. Menos exata foi outra história que aparecèu no Inside Information: “A propósito, convém notar que Wallace não possui um Rolls-Royce. Pensamos que seria interessante publicar sua fotografia ao lado de seu automóvel, todo amassado, a fim de criar um contraste com o assunto do artigo. — Infelizmente — afirmou Wallace — a ideia da fotografia não combina nem um pouco com o meu carro: trata- se de um Cadillac. Quem sair à rua num carro de categoria inferior a este arrisca-se a ser apedrejado.” É absolutamente verdadeiro que os editores pensaram em tirar um retrato meu ao lado de meu calhambeque para criar um contraste com o carro sobre o qual eu estava escrevendo, e depois abandonaram a ideia, ao saber que se tratava de um Cadillac. O pormenor final, porém, de que eu tinha um Cadillac com medo de ser apedrejado, caso me apresentasse com um carro inferior, é puro atrevimento. Tenho um Cadillac (e com isso saí fora de minhas possibilidades) porque quando
aprendi a dirigir receava, acima de tudo, o pedal da embrea- gem e a alavanca de câmbio. Desejava guiar um veículo no qual tivessem sido abolidas as complicadas mudanças manuais. Então, com grande contentamento e alívio, soube que existia realmente um carro desses! A General Motors acabava precisamente de fabricar um novo Cadillac com mudanças inteiramente automáticas. Eu podia guiar e limitar-me a olhar em frente! As mãos não eram necessárias para mais nada! Em face disso, mendiguei, pedi emprestado, talvez tenha até chegado a roubar! Mas foi assim que comprei um Cadillac e foi também assim que o Inside Information ficou sem a tal fotografia. Nos anos que se seguiram a essas dificuldades que encontrei junto aos diretores da Rolls-Royce, não perdi de vista as atividades dessa companhia e consegui observar a transformação gradual que se foi verificando nas suas relações com a imprensa e o público. A fim de sobreviver no novo mundo, meio comunista, meio democrático, onde a beleza e os milionários não tardariam a transformar-se em simples curiosidades, o Rolls-Royce não tinha outro remédio senão passar a ser um carro para toda gente — gente rica, é certo, mas, em suma, um automóvel popular, em vez de um meio de transporte para os de raça superior. Como consequência, os diretores da Rolls-Royce tiveram de ceder, de abrir suas portas, de entrar em contato com as pessoas, de ir ao encontro delas, de vender os carros, sem no entanto destruir aquele esnobismo que lhe confere tamanho atrativo. Ao que parece, a Rolls-Royce saltou a barreira com êxito. Embora tenham encontrado muitos homens de negócios, médicos e advogados, dispostos a comprar um Rolls-Royce, em substituição aos membros das realezas que iam escasseando, isso não quer dizer que o prestígio do carro e sua singularidade tenham diminuído. Significa apenas que existe hoje uma nova elite, com bases mais sólidas e mais endinheirada. Um vendedor de San Francisco observou com orgulho e como que se justificando: “Temos vendido muitos carros a pessoas que os lavam com as suas próprias mãos!” A virada, na história da Rolls-Royce — se nos é permitido indicar uma data —, situa-se provavelmente em 1958. Nesse ano, a direção da Rolls-Royce contratou um publicitário, David Ogilvy, e outros colaboradores, a fim de aumentar a venda do seu luxuoso carro nos Estados Unidos. Ogilvy, que fora educado em Edimburgo e em Oxford, tornara-se lendário em Nova York como publicitário. Os diretores da Rolls-Royce contrataram-no para que fizesse pelo seu carro tudo quanto pudesse. Após um breve estudo, Ogilvy descobriu que o erro se encontrava na imagem estática do Rolls-Royce. Sugeria que esta devia ser alterada. Para começar, os motoristas particulares pertenciam ao passado. O Rolls-Royce devia passar a ser um carro conduzido pelo próprio dono. Os duques e as duquesas, os marajás e os milionários do Oriente Médio que se recostavam em assentos incrivelmente cômodos já não contavam. O Rolls-Royce tornar-se-ia um carro capaz de ser dirigido por cidadãos republicanos de grandes possibilidades financeiras. Os castelos senhoriais e os iates mediterrâneos tendiam a desaparecer e em breve não mais existiriam. O Rolls-Royce passaria a levar a família a passeio na praia e depois ficaria dentro de uma garagem aberta, atrás de uma casa despretensiosa, estilo americano. A antiga frase publicitária — “O melhor carro do mundo” — torna- ra-se obsoleta. A nova divisa basear-se-ia no conforto, na durabilidade, na economia a longo prazo. E foi assim que Ogilvy encetou a nova campanha publicitária com esta memorável manchete: “A 100 quilômetros por hora, o maior ruído dentro deste novo Rolls-Royce é o do relógio elétrico”. Essa técnica de venda foi muitíssimo eficaz junto ao público. Porém, ouvi dizer — embora essa história possa ser
apócrifa — que o slogan não foi muito do agrado de certo engenheiro de Crewe, muito dedicado à Rolls-Royce, que, ao ler o anúncio, tomou-o como uma coisa pessoal. Achou-se no dever de prestar mais atenção àquele maldito relógio. E hoje em dia o relógio elétrico é absolutamente silencioso. O apelo aos plebeus continua ainda hoje presente. Um anúncio publicado no jornal The New Yorker, em 1965, continha a seguinte passagem: “É um mito aquilo que se diz a respeito da Rolls-Royce se mostrar muito exigente quando se trata de saber quem compra um Rolls-Royce ou um Bentley — e que se alguém conseguir comprá-lo, não o tratando com os devidos cuidados, este lhe é retirado. Que disparate! A Rolls-Royce está tão interessada em vender seus produtos como qualquer outro fabricante. É fácil adquirir um Rolls-Royce. . . Muitas senhoras hesitam em guiar um Rolls-Royce antes de experimentá-lo, e não tardam a descobrir que se trata de um carro de família. Então dão um ultimato ao marido, dizendo a ele que tem de comprar um até certa data, senão!.. Outros anúncios recentes, embora ainda ponham em destaque que o RollsRoyce vem equipado com tal luxo que lembra um bar em miniatura, mencionam também outros acessórios mais úteis para a família. No modelo com quatro portas, chama-se a atenção do possível comprador para o fato de o Rolls-Royce vir equipado com “recipientes próprios para água mineral e luz de leitura”, “mesas para piquenique”. Tudo isso é muito bonito e bom, mas cremos que o Rei Ibn Saud da Arábia Saudita e o nizam de Hai- derabad deviam ficar um pouco chocados. Quando há pouco comecei a investigar o que teria acontecido à Rolls-Royce depois de 1947, descobri que uma das modificações verificadas fora a mudança de forma. Como complemento, os diretores ficaram mais sensíveis à publicidade. Quando fui pedir-lhes informações sobre as mudanças feitas nos novos modelos, atenderam-me com toda a boa vontade. Quis ler o que fora escrito sobre o RollsRoyce desde a época em que eu me ocupara dele, e tive a satisfação de verificar que não faltavam artigos de jornais e revistas dos últimos anos. Mas descobri também uma coisa que me foi muito grata: a minha história sobre a Rolls-Royce, tal como o automóvel, poucas alterações sofrerá com o correr dos anos. Qualquer artigo escrito em 1947 sobre um carro americano estaria hoje inteiramente desatualizado. Meu artigo sobre o Rolls-Royce, salvo pequenas modificações, podia considerar-se tão exato em 1960 como quando fora escrito. O Rolls-Royce continua a ser ainda hoje o automóvel mais caro do mundo. Existe apenas um modelo de quatro portas ao preço de 18 000 dólares, os conversíveis e as limusines são vendidos por preços que vão desde 27 000 a 30 000 dólares. O único carro quase tão caro como o Rolls-Royce é o seu irmão gêmeo, o Bentley, vendido por 26 000 dólares. Abaixo deste, para os menos ricos, temos um carro alemão, o Mercedes-Benz, por 20 000 dólares, o Maserati italiano, por 16 300, o Facel francês, por 16 500, e o Ferrari italiano, por 14 200. O carro americano mais caro é o Lincoln Continental conversível que custa 6 940 dólares, e o Cadillac conversível que se pode obter por 6 630. Em 1947, descrevi como a Rolls-Royce havia criado um protótipo econômico a partir do modelo grande, uma amostra que pensaram pôr à venda. Porém, àquela altura, renunciaram à ideia porque a achavam capaz de aniquilar o prestígio do carro grande. Em 1964, os diretores da Rolls- Royce resolveram finalmente partir para a produção em massa com um carro menor, mais econômico, mas que, pelo menos em parte, continuava a ser um Rolls-Royce. Em colaboração com outra companhia, a British Motor Car Corporation, fabricante do Austin e do MG, a Rolls-Royce construiu um carro pequeno, o Vanden Pias Princess
“R” — o “R” significava a parte da Rolls-Royce. A única seção do carro que é genuinamente Rolls-Royce, e por sinal a mais importante de todas, é o motor, um motor usado nos caminhões, modificado. Esse produto híbrido da Rolls-Royce, que alcança a velocidade de duzentos e quarenta por hora, é vendido por 5 600 dólares. Outra importante mudança verificada nas oficinas Rolls- Royce em Crewe teve lugar em 1949, quando a companhia começou a fabricar um carro completo. Até a época em que escrevi meu artigo, os fabricantes não haviam construído um carro inteiro, com carroçaria e tudo. Não davam importância a essa parte, porque se consideravam engenheiros e não carpinteiros. Naquela época, enquanto Royce preparava o chassi, um dos três grande fabricantes de carroçarias da Inglaterra ia fazendo uma. Porém, em 1949, os engenheiros deixaram de olhar por cima do ombro os carpinteiros. A Rolls-Royce Ltd. comprou e absorveu uma das fábricas de carroçarias mais acreditadas da Inglaterra, a Park Ward Ltd., e começou a fabricar não só o chassi, mas também o resto. No entanto, contratam ainda os serviços da velha Hooper Company, ou da Mulliner, quando precisam fabricar uma carroçaria sob encomenda. Senti-me satisfeito ao observar que, a despeito das concessões feitas ao cliente plebeu, a Rolls-Royce continua a ser preferida pelos reis, pelos ricos, pelos famosos. No entanto, como já disse, é certo que os tempos modernos fizeram sentir o seu efeito. Um membro da hierarquia soviética russa, Anastas Mikoian, tem um Rolls-Royce há mais de doze anos, no qual se dirige ao Krêmlin. O New York Times observou que, noutros tempos, quando o marajá de Patiala comprou seis Rolls-Royces num só dia, a notícia foi publicada na primeira página dos jornais, mas que, em 1960, uma família de Indianápolis comprou também seis desses carros no mesmo dia e o fato quase passou despercebido na imprensa. Mais ainda, existem hoje firmas americanas que alugam Rolls-Royces por mês e por dia — seja a quem for. Uma companhia de carros de aluguel de Nova York possui vinte e oito Rolls-Royces que aluga a vinte e oito dólares por hora. E o New York Times descobriu um motorista do Har- lem que possui um grande RollsRoyce — equipado com um bar e uma secretária de nogueira —, que aluga por dia, juntamente com os seus serviços como motorista, a celebridades no gênero do Vice-Presidente Hubert Humphrey, Aristóteles Onassis, Margot Fonteyn e Lana Turner. No entanto, continua a ser a elite quem patrocina o Rolls-Royce. Não só a rainha da Inglaterra, como também a Princesa Margareth e a Duquesa de Kent possuem Rolls- Royces modelo grande, especialmente fabricados para a nobreza e chefes de Estado. Alguns financistas, ricos e misteriosos, tais como o arquimilionário armênio, rei do petróleo, Nubar Gulbenkian, e celebridades como o ator Gregory Peck, são donos de um Rolls-Royce. Hoje em dia, ninguém viaja pelo Oriente Próximo ou pela índia sem avistar a Dama de Prata à frente de um grande radiador. No verão passado, num dia de semana, contei no estacionamento, em frente ao cassino de Monte Cario, cinco Rolls-Royces novos em folha. Apesar de o Rolls-Royce continuar a ser ainda um veículo destinado principalmente à classe privilegiada, seus fabricantes insistem em destruir a imagem que durante tantos anos se esforçaram por manter. Quando o New York Times publicou a tão conhecida história que se conta da Rolls-Royce ter comprado um dia por quinze mil dólares um Rolls-Royce que estava para ser transformado em táxi, os representantes da firma em Nova York imediatamente declararam que era falsa. Tenho aqui na minha frente a declaração deles:
“Afirmou-se que a Rolls-Royce pagou quinze mil dólares para evitar que um de seus carros fosse transformado em táxi. . . Nenhum fabricante moderno poderia atrever-se a decidir sobre a maneira como um carro da sua fabricação deveria ser utilizado. Não é provável que um vendedor ambulante possa utilizar um Rolls-Royce para o seu giro diário, e os diretores da Rolls-Royce por certo estremeceriam interiormente se vissem um dos seus carros servindo de veículo comercial, sucedendo por certo coisa idêntica com qualquer fabricante de um produto de alta qualidade. No entanto, a maioria das pessoas que adquirem um Rolls-Royce dão mais tarde provas de discrição e bom gosto, do contrário nunca o teriam comprado”. Prosseguindo na minha pesquisa sobre as modificações verificadas no Rolls-Royce, constatei que ele nunca foi, nem provavelmente virá a ser, um carro produzido em linha de montagem, às centenas ou aos milhares. Num ano comum, vendem-se cerca de mil e duzentos Rolls-Royces na Inglaterra e seiscentos nos Estados Unidos. Uma vez que o Rolls-Royce é fabricado e montado à mão, não se terminam em Crewe mais de trinta e cinco carros por semana, ou seja, mil e oitocentos por ano. Por outro lado, fabricam-se anualmente em Detroit cento e cinquenta mil Cadillacs. Enquanto são precisos apenas cinco minutos para montar um Cadillac, com um Rolls-Royce gastam-se quase dez semanas. Em 1964, o diretor administrativo encarregado da produção da Rolls-Royce era um sujeito de cabelos grisalhos, formado em filosofia e chamado Llewellyn Smith. Tinha sob suas ordens sete mil pessoas. Visto a companhia garantir reparos mecânicos em seus carros durante três anos (os carros americanos em geral só dão garantia por três meses), e uma vez que o Rolls-Royce deve durar em média uns quinze anos, percorrendo cento e cinquenta mil quilômetros sem reparos maiores (diz-se que rodou quinhentos mil e continua em boa forma), as tabelas de produção mantêm-se rigorosamente iguais às que verifiquei em 1947. A companhia orgulha-se da durabilidade do seu produto e, a fim de pôr em destaque esse aspecto do valor do carro, permitiu que a Metro-Goldwyn-Mayer fizesse um filme, exibido em 1965, chamado O Rolls-Royce amarelo. A estrela do filme, um automóvel cor de limão, vai influindo na vida de três donos ao longo de trinta anos: um é um diplomata inglês, outro um gângster americano e finalmente uma milionária americana, que o põe à disposição da resistência iugoslava no princípio da Segunda Guerra Mundial. Muito embora Ingrid Bergman e Jeanne Moreau apareçam nesta ode a um automóvel, certo comentarista afirma o seguinte: “O Rolls-Royce é provavelmente a coisa mais elegante que aparece no filme. E quanto mais não fosse, o filme é um testemunho da sua durabilidade”. A fim de assegurar a longevidade de cada Rolls-Royce os técnicos gastam três semanas e setecentos dólares experimentando individualmente cada motor. Quando sai da seção de montagem na enorme fábrica de Crewe, o Rolls-Royce atravessa a estrada até a seção de teste; aí, cada carro percorre sessenta quilômetros sobre rolos, depois anda duzentos e quarenta por estradas duras do interior e em seguida volta a ser observado, para que se descubra os pontos fracos e ele volte a ser afinado. Cada Rolls-Royce é sujeito *a cinquenta e oito testes diferentes. Se o motorista ouve o mais leve ruído no eixo traseiro, logo um especialista munido de um estetoscópio tenta localizá-lo até conseguir descobrilo e acabar com ele. As portas são abertas e fechadas mil vezes por um dispositivo especial destinado a verificar se funcionam bem e não fazem barulho. Como sempre, o silêncio é uma obsessão das oficinas de Crewe. Os passageiros do RollsRoyce devem poder conversar à meia-voz mesmo quando o carro segue a cento e
oitenta quilômetros por hora. Tanto quanto consegui apurar, a apresentação dos Rolls- Royces modernos é tão magnífica e pessoal como antes. A madeira empregada nos painéis, no interior das portas e na mesa dobrável é cortada de uma só peça de nogueira escolhida. Nenhum carro deixa a oficina sem levar entre catorze e dezenove camadas de tinta. Os clientes continuam encomendando carros munidos de todo tipo de estranhos acessórios, tal como noutros tempos: ainda há pouco uma senhora de idade, inglesa, sofrendo de artritismo, encomendou um pequeno elevador; outro quis uma banheira reversível e cortinas nas janelas; certo marajá exigiu um pequeno cofre interior. Cecil Michaelis, o pintor inglês, quis o seu Rolls- Royce dotado de um estúdio na parte de trás, e foi-lhe entregue um modelo que trazia um cavalete, tinha a capota removível, de modo a lhe proporcionar mais luz e uma vista completa da paisagem, além de bancos que podiam converter- se em cama. A característica do Rolls-Royce tradicional que melhor resiste ao tempo é a grade do radiador com seu eterno emblema na tampa. O desenho e a forma da grade continuam a ser precisamente os mesmos desde 1905, apenas agora é um pouco maior porque o próprio carro se tornou mais largo. A princípio, Henry Royce, ao saber o que custava fabricar a grade do radiador, insurgiu-se contra ela como sendo “um luxo estúpido”, mas acabou por mantê-la, pois sua beleza clássica seduziu-o. A grade do radiador, feita de aço polido e moldada pelos melhores metalúrgicos do país, ainda hoje se mantém. O mesmo se dá com o emblema, a Dama de Prata, que adorna o topo da grade. Todos os Rolls-Royces saídos da fábrica levam consigo aquela figurinha na proa, com exceção de um. A rainha da Inglaterra quis que no seu carro esse ornamento fosse substituído pela figura de São Jorge e o Dragão, desenhada pelos joalheiros reais, que destruíram o molde depois de haver produzido um exemplar apenas. No entanto, o automóvel fabricado atualmente pela Rolls-Royce Ltd. não passa de um brinquedo e simboliza o prestígio da companhia. Os verdadeiros lucros vêm da companhia de aviões em Derby e em Glasgow. Oitenta e cinco por cento das vendas realizadas relacionam-se com a produção aérea. Enquanto na produção de automóveis estão empregados sete mil operários, há mais de quarenta e dois mil ocupados em pesquisas e na fabricação de aviões. Hoje, mais da metade das linhas aéreas do mundo estão equipadas com aviões a jato RollsRoyce. E em 1964, a fábrica anunciava que estava criando um tipo de avião capaz de atravessar o espaço sem motor. Foi isso o que os diretores da Rolls-Royce declararam à imprensa: “Existe um novo método de propulsão conhecido por combustão à superfície, que não necessita de câmaras de combustão, nem de entrada de ar, nem de compressores ou turbinas. Virtualmente só fica o combustível. . . O princípio consiste em utilizar-se a onda de choque obtida por meio de uma cunha que comprime o ar em alta velocidade atrás dessa cunha, de modo que, quando o combustível é lançado sobre ela, dá-se a explosão. E isso produz um impulso para a frente. Em teoria, esse sistema pode ser utilizado para vôos a uma velocidade entre cinco e quinze vezes superior à do som”. A despeito dos extraordinários melhoramentos feitos pela companhia no capítulo da aviação, desconfio que o nome Rolls-Royce, pelo menos no nosso tempo, continua a ser sinônimo do mais luxuoso de todos os automóveis. Tendo curiosidade em saber qual seria a cotação atual do Rolls-Royce,
dadas as suas altas qualidades e pontos fracos, consultei um certo número de obras publicadas pela imprensa especializada e verifiquei serem estes os seus prós e contras: Pontos favoráveis: materiais de qualidade inexcedível, boa fabricação, estabilidade, prazer de dirigir, silêncio e conforto. O Rolls-Royce desvaloriza-se menos do que qualquer outro carro. Significa prestígio social. Nenhum carro americano, disse Ken W. Purdy, grande autoridade em automóveis, nos oferece “aquele ar de profunda solidez — aquele aspecto de palacete sobre quatro rodas que os senhores da Rolls-Royce obtêm com seu desenho, seu acabamento, a quantidade de madeira e couro, bar com garrafas lapidadas, etc....” Pontos desfavoráveis: desatualização do ponto de vista da forma e das melhorias mecânicas. A Rolls-Royce continua a empregar os velhos freios de tambor em lugar dos modernos freios a disco e conserva a velha suspensão não independente à retaguarda. Faltam-lhe acessórios de segurança, tais como um pára-choque reforçado. Os lugares e o espaço da bagagem são acanhados. Acima de tudo, porém, está a falta de inovações. Pela primeira vez na sua história, o Rolls-Royce está sendo comparado com outros carros da sua classe, por vezes com desvantagem. Alguns especialistas britânicos confessaram que certos automóveis americanos andam mais silenciosamente do que o Rolls-Royce. E Purdy cometeu há tempos a heresia máxima nos meios automobilísticos, afirmando que “o sedã Mercedes-Benz é mais confortável do que o Rolls- Royce, e mais seguro, mais rápido, mais fácil de dirigir. Só lhe falta uma coisa: a velha lenda dos Rolls-Royces”. A tais críticas, os membros da Rolls-Royce respondem com uma firmeza inabalável. Só introduzirão freios a disco quando conseguirem eliminar qualquer ruído na freagem. Não pensam em utilizar a suspensão traseira independente enquanto não acharem maneira de fazê-lo sem “um tremendo e inaceitável ruído que produz a estrada e o eixo, abolindo também os solavancos de transmissão”. A Rolls-Royce não alterará seu sistema mecânico ou seu desenho apenas para fornecer aos seus agentes publicitários qualquer coisa de novo para anunciar. Segundo afirmou o diretor administrativo, Dr. Smith, a um repórter londrino: “A inovação por si só não constitui um mérito. A maior parte das novidades atuais em matéria de automóveis não passa de chinesice”.
12 O homem que enganou Goering Em fins de maio de 1945, pouco depois de o VII Exército americano haver localizado a coleção de arte alemã no valor de quinhentos milhões de dólares pertencente ao falecido Hermann Goering, e que se encontrava num subterrâneo alemão, algumas equipes aliadas, conduzidas pela Divisão de Monumentos e Obras de Arte do Exército dos Estados Unidos, chegaram à villa do marechal, no sul de Berchtesgaden, a fim de recuperar e classificar o espólio. A coleção de cento e vinte quadros, pertencentes na sua maioria às melhores galerias de arte da Europa e roubados pelos nazistas, era deslumbrante. Nenhum dos pesquisadores, mergulhados até o pescoço em telas de Rafael e Van Gogh, considerou o quadro a óleo Cristo e a mulher adúltera, assinado por Jan Vermeer, pintor holandês do século XVII, senão como mais uma das obras-primas “adquiridas” por Goering. Os pesquisadores aliados não podiam supor que muito em breve esse quadro de Vermeer iria dar origem a uma avalanche de protestos que explodiria primeiro na Holanda e depois percorreria todas as capitais da Europa. Mal podiam imaginar que essa descoberta de rotina daria lugar a uma controvérsia artística que faria furor no resto do ano de 1945, durante o de 1946 e que prometia prolongar-se, em meio a intrigas, violências e paixões, até 1947. No entanto, esse escândalo artístico, dos mais dramáticos e fantásticos dos tempos modernos, desvendando um crime (que começara por uma brincadeira) que envolvia mais de três milhões de dólares e, mais importante do que isso, no qual estavam implicados alguns dos críticos e peritos mais famosos de todo o mundo, começara precisamente no dia em que os pesquisadores aliados vieram a saber que Goering possuía um Vermeer. O ponto de partida do escândalo, no entanto, não foi o fato de saber que Goering possuía uma obra do velho mestre, mas sim a descoberta dos meios de que ele se servira para adquiri-la. Tivesse sido ela simplesmente roubada, como tantos outros objetos de arte — por exemplo os Rubens ou os Rembrandts retirados dos museus de Amsterdam —, prontamente a restituiriam aos seus antigos donos e o caso ficaria encerrado. Mas, caso estranho, aquele óleo pertencia a um pequeno grupo de quadros que não haviam sido roubados. Um especialista holandês muito zeloso, destacado para trabalhar com uma das equipes aliadas, descobriu isso quando investigava por curiosidade alguns papéis e documentos pertencentes a Goering. O homem encontrou um recibo, dirigido a Goering e vindo de Amsterdam, que tinha a marca de “pago”. Referiase ao Vermeer. Provava, pois, sem a menor sombra de dúvida, que alguém, nos Países Baixos, vendera cinicamente aquela grande obra ao procurador de arte de Goering, Walter Hofer, em 1943, por um milhão e seiscentos mil florins. Alguém colaborara, negociando, com o nazista número 2! O especialista holandês, ao estudar essa prova, sentiu- se profundamente chocado. Tamanha audácia abalou-lhe a sensibilidade patriótica e estética. Porque a venda de um Vermeer a um inimigo não constituía apenas um ato de vulgar colaboracionismo. Milhares de holandeses que haviam colaborado com os alemães tinham sido apanhados e devidamente eliminados. Se, porém, o colaboracionismo era um crime vulgaríssimo, a alienação de um Vermeer constituía um ato horrível e premeditado. Jan Vermeer, nascido em Delft, no ano de 1632, era e é, tal como Rembrandt, um herói nacional holandês. Poucos holandeses existiram com fama internacional e, destes poucos, a maioria eram pintores. Vermeer conta-se entre os principais artistas dessa espécie. Na Holanda muitas ruas e praças públicas têm o seu nome. Sua estátua encontra-se em
edifícios públicos e as três dúzias de trabalhos autênticos que dele restam achamse cuidadosamente reproduzidos e decoram até os lares mais humildes. Sua modesta história pessoal é estudada religiosamente nas escolas da Holanda, tal como a de George Washington nas americanas. Cada um dos quadros a óleo, amarelos e azuis, de Vermeer, constitui um tesouro nacional, e a venda de qualquer um deles ao inimigo era um crime de alta traição apenas comparável ao possível rapto e venda a um inimigo de outro tesouro do Estado ainda mais valioso: a Rainha Guilhermina. Furioso com a descoberta, o especialista holandês pegou o quadro, as provas concretas da sua venda, e correu para junto do seu governo, em Haia. Seguiu-se uma breve reunião, um debate, e o mecanismo da justiça pôs-se rapidamente em movimento. As autoridades holandesas começaram por se dirigir à casa do homem de Amsterdam que vendera o quadro ao agente de Goering. Tratava-se de Aloys Miedl, um bávaro, que viera da Alemanha para a Holanda, depois de se casar com uma judia. Era um velho amigo de Goering e, durante a guerra, vendera a ele algumas pequenas obras de arte holandesas. As autoridades holandesas não encontraram Miedl em casa. Fugira para a Espanha algumas semanas antes. Os holandeses descobriram então que ele comprara o quadro de um negociante de Amsterdam. Correram à casa deste. Ele, contudo, insistia em que nada tinham a lhe censurar. Limitara-se a entregar o quadro por conta de outra pessoa. E quem era essa outra pessoa? Um homenzinho chamado Reinstra. As autoridades procuraram Reinstra. Tratava-se de um intermediário de profissão, que vivia de expedientes, e muitas vezes convencia os artistas a deixarem-no vender seus trabalhos através de intermediários que ganhavam comissão. Jurou por tudo não saber nada sobre uma possível colaboração. O quadro viera parar-lhe às mãos através de outra pessoa. As autoridades começavam a impacientar-se. De quem Reinstra obtivera o quadro de Vermeer? De um tal Hans van Meegeren, um artista de Amsterdam. As autoridades procuraram Van Meegeren. Tratava-se de um homenzinho grisalho, muito nervoso, com um rosto infantil de raposa matreira. Vivia com a infeliz esposa, a segunda, de quem se divorciara no ano anterior, numa enorme casa com um vestíbulo de mármore que dava para um canal. Era muito rico, tinha cinquenta casas, dois clubes noturnos e duas obras dos velhos mestres (uma de Franz Hals). Conseguira realizar seu capital inicial, de três milhões de dólares, com a venda de sua coleção de seis Vermeers. Cinco para os grandes museus de Amsterdam, de Roterdam e de Haia. O sexto Vermeer era Cristo e a mulher adúltera. As autoridades mostraram-se interessadas neste último, o único que fora vendido a Goering. De onde viera? Fazia parte de uma coleção comprada na Itália. As autoridades não quiseram ouvir mais. Comprara-o dos fascistas italianos? E vendera-o aos nazistas alemães? Foi imediatamente preso. Van Meegeren passou três semanas na cadeia, que foram para ele um tormento. Não lhe permitiram levar suas garrafas de gim. Não lhe deram as pílulas para dormir a que estava habituado. Ficou histérico. Caiu em profunda melancolia. Teve ataques epilépticos. Depois, sem nenhuma explicação, soltaramno. Dali a dias, precisamente quando começava a recompor-se daquela provação, a polícia holandesa foi de novo procurá-lo. Prenderam-no e levaram-no para a central de polícia de Amsterdam, começando logo a bombardeá-lo com perguntas. Queriam obrigá-lo a confessar que tinha sido colaboracionista, que vendera deliberadamente aquele sagrado Vermeer aos nazistas. Negava. Eles teimavam. Por fim, de madrugada, Van Meegeren explodiu:
— Seus idiotas! — gritou ele. — Seus estúpidos! Eu não vendi aos alemães nenhum tesouro nacional! Não lhes vendi nenhum Vermeer. O que lhes entreguei foi um Van Meegeren! Vendi um Vermeer que forjei com minhas mãos! Van Meegeren ditou rapidamente a sua confissão. Havia falsificado seis Vermeers, desde 1937 até 1943. Vendera o primeiro, como se se tratasse de um Vermeer original, para o Museu Boyman, de Roterdam. O último vendera-o também, como sendo um original do mesmo pintor, a Her- man Goering. Ao todo, recebera oito milhões de florins holandeses, ou seja, três milhões e duzentos mil dólares, por aquelas falsificações. Afirmou ter ludibriado os respeitáveis diretores dos museus a quem vendera os quadros, os historiadores de arte e os peritos que os haviam observado e classificado e, acima de tudo, dezenas de críticos de arte europeus e americanos a quem se deviam tantos artigos mirabolantes sobre aqueles falsos Vermeers. Provara assim, gabava-se ele, que era tão bom quanto os velhos mestres e que os críticos que durante tanto tempo o haviam massacrado não passavam de uns idiotas. Não podiam chamá-lo de traidor porque ele não vendera aos nazistas nenhum patrimônio nacional, mas apenas uma de suas próprias fraudes. Essa confissão, difundida pelos jornais através de todo o território dos Países Baixos na manhã seguinte, logo foi reproduzida pela imprensa mundial. Começava assim: “Movido pelo complexo psicológico de não ter sido convenientemente apreciado pelos meus colegas artistas e pelos críticos, decidi, num dia fatal do ano de 1936, provar ao mundo o meu mérito como pintor e executar um quadro do século XVII absolutamente perfeito”. A polícia holandesa estava desorientada. Se a confissão do homem era sincera, e ele não passava de um falsificador, não poderia ser acusado de colaboracionismo. Mas, de uma maneira ou de outra, cometera um crime, embora o respectivo grau de gravidade diferisse tanto como a noite do dia. Se tivesse vendido alguns Vermeers originais e fosse colabo- racionista, o problema seria simples. Mas se houvesse pintado os quadros à maneira de Vermeer, falsificandoos, nesse caso não era colaboracionista, mas sim um falsário, cujo ato tinha implicações internacionais. A polícia holandesa resolveu convocar os especialistas de arte mais famosos da Holanda. Não foi preciso ir longe. Todos se mostraram simultaneamente ansiosos e indignados. A polícia pediu-lhes a opinião. Afirmaram que os Vermeers que haviam classificado como autênticos não ofereciam a menor dúvida. A reputação dos críticos, o seu ganha-pão, dependia da validade desses quadros, Não queriam passar por tolos. Van Meegeren, afirmavam em coro, não passava de um bêbado, de um patife, ao afirmar-se autor de tão belos clássicos. Ele não imitara ninguém, nem vendera falsos Vermeers; adquirira e revendera Vermeers autênticos. A opinião dos críticos foi unânime, e dali não arredaram pé. A controvérsia fez furor na imprensa, nos cafés, em todas as casas da Holanda. Estendeu-se até Londres, Paris, Roma. Chegou a Nova York e a Chicago. De qualquer maneira, Van Meegeren era um criminoso, não havia a menor dúvida. Porém não era esse o ponto principal. O que mais interessava saber era até que ponto os especialistas a quem os museus e os colecionadores particulares haviam confiado a avaliação das obras, os críticos de cuja opinião os leigos dependiam, eram dignos de confiança. Se Van Meegeren fosse um falsário, ficaria provado que, embora houvesse muitos homens honestos e competentes no mundo da arte, existiam também alguns que se pronunciavam apressada e levianamente, peritos desonestos que, em muitos casos, teciam louvores a uma obra segundo a sua
assinatura e não conforme o seu mérito, gente que não sabia distinguir o verdadeiro do falso. A fim de marcar um ponto contra seus inimigos críticos, vingando-se da injustiça que afirmava estar na origem de seu crime, Van Meegeren pediu para ser declarado culpado de fraude. Por outro lado, seus rivais, negociantes, ensaístas, diretores de museus, peritos de arte, todos intimamente unidos, pediam que fosse declarado inocente dessa acusação. Aqueles seis quadros de Vermeer que estavam expostos nos museus seriam da autoria do próprio Vermeer (1623- 1675) ou de Van Meegeren (1889- )? As autoridades holandesas estavam perplexas. Até que um oficial inferior, herdeiro do manto de Salomão, deu uma sugestão: por que não obrigar Van Meegeren a pintar um quadro sob as vistas da polícia e na presença de todos os interessados, provando a fraude? Essa sétima tela iria provar de uma vez para sempre se ele era ou não capaz de imitar o velho mestre de maneira tão extraordinária, ou se estaria simplesmente tentando livrar-se da acusação de colaboracionismo. Fizeram-lhe a proposta, que o velho imediatamente aceitou. Os especialistas concordaram também, embora de má vontade. Os jornais, encantados, publicaram manchetes em letras garrafais: “UM ARTISTA QUE PINTA PARA SALVAR A PELE!” Menos de um ano depois, Van Meegeren começou o seu estranho trabalho de defesa. As autoridades requisitaram um enorme estúdio, cujas janelas guarneceram de grades como uma prisão. Permitiram-lhe que adquirisse todas as coisas necessárias: telas, óleos, outros materiais, recusando-lhe porém os meses de planejamento e estudo que ele afirmava serem necessários. As autoridades forneceram-lhe uma ração diária de vinho da Borgonha, grande quantidade de cigarros, um frasco de pílulas para dormir, mas puseram-lhe noite e dia uma guarda à vista, constituída por policiais insensíveis à arte. — Estou trabalhando com prazer — declarou ele a um amigo que foi visitálo no estúdio. — Mas isso fica difícil. Não tenho precisamente as cores que desejo nem me dão tempo para pensar. Estão sempre me apressando. E espreitam por cima do meu ombro enquanto trabalho. No entanto, estou convencido de que vai sair uma bela coisa. Contudo, lá fora, estão todos contra mim. A esta hora já julgaram o meu trabalho. Assim que o virem, como sabem que não se trata de um Vermeer, vão logo dizer que está muito bem-feito, sim senhor, mas que, na verdade, não é um Vermeer. Vão descobrir-lhe apenas falhas pelas quais se prova não ser uma obra do século XVII, e dirão que um louco nunca conseguiria imitar um mestre. À medida que o quadro tomava forma, ia-se descobrindo a cena do Menino Jesus no templo entre os doutores. Seis figuras no meio de uma grande tela. Lá estavam todas as características de Vermeer: os belos e ricos tons amarelados e azuis, a perfeição da técnica, o pointillé, etc. Materialmente nada faltava; a tela fora fabricada com linho do século XVII, a pintura aquecida como costumavam fazer Vermeer e Rem- brandt, e os pincéis eram de pêlo de texugo tal como usavam os pintores de 1600. O quadro ficou pronto, prova A. As autoridades holandesas nomearam um júri especial composto de especialistas internacionais, incluindo sumidades da Universidade de Oxford, de Harvard, e do Museu Rjks, de Amsterdam. A sorte de Van Meegeren ia depender inteiramente do parecer do júri. A decisão seria dada em maio de 1946. Porém o mês passou-se sem que o júri tivesse chegado a qualquer conclusão. Foi anunciada nova data. Seria publicada a sentença em setembro de 1946. Mais uma vez passou o prazo. O júri continuava estudando, meditando, distinguindo, por vezes com azedume.
Quem seguia de perto o caso não se espantava com a demora. Declaravam que era extremamente difícil determinar a origem de um quadro a óleo bem-feito, cuja autenticidade estivesse em discussão, tão difícil como dar uma sentença num caso de crime perfeito. Havia quem se recordasse da renhida batalha travada dezessete anos antes em torno de uma segunda cópia de La belle ferronnière, de Leonardo da Vinci. Nessa ocasião, uma tal Sra. Andrée Hahn, cuja família estava há muitos anos de posse do quadro, viu-se impedida de vendê-lo ao Instituto de Arte de Kansas City pela soma de duzentos e cinquenta mil dólares, em virtude de Sir Joseph Duveen, um especialista inglês, declarar tratar- se de uma cópia do original que se encontra no Louvre, executada por um aluno. A Sra. Hahn iniciou uma ação contra o perito inglês. Durante cerca de três semanas os especialistas discutiram uns com os outros. Sir Joseph afirmava que o quadro de Leonardo da Vinci pertencente ao Louvre se achava na posse da França havia mais de quatrocentos anos e fora indubitavelmente pintado pela mão do mestre, ao passo que o da Sra. Hahn era uma cópia. A Sra. Hahn tinha a seu favor a opinião de Georges Sortais, que viera de Paris para afirmar que o quadro do Louvre não passava de uma cópia inferior executada por Beltraffio, e que o da Sra. Hahn é que era indubitavelmente o original. Nunca se chegou a nenhuma conclusão, embora se tivesse anunciado nos jornais que a Sra. Hahn retirara a sua queixa contra Duveen, “pagando-lhe em troca uma indenização de sessenta mil dólares”, Hoje, tal como em tantos outros casos precedentes, a discussão em volta de Van Meegeren continua num beco sem saída. O quartel-general do júri continua a ser uma galeria em Amsterdam, cujas paredes estão guarnecidas com os primeiros Vermeers e ainda com o sétimo, que não lhes fica atrás. Alguns dos membros retiraram-se, desorientados. Quando isso aconteceu, logo outros foram rapidamente nomeados para substituí-los. Vêm constantemente, de toda a Europa, novos especialistas para serem consultados sobre o assunto. Entretanto, as autoridades holandesas anunciaram que não esperam qualquer decisão antes da primavera de 1947. Os repórteres de Amsterdam, que durante muito tempo seguiram o caso de perto, pensam que nunca se chegará a uma conclusão definitiva. “Isso é impossível”, afirmou um deles, “porque hoje todos os membros do júri sabem que as obras são falsas, que durante dez anos foram enganados, e não querem dar o braço a torcer.” Entretanto, Van Meegeren, agora com cinquenta e oito anos, encontra-se em liberdade condicional. Vive em sua casa, mas não tem licença de discutir o caso com estranhos. Vai até seu bar preferido, onde bebe sem parar. Uma tarde tomou cinquenta e dois cálices de gim puro em seis horas. Há pouco, certo jornalista holandês seu amigo, que trabalha para o Algemeen Nederlands Persbureau, conseguiu vê-lo a sós. Almoçaram juntos e por fim o amigo lhe disse: — Hans, temos passeado, jantado e bebido juntos dezenas de vezes. Somos amigos há muitos anos e apesar de tudo ainda não sei se foi você ou não quem pintou aqueles quadros. Van Meegeren fitou o amigo e retorquiu calmamente: — Fui eu que os pintei. Não voltaram a falar do assunto. A informação oficial do governo holandês concorda inteiramente com a confissão inicial de Van Meegeren: “Não há dúvida”, afirma-se, “de que foi aquele gênio louco quem pintou os quadros atribuídos a Vermeer.”
Das oito autoridades consultadas por este autor na Holanda, a maior parte desinteressada de Van Meegeren como pessoa, todos declaram, cada um em particular, alguns de má vontade, outros com a condição de não serem citados, que fora decerto Van Meegeren quem falsificara os quadros. Um deles, M. M. van Dantzig, um sujeitinho rabugento e sarcástico, perito em arte que acabava de publicar um livro em holandês sobre Vermeer, confessava masoquisticamente que Van Meegeren o iludira a princípio. — Mas agora, depois de um estudo acurado, é evidente que todos aqueles Vermeers são falsos — afirma Dantzig. A propósito, convém saber que o passatempo preferido de Dantzig consiste em aborrecer seus colegas especialistas em arte afirmando-lhes que sessenta por cento dos quadros expostos nos museus e nas coleções particulares são tão falsos como os Vermeers de Van Meegeren. Van Dantzig chegou a essa conclusão, de certo modo arbitrária, graças a uma alquimia secreta, que nenhum dos seus amigos percebe. Os colegas há muito deixaram de discutir com ele sobre essa percentagem, que consideram absurda e gratuita, mas concordam plenamente com ele em que existe grande número de quadros falsos passando por autênticos. Tal como afirma a título de piada um crítico holandês, recordando o velho espírito dos artistas: “Dos dois mil e quinhentos quadros pintados por Corot em toda a sua vida, sete mil e oitocentos encontram-se na América”. Outros críticos, mais a sério, citam o exemplo das duas versões do Menino azul, de Gainsbo- rough, que causou consternação internacional, bem como a recente descoberta em Paris de uma fábrica de falsificações que produzia Picassos e Utrillos às dúzias. E tão perfeitas eram as imitações que o próprio Utrillo, chamado à polícia, teve de olhar duas vezes antes de acabar por aceitar o conselho de um especialista da Sureté no sentido de renegar os óleos assinados com o seu nome. — Muitas razões levam ao aparecimento de fraudes — explicava Van Dantzig. — Uma delas é o fato de ter sido extremamente fácil, no século XVII, um aprendiz fazer cópias exatas dos trabalhos do mestre, assiná-las com o nome deste e vendê-las como originais. Os chamados especialistas em arte são por vezes incapazes de distinguir entre a cópia e o original. Uma obra-prima é aceita como genuína porque muita gente até então a considerou como tal, e assim se faz a lenda. Mas a verdade é que se torna impossível olhar para um óleo e dizer logo que é autêntico. As fraudes de Van Meegeren provam-no bem. Para se apreender a personalidade de um autor é preciso ver através da tela. No original de um velho mestre, tudo se conjuga: a cor, a composição, todos os elementos. Isso porque seu autor fez tudo ao mesmo tempo, de maneira criativa, numa só pincelada. O copiador, o falsário, faz cada coisa separadamente, porque não está inventando nem criando, mas pensando, analisando, imitando. Porém, muitos especialistas não vêem essas coisas, e é por isso que grande número de colecionadores possuem obras-primas tão autênticas como os Vermeers de Meegeren. As melhores autoridades holandesas em matéria de pintura concordam em que o caso Van Meegeren vem levantar sérias dúvidas quanto à autenticidade de certas obras de muitas coleções famosas, especialmente as mais recentes. O caso abalou a confiança do grande público em questões de arte e muita gente pode agora começar a duvidar da autenticidade dos Vermeers expostos nos museus de Haia, de Edimburgo, de Viena, de Berlim, de Nova York ou de Londres. Serão verdadeiros, visto que alguns especialistas contemporâneos se revelaram tão falíveis? E quanto às outras obras de arte? “O número de quadros comprados e vendidos como sendo de Rembrandt, em todos os tempos”, observou o Dr. Ma- ximilian Toch, perito em arte de Manhattan, “representa dez vezes mais horas de
trabalho do que as que Rembrandt poderia, na melhor das hipóteses, ter dedicado à pintura. E a discrepância é ainda maior no caso de outros artistas, como Anthony van Dyck, a quem são atribuídas umas duas mil obras, quando ele só poderia ter pintado com sua mão cerca de setenta.” E que dizer então dos numerosos originais de Rafael? E de Millet? De Rubens e de Ingres? São todos autênticos? Quem foi que o decretou? A essas perguntas embaraçosas, agora formuladas nos cafés e nos círculos artísticos da Europa, os adeptos de Van Meegeren acrescentam outra: se as imitações de Van Meegeren foram consideradas autênticas, compradas e apreciadas como originais, não serão todos os falsários que trabalham no estilo de outro artista e conseguem iludir os especialistas uma espécie de gênios dentro de seu campo de atividade? Na Holanda há uma forte corrente que pensa assim, que considera Van Meegeren um exemplo dessa espécie de gênios. Afirmam que seu ídolo não copiou uma única obra “conhecida” do mestre, mas criou novas obras-primas, seguindo a maneira e o estilo com que o velho mestre as pintaria se ainda fosse vivo. Chamam a isso, na Holanda, “fraude criativa”, e dizem que não constitui um crime, mas sim arte, e que Van Meegeren é talvez um dos maiores pintores de sua categoria em toda a história da arte. Van Meegeren, neste momento, está talvez menos interessado em ser considerado um gênio do que em provar que seus inimigos figadais, os críticos de arte, estão enganados. — Se a coisa se tivesse mantido secreta, eu ainda seria capaz de voltar a iludi-los — teima ele. — Se eu tivesse tempo para estudar cuidadosamente Rembrandt, de aprender com exatidão sua maneira de misturar as cores, seria capaz de enganar esses idiotas. Quando vissem a assinatura, o estilo, a tela com craquelês, exclamariam: “Ah! Foi descoberto um novo quadro de Rembrandt, o mais maravilhoso de todos!” Hans van Meegeren começou a desenhar a sério ainda na escola primária, na idade em que os outros meninos se divertem com aeromodelos ou colocam tartarugas nas costas das irmãs. Porém, quando foi para Delft, cidade universitária perto de Roterdam, estava disposto a se tornar um arquiteto. Essa resolução não se manteve durante muito tempo. Delft era a cidade natal de Jan Vermeer e o cenário de muitas das suas paisagens holandesas. Hans van Meegeren não tardou a sucumbir a esse encanto e trocou as plantas de construção pelo cavalete. Enquanto vivia em Delft, ganhava a vida ensinando história da arte e desenho no Instituto Técnico de Delft, dedicando, porém, todos os momentos livres à pintura. Em 1914, uma de suas telas obteve o primeiro prêmio num concurso patrocinado pela Academia de Arte de Haia. Foi esse o começo da vida artística de Van Meegeren. Por volta de 1920, conseguira alcançar uma relativa fama, mas ganhava pouco dinheiro. Em 1912, casara-se com Ana de Voogt, de quem teve dois filhos, Inês e Jacques. O sustento da família preocupava-o. Até que, em 1922, tendo-se apaixonado por Jovan Walraven, atriz divorciada, meio holandesa meio espanhola, divorciou-se de Ana para viver com Jo, com quem se casou só em 1929. No entanto, nessa altura, sua situação econômica melhorara. Foram publicados na Holanda dois álbuns com seus esboços e estudos em preto e branco, e recebeu encomendas de retratos de alguns membros da nobreza de Londres e de americanos milionários residentes na Riviera francesa. Nessa época, mais ou menos, teve início a amarga rivalidade entre Van
Meegeren, de um lado, e os críticos e pintores holandeses contemporâneos, de outro. Estes não viam com bons olhos seu espírito independente, sua inteligência aguda e seu sucesso financeiro. Não lhe perdoavam também o fato de ele se recusar a entrar no jogo. Antes da guerra, na Holanda, a imprensa revelava-se por vezes tão venal como na vizinha França. Quando os críticos vinham lhe apresentar suas habituais propostas de críticas favoráveis desde que ele lhes pagasse bem por isso, Van Meegeren recusava-as, indignado. Por isso os críticos só lhe faziam más referências. Esfolavam-no vivo. Chamavam-no de artista de segunda classe. A inimizade continuou durante cinco anos e, finalmente, em 1936, quando já não podia aturar mais os críticos, resolveu vingar-se. Fez vários planos e acabou escolhendo o mais difícil de todos, o mais decisivo e o que mais lhe falava à imaginação. Os críticos e os peritos passam a vida elogiando e fazendo alarde dos velhos mestres, pensou, e na opinião deles era maravilhoso tudo o que tivesse a garantia da assinatura e da tradição: “Quanto mais penso, mais me convenço de que seriam capazes de engolir as minhas obras se se convencessem de que eram importantes e tinham a assinatura de um mestre”, disse mais tarde Van Meegeren a um amigo. “Era uma coisa dificílima de empreender e muito perigosa, mas eu estava furioso com eles, queria expô-los ao ridículo. Resolvi pregar-lhes uma peça. Ia pintar um quadro de um velho mestre e fazer com que eles o aceitassem e o elogiassem.” Van Meegeren estava em dúvida se deveria imitar este ou aquele mestre. Primeiro lembrou-se de Leonardo da Vinci e de Rembrandt, mas logo os pôs de lado. Finalmente escolheu Vermeer. Mas por que Vermeer? “Porque eu tinha uma grande admiração por ele”, confessa hoje Meegeren. “No entanto também podia ter optado por outro qualquer. Mas havia ainda mais razões: eu imitaria o estilo deste com maior facilidade. Também sua vida pessoal se encontrava envolta em mistério, o que tornava menos estranha a descoberta de um novo Vermeer.” Embora já soubesse bastante sobre o artista que escolhera, Van Meegeren passou os meses seguintes estudando a fundo Vermeer. Consultou fragmentos de relatos contemporâneos da vida particular do artista. Ficou sabendo que se casara muito cedo e tivera oito filhos, vivendo sempre em Delft uma vida respeitável. Que fora um artista próspero — certo visitante que foi ao seu estúdio não conseguiu encontrar nenhum quadro para vender, estavam todos adquiridos, e viu-se obrigado a comprar um de um padeiro, que vivia perto. Prosseguindo nas suas pesquisas, Meegeren descobriu que ele trabalhara como estudante ou aprendiz no ateliê do imortal Rembrandt. De fato, este pintor chegara a ter vinte aprendizes ao mesmo tempo, aprendizes que o ajudavam a encher o fundo de suas telas mais complicadas. Van Meegeren ficou também sabendo que Vermeer ficara no esquecimento durante quase duzentos anos, simplesmente por ter se incompatibilizado com o hist riador holandês Houbraken, que por isso não o fez figurai na sua obra O grande teatro dos pintores flamengos, que mais tarde seria a “bíblia” dos críticos. “Por não ter sido mencionado nesse livro foi desprezado e esquecido. É para se ver como os críticos julgam o talento das pessoas”, diz Van Meegeren. Em 1865, Burguer-Thoré, um francês exilado, interessou-se por aquele pintor obscuro, procurou por toda parte os seus quadros, tornou-os conhecidos e estabeleceu as bases da atual fama de Vermeer. Com a cabeça cheia dessas informações, Van Meegeren começou a estudar os próprios quadros de Vermeer. Alguns catálogos referiam-se a trinta e seis autênticos Vermeers; outros, a trinta e sete e a quarenta. Van Meegeren limitou
seus estudos a um punhado deles inegavelmente autênticos (cuja proveniência estava comprovada em relatos contemporâneos), expostos em museus de Amsterdam e de Haia. Observou o senso da cor em Vermeer, sua pincelada, seu estilo direto. Notou-lhe as fraquezas no desenho das cabeças e o talento na reprodução das naturezas mortas. Absorveu todas as características de Vermeer — tão infalíveis como impressões digitais —, a repetição em muitos quadros da cadeira com a cabeça de leão, os tapetes enrugados, as janelas de vidro fosco nos panos de fundo. O último passo que deu na preparação de sua fraude foi de ordem técnica. O quadro teria de ser absolutamente convincente, devia datar de 1670, sob todos os aspectos. Os peritos, é claro, não deixariam de verificar o efeito do álcool nas cores, de lhe dar injeções a fim de descobrir o que continham as tintas, de empregar raios X e infravermelhos para fotografar a tela, de utilizar lâmpadas de quartzo para penetrar as camadas. Van Meegeren já contava com tudo isso. Consultou manuscritos do século XVII e ficou sabendo que Vermeer e Velázquez utilizavam gamboge, uma resina que empregavam como pigmento amarelo, lápis-lazúli, que era um azul feito de pedra moída, e branco de zinco em lugar de branco de chumbo. A fim de conseguir lápis-lazúli genuíno, Van Meegeren comprou-o a dois mil dólares o tubo. “O único percalço”, recorda Van Meegeren, “era o óleo com que se misturavam as tintas. Os pintores hoje em dia utilizam o óleo de linhaça. Mas não presta. Com ele os quadros nunca se tornam duros nem têm longa vida. Felizmente descobri num velho manuscrito precisamente o óleo que Vermeer empregava. Utilizei-o e meu quadro ficou à prova de todos os testes pelo álcool.” Nenhum pormenor era demasiado insignificante para Van Meegeren. Aqueceu ao máximo o seu quadro, porque era isso o que Vermeer costumava fazer. Apurou também que os antigos mestres empregavam pincéis de pêlo de texugo em lugar de cerdas de porco, tal como se usa hoje. Van Meegeren sabia que os peritos costumam declarar um quadro do século XVII genuinamente autêntico sempre que encontram colado a ele um pêlo de texugo. Quando tudo ficou pronto, Van Meegeren, armado com todos os seus conhecimentos e materiais, foi com a mulher instalar-se numa villa rústica em Nice. Escolheu para o seu Vermeer uma sugestiva imagem de Cristo partindo pão com os discípulos em Emaús — De Emmausganger. Trabalhou nesse quadro secretamente, meticulosamente, horas e horas, dias e dias, durante sete meses consecutivos. Nem a mulher sabia o que ele estava fazendo. Depois de pronto, estudou-o ponto por ponto. Nada faltava, nem mesmo os craquelês na superfície. Sabia que, antes de Vermeer, efa costume as tintas racharem, formando gretas largas, porém, nos quadros deste (bem como nos de seus contemporâneos), as rachaduras eram miúdas e em cadeia, por isso Van Meegeren riscou-as segundo o desenho autêntico e depois fê-las alargar mais aquecendo-as no fogão da cozinha, de forma a ficarem exatamente iguais. Faltava apenas o último toque: a assinatura do mestre. Van Meegeren rabiscou-a e pronto! Depois, a partir do conhecimento da vida de Vermeer, inventou a história da “descoberta”. Sabia que Vermeer trabalhara com aprendizes italianos. Todos eles haviam pintado Cristo em Emaús e levado seus trabalhos para a Itália. Era mais do que provável que Vermeer tivesse pintado também Cristo em Emaús e podia admitir-se também que, durante os anos de sua vida de que nada se sabe, tivesse viajado até aquele país. Esse novo Vermeer iria aparecer na Itália. Van Meegeren seria informado de sua existência por um amigo, comprá-lo-ia muito barato e depois iria vendê-lo.
Todo entusiasmado, dirigiu-se a Amsterdam com sua obra. Antes de pô-la à venda, sabia que seria útil obter um certificado de autenticidade. Van Meegeren dirigiu-se pois a um grande historiador de arte holandês, o Dr. Abraham Bredius, um velho de noventa anos, que vivia obscuramente à espera da morte. Van Meegeren mostrou-lhe a sua descoberta. O velho perito, lisonjeado pelo fato de alguém ainda ir consultá-lo, fixou o quadro com os seus olhos piscos, submeteuo ao teste dos raios X e do álcool, e por fim concedeu-lhe um entusiástico veredicto de autenticidade e aprovação. Entusiasmado ainda por ter autenticado aquela obra- prima, o Dr. Bredius publicou um artigo sobre ela na Burlington Magazine, uma revista de arte inglesa. Orgulhoso de sua nova descoberta, o Dr. Bredius escreveu: “E um momento maravilhoso na vida de um amante da arte, aquele em que ele se encontra subitamente em face do quadro, até então ignorado, de um grande mestre, uma tela original, em que ninguém tocou e está tal e qual saiu do estúdio do artista!. .. Temos aqui uma obra-prima de Jan Vermeer, de Delft”. Seguiram-se os passos de costume. No fim de 1937, os membros da Associação Rembrandt, depois de haverem contratado mais quatro peritos para estudar o quadro de Vermeer com o auxílio de testes químicos e de raios X, declararam-no autêntico, pagaram a Meegeren por ele meio milhão de florins — duzentos mil dólares — e depois apresentaram- no no Museu Boyman de Amsterdam. Seu aparecimento em público realizou-se em setembro de 1938, numa exposição de quatrocentas e cinquenta obras-primas reunidas para celebrar o jubileu da Rainha Guilhermina, despertando as atenções gerais. Os críticos de Haia, de Londres, de Paris corriam a contemplá-lo. Inspirava tal devoção que exigiram que o assoalho do museu fosse atapetado para evitar o barulho enquanto os amadores se extasiavam olhando-o. Alguns críticos escreveram, deslumbrados, que se tratava, de longe, da melhor obra de Jan Vermeer. Van Meegeren estava delirante. Provara que seus mortais inimigos não passavam de uns idiotas e enriquecera à custa deles. No ano seguinte, resolveu executar um segundo Vermeer, que vendeu igualmente por preço elevadíssimo. Ao todo, fez seis. O promotor público de Amsterdam considera esse o seu maior crime: “Se ele tivesse pintado apenas o primeiro, somente para ridicularizar os críticos, muito bem; toda a Holanda teria rido com gosto e considerá-lo-ia um herói. Mas não, não ficara por ali. Queria enriquecer rapidamente. E transformou a brincadeira num negócio. Esse é que foi o grande crime”. Van Meegeren desfez-se de todos os seus quadros falsos, com exceção do último. Visto não ter nesse momento necessidade de dinheiro, e como sentia um fraco pelo quadro, pendurou-o numa parede de sua casa, ao lado de um Fran Hals autêntico que comprara havia pouco. Mais tarde, entrou em decadência. Um agente intermediário, o tal Reinstra, apareceu um dia e convenceu-o a vender o quadro. Van Meegeren acedeu com relutância, com a condição de não ir parar nas mãos dos nazistas, que então ocupavam a Holanda. Dali a três semanas, após renhida disputa com um grupo holandês, foi entregue a Hermann Goering em troca de cento e cinquenta dos seus quadros, avaliados em um milhão e seiscentos mil florins, ou seja, seiscentos mil dólares, segundo a cotação de 1943. Desta soma, duzentos e cinquenta mil passaram às mãos de Van Meegeren, ficando o resto para o agente, como comissão. Goering sentiu-se tão satisfeito com o negócio que escreveu agradecendo a Van Meegeren, tratando-o por “meu ilustre pintor”. Van Meegeren recorda com tristeza esse acontecimento: “Fiquei indignado quando soube que o quadro havia sido vendido a Goering. Mas aceitei o dinheiro, e isso foi o princípio do fim”.
Hoje, ano e meio decorrido após a confissão de sua fraude, Hans van Meegeren é um homem cansado e vencido. A única coisa que ainda o anima é o desejo de provar ter sido o autor dos quadros falsos, enganando assim os sumos sacerdotes da arte. Apresenta constantemente novas provas de culpabilidade. Indica as cabeças de Vermeer. Este as reproduzia em tamanho natural. Nos seus quadros, Van Meegeren pintou propositadamente todas as cabeças humanas com mais seis centímetros do que as de Vermeer, em obediência a uma teoria muito sua, segundo a qual as cabeças pareciam mais naturais quando aumentadas. Esta, afirma ele, não passa de uma das muitas provas da sua imitação. Porém seus inimigos teimam de pés juntos que esse pormenor estranho só prova que a nova série desconhecida de Vermeer é única e diferente do resto. Intrépido, Van Meegeren apresenta novas provas. As cadeiras em que se vê Cristo sentado, no primeiro e no último quadros, são copiadas de uma, relativamente moderna, que tem no seu estúdio. As mãos de Cristo não são do tipo das que pintava Vermeer, mas sim parecidas com as do próprio Van Meegeren. Quanto às tintas, apresenta recibos de casas de Londres onde adquiriu as bisnagas mais caras. Há pouco recordou-se de que deixara uns restos de tela rara do século XVII no chão de sua villa na França. Achava que essa seria uma prova irrefutável. Mandou pedir que lhe fosse enviado para a Holanda esse pedaço de tela. O governo holandês mandou imediatamente dois policiais à casa de Van Meegeren. Eles revistaram a casa mas não encontraram vestígios da tela do século XVII. Van Meegeren ficou consternado e afirmou que seus inimigos foram lá primeiro e destruíram a tela. Embora Van Meegeren tenha muitos amigos, poucos são os que se atrevem a defendê-lo publicamente. Um desses, embora não aprecie muito o seu talento artístico, é Van Dantzig, o perito em arte de Amsterdam. Teima em afirmar que não pode haver dúvidas quanto ao fato de ter sido Van Meegeren o autor das fraudes. “Existem dezenas de provas nesse sentido”, afirma ele. “Esta, por exemplo: a pincelada. Ela constitui o ato mais individual e subconsciente de um artista. A de uns é longa, a de outros curta, fina ou espessa, curva no princípio e no fim, ou feita num movimento rápido. Jan Vermeer empregava pinceladas curtas e punha salpicos de cor e pontos refletindo a luz nos momentos críticos e decisivos. Estava criando e sabia onde os colocava. Van Meegeren pintava mais lentamente e com mais cuidado, seus salpicos e pontos de luz são mais estudados, como se fossem feitos pela mão de uma pessoa que tivesse de pensar primeiro onde colocá-los. Ou, então, observemos as mãos. As de Vermeer são articuladas, nodosas, como se estivessem vivas. As de Van Meegeren são balofas e os dedos parecem salsichas sem vida. E vejamos os cabelos humanos. Os de Vermeer quase se podem apalpar. Os de Van Meegeren são tufos espetados, fabricados. E por aí afora. As provas nunca mais acabam.” No entanto, embora com falta de munições, os inimigos de Van Meegeren continuam a bombardeá-lo. Tentam a todo momento atrapalhá-lo com perguntas. Exigem-lhe que apresente os modelos vivos que lhe serviram para os Vermeers. Ele responde que não teve modelos, não precisava deles, e que um artista, depois de pintar duas mil figuras durante toda a vida, dispensa os modelos. Os inimigos desviam então o ataque para o fato de ele ter colaborado com os nazistas. Não há muito tempo, um jornalista holandês descobriu em Berlim um álbum de reproduções em branco e preto dos quadros de Van Meegeren, com a seguinte dedicatória: “Ao meu querido Fuehrer, com os melhores desejos, Hans van Meegeren”. Seus inimigos difundiram a notícia por toda a Holanda e pelo continente. Van Meegeren defendeu-se imediatamente. Recordou que, durante a ocupação, um oficial alemão que era artista amador lhe pediu um autógrafo para
aquele álbum de desenhos. Ele concedeu-lhe uma simples assinatura e nada mais. Insiste em que o oficial deve ter escrito a dedicatória a Hitler por cima da assinatura, enviando depois o livro ao Fuehrer. Exigiu que a assinatura e a dedicatória fossem examinadas por peritos em grafologia. Imedia- mente assim se procedeu. Os peritos declararam que a assinatura foi, de fato, feita pela mão de Van Meegeren, mas que o resto foi escrito por outra pessoa. Van Meegeren requisitou o álbum para apresentá-lo como prova em tribunal. Quando a polícia foi procurá-lo, havia desaparecido, não se sabe como. Por isso os debates e as intrigas prosseguem em Amsterdam. Qual será o resultado legal de tudo isto? As opiniões divergem muito. Uma minoria acha que o caso vai ser abandonado dentro de um ou dois anos e que libertarão Van Meegeren. A maioria é de opinião que o júri internacional será obrigado a confessar que os quadros de Vermeer são imitações muito bem-feitas. Se assim for, Van Meegeren pegará de dois a seis anos de cadeia ou então uma multa de um milhão de dólares. O que, sem dúvida, constituirá uma pena muito mais dura do que aquela a que seria condenado se fosse considerado colaboracionista... Hans van Meegeren, porém, prefere a condenação mais grave. Vingaria assim a sua honra e derrubaria o orgulho dos críticos de arte. Além disso, deseja comprar de novo os seus seis quadros. Já teve uma oferta de oito milhões de dólares, soma esta tornada pública na Europa, e que lhe foi oferecida por um milionário americano. Van Meegeren recusou-se a revelar o nome dele. Mas Van Meegeren desconfia que não chegará nunca a ver o dia da vitória, nem a receber a tal fortuna da América. “Se eu morrer amanhã, os críticos, os compradores de quadros e os museus sentirão um grande alívio. Seria como lhes tirar um espinho da carne. O processo seria arquivado, os Vermeers esquecidos, considerados autênticos, e os peritos ficariam em paz. Estando eu vivo, não podem arredar pé daqui. Enquanto eu viver, muita coisa estará em jogo. Milhões de dólares em dinheiro e anos de prestígio como peritos em arte. Eles sabem de tudo isso, e sentem-se desesperados. É por isso que ando com muito cuidado nas ruas. Quando vejo um carro vir em minha direção a toda a velocidade, entro logo numa porta. Seria uma estupidez se me acontecesse um desastre numa altura destas, não acham?” O que aconteceu depois. . . Quando cheguei à Holanda, em setembro de 1946, interessado em recolher material sobre o caso Van Meegeren, fui informado por algumas pessoas do seu círculo de amigos de que eu era o primeiro escritor que tentava apresentar detalhadamente a história num periódico de grande circulação. Antes de minha pesquisa sobre as imitações de Vermeer, tinham aparecido nos jornais alguns relatos breves daquela disputa artística, mas nunca houvera uma tentativa de apresentar a personalidade de Van Meegeren ou de analisar o seu papel naquela série de enganos, e ninguém se interessara pelo fantástico dilema que o caso constituía para as autoridades. Não consegui encontrar-me pessoalmente com Van Meegeren. Ele estava enfermo e, além disso, continuava sob a constante vigilância da polícia. Grande parte do meu material foi conseguido através de minha amizade com M. Pot- zoldt, um jornalista holandês de Amsterdam que conhecia bem Van Meegeren e acreditava nele. Eu tinha muitas perguntas a fazer, mas ele funcionou como intermediário, comunicando minhas dúvidas ao pintor enfermo e trazendo-me as respostas deste. Também um perito em arte de Amsterdam, M. M. van Dantzig, concedeu-me generosamente seu tempo e sua cooperação. Consultei uma dezena de fontes em Amsterdam, tendo em vista conseguir informações sobre Van
Meegeren. Quando obtive tudo o que queria, fui para Paris. Aí é que escrevi a minha história, a que chamei: “Como encarnar um velho mestre”. Antes de partir para Madri, enviei o rascunho completo ao meu agente literário, em Nova York, que imediatamente o colocou no The Saturday Evening Post, onde foi publicado com um título muito mais atrevido: “O homem que enganou Goering”, no número de 11 de janeiro de 1947. Mesmo antes de o artigo sair, já o Reader’s Digest o comprara, transcrevendo-o no número de março de 1947. Poucas das minhas histórias obtiveram tanto sucesso como esta junto a pessoas que estavam interessadas em adquirir os direitos de adaptação para o teatro. Fui assediado com pedidos de direitos cinematográficos, teatrais e radiofônicos. Edouard Gross, que encenara Chicken every Sunday na Broadway com grande êxito, quis que eu transformasse meu artigo numa peça teatral. Prometi fazer isso. Tenho ainda em meu poder um recorte da página teatral de um diário de Nova York, de fevereiro de 1948, que diz o seguinte: “Edouard Gross vai escolher na costa do Pacífico os intérpretes para a peça de Irving Wallace, Masterpiece. Pretende apresentá-la em Los Angeles ainda nesta primavera e trazêla em seguida para a Broadway”. Esse anúncio, porém, foi prematuro, embora, na época, correspondesse à verdade. Eu havia de fato intitulado Masterpiece a história de Van Meegeren adaptada ao palco, e já escrevera o resumo e quase um ato inteiro, quando me vi obrigado a abandonar o projeto. Não me recordo bem da razão, mas suponho que foi principalmente por me encontrar sem recursos, precisamente quando fui pai pela primeira vez, vendo-me por isso obrigado a voltar à profissão de escritor assalariado de argumentos cinematográficos. Se, por um lado, o interesse do cinema e do teatro pelo caso Van Meegeren não deu em nada, o mesmo não aconteceu quanto ao terceiro aspecto, pois esse foi coroado de êxito. Em janeiro de 1948, Paul Muni encarnava Hans van Meegeren numa adaptação feita pela rede radiofônica nacional da peça O homem que enganou Goering. E, em 1953, minha história era comprada por uma rede de televisão e, um pouco mais tarde, transmitida de costa a costa, com o nome de A fraude, com a colaboração de Herbert Marshall e Paul Henreid. Infelizmente, Hans Meegeren morreu antes que sua celebridade chegasse ao grande público, não só através do rádio e da televisão, como também devido ao muito que se escreveu sobre a sua lenda. Segundo meus limitados conhecimentos, apareceram pelo menos uma ou talvez duas dúzias de livros depois de sua morte dedicados inteiramente ou em grande parte à sua vida e às suas falsificações. Quando deixei Van Meegeren em Amsterdam, no outono de 1946, ele estava ainda à espera da decisão sobre o sétimo Vermeer, o único que ele deliberadamente forjara para ser julgado por um júri de peritos em arte internacionais. Baseado na sua obra O Menino Jesus no templo entre os doutores, os peritos em arte iriam resolver se Van Meegeren seria julgado por fraude, tendo falsificado seis Vermeers e enganado Goering com um deles, ou apenas acusado de colaboração política, não por ter vendido um quadro falso, mas sim seis autênticos Vermeers, um deles ao inimigo. Depois de minha partida de Amsterdam, Hans Meege- rens viveu ainda quinze meses. Foi no princípio do outono de 1947 que os peritos em arte internacionais deram a sua decisão. Declararam que Hans van Meegeren enganara a todos eles, bem como a seus outros colegas. O sétimo Vermeer, que Van Meegeren pintara por ordem da polícia, convencera-os de que os outros seis não passavam de fraudes. A prova principal, pondo de lado as considerações de
natureza estética, era apresentada por um dos juizes, o Dr. P. B. Coremans, diretor do Laboratório Central dos Museus Belgas, que afirmou ter sido revelada pela prova laboratorial a presença, nas pinturas de Van Meegeren, de uma resina sintética não descoberta antes de 1900. A despeito da discordância de um professor de química suíço, que afirmava que “as análises microtécnicas em que Coremans se baseia não provam a existência de qualquer produto sintético resinoso nas camadas de pintura”, os outros juizes mostraram-se relutantes em concordar com Coremans em que, embora os seis Vermeers tivessem a assinatura do mestre, “I. V. M.” (I. V. Meer), os quadros haviam sido executados indubitavelmente pelo incrível Hans van Meegeren. A 29 de outubro de 1947, Hans van Meegeren foi julgado no Tribunal Distrital de Amsterdam. Para grande alegria sua, foi julgado um admirável impostor e não um simples colaboracionista. As provas de falsificação foram apresentadas num só dia. Van Meegeren não as refutou. O promotor de justiça pediu para Van Meegeren dois anos de prisão como castigo por sua fraude. O tribunal retardou a sentença duas semanas. A 12 de novembro, o tribunal reu- niu-se de novo. Hans van Meegeren, fraco e doente, aguardava o veredicto. Em vista de sua pouca saúde (e talvez devido à simpatia do público holandês por uma pessoa que se atrevera a fazer pouco dos críticos e das autoridades), o tribunal não aplicou a pena pedida pelo promotor. Hans van Meegeren foi condenado apenas a um ano de prisão. Nosso homem voltou para a sua enorme casa, no número 321 de Keisersgracht, a fim de aguardar que o conduzissem oficialmente à cadeia. Nunca ninguém foi buscá-lo. Vivia num pesadelo kafkiano. Esperava e tornava a esperar e não aparecia ninguém. Contra ele havia acusações que não acabavam mais. Os que haviam comprado as imitações exigiam o reembolso do dinheiro perdido. O governo queria receber os impostos atrasados daquele lucro. Havia ainda as custas do tribunal. O dinheiro de Van Meegeren diminuía rapidamente. Começou o processo de falência. Entre os colecionadores de quadros surgiu um exótico interesse por Van Meegeren, essa espécie de curiosidade suscitada pelas exposições extravagantes. De Londres, de Nova York, de Paris, vinham encomendas de retratos, de ilustrações para livros, de novos óleos “estilo Vermeer”. Van Meegeren desejava voltar aos pincéis, à paleta e à tela, porém sentia-se incapaz de começar. Tanto sua vontade como seu corpo estavam demasiado fracos. Pesava sobre ele a ameaça cotidiana de sua iminente prisão. Durante essa época de espera, rodeado de enfermeiras, recebeu a visita de alguns amigos e de seu filho Jacques. Uma vez que a polícia não o impedia, recomeçou a passear de tarde ao longo dos canais, cumprimentando e recebendo os cumprimentos da população. À tarde, dirigia-se muitas vezes ao seu café favorito. Bebia cada vez mais. Apesar das pílulas, dormia pouco e mal. Continuava a enfraquecer. Após cinco semanas de inconsciência, teve um colapso. Levaram- no a toda a pressa para o hospital. Na tarde do dia 30 de dezembro de 1947, teve um ataque cardíaco e morreu. Dali a dois dias, Paul Muni representava sua vida, baseado na minha história, para os rádio-ouvintes de todos os Estados Unidos, e talvez nessa tarde Hans van Meegeren houvesse ressuscitado, começando então seu verdadeiro reinado. Hoje a lenda tornou-o mais forte do que nunca, a lenda do gênio fabricado. As derradeiras palavras de Van Meegeren para a posteridade encontram-se
resumidas na confissão que fez na cadeia. Numa notícia datada de 1964, a Agência Reuters declarava “que ele produzira obras intrinsecamente tão boas como as dos grandes mestres. Proporcionavam igual prazer e portanto não defraudavam ninguém. A única diferença, dizia-se, era a assinatura”. Houve duas opiniões póstumas que deveriam lhe ter dado grande satisfação. Uma dizia respeito ao seu talento. Outra, aos seus críticos. Em 1950 foi publicada em Londres a apreciação do Dr. P. B. Corelan sobre os méritos de Hans van Meegeren: “Van Meegeren foi, indubitavelmente, o maior falsificador de todos os tempos. Como artista, conseguiu realizar o melhor e o pior, visto que seus dons naturais foram absorvidos pela linha de menor resistência, a ânsia dos ganhos e do luxo. Em suas imitações, essas características estão evidentes. O que o levou a criar o belo quadro dos Discípulos foi um imenso despeito e desprezo (se não ódio) pelas obras de arte oficiais”. No ano de 1951, em Roterdam, foi publicada uma opinião de Jean Decoen sobre os críticos de Van Meegeren: “Quanto a mim, uma coisa fica deste mistério todo. É a atitude de todos os que em 1938, por meio de afirmações e escritos, anunciaram ao mundo a descoberta de uma das maiores obras-primas da arte holandesa do século XVII. As características que essa obra possuía e que todos podiam apreciar teriam deixado de existir? As qualidades que dão vida a uma obra-prima só se encontram na mente dos homens e não possuem qualquer fundamento real? Será que tudo se evapora e só cònta o nome do artista, a época em que foi executada a obra? Portanto é o nome e não a obra que encerra aquela simpática magia. . . De todas as falsificações, quer se examinem à distância, quer de perto, nenhuma se pode comparar com os Discípulos e continuo a afirmar que, se foi Van Meegeren o seu autor, tiro-lhe o meu chapéu e perdôo-lhe todas as falsificações que porventura tenha feito”. Mais adiante a rendição total do crítico: “O maior falsificador de todos os tempos”, criador, no século XX, de “uma das maiores obras-primas da arte holandesa do século XVII...” De certo modo não posso crer que Van Meegeren não tivesse ficado satisfeito com essas críticas. Ele provara que entre os peritos em arte podem existir muitos tolos. Diga-se em abono destes, contudo, que a maioria renegava humildemente sua crença na própria onisciência. Não tardará, no entanto, a surgir uma nova geração de peritos capaz de renovar e perpetuar a posse exclusiva da Sabedoria Infinita e da Ultima Palavra. Para esses, a lenda de Hans van Meegeren ficará sempre como um marco perturbador recordando a fragilidade humana. Esperemos que assim seja.
13 Monsieur Bertillon Na virada do século, um arrojado editor de Nova York viajou até Paris para oferecer ao maior detetive da época a compra de suas memórias ao preço de um dólar por palavra. Embora essa oferta excedesse de longe seus rendimentos como diretor do Departamento de Identificação da Polícia de Segurança Francesa, Bertillon recusou categoricamente. “Se eu lhe revelasse toda a verdade”, respondeu ao editor, “teria que tornar públicos certos segredos que poderiam ser úteis aos criminosos. Caso não os incluísse, prejudicaria o público.” Sem se deixar vencer, o editor ofereceu-se para pagar o mesmo preço se Bertillon se'dispusesse a disfarçar os fatos num romance policial. — Creio que o senhor não tem nenhum preconceito contra os romances policiais? — Antes pelo contrário — respondeu Bertillon. — Gostaria de ver os métodos de raciocínio de Sherlock Hol- mes adotados pela polícia oficial. Sim, talvez eu um dia escreva um romance, depois de aposentado, se chegar a isso. Mas, por enquanto, não disponho de tempo. E é pena. Tenho histórias tão extraordinárias para contar! Quando por fim morreu, em plena atividade, precisamente há trinta e cinco anos, Alphonse Bertillon ainda não tinha arranjado tempo para escrever o seu romance. Os incríveis relatórios de seus casos, os progressos científicos que levara aos criminologistas de todas as partes do mundo, a própria vida que vivera, tudo constituía uma história mais maravilhosa do que qualquer uma que se pudesse inventar. Hoje em dia, sempre que o FBI prende um Dillinger, todas as vezes que a Scotland Yard captura um Crippen, quando a Sureté agarra um Landru, prestam um silencioso tributo a Alphonse Bertillon. Em lugar de memórias, Bertillon deixou inúmeras armas de detecção, graças às quais a lei pode defender-se contra a astúcia e a selvageria dos bandidos e dos criminosos. Ele ofereceu ao mundo os primeiros meios eficazes de identificação e classificação dos criminosos, permitindo que os reincidentes pudessem ser apanhados. Descobriu um método de identificar os que se escondiam sob um nome falso ou que recorriam à cirurgia plástica. Inventou a fotografia policial. Foi o primeiro detetive a descobrir um crime através das impressões digitais, e foi o primeiro na investigação criminal científica. Mas isso não foi fácil. Certo dia, Bertillon servia de cicerone a Louis Pasteur numa visita deste à Sureté. A certa altura, o cientista parou e inquiriu: — M. Bertillon, foi com facilidade que conseguiu apoio do governo para as suas descobertas? Bertillon confessou que lutara com as maiores dificuldades, acrescentando: — Mas nunca desesperei. Quando resistiam, eu tornava-me agressivo. Pasteur sorriu: — Ah! Então o senhor também sabe que é menos difícil fazer uma descoberta do que conseguir que ela seja compreendida e adotada. No princípio, o mais difícil para Bertillon foi descobrir o verdadeiro Bertillon. Ele, que tantas descobertas viria a fazer, não era capaz de se encontrar.
Nascera em 1853, e era o segundo filho de um médico parisiense cujo passatempo favorito era estudar caveiras e elaborar estatísticas fisiológicas. Alphonse Bertillon podia considerar-se a ovelha-ne- gra da família. Não conseguira permanecer em três estabelecimentos de ensino e perdera meia dúzia de empregos, desde bancário a professor, na França, na Inglaterra e na Escócia. Depois, teve um emprego a que não podia fugir. Foi convocado para o serviço militar obrigatório e, como soldado raso, destacado para a infantaria. Dispunha de imenso tempo livre e, para se distrair, começou a frequentar os cursos noturnos da faculdade de medicina. De repente, pela primeira vez, encontrou uma coisa que o interessava: o passatempo do pai — os crânios humanos. Fascinado, começou a estudá-los, a medi-los, a classificá-los. Não tardou que seu interesse se estendesse aos restantes duzentos e vinte e dois ossos do corpo humano. E fez uma descoberta: tanto os crânios como os ossos do corpo humano não são iguais em duas pessoas. Bertillon começou a consultar estatísticas. Antes porém de ter chegado a qualquer conclusão aproveitável, terminou o serviço militar e ei-lo de novo desempregado. O pai mostrou-se satisfeito com as estatísticas do filho, mas via as coisas de maneira realista: — É muito bom que você seja um cientista desinteressado, mas primeiro tem de ganhar dinheiro. Vou tentar mais uma vez lhe arranjar emprego. Em março de 1879, através das relações do pai, Bertillon foi trabalhar como escriturário auxiliar na sede da Sureté de Paris. Suas obrigações, dentro de um cubículo minúsculo e frio, eram monótonas e aborrecidas e, na sua opinião, absolutamente estúpidas. Várias vezes esteve tentado a desistir, mas havia qualquer coisa que o prendia à mesa de trabalho. Seu trabalho consistia em registrar as descrições dos criminosos presos no dia, para o caso de algum deles voltar a cair nas mãos da polícia. Essas descrições, porém, não passavam de banalidades, e tornava-se impossível classificá-las de maneira eficiente, por isso não serviam para nada. A inutilidade do método é que aborrecia Bertillon e, no entanto, desafiava-o. Para tornar sua tarefa mais interessante, resolveu melhorar o sistema de captura dos reincidentes. Soube que, cinquenta anos antes, o único meio de descobrir se um criminoso era reincidente consistia em ver se fora marcado com um ferro em brasa. Quando essa marca foi abolida pela lei, a polícia da França, como a das outras nações, ficou limitada a utilizar velhos estratagemas. Colocavam um detetive, disfarçado de prisioneiro, na cela do recém-condenado. Ofereciam prêmios aos policiais que prendessem reincidentes e registravam descrições intermináveis, longas demais para poderem ser catalogadas. Tudo aquilo era uma farsa. Bastava um homem mudar de nome ou de feições, ainda que grosseiramente, para se considerar salvo. Os criminosos reincidentes eram constantemente soltos por falta de identificação concreta. O crime andava em liberdade. Foi então que Alphonse Bertillon se recordou de seus crânios, do fato de não haver dois iguais, e teve uma ideia: a idade, a fome, a doença podiam alterar a carne de um assassino, mas não os seus ossos. O estudo das estatísticas ensinara-lhe que, dos vinte àos sessenta anos, certas partes do corpo humano não se modificam. Bertillon conferiu e tornou a conferir. Só a orelha, pensava, seria suficiente para identificar milhares de criminosos. Havia vinte pontos diferentes numa só orelha. Um assassino podia tingir o cabelo, achatar o nariz, levantar o queixo. Mas, a não ser que a cortasse, a orelha seria sempre a mesma, difícil de disfarçar e fácil de ver.
Dessa forma, depois de oito meses na Sureté como modesto escriturário, Alphonse Bertillon inventava, aos trinta e um anos, o revolucionário sistema de classificação para prender criminosos por meio da medição de certas partes imutáveis do corpo. Chamou ao seu sistema “antropometria”, ou medição do corpo, que consistia em elaborar um mapa completo dos onze pontos inalteráveis do corpo. Cheio de entusiasmo, apresentou seu sistema ao chefe de polícia, esperando ser felicitado. Este passou os olhos pelo sistema e devolveu-o a Bertillon, dizendo: — O senhor é um louco. Saia da minha frente! Bertillon ficou espantado. Regressando ao seu gabinete, releu o que escrevera, alterou a exposição, reorganizou-a, acrescentou coisas e escreveu tudo de novo com mais explicações. E foi de novo apresentá-lo ao chefe de polícia, que desta vez perdeu completamente a cabeça. — Então agora são os escriturários que querem dirigir a Sureté! Vou dar-lhe uma lição! E escreveu, furioso, ao pai de Bertillon, informando-o de que o filho sofria de perturbações mentais e de que o despediria se insistisse com a sua absurda teoria. Exasperado, o pai de Bertillon mandou chamar o filho para lhe dar uma derradeira lição. Alphonse apareceu, não contrito, mas com seus planos debaixo do braço. Dentro de uma hora a antropometria ganhava o seu primeiro adepto. Entusiasmado, o velho Bertillon apelou para o chefe de polícia, mas sem resultado. O chefe da Sureté recusou-se a reconsiderar o problema. Era uma questão de salvar seu prestígio. Alphonse Bertillon voltou ao seu escritório. Não se atreveu mais a falar no sistema que inventara. Mais uma palavra e seria despedido. Queria a todo o custo conservar- se na Sureté. Por isso, tornou-se mudo e aguardou. Um ano, dois, três. Parecia não haver esperanças. Até que, um belo dia, foi nomeado um novo chefe, um indivíduo chamado Camescasse. Mais uma vez, Bertillon apresentou seu sistema revolucionário. O chefe escutou-o com um sorriso tolerante, confessou que compreendia a importância do que Bertillon estava tentando fazer e ao mesmo tempo confessou também que não entendia o processo que ele queria empregar. Porém, mostrava-se impressionado com o entusiasmo do seu escriturário. — M. Bertillon, vou dar-lhe uma oportunidade. Concedo-lhe precisamente três meses. Se, dentro desse prazo, graças ao seu sistema de identificação, tiver conseguido apanhar um reincidente, a Sureté adotará definitivamente o seu método. Se nada conseguir, o caso fica arquivado e não se fala mais nisso. É esta a minha proposta. Está satisfeito? Três meses parecia-lhe pouco. Bertillon hesitava. Mas era aquilo ou nada: — Aceito. Vou entregar-lhe pelo menos um criminoso dentro de três meses, descoberto graças ao meu sistema. E fico-lhe muito grato! Na manhã do dia 13 de dezembro de 1882, Bertillon punha em prática oficialmente o primeiro sistema de classificação de criminosos. Começava colocando cada delinquente numa cadeira giratória, que ainda hoje é utilizada na Sureté, e tirava-lhe uma série de fotografias. Até então, a Sureté tirara cerca de sessenta mil fotos de criminosos, mas todas de frente, hirtas, que nada
revelavam. Bertillon modificou tudo. Apesar das dificuldades apresentadas pelo tempo de pose, inaugurou uma forma nova de fotografia ao natural. Os criminosos eram retratados sem preparação prévia, em posições normais. Bertillon abandonou o processo comum de fotografá-los de frente, sistema que alterava a figura, sobretudo a forma do nariz. Passou a dar maior importância ao perfil, o que fornecia à polícia uma imagem mais perfeita da testa, bem como do nariz e do queixo. Tirava também fotos em primeiro plano de certas feições mais acentuadas. A seguir, Bertillon começou a aplicar o sistema de catalogar as características fisiológicas: a cabeça do criminoso, sua orelha direita, o dedo médio esquerdo, o antebraço esquerdo, o pé esquerdo, tudo cuidadosamente medido e anotado. As medidas eram tiradas três vezes e depois extraída a média, exceto no caso da cabeça, em que as três medições deviam ser exatas. Mediam-se ainda outras coisas: o indicador esquerdo, o comprimento dos braços abertos, a largura do peito, a altura. Sinais particulares, tais como verrugas e cicatrizes, também eram anotados. Até mesmo a cor exata dos olhos; Bertillon sabia que a cor dos olhos de um adulto nunca se altera. Tudo isso era anotado numa ficha, classificado e catalogado segundo um sistema bastante aperfeiçoado, inventado por Bertillon. O fichário que ele inaugurou, há sessenta e sete anos, ainda hoje pode ser visto na Sureté, no Registro de Identificação, em cima do Tribunal Sumário no Palácio da Justiça, em Paris — com a diferença de que, hoje em dia, esse fichário contém dez milhões de fichas, cujos nomes estão classificados por ordem fonética, e não alfabética. Cada ficha mantém-se ali por vinte anos. À medida que o tempo ia passando, sucedendo-se as semanas e os meses, Bertillon ia reconhecendo falhas inevitáveis no seu sistema. Os delinquentes jovens ou os velhos, cujas estruturas ósseas sofriam modificação, cresciam ou se degeneresciam, não eram incluídos no fichário. Havia ainda o elemento humano que as medições envolviam. Alguns agentes da Sureté mediam os presos de uma maneira muito vaga, outros com tantos cuidados que chegavam a alterar a realidade. No entanto, Bertillon tinha a certeza de que seu sistema era suficiente para capturar muitos reincidentes. No entanto, ao cabo de dois meses, ainda não conseguira identificar nenhum. Foi numa bela tarde de fevereiro de 1883 que um homem jovem, de cerca de trinta anos, surgiu perante Bertillon. Dizia chamar-se Dupont. Bertillon torceu o nariz. Naquele dia era ele o sexto Dupont que lhe aparecia. Esse nome é muitas vezes empregado na França como nome suposto, tal como acontece nos Estados Unidos com o de John Doe. O homem fora preso em flagrante delito de roubo. Sendo primário, o caso não era grave. Se fosse reincidente, então já o poderiam julgar. Dupont teimava em que era aquele o seu primeiro crime. Bertillon tiroulhe as medidas e depois consultou suas novas fichas, até que selecionou duas. As medidas de uma delas não correspondiam inteiramente às de Dupont. A outra apresentava as medidas de um homem chamado Martin, que fora preso por roubo havia oito semanas. As medidas de Martin quanto à orelha, aos dedos e ao antebraço coincidiam precisamente com as de Dupont! Tremendo, Bertillon interrogou Dupont: — Conhece estasfotografias, M. Martin? Foram tiradas por ocasião de sua última visita à polícia! Dupont olhou para elas: —É parecido comigo, mas o nariz é mais longo. — Precisamente.O senhor alterou o seu nariz. Mas não pôde modificar sua
estrutura óssea. Leia as medidas com os seus próprios olhos! Perante os fatos, Dupont concordou que era Martin e confessou meia dúzia de delitos anteriores. Bertillon ganhara a partida. Em menos de três meses seu novo sistema triunfara. A sensação que isso causou foi tremenda. O chefe promoveu-o. A Sureté prestou-lhe todas as honras. A imprensa assediou-o. Seguiu-se uma avalanche de pedidos de entrevistas, discursos e banquetes. Porém, Bertillon não tinha tempo a perder. No primeiro ano foram medidos 7 336 criminosos e 49 reincidentes levados à cadeia. No segundo ano, somou 241 o número de recapturados. Ainda não haviam decorrido dez anos e já o sistema de identificação de Bertillon havia posto atrás das grades 3 500 criminosos, só na França. Em 1885, a Sureté adotava oficialmente a antropometria, e dali a três anos Bertillon era promovido a chefe do novo departamento de identificação, com um considerável aumento de salário. Os casos resolvidos pelo sistema de Bertillon foram espetaculares. Um cadáver, inchado e deformado por prolongada imersão na água, foi pescado no rio Marne. A camisa estava marcada com o monograma P.C., o chaveiro ostentava as letras J.D. Bertillon tirou-lhe as medidas, consultou fichas, identificou o corpo, descobriu a história dos antecedentes da vítima e, através dela, os indícios que o conduziram ao assassino. Uma outra vez, um ladrilheiro chamado Rollin havia desaparecido. A mulher e os amigos identificaram-no como sendo um dos três corpos que estavam no necrotério. Bertillon não estava muito certo disso. Uma hora antes do enterro, descobria que o corpo era o de um criminoso famoso e não o de Rollin, que mais tarde Bertillon provou ainda estar vivo. Houve depois o caso de um alemão alto e louro, conhecido pelo nome de Hitler, que praticara um assassinato a sangue-frio perto de Lyon. As testemunhas julgavam ter visto um homem alto e louro que embarcara às pressas num trem com destino a Paris, mas, ao que parecia, esse homem era francês e não alemão. Felizmente Bertillon possuía a ficha de Hitler, a qual incluía estes sinais: “Nariz romano curvo na base, orelhas triangulares; costumava roer as unhas”. Os policiais da Sureté foram vigiar as saídas da Estação de Lyon. Viram sair um homem alto e louro. Os detetives estremeceram mas contiveram-se. A base do nariz do indivíduo era reta e as orelhas, arredondadas. Os policiais tomaram rapidamente uma decisão. Caso se dirigissem àquele homem poderiam afugentar o verdadeiro criminoso. Esperaram. Dali a pouco surgia outro rapaz alto e louro. A Sureté não fez caso de suas roupas francesas. Tinha um nariz romano com a base curva e orelhas triangulares. Os detetives cercaram-no. Quando ele tirou as luvas, viu-se que tinha as unhas roídas. Na polícia verificou-se que suas medidas coincidiam com as de Hitler. Era de fato ele, que não tardou a confessar o crime. Os céticos temiam que o sistema de Bertillon não conseguisse resistir a um disfarce realmente perfeito. Para pro- vá-lo, Bertillon capturou de maneira bastante espetacular o caixa de um banco, homem gordo, de farta cabeleira e olhos salientes, que fugira e conseguira transformar-se num destroço humano, magro e careca, de olhos remelentos, e que foi identificado pela forma das orelhas. Esses casos valeram a Bertillon um grande prestígio na França, porém seus métodos continuavam mal compreendidos no resto do mundo. O panorama modificou-se graças às aventuras de Michel Eyraud e de sua bela jovem amante, Gabrielle Bompard. Certa noite de julho de 1880, Gabrielle Bompard conseguiu atrair, com promessas de amor, ao seu apartamento em Paris, um rico funcionário do governo, chamado Gouffé; enquanto se despia, atou-lhe de brincadeira o cinto do roupão em volta do pescoço. Fez então sinal a Eyraud, que saiu de seu
esconderijo e apertou o cinto com força. Roubaram a vítima, meteram seu corpo numa mala, que depois abandonaram numa estrada perto de Lyon. Michel Eyraud e Gabrielle Bompard partiram em seguida para o Canadá, em busca de vida melhor. Demora- ram-se algum tempo em Montreal, foram em seguida para San Francisco e finalmente montaram um negócio de vinhos numa pequena povoação chamada Santa Helena, na Califórnia. Um mês depois do crime, a Sureté da França havia encontrado o corpo de Gouffé dentro da mala. Em novembro de 1889, baseando-se em indícios descobertos por um inspetor muito inteligente chamado Goron, e graças ao sistema de identificação de Bertillon, a Sureté descobriu que os criminosos eram Eyraud e sua cúmplice, Gabrielle Bompard. Dois detetives da Sureté, Huillier e Soudais, foram enviados ao Canadá, aos Estados Unidos e ao México, à procura do casal fugitivo. No entanto, por seu lado, Gabrielle Bompard e seu novo companheiro haviam regressado a Paris, onde ela foi se entregar à Sureté. Pouco depois, Eyraud era preso em Havana e levado para Paris. O casal foi entregue a Bertillon, que os fotografou, mediu três vezes e preencheu as fichas estatísticas, guardando-as juntamente com as de outros criminosos. Depois de um julgamento sensacional, em que a sensibilidade de Gabrielle ao hipnotismo constituiu a essência de sua defesa e mereceu as honras das manchetes dos jornais do mundo inteiro, o júri considerou-os culpados de assassinato premeditado. Eyraud, condenado à morte, morreu na guilhotina em 1891. Gabrielle cumpriu pena de prisão, só voltando à liberdade em 1905. A publicidade internacional que Bertillon adquiriu com o seu modesto papel nesse caso, bem como a popularidade que o rodeou pelo fato de haver medido o rosto destruído de um anarquista chamado Ravachol, que explodira a casa do promotor público de Paris, tudo isso contribuiu para que as outras nações começassem a familiarizar-se com o novo sistema de identificação. A fama de Bertillon espalhou-se. Entre as primeiras cidades a adotar o seu sistema estava Chicago, depois que o Major R. W. McClaughry, diretor da Penitenciária do Estado de Illinois, em Joliet, traduziu os métodos de Bertillon para o inglês e se tornou o seu mais fervoroso discípulo. Em Nova York, o extraordinário detetive Thomas Byrnes, que trabalhava sob as ordens do comissário de polícia Theodore Roosevelt, adotou o sistema de fotografia criminal. A Associação Internacional dos Chefes de Polícia organizou um centro de fichas Bertillon em Washington. Mas o próprio Bertillon nunca teve tempo para visitar a América. Enviou em seu lugar o irmão Jacques, o qual lhe trouxe a espantosa notícia de que seu nome era conhecido até mesmo por um carregador da estação de Filadélfia. A única concessão feita por Bertillon no sentido de difundir suas teorias foi assistir a todos os congressos de criminologia que se realizaram na Europa. Sentia-se aterrorizado com a ideia de falar em público, e por isso, quando se via nessa situação, escrevia de antemão tudo quanto tinha a dizer. No Congresso Internacional das Prisões, em Roma, a descrição feita de seu sistema, a policiais de todo o mundo, ocupava noventa páginas. O nome de Bertillon passou a fazer parte da língua. As pessoas falavam de “bertillonage”. Nos clubes noturnos de Montmartre, no Lapin Agile e no Moulin de la Galette, as “madames” trauteavam canções em que se falava da “identificação antropométrica” de Bertillon. O Czar Nicolau II enviou-lhe de presente um relógio de ouro e madrepérola e a Rainha Vitória mandou-lhe uma medalha, tudo em sinal de reconhecimento pelos seus trabalhos sobre a identificação, realizados na Inglaterra e na Rússia. O futuro Rei Eduardo VII, filho da Rainha Vitória, foi visitar o laboratório da Sureté e pediu a Bertillon que medisse na sua frente dois criminosos. Catorze governos estrangeiros, incluindo os da Suécia e da Áustria, concederam-lhe honras ou comendas. Seu nome
chegava a toda parte e o mundo tornava-se um lugar onde se podia viver com mais segurança. Depois que seu sistema foi posto em prática, Bertillon começou a investigar novos problemas criminais. Intrigado pelos chamados crimes perfeitos, arriscou sua reputação tentando resolvê-los no próprio local. E tudo isso lhe permitiu alicerçar na lei seu antigo gosto pela psicologia e pela dedução modernas. Um suspeito de furto foi preso sob uma leve suspeita apenas. Bertillon tinha a certeza de que o homem era culpado mas não podia prová-lo. Tentou reconstituir o crime, tal como imaginava que tivesse sido praticado, utilizando policiais como atores. Satisfeito com a teoria, Bertillon preparou- se para verificála. Uma noite entrou na cela do ladrão. De bloco e lápis em punho, sentou-se pacientemente ao lado do homem, que dormia. Pela madrugada o ladrão acordou, abriu a boca e ia se virar para o outro lado quando viu Bertillon escrevendo junto dele. Deu um grito e sentou-se: — O que o senhor está fazendo aqui? Bertillon acenou-lhe com o bloco de anotações: — Escrevendo a sua confissão. Você falou enquanto dormia e contou todos os detalhes do crime. Não acredita? Muito bem. Vou ler a confissão que você fez. Bertillon baixou os olhos para as páginas em branco e fingiu ler. Descreveu o crime como o imaginara. O criminoso deixou de opor resistência e assinou uma confissão formal de culpa. As deduções de Bertillon estavam certas até os mínimos detalhes. Outra vez, uma figura européia muito conhecida, o Barão Zeidler, foi encontrado morto na cavalariça. Perto dele, relinchando e dando coices, estava o cavalo de caça que adquirira recentemente. O cadáver do barão foi examinado e encontraram marcas de coices no crânio e na face. Tinha sido, sem dúvida, atingido pelo cavalo, que, depois de tê-lo feito desmaiar, matara-o. Fora um acidente terrível. Bertillon, passeando de um lado para outro na cavalariça, pediu para ver o rosto do morto. Estudou atentamente as marcas das ferraduras e depois declarou: — Meus senhores, isto não foi um acidente, mas um crime. Muito inteligente, muito bem pensado. Porém, o assassino teve um deslize. As marcas das ferraduras na cara do Barão Zeidler estão num ângulo errado. Pelas marcas que apresenta, era preciso que ele estivesse de cabeça para baixo quando o cavalo o atingiu. As deduções de Bertillon estavam certas. Após uma breve investigação, o criminoso foi descoberto. Tinha chamado o barão à cavalariça e depois o havia agredido com uma pesada maça, à qual estavam pregadas duas ferraduras. Bertillon era de opinião que a polícia dava muita importância às testemunhas oculares (“Grande parte das pessoas olham sem ver”, afirmava), como também as meras suposições, fazendo pouco-caso das provas científicas e factuais. Ele transformou a Sureté num gigantesco laboratório. Seus inimigos, conservadores, na França e no estrangeiro, menosprezavam algumas dessas inovações científicas. Bertillon recordava-lhes então o caso Tellier. O caso apresentara-se, sob todos os aspectos, como um crime perfeito. Fora descoberto no Bois de Boulogne o corpo de um homem morto a pauladas, que, depois de dobrado sobre si mesmo, tinha sido firmemente atado com uma corda e envolvido num oleado. Não havia o menor indício da identidade da vítima até
que surgiu Bertillon. Ele escutou o relato dos detetives. Depois, em silêncio, meteu mãos à obra, utilizando o microscópio. Dali a meia hora reuniu os seus homens. — A vítima era falsário ou escriturário — começou ele. — Suas mãos não apresentam indícios de que ele se tenha dedicado a qualquer espécie de atividade manual. A manga direita da camisa está mais nova e mais limpa do que a esquerda. Os falsários e os escriturários costumam proteger o braço que escreve com uma manga de alpaca. Á vítima recebeu uma pancada na cabeça com uma maça. Foi assassinado numa grande adega, a seguir arrastado para outro aposento coberto de serragem, areia e carvão, e depois temporariamente escondido num terceiro aposento — este absolutamente escuro e sem janelas. E tudo ocorreu numa casa perto do Sena. Os detetives da Sureté ficaram estarrecidos, mas Bertillon não demorou a explicar: — Meu microscópio localizou, na parte de trás do colarinho da vítima, dois parasitas incolores e cegos, uma espécie rara de artrópodes cegos que só vivem numa casa completamente escura. No casaco da vítima encontrei certos bacilos que produzem fermentações alcoólicas, o que prova que as roupas da vítima estiveram perto de um lugar onde se guarda vinho. Os grãos de areia, serragem e carvão indicam tratar-se de um depósito, e a areia faz-nos supor que a casa esteja localizada perto do Sena. Bertillon deu em seguida algumas ordens rápidas: — A primeira coisa a fazer é averiguar se algum escriturário foi dado como desaparecido. Isso nos dará a identidade do cadáver. Depois, procuraremos uma casa perto do rio onde haja barris de vinho, areia solta, e uma sala muito escura povoada de parasitas cegos. Procurem tudo isso e acharemos o criminoso. Após três dias de intensivas buscas, a Sureté encontrou uma firma perto dos Jardins do Luxemburgo que declarou que seu guarda-livros, Charles Tellier, estava desaparecido havia uma semana. Revistaram a casa de Tellier e interrogaram minuciosamente seus amigos e colegas. A pista conduzia ao seu bookmaker, M. Cabassou, amável e vivaz proprietário de um restaurante nas margens do Sena. Bertillon interrogou Cabassou e sua ruiva e bela esposa Marcelle e descobriu que ambos conheciam Tellier. Mas na sua casa não havia nenhuma adega. Mais tarde, de madrugada, com grande risco de vida, Bertillon voltou para investigar, até que encontrou um alçapão e uma escada que conduzia a um porão secreto. Encontrou um quarto cheio de pipas de vinho e uma mancha de sangue na parede. Havia uma porta que dava para outro compartimento, cujo chão estava coberto de serragem, de areia do rio e de pedaços de carvão. Finalmente, por uma abertura disfarçada na parede, Bertillon conseguiu entrar num terceiro recinto completamente escuro. Localizou milhares de parasitas nas paredes e no teto, e o microscópio revelou tratar-se dos tais artrópodes cegos e incolores. Cabassou, ao perceber que seu jogo fora descoberto, tentou fugir, mas foi apanhado e confessou tudo. Depois de saber que a mulher estava apaixonada por Tellier, atraíra-o à adega com o pretexto de convidá-lo a provar o vinho e aí o assassinara. Fora um crime quase perfeito, descoberto graças apenas a uma manga limpa e aos dois parasitas cegos. Bertillon demonstrou assim, cabalmente, o valor da dedução e o poder da ciência. No auge de sua carreira, Bertillon encarnara o moderno detetive. Era um homem alto, duro, com suíças, prosaico no trabalho, rígido, explosivo. Seu aluno
mais brilhante, o Dr. Edmond Locard, o maior detetive francês da atualidade, recorda-se dele com afeto como um “lobisomem feroz”. Um técnico da Sureté refere-se a ele declarando: “Tinha a mania da perfeição. Nós todos o temíamos. Nele, o silêncio era o melhor dos elogios”. Bertillon nunca esquecia uma ofensa. Juan Vucetich, o policial cientista argentino que realizou um trabalho pioneiro no campo das impressões digitais, zombou certa vez do sistema de Bertillon. Mais tarde, numa visita a Paris, Vucetich quis conhecer o Departamento de Identificação da Sureté. Bertillon foi recebê-lo, muito sério, e disse: — O senhor tentou prejudicar o meu sistema. E fechou-lhe a porta. Em geral, resolvia as questões de modo mais ameno. Quando um jornalista de Paris ridicularizou seus processos fotográficos, Bertillon convidou-o a visitar a Sureté. Enquanto percorriam os laboratórios, o jornalista declarou-se incrédulo quanto à possibilidade de alguém poder ser fotografado com exatidão se não quisesse colaborar. Bertillon escutava-o em silêncio e, terminada a visita, ofereceu-lhe dez notáveis retratos tirados automaticamente, por máquinas escondidas que haviam fotografado o jornalista quando ele transpunha certas portas da Sureté. É indubitável que foi Bertillon quem fez da Sureté o que ela é hoje; e quem diz a Sureté, diz também o FBI e a Sco- tland Yard. Bertillon costumava afirmar: — Devemos fazer sempre duas perguntas frente a um crime premeditado: Quem ganha com o crime? Onde está a mulher? Provou que noventa por cento dos maiores crimes da França tinham uma mulher por trás. E avisava aos seus detetives: — Eu desconfio de um homem que nunca sorri. Quando interrogava qualquer suspeito, Bertillon fazia-o sempre tirar os sapatos: — Um homem descalço é menos arrogante — afirmava. Ensinava aos colegas que as mulheres são geralmente as assassinas das crianças, assim como chantagistas, ao passo que os homens se dedicam com mais frequência à falsificação. Os franceses afirmam que foi Bertillon quem descobriu que se pode avaliar a altura de um homem pelo comprimento das suas passadas e que foi o primeiro a exigir que se fotografasse a cena do crime. Utilizava a fotografia para fins inéditos e estranhos. Quando a Mona Lisa foi ardilosamente roubada do Louvre, em 1913, por um italiano baixinho chamado Perugia, e depois recuperada na Itália, foi graças à fotografia ampliada das pinceladas do quadro que se conseguiu identificar a tela em questão como sendo a original. Tanto amigos como inimigos só conheciam Bertillon como um detetive fabulosamente inteligente. Havia porém outro aspecto. Certa tarde de 1882, ao atravessar a Rue de Rivoli, encontrou-se com uma moça loura, que falava com sotaque vienense e que se dirigiu a ele, perguntando: — Pode me ajudar a atravessar a rua? Enxergo muito mal de longe e esqueci os óculos em casa.
Foi dessa forma que conheceu Amélie Notar, que viera da Áustria para Paris, onde ganhava a vida ensinando alemão. Bertillon achou que a única maneira de conquistá-la era tomá-la como professora. Depois de ter tido êxito com o seu sistema de identificação, Bertillon casou-se com ela. Suzanne Bertillon, uma sobrinha dele que vive atualmente em Paris, recorda-se de que o casamento foi extraordinariamente feliz e que o tio em casa era muito menos terrível do que na Sureté. — Nos domingos de verão, ele gostava de ir pescar, de nadar e passear de barco — conta Suzanne —, porém, nas noites de inverno, costumávamos sentarnos em volta da mesa do jantar, sob o candeeiro’- de querosene. Bertillon começava nos assustando com as suas histórias de terror, mas fazia-as acabar sempre de uma maneira engraçada. Provavelmente para não nos tirar o sono. Ele era muito engraçado. A maneira favorita de Bertillon se descontrair, o que fazia frequentemente em sua casa de campo no Marne, era reunir-se com três colegas seus: Lacassagne, especialista do laboratório de Lyon; Reiss, o mágico fotógrafo alemão do crime; e Monovici, chefe de polícia de Bucareste. Os quatro costumavam contar uns aos outros suas experiências criminais, durante horas seguidas, desde o crime que Reiss descobrira pela análise da substância contida dentro de uma unha humana, até o estranho indício que Lacassagne encontrara um dia em Lyon: as impressões digitais de um casal de grandes macacos, que haviam sido treinados para roubar. Bertillon gostava de conversar sobre todos os assuntos, mas havia dois que preferia não discutir. Um deles era o caso Dreyfus. No início da investigação, fora incumbido de estudar algumas amostras de letra, matéria em que tinha menos prática do que noutros processos de detecção, e declarou que Dreyfus era, sem dúvida nenhuma, o autor do valioso documento em questão. Mais tarde, quando veio a público o escândalo das provas forjadas pelo Major Henry (que se suicidou), Bertillon encontrava-se entre os peritos que se haviam enganado. Sem se importar com a decisão do Supremo Tribunal, Bertillon negou-se a retificar a sua análise, teimando em que estava certa e que era científica. Bertillon era ainda mais obstinado quanto ao seu sistema de identificação, a antropometria. Era a filha dileta da sua inteligência, constituía toda a sua vida, e ele se recusava a escutar o crescente clamor por outro sistema de identificação: as impressões digitais. Hoje, há quem julgue ter Bertillon inventado a dacti- loscopia. Isso não é verdade. Muitos especialistas dizem que Bertillon nada teve a ver com isso. Também é falso. Para começar, devemos dizer que o sistema das impressões digitais não é uma descoberta recente. Os chineses usavam a impressão do polegar à maneira de assinatura há mais de quinhentos anos. Em 1856, um inglês que vivia na índia, Herschell, encarregado de pagar aos mogóis as suas pensões, descobriu que muita gente as recebia indevidamente sob um nome falso. Num dos casos, vinha-se pagando pensão ao mesmo nome há duzentos anos. Herschell registrou as impressões digitais de todos os indianos que recebiam pensões. No entanto essa prática não se vulgarizou fora da índia, até que em 1892 Sir Francis Galton, o grande cientista inglês, concebeu um sistema dactiloscópico bastante eficiente. Os adeptos do sistema das impressões digitais o justificavam perante Bertillon e seus seguidores com uma série de afirmações espetaculares. Os dedos humanos estão sempre ligeiramente úmidos de suor, afirmavam, por isso não podem tocar uma superfície lisa sem deixar nela uma marca reve- ladora. As
impressões digitais nunca se alteram, afirmavam ainda. O desenho do adulto já existe num feto de quatro meses. E podemos colher impressões digitais bastante nítidas de macacos embalsamados e de múmias egípcias com cinco mil anos. Elas não dependem da raça, da classe ou da inteligência. São comuns a selvagens ou antropólogos, a gênios ou a idiotas, a rainhas e a prostitutas, e seus desenhos são claros e fáceis de reconhecer. Quando a cabeça do dedo fica ferida ou recebe um golpe, a nova pele assume o desenho anterior (o que foi sensacionalmente provado nos nossos dias, no caso Dillinger, que mandou um médico alterar-lhe a epiderme das pontas dos dedos; no entanto, depois de morto, o FBI encontrou nas suas impressões digitais trezentos pontos idênticos aos antigos). Acima de tudo, e segundo a opinião de vários especialistas, as probabilidades de aparecerem dois seres humanos com as mesmas impressões digitais variam entre 64xl06 e 9xl033. Bertillon torcia o nariz a isso. Afirmava ter encontrado dois gêmeos cujas impressões coincidiam exatamente em trinta pontos diferentes. Dizia respeitar os esforços do seu amigo Sir Francis Galton, porém a ciência das impressões digitais era demasiado recente, não fora suficientemente experimentada. Já haviam conseguido apanhar com ela algum criminoso? Ou solucionado qualquer crime? Por outro lado, sua ciência da antropometria, embora mais complicada, já dera provas suficientes de infalibilidade. Repentinamente aconteceu algo na Penitenciária Federal de Leavenworth, no Kansas, que abalou fortemente a confiança de Bertillon. Certo criminoso, Will West, fora levado para Leavenworth, onde lhe deram o número 3426. Quando estava sendo fotografado e medido segundo o sistema de Bertillon, um dos funcionários achou que o estava reconhecendo. Perguntou a Will West se já estivera ali antes. West afirmou que não, pois era aquele o seu primeiro crime. Levado à presença do chefe de identificação, continuou a afirmar que nunca estivera preso. O funcionário insistiu: — West, você está mentindo. Nós temos as suas medidas e você foi fotografado. Vou lhe mostrar. Consultou rapidamente as fichas e lá estavam os retratos, as medidas e um cartão de identidade que dizia: “William West, número 2626”. Will West concordou em que o homem que se via naqueles retratos se parecia com ele, que as medidas condiziam com as suas, mas teimava em que nunca estivera em Leavenworth. Aborrecido, o funcionário virou o cartão e leu: “William West. Entrou para esta instituição a 9 de setembro de 1901. Assassinato”. O funcionário arregalou os olhos. Se fosse verdade, o William West que figurava no cartão ainda devia se encontrar numa cela da cadeia. Foram chamá-lo. Dali a dois minutos os dois homens estavam lado a lado: Will West, número 3426, e Will West, número 2626. Embora não fossem gêmeos, nem sequer parentes, os rostos eram iguais e as medidas de Bertillon revelavam-se precisamente exatas em cinco dos onze pontos, e nos outros seis diferiam apenas uma fração de centímetro. O caso West fez furor nos círculos policiais. O sistema Bertillon não ficou desacreditado, mas sofreu um sério abalo. Alguns anos depois, o próprio Bertillon, para agradar a Galton, acrescentara às suas medições quatro impressões digitais. Nessa altura, sua honestidade natural afirmou-se. Na sua qualidade de homem científico, retificou imediatamente a atitude anterior. Quis provar que não era demasiado velho para mudar, para adotar novas ideias, aceitá-las e desenvolvê-las. Mandou imediatamente que o sistema de impressões digitais fosse adotado pela Sureté. Às antigas medições que se faziam em todos os criminosos, viriam juntar-se dez impressões digitais.
Num frenesi, resolveu recuperar o prestígio perdido. Seus inimigos acusavam-no de ter sabotado com a sua oposição o prestígio da dactiloscopia. Agora iam ver! Adotaria o sistema de fotografar as impressões. Inventou um pó branco especial para recolhê-las. Fez experiências com um novo processo de classificação. Mas preocupava-o uma coisa: as impressões digitais não haviam ainda tornado possível a descoberta de qualquer crime grave. Certa noite de outubro de 1905, um desconhecido intro- duziu-se na casa de um dentista parisiense. O criminoso quebrou um armário de vidro, roubou de lá algumas antiguidades preciosas e, segundo parecia, ao retirar-se, deu de cara com o criado do dentista. Pelos estragos, via-se ter havido luta. O criado desmaiara com as pancadas e fora morto a pauladas. Bertillon foi estudar o crime. Parecia não haver o menor indício. Bertillon procurou no meio dos destroços, apanhou alguns cacos de vidro e levou-os para o laboratório. — Descobriu num dos pedaços de vidro quatro impressões digitais bastante nítidas — diz Suzanne Bertillon. — Não era necessário pó. Estavam perfeitamente visíveis para serem fotografadas e ampliadas. Muito excitado, Bertillon correu para as suas fichas e começou a procurar. Até que encontrou uma carta de identificação que pertencia a um ex-condenado de nome Scheffer. As impressões deste condiziam exatamente com as do vidro partido! Imediatamente Bertillon enviou uma descrição de Scheffer, baseada nas medidas e nas fotografias de suas fichas. Toda a polícia européia foi avisada. Dentro de três dias o criminoso estava preso. Scheffer, uma espécie de personalidade médico-e-monstro, era homossexual. Planejara o assassinato, querendo dar-lhe um aspecto inicial de roubo. Pretendia matar o criado do dentista, com quem tivera um romance. Estava certo de que escaparia, mas não contara com Bertillon. — Foi a primeira vez na história — afirma a Srta. Bertillon — que um criminoso foi apanhado graças às impressões digitais. O caso causou grande sensação nos círculos policiais e contribuiu para a adoção do novo sistema. E, no final das contas, foi ainda Alphonse Bertillon quem o conseguiu! Bertillon morreu a 13 de fevereiro de 1914, com sessenta e um anos. Seu funeral, realizado três dias depois, constituiu um acontecimento nacional. Graças ao ilustre falecido, milhares de criminosos morreram na forca, sob o cutelo ou na cadeira elétrica. Graças a ele também, os dois bilhões de habitantes da Terra, homens, mulheres e crianças, de St. Louis a Cingapura, do Rio de Janeiro a Roma, dormem hoje mais descansados. O que aconteceu depois. . . Naquela tarde de verão, no ano de 1949, em que a sobrinha do grande detetive, Suzanne Bertillon, foi me procurar no hotel, em Paris, eu ainda não estava bem resolvido a escrever a história de Alphonse Bertillon. Nunca esquecerei a primeira vez que a vi: uma mulherzinha minúscula, de meia-idade, muito viva, pedalando sua bicicleta pela Rue du Berri, até o Hotel Califórnia, onde eu a esperava. Fomos ao bar tomar uma bebida e ela ofereceu-me um exemplar da Vida de Alphonse Bertillon, a biografia de seu ilustre tio que ela escrevera, publicada oito anos antes pela Gallimard. Creio terem sido as minhas conversas com Mlle Bertillon sobre o tio, assim como a visita que fiz ao grande admirador deste, Dr. Edmond Locard, de Lyon, que me resolveram a escrever o artigo “Monsieur Bertillon”. Até então, o que me fazia hesitar era a falta de material de consulta. Durante a vida, Bertillon escrevera apenas treze trabalhos, entre livros e folhetos,
todos de caráter muito técnico e que nada revelavam sobre o homem propriamente dito. Existia um trabalho escrito em conjunto pelo Dr. Locard e pelo Professor Lacassagne, publicado em Lyon, outro que fora editado na Bélgica, mas nenhum deles continha a espécie de material de que eu necessitava. A verdade sobre Bertillon tinha de ser desenterrada debaixo de uma montanha de recortes de jornais, notícias sensacionalistas e muitas vezes pouco exatas, escritas em várias línguas, tratados científicos e recordações familiares relatadas por outros detetives que o haviam conhecido e admirado. Poderia construir uma história a partir de tais fragmentos? Duvidava. Por isso ia adiando o projeto até que a biografia de Mlle Bertillon, em francês, suas extraordinárias anedotas em inglês, juntamente com o valioso material fornecido pelo Dr. Locard, tornaram possível minha história. Escrevi “Monsieur Bertillon” em fins de 1949. Foi publicada em janeiro de 1950, na revista True, e reimpressa em fevereiro do mesmo ano pela Reader’s Digest, sob o título “O maior detetive da França”. Dera-me grande prazer redigir essa história, mas esperava que tivesse curta vida depois de publicada, assim como estava convencido de que poucos americanos fossem capazes de compreender o herói francês. Enganava-me. Como resultado direto da minha história, milhões de americanos vieram a conhecer, ou a conhecer melhor, a vida e as façanhas de Alphonse Bertillon. Quis o destino que os direitos para a televisão da minha história fossem adquiridos pela Reader’s Digest, que produziu um filme de meia hora com Arthur Franz no papel de Alphonse Bertillon. O filme foi exibido de costa a costa nos Estados Unidos. E ainda até há pouco continuava a ser exibido. E o que aconteceu com a fama de Alphonse Bertillon nestes últimos quinze anos? A verdade é que seu nome tem adquirido cada vez mais popularidade. Pelas minhas fichas de referência, vejo que vem citado na Enciclopédia Britânica como o “inventor do sistema de identificação de criminosos conhecido por bertillonage”; no Webster Biographical Dictio- nary, como o “antropologista criminologista francês” que “descobriu um sistema de identificar os criminosos por meio de medidas antropométricas”; na American Encyclopedia diz-se que ele é “largamente conhecido por ter descoberto um sistema de identificação dos criminosos. . . estabeleceu um sistema de medições muito notável pela sua precisão”. Dois anos depois de minha história ter sido publicada, a reputação de Bertillon foi ainda acrescida com a publicação do primeiro livro em inglês escrito sobre ele. Chamava-se Alphonse Bertillon, father of scientific àetection, de Henry T. F. Rhodes, um inglês que devia conhecer muito bem o francês. Neste volume, Bertillon aparece em toda a sua estatura. Rhodes transcreve com devoção as palavras que o Professor Lacassagne proferiu em memória do amigo: “Bertillon era um homem fora do comum”, que “viveu para realizar na maturidade o seu sonho da juventude”. Rhodes cita o Dr. Locard, que afirma: “Era um gênio” porque criou “uma nova técnica”, a qual, pela primeira vez, deu à ciência força de lei e conduziu a uma aliança entre as duas que nunca mais se desfez. Rhodes conclui que “as descobertas de Bertillon constituíram um acontecimento histórico de grande magnitude. Sua antropometria veio ao encontro de uma necessidade tanto social como técnica e deu nova forma e novos moldes aos profcessos e aòs casos judiciais”. No entanto, na minha opinião, o mais grandioso monumento ao gênio de Alphonse Bertillon encontra-se num clássico do romance policial. O leitor deve estar lembrado de que, no início da minha história, citei Bertillon quando afirmava a um jornalista americano: “Gostaria de ver os métodos de raciocínio de
Sherlock Holmes adotados pela polícia oficial”. Pois bem, ainda há pouco, ao reler O cão dos Baskervilles, de Conan Doyle, vi, com grande prazer, logo no primeiro capítulo, o que não havia reparado antes: a prova clara de que Sherlock Holmes, o maior dos detetives imaginários, havia indiretamente retribuído a homenagem de Bertillon, fazendo-lhe o maior cumprimento que um homem pode fazer a outro: o da inveja. Um certo Sr. James Mortimer, que acaba de ser apresentado a Sherlock Holmes, revela-lhe que se encontra frente a um tremendo problema, e acrescenta: “— Sabendo que o senhor é o segundo criminologista da Europa. . . — O que o senhor está querendo dizer? Pode informar-me quem tem a honra de ser o primeiro? — inquiriu Holmes com certa aspereza. — Qualquer homem dotado de um cérebro predominantemente científico sentir-se-á sobremaneira empolgado pelos trabalhos de M. Bertillon. — Então por que não o consulta? — Referi-me ao homem dotado de um cérebro predominantemente científico. Mas eu, como homem de negócios apenas, é evidente que o considero o primeiro. Espero que não tenha, sem querer. . . — Um pouco — confessa Holmes...” Essa prova dos ciúmes de Holmes, que na realidade significa o abraço de confraternÍ2ação entre o maior investigador da ficção e o maior detetive autêntico, foi publicada em 1902. Como Alphonse Bertillon tê-la-ia apreciado e sentido, se pudesse ter tido conhecimento dela!
14 O Sherlock Holmes francês Durante cinco anos, o terror assolou a cidade de Tulle, na França. Cartas anônimas, grosseiramente escritas à mão em letra de imprensa, começaram a aparecer, primeiro esporadicamente, chovendo em seguida como uma praga sobre a população. Ao todo receberam-se três mil dessas venenosas cartas, à média de uma dúzia por semana. No fim, haviam morrido duas pessoas por causa delas e a cidade encontrava- se num frenesi de terror, em que se desconfiava dos amigos e dos vizinhos. As cartas malévolas, na sua maioria dirigidas a funcionários públicos, informavam a um dos homens mais conhecidos na cidade que seu bisavô fora vigarista notável, a outro que sua bisavó tivera um filho ilegítimo, a um terceiro que a mãe era cleptomaníaca, a um quarto, que o filho era homossexual. As revelações chegavam das maneiras mais curiosas e terríveis. Umas eram postas no correio, outras metidas por baixo das portas; algumas apareciam caídas nos passeios da rua principal, ou então dentro dos cestos das mulheres que iam às compras. Uma foi encontrada esvoaçando no meio de uma reunião ao ar livre. No entanto, pouco se fez para reprimir aquela onda epistolar, até que duas delas provocaram mortes. Certo funcionário público, informado por carta anônima de que sua esposa doente era autora de um crime, teve um ataque cardíaco e morreu. A seguir, seu maior amigo, que trabalhava como ele na Câmara Municipal, vindo a saber, também por carta anônima, que sua mulher mantinha relações quase públicas com certo jovem, teve um ataque apo- plético e morreu. A polícia do lugar começou a fazer tudo o que estava ao seu alcance. As investigações revelaram que todos os empregados da Câmara de Tulle haviam recebido cartas anônimas, com exceção de um deles — um belo homem chamado Maury. A polícia ficou sabendo igualmente que Maury e sua formosa esposa eram as únicas pessoas de quem se falava bem nas cartas que outros recebiam. Maury começou a ser alvo de suspeitas. Por fim, um empregado da Câmara, Jean Lavai, fez-se porta-voz da comunidade e acusou abertamente Maury à polícia, que, por não ter agido prontamente, começou também a receber cartas da mesma espécie, com acusações de falta de zelo por não prender Maury imediatamente. Nessa altura, a prefeitura local entrou em contato com a Sureté Nacionale de Lyon, e logo o Dr. Locard, o maior criminologista da França, foi nomeado para tratar do caso. Assim que o Dr. Locard entrou em Tulle, os acontecimentos se precipitaram. Após haver examinado as provas, o Dr. Locard pôs de lado o acusado pelo povo, Maury. Começou a estudar o porta-voz das vítimas, Jean Lavai, bem como os seus parentes e amigos. Não tardou que viessem à luz certos fatos interessantes. O Dr. Locard descobriu que, um ano antes de começarem a aparecer as cartas anônimas, Jean Lavai conseguira um emprego para a irmã na Câmara Municipal. Angela Lavai trabalhava ali junto de uma tal Mlle Fioux, numa seção da qual Maury era chefe. As duas moças, ao que parece, haviam se interessado por Maury e o disputavam. Após renhida luta, quem venceu foi Mlle Fioux. Maury casou-se com ela e Angela Lavai ficou amargamente despeitada. — Aqui temos o motivo — participou o Dr. Locard aos colegas. -— Angela Lavai odiava Maury por ter se casado com Mlle Fioux. Decidiu vingar-se e deu início à sua campanha de cartas anônimas. Com a ajuda da mãe, conseguiu reunir grande quantidade de rumores malévolos, semi verídicos, com os quais pôs toda a cidade em alvoroço. Foi ela quem cometeu o crime e depois tentou culpar Maury,
apontando-o como culpado nas cartas dirigidas aos vizinhos deste, nas quais o elogiava ao mesmo tempo em que falava mal do próprio irmão, que em vista disso começou a acusar o outro. Sim, tenho certeza de que a autora das cartas é Angela Lavai. Mas agora temos a parte mais difícil a resolver, que é prová-lo. Não podendo obter amostras da letra de Angela Lavai, o Dr. Locard convocou a jovem ao seu gabinete e ali acusou-a pura e simplesmente do crime. Ela negou tudo. O Dr. Locard ordenou-lhe que escrevesse, enquanto ele ditava, parte de algumas das cartas anônimas. Calma e lentamente Mlle Lavai começou a escrever. O Dr. Locard comparou as letras de imprensa, e não se assemelhavam em absolutamente nada. De duas uma: ou ela disfarçara a letra ou então era inocente. Mas como descobrir? Então o Dr. Locard teve uma inspiração que ficou célebre nos círculos policiais. A Srta. Lavai começara a calçar as luvas, preparando-se para partir, quando o Dr. Locard a deteve: — Um momento, Mlle Lavai. Ainda não acabamos. A senhorita deu-me uma amostra da sua letra, mas não basta. Quero mais. E o policial colocou diante dela uma centena de folhas de papel em branco e duas dúzias de lápis bem apontados, ordenando-lhe que escrevesse em caracteres de imprensa enquanto ele ditava. Não a deixava descansar um momento. Quando a moça protestava, ele começava a ditar secamente, cada vez mais depressa. Passou-se uma, duas horas. Ela ia enchendo páginas, uma depois da outra, toda curvada, tremendo, branca como a cal da parede. Sua mão crispada escrevia rapidamente as frases que lhe eram ditadas. Decorreram três horas, depois quatro. A moça tremia, ofegante, rabiscando agora automaticamente, incapaz de sentir, de pensar, de premeditar fosse o que fosse. De súbito, o Dr. Locard parou. Terminara o seu inquérito ortográfico. Arrancando-lhe das mãos as últimas doze páginas, comparou-as com as.cartas anônimas. As letras eram iguaizinhas. — Voilà, simple! — declarou o Dr. Locard aos colegas. — Ela estava escrevendo com muita lentidão, disfarçando propositadamente a letra. Eu sabia que, se conseguisse quebrá-la, cansá-la, impedindo-a de pensar antes de escrever, ela acabaria por revelar sua letra natural. Quando fixou exausta, não conseguia fingir mais. E assinou sua confissão. Quando a levaram para casa, acompanhada por um policial, para buscar suas coisas, Mlle Lavai conseguiu fugir pela porta dos fundos com a mãe. Ambas tentaram suicidar- se num lago profundo. Estavam por perto, porém, alguns lenhadores, que mergulharam atrás delas. A mãe, apesar disso, morreu afogada. Mas Angela Lavai foi salva, não tardando a ser julgada e condenada. Visto que tudo fora motivado por uma questão sentimental, um poderoso atenuante em face da severa objetividade da lei francesa, os juizes passaram por cima dos horrores e das mortes que Angela Lavai causara e condenaram-na a uma reduzida pena, além de uma pesada multa. O caso de Tulle estava encerrado, mas não sem um epílogo feliz, pois o caso, ocorrido há vinte e sete anos, inspirou um filme francês chamado O corvo, que teve grande sucesso nos Estados Unidos e se tornou o ponto culminante da carreira do Dr. Edmond Locard. — Estou muito grato a Mlle Lavai — afirma hoje o Dr. Locard. — Depois que consegui apanhá-la, meu nome tornou-se conhecido por toda parte. Olhe, aqui está a primeira página de um jornal do Texas. Veja até onde ele chegou. Depois
disso passei a ser consultado para resolver cada vez mais casos fora da França, crimes na Alemanha, na Inglaterra, na África, na América do Sul. Tornei-me um crimino- logista internacional. O Dr. Edmond Locard tinha quarenta e cinco anos quando resolveu o caso Lavai. Hoje, com setenta e dois, continua tão ativo como qualquer detetive particular do cinema e é certamente um dos maiores caçadores de homens do mundo, se não o maior de todos. Claro que não existe nenhum parâmetro para que se possa medir os homens que resolvem crimes. Não há qualquer tabela para avaliar seus êxitos ou seus fracassos. Porém, se houvesse essa medida, o Dr. Locard seria um dos seus recordistas mundiais. Não é provável que sua versatilidade, sua esperteza, seu raio de ação jamais tenham sido igualados na história da aplicação da lei. Os Estados Unidos também possuem o seu quinhão de mágicos; no entanto, a maior parte desses homens eram ou são especialistas. Alguns distinguem-se na ação, outros, no laboratório; uns são bons com uma pistola na mão, outros, com um microscópio. O Dr. Locard é um dos poucos capazes de fazer todas essas coisas: tem tantos talentos quantos são os braços da deusa indiana Siva. Não tem apenas um faro apurado, nem se limita a ser um técnico de laboratório. — O Dr. Locard não é um detetive no sentido em que costumamos empregar o termo — afirma H. Ashton-Wolfe, um inglês que estudou com ele nos anos 20. — Trata-se de upa especialista do crime. Representa, na vida real, a personificação de Sherlock Holmes. É psicólogo, médico, químico e criminologista. Hoje ainda, em plena idade madura, quando a maioria dos homens gastam grande parte da aposentadoria com enfermeiras, bengalas ou netos, o Dr. Locard está no auge da sua atividade e popularidade. Os vinte livros que escreveu sobre as maneiras de matar violentamente, o mais importante dos quais é uma enciclopédia chamada Livro de criminologia, são hoje consultados pelos detetives e policiais científicos do mundo inteiro. Ainda há poucas semanas foi exibido em Paris um filme francês de curta metragem sobre os métodos do Dr. Locard, em que ele próprio era a estrela. Esse filme será também apresentado em Roma e em Londres. Seus colegas na criminologia, como por exemplo o Dr. Rochat, de Genebra, continuam a consultá-lo em casos enigmáticos, o mesmo se dando cõm Lombroso, o genial judeu da Universidade de Turim. Também Nelcher, chefe de polícia de Berlim antes do advento de Hitler, e Percival Frazer, perito do laboratório da cidade de Nova York, costumavam consultá- lo antes da Segunda Grande Guerra. Chegavam a vir policiais de pontos tão distantes como Cingapura para estudar durante alguns meses com o Dr. Locard. Acima de tudo, é impressionante o número de vítimas de crimes que batem à sua porta, provenientes de todos os cantos do mundo. Estrelas de Hollywood, políticos de Paris, milionários do Cairo encontram-se entre os seus clientes comuns. O Dr. Locard acha-se na posição curiosa, e de certo modo invejável, de poder tomar conta de casos tanto oficiais como particulares. Isto é, tanto trabalha para a Sureté como para qualquer indivíduo. É como se J. Edgar Hoover, além do seu trabalho no FBI, pudesse atuar como detetive particular. — Trabalho para a polícia francesa, com dez detetives às minhas ordens — explica o Dr. Locard —, mas os serviços que presto ao governo são gratuitos. Por isso posso aceitar casos particulares. Apesar de ser oficialmente diretor do Laboratório da Polícia de Lyon, e embora trabalhe em colaboração com a Sureté, que se diz a mais antiga organização de aplicação de leis que existe no mundo, o Dr. Locard prefere ser
considerado como especialista internacional do crime. Em matéria de casos particulares não existe nada que possa surpreender o Dr. Locard. Há pouco recebeu para exame meia dúzia de setas envenenadas que haviam causado a morte de um comerciante na África. Certa vez, foi contratado pelo presidente do Brasil para fazer uma investigação. De outra vez, uma rica família egípcia contratou-o para resolver um caso de herança no valor de um milhão de dólares que se complicara com o aparecimento de uma dúzia de testamentos falsos. Foi esse o caso mais demorado do Dr. Locard, que levou um ano e dois meses para solucioná-lo. Embora não goste de falar no caso, confessa que cooperou com a polícia alemã no sentido de capturar Haarmann, que matou entre trinta a cinquenta rapazes alemães, para vender suas roupas. E também interveio na captura de Grossman, que assassinou vinte e cinco moças, praticando em seguida canibalismo com seus cadáveres. Quando fala de Grossman, o Dr. Locard costuma mostrar uma fotografia da vigésima quinta vítima, uma bela morena, deitada num sofá, morta e completamente nua, mas ainda inteira quando as autoridades prenderam o criminoso. Há dois anos estavam em circulação imitações de quadros de Picasso e de Utrillo, vendidas a preços fabulosos. As cópias eram tão bem feitas que o próprio Utrillo não tinha certeza de que não fossem autênticos originais seus. Encarregado de resolver o caso, o Dr. Locard provou que, quando Picasso ou Utrillo assinavam seus quadros, o faziam de uma maneira natural. No caso das falsificações, os imitadores traçavam a assinatura primeiro a lápis e depois pin- tavam-na por cima. O Dr. Locard revelou as tênues marcas de lápis, ajudando assim a destruir uma organização criminosa que roubara já um milhão de dólares. Chegou também a intervir na perseguição dos raptores do filho de Lindbergh, nos anos 30, caso que considera a mais fascinante investigação da história da América. — Vai ficar na história — afirma ele. — Foi um caso importantíssimo. Examinei as provas e servi de perito, apresentando meu relatório ao Coronel Lindbergh. Também verifiquei e confirmei as descobertas dos peritos americanos. Claro que eram exatas. Bruno Hauptmann era indubitavelmente culpado. Quando os funcionários da polícia francesa ou as vítimas do crime querem consultar o Dr. Locard e não desejam tratar de seus problemas por correspondência, tomam o trem em Paris até Lyon, onde chegam sete horas depois. Para os visitantes estrangeiros, Lyon apresenta poucos atrativos além do Dr. Locard. Nos fundos do Palácio da Justiça, logo à entrada da Sureté Nationale, acha-se um portão gradeado com os dizeres “Laboratório de Polícia”. Ultrapassados essa porta e quatro lances de escada (não há elevador), chega-se ao quartel-general do Dr. Locard. Seu gabinete particular, seus fichários e laboratórios ocupam todo o andar de cima. Nosso homem está sentado a uma enorme mesa de madeira, tendo à sua frente a secretária, com um abajur verde suspenso por cima da cabeça e atrás uma parede forrada de livros de criminologia e documentos em sete línguas. Os visitantes esperam encontrar um velho de setenta e dois anos encolhido numa cadeira de rodas. Ficam surpresos quando o vêem erguer-se agilmente para cumprimentá-los. De altura mediana, magro, dinâmico, o Dr. Locard aparenta, quando muito, cinquenta e cinco anos. Usa o cabelo branco cortado curto, seus olhos são irônicos e penetrantes, o nariz é aquili- no e o bigode, farto. Afirma
conhecer uma dúzia de línguas das mais importantes. Nas várias conversas que tivemos, ele saltava distraidamente do francês, sua língua materna, para o alemão ou para o espanhol e o russo. Seu vocabulário de inglês, contudo, é limitado e um pouco exótico. Os visitantes ficam surpresos ao descobrir que um homem tão erudito possua senso de humor. O Dr. Locard, após dissertar longamente sobre determinados aspectos complexos do crime, costuma recompensar seus hóspedes ou os seus alunos com uma história leve. Sua preferida, que ele afirma ser verdadeira, é a de um cavalheiro que passou a odiar em segredo o companheiro de quarto, a ponto de resolver matá-lo. No momento oportuno, bateu-lhe com um ferro de engomar na cabeça e, após certificar-se do rigor mortis, começou a pensar na maneira de se ver livre do cadáver. Como último recurso, esquartejou o corpo, distribuiu os pedaços por uma maleta e duas caixas de papelão, saindo com os volumes para a rua. Quando ia pela avenida abaixo, curvado sob o peso, encontrou um amigo que se aproximou e disse: — O senhor vai muito carregado. Que está fazendo? E o sujeito replicou: — Oh, estou ajudando um amigo a mudar de casa! Quando os visitantes estrangeiros, impressionados pela sua versatilidade e agudeza de espírito, o comparam a Sherlock Holmes, o Dr. Locard fica orgulhoso. Sente prazer em considerar-se a edição gaulesa do fictício detetive inglês. Mal lhe falam em Sherlock Holmes, o Dr. Locard tira do fundo da gaveta da mesa um retrato seu, sobreposto numa silhueta de Sherlock Holmes. Além de copiar os métodos do mestre e de obrigar seus discípulos a ler os contos e romances de Sherlock Holmes, o Dr. Locard vai ainda mais longe em sua adoração pelo herói da Baker Street. Sir Arthur Conan Doyle põe na boca de Sherlock Holmes a afirmação de ter escrito um estudo “acerca da diferença entre as cinzas dos vários tabacos, uma enumeração de cento e quarenta formas de charutos, cigarros e fumo para cachimbo”. Embora esse tratado seja imaginário, já que Sherlock Holmes se refere a ele, o Dr. Locard tornou-o realidade, publicando uma identificação científica dos diversos tabacos através do exame das cinzas encontradas no local do crime. O Dr. Locard compraz-se em afirmar que foi ele próprio quem capturou o criminoso que, na vida real, quase pôs fim à vida de Sherlock Holmes. Esse francês de trinta e cinco anos, chamado Jules Bonnot, é considerado pelo Dr. Locard o mais atrevido e sagaz assassino que jamais enfrentou. Bonnot tinha um rosto encovadob simpático, de bigode, e se distinguiu no crime antes > dai Primeira Guerra Mundial. Trabalhava numa oficina de.motocicletas que encobria o seu arsenal de armas e cometeu quase toda espécie de crime. Forjou documentos, falsificou dinheiro, raptou pessoas, roubou, incendiou e cometeu doze assassinatos cruéis. Seu crime mais espetacular foi a morte de um empregado de banco que ele atraiu a uma emboscada e matou, roubando-lhe meio milhão de francos. Bonnot era um homem viajado e adotava os processos criminosos que aprendera por toda a Europa. A Sureté desconfiava de um certo número de gângsteres, mas sobretudo dele e de um outro, segundo indicações que recebera de cerro informante. Mas Bonnot continuava em liberdade, à espera de que a polícia conseguisse obter provas concretas. A certa altura houve em Lyon uma tentativa de arrombamento de cofre. A Sureté perseguiu o ladrão. Bonnot conseguiu fugir na escuridão, sem ser visto. Arranjou meios de levar consigo a lanterna e as ferramentas. O Dr. Locard, ao examinar o cofre danificado, descobriu
marcas deixadas pela ferramenta. Munido de provas fotográficas, dirigiu-se à oficina de Bonnot e comparou as fotos com as ferramentas ali espalhadas. Em dez minutos conseguiu descobrir as que haviam sido utilizadas e identificou as marcas. Bonnot foi preso. Durante um interrogatório violento, confessou todos os seus crimes anteriores. A polícia francesa substituiu a aristocrática guilhotina, na execução de Bonnot, pelo pelotão de fuzilamento. Certo dia, pouco depois desse caso, Sir Arthur Conan Doyle parou em Lyon para conversar com o Dr. Locard. Desejoso de receber condignamente o criador de seu herói Sherlock Holmes, o Dr. Locard levou-o para visitar os três gabinetes particulares do laboratório, onde só entravam os amigos e hóspedes de categoria. Nesses três compartimentos, seu museu do crime, o Dr. Locard conservava recordações dos casos que resolvera: armas, provas materiais e uma galeria fotográfica dos bandidos que levou aos tribunais. Enquanto conduzia Sir Arthur em sua visita às salas, ia explicando os vários crimes cometidos pelas figuras retratadas. A certa altura, ouviu o visitante soltar uma exclamação. O Dr. Locard voltou-se. Sir Arthur Conan Doyle fitava uma grande fotografia de Bonnot e exclamava: — Oh, mas eu conheço esse tipo! Foi meu motorista em Londres durante uns meses. Que faz aqui? Quando o Dr. Locard lhe explicou, o criador de Sherlock Holmes estremeceu. — Estremeceu, mesmo — afirma o Dr. Locard. — Foi pura coincidência. É por isso que costumo dizer que prendi o homem que poderia ter interrompido a carreira de Sherlock Flolmes. Imaginem Bonnot conduzindo o carro de Sir Arthur Conan Doyle! O Dr. Locard tem um grande livro onde registra todos os casos criminais que lhe passam pelas mãos. No espaço de quarenta anos registrou nove mil duzentos e cinquenta e três casos nesse livro. Não os resolveu todos, mas seus êxitos são fantásticos. Aprecia o crime inteligente e gosta de resolvê-lo com sutileza. — A grande diferença entre o crime nos Estados Unidos e na França consiste em que os assassinatos americanos são geralmente apenas físicos e violentos. Aqui na França, nossos criminosos tendem para o requinte. Misturam o crime com uma dose de falsificação, de enganos ou qualquer confusão melodramática. O Dr. Locard nunca se entusiasmou com um homicídio simples, onde não entra a imaginação. Quando Vacher, um francês que já assassinara vinte e nove lavradores e pastores, foi apanhado ao abrir a barriga de sua trigésima vítima, o Dr. Locard considerou sua captura um simples caso de rotina. — Vacher era apenas um louco — afirma com uma franqueza total —, e o caso não tinha o mínimo interesse. Outro crime que o Dr. Locard considerava vulgaríssimo, mas que alvoroçou Paris, começou quando um certo Charles Weber acusou a cunhada, Jeanne Weber, de estrangular seu filho de um ano quando tomava conta dele, bem como de ter assassinado o filho dela e mais dois sobrinhos. Os corpos das crianças foram exumados, mas as autópsias não revelaram estrangulamento nem qualquer espécie de veneno. Meses mais tarde, uma vizinha histérica fez queixa de que seu bebê morrera durante a noite, enquanto estava com Jeanne. Mais uma vez a autópsia não revelou estrangulamento nem veneno. Nos meses seguintes morreram mais crianças durante a noite, mas, embora suspeita, não havia um
vestígio de prova contra Jeanne. Resolvida a empregar uma perigosa estratégia, a polícia conseguiu encontrar uma amiga de Mlle Jeanne Weber que a considerava inocente e estava disposta a confiar seus dois rebentos à sua guarda durante uma noite. Quando saiu, a amiga deixou Jeanne sentada tranquilamente junto da menina de dez anos e do menino de dois. Quando, perto da meia-noite, a polícia entrou na casa, encontrou o menino meio sufocado. A irmãzinha saiu do esconderijo onde se metera e contou que Jeanne Weber, em meio a um acesso de nervos, saltara sobre a criança, apertando-lhe o peito com ambas as mãos, até quase sufocá-la. No tribunal, Jeanne Weber fez as delícias dos freudianos ao afirmar que desde pequena não podia ver uma criança: —- Quando isso acontece, ouço uma voz me dizendo que a mate, e eu, sem saber o que faço, mato mesmo. Após cumprir algumas semanas da pena de vinte anos a que foi condenada, Jeanne Weber perdeu completamente o juízo. — Foi um crime sem motivo — afirma o Dr. Locard. — É horrível, mas não envolve inteligência, nem da parte do criminoso nem da nossa. O Dr. Locard prefere que seus crimes sejam originais e interessantes. Recorda com gosto o crime que foi solucionado por ele através da observação do desenho de uma jaqueta de veludo que desbotara sobre uma placa de mármore; ou o criminoso que foi desmascarado pelas marcas dos seus dentes deixadas num bolo que trincara e do qual foi possível tirar um molde em gesso; ou ainda outro, descoberto por ter caído na areia quando fugia da polícia — a impressão dos botões de cobre na areia levou-o dali a três dias à presença da justiça. Um dos casos favoritos do Dr. Locard é o de um ladrão que, ao saltar da janela do primeiro andar de uma casa, caiu sobre os joelhos, levantou-se e continuou a correr, escapando. — Examinei o local onde ele havia caído: vi duas marcas de joelhos pelas quais se notava que vestia calças de veludo cotelê. Uma das pernas tinha riscas mais largas, o que dava a entender que num dos joelhos havia um remendo de tecido ligeiramente diferente. Isso nos forneceu um indício claro. O homem foi preso dali a vinte minutos. Outra vez, certo engenheiro foi encontrado morto num campo perto de Lyon. Não havia a menor pista. O Dr. Locard observou o terreno em volta com toda a atenção. No dia seguinte, os suspeitos foram trazidos, e o Dr. Locard já ia mandar um deles embora quando reparou que ele tinha uma pequena semente pendurada na manga. — Identifiquei-a imediatamente. Tratava-se de Scorzo- nera lumis, uma das plantas que se encontravam junto do cadáver. O homem acabou confessando e foi guilhotinado. Um dos crimes que o Dr. Locard mais apreciou aconteceu há trinta e sete anos. Uma prostituta de sessenta e cinco anos, de nome “Coco-la-Chérie”, foi encontrada no seu minúsculo quarto com o pescoço cortado e o corpo cheio de punhaladas. Como tinha inúmeros clientes, os suspeitos abundavam. — Quando o corpo foi autopsiado, encontraram nele milhares de parasitas raros — declara o Dr. Locard. — Pensei logo em colher alguns. Talvez o criminoso tivesse tido contato suficiente com ela para apanhá-los. No segundo dia depois do crime, trouxeram-me um bêbado. Tratava-se de um dos homens que haviam estado com Coco na noite fatal. Julguei que ele talvez a tivesse matado. Exami- nei-o e encontrei nele parasitas, mas de uma espécie diferente. Deixei-o ir embora.
No terceiro dia examinei um rapaz de vinte anos chamado Mayor. Descobri nos seus cabelos os mesmos parasitas raros que havia no corpo de Coco. Mayor negou o crime. Mas, como suas impressões digitais eram idênticas às que havia no quarto da vítima, ele confessou. Matara-a e depois dera-lhe trinta punhaladas num acesso de fúria, porque ela lhe exigira uma quantia maior do que ele estava disposto a pagar. As impressões digitais do rapaz eram as melhores que encontrei para condenar uma pessoa. Na França exige-se que as impressões do acusado coincidam pelo menos em doze pontos com as encontradas no local do crime. Esse sujeito tinha cem pontos correspondentes. Uma maravilha! Empregando os mesmos métodos, o Dr. Locard conseguiu também muitas vezes livrar um inocente. Há pouco tempo, Lea Camelin, uma solteirona, comerciante, foi encontrada caída no chão do trem em que viajava, intoxicada com éter. Quando voltou a si, disse ter sido atacada por dois homens que a haviam roubado. Ao examinar as impressões digitais do frasco de éter, o Dr. Locard encontrou apenas as dela. Ela forjara aquele assalto porque queria suicidar-se. Porém, sendo católica, tinha de fingir tratar-se de um crime para poder ser enterrada em chão sagrado. Certa vez, um general francês, durante uma caçada na Alemanha ocupada, recebeu um tiro na cabeça, e as autoridades militares encarregaram o Dr. Locard de descobrir o assassino. O Dr. Locard observou o crânio do general e a bala mortífera e depois declarou que a morte não fora devida a crime, mas sim a um acidente. Alguém atirara em um javali e a bala, ricocheteando no corpo do animal, viera atingir a parte posterior da cabeça do general. Fora simples conseguir a prova. Na bala havia pêlos de porco misturados com os cabelos do general. Acima de todos os outros, porém, o Dr. Loêard aprecia o crime exótico. Pode tratar-se de um assassinato ou de algo menos grave, mas, se for suficientemente estranho, o Dr. Locard dar-lhe-á toda a atenção e energia. Mas, por vezes, o Dr. Locard cansa-se de misérias e nada o repousa mais do que um caso onde tenha de dar simplesmente a sua opinião. Recentemente, um rico parisiense, cuja mania era colecionar madeixas de cabelos de pessoas importantes, veio a ele, trazendo um cabelo único dentro de uma caixa de veludo. Adquirira aquele cabelinho por vinte mil francos em ouro. Aquilo constituía a glória da sua coleção e dizia-se ter pertencido a Napoleão Bonaparte. O colecionador pretendia um certificado de autenticidade para poder mostrá-lo aos amigos. O Dr. Locard estudou atentamente o cabelo e depois fez o seu relatório. O cabelo não pertencia a Napoleão, mas a uma vaca. Porém o Dr. Locard não era infalível. Embora durante quarenta anos raramente tenha se enganado, falhou uma ou duas vezes e também foi enganado por um inteligente mistificador. — O casal mais esperto que encontrei no meu caminho — conta o Dr. Locard — realizou a sua mais brilhante façanha na Rue de La Paix, em Paris. Um sujeito, com aspecto de pessoa bastante rica, foi a um joalheiro e comprou um diamante. Escolheu uma pedra pequena mas bastante rara, que custava quatro mil francos, mas insistiu em que desejava a todo custo outra igual e que pagaria mais caro ainda. O joalheiro declarou que aquela pedra era rarís- sima, e que portanto era difícil encontrar outra igual, mas que ia fazer o possível. Dentro de três dias o cavalheiro apareceu de novo e insistiu em que lhe fosse entregue a pedra o mais breve possível, pois queria oferecê-la como presente de aniversário e, embora tivesse pago quatro mil francos pela primeira, estaria disposto a pagar quinze mil pela segunda. O joalheiro prometeu de novo esforçar-se ao máximo. Decorridos apenas mais dois dias, eis que aparece de novo o cavalheiro pedindo pela terceira
vez o diamante. O joalheiro confessou que ainda não havia conseguido nada. Passadas duas semanas, apareceu uma moça vestida elegantemente, mas com roupas usadas, contando, de olhos chorosos, que o marido a abandonara e que, visto não ter dinheiro, se via obrigada a vender seus diamantes. E mostrou alguns. O joalheiro examinou-os e, com grande espanto e satisfação, descobriu que um deles era exatamente igual ao que o seu cliente queria para fazer o par. A jovem senhora pedia por ele dez mil francos, nem menos um tostão. Embora o joalheiro tivesse vendido um igualzinho por quatro mil, pensou que poderia obter quinze mil por aquele, o que seria um lucro bastante substancial. Não hesitou e adquiriu o diamante, pagando de boa vontade os dez mil francos. “No dia seguinte, o joalheiro foi pessoalmente procurar o tal cavalheiro no endereço que ele lhe dera, mas tal pessoa não habitava ali nem ninguém o conhecia. O joalheiro estudou atentamente o diamante que comprara por dez mil francos e verificou, demasiado tarde, que era precisamente o que vendera por quatro mil. Quando veio contar sua história e lhe mostramos a nossa galeria de vigaristas, ele identificou imediatamente o casal. Ambos possuíam uma longa lista de delitos. Não os apanhamos daquela vez nem nunca mais. Talvez estejam repetindo o truque em Roma ou Nova York.” O Dr. Locard atribui a maior parte de seu êxito a seu aprendizado junto ao velho Professor Alexander Lacassagne, que lhe ensinou medicina legal na Universidade de Lyon. O Professor Lacassagne foi chefe do laboratório de Lyon antecedendo assim o Dr. Locard, até que faleceu num desastre de automóvel, em 1924. Lacassagne tornara-se lendário na França ao auxiliar os grandes ases da Sureté, como Bertillon e Goron, na descoberta de vários crimes. Enquanto estudava, o Dr. Locard fez estágios em laboratórios da polícia de Lausanne, Berlim, Turim e Roma. Trabalhou em Paris sob as ordens de Alphonse Bertillon, criador do primeiro sistema de identificação criminal. — Era o maior gênio que jamais conheci — afirma o Dr. Locard. — Concentrava-se intensamente e não gostava de dar explicações. Aprendíamos apenas observando-o. O Dr. Locard foi oficialmente integrado na polícia francesa em 10 de janeiro de 1910. Oito anos depois, mandaram-no numa viagem à volta do mundo, a fim de estudar as inovações em matéria de impressões digitais, pegadas, marcas de palmas da mão, de dentes, de cabelos, além de realizar estudos de anatomia noutros países, incluindo até a longínqua China. Em 1918, visitou San Francisco, Chicago e Nova York. Dessa única visita aos Estados Unidos, recorda com mais prazer não os arranha-céus, mas o caso de um médico de Nova York que resolveu o problema que lhe causava a sogra pondo-lhe bactérias de febre tifóide na comida. Em 1922, o Dr. Locard foi considerado bastante ilustre para ser convidado a tomar parte numa comissão internacional, chefiada pelo General Pershing, que fiscalizaria uma eleição em Arica, região disputada entre o Chile e o Peru. O Dr. Locard foi destacado para descobrir fraudes nos votos. Nos anos seguintes foi indicado para editor da Revue Internationale de Criminalistique, uma publicação na qual detetives famosos de diversos países colaboraram com o relato de seus casos e de suas descobertas mais sensacionais. Durante a Primeira Guerra Mundial, o Dr, Locard foi membro do serviço secreto francês. À maneira de Sherlock Holmes, costumava divertir as autoridades aliadas lançando um simples olhar a qualquer soldado coberto de lama, ou às manchas de sua farda, dizendo depois com exatidão em que zona ele andara
combatendo. Nessa época, o Dr. Locard quase foi assassinado. Certa noite, uma jemme fatale francesa, que era espiã paga pelos alemães, conseguiu entrar no gabinete do Dr. Locard para vasculhar seus papéis. Nesse momento entrou o Dr. Locard. A mulher atirou-se contra ele brandindo uma navalha. Reagindo por instinto, o Dr. Locard obrigou-a a soltar a arma e imobilizou-a contra a parede, até que vieram prendê-la. Ainda hoje o Dr. Locard conserva a navalha, afirmando que ela lhe dá sorte. Durante a Segunda Guerra Mundial, o Dr. Locard recusou-se a abandonar seu posto, embora Lyon estivesse ocupada pelos alemães. Foi interrogado pela Gestapo por três vezes. Não o trataram mal, mas experimentaram todas as armas de seu museu particular e puseram escutas no seu telefone. Quando a Gestapo estava prestes a limitar-lhe as atividades, um dos chefes alemães veio ter com ele. Queixava-se de que lhe haviam roubado a carteira por duas vezes. Estava ansioso por apanhar o ladrão. Se o Dr. Locard o ajudasse, estava pronto a permitir que continuasse trabalhando livremente. O Dr. Locard deu-lhe um pó, que devia ser polvilhado sobre a carteira, afirmando que qualquer pessoa que tentasse roubá-la ficaria com os dedos completamente roxos, e quanto mais tentasse laválos, pior. — Dali a uma semana o oficial descobria que os dedos do seu motorista pareciam as luvas de um bispo — diz o Dr. Locard. — Depois disso nunca mais fui incomodado pelos nazistas. Uma das mais conhecidas descobertas do Dr. Locard resultou de uma teoria sua, segundo a qual o sistema de impressões digitais estava ultrapassado por ser muitas vezes incompleto. O Dr. Locard afirmava que um pequeno desenho dos dois mil poros que existem na ponta de um dedo valia tanto quanto a impressão do dedo todo. Para provar essa teoria, apresentou, em 1929, a poroscopia, uma técnica por meio da qual bastava um vigésimo da impressão do dedo de uma pessoa para identificá-la. Servindo-se desse método, conseguiu resolver uma dúzia de casos. Embora acredite, talvez mais firmemente do que a maioria de seus colegas, no valor do laboratório criminal, o Dr. Locard não é de opinião que os talentos e a personalidade do detetive se devam apagar completamente perante os tubos de ensaio e os fichários. Na opinião do Dr. Locard, continuarão a existir detetives de talento, e, num esforço isolado para perpetuar semelhante espécie, ele trabalha sem descanso na preparação de caçadores de homens que lhe são enviados de todas as nações. O Dr. Locard tenta ensinar aos alunos os mais variados métodos. Recorda- lhes constantemente que a prova mais concludente se encontra na maioria das vezes na dobra das calças do criminoso, por ser um lugar que ele geralmente esquece quando tira o pó da roupa. Ao procurar provas para reforçar suas deduções, o Dr. Locard prefere uma mancha de sangue desbotada, uma nódoa de gordura, um grão de poeira, a uma dúzia de testemunhas. — Claro que as testemunhas são importantes — diz ele aos alunos —, mas por vezes não se pode confiar muito nelas. Exageram inconscientemente, pois são criaturas humanas. Ao visitar de novo a cena de um crime, em busca do cadáver ou de um tesouro escondido, o Dr. Locard aconselha os alunos a caminharem junto do suspeito e até a segurarem no seu braço. — Levem-no sempre seguro pelo braço, porque assim sentir-lhe-ão as reações. É um truque que nunca falha. E, muitas vezes, sem o saber, o criminoso
os levará aonde é preciso. O Dr. Locard avisa seus discípulos de que são as assassinas que criam os maiores problemas. — Reagem de maneira diversa dos homens. Ficam sempre admiradas de serem acusadas, negam tudo, mostram- se escandalizadas, ofendidas e indignadas. Apelam para os nossos sentimentos, para a nossa fraqueza masculina. Quando se vêem perdidas e já não podem negar os fatos, então põem a culpa nos homens, censuram um marido, um amante, um pai, um irmão, um homem que as desencaminhou. Cherchez la femme, meus senhores, mas, depois de a encontrarem, todo o cuidado é pouco! A despeito dessa desconfiança em face das mulheres, o Dr. Locard é casado, tem um filho já adulto, que trabalha na polícia de Lyon, e possui uma confortável casa nos arredores da cidade. Conversar é um de seus prazeres preferidos. Costumava travar demoradas discussões científicas com o falecido Dr. Alexis Carrel, escritor que recebeu o prêmio Nobel. Discutia um crime durante horas com o seu amigo Nelcher, da polícia de Berlim, que teve de fugir à cólera de Hitler. Nelcher provara terem sido os nazistas que, no ano de 1933, haviam penetrado no Reichstag através de um tubo de aquecimento, utilizado produtos químicos e provocado o histórico incêndio que fez com que Hitler subisse ao poder e pusesse o mundo todo em chamas. Outro passatempo do Dr. Locard é a sua coleção de cartas autografadas relativas ao crime. Tem uma escrita por Vidocq, o célebre fundador da Sureté, e outra de Mata- Hari. Uma delas é dirigida a Washington, pedindo um emprego de engenheiro. A assinatura pertence a um ex-presidiário de nome Latude, que, condenado por ter escondido uma bomba num ramo de flores destinado a Madame de Pompadour, bateu o recorde de permanência na Bastilha, onde ficou encerrado durante trinta e sete anos. Mas a maior diversão do Dr. Locard é o cinema. Senta-se numa sala às escuras e então ri, chora, aflige-se com o herói e a heroína. Nem a chuva, nem a tempestade (nem o crime) o impedem de assistir à sua sessão de cinema semanal. Ainda há pouco, depois de um dia de trabalho, o Dr. Locard foi chamado a uma casa que acabara de ser assaltada. Tratava-se de um trabalho de rotina. Havia no entanto uma anormalidade. Quando o Dr. Locard entrou, descobriu que o ladrão ainda se encontrava ali. O criminoso deu um soco no queixo do Dr. Locard, prostrando-o. — Fiquei sem sentidos durante dez minutos — declara ele com orgulho. Mais tarde, o ladrão foi preso, e o Dr. Locard tratou do queixo machucado. A polícia levou então o seu venerável chefe para casa e obrigou-o a se enfiar na cama. Mal os policiais foram embora, o Dr. Locard pulou da cama, vestiu-se e foi de automóvel a toda a pressa para Lyon, onde chegou ainda a tempo de assistir à última sessão de cinema. — Não podia faltar — confessa ele. — Era um filme com Humphrey Bogart. O que aconteceu depois... Em 1949, estando de passagem por Nova York, a caminho de Paris, encontrei-me com um editor da revista Cosmopolitan, que estava interessado nas minhas sugestões sobre alguns artigos. Quando ele me disse que desejava dar à revista um enfoque mais masculino, pensei numa história que há anos desejava
escrever: uma entrevista-biografia do Dr. Locard, de Lyon. O Dr. Edrnond Locard tinha a fama de ser um dos detetives mais brilhantes do mundo inteiro, embora fosse quase desconhecido nos Estados Unidos. O editor achou a ideia magnífica e encarregou-me de escrever a história. Uma vez em Paris, telefonei ao Dr. Locard em Lyon, o qual se mostrou disposto a cooperar comigo. Tomei o trem noturno de Paris para Lyon, e ali passei alguns dias com o Dr. Locard. Fora o tempo que passava junto do grande detetive, que tinha uma conversa simpática e brilhante, achei Lyon entediante. Depois das nove da noite parecia um deserto, soturna, sem o mínimo encanto. Sou um sujeito noctívago e detesto as cidades que adormecem cedo. Nova York e Paris são cidades noturnas; Zurique e Viena, pelo contrário, dormem cedo. Lyon é a pior de todas. Se não fosse o Dr. Locard, tê-la-ia achado insuportável. Apressei-me a regressar a Paris, não só com o alívio de quem acaba de se ver livre de um túmulo, mas com o entusiasmo de quem recolheu material para escrever uma bela história. Escrevi-a imediatamente e mandei-a para a Cosmopolitan. Dali a uma semana soube que a revista modificara mais uma vez a sua linha, e agora queria histórias de caráter mais feminino. Tudo o que cheirasse a interesse masculino passara a ser considerado tabu. Só me restou o consolo de ter conhecido um homem realmente notável, durante a estadia em Lyon, e ter agora em meu poder uma história completa que havia de publicar um dia. Quando voltei a Paris, em 1953, instalei-me, como sempre, no Hotel Califórnia. Ali, tanto o garçom como os porteiros e as telefonistas estavam a par da minha vida como eu da deles (haviam tomado conhecimento do motivo que me levara a Lyon quatro anos antes), e anunciaram-me que o Dr. Locard tinha morrido. A notícia não me surpreendeu, visto que, em 1953, ele devia contar setenta e seis anos. O que me espantou foi não ter lido a notícia em parte nenhuma. Perguntei ao meu informante francês, uma telefonista bem-informada, se soubera da morte do Dr. Locard pelo obituário dos jornais. Ela não tinha certeza. Julgava que a notícia fora dada pelo rádio ou a havia visto no jornal cinematográfico. “Bem”, pensei, “adeus, meu caro Dr. Locard. Talvez minha história venha um dia a ser a sua notícia necrológica.” Decorridos uns dez anos, em 1963, quando reuni material para este livro, quis incluir a história entre os meus artigos preferidos. Mas preocupava-me uma sensação de trabalho incompleto. Para terminar a história da vida do Dr. Locard eu precisava saber o lugar e as circunstâncias de sua morte. Escrevi a um amigo meu, correspondente em Paris do New York Times, e pedi-lhe que me conseguisse as informações desejadas. Afirmei-lhe que não seria tarefa difícil. Mas a verdade é qúe aconteceu precisamente o contrário. Comecei a receber bilhetes de meu amigo, cada qual mais exasperado do que o anterior. Fora consultar o fichário do France-Soir. Havia ali um grande dossiê sobre o Dr. Locard. Mas nada de obituário. Fora à agência France Presse. Não encontrara a data da morte. Consultara o volume francês do Who’s Who de 1961-1962. Ali constava a data do nascimento, mas não a da morte. Desesperado, foi visitar a agência do jornal Progrès de Lyon e o que ali soube obrigou-o a correr logo para um telefone. Escreveu-me, nesta noite de 10 de abril de 1963: “Uma surpresa: o Dr. Locard não só ainda está vivo, como acabo de lhe falar pelo telefone há menos de meia hora!” O Dr. Locard, com oitenta e seis anos, ainda estava vivo em Lyon. A
ressurreição daquele que eu havia injustamente enterrado dez anos antes entusiasmou-me, e entrei imediatamente em ação. Revi rapidamente o que escrevera sobre o grande detetive em 1949 e agora, em 1963, mandei a toda a pressa para Lyon uma série de dez perguntas, destinadas a saber o que fora feito dele nesse intervalo de catorze anos. O velho investigador do crime respondeu com prontidão e quase sempre sinceramente às minhas perguntas. Mas como se mostrava evasivo ou misterioso em certos pontos, tive de preencher as lacunas com o material que recolhera em vários arquivos de Paris, depois de ali ter chegado em junho de 1963. Aqui têm pois a verdadeira história do Dr. Locard até hoje: Depois de nosso último encontro, o Dr. Edmond Locard permanecera ainda a serviço da Sureté de Lyon. Tenho a impressão, no entanto, de que, durante esses dois últimos anos, apenas um caso seu foi considerado digno de nota pela imprensa de Paris. Essa investigação ocorreu em dezembro de 1950 e dizia respeito a dois médicos, cunhados de um sujeito falecido, acusados de haverem feito algumas emendas no testamento do morto. Visto tratar-se de um caso que envolvia cinquenta milhões de francos, as autoridades recorreram à perícia do Dr. Locard. Ignoro qual foi a atuação dele, sei apenas que mandaram chamá-lo e que publicaram o resultado da investigação. E, embora entre os mil seiscentos e cinquenta e dois casos que investigou desde 1949 até 1951 apenas esse tenha sido comentado pelos jornais, apareceram entretanto na imprensa numerosas referências ao Dr. Locard, à sua capacidade como criminologista e à diversidade de seus escritos durante esse período. Em 1950 — um período muito fecundo para o nosso idoso herói — o Dr. Locard publicou uma edição revista do seu Livro da criminologia em sete volumes, um volume intitulado Saiba defender-se dos criminosos e vários artigos e ensaios. Um desses últimos foi alvo de atenções especiais. Tratava-se de um trabalho revolucionário publicado na revista Médecine 50, intitulado “A defesa do crime”. Conforme o próprio Dr. Locard declarou a alguns repórteres, devia antes ter-lhe chamado “Em defesa dos criminosos”. “Afinal de contas, todos nós somos perfeitamente capazes de nos transformar em criminosos.” Quando a avançada idade do Dr. Locard tornou inevitável a sua aposentadoria, o governo francês pensou em condecorá-lo pelos serviços prestados à nação. Na França existem cinco categorias de condecorações, excetuando-se o Grand Cordon, que só o Presidente De Gaulle tem o direito de usar. Dessas cinco, concederam a terceira ao Dr. Locard, em novembro de 1950. Foi feito comendador da Legião de Honra. Pouco mais restava fazer, ao Dr. Locard, do que retirar-se do serviço público. A 21 de fevereiro de 1951, depois de ter sido nomeado “diretor honorário do Laboratório de Polícia” de Lyon, o Dr. Locard deixou de fazer parte da Sureté Nationale. Tinha setenta e quatro anos e trabalhava ali havia quarenta e um. Uma coisa contribuiu para tornar a aposentadoria menos dolorosa aos olhos do Dr. Locard. Foi o fato de ter sido substituído no laboratório de Lyon por seu próprio filho, o Dr. Jacques Locard, que, no entanto, trabalhou ali apenas um ano. Quando perguntei por ele ao Dr. Locard, este replicou secamente: “Morreu em 24 de novembro de 1952. Foi substituído pelo Professor Bouret”. A aposentadoria das funções públicas não significou inatividade para o Dr. Locard. Aos setenta e quatro anos sentia-se ainda jovem. Alugou um escritório na Rue Mer- cière, número 5, em Lyon, e não interrompeu seus trabalhos sobre o crime, continuando a dedicar-se a todos os aspectos da criminologia. Não tardou a partir para a África do Norte, fazendo uma série de conferências na Tunísia, na
Argélia e em Marrocos. Sempre se interessara muito por cinema, mas até ali como simples espectador. De regresso à pátria, resolveu escrever argumentos de filmes dos quais ele próprio seria o ator. Em fins de 1952, entregou ao diretor cinematográfico francês Henri Lepage o original de um roteiro intitulado O crime não compensa. Recordando-se talvez da prisão de Jules Bonnot, o antigo motorista de Sir Arthur Conan Doyle, que cometera doze assassinatos, o malvado que aparece no filme do Dr. Locard executa crimes semelhantes no bairro chinês de Lyon e depois joga os cadáveres no Ródano. O herói, um velho professordetetive que o Dr. Locard amorosamente criou para sua estréia no cinema, identificou o vilão por causa de um fio de seda encontrado preso a uma corda na casa do culpado, e que era do mesmo material da blusa de uma das vítimas. O herói consegue seguir o vilão graças a uma gota de cera que ele deixa cair de uma vela quando caminha na direção do rio com o corpo da vítima às costas. Infelizmente para o Dr. Locard, e talvez para os espectadores, esse roteiro nunca chegou a ser filmado. Nos quinze anos que ainda viveu depois de ter sido aposentado da Sureté, o Dr. Locard continuou a dedicar-se às suas duas paixões: escrever sobre o crime em revistas e livros e utilizar o laboratório para investigações. Sua numerosa correspondência internacional com outros detetives e possíveis clientes e admiradores foi assim prejudicada. Afirmou-me que apenas tinha tempo para se corresponder regularmente com “alguns advogados e criminologistas famosos”. As horas necessárias à sua correspondência particular foram, segundo parece, consumidas a escrever para o público. Ao aposentar-se, declarou à imprensa local: — Poderei agora escrever uma grande obra em que faço grande empenho: um catálogo geral completo dos li- quens da França. Quando, doze anos mais tarde, lhe perguntei se conseguira finalmente ser um perito em liquens e se já escrevera o tal livro, respondeu-me muito sério: — Ainda não o acabei. No entanto, acabou outros. Escreveu e publicou Ar causas célebres, um livro muito popular e dramático dedicado a casos verídicos e a crimes famosos, onde fala de Mata-Hari e de Angela Lavai. Esta última foi a autora das tais cartas anônimas que ele conseguira prender em Tours e que o tornou mundialmente célebre. Em 1961, a Editora Payot publicou um estudo do Dr. Locard, Perícia de documentos escritos. O Dr. Locard foi muitas vezes abordado para escrever as suas memórias. Nunca, porém, se interessou por isso, ou não teve tempo. Concordou finalmente em que um jornalista parisiense, Robert Corval, colaborasse com ele na redação da sua autobiografia, que veio a público no mês de setembro de 1957. De tempos em tempos, durante os anos da sua suposta aposentadoria, não se furtou a entrevistas com repórteres de Paris. Quando um jornalista do antigo Samedi-Soir lhe perguntou se as descrições de casos de violência difundidos pelos jornais de grande circulação teriam alguma influência no aumento da criminalidade, o Dr. Locard manifestou suas dúvidas quanto à imprensa poder contribuir de alguma forma para a expansão da delinquência. Depois voltou aos antigos amores. O cinema, afirmava ele, tornava-se muito mais perigoso, visto que os filmes forneciam ao criminoso em potencial exemplos da maneira de cometer os crimes. O Dr. Locard continuou a castigar seu velho inimigo, o autor de cartas anônimas. Na sua opinião não havia diferença entre uma pessoa que escreve cartas anônimas e a que mata com veneno.
Acima de tudo, porém, o Dr. Locard tem-se mantido ativo, nestes últimos anos, como detetive particular. Perguntei-lhe em 1963: — Desde a sua aposentadoria, encarregou-se de investigações particulares? Ele replicou: — Sim. Especialmente casos de falsificações e cartas anônimas. Afirmou-me ter-se ocupado de vários casos de falsificação de selos raros. E prosseguiu: — E não se passa um só dia sem que alguém me envie, por uma razão ou por outra, uma amostra de cabelo para eu examinar. Geralmente trata-se apenas de pêlo de cães. Embora se mostrasse pouco desejoso de falar individualmente dos casos de crime em que tomou parte desde que saiu da Sureté Nationale, o Dr. Locard afirmou-me, quando me escreveu em abril de 1963, que se encontrava tão empenhado como sempre no combate ao crime. — Esta manhã pus minha assinatura no relatório criminal número 11 704. Isso significava que, depois de aposentado, trabalhara em setecentos e noventa e nove casos. Claro que o Dr. Edmond Locard não precisa de mais investigações espetaculares ou de manchetes das primeiras páginas para ter um lugar entre os maiores detetives de todos os tempos. O que Sherlock Holmes sugere como possível na ficção, o Dr. Locard tornou realidade. As palavras proferidas a seu respeito pelo ministro do Interior da França por ocasião da sua aposentadoria continuam válidas hoje: “Numa época em que os processos mais usuais de condenar as pessoas se baseavam na confissão e nas testemunhas, o Dr. Locard trabalhou no sentido de colocar em primeiro plano a investigação e a precisão científica quando se trata de encontrar vestígios materiais e indícios como provas essenciais e objetivas do crime. Esse método tornou-se progressivamente clássico em todos os inquéritos judiciais dos países democráticos”. Da última vez em que tive notícias dele, o Dr. Locard gozava o conforto de sua velha casa nos arredores de Lyon. Não lhe faltava companhia. — Tenho quinze netos — disse-me ele. — O mais velho vai casar-se em breve. Embora goze de boa saúde, já não sai à rua para assistir ao seu filme semanal. Podemos imaginar que não tem tempo por causa das suas outras ocupações ou então que se entretém com o moderno passatempo, a televisão. Desconfio, contudo, que existe outro motivo para o seu abandono do cinema. Ninguém poderá substituir seu querido Humphrey Bogart. Quando lhe perguntei se tinha alguma ambição ou projeto futuro, o Dr. Locard replicou que só desejava uma coisa: “Morrer em paz. Aos oitenta e seis anos, não me resta outra perspectiva”.
15 O magnata Todos os dias, às sete e meia da manhã, um homem alto, magro, um pouco curvado, com ar apreensivo, ligeiramente calvo e de sobrancelhas espessas, sai a toda a pressa de sua modesta casa de sete cômodos no subúrbio de Werden, na Alemanha, entra no seu pequeno Porsche e segue velozmente até a cidade industrial de Essen. Às oito, já percorre as ruas cinzentas, sujas e tortuosas da capital do Ruhr, atravessa uma zona de ruínas, flagelada por bombardeios aéreos aliados, e dirigese para os montes de destroços que rodeiam o edifício número 103 da Altendorfstrasse, sede das Indústrias Krupp. Depois de parar o automóvel em frente do edifício, nosso homem entra, espera o elevador e sobe até o terceiro andar. Enquanto caminha para o seu gabinete, vê-se a preocupação no seu olhar introspectivo. As rugas que lhe sulcam o rosto fazem-no parecer mais velho do que os quarenta e seis anos que na verdade tem. Seu terno marrom passa despercebido. Para os empregados que cruzam e se acotovelam com ele no corredor, não parece mais do que um administrador qualquer que pretende chegar a tempo à sua mesa carregada de papéis. Ao passar por ele poucos o reconhecem, no entanto, todos sabem e temem seu nome e dependem dele como outrora os servos dos senhores feudais, e referem-se a ele como a uma das raras esperanças capazes de fazer renascer e revigorar a mãe pátria. Porque o nome desta figura apagada é o do homem mais poderoso da Alemanha atual, um dos mais fortes sus- tentáculos da Europa Ocidental, um dos mais ricos indivíduos na Terra, o centro de uma grande controvérsia universal. Seu nome de família — sinônimo de vendas que significam a morte — tem pairado sobre gerações e gerações de europeus e americanos como se fosse uma formidável espada. Esse nome é Krupp, e o homem chama-se Alfried Krupp von Bohlen und Halbach, de Essen. Embora sua aparência e seus hábitos sejam comuns, possui incríveis antecedentes. O bisavô construiu canhões para Bismarck, o avô fez submarinos para o cáiser, o pai fabricou tanques Tiger para Hitler. A mãe, que se chama Bertha e vive ainda perto dele em Essen, é que deu o nome ao grande canhão que bombardeou Paris na Primeira Guerra Mundial. O próprio Alfried foi educado numa casa de cento e dezessete cômodos •— a parte destinada aos hóspedes possuía sessenta quartos e a família era servida por cento e vinte e cinco criados. Havia muitas vezes seiscentos convidados para o jantar. Há dez anos, quando ele tomou conta das “oficinas” — é assim que ele gosta de se referir às fábricas da família —, estas cobriam uma área de treze quilômetros quadrados, empregavam cento e sessenta mil operários e mantinham ativa a máquina de guerra do Reich. No fim da guerra, Krupp foi preso, julgado como criminoso de guerra (por ter planejado uma agressão, saqueado as nações vencidas e utilizado trabalho escravo), e condenado pelos juizes americanos a doze anos de cativeiro na prisão de Landsberg (onde Hitler escreveu Minha luta). Há dois anos, após ter cumprido metade da pena, Krupp foi anistiado, sendo-lhe restituída toda a fortuna e todo o prestígio. Fizeram-no prometer que se absteria de produzir carvão e aço, e ele voltou a se ocupar dos antigos negócios. Krupp encontra-se de novo à testa dos estaleiros de Bremen e de Kiel, bem como das fábricas de Essen, onde se constroem locomotivas, motores diesel, ferramentas, utensílios caseiros; de suas propriedades particulares, que englobam dez mil casas; de sua cadeia de hotéis; de cento e vinte armazéns de
mercearia, além do dinheiro proveniente da venda obrigatória das minas de carvão do Ruhr e de cinco minas de ferro. Suas minas de carvão, de onde se extraem sete milhões de toneladas por ano, e as fundições de aço, que produzem um milhão' e quinhentas mil toneladas por ano, render-lhe-iam cerca de cinquenta milhões de dólares, sè fossem vendidas. Suas propriedades restantes valem perto de noventa e cinco milhões de dólares e dão-lhe um lucro anual de três milhões e meio de dólares. Quando restituíram a Krupp a sua fortuna, começou a grande controvérsia que ainda hoje não acabou. Ao comutar a sentença de Krupp e ao restituir-lhe os bens, John J. MacCloy, então alto comissário dos Estados Unidos na Alemanha, declarou: — Não me parece que as culpas do réu, Krupp, sejam superiores às dos outros condenados pelo Tribunal de Nu- remberg. Imediatamente o jornal russo Izvéstia clamava de Moscou: “A libertação desse chefe nazista vem mais uma vez confirmar que os agressores americanos estão recrutando especialistas no morticínio em massa para ajudá-los a preparar nova guerra. Washington já não se contenta em ter generais da Wehrmacht treinando as divisões de Eisenhower. Precisa ainda dos fabricantes de câmaras de gás, dos construtores dos fornos diabólicos de Auschwitz, dos vendedores de fuzis, de bombas, de gases venenosos”. O jornal francês Franc-Tireur, depois de citar as palavras: “Na vida há momentos bons e momentos maus”, comentava: “Mas os bons momentos de Krupp correspondem aos maus momentos do povo”. As reações na Inglaterra foram divergentes. Seis deputados do Partido Trabalhista consideraram o regresso de Krupp aos negócios da família como “uma traição a todos os homens e mulheres que perderam a vida nas duas guerras mundiais. Esse ato irá encorajar o regresso do nazismo”. Por outro lado, um diário reacionário de Londres declarava: “Os representantes dos Estados Unidos clamam que o perigo não reside no fato de Krupp poder vir de novo a ocupar- se do fabrico de armamento, mas sim na hipótese de ele se recusar terminantemente a fazê-lo. As forças aliadas, na Alemanha, acham que a produção de armas no Ruhr não só contribuiria para a segurança da Europa Ocidental, como também evitaria a concorrência dos mercados de além-mar”. Krupp continua a constituir um pomo de discórdia entre os aliados ocidentais. A verdade é que os Estados Unidos recusam-se obstinadamente a utilizar Krupp na corrida armamentista européia: receiam que suas fábricas, uma vez equipadas para fabrico de armas, possam um dia cair nas mãos dos invasores vermelhos. Por outro lado, a Grã-Bretanha acha que Krupp devia fabricar fuzis e tanques, mas sob uma fiscalização muito severa. Segundo afirmou um oficial inglês, “quanto mais cedo Krupp começar o rearmamento contra a Rússia, melhor será. Não queremos ver Krupp açambarcando toda a exportação, enquanto nós todos nos esfalfamos produzindo armas para a defesa comum”. Enquanto os aliados discutem a política a adotar em face de Krupp, este insiste em declarar que está cumprindo fielmente o que prometeu. Coopera em negociações destinadas à liquidação de seus antigos negócios no ramo de carvão e aço. E não produz armamentos. — Repito hoje o que disse há dois anos — afirmou ele numa conversa comigo. — Não estou interessado em fabricar armas.
Existem alguns céticos que põem em dúvida essa afirmação — pensam que ele agarrará com ambas as mãos a primeira oportunidade de fabricar fuzis, se lhe derem licença — e, se não derem, acabará por fabricá-los de qualquer maneira. Recordam as atividades do pai, que prometeu aos Aliados não ajudar a Alemanha a rearmar-se depois da Primeira Guerra Mundial e que mais tarde se gabava de ter sugado a América com as suas “indústrias da paz”. Na realidade, ele planejava foguetes e construiu uma fábrica secreta de submarinos na Holanda. Neste momento, porém, não se pode duvidar de que Alfried Krupp esteja empenhado unicamente em operações pacíficas. Suas fábricas em Essen estão de novo em grande atividade. Dedicam-se atualmente a fornecer cinco milhões de dólares em locomotivas à África do Sul, trinta e um milhões em altos-fornos à fndia e máquinas para minas à Iugoslávia. Embora os representantes do governo dos Estados Unidos na Alemanha Ocidental continuem a obrigar Krupp a construir unicamente locomotivas e altosfornos, certos oficiais americanos partilham, no entanto, da opinião dos elementos conservadores do governo britânico. Desejariam ver Krupp auxiliar o armamento da Europa contra o comunismo — mas não oficialmente. Não há muito, o exército dos Estados Unidos pediu a Krupp que reparasse seus tanques. Ele se recusou terminan- temente. Irritado, o embaixador dos Estados Unidos recordou a Krupp que poderia obrigá-lo a cooperar. Krupp replicou com delicadeza: — Primeiro vocês me prenderam por ter fabricado armas. Agora fazem-me ameaças se me recuso a fabricá-las de novo. Digam-me o que hei de fazer? Os oficiais americanos não sabem o que querem que ele faça pela simples razão de que não conhecem o verdadeiro Krupp. Ignoram se podem ou não confiar nele. Não sabem se é honesto. Ignoram o que pensa, o que sente, quais suas opiniões. E, da mesma forma, a maioria da população da Europa nada sabe sobre Krupp. Dos poucos homens importantes do nosso tempo que possuem tão grande capacidade para influir no futuro de tanta gente, nenhum é tão pouco conhecido e enigmático como Herr Krupp. Com a finalidade de resolver esse mistério — averiguar até que ponto Krupp representa um perigo para a paz, saber se a dinastia que construiu canhões para Bismarck e para Hitler se deixará convencer a fabricá-los para as democracias — é que percorri o caminho até Essen, Dusseldorf, Frankfurt. Observei, interroguei, escutei: ouvi as respostas evasivas do próprio Krupp, falei com sua segunda mulher, com seus advogados, operários, amigos, fiscais americanos, críticos ingleses e franceses. Percebi que, para compreender Herr Krupp, era necessário conhecer primeiro seus curiosos antepassados. Descobri que os Krupp de Essen sempre lidaram com a morte. Tudo começou em 1587, quando um comerciante de vinhos chamado Arndt Krupe se casou com uma jovem alemã bastante rica, cuja família se ocupava da construção de armaduras. Dentro em pouco, Krupe passava a chamar-se Krupp e enriquecia extraordinariamente com a Guerra dos Trinta Anos. Em 1812, quando os Estados Unidos estavam em guerra com a Grã-Bretanha, os Krupp já haviam começado a fabricar armas modernas e a vendê-las a Napoleão, que as utilizou para invadir a Rússia. Depois de Waterloo, a fortuna dos Krupp diminuiu. Em 1850, o bisavô de Alfried, um cavalheiro alto, duro, de barbicha, descobriu uma fórmula nova para fabricar canhões de aço em Essen. Imediatamente a riqueza da família aumentou. Em 1866, os canhões de Krupp
eram vendidos para ambos os lados durante a Guerra Austro- Prussiana. E, em 1870, foi o canhão de Krupp que fortaleceu o poderoso Reich de Bismarck, na Guerra Franco- Prussiana. Em 1902, a família Krupp monopolizava o fabrico de armas na Alemanha. Quando, nesse mesmo ano, faleceu o patriarca da família, o cáiser em pessoa acompanhou-o a pé atrás do caixão. No deflagrar da Primeira Guerra Mundial, o representante legítimo da firma era uma mulher, Bertha Krupp. Passados dez anos, Bertha conheceu na Holanda um diplomata alemão de carreira, Gustav von Bohlen, cujo avô combatera pelo norte na Guerra Civil americana e era primo de Charles “Chip” Bohlen, embaixador dos Estados Unidos na Rússia. Aos dezenove anos, Gustav von Bohlen já prestara serviço na embaixada alemã em Washington, em Pequim e na Cidade do Vaticano. Depois de se casar com Bertha Krupp, em 1906, passou a trabalhar unicamente para a empresa. Em 1909, mediante uma procuração legal de Bertha e com ordem do Cáiser Guilherme, Gustav adotou o nome Krupp e passou a dirigir os trabalhos da indústria, então em franco progresso. À medida que a Primeira Guerra Mundial seguia o seu curso, Gustav construiu o primeiro submarino, grande quantidade de navios de guerra, o mais mortífero canhão do mundo (a que chamou “Grande Bertha”, em honra da mulher) — mais tarde os Aliados puseram o mesmo nome no gigantesco canhão que bombardeou Paris — e teve sete filhos, o mais velho dos quais Alfried Krupp von Bohlen. Alfried foi educado na velha casa da família Krupp, um gigantesco mausoléu situado nos arredores de Essen, denominada Vila Eluegel, construída pelo avô em 1871 e que custara um milhão e meio de dólares. “A casa não fora construída tendo em vista o conforto”, afirmava um amigo da família. “O velho Krupp edi- ficara-a por exibicionismo. Ele era exportador, e portanto seu negócio dependia da opinião internacional. Não confiava no governo prussiano, demasiado rígido, para receber como convinha os estrangeiros. Achou que o melhor seria hospedá-los em sua própria casa. Muitas vezes, Alfried sentava-se para jantar na companhia de quatrocentas ou seis- centas pessoas. Conheceu reis, embaixadores, banqueiros, celebridades de toda espécie. Ainda hoje se recorda de haver simpatizado muito com Henry Ford. Foi também nessa casa que se encontrou com o Duque de Windsor, de quem ainda hoje é amigo pessoal.” Foi anunciado, há pouco tempo, que Alfried Krupp havia renunciado à Vila Huegel e a tinha cedido a várias sociedades culturais e científicas. Perguntei-lhe a razão disso e ele respondeu: — Porque era grande demais. Hoje em dia já não se pode viver daquela maneira. As despesas de conservação eram enormes. Não se conseguia arranjar bons criados. Além disso, era desagradável viver lá. Fui educado lá, mas nunca me senti em casa. Sonhei sempre com uma habitação pequena e moderna. E agora que a possuo, sinto-me mais feliz. Até os catorze anos, Alfried teve professores particulares. Depois, ao fim de três anos de internato num colégio particular em Essen, frequentou a Universidade de Munique, onde se especializou em meteorologia. Possui o diploma de engenheiro. Teria tido alguma vez interesse por outra carreira? — Não — confessou. — Pertenço à quinta geração dos Krupp. Fui educado para tomar conta das fábricas. Entrei para a empresa em 1936, como diretor
auxiliar, e assinava a correspondência. Mas o trabalho não me agradava e passei para a parte técnica. O pai de Alfried, Gustav, gostava de exercer o cargo de diretor, mas encontrou pela frente graves problemas políticos. Hoje, a família Krupp afirma que, em 1933, Gustav contribuiu com mais de um milhão de marcos, que entregou a Von Hindenburg, para ajudar a depor o “intruso” Hitler. Pode ter sido verdade. Mas, por outro lado, há provas de que, nesse mesmo ano, Gustav contribuiu monetariamente para a eleição do futuro ditador. No decorrer dos anos, continuou a apoiar Hitler. Em 1941, Gustav escreveu um artigo em que afirmava: “Depois da subida de Hitler ao poder, tive a satisfação de poder afirmar ao Fuehrer que as Indústrias Krupp estavam em condições de, em curto prazo, começar a rearmar o povo alemão sem perda de tempo”. Durante a Segunda Guerra Mundial, a organização de Gustav, além de constituir a principal fonte de armamentos de Hitler, fabricava blindagem para os poderosos tanques Tiger e criava o canhão de Sebastopol, a enorme peça de artilharia que atirava granadas de sete toneladas sobre os russos. No princípio de 1943, Gustav von Bohlen ficou semiparalisado e teve de se recolher ao leito. Bertha insistiu em que ele se retirasse dos negócios. Em abril de 1943, Alfried Krupp foi promovido a presidente do conselho de administração e em 1944 assumiu a chefia total da empresa. Ano e meio depois, quando a máquina nazista estava desmoronando e os Aliados cercavam os abrigos de Berlim, Hitler mandou chamar Krupp à sua presença. Como se recusasse, Hitler enviou a Gestapo para prendê-lo. Mas os Aliados chegaram primeiro. Krupp rendeu-se a um soldado raso britânico e ficou preso dentro de casa durante trinta dias, antes de ser enviado de barco para Frankfurt, onde esteve sob escolta militar. Pouco depois, entregaram-no ao Tribunal de Nuremberg, a fim de ser julgado como criminoso de guerra. Parece que, na realidade, quem os Aliados perseguiam era Gustav, o chefe das Indústrias Krupp. Preparavam havia dois anos a sua acusação. Visto estar tão doente, as três nações vencedoras enviaram médicos para examiná-lo. Estes declararam-no incapaz. (Morreu dali a cinco anos, com sessenta e sete anos, no chalé de um antigo criado, nos seus terrenos de caça na Áustria.) O novo chefe da Krupp, Alfried, foi culpado em lugar do pai. Apesar de seus delitos terem sido cometidos na zona britânica, os ingleses recusaram-se a tocá-lo. Portanto, esse encargo ficou para os Estados Unidos. Em agosto de 1945, Krupp compareceu, juntamente com oito diretores da sua companhia, perante o Tribunal Militar N.° 3 dos Estados Unidos, em Nuremberg. Uma vez que Krupp ia ser julgado por três juizes americanos, pediu que lhe concedessem o direito de contratar um advogado americano. As autoridades negaram. Entretanto, dois americanos, um civil e um oficial do exército, prometeram a Krupp que se encarregariam de lhe dar defesa competente. Ele aceitou seus serviços e ficou à espera. Os esforços dos dois americanos chamaram a atenção de Earl G. Carroll, capitão do exército em Frankfurt. Este, um advogado afável, de meia-idade, acusou os americanos de “completa fraude”, e na noite anterior ao julgamento avisou a família Krupp de que não poderia esperar auxílio dos americanos que contratara. Imediatamente, o irmão mais novo de Alfried, Berthold, pediu a Carroll que representasse a família. — Eu lhe disse que tentaria — contou-me Carroll. — Era necessária uma licença especial para representar criminosos de guerra no tribunal. Fui pedir essa
licença, mas ela me foi negada. Pedi então aos meus colegas de Hayward, na Califórnia, Tom Foley e John Purchio, que se propusessem a defender Krupp. Também eles foram recusados. Krupp foi a julgamento sem nenhum advogado escolhido por ele. O tribunal deu-lhe um defensor alemão, um jovem chamado Gunther Geisler. Ao discorrer sobre determinado ponto legal, Geisler excedeu-se e recusou-se a pedir desculpas aos juizes, sendo expulso da sala. Krupp ficou definitivamente privado de representante durante toda a audiência. O caso número 10 do Tribunal de Nuremberg — Estados Unidos versus Krupp — durou quarenta e seis dias. A acusação, dirigida por Joseph W. Kaufmann, de Nova York, apresentou oitenta e cinco testemunhas. A defesa contava com cento e quarenta e uma. À primeira acusação — premeditação da guerra —, Krupp replicou: — Na minha qualidade de representante da quinta geração de produtores de aço e da quarta que fabrica armamentos, gostaria de acrescentar uma coisa: nunca, em casa de meus pais, ouvi uma única palavra, ou assisti a qualquer ato, que se pudesse considerar de apoio ou instigador da guerra. O símbolo da nossa casa não é um canhão, mas sim três rodas entrelaçadas, o emblema do comércio pacífico. Krupp foi absolvido dessa primeira acusação. Na segunda, era acusado de espoliação, pilhagem e roubo nas nações cativas. Uma testemunha de acusação relatou uma cena ocorrida em 1940 — que lembrava de maneira exagerada uma passagem de uma peça pacifista. Essa testemunha vira Gustav von Bohlen, com outros três industriais alemães, sentados a uma grande mesa, estudando um mapa da Europa enquanto um altofalante berrava notícias de que o exército alemão avançava pela Holanda e pela Bélgica. A testemunha afirmou que o velho Gustav apontava para certas localidades do mapa e declarava: “Vamos prender este industrial e confiscar-lhe as fábricas. Desta me encarrego eu. Você fica com essa e você com aquela outra”. Krupp foi declarado culpado dessa acusação. Finalmente, acusaram-no de se aproveitar do trabalho escravo e de promovê-lo. A acusação revelou que Krupp tinha utilizado o serviço de cinquenta e cinco mil fugitivos, dezoito mil prisioneiros de guerra e cinco mil internados em campos de concentração. Muitos desses operários forçados haviam sofrido cruelmente. Certa vez, um prisioneiro russo abaixara-se para apanhar um pedaço de pão em lugar de uma apara de metal e fora morto a tiros por um guarda. Depois, um dos diretores da Krupp elogiara o guarda. Krupp replicara que se vira forçado, contra seus desejos, a aceitar o trabalho escravo. Goering e Speer tinham-lhe dado os prisioneiros, destacando setenta e cinco oficiais nazistas para vigiar o trabalho deles nas oficinas. Afirmava que tanto ele como o pai, condoídos com a situação dos operários, haviam instalado cozinhas especiais para alimentá-los. A respeito desse item de acusação, o tribunal decretou que Krupp empregara trabalho escravo “nas oficinas de produção de armamentos e noutras ocupações perigosas e insalubres, grande número dos quais foram vítimas das deficientes condições de alojamento, alimentação, abrigos antiaéreos e cuidados médicos, e que alguns também sofreram maus- tratos”. Dessa acusação também Krupp não conseguiu livrar-se. Os juizes americanos condenaram-no a doze anos de prisão em Landsberg.
Foi então que Earl Carroll, de regresso a Frankfurt, entrou de novo em cena. Dirigiu-se ao General Lucius D. Clay, alto comissário dos Estados Unidos na Alemanha, e pediu licença para visitar Krupp na prisão. Foi-lhe concedida a autorização. Em 1948, Carroll encontrou-se com Krupp, que o encarregou de rever o caso. Carroll escreveu uma brilhante minuta de duzentas e trinta páginas, em que pedia a clemência do tribunal para Krupp. O advogado fez-me um resumo das razões pelas quais, na sua opinião, os americanos perseguiam Krupp: — Em primeiro lugar, o isolacionismo da América tornava-os ignorantes sobre a Alemanha. As únicas pessoas na América que conheciam aquele país eram os refugiados, que estavam cheios de rancor e ódio. Nós os mandávamos de volta à sua terra para que a administrassem para nosso proveito. Três dos acusadores de Krupp eram alemães ou nacionalistas austríacos. Um deles confessou que membros de sua família haviam perecido na câmara de gás em Ausch- witz. Não os condeno pelo seu ódio. No lugar deles eu sentiria o mesmo. Mas do ponto de vista jurídico, o julgamento de Krupp fora influenciado por muitos preconceitos. Em segundo lugar, ao encontrar-se com os Aliados, Stálin insistira em que os criminosos de guerra fossem punidos. E ele incluía os industriais entre os criminosos de guerra. Sendo um comunista, pretendia ver-se livre do maior número possível de capitalistas. Em terceiro lugar, o processo de Krupp fora preparado dois anos antes do fim da guerra, contra Gustav, que na época ainda era vivo. Uma vez que este já não podia ser julgado, substituíram-no pelo filho, que respondeu pelos mesmos crimes, muito embora a acusação não fizesse sentido em muitos pontos. À alegação de que Krupp era inocente como um cordeirinho, que fora julgado e preso em lugar do pai, replicou há pouco o promotor, Joseph Kaufmann: — Alfried Krupp foi considerado culpado com base no seu próprio procedimento e não no do pai. Por decreto especial de Hitler, datado de 1943, Alfried tornou-se proprietário e diretor de toda a empresa Krupp; nem mesmo o pai gozara de tamanho poder, já que o partilhava com a mulher, Bertha Krupp. Alfried votara, aprovara e assinara uma resolução da Krupp para instalar uma oficina no conhecido campo de Auschwitz, de modo a que pudessem aproveitar o trabalho escravo dos prisioneiros. As quinhentas judias húngaras que mais tarde desapareceriam sem deixar vestígios, com exceção de duas ou três que conseguiram fugir, eram operárias-escravas em Essen, onde Alfried Krupp se encontrava pessoalmente à testa da empresa. Quando Carroll apresentou sua minuta de defesa, pedindo clemência ao General Clay, o alto comissário concordou em que esta era merecida. Antes, porém, de ter podido dar um despacho favorável, foi substituído no cargo por John J. MacCloy. — Dirigi-me a MacCloy — relata Carroll. — Ele estudou a minuta e foi também da opinião de que Krupp merecia clemência. Achava porém que estava há pouco tempo no cargo para poder concedê-la imediatamente. Passou- se um ano. E, finalmente, MacCloy concedeu-lhe a liberdade. Krupp estivera preso durante cinco anos. — Li muito na prisão — declarou-me ele. — Lia tudo o que me caía nas mãos. Em geral história da América e biografias. Trabalhei na oficina, onde fabricava cinzeiros e cruzes. Aprendi o ofício quando era estudante.
Logo que foi solto, Krupp voltou para a Vila Huegel. Fez o inventário dos seus cento e dezessete cômodos e apressou-se a declarar que a soldadesca inglesa e americana lhe esvaziara a casa de mobiliário no valor de meio milhão de dólares. Pediu que o FBI e a Scotland Yard conseguissem que lhe fosse restituída uma coleção de quadros dos velhos mestres da pintura, tapeçarias de Gobelin, jarras Ming, tapetes persas e baixelas de prata. Mal a Scotland Yard tomou conta do caso, descobriu que os objetos roubados, no valor de setecentos e cinquenta mil dólares, haviam sido levados por seis alemães que utilizaram a casa como abrigo antiaéreo. A imprensa londrina ficou furibunda. Um diário inglês vociferou: “Quanto a impertinência, descaramento e insolência em alta escala, temos de concordar que o primeiro prêmio é para esse milionário grosseirão chamado Alfried Krupp”. Entretanto, apoiado por Carroll e por outro advogado americano de Nova York, Joseph G. Robinson, Krupp prosseguiu na luta. Em 1951, começou a entrar em negociações para reaver as fábricas. Depois de alguns meses de malabarismos jurídicos, Krupp conseguiu reconquistar seu império no valor de cento e cinquenta milhões de dólares. Os russos pretendiam que os bens de Krupp fossem confiscados. Os ingleses e americanos eram de opinião diversa. O Juiz Jack- son discordara do confisco da propriedade, declarando: — Entre nós não existe essa penalidade e, por motivos históricos, ela seria inaceitável para o povo americano. Krupp voltou à posse de seu império, com a condição de se desfazer das minas de carvão e fundições de aço. — Alfried não recebe um tostão proveniente da produção de carvão e de aço, atualmente — explicou-me Carroll. — Uma firma está encarregada de proceder à liquidação bancária total desse ramo, no prazo de cinco anos. . . No caso de não aparecerem compradores, tudo será vendido em hasta pública. Enquanto se desenrolavam essas demoradas negociações, Krupp dispunha de muito tempo. — Só voltei à atividade a partir de março deste ano — disse-me ele. — Nos dois anos precedentes, enquanto as negociações seguiam o seu curso, eu nada podia fazer. Certo dia, apenas para avaliar a extensão dos estragos sofridos pelas minhas fábricas e dar a saber aos meus operários que ainda estava vivo, fui visitar as oficinas. No dia seguinte, meu gerente foi chamado a Dusseldorf pelas autoridades aliadas e intimado a explicar o que eu fora fazer nas fábricas. Do ponto de vista social, a vida de Krupp era mais ativa. Em maio de 1952, no gabinete do prefeito de Berch- tesgaden, casava-se com a bela Baronesa Vera von Hohen- feldt, cidadã americana de quarenta anos de idade. Era o segundo casamento de Krupp e o terceiro de Vera. Esta chegara aos Estados Unidos em 1939, casada com um cineasta. Naturalizara-se americana em 1946 e divorciarase três anos mais tarde. Depois, trabalhara como recepcionista para um médico em Los Angeles, casara-se com ele, divorciara-se em 1952, cinco meses antes de ter regressado à Alemanha e de se casar com Krupp. Chegara até a vender cosméticos em Los Angeles, morando então num apartamento exíguo. Nesse ano, enquanto a mulher se ocupava em mobiliar a sua nova residência em estilo californiano, Krupp voltou à gerência da empresa. Exceto visitas de negócios, recusava-se a receber fosse quem fosse, especialmente representantes da imprensa estrangeira. Durante dois meses tentei, de Paris, contatar com ele sem obter resposta. Quando já desesperava, recebi o seguinte
telegrama: TEREI MUITO PRAZER EM RECEBÊ-LO NA PRÓXIMA SEMANA NO MEU GABINETE EM ESSEN, ALTENDORFSTRASSE 103. ALFRIED KRUPP BOHLEN. Encontrei-me com Krupp numa terça-feira de manhã. Éramos quatro na sala espaçosa: Krupp, muito alto e sério; a mulher, Vera, alegre e viva; eu e um grande retrato a óleo do bisavô de Krupp. Sentamo-nos numa extremidade da comprida mesa de reuniões e conversamos durante toda a manhã. O inglês de Krupp era correto. Disse-me tê-lo aprendido num colégio alemão, durante uma breve estadia na Inglaterra, e quando do contato com os seus advogados americanos, visto que o alemão deles se limitava a “auf Wiedersehen”. A mulher falava um inglês ligeiramente americanizado. Orgulhava-se de sua nacionalidade americana e declarou- me que votara na última eleição presidencial. Disse-me que conhecera Krupp havia vinte e três anos, em casa “de uns amigos, na Alemanha Ocidental”. Durante minha conversa com Krupp, Vera interrompia constantemente o marido, desenvolvendo ou corrigindo delicadamente certas afirmações dele, receosa de que suas palavras pudessem ser mal interpretadas. A maioria das vezes Krupp não fazia caso das interrupções e prosseguia no que estava dizendo. Tive a impressão geral de que, tivesse ou não razão, era um homem extremamente sincero. Não evitava as perguntas. Vou dar um exemplo: quando resolvi interrogálo sobre Hitler, receei que não me respondesse francamente. Quando hoje em dia se pergunta sobre Hitler a um alemão comum, é costume ele mostrar uma expressão de quem diz: “Hitler? Como é que se escreve?” Eu esperava ver Krupp dar mostras de semelhante amnésia. Por isso não lhe perguntei se tinha conhecido Hitler. Disse-lhe que acabara de ler um livro publicado em Londres, no qual se reproduziam todas as conversas de Hitler durante seus almoços, gravadas por ordem de Martin Bormann. Tinha ele lido esse livro? Respondeu-me que não. — Muito bem — prossegui. — Diz-se que Hitler gostava muito de vir a Essen ver as fábricas e estar com o senhor. Vera interrompeu imediatamente: — Hitler costumava visitar todas as fábricas da Alemanha, não só a Krupp! O marido nem sequer olhou para ela. Ficou calado um momento e depois respondeu: — Claro que conheci Hitler. Costumava estar com ele quando vinha aqui. Interessava-se muito pela indústria e pelas armas modernas. Mas nada sabia de economia. Só tinha uma ideia fixa. No seu entender, não bastava que tudo fosse grande: tinha de ser o maior do mundo. Acho que era por isso que ele me apreciava e gostava de vir a Essen. Minha fábrica era a maior de todas. O mesmo se dava com meus canhões. Minha casa era também a maior. Continuamos a discutir política. Eu tinha comigo um recorte de jornal com um artigo em que um certo Philip Noel-Baker, deputado trabalhista inglês, protestava contra a libertação de Krupp, considerando isso perigoso. Observava ele: “Os Krupp nunca deixaram de estar envolvidos com a política”. Que respondia a isso? Krupp encolheu os ombros: — É um exagero, como acontece muitas vezes com o que sai nos jornais. Os interesses de nossa empresa são muito vastos, portanto temos de estar sempre atentos à política. Mas nunca tivemos qualquer papel ativo. Recordo- me de que um americano me disse, quando eu estava sendo julgado em Nuremberg: “O seu mal, Krupp, é não se ter interessado pela política como devia!”
A certa altura, durante a nossa conversa, Krupp le- vantou-se e levou-me para junto de uma grande janela que dava para os edifícios em ruínas em volta de sua fábrica. As oficinas ocupam apenas um quarto do antigo espaço. Essen sofrerá duzentos e setenta e cinco ataques aéreos e as oficinas Krupp tinham sido diretamente atingidas cinquenta e cinco vezes. Isso devastara trinta e três por cento da área e danificara vinte e nove por cento. — Os prejuízos maiores vieram no fim da guerra — declarou Krupp. — Quando os ingleses e os russos chegaram, começaram a dinamitar tudo. Os russos levaram cento e trinta mil toneladas de maquinaria valiosa. Chegaram mesmo a transportar toda a oficina de fundição Borbeck, que pesava setenta e cinco mil toneladas. Levaram o original de todas as patentes de aço Krupp e tantos desenhos e diagramas que chegariam para cobrir cerca de trinta mil metros quadrados. Os ingleses confiscaram cento e cinquenta mil toneladas de aparas de ferro. Nossa atividade agora é muito reduzida — afirmou Krupp. — Temos apenas lugar para dezesseis mil operários, em vez dos cento e sessenta mil que empregávamos antes da guerra. Krupp é o patrão absoluto das oficinas. Explicou-me que a família era muito grande, todos se davam bem, e por isso tinha que dividir os lucros. A mãe de Krupp, Bertha, agora com sessenta e sete anos, regressara de Salzburgo para viver em Essen. Dos seus quatro irmãos, dois haviam morrido na guerra. Klaus, tenente da Luftwaffe e condecorado com a Cruz de Ferro, fora abatido sobre a floresta de Hurt- gen em 1940. Eckbert, incorporado ao exército italiano, perdera a vida na frente de São Marino, na Itália, em 1945. O outro, Harol, continuava prisioneiro de guerra na Rússia. — Foi condenado a vinte e cinco anos de trabalhos forçados por espionagem na Manchúria. Todos os meses lhe mandamos uma encomenda e de vez em quando recebemos cartas dele, através da Cruz Vermelha. Krupp falou por fim de suas preferências. Não gosta de ópera, não tem tempo para ir a cinema nem a clubes noturnos, mas gosta de receber os amigos em casa. Antes, caçava muito e gostava de velejar (ganhou o terceiro prêmio nas Olimpíadas de 1936), mas também já lhe falta tempo para isso. Visitou o Egito e Israel. Nunca foi, porém, aos Estados Unidos, que espera visitar em breve. Seus inimigos desconfiam dele, os operários temem-no e respeitam-no, e é adorado por muitos alemães. Ouvi chamarem-no de nazista, monstro, patife, mentiroso; e um inglês afirmou sobre ele: “É mais duro que o aço que fabrica”. Seu advogado, Carroll, afirma com toda a lealdade que Krupp tem sido mal compreendido. — Conheci muitos industriais alemães. Krupp é diferente dos outros. Não comanda. Nunca coage os outros a obedecer-lhe. Gasta metade dos dias falando com os operários, anotando reclamações. E, embora seja uma pessoa tão importante, conserva-se realmente modesto. Foi uma vez a Frankfurt para conferenciar comigo. Conversamos durante todo o dia. À noite chovia, e não queria regressar a Essen. Disse-me: “Acha que arranjarei quarto no Frankfurter Hof?” Era o melhor hotel e ele pediu um quarto sem mencionar seu nome. O empregado respondeu que estavam todos tomados. Krupp voltou-se para mim: “Está lotado. Pode in- dicar-me outro hotel?” Eu não acreditei que estivesse cheio e disse à minha secretária que ligasse para lá outra vez. Ela assim fez e declarou ao telefone: “Herr Alfried Krupp von Bohlen deseja um quarto nesse hotel”. Logo os empregados exclamaram ao telefone: “Herr Krupp? Quantos quartos precisa?” Ele, porém, nem pensara em dizer quem era.
Esse retrato de um homem modesto, diligente, pacífico, não pode ser inteiramente verdadeiro. Porque a verdade tem sempre duas caras. Por outro lado, há o fator histórico de os Krupp terem sempre os canhões no sangue. O enigma de Krupp está oculto no carvão e no aço. Voltará Krupp a produzir carvão e aço? Ele me disse que não. Fiz a mesma pergunta a seu advogado: — Carvão e aço? — respondeu Carroll. — Escute. Ele já teve várias oportunidades. Tanto o México como o Brasil ofereceram-lhe terrenos para o caso de ele desejar construir fábricas e oficinas nesses países. Podia ter aceitado. Mas não o fez. Acha que deve permanecer em Essen. Considera que tem obrigações para com a família e para com os operários. No entanto, não me dei por convencido. Será que essas obrigações vão continuar a prendê-lo a Essen? Ou voltará um dia a fabricar armamento, com ou sem licença dos americanos? Carroll ponderou a questão, depois fitou- me e replicou: — Lembre-se de uma coisa. Alfried Krupp não tem licença de produzir aço e carvão aqui na Alemanha. Mas o mundo é grande. E ele pode ir para onde lhe apetecer, até para os Estados Unidos ou para a América do Sul, dedicando-se de novo ao fabrico de aço e carvão. Pode muito bem vir a fazer isso. . . e talvez o faça um dia. O que aconteceu depois. . . Há doze anos, perguntara eu ao advogado de Krupp se seu cliente seria capaz de voltar a fabricar armamentos com ou sem permissão dos Estados Unidos. Carroll replicou-me ambiguamente que, embora Krupp não tivesse licença para fazê-lo dentro da Alemanha, podia mudar-se para qualquer outra parte do mundo. “Pode muito bem vir a fazer isso. . . e talvez o faça um dia.” Hoje estou de posse de uma resposta mais concreta do que a que ouvi de Carroll. Esse dia chegou depressa. Agora, decorridos menos de doze anos, Alfried Krupp produz carvão e aço não só em outras partes do mundo como também na própria Alemanha Ocidental. E tenho a confessar que, de certo modo, ao recordarme da conversa que tive com Krupp, esse fato não me surpreende muito. Ainda há pouco, William Manchester, que o visitara em 1964, dizia que Krupp tinha o aspecto de “um ator inglês desempregado” ou de “um excêntrico criador de abelhas”, mas de modo algum o ar de um “aristocrata” e muito menos o de um magnata. Minha descrição de Krupp, depois de ter estado com ele em 1953, era de que o achava parecido com “um administrador qualquer”. Ainda me recordo de tê-lo achado pouco confiante em si próprio, introvertido, mais apto a pensar do que a agir, no entanto achei sua conversa deliciosamente franca e direta. Ao mesmo tempo, deu- me a impressão de possuir uma certa dose de força e segurança. Fiquei convencido de que, se esse homem tivesse uma ambição, havia de satisfazê-la. Portanto não me surpreende o fato de haver adotado uma atitude de franca desobediência em relação aos ocupantes de seu país, produzindo aço onde não lhe permitiam e produzindo-o igualmente onde não lhe proibiam, segundo afirmara seu advogado. A verdade é que o verdadeiro Krupp podia ser representado por um punho revestido de ferro dentro de uma luva de veludo. A força de vontade e a habilidade de que deu provas ao jogar com a fraqueza e os receios de seus mentores legais (neste caso os administradores ocidentais, às voltas com o difícil problema da coexistência com o comunismo) fizeram de Alfried Krupp o homem mais rico do mundo atual. Eu viera de Paris até Essen, hospedara-me num hotel numa certa manhã de
junho de 1953, e tomara um táxi para me dirigir à entrevista com Alfried Krupp. Quando acabei de conversar com ele, tomei o trem para Frankfurt, fui conduzido a uma casa no número 24 da Rheinstrasse e tive aí uma interessante conversa com o advogado americano de Krupp. Não havia muito tempo, Carroll recebera, e não o negava, dois milhões e meio de dólares como honorários pela assistência legal prestada a Krupp, por ter conseguido tirá-lo da prisão ao cabo de seis anos de cativeiro e por tê-lo ajudado a reconstituir seu império industrial disperso. Não sei se a soma é exata, mas sou da opinião de que Carroll mereceu realmente essa grande quantia. Depois de completar minhas investigações, escrevi uma história de cinco mil palavras sobre Krupp. A revista Col- lier’s aceitou-a, e um dos editores envioume a seguinte mensagem: COLLIER’S ENCANTADO COM A HISTÓRIA ACEITA KRUPP. VÁ PENSANDO NUM LIVRO. Essa última frase referia-se ao fato de eu estar farto de representar o Cavalheiro de Domingo e de afirmar que a história de Krupp seria minha última contribuição para as revistas. Dali em diante, escreveria o que me apetecesse, isto é, livros. Na verdade começara já o primeiro, que terminei em outubro de 1954, e que foi publicado, com o título The fahulous originais, em outubro de 1955. Meu último artigo de revista foi publicado nessa época. A história de Krupp apareceu no número de 30 de outubro de 1953. Embora tenha suscitado bastantes comentários favoráveis, fiquei desapontado. A Collier’s tinha prometido publicála na totalidade de suas cinco mil palavras. Mas de repente, tiveram de substituir um outro artigo mais curto que estava para entrar na máquina e viram-se na necessidade de preencher o espaço vago. Meu artigo sobre Krupp estava ali mesmo à mão. A toda a pressa, a Collie’s cortou- lhe a metade e com ele tapou o buraco deixado pelo artigo suprimido. Minha história saiu expurgada, tão inofensiva e insípida como uma debutante da época vitoriana. Contudo, a história de Krupp que precede este post-scriptum é a versão completa, tal como a escrevi quando de minha visita a Essen. Depois de ter resolvido seguir o rastro de Alfried Krupp desde o momento em que o deixara dentro do elevador, no terceiro andar das Indústrias Krupp, em 1953, até 1965, fiquei admirado ao verificar aonde ele chegara e quantas coisas lhe haviam acontecido num período de apenas doze anos. Nessa ocasião, ele tinha contratado havia nove meses um novo diretor-geral para todas as empresas. Era um homem de negócios, persistente, natural da Pomerânia, chamado Berthold Beitz. Era esplêndida a biografia dele. Recusara-se a entrar para o Partido Nazista. Escapara à Segunda Guerra Mundial, permanecendo na Polônia, onde dirigira explorações de petróleo por conta do Reich. Depois da guerra, trabalhara como administrador numa companhia de petróleo, dirigira um banco e uma companhia de seguros. Durante minha estadia em Essen quase ninguém me falara de Beitz. Porém, nos anos seguintes, Beitz, cujo salário anual era de trezentos mil dólares, transformara-se na força dinâmica que operara a fantástica subida e expansão dos negócios de Krupp. Alguém disse um dia que fora Beitz quem introduzira Alfried Krupp no século XX. Não era sem razão que chamavam aquele homem despretensioso, simples, refratário a mesuras, que se dirigia a todos pelo prenome e gostava do jazz de Nova Orleans, “O Americano”. Era Beitz quem dirigia o cotidiano das oficinas; Krupp só tomava as decisões finais. Como resultado dessa colaboração entre Ber- thold Beitz, de quarenta e oito anos, e Alfried Krupp, de cinquenta e oito, as oficinas estão hoje muitíssimo mais desenvolvidas, dispõem de maior
influência e força do que nunca durante sua longa e dramática história. Consultei há pouco o catálogo de venda dos produtos da firma. São mais de quatro mil e estão selecionados num volume encadernado tão volumoso como uma lista telefônica. Se um cliente deseja comprar uma locomotiva, um tanque de petróleo, uma cidade pré-fabricada, uma dentadura postiça, uma mala enorme, um brinquedo, uma doca, um guindaste, uma draga, um relógio de torre, uma ponte suspensa, encontra tudo isso no catálogo Krupp. Nestes últimos anos, Krupp vendeu motores diesel ao Brasil, construiu uma fundição de aço no valor de vinte e cinco milhões de dólares no Paquistão, exportou caminhões para a Arábia, planejou e vigiou os trabalhos de construção de uma estrada de ferro no Japão, edificou uma refinaria de petróleo na Grécia, desenterrou um faraó das lamas do rio Nilo, no Egito, dirigiu as pesquisas de urânio na Austrália e construiu uma fundição de aço — bem como uma cidade anexa, capaz de abrigar cem mil operários — na índia. Até a União Soviética, a China comunista e os Estados Unidos se tornaram clientes, embora com reservas, da Krupp. A empresa realizou, num só ano, vendas às nações comunistas no valor de trinta milhões de dólares. Numa entrevista recente, Krupp declarou que 55% de suas exportações vão para as nações livres da Europa, 10% para a América Latina, 7% para os Estados Unidos, 9% para a Ásia, 7% para a índia, 1% para a Rússia e para a China comunista, e os outros 11% para diversas partes do mundo. Krupp prevê que, nos anos futuros, a maior parte de suas vendas se destinarão à África, à índia, à América Latina e à Indonésia. No entanto, a verdadeira força de Krupp reside na sua produção nacional de carvão e aço. Isso pode causar confusão ao leitor que acaba de ler meu artigo de 1953, no qual explico que Krupp foi libertado como criminoso de guerra mediante a condição de vender todos os interesses que tinha no carvão e no aço. Na entrevista que me concedeu naquela época, Krupp afirmara: “Repito que não estou interessado em produzir armamento”. No entanto, hoje, Krupp não só conservou a posse do carvão e do aço, como ainda aumentou sua produção. Os céticos não devem ter ficado surpresos. O dinheiro vive no seu planeta particular, possui sua cidadania internacional, seu próprio código de moralidade, suas superleis, que transcendem as leis comuns dos governos nacionais. A linguagem que fala esse supermundo é o lucro, lucro tornado possível pela fragilidade dos simples mortais que acreditam em estratagemas de autodefesa. Isso pode parecer uma linguagem obsoleta, mas continua a ser verdade. No entanto, até os mais cínicos serão levados a inquirir: como Krupp conseguiu isso? Pois bem, na realidade, foi de uma forma muito simples. Em 1953, depois de ter sido libertado da prisão, Alfried Krupp assinou o Acordo de Mehlen com as autoridades ocidentais. Concordou em acabar com o seu império do carvão e do aço, vendendo os diversos valores “por preço razoável”, no espaço de cinco anos. A fim de dar prova de sua boa vontade, Krupp cedeu grande parte de suas empresas aos parentes e amigos, entre os quais o seu colega no fabrico de munições, Dr. Axel Wenner-Gren, industrial sueco. Como, porém, o que restava de propriedades em carvão e aço fosse se valorizando, Krupp lamentou-se junto aos Aliados de que não achava compradores fora da família que estivessem em condições financeiras de negociar com ele as oficinas de produção de aço e carvão. Ao cabo de cinco anos, ainda estava na posse delas. Começou a pedir aos Aliados prorrogações de prazo, que lhe foram concedidas pelo espaço de um ano e até hoje têm sido sempre renovadas . . . É difícil acreditar que a caridosa atitude dos Estados Unidos e de seus amigos europeus não tenha tido em vista certos fins políticos. A Alemanha
Federal do pós-guerra tornou-se aliada do Ocidente e, portanto, há interesse em fortalecê-la e não em debilitá-la. Manter a organização Krupp intacta e forte seria uma maneira de garantir a força de uma nação amiga. Os Aliados acabaram por concordar com os chanceleres e ministros da Economia da Alemanha Ocidental em que a ordem de vender “estava ultrapassada”. Em 1964, Alfried Krupp era de novo dono da Westfaelische Draht Industrien, a última parcela que lhe restava adquirir do Império Krupp do carvão e do aço. A maior prova de que nunca foi feito qualquer esforço sério para obrigar Krupp a desfazer-se de seus interesses no carvão e no aço foi fornecida pela North America News- paper Alliance, num artigo sobre a Alemanha Ocidental, publicado em fevereiro de 1965: “Os representantes de Bonn afirmam que o diretor- geral da Krupp teve de convencer o Presidente Johnson de que não havia qualquer utilidade em obrigar Krupp a despojar-se do carvão e do aço, mas que muito se poderia ganhar para a causa do Ocidente ajudando a nova sociedade Krupp. Beitz tivera entrevistas em Washington com o Vice- Presidente Humphrey, com o Subsecretário de Estado George Bali, com o Senador Robert F. Kennedy e outras grandes figuras da administração. Na Alemanha recebeu-se com estranheza — e alívio — a notícia da entusiástica recepção que lhe fizeram em Washington.” A revista Holiday citava: “O principal lugar-tenente de Krupp” — possivelmente Beitz — “disse que ele nunca se desfaria de suas oficinas de carvão e aço, pois sem elas a firma seria como ‘uma mulher sem sexo’. Ao que parece, e caso raro, tanto a Rússia soviética como os Estados Unidos parecem estar de acordo com esta comparação anatômica”. Animado com premissas tão favoráveis, Alfried Krupp recomeçou pouco a pouco a ligar-se mais diretamente à produção de armamentos ou pelo menos a fabricar produtos suscetíveis de levar, num futuro próximo, ao fabrico de armas destrutivas. Em 1964, Krupp estava muito empenhado em construir para a OTAN uma frota aérea na Alemanha Ocidental, colaborando com a United Aircraft e mais duas outras companhias na aquisição da Focke-Wulf de Bremen. Além de construírem aviões de combate, os especialistas da Krupp acabaram de produzir um reator atômico e estão resolvidos a começar com o programa espacial. Krupp fabricará armas nucleares? Só se for obrigado, afirmou há pouco, acrescentando: “Não nos devemos esquecer da realidade”. O regresso de Krupp foi completo. Suas fábricas de Essen e as firmas subsidiárias valem mais de um bilhão de dólares. Seus lucros anuais são de tal modo elevados que se diz que ele reserva um milhão de dólares por ano para suas despesas pessoais e para seus modestos prazeres. Com exceção da mudança dentro da família, a vida de Krupp pouco se modificou nestes doze anos. Ainda se recusa a viver no seu castelo ancestral, no valor de um milhão e meio de dólares, a Vila Huegel, utilizando-o apenas para recepções de cem ou duzentos convidados ou para hospedar personalidades, tais como o rei da Grécia, o presidente do Brasil ou o chanceler da Alemanha. Ainda guia todos os dias o seu Porsche até o escritório e regressa tarde. Quando estive com ele, da outra vez, Krupp limitava as suas atividades sobretudo a Essen. Hoje, viaja pelo estrangeiro dois ou três meses por ano. Faz essas viagens em seu avião particular, que ele próprio por vezes pilota. Na última
década visitou o Canadá, a Venezuela, a Turquia, a índia, o Egito e a Austrália (onde, ao aterrizar na pouco hospitaleira cidade de Melbourne, deparou com grupos que ostentavam cartazes com emblemas e dizeres tais como “Carrasco” e “Assassino de judeus”). E, embora os criminosos de guerra estejam proibidos de entrar nos Estados Unidos, certo jornal noticiou que o passaporte de Alfried Krupp recebera finalmente o visto de entrada na América. Além das viagens, seus prazeres são tão austeros como antigamente; anda de avião e continua a velejar. Mas, sobretudo, depois do trabalho e nos fins de semana, dedica-se à fotografia, aos jogos de cartas, ao uísque e a meditações solitárias. Não lhe interessam os livros. Krupp também não encontra prazer nos laços de família. Um dos irmãos que lhe restam, Berthold, que foi oficial de artilharia na Romênia ocupada durante a Segunda Guerra Mundial, passa grande parte do tempo num castelo do Reno com a mulher e o único filho. O outro irmão, Harol, de quem ele me falara quando estive em Essen e que permaneceria ainda prisioneiro de guerra dos russos durante dois anos após a nossa conversa, foi libertado mediante a interferência do Presidente Adenauer, em 1955, depois de haver cumprido onze dos vinte e cinco anos a que fora condenado. Hoje é sócio do irmão Berthold numa fábrica de produtos químicos e de uma outra de automóveis. Uma das irmãs de Alfried, Irmgard, vive com seus seis filhos na Baviera; a outra, Waldtraut, arranjou novo marido e vive na Argentina. Da família Krupp sobreviveram esses cinco membros e morreram dois: desde que estive com Alfried, em 1953, perdeu a mãe e a primeira mulher. Sua célebre mãe, Bertha Krupp, faleceu aos setenta e um anos em Essen, no mês de setembro de 1957. A segunda mulher, Vera von Hohen- feldt Langer Wisbar Knauer Krupp, naturalizada americana, abandonou-o em 1956. Essa notícia me causou surpresa ao recordar-me de como Vera Krupp me parecera leal ao marido durante nossa entrevista. Reconheço hoje o que então me passou despercebido: a presença dela na sala durante a nossa conversa não fora motivada pela dependência social que pudesse existir da parte do marido em relação à mulher, mas sim porque ele desejara ter na sala uma cidadã americana a seu lado. Krupp encontra-se de novo só, e talvez seja esse o seu destino. Seu primeiro casamento, em 1937, foi com Anne- liese Bahr, filha de um industrial alemão. Já era divorciada e o pai de Krupp não aprovou o enlace. Em obediência ao pai, Alfried divorciou-se em 1941. Quando se casou pela segunda vez, em 1952, era mais independente. Ouvi dizer que Vera não tardou a considerar Essen uma cidade enfadonha e acanhada, ressentia-se da influência da sogra, achava que o marido dava importância demais às suas fábricas e, depois de quatro anos, seus advogados comunicaram ao marido que ela pedira o divórcio. Segundo afirma Norbert Muhlen, um dos biógrafos de Krupp, “houve quem afirmasse que ela estava em condições de revelar alguns elementos das relações do marido com o estrangeiro”. Seja como for, fez-se um acordo a portas fechadas — e o biógrafo de Krupp declara que ele paga a Vera uma pensão de cinco milhões de dólares por ano. Desde então, Vera Krupp, agora independente, aparece de vez em quando nas mais frívolas colunas sociais, acompanhada de elementos masculinos de alta categoria, nas estâncias famosas e nos grupos íntimos da alta sociedade. Uma vez que as Indústrias Krupp nunca foram uma sociedade de capital aberto, nem sequer Huma sociedade de responsabilidade limitada, mas propriedade de um só homem, é natural perguntar-se quem são os herdeiros de Krupp. O herdeiro direto é seu filho, um belo rapaz, chamado Arndt, nascido em
1940. Arndt Krupp foi educado na Suíça, frequentou a Universidade Albert Ludwig, em Frei- burg, e mais tarde estudou administração de empresas na Universidade de Colônia. Quando começou a frequentar assiduamente os clubes noturnos, sempre rodeado de moças, despacharam-no para o Japão, em 1959, para uma companhia subsidiária da Krupp. Ultimamente tem trabalhado por conta do pai em São Paulo, no Brasil. Hoje, Krupp encontra-se sozinho à frente daquilo que H. G. Wells denominava “Kruppinismo, aquele sórdido e tremendo negócio de morte”. Talvez o único amor de Krupp, o que ele considera sua única família, sejam os cem mil operários, para os quais ele usa de um paternalismo de cunho liberal, e que, em sinal de reconhecimento, nunca fizeram uma greve. Dedicam-lhe uma devoção e uma lealdade completas. São capazes de defendê-lo até a morte contra todos os inimigos e fazem alarde de sua magnanimidade, tanto no presente como no passado. Tal como Manchester observou em 1964: “Eles teimam em dizer que Krupp foi preso unicamente por ter fabricado espingardas; o fato de a empresa ter também fornecido chicotes e cassetetes de aço para conduzir um rebanho de escravos pelas ruas de Essen ficou no silêncio”. Mas Alfried Krupp não esqueceu. Senti-me satisfeito ao ler outro dia que Krupp resolvera indenizar os trabalhadores judeus que ainda viviam e haviam trabalhado nas suas oficinas. Esse gesto afigura-se-me um pouco tardio, mas traduz bem o seu caráter. Com ele prova ser bem o filho de seu pai: um magnata que afirmava não haver nenhum homem que se não pudesse comprar com dinheiro — nem sequer um vencido, nem sequer um morto.
16 As sete celas secretas Há algumas semanas, um táxi percorria aos solavancos o calçamento irregular da Wilhelmstrasse, nos arredores de Berlim, e parava em frente dos altos muros de tijolo vermelho da prisão mais secreta do mundo. O motorista virou-se e disse: — Hier ist was Sie suchen, mein Herr ("Aqui está o que o senhor procura." Em alemão no original - N. do E.) A prisão Spandau! O repórter americano que seguia no banco de trás saltou do táxi: — Danke schoen ("Obrigado.” Em alemão no original - N. do E.). Espere uns minutos. Quero dar uma olhada nisto. Ao atravessar a rua, o americano viu duas enormes casas de tijolo à sua frente, do outro lado da rua estreita. Eram a residência do diretor, das sentinelas e dos guardas da União Soviética, da Grã-Bretanha, da França e dos Estados Unidos, as quatro grandes potências encarregadas de dirigir a incrível prisão alemã. Por detrás das casas, ficava a cadeia, com a porta de aço azulada e os muros medievais de seis metros de altura. Resolvido a observar tudo mais de perto, o repórter americano caminhou em torno de uma das casernas e dirigiu-se à parede de Spandau. Deparou com um aviso escrito em inglês e alemão: PERIGO — NÃO SE APROXIME. Os GUARDAS TÊM ORDEM PARA DISPARAR. Entre o aviso e a prisão, avistou uma série de obstáculos que fariam Alcatraz e a ilha do Diabo parecerem relativamente hospitaleiras. Na frente, havia um grande rolo de arame farpado em espiral, com seus três metros de altura. Atrás erguia-se uma barreira perversamente moderna, eletrificada, sobre uma base de concreto. Mais além, uma outra cerca de arame em espiral, depois uma zona de três metros de grama verde e, finalmente, a sólida e gigantesca muralha cor de carmesim que rodeia os edifícios de Spandau. No cimo do edifício, sobre uma plataforma com dois holofotes e um cubículo de três largas janelas, encontrava-se um soldado inglês de rosto severo, espingarda a tiracolo. Ao estudar os arredores do enorme bloco quadrado da prisão, o repórter americano contou seis desses poleiros de sentinela no alto dos muros. Anotou, nas costas de um envelope, uma observação sobre esta e outras medidas de segurança. Depois, enfiando o envelope no bolso, sacou da máquina fotográfica e ergueu-a até os olhos. Nesse momento, o telhado caiu-lhe sobre a cabeça. Pelo menos foi a impressão que teve. Numa fração de segundo, toda a área se encheu de vida, uma vida de animais ferozes, quero dizer. Dois homens enormes e furibundos, um deles à paisana, outro de farda azul, saíram correndo da prisão, diretamente sobre ele. Outros dois, ainda maiores e mais furiosos, saltaram de cima do muro do lado. A impressão, declarou mais tarde o repórter, era a de ter sido pisado por uma manada de rinocerontes. Seguiu-se um breve silêncio, em que se lutava pela posse da máquina fotográfica. Os dois que haviam saído da prisão atiraram-se com unhas e dentes sobre o americano, enquanto os outros dois observavam a cena com ar severo.
— Você se meteu em confusão, rapaz — declarou o da farda azul. — Isso é zona de segurança. Zona secreta! — Não tem nada escrito naquele aviso que proíba observar ou tirar fotografias. O guarda não estava interessado em pormenores técnicos. — Se tivesse dado mais dois passos levaria um tiro. Qual é a sua nacionalidade? Que faz por aqui? O americano estendeu-lhe o passaporte verde e as licenças tiradas em Berlim, três das quais escritas em inglês e uma em russo. Seguiram-se quinze minutos de discussão. As licenças foram analisadas e a máquina confiscada. — Foi uma sorte sermos americanos — declarou o guarda. — Os outros não o teriam deixado ir embora. Olhe para aqueles ali. Os que saíram da casa. São dois dos oito guardas russos que estão aqui permanentemente. Viram-no logo de uma janela do primeiro andar. Avisaram que você estava tomando notas. Ao mesmo tempo, a sentinela britânica telefonou informando que você parecia suspeito. Escute, camarada, isto é uma prisão a cargo de quatro potências. Lá dentro temos os maiores criminosos do mundo. As cautelas nunca são demasiadas. Já ouviu falar em Spandau? Nada de fotografias, nada de histórias, nada de estranhos! Nada! Entendeu? Aqueles russos ali estão observando tudo, sabem que você é americano, e nós teremos que dar explicações na reunião dos diretores representantes dos quatro países. Vá andando enquanto é tempo. Na semana passada, um jornalista alemão fez o mesmo. Ainda está lá dentro. O americano bateu prudentemente em retirada. Quando olhou para trás, ainda viu os dois guardas russos discutindo com os americanos. Posso jurar que é verídico o ocorrido a esse americano em Spandau — porque esse americano era eu. Mas o que me sucedeu, soube mais tarde, era apenas uma repetição do que acontecera muitas vezes a outros visitantes curiosos. Nos dois anos e meio depois que Spandau foi transformada em prisão internacional, pelo menos duas dúzias de jornalistas indiscretos de todas as nacionalidades foram presos, maltratados ou expulsos por terem ousado meter o nariz nas vizinhanças das paredes de tijolo vermelho. A despeito disso, vários jornais com imaginação fértil afirmaram que seus repórteres estiveram dentro de Spandau. Nenhuma dessas afirmações pode ser considerada verídica, pois nenhum estranho, jornalista ou bombeiro, viu o interior da prisão de Spandau, em Berlim, desde o dia 1° de junho de 1947. Por que toda essa segurança? Por que tanto segredo? A resposta está na qualidade dos criminosos ali encarcerados. Dos vinte e dois nazistas julgados em Nuremberg, apenas sete escaparam da pena de morte. Esses sete estão ainda em Spandau. O mais infame do grupo era Rudolf Hess, de cinquenta e três anos, representante pessoal de Hitler, que foi condenado à prisão perpétua. Os outros dois são Erich Raeder, almirante nazista, e Walther Funk, de cinquenta e nove anos, diretor do Reichsbank. Os dois mais novos e saudáveis prisioneiros de Spandau, os que maiores probabilidades têm de sobreviver à pena de vinte anos, são: Albert Speer, de quarenta e dois anos, arquiteto, que foi ministro dos Armamentos, e Baldur von Schirach, jovem dirigente que escrevia poemas para Hitler. Os dois restantes são Constantin von Neurath, de sessenta e seis anos, outrora ministro dos Negócios Estrangeiros de Hitler, que está cumprindo uma pena de cinquenta anos, e Karl Doe- nitz, de cinquenta e oito anos, chefe da
armada nazista e que sucedeu a Hitler durante sete dias no governo da Alemanha, depois que o Fuehrer pereceu no seu abrigo. Foi condenado a apenas dez anos. Esses sete homens estão guardados de maneira fantástica, não porque possam fugir, mas pela eventualidade de serem libertados à força. Seria quase impossível que Doe- nitz, por exemplo, conseguisse sair da sua cela, passando em frente de trezentos guardas ou coisa parecida, soldados e generais encarregados de mantê-lo ali, que conseguisse pular por cima do muro e vencer os obstáculos e alcançar a liberdade. Mas é possível que, entre os sessenta milhões de alemães que escaparam à guerra, alguns dos quais adoram esses homens, se encontrem algumas centenas de fanáticos armados que numa noite tentem assaltar Spandau. Uma das razões para todo esse esquema de segurança que rodeia Spandau é o fato de as quatro potências aliadas não quererem que a prisão se torne uma espécie de Meca para os fascistas fanáticos. Um oficial americano, falando comigo certa noite num bar de Berlim, explicava-me: — Queremos que os alemães se esqueçam desses canalhas. Não desejamos que fiquem recordando aqueles sete patifes. Procuramos evitar que se transformem em mártires vivos. Na realidade foi por essa razão que Spandau, situada por assim dizer fora de Berlim, foi a prisão escolhida, entre tantas outras. Ali há menos movimento e a zona é pouco habitada. Quando as forças aliadas andavam à procura de uma prisão, pensaram no abrigo de concreto e aço da Torre Flack ou no Tiergarten Bunker, em Berlim. Essa torre, edi- ficada para abrigar trinta mil pessoas, foi o último reduto onde os ss se refugiaram quando do avanço das tropas soviéticas. Era um abrigo perfeito, tão perfeito, que, quando os ingleses tentaram recentemente fazê-la ir pelos ares com os mais modernos explosivos, conseguiram apenas abalá-la. A despeito de sua segurança, essa torre não convinha, porque muitos berlinenses tinham de passar por lá na ida e na volta do trabalho. — Milhares de alemães circulariam por ali a toda a pressa diariamente, pensando: “Estão ali dentro sete grandes homens. Havemos de ter outros como eles, novos deuses, capazes de nos restituírem a dignidade e a prosperidade”. Não, não seria a melhor maneira de conseguir que os alemães se esquecessem deles. No entanto, inconscientemente, as quatro potências, enquanto mantêm Spandau isolada, com o fim de obrigar os alemães a esquecer seus antigos deuses, permitem ao mesmo tempo que os jornais, as revistas e os editores alemães tragam a lume repetidas histórias escritas por pessoas que privaram com Hitler. Ainda há pouco o Die Abendzeitung dizia aos seus leitores de Frankfurt: “Essas memórias ingênuas de criados e serventes, secretárias, amantes e motoristas acabam por nos dar a impressão de que Hitler não era tão mau assim; um pouco violento, mas muito generoso. Conduziu para a morte milhões de alemães, mas no fundo era um bom sujeito, que gostava de crianças e de flores. . . Esses editores contam com a estupidez do público, mas esquecem-se daqueles que aproveitam semelhantes escritos para levarem água ao seu moinho, os Bleibtreus (os que se mantiveram ‘verdadeiramente fiéis’ aos nazistas), que esperam uma nova oportunidade para perseguir o nosso povo”. Disseram-me que havia ainda outra justificativa para todo esse manto de segredo sobre Spandau, uma razão menos dramática do que as outras, mais prática, mas que poderá dar ensejo a um tremendo escândalo internacional.
Conforme declarou alguém das altas esferas, “não se trata só de pretendermos evitar que os alemães saibam o que se passa em Spandau. Queremos também que nosso povo lá longe o ignore. E pode acreditar que as quatro potências pensam todas da mesma maneira. Imagine o que um contribuinte na América pensaria do que estamos gastando aqui para manter esses sete prisioneiros nesta fantástica prisão!” Certas fontes fidedignas revelaram-me que essa prisão custa aos cinco governos — os quatro aliados e ainda o da Alemanha — precisamente duzentos e cinquenta e dois mil dólares por ano. Uma vez que se encontram apenas sete prisioneiros naquela gigantesca prisão, isso significa que trinta e seis mil dólares são gastos anualmente para alimentar, alojar e guardar cada um dos sete nazistas. Isso é mais do que cento e cinquenta vezes a despesa de um prisioneiro comum alemão. Da soma total, o governo alemão de Berlim é quem paga a maior parte, quatrocentos e cinquenta mil marcos alemães, cerca de cento e trinta e cinco mil dólares. A seguir, vêm aos Estados Unidos, que contribuem com sessenta mil dólares. A Rússia, a Grã-Bretanha e a França arcam com pouco mais de vinte mil dólares cada uma. Os alemães lamentam-se amargamente por despenderem tão grande quantia. Como há pouco observava uma revista de Berlim, a Insulaner, “a administração alemã não tem autonomia para contratar ou despedir funcionários em Spandau. Limita-se a pagar”. Os administradores alemães afirmam que muito do seu dinheiro vai por água abaixo com a instalação luxuosa dos guardas das quatro potências e com sua requintada alimentação. Essas insinuações são inteiramente falsas. Na realidade, o que eles querem é reduzir o seu quinhão nas despesas em cerca de trinta e cinco mil dólares, e para tanto têm-se atrasado no fornecimento de certos produtos a Spandau, desde material de escritório até papel higiênico, artigos que os americanos têm fornecido secretamente à custa do Tio Sam. Mas a verdadeira causa dessa despesa astronômica não é a exploração nem sequer a má administração, mas antes o simples fato de Spandau ser uma espécie de Hotel da Confusão. Construída para abrigar cento e trinta e dois prisioneiros, tinha lá dentro seiscentos antes de ser requisitada pelas quatro potências. Depois de esvaziada e reformada para receber os criminosos de guerra nazistas, agora a prisão que tinha seiscentos homens encerra apenas sete. Das cento e trinta e duas celas, cento e vinte e cinco estão vazias. E, uma vez que as quatro potências que a dirigem nem sempre estão de acordo, as despesas dobraram. Há, por exemplo, quatro cozinhas em lugar de uma, assim como quatro casernas quando podia haver também uma só. Não admira que as potências queiram conservar Spandau fora do conhecimento público. Como resultado dessa supersegurança, muito poucos americanos sabem que Spandau é a única instituição governada pelas quatro potências em toda a Alemanha. Porque o fato de os soviéticos terem deixado de se reunir com os Aliados, na Alemanha, para discutir problemas comuns, obriga os diretores russos a encontrarem-se semanalmente com os representantes das potências ocidentais. Nesses encontros semanais, os russos têm lutado para que os nazistas sejam mantidos em regime de prisão celular, do que discordaram os britânicos; quiseram impedir qualquer culto religioso dentro da prisão, no que foram vencidos pelos americanos; e lutaram contra a publicidade em volta da prisão, e nesse ponto tiveram a oposição dos franceses. No entanto, apesar de ninguém ter licença de entrar em Spandau, as informações vão transpirando. Este relato, talvez o mais completo que veio a
público desde que a prisão se tornou tão secreta, foi obtido em primeira mão. De que forma? Esse é o grande segredo do autor, por enquanto. O destino dessa prisão foi resolvido um mês antes de terminarem os julgamentos de Nuremberg. A 7 de setembro de 1946, o Conselho de Controle Aliado emitiu o Regulamento 35, muitíssimo confidencial. O quinto parágrafo desse regulamento ordenava que os quatro elementos aliados da Kommandatura da área de Berlim, que era o equivalente na cidade ao Conselho-Geral de Controle, descobrissem e equipassem em Berlim uma prisão conveniente “para todas as pessoas condenadas pelo Tribunal de Nuremberg”. Calculava-se que seriam condenadas umas cem pessoas nos julgamentos das quatro potências. Após intensa busca, os investigadores descobriram Spandau, situada no centro do setor britânico de Berlim. Construída em 1881, Spandau fora prisão militar para soldados alemães julgados em conselho de guerra. Durante a Primeira Guerra Mundial, o cáiser convertera-a em penitenciária civil e, quando os alemães perderam a guerra, os prisioneiros fugiram e saíram em tumulto para a rua; Durante o mandato de Hitler, a prisão foi apelidada de “Rote Schloss", ou seja, “Castelo Vermelho”, e utilizada para abrigar presos políticos antes de serem conduzidos para campos de concentração. Quando os representantes das quatro potências foram visitar o edifício, em 1946, havia lá dentro seiscentos prisioneiros comuns, cinco em cada cela destinada apenas a um homem. No entanto, Spandau parecia perfeita para sua nova finalidade. Possuía o número de celas necessárias. Fora construída com toda a segurança. Ficava isolada. A Kommandatura concordou sem hesitar com a escolha. A fim de se garantir a segurança, Spandau sofreu uma remodelação completa. Os seiscentos criminosos foram evacuados. Sete casas que rodeavam o edifício foram demolidas, ergueram-se barreiras de arame farpado e outras eletrificadas, as portas e as celas foram reforçadas, e a velha guilhotina nazista e as forcas foram retiradas. Entretanto, em Nuremberg, as coisas corriam mal. O primeiro julgamento, antes do Tribunal Militar Internacional, terminou com uma violenta discussão. O juiz soviético I. J. Nikitchenko discordou da absolvição de Schacht, de Von Papen e de Von Fritsch. Além disso, protestou contra a prisão perpétua de Rudolf Hess. “Levando em consideração que, dentro da Alemanha hitlerista, Hess era o terceiro homem depois de Hitler, e o papel preponderante que desempenhou nos crimes nazistas”, disse o juiz soviético, “sou de opinião que a única condenação aceitável será a morte”. E os russos retiraram-se de Nuremberg, afirmando que julgariam seus criminosos como bem entendessem e que os outros aliados fariam o mesmo. Em vista disso e contra toda a expectativa, esse julgamento de vinte e dois nazistas pelas quatro potências foi o primeiro e o único a efetuar-se naquelas bases. Spandau recebeu ordens para se preparar para receber sete detidos em vez de cem. E, uma vez que se tratava dos únicos prisioneiros pertencentes às quatro potências, todas as precauções foram tomadas. A prisão principal, no centro de Spandau, tinha três andares. Acrescentaram-lhe um teto e emparedaram os outros dois andares. Sete das trinta celas do primeiro andar foram equipadas com portas de aço, cada qual dotada de uma vigia à altura dos olhos. Do interior foram removidas as instalações elétricas e os vidros. Em janeiro de 1947 Spandau estava pronta para receber os sete prisioneiros. No entanto, manteve-se ainda vazia durante seis meses, enquanto as quatro potências discutiam sobre a maneira de dirigir a prisão e de tratar os criminosos.
As quatro nações reunidas no quartel-general da Kom- mandatura, na Kaiserwerther Strasse, em Berlim, concordaram em princípio sobre os pormenores da administração e da proteção de Spandau. Assumiram o incômodo compromisso de fazer com que tudo o que dissesse respeito à prisão fosse inteiramente resolvido pelos quatro. Cada nação teria o seu diretor próprio, um militar, tendo às suas ordens um carcereiro e sete guardas civis. Esses quatro diretores, juntamente com os vinte e oito guardas, constituiriam o pessoal interno. Entretanto, a guarda exterior da prisão seria substituída mensalmente. No princípio de todos os meses, cada potência forneceria seis soldados armados, a fim de patrulhar a muralha de Spandau. Mas, embora tudo se passasse amigavelmente quanto aos problemas do pessoal aliado, a questão azedava-se no quartel-general da Kommandatura sempre que se falava em Hess e nos seus camaradas de prisão. Os russos nutriam particular má vontade contra Hess, provavelmente por se lembrarem de que, em 1937, ele conspirara com Trótski para derrubar Stálin. — Os russos discordaram de nós desde o princípio em quase todos os pontos — revelou-me um membro da Kommandatura. — O mal reside na diferença de mentalidade que há entre nós. Os russos tratam tudo com uma espécie de lógica eslava, pura e simples. No Regulamento 35 havia uma cláusula segundo a qual a prisão deveria ficar sob administração inteiramente quadrilateral. Veja como essa cláusula era interpretada. Faça de conta que o Almirante Raeder queria fazer a barba. Para os americanos, as quatro potências escolheriam um homem para barbear o almirante. Para os russos, porém “inteiramente quadrilateral” queria dizer que seria um americano espalhando o sabão na barba do almirante, um inglês usando a navalha, um francês passando o talco e um russo enxugandoo com uma toalha úmida. Era isso a “administração inteiramente quadrilateral de Spandau”! As maiores discussões das quatro potências giravam em torno da prisão celular, do trabalho comum, da religião, da licença para conversar e do exercício físico. Os ingleses, com a mania de serem justos, pretendiam que Hess e seus companheiros fossem tratados como criminosos comuns, o que significava prisão em celas gradeadas, mas com licença para trabalhar dentro da prisão, fazer exercício juntos, ir juntos à capela e falar uns com os outros. Os russos opunhamse terminantemente a essas concessões, afirmando que os sete prisioneiros não eram criminosos de guerra comuns, e que deviam ser mantidos à parte, em silêncio, inteiramente sob regime de prisão celular. Quando se debateu a questão do exercício ao ar livre, o representante soviético objetou que eles podiam muito bem fazer exercício dentro das celas. Os ingleses não eram dessa opinião. Quanto à religião, os americanos declaravam que os prisioneiros alemães em todas as cadeias tinham licença para assistir às cerimônias religiosas aos sábados e domingos. Respondendo a isso, o general russo ergueu-se e disse: “Quer então fornecer-lhes uma religião ao domingo? Muito bem. E qual é essa religião? Diga-me, qual é o deus deles? O único que conhecem é o deus da guerra. Será capaz de encontrar um padre que queira representar o deus da guerra?” Quanto à licença para conversar dentro dos muros de Spandau, os ingleses propunham que, se Funk quisesse discursar no jardim em voz alta para os companheiros, isso lhe fosse permitido. Os russos retorquiam que só o fato de ele abrir a boca já merecia castigo. Finalmente, nesse caso como em muitos outros, os franceses e americanos estabeleceram um compromisso. O silêncio não seria rigoroso nem completa a liberdade de falar. Funk conversaria com Hess
sobre os trabalhos que estivessem executando, mas não de outros assuntos. Funk poderia dizer-lhe: “Ajude-me a levar este carrinho de mão”. Mas nunca: “Diga-me, Rudolf, o que é que você e o Fuehrer disseram um ao outro antes de você partir para a Escócia?” Ao cabo de seis meses, estava instituído o regulamento e, a 18 de julho de 1947, a RAF transportou os sete nazistas de Nuremberg para o aeroporto de Gatow, perto de Berlim. Dali, escoltados por jipes da infantaria, percorreram os seis quilômetros que os separavam de Spandau. Desde então, os quatro diretores de Spandau reúnem- se todas as semanas em volta de uma mesa redonda. Enquanto os intérpretes traduzem as conversas e os secretários registram todas as palavras para depois as transmitirem a Moscou, Londres, Paris e Washington, aqueles quatro homens continuam a rever e a dirigir a vida de Spandau em todos os seus aspectos. — Estão sempre em desacordo, claro — afirmou-me uma testemunha das reuniões. — Trata-se de quatro personalidades diferentes. O Major Roger Smith, que foi ajudante do General Frank Lee Howley em Berlim, é um americanp vivo e falador, com dezenove anos de exército. O diretor britânico vem da ilha de Guernsey. O francês é de Metz. O diretor russo veio de uma terra na Rússia cujo nome é impossível pronunciar. As discussões são inevitáveis. Tanto os antecedentes como a educação de todos eles diferem muito. O americano discute tanto com o russo como com o francês. Por exemplo: imaginemos quatro homens adultos. Um quer ir a um jogo de críquete e teima em que os outros o acompanhem. Dois querem ir ver mulheres nuas e o quarto deseja tomar uma bebedeira. Como será possível arranjar um divertimento que agrade aos quatro? Nada fácil. Mas é o que os quatro diretores da prisão estão tentando fazer. Neste momento, discute-se muito a questão das memórias. Dois dos prisioneiros querem passar o tempo livre escrevendo suas memórias. O russo declara que o resultado seriam cópias do Minha luta. Dois dos diretores ocidentais acham que os nazistas deviam ter licença para escrever, desde que as quatro potências pudessem depois censurar seus escritos. A discordância foi apresentada à Kommandatu- ra de Berlim, que presentemente só se compõe de três potências, e aos militares russos da zona de Berlim Oriental. No entanto, não há desacordo de qualquer espécie entre o pessoal das quatro potências que guarda o interior de Spandau. Os guardas russos e americanos, quando se reúnem conversando em alemão, que é a língua oficial da cadeia, nunca discutem os méritos do capitalismo ou do comunismo ou as respectivas bombas atômicas. — Damo-nos extraordinariamente bem com os vermelhos — afirmava há pouco um dos guardas a um amigo. — Mas, quando lá em cima vêem que eles estão se entendendo bem conosco, mandam-nos embora e chamam outros. Em Spandau devia haver trinta e dois guardas, incluindo os quatro carcereiros, mas a verdade é que há apenas vinte e oito. A Rússia, a Grã-Bretanha e a França fornecem seus oito homens. Só a América tem enviado apenas quatro. — Porque há poucos homens que queiram ir para lá — declarou um oficial americano. — Os guardas ficam fartos de estar lá fechados. Acabam se aborrecendo, perdem as ambições, tornam-se misantropos, mórbidos, caem no mesmo estado em que está o próprio Rudolf Hess. Os quatro guardas americanos ganham três mil seiscentos e dezenove
dólares por ano e devem, como condição mínima, ter servido o exército pelo menos por dois anos, ou ter pertencido à marinha, servido aos fuzileiros navais, à guarda costeira ou à polícia durante três. Tal como os outros colegas das diferentes nações, entendem e falam corretamente o alemão, embora sejam proibidos de conversar com os prisioneiros, a não ser para lhes transmitir ordens. Todos os guardas devem ser civis. Mas, segundo uma informação lá de dentro, parece que os oito guardas e o carcereiro soviético são, na realidade, soldados do Exército Vermelho. De todos, os ingleses são os que mais prática têm do trabalho nas prisões, e os americanos os mais ignorantes a esse respetio. Sete dos guardas britânicos foram companheiros de trabalho durante a guerra numa prisão de Hong Kong. Essa guarda interior internacional, armada com revólveres calibre 45 ou equivalentes, envergando uma farda especial azul encomendada pelo governo alemão, cumpre um horário muito rígido. Dois guardas, sempre de nacionalidades diversas, patrulham o bloco das celas do primeiro andar, onde se encontram os sete nazistas. De três em três minutos, um desses guardas deve olhar para dentro das celas para ver o que seus ocupantes estão fazendo. Embora até hoje não tenha havido qualquer tentativa de suicídio, os guardas continuam a evitar qualquer risco. Concordaram, porém, em que a obrigação de espreitar de três em três minutos era muito cansativa, e agora só o fazem de quinze em quinze minutos. Os guardas trabalham em equipes de quatro, utilizando um esquema que é complexo mas eficiente. Enquanto dois patrulham o bloco das celas, outro dorme no austero gabinete do carcereiro, e o quarto vigia as saídas e entradas do resto do pessoal. Os guardas solteiros estão instalados nos edifícios de tijolos em frente à prisão; os casados possuem apartamentos requisitados para eles, perto do centro de Berlim. A comida da prisão muda todos os meses, porque, no princípio de cada mês, quando o plantão da guarda exterior é substituído, o novo diretor traz consigo a sua messe. O pessoal permanente das cozinhas, que inclui alguns holandeses, um tcheco, um húngaro, um finlandês e um polaco, mas nenhum alemão, está apto a fazer de tudo. Durante o mês dos russos, a maioria dos oficiais bebem vodca, no mês dos ingleses bebem gim, no dos franceses, vinho ou conhaque, e no dos americanos, Coca Cola ou uísque. A comida russa, constituída sobretudo por borch (Sopa de beterraba, acompanhada em geral de creme de leite - N. do T.) e carne de porco, é a que menos agrada. A comida inglesa, feita de carne assada, rim, costeletas de carneiro, é tida como a menos abundante. Dizem ser a francesa a mais saborosa e a americana a mais saudável. Os sete prisioneiros raramente comem da mesma comida que os guardas. Suas refeições são preparadas numa cozinha especial anexa ao bloco das celas. Cada um deles absorve mil seiscentas e oitenta calorias diárias, o mesmo que dois em cada três habitantes de Berlim. O governo de Berlim paga com relutância a alimentação dos prisioneiros. A maior parte dela vem das cantinas do exército americano, por motivos de segurança, para se evitarem por exemplo os envenenamentos. Às vezes as refeições são complementadas com os restos da comida dos guardas. Cada semana um dos presos cuida da cozinha. Enquanto o carcereiro faz a revista (por vezes chega a olhar entre as fatias de pão à procura de veneno ou de qualquer mensagem), os prisioneiros são soltos, um de cada vez. Seguem sozinhos até o fim do bloco, recebem a comida num prato de lata, dãolhes uma colher (não são permitidos garfos nem facas) e voltam para comer sozinhos, em silêncio, com a porta fechada. — As porções de comida são geralmente iguais — disse-me um observador.
— E é preferível assim. Bless sabe muito bem que, embora possa estar aborrecido com Raeder, não deve diminuir sua ração de comida, porque, se o fizer, Raeder não se esquecerá e irá à forra quando for sua vez de cuidar da cozinha. O único a quem dão uma ração especial é Doenitz. Desde que um médico francês declarou que estava perdendo peso, passaram a fornecer-lhe mais quinhentos e dez gramas de manteiga de quinze em quinze dias. Quando esse fato transpirou, o jornal de Berlim Neue Zeitung comentou amargamente: “Muitos alemães que estão aqui fora desejariam ter tanta fartura como Doenitz”. A lentidão com que as refeições são servidas faz com que os dois últimos presos encontrem sempre a comida fria quando voltam para as suas celas. A fim de evitar isso, os americanos propuseram um método mais rápido, mas os russos vetaram. Existem trinta celas no bloco principal. Vinte e três delas vazias. As portas são de aço, com uma pequena vigia à altura dos olhos. O mobiliário compõe-se de uma tarimba, como as do exército, uma pequena mesa e uma instalação sanitária. As paredes não têm janela. Foi autorizado aos prisioneiros colar nelas as fotografias dos seus familiares, bem como imagens piedosas de Jesus e Maria. Funk, tal como os companheiros, usa um barrete redondo e cinzento como as calças e o casaco. O calçado é de madeira e foi desenhado anos atrás por Albert Speer para os trabalhadores escravos do Reich. Certa vez, ao tentar caminhar depressa, Speer observou ironicamente para um dos guardas: “Se eu soubesse que viria a usá-los tinha-lhes posto um pouco mais de couro”. Só Doenitz tem licença de usar a roupa interior de seda, em virtude de sofrer de alergia cutânea. Nenhum dos prisioneiros usa cinto, por motivo evidente, mas sim suspensórios de elástico comum, os quais, pelo mesmo motivo, foram cortados ao meio e depois costurados de novo só com os pontos suficientes para segurarem as calças. Os prisioneiros levantam-se todas as manhãs às seis horas, vestem-se, lavam e esfregam as celas, depois despem- se e lavam-se. Uma vez por semana tomam banho quente, dois deles de cada vez, sob a vigilância de um guarda armado. Von Neurath é o único que não tem saúde suficiente para aguentar o chuveiro semanal. O barbeiro da cadeia, um alemão, vem todos os dias fazer a barba nos presos. Têm também uma visita médica diária. Uma vez por semana, dois deles lavam a roupa dos sete companheiros. Depois do desjejum, começa um período de trabalho de nove horas. A atividade dos presos reparte-se entre o cultivo das batatas e o fabrico de envelopes e de sapatos de palha destinados ao consumo da população alemã. Speer parece preferir o trabalho ao ar livre. Nos dias quentes, despe-se até a cintura antes de começar a cavar e a plantar; é o único que apresenta a pele queimada pelo sol. Foi na horta que aconteceu aquela cena depois contada e recontada pela imprensa alemã. Rudolf Hess que, tal como Doenitz, tem momentos de bom humor, trabalhava certa manhã na horta quando um guarda se aproximou com uma mangueira e lhe disse: — Tome, regue as plantas. Hess olhou, sorriu, e respondeu: — Dê-a ao Almirante Doenitz. Isso de água é com ele. Embora todos os prisioneiros sempre tenham se mostrado dóceis, existem penas severas para quem sair fora da linha. Segundo o acordo das quatro potências sobre Spandau, “os castigos para os delitos cometidos na cadeia podem
ir do cancelamento dos privilégios até a ausência de luz nas celas durante um período prolongável por duas semanas, substituição da comida por pão e água, privação da mobília, do vestuário e, em casos especiais, o acorrenta- mento”. Os privilégios que os sete reclusos gozam são, em primeiro lugar, licença para fumar, para escrever cartas, para ler durante as duas horas do recreio da tarde, entre o jantar e o apagar das luzes, às dez horas. Cada um recebe um pacote de tabaco por semana, mas só pode fumar no fim das refeições e durante o descanso do fim do jantar. Hess gasta grande parte desse tempo passeando de um lado para outro e acontece-lhe por vezes começar a marchar em passo de ganso, como se estivesse maluco. Ou então senta-se e fica durante uma hora olhando para a parede. É o único dos sete que fala de Hitler, referindo-se a ele como Fuehrer. Funk, completamente careca, aproveita as horas de solidão na cela para chorar suas mágoas ou então assobiar músicas de jazz enquanto bate o compasso no banco de madeira. A maioria dos outros dedica os serões à leitura. Uma das celas desocupadas foi convertida em biblioteca, dispondo de várias prateleiras de livros cuidadosamente escolhidos. O bibliotecário é o Almirante Raeder, um sujeito calmo e frio, dotado de um temperamento até certo ponto semelhante ao das solteironas. Todos os volumes, escritos em alemão, são obras clássicas ou romances comuns. Figuram ali Goethe, Shakespeare, Schiller e Mark Twain. Nada que se refira à guerra moderna ou à política européia. Certa vez, por acidente, veio parar na biblioteca uma história da Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905, que dramatizava a derrota da Rússia. Antes de qualquer dos nazistas ter tempo de ir buscar o livro, os soviéticos descobriram-no e destruíram-no. Speer lê todos os livros que se relacionam com arquitetura, Von Neurath lê e relê tudo quanto aparece sobre mineralogia, e Doenitz prefere a poesia inglesa. Von Schi- rach é, porém, o maior rato de biblioteca de todos. Prefere autores franceses, tais como o poeta Francis Jammes. Certo dia em que estava mais expansivo, Von Schirach confessou ao psiquiatra da prisão que fora a leitura que o desviara e que esperava ser de novo trazido por ela ao bom caminho. Declarava terem sido os artigos de Henry Ford sobre o “Eterno judeu” e o “Protocolo dos filhos de Sião”, lidos na juventude, que o haviam ajudado a tornar-se anti-semita e nazista, e que só depois do Julgamento de Nuremberg viera a saber que há muito Henry Ford mudara de opinião e que o “Protocolo” era uma fraude. Nenhum dos prisioneiros tem licença de ler jornais alemães ou revistas ou de escutar rádio. O único periódico que lhes permitem ler é um semanário religioso, impresso na Alemanha, que o padre francês lhes entrega aos sábados. As notícias do mundo exterior não devem entrar em Spandau. No entanto, certa tarde, Von Schirach voltou-se para um dos guardas e perguntou: “Diga-me, quanto tempo vai durar o corredor aéreo para Berlim?” De outra vez um guarda francês estava para ir embora. Na sua última manhã de serviço, todos os prisioneiros vieram apertar-lhe a mão e despedir-se. Como é que Von Schirach sabia do corredor aéreo? E como é que os prisioneiros tiveram conhecimento da partida do guarda? Provavelmente por terem ouvido as conversas dos soldados das quatro potências que conversam em alemão em frente às celas, à noite. . . Cada prisioneiro tem licença para escrever uma carta por mês, desde que não exceda a quatro páginas. A correspondência é rigorosamente censurada pelas quatro potências. Podem igualmente receber uma carta por mês, sendo no entanto permitida a entrada de cartas de advogados referentes a vendas e assuntos de família ou julgamentos locais. No ano passado, o advogado de Hess escreveu-lhe dizendo que ia tentar obter a revisão da sentença dele (baseando-se no fato de os
tribunais que julgaram os japoneses criminosos de guerra terem declarado que as atividades bélicas anteriores a 1939 não constituíam crime). Por vezes, os reclusos recebem presentes. A família de um deles enviou- lhe uma caixa com doces, tabaco e sabonetes. Os diretores jogaram fora os doces, mas guardaram o tabaco e os sabonetes até a época da distribuição mensal. Nessa altura, entregaram o tabaco e os sabonetes ao prisioneiro em lugar do fornecimento mensal da prisão. Embora os russos se oponham terminantemente a isso, cada prisioneiro recebe uma visita por mês. Quando se trata de família, uma visita pode significar várias pessoas. Todos os sete prisioneiros têm ainda parentes: Von Schirach, a mulher (Henny Hoffmann, filha do fotógrafo de Hitler) e três filhos jovens; Raeder também tem mulher, que fugiu da Rússia há pouco tempo; a mulher de Hess tem quarenta e nove anos, chama-se Ilse e foi há pouco absolvida num tribunal de desnazificação em Munique, embora tivesse afirmado aos juizes que Himmler era “um bom homem”. Quando a mulher de um dos prisioneiros chega a Spandau, toca uma campainha e anuncia-se através de uma pequena abertura gradeada, situada na porta da frente. Um dos guardas internos vem recebê-la. Ela é identificada e revistada, e dois guardas levam-na através de um terreno descoberto até a cadeia. Do gabinete do carcereiro outro guarda escolta-a até novo compartimento, onde está o marido. O encontro nada tem de privado. Estão presentes representantes da Rússia, da França, da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos. Todos compreendem o alemão e todos tomam notas estenografadas da conversa. Aos sábados, um padre francês, capelão do exército, vem a Spandau celebrar o serviço religioso. Dos sete prisioneiros, seis se apresentam à capela. Apenas Hess se recusa a comparecer. “Já não quero nada com a religião”, declarou ele há pouco ao pastor. Durante os ofícios protestantes, cinco cantam, enquanto Funk os acompanha ao órgão. Os prisioneiros podem receber a visita do pastor durante a semana, mas apenas Von Neurath se aproveita desse privilégio. Todos os feriados oficiais da Alemanha são respeitados em Spandau, sendo o mais solene de todos o dia de Natal. No próximo Natal todos irão cantar hinos na cela que lhes serve de capela e comerão uma fatia de bolo, depois das batatas guisadas e do pão. — Mas não se deixe comover por esse quadro — resmungou um dos administradores conversando comigo. — Lembre-se antes dos Natais que eles celebraram disparando contra os americanos na Batalha de Bulge e fazendo fogueiras onde queimavam mulheres e crianças na Polônia e na Tchecoslováquia. Só queria saber quantas viúvas e órfãos não cantarão hinos neste Natal por culpa deles. Walther Funk costuma lamentar-se de que outrora foi banqueiro. Claro! Era ele quem tirava os dentes de ouro das bocas dos franceses, dos ingleses e dos russos assassinados nos subterrâneos do Reichsbank. Von Neurath finge que foi apenas um amável diplomata. Como no tempo em que era protetor da Tchecoslováquia. Então já nos esquecemos de Lidice? E Hess? Faz-se passar por um louco. Mas foi ele quem escreveu Minha luta enquanto Hitler ditava, e era ele também quem fraturava com suas próprias mãos os crânios das crianças judias em Munique. Há milhões de mortos e de aleijados e de infelizes, neste Natal, por culpa desses sete miseráveis e de seus sequazes. Está bem que ganhem bolo de Natal, mas também conviria mostrar-lhes uns certos filmes, passados em Dachau, Belsen e Buchenwald. Na minha opinião, devíamos deixar apodrecer ali esses bandidos. Por quanto tempo permanecerão em Spandau? Os guardas afirmam que
apenas Albert Speer e Baldur von Schirach têm probabilidades de resistir e de sair em liberdade, depois de cumprirem a pena de dezessete anos. Quanto aos outros, são velhos e doentes. Von Neurath pouco durará. Erich Raeder esteve gravemente enfermo. Quando se receava o estrangulamento de uma hérnia de que sofria há vinte anos, os americanos quiseram levá-lo para um hospital americano, mas os russos opuseram-se. Por isso uma das celas foi transformada em hospital improvisado e Raeder foi submetido a uma operação que durou trinta minutos. Funk teve uma vez um ataque de hemorróidas com enormes perdas de sangue, do qual se salvou porque os guardas lhe doaram sangue para a transfusão. Rudolf Hess, nascido no Egito, e que antes de ser julgado em Nuremberg tentara por duas vezes suicidar-se, é, mentalmente, o mais enfermo de todos os sete. Já foi examinado por nove psiquiatras e todos concordam em que se trata de um caso de divisão de personalidade com mania de perseguição. Ainda não se convenceu de que a Alemanha perdeu a guerra. Julga que os guardas querem envenená-lo. Segundo Douglas M. Kelly, que passou cinco meses entre- vistandoo e aplicando-lhe testes, “Hess viverá sempre nas fronteiras da loucura”. Quando comuniquei essas opiniões a um americano que está todos os dias com Hess, ele riu e respondeu: “Diga a esses psiquiatras que eles são mais doidos do que Hess. Garanto-lhe que seu juízo é melhor do que o nosso”. No entanto, quero crer que as opiniões profissionais são talvez as mais verdadeiras. Em Berlim continua a discutir-se a possibilidade de se transferir os prisioneiros para uma prisão menor e mais econômica. O governo alemão defende a ideia de que os sete prisioneiros deviam ser internados numa cadeia qualquer de Berlim, juntamente com centenas de outros facínoras. Os diretores das quatro potências recusam-se a concordar com isso, temendo que os companheiros de prisão os assassinem ou então os ajudem a fugir. Receosas, porém, de que essa dispendiosa organização venha um dia a causar um escândalo, as quatro potências continuam a procurar uma prisão mais econômica. Até hoje nada encontraram. E como, ainda que se encontre, é indispensável que a Rússia, a França, a Inglaterra e os Estados Unidos concordem na escolha, é possível que nunca se saia disso. E Spandau continua a ser um gigantesco Castelo Vermelho, que custa duzentos e cinquenta e dois mil dólares por ano para manter presos os sete assassinos de multidões: é a prisão mais cara per capita, a mais incrível, a mais secreta e talvez, sem dúvida, a mais bem guardada que jamais existiu no mundo. O que aconteceu depois. . . Logo da primeira vez que soube os pormenores a respeito de Spandau, senti-me fascinado por aquela prisão tão segura, pela sua estranha administração, pelos seus prisioneiros, únicos no mundo. Quando me convenci de que não existia nenhuma história completa sobre ela, imediatamente a sugeri aos editores da revista Collier’s, que se mostraram entusiasmados. Em setembro de 1949, fui de trem de Paris para Berlim — trem este que é selado durante o percurso através da Alemanha Oriental — e fiquei alojado duas semanas no Centro da Imprensa Americana, nos arredores de Berlim. É quase tão difícil penetrar na história de Spandau como no interior da própria prisão. Havia alguns relatos publicados em diversas línguas, espalhados por vários jornais, e tive que lê-los todos. No entanto, parecia impossível conseguir informações em primeira mão. Quando me dirigi de táxi ao número 23 da Wilhelmstrasse para ver Spandau com meus próprios olhos, por pouco não fui preso e confiscaram-me a máquina fotográfica, como já contei. No entanto, aquela inesperada recepção, instigada pelos russos, teve para mim suas vantagens,
servindo-me de introdução à história. Um ou dois dias depois, um oficial de alta patente do exército dos Estados Unidos, relacionado com Spandau, encontrou-me no Centro da Imprensa e pediu-me desculpas pelos maus-tratos de que eu fora alvo, restituiu-me a máquina e declarou ainda que meu projeto lhe era simpático. Na sua opinião, os contribuintes alemães, que ajudavam a manter Spandau, tinham o direito de saber alguma coisa a seu respeito. Por intermédio desse oficial, travei conhecimento com outros indivíduos, um dos quais fora guarda em Spandau, outro era advogado e estava relacionado com a administração da cadeia, e através deles colhi muitas informações relativas ao interior da enorme casa de tijolos vermelhos. Servi-me ainda de outras fontes, alemãs e francesas, mas esses americanos podem considerar- se as principais. De regresso a Paris, escrevi “As sete celas secretas”, animado e satisfeito por saber que tinha uma história redigida com material nunca até ali utilizado pela imprensa internacional. Em outubro de 1949, a revista Collier’s comprou a minha narrativa. Aguardei com impaciência que fosse publicada. Esperei e tornei a esperar, mas ela não aparecia. O que acontecera? Um mês depois de ter adquirido minha história, e quando se preparavam para publicá-la, os editores da Collie’s ficaram desolados (como eu) ao saberem que um periódico rival estava publicando uma outra narrativa sobre o assunto. Quando essa história saiu, vimos que se tratava de um relato sucinto, escrito por um médico americano que estivera em Spandau por várias vezes e agora procurava tirar proveito da sua experiência. Como a Col- lier’s considerava a minha história muito mais desenvolvida, os editores decidiram publicá-la. Por qualquer razão, porém, nunca o fizeram. Agora, relendo o meu trabalho, verifiquei que podia publicá-lo enfim, porque — mesmo decorridos dezesseis anos — continuava a ser a narrativa mais completa sobre Spandau que jamais fora publicada. Áo procurar informar- me, hoje, sobre a administração, os guardas, os prisioneiros, descobri que poucas alterações se haviam verificado desde 1949. Apenas algumas sem importância quanto ao regulamento, mas isso apenas se devia ao fato de que aquela enorme Bastilha teutônica albergava hoje três nazistas em lugar de sete. Ao cabo de dezesseis anos, Spandau continua a ser administrada da mesma forma. As desavenças entre os representantes das quatro grandes potências não variaram também, mas raramente são graves. Pelo menos diz-se que os russos se mostram mais tratáveis do que nunca. O debate mais importante trava-se em torno de uma questão capital: os Estados Unidos, a França e a Inglaterra, apoiados pelo governo da Alemanha Ocidental, pretendem fechar Spandau e transferir os restantes prisioneiros para outra prisão alemã, de preferência menor. A Rússia, porém, recusa-se a fechar a prisão enquanto respirar lá dentro nem que seja um só criminoso nazista. Fora isso, tal como afirmou há pouco um correspondente americano, Spandau representa “um modelo de cooperação Leste-Oeste”. Em 1949, disseram-me que as quatro potências e o governo de Berlim Ocidental despendiam duzentos e cinquenta e dois mil dólares por ano para manter Spandau. No ano de 1956, fizeram-se vários cortes nas despesas, que permitiram baixar o orçamento para cento e sete mil dólares. Floje, a manutenção da cadeia custa por ano sessenta e seis mil dólares. No entanto, como fez notar o governo da Alemanha Ocidental, se os três prisioneiros restantes pudessem ser transferidos para uma prisão comum, não se gastaria com eles mais do que oitocentos dólares por ano. As outras modificações são ínfimas. Quando estive em Berlim, cada uma das quatro potências tinha de fornecer oito guardas para a prisão. Atualmente
fornece apenas cinco. Naquela altura, cada prisioneiro podia receber uma visita por mês durante quinze minutos, bem como escrever uma carta que não excedesse quatro páginas. Em 1952, essas concessões foram ampliadas e hoje cada prisioneiro recebe uma visita por mês, de trinta minutos em lugar de quinze, e quatro cartas em vez de uma. Informaram-me que Spandau continua a ser uma prisão severamente guardada, impenetrável, onde residem ainda cerca de trezentos civis e militares, sob o controle das quatro potências. Essa vigilância mantém-se porque essas potências, sobretudo a Rússia, continuam a recear que algum dia qualquer grupo político do exterior se lembre de tentar libertar pela força um dos prisioneiros nazistas. Para os russos, esse receio parece constituir uma obsessão permanente. Do pouco que consegui observar e apurar nas últimas visitas que fiz à Alemanha Ocidental, esses receios parecem- me infundados. Existem grupos fanáticos de antigos nazistas, é certo — velhos que sonham com as glórias passadas, e jovens que desejariam reintegrar a Alemanha na ideologia hitlerista —, mas duvido que haja muitos desses partidários capazes de arriscar a vida para libertar de Spandau uma decrépita figura histórica, sobretudo porque dois dos três habitantes da prisão em breve serão legalmente soltos. Ru- dolf Hess, que cumpre prisão perpétua, seria o único cativo que eles poderiam querer libertar, mas seu presente estado mental não merece uma ação dessa natureza. No entanto, os russos podem muito bem ter razão quando receiam uma conspiração para libertar os presos. De tempos em tempos, durante estes últimos dezesseis anos, apareceram provas e ouviram-se boatos provando que se estava planejando um assalto. Em fins de 1950, diz-se ter existido uma conspiração instigada pelo antigo chefe dos ss, o General Otto Skorzeny, que libertou Benito Mussolini quando este se encontrava prisioneiro dos Aliados na Itália. Ò plano consistia num assalto relâmpago a Spandau, dirigido por Skorzeny. Dois helicópteros aterrariam no pátio da cadeia, quando Rudolf Hess estivesse na horta. Enquanto um dos helicópteros desembarcasse um grupo de fanáticos munidos de armas automáticas capazes de manter os guardas à distância, os assaltantes do outro helicóptero agarrariam Hess e levá-lo-iam para local secreto, onde seria conservado como uma fonte viva de inspiração para seus apaniguados. Ao que parece, essa conspiração, se é que jamais existiu, foi descoberta pelos agentes secretos das quatro potências, sendo detidos alguns conspiradores. Desde então, surge de quando em quando um boato de que certo grupo de nazistas fanáticos, dispondo de tanques pesados, planeja levar a cabo um assalto durante a noite, para derrubar um dos muros de Spandau e libertar Hess. Esses boatos nunca obtiveram confirmação. O primeiro dos sete a recuperar a liberdade foi o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, o velho e doente Constantin von Neurath. Diz-se que sua família, que ou- trora esteve relacionada com a família real britânica (o próprio Von Neurath fora embaixador na Inglaterra), não se cansara de apelar para os seus parentes que ocupavam altos postos na Grã-Bretanha. Pedia-se que o velho fosse solto sob fiança, de modo a poder receber tratamento médico conveniente, e, caso morresse, ser enterrado no jazigo da família e não numa campa sem nome. Tais apelos em prol de Von Neurath chegaram aos ouvidos de Winston Churchill, então com setenta e nove anos. Este, conhecendo por experiência as enfermidades que acompanham a velhice, subiu um dia à tribuna da Câmara dos Comuns, em 1954, a fim de tentar favorecer o inimigo vencido: “Sou há muitos anos de opinião de que as condições de Spandau são duras e desumanas. Neste caso, estamos em presença de um homem de oitenta e um anos, e ainda por cima
doente”. As quatro potências que governavam Spandau deram ouvidos a Churchill e respeitaram-lhe os desejos. Nos fins de 1954, Constantin von Neurath, que cumprira já cerca da metade da pena, foi o primeiro dos sete a ser restituído à família, sendo confiado aos cuidados do seu médico e obtendo finalmente o direito de ser enterrado no jazigo familiar, em Enzweihingen, no mês de agosto de 1956. E restaram apenas seis. O Almirante Erich Raeder, já na casa dos oitenta, e o banqueiro Walther Funk, contando mais de sessenta anos, encontravam-se quase tão doentes quanto Von Neurath esti- vera. As quatro potências concordaram em libertá-los sob fiança, em vista “da sua avançada idade e da doença”. Tanto Raeder, solto em 1955, quanto Funk, que recuperou a liberdade dois anos depois, morreram em 1960. E ficaram apenas quatro. O Almirante Karl Doenitz, que governara a Alemanha durante uma semana após a morte de Hitler, fora condenado a dez anos de prisão. A sentença, cumpriua toda em Spandau, que odiava mais intensamente do que qualquer dos outros colegas. Conseguiu sobreviver à pena com relativa saúde e foi solto em outubro de 1956. Spandau não o destruiu, de maneira nenhuma. Pouco depois de recuperar a liberdade, Doenitz foi convidado a discursar para estudantes perto de Hamburgo. Acedeu e, na sua palestra, defendeu o Partido Nazista e atacou ferozmente a perseguição movida pelos Aliados aos criminosos de guerra nazistas. Esse discurso deu lugar a tamanha celeuma, a protestos de um lado, a aclamações de outro, e causou tais embaraços ao governo da Alemanha Ocidental, que o professor que convidara Doenitz a discursar suicidou-se. O próprio Doenitz afastou-se imediatamente, passando apenas a escrever as memórias e uma ou outra declaração pública. Na última, de 1964, criticava os Aliados por terem exigido da Alemanha a rendição total na Segunda Guerra Mundial. Doenitz declarou à Associated Press: “O pedido de rendição total constituiu um grave erro político da parte dos Aliados ocidentais, pois conduziu ao prolongamento desnecessário da guerra. Além da Alemanha, hoje todo o mundo livre sofre as consequências desse erro”. Doenitz foi severamente censurado por essa declaração, até que, no fim do mesmo ano, o ex- Presidente Dwight D. Eisenhower acabou por lhe dar razão. Não duvidamos de que todos os que eram responsáveis por Spandau lamentem amargamente ter permitido a saída de Doenitz. E ficaram apenas três. Em 1965, dois destes, Albert Speer e Baldur von Schirach, haviam cumprido dezenove anos da pena, que era de vinte. A vida de Von Schirach pouco se havia alterado nos dezesseis anos decorridos desde que eu escrevera o meu artigo. Sua mulher, Henny Hoffmann, se divorciara dele, ficando com o encargo dos filhos. Porém um deles visita o pai todos os meses. Von Schirach dedica-se a ocupações de natureza intelectual e estética, lê cada vez mais romances franceses, estuda música, decora poesia e não se cansa de renegar Hitler e o nazismo. No início de 1965, pela segunda vez em três anos, Von Schirach foi transferido para um hospital militar britânico fora de Spandau, desta vez para ser operado de um descolamento da retina. O resultado da operação foi considerado “pouco satisfatório”, mas o doente regressou a Spandau, onde neste momento prepara a sua autobiografia, que publicará quando for solto. Albert Speer revelou-se ainda mais firme do que Von Schirach na decisão
de não se deixar destruir pela prisão. Em lugar de passar a vida a lamentar-se, Speer tomou a peito ser um grande arquiteto. Ano após ano, foi-se mantendo a par das inovações dentro dos limites impostos pelo regulamento de Spandau, e tem feito inúmeros desenhos. Tanto Von Schirach como Albert Speer terminarão a pena de vinte anos em 1966, e depois disso serão restituí- dos à liberdade. Não é provável que qualquer deles venha a sofrer dificuldades financeiras. Von Schirach confessou aos guardas haver herdado uma soma considerável de um parente americano, e que isso lhe bastará para viver confortavelmente. Speer irá viver com os seis filhos, que já mal conhece, um deles uma moça que foi educada por uma família americana de Westchester County, Nova York. Não há dúvida de que Speer deve encontrar um cargo bem-remu- nerado em qualquer escritório de arquitetura da Alemanha Ocidental. Parece-me que o que vão apreciar mais na liberdade não é apenas o fato de saírem de Spandau, mas também de se verem livres da opressiva e contínua presença do louco Rudolf Hess, que para eles se tornou insuportável. Pelo que ouvi, Hess é hoje, sob todos os aspectos, o mesmo de 1949, se é que não piorou. Com setenta e um anos, esteve preso em várias cadeias durante vinte e um anos consecutivos, e em Spandau encontra-se há mais de dezoito. Está com os cabelos totalmente brancos, os olhos cavados, coberto de rugas, curvado e retorcido. Um americano empregado em Spandau declarou em 1964 à Associated Press: “É uma figura muito esquisita, sempre vagando com um velho boné de esqui do exército e envolto num comprido capote militar que lhe chega aos calcanhares. Seu estado mental não melhorou com o decorrer dos anos. Há noites em que uiva como um lobo dentro da cela”. Os psiquiatras da prisão consideram Rudolf Hess um psicopata, mas ainda não completamente louco. Há pouco, o Dr. Maurice N. Walsh, psiquiatra ligado à Universidade da Califórnia, em Los Angeles, declarou que observara Hess na presença de quinze testemunhas no ano de 1948, mas que recebera ordem para manter seu diagnóstico secreto, com receio de que isso irritasse os russos durante o período do corredor de Berlim. Afirma o Dr. Walsh: “Descobri que era um esquizofrênico latente, sempre mergulhado num estado de psicose. Mas não achei que estivesse a ponto de se suicidar”. O estado mental de Hess não se modificou. Sua hipo- condria agravou-se e queixa-se de doenças imaginárias. Suplica aos guardas que fechem os olhos ao regulamento para o favorecerem e, quando algum mais caridoso lhe concede favores especiais, Hess faz queixa dele aos superiores. Os guardas, por vezes, ao ouvirem-no gritar de noite, respondem-lhe também com gritos. É frequente encontrarem-no estendido no chão da cela, falando sozinho, em estado quase de transe. Hess interessa-se por muito poucas coisas. Aguarda sempre com ansiedade o momento de trabalhar na horta. Gosta de escrever sua carta habitual à mulher, que dirige uma estância de repouso perto de Munique, e também ao filho, um rapaz louro de vinte e seis anos, hoje engenheiro, formado pela Universidade de Munique. Hess, no entanto, nunca permitiu que a mulher nem o filho fossem visitá-lo em Spandau. Segundo afirma a mulher, “não podia suportar que o víssemos preso como um animal”. Logo nos primeiros dias de 1965, Hess permitiu a primeira visita a Spandau. Mandou chamar seu advogado, Alfred Seidel, e passaram juntos a meia hora do regulamento discutindo os termos do testamento de Hess. Mais tarde,
Seidel declarou à imprensa que Hess não desejava se beneficiar de um pedido de indulto e que esperava ser solto sob fiança ao mesmo tempo que Von Schirach e Speer; também não desejava receber mais visitas, nem de parentes próximos. Na opinião de Seidel, Hess não tem nada de louco. “Sua memória funciona perfeitamente. Quis saber especialmente em que condições vivia a família. Preocupa-o a situação econômica da mulher e do filho.” Um de seus principais interesses é a saudade invencível que sente dos tempos do nazismo, em que era o representante do Fuehrer e a terceira personagem na direção do partido. Os guardas das quatro potências vêem-no cada vez com mais frequência marchando em passo de ganso dentro da pequena cela. Sua memória, absolutamente fiel quanto aos fatos ocorridos até maio de 1941, parece por vezes de- ter-se nesta data. Foi nesse período que Hess, sabendo que a Inglaterra estava em maus lençóis e ciente de que o Fueh- rer desejava fazer as pazes com ela antes de atacar a Rússia, mas não podendo abordar Churchill com propostas de paz, resolveu agir por conta própria. Embora isso constituísse uma traição à Alemanha, Hess meteu-se num avião Messer- schmitt e dirigiu-se à Inglaterra. Aterrou num prado e fez uma proposta de paz ao Duque de Hamilton e a outras personalidades. Mas nunca teve oportunidade de discutir sua proposta. Foi posto numa prisão, onde permaneceu até a derrota total da Alemanha. Embora Hitler tenha dado Hess como louco na época desse fracasso e tentado apagar seu nome dos faustos do Terceiro Reich, há hoje historiadores prontos a afirmar que Hitler tinha conhecimento da tentativa de Hess e que até o encorajou nesse sentido. Tudo isso, hoje, pertence ao passado, no qual Rudolf Hess se refugia durante horas a fio, visto representar para ele uma época muito mais agradável do que a de agora em Spandau. Depois da partida de Von Schirach e de Speer, Hess ficará só em Spandau, e não parece que se sinta mais infeliz por isso. Ele nunca apreciou o fato de os companheiros repudiarem Hitler, considerarem-no louco e se recusarem a partilhar os seus próprios privilégios como mártir do Terceiro Reich. E assim, quando os dois forem embora, restará apenas um. Por incrível que pareça, ficarão trezentos especialistas, pertencentes a quatro governos, de guarda a um velho decrépito, relíquia de um regime político que já não existe, nessa onerosa versão alemã da ilha de Santa Helena. E no dia em que Hess morrer ou alguém assassiná-lo, não ficará mais nenhum. Finalmente, as sete celas secretas encontrar-se-ão vazias, os carcereiros regressarão aos respectivos países para contar suas histórias, e Spandau passará a pertencer aos historiadores — e aos romancistas.
17 O homem que amava Hitler O empregado da Fritzes, a melhor livraria de Estocolmo, um rapaz alto e louro, achava que eu não devia entrevistar o Dr. Sven Hedin para escrever um artigo: — Ele é a nossa vergonha nacional — declarou o empregado da livraria. Mas, pelo que podia ver, essa vergonha — o Dr. Hedin comprometera a neutralidade da Suécia ajudando a Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial — não costumava ser discutida em público. Num país pequeno, onde os nomes de projeção internacional escasseiam — Sweden- borg, Strindberg, Nobel, Selma Lagerlof e mais meia dúzia deles, já todos mortos — não é costume esquecer ou pôr de parte os heróis. Aos oitenta e um anos, o Dr. Sven Hedin era ainda muito conhecido em todo o mundo, mas para a grande maioria dos suecos (apenas uma escassa minoria partilharia as ideias nazistas do Dr. Hedin), esse herói constituía uma incômoda recordação e lembrava-lhes que seu país negociara com Hitler durante a Segunda Guerra Mundial. Os muitos e volumosos trabalhos do Dr. Hedin sobre suas explorações no interior da Mongólia e do Tibete, publicados em sueco, alemão e inglês, enchiam numerosas prateleiras das livrarias de Estocolmo, incluindo a Fritzes. Como explorador, hidrógrafo, cartógrafo e escritor de viagens, o Dr. Hedin visitara a cidade proibida de Lassa em 1896 e voltara ao Tibete em 1906. De 1927 até 1935, fora a Pequim, dirigira uma caravana de vinte e sete homens e trezentos camelos, o que constituía o maior grupo que jamais se arriscara a internar-se na Ásia central. Como resultado dessas aventuras, tornara-se o mais conhecido explorador da Suécia. Encontrei seu nome incluído numa publicação recente, como um dos vinte maiores cientistas dos últimos três séculos, sendo a referência a ele a maior que se fazia a qualquer sueco vivo. E, uma semana apenas antes da minha chegada à Suécia, ele jantara com o Conde Folke Bernadotte, sobrinho do rei. A despeito de certa oposição por parte de alguns cidadãos suecos que eu conhecia, o Dr. Sven Hedin não podia de forma alguma ser posto de lado. Minha curiosidade a seu respeito aumentava. Desejava saber o que fora feito de um membro dessa espécie inqualificável, os nazistas neutros, depois que a guerra acabara. A fim de satisfazer minha curiosidade, enviei um recado ao Dr. Hedin. Ele o respondeu prontamente convidando-me a tomar chá em sua companhia. Das janelas do moderno apartamento que habitava, viam-se as águas do canal e os ferryboats brancos do Mála- ren. O Dr. Hedin veio receber-me à porta. Era um homen- zinho vivo e baixo, de olhos espertos e óculos grossos, com um bigode grisalho em escova, colarinhos engomados e terno de riscas. Apertou-me a mão, declarando-se encantado por me ver. Não voltara à América desde 1932, quando dirigira a construção de uma cópia do Pavilhão Dourado de Jeho, na Feira Mundial de Chicago. Uma terra elétrica, a América! Almoçara um dia com Henry Ford. Um bom sujeito, embora se tivesse recusado a financiar a expedição de Hedin à China, e apenas se interessasse por novas estradas para automóveis na Rússia. Então eu não sabia que ele possuía uma carta do falecido Franklin Delano Roosevelt? Pois era verdade! Sem se calar, o Dr. Hedin conduziu-me a um compartimento estreito, com fichários embutidos na parede de ambos os lados. Começou a procurar. A carta de Roosevelt ... a carta de Roosevelt... ah, ali estava ela, escrita na Casa Branca, Washington, D.C., 1933: algumas palavras amáveis agradecendo uns selos chineses e um convite para aparecer quando quisesse.
Fomos para a sala tomar chá. O Dr. Hedin apresentou- me a irmã, Alma, uma mulher alta, esquelética e diáfana, vestida de azul. Colecionava selos e naquele momento estava escrevendo sua autobiografia. Já publicara um livro, Meu irmão Sven, que fora recentemente traduzido para o alemão. A seguir o Dr. Hedin apresentou-me a sobrinha, Anna Maria Wetterlind, uma loura forte, que falava um inglês muito britânico. Viajara muito nestes últimos anos, como secretária do tio Sven, e adorara não só Berlim como tudo na Alemanha. Que bons tempos passara ali, e que festas, que gente tão simpática, Emmy, Hermann, Adolf, que contava anedotas. Eram todos tão bem-educados, exceto Robert Ley, chefe da Frente dos Trabalhadores Nazistas, o único de quem não gostava! Anna Maria ocupava-se agora cuidando de dezoito refugiados vindos da Polônia e da Estônia. Havia ao todo noventa e oito mil refugiados na Suécia, alguns deles muito doentes. Tinham sofrido horrivelmente nos campos de concentração. Ao falar neles, Anna Maria não ocultava sua confusão. Esses refugiados afirmavam terem sido mandados para lá por Emmy, Hermann e Adolf, e no entanto Anna Maria conhecera-os e achara-os pessoas encantadoras. Quem é que estaria mentindo? Sentamo-nos ao redor de uma mesa de café grande e baixa e, enquanto se servia o chá com todo o cerimonial, o Dr. Sven Hedin passou a orientar a conversa. Parecia vagamente preocupado com o fato de eu não avaliar bem a importância que ele tinha na Suécia. Declarou-me ser membro da Real Academia Sueca de Ciências desde 1905 e que a partir desse ano votava todos os prêmios Nobel de química e física. De fato, em 1924, passara a presidente da Academia, em virtude de sua idade. No seu tempo, haviam sido premiados o Dr. Albert Michelson, o Dr. Guglielmo Marconi, o Dr. Max Planck, o Dr. Albert Einstein, o Dr. Ernest Rutherford, Madame Curie, o Dr. Irving Langmuir, o Dr. Otto Hahn. Em 1913, prosseguiu o Dr. Hedin, fora eleito para preencher uma vaga entre os dezoito membros da Academia da Suécia e, fazendo parte desse ilustre grupo, passara também a ter voto no prêmio Nobel anual de literatura. Hoje era um dos três mais velhos desses dezoito. Oh, já estava neste mundo havia muitos anos! Conhecera pessoalmente o próprio Alfred Nobel. “Dei-me muito bem com ele. Um sujeito simpático e amável. Mas diferente de todos. Um excêntrico. Absolutamente senhor de suas ideias e opiniões. Seu famoso testamento foi rabiscado numa folha de papel que ele rasgara ao meio porque ainda podia servir para se escrever outra coisa. Financiou uma das minhas expedições.” O Dr. Hedin falou de algumas atribuições do prêmio de literatura pelas quais era responsável. Desde que fazia parte desse júri, haviam recebido o prêmio: Romain Rol- land, Knut Hamsun, Anatole France, George Bernard Shaw, Thomas Mann, Eugene 0’Neill. O Dr. Hedin declarou que fora ele, juntamente com Selma Lagerlof, quem conseguira conceder o prêmio à escritora americana Pearl Buck, em 1938. Admirava os trabalhos de Pearl Buck, seu interesse pela China, e tanto ele como Selma conseguiram quebrar a resistência de seus camaradas do júri. O Dr. Hedin ainda há pouco havia tido contato com o marido de Pearl Buck, que trabalhava para a editora John Day, e que recomendara Lin Yutang como candidato ao prêmio Nobel. O Dr. Hedin não tinha opinião formada sobre os livros de Lin Yutang (“Sua obra não me parece suficientemente vasta”), mas ia ler mais coisas dele para poder avaliar. Perguntei ao Dr. Hedin como é que um autor relativamente desconhecido, a poetisa chilena Gabriela Mistral, conseguira a maioria na votação do prêmio
Nobel do ano anterior. “Bem, foi um caso interessante”, respondeu o Dr. Hedin. “Um dos juizes, o Dr. Hjalmar Gullberg, um dos nossos grandes poetas, lera a poesia da Srta. Mistral no original espanhol e ficara entusiasmado. Apresentou sua candidatura, ele e outra pessoa qualquer da América do Sul. Ela nunca fora traduzida para o sueco ou para o inglês, por isso nenhum de nós conhecia suas obras. A fim de nos convencer, o Professor Gullberg pôs mãos à obra e traduziu os melhores versos de Gabriela Mistral para o sueco. Mandou publicar a tradução e enviou um exemplar a todos os juizes. Era uma bela tradução, e todos nós votamos em Gabriela Mistral em 1945. Mas não fique com má impressão. Não se faz política com os prêmios.” Perguntei ao Dr. Hedin por que motivo certos autores de fama não haviam sido laureados. Citei alguns nomes e o Dr. Hedin tinha uma explicação para cada caso. Máximo Górki morrera cedo demais. “Seu nome ficou algumas vezes em segundo lugar e era natural que ele acabasse um dia por ser premiado.” H. G. Wells tinha sido discutido: “Não passava de um jornalista medíocre”. W. Sommerset Maugham também fora considerado pelo júri “demasiado popular e pouco característico”. E James Joyce? O Dr. Hedin mostrou-se surpreso. “Quem é esse sujeito?” Nessa altura, certo do interesse que despertara em mim, o Dr. Hedin voltouse para o que ele considerava um tema mais importante — a política mundial. A Alemanha estava numa situação terrível. Os alemães não tinham espaço. Suas casas haviam sido destruídas pelas bombas americanas. Morriam de fome. Iam perecer em massa naquele inverno do pós-guerra. A mulher do Marechal Milch escre- vera-lhe uma carta impressionante pedindo alimentos e roupas. O Dr. Hedin olhava-me de uma maneira suplicante. Com certeza eu não deixaria de publicar isso na América. A América decerto iria ajudar. Afinal, uma Alemanha democrática seria a melhor aliada da América numa futura guerra. O povo alemão era um povo unido e nenhuma fronteira artificial conseguiria dividi-lo. Walter Lippmann não escrevera que o povo alemão é hoje o mais forte da Europa? O Dr. Hedin declarou-me que estudara na Alemanha em 1889. Consideravaa sua segunda pátria. Havia sido apreciado e festejado lá. O cáiser e Von Hindenburg eram seus melhores amigos. (Claro, acrescentou que o Papa Pio XI, o Rei Jorge V, o Czar Nicolau, o Imperador Meiji e Theodore Roosevelt haviam sido seus amigos também.) E seus livros vendiam melhor na Alemanha do que nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha. Em 1927, prosseguiu o Dr. Hedin, o Dr. Junkers, o fabricante alemão de aviões, enviara-o à Ásia central, a fim de estabelecer uma linha aérea de Berlim a Pequim. O governo chinês recusara-lhe autorização. A expedição fora depois reorganizada, refinanciada e dirigida pelo amigo do Dr. Hedin, o Rei Gustavo da Suécia, com um objetivo estritamente científico. Os empreendimentos do Dr. Hedin na Ásia central haviam durado oito anos. Ao regressar à Suécia, tentara lançar uma série de livros enciclopédicos sobre suas descobertas na Ásia central. Trinta e um volumes já tinham sido publicados em Estocolmo e os restantes vinte e cinco estavam sendo preparados. Isso lhe deixava pouco tempo livre para qualquer outra exploração. Escrevera também, acrescentou, cerca de quinhentas páginas para outro livro, que nada tinha a ver com explorações. “Vou chamá-lo Os últimos anos da Alemanha”, declarou. Mas a irmã protestou logo: “Mas estes não foram os últimos anos da Alemanha. A Alemanha não morreu, Sven!” O Dr. Hedin piscou os olhos por detrás das lentes grossas: “Alma, eu quero dizer os últimos tempos vividos
pela Alemanha”. Seria a história completa, disse, de suas inúmeras visitas aos chefes nazistas. Embora tendo uma costela de judeu, o Dr. Hedin convivera amigavelmente com Hitler e com Goebbels e, sempre que jantava com qualquer deles, voltava logo para o seu apartamento no Kaiserhof Hotel de Berlim, para registrar tudo quanto ouvira. Achava que sua posição, como ouvinte neutro e sem partidarismos, habitante de um país neutro, podia ser considerada única, e ele sempre possuíra um senso agudo da história. Eu disse que gostaria de saber qual o grau de intimidade que ele tivera com Hitler. Em resposta, o Dr. Hedin fez um sinal à irmã, que se levantou, desapareceu e voltou depois trazendo uma grande caixa de veludo vermelho, que abriu com cautela. “Agora temos isso escondido”, confessou ela baixinho. No fundo da caixa, com uma moldura de prata maciça e rodeada de cruzes suásticas em miniatura, repousava uma fotografia do rosto de Hitler em tamanho natural, com uma dedicatória afetuosa para o Dr. Hedin. Depois de retirar a moldura da caixa, Alma puxou também um envelope grande, que o Dr. Hedin abriu, tirando uma carta datilografada, de três páginas, datada de 27 de outubro de 1942, assinada por Hitler. Essa carta tinha uma história. O Dr. Hedin publicara em Leipzig um livro intitulado Amerika im Kampf der Kontinente. Hitler, que poucas vezes tinha tempo de ler livros, contratara um homem para lê-los e depois lhe fazer uma sinopse oral, na hora de dormir. No entanto, um dia pegara o livro do Dr. Hedin cerca das nove da noite e só o largara, depois de tê- lo lido de um só fôlego, às três da manhã. Ditara então uma carta afetuosa ao seu autor, discutindo o livro. Pedi ao Dr. Hedin informações sobre as personagens que rodeavam Hitler mais de perto. O Dr. Hedin recordava-se de ter assistido à festa teatral comemorativa dos cinquenta anos de Goering e disse que se divertira muito. Considerava Goering uma criança grande e adorável. Recordou-me que a primeira mulher de Goering era sueca, e que, se fosse viva, nunca permitiria que ele ostentasse todas aquelas medalhas, uma vaidade de mau gosto. O Dr. Hedin afirmava que Himmler era uma criatura amável e inofensiva. Certo dia, tivera com ele uma discussão política bastante violenta. Para terminar, Himmler observara-lhe: “Sven, seu país não constitui nenhum problema para nós. Uma nação que não suportou os efeitos de uma guerra durante um período de cento e trinta anos está fraca”. O Dr. Hedin recordava-se de como estas palavras o haviam enfurecido e de que retor- quira azedamente: “Nós não somos fracos, mas civilizados. Temos guardados nos nossos museus mais bandeiras e estandartes do que vocês possuem em toda a Alemanha e Áustria reunidas. Só num deles estão quatro mil troféus capturados ao inimigo”. A discussão terminou quando o Dr. Hedin acabou por citar a declaração do Fuehrer de que o objetivo da Alemanha era a paz, o que a Suécia já alcançara. Depois disso, Himmler calarase. O Dr. Hedin só nutria verdadeira má vontade contra Walther Funk. Ao que parece, em 1936, o Dr. Hedin proferira uma série de cento e cinquenta conferências, o que o obrigara a viajar por toda a Alemanha, regressando em seguida a Estocolmo, a fim de escrever um livro sobre o Terceiro Reich. Haviamlhe prometido que duzentas e sessenta organizações alemãs comprariam exemplares do seu livro. “Com isso eu teria feito uma fortuna”, confessou-me o Dr. Hedin. “Por uma questão de rotina, submeti o manuscrito à aprovação de Funk. Ele gostou, mas preveniu-me de que cinco páginas, das trezentas que eu escrevera, tinham de ser suprimidas. Essas cinco páginas criticavam a maneira como os nazistas tratavam os judeus. Recusei-me a retirar aquelas páginas. Seguiu-se uma correspondência bastante azeda entre mim e Funk sobre a política
para com os judeus. Ele escreveu-me ao todo oito cartas. Mas o livro nunca foi publicado.” O Dr. Hedin declarou-me que a última notícia que tivera de Hitler datava de poucos meses antes da queda de Berlim e do desaparecimento do Fuehrer. Hitler enviara- lhe um longo telegrama de felicitações no dia em que completava oitenta anos. “Creio que Hitler morreu”, disse o Dr. Hedin, “mas não apostaria a minha cabeça nisso.” Fiz algumas referências veladas sobre a delicada posição do Dr. Hedin na Suécia atual. Mas, antes que ele falasse, a sobrinha respondeu. Disse que, no início da Segunda Guerra Mundial, metade do povo da Suécia era pela Alemanha e metade contra. Durante a guerra, a invasão da vizinha Noruega transformara a maioria dos suecos em anti- nazistas. O Dr. Hedin interrompeu: “Hoje está tudo outra vez modificando-se e há cada vez mais simpatizantes da Alemanha. Atualmente não sou bem visto aqui, mas isso também mudará”. Fitou-me: “Nos Estados Unidos devo ser considerado uma ovelha negra, não?” Eu não respondi. Nosso chá demorara quatro horas e já era noite. Pus- me de pé e agradeci aos três a hospitalidade. Quando me dirigia para a porta, o Dr. Hedin quase correu atrás de mim. Num monólogo rápido, informou-me de que estava trabalhando dia e noite a fim de salvar o General Falkenhorst, que fora condenado à morte pelos ingleses. Depois de me afirmar que o General Falkenhorst fora “um homem humano”, acrescentou que estava tentando conseguir o auxílio da família real para salvá-lo. Abri a porta para sair, mas o Dr. Hedin continuava a falar. Lera havia pouco que o General Eisenhower ia regressar à Alemanha. “Ele tem um belo nome alemão, Eisenhower”, declarou. “Calculo que irá à Alemanha fazer preparativos contra a Rússia.” Não respondi nada. O Dr. Hedin olhou para mim. Depois disse de repente: “Até aqui respondi a todas as suas perguntas. Agora é sua vez de respon- der-me”. Declarei que o faria com o maior prazer. O Dr. Hedin meditou na pergunta durante alguns instantes e depois formulou-a: “Diga-me, qual deve ser a data do início da guerra entre os Estados Unidos e a Rússia?” Fitei-o durante uns instantes, incapaz de responder, limitando-me a abanar a cabeça. Por fim deilhe boa-noite, agradeci o chá e desci as escadas ao encontro do ar fresco da noite. O que aconteceu depois. . . Depois de passar três anos e meio como soldado do exército dos Estados Unidos no Departamento de Comunicações, fui desmobilizado a de 3 de fevereiro de 1946, em Fort Dix, Nova Jersey. Embora tivesse feito algumas viagens literárias através do México, das Américas Central e do Sul, da China e do Japão, não fora à Europa. Estava resolvido a ir lá o mais breve possível. Consegui uma série de encomendas de trabalhos para três revistas americanas, minha mulher demitiuse de seu cargo de editora de uma revista cinematográfica e, depois de seis meses de vida civil, embarcamos no navio sueco Drottningholm, com destino a Gõteborg, na Suécia. Chegamos a Estocolmo a 3 de setembro de 1946 e em breve nos encontrávamos instalados num belíssimo apartamento de esquina do Grande Hotel, o mesmo onde se hospedam todos os anos os contemplados com o prêmio Nobel. O preço do apartamento era de treze dólares e quarenta e quatro centavos por dia, o que ficava muito além das nossas possibilidades, mas valia a pena por causa da vista que dali se desfrutava do canal Strõmmen e do Palácio Real. Desde o primeiro dia, comecei a andar constantemente sob o frio, por toda a cidade, em busca de informações para as minhas possíveis histórias,
perguntando, ouvindo, observando, tomando notas. Escrevi uma história sobre o Teatro Nacional Sueco, que foi publicada, e muitas outras a respeito de uma grande variedade de assuntos, que nunca viram a luz do dia. Entre estas últimas, encontrava-se a minha pequena aventura com o Dr. Sven Hedin. Conhecia o Dr. Hedin há muito tempo. Seus livros de viagens e explorações: A conquista do Tibete, Através do deserto de Gobi, A rota da seda, eram para mim românticos e familiares. Enquanto percorria Estocolmo, admirava- me de ouvir constantemente seu nome mencionado, não só na livraria real, Fritzes, mas por quase toda parte aonde ia. A razão da minha surpresa era a escandalosa conduta de Hedin durante a guerra, mas seus compatriotas raramente se referiam concretamente a esse lado de suas atividades. A Segunda Guerra Mundial terminara há pouco mais de um ano, e embora grande parte dos suecos chamados neutros tivessem sido simpatizantes do Terceiro Reich, o Dr. Sven Hedin fora o único cidadão de projeção mundial a tornar público esse sentimento. Na verdade, ele chamara Adolf Hitler de “um dos maiores homens da história do mundo”. Desde que a Alemanha perdera a guerra, os horrores dos campos de concentração foram tornados públicos e a maioria dos suecos, embora admirassem a projeção internacional do Dr. Sven Hedin, sentiam-se embaraçados com a sua permanente lealdade para com a memória de Hitler. Resolvi encontrar-me com o Dr. Hedin. Estava cheio de curiosidade. Não tinha nenhum projeto de artigo, na realidade não tinha nenhum plano em mente, mas era forçoso conhecer aquele “vilão” escandinavo. Vi-o numa tarde de domingo, a 8 de setembro de 1946, e o que se passou na nossa entrevista eu escrevi uma semana depois, sob o título: “A vergonha do Dr. Hedin”. Além do simples fato de conhecer o Dr. Hedin, durante a nossa conversa, ou como resultado dela, passou-se algo comigo. Tive, digamos, uma inspiração, uma ideia, que exerceria sobre mim, como escritor, um efeito duradouro, embora só desse resultados práticos dezesseis anos depois. Quando o Dr. Hedin me declarou ser juiz do prêmio Nobel, senti-me admirado e, de certo modo, impressionado. Isso porque, para mim, como para muita gente, creio, o prêmio Nobel, em qualquer de suas categorias, representa a maior distinção que se pode dar a um homem neste mundo. E ali estava eu conversando sem cerimônia com um dos ilustres membros do júri. Repito que também fiquei surpreso. E o que me surpreendeu mais foi o fato de ver que o espírito dessa pessoa que eu estava entrevistando era um emaranhado de preconceitos, de ideias falsas, de intolerância com inúmeros assuntos, desde as ciências até as artes. Descrevê-lo, àquele homem abaixo do homem comum, como um juiz do prêmio Nobel, que desempenhava papel decisivo na coroação anual dos deuses, seria espantoso! Sempre estive convencido, sem no entanto ter pensado muito no caso, de que, havendo juizes do prêmio Nobel, estes deveriam ser dos mais sábios anciãos da nossa era. Suspeito até que nem passa pela cabeça de muita gente que possa haver qualquer espécie de juiz, mas que o prêmio Nobel é atribuído por um conjunto de divindades do Olimpo. Intrigado pelo que esperava ver e pelo que tinha à minha frente, comecei a interrogar o Dr. Hedin sobre suas funções no júri do prêmio Nobel, a maneira como os concorrentes são apresentados, escolhidos, eliminados, discretamente discutidos e debatidos e a respeito do seu papel e do papel de seus colegas na eleição. O Dr. Eledin percebeu a minha curiosidade, sentiu-se lisonjeado, tornouse expansivo e desatou a falar. Depois de deixá-lo, descobri que viera ao encontro de uma coisa que devia ser desenvolvida e tornada conhecida: a verdade sobre o prêmio Nobel — a
verdade sobre os que o ganham e os que o atribuem, mas sem saber que espécie de história seria essa e que forma final viria a assumir. Sabia apenas que queria saber mais. Procurei encontrar-me imediatamente com outros membros do júri, colegas do Dr. Hedin, suecos eruditos em matéria de ciência e de literatura, que também residiam em Estocolmo. Achei-os tão expansivos como o Dr. Hedin. Ao discorrer sobre os prêmios concedidos, falaram da fragilidade humana dos juizes e dos julgados, revelaram aspectos estúpidos, e outros brilhantes, da maneira como se faz a seleção, puseram a nu políticas, preconceitos e vaidades mesquinhas, bem como a honestidade, a sabedoria e a coragem que algumas vezes têm sido reveladas na votação. Ao fim de minhas entrevistas, tive a noção de haver recolhido um verdadeiro tesouro. E não fazia a menor ideia do destino que iria dar-lhe. Ainda em Estocolmo, entreguei-me a outros trabalhos, mas sempre preocupado e obcecado por esse material novo, até que chegou o domingo. Eu e minh^ mulher dormimos até tarde e, quando acordamos, tomamos o café no quarto. Lá fora, depois de uma semana de chuva, o sol brilhava. Fui à janela da sala de estar e olhei para além do canal Strõmmen, enquanto escutava distraidamente a banda real, que tocava em frente do enorme palácio. A imponência dessa cena, que lembrava um postal animado, e seu cunho irreal impressionaram-me, e então recordei-me da tarde que passara com o Dr. Hedin, de minhas entrevistas com os outros membros do júri, e compreendi que todos esses aspectos não passavam de fachadas e que os acontecimentos humanos mais reais, mais crus, se passam atrás dos muros dos palácios, atrás das paredes das academias, de todas as muralhas dentro das quais habitam seres humanos. E foi esse o momento da concepção. Fiquei então sabendo o que tinha a fazer. Voltei para junto de minha mulher, que ainda estava tomando o seu café, e disse-lhe: — Sylvia, sabe se já houve alguém que escrevesse um romance sobre o prêmio Nobel? A partir desse momento, fiquei escravo de um embrião, de um filho do meu cérebro, sem rosto e quase informe, que só daria à luz década e meia depois. Mas foi ao Dr. Hedin e a outros colegas seus que fiquei devendo minha inspiração para uma obra de ficção, O prêmio, romance que publiquei em 1962. Não mantive contato com o Dr. Sven Hedin, ignorei sua carreira, depois de ter deixado Estocolmo em 1946, mas há pouco tive curiosidade de saber o que lhe acontecera nos anos seguintes. Segundo consegui apurar, não voltou a empreender nenhuma expedição à Ásia ou a qualquer outro continente. Mantevese no seu apartamento de Estocolmo e continuou a escrever e a publicar volumes sobre suas expedições anteriores ao norte da China. Quando estive com ele, havia já publicado trinta e um volumes. Nos oito anos seguintes, publicou mais oito. Também em 1950, segundo me disseram, publicou um livro de memórias intitulado Sem missão em Berlim. Presumo que seja a obra sobre a qual me falara em 1946, aquela a que tencionava chamar Os últimos anos da Alemanha. Suas opiniões políticas tinham-se conservado intactas durante todo aquele tempo. Nos oito anos que viveu depois do nosso encontro, continuou também a dar sua contribuição para a escolha dos contemplados com o prêmio Nobel de literatura, física e química. Foi um dos membros do júri que premiou Sir Edward Appleton, em física, o Dr. Arne Tiselius em química, e André Gide, T. S. Eliot, William Faulkner e Ber- trand Russell, em literatura.
Nada sei sobre as relações do Dr. Hedin com seus colegas de júri, mas desconfio de que nem sempre foram as melhores. Quando a Noruega, que é quem atribui o prêmio Nobel da paz, concedeu-o, em 1935, a Carl von Ossietzky, nacionalista alemão, antinazista, então prisioneiro num campo de concentração, Hitler ficou furioso. Anunciou que dali em diante nenhum alemão teria autorização para receber o prêmio Nobel. Ao discutirmos esse grave incidente, o Dr. Hedin declarou-me em 1946: “Fui ter com Hitler e discuti o caso com ele. Expliquei-lhe que apenas a Noruega era responsável por essa atribuição e que a Suécia é que atribuía as outras categorias. Supliquei-lhe que permitisse que os alemães recebessem os prêmios concedidos pela Suécia, mas ele não transigiu”. Achei curiosa esta afirmação, aliás partilhada por outros membros do júri, a que se fez referência num livro, publicado em Estocolmo, no ano de 1951. Falando-se do prêmio atribuído a Ossietzky, dizia-se aí: “Esse caso levantou viva celeuma na Alemanha, e a 31 de janeiro de 1937 Hitler publicou um decreto proibindo os súditos alemães de aceitarem qualquer prêmio Nobel. O explorador sueco Sven Hedin sugeriu que a Noruega fosse privada do direito de atribuir o prêmio da Paz e que essas funções passassem à Suécia”. Nessas palavras escritas por August Schou, então diretor do prêmio Nobel da paz, da Noruega, pode-se descortinar uma certa aspereza para com o Dr. Hedin. O Dr. Hedin conservou todo o seu vigor quase até o fim da vida. Adoeceu em 1952, de um mal provocado por um vírus e que se prolongou durante a maior parte desse ano. Em dezembro seguinte, veio a morrer de uma inflamação cerebral. Contava oitenta e sete anos. Não sei dizer se sua morte foi muito sentida ou não. Conhecera a glória num certo momento, mas fora apeado de seu pedestal porque amara uma terra que não era a sua, bem como seus cruéis dirigentes, com demasiado ardor e durante muito tempo. A moral da história é mais do que evidente: Amar com lealdade nunca desmentida não é uma virtude em si, se não se ama criteriosamente.
18 O homem que odiava Hemingway Quando cheguei a Madri naquela manhã de domingo, um jornalista estava à minha espera em frente à estação, com o seu Opel fabricado na Alemanha. Enquanto eu entrava no automóvel e dizia a piada de costume sobre a lata de sardinha, ele riu com aquele ar que os repórteres têm quando encontram um escritor de revistas e pensam consigo mesmo: “Então é assim que eles são”. Seguimos pela Gran Via, passando em frente às vitrinas onde se ofereciam aos nossos olhos casacos de peles, vestuário de caça, em couro, para homens, e passamos para as ruas largas e bem-cuidadas que levam ao Hotel Ritz. Um porteiro gordo e imponente, de farda azul com botões de latão, cumprimentoume e pegou a minha bagagem. O jornalista, que era do Arizona e não tinha nenhuma saudade da terra, informou-me que a mulher lhe mandara todos os novos discos das irmãs Andrews por via aérea e que haviam levado meses para chegar. Eu estava meio dentro meio fora do carro, ouvindo a história dele. Quando acabou, perguntei-lhe se queria jantar comigo no dia seguinte. Ele agradeceu e aceitou; preparava-me para ir embora quando ele parou e me pôs a mão no ombro. — Ouça uma coisa. Eu, no seu lugar, ia procurar Olas- coaga, no Subsecretariado da Educação. Ele é capaz de lhe dar credenciais como membro da imprensa estrangeira. Você fica com um cartão com o seu retrato e garantolhe que lhe será de grande utilidade. Agradeci-lhe mais uma vez. Mas assim que ele se afastou, esqueci-me de sua recomendação. Na noite seguinte, o jornalista veio procurar-me, dizendo que ia mostrarme o que comem os espanhóis das classes trabalhadoras mais prósperas. Fui, um tanto desconfiado. Dirigimo-nos para o centro de Madri e entramos numa tasca onde o gordo proprietário nos recitou o cardápio. Comi um caldo de legumes espesso, uma fatia de frango azeitado e um prato de tirón, uma espécie de caramelo de cor bege e pegajoso, tudo por um dólar e quarenta centavos. Uma vez que em Madri se janta cerca das dez da noite, não voltamos ao hotel antes da uma da manhã. Dois soldados, de casacões compridos e espingardas de cano curto no braço, passeavam de lá para cá. O jornalista explicou que guardavam o Ritz depois que alguns membros de uma associação secreta comunista tinham colocado uma bomba no hotel, perturbando os distintos hóspedes. Mais tarde, percebi que essa explosão da bomba não explicava o motivo por que os soldados guardavam também os bancos, as mercearias e os cafés de Madri. Isso intrigou-me até ficar sabendo que Franco mantém cerca de um milhão de homens em armas (“o maior exército da Europa Ocidental”, segundo me afirmaram) e tem de lhes dar o que fazer. Quando eu ia saindo do carro, o jornalista perguntou-me: — Já fez o que eu disse? — O quê? — O cartão da imprensa. Já foi buscá-lo com o subsecretário da Educação? Acho melhor que vá. Deixe-me dizer-lhe uma coisa. Na Espanha foi declarado o estado de guerra em 1936, e ainda continua em vigor. O país continua oficialmente em armas. Isso pode incomodá-lo. Não demora e os organismos clandestinos. . .
Disse-lhe que não me parecia que tal acontecesse. —- Ah, você vai ver. Eles se encarregam de se mostrar. E não se enganava. Dentro de uma semana, eu travava conhecimento com os chefes clandestinos dos republicanos e dos anarquistas. — Você vai encontrar-se com eles e, se a polícia de Franco descobre que tem relações com essa gente, pode julgá-lo como inimigo do Estado. Mas há uma escapatória. Arranje um cartão da imprensa. Isso provará que você é um correspondente estrangeiro e assim pode ir para onde quiser e encontrar-se seja com quem for, caso se relacione com o seu trabalho. Essa licença não permite conversas com organizações clandestinas, mas, se for apanhado com os comunistas, dá-lhe uma desculpa. Claro que vão atirar contra seus amigos e expulsá-lo da Espanha, mas isso poderá evitar-lhe dissabores maiores. Olhe, nós, os estrangeiros que aqui estamos, conservamo-nos à parte de tudo e assim evitamos problemas. Acho bom que vá encontrar Olascoaga e arranje o tal cartão. Agradeci-lhe mais uma vez. Pensei no caso nessa noite, na cama, meio dormindo: eu, de cabelos emaranhados, camisa rasgada, uma espécie de comunista, apanhado pela polícia de Franco. No dia seguinte, telefonei para a embaixada americana. O adido de imprensa, Ted Maffitt, um sujeito vivo e esperto que me impressionara logo da primeira vez que o vira, prometeu arranjar-me credenciais de jornalista e marcar-me uma entrevista para ir buscá-las. — Mas primeiro diga-me uma coisa: você já alguma vez escreveu contra Franco? Afirmei-lhe que não. Publicara o palavreado antifascista de costume contra Hitler e Mussolini, para a revista Ken, e uma vez, quando estava no exército, conseguira arranjar, para um filme do Departamento de Comunicações, um curtametragem onde apareciam Franco e o Fuehrer apertando-se as mãos, mas, além desses pecados menores, sempre me portara corretamente. — OK — respondeu Maffitt —, nesse caso está em condições. Podem apenas torcer o nariz às revistas para as quais você colabora, mas não é provável. Têm andado muito amáveis. Vou telefonar a Olascoaga e resolver o assunto. Na manhã seguinte, uma sexta-feira, depois de passar pela Agência Cook, na Avenida José Antonio, para ver se havia correspondência para mim, tomei um táxi e dirigi-me ao Subsecretariado da Educação. Entrava-se por um pátio apertado entre dois edifícios. Subi as escadas de madeira e apresentei meu cartão de visita a um funcionário gordo que estava sentado a uma mesa, vestido como um cocheiro de Santa Fé. O homem saiu manquejando e voltou fazendo-me sinal para segui-lo. Entramos num pequeno gabinete mobiliado com uma secretária verde, sem nada em cima a não ser um monte de folhas de papel, uma cadeira giratória, um fichário e um retrato colorido de Francisco Franco pendurado na parede. — O Senor Olascoaga vem recebê-lo aqui — disse-me o funcionário, indicando-me uma cadeira. — Sente-se, por favor. Tinham-me dito que o Senor Olascoaga era um indivíduo entroncado de cinquenta anos, risonho, cordial, e que não se mostraria curioso. Eu não teria que fazer mais do que trocar com ele duas gracinhas, mostrar-lhe o meu passaporte e ele dar-se-ia por satisfeito; dentro de uma semana poderia ir buscar o meu cartão de livre trânsito, no Ministério dos Estrangeiros. Eu estava sentado havia já alguns minutos, olhando para a cara flácida de Franco no retrato, quando a
porta em frente se abriu. Surgiu um homem alto e magro, bem-vestido. Tinha os cabelos pretos e muito lisos, os olhos negros e brilhantes, as faces cavadas e um bigode fino acentuando-lhe os lábios sensuais. Sorria intermitentemente. Entrou na sala de mão estendida: — Como está? — É o Senor Olascoaga? — inquiri, adiantando-me. — Não, peço-lhe desculpas. Sou o Marquês de Espi- nardo. — Sua voz era fina e frágil, seu sotaque, correto e muito britânico. — Nosso amigo, o Senor Olascoaga, saiu do exercício das suas funções. Eui encarregado de recebê-lo e de tratar de seu caso. Sente-se, por favor. Voltei para a minha cadeira, intrigado, e ele deu a volta na secretária e foi sentar-se na cadeira giratória. Juntou as pontas dos dedos ossudos, tombou a cadeira para trás e fitou-me sorridente. Em Elollywood acontecera-me conhecer um conde alemão, dissimulado, louro, que se dizia natural de Heidelberg, parecido com aquele homem. Esse tal conde tinha sido condenado a cinco anos de cadeia. — Espero que disponha de algum tempo para conversarmos — disse o Marquês de Espinardo. Respondi-lhe que sim. — Gosto de conversar com escritores ingleses — disse ele à vontade. — Fui educado em Sandhurst, sabe? E tenho lido muitas obras de autores ingleses. — Eu sou de Kenosha, Wisconsin — respondi. — Venho de Los Angeles, na Califórnia. E meus amigos não me consideram um escritor inglês. . . — É então americano. Estive uma vez nos Estados Unidos, em Nova York, durante dois meses. E pergunto a mim próprio: Nova York será dos Estados Unidos? Será uma cidade igual a Kansas City ou a Los Angeles? Poderia escrever um livro válido sobre a América só porque passei oito semanas conversando com os nova-iorquinos? — Eu não vou escrever nenhum livro sobre a Espanha — respondi. Ele sorriu, indulgente: — Ora, ora. Eu não estava me referindo ao senhor de um modo especial. Falo dos escritores e jornalistas americanos de um modo geral. Quanto a mim, considero um erro pensar que é possível entrevistar dez, cem ou mesmo duzentos espanhóis, e depois ter a pretensão de saber o qi pensamos e como vivemos. Acredite-me, somos todos diferentes. Na Espanha, sobretudo, somos todos diferentes uns dos outros. Eu, por exemplo, sou basco, do norte. Fiquei surpreso. Tinha estado em San Sebastián, no meio dos bascos, e eles não me pareceram criaturas assim sofisticadas. Com exceção de algumas excentricidades, com a convicção de que sua língua era a falada por Adão e Eva e a esperança de um dia alcançarem a autonomia, são uma raça simpática e nada complicada. O basco comum não é homem de subterfúgios. Apostaria que o marquês era castelhano, um espanhol de Madri, que se ofende com facilidade, destituído de senso de humor, dissimulado, doentio e demasiado velho. — Nós os bascos somos mais sérios, mais profundos, não nos parecemos com esses estúpidos castelhanos de Madri. Tudo isso são distinções que é preciso aprender.
Falava agora com maior intensidade. Ruborizara-se e seu tom de voz tornara-se mais seco e profundo. De súbito calou-se, encostando-se à secretária. Expirou fundo e recos- tou-se devagar. Era de novo o castelhano dissimulado. — Conheço os escritores americanos. Li Hemingway e detesto-o. Fiquei calado de espanto. — Ffemingway é um mentiroso — declarou ele, já sem fingimentos, convencido de que eu não era amigo de Hemingway nem fazia parte da sua escola. — Não passa de um sensacionalista. Por quem os sinos dobram é indubitavelmente uma tentativa barata de ganhar dinheiro com facilidade. Seu outro livro sobre a Espanha, Morte à tarde, é nojento demais para ser editado aqui. Nós gostamos de tudo o que se relacione com touradas, mas esse livro é realmente nojento. Emprega termos que vocês, os americanos, não podem compreender. Mas são palavras que nem uma prostituta respeitável na Espanha se atreveria a empregar. Fiquei irritado com aquela falação interminável. — Sinto que não goste de Hemingway. Cada qual tem as suas preferências literárias. Mas ao menos, na América, o Sr. Hemingway pode escrever como muito bem lhe apetece. O marquês inclinou a cabeça de lado e observou ir mais cautelosamente. Percebi nitidamente o seu espanto. ^ Jgara-me, segundo as aparências, calado e demasiado con- çprdante. Agora mostrava-se surpreso e, sem dúvida, muito mais interessado na minha pessoa. — Admito que na Espanha tenhamos a censura, ad- mito isso — declarou mais lentamente. — Não cortamos todas as ideias, mas as atenuamos, por certo. E vou dizer- lhe por quê. Antigamente a nossa imprensa, tal como a sua, tinha em vista o sensacionalismo. Se se cometia um crime eiíi Barcelona. . . Em Madri diz-se que todos os crimes são cometidos em Barcelona. — ... se acaso era encontrada uma cabeça decepada debaixo do assento de um ônibus, os repórteres e os fotógrafos precipitavam-se para lá e durante semanas a fio enchiam as primeiras páginas de histórias grotescas. Isso desorientava os leitores pouco equilibrados e também provocava uma onda de suicídios. Tenho lido livros de medicina e sei que o jornalismo sensacionalista pode dar lugar a perturbações. Hoje em dia, sob o governo de Franco, banimos todos esses assuntos excitantes e assim temos um país equilibrado e pacífico. Fiz uma careta perante aquela explicação tola, e ele mostrou-se aborrecido: — Mas o que eu disse é verdade. Desta vez acenei afirmativamente. Ele então fitou-me: — Vocês têm uma censura muito mais grave nos Estados Unidos. Os filmes de Hollywood são censurados por um organismo que se encarrega de exigir que a lei triunfe sempre sobre o crime. Por que essa censura? Para bem do Estado? Pois nós censuramos pela mesma razão. Estive na Inglaterra e sei que os ingleses fazem filmes em que as mulheres aparecem com vestidos decotados, expondo à câmara os seios nus, mas vocês afirmam que semelhante nudez pode excitar os espectadores, por isso cortam essas cenas. Nossa censura não é mais severa do que essa. Veio-me à ideia repetir uma história que ouvira, segundo a qual o General Franco, grande apreciador de cinema, fica sempre aborrecido ao ver uma atriz de
comédia musical mostrar muito as pernas e usar roupas apertadas, mandando censurar as cópias do filme destinadas ao público. Achei que essa história provocaria uma infindável discussão sobre cinema e calei-me. Resolvi voltar ao assunto das minhas cflídenciais. — Quanto ao meu cartão. . . — comecei. Mas o marquês não me ouvia: — Estou desiludido com a literatura americana. Nós, aqui na Espanha, consideramos a América como o país mais superficial do mundo. Dois dos seus embaixadores concordaram com essa opinião. Vocês, americanos, vão buscar toda a sua cultura condensada nos jornais e nas revistas ou então nas seleções mensais de obras escolhidas publicadas pelo Clube do Livro. Não lêem nada de profundo. Seus escritores vêm aqui sem saber nada da história da Espanha, sem qualquer alicerce cultural, sem perceberem nada da nossa economia, ignorando as causas das nossas condições atuais. O motivo por que estamos como estamos reside unicamente no fator econômico. Vejam primeiro como se vive na Espanha, convençam-se de que não somos auto-suficientes e ricos como vocês, que não possuímos os seus recursos materiais, investiguem onde vamos buscar as roupas, os metais e os alimentos e então compreenderão as condições de vida na Espanha. — Não discuto isso, marquês; estou aqui ainda não há uma semana e não tive tempo de observar. . . — Como vocês se atrevem a criticar-nos? Eu sei quais são as condições de vida nos Estados Unidos. Não há calçado para todos. A crise habitacional é tremenda, tremenda. Li uma carta publicada na Life. Um ex-militar queixa-se de que não arranja carne, nem vestuário, nem casa para morar. A única coisa que encontra por toda parte são cartazes aconselhando-o a alistar-se de novo no exército. Ele considera isso uma medida do governo. Por que vocês hão de ter crise de habitação? Suas cidades não sofreram destruições. Como se explica então essa crise? Respondi-lhe com as banalidades de costume. E acrescentei: — Numa cidade como Los Angeles, as pessoas que vieram trabalhar nas indústrias de armamento não querem regressar às suas terras. . . — Oh, aqui acontece precisamente a mesma coisa. Temos favelas em todas as cidades, erguidas por camponeses que deviam voltar às suas aldeias. Mas não. Aqui têm cinema e não querem ir embora. Devíamos obrigá-los a voltar para suas terras, onde viveriam muito melhor. Talvez a Espanha e a América, afinal de contas, tenham alguma coisa em comum. Talvez a língua seja o principal entrave às nossas boas relações. Talvez muitos americanos estejam convencidos de que, visto os republicanos de lá serem conservadores e direitistas, os republicanos da Espanha também o sejam. Diga-lhes que não é nada disso. Nossos republicanos são comunistas e assassinos. Diga-lhes isso e talvez possamos ser bons amigos. Calou-se no momento em que atingira um tom agudo, penetrante, e caiu em si, mostrando-se um pouco embaraçado. Tirou um lenço do bolso e levou-o delicadamente à testa. Tive o prazer de verificar que o lenço era de seda. O homem recompôs-se e recostou-se pela primeira vez na cadeira. — E agora vamos às suas credenciais. O senhor escreve para The Saturday Evening Post, Reader’s Digest, Col- lier’s. . . Deteve-se na Collier’s. Premiu um botão na sua memória. Meteu a mão direita no bolso do casaco e tirou de lá uma folha de papel dobrada. Abriu-a,
movendo os lábios como quem está lendo, e tomou a guardá-la no bolso. — Collier’s? — repetiu. — Talvez conheça uma senhora chamada Martha Gelhorn? Achei que a entrevista já dera o que tinha que dar. — É casada com Hemingway — respondi. — Escreve para a Collier’s porcarias ainda piores do que as dele. No ano passado li um artigo dela escrito na França sobre nós, sobre as crianças espanholas refugiadas no sul da França. Era uma rede de mentiras. Parecia coisa de um comunista. Ela é comunista? Por que escreve aquilo? — Nós, na América, temos uma espécie de liberdade de imprensa, e ela escreve o que lhe agrada, escreve o que observa, o que pensa, e as revistas, se lhes convêm, publicam. O marquês não se dava por satisfeito: —• Suas revistas não são verdadeiras quanto à Espanha. Publicam histórias deturpadas. Estão sempre contra nós. A atmosfera estava carregada, mas eu sentia-me enjoado de toda aquela comédia das credenciais. E disse: — Ouça, vocês é que não compreendem a imprensa americana. Deviam estudá-la mais. Quase todas as nossas principais revistas estão contra o comunismo, acusam a Rússia, e, no entanto, essas mesmas revistas são capazes de publicar um artigo pró-Rússia se aparecer algum com valor. Se algum dia, porventura, tiverem à mão um bom artigo sobre a Espanha, onde se prove que há qualquer coisa de positivo a dizer em favor do General Franco, pode ter a certeza de que o publicarão. Até lá, receio que a imprensa americana continue a publicar aquilo a que o senhor chama histórias deturpadas. Pensei que ele ficaria por ali. Mas não. Deixou-se estar um momento de olhos fixos no tampo da secretária, depois ergueu a cabeça, procurou um cigarro no bolso e ofereceu- me um Chesterfield que eu recusei. — Muito bem — disse, erguendo-se por fim. — Temos um longo caminho a percorrer antes de podermos entender-nos. Isto é, nossos respectivos países. Coloquei sobre a mesa meu passaporte e meus documentos: — Quer ver isto, sem dúvida, antes de me conceder as credenciais, não é verdade? — Decerto. Desatarraxou a tampa da caneta e rabiscou uns apontamentos numa folha depois de lançar os olhos para os meus papéis. Guardei tudo no bolso. Ele largou a caneta e estendeu-me a mão comprida: — Passamos uma hora muito instrutiva. Quando quiser poderá me encontrar. Venha, sim. Havemos de conversar sobre os escritores americanos. Não sobre Hemingway, mas sobre outros. Promete? — Com certeza! Bom dia! Nessa noite, no British-American Club, sob os três retratos emoldurados do rei e da rainha da Inglaterra, do presidente dos Estados Unidos e do Generalíssimo Franco, estive com alguns colegas jornalistas ali residentes bebendo uísque com
soda. Embora eles conhecessem todo o pessoal do governo, especialmente os relacionados com a seção da imprensa do Ministério dos Estrangeiros, nunca nenhum deles vira ou ouvira falar do Marquês de Espinardo. — Alto? De bigode? Estudou em Sandhurst? — inquiriu um correspondente que viera para Madri logo depois da chegada de Franco. — Nunca ouvi falar nele. Deve ser novo, na certa é da polícia. Ainda empregam esses métodos. Quanto às credenciais de jornalista, olhe, meu velho, acho que você passa muito bem sem elas. Calou-se durante um momento, refletindo, e acrescentou: — Espinardo? Cheira-me a nome inventado. Ao menos leu Hemingway. . . O que aconteceu depois. . . A história precedente foi o resultado de minha primeira visita à Espanha. Tomara um trem em Paris com destino à fronteira espanhola em janeiro de 1947, parei por pouco tempo na capital basca, San Sebastián, e segui também de trem até Madri. Passado um mês, em fevereiro, eu e minha mulher resolvemos deixar a Espanha de automóvel e partilhar da condução com uma morena jovem e bonita, jornalista free-lance, que se chamava Rita Hume. Seguimos de Madri para Saragoça, e depois até Barcelona, passamos depois por La Junquera, atravessamos toda a Espanha para visitar Montpellier, Marselha, Cannes, Rapallo, e finalmente chegamos a Roma. Durante o tempo que passei na Espanha escrevi três artigos para revistas. Um era sobre os bascos espanhóis, um povo excêntrico, independente e fascinante. Outro contava minhas aventuras numa pequena aldeia espanhola ao sul de Madri, uma terra pobre, habitada por homens corajosos mas revoltados, inimigos de Franco. Quem ali me levara fora Charles Gordian Troeller, editor do jornal luxemburguês LTndépendent, e um amigo deste, rapaz gorducho, com cara de querubim, membro de uma organização subversiva de Barcelona, estimado em toda parte onde estivesse. Publiquei essa história no The Saturday Evening Post. Em parte como consequência dela, mas sobretudo por causa de certas atividades clandestinas em que se meteu, Troeller foi expulso da Espanha e o simpático anarquista, preso e executado. Eu fui convidado a retirar-me da Espanha. No entanto, parece que os dezoito anos que decorreram desde então tiveram uma ação emoliente sobre as autoridades falangistas, porque agora todos os meus livros, tanto de ficção como os outros, têm sido publicados ou vão sê-lo na Espanha, e alguns de meus romances alcançaram ali grande popularidade. O terceiro artigo que escrevi na Espanha foi “O homem que odiava Hemingway”. Leio no meu diário que estive com o Marquês de Espinardo numa sexta-feira, 24 de janeiro de 1947, em Madri. Fiquei tão impressionado e irritado com essa entrevista que escrevi imediatamente o dito artigo, embora nessa altura não tivesse planos de publicá-lo neste ou naquele jornal. Como gostava da história, resolvi incluí-la nesta coleção. Interessou-me então saber o que teria sido feito do Marquês de Espinardo depois de tantos anos. Não sabia a quem me dirigir, até que me lembrei de um amigo jornalista americano que trabalhava para um sindicato de jornais em Madri. . . e escrevi-lhe. Eis aqui a resposta dele: “Meu caro Irving Desculpe minha demora em responder-lhe, mas aguardava o resultado de uma investigação particular sobre o Marquês de Espinardo. Durante muitos dias tentei lembrar- me do nome desse marquês e não consegui. O único nome de
Espinardo que conheço é o de uma pequena aldeia na província de Múrcia. Procurei obter de alguns amigos mais informações. Afirmaram-me que tal nome não é conhecido. Sabe que os títulos de nobreza são hoje vulgares no exército, especialmente no Ministério dos Estrangeiros. Mas esse constituía um verdadeiro mistério. Era difícil identificar o homem, apesar da excelente descrição que você fazia dele na sua história. Para mim uma coisa era certa: o marquês fora ou era ainda agente secreto do Ministério dos Estrangeiros, porque Olascoaga desempenhara também as funções de subchefe do Escritório de Informação Diplomática, e o marquês estava sem dúvida substituindo-o. Não me parece que esse tal marquês se pudesse considerar um simples polícia secreto, tal como afirmou o jornalista no British-American Club. Os polícias secretos na Espanha são muito diferentes e não falam correntemente inglês, como era o caso desse inimigo de Hemingway. O marquês era provavelmente uma personagem mais importante e menos conhecida aqui fora. Parece-me que você não conseguirá apurar mais nada a seu respeito.” Se o marquês acaso ainda era vivo na época, é provável que não tenha ficado nada desgostoso com a notícia do suicídio de Hemingway, em Idaho, naquela manhã de julho de 1961. Mas desconfio também de que ele hoje não deve sentir-se tão satisfeito com o desaparecimento corporal de Hemingway; não ignora por certo que Hemingway, o artista, vive ainda. Sim, Hemingway vive e sobreviverá a todos os seus críticos mortais, sejam eles um marquês espanhol ou um puritano da América. O que eu não pude dizer ao Marquês de Espinardo em nossa conversa de 1947 é hoje sabido por todo o mundo. Tal como Hemingway escreveu em seu romance Morte na tarde: “O sol é muito importante. . . Os espanhóis dizem: 'El sol es el mejor torero’. O sol é o melhor dos toureiros e sem sol o melhor toureiro não está presente na arena. É como um homem sem sombra”. Hoje, mais do que nunca, o sol brilha sobre Ernest Hemingway e, como consequência disso, sua sombra alongada estende-se, envolve e mergulha na escuridão todos os marqueses da terra.
19 O incrível Dr. Bell Certa tarde, na virada do século passado, depois de um fim de semana de caça na Escócia, uma dúzia de convidados conversavam, durante o jantar, sobre assassinatos célebres e crimes por resolver. Um dos presentes, o Dr. Joseph Bell, eminente cirurgião de Edimburgo e professor da faculdade de medicina, mantinha os companheiros suspensos de suas acrobacias dedutivas. — O mal de muita gente — afirmava — é ver sem observar. Um bom detetive deve ser capaz de dizer, antes mesmo de um desconhecido ter tido tempo de se sentar, qual é sua ocupação, seus hábitos e seu passado, bastando para isso apenas uma rápida observação e um pouco de dedução. Olhem bem para um homem e poderão ver-lhe a nacionalidade estampada no rosto, seu modo de vida escrito em suas mãos e o resto de sua história contada em seus gestos, nas tatuagens que tem no corpo, nos berloques da corrente do relógio, nos bicos dos sapatos e na poeira do terno. Os outros convivas mostravam-se céticos. Um deles desafiou o Dr. Bell a dar um exemplo dessa observação sistemática, com o que ele prontamente concordou. — Um doente entrou uma vez na sala onde eu estava dando uma aula. O caso dele parecia muito simples. Falei da sua doença e depois acrescentei, por acaso: “Claro, meus senhores, este homem foi soldado num regimento escocês, provavelmente fez parte de uma banda”. E referi- me ao seu andar bamboleante que lembrava o de um tocador de gaita de foles. Ao mesmo tempo, sua baixa estatura indicava que, no caso de realmente ter sido soldado, devia provavelmente ter tocado na banda. Ele, porém, teimava em que nunca fora outra coisa senão sapateiro e que nunca na vida fizera parte do exército. Isso era um enigma, e, para tirar a dúvida, mandei que dois empregados dos mais fortes o levassem para um quarto ao lado e o despissem à força. “Sob o mamilo esquerdo descobri imediatamente um pequeno D azul tatuado na pele. Era desertor do exército. Costumavam marcar assim os soldados na época da Guerra da Criméia. Compreende-se bem por que tinha negado. No entanto, aquilo provava que minha observação era exata. Ele confessou ter tocado na banda de um regimento escocês durante a guerra contra os russos. Na verdade, a nossa é muito simples, meus senhores.” A maior parte dos convidados mostrou-se impressionada, porém um deles observou ironicamente: — Nesse caso o Dr. Bell é uma espécie de Sherlock Holmes! Ao que ele respondeu secamente: — Meu carosenhor, eu sou o próprio Sherlock Holmes. O Dr. Bell não estava brincando. Era de fato o verdadeiro Sherlock Holmes, a inspiração viva do imortal detetive de ficção. “É sem dúvida a você que eu devo a figura de Sherlock Holmes”, escrevia A. Conan Doyle ao Dr. Bell, em maio de 1892. Trinta e dois anos mais tarde, ainda agradecido ao Dr. Bell, o escritor afirmava em público: — Utilizei eampliei seus métodos quando resolvi criar um detetive científico que resolvia os casos à custa de seus próprios méritos. Ao contrário do detetive, o Dr. Bell não usava boné de caçador, nem capa escocesa até o tornozelo, nem lente, nem tomava cocaína. Enquanto Sherlock
Holmes era um solteirão excêntrico quemorava num apartamento desarrumado na Baker Street, o Dr. Bellera um pai de família comum que tinha um filho e duas filhas. Enquanto Sherlock Holmes vivia num mundo de sombras rodeado por Moriarty e Watson, o Dr. Bell era um cirurgião cujas qualidades haviam merecido os louvores da Rainha Vitória; suas cruzadas em favor da enfermagem granjearam-lhe a amizade de Florence Nightingale, e seu encanto como mestre influenciara durante cinco décadas os licenciados pela Universidade de Edimburgo, entre eles, A. Conan Doyle, Robert Louis Stevenson e Sir James Barrie. No entanto, a única coisa que o detetive e o médico possuíam em comum anulava todas essas diferenças. Assim como Sherlock Holmes se revela o mais ilustre praticante, na literatura, do que ele chama “a ciência da dedução e da análise”, também o Dr. Joseph Bell era talvez o mais brilhante observador do mundo nos últimos cem anos. Muitos dos pontos de vista do Dr. Bell quanto à ciência da observação tornaram-se moeda corrente, desde que a figura de Sherlock Holmes passou a perfilhá-los no decorrer dos seus sessenta contos clássicos: “Que o investigador comece por resolver os problemas mais elementares”, aconselhava Sherlock Holmes. “Ao defrontar-se com qualquer pessoa, deve imediatamente ver se consegue descobrir sua história e o negócio ou profissão a que se dedica... As unhas de um homem, as mangas de seu casaco, as botas, as joelheiras das calças, as calosidades do indicador e do polegar, a expressão do rosto, os punhos da camisa, cada uma dessas coisas pode revelar-nos o caráter de uma pessoa.” Em todas as aventuras, sem exceção, Sherlock Holmes reafirma sua confiança nas regras do pensamento dedutivo e na análise. “Constitui um erro capital estabelecer teorias antes de reunir todos os elementos. Nossa tendência instintiva leva- nos a torcer os fatos para ajustá-los às teorias, em lugar de serem estas que se ajustam àqueles. . . Conhecem o meu processo. Reside na observação das minúcias. . . É curioso que um texto datilografado possa ter quase tanta individualidade como a escrita manual. . . Fiquei muitas vezes conhecendo o caráter dos pais pela observação dos filhos. . . Coloco-me sempre no lugar dos outros e, depois de lhes ter avaliado o grau de inteligência, tento imaginar como eu procederia em idênticas circunstâncias.” Essas regras não passam de um eco do verdadeiro evangelho do Dr. Joseph Bell. — Sempre me esforcei por incutir nos meus alunos o conhecimento da enorme importância que podem ter as pequenas diferenças, o incomensurável significado das bagatelas — declarou o Dr. Bell certo dia a um repórter. — A grande maioria das pessoas, dos incidentes e dos casos assemelham-se uns aos outros no seu conjunto quanto a características gerais. Por exemplo, quase todos os homens possuem, além da cabeça, dois braços, um nariz, uma boca e certo número de dentes. São as pequenas diferenças, as minúcias em si, tais como uma pálpebra mais caída ou outra coisa semelhante que tornam os homens diferentes uns dos outros. Num ensaio sobre o crime, escrito há meio século, o Dr. Bell declara: “A importância das mínimas coisas é incalculável. Se envenenarem um poço em Meca com bacilos da cólera, toda a água santa que os peregrinos levam para as suas terras irá contaminar um continente inteiro, e os restos mortais das vítimas da praga aterrorizarão todos os portos da cristandade”.
E quais seriam esses fatores infinitamente pequenos que o Dr. Bell considerava tão importantes na observação? “Quase todos os ofícios manuais estão inscritos nas mãos de quem os pratica”, afirmava o Dr. Bell. “As cicatrizes do mineiro diferem das do carteiro. Os calos do carpinteiro não são iguais aos do pedreiro. . . O soldado e o marinheiro não caminham da mesma maneira. O sotaque ajuda- nos a distinguir a região a que a pessoa pertence e, para um ouvido hem-treinado, até nos indica a cidade. Nas mulheres, sobretudo, o médico observador pode dizer logo à primeira visita de que parte do corpo se vão queixar.” O Dr. Bell considerava o desenvolvimento da observação uma necessidade para os médicos e para os detetives, e um jogo interessantíssimo para os leigos. Sherlock Holmes, vaidoso, discordava disso, pois não tinha boa opinião do homem comum. “O público, o grande público, que não distingue um tipógrafo pelo seu polegar esquerdo, que se importa ele com os mais imponderáveis graus da análise e da dedução?”, la- mentava-se Sherlock Holmes. Porém o Dr. Bell achava que o público distraído poderia vir a interessar-se muito por essas coisas, uma vez que lhe despertassem a atenção. Cada homem, argumentava o Dr. Bell, é capaz de transformar seu monótono e árido horizonte num mundo de excitação e aventura, desde que lhe excitem as faculdades de observação. Por esse motivo, o Dr. Bell aprovava o detetive de Conan Doyle que difundia as suas ideias. — Doyle demonstra como é fácil, desde que se observe com atenção, descobrir imensas coisas no trabalho e nas maneiras dos nossos inofensivos e inconscientes amigos e, mediante a aplicação do mesmo método, desmascarar os criminosos e revelar o mecanismo do seu crime. . . Suas histórias podem fazer com que um indivíduo, até então desconsolado da vida e farto daquilo que o rodeia, pense que afinal de contas essa mesma vida pode lhe oferecer um interesse novo, bastando para isso abrir os olhos. Uma vez consciente do prazer e utilidade que pode extrair de uma observação atenta, o homem normal achará seu trabalho diário muito mais interessante. Tal como Sherlock Holmes, será capaz de descobrir, olhando para o chapéu de um homem, que a mulher não gosta dele; vendo a sua bengala, que receia ser assassinado; ou, observando o cachimbo, que ele é um tipo forte, canhoto, descuidado e saudável. Pela vida afora, o Dr. Bell continuou a deslumbrar seus amigos e conhecidos com esse jogo de observação. — Quando nossa família viajava de trem — recorda a filha do Dr. Bell, a Sra. Cecil Stisted —, meu pai costumava dizer-nos de onde vinham e para onde iam os outros passageiros e fazia observações sobre suas ocupações e hábitos. Tudo isso sem ter-lhes falado. Quando suas observações, mais tarde, eram confirmadas, nós o considerávamos uma espécie de mágico. Seus alunos tinham dele a mesma opinião. Alguns anos depois da sua morte, A. Conan Doyle declarou numa entrevista: — O Dr. Bell costumava ficar na sua sala de consultas diagnosticando as doenças das pessoas à medida que iam entrando, antes que elas abrissem a boca. Dizia-lhes os sintomas de que sofriam e até lhes revelava pormenores de sua vida passada, sendo raro enganar-se.
Dentro do Hospital Real de Edimburgo, ou na sala do anfiteatro, sob as luzes ofuscantes do gás, o Dr. Bell tentava diariamente provar aos seus alunos que a observação não era uma fórmula mágica, mas uma ciência. Segundo um de seus antigos discípulos, a prova habitual dessa teoria, seu comentário feito numa voz cheia de humor diante de cada novo grupo de estudantes de medicina, incluía a cerimônia de apresentar um cálice cheio de um líquido cor de âmbar, explicando: — Isto, meus senhores, contém um poderoso medicamento. É intensamente amargo. Pretendo saber quais de vocês possuem um elevado poder de observação. Claro que podíamos analisá-lo quimicamente, mas quero que o provem, o cheirem e, visto que nada exijo de meus alunos que eu próprio não seja capaz de fazer, vou prová-lo primeiro antes de passá-lo às suas mãos. O Dr. Bell mergulhava então a ponta do dedo no líquido, levava-o à boca, chupava e fazia uma careta. Fazia depois circular o cálice e cada estudante mergulhava o dedo na nojenta droga, chupava-a e fazia logo uma cara de repulsa. Depois do copinho dar a volta, o Dr. Bell olhava para os alunos e ria. — Meus senhores — dizia então —, vejo que nenhum de vocês possui esse tal poder de percepção de que tanto tenho falado, porque, se acaso tivessem me observado com atenção, veriam que foi o indicador que mergulhei no remédio, mas foi o médio que levei à boca! Nas enfermarias do Hospital Real, nos dispensários e especialmente na consulta externa, o Dr. Bell punha em prática o que pregava. Olhando para um recém-chegado, dizia: — Um sapateiro, pelo que vejo. — E explicava aos alunos que a calça, no interior do joelho, estava gasta; era ali que o homem encostava a pedra de afiar a faca, conforme costumavam fazer os sapateiros. Outra vez, quando apareceu um lavrador queixando-se de uma afecção na espinha, o Dr. Bell avisou-o: — Acredito que lhe doam as costas, mas transportar tijolos não lhe faz bem nenhum. O lavrador mostrou-se admirado e perguntou com estranheza: — Não digo que seja mentira, mas quem disse ao senhor que minha vida é transportar tijolos? O Dr. Bell replicou apontando para as mãos particularmente grosseiras e calosas do homem. Certo dia, quando um doente de rosto curtido entrou na enfermaria, o Dr. Bell olhou-o e disse aos estudantes: — Meus senhores, ali vem um pescador. Estamos num dia quente de verão e contudo ele está de botas altas. Só um pescador as usaria nesta estação. O tom de sua pele indica que se dedica à pesca costeira. Traz uma faca no bolso, como é uso entre eles. E, para confirmar minhas deduções, estou vendo algumas escamas pequenas presas em sua roupa e em suas mãos. Os alunos recordaram durante muito tempo algumas das proezas dedutivas do mestre. O Dr. Harold Emery Jo- nes informa que o Dr. Bell costumava chamar os alunos da primeira fila a fim de tentar avaliar suas qualidades de observação. — Que doença tem este homem? — perguntou certo dia a um estudante muito atrapalhado. — Não, não o toque. Sirva-se apenas dos olhos, da inteligência,
de seu sentido de percepção, de sua capacidade dedutiva. O estudante gaguejou: — Luxação do quadril, mestre. — Quadril nada — respondeu o Dr. Bell, abanando a cabeça. — O homem manca por causa do pé. Se o tivesse observado com atenção veria que os sapatos dele estão marcados em todos os pontos onde o contato entre o couro e o pé é mais direto, o que se vê que foi feito propositadamente com uma navalha. Este homem sofre de calos, meus senhores. Mas não foi para se tratar disso que aqui veio. Tem uma doença mais grave. “É um caso de alcoolismo crônico. O nariz avermelhado, a face intumescida e balofa, os olhos raiados de sangue, as mãos trêmulas, os músculos do rosto contraídos, juntamente com a pulsação das artérias da fronte, tudo o demonstra. Essas deduções devem, no entanto, ser confirmadas por meio de provas absolutas e concretas. Neste caso, meu diagnóstico fica provado pelo gargalo de uma garrafa de uísque que vejo no bolso direito do casaco do doente. . . Nunca devem perder uma oportunidade de confirmar as suas deduções.” Porém o exemplo mais notável da capacidade dedutiva do Dr. Bell é aquele que A. Conan Doyle relata em sua biografia. Um doente inteiramente desconhecido do Dr. Bell entrou no consultório. O mestre observou-o em silêncio e disse: — Ora bem, meu rapaz, você esteve na tropa. — É verdade. — Foi desmobilizado há pouco. — É verdade. — Num regimento escocês? — É verdade. — Em missão em Barbados? — É verdade, doutor. O Dr. Bell voltou-se para os alunos: — Observem, senhores, que este homem, um homem bem-educado, não tirou o chapéu. Não é costume fazê-lo, no exército; mas ele teria se habituado aos costumes civis se estivesse desmobilizado há muito tempo. Quanto a Barbados, ele sofre de elefantíase, e essa doença é característica das índias Ocidentais. Alguns anos depois, A. Conan Doyle achava-se ainda suficientemente impressionado por esse incidente (“Verdadeiramente milagroso até ser explicado”, concordava ele) para reproduzi-lo com exatidão em sua história de Sherlock Holmes, O intérprete grego. A. Conan Doyle, após cinco anos de laborioso estudo, formou-se em medicina na Universidade de Edimburgo, em 1881. Pendurou a tabuleta de oftalmologista na porta e esperou que aparecessem os doentes. Depois de seis anos ainda estava esperando. Sem clientela, necessitando arranjar dinheiro de qualquer forma, lançou mão da pena. Depois de uma estréia pouco feliz e influenciado por Gaboriau e Poe, resolveu tentar o conto policial. Para isso precisava de um novo tipo de detetive. “Lembrei-me então de meu antigo professor, Joe Bell, de seu rosto aquilino,
de suas maneiras curiosas, de sua estranha mania de reparar nos pormenores”, confessa Doyle em sua autobiografia. “Se eu fosse detetive reduziria todo esse interessante, mas desorganizado, processo a algo semelhante a uma ciência exata. . . Isso era decerto possível na vida real, então por que não tentaria torná-lo plausível na ficção? Nada há de mais fácil do que dizer que um homem é inteligente, mas o leitor quer exemplos desse fato, da natureza daqueles que Bell nos oferecia todos os dias nas consultas. A ideia divertiu-me. Mas como iria chamar minha personagem?” Pôs-lhe o nome de Sherlock Holmes, em honra de um conhecido jogador de críquete chamado Sherlock e de Oliver Wendell Holmes. Ao descrever seu detetive, Doyle recordou-se outra vez de seu antigo professor, que contava quarenta e quatro anos da última vez que o vira. — Era magro, seco, moreno, com olhos penetrantes, ombros angulosos e falava secamente. Sua voz era aguda e desafinada. A partir deste modelo de Doyle, surgiu nosso conhecido Sherlock Holmes, alto, curvo, de rosto cavado, atento e impenetrável. Apareceu em primeiro lugar no Beeton’s Christmas Annual, com Um estudo em vermelho, no ano de 1887, sendo pouco apreciado. Mas, mesmo assim, um editor americano, depois de três anos, encomendou-lhe mais histórias de Sherlock Holmes e foi quanto bastou para que o célebre detetive imortalizasse o seu criador. As habilidades dedutivas de Sherlock Holmes entusiasmavam os leitores de ambos os lados do Atlântico. Cada proeza do nosso herói era discutida e admirada pelos seus adeptos de toda parte. Em Aventura do construtor Nor- ivood, quando um jovem impulsivo entra no quarto de Sherlock Holmes na Baker Street e anuncia chamar-se John McFarlane, este replica calmamente: — O senhor me diz seu nome como se eu devesse reconhecê-lo, mas garanto-lhe que, além de saber que é solteiro, advogado, maçom e asmático, ignoro tudo a seu respeito. Em Aventura do carbúnculo azul, depois de observar o chapéu ensebado e duro de um desconhecido, Holmes conclui que “o homem era evidentemente um intelectual, e também que vivera bem durante os últimos três anos, embora naquele momento estivesse atravessando um período difícil. Tinha uma larga visão das coisas, porém sua moral começara a decair um pouco, fato este que, juntamente com seu declínio financeiro, parecia indicar alguma influência perniciosa, talvez a bebida. Isso deve ter contribuído igualmente para o fato de a mulher haver deixado de gostar dele. . . No entanto, o sujeito mantém ainda um certo respeito por si próprio. Leva uma vida sedentária, sai pouco, perdeu por completo o tônus muscular, é de meia-idade, tem cabelos grisalhos que cortou há poucos dias e que unta com creme de lima”. Essa habilidade literária, tornada tão plausível pela pena hábil de Doyle, transformou-se numa verdadeira loucura internacional. Porém, um médico formado em Edim- burgo descobriu onde Holmes fora buscar seu modelo. Em 1893, um ano antes de morrer, Robert Louis Stevenson, depois de conhecer pela primeira vez o “engenhoso e muito interessante” Sherlock Holmes, perguntou a A. Conan Doyle numa carta escrita de Samoa: “Só me intriga uma coisa. Este homem será o meu velho amigo Dr. Joe Bell?” Conan Doyle apressou-se a informar Stevenson, a imprensa e o mundo inteiro de que o protótipo de Sherlock Holmes fora na verdade o Dr. Bell. Escrevia também a este:
“Receio que uma das consequências de eu haver revelado sua identidade será o senhor vir a ter ampla oportunidade de estudar cartas de malucos, pois certamente parte das que chovem sobre mim passarão a cair em cima do senhor. Vai ter notícias, por mal dos seus pecados, de um jovem do sul de Portugal, de uma senhora americana que tem uma curvatura na espinha, de um negociante de Liverpool que morre de curiosidade de saber quem é Jack, o Estripador, de muita gente convencida de que os vizinhos matam de fome tias solteironas em sótãos hermeticamente fechados”. A princípio, o Dr. Bell alcunhava os repórteres de “vilões” e fingia-se zangado com Conan Doyle. Mas no íntimo sentia-se contente por o considerarem o inspirador de Sherlock Holmes e com a grande publicidade obtida pelos seus métodos. Quando, em 1892, o Dr. Bell lembrou a Conan Doyle que ele podia apresentar numa história um assassinato por meio de germes, este respondeulhe: — Acho que se poderia fazer uma coisa muito interessante sobre um crime bacteriológico, porém meu único receio é que isso só interessasse a um certo público mais culto, pois as pessoas comuns só se interessam pelo que entendem. Conan Doyle, no entanto, aceitou quase todas as outras sugestões do Dr. Bell. Um dia, este contou-lhe a história do desertor do exército escocês que teimava em passar por sapateiro, para esconder o fato de ter sido desertor. Conan Doyle aceitou a história com prazer e escreveu-lhe dizendo: “O sapateiro desertor é um caso admirável e faço votos para que apareçam muitos como este. Tudo o que me tem contado é de grande utilidade”. E, noutra carta para o Dr. Bell, prosseguia: “Seu resumo do crime é formidável. Precisa de um enredo para despistar, mas o essencial está lá. Se me der licença, vou aproveitar a ideia”. Apesar de, ao referir-se ao seu antigo mestre de Edim- burgo, A. Conan Doyle observar que “era no sentido da descoberta das doenças e não dos crimes que se mostravam mais espantosos os talentos do Dr. Bell”, este não resistia à tentação de meter a colher num assassinato de primeiro grau. Essa era a atividade particular a que mais se dedicava. Como detetive amador, e sem nomeação oficial, o Dr. Bell trabalhou durante vinte anos com Sir Henry Littlejohn, professor de medicina legal e médico da polícia de Edimbur- go. A glória do Dr. Bell, antes de se ter tornado famoso como modelo de Sherlock Holmes, foi o papel que desempenhou no célebre caso Chantrelle. Eugène Chantrelle, outro estudante de medicina em Paris, era um jovem forte e bem-apessoado, de suíças. Fora para Edimburgo em 1866, a fim de ensinar línguas; um ano depois, seduziu uma aluna de quinze anos chamada Elizabeth Dyer, sendo obrigado a casar-se com ela. Esse enlace foi particularmente infeliz. Quando se excitava, Chantrelle costumava espancar a mulher até cobri-la de manchas negras, ameaçando envenená-la, depois deixava-a sozinha e percorria todos os bordéis da cidade. Em outubro de 1877, receando que sua frágil esposa sofresse algum acidente, Chantrelle fez-lhe um seguro de vida no valor de cinco mil dólares. Dali a poucas semanas a criada ouviu um leve gemido no andar superior. Correndo para o quarto de Mme Chantrelle, a moça encontrou-a desmaiada. Junto da cama estavam meio copo de limonada, alguns gomos de laranja e uns restos de uvas. Depois de chamar pelo nome da patroa, a criada foi buscar um médico. No regresso, ainda viu Chantrelle afastando-se da janela. O copo de limonada estava vazio, a laranja e as uvas haviam desaparecido. Quando o médico chegou, Eugène
Chantrelle disse que a mulher fora vítima de um vazamento de gás. Imediatamente, o médico mandou um bilhete a Sir Henry Littlejohn: “Se quiser ver um caso de envenenamento por gás, venha imediatamente”. Littlejohn e o Dr. Bell observaram tanto o quarto como a doente, e depois levaram-na para o hospital. Esta viria a morrer ao cabo de algumas horas. Disseram a Chantrelle que ela fora vítima de envenenamento por narcótico. Ele porém reagiu: — Os senhores sabem que tivemos um vazamento de gás. No entanto prenderam-no como assassino. Littlejohn e o Dr. Bell tinham encontrado, evidentemente, vestígios de veneno. Havia sinais de vômitos negros no travesseiro e duas nódoas da mesma natureza na camisola, as quais revelaram a existência de ópio em forma sólida, misturado com fragmentos de uva, mistura semelhante à que se encontrava no tubo digestivo da morta. Ao investigar junto às drogarias, o Dr. Bell descobriu que Chantrelle comprara havia pouco trinta doses de ópio. Chantrelle continuava a clamar em altos brados que a mulher morrera em consequência do vazamento de gás. Depois de procurarem, os empregados da companhia de gás localizaram um cano furado no quarto da vítima. A criada, que afirmava não ter sentido o menor cheiro de gás no quarto, mas sim um odor muito leve quando voltara depois de ter ido chamar o médico, e ter encontrado Chantrelle afastando-se da janela, era de opinião que fora ele quem rompera o cano para simular morte acidental. Chantrelle respondia que nunca poderia ter rompido tal cano, visto ignorar até sua existência. Desconfiado, o Dr. Bell começou a procurar por todos os lados, até que descobriu um encanador que afirmava ter reparado o cano no ano anterior, “enquanto Chantrelle observava com cuidado a operação”. Em face desse testemunho, e tendo-se provado ainda que ele se encontrava em situação econômica bastante embaraçosa, o francês foi levado ao tribunal. O julgamento durou quatro dias. O júri levou uma hora e dez minutos deliberando. O veredicto foi “culpado de assassinato”. A 31 de maio de 1878, Chantrelle, farsante até o fim, partiu para a sua longa viagem. Um antigo aluno do Dr. Bell descreve a cena. Na manhã da execução, Chantrelle apareceu no cadafalso impecavelmente vestido e fumando um charuto caro. O Dr. Littlejohn estava presente, como era seu dever. Quando ia ser amarrado, Chantrelle tirou o chapéu, deu a última tragada e, acenando para o médico da polícia, gritou: “Adeus, Littlejohn. Não se esqueça de apresentar meus cumprimentos ao Dr. Bell. Estou neste cadafalso por sua culpa. Fizeram um lindo serviço!” Outro inquérito mais espetacular, se bem que menos lisonjeiro para o Dr. Bell, foi o célebre caso Monson. Em 1890, certo financista londrino, o Major Dudley Ham- brough, contratou um jovem doutor de Oxford, chamado Alfred Monson, que se encontrava falido, para ensinar seu filho Cecil, de dezessete anos, que ia entrar para a universidade. Dali a três anos, depois de ter conquistado a amizade do rapaz, Monson segurou-o na New York Mutual Assurance Company pela quantia de cem mil dólares, indicando como única beneficiária sua mulher. Dali a poucos dias, de manhã cedo, Monson e um amigo acompanharam Cecil à caça, nos bosques das vizinhanças. Dentro de poucas horas Alfred Monson veio anunciar calmamente que Cecil Hambrough morrera. Declarou que, mal se haviam separado, ouvira um tiro e encaminhara-se nessa direção.
— Vi então Hambrough caído sobre o lado esquerdo, com a espingarda junto de si. Erguemo-lo, mas já estava quase morto. Todos acreditaram numa morte acidental. Cecil havia tropeçado, sem dúvida, e fora atingido pelo tiro da espingarda. Passado pouco tempo, Monson reclamava os cem mil dólares do seguro. A companhia respondeu que Cecil erà menor e que por isso a apólice não tinha validade. Monson, porém, esperava conseguir extorquir-lhes o dinheiro de qualquer maneira. Em vista disto, a companhia de seguros começou a desconfiar, e um mês depois Sir Henry Littlejohn e o Dr. Bell exumaram o corpo e examinaram-no. Descobriram no crânio do cadáver um ferimento triangular, bem delimitado, não se vendo vestígios de queimaduras ou qualquer mancha negra de pólvora. Durante a reconstituição do crime, o Dr. Bell provou que, para se produzir uma ferida como aquela, o tiro teria de ser disparado a uns seis metros do corpo, por outra pessoa. No caso de Cecil haver ferido a si próprio, de propósito ou por acidente, a espingarda teria de se encontrar a sessenta centímetros pelo menos da cabeça, e esta ficaria desfeita, vendo-se os seus restos enegrecidos ou queimados. Monson foi acusado de assassinato. A Coroa, utilizando variadíssimas testemunhas, pretendeu provar que Monson já tentara afogar Cecil abrindo um buraco num barco a remo, cujo tampão tiraria no momento oportuno. Falhando dessa vez, alvejara então o rapaz pelas costas. Em face dessa acusação, o Dr. Bell subiu ao banco das testemunhas para declarar: — O Sr. Hambrough morreu em consequência de um tiro, e não consegui encontrar nenhuma prova de que fosse ele próprio quem deu o tiro, quer acidentalmente quer de propósito. O juiz presidente, Lorde Kingsburgh, presidia pela primeira vez um tribunal. Em suas memórias, confessa mais tarde que passou noites em claro, “coberto de suores, pensando no caso”. Preferiu julgar pelo seguro e pediu ao júri que não se deixasse influenciar pelos maus precedentes de Monson. Dali a pouco mais de uma hora o júri anunciava: “Não provadas as duas acusações”, o que significava uma absolvição. Até o fim da vida, o Dr. Bell ficou convencido da culpabilidade de Monson. — Escapou por se tratar da primeira sentença de Kingsburgh — dizia ele à mulher. — Kingsburgh tinha medo de estrear com uma sentença de morte. O Dr. Bell teve a satisfação de saber que mais tarde Monson foi parar na prisão por ter tentado de novo fraudar uma companhia de seguros. O Dr. Bell perseguia o crime impossível, tal como outros tentam resolver palavras cruzadas. Em 1888, quando o louco e malvado Jack, o Estripador, vagava pelas ruas de Londres, o Dr. Bell cooperou com a polícia. Depois de receber um relato completo de todos os indícios, levou a cabo a maior parte de seu trabalho, neste caso sem sair de Edim- burgo. Nunca ninguém soube se Jack, o Estripador, seria um homem ou uma mulher, mas todos concordam em que se trata do maior monstro dos tempos modernos. Seus assassinatos cirúrgicos, desde então explorados no cinema, no teatro, em romances, etc., começaram em agosto de 1888, quando se descobriu, numa valeta de Whitechapel, uma prostituta com o pescoço cortado e o corpo cruelmente mutilado. No mês seguinte, apareceram mais três prostitutas dissecadas. A Srta. Chapman foi encontrada nos fundos de um prédio de apartamentos com a cabeça quase separada do corpo, os órgãos internos
extraídos e colocados aos seus pés. A Srta. Stride foi morta no gramado de uma casa na qual estava se dando uma festa. (Passou um homem com uma carroça e interrompeu a dissecação. O cavalo espan- tou-se e o Estripador fugiu.) A Srta. Eddowes foi degolada numa viela e o assassino limpou as mãos no seu vestido. O quinto caso foi o pior de todos. Mary Kelly, de vinte e quatro anos, uma bela prostituta, foi encontrada nua na cama, com as orelhas, o nariz e os órgãos vitais todos cortados e dispostos em redor do cadáver, estando o coração sobre o travesseiro. “O criminoso deve ter gasto duas horas naquele trabalho diabólico”, afirmou a Scotland Yard. “O louco fez uma fogueira com alguns papéis e, iluminada por essa luz macabra, a cena deve ter ultrapassado tudo o que Dante presenciou em sua visita aos Infernos.” Foram estes os cinco casos de assassinato absolutamente indiscutíveis. Houve três outros prováveis. A cidade de Londres andava aterrorizada, e toda pessoa que possuísse uma faca comprida ou alguns conhecimentos de anatomia era logo tida como suspeita. Existia um barbeiro polaco, que tinha sido visto nas vizinhanças de um dos crimes (que tinham cessado quando ele se mudara para Jersey City). Havia um médico russo e louco. Havia um marinheiro americano. Havia um outro médico inglês que foi encontrado afogado no Tâmisa logo depois do último crime. Ajudado por um amigo, o Dr. Bell passou um pente fino em toda a investigação. O Dr. Bell e seu amigo começaram a investigar separadamente. Dos suspeitos que examinou, o Dr. Bell escolheu o que lhe pareceu ter mais probabilidades de ser o criminoso, e escreveu seu nome num papel que guardou num envelope fechado. O amigo fez outro tanto. Trocaram os envelopes. O nome que haviam escrito era o mesmo. O Dr. Bell comunicou isso à Scotland Yard. Dali a uma semana cessaram os crimes. Se se tratou de uma coincidência apenas ou se o Dr. Bell realmente acertou, nunca se soube. Porém, os crimes acabaram. . . e Jack, o Estripador, nunca foi preso. A despeito da fama que alcançou como modelo de Sherlock Holmes, o Dr. Bell odiava a publicidade. Era um homem calado, e os entrevistadores pouco conseguiam apurar sobre seus antecedentes ou sua vida privada. Joseph Bell, descendente de cinco gerações de médicos, era o filho mais velho de um conhecido e dedicado doutor. Aos vinte e dois anos formou-se pela Universidade de Edim- burgo e dali a dois anos era cirurgião oficial do Hospital Real. Possuía uma coragem espantosa. Certa ocasião, quando a difteria era ainda uma doença pouco conhecida, trouxeram-lhe para consulta uma criança atacada dessa moléstia. Depois da operação, as matérias infectadas haviam-se acumulado e não havia meio de as extrair, de modo que a criança poucas probabilidades tinha de escapar. Sem hesitar um momento, o Dr. Bell colou os lábios à boca da criança, sugou-lhe as membranas da garganta e salvou-a. Em consequência disso contraiu a difteria, que lhe prejudicou para sempre a voz. Quando a Rainha Vitória visitou a Escócia e lhe contaram essa história, quis felicitar pessoalmente o Dr. Bell. — A boa velhota era tão amável — relatou ele mais tarde —, que eu não me senti nada atrapalhado. O Dr. Bell dedicou grande parte de sua carreira a defender a enfermagem e conseguiu dessa forma a amizade de Florence Nightingale e de Robert Louis Stevenson. Numa época em que as enfermeiras pouco mais valiam do que mulheres da rua e não revelavam o menor interesse pelos doentes, o Dr. Bell lutava para imprimir dignidade a essa profissão. Mais tarde, quando passou a ser
moda tirar o curso de enfermagem, ele combateu igualmente as moças bonitas que só pretendiam ser enfermeiras por causa do uniforme. O único livro que o Dr. Bell publicou, em 1906, inti- tula-se: Notas sobre cirurgia para uso das enfermeiras. A vida conjugal do Dr. Bell foi idílica, mas de pouca duração. Casou-se aos vinte e oito anos, e a mulher, que se chamava Edith, falecia passados nove anos. Atirou-se ao trabalho, enchia a casa de amigos, e envelheceu como um viúvo impenitente. Um de seus alunos recorda-se dele como um “escocês vivaz, já maduro, forte, mas não alentado, de maneiras enérgicas. Tinha um rosto curtido, avermelhado, cabelos e sobrancelhas grisalhas, com uns pequenos tufos dos lados, como suíças”. Mancava um pouco, em virtude de uma antiga queda numa caçada, e possuía uma vista tão penetrante que conseguia identificar todos os pássaros que via voando. Gostava de guiar automóvel com velocidade, nunca be- bia, e afirmava que os cigarros lhe esfriavam os pés. Quando estava em sociedade, exprimia opiniões bem definidas sobre tudo: — As pessoas histéricas são, geralmente, mentirosas — afirmava. Ou então: — Não tenho paciência para aturar os beatos. A hipocrisia e a beatice andam sempre de mãos dadas. — Ainda, depois de ter visitado os túmulos de Wel- lington e de Nelson: — Não gostaria de tê-los conhecido. Os heróis não se devem conhecer de perto. Era imperialista e, defendendo a Guerra dos Boêres em conversa com um amigo, afirmava: — Decerto não gostaria de nos ver expulsos da África do Sul. Quando uma nação principia a ceder, está moribunda e em breve estará completamente morta. Acima de tudo, possuía um grande senso de humor. Quando seus convidados lhe pediam que contasse suas proezas dedutivas, comprazia-se em relatar a história da visita que fizera um dia a certo doente que estava de cama numa enfermaria: — O senhor era músico de banda? — perguntou ele, curvando-se sobre o paciente. — Era, sim — confessou o enfermo. O Dr. Bell voltou-se, triunfante, para os alunos: — Estão vendo, meus senhores, como eu tinha razão? É muito simples. Este doente apresenta uma paralisia dos músculos da face, resultante do fato de soprar continuamente no instrumento. Sua resposta irá confirmar isso. Que instrumento o senhor tocava? O doente ergueu-se apoiado no cotovelo e respondeu: — O bumbo grande, doutor! O Dr. Bell morreu em outubro de 1911 com setenta e quatro anos. Seu enterro foi impressionante, e nele tomaram parte a Banda Real Escocesa, uma delegação de enfermeiras, uma multidão de médicos e um enxame de pobres que tratara. Morreu, mas não descansou por muito tempo. Nos últimos tempos de sua vida, antes de morrer, no ano de 1930, Conan Doyle começou a interessar-se intensamente pelo espiritismo. Ele, que uma vez matara Sherlock Holmes e depois o fizera reviver, tentava agora ressuscitar seu protótipo. Em certa sessão, anunciou que o falecido Dr. Bell ia encarnar e falar naquela noite. Como prova disso apresentou uma fotografia do espírito do Dr.
Bell com os cabelos ao vento e uma veste comprida. Quando a filha do Dr. Bell, Sra. Stisted, viu o retrato, ficou furiosa. — Não se parece nada com meu pai — afirma ela hoje. — Seja como for, se ele pudesse voltar e aparecer a alguém, tenho certeza de que seria a mim! O que aconteceu depois. . . Lembrei-me de escrever esta história há muitos anos, ao ler um texto onde havia alguns dados sobre a personagem real, dotada de faculdades de observação verdadeiramente extraordinárias, que inspirara a criação da figura de Sherlock Holmes. Pelo livro de Doyle também fiquei sabendo que o nome dessa pessoa era Dr. Joseph Bell, professor de medicina na Universidade de Edimburgo. Foi a curiosidade apenas o que me levou a investigar a vida desse misterioso Dr. Bell. Sentia-me ansioso por saber o máximo possível sobre um ser humano possuidor de semelhantes dons. Tal investigação não foi nada fácil. Vime obrigado a recorrer a muitas fontes remotas, a construir o homem inteiro a partir de um simples nome. Avancei alguma coisa quando descobri, num livreiro de Londres, certo relato intitulado: Joseph Bell, uma opinião, de Jessie Saxby. Avancei mais um passo ao apurar que uma filha dele, Sra. Cecil Stisted, vivia em Egerton, Kent, e se prontificava a con- tar-me as recordações que tinha do pai e a me emprestar suas cartas e livros de apontamentos. Obtive outra informação valiosa quando descobri alguns de seus escritos e consegui localizar alguns de seus antigos alunos, espalhados por longínquas cidades, tais como Edimburgo, Calgary e Chicago. À medida que ia ampliando minhas notas, quis escrever um livro pequeno e biográfico sobre o Dr. Bell. Embora não tivesse reunido material suficiente para um livro, este no entanto era bastante para um bom artigo de revista. Tratei logo de escrevê-lo. Em forma abreviada, “O incrível Dr. Bell” apareceu como artigo principal na The Saturday Re- view of Literature de maio de 1948. Contente com o acolhimento internacional a meu artigo, perguntava a mim mesmo se não deveria tentar levar a cabo o tal projeto de livro. Durante anos pensara em escrever uma coleção de biografias com o título Vidas extraordinárias de pessoas que inspiraram figuras memoráveis da ficção, nas quais revelaria quem haviam sido na realidade Robinson Crusoé, Emma Bovary, o Dr. Jekyll e Mr. Hyde. E decidi realizar o projeto. Fiz mais investigações sobre o Dr. Bell, depois ampliei e desenvolvi meu artigo; este serviu-me de alicerce para um dos capítulos de meu primeiro livro publicado: Os modelos fabulosos, que apareceu nos Estados Unidos em 1955. Muitas pessoas que haviam conhecido o Dr. Bell, algumas das quais me haviam ajudado a investigar, escreveram- me. Uma delas foi o Dr. Douglas Guthrie, professor de história da medicina na Universidade de Edimburgo, que me dizia, em carta de 10 de outubro de 1955, depois de ler o meu artigo: “Mal comecei a ler ‘O verdadeiro Sherlock Holmes’, me senti fascinado, e não descansei enquanto não acabei o capítulo. Embora eu não seja tão fanático por Conan Doyle, sou um admirador convicto de Sherlock Holmes e conside- roo muito melhor do que qualquer outra personagem dos livros policiais modernos. Talvez a razão disso seja o fato de eu me recordar de haver visto Joseph Bell nos meus tempos de estudante e de ter presente o interesse com que se liam então as primeiras aventuras na Strand Magazine e de como era disputado cada novo número da revista. Vai ficar penalizado ao saber, se é que já não sabe, do falecimento da Sra.
Cecil Stisted, de Egerton, em Kent, ocorrido aqui há um ano, última representante da família do Dr. Joseph Bell. O filho desta, Sr. Joseph Bell (Stisted), vive ainda na casa que pertenceu à mãe, segundo me parece.” Entre os que reagiram ao artigo e depois ao capítulo do livro, que aliás lhes agradou menos — de fato algumas pessoas ficaram até um pouco aborrecidas —, conta-se Adrian Conan Doyle, filho do criador de Sherlock Holmes. A única informação biográfica que possuo sobre ele é a que aparece na contracapa do livro As façanhas de Sherlock Holmes. Esse volume engloba uma dúzia de contos de Sherlock Holmes, recentemente escritos, em parte com a contribuição do próprio Adrian Conan Doyle, mas todos baseados em referências a outros casos de Sherlock Holmes feitos por Watson nas histórias autênticas de Sir Arthur Conan Doyle. Pela contracapa ficamos sabendo que “Adrian Conan Doyle é o filho mais novo de Sir Arthur Conan Doyle, e herdeiro literário do pai”; que foi educado na tradição vitoriana e que, “tal como o pai, tem uma grande predileção pela aventura, e, acima de tudo, possui o mesmo sentido de cavalheirismo que tanto caracterizava Sherlock Holmes. Adrian Conan Doyle utiliza a mesma mesa em que escrevia o pai”. Achei isso mais curioso ainda, porque sempre achara Adrian Conan Doyle formidável. E fez-me compreender melhor o que agora relato — o que me aconteceu quando Adrian Conan Doyle veio a saber que eu partilhava da ideia de que fora o Dr. Bell quem havia inspirado a figura de Sherlock Holmes. A verdade é que não era o primeiro nem o único a incorrer na fúria de Adrian Conan Doyle. Quatro anos antes de ser publicada a minha história, a Sra. Stisted mostrara aos jornalistas algumas cartas dirigidas por Sir Arthur Conan Doyle ao pai, onde se provava que o Dr. Bell havia sido o modelo vivo de Sherlock Holmes. Adrian Conan Doyle saltou imediatamente em defesa de seu progenitor, afirmando que fora ele próprio o modelo de sua personagem, ponto de vista que publicou nas páginas do Evening News de Edimburgo: “Não é meu desejo amesquinhar os dotes notáveis do Dr. Bell, nem pôr em dúvida sua influência sobre meu pai. Pretendo, sim, retificar a impressão incorreta de que Sherlock Holmes era, de fato, apenas um reflexo literário do Dr. Bell. As cartas citadas pela Sra. Stisted não trazem nada de novo, pois, como sabem todos os velhos amigos de meu pai, uma das suas características mais apreciáveis era o prazer autêntico que sentia em atribuir grande parte do mérito de suas aventuras aos outros, em lugar de chamá-lo a si”. Isso representava o início de uma luta aberta, embora se mostrasse ainda respeitoso e delicado, sem dúvida por respeito ao sexo e à idade de sua inimiga. Mas foi talvez a última vez que Adrian Conan Doyle se revelou em público assim delicado em suas relações com as hostes do campo do Dr. Bell. Em 1943, o conhecido biógrafo inglês Hesketh Pearson publicou uma biografia não-autorizada que se intitulava Conan Doyle. Escrevia ele: “Existiram modelos vivos, tanto para Watson como para Sherlock Holmes. Doyle sempre declarou que o Dr. Joseph Bell, cirurgião do Hospital Real de Edimburgo, era o modelo de Sherlock Holmes, mas Bell confessara um dia que Doyle lhe devia ‘muito menos do que aquilo que julgava’. O que sucedia, sem dúvida, era que Bell estimulava a fantasia de Doyle, a qual, uma vez posta a trabalhar, ultrapassava de longe o modelo”. Hesketh Pearson continuava a descrever pormenorizadamente os dons dedutivos do Dr. Bell e várias vezes se referia à dívida de Sir Arthur Conan Doyle para com seu antigo mestre. (Devo acrescentar aqui que, quando Hesketh Pearson
leu mais tarde meu artigo sobre o Dr. Bell, me escreveu o seguinte: “Embora isto não tenha grande importância, você declara que a minha biografia de Conan Doyle não foi autorizada. A verdade é que a família Doyle, representada por Adrian, me facultou o acesso a certo material particular, fato a que me refiro na nota no início do livro; claro que este foi escrito com toda a independência, e a família não gostou da maneira honesta como tratei o pai, sobretudo no que se refere ao seu culto do espiritismo”.) Quer tenha sido pela maneira como ele se referiu ao espiritismo do escritor ou simplesmente em virtude da observação de que o Dr. Bell “estimulava” a imaginação de Sherlock Holmes, ou por ambas as razões, a verdade é que a biografia de Conan Doyle exerceu um efeito particularmente irritante na pessoa do filho. Em 1945, visando diretamente a Pearson, o mais novo dos Doyle publicou um livrinho, O verdadeiro Conan Doyle, cujo objetivo era rebater, segundo se afirma na contracapa, “os biógrafos feitos à pressa que escreveram sobre Arthur Conan Doyle, sem terem tido acesso aos documentos de família”. Prosseguia afirmando que o desmentido de Adrian Doyle “gerara grande furor entre os adeptos de Conan Doyle”. Na sua monografia, Adrian Doyle começava por dizer: “Durante o ano passado, senti-me desolado com a quantidade de cartas que me foram endereçadas, tanto da parte de amigos como de estranhos, protestando contra uma ‘biografia’ arbitrária de meu pai escrita por Hesketh Pearson. Visto a maioria dos meus correspondentes estarem convencidos de que o original fora previamente submetido à minha apreciação antes de publicado, tenho de lhes declarar que nada disso se passou. Na descrição que fez de meu pai e de suas opiniões, esse livro é uma farsa”. Treze páginas adiante, Adrian Doyle atingia o auge do seu ataque: “Hayden Coffin, jornalista americano, deu-nos inteira razão, ao comunicar à imprensa o que meu pai lhe dissera numa entrevista particular em 1918: ‘Se alguém é Sherlock Holmes, esse alguém sou eu’. Durante meio século, muitos escritores e alguns críticos mal-informados têm confundido o público, atribuindo todo o mérito, e não apenas parte dele, da figura de Sherlock Holmes, ao Dr. Joseph Bell, o que é tão ridículo como se o público, num concerto, não aplaudisse o brilhante virtuoso, mas sim o mestre que lhe deu lições. Conan Doyle era demasiado grande para se sentir ofuscado por essa má interpretação. Na realidade, sei que ele se divertia até bastante com ela. No entanto, revelou parte da verdade quando escreveu: ‘Um homem não pode erguer uma figura, tornandoa real e plausível, caso não possua dentro de si as possibilidades dessa figura’. As qualidades do Dr. Bell fizeram germinar a tendência dedutiva de Conan Doyle. Sucedeu apenas isso e nada mais. Se o bondoso doutor tivesse tido o poder de criar dons que não estivessem já latentes, nesse caso o curso médico da Universidade de Edimburgo, de 1876 a 1881, teria produzido, entre muitas centenas de estudantes de quem foi mestre, uma vaga de Sherlock Holmes em carne e osso!” Estavam as coisas neste ponto — a bonança que precede a borrasca — quando publiquei a biografia do Dr. Bell. Adrian Doyle leu o meu artigo no The Saturday Evening Review of Literature, e imediatamente escreveu o que se segue: “Tenho em meu poder as provas particulares da correspondência e das relações amistosas que ligaram meu pai a seu velho professor, o Dr. Bell. Desejo afirmar que não existe uma parcela de verdade na declaração do Sr. Wallace quando diz que o Dr. Bell afirmava ser Sherlock Holmes. Antes, pelo contrário,
ele negava-o categoricamente, enquanto, por outro lado, meu pai afirmava que o modelo de Sherlock Holmes era ele próprio e mais ninguém”. Mais divertido do que irritado, não vi motivo para acirrar mais o conflito. Não quero dar a impressão de que me considerava superior a um antagonista tão combativo e indomável como Adrian Conan Doyle, Herdeiro do Nome, mas achei que a minha história do Dr. Bell, em grande parte baseada em documentos fornecidos pela família Bell, resistiria a quaisquer dúvidas suscitadas nos leitores por este Filho Mais Novo do escritor. Quando o bom acolhimento dispensado pelo público ao meu artigo sobre o Dr. Bell me animou a ampliá-lo e a pô-lo no meu primeiro livro, Os modelos fabulosos, não esperava encontrar dificuldades junto a Adrian Conan Doyle. Pensava que ele consideraria o assunto encerrado. Nunca me enganara tanto. A edição inglesa de Os modelos fabulosos apareceu na Grã-Bretanha em 1956, editada pela Longmans, Green & Co. Ltd. Foi muito bem recebida, e uma importante crítica, assinada pelo conhecido escritor Cyril Connolly, apareceu com o título “Tirados da vida real”, no Sunday Times de Londres. No seu artigo, Connolly considerava o capítulo sobre o Dr. Bell um dos “três estudos mais interessantes do livro”. Falando da “obsessão” de Conan Doyle pelo Dr. Bell, prosseguia: “Conan Doyle invejava aquele super-homem natural e excêntrico que era também um esteta, enquanto ele esperava em vão pelos doentes em Portsmouth. . . O Dr. Bell praticava a dedução e deslumbrava os seus alunos. Conan Doyle criou para ele a figura de Sherlock Holmes, e, quando o fato passou a ser conhecido, o Dr. Bell começou a receber consultas da Scotland Yard, passou a parecer-se cada vez mais com Holmes e declarou que resolveria o enigma de Jack, o Estripador”. Em Genebra, na Suíça, Adrian Doyle leu a crítica de Cyril Connolly e, deveras enraivecido, pegou na lança enferrujada a fim de defender a honra da família. Seu primeiro cuidado foi dirigir uma severa mensagem com pedido de publicação ao jornal de Cyril Connolly, o Sunday Times. Nesse periódico, o filho discutiu depois o caso do pai como verdadeiro Sherlock Holmes, convicto de que havia destruído assim “os engenhosos esforços do Sr. Wallace para inventar mais uma vez essa história da carochinha”. Ainda pensando sobre a injustiça cometida contra o espírito criador do pai, resolvido de uma vez para sempre a destruir e humilhar os partidários do Dr. Bell, ou ele ou os parentes recorreram aos seus advogados. Em janeiro de 1957, Mark Longman, editor da firma Longmans, Green & Co., recebeu uma comunicação legal dos advogados da família do falecido Sir Arthur Conan Doyle. Os advogados diziam que seus clientes se queixavam de “certas afirmações totalmente falsas e nocivas” publicadas na minha história sobre o Dr. Bell. O que mais perturbava seus clientes, declaravam os advogados, era o fato de eu afirmar que A. Conan Doyle escrevera ao Dr. Bell pedindo-lhe que lhe sugerisse os temas para algumas histórias de Sherlock Holmes e lhe agradecera os que recebera. A não ser que eu apresentasse provas convincentes de que Conan Doyle fizera uma coisa dessas, avisavam-me de que exigiriam de mim um desmentido público e formal, acompanhado de minhas desculpas a toda a família Doyle. Se não apresentasse nem uma coisa nem outra, a família Doyle “entraria em ação”, a fim de proteger o valor de seus direitos autorais e a memória de Sir Arthur. Ao saber do meu caso, o célebre advogado de Nova York, especializado em direitos autorais, Philip Wittenberg, estudou os fatos e ofereceu-se para me defender em juízo. Sabia que a família Doyle não tinha nada de concreto a que se
agarrar. Apoiado em Wittenberg, escrevia a Longmans, Green & Co. de Londres: “Estou de posse de todas as provas que me parecem necessárias nesta circunstância. Sir Arthur Conan Doyle, na sua autobiografia, confessa que recebeu ‘sugestões’ para contos fornecidas pelo Dr. Bell. E, em cartas particulares escritas a este, confessa ter feito uso dessas sugestões para as aventuras de Sherlock Holmes. Também nessas cartas ele pede ao Dr. Bell que mande mais ideias para contos de Sherlock Holmes. Envio junto cópia dessa correspondência”. Ao ter conhecimento dessas primeiras provas, os advogados de Doyle nunca mais deram sinal de vida. Julguei que havia feito calar de uma vez para sempre a família Doyle. Mas, como da primeira vez, enganava-me, pois estava subestimando o Filho Mais Novo. No seu baluarte suíço, em Genebra, Adrian Conan Doyle, contemplando a lança em riste, ao mesmo tempo passava em revista uma montanha de recortes e relia meu livro e o capítulo sobre o Dr. Bell. Adrian Doyle lançou finalmente mão da pena. Se não me apanhava em carne e osso no banco dos réus, ao menos havia de me obrigar a ser julgado pelo público. Dirigiu cartas a diversos jornais, ao Northern Echo, de Piestgate, Darlington; ao Bristol Eve- ning World, de Bristol; ao The Bulletin and Scots Pictorial, de Glasgow. Entretanto, J. L. H. Stisted, como representante da família Bell, e eu próprio, respondíamos a Adrian Doyle no Sunday Times, de Londres, e, em face da apresentação dos fatos que considerávamos suficientes, mostrávamo-nos admirados com a força e o requinte desse novo e resoluto assalto. Meu tempo era precioso e achava inútil trazer de novo à liça todos esses velhos fatos. Na minha opinião, defender- me em tribunal equivalia a encetar uma ação que se prolongaria por toda a eternidade. Comecei então a ler o que Adrian Doyle escrevia para os jornais ingleses em fevereiro e março de 1957, e compreendi que teria de reunir todas as minhas forças para uma derradeira batalha. Afinal de contas, o que estava em jogo era muito importante. Provavelmente mais para mim do que para Adrian Doyle. Porque enquanto o filho defendia a memória de um parente, eu defendia a minha própria integridade como autor. Estudei a carta que Adrian Doyle escrevera para os jornais. A versão completa desta apareceu no Northern Echo de 5 de fevereiro de 1957: “Senhor, Em virtude de me encontrar ausente no estrangeiro, só há pouco tive conhecimento de um livro propositadamente escrito a respeito de Sherlock Holmes por um tal Sr. Irving Wallace. Nunca desmenti que o Dr. Bell tivesse desempenhado papel importante como modelo dos processos empregados por Holmes na mente de meu pai e no desenvolvimento das faculdades de observação e dedução que ele possuía. Mas isso era tudo. Quando esse autor americano cita uma carta escrita em 1892 por meu pai, o qual, com sua proverbial modéstia, tenta adornar seu velho mestre com a identidade de Holmes, vale a pena considerar a resposta do Dr. Bell: ‘Não, não, meu caro Conan Doyle, você é que é o verdadeiro Sherlock Holmes e sabe-o muito bem’. A verdade da afirmação do Dr. Bell fica provada por futuros acontecimentos, tais como os do caso Slater, o caso de Edalji, etc. O Sr. Wallace tenta jogar com o fato de Stevenson, ao exprimir sua admiração pelos escritos de meu pai, identificar Bell com os malabarismos de dedução de Sherlock Holmes.
Foi isso o que ele fez, e essa sua característica é que deu a meu pai a ideia de criar esse tipo de detetive. Mas que mais escreveu Stevenson em 1894? ‘Na primeira linha de todas as batalhas em prol da justiça, ver- se-á sempre a branca pluma de Conan Doyle. Essa profecia realizou-se. Foi Conan Doyle e não o Dr. Bell quem criou Sherlock Holmes, e foi Conan Doyle, muito mais do que aquele, quem pôs em prática os processos para a solução do crime na vida real. Isso foi reconhecido quase desde o início por alguns criminologistas famosos, tais como Edmond Locard, H. Ashton-Wolfe, o Dr. Katju, Willam J. Burns e outros, alguns dos quais vieram à Inglaterra expressamente para consul- tá-lo em casos difíceis. Embora o Sr. Wallace ignore a verdadeira identidade de Holmes, os oficiais da polícia sabiam-na, certos criminosos conheciam-na, assim como os que lhe escreviam cartas no gênero desta que fui buscar nos arquivos: ‘Sir Conan Doyle, o senhor que quebrou minhas algemas, o senhor que ama a verdade por amor da justiça’, ou então: ‘Escapei por milagre e nem quero pensar no que poderia ter acontecido. Não sei como agradecer-lhe convenientemente. . . por tudo o que fez por mim’; ou ainda: ‘Há quem diga que o senhor não terá longa vida. Não me responsabilizaria pela sua segurança nem um só dia’. Dizem agora que o Dr. Bell tomou parte importante no caso Chantrelle, etc., e, no entanto, estou informado por um especialista em história da criminologia que esse nome nem sequer vem mencionado em qualquer documento dos que foram publicados na íntegra em Julgamentos célebres da Inglaterra. Parece que os editores da enciclopédia sobre o crime mais famosa da Grã-Bretanha incorreram numa falta grave. Aceitamos uma crítica razoável, no entanto podemos discordar dela. Não posso, porém, ficar calado perante essas autênticas invenções sobre meu pai. Não há uma só palavra verdadeira na afirmação de que ele escreveu ‘carta após carta a Bell, pedindo-lhe e agradecendo-lhe argumentos de contos’. Na minha qualidade de catalogador de seus documentos, que, a propósito, incluem muitos milhares de cartas dispersas ao longo de toda a sua vida, estou em condições de afirmar que ele se correspondia muito pouco com seu antigo mestre. Ao perseguir a sombra em lugar da figura, o Sr. Wallace perdeu uma excelente oportunidade. Se acaso fosse um pesquisador, ter-se-ia engolfado nos arquivos de meu pai, que são maravilhosos, e ficaria assim sabendo o que Sherlock Holmes ou, antes, seu ‘fabuloso modelo’ representava nos bastidores da vida nacional. Ainda há poucas semanas um erudito professor de uma universidade mundialmente conhecida se deu ao trabalho de proceder a tais investigações, a fim de preparar uma obra bem documentada, com trezentas mil palavras, a respeito de meu pai, e escreve-me: ‘Apesar de conhecer a bela obra de Dickson Carr, A vida de Sir Arthur, não tinha compreendido o vasto alcance da influência, tanto mais extraordinária porque oculta, que seu pai exercia nos assuntos nacionais durante o período crítico da virada do século ao fim da Grande Guerra’. Aí, nesses fatos, nessa influência oculta que se exercia em nível tão elevado e dedicada aos interesses de sua pátria, encontramos nós o epítome do verdadeiro Sherlock Holmes. Sempre ao dispor, etc. Adrian Conan Doyle” Senti que não podia permitir que ficasse sem resposta esse ataque à minha história do Dr. Bell. E assim, lançando mão de minhas notas, dispus-me a escrever a Adrian Doyle, com todo o cuidado e a fundo. Enviei minha defesa do Dr. Bell
como modelo de Sherlock Holmes não só ao Northern Echo, onde foi publicada na íntegra a 27 de março de 1957, mas ainda a outros jornais britânicos que eu sabia haverem publicado ataques de Doyle. Minha carta, tal como apareceu no Northern Echo, dizia: “Caro senhor, Aqui, há meses, o Northern Echo teve a gentileza de publicar uma crítica ao meu livro Os modelos fabulosos, dedicado a algumas personagens ilustres da vida real que haviam inspirado a criação de figuras célebres do romance. Entre as mais notáveis, conta-se o Dr. Joseph Bell, cirurgião do Hospital Real de Edimburgo, cujos notáveis talentos impressionaram um de seus alunos, Sir Arthur Conan Doyle, levando-o a criar Sherlock Holmes. Há pouco fui informado de que apareceu em suas páginas uma carta assinada pelo Sr. Adrian Conan Doyle, em que este se insurge vigorosamente contra os fatos apresentados no meu livro — fatos esses descobertos após anos de pesquisas e entrevistas diretas. Uma vez que o Sr. Doyle deprecia minhas investigações, minha biografia do Dr. Bell e até mesmo as qualidades deste, acho meu dever dizer algo em minha defesa. Embora seja digna de apreço a dedicação do Sr. Doyle, não podemos deixar de concluir que ela se afasta da objetividade. Em meu livro reconstituí inteiramente a figura do Dr. Bell como modelo de Sherlock Holmes. Limitar-me-ei aqui a resumir isso mesmo. 1. A principal testemunha do caso do Dr. Bell é nada mais nada menos do que o próprio criador de Sherlock Holmes. A. Conan Doyle, numa carta dirigida ao Dr. Bell, datada de 7 de maio de 1892, reconhecia francamente a origem de sua inspiração. Confessara dever a ideia de Sherlock Holmes aos ensinamentos de seu antigo mestre e às suas demonstrações sobre a dedução, a inferência e a observação. A. Conan Doyle reconhecia ainda o Dr. Bell como seu verdadeiro modelo, em entrevistas dadas à imprensa e em sua autobiografia. 2. Durante alguns anos procurei confirmar essa confissão de A. Conan Doyle por meio de correspondência ou conversas pessoais com outros elementos, que, tal como Doyle, haviam sido alunos do Dr. Bell no Hospital Real de Edimburgo, e que sabiam do papel que seu mentor desempenhara na criação de Sherlock Holmes. Entre esses contavam- se o Dr. J. Gordon Wilson, o Sr. Z. M. Hamilton e o Dr. Harold E. Jones. Até mesmo Robert Louis Stevenson, em 1893, depois de haver conhecido o ‘engenhoso e muito interessante Sherlock Holmes’ em letra de fôrma, escreveu a Conan Doyle uma carta de Samoa, dizendo: ‘Só uma coisa me fez espécie. Será esse rapaz o meu velho amigo Joe Bell?’ 3. Embora A. Conan Doyle ocupe um lugar seguro na moderna literatura, embora ele tenha operado maravilhas no caso Edalji e no caso Slater, ainda há quem escreva que Doyle era extraordinariamente pouco observador. Por outro lado, o Dr. Bell conseguia fazer milagres de observação e dedução diante de seus alunos, entre os quais se contava Conan Doyle, e suas investigações no caso Chantrelle, no de Monson e no de Jack, o Estripador, não podem ser facilmente esquecidas. O Sr. Adrian Doyle continua muito pouco convencido das habilidades dedutivas do Dr. Bell, sobretudo porque um perito o informou do fato de não vir mencionado o nome do Dr. Bell nos Julgamentos célebres da Inglaterra, quando trata do caso Chantrelle. Por outro lado, o ‘perito’ de Mr. Doyle esqueceu-se de informá-lo de que muitas outras fontes existentes na Inglaterra confirmam amplamente a atuação do Dr. Bell nesse caso, contando-se entre estas o depoimento do falecido William Roughead, editor principal da série julgamentos
célebres da Inglaterra. Sem muito propósito, o Sr. Doyle faz uma defesa cerrada da ‘influência oculta’ que o pai exerceu nos assuntos públicos da Inglaterra. Não duvido nem nunca duvidei de semelhante fato. A. Conan Doyle é tão admirado e estimado na América como na sua própria terra. Isso, porém, não faz dele um candidato mais indicado para modelo de Sherlock Holmes do que o Dr. Bell, o qual contava entre seus admiradores a Rainha Vitória, Florence Nightingale e. . . Arthur Conan Doyle. Os constantes argumentos do Sr. Doyle tendentes a provar que o pai era o modelo de Sherlock Holmes afiguram- se-me desnecessários. O pai dele adquiriu a imortalidade como criador das histórias de Sherlock Holmes. É quanto basta. Não é necessário (nem ele o exigiria se fosse vivo, disso tenho a certeza) caberlhe ainda por cima a honra de ter servido de modelo ao seu herói. Sem dúvida, se ainda fosse deste mundo, repetiria aquilo que afirmou há mais de meio século: que fora o Dr. Joseph Bell quem lhe inspirara Sherlock Holmes. Sempre ao seu dispor, Irving Wallace.” Com a publicação desta carta restabeleceu-se o silêncio e a paz, o que foi uma grande coisa. Esse estúpido conflito literário sobre quem teria sido o verdadeiro Sherlock Holmes terminou em 1957 e, até hoje, não se renovou. Espero que Adrian Conan Doyle esteja convencido daquilo que os herdeiros do Dr. Bell têm como certo, fato em que eu também acredito: que a Sir Arthur Conan Doyle cabem todas as honras de ser o criador de uma das maiores e mais duradouras figuras da ficção, Sherlock Holmes, e que o professor de Sir Arthur, o Dr. Joseph Bell, tem direito à nossa consideração visto ter possuído os dons extraordinários que inspiraram a criação da figura do detetive. Vou terminar com um resumo da controvérsia, escrito pelo Marquês de Donegal, no décimo número do The Sherlock Holmes Journal, publicado pela Sherlock Holmes So- ciety of London: “No momento, os fatos são estes. . . Chame-se a atenção do leigo para o prefácio escrito pelo Dr. Bell para a edição do conto Um estudo em vermelho, da Ward, Lock and Bowden, de 1893. A modéstia do Dr. Bell inibia-o, sem dúvida, de se apresentar claramente como ‘modelo’. Mas escreveu (o grifo é nosso): ‘A formação do Dr. Conan Doyle como estudante de medicina ensinou-lhe a observar, e a prática no hospital. .. foi um esplêndido treino para um homem como ele, dotado de olhos, memória e imaginação. 'Treinado como foi para observar e apreciar os pormenores, o Dr. Doyle captou a maneira de interessar seus leitores inteligentes. . . ‘Por isso, como afirma Jonathan Small, no Signo dos quatro, direi: — Querem saber mais alguma coisa?’ ”
20 Elas são respeitáveis Este capítulo é sobre as questões sexuais no Japão. Faz cinco anos que, semana após semana, a rádio de Tóquio tem prometido a eliminação das gueixas. As mais recentes notícias em ondas curtas afirmam que dentro em breve todas as gueixas passarão a fazer parte dos exércitos de operárias. Por mim, afirmo que isso não será fácil. Ao mobilizar todo o Império numa grande arrancada, durante a Segunda Guerra Mundial, os dirigentes japoneses podem ir longe. Podem obrigar sua gente a comer algas secas, gafanhotos em conserva, pão de palha de erva. Podem forçar a população a prescindir de telefone, de quimonos confortáveis, de fins de semana, de automóveis, de tabaco, de filmes estrangeiros, de canções românticas, de dança. Podem acabar com as festas de casamento. Podem até ir buscar o metal sagrado em cem mil templos. Tudo isso será possível sem graves perturbações. Se, porém, tocarem na gueixa haverá uma revolta. No Japão, o sexo constitui um assunto à parte, tal como o Bushido (Código de conduta dos samurais, que exalta a lealdade, a coragem e a vida simples, e segundo o qual é preferível o suicídio à desonra - N. do T.), os ornamentos florais, o trabalho escravo e o imperador. Vim a saber disso em Tóquio, um ano antes de Pearl Harbour, quando visitei Hidezo Kubo, muito conhecido como presidente do Shimbashi Geisha Guild e considerado como o John L. Lewis (Dirigente do movimento operário americano e presidente da CIO - Congress of Industrial Organization - em 1938-1940 - N. do T.) das mulheres orientais. Foi apenas no intuito de compreender melhor o Japão que abordei o assunto das gueixas. No Japão, quem reina são os homens. A esposa não é mais do que um instrumento passivo de concepção. O romance e o amor, tal como os ocidentais entendem, não existem no lar japonês. Para o sexo, porém, ou melhor, para o estímulo sexual, as regras são muito diferentes. No Japão a gueixa representa um mundo à parte, onde o namoro e o romance se elevam à categoria de artes profissionais amadurecidas e refinadas por muitos séculos de prática. A gueixa encarna o sexo no Japão, e assim continuará a ser. Travei pela primeira vez conhecimento com a gueixa através de um indiano esguio, chamado V. Chockalingam, que me fora recomendado como a única pessoa capaz de me mostrar aquela parte de Tóquio que não figura nos guias de turismo. Esse sujeito ganhava a vida escrevendo de tempos em tempos alguma coisa para a United Indian Press. Falava várias línguas, entre elas o hindustani, um japonês corretíssimo, que aprendera na universidade, e também o inglês. Lia livros proibidos e comentava depreciativamente a política mundial no hall do Hotel Imperial. Foi Chock quem me levou pela primeira vez, certa noite, à conhecida zona Yoshiwara de Tóquio. Yoshiwara é uma cidade dentro de outra cidade, onde seis mil das setenta mil “esposas de uma noite” matriculadas ou prostitutas — que não são gueixas — vivem segregadas. A maioria está numa situação de semiescravidão, cada qual isolada numa pequena casa que lembra uma jaula com grades nas janelas. Esse sistema teve os seus defensores. Num guia escrito em língua inglesa e publicado pela Editora Hoskusei- do, de Tóquio, um inglês,
George Caiger, escreve acerca de Yoshiwara: “Em nenhuma outra cidade as senhoras podem andar na rua de um bairro como esse sem o receio de serem insultadas ou de presenciar cenas vergonhosas ou obscenas... O vício, aqui, está despojado de sua vulgaridade, encontra-se dignificado e, em última análise, eis uma maneira civilizada de tratar um problema universal”. Foi uma noite repleta desse negócio “civilizado”! Percorremos ruas estreitas, com apenas cerca de dois metros de largura, ladeadas por fileiras intermináveis de casas em miniatura. Às vezes avistávamos lá dentro as mulheres lendo ou cosendo. Outras vezes, estavam à janela e exclamavam “A-ro”, que é uma corruptela de “Hello!” A maior parte das moças portava-se corretamente e poucas arvoravam atitudes obscenas. Entramos numa das casas maiores, atravessamos diversos corredores de madeira, transpusemos algumas portas cor- rediças. Falei com quatro ou cinco moças. Todas estavam resignadas. Na sua quase totalidade, tinham vindo das aldeias. As más épocas agrícolas eram frequentes, e quando um pai precisava de dinheiro via-se na necessidade de pedir um empréstimo de trezentos dólares aos homens de Yoshiwara e de entregar a filha de quinze anos como penhor da dívida. A moça ia amortizando a dívida com o seu corpo e, depois de quatro ou cinco anos, paga a quantia devida, podia regressar para casa. Mas quase sempre ficava. Chock garantiu-me, no entanto, que Yoshiwara não era a verdadeira história sexual do Japão. A parte mais importante dessa história, afirmava ele, era a gueixa. Todos falavam tanto em gueixas que o assunto passara a constituir um lugar-comum. — Mas ainda ninguém compreendeu isso bem — afirmou ele. — E quando chegarem à conclusão de que as gueixas possuem a associação mais formidável. . . — Quer dizer com isso que estão organizadas? Chock acenou com a cabeça: — A associação delas é a melhor de todo o Japão. E eu conheço o chefe. Chama-se Hidezo Kubo, é presidente do Shimbashi Geisha Guild. E foi assim que vim a conhecer o Sr. Kubo. Hidezo Kubo, um homenzinho pequeno, grisalho, en- vergava um terno impecável. Era careca, com exceção de uma coroa de cabelos ralos, usava óculos sem aros e um bigode discreto. Tinha sessenta e cinco anos. Estava sentado, no melhor estilo nipônico, atrás de uma mesa impecável. Seu vasto escritório tinha dois grandes cofres, três bustos de heróis de guerra japoneses e um velho gramofone. Havia também um microfone com alto-falante. — É este o nosso sistema de comunicação — explicou o Sr. Kubo. — Assim posso falar para os quatro andares da casa. O santuário do Sr. Kubo ficava no terceiro andar do moderno edifício de quatro andares que era a sede do Guild, no coração de Tóquio. Deste escritório, o Sr. Kubo, detentor do mais estranho e talvez mais invejável emprego do mundo, dirigia a rotina diária de duzentas e oitenta casas de gueixas da zona de Shimbashi, na capital do Japão. O Sr. Kubo era, na realidade, o agente a que recorriam todos os intermediários. Em Tóquio viviam três milhões de indivíduos do sexo masculino. A vida
amorosa da maioria deles consistia sobretudo em visitar as treze mil setecentas e noventa e três gueixas residentes nas quatro mil quinhentas e vinte e seis casas especializadas localizadas nas cinquenta e quatro zonas de Tóquio, das quais a mais cara e exclusiva era a de Shimbashi, onde se encontrava o Sr. Kubo. Na realidade, o Guild do Sr. Kubo era uma espécie de agência de intercâmbio de sexo. Sempre que um homem ou um grupo de homens desejava companhia feminina, telefonava para ele ou para qualquer dos seus oitenta empregados. Então, o Sr. Kubo, por sua vez, avisava a gueixa, para que ela se preparasse para receber o visitante na sua machiai, ou sala de espera, nessa noite, ou então para ir ao ryoriya, ou restaurante. — Mas tenho de lhe explicar bem uma coisa muito importante — declarou o Sr. Kubo, por trás de sua mesa. — Foi por isso que consenti em recebê-lo, mesmo num sábado à tarde. É que nossa gueixa não é uma prostituta, assim como nosso bairro de Shimbashi não se pode de forma alguma considerar uma zona reservada. Eu ia comentar esse ponto, mas ele já começara o seu discurso educativo. Os óculos balançavam sobre seu nariz enquanto ele falava. — Sim, infelizmente, é verdade que algumas gueixas de terceira categoria, nas zonas mais baratas, peritas nas artes tradicionais, se rebaixaram ao ponto de se tornarem meras prostitutas. Foram essas gueixas ordinárias que deram mau nome às suas colegas junto aos estrangeiros. “Não quero dizer com isso que todas as minhas oitenta gueixas sejam virgens, afinal, isso é um assunto que só interessa a elas, tal como acontece com as atrizes de cinema de Hollywood. Pelo que tenho ouvido contar, estou convencido de que a nossa gueixa utiliza o seu corpo numa medida muito menos larga do que as jovens atrizes da sua pátria. “O principal é que a nossa gueixa não transforma em meio de vida as relações amorosas com seus convidados. O ofício delas é, sobretudo, recitar poesias, dançar, tocar o samisen, conversar com inteligência. Na semana passada esteve aqui um professor de uma grande universidade americana. Passou uma noite com as nossas moças e foi embora convencido de que elas não eram prostitutas.” Perguntei-lhe o nome desse tal professor. Ele ia dizê-lo, depois abanou a cabeça: — Não, acho melhor ocultá-lo. De qualquer forma, se o professor foi embora convencido, talvez o senhor também possa ajudar-nos a corrigir a impressão errada que existe na América sobre o fato de as gueixas serem prostitutas. A fim de manter no Japão a Nova Ordem e de libertar a gueixa do estigma que pesa sobre ela, nós, aqui no Shimbashi Guild, estamos resolvidos a dar às moças outro nome. Talvez isso dê resultado. A história da luta que a gueixa travou para se erguer acima da prostituição é longa. Em 1761, as cortesãs aposentadas foram as primeiras gueixas. Durante quase um século, não poderiam ser chamadas de nada mais a não ser filies de joie de alto preço. Finalmente, em 1850, os samurais, a casta privilegiada de guerreiros do Japão, começou a proteger e a defender as gueixas, conferindo-lhes assim respeitabilidade. Depois, as próprias gueixas travaram uma verdadeira luta para se libertar da prostituição autêntica. As que preferiam a vida da zona reservada retiraram-se para Yoshiwara, enquanto as que optaram pelo papel de animadoras se inscreviam prontamente no Shimbashi, então em pleno
desenvolvimento. Por volta de 1890, a gueixa era considerada tão casta, que qualquer uma que dormisse com um homem durante as horas de serviço era expulsa do bairro e tinha confiscado o seu melhor quimono, sendo este pendurado na sala de espera para que todos vissem a sua desonra. Hidezo Kubo informou-me ainda que havia seis classes de gueixas. As que ele tinha a seu cargo estavam nas duas categorias superiores. A primeira classe chamava-se jimae, e as moças nela incluídas habitavam suas próprias casas. A segunda categoria chamava-se wake, e compreendia as moças que dividiam meio a meio seus ganhos com o dono da casa. Na terceira classe agrupavam-se as jovens intituladas schi- chisan, que arrecadavam três décimos do ganho. — O resto — prosseguiu — são as gueixas de baixa categoria, as que nos criaram má fama. Nós as chamamos de gueixas de travesseiro. Não é preciso explicar mais. Toda essa conversa contra a prostituição deixara-me confuso. Assistira a três reuniões elegantes de gueixas, duas delas organizadas em minha honra pelo governo japonês e a outra, por estranho que pareça, organizada pela Sociedade de Amizade Nipo-Americana. Cada uma delas terminara com meus amigos, estimulados pelo saquê forte, passeando pela noite afora com sua respectiva gueixa de primeira classe. Mas suponho que tal atividade, como declarava o Sr. Kubo, fosse puramente extra-serviço. Recordo-me de ter lido um livro, Gueisha girl, escrito por Aisabuto Akiyama, publicado em Yokoama. Numa certa passagem explicava: “A gueixa pode ser considerada uma artista independente, única no gênero, desde que sua castidade seja mantida intata. É, na verdade, um fato lamentável que muitas vezes ela seja privada dessa virtude por visitantes ocasionais que lhe lançam a rede de diversas maneiras, a ponto de se tornar praticamente impossível resistir-lhes”. Perguntei ao Sr. Kubo se era verdade que muitas moças eram arrastadas para a categoria de gueixas em virtude de fatores econômicos: — Ouvi dizer que as coisas se passam exatamente como em Yoshiwara — declarei. O Sr. Kubo protestou energicamente: — Nós não temos escravidão. Há regiões pobres onde os pais obtêm empréstimos de quinhentos ienes em troca de cinco anos de trabalho de suas filhas, mas isso não passa de prostituição pura e simples. Shimbashi, o nosso bairro, é tão famoso, tão saudável, tão bem-organizado, que as moças vêm por sua livre vontade para fazer uma experiência. Nós as ouvimos e escolhemos cinquenta a cada ano, tendo em vista o seu aspecto, voz, saúde e inteligência. Às vezes, ouvimos falar numa determinada gueixa de Kobe ou de Osaka que se tornou muito popular, e então compramos o seu contrato. Mas normalmente nos arranjamos com as novas que vamos treinando. Recebemo-las entre os doze e os vinte e um anos; muitas delas já frequentaram o curso secundário, outras, até as universidades. Nós as ensinamos a dançar, a cantar, a conversar; aprendem a tocar o samisen, o nosso instrumento nacional, que tem três cordas e se assemelha a uma guitarra, bem como tambor, flauta e címbalos. “Aqui em Shimbashi, a gueixa tem de desenvolver bem apenas um desses talentos. Se se torna especialista em qualquer coisa, poderá fazer muito dinheiro.” Eu quis saber quanto seria considerado muito dinheiro.
— Para contratar uma gueixa por uma hora — prosseguiu o Sr. Kubo —, o freguês tem de pagar 4,40 ienes, ou seja, 1 dólar. Destes 4,40 ienes, 79 sen cabem ao restaurante onde a gueixa trabalha, 36 sen ficam para o Guild e os restantes 3,25 ienes para ela. Se trabalha duas horas, seu cliente paga 6,50 ienes, dos quais 1,30 são para o restaurante, 42 sen para nós e os restantes 4,78 ienes para ela. Dessa forma, se uma gueixa é simpática, chega a ganhar entre 700 e 800 ienes por mês. Isso representa, mais ou menos, 100 dólares americanos. Uma gueixa menos popular ganha um décimo dessa quantia. Só muito mais tarde compreendi o que significava esse ordenado de uma gueixa de primeira classe — segundo as tabelas japonesas era uma quantia fabulosa, visto que as moças japonesas ganham nas fábricas de fiação de algodão precisamente 5,88 dólares por mês. Hidezo Kubo tinha descrito os ganhos obtidos pelo seu Geisha Guild, e achei ser hora de perguntar qual era, afinal, em última análise, a função dessa organização. — Primeiro deixe-me explicar-lhe como chegamos a isso — disse o Sr. Kubo. — Na virada do século havia cinco tipos de lugares frequentados por gueixas. Os restaurantes, as casas de encontro, os mercados da carne, os do peixe e os barcoscasas. Já viu as grandes docas secas que há por toda a cidade de Tóquio? Antes eram canais percorridos por barcos-casas. Depois, nos tempos do Primeiro Ito, o país revoltou-se e imperava por toda parte o terror e o assassinato. Os refugiados políticos fugiram para esses cinco tipos de lugares e, enquanto estavam escondidos discutindo e planejando sua futura ação política, eram mantidos pelas gueixas. Finalmente o governo converteu esses cinco lugares em duas espécies: os restaurantes estilo japonês e as casas de encontro. E então o governo instituiu o Geisha Guild, que deveria tratar de tudo o que se relacionasse com as gueixas, tanto dos estabelecimentos como de seus clientes. “O Shimbashi Guild é subsidiário de outra organização principal, e sua finalidade consiste em evitar que a gueixa seja explorada, criar-lhe melhores condições de trabalho e salários-mínimos mais elevados, providenciar para que receba bom tratamento e oferecer seus serviços a restaurantes e casas acreditadas junto ao Geisha Guild. A gueixa tem quem a defenda. Pode até fazer greve.” Um dos episódios mais incríveis da história do Japão moderno foi a greve das gueixas assim relatada pelo Sr. Kubo: — Depois de declararem que estavam sendo exploradas pelos seus empresários, que lhes recusavam o direito de associação, umas oitenta gueixas de Osaka organizaram uma marcha sem paralelo na história japonesa. Deixando os cinzentos bairros de Osaka, as grevistas marcharam em filas cerradas subindo as íngremes colinas que levam ao Templo Gyokuso, onde os sacerdotes deram guarida às valentes grevistas. . . “Uma vez ali, redigiram um manifesto onde proclamavam sua resolução de combater até a morte, ou até verem satisfeitas as duas seguintes exigências: o direito de associação e o direito de escolher os homens com quem privavam. ‘Não somos objetos para sermos vendidas a qualquer preço a qualquer reles comprador’, proclamavam. No segundo dia da greve, o grupo, originalmente de oitenta gueixas, já contava trezentas delas. Toda a vida noturna de Osaka foi paralisada. Depois de duas semanas, o chefe de polícia de Osaka convocou uma reunião de emergência, durante a qual, em volta de uma mesa, trinta patrões furiosos e trinta gueixas triunfantes se reuniram para discutir o problema. As gueixas conseguiram formar a associação que desejavam e conquistaram o direito
de aceitar ou recusar os companheiros que lhes eram propostos. O Sr. Kubo afirmou que a organização de que fazia parte se esforçava para melhorar a qualidade das gueixas. Entretanto, confessou não haver muito tempo para dar conselhos ou ministrar instrução. As moças trabalhavam muitas vezes das seis da manhã às nove da noite em festas particulares nos restaurantes, e das nove à meia-noite nas casas especializadas. Todas as tardes, porém, o Geisha Guild proporcionava-lhes um período de três horas de instrução. Se uma moça tinha tempo disponível, podia assistir às aulas mediante a mensalidade de um iene. Nessas aulas, era possível aperfeiçoar-se em dança clássica ou melhorar a conversação sobre política ou esportes. — Além disso — acrescentou o Sr. Kubo —, todos os anos levamos à cena uma revista no nosso teatro particular, o Shimbashi Embujo. Aí pode-se ver como algumas moças evoluíram e dá-se publicidade às novas estrelas. — Quais são suas gueixas mais famosas? — perguntei. — Em geral são todas famosas — respondeu o Sr. Kubo com uma certa exuberância. Depois, mais sério, acrescentou: — Temos uma muito conhecida, Kiharu, que sabe falar inglês. Disse-lhe que já a conhecia. — Ah, sim? É um amor de moça, não acha? — exclamou. — O pai dela era médico. Morreu, deixando a família na miséria. Então, Kiharu, que estudara línguas e canto, fez-se gueixa, a fim de sustentar a família. Tem hoje vinte e seis anos e o Ministério dos Estrangeiros emprega-a sempre para distrair os visitantes americanos. Temos mais cinco ou seis moças aprendendo inglês, a fim de que possam encarre- gar-se de grupos de ingleses e americanos. O Sr. Kubo falou de outras gueixas de Shimbashi. Referiu-se a Okoi, que tivera como amantes um corretor da Bolsa e um pugilista, e fora casada com um ator que depois a abandonara. Mais tarde, os talentos de Okoi haviam atraído o Príncipe Taro Katsura, primeiro-ministro do Japão, que a tomou como amante. Durante toda a Guerra Russo- Japonesa de 1904, Okoi foi a confidente do primeiro-ministro e de seus conselheiros. Quando, no fim da guerra, o primeiroministro caiu em desgraça, sua gueixa foi igualmente condenada, e teve de passar à clandestinidade. Após a morte de Katsura, Okoi retirou-se para um convento, onde morreu em 1940. Outra gueixa de Shimbashi ainda mais célebre foi a bela Ohana, que veio a ser amante do falecido Príncipe Saionji, o último dos antigos homens de Estado e conselheiro íntimo de Hirohito. Na época da Conferência da Paz de Versalhes, o Príncipe Saionji levou-a consigo para Paris, e o Presidente Woodrow Wilson, encantado com suas maneiras, ofereceu-lhe um colar de pérolas. Quando, mais tarde, o presidente soube qual era o emprego e a posição da jovem, esse fato causou-lhe problemas. — Hoje, Ohana está aposentada — declarou o Sr. Kubo. — É abadessa de um mosteiro perto de Tóquio. Claro que todas as nossas moças aspiram a tais posições. Todas sonham em se tornar numa nova Okichi, sabe o que é? Como a Cho-Cho-San da Madame Butterjly de Puccini. Ao contrário da gueixa da ópera, Okichi era uma personagem da vida real, assim como o Tenente Pinkerton existiu realmente na pessoa de Towsend Harris. Harris foi o primeiro cônsul-geral americano no Japão, que o Almirante Perry acabava de pôr em contato com o Ocidente. A fim de obterem as boas graças do novo cônsul, que era um homem de meia-idade, os oficiais japoneses foram
buscar uma gueixa de talento, Okichi, que então contava deêoito anos, tirando-a do noivo, que era carpinteiro. A beleza e a boa voz de Okichi conquistaram Harris. Ela, por sua vez, achou-o simpático, acabando por se apaixonar por ele. Contudo, quando novos oficiais americanos chegaram ao Japão, Towsend Harris viu-se obrigado a mandar a sua gueixa embora por uns tempos. À medida que ele ia ficando cada vez mais ocupado, ela sen- tia-se mais só. Não tardou a tornar-se alcoólatra, e Harris não teve outro remédio senão deixá-la. Alguns anos após a morte dele, em Brooklyn, Okichi teve um ataque e sui- cidou-se. — Mas são precisamente os anos em que Okichi viveu como Madame Butterfly que as nossas moças recordam e invejam — declarou Kubo. Depois, com certa ironia, Hidezo Kubo perguntou-me se eu tivera ocasião de conhecer alguma gueixa do sexo masculino. Respondi que não e mal consegui ocultar meu espanto. — Nós temos muitas gueixas do sexo masculino, que se chamam hokan — respondeu. — Ficará talvez surpreso se lhe disser que há um cidadão americano que é gueixa oficial e trabalha para um patrão masculino! Depois disso discutimos o futuro das gueixas e o Sr. Kubo mostrou-se muito animado. Disse-me que o casamento o priva da colaboração de cerca de vinte e cinco moças por ano. Soube depois que isso era exagero: a maior parte delas depende de patrões generosos, e poucas têm a oportunidade de se casar. Na sua maioria contentam-se, na melhor das hipóteses, em ser segundas esposas ou mekalke. O mais que conseguem é se tornarem donas da própria casa onde trabalham, conquistando assim a segurança. A tarde de sábado chegava ao fim e achei que era tempo de me despedir. Olhei para Chock, que me servira de intérprete, e ele me disse que desejaria fazer uma pergunta por conta própria. — Tenho estado com muitas gueixas — disse ele. — Desejaria que me contasse um segredo, Sr. Kubo. Qual o tipo de homem que as gueixas preferem? O Sr. Kubo respondeu no tom estereotipado do melhor agente de Hollywood: — Nossas moças gostam dos homens decentes — declarou. — Tem-se dito que apreciam os homens limpos, francos e de alma lavada. Garanto-lhe que, se um fabricante de munições se encontrar com uma gueixa e colocar a seus pés todo o seu infame dinheiro, ela o recusará, preferindo outro mais honesto. Tive a impressão de que essa resposta do Sr. Kubo refletia sua antipatia pessoal pelos fabricantes de munições. Prosseguiu: — Nossas gueixas têm privado com os homens mais importantes deste mundo, por isso são mais inteligentes do que as moças comuns e mais difíceis de contentar. Seus patrões enchem o Who’s Who do Japão. Homens do governo, tais como o Príncipe Konoye, Matsuoka, Tojo, homens da categoria de Mitsui, todos têm a sua moça em Shimbashi. Políticos, nobres, intelectuais, todos são nossos clientes. Apenas os fabricantes de munições, os novos-ricos. . . Lá estava ele outra vez com a mesma cantilena. — . . .enriquecidos à custa do sangue dos outros, esses raramente aparecem uma segunda vez, porque nossas raparigas nada têm em comum com eles. Pensei que antes de me despedir seria útil lisonjear o Sr. Kubo com algumas
perguntas pessoais, por isso interes- sei-me pela forma como entrara para aquele negócio tão estranho. — Depois do grande terremoto de 1913, acabei com meu armazém de farinha e organizei umas poucas casas de gueixas. Hoje trabalho das dez da manhã às oito da noite, mas ninguém me paga um centavo. Alguns dos meus empregados, no entanto, ganham até 250 ienes por mês. Meu dinheiro vem de algumas casas de gueixas que possuo. Deve estar interessado em saber que estou bem casado e tenho cinco filhos. Sim, três são médicos e estão neste momento combatendo na frente chinesa. Dois são tenentes. Hidezo Kubo acompanhou-nos até as escadas e depois continuou a falar enquanto calçávamos os sapatos. Declarou-me: — Gostei muito de conversar com o senhor. Com certeza vai dizer nos seus artigos que nossas gueixas não são prostitutas. E, a propósito, gostaria de presenteá-lo. Tenho uma ou duas moças especiais, com as quais o senhor poderia passar o fim de semana. Elas irão vestidas à européia. Habitualmente os nossos preços para um fim de semana para estrangeiros são elevados, mas o senhor é um amigo e. . . — Obrigado. Vou reservar a oferta como um vale, que usarei em qualquer época — respondi. Já se vão quatro anos e ainda tenho esse vale em meu poder. Tenciono dálo a um dos meus amigos que parte em breve para as terras do Sr. Kubo. O que aconteceu depois... Foi em agosto de 1940, dezesseis meses antes de Pearl Harbour, que estive em Tóquio a fim de colher material para alguns artigos. Acabara de fazer uma entrevista interessantíssima, numa casa de repouso no sopé do monte Fuji, com o velho Mitsuru Toyama, de noventa anos, chefe de um grupo de extremistas e assassinos profissionais conhecidos pelo nome de Sociedade do Dragão Negro, e nossa conversa incidira sobre as possibilidades de uma guerra. No entanto, de regresso a Tóquio, sentia-me farto de entrevistas políticas e desejoso de escrever sobre qualquer coisa mais frívola e interessante. Pensei então numa história sobre as gueixas, mas achei que muitos outros escritores já haviam abordado o assunto nos últimos anos. Quando, porém, Chockalingam me afirmou que as gueixas possuíam uma associação, resolvi que seria aquele o meu assunto, e fui, na companhia de Chock, visitar Hidezo Kubo. Tencionava escrever logo a história, no entanto surgiram outros assuntos que me impediram de fazê-lo. No ano seguinte, casei-me, e passado outro ano, estava alistado no exército. As notas que tomara da entrevista com o Sr. Kubo continuavam intactas. Quando, porém, passei para o Departamento de Comunicações, onde todas as manhãs captava notícias em ondas curtas das emissoras japonesas, ouvi que o Japão decidira acabar com as gueixas durante o período de guerra. Recordei-me imediatamente de minha entrevista com o Sr. Kubo e, no primeiro domingo livre que passei fora da base, escrevi a história. Saiu em setembro de 1945, na revista Tricolor, uma publicação mensal que era editada em Nova York. No meu artigo, eu duvidava que o governo japonês, a despeito do esforço de guerra e da austeridade que ela exigia, conseguisse algum dia acabar com a gueixa. Verificou-se que eu tinha razão. Embora a união das gueixas fosse suspensa, elas continuaram a existir em número limitado, é certo, como um dos poucos luxos japoneses do tempo de guerra, e resistiram à derrota do seu país.
No entanto, nos anos do pós- guerra, muitos profetas pessimistas preconizaram o fim das gueixas, defendendo o ponto de vista de que elas dariam lugar à nova mulher japonesa, emancipada e americanizada. Em novembro de 1958, a revista Time publicava com destaque: “As gueixas em vias de desaparecimento”, onde se afirmava que as revistas de nudismo e os impostos (que tornavam as gueixas um luxo caríssimo) ocasionaram uma falta de interesse por elas. E concluía: “A verdade é que a estilizada coqueteria da gueixa clássica saiu de moda. ‘Francamente’, comentava um homem de negócios japonês, ‘elas se tornaram muito chatas’ ”, Pretendendo averiguar se as gueixas continuavam em franca decadência — na verdade interessado em saber o que lhes acontecera durante as duas décadas desde que escrevera sobre elas e sua estranha agremiação —, procedi a certas pesquisas em Tóquio, com a ajuda da Sra. Keiko Akamatsu, tradutora de alguns dos meus romances para o japonês. Tenho o prazer de informar que, embora a situação da gueixa não seja a mesma que era em 1940, ela ainda sobrevive, floresce mesmo, como parte da cultura japonesa. Além disso, continua sindicalizada, talvez mais solidamente do que antes, e o Shimbashi Geisha Guild tornou-se mais poderoso do que quando o visitei. Atualmente existem cinquenta e duas associações de gueixas na cidade de Tóquio. Encontram-se ainda divididas em seis classes e o Shimbashi Guild continua a pertencer à primeira. Há duas mil duzentas e dezesseis casas de gueixas em Tóquio, metade das que eu encontrara em 1940, e o número de praticantes dessa arte é de quatro mil quatrocentas e oito, ou seja, um terço do total que eu anotei da outra vez. Vim a saber que meu velho amigo Hidezo Kubo, diretor do Shimbashi Geisha Guild, que entrevistara em 1940, se mantivera no posto até 1945. Devido a divergências surgidas entre ele e suas associadas, foi obrigado a abandonar o Shimbashi Guild e a própria cidade de Tóquio. Passou a dirigir uma única casa de gueixas em To-nosawa, na cidade de Kanagawa, e diz-se que foi ali que morreu em junho de 1956. Entretanto, seu Shimbashi Gueisha Guild, fechado juntamente com outros no fim da guerra, ressuscitara em moldes mais modernos no ano de 1951. A antiga organização de Kubo, disseram-me depois, não defendia exclusivamente os interesses das moças, e tivera um “caráter manifestamente feudal”, fora fundado, “sobretudo, para facilitar os contatos com a polícia”. O novo Shimbashi Guild, dirigido pela Sra. Haru Shi- rohara, de oitenta e seis anos, e pela Srta. Shizu Nagai, uma gueixa muito ativa e disputada que se recusava a declarar a idade, dedica-se exclusivamente ao progresso e ao bemestar das suas quatrocentas gueixas que trabalham em setenta casas da zona. A organização é forte, visto possuir um contrato com a Associação Japonesa dos Restaurantes, que permite apenas às suas moças trabalharem em festas ryotei ou em restaurantes da área. O novo Shimbashi Guild resolve praticamente tudo o que diz respeito às moças. Antes da guerra, os pais vendiam as filhas às associações de gueixas. Hoje, isso é proibido por lei. Atualmente, uma candidata a gueixa que conte vinte anos (dezoito, com o consentimento dos pais) precisa apenas requerer sua admissão à diretora da casa. Se a pequena parece ter qualidades, é iniciada nas artes de agradar, durante um ano, em lugar de fazer o estágio obrigatório de dez anos, indispensável antes da guerra. Se aprovada no exame final, paga 25 000 ienes à dona da casa e já pode se considerar uma gueixa completa, pronta a trabalhar, auferindo os salários mínimos estabelecidos pelo sindicato.
A gueixa moderna passa geralmente a manhã dormindo; à tarde prefere exercitar-se na arte tradicional do canto e da dança ou então em jogos modernos, tais como o golfe, o tênis ou o boliche, em passos de danças ocidentais, ou dedi- car-se à leitura para conversar com os clientes interessados em discutir o Mercado Comum, os Yankees de Nova York, o avanço nuclear da China comunista ou quaisquer outros assuntos. Das seis da tarde até cerca das dez ou meia-noite, a gueixa trabalha, quer dizer, está com os clientes nas salas particulares dos restaurantes. O novo Shimbashi Guild encarrega-se de conseguir que a casa arranje trabalho para todas as moças. Mas também continua a velar pela educação da jovem e pela sua saúde, resolve-lhe os problemas de impostos, ocupa-se de sua segurança social. Acima de tudo, encarrega-se de evitar que a gueixa pertencente ao sindicato seja mal paga. O preço comum dos serviços de uma gueixa de Shimbashi é de cerca de 950 ienes (quase 3 dólares) por hora. A maior parte dessa quantia vem dos oshugi (gorjetas), que muitas vezes são generosos. Uma gueixa verdadeiramente de primeira classe ganha, segundo me informaram, 300 000 ienes, ou seja, 800 dólares por mês. No entanto, nem todo esse dinheiro reverte a favor dela. Tem muitas despesas, como a cota do sindicato, a percentagem da casa, as lições, a manutenção do quimono e do guarda-roupa obi (Roupa japonesa com um grande laço atrás- N. do T.), que chega a custar 300 000 ienes. Tal como da outra vez, meus informantes do Shimbashi Gueisha Guild mostraram-se muito sensíveis às perguntas que formulei sobre o sexo e a gueixa moderna. — Para grande espanto e desgosto nosso — afirmou- me um empregado da organização —, os estrangeiros ainda tendem a confundir a gueixa com a prostituta. Mesmo em 1940, poucas pessoas procuravam uma gueixa simplesmente para satisfazer um desejo sexual. Se um homem pretende uma mulher, dirige-se ao Kuruwa, o bairro das meretrizes legalizadas, semelhante a Yoshiwara, onde poderá encontrar- se com uma oiran, quer dizer, uma prostituta de primeira classe. Muitas vezes, os homens, antes de recorrer aos serviços dessas prostitutas, chamam primeiro uma gueixa, para que ela os divirta com suas danças e canções. Em 1956, segundo ouvi dizer, entrou em vigor a Lei de Proibição da Prostituição. O ofício de meretriz passou a ser ilegal e sessenta mil mulheres ficaram desempregadas, assim como dezesseis mil donos de bordéis. Desde então, deixou de haver prostitutas legais no Japão e, uma vez que teoricamente a gueixa não negocia com o sexo, eu perguntava a mim mesmo como é que os japoneses solteiros ou os homens casados em busca de aventuras resolviam o problema do sexo. Provavelmente, pensava eu, da mesma forma que seus colegas americanos, frequentando as mulheres emancipadas, casadas ou solteiras, que também procuram o mesmo prazer e não cobram nada. No entanto, ainda não estava satisfeito com o que ouvira. Teriam ou não as gueixas qualquer coisa a ver com o sexo profissionalizado? — Essa é uma questão muito delicada — responderam- me. — Pode-se, no entanto, dizer que muitas das gueixas de “terceira categoria”, pouco dotadas artisticamente, estiveram e estão sempre dispostas a degradar-se em nome do amor. Existe para elas uma expressão japonesa, “daruma-geisha”: são muito fáceis de derrubar, como se se tratasse de uma àaruma, boneca tradicional de forma arredondada. No entanto, ter uma gueixa como objeto de semelhante desejo
constitui um prazer tão caro que os homens preferem di- vertir-se com as moças dos cabarés. Quando perguntei à Sra. Akamatsu, minha tradutora, o que pensava sobre o futuro da gueixa, ela replicou: — O problema é que a gueixa de primeira classe está se tornando muito dispendiosa. Antes da guerra, havia grande número de clientes que as sustentavam, tendo em vista apenas o prazer espiritual que delas extraíam e não para satisfazer um desejo físico. Hoje, isso é cada vez mais raro, ao passo que aumenta o número das pessoas saudáveis que não sentem interesse pelas danças e músicas tradicionais e utilizam a gueixa apenas como fonte de diversão. “A fim de sobreviver à realidade em constante mutação do nosso país no presente, elas têm de se esforçar por se tornar peritas nas artes que praticam, de molde a serem consideradas representantes da cultura tradicional japonesa. Do contrário, em face dos tempos modernos, perder-se-á o significado social de sua existência. “Acho que o mundo da gueixa está agora atravessando o mesmo momento difícil que teve o teatro cabúqui. Sua sobrevivência depende da maneira como utilize a excelente herança cultural da nação, adaptando-a ao gosto de seus contemporâneos. ’ ’ E a Sra. Akamatsu acrescentou: — A propósito, o fato de se designar por “guild” (Guilda - N. do E.)  a associação das gueixas levou certo funcionário da Shimbashi Guild a pensar que esse termo sugeria qualquer coisa de feudal e não se adequava à presente situação. Por isso, a organização passou a se chamar Shimbashi Geisha Association. O senhor é capaz de tornar isso público? Respondi que sim. Concordo em considerar essas moças como membros de uma associação progressista, caso elas, em contrapartida, me façam um favor: que nunca me apareçam de calças justas e camisas de fora, dançando o chá-chá- chá ou o watusi, com um beatnik barbudo, numa discoteca de Tóquio!
IV O Cavalheiro de Domingo na segunda-feira
21 A cadeira no Gabinete Oval Parei junto da cadeira vazia, olhando para ela, sentin- do-me estranhamente comovido. Era uma cadeira giratória, de couro preto e espaldar alto, que tinha sobre o assento uma almofada comum listrada. Ficava atrás de uma mesa de trabalho no Gabinete Oval da Casa Branca, em Washington. Tratava-se da cadeira que pertencia ao presidente dos Estados Unidos, que naquela suave tarde de setembro, nove semanas antes de sua viagem a Dallas, era John Fitzgerald Kennedy. Alguém se aproximou de mim. Era Pierre Salinger, secretário de Imprensa do presidente: — Vá, sente-se nela — disse-me. — Você está aí para escrever uma história sobre o que sente um presidente, por isso sente-se nela e imagine; tenho certeza de que há de encontrar o que procura. Sentei-me então na cadeira do Presidente Kennedy e, embora o tamanho não estivesse de acordo com as minhas medidas, compreendi imediatamente que Salinger tinha razão. Afirmara que eu sentiria qualquer coisa, e foi o que de fato aconteceu. O que senti naquele momento, senti depois muitas vezes, nos dias que se seguiram, e acho que essa sensação permanecerá comigo até o dia de minha morte. Desejaria que todos os americanos a experimentassem. Sentado na cadeira do Gabinete Oval, cruzei os braços sobre o mata-borrão verde no centro da mesa e contemplei o que ficava à minha frente. Vi primeiro uma comprida lâmpada de luz fluorescente. De cada lado, uma porção de objetos, bugigangas, recordações: alguns documentavam momentos decisivos na vida particular do presidente ou de membros de sua família, outros eram presentes de personalidades vindas de terras distantes que o tinham visitado. Atrás do abajur havia três livros, um deles da autoria do próprio presidente. E quando meus olhos caíram sobre o que parecia ser a capa de um cardápio, onde fora colocado um cartão escrito à máquina com o título COMPROMISSOS DO PRESIDENTE, vi que abaixo dessas palavras estavam os horários dos compromissos daquele dia. À minha direita encontrava-se uma grande pasta cheia de documentos, talvez já assinados, e a seguir um bloco de capa verde. À esquerda, via-se uma mesinha com o telefone, também verde. Reparei então nos outros telefones: havia mais dois ou três, além de um preto, este comum, como os que temos em casa, ao qual chamavam “a famosa linha quente”. Era esse o mundo que rodeava a cadeira do presidente. Mas havia mais coisas. Girando a cadeira, circundei por completo com os olhos o gabinete do presidente, uma sala inaugurada em 1909. À minha esquerda ficava a porta do gabinete do ministro das Relações Exteriores. Havia outra porta aberta, atravessada por uma corrente, que dava para um corredor ladrilhado. Atrás da corrente, no corredor, encontrava-se um agente do serviço secreto, sentado, com um policial da Casa Branca a seu lado. Ambos me observavam, enquanto conversavam um com o outro. Girando lentamente, vi, no meio do gabinete, com o espaldar de ripas voltado para mim, a cadeira de balanço do presidente, ladeada por dois sofás acolchoados, e em cima de cada um deles mais três almofadas. No meio da parede em frente ficava a lareira. Sobre ela havia dois navios de três mastros em miniatura, e, acima deles, um quadro representando o duelo naval que se travou entre o navio americano Bonhorme Richard e o inglês Serapis. Uma porta junto
da lareira dava para o gabinete da secretária particular do presidente, uma senhora hábil, leal e competente, casada com um veterano da Administração Militar. Olhando para a direita, podia ver, através das três varandas, uma delas aberta, a pérgula que atravessava o magnífico roseiral. Do outro lado, num quarto do segundo andar da Casa Branca, por cima das frondosas magnólias, o Presidente Kennedy dormia a sesta. Depois de observar a janela, meus olhos caíram sobre os dois agentes do serviço secreto, jovens e atléticos, envergando ternos comuns, com coldres escondidos debaixo dos casacos, de sentinela sob a pérgula. Voltei-me completamente de costas para a mesa de trabalho do Gabinete Oval, e observei o que ficava por detrás da cadeira. Havia ali uma mesa com meia dúzia de jornais — do meu lugar distinguia os títulos do The New York Times, do Washington Post e do Sun de Baltimore —, além de um ditafone. Do outro lado da mesa erguiam-se a bandeira americana e a presidencial. Para lá das janelas, com cortinas verdes, avistava-se uma guarita da polícia e, no jardim do lado sul, o campo de golfe que Eisenhower havia utilizado. No meio das árvores espalhavamse balanços, es- corregadores e casinhas de boneca onde brincavam os filhos de Kennedy. Completei a volta. Minha órbita visual fora rápida e, no entanto, tinha a certeza, nunca mais a esqueceria. Sentia-me inspirado pela maturidade. No Gabinete Oval havia agora um certo movimento. Uma secretária passava rapidamente, depois mais agentes do serviço secreto. Mas eu quase não dava por nada. Sentado na cadeira do presidente, tentava definir minha emoção. E pensava: “Esta cadeira foi, num certo sentido, fabricada por aquele grupo de homens de cabeleira postiça que se dirigiram a certo lugar de Filadélfia, dispostos a repudiar a tirania e a proclamar a instauração de uma democracia onde todos fossem iguais sob a lei de Deus. Hoje, esta cadeira tornou-se o centro do mundo, passou a ser considerada a sede de um regime do qual todos os americanos participam elegendo um de seus compatriotas para que represente o seu anseio de paz, de segurança e de absoluta liberdade individual”. Ergui-me da cadeira de couro negro e fiquei de pé junto dela, olhando-a com um sentimento desconhecido. À medida que o tempo passa — e haviam decorrido já quarenta e sete anos da minha vida no dia em que me encontrei junto dessa cadeira —, vamo-nos tornando cada vez mais céticos em face de nossos irmãos e de suas promessas, mais desiludidos quanto às possibilidades que nos traz cada novo dia, e, por vezes, tão feridos pela vida, de tal forma alienados ou indiferentes, que já não podemos dar crédito aos velhos sonhos nem às antigas soluções. Ignoro se era isso que sentia anteriormente. O que sei com certeza é que eram bem diversos os sentimentos que experimentava quando me afastei da cadeira do Gabinete Oval. Meu ceticismo em face de tudo o que se relacionava com a Casa Branca, os negócios e a política, os mexericos que rodeiam inevitavelmente todos os chefes em posição de destaque, tudo isso eu esquecera. Sentia-me revivificado pela visão que acabava de ter do meu país, da pureza de seus objetivos, de seu conceito de vida. O significado daquela cadeira, propriedade de todos e que não era o trono de ninguém, tornou-se-me claro. O patriotismo da minha juventude, minha crença na retidão e nas possibilidades práticas das virtudes do nosso sistema, tudo isso se apossou novamente de mim.
Afastei-me devagar daquela cadeira e saí do Gabinete Oval tomado de poderosa emoção. Era como se me houvesse sido revelado que essa comunidade de homens e mulheres de que fazia parte, dentro da qual vivia, e que aqueles homens que tinham tornado possível a existência daquela cadeira naquele Gabinete Oval, e lhe haviam conferido o significado de que agora se revestia, eram os melhores jamais inventados pela mentalidade do homem, e que podiam tornarse melhores ainda, cada vez melhores, cabendo a mim próprio desempenhar um papel nessa tarefa. De súbito, senti-me menos egoísta, menos intolerante, menos mesquinho, menos desamparado. De repente, vivi mais intensamente minha qualidade de cidadão, meus deve- res para com a causa da liberdade e meu papel dentro da comunidade. Eu, como indivíduo, representava qualquer coisa. Meus semelhantes também tinham o seu significado. E tudo isso eu percebi em face do significado daquela cadeira. Todos nós, pensava eu, devemos nos esforçar para que aquela cadeira da Casa Branca seja não só a sede de uma força e de uma determinação, mas uma fonte de sabedoria e justiça. E perguntava a mim mesmo o que cada um de nós poderia fazer nesse sentido. Participar do governo, votando. Isso haviam-me ensinado havia muito tempo. “Está bem”, pensava eu, “mas não é tudo”. E reconheci então o que era exigido a todos nós: cada um, dentro da sua esfera, trabalhe para abolir o ódio, a violência, a intolerância, a hipocrisia, o desespero, a desigualdade nos Estados Unidos. Mas para que fossem abolidas essas pragas da nossa terra, cada um de nós teria, no meu entender, de abolir primeiro os males que existem dentro de si. E para isso que seria preciso fazer? Pois bem, eu tinha vindo a Washington, entrara na Casa Branca, no Gabinete Oval, sentara-me na cadeira do presidente porque desejava escrever um livro sobre a presidência. Nunca, antes de me sentar naquela cadeira, tivera a certeza do que desejaria escrever nesse livro. Mas agora, depois de ter sentado ali, sentia que meu dever era fazê-lo, e estava pronto, finalmente. Portanto, mal ou bem, escrevi-o. Agora, sim, acredito em meus semelhantes, em meu país e em nosso sistema, mais do que antes, porque desejo ser melhor do que era, e, se for possível, levar os outros a sentirem como eu. O caminho por mim percorrido até aquele momento solene em que me sentei na cadeira do Gabinete Oval fora hesitante, cheio de desvios, lento, e, no entanto, aventuroso. Não se tratava de aventuras dramáticas no sentido físico. Eram pequenas aventuras íntimas, a que estão sujeitos todos aqueles que sonham — ou escrevem. Para mim, tudo começou à meia-noite de um sábado de junho de 1963, no momento em que percorria os jornais cheios de notícias calamitosas sobre a luta pelos direitos civis em quase todos os cinquenta Estados dos EUA. Durante muitos anos, eu desejara escrever um romance sobre esse conflito racial e haviam-me ocorrido diversas ideias, que logo pus de lado. De repente, tive um sobressalto: viera-me a ideia que procurava. Ali estava ela, inteira. Surgira-me sob a forma de uma pergunta: o que sucederia a todos nós se um negro, fazendo parte de um Congresso, em virtude de qualquer acidente e da lei que rege a sucessão, se tornasse presidente dos Estados Unidos durante um período indeterminado? Que aconteceria? Que espécie de repercussão teria esse caso nas nações e nos povos estrangeiros? Que sucederia ao próprio presidente negro? E a todos os brancos, homens e mulheres, cujas vidas viessem a se cruzar com a dele? Para encontrar a resposta, eu teria de escrever um livro de ficção, um romance baseado em fatos, ao qual chamaria O homem. Era essa a história que deveria ser contada, se eu
fosse capaz — se tivesse a percepção, a sensibilidade, a energia e, sobretudo, a coragem necessária. Hesitante, lutei durante os dias e as semanas que se seguiram, tentando converter esse sonho em realidade. Fiz pesquisas em Los Angeles e em Nova York. Sob o toldo de um café ao ar livre, nos Champs Elysées, em Paris, construí as personagens e o enredo. Escrevi as cenas em quartos de hotel, em Frankfurt e em Juan-les-Pins. Quando cheguei a Roma, fiz um intervalo. Não tinha a certeza de ser capaz de descrever o meio — as cenas passadas na Casa Branca — com a autenticidade necessária para torná-lo plausível. Talvez eu não compreendesse bem a repercussão do fato em nossas vidas. Em minhas numerosas visitas a Washington como simples turista, limitarame a dar a volta de costume, de manhã, pela ala esquerda da Casa Branca. Porém, embora tivesse ficado impressionado com o que vira, recordava-me daquilo tudo como se tivesse visitado um museu. Um presidente trabalhava no térreo, na ala oeste, e vivia como um ser humano nos aposentos do segundo andar, áreas estas interditadas aos visitantes. Se quisesse andar em frente, teria de ver o que os outros não podiam ver. Meu projeto balançava. Escrevi a vários amigos que tinha em Washington perguntando como poderia morar duas semanas na Casa Branca, de forma a captar-lhe o ambiente. Em breve tive resposta de um deles, que fazia parte do Departamento de Estado. Numa recepção oferecida pelo Secretário de Estado Dean Rusk, aquele amigo encontrara-se com o secretário de Imprensa do presidente, Pierre Salinger, e contara-lhe meu desejo. Salinger respondera: — Diga ao Sr. Wallace que li alguns de seus livros e que quero muito conhecê-lo. Escrevi imediatamente a Salinger expondo-lhe o meu problema. Ele respondeu logo: que viesse a Washington, fosse procurá-lo e ele faria tudo o que estivesse ao seu alcance. A 16 de setembro de 1963, cheguei à entrada da Casa Branca, na Pennsylvania Avenue. Depois de ter sido identificado por dois policiais, segui pelo caminho em curva que leva ao átrio da ala oeste, ou Sala de Leitura, que nesse momento continha cerca de cem jornalistas. Quando entrei, Salinger, com seu rosto redondo e amável, de camisa branca e fumando seu eterno charuto, respondia às perguntas que lhe eram dirigidas a respeito dos selvagens assassinatos de crianças na igreja de Birmingham. Ao terminar, avistou-me, percebeu quem eu era e gritou-me: — Atendo-o dentro de cinco minutos! Ao fim desse tempo, encontrava-me sentado em frente da mesa de Salinger, no seu vasto e desarrumado gabinete. Expliquei-lhe o tema do meu romance e do que precisava para continuar. Ele discutiu comigo alguns pontos, mas estava interessado na minha ideia. — Não quero entrar por aqui adentro como um turista — disse eu. — O que desejo é percorrer os gabinetes e os aposentos particulares, sentindo que sou o presidente, tal como a figura do meu romance. Salinger prometeu ajudar-me. Visitar o Gabinete Oval, os salões em redor, não seria difícil, visto que, das duas e meia às quatro e meia, o presidente costumava descansar em seus aposentos particulares. Ir até aqueles aposentos era um caso mais complicado. Os Kennedy não queriam que sua vida privada fosse exposta ao público como um peixe num aquário. No entanto, Salinger
achava que alguma coisa se poderia arranjar, visto eu estar escrevendo um romance. Combinamos alguns planos, e na tarde seguinte fiz a primeira da meia dúzia de visitas que se seguiram ao Gabinete Oval do presidente — e sentei-me na sua cadeira. O momento de inspiração que ali vivi foi seguido de outros, muito íntimos, importantíssimos, durante os dias imediatos. Primeiro Salinger, depois um policial da Casa Branca, guiaram-me numa visita completa a todos os cantos do andar térreo. Vi a copa, a sala da florista, o consultório do médico, a cozinha imaculada e moderna, a sala de projeções com lugares para cinquenta pessoas, atapetada de azul. De regresso ao Gabinete Oval — contei trinta e três degraus desde a pérgula exterior até ali —, o policial declarou-me: — Vamos ler tudo o que o senhor escrever, sabe? Os serviços secretos censuram tudo quanto se escreve sobre a Casa Branca. Queremos saber o que é que o livro vai tornar público sobre o que se passa aqui — algum maluco que o leia pode ficar sabendo a melhor maneira de entrar, caso planeje algum atentado contra a vida do presidente. Mais tarde, depois de ter pedido uma entrevista à secretária particular do presidente, que exercia esse cargo havia onze anos, Sra. Evelyn N. Lincoln, cujo gabinete ficava contíguo ao do presidente, fui ali introduzido. A Sra. Lincoln mostrava-se nervosa. Tive há pouco ensejo de lhe recordar nossa entrevista. “Prometo-lhe”, declarei, “que não a farei uma personagem do meu romance”, e cumpri. Mas disse-lhe que desejava saber alguma coisa sobre as tarefas diárias da secretária particular do presidente, utilizando essas informações para construir o ambiente (e foi isso o que fiz). Estou certo de que não descobrirá nada de si própria na figura-chave do meu livro, Edna Forster, mas estou também certo de que irá encontrar, ao lê-lo, algo sobre o ambiente de trabalho que lhe recordará o seu cargo. Voltam-me à memória pormenores da nossa conversa. A máquina de escrever elétrica e o aparelho de televisão em frente à sua mesa, e, sobre as prateleiras, as recordações que pertenciam ao presidente e já não cabiam no gabinete dele. Acima de tudo, recordo-me do enorme buraco da fechadura da porta do gabinete, que lhe permitia espreitar para dentro do Gabinete Oval, a fim de ver se o presidente estava acompanhado ou sozinho. A Sra. Lincoln informoume de que uma limusine escura da Casa Branca ia buscá-la todos os dias às sete e meia, em frente de sua casa, trazendo-a para a ala oeste, onde por vezes ficava trabalhando até as oito e meia da noite. Era ela quem recebia as cartas particulares do presidente, as chamadas telefônicas, e quem organizava o horário das audiências. — Não sei se devia lhe dizer isto, mas sou eu quem lhe escolhe os ternos e se encarrega de ver se são entregues a tempo e a hora. Claro que ele sabe o que quer e tem gostos definidos, e eu escolho de acordo com eles. Os dias seguintes foram um caleidoscópio das impressões colhidas nas visitas feitas a todos os cantos e recantos da primeira casa da nação. O que mais me entusiasmou foi aquela tarde em que o criado de quarto do Presidente Kennedy, um negro chamado Preston, de casaca preta e gravata branca, me acompanhou aos aposentos, raramente visitados seja por quem for, onde o presidente e a primeira dama da Nação vivem retirados do mundo exterior. São as pequenas coisas, não as grandes, que ainda hoje recordo. As caixas de fósforos brancas com as palavras escritas em letras douradas — “Casa do Presidente” —
sobre um cinzeiro no Quarto de Lincoln, onde muitas vezes dormia Rose Kennedy; a mesa de tampo de couro junto de um sofá amarelo, onde o presidente costumava trabalhar até tarde na sala de estar, enquanto a mulher, enroscada no sofá, ao seu lado, lia sob os quadros coloridos de Cézanne que pendiam das paredes; os colchões verdes sobre a mobília branca de jardim, na Varanda de Truman, onde o presidente podia descansar nas tardes de verão, conversando familiarmente com Lyndon B. Johnson e com outros líderes do Congresso; o gigantesco umidificador no quarto do presidente, onde ele guardava os charutos. Quanto ao presidente em pessoa, vi-o três vezes durante esses dias. Não o entrevistei, mas o vi em ação e de perto. A primeira vez foi de manhã, no gabinete, onde fez algumas observações públicas, pouco depois do juramento dos oito- centos representantes da Assembléia Geral das Nações Unidas. Mais tarde, ele e Adiai Stevenson trocaram piadas. Vi depois as observações de ambos transcritas nos relatos oficiais, mas não as piadas. A segunda vez foi mais memorável. Convidaram-me para assistir, no Gabinete Oval, à transmissão pela tevê do presidente à nação sobre a redução de impostos que ele tanto desejava. Viria a ser esse, embora nenhum de nós então o suspeitasse, seu último comunicado à nação através da tevê. Vi retirarem da mesa os utensílios de escritório, estenderem atrás dela uma cortina negra como pano de fundo e colocarem duas almofadas no assento da cadeira. Perguntei se era para ele ficar mais alto. Responderam-me que não, destinavam-se apenas a dar-lhe comodidade, visto que sofria da coluna vertebral. Vi-o entrar no escritório, muito mais robusto do que eu o imaginava. Cumprimentou-me com a cabeça, e eu correspondi. Vi-o percorrer o primeiro parágrafo enquanto era fotografado, e, depois que os fotógrafos saíram e as luzes vermelhas das câmaras de televisão começaram a piscar, ele iniciou o discurso. Pela terceira e última vez, vi-o, ao fim da tarde, atravessando o relvado do roseiral, com a pasta de couro de crocodilo debaixo do braço, dirigindo-se para o enorme helicóptero que estava pousado na plataforma de aço do pátio do sul, pronto a conduzi-lo ao edifício das Nações Unidas, em Nova York. Passados poucos dias, eu regressava a Los Angeles, com o espírito cheio de tudo o que observara, mais simples e no entanto mais dramático do que quanto presenciara até então. Sabia que tinha de escrever meu livro sobre tudo aquilo, sentia-me capaz de fazê-lo — e o fiz. Falta, porém, contar uma parte da história, que é tão mística, tão estranha, que quase hesito em relatá-la aqui. Devo, no entanto, contá-la, visto fazer parte integrante da aventura. Eu estava escrevendo febrilmente o meu romance. No fim do primeiro capítulo, o vice-presidente negro ascende à presidência durante o tempo que falta para expirar o mandato do falecido e igualmente fictício presidente. Ora, eu queria descrever meu presidente negro jurando sobré a Bíblia e não sabia em que passagem ele a devia abrir. Percòrria mentalmente todos os versículos apropriados que me vinham à memória, até que me detive num. Refleti e achei que estava certo. Então aproveitei-o. Aqui está exatamente o que escrevi: “Ela ouviu Eaton inquirir do Senador Dilman: — Quer que abra em alguma passagem em especial? “E Dilman replicou: — Abra no Salmo 126. “Eaton percorreu a Bíblia devagar e depois perguntou: — É isto? Se o Senhor não edificar a casa, será em vão que eles a edificam: se o Senhor não vigiar a sua
cidade, toda a vigilância será vã’. — Ergueu os olhos para Dilman, engoliu em seco, fazendo subir e descer o pomo-de-adão, e respondeu: — Sim, é isso mesmo.” Dali a uma semana — era meio-dia e eu acabava precisamente de largar o trabalho — quando a minha mulher me telefonou do instituto de beleza onde tinha hora marcada, exclamando ao telefone: — O Presidente Kennedy foi alvejado em Dallas! Mal podendo acreditar, liguei o rádio. Dentro de uma hora, tão estarrecido como toda a nação e o mundo inteiro, soube que ele tinha morrido. Essa tarde ficou para mim envolta em confusão e, pela noite afora, sentado na borda da cama, exausto e aniquilado, assisti ao desolador noticiário da televisão. A certa altura, surgiu um comentarista dizendo que o presidente estava morto. Seu carro dirigia-se para o Dallas Trade Mark, onde realizar-se-ia um almoço oferecido pelo Conselho dos Cidadãos de Dallas. O discurso do Presidente Kennedy estava preparado. Mas ele não o leria. O comentarista achava que este último discurso feito por John Fitzgerald Kennedy devia ser tornado público. Por isso, leu-o e, ao chegar ao parágrafo final, declarou que o presidente fora “a sentinela das muralhas da liberdade do mundo” e que devíamos dali para o futuro exercer a força temperada com a prudência e o equilíbrio, a fim de alcançarmos a paz na terra. Leu em seguida as últimas palavras do derradeiro discurso do presidente: “Deve ser esse o nosso objetivo, e a legitimidade da nossa causa fortalecernos-á. Porque está escrito: ‘Se o Senhor não vigiar a sua cidade, toda a vigilância será vã’ Senti-me gelado. “Se o Senhor não vigiar a sua cidade, toda a vigilância serâ vã.” Inspirado por uma cadeira no Gabinete Oval, eu pusera aquelas mesmas palavras na boca de um presidente imaginário que sucedia a outro, igualmente fictício, falecido uma semana antes. E eram essas também as últimas palavras do nosso verdadeiro presidente. Tal coincidência parecia-me tão incrível e misteriosa como a própria existência. A vida da nação prosseguiu. Tudo seguiu em frente. Alguns meses mais tarde, ao procurar outra citação apropriada para o meu livro, deparei com uma frase, que havia rabiscado nas costas de um sobrescrito dobrado, no Gabinete Oval. Transcrevia-a pois com firmeza no meu livro, e senti que ela era como que a essência de tudo quanto aprendera naquela cadeira vazia do Gabinete Oval — e talvez com aquele que a ocupara tão dignamente e durante tão breve espaço de tempo. Descrevi no meu livro um advogado branco, que era o maior amigo do presidente negro, a quem dizia: “— O povo americano acabou finalmente por aprender aquilo que um grande escritor do Kansas tentou ensinarlhe há tantos anos: que a liberdade é a única coisa que nunca conseguiremos alcançar — se não estivermos dispostos a concedê-la aos outros”. O que aconteceu depois. . . Este foi o último artigo que escrevi depois de haver conquistado a minha liberdade e de ter deixado de ser um Cavalheiro de Domingo. Durante alguns anos, os editores da Family Weekly, suplemento literário muito conhecido, publicado em Nova York e distribuído por outros jornais dos Estados Unidos, pediram-me para contribuir com um pequeno artigo para uma série que publicavam: “O momento em que me senti mais inspirado”. Muitos escritores americanos e ingleses já tinham colaborado.
Reparara que a maioria dos escritores declaravam que o seu momento de maior inspiração resultara de determinada experiência que lhes ampliara as perspectivas, partilhada com os pais ou algum amigo que dera provas de coragem em certa circunstância difícil, e achei que não deveria prosseguir no mesmo tom. Por isso declarei aos editores que, se algum dia me surgisse uma ideia diferente e que me entusiasmasse, colaboraria então com aquela série. E nunca mais me lembrei daquilo. Mas quem não se esqueceu foram os editores da Family Weekly. De tempos em tempos, escreviam-me perguntando se já tinha alguma ideia e eu dizia-lhes sempre que, por enquanto, não. Idêntica pergunta me foi feita alguns meses após o assassinato do Presidente Kennedy, num período em que eu estava terminando o romance O homem. Como de costume, respondi que não tinha nada em projeto, pelo menos no momento. Porém, pouco depois, recordando-me de repente de minha visita à Casa Branca, que me inspirara o término do romance, compreendi, cheio de entusiasmo, que ali estava algo que desejava ardentemente comunicar ao maior número possível de pessoas. Peguei imediatamente no telefone e falei com o editor principal da Family Weekly, em Nova York; fiz-lhe um resumo do artigo que desejaria intitular “A cadeira no Gabinete Oval”. O homem mostrou-se entusiasmado e insistiu para que eu lhe indicasse a provável data de entrega, a fim de poder marcar antecipadamente a publicação. Comecei logo a redigir algumas notas, mas por outro lado vi-me assoberbado com a revisão do meu romance, e só no verão de 1964 consegui finalmente lançar ao papel a projetada história. Escrevi a primeira versão em Paris, reescrevi-a em Cannes e enviei-a pelo correio. Os editores aceitaram-na, mostraram-se comovidos e cativados, prometendo que sairia no suplemento que seria distribuído por todos os Estados Unidos no dia do aniversário da morte do Presidente Kennedy. Mas a verdade é que não apareceu nesse dia. Nem em qualquer outro suplemento publicado noutra data posterior. Perplexo, inquiri junto do meu agente o que sucedera. Este, por sua vez, interrogou os editores. Mostraram-se evasivos. Por motivos “alheios à sua vontade” consideravam impossível a publicação. Essa resposta não me satisfez e continuei intrigado até que, numa de minhas idas a Nova York, encontrei por acaso um dos editores, numa reunião pública. Perguntei-lhe cara a cara o que se passava com “A cadeira no Gabinete Oval”. Ele respondeu-me, com tristeza, que o artigo fora cortado. Informou-me que alguns editores de jornais do sul, que eram acionistas e ajudavam a manter o suplemento, ao tomarem conhecimento do assunto da minha história, haviam protestado. Não queriam que fosse utilizada. Em consequência disso, os editores tinham decidido suprimir o artigo. Foi essa a explicação que me deram. Ignoro se é a verdadeira ou até se está completa. Sei apenas que uma história tantas vezes solicitada e aceita com entusiasmo foi inexplicavelmente lançada para o cesto dos papéis — até vir por fim a público neste volume. Sinto-me feliz por encerrar o livro com a minha aventura na Casa Branca, porque considero este lema mais significativo hoje do que nunca: “Liberdade é a única coisa que não poderemos alcançar se não tivermos dispostos a conce- dêla aos outros”. John F. Kennedy compreendia isso muitíssimo bem. Lamento profundamente sua falta por muitas razões; esta, porém, é uma das principais:
ele compreendia plenamente a definição de liberdade e poderia ter conseguido dentro em breve, caso vivesse, que muitos outros viessem a compreendê-la. No entanto, considero que a cadeira no Gabinete Oval passará, no futuro, a ser mais bem ocupada por outros, apenas porque ele se sentou nela, muito embora por pouco tempo. Ainda há pouco, num jornal inglês, deparei com uma “Elegia para J. F. K.”, escrita por W. H. Auden. Pareceu-me adequada para encerrar esta história: “Por que naquele momento, por que naquele lugar? Por que desta maneira? inquirimos chorando. E os céus guardam silêncio.
Ele foi o que foi. O que virá a ser De nós é que depende. Ao recordar-lhe a morte Serão nossas vidas que lhe darão sentido.
Sempre que morre um justo, Censuras e louvores, tristeza e regozijo Dizem a mesma coisa!”

 

 

                                                                 Irving Wallace

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades