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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CAVALO
O CAVALO

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

60

Estacionei na frente da Cozinha Vegana de Sahib e suspirei, mas consegui não dizer nada quando saímos do carro.

Depois de sentarmos e pedirmos nossas bebidas e entradas para o garçom, Tessa olhou ao redor admirada.

– Esse lugar é demais. Eu nunca tinha vindo aqui antes.

– É o melhor restaurante indiano de Denver – Cheyenne disse.

– Obrigada por escolhê-lo.

– Por nada.

Tessa inclinou-se na direção de Cheyenne.

– Patrick esteve na Índia quatro vezes.

Cheyenne me deu um aceno de aprovação.

– Verdade?

– Só para ensinar algumas coisas e servir de consultor em Mumbai. Não foi nada de mais..

– Claro que foi – Tessa interrompeu. – Ele ajudou a pegar cinco pessoas que estavam raptando garotas e vendendo-as para o tráfico sexual.

Cheyenne olhou para mim solenemente.

– Isso é algo para se ficar orgulhoso – percebi um quê de emoção em suas palavras que nunca havia sentido antes nela. – Falando sério.

– Obrigado.

Então as bebidas e o naan chegaram e nós pedimos nossa comida. Eu não me lembro dos nomes indianos para tudo, mas os nomes realmente não importavam. Tudo era praticamente apenas vegetais e arroz. Nada de carne. Nem mesmo perto.

Após o garçom sair, passei alguns minutos ajudando Tessa e Cheyenne a se conhecerem. Então Tessa disse:

– Detetive Warren, você sabia que a criação de perfis geográficos foi desenvolvida primeiro na Índia?

Olhei para minha enteada intrigado.

O que ela está fazendo?

– Não, não sabia – Cheyenne disse.

Eu não queria falar de trabalho naquela noite, especialmente sabendo o quanto Tessa podia zombar do meu ofício.

– Tenho certeza de que a detetive Warren não está interessada na história...

– Na verdade estou. Continue, Tessa.

Como eu sabia que ela iria dizer isso?

– Bem – Tessa disse. – Por cerca de dois mil anos as vilas rurais do norte da Índia foram assoladas por gangues de bandidos que se esgueiravam pelas cidades à noite e atacavam, roubavam, sequestravam e matavam pessoas, e então escapavam protegidos pela escuridão de volta para suas próprias vilas ou para seus esconderijos na floresta. Não é isso, Patrick?

– Sim. Eles se chamavam...

– Dacoits – disse Tessa. – Então, para resolver os crimes, e eu não tenho certeza em que ano fizeram isso, teria de perguntar para Patrick, as autoridades indianas finalmente decidiram parar de procurar pelas três coisas nas quais os detetives dos Estados Unidos baseiam todas as suas investigações: motivos, meios e oportunidade. Primeiramente, os indianos não ligavam para o que motivava os crimes. Fosse por raiva, por ganância ou tradição, tanto fazia, porque era provavelmente todas as opções. E segundo, eles sabiam que a maioria das pessoas na região tinha a habilidade de atacar e roubar os outros, então focar nos meios não teria ajudado muito. E finalmente, quanto à oportunidade, bom, os crimes eram sempre cometidos durante a lua nova, quando estava mais escuro, de maneira que isso também não dizia muito para eles.

A comida chegou e fiquei feliz, pelo menos por interromper a palestra de Tessa.

– Só uma coisa antes de começarmos – Cheyenne disse. – Se quisermos ser culturalmente fiéis, precisamos comer com as mãos – ela demonstrou enfiando o dedão e os três primeiros dedos da mão direita no canto do seu prato, pegando um pouco de arroz e vegetais e levando a comida até a boca.

Eu conhecia isso tudo das minhas viagens para a Índia, mas nunca havia tido tempo de ensinar à minha enteada a etiqueta indiana à mesa.

– Legal – Tessa disse. Ela começou a comer com os dedos. Por instinto, ela usou a mão esquerda.

Cheyenne sorriu.

– Mas use sempre a mão direita.

Um olhar levemente ofendido.

– E quanto a pessoas canhotas?

– Bem – eu disse –, indianos usam a mão esquerda para outras... tarefas – mantive minha descrição propositalmente vaga, esperando que Tessa fosse capaz de preencher a lacuna que deixei vazia.

– Tarefas?

Cheyenne se inclinou para a frente e disse suavemente:

– A maioria das vilas rurais não possui sistemas de esgoto adequados, então as pessoas não usam papel higiênico.

Conversa de jantar assombrosa, essa.

– O que eles...?

– Água. Eles lavam.

Tessa olhou para seu prato.

– Bom, isso é informativo – senti que ela estava prestes a continuar com as perguntas, mas ela se segurou e, em vez disso, limpou os dedos em um guardanapo.

Nós três comemos por alguns minutos, depois Cheyenne engoliu um pouco de seus vegetais com curry e perguntou a Tessa, que estava agora comendo com a mão direita:

– Então, o que eles procuraram?

– Quem?

– As autoridades indianas.

– Ah, sim, desculpe – Tessa disse e completou, cutucando com o dedo no ar. – Horário e local.

– Assim como Patrick – disse Cheyenne, com admiração.

– Não exatamente... – comecei.

– Sim – Tessa disse. – Exatamente como Patrick.

O que deu nela?

– Eles estudaram o quão longe uma pessoa podia viajar a pé de noite, então reduziram a área de busca para incluir apenas aquelas vilas dentro daquele raio.

Ela alternava entre bocados de seu jantar e a exposição de sua resposta.

– Então eles avaliaram as rotas de viagem mais prováveis, estudaram padrões de uso da terra e compararam com a proximidade dos crimes e reduziram mais ainda a lista de suspeitos. Finalmente, eles consideraram a cultura e as tradições da região.

– Cultura e tradição? – Cheyenne perguntou.

– Sim. Eles sabiam que os homens nas gangues não atacariam membros de sua própria casta, então eliminaram mais suspeitos ainda. Naquele ponto eles começaram a procurar por evidências físicas, identificação de testemunhas oculares, confissões etc. ... Mas eles começaram procurando por horário e local.

– Uau, estou mesmo impressionada. Onde você aprendeu isso tudo? Tessa apontou os dedos engordurados e cobertos de arroz para mim.

– Nos livros de Patrick. Eles são muito cativantes e informativos. E muito bem pesquisados.

Ok, isso foi só ridículo.

Eu estava prestes a explicar que qualquer investigador poderia ter descoberto o mesmo método usando apenas lógica e dedução racional, mas Tessa afastou a cadeira da mesa.

– Bem, acho que preciso ir ao banheiro – ela fez uma pausa e então disse. – Hum, eles têm...

– Sim – Cheyenne disse –, aqui eles têm.

– Perfeito.

Tessa passou entre as mesas a caminho do banheiro e eu só balancei a cabeça.

– Eu não faço ideia do que está acontecendo com ela hoje. Desculpe-me.

– Pelo quê?

– Ela não é assim normalmente. Na maioria das vezes ela é muito menos... hum, aparecida.

– Ela tem orgulho de você, só isso – Cheyenne tomou um gole de sua bebida, então repousou seu lassi. – Eu gosto dela. Ela tem atitude.

– Sim – eu disse. – Atitude.

Comemos por alguns minutos, então apoiei meu garfo.

– Cheyenne, deixe-me perguntar uma coisa.

– Sim? – ela comeu um punhado de vegetais.

– Lá no celeiro, quando você atirou na corrente... – levei um momento para reunir meus pensamentos para que não soasse como se eu estivesse questionando a decisão dela. Ela mastigou a comida. Engoliu. Esperou que eu continuasse. – Por que você não atirou quando estava ao meu lado? Sabe, antes de o cavalo começar a correr. Acho que teria sido um tiro muito mais fácil do que acertar uma corrente de três centímetros de largura de um cavalo galopando.

– Você está certo. Teria sido mais fácil.

– Então, por quê?

Ela pegou mais um punhado de comida, empurrou seu prato para o meio da mesa e mergulhou os dedos em uma pequena tigela de metal com água que o garçom havia providenciado para os clientes limparem seus dedos.

– Eu precisaria de alguns segundos a mais para mirar, mas o fogo estava se espalhando tão rápido que eu não queria arriscar. Eu não estava confiante que o cavalo conseguiria se eu esperasse.

Aquilo parecia fazer sentido, mas fiquei com a impressão de que havia algo mais que ela queria dizer.

– No cavalo tudo é só instinto – ela explicou. – É desse jeito que trabalho melhor: com o instinto. Uma pessoa pode pensar demais, sabe? – na luz amarelada do restaurante, ela parecia mais atraente do que nunca. – Você confia na sua mente, Pat, e eu admiro isso. Eu confio no meu instinto.

Os sons ambientes do restaurante pareciam ter sumido.

– E o que o seu instinto está dizendo agora?

Um brilho surgiu nos olhos dela.

– Que estou querendo sobremesa.

Então ela deixou seu olhar se perder além do meu ombro quando Tessa reapareceu por trás de mim e sentou-se em sua cadeira.

– Você falou sobremesa?

– Isso mesmo. Assim que vocês dois terminarem.

Enquanto Tessa e eu terminávamos de comer, Cheyenne contou a ela sobre alguns dos cavalos que ela tivera na vida, e, considerando o amor de Tessa pelos animais, dava para ver que Cheyenne estava fazendo uma nova amiga.

Finalmente, Tessa terminou sua refeição, enxaguou os dedos e olhou animada para mim.

– Estou com vontade de tiramisu. Eles não fazem tiramisu indiano, fazem?

– Normalmente não – eu disse.

Cheyenne afastou-se da mesa e levantou-se.

– Tiramisu parece perfeito. Vamos.


61

Mesmo que estivesse esperando por isso, quando Reggie apareceu no esconderijo após trabalhar em uma cena de crime “nas montanhas”, isso incomodou Amy Lynn. Ela esperava que ele ficasse em casa e desse espaço para ela trabalhar. Típico do casamento deles: ela estava sempre buscando mais espaço, ele estava sempre buscando uma “ligação mais íntima”.

– Você está bem? – ele perguntou, depois que os dois agentes federais de guarda na casa saíram para o outro quarto.

– Sim, estou bem.

Ele pegou Jayson e levantou-o alegremente sobre sua cabeça.

– Tem certeza de que quer ficar aqui?

– Está sendo bom.

E estava mesmo. Ela havia conseguido bolar algo para sua coluna semanal e dar um jeito no artigo sobre os esteroides a tempo de entregá-los às 16h. Então ela havia passado o resto da tarde e da noite pesquisando o assassino. E mesmo não tendo encontrado nenhuma pista sobre a identidade de John, depois de procurar entre todos os funcionários do Denver News e no diretório de colaboradores terceirizados, além de listas de funcionários de outros jornais locais, TVs e estações de rádio, ela estava confiante de que descobriria algo, desde que tivesse um pouco mais de tempo.

Jayson gargalhou quando Reggie o levantou e o abaixou.

– Talvez depois que eu colocar esse malandrinho na cama, nós poderíamos, sabe, passar um tempinho juntos.

– Eu não sou “malandinho”! – Jayson disse com um sorriso alegre.

– Hum, seria bom – Amy Lynn disse, mas seus pensamentos estavam em outro lugar.

Alguns minutos depois, enquanto Reggie estava no quarto colocando Jayson para dormir, ela entrou na internet e pesquisou sites que publicavam histórias sobre crimes reais. O ideal seria que ela estivesse escrevendo uma série de artigos para o Denver News sobre o assassino, mas como Rhodes não dava permissão a ela para trabalhar na história, e o diretores estavam sendo muito precavidos, ela escolheu um método levemente diferente.

Havia outras maneiras de desvendar uma história além de apenas pela mídia impressa.

Na verdade, postá-la na internet daria a ela uma audiência maior, mais exposição, e ela podia atualizar a informação mais rapidamente. Além disso, permitiria a ela se manter à frente das outras agências de notícias.

É claro, ela precisaria escrever anonimamente ou sob um pseudônimo, mas no fim, quando a hora fosse certa, revelaria seu nome verdadeiro.

Ela estava no computador quando ouviu os passos de Reggie. O artigo não era algo que ela gostaria que ele visse, então rapidamente minimizou o navegador.

– Então – ele disse. Ela sentiu as mãos dele massageando sua nuca. – Quando você vai estar pronta para ir para a cama?

A massagem estava boa. Ele tinha mãos fortes e pressionou profundamente seus músculos tensos.

– Por quê? – ela disse. – Você está com sono? – ela fechou os olhos e curtiu seu toque.

– Não muito – sua voz havia se tornado um sussurro. Ele manteve as mãos no pescoço dela e continuou massageando.

– Vou para lá daqui a pouco. Só gostaria de verificar mais algumas coisas aqui.

Mãos fortes aliviando a tensão.

– Não demore – ele disse.

– Não demorarei – a massagem parou. Ela abriu os olhos lentamente e ouviu a porta para o quarto principal se fechar.

Então ela continuou a digitar e, após alguns minutos, havia esquecido completamente do marido esperando por ela no quarto no fim do corredor.


62

Paramos para comer uma sobremesa no Rachel’s Café, uma das minhas cafeterias preferidas no centro de Denver.

Construído no primeiro andar de um armazém remodelado, o Rachel’s tinha um piso de tábuas centenárias, paredes de tijolos e dutos de ar e canos serpenteando pelo teto. Cópias do Denver News estavam espalhadas pelas mesas. Um torrador de café ficava no canto, perto do palco apertado.

Como na maioria das cafeterias pequenas, o Rachel’s Café não tinha móveis que combinavam as cores e não vendia foquinhas de pelúcia “ecológicas” feitas pelo trabalho infantil na China, máquinas de espresso caríssimas ou balas de marcas famosas. Em vez disso, o Rachel’s simplesmente oferecia uma atmosfera boêmia eclética e café excelente do mundo todo. Meu tipo de lugar.

Eu gostaria de fazer uma hora por lá, mas como não sabia por que Tessa havia ficado tão agressivamente simpática a noite toda, eu queria ir para casa o mais rápido possível antes que ela dissesse algo para Cheyenne que fizesse com que eu me arrependesse. Assim, certifiquei--me de que nossa parada para a sobremesa fosse breve e, então, partimos para o apartamento de Cheyenne.

Dez minutos após sair do Rachel’s, estacionei em frente à calçada, mas antes que eu pudesse convidar Cheyenne para que se juntasse a mim fora do carro para que eu pudesse dizer boa-noite, Tessa falou:

– Seja um cavalheiro, Patrick. Acompanhe-a até a porta.

– Tessa...

– Continue.

– Já chega – eu disse.

– Isso parece bom – Cheyenne disse. Então ela saiu do carro e esperou que eu me juntasse a ela.

Diminuí minha voz e disse para Tessa:

– Vamos conversar sobre isso quando chegarmos em casa.

– Ok.

Abri a porta.

– Já volto.

– Fique à vontade.

Enquanto andávamos pelo caminho até sua porta, Cheyenne segurou em meu braço e fez com que caminhássemos mais devagar.

– Bem, dr. Bowers – ela disse. – Obrigada por vir comer nas redondezas da minha casa esta noite.

– Por nada. Eu estive pensando, eu provavelmente precisarei comer em algum momento na semana que vem. Talvez pudéssemos fazer isso de novo.

– Hum – ela disse. – Vou ter de checar meus horários na minha agenda social superocupada.

– Está tão cheia assim, é?

Chegamos à porta, mas em vez de andar até debaixo da luz como eu esperava, Cheyenne parou na borda da noite.

– Você não faz ideia de como eu sou popular.

– E ainda assim você escolheu passar a noite com minha enteada e comigo.

– Sim, escolhi.

– Me sinto honrado.

A noite se assentou, calma, doce e fria ao nosso redor.

– Eu me diverti – ela disse. – E gostei muito de Tessa.

– Ela tem um jeito que faz a gente ir se afeiçoando – e depois acrescentei – Ela é tudo para mim.

– Dá pra ver – mesmo não me lembrando de termos nos aproximado, o espaço entre nós parecia estar encolhendo. Olhei para ela, parada no fraco brilho da penumbra.

Cheyenne Warren era realmente uma mulher linda.

Momentos se passaram.

O barulho do trânsito vinha em minha direção de muito longe, de alguma cidade distante que não tinha nada a ver com nenhum de nós dois.

Finalmente eu disse:

– Acho que já vou. Você sabe. Levar Tessa para casa – mas após dizer as palavras, não fui a lugar algum. Nem Cheyenne. Parecia que nenhum de nós queria que o “encontro que não era um encontro” acabasse.

Eu sentia vontade de pegá-la em meus braços, abraçá-la, beijá-la e ver aonde tudo iria dar, mas então lembrei-me de Lien-hua e de como as coisas haviam acabado com ela. Eu não queria começar com o pé esquerdo com Cheyenne. Não queria fazer nada de errado.

Vá devagar, Pat. Ela vale a pena. Não faça nada idiota.

O barulho de um carro buzinando em uma das ruas vizinhas quebrou o encanto, e dei um leve passo para trás.

– Ok – eu disse. – Acho que...

Cheyenne deu um leve suspiro.

– Foram duas vezes já.

Hesitei.

– Duas vezes?

– Sim. Uma vez no celeiro, hoje mais cedo, e então agora.

– O que você quer dizer?

Os olhos dela ainda estavam cheios da confiança e da força usuais,

mas também tinham um toque de decepção.

– Foram duas vezes que eu pensei que você ia me beijar, mas em vez disso decidiu se afastar de mim.

Puxa.

Meu coração estava disparado. Senti como se estivesse na escola de novo, atrapalhado com o que dizer para a garota com quem eu finalmente tinha arrumado coragem para falar.

– Não é que eu não queira...

Ela fechou os olhos com força e bateu na própria testa com a palma da mão.

– Ah, eu não deveria ter dito isso. Eu sempre faço essas coisas. Eu acabo dizendo o que estou pensando. Eu nem mesmo... é um mau hábito. Desculpe.

Eu queria dizer a ela que não era um mau hábito, mas que sua honestidade franca era das coisas que eu mais gostava nela, mas acabei apenas dizendo:

– Nunca peça desculpas por dizer a verdade. Ela combina com você – e então... – Boa noite, Cheyenne.

– Boa noite – ela disse, e dei um leve abraço amigável nela, mas foi só isso. Quando me virei e andei de volta para o carro, ouvi a porta se abrindo e então fechando suavemente atrás de mim.


63

De volta em casa, eu queria ir para a cama, mas Tessa só me deixou em paz por tempo suficiente para eu colocar minha escova de dentes na boca antes de bater na porta do meu quarto, entrar e me pegar no meio da escovação no banheiro contíguo.

– Por que você não deu um beijo de boa-noite nela?

Cuspi a pasta de dentes.

– Isso não é da sua conta.

– Ela é legal. Eu gosto dela. Acho que você deveria ter...

– Tá bom, já chega – soltei a escova de dentes. – O que você está tentando fazer?

– Só estou dizendo que você deveria ter beijado ela.

– Não, estou dizendo a noite toda – peguei um copo d’água. Enxaguei a boca. – O que está havendo?

– Nada.

– Você fez o jantar para mim. Ficou bancando o cupido. Você até elogiou meu livro. Algo deve estar seriamente...

– Será que não posso ser legal uma vez na vida sem você ficar no meu pé por isso?

– Não estou no seu pé. Eu só não entendo.

Ela apoiou uma mão na cintura.

– O quê? Talvez você prefira que eu me comporte mal.

– Bem...

– Que tal um pouco de teimosia? Assim seria melhor? Ou melancolia, talvez? É isso que você quer?

– Olha, é que você não estava parecendo você mesma hoje, só isso. Normalmente você é mais quieta e introvertida e meio que irritada com a vida no geral, e não tão...

– Não tão o quê?

– Absurdamente alegre.

– Bom, isso é fácil de resolver – ela disse.

– Tessa, por favor – tentei pensar em algo que possa ter acontecido mais cedo para causar isso tudo. – É porque vamos viajar no verão? Tem alguma coisa a ver com isso?

Ela ficou em silêncio.

– Com a caixa de sapato?

Sem resposta.

O que mais?

Ah, sim.

– O diário da sua mãe. É isso? Isso tudo tem a ver com ele?

O olhar de dor que tomou conta do rosto dela veio tão discreta e repentinamente que todo o clima do lugar mudou instantaneamente.

– Eu só estava tentando... – ela começou, mas não terminou.

O diário deve ter se tornado mais importante para ela do que imaginei.

– Eu a amava, sabia? Mais do que qualquer outra coisa – sua voz havia se tornado algo frágil e pequeno. A voz de uma garotinha.

– Venha aqui.

Segurei-a em meus braços e ela se apoiou em mim de um jeito que cortou meu coração. E quando ela o fez, pensei em Christie, na mulher que tanto eu quanto Tessa amamos tanto, e na promessa que ela havia me pedido para fazer em relação ao diário.

Mas agora, levando em conta o quanto Tessa havia ficado incomodada, eu não imaginava que Christie iria querer que eu escondesse o diário dela por mais cinco meses.

– Escute – eu me afastei e gentilmente segurei os ombros dela. Vi que ela não havia começado a chorar, mas ela era uma garota experiente em esconder sua dor. – Vou dar para você, ok? Amanhã. Vou te dar o diário de manhã.

– O quê? – ela olhou para mim com uma mistura de esperança e ceticismo. – Sério? Mentira.

– Sim. Acho que sua mãe entenderia. Tenho certeza de que ela nunca quis que isso fosse grande coisa, que te chateasse tanto.

Tessa olhou para meu quarto.

– Então, onde está?

– Não está aqui – soltei suas mãos. – Vou ter de pegá-lo amanhã. Está no meu escritório, no prédio da polícia federal.

– Você não poderia...

– Amanhã. Faremos isso amanhã.

– Você não está só dizendo isso para me manipular...

– Não. Vou dá-lo a você.

Ela analisou meu rosto por um momento e, então, disse suavemente:

– Obrigada, Patrick. Obrigada de verdade.

– Eu te amo, Raven – eu disse.

Ela sorriu para mim então, um sorriso suave e natural.

– Eu também te amo.

E por um momento, apenas um momento, os cadáveres no Colorado e o julgamento em Illinois sumiram da minha cabeça, e a vida parecia ser como deveria. Tessa e eu estávamos em sintonia, e eu senti como se pudesse dar a ela um dom, uma chance de se conectar com sua mãe de um jeito que ela nunca foi capaz antes.

Mas quase que imediatamente percebi que ler o diário de Christie, sem dúvida, traria de volta os sentimentos de tristeza e perda de Tessa, e poderia abrir feridas, possivelmente fazê-la se sentir mais solitária do que nunca.

Tentei não pensar nessas coisas e, em vez disso, apenas disse a mim mesmo que essa era a coisa certa a fazer.

Então Tessa foi para o quarto dela, mas percebi que a sensação de paz que eu havia tido apenas um momento atrás havia evaporado antes mesmo de ela ter saído pela porta.


64

45 minutos mais tarde

Eu não conseguia dormir.

Além das minhas dúvidas sobre dar o diário a Tessa, meus pensamentos voltaram para o rancho onde havíamos encontrado Thomas Bennett e quase havíamos pegado o assassino.

Quase.

Mas não pegamos.

Tentei tirar tudo da minha cabeça, mas não conseguia relaxar. Então desisti e peguei meu laptop, coloquei alguns travesseiros para apoiar as costas e naveguei até os arquivos on-line do caso.

Li por cerca de 20 minutos.

Não me deu sono.

Não reparei em nada novo.

Chequei meu e-mail e encontrei, entre 59 e-mails de spam e quatro memorandos internos do FBI, três mensagens que me chamaram a atenção: uma de Kurt, uma de Ralph e uma da United Airlines me dizendo que era hora de confirmar meu voo das 16h04 para Chicago amanhã.

É mesmo. O julgamento.

Outra coisa para pensar.

Mas não no momento.

Li o e-mail de Ralph primeiro.

Oi,

Por que você não está atendendo o telefone? Odeio digitar.

Nada de novo aqui. O oficial Fohay está limpo, porém. As digitais não bateram e ele não possuía nenhuma associação anterior com Sikora.

Calvin não saiu de casa o dia todo.

Falo com você amanhã.

Não me faça perder tempo. Atenda seu telefone.

– R

Então, nada de alarmante. As coisas teriam sido muito mais fáceis se tivesse sido Fohay quem havia carregado a arma; mas as coisas normalmente não são simples assim.

Respondi para Ralph, explicando que meu telefone tinha quebrado e que, se ele precisasse entrar em contato comigo, devia usar meu telefone fixo ou ligar no celular de Tessa.

Fiquei um pouco surpreso por Calvin não ter saído de casa. Afinal, ele não acreditava em aposentadoria, trabalhava em fins de semana e tirava apenas a quarta-feira de folga. Ele havia me dito na sexta que iria esperar e ver o que aconteceria a seguir. Fiquei pensando se realmente não tinha acontecido algo.

Então mandei um e-mail para ele também, para ver se ele podia me pegar no aeroporto amanhã à noite para me dar uma carona para meu hotel.

Depois abri até a mensagem de Kurt.

Pat,

Anexei o arquivo de vídeo da filmagem que você fez dentro da casa. Algumas coisas:

Encontramos o corpo de Elwin Daniels em uma cova rasa perto da casa. A análise preliminar da hora da morte indica de 18 a 20 dias atrás.

Nenhum DNA ou impressões digitais, mas o controle animal verificou que um dos aquários continha sapos, e não cobras: sapos do Rio Colorado. Com base no tamanho do tanque e na quantidade de excrementos, parece que o cara tinha cerca de 10 a 12 deles. O problema é que a pele deles contém 5-MeO-DMT e bufotenina, drogas psicodélicas, mas quando ingeridas em doses concentradas... você pode imaginar. Parece que John está se preparando para a história número sete.

Nada ainda sobre nenhum padre desaparecido, mas o pessoal do departamento de pessoas desaparecidas ainda está procurando. Vejo você amanhã. Teremos uma reunião às 13h, na sala de conferência do sexto andar. Descanse um pouco.

– Kurt

PS: Reggie me disse que você teve um encontro com Cheyenne hoje. Não se preocupe. Não vou espalhar a notícia.

Quanta consideração.

Chega disso. Eu precisava dormir um pouco.

Coloquei meu computador de lado, enfiei-me embaixo das cobertas e fechei os olhos.


65

Domingo, 18 de maio
6h13

O domingo não começou bem.

Meu pesadelo com o matadouro e os cadáveres sussurrando havia voltado; quando abri os olhos, vi que o dia seria desolador.

Deus havia decidido mandar chuva para Denver, e o céu cinzento me lembrava mais uma manhã de novembro em Milwaukee do que um dia de primavera em Denver.

Abri a janela para checar a temperatura e uma brisa gelada com cara de inverno me recebeu. A temperatura havia caído mais de 11 graus desde a noite anterior, e pela cara das nuvens e queda da temperatura, imaginei se estaríamos preparados para uma tempestade de neve atrasada antes do fim do dia.

Mas você não estará aqui no fim do dia.

É mesmo.

Chicago.

Após um rápido banho acessei a internet, com esperança de mudar meu voo para mais tarde, mas não havia assentos disponíveis, o que significava que eu teria de partir para o aeroporto às 14h30, talvez 15h no máximo, e isso me dava menos de nove horas para fazer algum progresso nesse caso antes de viajar para o Meio-Oeste.

Eu certamente estava pronto para um pouco de café.


Eu havia acabado de colocar alguns grãos peruanos recém-torrados no moedor quando meu telefone fixo tocou. Sem fio, mas um modelo antigo. Sem identificador de chamadas, e como eu havia mandado um e-mail na noite passada para Ralph dizendo a ele para me ligar no telefone fixo se precisasse de mim, imaginei que provavelmente fosse ele.

Atendi o telefone.

– Pat falando.

– Parabéns – a pessoa sussurrava baixo, a voz eletronicamente disfarçada. – Por chegar ao rancho tão rápido.

Meus pensamentos se focaram, destacando um ponto.

– John?

– Pode ser.

Faça isso direito, Pat. Faça isso direito.

– Estou feliz por você ter ligado – sabendo como esse cara havia brincado com Sebastian Taylor e depois o tinha matado em sua própria casa, saquei minha SIG e garanti que estivesse carregada e com uma bala na agulha.

– Sim, bem, achei que fosse hora de a gente conversar.

Corri até o quarto de Tessa. Abri a porta. Andei até a cama. Sim, estava segura. Parecia estar dormindo.

Imaginei que John fosse muito esperto para o método “Então, qual é o seu nome verdadeiro? De onde você está ligando? Sobre o que você quer conversar?”, então decidi tentar uma outra coisa, e disse:

– Quase te pegamos no celeiro.

– Sim. Quase.

– Mudar de camisa foi inteligente. Pode ter sido a única coisa que me impediu de atirar em você.

– Bom, então fico feliz por ter feito.

Entrei na sala de estar.

Fui para a janela.

Analisei a vizinhança.

– Eu vi os artigos de jornal no quarto.

Ele não disse nada.

Nenhum carro estranho. Ninguém dentro dos carros estacionados na rua.

Nenhum movimento nas moitas da casa ao lado, nenhuma cortina balançando nas casas dos vizinhos.

– Por que você circulou meu rosto? – eu disse.

– Eu te admiro.

A fala é individualizada por vogais, pronúncia e os fonemas supras-

segmentais de tom, ênfase e conjuntura, portanto, enquanto eu ouvia cada uma de suas frases, tentei ter uma noção das pausas, inflexões, entonações e cadência de John, mas não percebi nada distintivo.

Ignorei seu comentário sobre me admirar.

– Nós conseguimos tirar Bennett do celeiro a tempo – enquanto eu falava, terminei de verificar a casa quarto por quarto. – Salvei Kelsey também. Você está ficando desleixado, e eu vou pegar você.

Em vez de discutir comigo, ele disse:

– Eu queria te contar que estou me desviando um pouco do texto para a próxima história.

– Desviando?

Enquanto falávamos, olhei na garagem. No carro. Debaixo dele.

– Atualizando – ele disse. – Boccaccio não era tão politicamente correto em sua coleção de contos quanto o público de hoje exige. Então vou adaptá-lo para refletir melhor a diversidade da nossa cultura.

Eu não fazia ideia do que ele queria dizer, mas eu me lembraria disso.

Iria utilizar aquela informação.

Então ele acrescentou:

– Você já descobriu como estou escolhendo minhas vítimas? Suspeitei que ele não cairia no meu blefe se eu tentasse, então fui sin cero com ele. – Ainda não – fui até a porta dos fundos da casa, olhei pelo quintal. Nada. – Mas vou descobrir.

– Isso realmente seria a chave de tudo, aqui. O único jeito de me deter é estar à minha frente.

– Eu consigo pensar em algumas outras maneiras.

Uma breve pausa.

– Eu te daria os parabéns pelo resgate de Kelsey, mas sejamos honestos, aquilo foi por acaso. Você tropeçou nela por acidente.

– Você fugiu para o sul pelos penhascos, não é? Então provavelmente foi para o oeste por aquela velha estrada das minas que cerca a floresta nacional. Você cresceu na região, John? É por isso que a conhece tão bem?

Outra pausa, e tive a sensação de que tinha acertado.

– Lembre-se – ele disse –, Kelsey deveria ter morrido de tristeza, não de hipotermia.

Verifique onde ela está, Pat. Ele está indo atrás dela.

Sim, eu iria verificar onde ela estava, tanto ela quanto Bennett, assim que saísse do telefone.

Ele continuou:

– E depois do que ela passou sexta à noite no necrotério, aquele tempo todo no freezer com aqueles cadáveres, eu acho que tem uma boa chance de ela morrer de tristeza afinal, e a história vai se desenrolar como deveria.

Suas palavras “A história vai se desenrolar como deveria” me perturbaram. Lembra, Pat? Ele estava preparado no celeiro. Ele estava pronto para você.

Se eu estava entendendo as coisas direito, Thomas Bennett estava em grande perigo.

– Por que você esperou tanto antes de abrir a porta da jaula, John?

– Ah, sim. O pesadelo de Gabriotto.

Era um sonho.

Era tudo um sonho.

John continuou:

– Do que ele realmente morre, Patrick?

Não, por favor.

Agarrei as chaves do carro no balcão da cozinha.

– Você sabe, não é? Não é o galgo que o mata.

Vá para o hospital. Agora.

Voei para a porta da frente mas imediatamente percebi que se John sabia o número do meu telefone, ele deveria saber onde eu morava. Eu não podia deixar Tessa aqui sozinha. Corri de volta para o quarto dela.

– Você vai precisar ligar para o hospital agora, suponho – John disse. – Para ver como está Thomas. Conversaremos de novo. Estou avançando no calendário. O anoitecer chega amanhã, assim como aconteceu em Londres.

Então ele desligou o telefone.

Meu coração martelava.

Quando liguei a luminária da escrivaninha de Tessa, procurei em meu catálogo mental de telefones. Encontrei o telefone do Hospital Memorial Batista. Digitei o número.

Chamou mas ninguém atendeu.

Bati no ombro de Tessa firme o suficiente para acordá-la, mas ela gemeu e colocou um travesseiro sobre a cabeça.

O telefone continuou a chamar.

Vamos. Atendam.

Como eu não estava em um celular, eu não podia levar o telefone comigo no carro. Eu tinha de esperar em casa até que eles atendessem.

Atendam!

Finalmente, uma recepcionista atendeu:

– Alô, Hospital...

– Aqui é o agente especial Patrick Bowers do FBI. Preciso que você mande um médico checar Thomas Bennett, não sei o número de seu quarto...

– Senhor, eu não posso...

– E mande um médico para Kelsey Nash no 228. E seguranças para ambos os quartos. Agora!

Houve uma leve hesitação na voz da mulher, mas ela concordou.

– Sim, senhor.

Dei a ela meu número de identificação federal, então larguei o tele fone na escrivaninha de Tessa. Balancei-a novamente.

– Tessa.

Ela gemeu.

– Desligue a luz.

– Você precisa vir comigo. Temos de correr.

– Do que você está...

Agarrei seu braço, mas acho que a assustei pois ela parou de balbuciar, piscou os olhos e olhou para mim. – O que está acontecendo?

– Preciso checar alguém no hospital e não posso deixar você aqui.

– Por que não?

Porque pode ser um truque para me fazer te deixar sozinha.

– É importante. Você pode ir para a casa dos meus pais depois. Agora venha.

Ela olhou para os lençóis que a cobriam.

– Estou de pijama.

– Pegue algumas roupas. Seja rápida – meu tom de voz a convenceu e ela se arrastou da cama. – Onde está seu celular? – perguntei.

Ela apontou para a bolsa sobre a escrivaninha.

Peguei o telefone e enquanto ela juntava algumas roupas deixei uma mensagem de voz para Kurt ir até o quarto de Bennett assim que possível.

– Vá para o corredor – ela disse. – Preciso me trocar.

– Você pode se trocar no caminho.

– Hum, eu diria que não.

– Estamos partindo – e antes que ela pudesse discutir mais comigo, apressei-a até o carro.

Não dirigi abaixo do limite de velocidade permitido a caminho do hospital, mas eu tinha a péssima sensação de que não importava o quão rápido eu dirigisse, chegaria tarde demais.


66

Os médicos não chegaram até Thomas Bennett a tempo.

O policial que estava de guarda na porta me deu a notícia enquanto eu passava por ele e entrava no quarto do hospital. O médico forense de Denver, dr. Eric Bender, que também era pai da amiga de Tessa, Dora, estava parado no pé da cama onde estava o corpo de Thomas Bennett.

Não reconheci o médico e a enfermeira que estavam ao lado dele.

– Pat, eu ia ligar para você agora mesmo – Eric disse sobriamente.

Andei até a cama de Thomas. Seu peito não se mexia. Seu rosto, contorcido. Parecia que tinha morrido agonizando. Seus olhos estavam fechados. Seu corpo, imóvel.

Tão imóvel.

Senti uma fisgada crescente de fracasso, derrota. De algum modo, John havia chegado até ele. Como? Como!?

– Foi o coração? – perguntei.

Eric confirmou.

– Efusão pericárdica com fascite necrosante.

Eu sabia que “pericárdica” tinha a ver com o coração, e que uma efu são era um derrame de fluidos no corpo. Eu não sabia o que era fascite necrosante.

– Em termos leigos.

– Claro, desculpe-me – ele balançou a cabeça como se para se repreender. – A fascite necrosante é às vezes chamada de “bactéria comedora de carne”. É uma infecção. Muito perigosa. Espalha-se muito rapidamente. Parece que alguém injetou a bactéria na bolsa que envolve o coração dele.

– O pericárdio – eu disse.

– Isso mesmo. Não é um procedimento tão difícil; você só precisa de uma agulha longa, inseri-la sob a incisura xifoide...

– Hoje mais cedo ele reclamou de dores no peito – o outro médico interrompeu. – Fizemos um ECG, depois um ultrassom e encontramos fluido e ar no pericárdio.

– A fascite necrosante só pode ser tratada removendo o tecido infeccionado – Eric explicou. – Mas como era o coração... – ele não precisou continuar.

Pensei na história de Boccaccio, a morte de Gabriotto.

– Então basicamente era pus, certo? – eu disse. – Ele morreu com pus infeccionando o coração dele?

Os dois médicos e a enfermeira ficaram quietos por um momento, então Eric disse:

– Essa é uma descrição correta do que aconteceu.

Um abscesso cheio de pus explodindo perto de seu coração. Exata mente como a história de Boccaccio.

Raiva e desespero tomaram conta de mim. Olhei de Eric para o outro médico.

– Mas eles fizeram exame de sangue e toxicológico na noite passada quando ele chegou aqui, certo? Por que não viram isso?

– O laboratório está com um atraso de 12 horas – Eric disse. – Metade dele ainda está em reforma.

– Nós íamos terminar o exame toxicológico hoje de manhã – o médico acrescentou.

Xinguei alto o suficiente para que a enfermeira respondesse colocando um dedo delicadamente sobre os lábios e percebi que ela estava provavelmente preocupada não apenas com minha linguagem mas com a possibilidade de eu acordar os outros pacientes no andar. Me afastei da cama. Tentei me acalmar. Me concentrar novamente.

O movimento ao lado da porta chamou minha atenção. O policial que eu havia visto no corredor tinha entrado no quarto e agora olhava para mim nervosamente.

– Quem esteve aqui na noite passada? – perguntei.

– Ninguém, senhor. Eu juro – ele apontou para a enfermeira de pé ao meu lado. – Ninguém até ela passar aqui duas horas atrás para checar seus sinais vitais. E eu fiquei com ela o tempo todo.

Nós interrogaríamos os funcionários do hospital que estiveram cuidando de Thomas Bennett, sim, obviamente faríamos isso, mas eu duvidava que eles tivessem alguma coisa a ver com sua morte. De algum modo John havia sido capaz de chegar a ele.

– E quanto ao policial do turno anterior? O que você substituiu.

Ele balançou a cabeça e apontou novamente para a enfermeira, então para o médico.

– Ele me disse que eles foram as únicas pessoas que entraram aqui.

Tentei relaxar, me recompor, deixando minha cabeça revisar os últi mos 20 minutos: após levar Tessa para o carro, eu havia ligado para minha mãe e combinado que Tessa ficaria com ela “enquanto eu me encontrava com umas pessoas com quem eu precisava falar” no hospital. Então havíamos chegado ao hospital e Tessa, que tinha conseguido trocar de roupa no banco de trás, foi para a casa dos meus pais.

Eu havia feito duas últimas ligações, uma para a divisão de crimes cibernéticos do Bureau para ver se eles podiam rastrear a origem da última chamada recebida no meu telefone fixo e, então, como John havia de alguma maneira conseguido o número do meu telefone e eu não queria correr nenhum risco de que ele chegasse até minha família, liguei para a expedição para mandar um carro de polícia para a casa da minha mãe.

E agora ali estava eu, no quarto, ao lado do corpo de outro homem que eu não consegui salvar.

Minha tentativa de me acalmar não funcionou. Bati minha mão com força contra a parede e as quatro pessoas no quarto olharam para mim silenciosamente.

– Estou bem – eu disse.

Não, você não está.

John está vencendo.

Eric discretamente acenou para os outros o seguirem para o corredor, mas eu disse:

– Não, estou saindo.

Então tomei o caminho do quarto 228 para ver Kelsey Nash.


Encontrei Kurt de pé fora do quarto, falando com o policial.

– Ela está bem – Kurt disse assim que me juntei a ele. – A médica está lá dentro agora.

Espiei pela fresta da porta.

Kelsey estava reclinada na cama, consciente e atenta. Uma mulher árabe magra com roupa de médico inclinou-se sobre ela enquanto um enfermeiro checava os sinais vitais de Kelsey. Kurt gesticulou para o policial ao nosso lado para entrar no quarto e, quando o homem entrou, ele deixou a porta parcialmente aberta. Kurt se afastou para que eu pudesse monitorar o que estava acontecendo dentro do quarto enquanto conversávamos.

– Bennett morreu de infecção – eu disse a ele.

– Eu sei, acabei de vir de lá.

Balancei a cabeça.

– Parece que John pensou em tudo: fosse pelas mordidas do cão ou de infecção no coração, a morte de Bennett ainda seria igual na história de Boccaccio.

A médica fez alguma anotações em sua prancheta, depois fez uma ligação do telefone do quarto.

– A esposa de Thomas está segura? – perguntei para Kurt.

Ele acenou positivamente.

– Custódia de proteção. Eles a estão trazendo para ver o corpo. Temos uma policial feminina disfarçada na casa dela e um carro no fim da rua. Se John aparecer procurando por Marianne, estaremos prontos para ele. Além disso, estamos procurando alguma ligação possível entre o rancho e a mina. Até agora, nada.

Quando ele terminou de falar, a médica se juntou a nós no corredor.

– A sra. Nash está estável – ela disse. – O laboratório acabou de ligar e o exame de sangue dela está bom. Fisicamente, ela está se recuperando muito bem. Mas mentalmente, emocionalmente... – ela hesitou – eu não sei. Ela não fala há quase 24 horas. Vou sugerir que a coloquem em observação de suicídio.

– Faça isso – eu disse. – Faça o que for preciso para ajudá-la. Ela é nossa única testemunha.

A médica acenou com a cabeça.

– Tudo bem. Vou tratar de transferi-la para a ala de psiquiatria.

Eu odiava admitir, mas era verdade: John estava certo sobre Kelsey também.

Ela estava morrendo de tristeza.


Após a médica sair, o policial voltou para o corredor e Kurt deu a ele instruções específicas.

– Fique com a sra. Nash o tempo todo, até enquanto a estiverem transferindo para a ala psiquiátrica.

– Sim, senhor.

– Se alguma coisa acontecer, qualquer coisa que for, ligue para mim. Entendeu?

Um aceno com a cabeça.

Uma tensão depressiva se arrastou para o corredor, envolveu-nos e, então, Kurt me disse:

– Eu não consigo ficar aqui. Venha comigo até o meu carro.

Partimos para as escadas e perguntei se ele teve alguma sorte com o desenhista de retrato falado na noite passada.

Ele balançou a cabeça.

– Eu não estava aqui. Reggie o trouxe, mas aparentemente Kelsey não quis vê-lo e Bennett não tinha nada novo para continuarmos. Ah, sim, o departamento de pessoas desaparecidas descobriu há meia hora que ninguém vê o padre Hughes, um dos padres da Igreja de São Miguel, desde terça-feira. Aparentemente, ele mandou uma mensagem de texto para alguns parentes em Baltimore, disse a eles que estava indo, mas nunca chegou. Vou pedir para o departamento de pessoas desaparecidas dar uma olhada nisso por enquanto. Eles vão me manter informado.

– Ele desapareceu na terça-feira? – eu disse suavemente.

– Sim, eu sei. A data encaixa na história número dois do Decamerão. Tentei te ligar de manhã para te contar, mas a linha estava ocupada.

De repente percebi que Kurt ainda não sabia que eu havia falado com o assassino.

– Você não vai acreditar nisso. John me ligou.

– O quê?

– Eu estava tão concentrado em saber se Kelsey estava bem que eu...

– Você tem uma gravação disso?

– Não. A divisão de crimes cibernéticos está fazendo o rastreamento, mas duvido que eles encontrem alguma coisa. Aposto que o cara usou um pré-pago e depois o jogou fora.

– Então, o que ele disse?

– Me provocou. Insinuou a causa da morte de Bennett. Vou transcrever a conversa. Podemos passá-la para a equipe, ver se dá alguma ideia para alguém.

– Você se lembra?

– Sim.

– A coisa toda? Palavra por palavra?

– Sim.

Uma breve pausa.

– Ok – a escada estava logo à frente. – Mais uma coisa: o mandado para os registros da livraria ainda está em andamento, mas nós descobrimos que a DU oferece dois cursos em literatura do humanismo renascentista. É a única faculdade no estado que tem o curso. As duas classes estudam o Decamerão. O instrutor é um professor inglês que também dá algumas aulas no departamento de jornalismo. Ninguém da lista de suspeitos cursou essas aulas, mas algumas pessoas do Denver News cursaram: Rhodes, Amy Lynn Greer e pelo menos mais uma dúzia.

– O nome do professor não é John, por acaso?

Descemos os degraus.

– Não. Adrian, Adrian Bryant. Mas ele não se encaixa nisso. Ele estava fora da cidade ontem, falando em uma conferência em Phoenix, então ele não pode ter sido o cara que você perseguiu no rancho.

Chegando ao andar térreo, passamos pela enfermaria.

– Temos uma confirmação confiável de que ele estava lá ou é apenas o que dizem? – perguntei.

– Estamos trabalhando nisso – as portas automáticas se abriram à nossa frente.

Saímos.

O dia estava ficando mais frio. O céu, mais escuro.

Kurt deu uma rápida olhada em seu relógio.

– Eu preciso ir para casa. Cheryl não está muito feliz com minhas horas de trabalho esta semana.

O mais sensivelmente possível, eu disse:

– Então, como vão as coisas? Alguma melhora?

Ele não foi rápido para responder.

– Elas estão como estão – senti um grande remorso em sua voz.

Então ele respirou fundo. – De qualquer maneira, vou ligar para Jake e Cheyenne; informá-los de tudo. Não se esqueça, nos encontraremos na central da polícia às 13h. Eu sei o quanto você adora reuniões, e essa vai ser especial. Jake vai introduzir o perfil psicológico do...

– Por favor, não diga UNSUB.

Meu comentário causou um pequeno mas bem-vindo sorriso.

– Assassino. Então, vejo você lá?

Não respondi.

– Pat?

– Estou pensando.

Percebi que, se tivesse de escolher entre participar de uma reunião conduzida por Jake Vanderveld e nadar em uma piscina cheia de sanguessugas, eu correria para pegar minha roupa de banho. Mas não mencionei isso. Não parecia ser a coisa mais educada a dizer.

– Ok, vejo você às 13h. Isso vai me dar tempo suficiente. Tem algo que preciso verificar.

– O quê?

– Todos os artigos de jornal colados na parede na casa do rancho eram sobre Richard Devin Basque. Como John obviamente sabe sobre Basque, quero descobrir o que Basque sabe sobre John.

– Como você vai fazer isso?

– Vou bater um papo com meu velho amigo.


67

Dez minutos após ter deixado o hospital, eu estava em meu escritório no prédio da polícia federal. Acessei a câmera de vídeo do meu computador, liguei para Ralph e disse a ele que precisava fazer uma videoconferência com Basque. Assim que expliquei por quê, ele disse:

– Vou cuidar disso. Estou a cerca de 10 minutos da cadeia. Vou providenciar tudo; te ligo de volta em 20 minutos.

Ele me ligou de volta em 12.

– Está tudo pronto – ele disse. – Não mencionei o assunto, porém. Imaginei que você pudesse falar.

– Ótimo. E quanto à advogada de Basque?

– Ele disse que não tem nada a esconder; que ele não a quer lá. Ele já assinou uma dispensa.

Basque era tão viciado em controle que não fiquei surpreso por ele não querer a srta. Eldridge-Gorman sentada ao lado dele, dizendo a ele o que dizer.

– É uma amostra de poder da parte dele – eu disse para Ralph. – Só de saber que estou pedindo um tempo disponível dele provavelmente já o faz se sentir importante.

– Por acaso você está criando um perfil dele, Pat?

– Isso não é criar perfil. Chama-se indução.

– Parece criação de perfil para mim.

– Não é criação de perfil.

– Pat Criador de Perfil. Esse vai ser o seu novo apelido. Espere até eu enviar o memorando.

– Daria para a gente se concentrar no caso aqui?

Então, pelo computador, ouvi o som de uma porta se abrindo.

– Espere – Ralph disse. – Tenho de ir. Eles estão prontos.

– Eu não estava criando perfil – eu disse, mas ele já tinha desligado.

Prevendo que eu fosse querer fazer anotações durante minha con versa com Basque, posicionei uma caderneta ao lado do meu teclado, direcionei a câmera para o meu rosto e então cliquei em “gravar” para que eu pudesse manter uma gravação digital de nossa conversa.

Quando eu já estava terminando de me aprontar, escutei meu computador apitar. Uma parede cinza de cela de cadeia apareceu no monitor.

A cabeça de Ralph preenchia a tela. Então a imagem virou para a esquerda, quando ele centralizou a câmera do computador em uma cadeira vazia. Ele olhou para a câmera novamente.

– Quase pronto, Pat Criador de Perfil.

– Você poderia inclinar sua cabeça para o lado? – eu disse. – A imagem está com muito brilho aqui deste lado.

– Ha. Muito engraçado. Ria o quanto quiser – seu rosto apareceu novamente. Ele deslizou a mão pela cabeça. – Isso deixa Brineesha doida.

– Compre uns óculos escuros para mim.

A imagem do rosto de Ralph estava granulada e por causa do delay entre áudio e vídeo, imaginei que estivessem usando um laptop mais velho, mais lento. Então ouvi o barulho de algemas e Ralph disse:

– Aí vem ele.

Houve um momento de movimento borrado quando Ralph se afas tou, então Basque posicionou-se na cadeira e encarou a câmera.


68

Hoje, Basque usava um macacão laranja da prisão e não as roupas sob medida que ele havia usado no julgamento, e por alguma razão isso me trouxe uma pequena satisfação. A porta foi trancada assim que Ralph saiu.

– Olá, Richard – eu disse.

– Agente Bowers – mesmo estando algemado, ele parecia tão confiante e à vontade como nunca. – Eu gostaria de agradecê-lo novamente por ter salvado minha vida. Eu não estaria aqui hoje se você não tivesse reagido tão rápido.

Minha reação natural a um comentário desses teria sido dizer “por nada”, mas eu evitei e simplesmente disse:

– Sim.

– Descobriram como o pai de Celeste conseguiu carregar a arma antes de ela ter sido levada para a sala do tribunal?

– Estão tentando descobrir.

– Certamente estão – ele fez uma pausa, juntando as mãos algemadas no colo. – Esta conversa é a respeito da recente série de assassinatos em Denver sobre a qual tenho ouvido falar tanto?

– Sim – após os atentados contra sua vida, eu devia ter imaginado que ele estaria acompanhando as notícias. – Eu acho que você poderia nos ajudar a encontrar o assassino – parei por um momento e avaliei se deveria ou não dizer isso. Prossegui: – Ele me lembra você, Richard.

Basque ficou em silêncio. Por fim ele acenou levemente.

– Então, imagino que você não esteja procurando por motivos. O que você espera descobrir aqui hoje?

– Ele sabe sobre você. Encontramos recortes de jornal sobre seus crimes. Ele os colecionou.

Basque se ajeitou na cadeira.

– Recortes?

– Sim. Estou imaginando se ele alguma vez entrou em contato com você.

Como tantos assassinos em série, Basque havia atingido status de cele bridade entre um segmento anormal da sociedade. Na minha reunião pré--julgamento com o procurador-assistente Vandez, eu sabia que milhares de pessoas haviam escrito para Basque nos últimos 13 anos. Até onde eu sabia, nove mulheres haviam pedido para casar com ele quando fosse solto.

Pensei em dar a Basque mais uma pequena dica para ver se ajudava sua memória a funcionar.

– Esse assassino... ele gosta de literatura da Renascença.

Eu só havia conhecido em minha vida algumas poucas pessoas com a memória tão afiada quanto a de Basque, e agora parecia que ele estava mentalmente procurando entre todas aquelas milhares de cartas que havia recebido para tentar identificar o homem ao qual eu estava me referindo. Finalmente, um olhar de reconhecimento tomou seu rosto.

– Giovanni.

Esse é o primeiro nome de Boccaccio, a forma em italiano para John.

– Diga-me o que você sabe – eu disse.

– Bom, para começar, eu não sei quem ele é. Giovanni certamente não deve ser seu nome real. Eu nunca respondi – Basque era um mentiroso compulsivo assim como era um assassino, e mesmo parecendo que falava a verdade, eu não tinha certeza se deveria acreditar nele ou não. Ele deve ter notado meu ceticismo. – Você pode confirmar isso com o diretor da cadeia – ele disse. – Giovanni escreveu para mim seis vezes, mas nunca respondi.

Eu iria entrar em contato com o diretor assim que pudesse, mas por enquanto queria descobrir o maior número de detalhes possível do próprio Basque.

– Sobre o que ele escreveu para você?

Basque molhou os lábios, olhou diretamente para a câmera e disse:

– Sobre você.


69

Meu coração pareceu parar de bater por uma fração de segundo; quando voltou, estava mais rápido que o normal.

– O que você disse?

– Giovanni escreveu para mim falando sobre um agente do FBI que ele estava recrutando para desempenhar um papel crucial em sua história. Alguém que ele estava planejando enterrar vivo no clímax. Alguém que ele admirava.

Balancei a cabeça.

– Isso não é o suficiente. Poderia ser muita gente – eu podia ver as engrenagens girando na cabeça dele. Parecia que tinha algo que ele não estava me falando. – O que mais?

Ele batucou com o dedo suavemente contra a perna.

– Eu te ajudo se você fizer algo para mim.

– Eu não estou aqui para fazer acordos.

– Escute-me. Não é um acordo como você está pensando. É um favor.

Fiquei tentado a finalizar a ligação imediatamente, mas me lembrei de que nada do que eu havia feito até então tinha freado John, ou Giovanni, ou seja lá qual fosse seu nome. Ele sempre parecia estar um passo à frente, assim como Basque há 13 anos, nos meses que levaram ao matadouro.

Nos meses em que tantas mulheres morreram.

Lábios frios e sussurrantes.

As vítimas de Basque.

E agora, de Giovanni.

Tantas pessoas inocentes falando comigo de seus túmulos.

Basque olhou para mim da cela em Chicago, esperando minha resposta.

Finalmente, eu disse:

– Qual é o favor?

– Quando você voltar à bancada amanhã, e Priscilla perguntar a você sobre o que aconteceu no matadouro... – ele fez uma pausa.

Eu havia evitado pensar no julgamento, e não gostava de ser lembrado de que estaria lá em menos de 24 horas.

– Continue.

– Não diga a verdade – Basque disse.

Suas palavras me deixaram aturdido.

– O quê? – olhei para a imagem granulada na tela do meu computador e tentei decifrar a expressão de Basque. Não consegui.

– Quando ela perguntar se você me agrediu ou não, não diga a verdade.

– Eu não vou mentir no julgamento.

Por que ele está pedindo isso?

– Você considerou isso, não considerou? – Basque disse. – Acho que sim. Eu só estou pedindo para fazer o que você quer fazer, o que o seu instinto diz para você fazer.

As palavras de Cheyenne sobre seguir instintos imediatamente vieram à minha cabeça, especialmente porque os comentários de Basque eram tão desconfortavelmente familiares.

– Se essa é a sua única condição, então esta conversa está terminada...

– Ele está atrás de você, Patrick – Basque se inclinou para a frente e sua voz parecia carregar uma nota de genuína preocupação. – Ele está jogando com você. Cuidado. Ele tem uma reviravolta esperando por você, no final, que você nunca vai imaginar.

– Vou me arriscar. Adeus, Richard.

– Estarei rezando por você. Lembre-se, Êxodo capítulo 1, versículos de 15 a 21. Lembre-se...

Finalizei a ligação. Eu não estava com paciência para os jogos de Basque. Eu não estava com paciência para nada daquilo.

Enquanto salvava o vídeo e fazia seu upload para os arquivos on-line do caso da força-tarefa, senti uma onda de ódio.

Depois, confusão.

E, depois, alguma outra coisa. Algo mais profundo e mais primitivo:

um desejo de vingança, por uma justiça dura e definitiva a ser exercida contra Giovanni e Basque. E contra todos que zombassem dos mortos ou acabassem com vidas inocentes.

E com esses sentimentos, me enxerguei caindo na direção de algo que eu não queria me tornar. Lembrei-me de uma época alguns meses antes, quando Tessa havia me perguntado se eu era como eles, como as pessoas que eu perseguia, e tive de admitir para mim mesmo que existe apenas uma linha tênue que me separa deles. Um simples ato. Uma simples escolha.

Lembre-se de quem você é, Pat.

Lembre-se.

Olhei para a parede do meu escritório: meus diplomas, meus prêmios. Você é o agente especial Patrick Bowers do Bureau Federal de

Investigação, o FBI... o homem que pegou Richard Devin Basque... criminologista, investigador, autor...

Minha mente tentou ditar meu currículo, mas as palavras na minha cabeça foram cortadas abruptamente quando meus olhos pousaram na lombada do diário de Christie descansando em minha prateleira de livros.

E me lembrei da parte mais importante de quem eu era: Você é o padrasto de Tessa Bernice Ellis.

Cruzei a sala e olhei para a lombada de couro desgastado do diário. Não era um desses diários pequenos com páginas do tamanho de papéis de lembrete, mas sim do tamanho de um romance de capa dura.

Christie foi a primeira pessoa que fez com que eu me interessasse por misticismo e filosofia, e nos últimos dois anos eu havia lido tudo em que pude pôr as mãos de Guyon, de Fénelon, Merton e uma dúzia de outros. Eu havia colocado o diário de Christie entre O caminho da perfeição, de Santa Teresa de Ávila, e O abandono à providência divina, de Jean-Pierre de Caussade, dois dos meus favoritos.

Passei o dedo pela lombada.

A foto do meu casamento com Christie estava na prateleira logo abaixo do diário. Nós havíamos nos casado em uma pequena capela no Central Park e então saímos para tirar essa foto. E agora, olhando para o rosto sorridente dela, senti a mesma estranha mistura de gratidão e perda que sempre sinto quando a vejo.

Christie havia escolhido Tessa para ser sua dama de honra. Elas eram próximas assim. E era desse jeito que elas eram importantes uma para a outra.

Peguei o diário da prateleira.

E saí para dá-lo para minha enteada.


Unidade 14
Autoarmazenamento Safe-Lock
5532 Dayton Street
Denver, Colorado

Giovanni jogou seis ratos dentro do aquário que continha suas três últimas cascavéis do Texas.

Os ratos tentaram subir pelo vidro.

Mas as cobras se aproximaram.

Nos 15 minutos seguintes, ele deixou as cobras se alimentarem enquanto extraía a bufotenina da pele e das glândulas parótidas dos dez sapos que ele havia matado, dissecado e espetado no quadro à sua frente.

Após ter removido as drogas psicodélicas dos sapos, ele consultou um livro de toxicologia para determinar de quanto veneno precisaria para uma dose letal e descobriu que ele tinha bufotoxina suficiente para matar seis pessoas, mas só precisava para duas.

Ler as descrições dos sintomas era muito informativo: alucinações, vômito, convulsões, paralisia e então fibrilação ventricular. Como dizia em um dos livros:

Muitas vezes, alucinações envolvem a sensação de insetos rastejando pela pele da vítima ou saindo de orifícios do corpo. Frequentemente, aqueles que sofrem esses sintomas vão coçar furiosamente a pele ou tentar arrancar, cortar ou queimar os insetos.

Então, parecia que as duas próximas vítimas morreriam tão dramaticamente quanto Simona e Pasquino morreram na história de Emilia, o sétimo conto relatado no quarto dia.

Dado o sistema de entrega que ele havia escolhido, Giovanni não podia ter certeza se suas vítimas se envenenariam fatalmente hoje à noite ou de manhã, mas ele estava relativamente certo de que ambos estariam mortos antes do meio-dia de amanhã.

Com base em seus hábitos, eles estariam fora de casa essa tarde. Ele poderia colocar o veneno então. E, se eles mudassem o padrão, ele alteraria seu plano. Talvez entrar lá tarde da noite enquanto estivessem dormindo. De qualquer maneira, a história seria encenada como deveria.

O ranger e arranhar trágico do último rato a morrer chamou sua atenção. Ele o observou até parar de se debater, assim como havia observado sua avó parar de ter espasmos tantos anos antes.

Finalmente, o rato olhou arregalado e sem piscar para o mundo, assim como vovó Nadine havia feito.

Assim como todas as pessoas através dos anos nas diferentes histórias que ele havia contado.

A cobra abriu sua mandíbula e começou a engolir a refeição.

Giovanni colocou as duas seringas cheias de bufotoxina em um estreito estojo de metal, fechou a tampa e o colocou em sua bolsa esportiva.

Então saiu das instalações de armazenamento e, como tinha de fazer alguns acertos antes de as quatro últimas histórias começarem, dirigiu até seu emprego, onde ninguém sabia, ninguém tinha a menor ideia, sobre quem ele realmente era.

E onde, na maior ironia de todas, ele era responsável implicitamente pelas vidas de pessoas todos os dias.


70

Tessa estava de banho tomado, vestida e sentada à mesa da cozinha dos meus pais esperando por mim quando cheguei à casa deles com o diário.

Ela estava bebericando um copo de suco de laranja gelado e tinha uma toranja comida pela metade à sua frente, e apesar de eu esperar que ela me perguntasse onde estive ou reclamasse que eu a havia arrancado da cama e a feito trocar de roupa no carro, tudo que ela disse foi:

– Então, hum... você está com ele?

Eu não consegui pensar em nada tocante ou profundo para dizer, então simplesmente entreguei o diário de Christie para ela e observei sua reação.

Ela o aceitou silenciosamente, olhou para ele. Girou-o em suas mãos.

Christie havia usado seu diário parcialmente como um livro de recor tes, colando trechos de cartas, bilhetes e cartões-postais dentro dele, o que tornava o livro grosso e irregular e forçava a fechadura. Mas isso dava personalidade ao diário e, pelo olhar no rosto de Tessa, parecia apelar para a natureza curiosa dela.

Após alguns momentos, quando ela não disse nada, perguntei a ela:

– Onde está Martha?

– Na igreja – Tessa continuava olhando para o diário.

– Ela te deixou sozinha?

– Ela me perguntou se eu queria que ela ficasse em casa, mas eu disse que eu ficaria segura com aqueles dois policiais disfarçados no carro do outro lado da rua observando a casa.

– Como você...?

Ela virou os olhos.

– Por favor.

Ok, então eu precisaria ter uma conversinha com aqueles dois policiais.

– Então, você viaja hoje de novo? – Tessa estava olhando para o diário, mas falando comigo.

– Eu preciso ir para o aeroporto por volta das 14h30. Estou torcendo para conseguir voltar amanhã à noite.

– Então partimos para Washington logo depois disso – ela não disse isso como uma pergunta.

Era possível que meu depoimento em Chicago afetasse a data de nossa viagem para Washington, mas decidi que poderia lidar com tudo aquilo depois.

– Está marcado para irmos na quarta-feira. Sim – ela não respondeu. Dei um tapinha em seu ombro suavemente. – Certo, bom, me conte quando você terminar de ler tudo, ok?

– Conto.

Então, deixando o copo de suco de laranja e o resto da toranja para trás, ela levou o diário para o andar de cima, para o quarto que meus pais reservavam para ela quando estou viajando.


Apesar da curiosidade enorme, Tessa olhou para o diário por um longo tempo antes de abri-lo.

Quando Patrick havia falado pela primeira sobre ele, ela tinha ficado brava, brava, tão brava por ele tê-lo escondido dela, mas, depois, quando ele disse que sua mãe não queria que ele o desse para ela até seu 18° aniversário, ela deixou de ficar brava e ficou outra coisa.

Curiosa, sim.

Talvez com um pouco de medo.

Mas por quê? Do que ela estava com medo?

Ela olhou para ele, passou os dedos pela capa de couro.

Ela escondeu isso de você. Sua mãe escondeu isso de você.

Ela não queria que você soubesse sobre ele até os 18 anos.

Mas por que não?

Tessa colocou a chave na fechadura. Seu coração começou a acelerar como se um coelho corresse por seu peito enquanto ela girava a chave e abria o fecho. Abriu na primeira página.

2 de novembro

Querido diário,

Não tenho muita certeza por que estou fazendo isso, escrevendo para você, quero dizer, começando um diário. Acho que espero que você seja um lugar para eu ser apenas eu mesma, o verdadeiro eu, a pessoa que ninguém nunca percebe de verdade. Acho que é bom ter um lugar assim. Não sei. É difícil ser honesto com as pessoas às vezes, talvez eu possa ser honesta com você.

Um lugar para ser verdadeira.

Legal.

Com base na data, Tessa percebeu que sua mãe havia começado o diário quando tinha 17 anos: a mesma idade que ela tinha agora.

Você foi concebida dois anos depois.

Ela ficou tentada a pular para a frente, percorrer as páginas, meio que como olhando pelo blog de alguém para ver se você realmente quer ler a coisa toda ou não, mas ela já sabia que queria ler cada página e, assim como é lendo qualquer livro, você engana a si mesmo se pular para o final. Você perde todas as surpresas.

– Ei, Tessa – era Patrick, chamando do andar de baixo. – Deixei meu laptop em casa. Tenho algumas coisas para verificar e depois tenho uma reunião às 13h. Você vai ficar bem?

– Uh-hum – ela gritou pela porta do quarto.

– Vejo você hoje à tarde antes de viajar. Eu ainda estou com o seu celular, ok?

– Sim. Só fale para aqueles dois policiais não serem tão indiscretos.

Uma pausa.

– Vou falar. Ligue para mim se você precisar de alguma coisa.

– Ok.

Então Tessa virou a segunda página do diário e começou a ler.


71

Minhas palavras foram rápidas e duras com os dois policiais que supostamente estavam vigiando a casa dos meus pais, disfarçados, e então dirigi para casa para pegar meu laptop.

Usando o celular de Tessa, verifiquei meu correio de voz, mas estava vazio. Quando chequei o dela, encontrei uma dúzia de mensagens de texto de seus amigos da escola. Eu queria que ela fosse capaz de acessá--los, então programei o telefone para automaticamente encaminhar todas as mensagens dela para sua conta de e-mail.

Liguei para o diretor do Instituto Correcional Waupun, a penitenciária de segurança máxima em Wisconsin onde Basque havia passado a maior parte dos seus 13 anos de encarceramento.

Encontrei o diretor Schuler em casa fazendo churrasco para sua família, e ele fez questão de deixar bem claro o quanto estava feliz por eu estar perturbando sua manhã de domingo, mas eu disse a ele que só levaria um minuto e perguntei se eu poderia dar uma olhada nas cartas que Basque tinha recebido enquanto estava na prisão.

– Claro, se ainda as tivéssemos.

– Como assim?

– Basque as rasgou e jogou na privada.

– Bom, vocês fizeram cópias, certo?

– Direito de privacidade. Podemos abrir as correspondências, inspecioná-las, mas não podemos copiar nada. A União Americana pelas Liberdades Civis teria muito trabalho com isso. Sinto muito.

– E quanto às correspondências de saída?

– Mesma coisa.

Pela segunda vez no dia, eu xinguei.

– Exatamente os meus sentimentos.

– Tudo bem, obrigado. Bom almoço.

– Gostaria de poder ter ajudado mais – quando o diretor Schuler disse as palavras, sua voz passou do aborrecimento que eu havia sentido no começo da ligação para um mal-estar tenso. – Em 16 anos fazendo isso, agente Bowers, ele é o pior que eu já vi. Tire-o de circulação. No julgamento, eu digo. Não o deixe...

– Não deixarei – eu disse, e finalizei a ligação.

Com as cartas de Basque destruídas, não havia como verificar se John já tinha escrito para ele, mas ainda assim, Basque sabia de quem eu estava falando na hora em que mencionei literatura da Renascença, então imaginei que, de algum modo, eles haviam tido contato.

John.

Giovanni.

Como os assassinatos foram em Denver, e Kurt havia me dito que a

única faculdade na região que oferecia cursos de literatura medieval sobre o Decamerão era a Denver University, parecia provável para mim que John, ou Giovanni, ou seja qual fosse seu nome, tivesse frequentado um desses cursos.

Quando cheguei em casa, fui diretamente para minha escrivaninha, pressionei a barra de espaço e acessei meu laptop.

De acordo com nossas informações, o dr. Bryant, o professor que dava as aulas sobre Boccaccio, estava em Phoenix ontem. É difícil viver no século XXI sem deixar pegadas eletrônicas em qualquer lugar aonde você for, então acessei o Banco de Dados Digital Federal e naveguei até os registros de voo da FAA. Verifiquei as listas de passageiros de todas as companhias aéreas que voaram para ou a partir do Aeroporto Internacional de Denver e do Aeroporto Colorado Springs ontem e hoje, mas não encontrei o nome Adrian Bryant em nenhum deles.

Expandi minha busca para incluir quaisquer chegadas ou partidas pelos últimos 20 dias.

Ainda nada.

Então, a menos que o professor Bryant tenha ido dirigindo para Phoenix ou viajado usando um pseudônimo, parecia que nosso especialista em Boccaccio nunca foi para essa conferência.

Interessante.

Levei menos de três minutos para fazer uma pesquisa on-line e desco brir que o dr. Bryant não era casado, vivia sozinho e não possuía telefone fixo, então era uma boa coisa para mim a National Security Agency15. manter registros pesquisáveis de todos os números de celular e nomes de assinantes das companhias de telefonia móvel em operação nos Estados Unidos.

A divisão de crimes cibernéticos do Bureau trabalha juntamente com a NSA, então liguei para eles e, alguns momentos depois, eu tinha o número do celular de Bryant e a confirmação de que a localização por GPS tanto de seu celular quanto de seu sedã BMW 328i 2009 indicava que ambos estavam em sua casa. Eu disse a eles para monitorarem as localizações via GPS e me ligarem se algum deles se movesse pelos próximos 30 minutos.

Para confirmar se Bryant estava em casa com seu celular, digitei seu número e após ele atender, perguntei se ele queria comprar um pacote de viagem gratuito...

Ele desligou sem nem mesmo perceber que eu havia oferecido a ele a chance de comprar uma coisa que era grátis.

Então, ele estava em casa. Ótimo.

Às vezes, fico pensando como os crimes eram solucionados antes de termos computadores.

Uma rápida olhada no relógio: 11h14. Eu precisava estar na central de polícia às 13h; então, considerando que Bryant morava em Littleton, poderia ser arriscado, mas percebi que teria tempo suficiente para dirigir até lá, encontrar-me com o professor e voltar a tempo da fantástica reunião de Jake.

Fiz uma última ligação e, quando Cheyenne atendeu, convidei-a para se juntar a mim e ela aceitou, contanto que eu pudesse passar para pegá-la.

– Tudo bem – eu disse. – Desta vez eu vou te pegar – e então, percebendo como aquilo havia soado, acrescentei: – com meu carro. Para o caso. Para pegar o assassino.

– Certo – ouvi um sorriso na voz dela. – Te vejo daqui a pouco.


Apesar de Tessa ler rápido, ela estava gastando seu tempo percorrendo o diário da mãe.

De certo modo, ler aquilo parecia estranho, como uma invasão do espaço pessoal de sua mãe, meio como entrar no quarto de Patrick, mas muito mais pessoal. Mais íntimo.

Além disso, sua mãe nunca usava nenhum sobrenome no diário. Talvez fosse uma maneira de proteger a privacidade das pessoas. Difícil de saber, mas isso acrescentava um toque enigmático em cada página, e Tessa gostava disso.

A maioria das primeiras páginas lidava com as lutas de sua mãe em relação aos pais dela (que Tessa havia conhecido quando era mais nova, mas que haviam morrido antes que completasse 6 anos), seus problemas com garotos e a superação da solidão e do isolamento que ela sempre sentia no último ano do colégio. Até seus pensamentos sobre suicídio.

Não muito diferente de você.

Tessa sabia que, às vezes, garotas chegavam a um ponto no relacionamento com suas mães em que se tornavam quase irmãs. Ela nunca teve a chance de experimentar isso com sua mãe quando ela ainda estava viva, mas agora, lendo estas páginas, ela se viu próxima dela como nunca havia se sentido antes.

E claro, a cada página ela chegava mais e mais perto do dia de inverno, no segundo ano de faculdade de sua mãe, quando ela foi concebida.

Ela tentou não pensar muito naquilo e apenas seguir as páginas uma de cada vez, mas a cada página ficava mais e mais difícil não imaginar quando o verdadeiro nome de seu pai apareceria.


Enquanto Cheyenne e eu nos dirigíamos à casa do professor Bryant, revisamos tudo que havia acontecido durante a manhã. Kurt já havia contado a ela sobre a morte de Bennett e a ligação de John para mim, então me concentrei em resumir minha conversa com Richard Basque.

– Parece que você tem mesmo um fã, afinal – Cheyenne disse. – Talvez dois.

– Como você sabe?

– É muito possível que Basque tenha escrito de volta para Gio-

vanni e que eles sejam conhecidos próximos. E isso abriria todo tipo de possibilidades interessantes.

Eu tinha de pensar sobre aquilo.

E o fiz, tudo durante o caminho.

Na verdade, as palavras dela ainda estava circulando pela minha cabeça quando chegamos à casa do dr. Bryant no subúrbio de Littleton.


72

Estacionei do outro lado da rua em frente à casa de tijolos vermelhos de Bryant.

A divisão de crimes cibernéticos não havia me ligado de volta para me dizer que o celular dele havia se movimentado, e como o BMW ainda estava estacionado em frente à garagem, imaginei que ele ainda estaria ali também.

Cheyenne tocou a campainha e, alguns segundos depois, um homem loiro usando papetes, uma camiseta cinza e bermuda atendeu a porta.

– Dr. Bryant? – eu disse.

– Sim? – caucasiano. De 45 a 50 anos. Esguio. Atlético. Rosto bronzeado, tenso, com marcas do tempo. Ele parecia ter passado os últimos 20 anos fazendo mochilões e correndo maratonas em vez de dando aulas em uma universidade.

Mostrei a ele minha identificação.

– Sou o agente especial Bowers do FBI, e essa é a detetive Warren do Departamento de Polícia de Denver. Gostaríamos de saber se poderíamos fazer algumas perguntas.

Ele deixou seus olhos se moverem de mim para Cheyenne. Então de volta para mim.

– Sobre o que são essas perguntas?

– Uma investigação em andamento – Cheyenne disse.

– Podemos entrar? – perguntei.

Ele parecia que ia dizer não, mas então disse secamente:

– Claro.

Uma vez lá dentro, analisei sua sala de estar. Móveis novos que pareciam nunca ter sido usados. Sem televisão. Um violino e um suporte de partitura estavam no canto. O cheiro de café recém-coado na cozinha, ainda sendo filtrado. Café bom, do tipo que servem no Rachel’s Café. Uma coleção de espadas medievais e adagas pendurada com destaque na parede.

Uma espada havia sido usada para matar Tatum Maroukas na quarta-feira.

– É uma coleção de espadas impressionante – eu disse.

– Obrigado.

Não, Pat, pense um pouco. John nunca usaria uma espada que pudesse

ser ligada a ele. Ele é esperto demais para isso.

Guardei mentalmente a informação sobre as espadas, mas tentei não presumir demais. Poderíamos analisar isso mais tarde. Fui direto ao assunto.

– Eu tenho a informação que você dá aula em alguns cursos sobre os humanistas da Renascença.

– Dou – ele havia cruzado a sala e agora estava parado protetoramente na passagem para o corredor, com os braços cruzados.

Do outro lado da sala, uma mochila de hidratação Camelbak vazia estava pendurada no assento de uma mountain bike, uma 7 Point Freeride Iron Horse suja de terra. Era certamente uma bicicleta rodada. Ele me viu admirando-a.

– Vou encontrar alguns amigos para andar de bicicleta em 15 minutos. Eu realmente não tenho tempo para conversar agora.

– Tem chance de nevar esta tarde – Cheyenne disse.

– Sou um ciclista ávido – seu tom estava ficando cada vez mais ácido, e eu não gostava disso.

– Dr. Bryant – eu disse –, o senhor estava agendado para falar em uma conferência em Phoenix neste fim de semana mas não apareceu. Posso saber o porquê?

– Tive alguns problemas pessoais. Estive em casa o tempo todo. Isso é exatamente sobre o quê?

– Uma investigação em andamento – Cheyenne disse novamente, menos cordialmente do que antes. Eu podia sentir a tensão aumentando.

– Tem um livro – eu disse –, o Decamerão, de um autor italiano chamado Boccaccio. Você está familiarizado com isso?

– Sim, é claro. Falo dele em diversas das minhas aulas.

– Você consegue pensar em algum de seus alunos que tenha mostrado um interesse anormal em relação a ele?

– Muitos dos meus alunos gostam do trabalho de Boccaccio.

– Interesse ávido – Cheyenne especificou.

– Não vem ninguém à minha cabeça – ele respondeu a pergunta rápido demais para ter feito alguma consideração séria.

Eu estava começando a perder a minha paciência mundialmente famosa.

– Dr. Bryant, nós não estamos...

– Nós não estamos muito familiarizados com o livro – Cheyenne disse, interrompendo-me, no que eu assumi ser uma tentativa de me acalmar e de tirar alguma informação dele. Fiquei feliz por ela ter falado. As palavras que eu havia planejado dizer não eram nada amenas perto das dela. – Nos disseram que você é especialista – ela continuou. – Você poderia perder um tempo para nos dar um rápido resumo?

O dr. Bryant parecia estar prestes a negar, mas deve ter pensado um pouco melhor, ou talvez o elogio repentino tenha apelado para seu ego. Ele soltou um fino e preocupado suspiro.

– O Decamerão: Prencipe Galeotto é sobre sete mulheres e três homens que estão fugindo da Peste Negra...

– Espere um pouco – eu disse. – Do que você o chamou? Você disse algo em latim depois de “decamerão”.

– É italiano – ele disse impaciente. – Prencipe Galeotto. Boccaccio não chamou o livro apenas de Decamerão. Ele também deu ao livro um nome secundário, um subtítulo: Prencipe Galeotto.

– E o que isso significa?

– Galeotto é uma outra versão para Príncipe Galahalt, ou Galehaut.

– Você quer dizer Galahad? – Cheyenne perguntou. – O cavaleiro?

– Não. Galahalt – ele não escondeu sua condescendência. – Mas sim, ele também foi um dos cavaleiros da távola redonda. Não um dos personagens mais comuns do folclore arturiano, apesar de ele ter um papel significativo na história.

– E qual seria? – perguntei.

O dr. Bryant deixou seu olhar pousar no relógio na parede e deve ter decidido que era melhor dar-nos o que queríamos e acabar logo com aquilo. Ele gesticulou na direção do corredor.

– Venham comigo, vou mostrar.


73

O professor Bryant nos levou até seu escritório.

No caminho, passando pela cozinha, vi o café sendo coado. Uma garrafa inteira.

E isso me fez pensar.

Chegamos ao escritório e vi que a maior parte dele era tomada por uma grande escrivaninha com altas pilhas de papel, cadernos e livros. As paredes estavam cobertas por prateleiras de livros. Um iMac estava no meio da mesa.

Imaginando se poderia ter sido ele quem pegou emprestado os cinco comentários do Decamerão da biblioteca, procurei em suas prateleiras por lombadas com o número 853 na classificação decimal de Dewey, mas não vi nenhum.

Ele se aproximou de uma das prateleiras.

– As lendas variam sobre as origens de Galeotto, mas em praticamente todas as histórias ele é o homem creditado por juntar Sir Lancelot e a Rainha Guinevere.

Cheyenne estava examinando a sala também, observando tudo.

– Mas Guinevere estava casada com o Rei Artur na época, certo?

– Exatamente. Galeotto organizou o encontro licencioso e os encorajou a se beijarem – o dr. Bryant estudou as lombadas dos livros em uma das prateleiras de cima. Com base nos títulos daquela prateleira, parecia que ele estava procurando um comentário sobre Dante em vez de uma coleção de lendas arturianas como eu tinha suspeitado.

– No entanto – o dr. Bryant disse –, como resultado do encontro de Guinevere com Lancelot, ela consequentemente se apaixonou por ele e eles tiveram um caso que destruiu a famosa harmonia da corte do Rei Artur – ele puxou um volume encapado em couro e empoeirado do meio de um grupo de outros volumes encapados em couro e empoeirados. – Boccaccio pegou a referência de Galeotto do Inferno, de Dante, uma das três partes de sua Divina Comédia.

O Inferno.

Ótimo.

A descrição do inferno mais famosa do mundo.

– A propósito, uma curiosidade – o dr. Bryant estava folheando as páginas da cópia desgastada da Divina Comédia de Dante que ele havia escolhido em sua estante –, Boccaccio era um grande fã de Dante. Foi ele que deu a esse livro o título “Divina”. Dante havia apenas dado o nome “Commedia”.

Curiosidade ou não, fiz uma anotação sobre isso na minha caderneta.

Ele parou de folhear o livro.

– Na época em que Dante escreveu sua obra-prima, Galeotto havia se tornado significado de infelicidade ou decepção no amor... – sua voz foi sumindo enquanto ele analisava a página, então ele mostrou o centro dela com o dedo. – Aqui: Canto V, linhas 137 e 138 – ele inclinou o livro para que pudéssemos ver a passagem.

Cheyenne estava do lado oposto a mim na sala e agora se aproximou para dar uma olhada melhor na página.

– Viram? – o dr. Bryant disse. – Dante escreveu: “Galeotto era o livro e seu autor. Aquele dia não mais lemos adiante”.

– Então o que isso significa? – perguntei. – Galeotto era o livro e seu autor?

– Bem, existem interpretações diferentes, é claro, mas eu diria que Dante quer dizer que Galeotto era tanto uma parte do conto e quem dava forma ao conto. Alguns críticos literários acreditam que dando ao Deca-merão o subtítulo de Prencipe Galeotto, Boccaccio estava se colocando no papel de Galeotto.

– Então você está dizendo que Boccaccio via a si mesmo como um cupido de um caso de amor?

– Sim.

Pensei nas implicações.

– Entre quem?

– Seu livro e seus leitores.

– Mas como isso continua? – Cheyenne disse. – O caso de Lancelot com Guinevere era ilícito. Não há nada de ilícito em ler um livro.

– Você precisa lembrar – Bryant disse – que o Decamerão foi escrito no século XIV. As histórias de Boccaccio podem não ser controversas hoje, mas naqueles dias seu livro causou grande agitação.

O dr. Bryant estava caindo no papel familiar do professor, sendo aquele com as respostas, aquele no comando, e isso parecia fazê-lo se abrir. Ele começou a andar, apesar de a sala apertada dar a ele pouco espaço para isso.

– Ler contos lúgubres não era considerado um bom uso do tempo de uma pessoa nos anos 1300.

– As novelas da Idade Média – Cheyenne disse.

– Algo do tipo – ele olhou de Cheyenne para mim. – Embora eu ache que seja mais preciso dizer que a Igreja daqueles dias considerava o Decamerão do mesmo jeito que eles considerariam hoje a pornografia na internet. Por isso era condenado.

Seus olhos viraram, provavelmente inconscientemente, para seu computador, e eu decidi que, levando em conta sua coleção de espadas, seu conhecimento íntimo sobre o Decamerão e sua falta de álibi para ontem, não seria má ideia pedir para meus amigos na divisão de crimes cibernéticos do Bureau darem uma verificada no histórico de navegação do professor. Nós provavelmente devemos ter motivos suficientes para conseguir o pedido.

Mas talvez não.

Então, um pensamento.

Talvez eu não precisasse esperar por eles.

Fiz mais algumas anotações na minha caderneta, então girei a caneta com meus dedos.

– Certo – eu disse para o professor Bryant. – Você está propondo que, para Boccaccio, o relacionamento entre o leitor e o texto, entre a pessoa e a história, era um caso ilícito.

– Sim.

Analisei as prateleiras novamente e repousei a caderneta e a caneta sobre sua escrivaninha.

– E Boccaccio era quem os estava unindo, fazendo o papel do cavaleiro, Galeotto – eu ainda não havia encontrado nenhum dos comentários com 853, mas o professor tinha milhares de livros.

– Está correto.

Ontem, Jake havia sugerido que todas as histórias do assassino eram sobre as consequências trágicas do amor: “Contos fatais e cruéis de amor e de perda”.

Estaria John agindo como um cupido entre amantes e a morte? É esse seu jogo?

O professor Bryant olhava impacientemente para Cheyenne e para mim.

– Agora, se isso for tudo, eu realmente preciso...

Meu telefone tocou.

– Com licença – saí para o corredor. Pela porta pude ouvir Cheyenne perguntando ao professor sobre o significado literário específico das histórias contadas no quarto dia.

Assim que atendi o telefone, andei lentamente para a cozinha para verificar uma coisa.

– Sim?

– Sou eu – Ralph disse. – Tinha uma agente observando Calvin. Ela disse que ele estava em casa, mas ele não respondia minhas ligações, então passei por lá para convidá-lo para almoçar. Ele não está lá.

– O quê? – eu estava olhando as bancadas do dr. Bryant, então rapidamente vasculhei seus armários.

– De algum jeito ele escapou da gente.

– Ele tem quase 80 anos – rápida e silenciosamente, verifiquei o conteúdo da lava-louças do professor.

– Eu sei. Estou tentando descobrir.

– Precisamos encontrar...

– Eu disse que eu sei – suas palavras eram como marteladas. – Estou tentando descobrir.

– Ok – eu disse. – Obrigado.

Ele terminou a ligação abruptamente. Não encontrei o que estava pro curando na cozinha do dr. Bryant e, desanimado, voltei para o escritório.


74

Assim que entrei na sala, ouvi o professor Bryant concluindo sua explicação para Cheyenne:

– Veja bem, enquanto os 10 peregrinos tentavam escapar da Peste Negra, a morte estava apenas um passo atrás deles, mas é claro que ela os alcançaria, assim como alcança a todos nós. Então, em todas as histórias contadas nesse quarto dia da viagem, encontramos o tema subjacente não declarado de que o amor em si é uma praga, uma doença, que nos derruba e torna infelizes, que o amor inevitavelmente leva à desgraça.

Com base no que sabíamos sobre o assassino e seus crimes até aquele ponto, a análise de Bryant parecia acertar o alvo.

Peguei Cheyenne olhando para mim. Imaginei que ela apenas estava checando se eu tinha alguma outra pergunta. Balancei a cabeça.

Ela deu seu cartão para o dr. Bryant.

– Bem, obrigada pelo seu tempo. Você foi muito útil. Por favor, nos ligue se você pensar em algum dos seus alunos que possa ter mostrado interesse particular no Decamerão.

– Ligarei – mas pelo olhar em seu rosto, suspeitei que ele jogaria o cartão fora assim que saíssemos pela porta.

– E se tivermos mais alguma pergunta – Cheyenne disse –, entraremos em contato.

– Sim – ele nos levou até a porta da frente. – Tudo bem.

– Ah, espere – tateei meus bolsos. – Esqueci minha caderneta e a caneta em seu escritório. Já volto.

Alguns segundos depois eu estava no escritório do professor Bryant novamente, dessa vez, sozinho. Dei a volta na escrivaninha até seu teclado e pressionei a barra de espaço para parar os peixes nadando pela tela e acessar seu iMac.

Às vezes você tem de dar uma fuçada procurando por evidências para descobrir se existem motivos suficientes para se preocupar em conseguir um mandado de busca.

No fim do corredor ouvi Cheyenne dizer:

– Então, quando termina o semestre?

A tela do desktop apareceu. Rapidamente cliquei na maçã no canto superior esquerdo, desci até preferências do sistema...

– Em duas semanas – Bryant disse a Cheyenne.

Cliquei no ícone “compartilhamento”. Acionei “login remoto” e “com partilhamento de arquivos”.

A voz do dr. Bryant veio do corredor.

– Se você me der licença...

Memorizei seu endereço de IP para que eu pudesse acessar remota mente seu computador. Ouvi passos. Agarrei minha caderneta e a caneta.

Fechei as preferências do sistema.

Virei-me.

Ele estava parado junto à porta.

– Tudo pronto? – ele perguntou.

Mostrei a caderneta e a caneta que eu havia deixado propositalmente em sua escrivaninha alguns minutos antes.

– Missão cumprida.


Após Cheyenne e eu entrarmos no carro, rapidamente liguei o motor e saí pela rua.

– O que você está pensando? – ela perguntou.

– Ele estava mentindo.

– Como você sabe?

– O café.

– O café?

– Tinha cheiro de grãos Geisha, das fazendas Hacienda la Esmeralda, no Panamá, um dos cafés mais raros e mais caros do mundo.

– Você identificou o café pelo cheiro?

– Bem, sim, e pelo fato de ter visto a embalagem enquanto eu estava ao telefone dando uma olhada na cozinha, mas esse não é o ponto. O ponto é: ele não tem uma garrafa térmica.

Ela piscou.

– Ele não tem uma garrafa térmica?

– Não. Nem uma caneca para viagem, ou se tiver, ele está escondendo muito bem. E ele fez o suficiente para 12 canecas. Ok, agora é apenas meu instinto reagindo, mas duvido que alguém que compra um café que custa 200 dólares o quilo coaria essa quantidade de uma só vez a menos que esteja esperando alguém. Um conhecedor de cafés prepara pequenas quantidades para manter o café fresco. E ele estava sendo filtrado quando entrei, então eu não acho que ele esteja prestes a sair para andar de bicicleta.

– Você por acaso disse instinto? E aqui estou eu, pensando que você é o cara que não confia em seus instintos.

– Eu não confio – eu disse. – É por isso que estou dando a volta no quarteirão.

– Então ele mentiu sobre sair para andar de bicicleta – ela disse. – Você acha que isso tem importância?

– Tudo tem importância.

Cheyenne limpou a garganta, sempre muito delicada, mas percebi.

– Sabe, este é o sétimo caso em que trabalho com você, e você disse isso em algum momento em cada uma dessas investigações.

– Sério?

– Sim.

– Deve ser uma mania – estacionei atrás de uma minivan perto do cruzamento mais próximo da casa do dr. Adrian Bryant. – Vamos ver quem ele está esperando.

Alguns momentos depois, Bryant saiu da casa, olhou para um lado e para o outro da rua, então entrou em seu BMW e deu ré pela calçada. Ele não levou sua mountain bike consigo.

– Hum – eu disse. – Uma leve mudança de planos para o professor. Nenhuma visita, e acho que o passeio de bicicleta pode esperar.

– O que você acha? – Cheyenne perguntou. – Seguimos ou deixamos ele ir?

Olhei para o relógio: 12h32.

Em 28 minutos, Jake Vanderveld começaria a expor o perfil psicoló

gico do assassino.

– Vamos segui-lo. Assim teremos uma desculpa para perder a reunião de Jake.

Ela levou um momento para avaliar meu comentário.

– Você está brincando.

– Sim. Talvez.

– Bem, você é o motorista desta vez. Você pode me levar para onde quiser.

Cara, essa mulher adorava duplos sentidos.

E eu não via mal nenhum nisso.

Talvez se tivéssemos sorte, Bryant fizesse algo ilegal e então pode ríamos prendê-lo, e Cheyenne e eu teríamos uma ótima desculpa para perder a reunião.

Bryant entrou no emaranhado de pequenas ruas que cercavam sua casa e eu o segui, ficando a uma distância suficiente para que ele não me visse.

Memorizei a rota que ele fez enquanto dirigíamos.


75

Tessa ouviu a mãe de Patrick voltar da igreja e começar a colocar os pratos na mesa para o almoço.

O diário não tinha registros de todos os dias, e às vezes a mãe de Tessa pulava uma semana ou até mesmo um mês, assim como muitos blogueiros fazem. E muitas vezes, em vez de escrever, ela colava uma carta ou uma fotografia, mas ainda assim, Tessa acompanhou a mãe como uma amiga, como uma irmã, através de seu primeiro ano na faculdade e até o começo do verão seguinte.

Sua mãe havia apenas começado a escrever sobre um cara chamado Brad que estava um ano à frente dela na faculdade, quando Tessa ouviu a voz fina de Martha subir pelas escadas.

– O que você quer de almoço, querida?

– Não estou com fome – ela respondeu de volta.

Tessa gostava de Martha. Patrick havia dito a ela uma vez que a mãe dele havia crescido na Georgia, aprendendo a ser uma dama sulista, então Tessa percebeu que ela provavelmente não gostava muito do piercing na sobrancelha da enteada de seu filho, do esmalte preto, da tatuagem e do amor pelo death metal, mas ainda assim, Tessa nunca havia se sentido julgada por ela e sempre a respeitou por isso. Apesar de suas diferenças, elas se davam surpreendentemente bem.

Tessa ouviu passos na escada.

Martha não era muito ágil e Tessa não gostou da ideia de fazê-la subir a escada só para convencê-la a comer alguma coisa, então deixou o diário na cama, andou pelo corredor e apareceu no último degrau.

– De verdade – ela disse. – Estou bem.

Martha estava no meio da escada.

– Tessa, querida, você precisa comer – Martha era uma mulher frágil e delicada, com cabelos brancos como a neve e, ainda assim, era alguém que Tessa havia reparado que possuía um tipo de força difícil de medir.

E mesmo que desejasse muito voltar para o diário para descobrir o que acontecia entre sua mãe e Brad, Tessa não queria ser rude.

– Ok, claro, o que tiver está bom para mim.

– Bolo de carne está bom, então?

Tessa olhou para ela, esperando que seu rosto entregasse que ela estava brincando, mas Martha apenas olhava para ela inocentemente. Finalmente, Tessa disse:

– Na Bíblia, Adão e Eva não eram vegetarianos? Não era esse o plano original, que humanos não matariam para viver? E Daniel, o cara da cova dos leões também. Ele não era...

Um dedo leve no ar.

– Tem razão – Martha olhou orgulhosa para ela. – Então, bolo de salada, pode ser?

– Sim, claro. Bolo de salada – ela disse. – Obrigada. – Vindo de Patrick, “bolo de salada” teria soado como uma triste tentativa de ser engraçado, mas vindo de Martha, foi bonitinho.

Então Martha sorriu delicadamente para ela e desceu os degraus novamente, e Tessa voltou para o diário para descobrir se sua mãe e Brad acabaram ficando.


Quinze minutos após sair de sua casa, o dr. Bryant entrou no estacionamento do prédio do Denver News.

– Então – Cheyenne disse –, Bryant é um especialista em Boccaccio, tem uma coleção de espadas, esteve desaparecido ontem, a cabeça no vaso de manjericão foi mandada para este prédio, ele dirige até aqui assim que terminamos de conversar com ele – e lembra? – Kurt mencionou que Bryant teve Amy Lynn em sua aula.

– Sim – eu disse. – Meu interesse está definitivamente desperto.

Olhada no relógio: tínhamos 12 minutos até a reunião na central da polícia e apesar da minha relutância em comparecer, eu sabia que precisaríamos estar lá.

– Temos de ir, mas vamos mandar um carro para cá; colocar alguns policiais para ficarem de olho no professor.

Cheyenne pegou o celular e eu direcionei o carro para a central da polícia.


76

Jake estava conectando seu computador à televisão da parede quando Cheyenne e eu chegamos à sala de conferência. Além de Jake, vi três dos policiais que estiveram nos ajudando no caso, dois agentes do FBI e Reggie Greer. Kurt ainda não havia chegado.

Uma cópia impressa do perfil psicológico de Jake estava na mesa à frente de cada uma das 12 cadeiras. Quando Cheyenne e eu tomamos nossos lugares, o capitão Terrell, chefe de Kurt e fã de programas de TV sobre criação de perfis, entrou na sala e sentou-se ao lado de Jake. O capitão era um homem de aparência severa, com cabelos curtos e bagunçados. O cheiro de colônia Old Spice o seguiu quando ele passou.

Cheyenne se inclinou para perto de mim, acenou na direção dele e cochichou:

– Dizem que é preciso mais músculos para franzir o cenho do que para sorrir.

Mantive minha voz baixa.

– Você está dizendo que o rosto dele gosta de fazer musculação? Ela piscou.

– Boa. Você está me acompanhando.

– Grandes mentes – cochichei.

Então ouvi o capitão Terrell perguntar a Jake se ele estava pronto. Jake acenou com a cabeça.

– Podemos começar.

O capitão limpou a garganta e todos se acomodaram em suas cadeiras.

– Primeiro, quero agradecer a todos por virem em um fim de semana – ele disse. – Como vocês sabem, o Departamento de Polícia de Denver está sempre procurando por melhores meios de servir seus colaboradores, então nos sentimos honrados e privilegiados por ter dois agentes federais trabalhando intimamente conosco neste caso – ele acenou forçadamente para mim e Jake.

Então ele apoiou as duas mãos sobre a mesa.

– Portanto, vamos direto ao assunto: esse psicopata precisa ser encontrado. Temos pelo menos sete mortes em nossas mãos e essa coisa está virando um pesadelo para as nossas relações públicas. O Departamento de Polícia de Denver vai colocar todos os recursos à disposição para pegarmos esse cara.

Ele pegou uma das cópias do perfil de Jake. Acenou para nós.

– E o agente especial Vanderveld é o homem que vai nos ajudar a fazer isso – então cedeu o espaço para ele. – Jake.

Evidentemente, o capitão Terrell tinha muito mais confiança nas habilidades investigativas de Jake do que nas minhas. Abri minha cópia do perfil e comecei minha leitura obrigatória.

Jake levantou-se.

– Obrigado, capitão – ele apontou para os perfis impressos. – Não vou ler o que se encontra na frente de vocês, mas eu gostaria de destacar alguns pontos. – Ele apertou um botão em seu laptop e um logotipo do FBI apareceu na tela.

– Estamos lidando com alguém que foi capaz de encontrar um homem da lista dos mais procurados do FBI, subjugá-lo e matá-lo, mesmo esse homem sendo um assassino treinado – ele apertou um botão em seu lap-top novamente e uma imagem do rosto de Sebastian Taylor apareceu.

Olhei em volta.

Ninguém mais parecia perceber que o que Jake havia acabado de falar, apesar de parecer perspicaz, era inteiramente óbvio. Apenas reforçava a informação que já conhecíamos.

– O UNSUB é um homem caucasiano, de 30 a 35 anos de idade. As cenas do crime mostram uma mistura de comportamento organizado e desorganizado.

Dizer que o comportamento é uma combinação de organização e desorganização pode ser uma descrição precisa, mas é completamente inútil para encontrar um suspeito. Dava para ver que aquela seria uma reunião muito longa.

– Ele não é o típico assassino homicida com motivações sexuais. Ele foi divorciado pelo menos uma vez e deve ter vivido com a mãe depois da faculdade.

A cada uma das afirmações de Jake, eu podia sentir minha temperatura subindo. Isso era exatamente o que eu não gostava na criação de perfis: conjecturas baseadas em palpites em vez de fatos. Considerando apenas as evidências que haviam sido deixadas nas cenas dos crimes até agora, como alguém poderia dizer que o infrator tinha vivido com a mãe depois da faculdade? Aquilo era ridículo.

Jake continuou:

– Recomendo confronto direto com o suspeito durante o interrogatório. Façam a ele perguntas como “quantas outras pessoas você matou?”, “onde você escondeu o corpo de Chris Arlington?”, “de onde você tirou a ideia de reencenar os crimes do Decamerão?”.

– Com licença – Cheyenne disse.

– Sim?

– Não seria mais prudente nesse ponto focar nossas energias em prender alguém em vez de bolar uma estratégia de interrogatório?

Ah, sim. A mulher do meu coração.

Jake sorriu, mas dava para ver que não era realmente um sorriso.

– Precisamos estar preparados para qualquer coisa que cruzar nosso caminho, detetive. Quanto mais entendermos esse assassino, maiores as chances de pegá-lo e conseguir que ele confesse. Meu objetivo é ser o mais abrangente possível.

Pelo olhar no rosto de Cheyenne, suspeitei que ela estivesse a ponto de pular em cima dele, mas entrei no meio.

– Jake – eu disse –, Cheyenne e eu acabamos de conversar com o professor que ensina sobre o Decamerão na DU. Ele parece pensar que Boccaccio vê a si mesmo no papel de um cavaleiro unindo amantes com a perda, a tristeza ou a morte. Você tratou disso em seu perfil escrito, mas o que você acha da ligação com Boccaccio?

– Sim, eu trato disso – ele disse. – Profundamente. Mas vou resumir para você.

Ah, obrigado, pensei.

– Obrigado – eu disse.

– A fascinação do UNSUB com o Decamerão revela que ele é inteligente e versado. QI alto. Estudou literatura medieval. Provavelmente fez faculdade, talvez tenha até feito alguma pós-graduação. Nas histórias de Boccaccio ele encontra a inspiração e o ímpeto para deixar suas tendências violentas caminharem livremente em sua vida.

– Então – Cheyenne disse pensativamente – você está dizendo que o assassino é inteligente e tem tendências violentas?

O sarcasmo dela pareceu não ter tido efeito em Jake.

– Sim – ele disse.

Inteligente e violento.

Essas ideias eram extraordinárias. Talvez eu devesse anotar essas coisas.

– Ele não muda seu padrão – Jake disse – porque ele não consegue. Ele mata porque ganha algo com a morte. E isso cresce da natureza específica de cada crime. É mais relacionado ao porquê do que ao como. Métodos são refinados. Assassinos aprendem com seus erros. Mas eles não alteram o porquê. É quase sempre por poder, dominação e controle. Nesse caso, o poder sobre o destino, sobre a vida e a morte. Para pegar esse cara, precisamos nos focar não onde os crimes ocorreram, mas no porquê.

Ele estava olhando para mim enquanto dizia as palavras, e eu podia sentir que ele estava querendo arrumar briga, mas mantive minha boca fechada.

– Então, aqui está o que devemos procurar: casais. Amantes. Seleção de vítimas. Por que ele está escolhendo esses casais? O que eles têm em comum? Onde suas vidas se cruzam com a dele?

Ele havia nos dito alguns segundos antes que o onde não importava, e agora estava sugerindo que nos concentrássemos em onde as vidas das vítimas se cruzavam com a do assassino, que é o que eu havia sugerido mais de 24 horas atrás.

Pelo menos agora estávamos indo para algum lugar.

– A preocupação do UNSUB com amor e morte revela uma grande quantidade de dor e confusão interiores – Jake disse. – Ele experimentou tristeza profunda em seus anos de formação. Provavelmente a perda de alguém que cuidava dele. Então, devemos procurar um homem altamente educado que teve experiências de tragédia ou traição quando criança. Ele está familiarizado com esta região, provavelmente cresceu ou estudou aqui; e talvez tenha acesso a arquivos confidenciais de casos ou a áreas restritas do Banco de Dados Digital Federal que o permitiram rastrear a residência de Taylor através das marcas de pneu comparadas com seu Lexus.

Hum... Acesso ao Banco de Dados Digital Federal? Talvez até ao FALCON? Agora sim, uma ideia interessante...

Mas antes que eu pudesse pensar mais nisso ou que Jake pudesse expandir sua afirmação, a porta da sala de conferência abriu com uma pancada.

Era Kurt.

– Alguém postou um artigo na internet sobre os crimes – ele disse.

– Ela sabe sobre o Decamerão. Ela está chamando o cara de “Assassino do Quarto Dia”.


77

– Abra isso – eu disse a Jake, cujo computador ainda estava conectado à televisão na parede.

Ele pressionou o teclado, abriu o navegador e digitou a frase “Assassino do Quarto Dia”.

O artigo “Manuscrito Medieval Inspira Assassinatos Brutais” apareceu. Jake clicou na página e todos lemos em silêncio.

No geral, o artigo era pouco mais que conjecturas, hipóteses e criação de perfil amadora, mas ele continha alguns detalhes que não tínhamos fornecido à imprensa: algumas das falas das ligações para a polícia, o fato de que o coração de Chris Arlington havia sido encontrado na mina juntamente com o corpo de Heather e informações sobre o atentado contra a vida de Kelsey Nash. A autora também mencionava o vaso de manjericão, mas, incorretamente, afirmava que ele continha a cabeça de Sebastian Taylor em vez da de Travis Nash.

Apesar de não ser ilegal escrever sobre os crimes, era ilegal compartilhar publicamente informações privilegiadas sobre uma investigação em andamento, e essa autora havia feito isso. Perguntei a Kurt se ele sabia algo sobre a autora.

Ele balançou a cabeça.

– Foi escrito por um pessoa chamada Deniece Johnson, mas até onde podemos dizer, isso é apenas um pseudônimo.

Pela referência à cabeça no vaso de manjericão, a escolha óbvia para a autora seria Amy Lynn Greer.

Mas ainda assim, o artigo é muito específico para ter...

– Temos um vazamento – o capitão Terrell disse. E dessa vez eu concordei com o fã de criadores de perfil.

Por um momento, todos na sala pareciam analisar uns aos outros, procurando por um gesto culpado, uma ação suspeita. Finalmente, Jake me surpreendeu e disse:

– Acho que devemos adiar a reunião e dar uma olhada nisso. Talvez possamos nos reunir novamente no fim da tarde.

Ele olhou para o capitão Terrell procurando por apoio.

O capitão pensou na sugestão e, então, acenou com a cabeça.

– Façam todos a lição de casa. Kurt, você e eu vamos dar uma olhada nesse artigo, rastrear o autor e encontrar nosso vazamento – ele olhou as horas. – Nos encontramos de volta aqui às 16h – algumas pessoas olharam nos relógios e pareciam estar prontas para reclamar, mas no final mantiveram as bocas fechadas.

Às 16h seria perfeito, pois eu estaria embarcando no avião para Chicago.

– Ótimo – eu disse –, Jake poderá concluir então.

O capitão Terrell dispensou todo mundo, com exceção de Reggie Greer, a quem pediu para se juntar a ele no corredor, e imaginei que o capitão compartilhava da minha suspeita de que a esposa de Reggie, Amy Lynn, era a autora.

Todos deixaram a sala, mas fiquei para trás. Algo no artigo havia me chamado a atenção. Abri meu laptop e naveguei até a página.

Li novamente.

Ontem, eu havia verificado as transcrições das ligações para a polícia a caminho da casa de Taylor, e quem quer que fosse que tenha escrito esse artigo havia incluído a frase “o anoitecer está chegando”, um fato que o autor definitivamente não deveria saber.

E isso era algo que eu poderia procurar imediatamente. Era possível que as ligações para a polícia nos levassem até o vazamento.

Após pegar minhas coisas, saí para o corredor e fiquei um tanto surpreso, e feliz, de encontrar Cheyenne esperando por mim.

– Ei – ela disse –, estive pensando naquele artigo.

– Eu também. Estava com esperança de dar uma olhada nas ligações anônimas. Preciso de mais detalhes. Acho que gostaria de ouvir o áudio eu mesmo.

Ela olhou para mim com admiração e um toque de suspeita.

– Como assim? Eu estava pensando na mesma coisa.

– Boa. Você está me acompanhando.

– Grandes mentes... – ela disse. Então partiu para o elevador. – A expedição fica no subsolo. Podemos conferir agora mesmo.


78

Assim que entramos no elevador, Cheyenne olhou para mim.

– Aliás, fiquei impressionada pelo seu autocontrole durante a reunião com Jake.

– Sim, bem, eu sou o tipo de cara com tato, controlado.

– Hum. Bom saber disso – ela pressionou “S” para o subsolo, que era na verdade o andar acima da garagem subterrânea. – Então, posso te fazer uma pergunta pessoal, sr. Tato? – ela observou as portas do elevador fecharem.

– Manda.

Descemos.

– O que aconteceu entre você e Lien-hua?

Ok, essa foi inesperada.

Mesmo sendo um pouco estranho falar sobre Lien-hua, levei como um bom sinal o fato de Cheyenne perguntar sobre ela.

– Não tenho muita certeza – eu disse. – Mas honestamente, não foi o velho clichê do trabalho ser mais importante que o relacionamento. Tomávamos cuidado com isso – o elevador parou. Apitou. – Uma coisa talvez: um pouco antes de começarmos a sair juntos, ela quase morreu. Na verdade, ela morreu, mas consegui trazê-la de volta.

– Uau – as portas se abriram e nós saímos.

– Sim, bem, eu acho que isso, com o tempo, tornou as coisas entre nós mais tensas, criou uma dinâmica desconfortável, como se houvesse algum tipo de obrigação de ela gostar de mim, não simplesmente uma escolha.

Partimos pelo corredor.

– Além disso, antes de ela morrer, por um tempo curto, pensei que ela estivesse envolvida em uma conspiração biotecnológica. Ela me disse que não levou isso a mal, mas tenho uma sensação de que tenha afetado as coisas... então ela tirou licença por um tempo...

– Se você não quiser falar sobre isso – Cheyenne disse –, está tudo bem.

– Lien-hua ainda está em Washington – só depois que eu disse as palavras fui perceber como devem ter soado deslocadas. Eu nem sabia por que tinha dito aquilo. Talvez para deixar claro para Cheyenne que Lien-hua não estava mais na jogada.

– Washington – Cheyenne respondeu. – Então, a mesma cidade onde você vai morar esse verão?

– Hum. Sim – eu não queria mais falar sobre Lien-hua. Estávamos no meio do corredor. Arrisquei uma pergunta pessoal. – E quanto a você?

– Você diz sobre algum cara?

– Sim.

– Nada sério, não por um bom tempo. Isso pode te surpreender, mas me disseram que eu intimido os homens.

– Tá brincando. Sério?

– Chocante, né? No entanto, devo lhe dizer, eu fui casada uma vez, saindo da faculdade. Ficamos juntos por cinco anos.

– Você se importa se eu perguntar o que aconteceu?

Uma pequena pausa.

– Todo caso começa com um sorriso.

A cada momento, a conversa estava se tornando mais e mais íntima, e minha consciência me dizia para parar de emendar perguntas, mas eu continuei mesmo assim.

– Então, você estava sorrindo, ou ele?

Eu provavelmente havia passado do limite, mas Cheyenne não pare ceu se importar.

– Por um instante ambos estávamos – ela disse. – No final, larguei o cara para quem eu estava sorrindo, e Cody me largou – ela fez uma pausa e então acrescentou: – Cody Howard era o meu marido.

– Cody Howard, o piloto de helicóptero do Departamento de Polícia de Denver?

– O próprio.

Por essa eu não esperava.

Pelo menos isso explicava por que ela não queria voar com ele.

Chegamos ao escritório da expedição e, quando ela estava prestes a abrir a porta, pedi a ela para esperar um segundo.

– Escute, eu queria me desculpar por ontem à noite.

– Pelo quê?

– Por quando você disse que estava pensando que eu ia te beijar...

– Sim?

– E não beijei.

Uma pequena pausa. Ela parecia estar se divertindo.

– Sim, eu me lembro disso, agora que você mencionou.

– Então, de qualquer forma, eu não estava tentando te afastar. Eu só... bem, eu me senti meio mal com a maneira como as coisas terminaram.

– Pat – ela disse, ajeitando meu colarinho –, eu não acho que elas terminaram.

E, enquanto fiquei procurando uma resposta, ela empurrou a porta do centro de expedição do Serviço Médico Emergencial e entrou.


79

Uma vez dentro da sala de expedição, Cheyenne foi procurar o supervisor encarregado enquanto eu esperava na porta e observava a sala, que era iluminada apenas pelo brilho azulado dos monitores de computador e pelas poucas lâmpadas fluorescentes que ainda não estavam queimadas.

Uma placa na parede à minha direita dizia:

Lembre-se dos três As!

Aonde devemos ir?

Precisa de Ambulância?

Alguém está Armado?

Vidas dependem de VOCÊ!!

Uma palavra escrita errada. Uso exagerado de pontos de exclamação. Letras maiúsculas desnecessárias. Tessa teria ficado louca.

Nove expedidores estavam de plantão no conjunto de cubículos, e a maioria deles tinha pelo menos dois computadores, dois fones de ouvido com microfone e um pedal no chão para transferir e receber chamadas. Todos pareciam ligados e privados de sono. A sala cheirava a mortadela velha e café queimado. Oito cubículos estavam vazios.

Com o estresse, longas horas de trabalho, baixo salário e o desgaste emocional, não é fácil encontrar pessoas para serem expedidoras do Serviço Médico Emergencial. Eu não conheço nenhuma grande cidade americana onde o departamento de serviços de emergência não esteja com falta de funcionários e constantemente procurando pessoas para contratar. Na verdade, um estudo recente da Johns Hopkins University descobriu que ser um expedidor em uma grande área metropolitana é tão estressante quanto ser controlador de tráfego aéreo. Talvez isso explique a taxa de rotatividade de 60% por ano.

E aqui está a ironia: a maioria dos colégios tem mais sistemas de computador atualizados do que os serviços médicos emergenciais e, ainda assim, apesar de os expedidores potencialmente terem a vida de uma pessoa nas mãos a cada ligação, a maioria dos estados não exige que seus funcionários tenham nem diploma de segundo grau.

Quando uma chamada é recebida, um expedidor pode ouvir um tiro, ouvir um corpo cair, ouvir a ligação ficar muda, e 60 a 70 segundos depois ele está ao telefone novamente com outra pessoa. Os expedidores nunca descobrem o que aconteceu com quem ligou antes, a menos que eles leiam sobre aquilo no jornal ou talvez peguem a história no jornal da noite.

Mas nenhum dos expedidores que conheço assiste ao noticiário ou lê o jornal.

É muito doloroso.

Cheyenne voltou com um homem que se identificou como Lancaster Cowler.

Ele gingou em minha direção como um ex-atleta, mas parecia que não fazia uma flexão de braço há mais de 20 anos. Uma bola de gordura abdominal escapava pelo espaço entre a camisa e o cinto como a ponta de uma língua gigante.

– Agente especial Bowers – ele disse, sua voz úmida e grossa.

Apertei sua mão.

– Sr. Cowler, eu não quero tomar seu tempo. Tenho algumas perguntas sobre as ligações anônimas reportando os homicídios duplos na quinta e na sexta-feira.

– A mulher que recebeu as ligações não está trabalhando hoje – ele disse.

– Ela tem folga nos fins de semana. Você sabe. Para ficar com os filhos.

– Podemos ver se mais alguém acessou esses arquivos?

– Claro – ele inclinou sua cabeça para o lado e chamou um homem sentado ao lado de um par de telas de computador. – Ari, preciso que você baixe alguns arquivos de áudio para nós.

O cara parecia que não dormia há uma semana.

– Quais? – seus olhos permaneceram grudados na tela da esquerda, que continha um painel de códigos de expedição e um mapa de Denver com pontos digitais representando a localização GPS atual dos veículos de emergência da cidade.

Cowler andou na direção da mesa do homem.

– Homicídios duplos.

Ari virou-se para a tela da direita e rapidamente rolou pelo banco de dados das chamadas gravadas digitalmente na semana.

– Você sabe as horas? – mesmo Ari parecendo ter mais de 30 anos, seu rosto era coberto por acne. As únicas coisas em sua mesa que mostravam que ele tinha uma vida fora daquela sala eram um boneco de um Star Trooper, uma placa de mérito por 10 anos de trabalho e um dragão de cerâmica prateado com as asas abertas.

Eu vi os horários das ligações rolando pela tela.

– Ali – apontei para um registro de quinta-feira à tarde. – E ali – identifiquei a segunda chamada.

Ari digitou no teclado e puxou o primeiro arquivo. Cowler analisou a tela.

– Não, o número de referência não mostra mais ninguém acessando os arquivos, exceto o escritório do médico forense. Mas é normal eles fazerem isso antes de uma autópsia.

– Vamos ouvir a primeira ligação – eu disse.

Enquanto Ari reproduzia o áudio, a transcrição automática ia pas sando pela tela:


EMERGÊNCIA: – Você ligou para emergência. Como...

INTERLOCUTOR: – Tenho algo para dizer. Preciso que você ouça com atenção.

EMERGÊNCIA: – Senhor, você pode me dizer seu nome? INTERLOCUTOR: – Tem um corpo na Mina de Bearcroft, cinco quilômetros ao sul de Idaho Springs. Pegue a Wheelan até a Piney Oaks Road. Após 8,5 quilômetros, pegue a estrada de terra para a direita. Ela termina na mina. Quero que você mande...

EMERGÊNCIA: – Com quem estou falando?

INTERLOCUTOR: – A Força-Tarefa para Crimes Violentos das Montanhas Rochosas. Ninguém entra na mina antes deles, ou mais pessoas vão morrer. Vocês não vão encontrar Chris, então não percam tempo procurando por ele.

EMERGÊNCIA: – Senhor, você está aí agora? Você está em perigo...

INTERLOCUTOR: – O anoitecer está chegando. Não vou parar até que a história esteja concluída. O quarto dia termina na quarta-feira.

EMERGÊNCIA: – Senhor...

CHAMADA ENCERRADA PELO INTERLOCUTOR.


O segundo áudio era igualmente conciso, mas listava o endereço de Taylor e a Represa Cherry Creek como os locais dos corpos.

A voz do interlocutor era disfarçada eletronicamente, e apesar de eu não ter certeza, parecia que o tom, as pausas e a cadência da fala nas duas gravações batiam com os padrões do homem que havia me ligado hoje mais cedo.

No entanto, ouvi ruído de fundo em ambas as gravações. Enquanto eu pensava no que poderia ser aquilo, Cowler me perguntou:

– O que você está esperando encontrar, exatamente?

Em vez de soar arrogante, listando os identificadores fonéticos e de entonação, eu simplesmente disse:

– Estou tentando ouvir alguma coisa distintiva, individualizada. Qualquer coisa que possa nos ajudar a ligar o interlocutor com um suspeito – então pedi para Ari reproduzir as gravações novamente.

Sim, definitivamente tinha algo ali, apesar de ser um som diferente em cada gravação.

– Sabemos o que são esses ruídos de fundo? – perguntei para Cowler.

– Ruídos de fundo?

– Soa como pessoas murmurando na primeira gravação e algo diferente, não tenho certeza do que, na segunda.

– Certo, Ryman – Cowler disse. – Vamos ouvi-las mais uma vez – ele deu a mim e a Cheyenne fones de ouvido, pegou um par para ele, ligou-os no sistema e acenou para Ari Ryman reproduzir o áudio novamente.

Depois de ouvirmos as gravações novamente, todos removemos nossos fones de ouvido e Cowler balançou a cabeça.

– Fica barulhento aqui. Parece ruído de fundo dos outros expedidores. Provavelmente não é nada.

Se tem uma coisa que aprendi no decorrer dos anos é isso: quando alguém diz “provavelmente não é nada”, nunca acredite nele.

Eu sabia que a perícia havia estudado as gravações, mas eu precisava que eles analisassem com um pouco mais de cuidado. No entanto, antes que eu pudesse pedir uma cópia delas, uma ligação foi recebida e o homem com o boneco de um Star Trooper tomou um rápido gole de uma caneca velha cheia de café cinzento e falou em um de seus dois fones de ouvido com microfone.

– Emergência. Por favor, diga a natureza de sua ligação.

Nos afastamos.

Tirando o ruído ambiente, não percebi nada anormal nas mensagens de áudio.

– Bem – Cheyenne disse para mim a caminho da porta –, o que você acha? Tentei esconder o desânimo em minha voz.

– Os fonemas parecem bater com os usados pelo homem que me ligou hoje mais cedo, mas com a distorção de voz que ele usou, duvido que seria capaz de reconhecer sua voz natural se eu a ouvisse. Eu ainda estou imaginando como o autor do artigo na internet encontrou a transcrição das chamadas.

– Eu também.

Cowler nos conduziu à porta e eu estava prestes a dar a ele meu cartão e pedir para me mandar via e-mail uma cópia dos arquivos de áudio e das transcrições mas percebi que isso só levaria mais tempo, algo que não tínhamos. Então, em vez disso, perguntei a ele se eu podia usar um dos computadores por um minuto.

Ele encolheu os ombros.

– Claro, nós temos um conjunto separado para uso do departamento de polícia. Está bem aqui.

Ele me conduziu até uma das estações de trabalho vazias no lado oposto da sala.


80

Após ter me sentado, Cowler me mostrou como baixar os arquivos de áudio. Cliquei além dos links do localizador de endereço e GPS do Banco de Dados Digital Federal até chegar aos arquivos de áudio, então enviei via e-mail uma cópia de ambos os arquivos e transcrições, para mim mesmo e para Angela Knight, da divisão de crimes cibernéticos do FBI.

Adicionei um pedido para Angela: que ela passasse o áudio das ligações por um espectrógrafo de voz. “Veja se você consegue isolar o ruído de fundo para mim”, escrevi. “E como sempre, preciso disso o quanto antes. – Pat”.

Agradeci Cowler e quando Cheyenne e eu entramos no corredor, olhei para o relógio e percebi que precisava correr se queria pegar minha bagagem em casa, dizer tchau para Tessa e então pegar meu voo.

– Preciso ir – eu disse a ela.

– Espere – ela disse. – Passe pelo meu carro antes. Só vai levar um minuto. Tem algo que gostaria de dar para você.


Amy Lynn estava colocando outro vídeo para Jayson assistir quando recebeu uma ligação em seu Blackberry. Ela atendeu.

– Sim?

– Ele vieram aqui – era Ari. Ele parecia desesperado. – O que você escreveu?

Ela ligou a televisão e colocou um pacote de salgadinhos no chão para o menino comer.

– Quem apareceu? – ela havia abaixado a voz. – Do que você está falando?

– Alguns detetives. Você escreveu algo sobre...

– Fique calmo. Ok? – ela se afastou da televisão.

– Eu só não quero que alguém descubra que nós conversamos.

– Eu sei.

– Mamãe – Jayson disse –, posso assistir...

– Shhhh! – ela o calou. – Você sabe que não pode me interromper quando estou falando ao telefone. – Então ela falou com Ari novamente.

– Vou dar uma verificada, ter certeza de que não tem jeito de relacionar as coisas a você. Ligo para você depois.

Ela terminou a ligação sem esperar pela resposta dele.

E sorriu.

Então, o artigo dela estava mexendo com as pessoas. Ótimo.

Hora de começar a trabalhar na segunda parte.


81

Três minutos após sair do escritório da expedição, eu estava parado ao lado do Saturn de Cheyenne e ela estava me dando o pingente de São Francisco de Assis que ela deixava pendurado em seu espelho retrovisor.

– Para que é isso? – perguntei.

– São Francisco é o santo padroeiro da arquidiocese de Denver – ela explicou. – E ano passado eu descobri que ele também é o santo protetor contra a morte solitária. Acho que esse é o pior jeito de morrer, então eu guardo isso como um... bem, ele me ajuda a lembrar por que eu faço o que eu faço. Ninguém deveria ter de morrer sozinho.

Ela fez uma pausa por um momento e então recitou as palavras que eu havia lido no dia anterior, do poema de Keats sobre o vaso de manjericão:

– “Pois Isabel, doce Isabel, morrerá; morrerá uma morte solitária e incompleta.” Quando você leu isso ontem, pensei no pingente, mas acabei esquecendo de dá-lo a você.

– Eu não posso aceitar, é...

– Por favor. Pensei que se você estiver com isso no julgamento de Basque, você não vai sofrer. Eu não sei... eu só... como um lembrete. Eu quero que você fique com ele. Eu consigo arrumar outro facilmente.

Apesar de ela ter mencionado ontem que havia frequentado uma escola católica, eu podia ver agora que ela era muito mais devota à sua fé do que eu imaginava. Ela deve ter percebido minha surpresa, pois disse:

– O que há de errado?

– Eu só estou um pouco... Eu não sabia que você era tão religiosa.

– Difícil de classificar, lembra?

– Certo – eu não acredito mesmo em relíquias, em rezar para santos ou em amuletos de boa sorte, mas o gesto significava muito para mim. – Obrigado – deslizei o pingente para dentro do meu bolso.

Um momento se passou.

– Bem – ela disse –, vou dar uma passada para visitar Kelsey Nash, ver como ela está; então talvez ver como estão os policiais que ficaram de olho em Bryant.

Percebi que meus sentimentos por Cheyenne estavam ficando mais fortes e mais intensos a cada hora, e comecei a imaginar o quanto do estresse desse caso estaria afetando minha atração por ela. Talvez meu coração estivesse procurando por ela porque ele precisava de algo que ela parecia oferecer: conforto, força, intimidade. Provavelmente as três coisas.

– Estarei com o telefone de Tessa – eu disse. – Mantenha-me atualizado, ok?

– Ligo para você de manhã.

Dei a ela o número e ela o registrou em seu telefone. Ela parecia que rer falar mais alguma coisa.

Eu odiava pensar na possibilidade de estar usando-a como um par de muletas, mas eu não conseguia deixar de pensar que eu estava.

– Eu preciso ir – disse apressadamente.

– Sim.

Então, antes que a conversa chegasse a algo mais pessoal, eu disse um tchau apressado e fui para o meu carro.

E não olhei para trás porque eu estava com medo de ela estar me observando, e apesar de uma parte de mim estar torcendo para que ela estivesse, outra parte havia começado a pensar se não seria melhor para ambos que ela não estivesse.


Tessa chegou à página do dia 15 de novembro do segundo ano de faculdade de sua mãe na University of Minnesota – apenas dois meses antes de ela ter sido concebida.

E sua mãe ainda estava saindo com Brad.

Tessa não sabia se ele era seu pai, mas estava ficando mais e mais provável que fosse, e sempre que ela lia seu nome, começava a sentir aquela antiga mistura de dor, raiva e mágoa que sentia sempre que pensava no pai ausente.

Então ela leu:

2 de novembro


Não, não, não, não, não!

Então hoje ele me diz que gosta dessa outra garota, que ele “não está mais a fim de mim”. Não está mais a fim de mim??!! Estamos saindo juntos faz seis meses! E por que ele tem que me dizer que gosta de outra pessoa? Por que ele não podia apenas dizer que acabou? Por que ele teve que mencioná-la?

O registro acaba abruptamente, mas então sua mãe passou as próximas 12 ou mais páginas falando sobre seus sentimentos em relação ao término, e Tessa descobriu que a mãe havia feito praticamente as mesmas coisas que ela fazia quando terminava com um cara: reclamava, chorava, fingia que ela nunca tinha gostado dele desde o começo, e então encontrava outro cara um pouco rápido demais e ficava apaixonada demais por ele.

E foi isso que aconteceu com sua mãe no dia 20 de dezembro.

O nome desse cara era Paul.

Tessa sentiu um pouco de medo e ansiedade palpitando dentro dela e não conseguia mais esperar. Ela precisava saber. Ela procurou pelas páginas. Passou pelas semanas seguintes.

Até janeiro: sua mãe terminou com Paul. Mas eles dormiram juntos algumas vezes. Então, a menos que houvesse mais alguém sobre o qual ela não havia escrito...

Então fevereiro, março.

Sua mãe havia começado a se sentir enjoada, cada vez com mais náuseas. Sim, tem de ser ele.

Abril.

Sua menstruação estava dois meses atrasada, ela não estava pronta para as provas, só queria que as férias chegassem e estava tentando arrumar um emprego para o verão...

Se houvesse mais alguém, se ela tivesse dormido com mais alguém, ela teria dito...

Então Tessa leu a página que sua mãe havia escrito no dia 5 de maio, e o mundo virou de cabeça para baixo.

Querido diário,

Hoje de manhã descobri que estou grávida. É do Paul. Não sei o que fazer. Eu não posso ter um bebê. Não posso! Este foi o pior dia da minha vida.

E Tessa sentou-se imóvel, muda, olhando para a página.

Obviamente seria difícil para uma adolescente ouvir que ela seria uma mãe solteira. Obviamente. Tessa sabia disso. Mas ainda assim, as palavras a cortaram ao meio.

“Este foi o pior dia da minha vida.”

Sua garganta se apertou tanto que ela mal conseguia respirar, e seus dedos estavam tremendo quando virou a página.

Mas a próxima página não foi escrita por sua mãe.

Em vez disso, era uma carta escrita à mão colada na página.

Uma carta de Paul.


82

Christie,

Desculpe-me por como as coisas estão, por como as coisas foram. Mas por favor, eu sou o pai. Não faça isso. Eu faço o que você quiser: pago as despesas médicas, ajudo a criar o bebê, encontro alguém para adotá-lo, mas por favor, não faça isso. Não importa o que você pensa de mim, sou um idiota, OK, sou um fracassado, mas deixe-me fazer algo certo aqui. Deixe-me ajudar. Deixe-me fazer uma coisa boa.

Por favor, fique com o nosso bebê.

– Paul

Tessa não respirou por um bom tempo. Ela deixou os olhos passearem pelas palavras duas, três vezes.

Por toda sua vida, ela havia odiado seu pai, havia pensado que ele não queria nada com ela. Então agora, mesmo que a intenção principal da carta a tenha tocado mais que tudo, sua reação inicial foi ficar chocada por seu pai biológico, seu verdadeiro pai, ter tido a vontade de fazer parte de sua vida.

O nome dele é Paul.

O nome do seu pai é Paul. E ele queria ajudar a criar você.

Mas então o impacto mais óbvio, mais profundo das palavras, fez sentido. “Por favor, não faça isso...”, ele havia escrito. “Eu sou o pai.”

“Eu faço o que você quiser: pago as despesas médicas, ajudo a criar o

bebê, encontro alguém para adotá-lo, mas por favor, não faça isso.”

– Não... – ela sussurrou. – Por favor, não.

“Fique com o nosso bebê.”

A verdade bateu com força nela.

Dura e brutal.

Sua mãe, a pessoa que Tessa havia amado e em quem havia confiado mais do que qualquer outra pessoa no planeta, quis abortá-la e seu pai, o homem que havia sempre odiado, tinha implorado para salvar sua vida.


83

Tudo em que Tessa havia acreditado sobre sua mãe e seu pai, todas as coisas, tudo, tinha sido uma mentira.

Uma mentira.

Uma mentira...

A porta da frente da casa se abriu, e ela ouviu a voz de Patrick:

– Ei, pessoal. Vim dizer tchau.

Ele sabia disso. Ele tinha que ter conhecimento disso!

Ela agarrou o diário e, usando o dedo para marcar a página, desceu correndo pelas escadas até a sala de estar. Patrick estava ao lado da porta.

– Então, Raven, como está...

– O que você sabe sobre isto? – ela mostrou o diário.

– Como assim?

Martha apareceu vindo da cozinha.

– Diga-me. Não minta para mim – Tessa disse. – Você o leu?

– Eu já disse antes, eu não o li. O que está acontecendo?

– Você sabia sobre isto?! – ela abriu o diário na carta de Paul. – É uma carta do meu pai, meu pai de verdade. E ele está dizendo para a mamãe que ele não quer que ela faça um... um... – sua voz se partiu e ela não conseguiu terminar a frase.

Patrick olhou para a página, mas não respondeu.

– Você sabia?!

– Aqui – ele disse suavemente. – Deixe-me ver isso – ele pegou o diário dela e Martha deu alguns passos silenciosos na direção deles, e então tudo meio que parou enquanto Patrick lia a carta.

Após alguns momentos, ele lentamente fechou o diário e o devolveu para ela.

– Eu não sei o que dizer.

– Ah, imagine só.

– Você tem de se lembrar do quanto sua mãe a amava.

– Ah, uau! Jura? Acho que foi por isso que ela quis me abortar, então... porque ela me amava muito.

– Escute, ela amava você. Você sabe disso. Não é certo você...

– O quê? Julgá-la? Ela escreveu que o dia em que descobriu que estava grávida foi o pior dia da vida dela. O que há para julgar? Ela não me queria!

– Ela queria você, sim – Patrick encostou em seu ombro, mas ela se afastou. – Ela era uma mulher amorosa, uma mulher carinhosa...

– Não.

– Mas ela era humana.

– Pare.

– Tão humana quanto você ou eu. E ela...

– Pare! Eu sei o que você está tentando fazer. Não vai funcionar.

– Tessa – sua voz havia ficado firme, mas ela podia ver que ele não estava bravo. Não mesmo. – Eu sei que você está chateada, mas pare e ouça por um segundo. Por favor. Ela nunca se arrependeu de ter tido você. Ela me contou que você foi a melhor coisa que aconteceu para ela. Ela me disse isso antes de morrer.

– Três de junho, Patrick – ela disse, e podia sentir algo dentro dela quebrando. – Paul escreveu essa carta no dia 3 de junho. Você sabe quando é meu aniversário, certo? Então, faça os cálculos. Mamãe estava de 20 semanas quando ele escreveu essa carta. Você sabe o que isso significa.

– Tessa. Por favor, não faça isso.

– Meu coração estava batendo, meu cérebro estava funcionando. Eu podia aprender coisas. Eu podia sentir dor. Ser acalmada com música, ter mudanças de humor – ela conseguia ouvir a dor dominar sua voz, mas não ligava, não tentou mais esconder nada. – Eu posso ter nascido e sobrevivido, mas...

– Tessa...

– Você sabe o que eles fazem em um aborto tardio? Talvez uma dilatação e evacuação? Talvez ela pudesse ter feito isso para “resolver o problema”. Eles inserem um grampo dentro do útero, agarram uma parte do corpo, e então...

– Shhhh – Martha disse.

– ...o arrancam de lá...

Patrick balançou a cabeça.

– Tessa...

– ...pedaço por pedaço e então eles esmagam a cabeça e aspiram os pedaços. Ou uma dilatação e extração? Enfiam uma tesoura cirúrgica bem aqui – Tessa apontou para a base de seu crânio. Seu dedo estava tremendo. – Teria sido bem aqui em mim. Bem aqui! Eles arrombam um buraco... e enfiam uma...

Martha repousou a mão gentilmente sobre o ombro de Tessa.

– Não pense sobre...

– Então após eles terem aspirado o cérebro... o crânio quebra e eles... eles conseguem finalmente... – ela se sentiu tonta, fisicamente mal, e não conseguia dizer as palavras. Ela simplesmente não conseguia.

Patrick acolheu-a em seus braços, e dessa vez ela permitiu. E então ela sentiu Martha abraçando-a também, seu braço frágil em torno de seus ombros. E ela estava feliz por eles estarem ali.

Mas isso era tudo pelo qual ela estava feliz.

Tessa inclinou o rosto contra o peito do padrasto.

E tremia enquanto chorava.


84

Tentei confortar Tessa mas não fazia ideia do que dizer, então eu apenas a abracei e disse a ela que a amava, e tentei pensar em algo, qualquer coisa que eu pudesse fazer para ajudar.

Momentos se passaram.

Minha mãe encontrou uma caixa de lenços para Tessa e após um tempo, ela começou a controlar a respiração novamente.

Finalmente, ela se afastou de mim, passou um punhado de lenços de papel pelo rosto e disse suavemente:

– Eu queria nunca ter lido isso. O diário. Eu queria...

– Eu sinto muito, Tessa. Se eu soubesse que machucaria você, eu nunca teria te dado. Acredite em mim.

Ela tomou um pouco de ar.

– Preciso ficar sozinha – então ela foi para o quarto e pensei que ela fosse bater a porta, mas em vez disso ela fechou gentilmente.

Tão gentilmente que, de certo modo, me assustou.

Não estava muito claro para mim o que eu deveria fazer: dar a ela um pouco de espaço, ou ir até ela, ver se tinha algo a mais que eu pudesse dizer.

No passado, Tessa havia lutado contra o hábito de se cortar como maneira de lidar com a perda, e mesmo ela tendo deixado isso para trás, eu ficava preocupado com ela, e não gostava da ideia de ficar ali sem fazer nada.

Subi a escada. Bati levemente na porta.

– Me deixa em paz – dava para perceber que ela estava chorando de novo.

Minha mãe estava subindo a escada para se juntar a mim.

– Por favor, Tessa – eu disse.

– Me deixe em paz. Quero ficar sozinha.

Tentei a maçaneta. Trancada.

– Vamos. Destranque a porta.

– Eu estou bem. Eu só quero ficar sozinha.

Enquanto fiquei lá parado, tentando descobrir como resolver as coi sas, minha mãe se aproximou e cochichou:

– Ela precisa de um tempo, Patrick. Deixe-a por enquanto. Ela vai sair quando estiver pronta.

– Como você sabe? – mantive minha voz baixa o suficiente para Tessa não ouvir. – Talvez eu possa...

– Escute sua mãe – Tessa disse de dentro do quarto.

Eu pisquei.

Martha ergueu uma sobrancelha, sábia e gentil.

– Você me ouviu? – Tessa disse.

– Sim.

Sabiamente, minha mãe deu um tapinha em meu braço e então virou-se para sair.

– Acho que vou estar lá embaixo então – eu disse para Tessa pela porta. – Na cozinha. Não vou sair para o aeroporto até que você esteja bem para eu sair, ok?

Nenhuma resposta.

Fiquei parado no corredor por mais alguns minutos, pensando em tudo, então Tessa falou pela parede:

– Não fique me espreitando – e finalmente eu saí e fui me juntar à minha mãe na cozinha.

Olhei para o relógio.

Por mais que eu quisesse ficar e lidar com os assuntos de Tessa, eu real mente precisava sair nos próximos 20 minutos se quisesse pegar o meu voo.

Mas isso não era mais minha prioridade.

Na noite passada eu havia falado para Cheyenne que Tessa significava tudo para mim. E agora eu percebia o quanto isso era verdade.

Eu ficaria aqui se precisasse. Mesmo se eu não conseguisse ir para o julgamento.

Ainda assim, me senti um pouco culpado e em conflito, porque mesmo não sabendo sobre Paul ou sobre a carta, uma vez, enquanto estávamos namorando, Christie havia me dito sobre sua decisão de abortar seu bebê.


85

Christie e eu estávamos saindo juntos há cerca de quatro meses quando ela me contou a história.

Nós dois éramos solteiros, por volta dos 30 anos, e as coisas estavam ficando sérias, então nós finalmente decidimos abrir o jogo, ver se havia algo em nossos respectivos passados que faria o outro desistir de alguma coisa a longo prazo.

E decidimos compartilhar esses segredos em uma caminhada nas Montanhas Adirondack em uma fria tarde de domingo em setembro.

Caminhamos por algumas horas, lentamente revelando mais e mais detalhes íntimos de nossas vidas, quando perdi a trilha e acabei passando quase meia hora levando-a sem rumo pelo meio do mato procurando como voltar. Finalmente, fiquei tão irritado comigo mesmo que chutei um tronco.

– Ok. Aqui vai uma: às vezes eu posso ficar impaciente.

– Sério?

– Sim – chutei um galho para fora do caminho. Com força. Ele rebateu na direção de Christie e felizmente ela estava bem atrás de mim, de modo que o galho não a acertou no rosto. – E mal-humorado.

– Hum – não pude sacar seu tom de voz. – Vou ter de ficar de olho nisso.

Então encontrei algo que podia ter sido uma trilha, pelo menos alguma vez, e ela estava seguindo vagamente na direção que queríamos ir, então decidi arriscar.

Enquanto caminhávamos, contei a ela sobre os problemas que tive durante anos para lidar com meu irmão mais velho, que era dono de uma loja de iscas em Wisconsin e passava a maior parte do tempo pescando quando poderia estar fazendo algo útil com sua vida.

– Bem – ela pisou sobre uma árvore caída em nosso caminho –, pelo menos você não julga as pessoas.

– Uma das minhas poucas virtudes.

Então admiti ter uma tendência a ficar um pouco preso ao trabalho.

Ocasionalmente.

De vez em quando.

E, então, apesar de ser um pouco vergonhoso, falei sobre lidar com algumas das tentações que todos os caras solteiros enfrentam.

Ela ouviu silenciosamente, fez algumas perguntas, mas não agiu como se algo daquilo fosse uma grande surpresa. E então ela me contou sobre como não era boa com dinheiro e havia acumulado quase 20 mil dólares de dívida de cartão de crédito, e como ela odiava trabalho de casa e às vezes tinha ataques de pânico quando estava muito estressada.

A trilha acabou.

Ela havia tentado cometer suicídio duas vezes no colegial; ela me con tou isso também. E, após uma longa pausa, ela acrescentou que não podia mais ter filhos.

Então ficamos os dois em silêncio.

Tive a impressão de que ela não havia terminado de contar, então esperei que ela falasse. Depois de andar cerca de 100 metros, ela sugeriu que voltássemos e quando nos viramos ela disse:

– Eu nunca te contei sobre quando estava grávida da Tessa. Talvez eu devesse ter contado.

Chegamos até um mirante, mas ela continuou andando.

– Eu tinha 19 anos quando descobri que estava grávida. Eu fiquei com medo, estava solteira e não estava apaixonada pelo pai – Ela fez uma pausa e então acrescentou: – E eu estava com vergonha também. Meus pais não encaravam sexo fora do casamento numa boa. Na época eu não entendia o ponto de vista deles. Desde então, bem...

Ela não precisou discorrer sobre o assunto; eu sabia que ela era uma cristã ávida, uma mulher que não tinha vergonha de sua fé e de seu Senhor, e desde o começo de nosso relacionamento, ela quis que permanecêssemos, como ela disse, “castos”. Eu havia respeitado suas convicções, no entanto não foram meses fáceis.

– De qualquer modo – ela havia parado de caminhar agora e estava olhando para a maneira como a trilha se curvava para o leste –, levei um bom tempo para decidir. Mas finalmente marquei uma consulta na clínica: às 10h, e ainda cheguei mais cedo.

Ela estava olhando para além de mim, na direção de um horizonte escondido por entre as árvores.

– Enquanto eu estava esperando, comecei a folhear as revistas que estavam empilhadas na mesa entre as cadeiras e enquanto dava uma olhada nelas, comecei a reparar nessas propagandas de sabão em pó, de Kool-Aid e de férias na Disneylândia. E cada propaganda parecia ter uma criança: segurando uma meia suja, bebendo em um copo descartável, descendo um escorregador, mas elas não pareciam mais propagandas dessas coisas. Pareciam propagandas de crianças.

Ouvi silenciosamente. Peguei sua mão. Ela cruzou os dedos com os meus.

– Comecei a pensar em todas as coisas com as quais uma mãe lida: as fraldas, as cólicas e as noites sem dormir, a solidão e os sacrifícios. E depois, nas outras coisas também: ver minha bebê andar pela primeira vez, festas de aniversário, levá-la para a escola no primeiro dia, ajudá-la a escolher um vestido para a formatura.

– Está tudo bem – eu disse. – Podemos conversar sobre isso outra hora.

Uma lágrima se formou em seu olho, e ela a enxugou.

– Não consegui fazer, Pat. Não consegui seguir em frente com aquilo. Voltei para o meu apartamento e levei a revista comigo. E, então, como eu ia dar à luz no outono, cancelei minha matrícula na faculdade e comecei a trabalhar em tempo integral para ganhar dinheiro suficiente para ter a bebê – ela fez uma pausa. – Sempre foi tão... Nós nunca tivemos muito.

– Eu sei.

Christie nunca havia terminado a faculdade, nunca foi dona de uma casa, sempre trabalhou em dois empregos. Pelo tom de voz dela, eu podia ver que ela não estava reclamando, mas também dava para ver como sua escolha de ter Tessa mudou profundamente o curso de sua vida.

– Você desistiu de muita coisa – eu disse suavemente.

– Era o que eu pensava também – ela disse. – Até a primeira vez em que segurei Tessa em meus braços.


No momento em que encontramos a trilha, 20 minutos depois, eu havia decidido que pediria Christie Rose Ellis em casamento assim que tivesse escolhido uma aliança.

Como uma jovem mulher, ela tinha medo e estava sozinha e desesperada, mas ainda assim havia encontrado determinação para desistir de seus sonhos e colocá-los em outra pessoa. E ela havia feito isso por 15 anos, mesmo nunca tendo sido fácil. Uma mulher que faria isso era uma mulher com a qual eu queria passar o resto da minha vida.

Como acabou sendo, porém, nós tínhamos apenas mais alguns meses juntos.

Ainda assim, mesmo quando estava morrendo ela nunca me disse o nome do pai de Tessa. Ela apenas me disse que ele não fazia mais parte de suas vidas.

– Você precisa confiar em mim nisso, Pat, por favor. É melhor para todo mundo se ele continuar sendo parte do passado.

Isso foi tudo.

E até 15 minutos atrás, quando Tessa me mostrou a carta de Paul, isso havia sido o suficiente.

Mas agora não parecia mais que era.


86

Tessa estava deitada na cama, encolhida em seu canto.

Ela havia parado de chorar por um momento, mas a dor dentro dela era tão aguda e real como sempre foi. Ela não conseguia parar de pensar na decisão de sua mãe de abortá-la e ela não conseguia parar de pensar sobre o que acontece em abortos. Ela desejou poder pensar nisso apenas nos termos seguros e inócuos que as pessoas usam: “interrupção de gravidez” por meio de um “procedimento” para “remoção do feto”. Mas quando você sabe o que acontece, o que realmente acontece, não dá para evitar a dor, não dá para evitar a sensação.

Por um longo e oscilante momento, ela lutou contra a ânsia de pegar uma navalha e cortar as emoções que pulsavam sob sua pele, mas finalmente pegou seu caderno e assim que a caneta tocou o papel, as palavras saíram.

flutuo na quietude...

a negra vida antes da vida.

em algum lugar, um coração bate e me conforta; e eu durmo no doce e promissor enigma do tempo.


mas o silêncio e as sirenes me envolvem com seus braços,

sussurros de facas e agulhas penetram minha pele;

e, no final,

nada permanece, exceto os ecos, de uma jovem alma caindo sozinha no ventre do dia.

Tessa olhou para as palavras, riscou algumas, arrumou algumas linhas e a sensação de escrever foi boa. Era bom tirar as imagens duras da cabeça.

Mas mesmo aquilo não fazia a dor ir embora.

Ela colocou o caderno de lado e pegou o diário. Olhou para ele.

Ok. Então sua mãe mudou de ideia e teve um bebê. Ótimo. Maravi lhoso. Mas ela não queria dar à luz, esse era o ponto, e Tessa não conseguia lidar com o pensamento de ler mais uma palavra sobre o quanto sua mãe odiou a ideia de tê-la em sua vida.

Ela mirou a lata de lixo do outro lado do quarto e lançou o diário nela, onde ele rebateu e caiu no fundo com uma pancada forte e nervosa.

Então ela pegou a navalha que mantinha escondida na bolsa. Fazia muito tempo que ela não se cortava, mas sempre parecia ajudar. Pelo menos um pouco.

Ela puxou a manga, revelando a fileira de cicatrizes finas de uns cinco centímetros em seu antebraço. Ela colocou a lâmina contra o braço, logo abaixo da cicatriz mais baixa.

Olhou para elas.

Ela sabia que se cortar era só uma maneira de trocar uma dor por outra, é claro que ela sabia disso, mas pelo menos tiraria a cabeça dela do diário, pelo menos isso era algo que ela poderia fazer.

Então ela fez.


87

– Patrick – minha mãe disse –, você tem de sair para pegar seu voo.

Nos últimos poucos minutos enquanto eu pensava sobre Christie, eu havia sido capaz de tirar o caso da minha cabeça, mas quando minha mãe disse aquelas palavras, tudo voltou: as vozes sussurrantes, o julgamento de Basque, todo o sangue e todos os corpos.

– Patrick – ela disse novamente.

– Eu sei.

Meu voo partiria em menos de uma hora.

Fiz uma ligação para a United Airlines mas descobri que todos os voos pelo resto do dia já estavam lotados. Mesmo com minha autorização do FBI eles não conseguiriam me arrumar um assento.

Minha mãe me observava quando desliguei o telefone.

– Tessa precisa de mim aqui – eu disse. – Não vou deixá-la.

– Eu cuidarei dela. Pode ser melhor, considerando... Só quero dizer que como sou mulher, ela pode se sentir mais confortável...

– Eu entendo, mas...

– Está tudo bem – era a voz de Tessa, no começo da escada. – Você pode ir, Patrick. Eu estou bem.

Olhei e a vi parada, com um pé no primeiro degrau e o outro no chão.

– Tessa, você está bem?

Ela acenou com a cabeça.

– Ter lhe dado o diário... eu pensei que ajudaria.

– Não é isso. Não é você. É a mamãe.

Mesmo entendendo de onde isso estava vindo, doía ouvi-la dizer aquelas palavras.

– Sinto muito que tudo isso tenha acontecido.

– Não é sua culpa – ela cutucou o tapete com o pé por um momento, então me olhou novamente. – Esse assassino, o cara do julgamento, você me disse que ele fez coisas terríveis com as pessoas, certo? Com mulheres?

Lembrei-me da conversa que havia tido com ela na sexta de manhã.

– Sim.

– E que ele fez você se questionar sobre a quantidade de maldade que somos capazes de fazer uns com os outros. E que isso te assustava – imaginei se as descrições explícitas de abortos que ela havia feito 20 minutos antes não estavam afetando a intensidade emocional que eu ouvia em cada uma de suas palavras.

– Sim.

– Então não o deixe machucar nenhuma outra mulher – ela disse.

– Não se preocupe comigo. Vou ficar bem aqui com Martha e os dois policiais lá fora que espertamente trocaram de carro para ficarem disfarçados.

Ótimo.

– Você tem certeza? Porque...

– Vai logo, antes que você perca seu voo.

Ela havia me convencido. Beijei-a na testa e disse a ela que voltaria assim que pudesse, por volta das 18h amanhã, a menos que as coisas não saíssem como planejadas, e que eu a amava.

– Eu também – ela disse suavemente.

Então, agradeci minha mãe por deixar Tessa ficar com ela, ela disse que não era para eu me preocupar, e então peguei minha mala e a bolsa do computador, entrei no meu carro e dirigi pelo dia cinzento de Colorado até o aeroporto.

Justo quando os primeiros flocos de neve começaram a cair.


15h48


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Foi isso que Amy Lynn conseguiu desde que postara o artigo três horas mais cedo.

Ela estava quase tonta.

Toda a ideia de um assassino baseando seus crimes em um livro antigo deu a ela o enredo perfeito para uma série de artigos on-line e para o livro de crime verídico que ela já havia começado a rascunhar. E ter inventado a alcunha “O Assassino do Quarto Dia” não foi menos que brilhante.

Os canais de notícias da TV a cabo haviam gostado da ideia, e toda a região metropolitana de Denver estava ansiosa pelo que um âncora havia chamado de “a próxima saga perturbadora de maldade inimaginável”.

E Amy Lynn adorava cada minuto daquilo.

Desde que Ari ligou, ela fez o que fazia de melhor: bisbilhotar e bus car fatos sobre os quais não deveria saber nada.

E se ela descobrisse um pouco mais sobre a história de fundo de algumas das vítimas, poderia estar com o segundo artigo pronto para postar amanhã de manhã.

Ela estava on-line, reavaliando os horários dos assassinatos, quando seu telefone vibrou. Reggie.

– Oi, querido – ela disse, fazendo o papel da esposa amorosa.

– Foi você, não foi? – sua voz era sombria e acusatória. – Você postou o artigo? Diga a verdade.

– Que artigo?

– Aquele, da internet, sobre o qual todo mundo está falando. Sobre os homicídios.

– Claro que não. Não. Rhodes me disse para não escrever sobre os assassinatos – e ela descobriu que não era difícil dizer as palavras. Depois que ela encontrasse uma editora, ela explicaria tudo para Reggie. Ajeitaria as coisas. Mas, por enquanto, ela precisava de um certo espaço. – Além do mais, tenho andado ocupada com esse artigo sobre beisebol – ela havia entregado aquilo ontem, mas parecia uma coisa razoável a se dizer.

Silêncio.

– Eu juro, Reggie.

Ainda nenhuma resposta.

– Eu não mentiria para você. Você sabe disso.

Finalmente, ele suspirou suavemente.

– Ok, você está certa. É que eu não quero você envolvida com nada disso.

– Eu sei.

– Você sabe o quanto eu a amo. O quanto eu quero protegê-la.

Meu Deus.

– Eu sei.

– É que eu fico pensando que eu que deveria estar protegendo você e Jayson, em vez de alguns federais – ele não se importou em disfarçar seu desprezo pelo FBI. E, então, começou novamente a tentar convencê-la de que ela não precisava ficar em custódia de proteção. – Eu poderia tirar alguns dias de folga. Eu posso cuidar de você...

– Eu sei que você pode.

– Que tal isso: vou tirar folga do trabalho amanhã. Vamos todos para casa. Passaremos o dia juntos como uma família.

Ela refletiu sobre sua proposta e ficou surpresa em estar realmente considerando aquilo.

Sim, ela havia gostado da privacidade de trabalhar sozinha no esconderijo hoje, mas amanhã ela provavelmente precisaria sair, seguir algumas pistas, fazer algumas entrevistas...

– Reggie, acho que seria ótimo estar com você, mas não quero que sejamos incomodados por todos esses policiais e agentes nos seguindo por aí...

– Posso dar um jeito nisso.

– Tem certeza?

– Sim. É claro.

– Eu saio, contanto que seja para ficar só com você.

– Ótimo, isso é ótimo. Eu saio às 18h hoje. Posso te pegar, então.

– Não. Meu carro está aqui, lembra? Encontro com você em casa.

Uma breve pausa.

– Sim. Ok. Vai ser melhor assim. Você vai ver.

Eles se despediram e encerraram a ligação.

Então, isso pode ser exatamente o que ela precisava.

Mesmo se os federais enviassem alguns agentes para segui-la até em casa, uma vez que Reggie chegasse lá, ele poderia se livrar deles. Ela havia se certificado de que ele faria isso. E então, amanhã, quando apenas Reggie estivesse com ela, ela daria um jeito de escapar. Ele e Jayson podiam passar o dia juntos.

Ah, sim. Isso daria muito certo.

Ela ignorou Jayson choramingando no outro quarto e começou a edi tar seu próximo artigo.


88

O braço de Tessa doía.

Ela não tinha se cortado muito ultimamente e havia pressionado a lâmina um pouco forte demais. O sangue a incomodava demais e parecia que havia mais do que costumava; no final, ela teve de fazer um curativo no corte.

Mas pelo menos Patrick e Martha não souberam. Eles provavelmente ficariam bravos ou, pior, decepcionados.

E a pior coisa era que isso não tinha ajudado muito.

Não mesmo.

Meia hora atrás, após Patrick sair para o aeroporto, ela havia ido até

sua casa com Martha para pegar seus livros da escola e algumas roupas. Os policias disfarçados as seguiram por todo o caminho, sempre muito furtivamente.

Que beleza.

Por experiências passadas, ela sabia que quando Patrick depunha em um julgamento, ele era, às vezes, chamado de volta para a bancada por diversos dias seguidos, então ela não estava muito convencida de que ele chegaria em casa até segunda-feira à tarde. Ela colocou algumas mudas de roupa extras na mochila caso precisasse. Então pegou sua caixa de joias e o cubo mágico.

No caminho de volta para a casa de Martha, ela ficou feliz por sua avó adotiva não ter dado nenhum conselho bobo sobre como lidar com tudo, porque não teria ajudado. Em vez disso, Martha apenas dirigiu silenciosamente ao seu lado, e pareceu para Tessa que talvez isso fosse exatamente do que ela precisava.

Mas talvez não fosse, porque toda a coisa ruim ainda estava lá, dentro dela.

Os sentimentos retorcidos e raivosos não iam embora. De jeito nenhum.

Quando chegaram à casa de Martha, Tessa havia percebido que defi-

nitivamente precisava arrumar um jeito de parar de pensar em seu braço, em sua mãe, em seu pai, no vaso de manjericão e em tudo que havia acontecido nos últimos dias.

Escrever não parecia ajudar. Cortar-se não tinha ajudado em nada.

Ela precisava de alguma outra coisa no que pensar.

Ontem, ela havia prometido para Dora que leria a história da Caixa de Pandora essa semana.

Isso deve servir.

Ela navegou até uma versão on-line e baixou-a.

Não demorou muito para ela ler quatro versões diferentes da história de Prometeu e Pandora e, no final, ela descobriu que Dora estava certa: a história tinha mesmo um final surpreendente. Ela esperava que a última coisa a sair da caixa fosse doença, ou fome, ou morte, mas não foi.

Não, na verdade foi o contrário...

– Você precisa de alguma coisa, Tessa? – Martha perguntou pela escada.

– Não, estou bem.

Quando colocou seu laptop de lado, ela percebeu a pilha de livros olhando para ela e lembrou-se das provas que teria na manhã seguinte. Normalmente, ela ia muito bem nas provas sem precisar estudar, mas talvez isso fosse exatamente o que ela precisava fazer para se distrair.

Então, Tessa pegou seu livro de trigonometria e tentou desaparecer em meio às equações e números, mas seus pensamentos continuavam voltando para Paul, o homem que havia escrito para sua mãe e implorado para ser parte de sua vida. E quando pensou nele, ela percebeu que seu braço não era mais o que mais doía nela.


17h02


Estava começando a parecer que eu não sairia de Denver esta noite.

O voo já estava atrasado em cerca de uma hora por causa da tempestade de neve tardia descendo pelas Montanhas Rochosas, e o agente de embarque continuava afirmando que ainda iríamos decolar, mas com a quantidade de neve caindo na pista, eu tinha minhas dúvidas.

Primeiramente, enquanto eu esperava, liguei para ver como estava Tessa. Minha mãe garantiu que havia falado com ela havia apenas alguns minutos e que ela estava bem e estava lendo no quarto dela.

Então, como parecia que eu ia usar o telefone de Tessa pelo menos até amanhã à noite, se não mais, entrei na minha conta da polícia federal e sincronizei o celular dela com minha lista de contatos, para que eu tivesse acesso a todos os meus números.

Quando desliguei, vi que tinha perdido uma chamada de Cheyenne, então liguei de volta e ela me informou que havia acabado de sair da segunda reunião de Jake e que tinha sido “tão informativa e produtiva quanto a primeira”.

– Que pena que perdi. Alguma notícia sobre Bryant?

– Quando ele saiu do prédio do Denver News, Benjamin Rhodes estava com ele.

– Rhodes? Chefe de Amy Lynn?

– Sim. Eles pararam para almoçar tarde em um restaurante mexicano perto da DU e então foram para a casa de Bryant. Acabei de falar com um dos policiais que os estava seguindo. Ele me disse que ambos ainda estão lá.

Interessante.

Então Cheyenne me disse que me ligaria assim que soubesse mais, e após termos encerrado a ligação, decidi dar seguimento na investigação do dr. Bryant. Digitei seu endereço de IP que havia pegado em seu computador quando estávamos em sua casa e entrei remotamente em seu sistema.

Ele não estava conectado no momento, mas pude acessar seu histórico do navegador da internet.

E foi onde encontrei os sites pornográficos.

Mais de cem deles: todos sites de sadomasoquismo que mostravam exclusivamente homens.

Pensei em minha conversa com Bryant, a garrafa de café que ele havia coado, seu jantar com Rhodes, seu interesse em pornografia homossexual...

Então, Rhodes e Bryant...?

Tudo pontas soltas. Nada sólido. Mas o suficiente para atiçar meu interesse.

Eu estava pensando nas implicações possíveis quando o funcionário anunciou que o embarque havia começado, e que por causa do atraso, eles estavam acelerando o processo de embarque e recebendo passageiros de todos os assentos, todas as filas, para o embarque.

Então embarcamos. E eu deixei meus pensamentos passearem pelos fatos do caso.

Menos de 20 minutos depois estávamos no ar e eu estava voltando para o julgamento de Basque em Chicago.


Giovanni havia posicionado o veneno mais cedo, à tarde, e então dirigiu até a Mina de Bearcroft.

Agora, ele ligou a luz do capacete e entrou no túnel do lado oeste da montanha.

Essa entrada não aparecia em nenhum dos mapas ainda em circulação. E, embora fosse possível que alguém tivesse ouvido falar sobre ela, Giovanni acreditava que era muito mais provável, agora que Thomas Bennett, o antigo dono da mina, estava morto, que ele fosse a única pessoa viva que sabia sobre essa entrada.

Ele levou cerca de meia hora para passar pelo emaranhado de túneis e chegar até a segunda passagem mais baixa da mina.

Acendeu uma lamparina e a pendurou em um gancho em uma das vigas de madeira que suportavam o teto.

O túnel acabava a apenas alguns metros à sua direita, e ao lado dele estava a plataforma de 2m por 2m que os mineradores do século XIX usavam para descer os carrinhos de minério até o túnel nove metros abaixo. A plataforma era presa a uma corda que passava por uma polia dupla presa na viga sobre a cabeça de Giovanni. Ele havia substituído a velha corda de cânhamo por uma nova, de náilon, mês passado. A polia reduzia a força necessária para subir e descer a plataforma de maneira que uma única pessoa pudesse manuseá-la por conta própria.

Um único minerador.

Um único assassino.

Um único contador de histórias.

Ele subiu na plataforma, segurou uma ponta da corda e então soltou a alavanca na viga acima dele. Um dispositivo de freio, ao lado das polias, pressionava-se contra a corda, controlando a velocidade de descida da plataforma.

Lentamente, ele começou a descer pelo poço.

O túnel para o qual ele estava indo nunca havia sido completado quando a mina foi abandonada no começo do século XX. Ele seguia apenas por 12 metros, e tinha menos de 1,80m de altura, o que significava que, uma vez que Patrick Bowers estivesse fechado lá dentro, ele não conseguiria ficar de pé pelo resto de sua vida.

Enquanto descia, Giovanni inspecionou a linha de explosivos plásticos que ele havia instalado na parede do poço. Mesmo não tendo nenhum treino formal sobre materiais explosivos, com seus contatos profissionais, não tinha sido difícil adquirir os C-4 e aprender habilidades rudimentares suficientes para armar a explosão do poço. Ele havia treinado em outras minas abandonadas nos últimos meses e havia se tornado relativamente bom em fechar poços de minas.

Quando alcançou o fundo, amarrou a corda, sincronizou seu detonador manual com os quatro receptores sem fio presos aos C-4 e então olhou ao redor.

Meses atrás, quando ele mal havia começado a investigação nessa mina, tirando algumas peças de equipamentos de mineração enferrujados, esse túnel estava completamente vazio. Mas agora ele estava abastecido com comida suficiente e garrafas d’água para manter uma pessoa viva por 10 ou 12 semanas.

Afinal, não será um clímax nada satisfatório se o agente Bowers morrer rápido demais após ser enterrado vivo.

Se o poço de acesso estivesse localizado no meio do túnel, Giovanni teria ficado preocupado, pois o túnel inteiro podia desabar quando o poço explodisse, mas como ele ficava na ponta, e ele havia reforçado as vigas do teto, ele estava confiante de que o túnel suportaria a explosão.

Mais uma coisa para verificar.

Ele pegou o medidor Matheson.

Quando o ar se move pelo espaço, ele age como um fluido, então, usando o medidor, ele testou a dinâmica fluida computacional do nível de oxigênio vindo do fluxo de ar de uma fenda de 5cm de largura. O mecanismo levou apenas alguns momentos para fazer os cálculos.

Sim, o oxigênio seria suficiente. Bowers sobreviveria até que morresse de fome ou ficasse louco.

No começo de seu planejamento, Giovanni havia decidido que seria mais aterrorizante para Bowers ver seu túmulo por conta própria, procurar nas paredes, no teto e no chão por alguma possível saída, mas não encontrar nenhuma. E daí, sua luz lentamente se apagaria. Morrer lentamente enquanto seu pequeno mundo era engolido pela escuridão para sempre. Então, quando chegasse a hora, Giovanni deixaria seu prisioneiro ter uma lanterna.

Seria um final muito melhor.

Giovanni desligou sua luz e deixou a escuridão densa e viva tomar conta dele. Ele abriu e fechou os olhos. Não havia diferença.

É assim que seria para Bowers no final.

Ele ouviu as batidas do seu coração e o som estável e constante de sua respiração.

Finalmente, luz acesa novamente, ele verificou seu relógio.

Ele ainda tinha 45 minutos de estrada até Denver.

Amanhã, antes de cuidar de Bowers, ele iria colocar duas pessoas em sua unidade de armazenagem e precisava ter certeza de que todos os preparativos estavam no lugar para a estadia deles. Ele deu uma última olhada no túnel onde Bowers iria morrer no clímax de sua história; então Giovanni deixou a Mina de Bearcroft e dirigiu até Denver debaixo da suave neve que caía.


89

Apesar de pensar em milhares de coisas que eu preferia estar fazendo, passei o voo para Chicago digitando meu relatório sobre o incidente no tribunal na sexta-feira para a diretora-assistente-executiva Marga-ret Wellington, detalhando as circunstâncias que envolviam a morte de Grant Sikora.

Quando chegamos ao O’Hare, levei um momento para enviá-lo por e-mail para ela antes de sair do aeroporto.

Com o meu e-mail aberto, percebi que não havia nenhuma mensagem de Calvin. Mas tinha uma de Angela Knight, minha amiga da divisão de crimes cibernéticos do FBI.

Pat,


Sobre as ligações para a emergência.

Não conseguimos rastrear nenhuma delas. Nada em relação à ligação para seu telefone fixo também. Seja quem as fez, sabia como encobrir seus rastros. Nada de mais também no espectrógrafo das gravações, mas posso dizer que é a mesma pessoa nas duas chamadas.

O ruído de fundo na primeira chamada é o barulho interno do escritório de expedição. O som na segunda gravação é chuva caindo no para-brisa de um carro. E não, não sei dizer qual a marca e o ano, mas estou trabalhando nisso.

É isso aí. Mais tarde mando mais informações. Tudo de bom.

-AK

Então, Cowler estava certo sobre os ruídos de fundo da primeira gravação, e mesmo que a chuva no segundo áudio não provasse que John estava em Chicago quando fez a ligação, como uma tempestade estava assolando a cidade naquela manhã, colaborava bastante com a hipótese de que ele estava lá.

Verifiquei minha caixa de mensagens de voz.

Nada.

Então peguei minhas malas, chamei um táxi e fui para meu hotel.


Reggie estava muitas horas atrasado ao chegar em casa do trabalho, mas, quando finalmente chegou, Amy Lynn o recebeu com um beijo, disse a ele o quanto era bom vê-lo e apontou pela janela para a dupla de agentes sentada no carro parado no meio-fio.

– Mande aqueles caras embora. Vou ficar segura com você. Você pode me proteger.

– Tudo bem – Reggie disse galantemente. – Vou cuidar deles.

E saiu.

Sim, Amy Lynn passaria a noite rindo das piadas de Reggie, cor respondendo a seu toque, agradando-o, para que amanhã, quando ela precisasse de um tempo para ela, ele estivesse mais confiante, menos cauteloso, e seria mais fácil para ela escapar.

O dr. Bryant, o professor de jornalismo que havia ensinado tanto para ela sobre como usar pessoas para conseguir uma grande história, ficaria orgulhoso de seu método.

Alguns instantes depois, Reggie retornou e sorriu.

– Tudo resolvido.

Ela deu um sorriso malicioso.

– Agora, somos só nós dois.

– E Jayson.

– Claro – ela corrigiu. – E Jayson.

– Mas podemos colocá-lo para dormir cedo.

– Perfeito.

Ela pegou a mão de Reggie.

Sim, essa noite ela seria dele. E então amanhã ela seria livre.


90

Hyatt Regency Hotel

Chicago, Illinois

22h10, Fuso Horário Central americano

Levei alguns minutos para descarregar minhas coisas e, então, como meu corpo ainda estava no fuso horário de Denver e eu não estava pronto para dormir, decidi gastar algum tempo no caso. Coloquei meu laptop na mesa e, para dar espaço para minhas anotações, comecei a tirar o bloco de notas, as diretrizes do hotel, guias turísticos locais, quando reparei na Bíblia ao lado do telefone do quarto.

Fiz uma pausa.

E lembrei-me.

Na conclusão da minha conversa por vídeo com Richard Basque hoje mais cedo, ele havia feito referência a uma passagem bíblica, que eu não havia tido tempo para ler.

Pensei que me lembrava da referência, mas queria confirmar se estava certo, então acessei o arquivo do vídeo de nossa conversa e assisti aos segundos finais.

“Vou me arriscar. Adeus, Richard”, eu havia dito.

“Estarei rezando por você. Lembre-se, Êxodo capítulo 1, versículos de

15 a 21. Lembre-se...”

E foi quando desliguei.

Folheei a Bíblia até chegar ao primeiro capítulo do Êxodo.

A história era sobre o nascimento de Moisés, e eu a reconheci dos meus dias de infância, quando minha mãe me levava à igreja.

Na história, os hebreus estavam vivendo no Egito onde o rei do lugar, o faraó, ficou preocupado com o quão numerosa essa população estava ficando. Temendo que eles fossem se aliar a seus inimigos em uma guerra, ele ordenou que as parteiras hebreias matassem todos os meninos nascidos das mulheres hebreias.

Então cheguei aos versos 17 até 21:

Mas as parteiras temiam a Deus e não fizeram como o rei do Egito as comandou, mas salvaram os filhos homens.

E o rei do Egito chamou as parteiras e disse a elas: – Por que fizeram isso, salvaram os filhos homens?

E as parteiras disseram para o faraó: – Porque as mulheres hebreias não são somo as mulheres egípcias; pois são saudáveis e dão à luz antes das parteiras chegarem até elas.

Portanto, Deus lidou bem com as parteiras: e o povo se multiplicou, e se fortaleceu muito.

O verso seguinte reiterava que, como as parteiras haviam temido a Deus, ele as abençoou e deu a elas famílias próprias.

Olhei para os versos por alguns momentos, pensando na história. A mensagem da passagem parecia clara para mim: as parteiras haviam infringido a lei e então mentido para proteger vidas inocentes, e, por conta disso, Deus as abençoou.

Eu tinha de digerir aquilo.

Li e reli os versos e então comecei a folhear a Bíblia, lembrando de outras histórias, outros exemplos do mesmo princípio de que proteger os inocentes é mais importante do que dizer a verdade.

Raabe mentiu para proteger os espiões hebreus e foi honrada por Deus por sua escolha.

Jônatas mentiu para o pai sobre a localização de Davi para salvá-lo de ser morto.

Até os discípulos de Jesus não contaram às autoridades “a verdade, toda a verdade e nada além da verdade” sobre seu paradeiro porque eles sabiam que isso significaria sua morte certa. O único que contou toda a verdade sobre sua localização foi Judas, o traidor mais famoso do mundo.

Na verdade, enquanto eu folheava a Bíblia e revisava as histórias com as quais eu estava familiarizado, não consegui achar um único exemplo em que Deus ficasse descontente com alguém que mentiu para proteger uma vida inocente.

Eu sempre havia acreditado que Deus valorizava a verdade. Eu nunca havia duvidado disso.

Mas parecia que ele valorizava algo mais ainda.

Durante a entrevista, Basque havia me pedido para mentir sobre meu ataque contra ele, então me disse para lembrar-me desses versos bíblicos...

Um pensamento.

Um pensamento chocante: talvez Basque houvesse encontrado o Senhor, afinal.

Eu mal podia acreditar que estava considerando essa possibilidade.

Mas e se ela fosse verdadeira? Talvez Richard Basque tenha percebido que se eu confessasse o ataque, ele muito possivelmente poderia ser solto.

E, apesar de suas novas convicções espirituais, ele podia ser tomado por seus velhos hábitos, seus velhos apetites. Talvez ele soubesse que para a justiça ser feita, ele precisava continuar encarcerado...

Pare com isso, Pat. Muita especulação. Muitos “se” e “talvez”. Não é assim que você trabalha. Mantenha-se nos fatos. Fique com o que você sabe.

Não, os motivos de Basque não estavam em discussão aqui; meu depoimento estava.

As parteiras mentiram para proteger vidas inocentes.

Isso que importava para elas, mais do que todo o resto.

E era isso que importava para mim também.

Tudo bem, então.

Eu sabia o que iria dizer quando tomasse a bancada de manhã.


91

Segunda-feira, 19 de maio

6h54, Fuso Horário Central americano

Eu estava guardando meu laptop na bolsa, me aprontando para me dirigir ao saguão para tomar café da manhã quando ouvi meu telefone tocando.

– Alô?

– Desculpe-me se o acordei, garoto.

– Calvin! Por onde você esteve? – exasperação e raiva ficaram evidentes na minha voz. – Tentei entrar em contato com você o fim de semana todo.

– Sim, e eu sinto muito por isso. Andei um pouco ocupado. Me atolei em meu trabalho, infelizmente. Mas descobri algo que pode afetar seu depoimento hoje – ele tomou fôlego. – Sem dúvida você fez a ligação com o Decamerão de Boccaccio antes da revelação da mídia sobre o caso?

– Sim – imaginei se Calvin não havia descoberto a ligação antes até de mim. – Mas como você...

– Como você o está chamando? Não de “Assassino do Quarto Dia”, espero.

– De John.

Calvin ficou quieto por um momento.

– Sim, isso é mais apropriado. – Então ele acrescentou: – Patrick, eu acredito que tenha feito isso antes.

Deixei-me cair na cama.

– Você tem evidências de que ele tenha cometido homicídios anteriormente?

– Sim, reencenando outras histórias. Especificamente, “O Conto do Magistrado”, na Inglaterra, em maio passado. A história é do livro Os Contos da Cantuária. Como você sabe, mais de 20% das histórias em Os Contos da Cantuária são baseadas no...

– Sim, sim – eu disse. – No Decamerão.

– Precisamente. Bem, nas linhas 428 a 437 do “Conto do Magistrado”, diversas pessoas são esfaqueadas e então cortadas em pedaços enquanto estão sentadas à mesa. Acredito que esse homem, John, reencenou esse crime e matou quatro pessoas ano passado, dia 17 de maio, em um casamento na Cantuária, e tenho certeza de que a cidade onde aconteceu o crime não foi escolhida aleatoriamente.

– Não – eu disse entorpecido, tentando registrar tudo aquilo. – Tenho certeza de que não foi.

– Mais tarde na história, a garganta de um homem é cortada e a faca com sangue é deixada na cama de sua amante. E esse mesmo crime ocorreu no dia seguinte, 18 de maio, em Gloucester.

– Como você descobriu isso?

– Pesquisa – ele disse com simplicidade. – Mas tem mais dois. Na parte seguinte do conto, um homem é morto por mentir, talvez para Deus; o contexto deixa isso em aberto para interpretação, e ele cai no chão com tanta força que seus olhos saltam das órbitas. Após remover os olhos do dr. Roland Smith em 19 de maio – ele acrescentou som-briamente –, John deixou-o viver. O professor cometeu suicídio uma semana depois. Na época de sua morte, ele era o maior especialista em Geoffrey Chaucer da Inglaterra.

Sentei-me aturdido em silêncio. As implicações do que Calvin estava dizendo eram desconcertantes.

– E, por último, nas linhas 687 e 688, um falso cavaleiro é morto. E em 20 de maio, um homem chamado Byron Night16. foi assassinado em Londres, a cidade natal de Chaucer. Esse foi mais difícil de ligar, mas...

– A progressão da série de crimes e o horário do assassinato teriam feito com que o crime fosse coincidência demais.

– Na mosca.

– Inacreditável.

Quando Calvin falou dessa última morte, lembrei-me de que ontem, imediatamente antes de encerrar sua ligação para mim, John havia dito que o anoitecer chegaria hoje, “assim como aconteceu em Londres”.

É ele, Pat. Ele estava ligando os pontos para você.

Poderia ter havido mais ondas de crimes? Mais assassinatos sobre os quais não sabíamos, talvez baseados nos outros autores que tiraram material de Boccaccio: Tennyson, Longfellow, Shakespeare, Faulkner... Agora, eu não tinha condições de pensar naquilo. Era muito aterrorizante.

– Então, até agora – eu disse – ninguém nunca ligou os crimes da Inglaterra porque cada um deles era muito diferente.

– Sim. Modus operandi, padrão, causa de morte, tudo diferente, e também não havia nenhuma ligação de evidências entre as vítimas ou motivos dos crimes.

– Cegueira de ligação.

– Exatamente.

Apesar de as informações de Calvin serem relevantes para os assassi natos no Colorado, ele havia começado a conversa me dizendo que sua pesquisa tinha descoberto algo importante para meu depoimento.

– Calvin, há um minuto você disse que isso tinha algo a ver com o julgamento de hoje. O que você quis dizer com isso?

– Eu não acredito mais que Richard Basque seja culpado pelos crimes pelos quais ele está sendo julgado.

Encontrei-me olhando para o chão em completo choque.

– Do que você está falando?

– Acredito que John tenha sido responsável por pelo menos quatro dos assassinatos, possivelmente mais. Não posso falar todos os meus motivos no momento. Lembra das discrepâncias no DNA que os estudantes da professora Lebreau da Michigan State encontraram e que precipitaram o novo julgamento do sr. Basque?

Antecipei o que ele estava prestes a falar.

– Você tá brincando.

– Não, eu acredito que seja o DNA do homem a quem você se refere como John.

– Você tem alguma prova?

– Ainda estou no processo de coleta.

Minha mente percorreu todo o caso, da frente para trás. Procurando, analisando. Em um momento, tudo parecia fazer sentido, no momento seguinte, nada fazia.

Se John, em vez de Basque, houvesse cometido os crimes 13 anos atrás, isso explicaria as discrepâncias no DNA, assim como os jornais no rancho: John não estaria acompanhando os crimes de Basque, mas sim celebrando os seus próprios.

Também explicaria o atentado contra a vida de Basque pois, se Richard Basque estivesse morto, o caso provavelmente seria esquecido e John nunca viraria um suspeito.

Tentei reunir meus pensamentos em torno de tudo que Calvin havia acabado de me dizer.

– Onde você está?

– Denver.

Esfreguei minha testa.

– O quê?

– Eu acho que talvez saiba quem é John. Eu vou...

Uma rajada de adrenalina.

– Quem?

– Primeiro, preciso tentar provar para mim mesmo que estou errado.

– Você tem de me dizer – minha voz havia se tornado urgente. Intensa.

– Desculpe-me, Patrick, mas temo que eu não tenha mais confiança em nosso sistema de justiça como costumava ter. Francamente...

– Não, Calvin, espere. Vou voltar hoje mais tarde. Espere por mim.

Você precisa...

– Tenho esperança de que esse caso esteja resolvido até lá.

– Escute...

Ele desligou.

Imediatamente digitei o número da divisão de crimes cibernéticos para que eles rastreassem a ligação, mesmo já imaginando que Calvin seria cuidadoso o suficiente para não nos permitir encontrá-lo.

Mas eles o acharam, ou pelo menos o local do telefone que ele havia usado.

A ligação havia sido feita da central de polícia no centro de Denver.


92

Liguei para Kurt e contei a ele o que estava acontecendo.

– Calvin está lá agora, na central. Ele acabou de me ligar de um dos seus telefones.

– Calma. Já volto – enquanto eu esperava, pensei no que Calvin havia me dito: uma das vítimas na Inglaterra tinha sido o maior especialista do país em Chaucer.

John disse que estava atualizando a história de Boccaccio para nossa cultura...

Uma ideia.

Abri meu laptop, fui até meus arquivos de mídia. Então, enquanto Kurt falava em outra linha com os policiais do balcão da recepção da central de polícia, cliquei no vídeo que eu havia feito do interior da casa do rancho de Elwin Daniels.

Um reprodutor de mídia apareceu em minha tela.

No telefone, ouvi Kurt designando policiais para cada uma das saídas do prédio. Finalmente, ele me disse:

– O que você quer que façamos se encontrarmos o dr. Werjonic?

– Detenha-o para interrogatório – eu estava arrastando o cursor pelo vídeo. Sabia o que estava procurando; deveria estar em algum lugar no meio da filmagem. – Tenho motivos para acreditar que Calvin tenha intenções criminosas.

Um momento de hesitação.

– Você tem certeza disso?

Mesmo Calvin não tendo feito nenhuma ameaça específica ao tele fone, eu sabia no que isso acarretaria.

– Acredito que a vida de um homem possa estar em perigo.

Cheguei até a parte da filmagem no banheiro.

– Tudo bem – Kurt disse –, estou confiando em você nessa, Pat; mas eu não acredito que você está me dizendo para deter o dr. Calvin Werjonic.

O armário de remédios.

A bancada ao lado da pia.

Pressionei “pause”. Aumentei a imagem o máximo que pude e encon trei o que estava procurando: marcas pontilhadas minúsculas, quase indistinguíveis, nos quatro tubos de pasta de dentes.

– Kurt, mande alguns policiais para as casas do dr. Adrian Bryant e de Benjamin Rhodes imediatamente. Para a casa de Bryant primeiro.

– Você acha que um deles pode ser o assassino?

– Não, acho que eles podem ser as próximas duas vítimas.

– O quê? – ele exclamou.

– Depois eu explico – me senti inútil estando em Chicago quando tudo isso estava acontecendo em Denver. – Mas se você encontrar os dois, leve-os para o hospital imediatamente. Acho que eles foram envenenados. John colocou a bufotoxina na pasta de dentes deles.

– Você não está fazendo sentido nenhum, Pat.

– Só faça, Kurt. Vai – ele me disse que ligaria de volta assim que soubesse de algo e lembrei a ele para me ligar no telefone de Tessa. Assim que desliguei, reparei na hora: 7h14.

Se eu quisesse chegar ao tribunal antes de os manifestantes e jornalistas cercarem o lugar, precisava ir logo.

Peguei minhas coisas e me certifiquei de estar com o pingente de São Francisco de Assis de Cheyenne no bolso, então saí do hotel, chamei um táxi e fui até o tribunal para que pudesse cometer perjúrio.


93

Reggie havia acabado de entrar no banheiro para seu banho matinal quando Amy Lynn Greer recebeu a mensagem de texto em seu Blackberry. A pessoa que havia mandado afirmava ter informações internas sobre o “Assassino do Quarto Dia” e incluiu um número de telefone para ela ligar.

O que ela prontamente fez.

– Eu trabalho para o FBI – um homem disse a ela em uma voz apressada e sussurrada. – Gostaria de discutir uma oportunidade com você.

– Que tipo de...

– Eu tenho acesso a arquivos da polícia. Eu posso te ajudar se você me ajudar. Você está interessada em discutir esse assunto?

Ah, sim. Isso era ótimo.

– Sim, é claro.

– Vou te mandar um endereço via e-mail. Venha sozinha. Nos encontramos ao meio-dia. Não se atrase. E não poste nenhum outro artigo até que tenhamos conversado pessoalmente.

– Espere, como vou saber se você realmente é do FBI?

– Você vai ter de confiar em mim.

É claro que ela não confiava nele; ela não confiava em ninguém. Mas isso não queria dizer que ela não podia usá-lo.

– Estarei lá.

E então ele desligou.

Ela ouviu o chuveiro ser ligado. Reggie não sairia em pelo menos 10 minutos.

Essa era a chance dela.

Jayson entrou no quarto, comendo um punhado de cereal.

– Venha aqui – ela chamou seu filho. – Você pode jogar seus joguinhos até o papai sair do banho. A mamãe precisa cuidar de umas coisas.

– Que “cosas”, mamãe?

– Só vou estar no outro quarto – ela mentiu. – Não se preocupe.

Ela colocou o filho em frente ao computador e abriu um jogo de orto grafia pré-escolar. O garoto ficaria bem jogando no computador até o pai terminar de tomar banho.

Assim que Jayson ficou completamente entretido, ela enfiou seu Blackberry e o gravador digital de voz dentro da bolsa, agarrou a chave do carro e então saiu pela porta dos fundos.


A Escola Secundária Ridgeland estava bem à frente.

Tessa odiava enfrentar o trânsito da hora do rush, por isso tinha ficado agradecida quando Martha se ofereceu para deixá-la na escola a caminho do seu clube de bridge.

Martha ainda não havia comentado sobre o diário ou sobre a carta de Paul. Mas agora, enquanto se aproximavam da escola, Tessa achou que deveria provavelmente dizer algo sobre aquilo.

– Ei, escute, sobre o que aconteceu ontem. Sabe, na sala, quando eu...

– Não precisamos conversar sobre tudo aquilo agora.

– Ok.

Elas pararam na frente da escola.

– Vai ficar tudo bem – Martha deu um tapinha na perna de Tessa.

– Sim, obrigada – mas ela não saiu do carro. – Ok, é o seguinte: eu sei que você está provavelmente pensando que eu não deveria ficar contra minha mãe, que eu deveria perdoá-la, ou coisa do tipo, mas eu não vou. Eu não posso.

Martha ficou quieta por um momento. Finalmente, disse:

– Então você vai se machucar sempre que pensar nela.

Não era o que Tessa havia pensado que ela diria.

– Acho que sim.

– Isso é uma punição dura que você está aplicando a você mesma, não acha? Por alguma coisa sobre a qual você não tinha controle.

Isso não era o que ela havia esperado que ela diria também.

Alguém atrás delas buzinou, e Tessa finalmente saiu do carro.

– Boa sorte nas suas provas – Martha disse. – E cuide desse braço.

– Como você...

– Achei o curativo que você jogou fora ontem à noite. Estava na sua lixeira. Bem em cima do diário.

– Ah, certo... espere, como você sabe que era do meu braço?

– Eu vi suas cicatrizes, querida.

Então Martha sorriu para ela, e Tessa fechou a porta e atravessou a calçada.

Após alguns passos, ela olhou para trás para ver se Martha ainda estava lá, mas ela já tinha ido embora.

Então o sinal de cinco minutos tocou e Tessa jogou sua mochila por cima do ombro e subiu as escadas, mas sua cabeça não estava nas provas que iria fazer; em vez disso ela estava pensando sobre o diário e o curativo ensanguentado que ela havia jogado sobre ele.

E na dura sentença que ela havia dado a si mesma.

Existem muitos tipos diferentes de cicatrizes.

E ela tinha a sensação de que Martha havia visto mais do que apenas aquelas em seu braço.


94

Tribunal Criminal do Condado de
Cook Chicago, Illinois

8h27, Fuso Horário Central americano

Eu sabia que o frenesi da mídia hoje seria ainda mais intenso do que havia sido na sexta-feira, e eu realmente não queria encarar nenhum repórter, então combinei com Ralph de encontrá-lo na porta dos fundos do tribunal. E agora, quando ele abriu a porta e gesticulou na minha direção para que eu entrasse, vi que seu rosto estava inchado.

– O que aconteceu com você?

– Acontece que eu sou alérgico a uva passa – ele grunhiu.

– Você tem quase 40 anos. Como você só descobriu isso agora?

– Não me pergunte. Acho que nunca comi tantas de uma só vez antes. Agora, entre.

Me juntei a ele na parte de dentro.

– Talvez você seja alérgico a ficar careca.

– Isso não tem graça.

– Tem um pouco de graça.

– Continue, sr. Criador de Perfil, para ver o que acontece – parti em direção ao saguão principal, mas ele me direcionou pelo corredor leste.

– Eu os convenci a montar um posto de segurança secundário, para que as pessoas envolvidas com o julgamento não precisem passar pelos manifestantes. É por aqui.

– Boa ideia.

– Tem muita coisa acontecendo – ele disse. – Preciso te informar sobre algumas coisas.

– Você está falando de Calvin?

– Calvin?

– Sim – eu disse. – Conversei com ele agora de manhã. Você sabia que ele está em Denver?

Ralph parou de andar.

– Você conversou com Calvin?

– Um pouco antes de sair do hotel.

– O que ele disse?

Ralph parecia curioso, mas não era só isso, e, enquanto eu resumia minha conversa com Calvin, ele ouvia com atenção, então começou a andar novamente.

– Ele não falou mais nada? Quero dizer, Calvin.

– Não – chegamos ao posto de segurança. – Por quê? O que está havendo? Após o tiroteio da semana passada, a segurança estava ainda mais rígida do que na sexta-feira, e a maioria das pessoas estava sendo revistada. Felizmente, Ralph e eu não precisamos passar por aquilo, apesar de termos de entregar nossas armas.

– Quando eu não consegui encontrá-lo ontem – Ralph disse –, verifiquei algumas coisas. Analisei completamente os antecedentes, todos os nove – Ralph não estava olhando para mim, e tive a sensação de que ele estava propositalmente evitando o contato visual. – Incluindo registros médicos.

Eu não gostei da direção que a conversa estava tomando.

– Você descobriu algo – ele estava quieto quando pegamos nossas coisas do outro lado da máquina de raios X. – O que é?

Ralph olhou para o corredor nas duas direções, então fez sinal para eu me juntar a ele em um canto fora do caminho no fim do corredor.

– Diga-me, Ralph. O que está acontecendo?

Após estarmos sozinhos, ele disse:

– Eu acho que há um motivo para Calvin ter ficado tão interessado em ver a justiça ser feita tão imediatamente.

Meus pensamentos saltaram para a conclusão mais óbvia, mas que eu não queria que fosse verdadeira. Uma que não poderia ser verdadeira.

– Você não está dizendo...?

Ralph não respondeu. Eu esperei. Ele parecia em conflito. Dividido.

Finalmente, ele colocou uma mão pesada sobre meu ombro.

– Sim. É isso que estou dizendo.

– Não – balancei a cabeça. – Não pode ser. Ele teria me contado.

– Conversei com alguns familiares dele. Até onde posso dizer, ele não contou nem para eles.

Uma tristeza arrasadora tomou conta de mim.

– Eu preciso voltar para Denver, Ralph. Preciso encontrá-lo.

– Você precisa depor antes.

– Não, Ralph. Eu preciso...

– Você acabou de me falar que Kurt estava atrás dele – Ralph disse com firmeza. – Ele vai encontrar Calvin. Você o vê quando voltar hoje à noite, vai dar tudo certo. Agora você precisa estar aqui neste julgamento – ele deu um leve tapa em minha cabeça. – Você precisa estar aqui por inteiro.

Ele estava certo, é claro, mas eu precisava de alguns segundos para pensar nas coisas.

– Você está bem?

O pedido à beira da morte de Grant Sikora passou pela minha cabeça.

“Prometa-me que você não vai deixá-lo fazer isso de novo.”

“Eu prometo.”

– Tudo bem – eu disse a Ralph. – Estou bem. Vamos.


95

– Então, você sabe o que dizer lá em cima? – era Emilio Vandez, e o julgamento estava prestes a começar.

Pensei na história das parteiras, sobre como elas haviam mentido para proteger vidas inocentes e foram honradas por Deus por isso. E, apesar das dúvidas de Calvin sobre sua culpa, eu ainda estava convencido de que Basque fora responsável pelos assassinatos e que ele mataria novamente se fosse libertado.

– Sim – eu disse a Emilio –, acho que sei o que vou dizer.

– Certo – ele balançou meu ombro, bem-humorado. – Então vamos resolver isso.

Peguei o telefone de Tessa e não encontrei nenhuma mensagem de Kurt informando se haviam encontrado Calvin ou não, ou se Adrian Bryant e Benjamin Rhodes ainda estavam vivos. Então o oficial de justiça levantou-se, eu guardei o telefone e o julgamento começou.


Os procedimentos de abertura do julgamento pareciam demorar uma eternidade, mas finalmente jurei dizer a verdade, toda a verdade e nada além da verdade, e então tomei meu assento na bancada de testemunhas e analisei o tribunal.

Emilio Vandez parecia ansioso.

O juiz Craddock, incomodado.

O júri, exausto.

Richard Basque, confiante.

E Priscilla Eldridge-Gorman parecia satisfeita em estar no centro do palco novamente.

Ela passou alguns minutos revisando os procedimentos da semana anterior, tomando cuidado para não chamar muita atenção para o atentado contra a vida de seu cliente. Suspeitei que ela estivesse preocupada, pois a tentativa de assassinato poderia convencer o júri de que Basque realmente era culpado, afinal, por que Grant Sikora havia tentado matá--lo se ele era inocente?

Mas ela estava demorando mais que o necessário e, cinco minutos depois de eu ter pensado que ele devia ter protestado, Emilio finalmente o fez, dizendo que se ela não pretendia me fazer perguntas, por que me chamara de volta para a bancada?

O juiz Craddock disse para a srta. Eldridge-Gorman se apressar.

– Claro, meritíssimo – ela pegou uma pasta de arquivo.

– Apenas para lembrar aos jurados, imediatamente antes do terrível incidente de sexta-feira, eu havia perguntado ao dr. Bowers se ele agrediu meu cliente após prendê-lo 13 anos atrás no matadouro. Eu gostaria de retomar minha pergunta, mas, se o meritíssimo me permitir, gostaria que o relator da corte lesse a transcrição dos momentos finais do depoimento de sexta-feira para que o júri possa acompanhar com precisão a linha de questionamento.

O juiz Craddock acenou na direção do relator, que levou um momento para procurar em uma pilha de papel e então leu:

– Defesa: “Você quebrou a mandíbula de Richard Basque com o punho? Você o agrediu após ele estar algemado?” – ele fez uma pausa e perguntou para Priscilla: – É daqui que você quer que eu comece?

– Sim. Está bom.

O relator da corte continuou:

– Defesa: “Dr. Bowers, você está tendo problemas para se lembrar daquela noite no matadouro? Vou perguntar uma última vez. Você agrediu fisicamente Richard Devin Basque após ele estar sob sua custódia no matadouro? Juiz Craddock, por favor, ordene à testemunha que responda à pergunta”. Juiz Craddock: “Dr. Bowers, eu o aconselho a responder à pergunta da defesa. Você vai responder à pergunta da defesa?” Testemunha: “Não”. Juiz Craddock: “Não?” – o relator da corte fez uma pausa. – E então...

– Sim – Priscilla disse. – Assim está bom – ela olhou para mim. – Dr. Bowers, você respondeu não. Isso foi a resposta para minha pergunta, ou para a pergunta do honorável juiz Craddock?

Eu não havia percebido que tinha falado “não” em voz alta.

– Eu estava respondendo à movimentação de Sikora na direção da arma – eu disse –, e não à sua pergunta ou à do juiz Craddock.

Ela poderia ter rebatido, argumentando que eu deveria estar respondendo ou a ela ou ao juiz, mas ela não fez isso. Assumi que novamente ela estava evitando essa linha de questionamento para que pudesse ficar longe do que ela havia referido como “o terrível incidente”.

Em vez disso, ela abriu a pasta de papel pardo.

– Eu tenho aqui os arquivos originais do caso de 13 anos atrás em Milwaukee. Só para refrescar sua memória, dr. Bowers, aqui está o que você escreveu a respeito da prisão: “Houve confronto. Mais tarde foi descoberto que a mandíbula do suspeito foi quebrada em algum momento durante sua apreensão”. Essas são suas palavras?

– Sim, são, e...

– Verifiquei os arquivos do caso – ela me cortou, e mesmo isso me irritando, decidi deixar que ela fosse a grosseira. Eu ia esperar a minha hora.

– Sua descrição dos eventos se encaixa com a que meu cliente deu durante seu interrogatório, que ele quebrou a mandíbula quando você atirou um gancho de carne em seu rosto. Mas na preparação para seu julgamento, quando perguntei a ele sobre sua lesão, ele me disse que estava com medo de você e foi por isso que ele não disse a verdade durante o interrogatório.

Ela levou um momento para gesticular na direção de Basque.

– Meu cliente afirma que após você ter sacado sua arma e ele ter tentado fugir, você o derrubou, o algemou e então bateu nele. É claro, ele pode estar mentindo. Ele pode estar dizendo isso apenas para ser solto. Você poderia esclarecer tudo agora, e certamente o júri irá acreditar em você, agente especial Bowers, Ph.D.

Ah, ela era boa. Ela era muito boa.

A verdade, toda a verdade e nada além da verdade.

Esperei, mas a pergunta dela não veio.

E, enquanto eu esperava, lembrei-me daquela noite no matadouro, o olhar desesperado e aterrorizado no rosto de Sylvia Padilla enquanto ela morria...

Senti o pingente de Cheyenne me pressionar através do bolso da minha calça e lembrei-me de seu comentário dizendo que morrer sozinho era o pior jeito de morrer.

– Então, deixe-me voltar para minha pergunta original – Priscilla disse –, aquela que fiz a você na sexta-feira.

Lembrei-me de minha conversa com Calvin sobre a justiça. E lembrei-me das parteiras protegendo aqueles bebês.

– Você agrediu fisicamente Richard Devin Basque...

E da prisão de Basque.

E da satisfação em acertar meu punho em sua mandíbula.

– ...após ele estar sob sua custódia no matadouro?

A verdade e a justiça sempre lutaram uma contra a outra nas cortes.

Sempre.

Na sexta-feira eu havia dito a Calvin que a justiça não é feita quando a verdade é censurada.

Agora, percebia que Basque não era o único que estava sendo julgado.

Eu também estava.

Assim como meu passado. Minha consciência.

Abri minha boca para responder à pergunta de Priscilla.

E hesitei.

– Mais uma vez – Priscilla disse com petulância – esperamos por uma resposta.

Tomei uma decisão.

– Então aqui estamos... – ela começou.

– Foi isto que aconteceu – e então contei à corte a verdade sobre o que aconteceu naquela noite no matadouro.


96

Enquanto eu relatava os fatos, todos eles, eu sabia que estava assinando uma sentença de morte para a minha credibilidade, e provavelmente para minha carreira. Pior ainda: percebi que estava criando empatia por Basque entre os jurados e que aqueles sentimentos provavelmente influenciariam o veredicto.

Mas, ao contrário das parteiras ou das pessoas nas outras histórias bíblicas, no momento não estavam me pedindo para entregar pessoas inocentes para a morte certa. Só estavam me pedindo para dizer a verdade. Se Basque fosse libertado, eu lidaria com isso quando chegasse a hora.

– Eu acertei o réu na mandíbula – eu disse. – Acertei-o duas vezes após ele estar algemado, após ele estar sob custódia. Não foi o gancho de carne que quebrou sua mandíbula, foi meu punho.

O juiz Craddock se inclinou para a frente e parecia realmente interessado no julgamento. Pensei que o júri ficaria surpreso pelo que eu havia dito, mas em vez disso, a maioria deles parecia desapontado.

Priscilla sorriu.

– É tudo de que eu precisava – e, por um momento, ela me lembrou uma cobra que havia acabado de engolir um rato. – Sem mais perguntas, meritíssimo.

– A acusação quer reencaminhar?

– Sim, meritíssimo – Emilio levantou-se.

Olhei para o relógio na parede.

12h04.

Ainda tinha tempo de sobra para chegar ao O’Hare para o meu voo das 13h59, se Emilio não trouxesse outras coisas à tona.

Mas ele trouxe.

Ele se recompôs e, antes de me fazer qualquer pergunta, gastou um bom tempo distanciando minhas ações no matadouro dos crimes pelos quais Basque era acusado.

– A reação do agente Bowers apenas reflete a profunda raiva que qualquer um de nós teria sentido estando cara a cara com a cena no matadouro naquele dia – ele disse ao júri. – As evidências contam a história da culpa do sr. Basque, e é nas evidências, e somente nelas, que vocês devem basear seu veredicto.

Finalmente ele me fez algumas perguntas, e eu as respondi, mas no final suspeitei que o estrago já havia sido feito. Independentemente de quão culpado era Basque, o fato de eu tê-lo atacado e então aparentemente ter tentado encobrir tudo não sendo muito direto no meu relatório policial original seria o suficiente para descreditar meu depoimento.

E como todo advogado de defesa sabe, descreditar pelo menos uma das testemunhas da acusação, especialmente o policial que fez a captura, é suficiente para levantar dúvidas nas cabeças dos jurados. E como o nosso sistema de julgamento requer que o júri unanimemente decida se um réu é culpado além de qualquer dúvida, algumas dúvidas era tudo de que você precisava para uma absolvição.

Quando Emilio terminou, o juiz Craddock pediu um breve recesso para o almoço, eu desci da bancada de testemunhas e minha obrigação em Chicago estava oficialmente resolvida.

12h28.


Enquanto reunia minhas coisas e me preparava para ir embora, Emi-lio veio na minha direção.

– Bem – ele disse –, foi um pouco esburacado, mas acho que vai dar certo – ele estava sendo otimista em relação ao que havia acabado de acontecer, dava para perceber. – E eu não acho que você precise se preocupar sobre Basque dar queixa. A prescrição em Wisconsin para agressão física já...

– Expirou. Eu sei. Não é bem isso que me preocupa – reparei que Richard Basque estava me observando, balançando a cabeça lentamente como uma reprimenda por eu ter dito a verdade.

E então ele falou comigo:

– Ninguém está além da redenção, agente Bowers.

A velha e familiar raiva se agitou dentro de mim, procurando uma opor tunidade de escapar. Não respondi, apenas me virei antes que me rendesse aos meus impulsos e o agredisse assim como havia feito na noite em que o prendi.

Ele não disse mais nada.

Por que ele pediu para você mentir?

Eu ainda não fazia ideia.

Emilio estava observando a srta. Eldridge-Gorman, que conversava amigavelmente com sua equipe de advogados.

– No entanto – ele disse –, é fato que as coisas ficaram um pouco mais complicadas.

Pensei no peso que estive carregando por todos esses anos, o poder súbito que Basque havia exercido sobre mim por saber meu segredo. Agora, não havia segredo.

– Não – eu disse para Emilio. – As coisas eram complicadas. Elas acabaram de ficar muito mais simples.

Então ele se afastou e olhei no meu relógio.

12h32.

Meu voo partiria em menos de 90 minutos e eu ainda tinha um tra jeto de 40 minutos até o Aeroporto O’Hare. Ia ser apertado.

A caminho do saguão, liguei para Kurt, perguntei a ele sobre Calvin e ele me disse bruscamente que me avisaria se descobrisse qualquer coisa e que eu não precisava ficar ligando para incomodá-lo sobre aquilo. Ok?

Não tinha certeza de como encarar seu tom afiado, e por um momento nenhum de nós falou, então eu disse:

– Kurt, o que foi? O que acontece?

– É, é a... – Kurt era um homem durão, mas eu conseguia ouvir a derrota se arrastando para sua voz. Seja lá o que o estava incomodando,

era algo grande. – É a Cheryl – ele disse finalmente.

Senti um ímpeto de preocupação e parei ao lado da porta.

– O que aconteceu?

Silêncio.

– Ela está bem? – eu disse. – Aconteceu alguma coisa com...

– Ela me deixou.

As palavras bateram em mim. Me deixaram procurando o que dizer.

– Kurt, eu... eu sinto muito.

– Ela foi para a casa da irmã dela em Breckenridge – parecia que ele queria falar mais, mas parou por aí.

Eu queria encorajá-lo, dizer a ele que tudo ia ficar bem, mas eu sabia por quanto tempo ele e Cheryl haviam lutado para fazer as coisas darem certo, e nada é fácil de consertar quando chegam nesse ponto. Finalmente, perguntei a ele se havia algo, qualquer coisa, que eu pudesse fazer.

– Preciso de um tempo – ele disse. – Não estou querendo te deixar na mão, mas preciso ir para lá, talvez tirar uns dois dias, ver se consigo salvar isso tudo. Eu não posso deixar tudo...

– Vá. Ficaremos bem. Vamos pegar John. E se você precisar de qualquer coisa, me ligue. Ok?

Ele me disse que ligaria.

– O sinal de celular lá em cima das montanhas é terrível, mas sim, eu te ligo – encerramos a ligação e fiquei desejando poder ajudar mais, mas como não havia voo direto, eu não pousaria em Denver até quase 18h.

Talvez Cheyenne pudesse falar com Kurt antes que ele partisse. Decidi ligar para ela, mas primeiro eu precisava pegar um táxi, então, enquanto eu seguia para o posto de segurança para pegar minha SIG e minha faca, liguei para um táxi e combinei de encontrá-lo a duas quadras do tribunal. Depois disquei o número de Cheyenne.

– Pat – ela atendeu. – Isso é estranho, eu estava pegando o celular para te ligar.

– Você soube sobre Kurt e Cheryl?

Um breve silêncio.

– Sim – ela disse. – Odeio que isso esteja acontecendo.

– Pensei se você não poderia passar lá para vê-lo antes que ele vá embora.

– Acabamos de conversar no corredor.

O silêncio se espalhou entre nós. Ficou claro que nenhum de nós sabia o que dizer.

Finalmente, Cheyenne tomou um pequeno fôlego.

– Preciso te contar: encontramos os corpos de Benjamin Rhodes e Adrian Bryant na casa de Bryant.

Algo pesado e escuro afundou dentro de mim.

– Foi a pasta de dentes, não foi?

– Sim. Eles morreram depois de esfregarem toxinas contra os dentes, assim como Simona e Pasquino fizeram na sétima história. E eles não apenas morreram. Você sabe que o 5-MeO-DMT e a bufotenina são drogas psicodélicas?

– Sim – lembrei de um trecho das anotações das pesquisas nos arquivos do caso: “Normalmente caracterizado por alucinações de insetos rastejando pela pele do sujeito”.

– Com base nas manchas de sangue na parede – sua voz estava tensa e sombria –, Bryant deve ter batido seu rosto contra ela 20 ou 30 vezes antes de morrer. Rhodes arrumou uma faca e... bem...

Ela parou por aí.

Mais mortes. Mais rostos para me assombrarem. Mais culpa pelo que eu deveria ter feito se tivesse decifrado tudo mais rápido.

– Ok, vamos...

– Espere – ela disse. – Como você sabia que eles seriam os alvos de John?

– Quando ele me ligou ontem, ele disse que o anoitecer chegaria como aconteceu em Londres. Hoje de manhã, Calvin me disse que suspeitava que John havia assassinado o maior especialista em Chaucer da Ingla-terra, em Londres, no dia 19 de maio, um ano atrás, exatamente hoje.

– O quê? Você tá brincando!

– Não, eu conto tudo mais tarde. Só estou dizendo: foi isso que me fez pensar no nosso especialista em Boccaccio, o professor Bryant. Na noite passada, entrei em seu navegador da internet e ficou bem claro qual era sua orientação sexual. Juntei isso com o compromisso de John em fazer a história de Boccaccio ser mais politicamente correta. – Cheguei até o posto de segurança, peguei minha arma e minha faca e segui para a porta de trás do tribunal. – Então, quando você me contou que Rhodes havia ido à casa de Bryant na noite passada, lembrei que eles tinham o mesmo protetor de tela.

– O mesmo protetor de tela?

– Um aquário. O ponto é: eu não acredito em coincidências.

– E a pasta de dentes? – ela perguntou.

Nossa conversa era mais rápida agora e marcada pela urgência.

– As seringas hipodérmicas e os tubos de pasta de dentes no rancho. John devia estar praticando seu método de fornecimento. Nós não pegamos a pasta de dentes da casa de Elwin para ser analisada, não é?

– Não. Não consigo imaginar uma razão para isso.

– John provavelmente estava contando com isso.

– Mas todos esses detalhes são um pouco esboçados, não são? – seu tom tinha transformado a pergunta em sua própria conclusão. – Mesmo com tudo isso, você ainda precisou confiar nos seus instintos.

Eu hesitei.

– Acho que sim. Um pouco.

Enquanto esperava pela resposta dela, pensei em Bryant e Rhodes,

fatalmente envenenando a si mesmos apenas escovando os dentes. Eu nunca mais iria olhar para um tubo de pasta de dentes do mesmo jeito.

– Mais uma coisa – ela disse. Enquanto ela falava, percebi que durante nossa conversa, pela primeira vez desde que a conheci, Cheyenne Warren soava agitada. – Eu pensei se deveria esperar até você chegar aqui mas... bem, lá vai: John deixou para você um bilhete no armário de remédios de Bryant.

Fiz uma pausa, olhei pela janela para a cerca de arame farpado circulando a Cadeia do Condado de Cook.

– Leia para mim.

Uma curta pausa, e então:

– “Agente Bowers, acho que faremos as três últimas histórias hoje à

noite, assim que você voltar para Denver. Será um grande clímax. Vejo você em breve. – John”.

Raiva. Ódio. Crescendo dentro de mim.

– Alguma notícia sobre Calvin? – minha voz era dura como ferro.

– Não – ela disse. – Volte pra cá, Pat. Nós...

– Estou a caminho.

Eu estava na porta dos fundos quando Ralph me alcançou.

Ele não parecia trazer boas notícias, apesar de eu não saber como as coisas poderiam ficar piores.

– Fale comigo enquanto caminho – eu disse quando ele correu na minha direção. – Preciso pegar meu táxi. O que foi?

Fomos para fora.

– A diretora-assistente Wellington acabou de ligar.

– Uau. As notícias voam.

– Sim, bem, ela sempre esteve no seu pé. E agora... – ele deixou sua voz se perder, mas eu podia preencher as lacunas.

– Deixe-me adivinhar. Assuntos Internos quer falar comigo? – cruzamos a West 26th Street na direção da San Francisco Avenue, onde eu havia combinado de me encontrar com o taxista.

– Bem, isso e você está dispensado de suas tarefas atuais em Denver até segunda ordem. E sua posição como professor interino em Quântico foi colocada em suspenso até uma revisão completa ser feita.

Mesmo suas palavras não sendo uma surpresa completa, elas me acertaram em cheio. Margaret havia me dito ontem que poderia fazer minha vida ficar terrível, mas desta vez eu dei uma mãozinha contando a verdade no tribunal.

– E – Ralph acrescentou – ela achou que o relatório que você enviou na noite passada não estava “adequado em âmbito e profundidade”.

– Claro que ela não achou.

Chegamos na San Francisco. Um táxi parou no meio-fio a cerca de 20

metros de distância e fomos na direção dele.

– Então é o seguinte – ele disse. – Eu ia te dar a notícia sobre a suspensão, mas infelizmente você já tinha partido para Chicago quando chequei minhas mensagens. E como o seu celular está quebrado, eu levei até às 22h para conseguir te encontrar em casa para dar a notícia.

– Obrigado, Ralph. Te devo uma.

– Muito mais que isso, na verdade.

– Certo – o taxista acenou na minha direção e abri a porta.

– Eu cuido de Margaret e do Assuntos Internos – Ralph disse para mim.

– Vou ajeitar as coisas desse lado. Trate de pegar o psicopata em Denver.

– É a minha intenção.

Entrei no táxi.

Então, duas coisas para fazer: encontrar Calvin e pegar John. E eu precisava fazer as duas coisas antes das 22h, quando eu oficialmente seria dispensado dos meus serviços pelo FBI.


Denver, Colorado

11h56, Fuso Horário das Montanhas Rochosas

Amy Lynn Greer estacionou ao lado do armazém abandonado.

O homem que havia entrado em contato com ela mais cedo tinha dado a ela o endereço, mas ela não viu nenhum outro carro. Talvez ele ainda não tivesse chegado.

Mesmo sabendo que ir até lá sozinha era correr um risco, na verdade, ela estava mais empolgada do que com medo. Valia a pena correr alguns riscos por essa história.

Ela saiu do carro.

Desde que havia deixado Reggie e Jayson em casa depois do café da manhã, ela havia passado a manhã dirigindo para locais relacionados com a onda de crimes: A Represa Cherry Creek, a central de polícia, as casas de Bennett e Nash e assim por diante. Em cada lugar, ela tirou fotos, fez anotações e ditou observações para seu gravador de voz portátil para que pudesse descrever as cenas com fidelidade em seu livro.

Mas por todo o tempo, seus pensamentos estiveram no encontro.

Em seu e-mail, seu contato havia dito a ela sobre uma abertura no canto sudoeste da cerca que rodeava o armazém e uma porta azul destrancada que levava até a área de expedição. Ela levou menos de um minuto para encontrar a parte quebrada da cerca.

Ela deslizou para dentro.

Viu a porta azul. Entrou.

Ar empoeirado e denso. Janelas altas por onde entravam grossas camadas de luz manchada.

– Olá? – sua voz soou fina e pequena no salão.

– Gostei do seu artigo – as palavras vieram de um canto sombrio à sua esquerda.

Ela não reconheceu a voz, não conseguia ver um rosto.

– Obrigada.

– Os elementos de perfil foram muito fortes, mostraram muito conhecimento.

Ela ainda não podia ver quem estava falando com ela, e agora, pela primeira vez, começou a questionar a decisão de ter vindo sozinha.

– Apareça para que eu possa ver você.

Ela ficou surpresa quando ele atendeu.

Um homem bonito, um pouco mais velho que ela, se aproximou.

Ele explicou que era um criador de perfis, mostrou sua credencial do

FBI e fez sua oferta.

Enquanto ele falava, ela podia ver o quanto eles tinham em comum e como seus objetivos eram similares. Eles passaram alguns minutos discutindo maneiras de se beneficiarem mutuamente e, então, ele explicou que mesmo a polícia não liberando nenhuma informação para o público até que pudessem entrar em contato com os familiares, o Assassino do Quarto Dia havia atacado novamente naquela manhã.

– Duas pessoas que você conhece – ele disse.

– Quem?

– Benjamin Rhodes e o dr. Adrian Bryant.

Ela sentiu uma mistura de tristeza e surpresa, mas logo foram sobrepostas por um turbilhão de empolgação quando ela percebeu sua inacreditável boa sorte: com sua ligação pessoal próxima com as vítimas, tendo trabalhado para uma e sendo ex-aluna da outra, ela era a pessoa perfeita para escrever o livro; quase que certamente a única escritora pessoal e profissionalmente qualificada.

Isso certamente garantiria um contrato.

Talvez o criador de perfis soubesse disso.

Talvez tenha sido por isso que ele a contatou.

Ela percebeu que ele ainda estava esperando que ela respondesse às notícias das duas mortes.

– Oh – ela disse. – Isso é terrível.

– Sim – ele respondeu com simplicidade. – Agora escute, você não pode mencionar que tem uma fonte no FBI até o livro sair.

– Claro que não.

– E não poste mais artigos até que eu te diga. A sincronia tem de ser perfeita.

Ela não estava muito animada com a condição, mas acabou concordando.

– Nós dois sabemos que essa é a grande história da sua vida – ele disse. A grande história da minha vida.

Sim, sim, é mesmo.

– Eu quero ver todos os contratos antes de você assiná-los.

Ela sentiu um arrepio. Estava acontecendo. As coisas finalmente esta vam dando certo para ela.

– Sim. Ok.

Então eles acertaram os detalhes: ele continuaria anônimo até o lan

çamento do livro, e então ele pediria demissão do FBI e viajaria com ela para promover o livro. Ela gostou da ideia. Ele era bonito. Quem sabe, talvez essa amizade pudesse se tornar algo mais satisfatório do que apenas um relacionamento profissional?

Ela levou um momento para devidamente se lembrar de que era “uma mulher com um casamento feliz”. E em vez de fantasiar com o belo criador de perfis, ela se permitiu um rápido devaneio pensando no dinheiro e quase certamente nos direitos cinematográficos do livro.

A franquia valeria milhões.

Sim, especialmente se o Assassino do Quarto Dia conseguisse concluir sua onda de crimes e completasse todas as 10 histórias...

– Eu fico com 55% – seu contato disse. – E meu nome na capa.

– Não.

– Discuta comigo e eu faço ser 60.

– Eu não vou...

– Tudo bem – ele se virou para ir embora.

Ela precisava dele. Não podia perdê-lo.

– Espere. Vamos dividir no meio. Cinquenta para cada. Mais créditos na capa.

Ele pareceu aceitar isso.

– Manterei contato.

– Estão me observando. Alguém pode descobrir.

– Deixe isso comigo.

– E nós não seremos os únicos a trabalhar em um manuscrito. Prometa-me que você vai me passar quaisquer informações sobre crimes posteriores assim que você souber para que eu possa continuar escrevendo e me mantenha à frente de todos.

– Prometo. Você será a primeira a saber sobre a próxima vítima.

Ele andou para dentro das sombras.

E então desapareceu.

Ela esperou por alguns minutos até que ouviu a porta do armazém se fechar, pegou seu gravador digital de voz da bolsa e verificou se tinha gravado a conversa inteira.

Ela trabalharia com o criador de perfis agora, mas, se precisasse, usaria a gravação para mantê-lo na coleira.

Sim, estava acontecendo. A grande história de sua vida.

As coisas finalmente estavam acontecendo.

Ela imediatamente mandou e-mails para três das agências literárias com as quais havia mantido contato e contou a eles sobre as qualificações de seu coautor e sobre sua ligação pessoal com as duas últimas vítimas.

Após os e-mails terem sido enviados, ela saiu do armazém para transcrever sua conversa com o criador de perfis do FBI em seu laptop.

E ela percebeu o quanto gostava da sensação de estar no controle.

Uma sensação da qual ela nunca pretendia desistir.

Independentemente do que acontecesse.


97

Tessa Ellis.

Tessa Ellis.

Tessa Bernice Ellis.

Em cada prova ela tinha de escrever seu nome. Seu primeiro e último nome. E nessa prova idiota de química, seu nome completo.

Tessa Bernice Ellis.

Sua mãe havia reclamado que o dia em que descobriu que estava grá vida tinha sido o pior dia de sua vida, e então, surpresa, surpresa, decidiu fazer um aborto.

Então ali estava Tessa: presa eternamente com o sobrenome de uma mulher que não queria ter nada a ver com ela. Que gostaria de tê-la abortado.

Ellis.

Quando pensou no nome, ocorreu a ela que não havia contado a Pan dora que tinha lido a história.

Mais tarde.

Não é grande coisa.

Concentre-se nesta prova.

Mas ao olhar para sua prova de química, seus pensamentos ficaram pesados e lentos, e apesar de as provas serem, normalmente, muito fáceis, ela não conseguia se concentrar. Seus olhos passearam até o nome na parte de cima da página.

Tessa Bernice Ellis.

Enquanto escrevia mais algumas respostas confusas, ela percebeu que pelo menos, nem que fosse a única coisa que fizesse, ela precisaria descobrir seu verdadeiro nome.

Mas sua mãe não usava sobrenomes nos diários. Então, como ela poderia descobrir o sobrenome de Paul?

Mas Tessa, ela colou cartões-postais no diário. Cartões-postais têm endereço de retorno.

Sim. Era possível...

– Dois minutos! – a professora anunciou. Tessa ainda tinha um quarto da prova para terminar.

Ela se esforçou para olhar as perguntas da prova mas ainda estava distraída pensando no diário. Ela já havia decidido que não conseguiria ler mais nada naquela coisa, quer dizer, e se sua mãe escreveu sobre o quanto ela queria fazer um aborto primeiramente?

O sinal tocou.

– Certo – a professora disse. – Soltem os lápis e coloquem as provas em minha mesa quando saírem.

Tessa se juntou à multidão de garotos indo na direção da porta, entregou sua prova incompleta e foi encontrar Dora no corredor para ver se ela podia dar uma olhada no diário depois da aula para encontrar o sobrenome de seu pai.


Concluí que o bilhete que John havia deixado na casa do dr. Bryant prometendo completar os últimos três crimes hoje à noite justificava a quebra de algumas diretrizes da FAA. Então, apesar de o regulamento proibir o uso de dispositivos móveis de comunicação em voos comerciais, passei a viagem para Denver retrabalhando o perfil geográfico usando o acesso sem fio do meu computador à rede de satélites de defesa militar através do FALCON.

Nós ainda não tínhamos notícias do padre Hughes, o padre que havia desaparecido na terça-feira. E mesmo não havendo nenhuma garantia de que ele havia sido sequestrado, considerando os horários e a progressão da onda de crimes, achei que seu desaparecimento seria coincidência demais para não ter nenhuma relação com os outros crimes, então acrescentei sua residência, a apenas dois quarteirões do Rachel’s Café, e a Igreja de São Miguel, ao perfil geográfico. Depois incluí as residências e os endereços de trabalho das duas últimas vítimas: Benjamin Rhodes e o professor Adrian Bryant, e a rota que Bryant havia feito até o prédio do Denver News.

Usando os dados atualizados, analisei a distribuição e a progressão temporal dos crimes e descobri que as rotas de locomoção das vítimas se cruzavam em quatro regiões geográficas: perto da DU, no Shopping Cherry Hills, em uma parte do centro da cidade e na vizinhança que cerca o City Park. O FALCON me disse que havia 58,4% de chance de o assassino morar ou trabalhar em uma daquelas quatro áreas.

Não era muito, mas era algo.

A maioria dos crimes ocorre na ligação de oportunidade com desejo: o infrator vê a chance de se dar bem com algo e age. Mas John era diferente. Com ele, tudo era premeditado. Tudo era planejado cuidadosamente. Na verdade, eu não consegui deixar de lado a ideia de que, até agora, nós só havíamos descoberto o que ele queria que nós descobríssemos.

Considerando tudo isso, o conselho que eu havia recebido do detetive ficcional de Poe, C. Auguste Dupin, veio à cabeça: “É essencial para o investigador entender o intelecto, o treinamento e a aptidão de seu oponente, e então, responder de acordo”.

Era isso que eu precisava fazer. Responder de acordo.

Digitei três títulos em um documento e completei com minhas ano tações sob cada um deles.

Descrição física

Homem, caucasiano, estatura média, aproximadamente 1,80m a 1,85m, atlético.

Treinamento

Dopou ou envenenou pelo menos seis pessoas. Conhece doses letais/como remover um coração humano. Treinamento médico? Antecedentes médicos? Subjugou Sebastian Taylor. Possível antecedente em artes marciais/autodefesa?

Soube como distribuir o feno e as tábuas da maneira mais eficaz para queimar o celeiro. Táticas diversionistas/treinamento com explosivos? Incendiário?

Bloqueou o rastreamento GPS dos telefones que usou para fazer suas ligações. Hacker? Experiência com comunicações/militar?

Intelecto/Aptidões

Invadiu a casa de Taylor e do dr. Bryant.

Abriu a fechadura do necrotério. Habilidoso em desativar sistemas de segurança, abrir fechaduras, localizar câmeras de segurança, invasão de domicílio.

Evitou deixar impressões digitais ou DNA. Consciente da análise forense.

Sabia a localização das câmeras de vídeo do Hospital Memorial Batista. Acesso à planta do prédio ou à segurança do hospital?

Sabia sobre a Força-Tarefa para Crimes Violentos das Montanhas Rochosas e que eu era membro.

Encontrou meu número de telefone fora da lista.

Examinando a lista, lembrei-me dos comentários de Tessa sobre os dacoits: para encontrá-los, as autoridades indianas analisaram as rotas de movimentação mais prováveis, estudaram padrões de uso da terra e compararam isso com a proximidade dos crimes para reduzir a lista de suspeitos.

Sim, reduzir minha lista de suspeitos.

Eu ainda não havia tido a chance de trabalhar na sugestão surpreen dentemente coerente de Jake de que o assassino deve ter acesso ao Banco de Dados Digital Federal, então agora eu o acessei e baixei o diretório de acesso para todos os funcionários do governo federal, estadual e local da cidade.

Denver perde apenas para Washington DC em número de funcionários federais em uma cidade americana, e acabei com uma lista enorme: 21.042 nomes.

Mas a lista encolheu exponencialmente a cada critério de busca que fui adicionando: homem, caucasiano, altura entre 1,80m e 1,85m, peso entre 79kg e 86kg. Então refinei a busca considerando antecedentes médicos ou militares, condenações prévias, treinamento forense e de combate físico, inclusão na lista de suspeitos ou endereço residencial ou comercial em uma das quatro zonas de perigo.

Eu teria aparecido na lista se fosse dois centímetros mais baixo, mas seja como fosse, fiquei com 51 nomes.

Finalmente, cruzei esses nomes com as listas de voo de entrada e saída dos aeroportos na vizinha Chicago na quinta e na sexta-feira. A resposta veio vazia, mas olhando para a lista novamente, reconheci alguns dos 51 nomes: dois funcionários da expedição, seis policiais, incluindo o oficial Jameson, o homem que havia pesquisado o dono da Mina de Bearcro?, e Lance Rietlin, o jovem residente do escritório de medicina forense que havia levado a mim e Cheyenne até o necrotério.

Lancaster Cowler havia mencionado que alguém do escritório do médico forense acessou as transcrições das ligações para a emergência. Era lá que Lance trabalhava. Ele também foi uma das três pessoas que responderam quando Cheyenne pediu socorro pelo interfone do necrotério.

Coloquei a lista nos arquivos on-line do caso e mandei uma cópia via e-mail para Cheyenne, pedindo a ela para verificar todos os nomes, especialmente Rietlin.

Então o comissário de bordo anunciou que estávamos começando nossa descida para o Aeroporto Internacional de Denver, e, quando o aviso dos cintos de segurança acendeu, fechei meu computador e me preparei para ir ao trabalho.


Nas últimas quatro horas, Giovanni havia levado um homem e uma mulher para sua unidade de autoarmazenamento contra a vontade deles. Porém, desde então, ele teve de cuidar de alguns assuntos do trabalho e só agora teve condições de voltar para ver como estavam.

Ele descobriu que ambos ainda estavam seguros. Ainda vivos.

Ótimo. Ele voltaria mais tarde, à noite, para cuidar disso.

Antes de deixar a unidade de armazenamento, certificou-se de que sua bolsa esportiva estava equipada com todos os itens necessários e verificou a temperatura do cobertor elétrico: 29 °C.

Perfeito. Ele colocou o cobertor no banco de trás do carro, colocou o saco de pano contendo suas três cascavéis restantes sobre ele, trancou a unidade de armazenamento e saiu para procurar Amy Lynn.


98

16h40

– Então? – Tessa disse.

– Calma – Dora respondeu, sua boca cheia de chiclete. – Estou procurando. – Mais cedo naquele dia, Martha havia tirado o diário da lata de lixo de Tessa, mas o devolveu a ela quando ela havia pedido ao voltar da escola.

Agora, enquanto Tessa esperava com a maior paciência possível que Dora encontrasse o sobrenome de seu pai, ela girava e desgirava os lados do cubo mágico, resolvendo-o duas vezes, mas não valia, pois estava com os olhos abertos.

Após mais cinco minutos de espera, Tessa perguntou novamente:

– E aí?

– Estou indo o mais rápido que posso, mas é difícil. Sua mãe não usava sobrenomes.

Eu já te disse isso!

– Eu sei – Tessa gemeu. – Como eu já disse, não procure muito nas coisas que ela escreveu. Mais nas outras coisas. Nas cartas. Nos postais. Nas coisas que ela colava aí.

– Estou procurando – Dora retrucou, em um tom de voz que Tessa nunca havia visto a amiga usar.

– Desculpe.

– Sim. Tá bom. É que eu estou fazendo o melhor que posso, ok?

Um momento de silêncio desconfortável arrastou-se pelo quarto. Finalmente, Tessa disse:

– Eu li sua história ontem à noite.

– Minha história?

– Aquela sobre o seu nome. A Caixa de Pandora. Eu devia ter lido antes, muito antes, eu sei. Mas ainda assim, você estava certa. Pensei que fosse terminar com algum tipo de praga ou infecção ou algo do tipo, mas não.

Dora olhou do diário para ela.

– Então, você sabe qual foi a última coisa que saiu da caixa?

– Sim – Tessa disse. – A esperança.

Dora voltou a folhear o diário novamente.

– Eu gosto como ela implora para ser libertada de lá e finalmente, quando ela o faz...

Mas Dora havia parado de folhear as páginas e estava olhando para o diário.

– O quê? – Tessa perguntou.

Sua amiga estava em silêncio.

– O que foi? – Tessa largou o cubo e se arrastou pela cama na direção dela. – O que você descobriu?

Dora respondeu entregando o diário a ela, e Tessa viu o cartão-postal colado na página:

Christie,

Achei seu endereço na internet. Ainda penso em você.

Espero que esteja bem.

Paul

O postal havia sido enviado há apenas três anos para o endereço em Nova York onde Tessa e a mãe viviam antes mesmo de conhecerem Patrick.

E incluía um endereço de retorno escrito à mão: P. Lansing, 1682 Hennepin Avenue East, Minneapolis, MN 55431.

De repente, tudo sobre seu pai parecia mais real do que nunca. Ele era uma pessoa de verdade que viveu em um endereço de verdade em uma data específica.

Seu sobrenome devia ser Lansing.

Tessa Lansing.

Tessa Lansing.

Tessa Bernice Lansing.

Ela leu o bilhete novamente. Era muito breve para dizer alguma coisa, exceto que Paul Lansing nunca havia realmente esquecido de sua mãe. Silenciosamente, meio para ela, meio para sua amiga, Tessa disse:

– Ele não diz nada sobre mim.

Dora mastigou seu chiclete por um momento, então o tirou da boca e o grudou em um pedaço de papel amassado no lixo.

– Talvez ele não saiba sobre você.

– O quê? – Tessa observou Dora empurrar a lata de lixo para longe da cama. – Como assim? Quando ela estava grávida ele escreveu para ela pedindo...

– Não, eu sei disso. Quero dizer, e se ele nem ficou sabendo que você nasceu?

– Isso não é possível.

– Por que não? – Dora perguntou.

– Não sei, é que... ele tinha de saber.

Uma breve pausa.

– Sua mãe alguma vez chegou a dizer que foi ele que foi embora?

Tessa deixou o diário escorregar e cair na almofada ao lado dela.

– Você está dizendo que minha mãe que foi, em vez dele?

Dora encolheu os ombros.

– Sim, não sei. Por que não? – ela estava desembrulhando um chiclete novo. – Quero dizer, ela estava com medo e não queria ele na vida dela. Talvez ela tenha pegado as coisas dela e ido embora para recomeçar em algum outro lugar.

Parecia plausível.

Mas também tão inacreditável!

Paul queria ajudar na sua criação. Se ele soubesse que você está viva, ele viria ficar com você, especialmente depois de mamãe ter morrido.

Mas quando Tessa pensou nisso, ela percebeu que não conseguia se lembrar de sua mãe ter dito alguma vez que foi seu pai quem tinha ido embora. Talvez tivesse só presumido que...

– Então, e agora? – Dora estava mascando chiclete de novo.

O coração disparado de Tessa fazia com que fosse difícil pensar, difícil avaliar suas opções.

– Não sei.

Talvez ela pudesse fingir que não tinha encontrado a caixa de memórias ou o diário ou as palavras de Paul em seu postal e apenas continuar sua vida como se nada tivesse acontecido.

Sim, claro. Como se fosse dar certo.

Por outro lado... Tessa olhou para o cartão-postal. O endereço.

Ela pegou a mochila, tirou dela o laptop e o abriu.

– Espere – Dora se aproximou dela. – Você não está pensando...

– Sim – Tessa disse. – Estou.

Martha não tinha internet em casa, mas um dos vizinhos tinha e Tessa conseguiu conectar na rede deles. Ela acessou um site de busca on-line e digitou o nome de Paul Lansing na caixa de texto.

Pressionou “Enter”.


99


Assim que o avião pousou, peguei meu celular.

Eu precisava entrar em contato com Cheyenne para saber sobre quaisquer pistas que ela tivesse conseguido sobre a lista dos 51 nomes. Porém eu não gostava do fato de John ter deixado um bilhete para mim na cena do crime de hoje mais cedo. Então, antes de partir para passar o resto da noite atrás dele, eu queria garantir que Tessa e minha mãe estivessem seguras.

Talvez se Cheyenne pudesse me encontrar na casa dos meus pais, eu poderia matar dois coelhos com uma cajadada só.

Disquei seu número, mas a linha estava ocupada. Então, deixei uma mensagem de voz pedindo para ela se encontrar comigo o mais breve possível. Falei o endereço e, antes de desligar, agradeci a ela pelo pingente e garanti a ela que meu depoimento tinha corrido bem.

O que era verdade, tenha ou não garantido que a justiça fosse feita.

Alguns minutos depois, quando estávamos taxiando até o portão de desembarque, o telefone vibrou e pensei que fosse Cheyenne retornando minha ligação, mas quando atendi, percebi que era o dr. Eric Bender.

– Ah – ele disse –, eu devo ter ligado para o número errado. Pensei que esse fosse o telefone da Tessa.

– Estou com ele emprestado por enquanto.

– Bom, ei, aproveitando que estou com você na linha, Pat, a razão pela qual liguei é que eu preciso fazer outra autópsia hoje à noite, de um caso não relacionado, mas Dora não está atendendo o celular. É que... eu não quero que ela fique sozinha em casa. Não com John ainda solto. Eu só... estou preocupado.

Eu entendia completamente sua preocupação.

O piloto manobrava o avião até o portão.

– Você sabe que minha esposa está fora da cidade esta semana. Bem, Dora saiu para ficar com Tessa depois da escola; eu só queria perguntar se ela poderia passar a noite hoje. Não acho que eu consiga sair daqui até 22h30, 23h. Eu posso passar lá para pegá-la se eu sair cedo...

– Não precisa. Ela vai ficar bem. Tessa está na minha mãe; as meninas podem ficar lá. Dois policiais estão vigiando a casa – o alerta do cinto de segurança se apagou. Levantei-me. Peguei minhas coisas. – Na verdade, estou indo para lá para ver como elas estão. Só uma pergunta rápida. Seu residente, Lance Rietlin, estava trabalhando com você no sábado à tarde?

– Sim. Estávamos no hospital juntos até quase 18h. Por quê?

Então ele não poderia estar no rancho. Ele não poderia ser John.

Beco sem saída.

– Só verificando todo mundo que está envolvido no caso – todos os passageiros estavam desembarcando. Me juntei ao grupo.

– Bem – ele disse –, eu aviso se meus planos de hoje à noite mudarem. E você pode pedir para Dora me dar uma ligada quando você a vir?

– Claro. Até mais tarde.

Desliguei, saí do avião, escapei do terminal.

E fui para o meu carro.


Quando Amy Lynn virou com o carro na rua, ela não conseguiu segurar um sorriso.

Desde que se encontrou com o criador de perfis do FBI e gravou sua conversa, ela havia passado algumas horas escrevendo, dirigindo até Evergreen para dar uma olhada na casa de Sebastian Taylor por conta própria, e então conversando com dois agentes literários de Nova York que estavam interessados em representá-la. Bem, ela e seu coautor.

E como ela havia sido cuidadosa em manter seu Blackberry desligado na maior parte do dia, e tinha um modelo antigo de carro sem GPS, ela havia aproveitado a liberdade de estar sozinha e sem ser seguida para todos os lugares por um policial ou um agente do FBI. Ainda assim, ela sabia que Reggie devia estar furioso por ela ter escapado dele. Era hora de ir para casa. Beijar e fazer as pazes.

Mas quando ela se aproximou da casa, viu que o carro dele não estava lá.

Hum.

Ele deve ter saído para procurá-la. Que gracinha.

Bem, uma vez que ela entrasse em casa, poderia ver se ele havia dei xado um bilhete para ela e, caso contrário, ela checaria seu correio de voz. Ela ligou seu Blackberry. Apertou o botão para abrir a garagem.

Entrou com o carro.

E então fechou a porta.


Tessa não encontrou nenhum Paul Lansing em Minneapolis, Minne-sota; então expandiu a busca e acabou encontrando 82 deles espalhados pelo país.

Ela sabia que sua mãe havia feito faculdade com seu pai, então era simples ver em cada um dos casos, ou a quantidade de tempo que o homem havia estado em seu endereço atual, ou sua data de nascimento ou as universidades que havia cursado – filtros que mostrariam quem seria seu pai.

Finalmente, após a última tentativa não ter dado certo, ela soltou um suspiro frustrado.

Dora estava arrumando o cabelo.

– Nada, então?

– Não.

– E agora?

Tessa suspirou.

– Não sei. Parece que ele não está em lugar nenhum na internet, e não é fácil apagar um histórico pessoal. Uma vez que algo vai parar na internet... você sabe.

Dora encolheu os ombros.

– Será que ele poderia ter mudado para fora do país ou algo assim?

– Talvez.

Por um momento, Dora deu um jeito de mascar seu chiclete silen ciosamente.

– Você não acha que ele, talvez, digo... você sabe.

– O quê?

– Sabe, que ele, hum... bem... que ele morreu.

Isso era algo em que Tessa não havia se permitido pensar.

– Não sei – ela disse suavemente. Pensando nisso, ela percebeu que Dora havia parado de mexer no cabelo e estava com o olhar perdido em frente ao espelho.

Ela sorriu para Tessa, mas seu olhar a entregou.

– O que foi? – Tessa perguntou.

– Estava pensando sobre ele ter morrido e aí pensei sobre... bem...

– Hannah.

– Sim.

– Sério, Dora. Você precisa parar de se culpar por tudo isso. Você não fez nada de errado.

Dora ficou quieta.

– Você mandou uma mensagem de texto. Só isso. Foi tudo o que você fez. Foi a outra menina, a babá. Foi ela que deixou a bebê sozinha... – Tessa percebeu que isso não estava ajudando, e continuar descrevendo a coisa toda provavelmente pioraria tudo. Mas antes que ela pudesse pensar em algo melhor para falar, ou considerar a possibilidade sombria de seu pai estar morto, ela ouviu a porta da frente se abrindo e Patrick chamando.

– Tessa? Dora? Estão aí, meninas?

Ela e Patrick haviam passado por tempos difíceis juntos, por muitas coisas estranhas entre padrasto e enteada. A última coisa que ela precisava agora era que ele descobrisse que ela estava procurando seu verdadeiro pai sem discutir isso com ele antes.

Ela fechou o site e então gritou na direção da escada:

– Estamos aqui em cima.


Amy Lynn entrou na cozinha e colocou a bolsa sobre a mesa.

Viu uma bolsa esportiva preta no chão, perto da geladeira.

Mas o quê...?

Os passos atrás dela interromperam seu pensamento.

– Olá, Amy Lynn – ela reconheceu a voz, virou-se e viu um homem com uma máscara de esqui preta. – Bem-vinda ao quarto dia.

Ela engasgou, não acreditava quem era, mas antes que ela pudesse dizer uma palavra, antes que ela pudesse sair do caminho, ele a acertou, com força, no rosto, e o mundo ficou escuro.


A porta para o quarto de Tessa estava entreaberta e ela podia ouvir vagamente Patrick abrindo e fechando portas no andar de baixo. Ele falou um pouco com Martha, mas um pouco baixo demais para que ela pudesse escutar. Então ele subiu os degraus da escada e bateu uma vez antes de abrir a porta.

– Ei, Tessa. Dora – seus olhos varreram o quarto. Ele entrou e olhou dentro do armário. – Vocês estão bem?

Ok, essa era uma pergunta estranha.

– Por que não estaríamos? – ela disse. Fechou o laptop. Dora sentou--se com as pernas cruzadas na cama. Batucou com o dedo ansiosamente contra um travesseiro.

– Por nada – Patrick parecia estar tentando descobrir o que diria em seguida. Ele cruzou o quarto na direção da janela. – Foi bem nas provas?

Tessa encolheu os ombros.

– Acho que sim. Mas eu posso não tirar A em química. Só para você saber.

– Bem, isso vai ser bom para você. Um pouco de variedade – ele olhava intensamente para a rua.

– Ótima maneira de me levar para a mediocridade.

– Faço tudo que posso para ajudar. Só um segundo – ele saiu do quarto. As portas no andar de cima se abriram e se fecharam, então ele voltou e falou com Dora.

– Ah, seu pai me ligou. Ele disse que precisa cuidar de algumas coisas hoje à noite e perguntou se você podia ficar aqui até amanhã.

– Ficar aqui?

– Sim. Ele queria que você ligasse para ele.

Dora parecia um pouco preocupada. Ela pegou o celular e passou por Patrick, que a observou por um segundo e então olhou de volta para Tessa.

– O que está acontecendo? – ela disse.

– Está bem. Tudo está bem – ela podia ver que ele estava se esforçando para encontrar as palavras certas antes de continuar. – Você está se sentindo melhor? Digo, depois de ontem, com o diário e tal.

– Sim, é claro – definitivamente, essa não era a hora para se falar daquilo. – Como foi o julgamento?

Os olhos dele encontraram o cubo mágico sobre a cama.


Eu não queria falar sobre o julgamento.

Peguei o cubo.

Nenhum dos lados estava completo, então não parecia que Tessa havia feito muito progresso.

– Essas coisas são bem difíceis, né?

– Eu consigo fazer numa boa. Você não respondeu minha pergunta sobre o julgamento.

– Foi mais ou menos como eu esperava – mexi no cubo, girando alguns lados, então o entreguei a ela. – Mostre-me.

Ela o pegou, virou-o em suas mãos, analisou e rapidamente girou os lados até que, apenas alguns segundos depois, dois deles estavam resolvidos.

– Isso é ótimo. Bom trabalho.

– São apenas dois lados. Além disso, eu estava trapaceando. Eles vão soltá-lo?

– Não tenho certeza – eu disse. – Como?

– Como o quê?

– Como você estava trapaceando?

A expressão dela mostrava que eu havia feito a pergunta mais burra da semana.

– Eu estava de olhos abertos.

– Ah, ok... e?

– Tem umas crianças no YouTube que conseguem fazer vendadas.

– Uau – peguei o cubo dela novamente. Examinei-o. Eu mal podia acreditar que alguém conseguisse resolvê-lo vendado, a menos que tenha memorizado o padrão dos giros. – E você já conseguiu resolvê-lo inteiro?

– Sim, claro; não é tão difícil, você só tem de entender como as peças se movem em relação às outras; então quando vão decidir? Digo, o júri.

– Tessa, essas coisas levam tempo...

Dora apareceu ao meu lado. Passou por mim e entrou no quarto.

– Ele disse que vai fazer tudo que for possível para passar aqui e me pegar. Eu disse a ele que não tinha problema – ela virou-se para Tessa. – Pode me emprestar algumas roupas?

– Sim, sem problema.

As meninas estão bem, Pat. Volte para o caso.

Coloquei o cubo sobre a penteadeira, ao lado da caixa de joias de Tessa, que ela devia ter trazido de casa enquanto eu estava em Chicago.

– Preciso ir. Vejo vocês duas hoje mais tarde. Se precisarem de alguma coisa, me liguem.

– Aliás – Tessa disse –, você vai devolver meu telefone algum dia?

– Assim que eu arrumar um novo.

As duas se despediram de mim e me virei para ir embora, mas parei na metade do passo.

– Espere um minuto – voltei e entrei no quarto. – O que você acabou de dizer?

– Hum, que eu quero meu celular de volta.

– Não. Sobre o cubo. Agora há pouco. Você disse algo sobre resolver o cubo.

Ela olhou para mim intrigada, quase na defensiva.

– Não sei. Só disse que você tem de entender como as peças...

– Se movem em relação às outras – terminei a frase para ela.

– Sim, e daí? O que há de errado?

– Sim – os pensamentos giravam, rodavam, pulavam na minha cabeça. – É isso. Você é um gênio!

– Sim, claro – ela grunhiu. – Testes idiotas são direcionados a...

– Tenho de ir. Ligo para você mais tarde – meus pensamentos estavam girando quando desci correndo a escada.

Eu podia ver as peças do caso; um lado do cubo onde tudo se encaixava perfeitamente: a mina abandonada... a Represa Cherry Creek... as rotas de movimentação entre o Aeroporto Internacional de Denver e o necrotério... a compra do galgo com o cartão de crédito de Elwin Daniels; um lado resolvido.

Sim, no sábado, todas as evidências apontavam para o rancho, porque era para onde John queria que apontassem.

“Você já descobriu como estou escolhendo minhas vítimas?”, ele havia me perguntado ao telefone. “Isso realmente seria a chave de tudo, aqui.”

Corri para o carro, peguei o laptop, coloquei-o sobre a mesa da cozinha. Liguei-o.

Relacionamentos.

Sim, essa era a chave.

“Sobre o que Giovanni escreveu para você?”, eu havia perguntado para Basque.

“Sobre você”, ele havia dito.

Sim, sim, sim. A décima história. Alguém é enterrado vivo.

Minha mãe entrou na cozinha e deve ter visto que eu estava ocu pado, pois voltou silenciosamente para a sala de estar para fazer palavras cruzadas.

É essencial para o investigador entender o intelecto, o treinamento e a aptidão, e então responder de acordo.

Mas eu não estive fazendo isso. Eu estive investigando John do mesmo jeito que faço com outros assassinos: olhando para as pistas, para os padrões, a hora e local dos crimes cometidos. Mas John não era como outros assassinos. Ele era inteligente, tão inteligente que havia planejado tudo desde o começo.

E era isso que ia me ajudar a pegá-lo.

Cliquei nos arquivos on-line do caso.

Em “arquivos de vítimas”.

Escolhi “novo”.

John sempre esteve um passo à frente.

Ontem, ao telefone, ele havia me provocado dizendo que o único jeito de pegá-lo era passando à frente dele, e agora percebi que ele estava certo, mas ele havia cometido o erro de me deixar saber aonde ele estava indo.

Ele escreveu para Basque sobre você.

Ele ligou para você.

Ele escolheu você.

O segredo para pegá-lo não era analisar as vítimas que ele já havia matado, mas as que ele tinha escolhido.

E a única vítima sobre a qual eu sabia, a única peça do quebra-cabeça que eu não havia incluído ainda no perfil geográfico era a última vítima da história.

Eu.


100


Giovanni deixou o corpo inconsciente de Amy Lynn, agora bem amarrado, no chão da cozinha e carregou a bolsa esportiva até o quarto principal.

Ele não queria que essa noite fosse interrompida, então ligou o rádio da polícia que havia trazido com ele e o sintonizou na frequência da expedição.

Pegou dez velas Chantel da bolsa e as colocou sobre a penteadeira.

Colocou as facas de que precisava ao lado delas.

Começou a acender as velas.


Usando o FALCON, abri um mapa de Denver e sobrepus a ele os locais de cenas de crime e as informações de vitimologia de todas as outras vítimas até agora.

Então, assim como eu faria para qualquer outra vítima, inseri meus dados pessoais no perfil geográfico: meus endereços residencial e comercial, rotas típicas de movimentação, padrões de atividade de rotina, tudo. E como eu conhecia o âmbito dos meus padrões geográficos melhor do que qualquer outra vítima que eu já havia analisado, eu tinha as informações de vitimologia mais detalhadas de toda a minha carreira.

No julgamento da sexta-feira, eu havia dito para a advogada de Richard Basque que quanto mais lugares, mais preciso é o perfil geográfico, e agora, incluindo meus dados, eu esperava ter informações suficientes.

Você tem de entender como as peças se movem em relação às outras.

Durante o voo, quando calculei os números, o computador havia iden tificado quatro zonas de perigo, mas agora, quando pressionei Enter, apenas uma área geográfica apareceu. De acordo com os cálculos do programa, havia uma probabilidade de 71,3% de que o infrator trabalhasse, vivesse ou frequentasse um raio de quatro quarteirões no centro.

Isso era suficiente para mim.

Cliquei com o mouse e uma imagem em 3D do centro de Denver apareceu na tela. Usando o cursor como um avião, cruzei por entre os prédios. Eles se inclinavam, giravam e deslizavam por mim como fariam em um jogo moderno de videogame. Analisei a orientação dos apartamentos, dos prédios comerciais, das ruas.

Praticamente todas as rotas de movimentação, incluindo a minha, se cruzavam no canto sudeste de uma dessas quadras do centro.

Dei zoom na tela.

Revisei as rotas novamente.

Tudo girava em torno daquele local.

É ali que nossas vidas tocam a dele. É ali que ele está escolhendo suas vítimas.

Sim.

Era isso.

O comércio da esquina.

O lugar onde o cubo se encaixava.

Uma cafeteria.

O Rachel’s Café.


101


Peguei o celular de Tessa. Corri até a porta. Digitei o número de Cheyenne.

Ela atendeu assim que a porta se fechou atrás dele.

– Ei, estou a caminho, eu só...

– Me encontre no Rachel’s Café. Lembra? – eu estava correndo para meu carro. – Onde fomos naquela noite. Precisamos correr.

– O que está havendo?

– Tem tudo a ver com as peças. Como elas se movem em relação às outras.

– As peças? Do que você está falando?

– Quanto tempo você demora para chegar lá?

– Não sei, uns 15 minutos.

– Faça em 10.

Entrei no carro, pisei no acelerador e arranquei.


Tessa ouviu a porta da frente bater e um momento depois o carro de Patrick disparou pela rua. Ela imaginou o que estava havendo e partiu na direção da escada com Dora logo atrás dela.

– Ele sempre age assim? – a amiga perguntou.

– Não. Às vezes ele pode ser um pouco impulsivo.

– Ah.

Tessa olhou pela cozinha e viu Martha na porta da sala.

– Ele foi embora?

– Sim – ela deu um suspiro materno. – Típico. Vocês precisam de alguma coisa, meninas?

– Não, estamos bem – Tessa disse.

Com um leve aceno, Martha voltou para suas palavras cruzadas na sala e Tessa viu o computador de Patrick na mesa da cozinha. Ele deve ter saído com tanta pressa que se esqueceu dele.

Ele nunca esquecia seu computador. Nunca.

Espere um minuto.

Martha já havia recomeçado a fazer palavras cruzadas. Tessa colocou um dedo sobre os lábios dizendo a Dora para ficar em silêncio, pegou o laptop de Patrick e sorrateiramente voltou para seu quarto.

Muito sorrateiramente.

Depois de entrar e fechar a porta, Dora perguntou:

– O que você está fazendo?

– Talvez eu não possa achar o meu pai – ela disse –, mas o agente especial Patrick Bowers pode. – Ela abriu o programa de e-mail de Patrick, achou o endereço de e-mail da divisão de crimes cibernéticos do FBI e digitou um pedido urgente para encontrarem a atual residência de Paul Lansing, antigo morador da 1682 Hennepin Avenue East, Minneapolis, MN 55431.

Ela olhou para a frente.

A boca de Dora estava entreaberta, um pedaço de chiclete repousado em sua língua.

– Você não vai mesmo...

Tessa assinou o e-mail com “Agente Especial Patrick Bowers”. Ela não sabia seu número de identificação federal mas imaginou que uma mensagem vinda de seu computador pessoal seria uma confirmação suficiente.

Pressionou “enviar”.

– Ok – Dora disse suavemente. – Acho que vai.

– Agora – Tessa disse –, tudo o que temos de fazer é esperar. Eles são bons no que fazem. Patrick liga para eles toda hora. Aposto que em uma hora nós saberemos onde meu pai vive.


102


Giovanni havia usado uma mordaça em Amy Lynn Greer sem pedir sua permissão.

Agora, ele a olhava, deitada imóvel no chão da cozinha, mãos e pés amarrados nas costas. E ele pensou em sua avó em outro chão de cozinha há muito tempo.

Com a luz do sol escorrendo dela.

Ele havia visto tanta luz do sol no decorrer dos anos.

Ele se ajoelhou ao lado de Amy Lynn e bateu em seu rosto para acordá-la. Isso deixaria marcas, mas em algumas horas não importaria.

Não funcionou, então ele bateu novamente, mais forte, e dessa vez ela acordou com um sobressalto. Piscou. Arregalou os olhos.

– Não se preocupe – ele disse a ela. – Não vou matar você – quando ele disse as palavras, um pensamento, um terrível pensamento deve ter passado pela cabeça dela porque ela se encolheu para trás o máximo que pôde. Tentou se livrar dele. – Não, eu não vim aqui para isso. Não vou tocar em você.

Respiração acelerada. Olhos procurando alguma saída.

– Mas embora eu não vá te matar, temo que você terá de morrer essa noite – ela fez barulhos que deviam ser seu jeito de tentar gritar por socorro, mas por causa da mordaça, ele não pôde entender suas palavras.

– Eu escolhi você para desempenhar um papel importante na história número nove. Você sabe o que isso quer dizer, não sabe?

Mais sons abafados. Ela lutava, mas ele a havia amarrado muito bem. Uma lágrima escorreu de seu olho esquerdo.

– Sim, está certo. Você leu a história. Você sabe: esta noite você vai se matar depois de comer o coração de seu amante morto.

Ela sacudiu a cabeça desesperada e freneticamente.

Giovanni olhou para o relógio.

– Mandei a ele uma mensagem de texto urgente em seu nome há alguns minutos, dizendo para ele se apressar, então acho que ele vai chegar a qualquer minuto.

Então ele agarrou os tornozelos dela e a arrastou na direção do quarto. Ela se virava e lutava; não conseguia se livrar.

– Eu não vou poder deixar você tampar os ouvidos com as mãos, então você provavelmente vai ouvir alguns dos sons. Desculpe-me por isso. Peço perdão desde já.

Ele a colocou no piso do armário, fechou a porta e foi para a cozinha pré-aquecer o forno.


Entrei pela porta do Rachel’s Café.

Senti o cheiro familiar de café recém-torrado, vi Janie trabalhando atrás do balcão: uma estudante do segundo ano de jornalismo. Óculos da moda, roupas retrô. Jornais espalhados na frente dela sobre o balcão, como sempre.

Um homem de 20 e poucos anos usando fones de ouvido estava sentado à mesa perto da torradeira de café, lentamente balançando sua cabeça com a batida de sua música. Uma pilha de livros de faculdade à sua frente. Tirando os dois, o Rachel’s estava vazio.

Janie deve ter se perguntado por que eu estava observando o lugar.

– Tudo bem, dr. Bowers? – ela sabia que eu era doutor, sabia que eu trabalhava para o governo, mas isso era tudo que eu havia contado a ela. – Veio trabalhar um pouco?

Trabalhar um pouco. Sim.

Não!

Reparei no que tinha feito: deixei meu computador em casa.

Não! Como você pôde ser tão burro?

Espere.

O celular de Tessa. Sim.

– Dr. Bowers?

Você pode acessar os arquivos on-line do caso pelo celular.

– Janie – peguei o celular. – Isso pode soar como um pedido estranho, mas eu tenho algumas fotos para te mostrar e gostaria que você me dissesse se você já viu essas pessoas aqui. Se algum deles é cliente regular.

– Se forem clientes regulares – ela disse intensamente –, você os conheceria.

Balancei a cabeça.

– Eu só venho aqui no fim do dia. Eu faço meu próprio café de manhã – toquei na tela do celular e acessei os arquivos on-line do caso. – Você olharia as fotos para mim?

A confusão tomava o rosto dela.

– Claro.

Rapidamente, cliquei na seção “vítimas conhecidas” dos arquivos do caso e baixei as fotos de Chris Arlington, Brigitte Marcello, Benjamin Rhodes e todos os outros. Então as arrastei para a galeria de fotos do celular para que Janie não visse a palavra vítimas.

– É muito importante que você olhe para elas com atenção – eu disse.

A porta da frente se abriu. Cheyenne.

– Pat. Você está bem?

– Sim. Venha aqui.

Os olhos de Janie pularam de mim para Cheyenne e para o celular. Ela não mais parecia apreensiva, mas sim assustada, e imaginei que seria melhor se eu falasse logo para ela o que eu fazia da vida. Eu não queria que o estudante no canto me ouvisse se ele tirasse os fones, então baixei a voz.

– Eu trabalho para o FBI, Janie. E eu acho que talvez você possa nos ajudar em um caso.

– Você trabalha para o FBI?

– Por favor. Olhe para as fotos – dei o celular para ela, mostrei como passar de uma foto para a outra. Ela olhou para o telefone por um momento, então começou a ver as fotos, uma por uma.

Cheyenne se aproximou de mim, começando a ligar as coisas.

– Você está achando que aqui é onde John escolhe...

Acenei com a cabeça.

– Sim.

Janie tocou a tela.

– Esta mulher. Sim. Eu já a vi. E este cara também – ela avançava e voltava entre as duas fotos, apontando primeiro para a foto de Heather Fain e então para a foto de Ahmed Mohammed Shokr, o homem que havia sido envenenado na quarta-feira.

– Então, é isso – respirei. – Isso é...

– Quem é ele, Pat? – Cheyenne perguntou. – Você sabe?

Balancei a cabeça.

Janie tocou a tela novamente, movendo para as próximas duas fotos.

– Este daqui é um padre, eu o reconheço... e claro, o dr. Bryant, que dá uma das minhas aulas. Ele vem aqui às vezes... – ela passou pelas outras fotos. – É isso. Essas são as pessoas que eu reconheço.

Era um começo, mas eu precisava de mais. Olhei em volta pela cafeteria e pensei em tudo que estava dentro da minha cabeça. O horário. As ligações. Os locais.

Pegando o telefone, naveguei até a lista de 51 nomes e comecei a pensar, procurando alguém com quem eu já tivesse cruzado no Rachel’s Café.


De onde ela estava amarrada e amordaçada no armário, Amy Lynn podia ouvir o barulho de vasilhas e panelas batendo na cozinha e o som inconfundível de códigos de expedição policial sendo chamados por um rádio.

Ela estava tentando se convencer de que o homem que havia batido nela e a amarrado não era o Assassino do Quarto Dia. Ele era a última pessoa do mundo de quem ela teria suspeitado.

Mas era ele, não havia dúvida.

Ela ouviu a campainha tocar e tentou gritar, pedir socorro, mas mal conseguia emitir algum som.

O som do rádio da polícia parou.

A campainha tocou novamente.

Então, passos pesados atravessaram a casa. Ela lutava para se soltar.

A porta da frente se abriu. Ela ouviu um grito. Barulho de luta.

Uma pancada.

Então a voz de seu agressor:

– Bem, isso não é exatamente o que eu tinha em mente, mas vai servir.

Pensei em todos os 51 nomes, mas não me lembrei de ter visto nenhum dos homens no Rachel’s e eu não tinha informações suficientes para descobrir qual deles poderia ser John.

Então tive um pensamento: John mandou o vaso de manjericão e o bilhete escrito à mão para Amy Lynn. Ela era a única outra pessoa além de mim com quem ele entrou em contato pessoalmente.

Ele a escolheu, Pat. Assim como escolheu você.

O jornal de Janie estava no balcão. Abri na coluna política de Amy Lynn e apontei para a foto dela logo acima do título.

– Janie, esta mulher já veio aqui?

Ela acenou com a cabeça.

– Claro. Eu já a vi.

– Você chegou a notar algum cara reparando nela? Observando-a? Talvez a seguindo.

Ela balançou a cabeça.

– Não.

– E quanto a caras se encontrando com ela aqui? – Cheyenne disse. – Flertando com ela.

– Normalmente, ela está com um cara loiro. Mas ele não estava em nenhuma dessas fotos que você me mostrou.

– Reggie tem cabelo castanho, Pat – Cheyenne disse. – É outra pessoa.

Eu havia apenas mostrado para Janie as fotos das vítimas conhecidas, e não dos 51 homens.

Suspeitei que muitos dos arquivos pessoais do governo estariam incompletos e faltariam fotos, então copiei os nomes, naveguei até os registros do departamento de trânsito e rapidamente baixei as fotos das carteiras de motorista de todos os homens. Entreguei o telefone para Janie novamente.

– Ok, mais uma vez. O cara com quem ela esteve; veja se é algum desses homens.

– Não tenho certeza se estou sendo muito útil...

– Por favor – Cheyenne disse. – Você está indo muito bem.

Finalmente, com o incentivo de Cheyenne, Janie aceitou o celular.

E eu fechei os olhos e girei o cubo em minha cabeça.


Desesperadamente Amy Lynn tentou pensar em uma maneira de se soltar. Mas as únicas coisas que estavam no armário eram sapatos, cabides, vestidos e blusas.

Alguma coisa. Tinha de ter alguma coisa!

Uma luz fraca entrava por baixo da porta.

Ela olhou pelo armário.

Não. Nada.

Ela girou. Reposicionou-se.

Sua perna bateu em um dos seus vestidos e ela ouviu o cabide ras pando na barra sobre ela.

E ela percebeu como poderia escapar.


Um quebra-cabeça com tantas peças.

Quem poderia ter encontrado Sebastian Taylor? Quem poderia ter tra balhado com Grant Sikora para planejar o assassinato de Basque? Quem poderia saber os tempos de reação e o fato de que eu estava na força-tarefa? Quem tinha acesso ao meu número de telefone fora da lista e...

Abri os olhos.

– É isso.

Cheyenne franziu as sobrancelhas.

– Isso o quê?

Se eu estivesse certo, o assassino estava debaixo do meu nariz o tempo todo. E ele tinha o álibi perfeito, mas eu ainda não tinha certeza. Havia mais uma coisa que eu precisava verificar.

Calculei a diferença de horário entre Denver e Washington e percebi que Angela Knight ainda estaria em seu escritório na divisão de crimes cibernéticos.

– Pat, fale comigo – Cheyenne disse. Dava para ver que ela estava ficando frustrada.

– Deixe-me checar com a divisão de crimes cibernéticos primeiro, mas acho que sei quem é John.


103


Usei o telefone de Cheyenne e digitei o número de Angela.

Janie ainda estava navegando pelas 51 fotos do departamento de trânsito.

Talvez eu estivesse errado. Talvez...

Angela atendeu.

– Alô. Aqui é a agente especial...

– Angela. É o Pat.

– Ah, eu acabei de enviar o endereço.

– Que endereço?

– De Paul Lansing.

Pisquei.

– Angela, eu não faço ideia do que você está falando.

– Seis minutos atrás você me mandou um pedido via e-mail para localizar Paul Lansing, anteriormente de Minneapolis, Minnesota.

Um mal-estar crescente.

– Eu não mandei pedido nenhum.

– Veio do seu computador.

Um pedido para Paul Lansing? Do meu computador?

Você deixou seu computador na casa de seus pais, Pat!

Paul... de Minneapolis...

Tessa deve ter encontrado um endereço antigo de seu pai.

Um mistura de raiva e um estranho tipo de solidão me atravessou.

– Angela, você disse que já respondeu?

– Sim – a confusão dela se transformou em preocupação. – O que está acontecendo?

Isso pode esperar. Encontre John.

– Depois eu explico, só não me mande mais e-mails até eu ligar de volta. Por enquanto, abra aqueles arquivos de áudio que mandei para você mais cedo. Estou pensando na localização do interlocutor.

– Eu já disse, eu não consegui localizar...

– Eu sei, eu sei, mas será que você pode isolar o ruído de fundo da primeira chamada? Separar as trilhas de áudio dos dois lados da conversa e analisá-las individualmente? Você pode fazer isso?

– Claro – mas ela soava um pouco relutante. – Só um segundo.


Amy Lynn lutava contra as cordas que prendiam suas mãos às suas costas, tentando alcançar outro vestido. Se ela ao menos conseguisse agarrar um cabide de arame, ela poderia usar a ponta como um gancho para trabalhar nos nós.

Mas, mesmo tendo conseguido derrubar cinco vestidos até então, nenhum cabide tinha caído no chão.

Ela ouviu seu captor arrastar um corpo até o quarto.

Rápido! Você precisa se apressar!

Ela se inclinou o mais distante que pôde para a direita e agarrou outro vestido.

Puxou. Enrolou.

Ele caiu no chão.

Dessa vez, o cabide caiu junto, quicando em seu ombro e pousando no carpete ao lado do seu rosto.


Após apenas alguns segundos, ouvi Angela murmurar:

– Que estranho – e quando ela disse essas duas palavras, eu soube o que ela havia descoberto.

– O barulho do ambiente – eu disse – vem dos dois lados da conversa, não é?

– Sim. Mas isso significaria que a primeira denúncia anônima...

– Partiu de dentro do escritório da expedição.

– Mas isso...

– Sim.

– Aqui! – Janie apontou para o telefone. – É este cara – ela virou o telefone para que Cheyenne e eu pudéssemos ver a foto. – Eu o vi aqui com aquela repórter uma porção de vezes.

Mesmo antes de olhar para a foto, eu já sabia para quem ela estava apontando: Ari Ryman, o ex-fuzileiro naval que havia reproduzido os áudios para nós no escritório da expedição.

O Assassino do Quarto Dia.


104


Entreguei a Cheyenne seu telefone.

– Rápido. Ligue para a central da polícia e veja se Ari Ryman está lá.

Uma enxurrada de emoções cruzou o rosto dela enquanto ela olhava a foto de Ari.

– O cara da expedição? Você acha que ele é John?

– Sim, eu acho. Por favor, explicarei em alguns minutos.

Enquanto Cheyenne fazia a ligação, virei-me para Janie.

– Você tem certeza? A repórter, ela costumava vir aqui com este homem?

– Sim – ela baixou a voz. – Eu acho que eles estavam tendo um caso. Quando se trabalha em um lugar desses há muito tempo, você observa as pessoas, e normalmente dá para dizer quando duas pessoas estão... você sabe.

Deixei meus pensamentos voarem através dos fatos que me levaram a suspeitar de Ari: como expedidor do serviço de emergência, ele teria acesso ao meu número de telefone não listado, saberia os nomes dos membros da força-tarefa e nosso tempo de resposta, e seria capaz de acessar informações sobre o hospital e o necrotério; ele foi fuzileiro naval.

Ele teria aprendido combate físico.

A ligação veio de dentro do escritório da expedição.

E ele andava com Amy Lynn Green no Rachel’s Café, o lugar onde o assassino aparentemente caçava suas vítimas.

Cheyenne guardou o celular no bolso.

– Ari Ryman não voltou para o trabalho depois do almoço hoje.

Olhei pelo Rachel’s Café novamente, tentando imaginar onde ele poderia estar.

Ele vem aqui com Amy Lynn. Ele mandou para ela o bilhete: “Devemos nós tratar das lágrimas alheias? Por favor, sra. Greer, tenha coração. John”.

Eu girei. Encarei Cheyenne.

– Amy Lynn está no esconderijo?

Ela balançou a cabeça.

– Não sei – ela novamente pegou seu telefone.

Agradeci a Janie pela ajuda, guardei o telefone de Tessa no bolso e estava me virando para sair quando Cheyenne exclamou:

– Amy Lynn saiu do esconderijo ontem à noite. A localização GPS de seu Blackberry indica seu endereço residencial, 7881 East 8th Avenue.

– Vamos – corri para a porta. – Ela é a próxima. O assassino quer que ela tenha um coração.


Sim!

Amy Lynn finalmente conseguiu agarrar o cabide.

Desesperadamente, ela entortou a ponta de arame e começou a tra balhar nas cordas.


Entramos no carro.

Tantos pensamentos. Eu estava furioso com Tessa, determinado a pegar Ari, apavorado com o que podia ter acontecido com Amy Lynn Greer e seu marido.

Não, Pat. Em seu bilhete na casa de Bryant, o assassino disse que ia contar as três últimas histórias hoje à noite, depois que você voltasse de Denver. Então eles ainda podem estar vivos...

Dei a partida.

– Cheyenne, mande alguns carros para a casa dos Greer...

– Já estou providenciando – ela estava com o telefone no ouvido.

Saí cantando pneus pela rua.


Giovanni tirou a camisa do homem inconsciente e a colocou ao lado dele sobre a cama. Então pegou o bisturi.

As velas tremeluziam ao lado dele.

Ele podia ouvir Amy Lynn se contorcendo no armário e parou por um momento para escutá-la. Carregando o bisturi, ele atravessou o quarto, abriu a porta do armário e descobriu que ela havia puxado uma meia dúzia de vestidos para o chão. Ela havia conseguido pegar um cabide e estava tentando usar a ponta do arame para soltar as mãos.

– Estou impressionado – ele disse. – Realmente estou. Foi uma boa ideia. Continue trabalhando nisso. Voltarei em alguns minutos para ver como você está. Vamos ver até onde você consegue ir.

Ele voltou para a cama, posicionou a lâmina do bisturi contra o peito nu do homem e estava prestes a pressioná-lo quando ouviu a detetive Warren ligar para a expedição pedindo que enviassem duas viaturas para a 7881 East 8th Avenue.

Giovanni parou.

Eles o haviam encontrado. Eles estavam vindo.

Então.

Ele olhou para o homem na cama, depois para a lâmina em sua mão.

Uma mudança de planos.

Ele colocou de lado o bisturi e foi retirar Amy Lynn do armário.


– Duas viaturas estão a caminho da casa dela – Cheyenne disse. – Agora, conte tudo.

Em um punhado de segundos, resumi a hipótese que havia me levado a suspeitar de Ari.

Cheyenne ouviu. Acompanhou meu raciocínio, então balançou a cabeça.

– Mas e o motivo? Qual seria o motivo dele?

– Perguntaremos a ele assim que o encontrarmos.

Tantos lados do cubo para encaixar. Era difícil ter prioridades. Eu podia pensar em pelo menos quatro pessoas para quem eu precisava ligar imediatamente.

Virei a esquina tão rápido que quase perdi o controle do carro.

– Cheyenne, faça algumas ligações para mim, tudo bem?

– Manda.

– Tente entrar em contato com Reggie e Amy Lynn. Diga a ela para contatar imediatamente o escritório do FBI, e não a central de polícia. A vida dela corre grande perigo.

Eu ainda não conseguia acreditar que Tessa havia usado meu computador para enviar um e-mail para a divisão de crimes cibernéticos do FBI para procurar seu pai. Ela deveria ter pedido ajuda para mim. E não feito pelas minhas costas.

Eu definitivamente precisava me acalmar antes de conversar com ela. Pensar no que dizer.

Assim, não liguei para ela, mas liguei para a expedição.

– Diga para os policiais que estão vigiando a casa entrarem, confiscarem meu computador e ficarem com as garotas.

Uma leve hesitação.

– Sim, senhor.

Atravessei um farol vermelho e entrei na I-25.


Amy Lynn estava no porta-malas de seu carro.

O homem havia soltado suas pernas, mas as mãos ainda estavam amarradas nas costas. Ela ainda estava amordaçada.

Eles estavam dando ré pela calçada.

Ela ouviu o portão da garagem se fechar e, enquanto o carro descia até a rua, em um momento de clareza irônica e sombria, ela percebeu que, a menos que encontrasse um jeito de escapar, acabaria como nada além de mais um capítulo no livro de outra pessoa.

E essa seria a grande história de uma vida.

Da vida dela.

O carro acelerou.

Ela não se importava que a mordaça e o barulho do motor abafassem seus gritos; Amy Lynn chutava a porta do porta-malas o mais forte que podia.

E gritava.


Amy Lynn Greer não atendia o telefone, mas Cheyenne conseguiu encontrar Reggie. Eles conversaram por um momento, então ela me informou: naquela mesma manhã, depois de descobrir que Amy Lynn havia deixado a casa, ele tinha deixado seu filho na creche e saído atrás dela.

– Ele me disse que não pediu ajuda da polícia porque queria encontrá-la por conta própria, para protegê-la. Que estava envergonhado por tê-la perdido de vista.

Dei um soco no volante.

– Mas que ótimo.

Acelerei. Deslizei para a pista da esquerda.

– Durante a tarde, ele conseguiu a localização GPS do Blackberry dela. Aparentemente ela fez uma ligação para Nova York enquanto estava perto da casa de Sebastian Taylor, então ele foi até lá procurar por ela, mas ela havia sumido. Há cerca de 20 minutos, ele recebeu uma mensagem de texto dela dizendo que estava em casa. Ele está a caminho de lá, mas ainda vai demorar uns bons 15 minutos para chegar.

Ligamos para Jake e o informamos de tudo; pensei em ligar para Kurt, mas ele ainda estava em Breckenridge tentando salvar seu casamento, então, em vez disso, demos um toque para seu chefe, o capitão Terrell. Cheyenne disse a ele:

– Achamos que é Ari Ryman – e algo surgiu em sua memória.

Comecei a murmurar:

– Ari... ar... Ari... ar.

Alguns segundos depois, Cheyenne encerrou a ligação com Terrell e olhou para mim.

– Você está bem?

– Ele não disse “ar”.

Ela balançou a cabeça.

– Quem não disse “ar”?

– Na sexta-feira, quando Grant Sikora estava sufocando, morrendo, eu disse a ele que os paramédicos estavam vindo e perguntei a ele quem havia carregado a arma para ele. Ele falou: “Ar... Você precisa pegar... ar...”

Ela ligou os pontos:

– Você está achando que ele disse: “Ari. Você precisa pegar Ari”.

– Não tenho certeza, mas sim. Acho que ele estava me dizendo um nome, e não só com dificuldade para respirar.

– Considerando tudo que sabemos agora, faria sentido – Cheyenne disse.

Sim, faria.

Na verdade, sentido demais.

Se Grant tinha dito o nome de Ari, isso mudava tudo.

– Cheyenne, quero ver os horários de trabalho da semana passada. Estamos procurando por alguém que tenha qualquer coisa a ver com esse caso. Policiais, detetives, membros da perícia e também o pessoal do hospital e os funcionários do escritório do médico legista. Ligue para o Hospital Memorial Batista e para a central da polícia; peça para o RH colocá-los on-line nos arquivos do caso...

– No que você está pensando?

– Estou pensando que não devo tirar conclusões precipitadas. Eu tenho uma teoria. Estou torcendo para estar errado – passei voando por dois carros que deviam estar a pelo menos 120 km/h.

Estaríamos na casa dos Greer em menos de quatro minutos.


A caminho da central da polícia, Giovanni ligou para a expedição para requisitar um helicóptero da força-tarefa e um piloto para o agente especial Bowers.

Quase ninguém mais poderia tê-los convencido tão rápido e tão facilmente como ele a liberarem o helicóptero.

– O coronel Freeman está disponível aqui na estação – ele disseram. – Ele irá esperá-lo no heliporto.

– Obrigado.

Fim da ligação.

Apesar de Giovanni não ter esperado que as coisas acontecessem desse jeito, ele havia planejado diversos imprevistos e estava preparado: ele tinha um distintivo do departamento de polícia para poder entrar no estacionamento de funcionários da central de polícia. Dali, ele levaria Amy Lynn pelo elevador de serviço para o heliporto na cobertura.

E voaria até a mina.


Tessa sabia que estava muito encrencada.

Pouco antes, enquanto ela e Dora estavam esperando pela resposta do pessoal da divisão de crimes cibernéticos, Dora havia folheado o resto do diário e, bem quando ela estava terminando, os dois policiais idiotas que estavam supostamente protegendo a casa pelos últimos dias entraram, pegaram o computador de Patrick do quarto, fizeram Dora e ela se juntarem a eles no andar de baixo, na sala de estar, e agora não estavam deixando nenhuma das meninas sair da sala ou fazer nenhuma ligação.

Patrick deve ter descoberto sobre a mensagem que ela tinha mandado.

O que significava que era tarde demais para apagá-la antes que ele a visse.

O que significava que ela estava ferrada.

Especialmente porque ela havia visto a resposta do FBI antes de os policiais chegarem.


Estávamos perto.

Dois minutos, talvez menos.

Cheyenne abaixou o telefone e xingou.

– A central está dizendo que vai disponibilizar os horários “em uma hora”.

– Em uma hora? Nós não temos...

– Eu sei – ela disse entre os dentes cerrados. – Eu sei.

O que mais? O que mais?

O horário da morte de Thomas Bennett... os horários de voos... a hora em que Brigitte Marcello comprou comida chinesa... as velas na mina que estavam queimando por duas horas...

Eu estava imerso em pensamentos quando o telefone tocou, me assustando. O identificador mostrou que era Kurt e eu atendi. – Pat, o ...apitão ligou – sua voz estava cortada – ... fiquei ...abendo o que está havendo.

– Vire à esquerda aqui – Cheyenne gritou.

Passei por cima do meio-fio, então acelerei.

– Escute, Kurt – eu sabia que o sinal era péssimo em Breckenridge, mas esperava que ele fosse capaz de entender o que eu estava dizendo. – As marcas de pneus que encontramos duas semanas atrás, do carro de Sebastian Taylor. Quem as analisou?

– O quê?

– As marcas de pneu. Quem você mandou a investigá-las?

– ...eggie.

Reggie Greer.

– Ali! – Cheyenne disse. – Vire à direita. É a quarta casa.

Nenhuma sirene.

Nenhuma luz piscando.

As viaturas já deviam estar aqui!

Kurt disse algo que não pude entender.

– Por acaso o Denver News escreveu um história sobre a morte de Hannah? – perguntei. – Eles fizeram algum artigo?

– Si...

– Quem te entrevistou?

Ele baixou a voz.

– Estou aqui co... Cheryl, não posso... Não ...tou ouvindo.

– Foi Amy Lynn Greer? – ...im.

– Você e Cheryl estão em perigo, Kurt...

– Te ...igo de volta.

– Kurt!

E mais nada. Bati o telefone contra o painel.

Chegamos à casa dos Greer.

Pulei do carro, saquei minha SIG e corri na direção do alpendre.


105


Forro.

Marrom.

Dois andares.

Ao nosso redor, crepúsculo na cidade.

Cheyenne assinalou para a direita.

– Vou pelos fundos.

Nenhum carro estacionado. A casa estava escura.

– Tome cuidado com cobras – gritei.

– Tá bom!

No alpendre. Tentei a maçaneta.

Destrancada.

Empurrei a porta, arma em uma mão, lanterna na outra.

– Reggie? Amy Lynn?

Silêncio.

Passei o feixe de luz pela sala de estar. Procurei por cascavéis. Não vi nenhuma.

Firme, Pat. Firme.

Analise e responda.

Então ouvi o rangido de outra porta e a voz de Cheyenne chamando por Amy Lynn. Um feixe de lanterna cortou a sala de jantar. Avisei sobre minha posição; Cheyenne entendeu e fui para a cozinha.

Ninguém. Algumas formas de assar em cima do fogão. A luz do forno estava acesa.

Estava programado para 230 graus.

O termômetro já marcava 225 graus quando me aproximei.

História número nove: ele mata o amante da mulher, arranca seu coração e o serve a ela no jantar.

Um tremor profundo. Medo primitivo.

Eu não queria olhar dentro do forno, mas sabia que precisava fazê-lo. Chequei o ambiente novamente.

Alcancei a porta do forno. Fiquei preparado.

Abri.

Vazio.

Graças a Deus.

Uma rápida olhada pelas bancadas, pela pia. Nenhuma louça suja.

Sem sangue. Sem carne.

Parecia que John havia ligado o forno, mas não teve chance de terminar seu conto.

– Ele ainda pode estar aqui! – gritei para Cheyenne.

Fechei o forno. Desliguei o fogo.

Cheyenne gritou do fim do corredor.

– Pat. Aqui.

Ela soava preocupada, mas não em perigo, então levei alguns segun dos para garantir que cada cômodo estava seguro enquanto passava pelo corredor para me juntar a ela.

Sem pessoas; sem cobras.

Encontrei-a no quarto principal, usando o telefone, inclinada sobre a cama e checando o pulso de alguém. Eu não podia ver quem era, apenas que sua camisa havia sido removida. Então percebi que ela estava falando com a emergência e dei a volta em torno dela. E vi quem estava na cama.

– Calvin! – corri para o lado dele.

– Ele está inconsciente – Cheyenne disse –, mas seu pulso está estável – ela estava com o telefone no ouvido, mas estava falando comigo. – Estão mandando uma ambulância.

Por que as viaturas ainda não chegaram?

Oito velas Chantel tremeluziam na penteadeira. Duas tinham se apagado.

Gentilmente toquei a testa de Calvin e, enquanto o fazia, imaginei se o assassino não o tinha deixado vivo como algum tipo de armadilha, um jeito de brincar com o rato, de brincar comigo.

A porta do armário estava levemente aberta.

Cheyenne viu que eu olhava para lá.

– Já verifiquei, está limpo.

Dei uma olhada. Seis vestidos no carpete. Uma cabide de metal com o gancho desentortado.

Fui na direção do corredor.

– O que foi? – Cheyenne perguntou.

– Vou dar mais uma olhada por aí – falei suavemente. – Já volto.

E enquanto ela monitorava Calvin, deixei o quarto para garantir que ninguém estava nos esperando em algum outro lugar da casa. Ou na garagem.


Dora e Tessa estavam na sala de estar com os policiais. Martha tinha ido para a cozinha e Tessa a viu discretamente pegar o telefone.

Tessa ainda estava distraída, pensando no quanto Patrick estaria furioso quando chegasse, e não percebeu que estava nervosamente brincando com seu colar até que sentiu as mãos de Dora em seu braço.

– Você está bem?

– Sim.

Mas ela não soltou a pedra preta do colar.

– Eu preciso te contar uma coisa – Dora disse. – Eu ia contar lá em cima, mas os policiais chegaram.

– O que é?

– Sua mãe diz o porquê no final do diário, por que ela comprou para você aquela caixa de joias quando você era pequena.

Tessa parou de mexer no colar.

– Me conta.

– Para se lembrar do dia em que ela mudou de ideia.

E então Dora contou para Tessa sobre os três últimos registros no diário de sua mãe.


106


Terminei uma inspeção cuidadosa na casa e não encontrei ninguém. A bolsa de Amy Lynn estava na cozinha. Fiz um rápido inventário de seu conteúdo e vi que sua última mensagem de texto havia sido mandada para o celular do marido.

Voltei para o quarto principal, onde vi que Calvin ainda estava inconsciente. Respirando lentamente e sem profundidade.

Cheyenne estava colocando um cobertor sobre seu peito.

Ajoelhei-me ao lado da cama.

– Como ele está?

– Ele parece estável. A respiração está estabilizada. Os paramédicos devem chegar a qualquer minuto.

– Quando chegarem aqui, eles precisam fazer um exame de sangue imediatamente e um exame toxicológico completo.

– Está tudo no roteiro – ela disse. – Eles estão trazendo um médico com eles.

Olhei para as velas.

Com base na pouquíssima quantidade de cera derretida, dava para ver que elas não estavam queimando há muito tempo.

O forno havia aquecido a 225°C...

Ouvi um carro parar na frente da casa, então uma porta de carro bateu. Saquei minha SIG e disse para Cheyenne:

– Fique com Calvin.

Eu ainda não havia chegado à porta da frente quando ela se abriu.

– FBI! – gritei.

– Não se mova! – o homem berrou.

Eu conhecia aquela voz.

– Jake, sou eu. É o Pat.

Jake Vanderveld entrou na sala e, apesar de nunca ter pensado que me ouviria dizendo isso, eu acrescentei:

– É bom te ver.

– Você também, Pat. O que nós sabemos?


Estávamos no quarto e Cheyenne e eu tínhamos acabado de informar Jake sobre tudo.

– Por enquanto – ela concluiu –, parece que Calvin está bem.

– Sabemos se Amy Lynn esteve aqui? – Jake perguntou.

– A bolsa dela está aqui, mas a chave não. E o carro dela sumiu – eu disse, então apontei na direção da porta do armário. – Há sinais de que alguém foi arrastado da porta do quarto até o armário, mas não saindo dele. John a colocou ali, mas então a levou ou carregou de lá.

– Alguma ideia?

Balancei a cabeça.

– O carro dela não tem GPS, e seu Blackberry ainda está na bolsa. – Então, tive uma ideia. – Cheyenne, vamos arrumar um mandado de procura por ela e mandar algumas viaturas para o rancho de Daniels, só para garantir...

Fui interrompido quando o telefone de Jake tocou. Ele atendeu e olhou surpreso para mim.

– Ele está bem na minha frente – disse, então me passou o telefone. – Pra você.

– Quem é?

– É da central de polícia.

Peguei o telefone.

– Agente especial Bowers.

– Agente Bowers? – uma voz de mulher, e ela soava ainda mais surpresa do que Jake havia ficado. – Não conseguimos entrar em contato com seu piloto ou com seu número de celular. Pensamos que o agente Vanderveld poderia conseguir...

– Meu piloto? Do que você está falando?

Uma leve pausa.

– Senhor, seu helicóptero decolou há três minutos sem...

Hum... aquilo não era nada bom.

– Eu não pedi nenhum helicóptero.

– Você não...

– Quem está no helicóptero?

Outra pausa.

– Quem?!

– Não tenho certeza, senhor. Mas nós precisamos de um plano de voo e...

– Escute – percebi que estava gritando, mas àquela altura, eu não ligava mais. – O segundo helicóptero, está aí?

– Sim, senhor.

– Um piloto, tem algum piloto disponível?

– Senhor, não estou entendendo; você está me dizendo que não está no heli...

– Um piloto! Cli? está aí?

– O coronel Freeman está no helicóptero que você, ou que alguém... – ela não parecia conseguir juntar os pensamentos. – Cody Howard está aqui.

Cody era o ex-marido de Cheyenne, o piloto com o qual ela se recusou a voar, mas eu poderia lidar com isso em um minuto.

– Peça para ele ir para o heliporto e ligar o helicóptero. Estarei lá em cinco minutos. E diga ao controle aéreo do Aeroporto Internacional de Denver para conseguir os códigos do transponder do helicóptero que acabou de decolar. Precisamos saber onde ele está. Faça agora.

A maior pausa de todas.

– Sim, senhor – fim da ligação.

Joguei o telefone de volta para Jake.

– John arrumou um helicóptero, mas ele decolou há poucos minutos. Nós o pegamos. Cheyenne, você vem comigo.

Jake acenou na direção de Calvin.

– Vou ficar aqui com ele até que os paramédicos cheguem.

– Ótimo.

– Tome cuidado – Jake disse.

Essa não é bem minha especialidade, mas decidi não tocar no assunto.

– Tomarei.

Cheyenne e eu disparamos para o carro.


107


Pelos fones de ouvido, Giovanni ouviu que o agente Bowers havia requisitado o segundo helicóptero. Perfeito. As coisas dariam certo finalmente.

Cinco minutos antes, quando Giovanni tinha aparecido no heliporto com a navalha na garganta de Amy Lynn, Cli? Freeman apenas olhou para ele em choque, mas finalmente subiu na cabine quando Giovanni tirou a mordaça da mulher e ela implorou por sua vida.

Agora, eles estavam sobrevoando as Montanhas Rochosas, a apenas alguns minutos da Mina de Bearcro?.

Giovanni sentou-se no banco de trás ao lado da mulher. As mãos dela ainda estavam amarradas nas costas.

Ele abriu a navalha e a segurava perto do rosto dela, para garantir que tinha toda sua atenção.

– Você lembra lá na casa quando eu disse que eu não ia matar você, que você iria matar a si mesma?

Ela se encolheu contra o assento.

– Então, chegou a hora.

– Deixe-a em paz – Cli? gritou da cabine –, seu filho da...

Giovanni passou a lâmina contra o braço direito do homem fundo o suficiente para fazê-lo gritar, mas não fundo o suficiente para incapacitá-lo.

– Por favor – Giovanni disse. – Não nos interrompa novamente.

Então, ele virou-se para Amy Lynn e começou a desabotoar a camisa dela.


Amy Lynn tentou se inclinar para longe dele, mas não havia para onde ir.

– Por favor, não – ela implorou.

Ele desabotoou o segundo, e então o terceiro botão.

– Eu já te disse, eu não vou tocar em você. Agora, por favor, fique parada.

– Não, não... – mas ela estava muito aterrorizada para concluir a frase. Ele estava pegando o saco de pano que havia trazido consigo, aquele que ele tinha levado rapidamente até o outro helicóptero do heliporto antes de fazê-la entrar nesse.

O conteúdo espesso e enrolado da sacola se mexeu.


– Oficialmente – Giovanni disse –, você deveria pular de uma janela, mas acho que não vamos tentar isso a esse ponto. Eu poderia jogar seu corpo mais tarde, de qualquer maneira, então...

De repente, o helicóptero tombou para a direita quando o coronel Freeman soltou o manche. Ele virou para trás e tentou arrancar a navalha da mão de Giovanni, mas Giovanni cortou o pulso dele. Um corte profundo. O sangue se espalhou pela cabine.

– Segure o manche ou corto a garganta dela! – ele percebeu que o coronel havia felizmente inclinado a perna contra o manche para impedir o helicóptero de cair.

Freeman balançou a cabeça.

– Não! Largue...

Giovanni segurou a lâmina contra o pescoço de Amy Lynn.

– Obedeça ou ela morre.

Ele hesitou por um momento, então finalmente virou para a frente, o sangue brotando do pulso, ergueu o helicóptero, xingou e ameaçou Gio-vanni, mas este não ligou.

– E pressione o joelho contra esse corte ou você vai morrer de hemorragia.

Giovanni esperou até que Freeman obedecesse, então desamarrou o bar bante que estava preso na abertura do saco. Ele faria um curativo no pulso do homem em um minuto, mas primeiro precisava cuidar de Amy Lynn.

Ele levantou o saco na direção da parte de cima da camisa dela.

– Não! – ela gritou.

– Lembre-se: eu não vou matar você. Nessa história você tem de se matar. Cascavéis são atraídas pelo movimento. Então, se você não quer morrer, é melhor ficar sentada e imóvel.

Ele puxou o tecido da camisa dela para longe da pele, para que houvesse espaço suficiente, e então ele colocou a cascavel de um metro de comprimento dentro da camisa de Amy Lynn.


Ela gritou.

E quando sentiu o corpo seco e musculoso da cascavel se flexionar contra sua barriga e deslizar pelo seu abdômen, Amy Lynn Greer não ficou imóvel.

Não mesmo.


108


O controle de tráfego aéreo nos informou a localização do outro helicóptero; quando ouvi as coordenadas em meu fone de ouvido, disse a Cody:

– Acho que ele está indo para a Mina de Bearcro?. Eu sei onde é. Siga na direção da borda sul do Condado de Clear Creek.

– Entendido.

Ele virou o helicóptero para sudoeste e voamos na direção da luz do sol se esvaindo.

Cheyenne e Cody ainda não tinham falado um com o outro. Embora eu não tivesse ideia de quão turbulento tinha sido o divórcio deles, pelo silêncio tenso eu tinha a impressão de que a coisa havia sido ruim para os dois lados.

Por um momento, lembrei-me dos meus próprios problemas com Lien-hua, mas antes que pudesse pensar muito nisso, percebi um movimento no chão perto do kit de primeiros socorros...

E percebi do que se tratava.

– Fique parada! – gritei.

A cascavel deslizou por cima dos sapatos de Cheyenne e começou a se entrelaçar em seu tornozelo.

Ela congelou.

Eu teria pegado alguma coisa para atrair a atenção da cobra, mas ela inclinou a cabeça para trás e fiquei com receio que pudesse atacar, então balancei a mão na direção de seu rosto para que ela mordesse a mim em vez dela. Ela mostrou as presas e chacoalhou a cauda, mas com a minha outra mão consegui pegá-la logo abaixo da cabeça antes que ela resolvesse atacar.

O corpo comprido da cobra se contorceu loucamente em minha mão, mas segurei firme.

Com a mão livre, procurei minha faca. Eu realmente não queria matar a cobra, mas considerando as circunstâncias, pensei que até Tessa me perdoaria.

Chega uma hora para todas as coisas morrerem...

A cascavel sibilou e se debateu. Tentou girar a cabeça na direção do meu braço.

E a hora daquela cobra havia chegado.

Peguei a Wraith. Abri a lâmina. Cuidei da cascavel.

Seu corpo caiu no chão do helicóptero. Larguei a cabeça do lado dele e acabei com seu sofrimento usando meu calcanhar.

Cheyenne engoliu em seco.

– Obrigada.

– Levante os pés. Pode ter mais.

Ele apoiou os pés no assento da frente.

– Eu vi – ela disse. – Você ia deixar que ela te mordesse em vez de...

– Shhhh. Por favor. Me ajude a procurar.

E juntos vasculhamos a cabine, procurando por mais cobras.


Giovanni deixou o corpo de Amy Lynn no helicóptero.

Ele tinha dito a ela para ficar imóvel. Se ela tivesse ficado, a cascavel não teria atacado seu pescoço, e sua garganta não teria inchado até se fechar em menos de um minuto.

Manter um refém tornaria fácil atrair o agente Bowers para dentro do túnel, então ele decidiu deixar o piloto viver por enquanto. Ele certificou--se de que conseguiria controlar o sangramento do homem e então o levou para dentro da Mina de Bearcro?.


Não encontrei nenhuma outra cobra na cabine onde estávamos e estava prestes a verificar a cabine do piloto quando ouvi Cody gritar de dor.

O helicóptero mergulhou na direção das montanhas, me lançando para a frente.

– Ela me mordeu! – ele gritou.

– Segure o manche! – berrei, mas ele não estava ouvindo. Tropecei para a frente e agarrei o manche, mas só consegui parar momentaneamente nossa descida. – Você precisa...

– Cody, segure o manche! – Cheyenne gritou. Ela mergulhou na direção da cabine do piloto e eu deslizei para a direita quando ela pegou o manche, e então vasculhei o chão procurando a cobra. Não vi nada.

– Ela me pegou! – Cody gritou. Felizmente ele havia mantido a mão esquerda na alavanca de equilíbrio, mas estava segurando a coxa com a mão direita.

Cheyenne estava tentando nos erguer. Há dois dias, ela havia me dito que estava fazendo aulas de voo com helicóptero. Eu realmente esperava que ela soubesse como pousar.

– Onde está a cobra? – gritei. Cody apenas balançou a cabeça.

Baseando-me no lugar de sua perna onde ele estava pressionando, imaginei que a cascavel tivesse picado a parte de dentro da coxa, perto de sua artéria femoral, um lugar terrível para uma mordida.

A cada batida de seu coração, o veneno era bombeado através de seu corpo, destruindo mais tecido, causando mais sangramento, desacelerando sua respiração.

Quanto mais o coração dele acelera, mas rápido ele perde a consciência.

– Relaxe, Cody – eu ainda procurava pela cobra. – Tente ficar calmo – ele estava tremendo. Deixei meus olhos virarem na direção da janela por um momento e reconheci as montanhas ao nosso redor. Estávamos perto da Mina de Bearcro?, a menos de 2 km de distância.

Procurei pelo chão novamente.

Vi a cobra serpenteando sob os pedais de controle.

– Não se mexam!

Mas Cody seguiu meu olhar e então gritou, arrancando os pés dos pedais. O helicóptero girou para o lado no ar e começou a despencar.

– Não! – Cheyenne gritou.

O mundo estava girando em volta de nós. Um borrão. Vi a cobra des lizar pelo chão na minha direção.

Tentei agarrar seu pescoço. Errei. Agarrei o corpo.

Cheyenne empurrou Cody contra a porta para alcançar os pedais com os pés.

Outro giro, outro, e então finalmente, de algum modo, Cheyenne fez parar os giros de cauda, mas estávamos a menos de 100 metros do chão e caindo rápido.

– Nivele! – gritei.

Ainda segurando a cobra, procurei pela faca, mas percebi que ela devia ter caído quando corri para agarrar o manche.

Senti o corpo da cobra ficar tenso para atacar.

Ok. Medidas drásticas.

Cascavéis podem atacar mais rápido que o olho humano, mas não mais rápido que uma bala.


109


Saquei minha SIG.

O helicóptero balançava muito e a cobra estava movimentando tanto a cabeça que eu não tinha certeza se conseguiria acertá-la, mas certamente conseguiria acertar alguma outra coisa.

Mesmo a cabine não sendo pressurizada, com a força do ar sendo impelida para baixo pelo rotor, imaginei que haveria sucção suficiente.

Atirei na janela à minha direita.

Quando o vidro explodiu para fora, o ar na cabine foi atrás, carre gando o corpo da cobra com ele.

Soltei.

Chega de cobras.

– Estou descendo! – Cheyenne gritou.

Por mim, tudo bem.

Um par de óculos escuros e um calhamaço de papéis foram lançados pela janela quebrada.

Analisei o terreno abaixo de nós.

A estrada que levava para a Mina de Bearcro? ficava apenas a algu mas centenas de metros a norte de onde estávamos. Havia um campo que parecia plano o suficiente para Cheyenne pousar ao lado da estrada.

– Ali! – apontei.

A pouco menos de 1 km acima na montanha, o outro helicóptero já estava no chão perto da entrada da mina.

Bom o bastante. Eu poderia correr até lá.

Enquanto Cheyenne descia conosco, chamei por reforços pelo rádio e requisitei uma ambulância para Cody. Então, lembrando-me das fendas estreitas e profundas e da intenção do assassino de enterrar alguém (eu) vivo, disse a eles para chamarem a equipe de resgate da Floresta Nacional de Arapaho. Às vezes escalo com os caras da equipe, e se precisássemos de resgate vertical, eles eram os melhores para isso.

Estávamos a 20 metros do chão.

Cheyenne lutava para nos manter com estabilidade.

Cody oscilava entre perder a consciência e acordar de novo.

Dez metros.

Olhei para o chão procurando por mais cobras.

Tudo limpo.

Cinco metros.

E então tocamos o chão. Um pequeno solavanco, mas isso foi tudo.

– Linda aterrissagem – eu disse. Estávamos vivos. Estávamos no chão. – Perfeita.

Fôlego.

Um pequeno instante.

Uma chance de pensar.

Cheyenne e eu estávamos bem, mas Cody parecia estar apenas par cialmente consciente. Tentei animá-lo. Sem resposta. Senti seu pulso. Fraco. Medi sua respiração, pensei no tempo de resposta do serviço de emergência. Não parecia bom.

– Cheyenne, eu não tenho certeza se ele vai conseguir a menos que o levemos para um hospital – ainda estávamos com os fones de ouvido ligados; as hélices giravam sobre nossas cabeças.

Ela olhou para mim.

– Como?

– Voe com ele.

Ela balançou a cabeça.

– Eu não consigo.

– Eu tenho de ir atrás de John. Não podemos deixar Cody sozinho.

– Eu sei, mas eu não... Não. Eu não consigo.

– Sim, você consegue. Você acabou de nos salvar do giro de cauda e pousou sem nenhum problema – vi minha faca no chão. Peguei-a de volta. – Confie em seu instinto...

– Os paramédicos chegarão aqui em cima.

Discutir sobre isso não nos levaria a lugar algum. Eu cuidadosamente cortei a perna da calça de Cody para dar uma olhada melhor na picada.

A área em torno do ferimento já estava escura e distendida. Nós dois olhamos.

Ele estava bastante mal, e ela podia ver. Ela colocou a mão gentilmente sobre seu joelho e fechou os olhos, respirou profundamente, então soltou o ar lentamente.

– Ok – ela abriu os olhos. – Mas vou voltar para te ajudar – suas palavras tinham uma intensidade ardente.

– Estou ansioso por isso.

Colocamos Cody em outro assento, então ela posicionou-se na cabine do piloto.

– Você vai conseguir! – gritei. Eu havia saído do helicóptero e estava de pé bem ao lado da porta. Eu tinha de gritar para ser ouvido com o barulho do motor.

– Encontre-o – ela gritou. – Detenha-o!

– Sim!

Alcancei a porta, mas antes que eu pudesse fechá-la, ela roçou a mão contra a minha. Ela não disse nada, mas comunicou tudo.

Naquele momento me encontrei desejando que fosse Lien-hua comigo em vez dela. Me senti vagamente culpado e apertei a mão dela gentilmente, então soltei e acenei para ela.

– Vá!

Fechei a porta e ela reposicionou o fone de ouvido e mexeu nos con troles à frente dela. Então corri da forte ventania causada pelo rotor e depois de ter andado por volta de 10 metros, virei-me e a vi decolar para o anoitecer avermelhado do Colorado.

Tremendo um pouco, mas nada mal.

Assim que ela foi embora, disparei pela estrada na direção da mina.


Tessa estava tendo dificuldades em digerir tudo aquilo que Dora estava contando.

Aparentemente, não havia sido a carta de Paul que fez sua mãe mudar de ideia sobre o aborto.

– Você está me dizendo que foi um punhado de anúncios de revista? – ela disse. – Como aquela foto da menina e da caixa de joias?

Dora acenou com a cabeça.

– Foi isso que ela escreveu no diário.

A campainha tocou.

Os dois policiais olharam um para o outro por um momento.

Outro toque. Martha levantou-se.

– Eu atendo.

– Não – o mais baixo dos dois policiais disse. – Cuidamos disso – os dois foram até a porta.

Eles abriram seus coldres.

O policial mais alto abriu a porta, e Tessa viu o pai de Dora, o dr. Bender, parado em frente a eles.

– O que está havendo aqui? – ele parecia nervoso. – É verdade que você não deixou minha filha me ligar?

Tessa olhou para o lado e viu Martha sorrir para ela com um sorriso maroto de avó, e ela se lembrou de tê-la visto ao telefone alguns minutos antes.

Sim, é isso aí, garota.

– Dora – o dr. Bender disse –, vá pegar suas coisas. Não vou sair daqui sem você.


Cheguei ao outro helicóptero e encontrei uma poça de sangue no piso da cabine do piloto e manchas finas espalhadas pelos painéis de controle e pelos assentos.

Ele cortou Cli?. E o corte foi feio.

Nenhum sinal de Cli? ou do assassino, mas o corpo de Amy Lynn estava no banco de trás.

Ela não estava se movendo e quando fui medir o pulso, percebi que seu pescoço estava grotescamente inchado. Sem pulso, sem respiração e com as vias aéreas bloqueadas, eu não podia tentar reanimação. Não havia nada que eu pudesse fazer por ela. Então, uma protuberância espessa se mexendo embaixo de sua camisa confirmou o que o assassino havia feito.

Senti os dentes travando.

Como um pequeno gesto de respeito, balancei a cobra para fora de sua camisa e a chutei para fora do helicóptero.

Eu sabia que o assassino estaria pronto para mim, mas Cli? obviamente estava sangrando abundantemente, e eu não iria ficar por ali esperando os reforços chegarem. Agarrei o kit de primeiros socorros do helicóptero, tirei um rolo de esparadrapo e enfiei no bolso.

Uma trilha de sangue ia do helicóptero até a mina. Mirei minha arma para a entrada. Saquei minha lanterna.

E entrei no túnel.


110


Logo na entrada da mina.

Ar frio.

Silêncio, exceto pelos sons fracos de água pingando em algum lugar fora de vista.

Passei a luz pelo túnel. Vi as vigas toscas de suporte, os minerais brilhando nas paredes, os trilhos estreitos aos meus pés. O lugar onde John havia deixado o corpo de Heather Fain.

Por um momento, visualizei seu corpo deitado ali, o coração arrancado de Chris Arlington repousando sobre seu peito, as dez velas que a cercavam. Senti minha raiva se tornar determinação. A história aterrorizante de John havia começado nesta mina abandonada há uma semana e terminaria aqui, esta noite.

Nenhum sinal de alguém no túnel.

A trilha de sangue acabava aos meus pés. No distante alcance do feixe de luz da lanterna, um túnel cruzava, levando para o leste. Corri até ele, desliguei a lanterna e me abaixei. Após tomar fôlego para me estabilizar, virei a esquina, ligando minha lanterna novamente. O feixe cortou o ar?negro.

Ninguém.

Desliguei a lanterna e espiei pelo escuro, primeiro este túnel, então o principal, mas não vi nenhuma outra luz. Não ouvi nada.

Qual túnel ele pegou?

Lanterna ligada novamente, inspecionei as duas ramificações da mina.

Nada na passagem principal, mas finalmente, cerca de cinco metros para dentro do túnel lateral, encontrei mais sangue.

Apenas alguns passos depois, ele desaparecia.

As gotas de sangue eram ovais, e baseado em seus tamanhos, formas e proximidade, percebi que os homens deviam estar se movendo rapidamente. A trilha ainda estava úmida, mas fácil de desaparecer no solo escuro.

Levei um momento para marcar o túnel, para que Cheyenne e a equipe de resgate pudessem encontrá-lo quando chegassem, então corri pela passagem na direção da próxima intersecção.


Dora fechou a mochila da escola.

– Então, acho que vejo você amanhã.

– Sim – Tessa disse. – E olha, muito obrigada por toda sua ajuda hoje, sabe, com o diário.

– Sem problemas. Espero que você encontre seu pai.

– Eu também.

Dora jogou a mochila sobre o ombro e, quando virou na direção da porta, acertou a caixa de joias de Tessa sobre a penteadeira e todos seus colares e brincos se espalharam pelo carpete.

– Ai, me desculpe!

– Está tudo bem – Tessa se inclinou para pegá-los. – Não tem problema.

– Quase pronta? – o dr. Bender chamou do andar de baixo.

– Já estou indo! – Dora gritou. Ela estava ajoelhada ao lado de Tessa, ajudando a recolher as joias. – Sério, eu devia ter tomado mais cuidado. Bagunçando as coisas. Pandora, né? Faz sentido.

Tessa fez uma pausa, com a mão sobre a caixa de joias.

– Espere. O que você disse que minha mãe escreveu? Sobre esta caixa.

– Ela queria lembrar o dia em que mudou de ideia.

– Certo – Tessa levantou a caixa, tirou tudo que estava dentro e a deu para Dora.

– O que você está fazendo?

– Quero que fique com você.

O rosto de Dora estava surpreso.

– Não, sua mãe deu isso pra você.

– Lembra da história, da sua história? A última coisa a sair da caixa.

– Dora! – a voz do dr. Bender subiu pela escada. – Tudo certo?

– Eu já vou! – ela gritou.

– Hoje de manhã, Martha me disse que eu não deveria me castigar por alguma coisa sobre a qual eu não tenho controle.

– Você quer dizer sobre sua mãe não querer ficar com você.

– Sim. Mas você está fazendo a mesma coisa. A morte daquele bebê não foi culpa sua. Eu quero que você se lembre disso. Esperança. Um novo começo. A última coisa a sair.

Dora finalmente aceitou a caixa.

– Obrigada – ela disse suavemente. – Eu entendo.

Quando estavam saindo do quarto, Tessa viu o diário sobre a cama.

Ela o pegou e partiu para a escada.


Nada.

Andei pelo túnel o mais rápido que pude, mas após 10 minutos ainda não havia encontrado nem o coronel Freeman nem o assassino.

A trilha de sangue parava e recomeçava intermitentemente, mas sempre aparecia em cruzamentos ou no topo das escadas de madeira que levavam para o fundo da mina. John estava controlando o sangramento de Cli?, usando o sangue para me guiar.

Como um cordeiro para o abate.

Eu descia uma escada ou uma série de escadas, chegava em outro túnel, seguia a direção do sangue, então a trilha desaparecia até eu chegar em outra intersecção ou poço marcados com mais sangue, e então eu descia de novo.

Tudo um jogo elaborado.

Mas desta vez ele não ia ganhar.

Mais cedo, quando comecei a imaginar se Grant Sikora havia me dito o nome “Ari” e descobri que Ari havia sido visto em público com Amy Lynn, comecei a duvidar de que ele fosse John.

O verdadeiro assassino era muito meticuloso, muito cuidadoso. Basea do em tudo que sabíamos sobre ele, com seu intelecto, sua aptidão, ele nunca teria contado a Sikora seu nome verdadeiro. Ou ainda: não teria sido visto em público com Amy Lynn.

Mesmo a ideia de ligar para fazer a denúncia anônima de dentro do escritório da expedição era muito perfeita. Muito elaborada. Deixava uma seta gigante apontando para ele.

A rota sinuosa marcada por sangue me levava cada vez mais fundo, para as partes mais primitivas e menos conservadas da mina. Aqui, mais fissuras e rachaduras percorriam as paredes. Menos vigas de suporte sustentavam o teto, e eu podia ver evidências de mais desmoronamentos.

Mas se Ari não era o assassino, quem era?

Eu ainda não sabia.

Desci por mais três escadas, todas marcadas levemente pelo sangue, e estava prestes a descer uma quarta quando ouvi um movimento abaixo de mim. Acendi a lanterna. Escutei.

Mais nada.

Olhei pela escuridão e vi um fraco indício de luz vindo de algum lugar no túnel onde a escada terminava, cerca de 15 metros abaixo.

Mantive a lanterna desligada, desci o mais rápido que pude, tateando os degraus com pés e mãos.

Eu havia descido até o décimo degrau quando ouvi uma voz, definitivamente uma voz. Congelei. Escutei.

Sim, era Cli?, isso eu podia dizer. E mesmo não conseguindo entender a maior parte do que ele estava gritando, ouvi as palavras “manipulado” e “explosão” antes que ele fosse abruptamente calado.

Comecei a descer de novo, observando cuidadosamente quaisquer movimentos abaixo de mim. Pensamentos se atropelavam na minha cabeça.

A sala de evidências em Chicago... o centro de expedição em Denver... a localização das câmeras de segurança do hospital... quem poderia ter tido acesso a todos eles?

Ele tem noção de técnicas forenses. Ele sabe sobre venenos e toxinas, incêndios, autodefesa, sabe como mascarar localizações por GPS...

Alcancei o túnel.

Estrategicamente, eu estava em uma posição terrível. Se John tivesse uma arma apontada para o final da escada, assim que eu descesse, tudo estaria acabado.

Eu precisava descobrir se havia alguém esperando por mim, e parecia que havia luz suficiente para isso. Dobrei minhas pernas contra a lateral do poço, me pendurei em um degrau com uma mão como eu fazia quando escalava pelo teto da minha garagem e segurei a arma com a outra mão. Então, mergulhei a cabeça para dentro do túnel por uma fração de segundo. Não vi ninguém.

Rapidamente me reposicionei, e então, com a arma preparada, desci até o chão.

Ainda ninguém.

Apenas um fino borrão de luz chegando a mim de uma curva a cerca de 10 metros. Tremeluzindo. Ondulando. Provavelmente de uma lanterna ou uma tocha.

Pensei nas velas cercando o corpo de Heather Fain.

Todas as dez estavam queimando quando chegamos.

Todas as dez.

O fluxo de cera nos disse que estavam queimando há duas horas.

E havia velas na casa de Reggie também.

O assassino mandou a ele uma mensagem de texto para se apressar em ir para casa.

Reggie havia tentado manter Amy Lynn fora da custódia de proteção... Foi ele que levou o desenhista de retrato falado para visitar Kelsey Nash e Thomas Bennett...

Três das velas se apagaram enquanto estávamos investigando o corpo de Heather.

Duas estavam apagadas no quarto dos Greers.

Reggie foi chamado para analisar a mina, a casa do rancho, a garagem de Taylor, as marcas de pneus... O vaso de manjericão foi enviado para sua esposa...

Era tudo tão perfeito. Tão inteligente.

Um cordeiro sendo levado para o abate.

O forno ainda estava sendo pré-aquecido.

Sim.

Era isso. Essa era a chave.

O cubo girou. O último lado se encaixou no lugar.

O assassino não podia ser Reggie.

Só uma pessoa poderia ter cometido esses crimes.

Lenta e cuidadosamente, com a SIG preparada, me movi pelo túnel na direção do homem que havia provado ser um dos mais brilhantes criminosos que eu já tinha conhecido.

John.

Giovanni.

O Assassino do Quarto Dia.

Meu amigo, o tenente Kurt Mason.


111


A curva do túnel e a luz dançante e tremeluzente estavam bem à minha frente.

– Kurt – chamei. A palavra ecoou assustadoramente pelo ar empoeirado. – Solte Cli?. É hora de acabar com isso.

– Parabéns, Pat – ele respondeu de algum lugar depois da curva. – Bem-vindo à história.

Respirei fundo, ergui minha SIG e virei a esquina.

Cli? estava parado a 10 metros de mim, um pedaço de fita adesiva sobre a boca.

Kurt estava atrás dele, uma navalha contra seu pescoço. Ele havia torcido o braço de Cli? para trás das costas para imobilizá-lo.

Olhei pela mira.

– Mãos para o lado.

– Você acabou de dizer o meu nome. Você sabia que era eu. Como?

Sangue pingava do braço direito de Cli?, formando uma mancha escura no chão. Com base na quantidade de sangue que ele já havia perdido, fiquei surpreso por ele ainda estar consciente. Ele precisava de cuidados médicos, e rápido.

– O forno. Ele ainda estava sendo pré-aquecido quando nós chegamos.

Confusão.

– O forno?

Kurt havia se posicionado cuidadosamente atrás de Cli?, de modo que apenas uma parte de seu rosto estava visível. Mirei minha arma em seu olho.

– Não estou brincando, Kurt. Largue a lâmina – mas mesmo dizendo essas palavras, eu sabia que não conseguiria acertar o tiro. Cheyenne era a única pessoa que eu já havia conhecido que poderia ter acertado uma bala no olho de Kurt daquela distância.

– Você não vai atirar em mim, Pat. Me conte sobre o forno.

Uma rápida avaliação do túnel: uma lamparina estava pendurada em uma viga de suporte entre nós. À esquerda de Kurt, uma plataforma que provavelmente havia sido usada para descer carrinhos de minério estava suspensa a cerca de um metro por um poço de acesso. Mesmo de onde eu estava, dava para ver explosivos C-4 ligados às paredes do poço. Considerando as palavras de Cli? “manipulado” e “explosão”, eu tinha uma boa ideia do que Kurt tinha em mente. Uma viga no teto acima da plataforma segurava uma polia dupla e o mecanismo de soltura da corda.

– Você deveria ter comprado velas de melhor qualidade – eu disse.

Ele não respondeu.

– Quanto tempo demora para um forno esquentar até 230 graus?

Ele levou um momento para pensar. – Então você sabia que o assas sino não tinha ido embora há muito tempo.

– Sim. E duas das velas na penteadeira haviam se apagado, mesmo tendo acabado de ser acesas. Então isso me fez pensar na mina. Como poderiam todas as 10 velas estar queimando quando nós chegamos? Todas as 10 queimando continuamente por duas horas? Três se apagaram no curto tempo em que ficamos analisando a cena.

– Ah – ele disse. – Muito bom.

– Você foi o primeiro a chegar à mina, Kurt, você me disse. Você não acendeu as velas quando deixou o corpo de Heather, você as acendeu depois que respondeu à chamada de emergência, logo antes do resto de nós chegarmos.

– Você realmente é bom, Pat, mas tudo isso é conjuntural.

– Talvez eu esteja aprendendo a confiar no meu instinto – apoiei o dedo sobre o gatilho. – Agora, estou lhe dizendo, coloque as mãos para o lado.

– Isso não vai acontecer. Jogue sua arma.

– Solte a navalha, Kurt, ou juro, eu atiro em você.

Ele olhou para o sangue pingando da mão direita de Cli?. – Você realmente quer ficar enrolando? Não o deixe morrer assim, Pat. Ele tem uma família. Vou deixá-lo viver se você cooperar comigo aqui. Agora, por favor, jogue sua arma para mim.

Uma corrente de ódio e desespero.

Pense, Pat. Pense.

Opções: (1) atirar e arriscar acertar Cli?; (2) enrolar e vê-lo morrer; (3) obedecer e ganhar algum tempo.

O rosto de Kurt era apenas parcialmente visível. Apenas parcialmente.

Atire, Pat. Atire.

Tomei um pequeno fôlego.

Mirei.

Mirei.

Mas não pude fazer. Eu não podia arriscar atingir Cli? no rosto.

Obedeça, Pat. Ganhe algum tempo.

Soltei a coronha da SIG, deixei a arma se pendurar apenas pelo meu dedo do gatilho. Então, lentamente, levantei as mãos. – Você não tem como escapar disso, Kurt – eu não podia acreditar que esse homem havia sido meu amigo. Que eu cheguei a confiar nele. – O reforço vai chegar aqui a qualquer minuto.

Ele balançou a cabeça. – Você estava sozinho quando entrou na mina. Cheyenne partiu no helicóptero. Nós temos bastante tempo. Agora, jogue sua arma para mim. Assistir a garganta de alguém sendo cortada é muito perturbador. Uma vez que você vê, a imagem nunca vai embora.

Vi Cli? tremendo. Kurt gesticulou na direção do poço equipado com C-4. – Não é algo que você quer repassando na sua cabeça pelos próximos três meses.

Três meses?

Olhei para o poço por um momento e entendi o que ele estava dizendo.

Ele pressionou a navalha contra o pescoço de Cli?, e uma fina linha de sangue apareceu.

– Ok! – gritei.

– Da próxima vez vai ser mais fundo.

– Tudo bem. Estou fazendo – me inclinei para o chão.

– Lentamente.

Lancei a SIG a meio caminho entre a gente.

– Não se preocupe – eu disse para Cli?. – Vou tirar você dessa.

Ele acenou discretamente com a cabeça.

– Agora, sua faca e seu celular – Kurt disse. – Desta vez, jogue até aqui.

– Deixe-me estancar o sangramento dele, Kurt. Daí você pode...

– Jogue-os para mim.

Pensei por um momento, então lancei minha Wraith para ele. Ela caiu aos pés dele e ele a chutou para o lado, mandando-a para dentro do poço. Então joguei para ele o telefone de Tessa, que ele destruiu com o calcanhar.

– Minha enteada não vai ficar feliz com isso.

– Esvazie os bolsos, Pat. Devagar. Não tente nenhuma gracinha.

Tudo que eu tinha comigo era minha lanterna, a chave do meu carro e o rolo de esparadrapo do kit de primeiros socorros do helicóptero. Comecei a pegá-los, um de cada vez.

– Cheryl não está na irmã dela, não é, Kurt?

– Ela está com Ari. Bolsos de trás.

– Mortos? Eles estão mortos?

Ele não respondeu. Guardei no bolso a lanterna, a chave e o esparadrapo.

– Onde eles estão, Kurt? Você pode pelo menos me dizer isso.

– Acontece que Ari alugava uma unidade de autoarmazenamento. Vou visitar os dois quando tiver acabado aqui. Agora, deixe-me ver seus bolsos de trás.

Se ele vai visitá-los, eles ainda estão vivos.

Mostrei a ele que meus bolsos de trás estavam vazios, então o encarei novamente bem a tempo de vê-lo enfiando uma agulha no pescoço de Cli? e apertando o êmbolo.

– Não! – corri na direção deles.

– Pare! – Kurt puxou a cabeça de Cli? para trás, a lâmina em seu pescoço.

Eu congelei, mas procurei uma chance de agir. Minha arma estava a apenas alguns metros de mim.

Os olhos de Cli? viraram para trás, ele ficou mole e Kurt o colocou no chão.

– O que você injetou nele? – gritei.

– É só para derrubá-lo. Para nos deixar um pouco a sós. Afaste-se da arma.

Fiquei onde estava.

Ele sacou uma Wilson Combat 1911 e mirou em mim.

– Para trás.

Eu fui.

– Mais longe.

Ele gesticulou para eu recuar até que eu estivesse longe demais para pular até a SIG, então ele fechou o navalha e a enfiou no bolso. Continuou com a arma e chutou a minha para dentro do poço.

– Kelsey deveria ter morrido no freezer, não é? – eu disse. – E ela podia identificar você, por isso você mandou Reggie com o desenhista de retrato falado e também não quis entrar no quarto dela no hospital. Você vai voltar atrás dela? De Calvin também? Sem deixar pontas soltas?

Ele não respondeu, e eu entendi aquilo como um sim.

Ele sacou um par de algemas. Lançou-as para mim. Elas caíram aos meus pés.

– Normalmente, eu prefiro cordas, mas é muito difícil para uma pessoa amarrar a si mesma – ele gesticulou na direção das algemas. – Coloque-as.

Não me movi.

– Além de Londres no ano passado, houve outras histórias? Há quanto tempo você vem fazendo isso?

Ele mexeu a arma apontando para as algemas.

– Algeme-se com as mãos para trás, Pat. Quando você chegar lá embaixo eu jogo a chave.

Eu ainda não me movia e ele disparou a 1911, fazendo uma nuvem de poeira explodir aos meus pés.

– Coloque as algemas ou a próxima bala vai ser na sua perna.

Acreditei nele. Peguei as algemas.

– Vou conseguir escapar.

– Não tem como escapar. Não depois que o poço tiver explodido.

– Você não me conhece. Eu vou escapar.

– Eu conheço você, Pat. Lembra? Fui eu que pedi para você participar da força-tarefa. Estive observando você. Eu o conheço muito bem. Não há escapatória. Eu me certifiquei. Agora, coloque...

– Ótimo.

Ele estreitou os olhos.

– Ótimo?

– Que não há escapatória – enquanto eu falava, analisei o sistema de polias, a alavanca de soltura, as cordas, todos acima do poço. – Porque podemos levar muito tempo cavando para te encontrar depois que eu deixar você lá embaixo, e eu não gostaria que você fosse a lugar algum – fechei a algema em volta do meu pulso esquerdo.

Ele me observava cuidadosamente, com bastante cautela.

– Continue. O outro pulso.

Tive uma ideia e comecei a fechar a outra algema em volta do meu pulso direito...

– Não. Atrás das costas. Espere. Primeiro, jogue suas chaves. Você tem um conjunto de abrir fechaduras em seu chaveiro. Eu já vi.

Ah, aquilo não era bom. Não mesmo.

Saquei minha lanterna para poder pegar as chaves.

– Você pode ficar com a lanterna. Eu quero que você passe alguns dias explorando sua nova casa.

Lancei minhas chaves para ele e coloquei a lanterna de volta no bolso.

– Onde está o padre Hughes? De acordo com a história de Boccaccio, o padre deve sobreviver. Ele ainda está vivo?

– É difícil dizer. Ele está acorrentado a um poste, assim como o padre Alberto na história de Pampinea. Mas agora que ele está há quase uma semana em Dover’s Ridge, e nevou ontem, não acho que as chances dele sejam muito boas.

O ódio latente dentro de mim se acendeu. Eu precisava relaxar ou cometeria um erro. E um erro fatal.

– Agora, a outra algema.

Se eu a trancasse, não teria como escapar. Estaria tudo acabado.

– Vai ser você que vai encontrá-lo? O herói? – coloquei os dois braços para trás das costas.

– Existem muitas maneiras de as coisas acontecerem. Essa é uma delas.

– E Cheryl e Ari?

– Estou trocando Amy Lynn e Cli? para a história oito...

– Você disse que iria deixar Cli? vivo.

– Eu menti para você, Pat. E quanto a Ari e Cheryl, eu ainda tenho que contar a história número nove, então parece que vou servir o coração do sr. Ryman para minha esposa no jantar de hoje à noite.

Kurt havia planejado cada detalhe, cada acontecimento, e mesmo percebendo que havia algumas pontas soltas, não eram muitas, e eu tinha a sensação de que ele já tinha tomado providências para corrigir isso.

Pense, Pat. Pense!

Eu estava com as mãos nas costas, mas não havia fechado a segunda algema.

– Mas por quê, Kurt? Por que matar essas pessoas?

Ele pensou por um momento.

– É interessante ver as pessoas morrendo.

Ele não disse mais nada, e sua resposta simples e forte me deu calafrios.

– Mas e quanto à morte de Hannah? – eu disse. – Você sofreu quando ela morreu. Eu mesmo vi.

– Eu não sofro. Eu atuo – ele mirou a arma no meu rosto. – Agora, termine de fechar a algema. Quero ouvir o estalo de quando ela fecha.

Eu não tinha mais certeza de que poderia escapar.

– Você vem planejando isso desde a morte dela, não é? Quando Amy Lynn entrevistou você, foi aí que você a escolheu para a história.

Senti o volume da minha lanterna no meu bolso de trás.

Sim, é isso.

– Você é Galeotto? Do Inferno de Dante? É isso? Você se vê como um cavaleiro que une amantes com a morte?

– Bryant te disse isso – então ele partiu na minha direção. Ele deve ter se cansado da minha enrolação.

Pressionei a algema contra as costas e a fechei até estalar.

– Vire-se – ele parou de andar, mantendo a arma apontada para mim. – Deixe-me ver.

Virei-me. Mostrei a ele meus pulsos, algemados juntos.

– Ok – ele disse. – Venha aqui.

Então eu o encarei e, enquanto me aproximava dele lentamente, peguei minha lanterna do bolso de trás e comecei a desatarraxar o cilindro da tampa que protege a lâmpada.

Responda à altura.

Tudo bem.

Acredito que responderei.


112


Consegui desatarraxar o cilindro, mas não era essa a parte que eu precisava. Deslizei o corpo da lanterna de volta para dentro do meu bolso.

Mais tempo. Um pouco mais de tempo.

Analisei novamente o túnel. As paredes e o teto de pedra me lem bravam a caverna de escalada em minha garagem. Como eu poderia transformar isso em vantagem para mim? A lanterna? Jogá-la nele? Arrumar um jeito de tomar sua arma?

Kurt mantinha sua 1911 apontada para mim, mas usava um dedo para batucar em um detonador remoto que segurava na outra mão. O visor do detonador mostrava 30 segundos, mas ele ainda não havia começado a contagem. Ele colocou o dispositivo no bolso.

Parei de andar.

– Então, 13 anos atrás no Meio-Oeste. Foi você ou Basque?

– Não fui eu. Mas os crimes chamaram minha atenção – ele veio na minha direção.

Só mais um pouco.

– Você era um fã.

– Não. Um competidor. Por uma audiência. Como eu te disse no sábado, os artigos eram meu relatório de avaliação – ele agarrou meu braço e me puxou na direção da plataforma pendurada a um metro abaixo de nós no poço que estava programado para explodir. – Agora, chegou a hora da história número dez.

Deixei-o me conduzir.

– E o julgamento de Basque? Você carregou a arma?

– Mês passado, na sala de evidências.

Quando chegamos até a borda, ele pegou o detonador.

– Desça – ele disse.

Não me movi.

– Antes de descer, tenho um pequeno conselho para você, Kurt.

– O quê?

– Nunca deixe um homem algemado que sabe como abrir fechaduras sozinho com a mola de arame da sua lanterna.

E então, eu estava sobre ele.


113


Uma expressão de choque passou pelo seu rosto quando derrubei a arma de sua mão e soquei-o na mandíbula o mais forte que pude, assim como havia feito com Basque.

E a sensação foi tão boa quanto.

Kurt tropeçou para trás, mas se endireitou.

– Certo, que seja assim – eu estava para pegar a arma quando ele sacou a navalha. Ele tocou a tela do detonador e a contagem regressiva começou. :29

:28

– Hora de terminar a história, Pat.

Ele correu na minha direção, atacando com a navalha, mas pulei para o lado. Agarrei seu antebraço, e ambos caímos sobre a plataforma.

Nos estatelamos contra as tábuas, e ele conseguiu segurar a navalha, mas o detonador voou de sua mão.

Vi na tela.

:23

Ele atacou com a lâmina para o lado do meu pescoço, mas eu o empurrei para longe de mim e me levantei.

Eu estava do lado errado da plataforma, preso no canto oposto ao túnel.

Ele segurou a navalha contra uma ponta da corda que passava pelo dispositivo de freio. Cortou-a. A plataforma vacilou mas não caiu.

Ela cairia se ele cortasse a outra ponta.

:20

Ele se afastou um pouco na direção do chão para poder sair da plata forma antes de cortar a corda.

– Adeus, Pat.

– Tchau, Kurt.

Pulei e agarrei a viga de madeira que segurava as polias, então balan cei minhas pernas e o chutei com os dois pés, com força, no peito.

:17

Ele voou para trás sobre a plataforma e antes que pudesse levantar, ergui meus pés até o teto, assim como quando estou praticando escalada. Plantei um pé contra o dispositivo de freio segurando a ponta da corda e o outro contra a alavanca de soltura. Chutei com força. A alavanca se abriu completamente.

E a plataforma caiu.

:13

– Não! – o grito de Kurt cortou o ar ao meu redor.

Mantive a contagem em minha cabeça, joguei as pernas para o lado. Caí no chão ao lado do poço.

:10

Ouvi o barulho sólido do impacto vindo do fundo do buraco.

– Eu vou te pegar! – ele berrou. Ele não parecia seriamente ferido.

Corri até Cli? e arrastei-o na direção da curva.

:06

Virando a esquina.

:04

A explosão seria ensurdecedora. Me ajoelhei ao lado dele.

:02

Apertei meus joelhos contra os ouvidos dele...

:01

...botei as mãos sobre os meus.


Bum.


Uma explosão estrondosa, um som destruidor.

Então, o ar me sufocou. Poeira. Terra. Rochas caindo ao meu redor.

Uma pancada em minha cabeça.

E tudo ficou preto.


114


53 minutos depois

Olhos fechados.

Movimentos abaixo de mim. Centenas de serras elétricas zumbindo em minha cabeça.

Uma leve oscilação, o chão balançando. Ou talvez não fosse o chão. Talvez fosse tudo um sonho, outro sonho. Eu gemi e ouvi uma voz doce e próxima. Uma voz de mulher.

– Pat.

Minha cabeça estava latejando, martelando.

– Lien-hua – murmurei.

– Sou eu. Estou aqui.

– Eu sabia que você viria – abri os olhos para um mundo borrado e a vi inclinada sobre mim. – Nós ainda podemos... – sussurrei – ... vamos tentar novamente... eu preciso de você.

Mas quando pisquei e espantei o sonho, o rosto de Lien-hua se dissipou e o de Cheyenne apareceu em seu lugar. Atrás dela vi paredes de metal. Um teto. Prateleiras de suprimentos de primeiros socorros. Estávamos dentro de uma ambulância.

– Me desculpe – eu disse suavemente. – Eu pensei...

– Shhhh – ela passou a mão em minha testa. – Está tudo bem. Você está... você sabe onde você está?

Acenei levemente com a cabeça.

– Era Kurt – minha voz soava grossa e seca.

– Nós sabemos – Cheyenne disse. – Cli? acordou antes de você. Ele nos contou tudo – ela balançou a cabeça em descrença. – É inacreditável.

– Sim – mesmo já tendo tido mais tempo do que ela para digerir tudo, eu ainda estava me recuperando do fato de Kurt ser o assassino.

Testei meus membros. Tentei me mover. Tirando minha cabeça dolorida, eu parecia estar bem. Um paramédico estava sentado ao lado de Cheyenne.

Sorri com fraqueza para ela.

– Então, você encontrou minha trilha?

– Seria difícil errar com aquelas faixas de esparadrapo em cada cruzamento.

– E Cli?, está bem?

– Ele vai ficar. Foi levado de helicóptero – ela gesticulou para o veículo. – Você ficou com esse carrinho de açougue.

– É justo – minha cabeça ainda estava um pouco atrapalhada. – Cody?

– Consegui levá-lo para o Hospital Evergreen sem cair. Ele está passando bem, até me agradeceu por ter salvado a vida dele, então acho que voltamos a pelo menos nos falar novamente. Pequenos milagres.

O paramédico, um homem latino de 30 e poucos anos, colocou dois dedos contra meu pulso, para checar meus batimentos. Eu não fazia ideia de por quanto tempo tinha ficado desacordado.

Tentei vasculhar o emaranhado de lembranças que lutavam pela minha atenção: a entrada na mina... seguindo a trilha de sangue... a conversa com Kurt antes da explosão...

– Dover’s Ridge – murmurei para Cheyenne –, procure pelo padre Hughes em Dover’s Ridge, ele está acorrentado a um poste... talvez um poste de telefone, eu não sei... e Cheryl e Ari estão presos em um serviço de armazenagem... no nome de Ari – eu podia me sentir desmaiando, mas vi Cheyenne pegar o celular. – Eu não sei qual... você precisa checar...

– Eu vou checar. Relaxe.

Tentei pensar, mas tudo estava ficando embaçado. Enquanto desmaiava, vi o paramédico se inclinar por cima de mim enquanto Cheyenne digitava em seu telefone.

E caí no sono novamente.


Sonhos. Vozes. Sussurros. Promessas feitas e quebradas.

Então, uma pressão suave em minha mão direita e eu abria os olhos novamente.

Ainda na ambulância. Cheyenne ao meu lado, sua mão sobre a minha. Ela estava falando ao telefone com alguém.

Tirei minha mão de debaixo da dela e perguntei ao paramédico por quanto tempo fiquei apagado.

– Apenas alguns minutos. Encontramos você há cerca de uma hora. Seus amigos de escalada da equipe de resgate são bons.

Acenei com a cabeça.

– O que aconteceu comigo? – minha voz ainda não soava natural.

– Uma pedra caiu na sua cabeça. Parece uma concussão. Tirando isso...

– Levante-me.

Precisei convencê-lo, mas finalmente ele inclinou a parte da cabeça da maca para cima. Cheyenne ainda estava ao telefone, então pedi a ele para me emprestar o dele. Meio relutante, ele entregou-o para mim.

Digitei o número da divisão de crimes cibernéticos. Estava com medo de ficar inconsciente novamente, então assim que Angela atendeu, expliquei a ela que não tinha muito tempo para conversar.

– Me fale sobre Paul Lansing. Acho que ele pode ser o pai biológico da minha enteada.

Ela não respondeu imediatamente.

– Angela, o que foi?

– Eis o que você precisa saber por enquanto: ele mora nas montanhas de Wyoming. Não tem carteira de motorista. Não tem conta em banco. Ele não possui telefone nem computador; não usa cartões de crédito nem paga contas de serviços públicos.

– Ele está vivendo escondido – murmurei.

A ambulância desacelerou.

– Seus registros são impecavelmente limpos – ela disse.

– Limpos demais?

– Talvez.

– Escute, descubra tudo que puder sobre ele. Eu te ligo quando pegar meu computador. Espere pela minha ligação, ok?

– Certo.

– Continue procurando. Veja o que você consegue encontrar.

– Verei.

Pelas janelas de trás da ambulância eu podia ver que já havíamos chegado ao hospital. As palavras de Angela me perturbaram. Um homem normalmente não desaparece nas montanhas e some do mapa a menos que esteja fugindo de alguma coisa.

O paramédico pegou seu telefone de volta. Cheyenne encerrou sua ligação e então perguntou:

– Pat, você sabe se Kurt sobreviveu à explosão?

– Eu acho que ele teve tempo suficiente para entrar no túnel antes que o poço explodisse. Mas não tenho certeza.

– Existe alguma outra saída naquela passagem?

– Eu acho que não. Ele escolheu aquele túnel por uma razão: não havia como escapar – imaginei o quanto demoraria para uma equipe de resgate tirá-lo dali. Talvez semanas. Talvez eles nem se importassem. Esse era um pensamento satisfatório.

Cheyenne pensou nas minhas palavras por um momento.

– Thomas Bennett e a esposa eram donos da mina. Ela deverá saber se existem outras passagens.

– Boa ideia – eu disse.

A ambulância parou e o paramédico abriu as portas de trás enquanto Cheyenne ligava para a central de polícia para pedir o número de Marianne Bennett.

Dois paramédicos correram em nossa direção do hospital e, com a ajuda do homem que havia me acompanhado, me tiraram da ambulância.

– Vejo você lá dentro – eu disse para Cheyenne, e então as portas da sala de emergência se abriram e os três homens me empurraram para dentro do prédio.


6 minutos depois

Minha enfermeira colocou de lado o medidor de pressão arterial.

– O médico virá falar com você em um minuto.

– Obrigado.

Eu tinha ficado tão grogue na ambulância que nem pensei em per guntar para Cheyenne como Calvin estava. Então, assim que a enfermeira saiu do quarto, levantei-me para encontrá-lo.

Me senti um pouco tonto, mas consegui dar dois passos antes de a porta se abrir novamente.

Cheyenne.

Um pequeno sorriso.

– Vai a algum lugar?

Apoiei uma mão contra a parede.

– Só ia ver como Calvin está.

– Eu estava com ele agora a pouco. Nenhuma mudança – ela olhou para mim com preocupação. – Você não deveria estar andando por aí.

– Eu estou bem.

Tirei minha mão da parede e mostrei a ela que podia ficar em pé por minha conta, mas ela segurou meu braço para me apoiar.

– Pat, desde sexta-feira você escapou por pouco de ser queimado vivo, picado por uma cascavel, trancado em uma mina, explodido e esmagado por uma pedra.

– Imagine se tivessem sido dias movimentados – eu disse.

Ela me deu um meio sorriso.

Ela havia deixado a porta levemente aberta. Atrás dela eu podia ver as portas da frente do hospital.

– Obrigado por me tirar daquela mina – eu disse. Ela ainda segurava meu braço.

– Eu disse que voltaria para buscar você.

Suas palavras me lembraram dos comentários que eu havia feito enquanto estava acordando na ambulância. Eu murmurei o nome de Lien-hua, e falei que estava feliz por ela ter voltado. Que eu precisava dela.

Gentilmente, tirei a mão de Cheyenne do meu braço.

– Cheyenne, quando eu acordei na ambulância, pensei que você fosse outra pessoa.

– Lien-hua.

– Sim.

– Está tudo bem. Eu sei. Você estava grogue.

Procurei pelo melhor jeito de equilibrar honestidade com sensibili dade. Obviamente eu gostava tanto dela quanto de Lien-hua, mas achei que deveria ser sincero com ela. Contar tudo para ela.

Cheyenne deve ter percebido que eu estava lutando para saber o que dizer.

– Sério, Pat. Está tudo bem. Eu entendo. Você não precisa explicar.

Aqui as coisas ficaram complicadas.

– Bem... veja... talvez eu precise.

Silêncio.

– Ah – ela disse suavemente. Seu tom imitou a distância que já estava aumentando entre nós. – Entendo.

– Escute, talvez eu só precise de um tempo para entender meus sentimentos.

– Sim, claro, faz sentido.

A voz dela estava se quebrando, uma fina rachadura que percorria cada palavra.

Ela é tão solitária quanto você e você a machucou.

Você a machucou.

Eu queria pegá-la em meus braços, abraçá-la, dizer a ela que eu sentia muito, mas eu sabia que se fizesse, seria uma maneira de fazer uma promessa que meu coração não estava pronto para cumprir.

– Cheyenne, isso é muito...

– Você pode me dizer só uma coisa, Pat? Por favor.

– Claro.

– Ano passado eu convidei para sair mais de uma vez e nunca dava certo, e eu entendi tudo aquilo, mas... – ela tomou fôlego suavemente. – Tem alguma chance de ainda acontecer?

Ah, não!

Não era assim que as coisas deveriam acontecer.

– Cheyenne, você é uma mulher incrível e eu... quero dizer, se eu não estivesse...

Mas ela me interrompeu levantando a mão.

– Não, tudo bem. É o suficiente.

– Me desculpe.

– Por favor, não precisa se desculpar. A verdade – ela disse suavemente – cai bem em você.

No momento que se seguiu, nossos olhos disseram adeus e eu me senti desamparado, aprisionado pelos meus sentimentos em relação a essas duas mulheres que pareciam, de maneiras diferentes, estar fora do alcance: Lien-hua, por causa do meu passado. Cheyenne, por causa de Lien-hua.

Então, pela porta, vi Tessa e minha mãe entrando na sala de emergência.

– Talvez possamos conversar mais sobre isso depois – eu disse.

Cheyenne virou-se para ver quem eu estava olhando.

– Está tudo bem. Acho que conversamos o suficiente sobre isso – sua voz não continha nenhuma hostilidade e, por algum motivo, isso fez com que eu me sentisse pior.

Antes que eu pudesse responder, ela saiu e acenou para Tessa, e então desapareceu pela curva, e minha mãe e minha enteada se apressaram para me encontrar no quarto.

Percebi que era hora de conversar com Tessa sobre o pai dela.


115


Minha cabeça ainda doía, mas, tirando isso, me sentia bem. Então, após assegurar para minha mãe que eu estava bem, pedi a ela para esperar no saguão por alguns momentos para que eu e Tessa tivéssemos a chance de conversar.

Ela não parecia convencida de que eu estava bem.

– Eles nos falaram que uma pedra caiu na sua cabeça.

– Uma pedra pequena – eu disse.

Ela sorriu de um jeito cuidadoso e preocupado.

– Tudo bem, mas nós não vamos sair desse hospital até que um médico dê uma olhada em você.

– Combinado.

Isso a satisfez e ela saiu para o saguão enquanto eu guiava Tessa na direção da estação de enfermagem, onde descobrimos que Calvin estava no quarto 131.

– Patrick – Tessa disse –, estou muito feliz que não era uma pedra grande.

– Obrigado. É muito gentil da sua parte.

Seguimos pelo corredor e eu estava prestes a tocar no assunto do e-mail para a divisão de crimes cibernéticos quando ela mencionou que havia visto a detetive Warren deixando meu quarto.

– Eu reconheci o olhar que ela tinha.

– Que olhar?

– Por favor.

Eu não gostava do rumo que aquilo estava tomando.

– Tessa, eu queria conversar com você sobre...

– Então, é assim: menino conhece menina. Menino se apaixona pela menina. Menino perde a menina. Fim.

Contive um pequeno suspiro.

– É assim.

– Que tipo de história é essa?

A história da minha vida.

– Acho que certas coisas não funcionam como você espera – era tudo que conseguia pensar para dizer.

– A detetive Warren é o que você esperava?

Definitivamente, era hora de mudar de assunto.

– Então você está procurando seu pai?

Ela deu alguns passos antes de responder.

– Meu sobrenome deveria ser Lansing.

– Você leu o e-mail da divisão de crimes cibernéticos?

– Sim.

– E você quer conhecê-lo?

– Sim, eu quero.

Um terrível turbilhão de emoções soprou na minha direção. Embora Tessa não fosse minha filha, para mim era como se fosse, e doía ouvir suas palavras. Mas mesmo tendo sérias preocupações sobre esse homem, eu disse:

– Tudo bem.

– Tudo bem?

– Se Paul Lansing for seu pai, seu pai de verdade, você tem todo o direito de conhecê-lo – como dizer isso? Não havia jeito delicado. – Mas...

Passamos pelo quarto 123.

– Mas?

– Você se lembra de como se sentiu ontem quando descobriu que sua mãe lutou com a decisão entre fazer ou não um...

– Aborto. Sim. Eu me lembro.

Respirei fundo.

– Você chegou a pensar na possibilidade de o sr. Lansing não...

– O quê? De ele não me amar? De não querer nada comigo?

– É possível – eu disse.

Quarto 127. O quarto de Calvin estava logo à frente.

Ela mexeu a mandíbula para a frente e para trás por um momento, então disse:

– Eu só quero saber a verdade. Quero dizer, ele é meu pai – então ela olhou para mim. – Você entende, né?

Um momento de silêncio desconfortável.

– Sim. Entendo.

Chegamos ao quarto de Calvin. Abri a porta e o vi deitado na cama. Um médico que eu não conhecia estava lendo seus prontuários. Jake Vanderveld estava de pé ao lado da cama.

Calvin não estava se movendo, e eu temia pelo pior.

– O que sabemos?

O médico olhou em minha direção.

– Sua condição é estável, mas ainda não recuperou a consciência.

Tessa havia encontrado Calvin algumas vezes, e percebi uma nuvem de preocupação em seu rosto.

– Ele está bem?

– Você espera com a minha mãe? – eu disse. – Conversamos mais em um minuto, ok?

Ela ainda estava olhando Calvin.

– Tessa, vá sentar com Martha. Estarei lá daqui a pouco.

Ela finalmente recuou para o corredor, mas então olhou para mim.

– É sério, né? Que eu posso conhecer meu pai? Não foi só...

– É sério. Vamos combinar tudo, eu prometo. Agora, por favor – ges ticulei na direção da sala de espera.

Após mais um olhar demorado para Calvin, Tessa saiu.

E eu puxei o médico de lado para dizer a ele que seu paciente estava morrendo.


116


Expliquei para o médico que eu não sabia bem quais eram as condições de Calvin, mas que o agente especial Ralph Hawkins sabia. Passei para ele o número de Ralph e ele imediatamente saiu do quarto para fazer a ligação.

Fui para o lado de Calvin. Meu mentor. Meu amigo. Ele parecia tão velho e frágil.

– Então era Kurt? – Jake disse.

– Sim – eu disse com simplicidade.

– Incrível. Você o conhecia o tempo todo e ainda assim nunca suspeitou de nada.

– É difícil conhecer as pessoas – senti um nó de tensão em meu peito. – Conhecê-las realmente. Saber do que são capazes.

– Isso é verdade, Pat. É uma boa observação.

Jake tomou fôlego lentamente e depois continuou.

– Encontraram o padre. Aquele homem e a mulher também, na unidade de armazenamento. Estão todos bem. Parece que chegamos até eles bem a tempo.

Era bom ouvir boas notícias.

Minha atenção voltou para Calvin. Eu tinha tantas perguntas: como ele sabia que deveria ir para a casa dos Greers? Por que ele me ligou da central da polícia? Que evidência o levou a suspeitar de que Richard Basque era inocente?

Eu havia reparado que Calvin tinha feito anotações no julgamento. Talvez sua caderneta me desse alguma resposta.

Sua roupas e pertences pessoais estavam na cadeira ao lado da cabeceira da cama. Andei até eles.

– O laptop dela sumiu – Jake disse repentinamente.

– Como é?

Não vi a caderneta de Calvin, mas encontrei um pedaço de papel no bolso de sua calça.

– De Amy Lynn Greer – Jake disse. – Parece que foi ela quem postou o artigo na internet. Mas é difícil dizer com certeza, porque o computador dela desapareceu.

Calvin havia escrito o nome e o número de telefone da dra. Renée Lebreau no pedaço de papel. Ela era a professora de direito da Michigan State University que havia encontrado as discrepâncias no DNA que havia levado ao novo julgamento de Basque. A folha também continha uma mensagem criptografada: H814b Patricia E.

Eu não fazia ideia do que aquilo queria dizer.

Outro mistério.

Memorizei a informação e devolvi o papel.

– Para mim – Jake disse –, Kurt o pegou e o destruiu.

Eu não conseguia entender por que estávamos tendo aquela conversa sobre o computador.

– Bem, talvez encontremos algo no gravador dela – não descobri nenhuma outra resposta para minhas perguntas nas coisas de Calvin, então voltei para o lado dele.

O comportamento de Jake mudou. Esfriou.

– No quê?

– Vi um gravador de voz na bolsa dela quando eu estava na casa.

Jake parecia estar debatendo algo internamente.

– O que foi? – perguntei.

Ele olhou para o relógio e parou.

– Preciso ir. O capitão Terrell e eu temos uma conferência de imprensa logo mais – ele bateu no meu ombro. – Não se preocupe, Pat. Vou garantir que todos saibam o quanto você nos ajudou nesse caso.

Quanto mais eu falava com Jake, mais minha dor de cabeça voltava.

– Por favor – eu disse –, não se preocupe. Apenas conte a verdade: que nunca teríamos resolvido isso sem o seu perfil.

– Obrigado, Pat. Isso significa muito para mim.

– Por nada.


Após Jake ter saído, sentei-me em silêncio por alguns minutos ao lado de Calvin. Então, eu disse suavemente:

– Nós o pegamos. Pegamos Kurt.

Em seu estado atual, eu não sabia se Calvin podia me ouvir, mas acrescentei:

– E eu disse a verdade hoje. Na bancada de testemunhas. Não sei se foi a melhor coisa a fazer, mas estou feliz por ter feito. Veremos o que vai acontecer a seguir.

Calvin permanecia imóvel. Em silêncio.

Alguns minutos depois, o médico voltou e me disse que havia aca bado de falar com o médico de Calvin em Chicago.

– E?

– Sinto muito, mas é desejo da família que sua condição permaneça confidencial. Você vai ter de falar com eles.

Não era a notícia que eu queria, mas não era hora de discutir. Imaginei que pudesse entrar em contato com a família de Calvin amanhã.

– Tenho de ir – eu disse. – Mas preciso que você me ligue se a situa ção dele mudar. Isso você pode fazer. Não quebra nenhum tipo de confidencialidade.

O doutor acenou com a cabeça. Dei a ele o número do meu escritório, silenciosamente disse para Calvin que o veria novamente em breve e saí do quarto pra me juntar a Tessa e minha mãe.

Olhei as horas: 22h02.

Então, a menos que Ralph tenha conseguido mexer alguns pauzinhos com o departamento de Assuntos Internos, eu estava oficialmente em licença administrativa do FBI.


117


Uma semana depois

Uma estrada de terra

84 quilômetros a oeste de Riverton, Wyoming
14h51, Fuso Horário das Montanhas Rochosas

Nosso voo havia pousado duas horas antes e, enquanto eu dirigia o carro alugado na direção da cabana de Paul Lansing nas montanhas, Tessa estava sentada ao meu lado, com os olhos fechados, tentando resolver o cubo mágico que a amiga havia lhe dado.

À nossa volta, a luz do sol brilhava na Cordilheira Wind River, mas nuvens estavam se aproximando.

Estávamos a menos de 10 minutos da cabana.

Durante a última semana, Angela não havia encontrado nada nega tivo sobre Paul Lansing. Nenhum antecedente. Por algum motivo, isso me incomodava. Eu havia prometido a Tessa que ela poderia conhecê-lo, e Angela não havia descoberto nada que me desse motivo para quebrar aquela promessa.

Então aqui estávamos.

No entanto, de jeito nenhum eu deixaria Tessa sozinha com Lansing. Nem por um instante.

Observei as nuvens se juntarem no oeste e Tessa, com os olhos ainda fechados, disse:

– Você teve alguma notícia sobre o dr. Werjonic? Desde hoje de manhã?

Ela girou o cubo.

Clique. Clique.

– Ainda nenhuma alteração – eu disse.

A família de Calvin havia decidido manter sua doença confidencial, e mesmo que eu pudesse mexer os pauzinhos para descobrir os detalhes, preferi respeitar o desejo deles e deixar aquela informação ficar entre eles e seus médicos. A família já estava furiosa o suficiente por Ralph ter descoberto sobre os problemas de saúde de Calvin antes deles e eu não queria perturbá-los mais. A condição de Calvin era estável, ele estava sendo tratado, e estavam me mantendo informado sobre seu estado. Isso era suficiente para mim.

Eu havia feito uma ligação para a professora Renée Lebreau para ver o que “H814b Patricia E.” poderia querer dizer, mas ainda não havia recebido retorno dela.

Então, nada ainda sobre aquilo.

– Quase lá... quase lá... – Tessa murmurava, girando os lados do cubo em rápida sucessão.

Um pouco de boas notícias, porém: Ralph havia conseguido agilizar a revisão do departamento de Assuntos Internos e, como eu não estava ainda no FBI quando agredi Basque fisicamente, eu havia recebido apenas uma reprimenda oficial. Meus primeiros alunos do verão chegariam em dois dias.

– Consegui! – Tessa levantou o cubo. Abriu os olhos.

Nenhum dos lados estava resolvido.

Ela gemeu.

– Ah! – e jogou o cubo por cima do ombro, para o banco de trás. – É impossível! Eu nunca vou conseguir!

– Não se sinta mal – eu disse. – Hoje de manhã durante o nosso voo, enquanto eu estava olhando você resolver o cubo, pensei naquelas pessoas no YouTube que o resolvem vendadas. Acho que deve ter algum segredo pra isso. É tão óbvio que eu sequer levei em conta de primeira.

– Que segredo?

– Comece com um cubo resolvido, filme alguém te vendando, então misture os lados, remova a venda e então rode o vídeo de trás para frente.

Uma pausa.

– Você tá brincando?

Encolhi os ombros.

– Podemos conferir depois, mas aposto que dá para reparar se assistirmos aos vídeos com muita atenção.

Ela deixou as mãos caírem no colo.

– Ah, isso é uma droga. Eu passei a semana toda naquela coisa idiota.

– Bem, Raven – eu disse –, às vezes o processo para se resolver um problema é mais valioso do que encontrar uma solução.

Ela olhou para mim.

Olhei de volta para ela.

– O quê?

– Dr. Phil?

– Quê? Não! Eu não assisto dr. Phil.

– Isso foi muito dr. Phil.

– Não, não foi.

– Então da Oprah.

Olhei para trás, para a estrada.

– Isso é ridículo.

– Você acabou de evitar contato visual. Ha! Foi da Oprah. Eu sabia.

Dirigi por alguns momentos.

– Eu estava trocando de canal uma vez e cruzei com isso. Só assisti alguns minutos.

– Sim, claro – ela tentou dizer as palavras sarcasticamente, mas percebi um sorriso por baixo delas.

– Ainda assim, é um bom conselho.

– Não é conselho. É um aforismo.

– Certo.

Chegamos ao cruzamento da Glory View com a Eastern Timber Road.

Para chegar à casa de Paul Lansing nós precisávamos dirigir um qui lômetro subindo a Glory View e depois cair em uma antiga estrada de madeireiros que terminava em sua cabana. Desacelerei, talvez mais do que precisasse, hesitei por um momento, então virei na Glory View.

Tessa pegou o diário do chão. Colocou-o no colo. Ela o folheou por um momento, então disse:

– Então, 90 minutos. Foi isso que levaram para decidir?

Demorei para responder. Eu sabia que esse assunto ia surgir, eu só não sabia quando.

– É assim que acontece, às vezes – eu disse. – Alguns júris não precisam de muito tempo para deliberar – a notícia do veredicto dessa manhã estava em todas as telas de TV do aeroporto. E como meu nome e meu rosto foram parte da saga de Richard Basque, tenho certeza de que não levou dois segundos para ligar os pontos.

– Então o que acontece agora? Ele simplesmente é solto?

Emilio Vandez havia pedido a anulação do julgamento, mas por enquanto a resposta para a pergunta dela era sim.

– É assim que o sistema funciona. O sr. Basque foi considerado inocente.

– Mas ele é culpado, certo?

– Ele foi considerado inocente – repeti, apesar de saber que não era a resposta que ela estava procurando. – De acordo com a lei, ele é um homem inocente.

Um silêncio comprido.

– De acordo com a lei – ela disse.

Subíamos pela Glory View Road.

Não respondi.

Mais nuvens se juntavam sobre nós.

– Ele vai atrás de outras mulheres, não vai?

– Não. Eu não vou deixá-lo fazer isso. Eu fiz uma promessa de que eu não o deixaria machucar mais ninguém.

Ela olhou para mim.

– Como você vai fazer isso?

Pensei a respeito.

– Não tenho certeza.

O espaço entre nós pareceu aumentar e, após alguns momentos, ela?disse:

– Você sabia, não é? Todo esse tempo. Que a mamãe ia me abortar.

Por um longo tempo, pensei em como responder a ela, e finalmente optei pela verdade.

– Sim, eu sabia. Foi uma propaganda de revista. Foi isso que a fez mudar de ideia.

– De uma menininha. Com uma caixa de joias no fundo.

Olhei para ela curiosamente.

– A história não termina com dor – ela disse suave e misteriosamente. Então acrescentou. – Mas você nunca me contou, porque achou que me machucaria, certo?

Essa era uma conversa incrivelmente difícil de se ter.

– Tessa, às vezes, para proteger pessoas, você não pode se abrir completamente com elas... É... Acho que o que estou tentando dizer é que é difícil equilibrar a verdade com a compaixão.

– Obrigada.

Suas palavras me pegaram de surpresa.

– Você está feliz por eu não ter contado?

– Não – ela respondeu. – Mas estou feliz pelo motivo pelo qual você não me contou.

Chegamos à entrada da estrada de terra que ia até a casa de Paul Lansing e deixei o carro parar.

– Então – eu disse –, você ainda quer fazer isso?

Eu tinha esperança de que ela fosse dizer não, de que em algum momento durante a viagem ela mudasse de ideia e decidisse que tudo isso tinha sido um erro e que as coisas seriam melhores para todos se nós apenas voltássemos para casa.

Mas, em vez disso, ela acenou com a cabeça e cruzou os dedos sobre o diário.

– Vamos.

Milhares de perguntas pairaram ao meu redor.

E, gostando ou não, a resposta para a mais importante delas estava no fim da estrada.

Quando o sol deslizou por trás de uma nuvem e algumas gotas solitárias bateram no para-brisa, fiz a curva e dirigi em direção à casa de Paul Lansing.


EPÍLOGO


O tempo desmoronou para o vazio.

Uma semana pode ter passado. Ou um mês. Ou mais. Não havia como saber. Em uma escuridão tão profunda, o tempo não significava nada.

Mas Giovanni percebeu sons motorizados bem acima dele, no poço que ele havia lacrado com uma explosão.

Alguém o estava desenterrando.

E então.

Mais tempo se passou, areia de ampulheta que ele não podia medir.

Os sons ficaram mais altos, mais nítidos, conforme mais pedregulhos e detritos eram removidos.

Finalmente, raios de luz começaram a atravessar o poço, cortando como sabres brilhantes o ar denso e escuro.

Como raios do sol do verão.

Então, vozes abafadas.

Indistinguíveis, mas que se tornavam mais distintas conforme as pilhas de entulho eram removidas.

Alguém chamou:

– Olá? Você está aí, senhor? Você está bem aí embaixo?

– Estou machucado – Giovanni respondeu, atuando novamente. – Por favor, preciso de ajuda – ele abriu a navalha e andou até o limite das sombras.

Dentro de minutos, os últimos três pedregulhos foram removidos e dois membros da SWAT desceram de rapel pelo poço, cada homem fortemente armado e usando colete à prova de balas. Mas isso não importava para Giovanni, porque ele ainda podia atingir seus pescoços.

Assim que apareceram, ele os apresentou para sua lâmina.

A luz do sol se derramou e espirrou ao redor dele.

Gritos úmidos ecoaram pelo túnel.

E o Cavaleiro começou a contar uma nova história para o curioso mundo que aguardava.

 

 

 


1. Violent Criminal Apprehension Program, ou Programa de Apreensão de Crimes Violentos, unidade do FBI responsável pela análise de crimes violentos ou sexuais. (N. T.)
2. Centro Nacional para Análise de Crimes Violentos, departamento do FBI especializado em crimes violentos. (N. T.)
3. Corvo. (N. T.)
4. Agência do Departamento de Justiça dos EUA. (N. T.)
5. Grupo de elite do exército dos EUA. (N. T.)
6. Centro Nacional de Tecnologia da Aplicação da Lei e Recuperação. (N. T.)
7. Academia Americana de Ciências Forenses. (N. T.)
8. Agência Nacional de Inteligência Geoespacial. (N. T.)
9. Federal Aerospace Locator and Covert Operation Network. (N. T.)
10. Parque temático de Denver. (N. E.)
11. Em inglês, black cloud, referência ao nome da música que Tessa está ouvindo. (N. T.)
12. Revista de Psicologia Ambiental e Revista de Ciências Forenses. (N. T.)
13. Federal Aviation Administration, ou Administração de Aviação Federal. (N. T.)
14. O apelido da cidade de Denver, por situar-se a uma altitude média de 1.600 metros, ou uma milha. (N. T.)
15. A Agência Nacional de Segurança, ou NSA, é uma agência responsável pelo controle de toda a comunicação externa e pela defesa dos sistemas de comunicação e de informação dos EUA. (N. T.)
16. No inglês, as palavras Night (noite) e Knight (cavaleiro) têm exatamente a mesma pronúncia. Por isso o assassinato de Byron Night, na visão do assassino, um “falso cavaleiro” ou “false knight”. (N. T.)

 

 

                                                   Steven James         

 

 

 

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