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E apareceu um cavalo amarelo, e o que estava montado sobre ele tinha por nome Morte, e seguia-o o Inferno, e foi-lhe dado poder sobre as quatro partes da Terra, para matar à espada, à fome, e pela mortandade e pelas alimárias da terra.
Apocalipse de S. João ApóstoloPRÓLOGO
O escritor antecipa-se e fala das personagens antes que outros as encontrem e conheçam
intervêm neste romance três figuras principais, se não as quisermos aceitar (quase sempre enjeitamos as evidências) que a dominante é a época em que se encontraram. E o lugar onde se encontraram. Ambos exactos.
Época interrogada e interrogativa, menos lúcida do que estes dias pardos e pungentes de 1967, em que sabemos de nós próprios e dos outros muito do que então não suspeitávamos. (O encontro com a hora da mudança alonga-se num parto de tempestades, em que os segundos refocilam na carne viva de cada um.) Estávamos longe, em 1936, tu e eu, todos nós, de que a humana medida chegaria às fezes da demência e da crueldade, gratuita tantas vezes, terrivelmente bárbara e civilizada, como se o mundo dos insectos ouvisse Nietzsche e o amasse. (Que nos faltará ainda?!...)
Três personagens, dizia eu: dois homens e uma mulher na teia das frustrações. Dois homens e uma mulher que nunca compõem entre si o triângulo das histórias de amor, embora cada um deles viva um problema, de carência afectiva e quase tudo fosse atingido para o provarem. Cada qual, porém, o deseja e recusa, talvez porque se desejem demasiado a si próprios. Com ângulos desiguais, de uma irregularidade bem humana, soo também, por essa razão e em certos momentos, redutíveis à dimensão aproximada de semelhantes.
1936 foi um ano de complexas opções. E entre todas a da Espanha violentada: 200 000 mortos em duas semanas. Sabe-lo tu, meu amor? A guerra civil do ultraje e da esperança, de Campesino e de Picasso, a nossa, nesse mesmo ano em que as tropas hitlerianas reocuparam a Renânia num passeio de bandeiras. A nossa inconsciência sorria...
Das três figuras principais deste romance, só uma delas, homem português, poderia suspeitar que a resignação francesa e a conivência da Inglaterra iria fazê-los encontrar, quase três anos mais tarde, em condições para que nenhum deles concorrera. Só na aparência. O português pensara ir morrer a Madrid, mas ficara na sombra da sua jaula (com raiva, diga-se); o outro homem, austríaco, um judeu austríaco, festejara com champanhe o avanço na Renânia e a glória da Legião Condor; a mulher, que iremos conhecer melhor, esteve em espírito nas brigadas internacionais, mas o dinheiro, que já lhe pertencia, forneceu munições para o fuzilamento dos seus amigos. Ainda neste romance não ganhou consciência do facto;
pensa muitas vezes em Garcia Lorca, em Federico, como o lembra na intimidade, embora nunca fale no seu nome. Dói-lhe. Uma dor viciada pelos dividendos do pai e pela literatura. A literatura é também agradável sedativo, cúmplice, quando acoça rebeldias em filhos de banqueiros; a quem as revoluções sonhadas e goradas não salvam, a tempo, de continuarem a prepotência.
A acção do romance decorre numa Lisboa de aparência sonolenta, entroncamento de foragidos e espiões, vindos à babugem de sol e de sossego. Em momento tão crucial de alienações, os protagonistas mal se reconhecem no espelho da hora amarga:
Leo, homem de negócios, fora dos seus negócios, é o marido, às vezes ciumento e ainda apaixonado pela mulher;
Pedro, o homem português, em tudo fadado para ser o amante neste triângulo, deambula entre o querer e o dever, tão ambíguo ou ingénuo, ou tão certo das grandes verdades de então, que já se preparava para a romaria, dos desiludidos e supliciados de Fevereiro de 1956. (Onde estará Pedro neste momento?);
Jadwiga, a mulher, austríaca como o marido, cabotina e inquieta, loura, talvez bonita por causa dos seus olhos verdes, caracterizados por mim como uns maravilhosos olhos verdes, líquidos e magoados.
Várias outras figuras se movem nesta trama de aparência muito simples. Entre elas vagueia um mito, Wanda, mulher que nunca conheceremos pessoalmente, mas cuja recordação domina o comportamento de certa personagem, de Pedro, adiantemos, ou de mim, o que lhe empresta relevo particular na intriga.
Conheci Pedro também por essa altura. Era homem taciturno, contraditório, ora abúlico, ora exaltado, quase sempre dramático, vivendo entre uma inteligência serena, rigorosa na aparência, e os instintos que a destruíam quando se soltavam da prisão construída por aquela. No tempo deste romance, Pedro dominava os instintos com o bridão de uma ética aparentemente revolucionária. Digo aparente, porque a revolução não chegara ainda; nem chegou decorridos trinta anos. A ética de Pedro, sem que ele o suspeitasse, pertencia a tempos muito recuados: à época estável da burguesia vitoriosa e segura. A classe que ele, por ironia, odiava. (Que sabemos nós da ética de uma sociedade que faremos e nos refará? Não, não a inventes. Pouco conhecemos do que vai acontecer!)
Talvez na recusa de Pedro houvesse mais um acto de vingança contra si do que o preconceito de não receber do nazismo uma mulher para, amar. Também eu a recusaria nesse momento. Pertencíamos ambos a um grupo de jovens escritores, revolucionários e artistas que se juntavam no Café Portugal, aos fins da tarde, nas meias trevas da cave. Aí discutíamos de voz acesa ou no sussurro das confidências. Era belo o mundo que ali construíamos. Alguns morreram para o atingirem, plenos, sem romantismo, com a certeza de que o mundo precisava do seu sacrifício. E ainda mais: que o merecia. A história falará de muitos deles que não pertencem à ficção, como Pedro, e ali se encontravam para o confronto diário de uma certeza que não morreu nas desilusões de muitos, nem sequer na fuga de alguns. Ela permanece viva, diferente, como tudo o que vive longos anos, porque a herdaram muitos mais e a querem. Mesmo no desespero de a desejarem inteira e célere nestes tempos de perder...
Mas há tempo para tudo, disse-o um dia a Pedro. Disse-lhe quando o vi excitado, sem conseguir dominar as mãos inquietas, o rosto instável, as palavras em atropelo, como se a voz fosse um estorvo para o que queria confidenciar-me. A voz rasgava-se-lhe. Estou a ouvi-lo na noite em que me leu o rascunho de uma carta para Jadwiga. Estranhei o tom romântico do que escrevera, tão estranho para qualquer de nós. Hoje sei que ele a amou e que o seu desaparecimento de junto de nós, correndo uma vida de perigos constantes, foi a sua única saída para o que precisávamos de fazer. Falou longamente desse passo da sua vida, já então com a serenidade de quem sabe situar-se num momento de opção. Pedro optou.
Ao reinventar essa realidade, gostaria eu de permanecer tão sereno quanto ele. Só ele também poderá dizer um dia em que medida este romance deturpa, acrescenta, frustra o encontro em Lisboa de dois homens e uma mulher. Aí por 1938... Que não é um ano qualquer na roda do tempo que ainda hoje vivemos.
PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO PRIMEIRO
O paquete aproximara-se da secretária com o ar farsante de sempre e dissera-lhe que estava na sala azul aquele senhor, sim, isso mesmo, o estrangeiro gordo, o doutor que vinha muitas vezes por causa dos passaportes. Pedro fingira-se interessado no registo em que trabalhava, aparentando dividir a atenção pelos documentos apinhados à sua esquerda e a coluna dos algarismos que seguia com a ponta do lápis. Mas pensava: esse tipo subornou o malandreco do paquete e sabe, de certeza, que estou no escritório. Talvez seja melhor recusar-me a recebê-lo e assim fica já a saber que não deve voltar. O rapaz insistiu:
- Aquele senhor...
- Sim, bem sei, o Dr. Klemm - respondeu com violência. Sei lá se esse gajo é doutor. Agora todos são doutores. - Não disse o que queria?
Os outros empregados levantaram a cabeça, como se lhe estranhassem a voz.
O rapaz fez uma expressão receosa.
- Vem só?
-Não, senhor. Vem com uma loura... uma loura ainda nova.
--Mandaste-os entrar para a Sala?
- Sim, senhor.
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-Então podes abrir a janela. Não a abras muito... O patrão, o Oliveira das Cortiças e Conservas, como lhe chamavam na praça, defendia a mobília e o grande tapete da sala azul e ouro com a obsessão de um pai mulherengo por uma filha bonita e requestada. Metera-se naquelas despesas quando ainda-estava sob o choque emotivo da nomeação para cônsul, o que lhe custara os olhos da cara, bem sobrecarregadas ainda em adereços, papelada com timbres em relevo, veludos, açafate de prata para acolher os cartões das visitas e um candeeiro piramidal, absurdo de cor. Embora o lugar lhe permitisse vigiar as posições dos outros exportadores para o país que representava, exultara principalmente com o título honorífico. Deixara de ser o Sr. Oliveira para ser o Sr. Cônsul ou o
Sr. Chanceler, o que irritara alguns amigos e deslumbrara a mulher, convencida de que o seu nome passaria a andar nas crónicas dos chás de caridade.
A primeira grande compensação aparecia, porém, com as continências dos sinaleiros, respeitosos com a chapa de CC no automóvel. Um automóvel de cônsul não é para aí um xaveco qualquer. E a mulher e as filhas fizeram-lhe um cerco sem saída, obrigando-o a trocar o carro antigo por um senhor carrão, todo linhas dinâmicas e cromados da rabeira ao focinho. Em horas azedas, o Oliveira vociferava contra tanta despesa. Pagava os gastos de representação, pagara a bandeira e a chapa para a porta principal, mas revoltava-se abertamente quando permitiam que a luz do Sol lhe comesse a cor da tapeçaria - feita por sugestão dele, sim senhor; vira uma parecida num palácio qualquer, talvez em Queluz, se não era em Queluz seria em Versalhes. Admirava as coisas dignas com ecos do passado. Era homem de gostos essenciais, como dizia convencido, embora nunca explicasse o que isso significava na sua.
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Apesar de tantas recomendações - para onde caminhamos nós com este desinteresse dos empregados? -, os estofos de veludo zebrado das cadeiras e do sofá já estavam um tanto frouxos de colorido; e a mesa, toda Henrique qualquer coisa, começara a abrir fendas numa das pernas arqueadas com alusões a folhas de jarro. Embora uma ponta de cheiro a mofo se apegasse ao ambiente, as ordens do Oliveira tinham-se tornado de uma violência decisiva: -Quem deixar as janelas abertas, vai para o olho da rua! Não admito explicações. Para o olho da rua!
Com a entrada das tropas alemãs na Áustria iniciara-se o êxodo dos Judeus, passando a vir gente com frequência. Gente submissa e de olhar espantado que buscava um visto para abandonar a Europa e atingir qualquer país da América. Sim, também podia servir a América do Sul, qualquer sítio onde fosse possível dormir sem sobressaltos.
O Dr. Klemm conseguira ficar em Lisboa e aparecia com assiduidade. Gordo, como assinalara o paquete, sempre cerimonioso e de sorriso fácil com unto, vinha apresentar amigos (todos os refugiados eram seus amigos), insinuando uma preciosa intimidade com Pedro, o empregado da chancelaria. Este só agora começara a reparar nesse pormenor.
«Não, não pode ser, preciso de rebentar com este gajo!, dissera já por duas vezes. Chegara a coordenar tudo o que precisava de lhe atirar às ventas, mas o outro parecia dispor do condão de lhe adivinhar as intenções e voltava submisso, afável, torneando com as mãos sapudas as palavras que sibilava e queria adocicar. Exprimia-se num francês arrastado e gutural. E como não o vira interessado por dinheiro, passara a aludir à repressão de Dollfuss, em Viena. Que não dissesse nada, mas sempre fora socialista, sim, socialista, e por isso tivera de fugir. Ah, mon cher ami!...
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E Pedro acanhava-se em perguntar-lhe por que razão lhe aparecia com tanta frequência, uma vez que o seu caso estava tratado. Tinha o visto. Que mais precisava? Começara a fazê-lo esperar na sala, como se o esquecesse, mal respondia já à sua conversa toda gentilezas, mas a obstinação do outro resistia a tudo. Com os óculos de aro de tartaruga, os gestos sóbrios e aquela horrível voz áspera, O Dr. Klemm (sabia lá se aquele gajo era doutor) continuava a vir mais de uma vez por semana.
A contas com o fígado, naquela tarde, Pedro pensou:
«Vais hoje com uma perna no ar, meu aldrabão!
Irritara-se em casa com a mulher, que viera do nada e parecia ter medo que para lá a puxassem, tão engenhosa se mostrava em presumir os seus já gastos pergaminhos de dinheiro.
Tinha de rebentar com o sabujo do doutor. Estava cansado daquela cortesia simulada e embaraçosa. Começara a desconfiar de qualquer coisa, não sabia bem o quê. Mas surpreendera uma troca de olhares com o último pretendente ao visto no passaporte, e ficara desconfiado. Como todos os outros, era um desses passaportes marcados com um J na primeira folha, sinal de que o seu portador era judeu. Esse estigma só servia, afinal, para que Pedro tomasse a obrigação de os ajudar.
Aparentemente distraído, abriu a gaveta da secretária e olhou para o carimbo dos vistos. Tinha ali à mão o destino de muitos homens. Podia recusar a formalidade;
podia facilitá-la. Agora só devia recusar, porque chegara um ofício do Ministério dos Estrangeiros a dizer que não deveriam conceder mais vistos a judeus. Sentiu a fragilidade da noção de justiça em tempos perturbados como os que se viviam. Misturava deve e haver, facturas e letras de câmbio com a determinação do futuro daqueles que ali vinham em busca do seu gesto, um gesto simples, afinal
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uma pancada no tampão de tinta violeta, a pressão de um carimbo barato sobre uma folha de papel, dois ou três selos, pouco mais de cem escudos, e aí estava um homem, uma família inteira, livre ou manietada, entre a esperança e o desespero, entre a liberdade possível e o campo de concentração.
Meditava naquilo e amargurava-se. O outro vinha com uma mulher. Uma mulher loura e nova, dissera o paquete. «Como seria ela? Os amigos consideravam-no um femeeiro incorrigível e já lho tinham feito sentir de uma maneira muito concreta. Ignoravam a sua vida marital, cheia de mesquinhez, sem um afecto profundo que pudesse compensar todas as arestas de uma convivência permanente. Era um sensitivo e chamavam-lhe libertino. Um libertino amável, como o classificara um dos amigos.
Sim, gostava de olhar uma mulher, contemplá-la de alto a baixo, demorando-se. Onde? Adorava uns seios pequenos e umas pernas secas e altas. E deitar-se nos seus olhos. E pensar que as mãos dos homens foram feitas para acariciar asmulheres.
- Já vou! Se ele está com pressa, que espere! - disse para o paquete quando lhe veio recordar a presença do outro na sala. - Olha!
Levantou-se depois num rompante, atravessou a secretaria e enfiou pelo corredor com o rapaz no seu encalço.
- Deixa, que eu lhe digo. Estou farto deste gajo! - gritou destemperado.
O paquete estacara na escuridão. Apontou com o braço que o queria ver longe de si; e o rapaz voltou a correr para o seu lugar, à entrada da secretaria.
- Dr. Klemm! - disse à porta da sala. O outro veio de mão estendida para o cumprimentar, certamente com o sorriso untuoso de sempre.
-Quero apresentar-lhe uma amiga...
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- Antes disso preciso de lhe falar - respondeu secamente.
Com a mão na maçaneta da porta, convidou o outrü a vir ao corredor. Uma silhueta de mulher moveu-se no sofá do fundo da sala.
- Há alguma novidade? - perguntou o outro. - Ou está doente? Se quiser, posso vir amanhã.
Parecia ter percebido no tom de voz de Pedro qualquer resolução que seria conveniente adiar. E por isso falava sem pausas, ao contrário das outras vezes, em que gostava de ouvir o jeito discursivo do seu modo de falar.
- Não, não, Dr. Klemm. Quero pedir-lhe...
- O meu amigo manda.
«Que tipo este!», pensara com raiva.
- Ainda bem que o entende- respondeu de pronto, aparando o golpe sorrateiro do outro.-Gostaria, portanto, que me fizesse um favor...
- Espero há muito tempo essa oportunidade - insinuou o foragido.
Pedro encarou-o com desconfiança, mas depois decidiu-se. A sua voz ganhou calor.
-Peço-lhe que não volte aqui... que nunca mais volte.
O Dr. Klemm dizia «mas, mas no seu francês gutural e mexia nos óculos, como se aquele movimento o fizesse abrir e cerrar os olhos pequeninos e manhosos.
- Uma vez que tem o seu passaporte em ordem, nada mais precisa de mim... Fiz o que a lei me permitia.
- Mas não estou a perceber - retorquiu o outro, ainda hesitante. - Venho como seu amigo acompanhar alguns amigos...
Aí estava ele, novamente, já refeito e pronto a enredá-lo na teia dos cumprimentos e dos sorrisos. Precisava de lhe cortar com rapidez a baba dos fios envolventes.
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- A sua insistência em vir aqui pode levar o cônsul a pensar que o senhor é um intermediário de negócios...
- Mas eu não sou um homem de negócios... Sou um. advogado de Viena - acentuou com ostentação.
- Hoje fazem-se negócios de tudo. Vou ser claro:
pode supor-se que entre mim e o senhor haja conivência nos vistos deste consulado.
O outro abrira os braços curtos, dobrando um pouco a cabeça quase quadrada. Pedro não lhe via o olhar, mas adivinhava-o turvo.
-Somos amigos... Julgo que podemos ainda visitar os amigos. Que nos fica de tudo isto se a amizade entre os homens se perder? - insistia o Dr. Klemm, buscando uma fórmula que já percebera ser influente no espírito do outro.
E pensava: «Nunca julguei ter algum dia que aceitar as inconveniências de um empregadeco de consulado, e ainda por cima português... que é parente de árabe ou de negro.
Era essa indignação que procurava esconder com o olhar baixo.
Pedro fora incisivo na resposta:
- Nós não somos amigos, Dr. Klemm. Nem há razões para tal... O senhor é um advogado de Viena e eu sou um funcionário provisório deste consulado.
- Lamento que ponha as coisas nesse pé, mon cher ami. Sempre vim aqui de acordo com os meus princípios humanitários, julgando que também lhe interessava ajudar essa pobre gente perseguida...
- Cumpro as minhas obrigações - interveio Pedro. - Nada sei de política nem me interessa penetrar-lhe nos meandros. - Não fui longe de mais nas conversas com este gajo?
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O outro oferecia-lhe a cigarreira aberta. Pedro percebeu que os dedos lhe tremiam.
- Obrigado, não fumo.
O advogado sorriu com uma expressão irada. Mas a voz continuou pastosa e lenta:
- Temos fumado juntos muitas vezes, mon cher ami. Está hoje mal disposto. Virei amanhã.
- Não voltarei a recebê-lo, Dr. Klemm. Depois arrependeu-se da brusquidão daquelas palavras e emendou:
- Não poderei recebê-lo. E por isso peço-lhe que não volte. Os vistos cessaram. Recebemos ontem um ofício...
O outro modificara a atitude. Ouvia-o de cabeça baixa, de pés unidos e de braços hirtos ao longo do corpo achamboado. Até aquela falsa submissão o irritou - lembrava-lhe filmes com alemães.
- Queria apresentar-lhe aquela senhora - disse, por fim, quando sentiu que Pedro o despedia com o seu silêncio. - É filha de um banqueiro, do Sr. Goldstein; já deve ter ouvido falar...
De repente, a voz que se tornara ainda mais grave, pareceu incendiarsse.
- Um dos homens mais ricos da Europa... «Lá vinha ele, finalmente, e sem rodeios, com a comparticipação nas suas manobras. Deveria deixá-lo falar? Apetecia-lhe esperar a oferta e vexá-lo depois, mas achou que talvez não conseguisse ser tão incisivo quanto seria necessário, esta chatice da língua, não há maneira de pensar em francês, e resolveu-se a cortar-lhe a insinuação.
- A ordem que recebi deve ser cumprida, Dr. Klemm. Peço-lhe que não insista.
-Mas talvez este caso seja diferente...
- Nessa hipótese, a sua amiga que mo transmita.
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O sorriso vitorioso do advogado reapareceu; mas Pedro refreou-o.
-Ela que volte amanhã... sozinha, é claro-disse com esforço.
-Ah, já percebo! -respondeu, lívido, o outro.- Agora já percebo...
Pedro agarrou-o por um braço e sacudiu-o, como se fosse agredi-lo.
- Que está a insinuar, Dr. Klemm?
O rosto do advogado pareceu assustar-se com a reacção inesperada de Pedro, que o arrastava agora para dentro da sala. A silhueta ergueu-se do sofá do fundo e caminhou para os dois. O olhar agreste e espantado do judeu volveu-se para o rosto de Pedro, como se quisesse adivinhar a impressão que a mulher lhe fazia.
- É este o seu amigo?
O advogado pôs-se a falar alemão em tom sacudido e autoritário. Os olhos de Jadwiga tornaram-se tristes e inquietos. A sua cabeça acenava. Primeiro, de uma maneira imperceptível, depois quase com frenesi. Fitou Pedro e insistiu na pergunta, mas a sua voz tornára-se dramática:
- Não lhe é possível, então, fazer nada por nós?
- Volte noutro dia com o seu marido - respondeu Pedro.
- E se vier sozinha?
O Dr. Klemm já abrira a porta da sala, saindo para o corredor.
«Deve estar a ouvir-nos, pensou. «Sempre que se trata de casais, são as mulheres que aparecem.
- Preferia que viesse com o seu marido.
-O meu marido está doente... Ela podia agora ver melhor o rosto do homem que tinha à sua frente. Parecia-lhe torturado, de rugas fundas
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na testa, mas sereno e bom. Era ainda um jovem. Trinta anos? E disse num sorriso forçado:
-Não gosta que as mulheres casadas andem sós? A cabeça do Dr. Klemm apareceu ainda. Jadwiga estendeu a mão a Pedro; ele deixara a pergunta sem resposta.
-Posso vir amanhã?!
-Quando quiser...
- Obrigada.
A mulher passou à sua frente e apagou-se depois na escuridão do corredor. O perfume dela ficou na sala.
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CAPÍTULO SEGUNDO
“Pedro voltou deprimido para a secretária. - Sentia que fora violento com o Dr. Klemm e considerava-se fraco pela maneira como actuara. O facto perturbava-o, não pelo outro; precisava de o afastar e não valia a pena escolher a forma. Estava agora convencido de que o advogado arrancava dinheiro aos outros foragidos à sombra daquela intimidade forjada nas conversas à parte que sempre originava quando ali vinha acompanhar alguém.
Puxou de um cigarro e foi até à janela.
Aí ficou a meditar, falando baixo, enquanto o Fernandes, o chefe do expediente, lhe seguia os gestos, num sorriso disfarçado, como se a carta que tinha à sua frente lho provocasse.
Seria mais decisivo se se impusesse àquele tipo de maneira fria e dura. Frieza nos olhos e nas palavras. Tinha a certeza de deixar sempre entre o que dizia e a expressão do rosto qualquer esperança para os outros, uma fenda tão nítida que logo a aproveitavam, insistindo com ele. Era uma falha do seu temperamento, herança da mãe, e não havia forma de vencer esses sinais de fraqueza.
As coisas corriam, os outros teciam a sua teia e ele parecia indiferente, como se nada o tocasse ou lhe dissesse
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respeito. E depois, de repente, quase sem ele próprio saber como se dava a inversão do seu comportamento, bolçava com rudeza o que durante tanto tempo o deprimira. E muitas vezes na pior altura. Quase sem se justificar ou exagerando nos pormenores, como sucedera com aquele biltre do Klemm. Tinha alguma necessidade de lhe falar nas suas suspeitas? Quem sabe se não lhe atirara para dentro do espírito com argumentos de que se viria a servir?
E diziam-no sensato, toda a gente lhe chamava um homem sensato. A verdade é que até a insistência com que falavam nisso o fazia desconfiar. Não significaria mediocridade essa sensatez? A triste mediocridade do clima social em que vivia?!...
O que é o guarda-livros senão um medíocre? O labrego deita à terra um punhado de sementes, vibra ao prepará-la, emociona-se com o tempo, acompanha o nascer das plantas, acarinha-as com os olhos e os sacrifícios. Vive e sofre com tudo aquilo que faz. Vive alegrias profundas. Mesmo quando é impotente para dominar os fenómenos da natureza, há sempre, nele a força de um homem a agir. A seara é a apoteose da sua escravatura e o alvor da sua libertação. No guarda-livros tudo é chateza, a terrível chateza de uma vida coalhada, que acaba com os anos por lhe adormecer o próprio sangue. Todas as interrogações vão para o balancete errado, jogando os números como.. um demente ou como um gato ronceiro que levanta a pata para o novelo de lã. Fica só minucioso, incapaz de rasgos, miudinho, miudinho, julgando-se um domador de serpentes que se lhe enrolam por todo o corpo e acabam por penetrar dentro dele, envenenando-lhe o espírito para o tornarem vazio. E nada daquilo lhe pertence, a não ser a caligrafia correcta, toda voltinhas, grossos e finos, finos
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e grossos. Minucioso como um relógio, pior do que um relógio.
Poderá alguém deixar de ser medíocre com a ronceirice metida nos ossos, no tutano dos ossos?...
Enleava-se nessa peçonha, deixava os acontecimentos e as pessoas assentarem dentro dele, e depois lá vinha o escape violento, a surpresa agressiva, como daquela vez, teria 6 anos, em que perseguira a prima, a Emília, com uma faca da cozinha e lha atirara, cravando o bico da lâmina na porta por onde ela se escapara. Só então tivera a noção exacta da violência. E começara a chorar de raiva e de medo, como se fosse ele a mão do crime e o corpo da vítima.
Estava assim agora também.
E talvez não tanto com o Dr. Klemm, mas com a mulher que o acompanhava. Como pudera ela atrever-se à intimidade daquela frase? «Não gosta que as mulheres casadas andem sós? Ficara na mesma, indiferente, parecia indiferente, talvez à procura de uma frase que a esmagasse, mas deixando mais uma vez enlear-se em intimidades absurdas que teria de romper com brutalidade.
Voltou à secretária e pôs-se a mexer nos papéis com arremesso. O Fernandes continuava a vigiá-lo naquele sorriso malandreco.
- Parece que estás zangado, ó Dias.
- Zangado, não. Tive de correr com esse tipo gordo, o austríaco... Um verdadeiro mexilhão, esse gajo.
- Todos os prazeres se pagam, meu caro.
-Ora! Prazeres... Que gosto tenho eu com isto?!...
-O de falares francês...
-Tem juízo!
Fingiu que se voltava para os papéis amontoados na secretária, mas continuava a pensar no seu trabalho da chancelaria. A verdade é que o Fernandes acertara no
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C. E. - 3
vinte. Aí estava a explicação de tudo com a maior simplicidade: gostava de falar francês. Cabotinismo, ao resto! E os cabotinismos pagam-se. Por dinheiro não era... Que lhe dava aquilo?!... Vinte escudos por visto? Era pagar com vinte escudos, de vez em quando, a interrupção do seu trabalho no escritório, o escutar as histórias dos que vinham fugidos aos nazis, as insistências das visitas, as recusas, as chatices...
Bem poderia ter dito ao Oliveira que não lhe sobejava tempo para atender estrangeiros. Já lhe bastava ser encarregado da contabilidade com um ajudante que era um cepo e dois praticantes que mal sabiam somar. E a Palmira, a dactilógrafa, sempre de melaço na fala, a inventar pretextos para vir junto dele com perguntas idiotas...
Porque não procedera como o Fernandes?!...
Aquela recordação fê-lo sorrir.
Na aparência, o consulado estava num brinquinho. Havia o salão, a que o pessoal chamava a sala do trono, tais os esmeros do Oliveira com a mobília e os estofos, dois carimbos, uma chapa de esmalte na porta, o CC do automóvel novo e até selos. Mas ninguém sabia, nem sequer o Oliveira, que já fizera cartões com o título de cônsul, como funcionava uma coisa daquelas. À primeira vista também o facto não parecia capaz de tirar o sono a alguém.
O pior é que numa tarde o paquete entrou no gabinete do patrão para lhe comunicar «que estava na sala azul” um senhor que falava estrangeiro. O cônsul perturbou-se, lembrado de umas tantas palavras em espanhol que aprendera nos bons tempos de rapaz com bailarinas do Maxims. E logo mandou o Fernandes, bem capaz com o seu desembaraço de lhe resolver a contrariedade, pedindo-lhe que atendesse o homem, pois ele tinha entre mãos um assunto
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importante e não podia perder tempo com aquilo. O Fernandes viu a manobra, engoliu uma recusa que lhe podia tirar o emprego e enfiou pela sala. O estrangeiro mostrou o passaporte, tentou explicar-se nas línguas que sabia, mas não houve maneira de se entenderem. O Fernandes limitara-se a sorrir e a acenar a cabeça, mais talvez no gozo prévio do embaraço do Oliveira do que para se mostrar acolhedor. Era um homem envelhecido e rabugento, demitido de um lugar público por motivos políticos, e que se não conformara ainda com a nova situação de empregado de um escritório de cortiças, que é sempre uma baixa de posto para funcionários de carreira.
- O tipo mostrou-me este passaporte - disse o Fernandes quando voltou ao gabinete do patrão.
- Não percebo mais nada...
-Veja lá se o põe a andar. Diga-lhe que não temos instruções...
- Mas como, Sr. Oliveira? Ele também não me entende - insistia o chefe do expediente, já irritado, embora disfarçando na voz aquela comédia que o faziam representar.
- Despache o homem, Sr. Fernandes. (Tratar os empregados por «senhor era indício mais evidente da irritação do Oliveira.) Confesso que não percebo a sua atitude.
Pálido, incapaz de articular a resposta que lhe ocorria, o Fernandes começara a sentir dores no estômago - «deve ser a úlcera do duodeno, pensava transtornado;
«há-de ser bonito se a úlcera rebenta por causa das vaidades deste gajo.
Não falava, tremiam-lhe as mãos, mas também não conseguia arrancar dali, desafiando a ira do outro, que parecia não dar pela sua presença. Estiveram
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naquele jogo durante um tempo, até que o Oliveira vociferou:
- O que espera o senhor? Que eu faça o serviço?...
- Acho melhor...
Apoplético, o patrão levantou-se, quase atropelando o Fernandes, e começou a sua arenga destemperada, cheia de ameaças veladas:
- Essa é boa, Sr. Fernandes! Não me faltava mais nada, hem?... Se os senhores não servem, sequer, para me livrarem de maçadas destas, eu pergunto, estou no meu direito de perguntar, para que tenho eu os senhores, afinal? Para receberem o ordenado ao fim do mês? É pouco, tem de convir. (E olhando o outro bem nos olhos.) É pouco... e eu não sou homem para me perturbar...
Era a insinuação directa ao risco do emprego.
Engolindo a sua ira, o Fernandes saiu do gabinete, aconselhado pela imaginação que lhe sugerira uma forma de resolver o caso. Quando chegou ao corredor, já sorria;
era depois todo ele um sorriso de glórias vis.
Mal o viu entrar, o estrangeiro foi ao seu encontro, esperançoso com aquela expressão amena. E já acenava a cabeça, como quem deve concordar, antes mesmo de o outro lhe dizero que resolvera. «Precisava de sair da Europa, as coisas complicavam-se. Se os nazis o agarrassem, corria o risco dos outros judeus que não conseguiam escapar-se.
O empregado entregara-lhe o passaporte e apontava-o depois, pondo-se em bicos de pés, porque não passava de metro e meio, e o outro era um altarrão. Dava às mãos e sorria; o estrangeiro dava à cabeça e sorria também.
- Et alors? - dissera o outro por fim.
-Alor é uma gaita! Pois, uma gaita! Aqui... -E apontava com o dedo para o tapete. - Aqui ninguém saber nada... Ninguém saber bóia disto...
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O outro parecia aturdido, surpreso e risonho, todo debruçado sobre o Fernandes como um girassol melancólico em busca de luz. Os olhos negros, salientes e cansados interrogavam as expressões do empregado, numa ânsia de interpretar as palavras que não apreendia. Depois falou também, batendo as sílabas, e, no meio de tudo o que disse, o outro ouviu qualquer coisa que devia ser consulado, com certeza.
-Sim, consulado... Consulado de chapa na porta e no automóvel... Isso mesmo... Automobile... Pois! Mas não querer dizer nada... Sim, nada! Ser só pra armar... Pra armar ao pingarelho...
O judeu arregalou os olhos, empertigou-se nas pernas escanifradas e repetiu aquela palavra bárbara que lhe pareceu cheia de significado:
- Pingarelha?
-Sim, pingarelha... Isso mesmo. Ser tudo para armar ao pingarelho.
Apertaram as mãos com calor. O Fernandes abriu os braços, enfiando o pescoço nos ombros, já contrafeito de nada adiantar nas pretensões do estrangeiro, mas estava longe de compreender o seu problema. Todo mesuras, o outro partiu a dizer merci, merci, e o Fernandes repetiu merci, fechou a porta e chamou ao Oliveira o nome mais feio que guardava no seu vocabulário de palavrões.
O estrangeiro não tornou a aparecer e o Fernandes não voltou à sala para tratar de assuntos consulares. O Oliveira chamou, então, o guarda-livros, perguntou-lhe se ele falava francês ou inglês, e Pedro, como gostava de falar francês, disse que sim. Arranjara o cabo dos trabalhos.
Vieram mais judeus. E uma austríaca que não voltou, apesar de não levar visto nos dois passaportes que trazia.
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E o Dr. Klemm... Várias mulheres. Quando se tratava de casais, vinham sempre as mulheres. Parecia que no café onde se juntavam, os refugiados tinham já percebido o seu temperamento. «Agora, o malandro do Klemm, pensava Pedro, «o malandro do Klemm vai dizer que eu desafiei a loura para vir sozinha. Mas fora a tal, sim, a tal Wanda, que nunca mais voltou... Só essa terá o direito de pensar mal de mim...
- Quando tratas de assuntos consulares, ficas desconsolado - veio dizer-lhe o Fernandes quase ao ouvido, não fosse o Serras das facturas contar ao Oliveira que se brincava no escritório.
-Tem juízo!
E começou a marcar um número no telefone.
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CAPÍTULO TERCEIRO
Jadwiga voltou no dia seguinte, a meio da tarde. “ Percebia-se que trazia o propósito de agradar, mas não conseguia esconder a emoção que a perturbava. Durante toda a conversa, raramente tirou as mãos da pega da mala. Via-se que a segurava com força. Às vezes, piscava os olhos. E do nariz para as faces vinham-lhe duas veias muito azuis e inquietas, a ondularem debaixo da pele rosada.
Trazia um chapéu preto de aba erguida que acentuava a cor de espiga madura dos seus cabelos. Um vestido verde-seco cingia-lhe o corpo. Cingia-lhe os seios pequenos. No bico do decote, uma jóia sóbria. Mas era a cor dos olhos e a sua expressão que lhe enfeitavam o rosto e o vestido.
- Desculpe não a ter atendido ontem - disse Pedro, já esquecido do diálogo que idealizara. - Fuma?
-Obrigada. Não me fez diferença voltar. Aborreço-me muito no hotel... Foi um passeio. Estavam sentados no sofá do fundo.
- O seu marido está melhor?
Jadwiga meneou a cabeça, enquanto uma leve crispação lhe brincava no lábio superior.
«Lá estou eu a meter-me em intimidades, pensou Pedro. «Que tenho eu a ver com a saúde do marido?
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Mas na verdade sabia-lhe bem estar ali naquela penumbra com uma mulher que poderia demorar junto de si todo o tempo que quisesse. Uma penumbra cúmplice, talvez capaz de os fazer chocar e agarrarem-se, se de repente a sala começasse a girar como um carrocel. Porque haveria a sala de rodopiar sobre um eixo? Lembrou-se de uma vez, teria 16 anos, em que se metera numa roda de cavalinhos da feira da sua terra e lhe viera cair nos braços uma rapariga assustada com a vertigem da marcha do carro. Aquela associação de ideias mostrou-lhe que ainda hoje essa impressão lhe vivia no sangue, depois de ser uma das histórias com mulheres que mais contara em toda a sua vida.
Pedro apertava o cigarro nos dedos magros e olhava-o, numa careta, desagradado do tabaco que lhe amargava na boca. A rapariga assustara-se, nunca quis pensar que ela fez aquilo por manha, para se aproximar de mim... Ficámos a conversar depois e levei-a para a mata. Foi fácil. Porque nunca contei isto assim?
De repente reparou que a mulher estava calada, também ele se calara; não se encontravam ali precisamente para ele recordar histórias de um amor fácil. Então, encarou-a, fitaram-se, não, não vou repetir a mesma cena que fiz com a Wanda, e Pedro ergueu-se para abrir um pouco mais a janela da sala. Deixou-se ficar ali por um momento, como a quebrar todos os fios das suas lembranças com o passado. Precisava de lhe falar no Dr. Klemm, tentando saber por ela se havia alguma fidelidade na hipótese que admitira para as visitas constantes do advogado judeu.
Jadwiga segurava já os dois passaportes na mão. Agitava-os docemente e o rosto afogueara-se-lhe um pouco. Só agora dera por isso. Os lóbulos das orelhas acerejaram-se também.
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- Não a recebi ontem por vir acompanhada com aquele senhor. Desculpe. Tem um sorriso bonito. Conhece o Dr. Klemm?
-De Lisboa... Apresentaram-mo. É homem com grandes influências...
- Aqui neste consulado?
Ela hesitou na resposta, embora se percebesse na expressão que queria dizer sim.
- Não sei bem... Está provado que o outro tem razão no que me contou. Sei que consegue resolver certos problemas... É um homem amável...
-Quanto lhe pediu pela amabilidade? Pedro começava a não poder dominar-se. Levantou-se, passando para além da pequena mesa de metal amarelo, com desenhos e letras árabes, colocada à frente do sofá. Jadwiga seguia-o com o olhar curioso e inquieto.
- Não percebo a sua pergunta - disse depois em voz mais baixa.
-O Dr. Klemm não lhe falou em dinheiro? Este, ao menos, vai direito ao fim. Antes de ver os passaportes quer já pôr as condições. Julgará que é de vistos que se trata?
Depois disse duma maneira indiferente, como se quisesse descolorir a intenção das palavras:
-Falámos vagamente nisso...
- Pode ser mais precisa?
Agora parara à frente dela com os braços cruzados, como se quisesse obrigá-la a dizer tudo o que sabia. Jadwiga sorriu. Tenho de passar ao contra-ataque...
-Não é seu amigo?
- Levo mais tempo a fazer as minhas amizades.
- Mas ele é seu amigo. Antes de aqui virmos, falou-me de si com muita admiração.
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-Só o conheço daqui. Demos-lhe um visto... Nada de meias palavras. Vamos lá a pôr o preto no branco. Depois começou a vir com insistência, sempre amável, sempre sorridente, acompanhando refugiados que precisavam de vistos para entrar na América do Sul... Um dia notei-lhe um olhar muito significativo... A semana passada. Estava com ele um judeu, industrial, se bem me lembro... Só depois comecei a interpretar aquela troca de olhares. E resolvi... sim, resolvi nunca mais atender qualquer pessoa que viesse com ele.
Jadwiga não sabia agora como reagir. Receava as palavras deste homem, que tanto podiam ser de indignação como também uma ratoeira para a apanhar, não adivinhava em que confidências.
- A senhora foi a vítima do meu intento em acabar com as suas vindas -prosseguiu Pedro, esmagando a ponta do cigarro no cinzeiro, ostensivamente. Depois atirou-se para um dos cadeirões estofados; juntou as mãos para as apertar.
- Quer dar-me os passaportes?
-Desculpe... Mas vejo-o tão perturbado-disse Jadwiga hesitante, fixando o olhar esquivo do homem. Pedro fez um gesto de tédio. Ela entregou-lhe os dois passaportes.
-Tenho a certeza de que esse senhor, advogado ou lá o que é, se faz passar... por uma espécie de meu sócio. Para melhor dizer: eu poria vistos em todos os passaportes, e só nesses, que o Dr. Klemm recomendasse com a sua presença. Não é assim?
-É o que se diz entre os refugiados...
- E diz-se também - continuou Pedro, fitando-a bem nos olhos-que cada visto custa... Sei lá!... Eu recebo aqui só o que é legal, mas por fora exijo, exijo, e o pobre do Dr. Klemm tem de pedir, com mágoa, uma certa quantia
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larga... da qual ele não recebe um centavo, claro! É um judeu que deve ajudar os seus irmãos de raça...
Jadwiga continuava indecisa. Não sabia como interpretar aquela convulsão de palavras. Parecia-lhe, porém, que tentavam impressioná-la para tornar mais caro o preço da sua liberdade. Apeteceu-lhe dizer: Não tenha receio, homenzinho, sou filha de Goldstein.
- O senhor talvez exagere - conseguiu arriscar. Pedro tirou o maço da algibeira, esboçou o gesto de
puxar um cigarro, mas acabou por depor o maço sobre a mesa.
- O Dr. Klemm é, como eu julgo agora, um burlão qualquer que aproveita as terríveis circunstâncias do nosso tempo para extorquir dinheiro aos senhores.
O silêncio dela começou a irritá-lo.
Que pensará esta tipa de mim?
- Nunca recebi um centavo de qualquer visto, a não ser para os emolumentos legais. Um único centavo. Seria incapaz de o fazer... embora seja um homem que vive do seu trabalho. Ou talvez por isso mesmo...
- Mas seria natural - interveio Jadwiga, julgando que depois daquela representação dramática iria entrar-se na parte da comédia fácil de resolver.
- Não, para mim não é natural que alguém possa ganhar, seja o que for, com os dramas dos outros... Mesmo tratando-se de judeus com dinheiro.
Jadwiga voltava à hesitação.
- Sei que sou ingénuo, minha senhora. Inábil também ao falar-lhe neste assunto do Dr. Klemm. Só agora o vejo claramente. Sinto-me vexado com isto tudo... Nós, os Latinos, somos demasiado emotivos. A senhora pensará.
-Mas nada penso... Que hei-de agora pensar?!... Nada, juro-lhe!...
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-Mas terá o direito de pensar que dois sócios se zangaram. Ele talvez insinue o meu desejo de tratar directamente para ficar com o bolo inteiro. Não me zangarei
se pensa assim...
-Mas não, não penso...
-Só espero que o Dr. Klemm não volte aqui. Iria fazer-lhe compreender, e de maneira bem explícita, o desprezo que me merece. Descobri-lhe o negócio muito tarde. Demasiado tarde. Fica-me a lição...
Pedro falava agora com dificuldade. O tom de voz, pelo menos, era triste e arrastado.
-As lições chegam muitas vezes tarde... Mas talvez ainda possa servir. Agora, por algum tempo, será inútil.
Fez uma pausa longa.
Acabaram-se os vistos e ela irá pensar que só agora me zanguei (pois é, é o que ela pensa), porque já não preciso da ajuda dele para me trazer refugiados.
Olhou os passaportes que segurava na mão e virou-se para Jadwiga quando reparou na capa. O que é isto?!...
Foi passando as folhas, lentamente, e fitava a mulher por cada gesto que fazia. Viu-a perturbar-se. As duas veias agitavam-se-lhe no rosto. Como conseguiram estes passaportes?!...
Jadwiga sentia-se corar; nunca pudera dominar aquele indício de perturbação quase infantil. Era preferível que Leo tivesse vindo... Está habituado a tratar destas coisas de dinheiro. Devo falar já de dinheiro?!...
O empregado voltava a folhear o passaporte em sentido inverso. Parou na folha que tinha o retrato dela e leu o nome em voz alta. Jadwiga baixara os olhos, embora verificasse que estava a proceder duma maneira comprometedora.
-Não me tinha dito que eram ambos cidadãos do país que representamos.
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-Pensei não ser necessário...
- Sim, realmente não é. Tenho aqui os documentos... Porque não lhe dizia ela a verdade?!...
- Nasceu na América do Sul?
Jadwiga hesitava. Os olhos dele estavam calmos.
- Naturalizámo-nos...
--Há muito tempo?!...
-Uns meses...
- Vai, portanto, de regresso ao seu país. Quando parte?...
- Queríamos ficar em Lisboa.
-Por quanto tempo?
- Até ser possível.
Pedro ergueu-se com os passaportes na mão e parecia inquieto. Pegou depois no maço de cigarros e tirou um que acendeu. Qual será a minha responsabilidade em tudo isto?! Posso fingir que acredito... Mas que papel acabo por fazer? Vamos ver como ela reage.
-Onde comprou estes passaportes? Viu-a tremer por um momento e depois fugir com o olhar às suas interrogações.
- Este passaporte pode ser falso - insistiu Pedro com frieza. - É um crime grave...
Agora, que tudo se tornava claro entre eles, Jadwiga pôde encará-lo. Será capaz de nos denunciar?
-Já expliquei que... que nos naturalizámos há uns meses.
Estás a levar tudo pelo pior, minha amiga. Assim nada feito.
-Pode mostrar-me os documentos da naturalização? Jadwiga pôs-se a remexer a mala; os dedos agitavam-se alarmados e Pedro reparava que ela não comandava os gestos. O rosto tornara-se-lhe pálido. Os olhos verdes e vivos pareciam agora cinzentos.
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- Não procure mais, minha senhora. Se quiser... As duas veias tornaram-se mais irrequietas.
- Sim, posso ignorar que veio aqui. Serve-lhe a solução?
Jadwiga cerrou os olhos, respirou profundamente e, quando encarou Pedro, sorria com o corpo inteiro. Os braços perderam a rigidez; o corpo deixara-se tomar pelas molas dos estofos.
Ele sentou-se a seu lado, mas depois alarmou-se com aquele movimento espontâneo.
A mulher deixara cair a cabeça nas costas do sofá. Parecia capaz de adormecer. Sentia-se que gostaria de adormecer por algum tempo.
Pedro teve receio de não dominar o desejo que o assaltou de lhe acariciar as mãos e levantou-se. Foi até à janela, abriu mais a porta interior; afastou a cortina e fingiu interessar-se por um grupo que discutia no passeio à volta dum polícia. Para que servem todas estas coisas quando as pessoas andam perseguidas? Não será melhor mostrar-me ignorante das leis?
- Permite-me que vá pensar?
Ele voltou-se, estranho, como se desconhecesse a presença de alguém dentro da sala. Depois caminhou para ela.
-Já, disse que posso perfeitamente ignorar a sua vinda aqui.
- Mas não me impede que volte, pois não?
- Temos obrigação de receber sempre os cidadãos do país que representamos, minha senhora -retorquiu num sorriso vago mas significativo.
Ela deu uma gargalhada rouca, ainda de medo.
- É um país democrático, julgo.
- Não sei bem o que se possa entender por um país democrático. Recebemos há dois dias uma ordem que nos
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interdita de pôr vistos de entrada a judeus. Acha que isso é democracia?
Jadwiga voltou a rir, mas agora num timbre aberto.
- Até amanhã? - perguntou ela, levantando-se.
- Até quando quiser.
Apertaram-se as mãos. Sem demoras. Pedro não deixou prolongar o contacto. Parecia não ter confiança nele.
-Não se esqueça...
- Dos documentos de naturalização, já sei.
- Sim, exactamente. Dirigiam-se agora para a porta.
- Será capaz de me traduzir o ofício que recebi com a ordem de que lhe falei?
Jadwiga corou numa explosão. Depois disse com brandura:
- Também não sei espanhol.
- É a sua língua oficial.
- Pois é. Devia ser...
Ela percebeu que podia partir tranquila. Estavam junto da porta de saída.
- Tem de aprender espanhol - disse-lhe Pedro.
- E o senhor também - respondeu Jadwiga. - É um representante...
- Emprestado e muito provisório. Ela olhou-o longamente:
- Até amanhã?
Pedro baixou a cabeça num cumprimento.
PEDRO
Prometeu vir amanhã - como se chama ela? Não fixei o seu nome. Só me lembro de Wanda. Wanda, porém, é a outra que não voltou. Também esta não deve aparecer
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mais. É melhor assim - não ficarei com problemas de consciência. Será uma atitude cómoda e cínica, o desejo de um cobarde, o que quiserem. Todos somos cobardes. A ponderação não será uma forma permanente de Cobardia?
A sensatez surgiu quando os homens deixaram de ter a alegria de se enganarem. A partir daí as nossas fronteiras limitaram-se e passámos a consentir que nos encerrassem numa prisão. O homem individualizado começou desde então a destruir-se.
Estou a meditar nisto, a propósito da loura que o biltre do Klemm me apresentou. Se não voltar, ficará tudo resolvido a meu gosto. É também um sinal de que teme a minha atitude, pois tirei-lhe, talvez, a esperança de um suborno pelo dinheiro. Só lhe pode restar a de me vencer como mulher. O seu último olhar não tem outro significado. Mas se não vier é porque tentou outra solução mais fácil. Ficaremos todos bem.
E se voltar?!... Isso significa que procurará aliciarme pela única hipótese capaz de me ligar ao seu segredo. Não deve desconhecer que os Portugueses são fáceis de manobrar pelo amor físico. É quase certo que no café dos refugiados comentaram o que se passou com Wanda. E natural que ela tenha contado. Foi uma cena triste. E tão profundo o desencadear da minha atitude que nunca mais voltarei a ser espontâneo como o fui nesse dia. Aquele gesto boiava no meu sangue há muito tempo, com certeza.
Mas esta engana-se, se vem com o propósito de jogar comigo aos amantes. Só tenho uma atitude humana- ignorar que apareceu com os passaportes. A única. Podia, devia apreender-lhe os documentos. Mas se não forem falsos? Se o não fosse, não precisaria da companhia do
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Klemm. Pergunto, porém, se é justo bater-me pelos preceitos legislados por um mundo de comportamento ilegal. Tenho de agir por mim. A maioria dos deveres que me ensinaram a cumprir são falsos. Devo joeirá-los na consciência, pois criei a minha escala de valores. Julgo que este mundo não tem lições para me lembrar.
Só há na minha hipótese uma sombra a ameaçar tudo isto. Se o Dr. Klemm sabe da falsidade dos passaportes, e se tem a certeza que não agi por consciência, julgo-o agora capaz de se vingar da minha atitude, denunciando os três. É fácil para ele. Neste caso provável, quase certo mesmo, devo arriscar a minha liberdade, o meu lugar, a confiança do Oliveira, por duas pessoas que não conheço? E quem são elas? Devo-lhes alguma solidariedade?
A minha mulher está lá dentro, na cozinha, a arrumar a louça do jantar. Cantarola uma música indefinida, talvez por se lembrar da minha aversão pela música da rádio. Continuamos juntos e ambos tomámos consciência de que já nada mais poderemos fazer em comum. Nada de profundo e humano, mesmo que nos nascesse um filho. E prolongamos esta presença, talvez à espera da chegada do ódio, para só então rompermos com as convenções que nos ligam. Não é isto, portanto, que interessa preservar, se o doutor vier a fazer alguma denúncia.
Estou a regressar à adolescência - aos sonhos da adolescência, àquele gosto de imaginar aventuras com riscos. Com uma diferença profunda. Já não consigo agora sonhar com o homem vencedor de perigos. Quando sonho acordado, acabo sempre vencido. Os acontecimentos esmagam-me e eu sou impotente para os dominar. Foi para reagir a esse fatalismo que falei daquele modo a Wanda. Agora começo a sentir, já desconfio, tenho depois a certeza, que Wanda não passou de uma necessidade de afirmação. Só qualquer coisa complexa, difícil e quase
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impossível, me poderá arrancar deste charco de angústia contida. Depois de dar o passo, sei que me avantajo e vou até ao fim. Se Wanda tem voltado... Como seria agora a minha vida? Talvez já estivesse arrependido, debatendo-me num desespero capaz de me arrastar para uma resolução violenta. Um dia, tenho a certeza, tomarei uma resolução violenta. Más quando?!... E não acabarei por fazê-lo no momento menos indicado? Contudo, passo por um homem sensato. Os outros não sabem, não avaliam, não admitem, sequer, a força terrível que faço muitas vezes para dominar os meus impulsos. Fico calado e os outros falam, procuram excitar-me, enquanto eu pareço apático, quase abúlico, mas desesperado por essa luta de que ninguém suspeita, em que toda a minha força se concentra para não eliminar as pessoas que me falam e me excitam.
Mas para onde vou eu com estes pensamentos?
Preciso de pensar com serenidade.
Estendo as pernas, depois de apagar a luz do candeeiro, e cerro os olhos para me acalmar. Nada acontecerá na minha vida que me obrigue a ir tão longe. Se ela voltar (faz-me falta o seu nome para pensar melhor) só preciso de lhe dizer: «Suponha que não veio aqui, que não há consulado em- Lisboa e deve, portanto, resolver a sua vida sem mim. Compre outro passaporte. À filha de um banqueiro não é difícil comprar outro passaporte.
Ela vai ficar triste. É sempre a primeira arma empregada pelas mulheres. E eu que o sei, esqueço sempre esta verdade elementar. Mulher triste ao pé de mim, e por causa de mim, é prenúncio de história complicada que acaba sempre em tristeza.
Mas que tenho eu a ver com as amarguras da filha de um banqueiro?!...
A minha mulher vem pelo corredor. Vai entrar e acender a luz, lembrar-me que o alfaiate mandou receber
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conta ou propor-me alguma visita aos Guerreiros. Não, esta noite não estou disposto a ouvir o Frederico contar anedotas e a mulher lamentar-se das criadas. Apetecia-me uma distracção. Talvez um cinema... Mas neste mês já não poderemos ver mais fitas. Devem bastar-nos as que somos obrigados a viver.
JADWIGA
Não, Leo não percebe que o empregado do consulado não queira receber dinheiro, tudo para ele é dinheiro, como o foi o nosso casamento, está habituado a resolver todas as coisas pela única força que lhe parece permanente no mundo, e indigna-se, despreza, compraz-se em IniMtilizar quem possa resistir-lhe, nem a nossa fuga lhe deformou essa perspectiva, antes pelo contrário. Em seu entender, nós estamos exactamente a ser perseguidos pela nossa força económica, o racismo e um pretexto, uma maneira de levar a cabo um golpe de gangsterismo a coberto de uma filosofia inspirada em Nietzsche, que abominava os Alemães, «inconscientes moedeiros falsos, ar viciado, responsáveis de todos os grandes crimes contra a cultura nestes últimos quatro séculos, foi assim que ele os classificou, embora nós devamos a saída de Viena a um alemão que nos avisou do que se passaria com os Judeus.
Judeus, porquê? Se meu pai e eu já nada temos com Israel... Deixámos a nossa religião, assim como Leo e tantos outros de quem soubemos notícias em Nice, perseguidos e humilhados, quando muitos de nós desejávamos uma pátria alemã forte só porque falávamos a mesma língua e julgávamos projectar a sua força na Áustria, como se
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pudéssemos voltar a reconstituir o império austro-húngaro, e o meu pai aproveitasse, nas suas ligações com os banqueiros alemães, a maior parte do que viria com a expansão germânica, embora só por isso sejamos ainda vivos, pelo poder da nossa força económica, único milagre em que Leo acredita, e por isso ele pensa que o homem do consulado está a manobrar com habilidade para conseguir aumentar o preço do serviço que precisamos dele, agora que conhece a falsidade dos nossos papéis.
Mas na verdade quais são os meus argumentos para destruir a opinião de Leo?
Não chega um olhar doce e profundo, um sorriso triste, aquele todo sensível que comunicou comigo, talvez pela garridice do meu olhar e do meu sorriso, não sei ainda porque o olhei daquela maneira, não, ele não me agrada, isso não, agora não há homens que me agradem, conheço-os em demasia, mas neste eu tenho confiança, talvez por não o conhecer ainda bem, é melhor nunca conhecermos bem as pessoas, embora não fosse capaz de o repelir se ele fizesse um gesto para me tocar; julguei em certa altura que ele iria dizer-me alguma coisa e por isso corei, o que é absurdo em mim, já desiludida dos homens e. de mim própria.
Leo foi injusto quando me disse «os homens dos países pobres são o contrário do que tu pensas; não os vês puxar carroças como animais de carga? Não os vês descalços, quase andrajosos, e quando a gente se aproxima sorrirem? É porque esperam dinheiro; nós somos uma grande oportunidade para esse homem e ele não vai perdê-la. deve pensar na maneira de prolongar a nossa ansiedade para tirar disso todo o lucro possível.
Ele exagerou e eu disse-lho, e ele sorriu com aquela expressão humilde e triunfante tão sua, talvez por saber
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que em Viena triunfava sempre, não sendo um homem inteligente; eu sei-o melhor do que ninguém, mas também sei quanto Leo é uma máquina eficiente, embora de aparência insignificante, que nunca recua, não sabe recuar mesmo quando parece ceder, como agora em que tudo se quebrara entre os dois e Leo conseguiu comprar os passaportes falsos para que vivamos na ilegalidade, o que as leis já não poderiam conseguir de mim, que casei sem o amar e vivi com ele sem lhe ter amizade; admirava-o, sim, isso sim, gostava de o saber capaz de ir ao extremo pelas coisas mais vis e também mais sublimes só para me agradar, gostava de vê-lo agir, era empolgante vê-lo agir, lembrando um insecto temível, mais temível do que um tigre, sim, um insecto, como aquela marabunta que vi num filme cultural.
Sorri ao pensar o que serei eu se domino uma marabunta, e ele perguntou-me porque sorria eu. Respondi-lhe «vamos ver o que consegues no consulado, gostava de te acompanhar para aprender contigo a resolver certas coisas difíceis, masele não gostou, conheço-lhe demasiado aquela ruga cavada em bico na testa, como um rasgão profundo que lhe atingisse o cérebro, e só espanta não vê-la deitar sangue, porque não é uma ruga e sim um golpe de punhal.
Depois, de repente, como se se arrependesse do seu olhar duro, perguntou-me se queria ir ao Estoril, estava com um palpite e queria aproveitar a oportunidade, uma vez que o pai não fizera ainda a transferência de Zurique;
e eu respondi-lhe «não, não quero, e ele disse-me «podíamos dançar, apetece-me dançar contigo esta noite, e eu fui obrigada a lembrar-lhe mais uma vez «sabes que não gosto de dançar contigo.
Acabei agora mesmo de lho dizer e ele levanta-se, meneia a cabeça, atingi-o profundamente, bem o sei, era
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de resto o que eu queria, e estende-me a sua mão curta e flácida, obriga-me a agarrá-la e propõe-me: «Dançarás com quem quiseres, mas vem, eu preciso de jogar e quero que me acompanhes.
Eu resigno-me e levanto-me, um dia terei de lhe dizer não, um «não definitivo, e quanto mais tarde pior será.
LEO
Jadwiga está enervada, quero percebê-la, devia percebê-la, mas receio que o seu medo se me comunique. Começo também a ter medo, sinto-o no estômago e talvez nos braços, nesta moleza que me prende os braços. Não é bem o caso dos passaportes. Tenho a certeza de que vou resolver o assunto depressa. Só devo preocupar-me com um pormenor: gastar o menos possível. O dinheiro agora conta como nunca. Ela está a romantizar quando diz que o homem do consulado não é susceptível de dominar por dinheiro. É ingénua. Ainda não percebeu que a manobra é feita para nos arrancar o mais que puder. Mas se realmente ele for como Jadwiga diz? Há ainda outra hipótese. Só mais uma hipótese, e é dessa que me receio.
Se o metermos na nossa convivência, ele não resistirá a Jadwiga. Sei perfeitamente que nesta cidade, rodeada de homens que a perseguem... Não há mulher que consiga defender-se deste cerco. E Jadwiga está só. Nem a fuga a ligou mais ao meu amor. Bem pelo contrário. Aqui não nos separaremos por causa dos passaportes, ela não deve estar disposta a ir para a cadeia, é egoísta de mais para ir até aí, mas talvez seja esse o nosso fim se eu lhe descobrir algum amante. Todas as mulheres têm um
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momento de quebra. Esses momentos passam sem consequências, se não há ao pé um homem que os perceba. Mas aqui será quase impossível. Eu sei que vai ser impossível, mas também sei que sou capaz de provocar uma catástrofe para não perder Jadwiga. Mesmo que me perca com ela.
Olho para os seus ombros, ela vai aqui a meu lado num automóvel de praça, e apetece-me beijá-los. Esquecer-me nos seus ombros que sou um homem sem raízes neste país, esquecer-me que só um milagre me poderá fazer regressar a Viena. Como tudo isto me parece ainda um pesadelo!... Como fui feliz no dia do incêndio do Reichstag, convencido de que também nós, os Austríacos, iríamos beneficiar da força alemã, libertando-nos dos nossos inimigos! E agora essa força esmaga-me, obriga-me a fugir como um cobarde... E os que não foram avisados a tempo?... E os que pressentiram tudo, antes que eu visse a realidade, e nem puderam fugir?...
Sobre o rio cai uma chapada de luar. Vou agora a caminho do Estoril, apetece-me dançar com Jadwiga, e esta serenidade nas coisas, esta doçura da noite e do rio, batem em mim e afastam-se, como as ondas que ouço desfazerem-se na muralha da estrada. Jadwiga vai com o olhar sempre em frente, ainda não disse uma palavra;
todos os dias se afasta de mim, vamos ambos por caminhos diferentes. Eu devia ter a coragem do Dr. Mõller, que fez frente aos nazis com a sua pistola e se deixou abater em plena rua.
Não o fiz por Jadwiga. Acho-a demasiado bela para morrer. Ou para ficar viúva, o que seria pior.
Disse-lhe que tenho um palpite ao jogo, gostei sempre de jogar, mas agora não consigo ganhar confiança no que vou fazer. Vou carregar o número oito, só o número oito, era o número da minha esperança quando íamos a Mónaco. Esta noite procuro um pretexto para estar acompanhado
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com mais gente e para dançar com Jadwiga. Preciso de a agarrar no meio dos outros pares, como para sentir que não estamos sós. Que eu, pelo menos, não estou só. É importante para mim.
Ela continua a olhar a estrada de asfalto, negra como a nossa vida destes últimos meses. Parece que vamos os dois, sozinhos, pelo mundo dentro. E eu sei, só eu sei, como isso seria doloroso, embora pareça bom. Jadwiga nunca gostou de mim. Não se pode suportar um caminho qualquer, tendo por companhia alguém que nunca nos ganhou afeição. Ou de quem nunca soubemos conquistar a afeição.
Antes um desconhecido. Um desconhecido é sempre o mistério. Mas Jadwiga é uma certeza permanente.
Agarro-lhe a mão e a dela fica inerte. Preciso de beber. Vou beber e dançar.
Mas agora deixa-me fechar os olhos, encostar a cabeça ao estofo e descansar... Pode ser que os meus olhos chorem e Jadwiga não me pode ver chorar. Ela nunca me há-de ver chorar, porque isso seria uma vitória que lhe dava. E isso, ao menos, não conseguirá ela de mim. A piedade sempre me vexou.
Grito para o motorista: «Vá mais depressa! Pius vite, pius vite!...»
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CAPÍTULO QUARTO
“Fora do seu meio, por mais que quisesse sentir a segurança natural dos homens da sua classe, Leo não era o mesmo. Um lobo quando sai do bosque ou da montanha, onde tem o seu fojo, e parte acossado pela fome ou pelo fogo dos batedores, continua a ser um lobo, talvez mais feroz ainda, mas caminha desconfiado. Leva consigo o olhar fuzilante, as garras iradas nas mãos prontas ao combate, o pêlo eriçado. Parece seguro de si, mais intrépido ainda. Mas o coração é uma bola de fogo que lhe magoa o corpo.
Uma bola de fogo e de receio, como Leo sentia naquela manhã de Primavera, vindo espreitar a avenida da janela do seu quarto. Jadwiga, ao espelho, irritava-o. Irritava-o o tom de cereja madura do seu vestido, o mau gosto dos móveis, a cortina, que caía sempre que ele retirava a mão e o obrigava a repetir o mesmo gesto enfadado.
Com o seu sentido prático da vida, Leo preferiria que o silêncio tivesse uma cotação nos valores da Bolsa e que soubesse naquele momento quanto deveria pagar ao homem do consulado. Seria terrivelmente cínico se os homens fizessem mercado todos os dias dos valores morais. Mas quanto se tornariam simples também as suas relações!
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Sigilo nos negócios, tantas libras; sigilo no amor, tantos francos; sigilo nos contratos de obras públicas, tantos contos... A audácia valeria conselho de administração em cinco companhias; a imbecilidade uma pasta ministerial; a persistência cinco anos de cadeia ou a glória eterna. Para a honradez, o riso público, o mesmo que um homem hoje atravessar uma cidade numa diligência puxada a mulas. Para o carácter, cotação negativa, um valor sem oferta e sem procura. E tudo o mais assim.
- Estou pronta - disse a mulher, olhando mais uma vez o espelho.
- Até que enfim... São mais de onze horas
- Ele está até ao meio-dia, pelo menos.
- Continuas a entender que é vantajosa a tua presença? Sim, quero dizer na minha, se não vais unicamente para assistir a uma espécie de combate de boxe ou de galos...
-Não percebo a tua atitude!
Leo sacudiu os ombros com desespero.
- Eu é que ainda não compreendo o sorriso e as palavras de desafio que me lançaste a propósito...
- Não te desafiei, Leo. Quis, talvez, dizer-te que nem tudo se compra. Devo ter-me enganado. Tu conheces melhor os homens do que eu.
Ela queria falar com humildade. Mas, à medida que falava, a sua voz aquecia e tornava-se agressiva e desdenhosa. Voltou-se para a janela num impulso - apetecera-lhe sorrir outra vez.
- Se entenderes, não vou. Fico à tua espera no café - disse depois, quando se achou capaz de encarar o marido.
Ele estava apreensivo. Jadwiga sabia que precisavam de ser solidários agora, até que saíssem da Europa ou pudessem regressar a Viena. Os passaportes ligavam-nos
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tanto, como as raízes dàquelas árvores que reverdeciam lá em baixo. Só se um deles morresse, seria possível a separação. Aproximou-se do marido e tocou-lhe o braço com cautela. Depois apertou-lho.
- Vai sozinho, sim, é melhor. Na minha presença ele deve sentir-se melindrado.
- Parece-te também ? Sinceramente ?... Ela sorriu, fechando os olhos em sinal de assentimento. Leo beijou-lhe os cabelos. Lembrava-se da sua recusa em dançarem, a pretexto de que não acertavam. «Só quando somos felizes é que podemos dançar bem, dissera Jadwiga. Ele apertava-a nos braços e sentia o corpo menos tenso. Desceu?
- Descemos juntos. Espero por ti no café.
- Acho que devias lá ir menos. Vais encontrar esse tipo sujo... Mostraste-lhe os passaportes?
-Não.
- Com “certeza?
-Já te disse que não, Leo. Duvidas sempre do que te digo.
- Sabes porquê.
- Sim, sei. Preferes que eu fique aqui no hotel.
- Talvez...
Leo saiu apressadamente para a não ouvir. Recusou o elevador e desceu as escadas a passo lento. Consultou o relógio, embora adivinhasse as horas. Deviam ter passado dez minutos se tanto, depois que o vira pela última vez. Sim, doze minutos.
Perguntou no escritório da recepção se havia alguma correspondência para eles.
- Nem telefonema?
Pediu que lhe chamassem um táxi. Enquanto esperava, passou os olhos pelos títulos de um jornal. Começava
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a ser capaz de traduzir os cabeçalhos das notícias que lhe interessavam. Havia um título esperado agora todos os dias - a guerra. A saída não poderia ser outra.
Dentro do automóvel não quis pensar. Assegurou-se de que levava os passaportes consigo, recomendou ao motorista que fosse depressa e tentou distrair-se com o movimento das ruas. A cidade animava-se com a chegada da Primavera. As mulheres deixavam os abafos e pareciam mais confiadas. Algumas sorriam. «Porque será que os Portugueses andam tão tristes? Os automóveis ultrapassavam-se, tocavam desesperadamente os sinais sonoros, os condutores discutiam em gestos significativos, que ele interpretava à sua maneira, mas as pessoas continuavam lentamente a andar nas ruas, a atravessar as ruas, como se procurassem os desastres. Os carros gemiam os travões, nas paragens bruscas, e o peão e o motorista defrontavam-se com arrogância.
Percebeu que o condutor do táxi o fazia passear, tantas voltas o carro dava. Ainda pensou dizer-lhe qualquer coisa, mas sabia já que o outro fingiria não o entender. Preferiu deixar os nervos em repouso.
Quando subiu o elevador do consulado, achou-se calmo. Era sempre assim, pensou. Pensou e sorriu, seguro de que desceria daí a momentos com os seus papéis em ordem. Levava os argumentos no bolso interior do casaco. Os últimos argumentos, se fosse preciso invocá-los.
Ainda bem que a mulher não viera. Estaria mais à vontade sem a sua presença. Talvez se distraísse com ela a interpretar-lhe o olhar e as expressões; talvez não fosse capaz de se dominar, se o empregado recusasse a autenticação dos passaportes e tivesse de chegar ao suborno descarado. Ela depois faria os seus comentários. Quase sempre inteligentes e hostis.
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Se não fossem os seus interesses abandonados na Áustria, teria agradecido aquela viagem forçada. A separação tornara-se irremediável. Jadwiga não escondia nos últimos meses o seu desprezo por ele. Só então percebera porque se recusara sempre a ter um filho. E depois da viagem a Paris tudo ruíra entre os dois. Nada mais havia a esperar do seu convívio. Agora voltavam a depender um do outro. Enquanto tivessem de ocultar a sua verdadeira nacionalidade, Jadwiga seria a sua mulher. Mesmo desprezando-o. Era a grande oportunidade da sua vingança. Tê-la junto de si. Dominada, embora rebelde.
Uma porta rangeu. Leo ergueu-se lentamente, numa vénia sóbria, e estendeu a mão ao homem que se lhe dirigia. A mão do outro era seca e nervosa. Essa mão indicava-lhe que se sentasse.
- Fala francês? - perguntou Leo.
-Mal. Compreendo alguma coisa. Mas preciso que me falem devagar.
O rosto do outro era fechado. Só nos olhos havia uma doçura humana, a contrastar com a dureza das linhas da testa e dos maxilares.
-Calcula ao que venho...
- Os vistos de entrada a judeus foram cancelados - disse Pedro.
- Não sou judeu.
- Tem o seu passaporte?
Leo sorriu. O outro parecia indiferente. Tirou os dois passaportes do bolso, bateu com eles na palma da mão esquerda e entregou-lhos. A expressão de Pedro alterou-se. Abriu a primeira folha.
-Veio ontem aqui uma senhora...
- É a minha mulher.
- Deve-lhe ter dito a minha opinião.
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- Sim... Mas as mulheres confundem, por vezes. Preferi vir eu próprio. Não o aborrece?
- Estou aqui para atender quem necessita dos serviços deste consulado.
- É o cônsul?
-Não. Sou um simples empregado... A sua expressão quer dizer que preferia falar ao cônsul.
- Sim... Desculpe.
- É razoável. Não me sinto ofendido. Mas sou eu quem trata de todos os assuntos.
- Ainda bem que assim é. Minha mulher falou-me de si com muita simpatia e vejo agora que não exagerou. Somos cidadãos do país que representam...
Pedro meneou a cabeça.
- Os passaportes assim o dizem.
- Tem algumas razões para supor...
- Nenhumas. Por isso mesmo vou ficar com os passaportes, tirar todas as indicações necessárias e comunicá-las ao país. Depois esperarei ordens.
Leo embaraçava-se com a calma do outro.
- E com que papéis nos identificamos?
- Com estes. Dentro de dois dias poderá vir buscá-los.
Pedro ergueu-se. Leo sentia-se tolhido. Ainda bem que Jadwiga não veio.
- Desculpe- disse por fim, continuando sentado. - Um cigarro?
- Obrigado. Prefiro dos meus.
- Pode ouvir-me por uns momentos?
- Certamente.
Leo aproximou-se, sentando-se na ponta do sofá. Tenho de mudar de jogo, está visto.
- Preferia que não mandasse essas indicações. Pode ser?
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- Disse a sua mulher que podia ignorar a vossa vinda aqui. Fugiram da Áustria, não é assim?
Leo confirmou num aceno de cabeça. Mostrou-se preocupado.
- Há pouco menti-lhe. Deve perceber porquê. Não sabemos já quem são os amigos e os inimigos.
- É judeu, portanto. Mas não receie.
- Também é judeu?
- Ignoro. Nem o caso me interessa. No meio em que vivo, ninguém se preocupa com esse facto. De resto, em Portugal, a maioria não se importa com esses problemas de raças. Somos um povo atrasado, mas humano. Talvez por sermos de um país pequeno. Não podemos arranjar pretextos para dominar os outros. Falta-nos força.
- É um prazer ouvi-lo, sabe? - disse Leo para subornar o outro.
- Não sei porquê.
- Percebe-se que é contra o nazismo. Pedro receou ter falado de mais. Olhou o estrangeiro bem nos olhos.
- Não é bem isso. A política não me interessa. Procuro ser um homem humano quando me é possível. Hoje nem sempre é possível. No seu caso já disse o que podia fazer...
- Se não abusasse da sua amabilidade - disse Leo já refeito -, pedia-lhe um favor. Pagaria todas as despesas, claro. Felizmente, reconheço o que são serviços. Não sou mesquinho. Entende?
- Não. Julgo não ter percebido. Leo baixou a voz.
- Preciso de ficar na Europa. Eles podem ser vencidos; pode passar-se qualquer coisa que volte a dar a independência ao meu país e eu precisarei de regressar
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imediatamente. Talvez esteja a mostrar um empenho exagerado. É claro que todos gostam de viver na sua casa. Compreende, certamente. Só com a sua ajuda isso será possível. Estou disposto...
A palidez do outro travou-lhe a voz.
- Se a sua colaboração me traz vantagens materiais, é justo...
-Não o compreendo...
- Mas também não está aqui para me fazer favores. Juro-lhe que nem a minha mulher...
-Não nos estamos a entender - interrompeu Pedro. - Ao contrário do que diz, estou aqui, exactamente, para prestar a minha colaboração a quem dela precisar. Já lhe disse o limite das minhas possibilidades.
- Que eu devo agradecer-lhe. Desculpe a insistência. Se eu fosse um homem pobre...
- Não podia estar aqui, eu sei. Seria obrigado a sofrer as consequências que os invasores do seu país entendessem.
-Exactamente. Por isso mesmo...
Leo achou não ter feito ainda o gesto essencial. Meteu a mão ao bolso, tirou o livro dos cheques e pô-lo à frente de Pedro.
- Pode escrever com a sua caneta...
- Quinhentos contos?
- A sua colaboração pode valer mais do que isso. Mas nesta altura não disponho desse dinheiro. Até... Quanto quererás? cinquenta contos...
- Nem quinhentos nem cinquenta. Estava a tentar descobrir como certas pessoas podem ganhar a vida.
-- Quando se facilita a dos outros, como é o seu caso, não vejo qualquer razão de reparo.
- Neste caso é a minha opinião que vale. O senhor talvez não perceba isto.
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-Receio tê-lo magoado. Mas se realmente eu posso pagar...
- Mas eu não posso receber. Neste consulado há uma tabela de emolumentos. É por ela que se marca o preço, em selos, dos serviços que prestamos. Guarde o seu livro de cheques, por favor. Aqui tem os seus passaportes. Ignorarei que os trouxe, exactamente como fiz com a sua mulher.
- Gostaria de lhe explicar - disse ainda Leo.
- Não me deve qualquer explicação. Não julgue que me sinto diminuído pelo facto de me ter querido subornar.
-Queria unicamente compensar um favor...
- Conheço bem a moeda corrente dos tempos que passam. Não pense que sou ingénuo. Não o serei de facto?!... Mas persisto em viver com outra moeda.
Lembrou-se de uma frase de Gorki: «A ética é a estética do futuro.
- Lamento...
Sou eu quem lamenta não poder...
-E não poderá de facto?!...
-Neste momento penso que não.
Leo aceitou aquela frase como uma esperança. Deve hesitar com a minha partida. Cinquenta contos é dinheiro, acho eu.
- Gostaria que nos visitasse, um dia, quando lhe calhasse...
- Tenho sempre as minhas horas tomadas. Leo sentiu que a conversa terminara. Encaminhou-se para a porta e começou a andar rapidamente, como se o perseguissem. Quis ainda voltar-se, dizer mais qualquer coisa, mas não encontrou dentro de si uma só palavra que pudesse alterar o que se passara.
Pedro disse «boa tarde». Ele respondeu em alemão e desceu as escadas a pé.
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PEDRO
Não devia estar satisfeito com esta oportunidade, mas sinto-me compensado de muita coisa desagradável. Nunca pudera, contudo, explicar a alguém desta gente que a dignidade não é uma velharia exclusiva dos homens que viveram antes da guerra de 14-18.
Talvez isto pareça mesquinho. Será mesquinho, concordo. Sei que tudo ficará exactamente na mesma, tudo, tudo, até eu. Podia receber os cinquenta contos e distribuí-los ou guardá-los para mim. Preciso de comprar uns livros. Gostaria de ter a Enciclopédia da Espasa.
E porquê uma enciclopédia?!... Isto deve ter uma explicação...
Talvez porque aprendi pouco. Gostava de ter feito, ao menos, o curso dos liceus e fiquei-me num curso elementar de comércio. Um curso que me é estranho, uma actividade que não corresponde a qualquer coisa que ambicione. Números e só números. Saldos devedores e saldos credores... Já sei qual o saldo que ficará para mim no fim da vida.
Mas acabarei numa secretária destas?!...
A minha atitude pode ser gratuita. Nem sequer é um exemplo. Não, nem sequer é um exemplo. Este tipo vai continuar a fazer exactamente o mesmo. E um dia contará esta história a rir. É uma história de almanaque ou de um Georges Ohnet actualizado.
De qualquer forma, eles são dois perseguidos por uma casta que abomino. Escolhi a melhor oportunidade para atirar à cara de um homem de dinheiro com o desprezo de um homem pobre?
É uma pergunta.
Depois pensarei nisso melhor. Agora vou beber uma cerveja quando sair. É uma compensação idiota, bem o
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“sei, mas um homem como eu, a quem quase tudo se nega, pode ter também o seu dia de glória anónima e barata. glória de fim de estação, liquidada em saldos, mas não sabe bem. Se o meu avô e os meus tios fossem vivos, havia de lhes contar tudo isto. Que pensariam eles do que fiz?!...
LEO
Mal saio a porta, como se ali estivesse à minha espera, um condutor de táxi oferece-me o seu carro. Recuso com um aceno de mão, mas uma hipótese terrível entra-me no espírito. Está fresco e sinto o corpo encharcado de suor. Lá em cima não pudera perceber esta vaga de calor pegajoso que me arrepia, mal chego à esquina.
O motorista insiste, quase pára o carro junto de mim, debruça-se da janela. Digo-lhe que não duas vezes. Vou para o passeio oposto e a dúvida agarra-me os nervos. «Será coisa do Dr. Klemm ou do tipo do consulado?, pergunto-me com ansiedade. Acho qualquer deles capaz de uma denúncia, mas a verdade é que, por enquanto, posso estar em Lisboa sem receio. Os passaportes são válidos por mais um mês. A não ser... Sim, a não ser que a polícia já saiba que são falsos. «Mas, então, não haveria necessidade de me mandarem seguir», penso com lucidez. «Iria um agente ao hotel... A menos que vigiem agora o consulado. E nesse caso o denunciante foi o porco do doutor. É possível!»
O táxi desaparece no largo. Escapa-se por entre as duas filas de automóveis, com esta perícia incrível e suicida dos motoristas de Lisboa.
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Começa a borrifar uma chuva de missanga, que se me crava na cara, como pequeninos pregos de ponta viva e fria. Tiro o chapéu e ofereço o rosto à água - talvez isto apague o calor absurdo e doentio que avassala o meu corpo. Sinto a cabeça em fogo. Não esperava aquela recusa. Este chuvisco de Primavera acaba por me saber bem, mas não traz a calma. Parece até que me torna mais lúcido. E a irritação cresce em mim. Um pobre pede esmola. Dá-me vontade de lhe contar o que se passou comigo. Seria absurdo. Eu nunca seria capaz de contar a minha angústia a ninguém, quanto mais a um pobre deste país de gente amável e mesquinha.
Andar a pé é salutar, dizem os médicos. Disse-me o idiota do Dr. Kruk, o apaixonado de Jadwiga, quando um dia lhe falei do meu peso excessivo. Como foi possível preocupar-me alguma vez com o peso!
Hoje pesa-me o espírito e vou descer a avenida até o hotel, não sei bem se para prolongar este tempo de pausa entre mim e Jadwiga, se ainda para reflectir noutra hipótese que preciso de encontrar. A verdade é que tudo se baralha neste nevoeiro cerrado, por onde caminho às cegas. O pior ainda é que a minha mulher vai exultar com esta recusa. Não porque não ambicione também a legalização dos nossos documentos, mas para confirmar que percebera o que havia de inabalável na recusa desse idiota melancólico.
Falta-me aqui a companhia de Sara, a rapariga que deixei ficar em Viena e que bem devia ter trazido. O amor de Sara, os carinhos de Sara, os sacrifícios de Sara. Tenho a certeza de que se ela ali entrasse com os passaportes não haveria necessidade de me sujeitar a este vexame. Ela saberia resolver tudo. Sim, tudo. Quando punha os seus olhos nos nossos... Lembro-me de quando a encontrei. Ela
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estava a comprar uma revista de modas. Eu falei em voz, alta, ela voltou-se, como se a minha voz a magoasse, e fitámo-nos. Eu sorri primeiro, depois fiquei aturdido, ou envergonhado, não sei bem, e pedi um charuto. Comprei uma caixa de charutos.
Sim, Sara faria daquele tipo o que quisesse. A sua maneira de sorrir, a sua voz frágil e autoritária, de uma matoridade agradável, branda e violenta ao mesmo tempo. i;ora nada posso remediar. Jadwiga é a minha mulher. mulher que adoro e parece não dar por mim. Talvez só por isso eu pense que a amo. Preciso de a ver um dia inibida... Um dia só que seja.
Não, é absurdo o que estou a pensar. Admiti agora vingar-me dela. E porque não?!... Já consegui coisas mais difíceis. Mas desta vez enganei-me. Pensei que o resto da Europa saberia ajudar-nos e, afinal, todos estão contra nós, talvez porque receiem a vitória deles.
Agora fechou-se-nos a porta de saída. Até cinquenta contos! Nem o dinheiro já vale neste mundo. E se eu falar ao cônsul?...
Sento-me num banco da avenida. O chuvisco passou o Sol aí está a cobrir tudo de luz. Visto o sobretudo. Um engraxador da rua, maltrapilho e magrizela, põe a caixa aos meus pés e pega-me no sapato. Percebeu que sou estrangeiro, acha que me vai enganar e está feliz. As mãos tremem-lhe com a escova, mas ri quando me olha, com uma boca mal semeada de dentes. Tem um pé descalço e outro com uma espécie de sapato de pano sem solas. Repara no meu olhar e ri mais. Explica-me, por gestos, apontando um polícia, que é obrigado a andar calçado, mesmo que seja só num pé. É um pé com uma crosta castanha, enorme para as suas canelas finas, enorme para todo o seu corpo ossudo e débil.
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Este rapaz ainda pode rir. E contamina-me. Recordo Sara mais uma vez. Cerro os olhos e revejo a primeira vez que a beijei. Quantos dias sem a ver depois de a ter beijado? Foi o primeiro malabarismo do seu poder de sedução. Acabei por lhe dar uma casa.
O rapaz começa a puxar o lustro ao primeiro sapato e fá-lo com requinte, obrigando a tira de pano a cantar, a gemer depois, a ondular como uma cobra nas suas mãos sujas e magras. Parece disposto a fazer um espelho do cabedal para nele se mirar depois.
Ouve-se, um apito de fábrica ao longe. O rapaz levanta a cabeça, faz-me sinal com um dedo, sim, é uma hora, eu espreito o relógio e confirmo. Antes de chegar ao hotel, vou telefonar ao cônsul. Tiro o sapato do apoio da caixa e ponho o outro. O polícia aproxima-se, o rapaz abala com a caixa e eu fico só com um sapato engraxado. Deve ser proibido ou é um engraxador sem licença. Tiro uma moeda e lanço-a ao rapaz, que faz uma gaifona e desaparece numa das ruas transversais, enquanto o polícia continua ronceiro a passear.
«É do consulado?»
A voz que me respondera com um «alô» impecável, fica hesitante. Estou a telefonar duma cabina. Ouço a respiração da pessoa que atende, depois palavras incompreensíveis para mim e, finalmente, outra voz a comunicar: só às duas horas.
«O senhor cônsul? Posso falar com ele?»
«O empregado... só volta às duas...»
O empregado é que trata de tudo. Nada feito.
«Merci.»
À volta da cabina estão três pessoas à espera que eu acabe. Uma delas espreita pelo vidro, faz um gesto de impaciência e quase me atropela quando vou a sair.
Encolho os ombros e recomeço a descer a avenida.
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CAPÍTULO QUINTO
-conheci hoje um superestúpido - disse Leo quando entrou no quarto do hotel.
- E então? - perguntou Jadwiga, pondo de lado o livro que estava a ler.
-Então... Tudo ficou na mesma. Aqui temos os passaportes. Aquele pobre diabo não os apreendeu nem autenticou, o meu livro de cheques continua com o mesmo saldo e devemos pensar na maneira de continuar em Lisboa. Precisamos de ficar em Lisboa.
-Eu tinha razão?
- Sim, tinhas razão. Mas deves convir que ninguém pensará que é preciso vir a Portugal para se encontrar um animal antediluviano. Um estúpido animal de aparência modesta que deve ter pretensões a rei de Inglaterra. A sua atitude não pode ter outra explicação.
- Queres confessar que o nosso dinheiro de nada serviu.
- Pareces satisfeita.
-Talvez. Aí está uma lição: nunca devemos julgar os outros por nós.
- Pois continuo a pensar que ele foi sócio do Dr. Klemm.
- Já te sei obstinado.
Talvez te lamentasses mais agora, se o não fosse.
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- Encontras sempre uma maneira conveniente, para ti, de interpretares a vida. É uma deformação profissional. Descemos?
Sim, desceram para almoçar, calados, como se quisessem ignorar-se. Cada um voltado para o seu caminho; longe um do outro e sempre presos - talvez mais presos quanto mais a imaginação os afastava.
No fim do almoço, ele perguntou:
-Vês alguma saída para isto?
Jadwiga deixou um silêncio prolongado meter-se entre os dois. Gozou com a expectativa do marido. Sabia que ele precisava de ficar na Europa e que confiava nela para resolver o assunto. Comia a fruta. Uma laranja. Apetecia-lhe ferrar os dentes na polpa açucarada e trinchava-a com requinte.
-Ouviste o que te perguntei?
- Já sabes que tenho uns ouvidos preciosos. Já ouvira a pergunta antes de a fazeres. Mas não sabia, e não sei ainda, a resposta a dar-te.
Ele fumava.
- Não podemos voltar para trás.
- Não. Agora teremos de ir sempre em frente. Estamos na única hipótese europeia. Se quisesses tentar... Sim.
- Sim o quê?
-O que pensaste: procurares convencê-lo a regularizar os nossos passaportes.
-O dinheiro falhou.
- Podes não falhar tu.
Falava sem a olhar, fumando cigarro após cigarro;
sorrindo para os hóspedes que saíam e o cumprimentavam.
- Queres meter-me num jogo perigoso, Leo. E os teus ciúmes?
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- Sei que não te podes interessar por ele.
- Mas ele pode interessar-se por mim. Suportas essa hipótese?
- Ficámos com uma única carta na mão. Este jogo é de vida ou de morte.
- Pensa melhor no que devemos fazer. A hipótese de voltar ali desagrada-me.
- Ele insinuou alguma coisa quando lá foste? - perguntou Leo, voltando-se para ela.
-Não. Foi um homem correcto.
-Os homens correctos são os que pensam as coisas mais desagradáveis...
- Desagradáveis porquê?
-Ou as mais escabrosas, se preferes.
Falavam aos sacões, com longos intervalos. Indiferentes na aparência, distantes mesmo, mas realmente atentos um ao outro.
- Eu acredito num homem que nada pense perante mim.
- Pretendes aquietar-me?
- Sei-te imaginativo; não vale a pena. Mas percebe-se bem que trago comigo qualquer coisa pouco convidativa ao amor.
- Esqueces-te que estás num país de fatalismo. Tens o picante todo. Podes sensibilizá-lo se quiseres. Uma mulher bonita sabe sempre interessar um latino.
- Desagrada-me fazer teatro; já me conheces. O contrário: adoro fazer teatro.
- Preferes viver um drama até ao terceiro acto?
- Já estou a vivê-lo, Leo.
E olhou-o longamente com frieza. Jadwiga estava pálida. Ambos estavam pálidos. E era só isso que traía aquela conversa de aparência amável.
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Leo levantou-se e pôs as mãos sobre as costas da cadeira da mulher. Ela sentiu o que as mãos exprimiam e ergueu-se. Saiu à frente sem esperar que ele se pusesse a seu lado. O rapaz do elevador deixou a porta aberta para que Leo entrasse, mas Jadwiga mandou-o seguir.
Ele viu-lhe a ponta do vestido e as pernas altas e bonitas. Vagueou no átrio e acabou por se meter no bar. Ia para ali agora muitas vezes. Começara a habituar-se a beber todas as tardes.
- Um whisky duplo, garçon.
Foi sentar-se numa poltrona, escondendo a cabeça entre as mãos.
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CAPÍTULO SEXTO
A tarde desfraldara bandeiras de luz por todo o céu, depois de as nuvens mais baças se terem encaminhado para o mar. Mal a chuva morrinhenta se finara de cansaço, o Sol viera enfiar os cornos dourados por cima dos prédios da colina do Carmo e ladrilhara os passeios com tijolos amarelos, em fantasias de Primavera precoce.
Enxugavam-se as árvores dos frémitos invernosos, tre-melicando nos ramos as primeiras folhas tenras; pareciam pequenos pássaros inquietos deslumbrados pela suavidade da tarde. Só lhes faltava cantar por gorjeios. Mas cantavam verde. Um verde brando e ao mesmo tempo chocalheiro, que se repercutia, num eco buliçoso, no ripanço das águas saltitantes dos dois lagos românticos.
Os pombos vieram dos ninhos misteriosos envolver a estátua com asas repousadas, como se depenicassem grãos de luz a esmo. Os eléctricos amarelos subiam e desciam a praça, mansarrões e grulhas, a encher o ar de campainhas, num jeito fanfarrão de quem trazia novidades. De pé enxuto e garganta arrebatada, saltaram os vendedores de lotaria a apregoar os seus números, e foi uma guerreia de promessas, com terminações para todas as esperanças. Alguns cantarolavam em verso, outros entravam no jocoso «sai branco, com certeza, amanhã é que
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anda a roda»; e corriam ao lado dos fregueses, metendo-lhes cautelas nos bolsos, «tem aí cem contos», ou acompanhavam-nos com o bilhete aberto à frente, que «o número é bonito e depois não s`arrependa».
Havia sol na praça e sol nas ancas das mulheres, que passavam com olhares agarrados aos vestidos e piropos de perdigueiros a morderem-lhes a garridice ou o pudor. Nas paragens dos eléctricos formavam-se grupos de homens mal alimentados de amor, à procura de uma perna mais descuidosa que lhes afogueasse a imaginação. Um olhar entontecia-os. E aí abalavam, esquecidos dos afazeres, à trela da mulher que lhes prometera, sabiam lá o quê. Algumas gostavam de se sentir requestadas, e mirada para um lado, mirada para o outro, atravessavam a praça, como se caminhassem numa quadriga puxada por quatro ou cinco padreadores imaginosos.
Os vendedores de jornais apregoavam os diários do Porto, entre gaifonas, lutas de rasteira e golpes de cabeçada, enquanto não viesse a hora dos jornais da tarde. Os mais fracos e de pé leve escapuliam-se por entre a multidão que enxameava o passeio do lado dos cafés, encontrão daqui, asneira dali, ou faziam corropio à volta dos cachos parados ia frente dos placares - o Hitler não usava regras no seu jogo e de uma hora para a outra tudo se podia esperar. Depois da Áustria, os Sudetas... Munique fora uma sementeira que mal começara a dar frutos.
Chineses vendiam boquilhas e bugigangas. Alguns ofereciam gravatas. Dois ou três mercadores indígenas e mais atrevidos mostravam relógios de plaque ou caixas de preservativos, piscando o olho matreiro e guloso aos possíveis clientes. Os automóveis passavam numa dobadoura e os polícias vigiavam a boa ordem da praça.
Os cafés estavam cheios. Uma bica, um carioca ou um garoto davam direito ao encosto de uma mesa para toda
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a tarde. Não havia na Europa imposto de palhota mais barato. Cigarros e cafés saboreados em competição, a excitar gente abúlica e esparranhada nas cadeiras da indolência. Cá fora os lagartos ao sol. Os lagartos do Rossio tomavam toda a metade do passeio, do lado das árvores, e ali faziam negócios, mercadejavam mulheres, riam-se da última anedota política ou sonhavam com revoluções de palácio.
O relógio do Carmo insinuava as horas. Foi, então, aí por 1939, que do outro lado da praça, e a pedido dos estrangeiros sem sol para os aquecer na vida, se puseram mesas no passeio. Cheirava a Primavera. O ar era ainda fresco, mas vinha carregado de doçura - de uma doçura primária e resignada.
O gerente acedera, contrafeito, com receio de perder uma clientela que desconhecia os preços e não os regateava. E as estrangeiras sentaram-se por, ali, a ler e a conversar, matando o tempo de ansiedade naquele trampolim que tanto poderia levá-las mais depressa ao lar abandonado, como atirá-las para um exílio em terras americanas se o fogo da guerra não rompesse e as cercasse antes de novo salto.
Ficou ali uma montra de pernas e de coxas para todas as guias lisboetas, às escâncaras, sem pudores recalcados. Os panoramas fugidios das subidas para os eléctricos deixavam de ser mirante apetecível, mais para as imaginações do que para os olhares repousados. Havia ali de tudo e para todos os gostos. Era só escolher, cada qual à procura da melhor posição para lamber a ponta do sapato e amarinhar, amarinhar pelo pedaço de perna, pelas rendas e folhos, por toda aquela floresta de carnes expansivas que a esplanada exibia.
Uma maravilha!
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Como se um homem gostasse de lírios amarelos e, de repente, o atirassem para o meio de um campo coberto de lírios, sem horizontes limitados.
Fizeram-se ajuntamentos, como nas horas em que aparecia uma brigada de operários do gás para abrir um buraco ou uma da Câmara Municipal para lavar os tanques dos lagos. Mas desta vez era mais excitante, mais espantoso, como se um gato, por exemplo, tivesse amari-nhado pela coluna da estátua do D. Pedro e o quisesse obrigar a sair dali à força de arranhões.
A notícia correu a praça num rabo de fogo ateado pelo vento.
Do passeio dos cafés começaram a chegar bichas de gente, assim com modos distraídos de quem gosta de ver montras com ripanço. Os rapazes dos jornais vieram repetir para ali as suas gaifonas; atiravam-se para o chão, em lutas combinadas, de maneira a revezarem-se nos miradouros das paisagens insólitas.
-É melhor que uma revista do Parque Mayer!- gritou um escanifrado.
E a multidão riu da graça.
-Eh pàzada! Nunca vi uma coisa assim!-chalaceou outro que se fingiu tomado por um ataque e começou a tremer, a tremer, enquanto os companheiros o agarravam, puxando-o para junto das mesas onde todos ficavam mais perto da montra daquelas guloseimas tão apetecidas.
As senhoras passavam e fugiam perturbadas de tão escandalosa desvergonha pública, enquanto as prostitutas de rua vinham apreciar às claridades do sol o que elas só podiam exibir em recantos de pastelarias e cafés sombrios. Excitados, alguns homens seguiam-nas dali e acompanhavam-nas até aos seus fojos, levando na imaginação o espectáculo do paraíso.
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Alarmado com a aglomeração, um polícia aproximou-se, sorrateiro, espreitou, franziu o sobrolho e lavrou a sentença:
-Vamos embora! Não quero ajuntamentos! Não podem andar parados!
Conversando das suas cidades abandonadas, as estrangeiras não entendiam a causa daqueles ajuntamentos masculinos. Uma judia alemã é que disse para o marido:
- Parece que estamos no Zoo. Achas que é por nossa causa?
O homem encolheu os ombros e deu um bolo de arroz a um miúdo descalço que lhe namorava o prato.
E o desfile prosseguia sempre com a praça embasbacada.
Os passageiros dos eléctricos punham-se de pé para tentarem perceber o que se passava e terem depois conversa em casa ou nos cafés. Mas o mar de cabeças tapava a esplanada e alguns desciam para ver mais de perto. E ali ficavam também encostados às árvores ou acamaradando com desconhecidos em passeatas curtas que lhes permitissem rondar os panoramas.
O gerente da pastelaria enervou-se, temendo a fuga dos estrangeiros, e chegou a uma das portas para dizer:
- Parece impossível! Vamos embora, meus senhores! Respondeu-lhe uma sogada de gritos malandros e assobios. As refugiadas olhavam à volta e interrogavam-se, regressando depois às suas esperanças e desditas. Mas elas estavam sentadas naquele abandono habitual de quem se senta. E Lisboa nunca vira, nem jamais esperara ver, um mostruário tão pródigo e variado.
Quando o gerente enfurecido se aproximou e disse para uma polaca: «as pernas, oui, les jambes», a palavra foi de mesa em mesa, entre sorrisos e encolher de ombros.
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Mas só uma velha puxou a saia para o meio da canela magra.
Foi aí que durante uns meses o Dr. Klemm montou escritório.
Com gorjetas largas, pôs os criados e o gerente a rodearem-no de cumprimentos e deferências, reservando-lhe sempre a mesa do canto, donde podia dominar o salão atravancado, e aquela pequena corte de servilismos teatrais servia, à maravilha, para lhe abrir o convívio de quantos refugiados chegavam a Lisboa com novas minu-dências do drama europeu. De prodigiosa memória e palavra fácil, mostrava-se amável para quantos recorriam à sua influência, sugerida pelos próprios criados da casa, que viam nele uma personalidade importante.
Exibindo dinheiro, não lhe era difícil saber do pecúlio e das relações que cada um trazia. E como, mal chegara a Lisboa, fizera o roteiro de todos os consulados extra-europeus, conhecia em pormenor as disposições das respectivas leis quanto à possível entrada de emigrantes e de judeus nesses países. Tornou-se assim conselheiro imprescindível e obsequioso daquela avalanche apavorada.
Viera na melhor altura. Talvez tivesse alguma missão especial para desempenhar junto dos foragidos, fáceis de confessar em transe tão angustioso. A invenção da sua própria fuga rocambolesca e os pormenores que confidenciava, quanto aos haveres que deixara escondidos na Áustria, facilitavam-lhe a intimidade dos outros refugiados. À noite, no quarto de um hotel, fazia os seus relatórios dos que lhe interessava assinalar ou daqueles sobre quem recebia instruções para vigilância.
A confiança conquistada naquele consulado sul-americano dera-lhe um visto no passaporte marcado com J
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e o acesso a novas visitas que soubera aproveitar com rigor. Quando sentia dinheiro largo, exagerava os pavores da vítima. Não, não valia a pena ter esperanças. Hitler tomaria toda a Europa para a Nova Ordem, ele sabia-o bem, e acabaria por impor a sua lei aos que se lhe opusessem. Só a América ficaria livre dessa praga maldita. Claro que seria preciso gente decidida para continuar na Europa e resistir-lhe. Ele tinha ligações com vários Ministérios dos Estrangeiros, até mesmo com o dali, e talvez pudesse conseguir facilidades, a troco de dinheiro, claro, havia sempre gente capaz de se aproveitar dos dramas alheios para enriquecer. Se quisessem, poderia tentar sem compromissos...
Os outros bendiziam-lhe a solicitude. Não tinham que agradecer, fazia a sua obrigação de sionista; não eram todos eles irmãos perante o mesmo Pai Divino? Pois se o eram, que outra missão mais sagrada lhe poderia Deus confiar?
Estabelecia preços, negociava jóias ou outros valores de que dispusessem, e lá aparecia no consulado daquele «pobre tipo»a quem bastava um abraço afectuoso para se obter um visto regular. Um dia dissera-lhe: «Quando a libertação da Europa se fizer, serei eu próprio quem proporá ao meu governo a distinção que você merece, meu caro amigo. Uma tal isenção, nesta época interesseira e vil, é um exemplo meritório. Você é um homem singular...»
E ria-se consigo. Sabia quanto aquela gente apreciava as aparências.
Recebia depois o dinheiro convencionado, pedia sigilo, um sigilo absoluto sob palavra de honra, e quando lhe perguntavam quanto era o seu trabalho mostrava-se ofendido, mas emendava, num pronto, que poderiam deixar algum dinheiro para a Resistência. Iriam ser necessários
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muitos sacrifícios de vidas, mas sem dinheiro... Infelizmente, muitos não compreendiam essa necessidade.
Amealhara assim uma pequena fortuna.
Agora estancava-se-lhe a receita com aquela recepção inesperada, quando já fizera os seus cálculos para a filha do Goldstein. Se o conhecia de nome!... Um pássaro bis-nau, um colosso de fortuna!... Como poderia rodear a dificuldade? No essencial já de há muito que tratara da saúde desse empregadeco, comunicando o seu antinazismo. Quando ali chegassem, talvez não demorasse muito, saberiam procurá-lo e dar-lhe o tratamento que merecia. Mas isso era outro aspecto da questão. Nada de confundir missões especiais com os seus «arranjos privados.
Que se teria passado ontem?!...
Esperara Jadwiga ou o marido no seu canto, toda a tarde, e nem sombra de qualquer dos dois. Vira a amiga que lhos apresentara, perguntara-lhe por eles e nada pudera adiantar. Teriam conseguido a legalização?!... Fugia-lhe o negócio de mão cheia, o seu grande golpe de Lisboa.
Entretinha-se a passar os olhos num jornal inglês, quando descobriu Jadwiga à porta da pastelaria. Ergueu-se de braços abertos, de chepéu na mão, saudando-a de longe. O salão estava cheio e ofereceu-lhe um lugar à sua mesa. Solícito, um criado percebeu o gesto do Dr. Klemm, indo ao encontro de Jadwiga para a conduzir até ali.
Ela ainda hesitou, mas depois sentiu necessidade de conversar com o advogado, na convicção de que conseguiria deslindar as verdadeiras relações dele com o funcionário “do consulado. O marido fora vencido, conforme previra; sugerira-lhe que ela resolvesse o problema e para tanto precisava de todos os elementos que pudessem
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ajudar a rever a situação, de maneira a encará-la com êxito. O Dr. Klemm teria, por certo, alguma coisa dizer-lhe, embora lhe repugnasse a sua companhia. Ao S daquele homem achava-se insegura, como se entrasse um pântano. Não é tudo isto um pântano por onde camilianos até à morte?!...
Leo não gostava que ela passasse ali as tardes. Viviam com um passaporte sem o ferrete do J e talvez se julgasse diferente dos outros foragidos. Ou receava que ela entrasse em confidências, considerando-se sujeito à denúncia de algum despeitado?...
- Já viu essa feira? - perguntou o advogado depois de lhe beijar a mão.
Que feira?!...
- Essa aglomeração de selvagens à volta e defronte das mesas. Vê-se bem que estamos perto de África.
- O doutor é racista - disse Jadwiga num sorriso significativo.
Klemm meneou a cabeça poderosa, quase calva, e cerrou os olhitos vivos por detrás das lentes grossas dos óculos.
- Não, minha senhora, mas não gosto destas raças híbridas.
- Acredita na pureza das raças?
- Desejo a pureza das raças, o que é diferente. Jadwiga corou.
- Eu também sou híbrida. Meu pai é judeu, minha mãe é eslava.
- Mas é civilizada...
- Que sabemos nós de civilização, Dr. Klemm? A que atribui, então, esta sanha germânica de se impor pelo crime?... Goethe, Hegel e Beethoven são expoentes de uma grande cultura, não é verdade?... A que civilização pertencem agora?
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- À nossa, à cultura semita. Nós somos os herdeiros das grandes civilizações do passado...
- Da qual a tolerância deve fazer parte.
-A tolerância talvez seja um mito oriental.
--E donde vimos nós?...
-Você parece duvidar de que somos, na verdade, o povo eleito por Deus. Não acredita em Deus?...
-Não lhe sei responder agora...
Ficaram calados por instantes.
O criado trouxera o chá, um prato com quatro rodelas de limão e uns bolos. Klemm não tirava os olhos de Jadwiga e aquele olhar penetrante incomodava-a mais do que a sua voz pastosa e lenta.
- Desculpe a minha interferência de há pouco. Mas gostava realmente de ouvir a sua opinião acerca desta gente que conheço tão mal.
- Acha que vale a pena? - respondeu o advogado com ternura.
-É sempre agradável ouvi-lo...
Klemm teve uma expressão de falsa modéstia.
- Que pensa deste povo melancólico, doutor? prosseguiu Jadwiga.
-Não me recordo quem disse que este ar africano, quente e oleoso, corrompeu e amoleceu a doutrina da igreja medieval, a arquitectura gótica, o direito visigodo, o feudalismo e até o latim... Talvez seja da melancolia de que fala. Duma melancolia berbere...
-Porquê berbere?
-Pelo gosto das aparências que esta gente cultiva em grau elevado. Já viu a Torre de Belém?
-Não.
-É uma torre insignificante, mas pretensiosa. (Os olhos iluminaram-se-lhe.) Olhe, um pouco como aquele
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empregadeco do consulado. Exactamente. Agora compreendi o sentido verdadeiro do comportamento daquele pobre diabo. Indecisos entre a gente de olhos claros e intênticos tipos negróides...
- Ou semitas? Há muitos judeus de origem portuguesa, Dr. Klemm.
-Não se pode confundir, minha senhora. O semita engrandece sempre tudo aquilo de que se aproxima... Repare no pé descalço desta cidade, no olhar vazio das pessoas... Menos para as mulheres, é claro. Estes homens trazem sexo nos olhos. Por isso são débeis e tristes. Os Japoneses, não sei se sabe, chamam à sífilis, mankabas-sam, a doença do português. É eloquente! Não acha?...
- É um pormenor... Mas é por isso que estão todos lá fora, à volta das mesas?
Klemm deu uma gargalhada curta.
- Andam ali naquele desvairamento para verem as pernas das mulheres. Já os observou na rua?
- Já os senti.
- Aí tem.
- Mas em Paris...
-Em Clichy. Mas aqui é por toda a parte... Suba o Chiado, veja os pinocas daquela rua, encostados às paredes a dirigirem-se a todas as mulheres que passam...
- Os homens daqui são atraentes, tem de concordar. Ele abriu as mãos sapudas e encolheu os ombros.
-É uma raça de gigolots. Está interessada? Jadwiga retorquiu com vivacidade: -
- Não, não estou, de maneira nenhuma. Vestem bem...
- O gosto das aparências, como os ciganos ou os berberes.
- Mas estes são bem europeus na maneira de vestir.
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- Imitam, mas repare que até isso corrompem. Exageram quase sempre. Caricaturam.
- São corteses ao mesmo tempo.
- Afectados na cortesia, é mais justo.
- Talvez...
Jadwiga baixou o olhar, como se procurasse um bolo apetitoso no prato que estava entre eles. Klemm seguia-lhe as expressões com encantamento. Parecia esquecer-se do que lhe interessara naquela mulher quando a soubera filha do banqueiro Goldstein.
-Resolveu o seu caso no consulado?
- Não, não resolvi - respondeu ela, aparentando indiferença.
- Já lá foi, claro.
- Sim, fomos. Meu marido não teve mais sorte do que eu. Creio que há qualquer interdição...
- Exactamente por isso ele se comportou comigo daquela maneira que viu. Já não faço falta para os seus negócios... Mas o seu caso é diferente, minha senhora. Não têm passaportes daquele país?
- Sim...
-Disse-lhe que eram falsos? Jadwiga alarmou-se.
- Mas aqueles passaportes estão perfeitamente em regra, Dr. Klemm!
Ele sorriu-se. Um sorriso forçado que lhe punha num esgar o rosto largo e duro.
- Então porque se não queixa na polícia?
- Não queríamos ir tão longe...
- Mas também não se deve deixar enredar pelas artimanhas desse animal... A senhora não conhece de que é capaz aquele tipo de olhar vago e triste. A perfídia de que é capaz,..
- O doutor conhece-o melhor do que eu...
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-Ah, sim, conheço! Infelizmente... conheço. Não supõe as exigências que tive de fazer em seu nome. Uma coisa terrível de que me envergonho.
-Devia ter recusado...
-Porque não o denuncia agora?...
-Não vejo razão...
- A senhora tem a oportunidade, a grande oportunidade de vingar todas as vítimas desse homem. Queixe-se dele... Quer que trate disso?
-Não!...
Jadwiga arrependeu-se depois do arrebatamento com que lhe respondeu. E talvez da expressão que fizera. Voltou-se para o espelho da esquerda como se estivesse a compor o chapéu, mas observava o rosto perturbado. Que vai este homem fazer?!...
- Ele sabe que compraram o passaporte em Nice? - insinuou o Dr. Klemm debruçando-se sobre a mesa. - Evite que esse biltre o saiba alguma vez. É um aviso:
nunca lho diga.
As mãos de Jadwiga tremiam ao pegar na chávena.
- Agora é altura de relacionar - prosseguiu Klemm num sussurro - aquela feira que vê lá fora, a lembrança da palavra japonesa e o defeito das raças híbridas com esse tarado que lhe apresentei. Quando o vir, fale-lhe de Wanda...
-Quem é Wanda?
- Pergunte-lho.
- Uma refugiada?
O advogado não respondeu.
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JADWIGA
Tenho à minha frente este homem evadido de um quadro de Bosch, há dentro de mim um demónio adormecido, talvez com pesadelos, um demónio lasso e molesto que não me deixa agir, como se o seu peso morto me esgotasse as forças; só sei sorrir e levar os dedos à chávena de chá, e conduzir a chávena à boca, e voltar a pôr a chávena sobre o pires, e sorrir, e sorrir, é sempre agradável ouvi-lo, Dr. Klemm...
dizer isto numa voz requebrada, como se precisasse de dançar com a voz para tentar este homem e conseguir saber o que quero, uma Salomé na voz e no sorriso, percebendo que não lhe posso cortar a cabeça e pô-la no pires branco com dois riscos dourados sobre o qual volto agora a colocar a chávena,
mas os passaportes estão perfeitamente em regra, Dr. Klemm...
e sentir, e não poder evadir-me daqui desta cadeira, onde estou amarrada, e sentir que a boca deste homem se transforma num focinho de javali e começa a furar-me o peito, em busca do meu coração para o devorar, lembrando-me de Baudelaire para lhe ensinar aquele verso de que mal me recordo, «não procures mais o meu coração, as feras devoraram-no e Baudelaire enganou-se quando disse:
uma fera mais terrível do que todas-o tédio...
mais terrível é esta angústia de não saber onde estarei amanhã; posso dormir na cadeia se o funcionário do consulado, ou este homem a quem sorrio mais uma vez, nos denunciar, ou se ambos me denunciarem ao mesmo tempo, ou ainda dormir com Leo enquanto ele não resolver estrangular-me,
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porque Leo sabe que o não amo e já me ameaçou de estrangulamento; como foi que ele disse? qualquer dia ofereço-te um colar... um colar?
sim, um colar dos meus dedos, hei-de apertá-los tanto, aí, mesmo aí...
e tocou-me no pescoço, e eu recuei, estávamos deitados ao lado um do outro, e tão longe um do outro, como se ele tivesse ficado em Viena na nossa casa e eu tivesse fugido para aqui, e eu comecei a chorar em silêncio, e as minhas lágrimas devem ter brilhado no silêncio e nas trevas do quarto, porque Leo veio com a ponta dos dedos tocar-me nos olhos e então eu dei um grito;
agora reproduzo sempre aquele grito de uma mulher a quem separaram do filho na estação de caminho-de-ferro de Viena, eram ambos judeus como nós, e nós dizemos que somos irmãos, mas eu pude fugir com Leo, e meu pai ainda fugiu antes, para a Suíça, que é o país das paisagens calmas e do dinheiro calmo, para onde todos os banqueiros transferem o seu dinheiro, sejam eles semitas ou arianos, e aquela mulher ficou em Viena e o filho foi levado para um campo de concentração, onde já estão muitos outros judeus, nossos irmãos; que estranha família esta que Deus separa pelo dinheiro!...
Eu dei um grito e Leo apertou-me nos seus braços e beijou-me, e eu deixei beijar-me, porque só consigo esquecer tudo, ou lembrar-me mais de tudo, quando tenho medo dele e ele fica quieto, mais uma chávena de chá? não, Dr. Klemm, muito obrigada! quieto como o Dr. Klemm e como eu, aparentemente quietos nesta tarde de angústia e de sorrisos.
A fera mais terrível não é o tédio, como disse Baudelaire, nem a angústia de não saber onde estarei amanhã,
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mas a angústia da certeza de que viverei com Leo enquanto tivermos estes dois passaportes falsos, para os quais não há divórcios porque não há leis, e isso quer dizer que me resigno, que não sou capaz, eu própria, de denunciar a falsidade dos nossos documentos e esperar o resto, talvez a nossa entrega às autoridades nazis, pois agora somos alemães, uma coisa que muitos desejaram, a grande pátria alemã, talvez por causa da música, temos a mania da música e o gosto das aparências e da dança, parece-lhe, Dr. Klemm, que a esta hora se dançará no Apollon?
mas com certeza...
dançámos enquanto Napoleão ocupava a Áustria... sim, Napoleão não foi melhor do que Hitler... as salas daqui são insignificantes ao pé de qualquer das vinte e oito salas do Apollon, sem falar do salão grande, claro,
gosta de dançar?
todos os vienenses gostam de dançar... e de comer bem... e de beber café...
já reparou que os Portugueses também gostam de café? um terço da população de Viena dançava todas as noites, somos bem o povo que se deslumbrou com a arquitectura barroca;
seremos sempre deste barroquismo faustoso e presumido que se instalou também nas nossas almas?
Vieram notícias de que o Anschiuss deu 60000 prisões nos primeiros dias, só entre os políticos, e não quisemos acreditar, até gostámos que os homens de certas ideias fossem para a cadeia, mas depois chegou também a vez dos judeus;
aquele grito ficará sempre dentro de mim, hei-de gritar enquanto viver daquela maneira com uma voz que não
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me pertence, e talvez seja minha muito mais do que aquela com que falo ao Dr. Klemm, voz e sorriso de Salomé, voz e sorriso que hei-de ter para o funcionário melancólico a quem terei de falar se Leo insistir comigo; já não sei se ele disse aquilo para tentar saber o que se passou entre mim e o homem do consulado, se realmente quer que eu vá, sim, deve querer que eu apareça para ficarmos presos um ao outro, para que eu não lhe possa fugir enquanto os passaportes falsos nos amarrarem, com aquele vestido de Baudelaire,
«não bordado de pérolas, mas de todas as minhas lágrimas...»
O Dr. Klemm pergunta o que quero dizer com aquele verso, e eu sorrio-lhe, talvez tenha feito um sorriso diferente, pois vejo a mão dele vir por cima da mesa como uma serpente, tentanto prender a minha que lhe foge assustada e se acolhe no meu regaço, trémula e espantada.
- Não me quer dizer quem é Wanda?
- Não.
Cumprimento-o num aceno de cabeça e levanto-me. Quando me volto, Leo está a olhar para mim; mas faz sinal para que lhe não fale.
O seu olhar traspassa-me como a espada fria e sangrenta de um carrasco.
«Porque será que ele me proíbe de vir a esta pastelaria?»
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CAPÍTULO SÉTIMO
Não te avisei de que não te quero ver ali?-disse Leo, mal se aproximou do sofá onde Jadwiga se sentara na sala de entrada do hotel.
- Viste certamente com quem estava - respondeu- -lhe friamente sem levantar os olhos do jornal francês que comprara numa tabacaria.
- Parece-me uma desculpa fácil. Só então Jadwiga o olhou.
- Poderás dizer-me quando atingirei a maioridade?
Não será tão cedo - acentuou o marido com dureza.
-Talvez desconheças um pormenor importante...
- Qual? - interrogou Leo ao deixar-se cair num cadeirão, perto da mulher.
- Que já não receio a cadeia. Agora era Leo que evitava fitá-la.
- Talvez considere a descoberta dos nossos documentos falsos como uma maneira...
-De te libertares de mim?
- Não é isso. De me libertar desse fantasma que trazes dentro de ti. -Não, isto não pode continuar assim, Leo. Escrevi ontem a meu pai...
- Que lhe dizias?
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- Isto mesmo: que não é possível viver contigo e com lago.
-lago?!...
- Sim, o fantasma que te insinua os mais absurdos ciúmes... Não tens razão agora para teres ciúmes de mim.
Leo não respondeu. Olhava os dedos que movia um por um, como se estivesse a certificar-se de que todos articulavam bem. O criado deixou sobre a mesa baixa o copo com whisky.
- Nunca perdes a mania da intelectualidade - disse, depois de beber o primeiro gole.
- Falas comigo?
- Estamos sós.
- Mais acompanhados do que supões, Leo. Ele pareceu assustar-se, olhando à volta e para lá do vidro amplo da janela que dava para a avenida.
- Foste seguida?
-Não falo do que estás a pensar... Já não cuido de saber se sou seguida ou não; é uma coisa que não me interessa. Tenho de lhe mentir, não concebo que possa dormir numa cadeia alguma vez, serei capaz de tudo para evitar esse confronto comigo dentro de uma prisão. Estou habituada a todas as ideias e nenhuma me faz medo.
-Posso saber, então, de que falavas?
- Dizia-te que andamos sempre com muita gente dentro de nós... Era só isso. Um tique espasmódico da minha face intelectual.
-Tens mais faces?
- Tantas como a verdade ou o olho de uma mosca...
- São bastantes. A que vem aqui o olho de uma mosca? Qual foi a que usaste com o Dr. Klemm? Posso saber?...
- A máscara da hipocrisia, que é uma das faces dos tímidos.
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- Não sabia que eras tímida. Há ainda uns segundos afirmaste não ter medo...
- Disse que não tenho medo de ideias.
- A cadeia não é uma ideia, é uma probabilidade.
-Ou uma certeza... Tanto me faz.
- Mas tens medo de lago...
-Não. Também não. Lamento o pobre Otelo...
- Já te disse que não preciso da tua piedade.
- Tens a certeza do que dizes? - perguntou Jadwiga com violência.
Leo espantou-se com a reacção da mulher. Tentou compreendê-la pela expressão, mas Jadwiga parecia serena e ausente. Ele bebeu o resto do whisky e depois fez sinal ao criado para lhe trazer a garrafa. Rodava o copo nos dedos, como se buscasse encontrar nas paredes de cristal qualquer signa.
- Queres também beber?
-Não, obrigada. Não preciso... Agora não preciso.
- Estás a empregar muito a palavra «agora». Parece que te sentes outra.. Ou será impressão minha?
-Não sei. Talvez...
- Disseste há pouco que não tinha razão agora para sentir ciúmes. E antes?!...
-- Oh, Leo!... Para que vens com isso?
- Foste tu que falaste em ciúmes...
- Porque tu os exibes por toda a parte. Ele sorriu-se, mas o sorriso pareceu amargar-lhe e fez um esgar.
- Quando vais tratar dos passaportes?
--Não sabia que o desejavas...
- Falei-te nisso.
- Nunca sei exactamente se as tuas palavras exprimem convicções ou armadilhas.
- Queres dizer que sou hipócrita.
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- Talvez não seja bem isso, Leo. Porque hás-de sempre acrescentar alguma coisa ao que eu te digo?
- Começo a ficar intelectual como tu... Uma aranha!...
- Não sabes ser irónico.
- Pois não. Nem sei ser teu marido... Que não é mais fácil, diga-se.
Uma mulher ainda jovem atravessou a sala de entrada, dirigindo-se ao empregado da recepção, e deixou o ar perfumado. Leo seguiu-a com o olhar já turvado pela bebida; ficou assim por algum tempo, ausente da mulher, talvez à espera que ela o repreendesse. Jadwiga voltara à leitura do jornal. Estava-se em Março de 1939 e a Alemanha preparava-se para nesse mês invadir a Checoslováquia.
-Como é aquela frase de Goethe?...-perguntou Leo. - Não ouves?
- Não ouvi.
- Não há uma frase de Goethe que fala da juventude.
Jadwiga olhou a mulher que se encostara ao balcão e disse:
- A juventude é uma bebedeira sem vinho. É esta que te interessa?
- É exactamente.
-Então porque continuas a beber? Leo teve uma gargalhada que obrigou a rapariga a, voltar-se.
- Queres dizer...
-Que não te deves deixar prender pelo tédio.
- E o álcool traz o tédio. É o que pretendes lembrar-me?
- O álcool não remedeia, Leo. Verás que não remedeia. Antes vinho daquele...
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E apontou a rapariga num movimento de cabeça.
- O álcool apaga as coisas - disse o homem.
- E as pessoas também. É um suicídio provisório de princípio e depois um suicídio horrível. Vi um dia uma mulher que se metera debaixo dum comboio. É uma morte repelente como a dos que se entregam ao álcool.
-Preferes uma morte estética?
- Não estou a falar da morte que prefiro. Não tenciono escolher a morte...
- Queres dizer que nunca irás ao seu encontro?
-Nunca!
- Então posso ficar descansado. Jadwiga lembrou-se da ameaça de estrangulamento. Ficou taciturna.
- Não me disseste ainda quando tencionas ir tratar dos nossos documentos - prosseguiu o marido. - Julgo que não deves esperar pelo fim da autorização de permanência em Lisboa. Sabes que estão a mandar gente para fora de Lisboa?
Jadwiga não ouviu as últimas palavras de Leo.
-Só lá irei com uma condição...
- A de que não beberei mais?
- Não.
- Como falaste do horror da morte pelo álcool, pensei que fosse.
-Não tenciono fazer-me fotografar contigo nessa altura.
-Seria de mau gosto... Queres ficar uma viúva serena.
-A serenidade fica sempre bem. E tu não a deves perder; foi sempre a tua grande arma.
-Quando não se trata de ti; já o sabes. Deixaram cair um silêncio. Jadwiga fez sinal ao criado para levar a garrafa de whisky e o marido fingiu não se
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aperceber. Tomou aquilo como um sintoma do interesse da mulher por ele.
-Ainda não disseste as tuas condições...
- Falei numa condição, numa única condição. Não me faças exigente.
- E qual é?
- A de que se conseguir a legalização não me perseguirás com as tuas suspeitas.
- Queres que te autorize a que sejas seu amante?
- É realmente impossível falar contigo, Leo. Porque hás-de persistir nessa obsessão doentia...
- Não me fales de Freud.
- Não te falarei de mais nada, Leo. Vai tu tratar dos passaportes. Faz o que quiseres, entrega-os na polícia para que nos prendam...
- Não receias realmente a prisão?
-Nada receio. Só te peço...
- Sou eu quem te pede desculpa, Jadwiga. Agarrou-lhe na mão e apertou-lha com frenesi. Tinha os olhos marejados.
-Nunca mais... Sabes como estou transtornado fora do nosso meio. Compreende e perdoa-me. Nunca mais...
- Não prometas, Leo. Eu sei que vais faltar - Quanto a esse homem, nada te direi.
E porquê....
- Queres que te responda?
- Sabes que tenho a mania do porquê. Ele aproximou o cadeirão do sofá e ficou a afagar as mãos da mulher, suave e longamente.
- Desse... Tenho a certeza de que nunca o poderás amar. Não gostas dos homens insignificantes.
- Como sabes que ele é um desses homens?
- Todos os homens daqui o são. Leo acendeu uma cigarrilha.
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- Sabes que o Dr. Klemm, depois de saíres, deu comigo e pediu-me dinheiro para a Resistência?
- Deste-lhe?
- Que querias que fizesse depois de saber dos nossos passaportes? Receio aquele homem...
-Mas acreditaste, ao menos, na sua Resistência?
-Não. De resto, não creio em qualquer forma de resistência.
-Talvez a Inglaterra...
- Depois de Munique acabou a Europa. Ficará só o nazismo por toda a parte... Jadwiga meneou a cabeça.
-Eu tenho esperança.
- Dou-te por ela uma moeda de prata. Queres vendê-la?
- Não, não, Leo. Deixa-me ficar, ao menos, com esta esperança, mesmo que a consideres um sintoma de demência.
Leo abriu a mão direita num gesto de resignação.
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CAPÍTULO OITAVO
quando o paquete comunicou a Pedro que a loura estava na sala, ele não se perturbou e disse:
- Abre as janelas todas.
-As três?
- Todas.
Percebeu o espanto nos olhos do rapaz e gostou de se explicar em voz alta:
-Eu tomo a responsabilidade. Se o Sr. Oliveira te disser alguma coisa, responde-lhe que recebeste ordens minhas.
O paquete ficara indeciso à sua frente, como se o não ouvisse bem, e depois abalou.
O Fernandes fez-lhe um gesto de parabéns com as duas mãos apertadas. A Palmira perguntou-lhe se demoraria muito, explicando logo que recebera ordem de fechar o correio até ao meio-dia.
- Porque não me disse?
-Desculpa, ó Dias! Foi culpa minha... -interveio o Fernandes.
-O Sr. Oliveira não vem de tarde, não?
- Não disse.
- É só um minuto - esclareceu Pedro, depois de passar os olhos por um maço de papéis que aguardava despacho no cesto de verga.
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Queria fazer tempo para o rapaz cumprir a sua ordem e, talvez ainda, para que a loura logo percebesse a subordinação a que se sujeitava, voltando ali. Depois do que lhe disse, haverá alguma coisa mais a tratar comigo? Tentou compreendê-la, mas a verdade é que, a não ser Wanda, nenhum outro refugiado lhe trouxera tantos dissabores: primeiro o porco do Klemm, depois a prosápia do marido em lhe oferecer dinheiro, julgando os outros por ele próprio. Mas também levara a resposta adequada, embora quisesse justificá-lo depois.
Agora a mulher voltava; devia trazer um propósito. Qual?!... Que vinha ela pedir ou propor?!...
Sentia-se, pouco a pouco, mais seguro. Seria até absurdo que se perturbasse com a visita de alguém, pois já não era possível dar mais vistos a judeus. A discriminação atingia o mundo inteiro. Muitos estavam contra Hitler, mas mesmo alguns desses temiam-lhe as represálias, certamente. Até aquele país mesquinho e atrasado se dava ao luxo, ou à cobardia?, de impedir a entrada de semitas nas suas fronteiras. O caso da loura era mais simples e mais complexo. Uma judia pode ser loura? E se os passaportes fossem verdadeiros?
Mandara abrir as janelas todas, não para contrariar a ordem do patrão, mas para se assegurar de que nunca mais veria outra mulher sob a influência daquela luz difusa e branda que o pusera deslumbrado perante Wanda, como se ela trouxesse consigo um iluminador especializado em criar o ambiente de claridade e de sombra que levasse aos arrebatamentos. Parecia-lhe agora, precisava de pensar assim, que havia naquela tarde um ambiente mágico para o perturbar. E só isso, nada mais do que isso.
O paquete espreitou para dentro da secretaria e fingiu não dar por ele. Depois chamou a dactilógrafa. A Palmira
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veio logo, a beber-lhe os olhos. Esta gaja nunca mais tem juízo.
- Faça aquela conta-corrente com a fábrica do Seixal e depois veremos...
-É só?!...
- É tudo por enquanto.
O Fernandes voltou a repetir o gesto, tinha pouca imaginação, e ele saiu para o corredor. Andou ali a hesitar; depois acabou por se resolver e dirigiu-se para a sala.
Jadwiga trazia um vestido de seda com ramagens em fundo preto e um chapéu cor de tijolo, igual ao cinto. Pedro entrou e notou que o vestido era curto, talvez demasiado curto, embora lhe ficasse bem. Ela sorria-lhe, de mão estendida, «bom dia, naturalmente vim muito cedo», toda ela irradiava confiança, talvez, quem sabe?, venha contar como resolveu o seu caso, ainda bem, pensou Pedro, apertando aquela mão um nadinha frouxa; Ela chegou-se um pouco para um lado, como a dizer-lhe «sente-se aqui», mas Pedro fingiu não perceber o movimento e trouxe uma cadeira para junto da mesa. Jadwiga soube mudar gradualmente a exuberância numa alegria recatada. Não, não será como pensei, nem fácil, nem sequer agradável vir falar com este homem.
- Se esta hora não lhe convém, peço-lhe que seja franco. Voltarei quando entender. Não tenho compromissos. Mas porquê essa expressão de desagrado? Desculpe uma pergunta: posso saber o seu nome?
- Com certeza. Pedro Osório Dias... Um seu criado, porquê? Diz-lhe alguma coisa este nome?
- Não, absolutamente nada. Mas achei que... Jadwiga estava embaraçada e sorria. Corara um pouco como da primeira vez. Pedro continuava a cortar os pequenos liames de simpatia humana que sentia por ela.
- Como prefere que o trate?
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- Não tenho realmente preferência, minha senhora.
-Diáz... É assim que se pronuncia?
- Não é exactamente, mas não tem importância. Jadwiga ficou vexada. Pedro viu que os olhos verdes se lhe turvavam e prosseguiu:
- Já resolveu o seu caso? O tom de voz surpreendeu-a.
-- Não, ainda não. Venho por isso mesmo. Pedir-lhe um conselho. Posso pedir-lhe um conselho?
- Com certeza.
Ele puxou por um cigarro. Começou a batê-lo no polegar, porque estou a fazer isto, se nunca o fiz?, e depois pôs-se a rolá-lo entre os dedos.
- Vou ser sincera consigo, senhor... Não, não lhe repito o nome. Julgo que prefere assim, não é verdade? Pedro distraíra-se e não compreendera a pergunta.
- Desculpe, não entendi.
Jadwiga repreendeu-o com o olhar, baixando a saia que lhe deixava os joelhos a descoberto.
- Prefere que seja sincera, não é assim?
- Todos preferimos.
-Nem sempre...
- Eu- prefiro sempre.
- Sempre?!...
- Sempre!
- É um homem raro.
Pedro respondeu num movimento de ombros.
- E também é sincero para os outros? Ela fitava-o bem nos olhos, mas não havia naquele olhar qualquer sinal de garridice. Era antes uma interrogação, uma tentativa para descobrir nos de Pedro o autêntico sentido das suas palavras.
-Não... Umas vezes por cobardia, outras por piedade. Que dizes agora?!...
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Sorriram ambos.
- Gostaria que comigo não usasse de piedade, já que de cobardia não precisa neste caso. Garante-me que será sincero?!...
- E leal... Disse esta palavra a mais. Leal, é evidente...
- Não abra excepções para a sua lealdade. Posso confiar?...
- Sim, pode.
Uma chapada de sol entrou pela última janela, pousando um pouco acima da cabeça de Jadwiga. Ela cerrou os olhos levemente, mas depois abriu-os; e ficaram maravilhosos, como se a luz mais viva do Sol, ali tão perto, os incendiasse de ternura.
Nesse momento, a dactilógrafa bateu à porta da sala e entrou, soltando um ai de espanto, de um espanto absurdo. Pedro levantou-se; foi ao encontro de Palmira e deu-lhe ordem para considerar o correio encerrado da sua parte.
- Se o Sr. Oliveira perguntar por mim, diga-lhe que estou a atender uma senhora refugiada...
-Posso dizer-lhe que é bonita?-insinuou em voz baixa.
Pedro tomou um ar desdenhoso sem lhe responder. A dactilógrafa pareceu ficar nua no meio da sala; levou as duas mãos aos seios, desviou o olhar para Jadwiga e depois abalou numa corrida. Pedro julgou que ela iria chorar. Chorava com frequência.
- Em Portugal há belas mulheres - disse Jadwiga quando ele voltou para o lugar.
-A que propósito...
- Não me diga que nunca reparou nesta rapariga?
- Acha-a bela?
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- É uma morena com uns olhos fabulosos. E bem feita. Em Viena faria um sucesso.
-É austríaca...
- Sou.
Ela prolongou um silêncio.
- Mas agora 'tenho uma curiosidade. Desculpe.
- Já é um lugar-comum afirmar-se que as mulheres são curiosas.
- E ainda bem que o são. Não lhe parece?
- Nem sempre tenho essa opinião. Mas diga...
- Sente-se proibido de achar bela uma rapariga que trabalha consigo?
Pedro embaraçou-se.
-Não, mas a verdade é que não devo...
- Tem uma grande tabela dos seus deveres? Uma gargalhada curta sublinhou a pergunta.
- Faço por cumpri-los.
- E entre eles está esse?
- Eu adopto-o rigorosamente.
- E que pensa desse rigor?
O interrogatório divertia-o e começava a esquecer-se do que pensara ao entrar na sala.
- Prometeu ser sincero - sublinhou Jadwiga com malícia.
- Penso que neste caso o faço sem qualquer sacrifício. É um tipo de mulher que não me interessa.
- Porque sabe que ela gosta de si?
-Mas ela...
-O senhor é um homem inteligente! Não me queira chamar estúpida, não? Parece que é já outro homem.
- Sinceramente. Já percebi, mas não quero...
-' Nem por piedade?
- No amor não pode entrar a piedade... Entre nós não entra.
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- Sempre?!...
- Não o posso afirmar nem negar. Falo só por mim. Pedro estendeu-lhe o maço de cigarros. Jadwiga puxou um.
-É raro fumar. Mas hoje apetece-me... Ficou à espera que ele lhe perguntasse o porquê, mas Pedro limitou-se a acender-lhe o cigarro.
- Devo estar a tomar-lhe muito tempo - disse Jadwiga, olhando o relógio. - Vamos, então, ao que me trouxe. Desculpe só mais uma pergunta. Esteve alguma vez em França?
- Nunca.
-Fala como um parisiense...
- Um parisiense analfabeto e de poucas palavras - sublinhou Pedro.
Ela achou-lhe graça, negou com a cabeça e depois disse:
- Fala realmente bem.
De seguida abriu a mala de mão, tirando os dois passaportes que lhe entregou.
- Foram comprados em Nice a um funcionário do consulado. Sou austríaca. Meu marido também. Mas ele ó da Stiria e eu de Viena, o que na Áustria quer dizer que nos consideramos quase de países diferentes. Aqui, porém, não interessa a distinção. Tivemos de fugir por causa dos nazis. Eles estão a prender milhares de pessoas.
- Por ideais políticos?
- Primeiro por ideias e agora começaram na caçada aos judeus. Eu e o meu marido somos judeus.
-Judeus com dinheiro...
- Sim. Mas distingue-os?
- Lembrei-me de um livro com o título Judeus sem dinheiro, de Michael Gold. Deixou-me uma funda impressão.
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- Não conheço.
- É americano.
- Não gosto da literatura americana. Prefiro a francesa. Depois de Napoleão, ficámos com gostos franceses.
- Por vaidade de ele ter abandonado Josefina e casado com Maria Luísa?
- Talvez... Mas casaram por procuração, o que não ajuda nada ao temperamento romântico da mulher austríaca. Estou a falar como um gramofone, perdoe. Creio que já lhe disse tudo o que era importante. Fugimos, meu pai ficou na Suíça a tratar dos seus negócios bancários, e eu preciso de ficar em Lisboa todo o tempo que me for possível. Não por causa de negócios de meu marido, mas porque me faz falta este ar da Europa. Ainda estou na Europa... Que impressão lhe fizeram as minhas palavras? No extremo da Europa.
- Muitos entendem que a Europa acaba nos Pirenéus e que nós somos um país africano.
-Já ouvi dizer o mesmo. Mas não têm razão... O clima é maravilhoso.
- É quase tudo o que temos. E não é pouco...
-E então?!
Pedro parecia esquecido dos passaportes e da confissão de Jadwiga.
-Já da última vez lhe disse...
- Esqueça o que disse então. Ele encarou-a com estranheza, não por aquilo que ela dissera, mas pelo que lhe revelava.
- É funcionário de carreira?
-Não.
- Como distingue um passaporte destes, bem autêntico, comprado a um cônsul, de outro também autêntico, passado a um verdadeiro cidadão do país que representa? Só pêlos nomes?
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-Os nomes dizem alguma coisa...
- Mas há austríacos como há portugueses por todo o mundo. E alguns naturalizam-se. E conservam os apelidos. Que dúvida lhe parece justa neste caso? Eu podia... ou o meu marido, nesse caso,, dirigir-se ao senhor... (e leu um papel que tirou da carteira) ao Sr. João de Oliveira, o cônsul, não é verdade?
- Porque não o faz? - disse Pedro com entusiasmo.
- Prefiro que seja eu a tratar do caso... e consigo.
-Tenciona oferecer-me dinheiro?
- Não. Percebe-se que o senhor não é dominado pelo dinheiro. Encheu-se-te o orgulho, vejo-o bem na tua cara. Creio que o meu marido não foi correcto.
-O seu marido procedeu como é de tradição entre a vossa gente. Espantas-te? O dinheiro abre todas as portas, derruba todos os obstáculos e compra todas as pessoas.
- Nem todas...
- Todas.
Jadwiga hesitou. Que devo oferecer-lhe? E quanto?!...
- É por isso que deve procurar o Sr. João de Oliveira e negociar com ele... É o que queria dizer, não é assim? E negociar com ele o visto. De resto, é ele quem assina os passaportes.
- Receio tê-lo magoado - ciciou Jadwiga pousando a sua mão na de Pedro.
-Não... Não houve qualquer razão... Vou dizer-lhe que sim, devia tê-lo dito logo... Eles invadiram ontem a Checoslováquia. Sou sensível, mas não tanto. Prefere tratar do caso comigo?
- Prefiro.
-E porquê?!... Seja sincera.
-Para demonstrar a meu marido, e também a meu pai, que as coisas mais importantes se podem conseguir sem oferecer compensações.
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-Mas nisto eu procuro uma compensação... Como se o contacto de Pedro a queimasse, Jadwiga retirou a mão que tinha sobre a dele, num impulso precipitado. O rosto avermelhou-se-lhe, tremeram-lhe os lábios e ficou com uma expressão indecisa nos olhos verdes. Então segurou a pega da mala com ambas as mãos, como se receasse que Pedro lhas fosse beijar. Quis sorrir. Uma convulsão de sentimentos debatia-se no seu espírito em desordem. E não sabia se a sugestão daquelas palavras lhe faziam medo ou lhe afagavam o corpo. Mas o olhar dele continuava sereno e triste. Pedro percebeu a perturbação de Jadwiga. Ergueu-se da cadeira, viu nela um movimento imperceptível de recuo e foi até à janela. A sua silhueta desenhava-se ao sol que inundava a sala. Lentamente, de cabeça baixa, Pedro regressou. E falava. A sua voz vergastava o silêncio.
-Volto a repetir que procuro uma compensação... Gostou de ouvir o equívoco da frase para entender melhor o que ela pudera sentir.
- Uma compensação... talvez mesquinha, que não é por si nem pelo seu marido... Como hei-de dizer o que quero? Estou confuso. Quando o Dr. Klemm a trouxe aqui e me confidenciou que era filha de um banqueiro, a senhora foi vítima dessas duas circunstâncias. Sou um homem, claro. Tenho os meus afectos e os meus ódios, Ódio será exagero. Até hoje ainda não soube verdadeiramente odiar, embora a vida me desse já muitas oportunidades para o sentir.
Jadwiga aquietara-se. Voltara-lhe ao rosto uma serenidade que lhe sublinhava a doçura
- Perante dois elementos que mereciam a minha hostilidade, cingi-me a cumprir uma lei. O problema estava resolvido. O seu marido veio e falou-me abertamente de dinheiro. Recusei-lho, como sabe. Nunca fiz na vida qualquer
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coisa por dinheiro, a não ser a venda do meu trabalho. Vendo trabalho e pagam-me. O seu marido foi objectivo e sensato. Eu podia, realmente, receber o dinheiro que ele me oferecia. Mas havia uma razão mais forte para eu me negar a recebê-lo.
Acendeu um cigarro com esforço. As mãos tremiam-lhe.
- Filha de um banqueiro ou filha de um pedinte, a senhora fugiu do seu país por causa do nazismo. Devo por isso, e só por isso, uma activa solidariedade a todos que sejam suas vítimas. Sangram ainda em mim acontecimentos muito recentes para que não fale disto tomado de emoção. Desculpe. Talvez não tenha sido muito claro. É difícil sermos precisos nos tempos que vivemos. Se fosse alemão ou checo, eles ter-me-iam assassinado.
-É judeu?...
- Julgo que não. Mas sou um homem. E eles assassinam os homens. A compensação que procuro, é esta: ajudar todos aqueles que os nazis perseguem. Sem tratar de saber quem são.
- Obrigada - ciciou Jadwiga. Pedro agarrou nos dois passaportes abandonados sobre a mesa e pôs-se a folheá-los.
-Só tenho um pedido a fazer-lhe...
- Farei tudo o que quiser...
-Não fale a ninguém nesta conversa. A ninguém... E muito menos ao Dr. Klemm.
Encararam-se. Jadwiga sentiu desejos de se levantar, indo afagar-lhe o rosto inquieto e triste.
-Nem a seu marido. Diga-lhe qualquer coisa...
- Sou imaginativa. Não se preocupe.
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JADWIGA
Quero estar contente, preciso de me sentir contente, isto significa que poderemos ficar alguns meses em Lisboa, neste trampolim de meditação, e de incerteza também, para que vem neste momento a dúvida? à espera de regressar ou de partir ainda mais uma vez... Mas agora não é preciso futurar, nada mais é preciso do que o presente, hora a hora, porque o dia-a-dia já é medida exagerada para o nosso tempo e para esta vida de metamorfose, como se deste casulo pudesse nascer uma túlipa ou uma serpente! Para isso seria bom não haver passado, embora seja fundamental esquecê-lo, cortá-lo, extraí-lo como um cancro, perder as raízes de tudo, da imaginação, da sensibilidade, da cultura, do dinheiro de meu pai e de Leo, e depois?!...
recomeçar nas cavernas, fazendo como certos pintores que esqueceram tudo.
O pior é que a vida dos homens não é o mesmo que uma tela, onde um só homem pode tentar novo caminho, mas até esse leva consigo tudo o que quis esquecer, porque para recomeçar, realmente, seria necessário que nem se conhecesse a palavra «esquecimento», palavra inútil uma vez que não houvesse memória, nem passado, nem dúvida.
Devo estar contente, mas Descartes ensinou-me que o uso inteiro da razão leva a tomar-se.a iniciativa de duvidar, uma vez na vida, das coisas, de todas as coisas em que encontrarmos a mínima suspeita de incerteza, e a minha vida, e a nossa vida, só conhece agora esse sinal da dúvida, como se a razão estivesse adormecida e só pudesse engendrar os monstros de que falou Goya,
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quando só preciso esquecer todas as citações, todas as frases doutras experiências, para não colocar as minhas pegadas sobre as dos outros, porque muitas pegadas parecem agora frustradas e inúteis, ou se tornaram em abismos, uma vez que o homem regressou às suas raízes de besta.
Está ali um tapete de erva onde me apetece deitar, se fosse capaz de adormecer, sonhando que da metamorfose deste apocalipse só nasceriam coisas belas, túlipas e pássaros, açucenas e jasmins, mas isto é uma pausa, um trampolim, e lembro-me de Urs Graf, e dos outros pintores germânicos que pintaram o fim da Idade Média com todos os horrores dos universos subterrâneos, e que de repente estalam e se abrem à luz do dia e dos nossos olhos, como se a brutalidade fosse a expressão mais humana do fim de alguma coisa que todos nós fizemos e temos de enjeitar para conseguirmos reencontrar o gosto da descoberta de uma outra dimensão do homem;
sou um pouco «o pássaro de fogo» de Stravinsky, tonta de cor, tonta de plenitude assustada, parecendo que posso voar, que conseguirei voar neste céu incrivelmente azul, onde uma só nuvem corre ao sabor do vento, e presa, sempre presa, à lama negra deste pântano que me prende à realidade do mundo e à minha própria realidade, confundindo tudo, desvirtuando tudo, as miragens fabulosas de certos anseios ainda virgens e os vermes ocultos da minha verdadeira condição, mergulhando, para me redimir ou para me suicidar?! neste fogo de artifício que é a ilusão de liberdade de um pássaro encarcerado numa prisão de que ainda não pressentiu as grades, e se julga livre, como um pássaro de fogo queimado no próprio fogo, quando agora é indispensável ter a lucidez de não querer ser lúcida, só vivendo para esta
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pausa de um poleiro de ilusões que é a esperança de ficar aqui.
Mas há o grito daquela mãe que vi na estação de Viena e ficou de boca aberta a gritar nas veias a separação do filho que lhe arrancaram dos braços, e eu sem poder intervir, o Leo agarrou-me pelo braço e disse-me «está quieta, está quieta», e eu deixei que eles os levassem sem um soluço, ao menos sem um soluço,
porque nós tínhamos comprado já o direito à fuga, talvez com o dinheiro daquela mãe e de seu filho, e talvez mesmo com o dinheiro daqueles que os separavam com brutalidade; só quando o comboio se pôs em marcha eu pude chorar com a cabeça tapada, como se estivesse a dormir, agora nem chorar se podia, e talvez as minhas lágrimas já fossem só o egoísmo de me perguntar se na fronteira nos deixariam livres, a nós dois, que não nos amamos, mas podemos comprar esta ilusão de liberdade, mesmo quando não a pagamos como agora.
Que pensará o Leo quando eu lhe disser que dentro de dois dias teremos os nossos documentos regularizados?!...
Virá com ciúmes,
um dia hei-de ver-me livre dele, já o pensei e um dia faço-o, forçando-o a amar-me depois de jantar, exactamente uma ou duas horas depois de jantar, pensará que consegui demover aquele homem prometendo-lhe o que ele próprio, Leo, me sugeriu, habituado à ideia de que sou mulher fácil para os outros, depois de saber que fui amante de Bóris, o pintor exilado, com quem vivi uma semana num quarto de hotel, enquanto Leo me procurava sem poder recorrer à polícia de Paris.
E sem amar Bóris... Só para descobrir onde estava o fundo do pântano...
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Só para sentir até que ponto ficávamos ligados com aqueles dois passaportes. Até onde chegava o seu egoísmo e o meu...
O dele para viver do dinheiro do meu pai, depois deste lhe ter ficado com' as fábricas, acrescentando-as à sua ânsia de querer sempre mais; o meu para entender o que. havia de autêntico em mim quando pensava preferir tudo à ideia de acompanhar Leo na nossa fuga. Bóris foi um pretexto. E oito dias encerrada num quarto, entre telas frustradas e tintas mortas, restos de comida e restos de amor, saindo só à noite com Bóris para me lembrar de Julien, o meu único amante verdadeiro.
Paris sem Julien era uma humilhação.
Foi depois de nos termos separado que aceitei a sugestão de meu pai para casar com Leo. Como não fora capaz de me suicidar, casei-me com Leo pelo estranho gosto de me sentir desprezível aos meus próprios olhos, sem saber ainda que o meu egoísmo era mais forte do que qualquer outra força,
o clamor secreto do meu plasma, isso mesmo, o clamor secreto das minhas verdadeiras raízes, a minha herança burguesa neste Carro de Feno, pintado por Bosch, donde cada qual tira o que pode.
Mas para que hei-de pensar em tudo isto?!...
Bóris deixara-se ficar estendido em cima da cama e eu disse-lhe ao ouvido: «vou comprar uma garrafa de champanhe para festejar a minha libertação», e disse aquilo sinceramente, pensava eu, e depois na rua, assim como quem quebra uma noz onde se encerrara antes de ver a luz, antes de saber o que era a luz, senti-me liberta daquela ilusão de Bóris e só quis procurar Leo,
não o homem, mas o que Leo simboliza, e pus-me a correr e a olhar para trás, como se as tintas mortas de Bóris
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viessem em minha perseguição, passou um táxi e atirei-me lá para dentro, como vou fazer agora, táxi!, táxi!
mas hoje não mandarei seguir para o hotel onde Leo me espera, como fiz na Rue Racine, mesmo à esquina, de repente angustiada com a ideia terrível de que Leo tivesse abandonado Paris sem mim.
E comecei a dizer para o chauffeur: vite, pius vite, depressa, mais depressa, como estou agora a pedir a este que me vai levar até junto do rio, que se teria passado em mim para desejar ver um rio? talvez a impressão, a ilusória impressão de que a água nos pode lavar «do pecado e do opróbrio de toda a vida humana», creio que assim escreveu Robert Musil.
Ou será antes o gosto de estar perto do Danúbio, na minha cidade tão feminina?
Tão feminina que, seguindo a sua velha divisa, deve estar casada agora com os nazis, como o esteve sempre com qualquer povo mais forte ou com qualquer invasor.
Lá está a nuvem em que reparei ao sair do consulado, veio até aqui em minha perseguição, uma sombra branca e invertida, ou serei eu a sua sombra?
a vogar neste céu de um azul absurdo, tão azul como o rio que queria ver agora sem navios e sem velas, sem estes volumes de montes e casarios, e sem gente, e sem guindastes, e sem fumos de chaminés, porque isto não é a realidade, esta não pode ser a realidade profunda e autêntica de todos nós e do mundo que fazemos viver nos rios subterrâneos das nossas paixões, turvas e densas de recalcamentos e de frustrações ambíguas, como se nas nossas almas se fermentassem ciclones e terramotos que deixam tudo em escombros, em escombros, em escombros,
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e que a angústia pisa e desfaz, pulverizando na areia fina de um deserto por onde caminhamos sem deixar pegadas, porque tudo o que fazemos agora é vazio e inútil.
Vazio. E inútil.
E frustrado.
E absurdo.
Neste rio só deveria haver uma jangada, a Jangada da «Medusa)), que Géricault pintou, no dia em que fui ao Louvre com Julien ele ofereceu-me duas rosas,
a Medusa cujos cabelos se fizeram em serpentes, também as duas rosas de Julien se transformaram em serpentes, mas na jangada só vão cegos, estamos cegos todos, somos todos como os cegos de Brueghel, caminhando agora para o Naufrágio que também ele pintou e está no Museu de Viena, simbolicamente em Viena naufragada.
Não será por isso que eu precisei de ver um rio?!...
Mas que importância tem esta imagem ilusória, que não é a realidade autêntica, se trago Viena comigo? Viena é Freud, nesta ondulação do inconsciente, nesta obsessiva inquietação dos escritores do império austro-húngaro com Kafka e Rilke, a que se juntaram Joyce e Svevo, e quantos mais?, todos ultrapassando Proust, que precisou de reinventar uma sociedade para nela caber o seu mundo de sonhos, enquanto nós vivemos agora plenamente essa sociedade em que tudo se degrada.
O Danúbio podia passar a milhares de léguas de Viena, mas Freud só podia ter nascido em Viena, cabeça de um império destruído. Não previu Musil, que também é vienense, tudo o que se está a passar?!...
Será que um complexo infantil se apoderou de nós, levando-nos a uma escolha afrontosa, que tentamos agora enjeitar, mas que se revoltou contra nós próprios e nos devasta sem um assomo de piedade?
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Estou aqui na margem deste rio, e Leo espera-me no bar, agora todos os dias vai ao bar, porque ainda tivemos dinheiro para adquirir os dois passaportes falsos, embora desta vez não seja preciso dinheiro, que pretenderá aquele homem de nós ou só de mim?!... mas a verdade é que só lá pudemos ir com a confiança do livro de cheques, o que é o mesmo, no fundo, pois de outra maneira teríamos ficado em Viena, sujeitos a todas as humilhações,
que acabaram, afinal, por vir com os dois, neste compromisso de vivermos juntos quando já tínhamos rompido um com o outro, pensava eu que para sempre, esquecida deste egoísmo feroz de sobreviver...
E para quê?!...
Bóris foi ainda o meu último assomo de dignidade. Saberei agora, porventura, o que é a dignidade?!
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CAPÍTULO NONO
Deixou-se ficar por ali até o fim da tarde, à espera que a luz se magoasse nos mastros dos navios e nos braços de ferro dos guindastes. Acabou a maré por descer, voltou a água a subir, e por ali andaram as gaivotas, mergulhando e ascendendo, com gotas de sol nas asas, em alvoradas e em disputas, afugentadas por quilhas de barcos à vela ou por hélices das naves de transporte, cheias de gente ensimesmada, que só à saída dava mostras de pressa repentina, logo depois esquecida quando se afastava do cais.
Sentou-se num banco de pedra com um homem a fitá-la do outro banco, ainda o ouviu falar e dirigir-se-lhe, mas insistiu em ficar, não sei porquê, apetece-me esperar pelo fim do dia, entregue àquele desfibrar de pensamentos e de recordações, próprios de quem se obriga a esperar, sem hora marcada, um certo encontro em que o tempo não pode contar, porque o tempo perdeu o sentido de noção exacta, já não é medida para certos homens apressados pelo desespero. E que sabem que nunca chegam. Que se afastam sempre do que querem atingir; quanto mais correm mais se afastam, como se tomassem uma droga para correrem sem destino vivo. Menos concretos do que os cavalos em que se aposta.
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O rio tem um destino vivo. As gaivotas também. E os homens?!...
De vez em quando cercam-na, perseguem-na. Ela finge que não ouve, não ouve realmente o que lhe dizem às vezes, e segue pela muralha além, segue e depois regressa, ficando por momentos a olhar o cavaleiro negro, como os Ingleses chamam àquela estátua. Foi o que leu no roteiro que comprou. Para que serve um roteiro num mundo sem caminhos desimpedidos?
Ainda sentiu o impulso de entrar num dos barcos que fazia a travessia do rio, como se quisesse rasgar também as águas serenas e azuis, absurdas talvez, absurdas realmente, perante a realidade autêntica da sua vida de agora, que era um rio negro e agitado em busca de mar onde despejasse a sua carreira perseguida e alucinada. Podia dizer que o dia lhe correra bem, e até isso era sofisma. Viver e morrer todos os dias em cada dia, todas as manhãs a interrogar-se, que mais virá agora?, isto é uma pausa, uma pequena pausa, buscando nos jornais vazios as notícias permitidas à imaginação, tornada agora em faculdade maldita. Tudo se corrompera. As noites traziam terrores, longas insónias, .lembranças pervertidas de certos ruídos. E Leo a seu lado, sempre a seu lado, como a sombra perseguidora que não larga o vulto.
Os barcos partiam e regressavam, desfolhando flores de água, efémeras flores de água, recordadas também naquele sulco mais claro que a nave deixava no rio. Passou um navio a caminho da barra. Pôs-se a segui-lo, se eles vierem por essa Europa fora, terei de embarcar num navio destes, hâ-de ser antes que a guerra rebente, e a seu lado dois garotos começaram a acenar com os lenços e gritaram contentes; ela sorriu-lhes, estendeu a mão para a cabeça de um deles, do mais pequeno, e pensou que nunca quisera filhos. Fora a maior disputa que tivera com
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o pai quando lhe disse: não, filhos não, nunca poderei ter filhos de Leo.
O velho que acompanhava os dois garotos quis conversar. Mas ela não o percebia. Ou melhor: percebia-o inteiramente sem entender uma só palavra. Em Viena também os meninos gostavam de chegar às margens do Danúbio, e os velhos também gostavam de os acompanhar...
Haveria gente por lá àquela hora?!...
Certamente.
Esse pensamento tornou-se-lhe doloroso. Sentiu-se traída e abandonada pela gente da sua cidade distante. O pai mandara-lhe dizer que o nível de vida subira, os camponeses tinham melhores preços para o que a terra dava, iam muitos turistas alemães a Viena, e até a Salis-burgo, aos festivais de música, e as partituras de Mozart não se queimavam por si, ao sentirem que a sua mensagem de confiança no homem fora esquecida e aviltada. Até Mozart parecia agora traí-la. Ou poderia ainda acreditar-se na redenção humana? Mesmo na Suíça, ou melhor na Suíça, que é a praça forte e o Eldorado de toda a alta finança, o pai acompanhava as oscilações dos mercados, as curvas manobradas dos valores nas bolsas, as perspectivas de recuperação do que alienara da sua fortuna, firme e sereno, sem largar a mão do leme dos seus interesses. Era um homem admirável quando agia nos negócios. Sabia perder, e agora perdia largamente, mas nunca o vira tomado de pânico. No craque americano de 1929, nunca mais se esquecera disso, vira-o receber em sua casa, sempre imperturbável, um grupo de industriais ligados ao banco. Entre eles estava o pai de Leo, o velho Samuel. Vinham todos inquietos e taciturnos, fumavam uns cigarros nos outros, mal se cumprimentavam, como se cada qual evitasse falar, pois só saberiam dizer do alarme que os desvairava naquela hora trágica.
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Ela pusera-se à espreita, por uma das portas que dava para a biblioteca.
O pai avançava para cada um deles, sorridente, e dizia:
«- Seja bem-vindo a esta mansão!
- Há ainda mansões neste mundo, Goldstein? - perguntou atónito um dos outros, o Tonnenbaum.
- O Goldstein vende agora esperanças vazias» - acrescentou o velho Samuel, como todos lhe chamavam, embora andasse à volta dos cinquenta.
Na voz bem timbrada e densa de orador que empregava sempre nas reuniões daquela gente, o pai dissera mais ou menos isto:
«-Tenho confiança no nosso sistema; não vejo que o mundo possa conseguir outro melhor. Esta crise existe mais nos homens que se alarmam do que nos negócios. Prevejo... prevejo que depois disto o mundo conhecerá uma era de abundância como nunca foi possível admitir-se.
- Você fala assim, Goldstein - disse o velho Samuel - porque não depende só da indústria. O seu banco está mais ligado à lavoura e aos caminhos-de-ferro... Às coisas estáveis... Se de repente, como no meu caso, a sua fortuna valesse só vinte por cento dos investimentos feitos na indústria do turismo, eu gostaria de saber se você ainda chamaria mansão à sua casa.
-Vinte por cento? - interrogou com dúvida o Münzer.
-Estou ainda a ser optimista - acrescentou o velho Samuel. - Nem vinte por cento..,
- Pois se quiser - dissera o pai - tomo desde já a sua posição na indústria com mais dez por cento do que diz.
-Está a falar a sério?
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- Estou a falar a sério!
- Dê cá a sua mão - rematou o velho Samuel. - As minhas fábricas são suas!
- Mas...
-Ah!, ainda bem... Já começa com um mas.
- Este mas não é de dúvida - retorquiu o pai. - Tome lá a minha mão e aperte-a. E voltando-se para os restantes:
- Só lhes peço que considerem esta transacção como segredo de Estado. Trata-se na verdade de um segredo que é preciso guardar. Chamei-lhe segredo de Estado - acrescentou a sorrir - porque nós é que somos o Estado.»
Homem espantoso. Dois dias antes vira-o chorar naquela mesma sala quando soubera que Irma, a sua amante predilecta, o abandonara. Parecia, então, um frangalho.
Quando em 1936 as tropas alemãs retomaram a Renânia, voltara a vê-lo seguro de si, e quase radiante, mal os seus amigos o procuraram novamente alarmados. Gostaria de lhe perguntar agora, era ela que gostaria de o interrogar, se ainda considerava essa vitória alemã como o início da era de prosperidade para os povos da Europa central. Sabia que o pai dera dinheiro para os nazis austríacos. Isso valera-lhes agora o aviso do que se iria passar com os judeus, mas não impedira que lhe tomassem o banco, onde, de resto, só' deixara o dinheiro dos depositantes. O seu soubera transferi-lo a tempo. Ficara ainda, porém, com os valores industriais investidos no turismo, agora próspero, segundo ele lhe escrevera, com a avalanche de visitantes alemães. Antes do Anschiuss, Hitler obrigava a pagar mil marcos por cada visto com destino à Áustria. Ele próprio fizera pressão sobre o Governo austríaco para se entender com os nazis.
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Enganara-se desta vez, tinha a certeza. Mas seria homem para reconhecer o seu erro?
Jadwiga pusera-se a atravessar a Praça do Cavaleiro Negro. A luz da tarde tornara-se mais branda.
A seu lado, quase a tocar-lhe, um homem falava numa insinuação de sorrisos. Era o mesmo que se sentara defronte dela no banco da margem do rio.
E só então, num alarme absurdo, sentiu pressa de chegar junto de Leo para lhe comunicar o que conseguira no consulado.
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CAPÍTULO DÉCIMO
Como foi?... a - Como foi
quê?!...
- Não vejo razão para inventares pausas. Não responde com uma interrogação a outra interrogação.
O olhar dele era inquieto. Jadwiga pressentia que ele não podia fixar-se, como se todas as coisas o queimassem.
- Disseste já que conseguiste a legalização. Muito bem. Mas como conseguiste?
Ela deixava-o prolongar as dúvidas.
-Ou é segredo?
- Aí está: pode ser um segredo de Estado. Não estou a ser original. Foi isto que o pai disse quando comprou os hotéis ao velho Samuel. Um importante segredo de Estado.
- Bem!... Queres dizer com isso que nada posso saber...
- Sabes o mais importante e o que mais te interessa:
poderás ficar em Lisboa sem receio. Poderemos ficar... Não te basta?!
- Tem de me bastar - respondeu Leo, encarando-a agora com desprezo.
- Foste tu que me pediste que eu fosse lá... Jadwiga deitara-se no pequeno sofá do quarto, meio recostada sobre o lado esquerdo, de pernas encolhidas,
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quase a tocarem-lhe o peito. Descalçara-se e movia os dedos dos pés, fixando-lhes os movimentos, como se estivesse preocupada com isso.
- E disseste-me, se bem me recordo, que estávamos num jogo de vida ou de morte.
- Talvez o dissesse... Mas lembro-me que falei na última carta desse jogo.
- Exageravas.
Leo seguia-lhe a linha sinuosa do corpo, naquele jeito de abandono, e apetecia-lhe afundar-se nela, esmagá-la talvez, porque se tornara absurdo aquele diálogo de réplicas quase teatrais. Não se esquecera ainda que Jadwiga gostara de ser actriz e que ela própria dizia muitas vezes que o teatro vivia dentro de si. Que papel estás agora a representar? Falas tanto de Otelo!... Fixava-lhe as pernas até os joelhos descobertos; pareciam-lhe um pouco mais fortes, como ele gostava. Jadwiga tinha as pernas magras e nervosas como as de um gamo, feitas para saltar e fugir. Magras de mais para as suas coxas desenhadas debaixo do vestido de seda.
Ela sentia-se observada por Leo e só por isso fingira entreter-se com o movimento dos dedos dos pés. Como se os
tivesse cansados. E eram eles que o excitavam agora, provocando-o.
- Exageravas quando disseste que era a última carta. Temos ainda várias, Leo.
-Não as sinto na mão...
- Quando não tratas de negócios, és um animal fraco. Os receios esmagam-te. É por isso que bebes...
Apetecia-lhe espancá-la, um dia teria de lhe bater para depois lhe pedir perdão, mas precisaria de o fazer, talvez mais depressa do que pensava. Na noite do Estoril, quando ela lhe recusou dançar, estivera por um fio. Ainda lhe apertara o braço e a sacudira.
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-Bebo para fazer alguma coisa...
- Não, Leo, não é isso. Bebes para não encarares a realidade. Isso é um sinal de fraqueza.
- É por isso que bebes também algumas vezes?
- Sim, é por isso.
Os olhos verdes de Jadwiga pareciam agora cinzentos e distantes.
- É por isso mesmo - continuou ela. - Tenho de partilhar todas as coisas más contigo.
- Só as más?
- Só essas... Esperas que possamos ter em comum alguma coisa de bom?
- Talvez.
- Antes disso estaremos separados, Leo. Agora são só os dois passaportes que nos ligam.
-E é muito... Estás a representar, minha serpente. É a nossa vida.
-Muito?! Podemos perdê-los...
- Ou dentro de algumas horas estarmos na cadeia. Aí está a tua valentia! Tens medo da cadeia! Como serão as prisões daqui, Jadwiga?
- Estou certa que não.
-Confias nesse homem?
- Confio.
-'E porquê?!...
Jadwiga sorriu. Depois, de um salto, pôs-se de pé. Espreguiçava-se e sacudia a cabeleira loura, como se quisesse soltar-se de qualquer coisa que se lhe prendera aos cabelos.
- Tens assim tanta confiança nele?
- Precisamos de ter confiança em alguém, já que a nossa não existe.
- Quanto te pediu?
-Nada!
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-Não insinuou sequer...?
-O quê?'...
Leo tocava-lhe nos ombros com os dedos. Aproveitara o momento em que ela pegara numa revista aberta sobre a mesa e aproximara-se-lhe.
- Queres que acredite em ti?
- Terás de acreditar.
Ela sentiu-lhe a presença mais próxima. Evitava mover-se, como se a revista a interessasse. Leo viu naquilo um sinal de resignação, seria bom que fosse mais do que isso! E puxou-a para si, começando a beijar-lhe os cabelos e depois a nuca. Ela sacudia-se, movendo os ombros, mas ele segurara-lhos bem, tinha-os agora bem agarrados.
- Queres violentar-me?
Leo fingiu que a não ouvira, bem te percebo, preferes conversa, e beijava-lhe agora as costas descobertas pelo decote.
Jadwiga sabia que se lhe dissesse que tivera de ceder perante o outro, o marido a largaria. Agora não a largaria doutra maneira. Era escusado. Toda a força dele estava concentrada naquelas mãos que a apertavam. Mesmo que gritasse, a porta continuaria fechada. Mas nem sequer poderia gritar.
- Larga-me, Leo, larga-me agora... -pediu-lhe com voz magoada. -Tive um dia tão cheio de emoções... Sentiu na pele a descarga dos seus nervos.
-Ele insinuou...
-Não, nada, não disse nada. Eu ia a contar com isso... Talvez assim me deixes. Tu tinhas-me dito que era a última cartada...
Leo voltou-a para si. Ela agora não lhe resistia. Só poderia vingar-se mostrando que o marido tinha nas mãos um corpo morto.
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SEGUNDA PARTE
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CAPÍTULO PRIMEIRO
Leo insistira em acompanhá-la.
- «Talvez a tua presença o possa vexar», dissera Jadwiga por diversas vezes.
Ele, porém, precisava de vê-los juntos. Tornara-se-lhe necessário assistir àquele encontro, como se fosse a um Laboratório experimentar uma teoria de que tivesse a certeza. Mas queria ficar sem qualquer dúvida.
Iria reagir depois? Não, nada faria contra ambos. Preferia ter a certeza. Sem uma dúvida. Uma certeza limpa, sem qualquer mancha. Como se precisasse desse pretexto para ir todas as noites a um bar, e beber, beber, embriagar-se depressa, quanto mais depressa melhor.
Longe dos negócios era como peixe fora de água. Um peixe estranho conseguindo mover-se mesmo fora de água, mas que realmente não vivia. Adiava a morte ainda com esperanças de regressar ao mar.
Meteram-se num automóvel de praça. Jadwiga achava que podiam ir de eléctrico, mas ele queria ir depressa, tinha necessidade urgente de ficar com a certeza definitiva. Eles não seriam capazes de o iludir. Porque se demorava ela tanto tempo?! Qualquer pessoa teria ido ao hotel dizer-lhe o que conseguira. E mais ela do que ninguém, para lhe significar que obtivera o que o dinheiro dele não
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resolvera. E demorara-se algumas horas. Porquê?!
A fazer o quê?!...
Ia cada qual no seu canto, erguendo entre si uma muralha de silêncio e de hostilidade. Jadwiga olhava para fora, como se o movimento da avenida lhe interessasse, mas pensava na dúvida levantada pelo marido naquela manhã, quando tinha acabado de tomar o pequeno-almoço:
«A verdade é que só conhecemos esse homem pelo que nos disse o Dr. Klemm. E o que ele nos contou não é nada tranquilizador, como sabes. Há uma hipótese. Só quero chamar-lhe hipótese: a polícia pode estar alerta, aguardando a nossa chegada. Que dirias se isto sucedesse exactamente assim? Não acreditas?!...»
Ela não queria acreditar nessa hipótese, não, não acreditava. Os olhos dele não a podiam enganar tanto - porquê? sabia lá -, mas sentia que era preciso ter ainda confiança em alguém. Talvez exactamente naqueles de quem nada se pudesse esperar: nos românticos deste século desvairado e frio, hipócrita e lúcido, iniciado fora do calendário, em 1914, logo depois de Sarajevo, precisamente no ano em que ela nascera. Também a bela Elisabeth, a mulher do imperador Francisco José, fora assassinada por um anarquista. Em Genebra. Quando fugia à loucura, que atacara quase todos os membros da sua família, Elisabeth, o fantasma melancólico e deslumbrante das cortes reinantes da Europa, correra ao encontro da morte. «Quando os reis», dizia Otto, o primeiro amor de Jadwiga, estava ela na Universidade, aí por 1933, «quando os reis abrem o caminho à prepotência, consolidando-a sobre cadáveres, um crime nobilita. Há crimes que nobilitam! Mesmo sobre uma mulher bela. Ainda mais quando é sobre uma mulher bela. Nele se condensa e exprime a necessidade do equilíbrio que os
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reis se propuseram negar. Matar uma mulher bonita é sempre um crime horrível. Pois viva o crime horrível! Será só através dele que as multidões compreenderão o poder das leis humanas do nosso século.»
Otto era sonhador. Tinha uma linda cabeça, uma cabeleira quase fulva com uma madeixa rebelde a cair-lhe para a testa, e uns olhos azuis, grandes, e sempre prontos a desfazerem-se em lágrimas, mesmo que ele profetizasse a destruição do mundo aristocrata e burguês pela bomba e pela pistola. O seu namoro com Otto tornara-a célebre na Universidade - era incrível, era espantoso, que a filha do Goldstein, sim, do banqueiro, a filha do banqueiro Goldstein, pudesse andar de amores, um escândalo!, com esse niilista, já conhecido da polícia de Viena.
Jadwiga pensava nele, e não queria recordar-se agora de Otto, quando o marido lhe falava naquela possibilidade de denúncia à polícia.
Leo não podia adivinhar no que Jadwiga pensava ao mostrar-se interessada pelo movimento da avenida. Ele próprio se fixara nas mudanças do contador do táxi e na perícia do motorista, ansioso por ultrapassar todos os automóveis que lhe surgissem pela frente. Como se qualquer das coisas fosse decisiva para eles. Estranhamente decisiva, naquela hora de um tempo provisório e inconsequente.
O dia mostrava-se brumoso. Chuviscava. As árvores refulgiam de verde e os ruídos da cidade pareciam chocar em paredes de metal laminado que os avantajasse de vibrações. As pessoas caminhavam com pressa, mas iam ainda mais voltadas para dentro de si. Taciturnas e aparentemente inúteis.
- É melhor pararmos antes do consulado - disse Jadwiga.
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- Para quê? - perguntou Leo sem se virar para ela. Mas os olhos animaram-se-lhe no rosto enorme e agora inexpressivo.
-Para vermos se estará alguém...
-E que remediámos com isso? Supões que podemos escapar?
Ele insistia naquela dúvida para avaliar até onde Jadwiga resistia ao medo e ao pânico. Via-a perturbada, era evidente que o estava, as mãos agarradas não tinham outro significado. Não fizera ainda, porém, um só movimento para se aproximar dele. O refúgio não está em mim já não sou mais do que o seu inimigo. Veremos o que sucede ainda. O pior é que te não podes desprender de mim... As leis acabaram para nós. E estendeu a sua mão para as dela. Jadwiga recebeu-lhe o contacto. Sem um olhar.
-Tens razão, Leo. Aceitemos tudo com dignidade.
-Achas que somos dignos de cadeia?
-E porque não?! Temos ambos as nossas culpas.
-Quer dizer que sempre aceitas a hipótese...
-Não, não a admito. Sou psicóloga.
-Veremos se isso serve agora para alguma coisa! Aproximavam-se do destino. Que vai passar-se? Menos de duzentos metros. Parado, defronte da porta do consulado, ao meio da placa da rua, um homem vigiava. Leo descobriu-o num golpe de vista rápido, estava oculto por detrás duma árvore, e o coração descompassou-se-lhe.
- Repara, Jadwiga. Aquele homem...
Instintivamente, ela recuou contra as costas do assento, por que não diz ao motorista para continuar?, e achou-se a fazer força, como se pudesse escapar-se pela retaguarda do automóvel. Cada qual esperava do outro a ordem para regressarem ao hotel.
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O motorista já baixara a bandeira do contador e olhava-a pelo espelho, enquanto Leo procurava o dinheiro no bolso, parecendo gozar com o nervosismo dela. Foi isso que a fez abandonar o carro, antes que o marido pagasse. Vale a pena retardar o irremediável? O homem fitava-os, mas hesitava. Jadwiga encarou-o francamente e atravessou a rua. Que vou fazer? Que lhe vou perguntar? Quando chegou ao passeio, olhou para as janelas do consulado, como se pudesse descobrir Pedro a assistir à sua prisão. Estavam fechadas. De repente sentiu-se protegida. O homem deu uns passos, como se quisesse chegar à outra árvore, e Jadwiga fez-lhe uma pergunta inútil. Ele encarou-a a sorrir, encolhendo os ombros. Percebeu, teve ainda uma sensação maior de que podia ficar tranquila. Não, um homem destes não é da polícia. Insistiu na pergunta, demorou propositadamente. Desforrava-se do sorriso do marido. Sabia que Leo estaria perplexo, fingindo talvez nada haver de comum entre ambos.
Olhou e viu-o de costas. Parado. Estava convencida de que ele procuraria ganhar a esquina para desaparecer. Então voltou a cruzar a rua para lhe tocar no braço, sabendo que o medo já se apossara dele.
O movimento irreflectido de Leo confirmou-lhe a suspeita.
Surpreso e tolhido, ele virou-se, com espanto nos braços, e Jadwiga viu-lhe o rosto empalidecido e flácido.
-Podemos subir.
- Tiveste receio? - disse Leo a meia voz.
- Um pouco...
- Que foste fazer?
- Prefiro sempre encarar o perigo.
-É um sintoma de pânico. É um perigoso sintoma de pânico.
- Que remediaríamos se nos afastássemos?
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Jadwiga tomara-lhe o braço. Leo olhava à volta, fixando-se no homem que voltara à posição de se querer encobrir com a árvore.
- Parecemos dois criminosos - sussurrou ele.
- E talvez o sejamos - respondeu Jadwiga, empurrando a porta entreaberta.
Dentro do patamar, já depois de subir um dos degraus de pedra, Leo foi espreitar aos vidros. Estamos metidos na armadilha. E voltou-se para a mulher:
- Pressinto qualquer coisa...
- Queres ficar aqui à minha espera? - perguntou ela.
Via-o num plano inferior, como se estivessem a representar uma cena de teatro construtivista e as réplicas dela tivessem de ser sublinhadas por um movimento de ascensão nas escadas. Leo parecia disposto a esquecer o que o trouxera ali.
- Não me demoro, com certeza - insistiu Jadwiga.
Ele aproximou-se mais ainda dos vidros para espiar a rua. Adivinhava-se-lhe o corpo tenso debaixo do fato um pouco largo. Emagrecera naqueles quatro meses de fuga, e o olhar tornara-se-lhe mais vivo. Jadwiga descobria-lhe nos olhos que o medo se transformara em ciúme; já o conhecia demasiado nas suas crises de ciúme. Estava agora sob a influência de lago, como ela lhe dizia para o exasperar.
O ranger do guarda-vento fê-lo voltar-se num impulso.
-Espera... Não podes esperar? -disse arrebatado, quase num grito.
Jadwiga não lhe respondeu e aproximou-se do elevador. Ele abandonou o seu posto de observação, subindo as escadas a correr. Ela fingiu ignorá-lo.
- Estás com pressa?
- Alguma - retorquiu a mulher sem o fitar.
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Mas depois não se conteve:
- Já sabes que não tolero que me falem com esses modos bruscos.
- Não é agora tempo para escolhermos as palavras. As palavras não interessam...
- Não tenho essa opinião.
- Está em jogo a nossa liberdade, Jadwiga.
- Então podias ter ficado lá em baixo a vigiar, enquanto eu subia.
Ele apertou-lhe o braço; ela soltou-o num arremesso.
- Preferias, então, vir sozinha. Porque não o disseste claramente?
O elevador chegara ao quarto andar.
-Não respondes?: -insistiu ele.
- Nem todas as perguntas têm resposta. E tu já sabes quanto abomino as cenas ridículas. É o que menos suporto...
- Foste sempre convencional.
O paquete abriu a porta e Jadwiga entrou na sala, seguida por Leo. Ficaram ambos parados no meio das trevas, à espera que o rapaz fosse descerrar as janelas.
- Consulado, madame? - perguntou o paquete.
- Sim - respondeu Leo, dando-lhe uma moeda. Ela caminhou para o sofá, onde se sentou, depois de compor o chapéu e os cabelos ao espelho da mala. O marido aproximara-se da janela, observando a rua, o que o levava a mover a cabeça numa curiosidade nervosa. As árvores tapavam-lhe a visão. Quem será aquele homem?!... Pensou perguntar à mulher a opinião com que ficara dele, mas achou extemporâneo fazer uma trégua depois da atitude tomada por ela no elevador. Meteu as mãos nas algibeiras para as dominar, dando um passeio até o centro da sala, e apeteceu-lhe um cigarro, talvez porque entendesse não o fumar por causa das mãos perturbadas. Não
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podia denunciar o receio que sentia. Estava agitado por ter vindo meter-se na armadilha, quase não tinha dúvidas disso, mas sabia-se também incapaz de deixar a mulher sozinha. Então, fingiu interessar-se pela decoração das paredes e do tecto, com um grande florão de gesso ao centro, donde pendia um candelabro de madeira. Foi tactear um dos painéis de papel pintado; achou-o sujo e feio. Voltou ainda a olhar o florão do tecto. Que mau gosto.
Jadwiga seguia-lhe os gestos sem curiosidade.
Não havia nela um estremecimento. Pusera a mala num dos cantos do sofá e virou as pernas para o sol, que entrava pelo lado esquerdo da sala. Soube-lhe bem aquele afago cálido. Trouxera um vestido azul de seda, liso e muito simples. A sua pele rosada e os cabelos louros exaltavam-se naquela mancha sóbria. Leo pensava agora nisso mesmo; talvez fosse obrigado a vir, por ela trazer aquele vestido que lhe sublinhava as linhas do corpo, tornando-as mais vivas, quase provocantes. Que se passara entre eles? É melhor ficar daquele lado, vejo-os melhor. Mas não será isto só uma cilada? Encaminhou-se para a janela. Encostado ao alisar, soltou uma das mãos da algibeira e pôs-se a bater com os dedos na parede. Imitou um rufo de tambor e depois lembrou-se, lembrou-se de tambores nas ruas de Viena, e apertou os dedos.
A porta da sala abriu-se.
Pedro dirigia-se para Jadwiga, depois de cumprimentar Leo com um aceno de cabeça, e levava os dois passaportes na mão esquerda.
- Aqui tem - disse numa voz alvoroçada. - Está tudo em ordem.
Ela sorria-lhe, percebendo-se que talvez quisesse erguer-se para lhe agradecer; movia os braços e depois deixava-os cair sobre as coxas, iluminavam-se-lhe os olhos verdes, agora alegres, alegres, olhando o marido, vês,
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leo?, vês como foste injusto?, até que estendeu a mão para a de Pedro e a apertou na sua, cingindo-a muito e juntando-lhe a outra para que aquele homem sentisse bem o seu reconhecimento. Ele estendia-lhe os passaportes, um pouco confundido com tamanho entusiasmo. Leo aproximara-se e esquecera todas as dúvidas.
- Obrigado, muito obrigado! Quanto lhe devemos?... Sim, além do favor, de todos os favores, quanto lhe devemos?!...
- Mas nada - disse Pedro. - Trata-se de um simples registo de dois cidadãos do país que representamos. Não há taxa para isso...
- Mas o seu trabalho - insistiu Leo.
- Está pago.
Jadwiga não pudera dominar a emoção. Foi com um dedo apagar as lágrimas que se lhe escapavam dos olhos felizes e levantou-se para ir até a janela, sorver o ar da Primavera, a luz do dia, a vida, a certeza de alguns dias de repouso, sem medo, uma nesga de vida serena, confiei nele, mas nunca supus que ficasse assim tão perturbada e tão certa de tudo, ainda vale a pena viver, nada está perdido, talvez.
- Vai permitir... - acrescentou Leo, também perturbado.
- Só permito que sejam felizes os dois. É quanto basta!
-Mas...
- Não insistas, Leo - pediu Jadwiga.
Pedro agradeceu-lhe a intervenção com um olhar. E estendeu a mão a Leo:
- Bom dia!
- Nada mais é preciso?
- Nada mais da minha parte. Tive muito prazer.
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Jadwiga foi ao seu encontro para o beijar nas faces, mas sentiu-se corar. Estúpida! Porque estou assim? Segurou-lhe a mão e depois tomou-lhe o braço, dirigindo-se com ele para a porta da sala. Leo seguia-os sem qualquer sombra no espírito, apesar de não se sentir à vontade. Precisava de pagar aquele serviço de qualquer maneira, é absurdo que este homem recuse depois do que lhe disse da primeira vez.
-Gostaria que jantássemos os três...
- Não, não quero que se incomodem. Desculpem, mas tenho de insistir: fiz só o meu dever.
- Sabendo que os nossos passaportes... - insinuou Jadwiga.
- Sabendo que os vossos passaportes são perfeitamente legais. Doutra maneira teria de os apreender. Sou muito rigoroso no que faço - acrescentou Pedro, intencional.
Leo insistiu:
-E o jantar?
- Fica para um dia qualquer -' respondeu Pedro. Aceito para que não me julguem orgulhoso.
- Quando?!...
- Talvez para a semana.
- Está combinado.
Conversavam na obscuridade do corredor. E Jadwiga, sem saber explicar porquê, lembrou-se do Dr. Klemm e duma sugestão que lhe dera. Ficou cheia de curiosidade.
- Posso fazer-lhe uma pergunta?
- Certamente.
- Vai responder-me? - interrogou com garridice.
- Ainda não sei a pergunta. Leo estendia a cigarreira a Pedro.
-Quem é Wanda?!...
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O sobressalto no rosto dele e a perturbação que lhe viu nas mãos, fizeram-na insistir:
- Não conhece qualquer mulher com este nome? Pedro ficou pensativo por um instante, e depois disse:
-Não tenho ideia... E a senhora conhece-a?
- Não, também não.
- Porque me fez a pergunta?
- Para ouvir a sua opinião sobre ela.
-Tenho muita pena...
E baixou a cabeça num cumprimento, afastando-se dos dois.
Leo abriu a porta. Jadwiga sorriu.
PEDRO
Quando disse «tenho muita pena», como se nada soubesse de Wanda, mentia. E vocês já o sabem. Jadwiga também o intuiu, e ainda bem, pois não quis enganá-la. Só senti pudor em lhe contar o que realmente se passara. Seria doloroso para mim achar-me ridículo perante uma mulher quase desconhecida, tanto mais que não teria oportunidade de a fazer mudar de opinião.
Vocês poderão afirmar, a propósito disto, várias coisas e nenhuma delas prezável: que o pudor aqui não é uma virtude ética, mas uma forma de vaidade, talvez a pior forma de vaidade, aquela que os psicólogos designam por «vaidade terapêutica» e que é uma dissimulação do medo; que a fuga à revelação desse fracasso, uma vez que Wanda não voltou, é mais uma atitude típica do homem pretensioso e vazio, inoperante e gabarola, a quem se poderá dizer, sem receio de errar, «fala-me do que te
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gabas e saberei o que te falta»; que o devasso pode confundir os arrebatamentos do seu fogo de palha com a perturbação de um amor generoso, se não for ainda um títere desejoso de repetir na vida os sucessos fatais dos D. Juans das telas e dos palcos.
Eu responderei pela negativa a qualquer destas hipóteses. Não totalmente, é bom que o confesse, pois cada homem tem em si, duma forma visível ou assolapada, todos aqueles ingredientes.
Mas quem lhe teria contado que Wanda veio aqui?
Fosse quem fosse, talvez o Klemm, o bandido do Klemm, a verdade é que se deu o que receei. Na pastelaria onde os refugiados se encontram, devem conhecer-me pelo libertino do olhar melancólico. Hei-de lá ir um dia tomar chá para que me vejam bem. Não, no caso de Wanda não tenho de que me acusar!
Só me perturba, sem qualquer sentimento de culpa ou remorso, que ela me julgasse mal, tomando-me por um homem que tentou aproveitar-se de certas condições trágicas da sua vida para satisfazer instintos, se não vaidades, o que seria ainda mais lamentável. E, contudo, tenho a certeza, gostaria de ter a plena certeza, de que o meu impulso se desencadeou no que guardo de mais puro e de espontâneo.
Embora nada me obrigue a tanto, quero ser inteiramente sincero com vocês.
A ferida ainda não sarou...
Mas o pior é que não é, nem podia ser, uma ferida de amor ansioso. Dum verdadeiro amor puro e ansioso.
Vocês dirão que continuo a ser um hipomaníaco no amor, vivendo-o de uma forma acelerada e superficial. Que desejei esgotar numa convulsão todos os desejos que por ela senti, querendo mudar mais uma vez. E a isso eu responderei que não.
Com ela preciso de pensar que não foi assim. Aquele ímpeto de fogo não era só, não quero que o seja, a «flor de um dia», não me lembro quem o disse, uma espécie de fogo-fátuo vagabundo, nascido dessa podridão que é o narcisismo. Já o repeti a mim mesmo: nesse dia fui um canalha lírico. É o limite da autoflagelação. E repeti-o depois muitos dias, intensamente, até criar no espírito essa nova dimensão de valor, uma realidade psíquica íntima que me pudesse lembrar outras noções de responsabilidade, sempre admitidas por mim sem grande drama.
Por exemplo: nunca fui amante da mulher de qualquer amigo verdadeiro. O que entendo por amigo verdadeiro?!... Parece-me desnecessário entrar em minúcias, se disser que os considero a vocês como tal.
Poderia falar aqui em plena consciência do dever, o que seria um cliché prestigiado. Mas prefiro antes afirmar que criei esse reflexo condicionado, e que já aceito essa privação com alegria, embora julgue, e ainda bem para todos nós, que não sou supersticioso. É a primeira vez que falo nestes termos, porque preciso de sentir com lucidez o que se passou com Wanda. Não, não desconheço que são difíceis de compreender «as razões de coração» de que falava Pascal. Mas é bom tentar a clarificação da água turva desse meu rio de instintos, talvez mais acessível à inteligência.
Porque andei eu a dominar-me tanto, querendo submeter os meus ímpetos de amor, se a lei dos contrastes nunca cede, e de repente impõe-se, fazendo desvairar o rio represado? Quebram-se todos os diques e aí vem a torrente. Seria isto o que se passou com Wanda?
Penso que não, quero pensar que não, embora houvesse torrente no meu impulso afectivo.
Eu espero da vossa parte uma ajuda para percebermos todos o que se passou. Quero realmente entender as razões
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que me levaram a confessar-lhe, em dez minutos, o que leva sempre meses ou anos a dizer a uma mulher. Nunca a vira. Nunca mais voltei a encontrá-la. E tanto que não havia na minha atitude ansiedade sexual, que nem nas mãos lhe toquei. Não, não preparei qualquer armadilha, não me sentei junto dela, não tentei despertar-lhe os instintos da carne. Fui duma absoluta inabilidade. Um canalha, mas um canalha lírico. Talvez porque ficasse sem raciocínio; não o sei dizer.
Estava sentado à secretária naquele trabalho torpe e absurdo de alinhar números. Melancólico, por certo, como o sou agora quase sempre. Depois que casei. Depois também que o mundo me foi negando o melhor que um homem pode ter da vida: o gosto de discutir, a liberdade de escolher, de desvendar véus para encontrar o seu caminho. Meteram-me num mundo com muitas e pequenas cercas, isto não, aquilo não... A inteligência interrogativa passou a ser clandestina, tornou-se num recalcamento. E a inteligência que não age, enrola-se como um novelo, acabando por se tornar estéril. E o homem inverte a sua natureza, age para dentro, descobre em si, nos primeiros tempos, belas paisagens ignoradas, deslinda muitos mitos, revela-se a si próprio, mas depois acaba por devorar a própria substância, paralisado pelo pessimismo e pela descrença, que são também, e bem terríveis, novas máscaras do medo. E o pior ainda é que o homem lúcido desta situação nunca diz em voz alta que é cobarde. Vai até aí a sua cobardia, ao extremo da degradação, porque teima em explicar por sofismas o que nele é dominante e obsessivo.
Tenho a impressão de que talvez possa agora, e só agora depois de dizer isto, clarificar um pouco a água daquela torrente. Inibido, cercado de inibições, é ainda no mundo do sexo que o homem age com menos peias.
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Negam-no em tudo e ele precisa de se afirmar, tem de se afirmar em alguma coisa, pois não pode ser um mero espectador da vida. A menos que se suicide, eliminando-se pela morte, ou eliminando-se na frustração, que é morte também, embora aqui o homem seja ressuscitável. É por isso que eu entendo que vocês deverão ser menos duros com os homens frustrados. Para vocês nunca qualquer coisa, e muito menos qualquer homem deve considerar-se perdido...
Eu estava a dizer que ao homem lhe é necessário agir. É isso de que precisamos todos, mesmo sabendo que poderemos errar, embora nã o devamos atirar-nos deliberadamente para o erro, porque agir assim também é outra forma de suicídio. Agir de qualquer maneira também é procurar a morte. E nós lutamos pela vida.
Estou a desviar-me...
Dizia eu que o homem precisa de agir. E se lhe negam quase tudo o que é a seiva da vida humana, se lhe barram os vários caminhos por onde o homem se revela como tal, ele acaba por entrar, acossado pela frustração, nos subterrâneos da hipocrisia, e depois nos da demência, se não prefere libertar-se nos subterrâneos que conduzem aos cárceres. Mas até nos subterrâneos dos monstros a lei dos contrastes funciona. E de vez em quando o homem explode, precisa de explodir no mundo do amor físico, por exemplo, para não ser tomado pelo pânico e ouvir-se a si próprio gritar, gritando agora já fora das veias, que é um cobarde e um impotente. O amor físico pode durante muito tempo arrancá-lo ao manicómio. É um refúgio. Como o álcool ou a droga. Ou ainda a guerra, outra forma aparentemente antagónica de o homem se esquecer de si.
Não sei se foi isto também, reparem que digo também, que me levou a dizer a Wanda, em poucos minutos, o que
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leva sempre alguns dias ou meses a dizer a uma mulher. Já disse que em num a ferida não sarou.
Será uma ferida de amor? Não, não é. Estou a psicanalisar-me e não quero que fiquem dentro de mim zonas escuras.
Wanda passou a ser uma inibição. Mais uma inibição. O receio de ser repelido e ridicularizado, uma vez que não voltou. E eu queria que ela voltasse. Para me arrepender depois?!
Sim, talvez para me arrepender. Mas eu talvez precisasse de me flagelar, se ela não fosse o que os seus olhos tristes me prometiam. Eu acreditei nos seus olhos e acreditei em mim.
Ou estaria eu nesse momento predisposto a ser Werther?!...
Mas vejamos antes o que realmente se passou:
Estava sentado à secretária e o rapaz veio dizer-me que uma senhora me esperava na sala por causa de uns passaportes. Mandei-o abrir a janela, para a abrir como o patrão queria, não lhe estragassem a carpette e a mobília. Ele respondeu-me que já o fizera e deixou-se ficar junto da secretária. «Que queres mais?», perguntei-lhe. «Ela que espere, se quiser.» Todo o pessoal olhou espantado para mim. Aquela explosão de ira parecia-lhes absurda. E era-o, sem dúvida, para eles. Sou habitualmente cordato. Falo baixo, quase em segredo.
Mas naquela manhã sentia-me terrivelmente deprimido e infeliz. Dormira mal. Começara a escrever o meu primeiro romance, precisava de o escrever para me libertar de todas as sujeições da nossa vida acorrentada, dos crimes que deixara cometer quase ao meu lado sem poder intervir. Agora cometiam-se outros, podiam-se adivinhar e sentir pelas notícias diárias dos jornais, e também por esta avalanche de judeus com dinheiro que me
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procurava com frequência. Limitava-me a pôr-lhes um visto e a não ganhar com eles um centavo, mesmo quando se tratasse da filha de um banqueiro, como hoje fiz com esta mulher que veio com o marido.
Começara a escrever o meu primeiro romance.
Tudo era ainda um caos que me aterrorizava. Queria intervir pelos homens, mas os homens fugiam-me. Confusas e desesperadas, as ideias baralhavam-se dentro de mim e as palavras não me obedeciam. As que segurava, pareciam-me inertes e vazias, sem as ressonâncias que eu precisava que elas tivessem para afirmarem a minha ânsia de justiça. Excitado, tivera uma insónia. Naquela casa solitária, apesar de viver com uma mulher, a frustração pareceu-me ter sentenças definitivas. Meti-me no escritório, acendi todas as luzes, todas as luzes, menos a única que precisava de acender. Nessa noite vivia intensamente o meu drama de aprendiz de escritor. Tive febre, aquela febre que os termómetros não podem marcar, mas que consome mais do que a outra.
Fizera duas páginas e rasgara-as.
Considerei-me frustrado, tudo na minha vida se frustrava. Naquela noite fora bem o espelho fiel do meio em que me obrigavam a viver.
Era neste estado de espírito que eu fazia o cálculo de facturas em moedas estrangeiras, quando o rapaz me veio dizer que estava uma senhora na sala. Na sala que servia as vaidades do Oliveira e da família, convencidos todos de que pertenciam ao corpo diplomático por causa daquele consulado quase inútil, só esmerado e actuante na chapa da porta, nas chapas dos automóveis e na chapa da janela onde havia um mastro de bandeira. Era uma diplomacia de chapas. «O que é quase sempre a diplomacia?», lembro-me de o ter dito uma vez, pensando nesta associação de chapas esmaltadas.
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Comecei a fumar um cigarro. Fumava então tabaco de onça, o que fazia para me acalmar. Era a desculpa. O ritual do fumo tornava-se assim mais prolongado, desde que tirava a mortalha do livrinho até humedecê-la com o tabaco já enrolado.
Fui junto da Palmira, não para aceitar os seus olhares cúmplices, mas para ver quantas minutas já dactilografara. Finalmente, depois de vestir o casaco, resolvi-me a ir à sala azul. Era o nome que lhe dávamos no escritório, como se dispuséssemos de outras salas. Mas o Oliveira chamava-lhe assim, e nós repetíamos, pobres papagaios, as bazófias do patrão.
Não ia curioso, devo dizer. Agora apareciam com frequência muitos refugiados, eu dava-lhes os vistos, se era possível, e o Oliveira apurava a assinatura larga, muito cortada com dois traços horizontais, revendo-se no seu -nome esparranhado por cima da palavra «chanceler». Chanceler era para ele um título bem mais honorífico do que o de cônsul. Hitler era o chanceler do Grande Reich e o Oliveira achava que também era o chanceler de um país onde nunca fora. Não exagero. Ele dizia «chanceler» com as sílabas bem batidas, como se as pregasse por cima da cabeça.
A sala afundava-se naquela penumbra tão minha conhecida. Só a última janela devia estar aberta e eu voltei-me para lá, percebendo que a visita preferira sentar-se no sofá do fundo.
É absurdo dizer que fiquei fulminado. Parece romance, mas é a verdade. Atónito. Uma luz doce coava-se da janela e parecia envolver, envolvia na realidade, uma cabeça de mulher, esplendorosa e ao mesmo tempo trágica, doce e triste, magoada. E magoava vê-la assim com os seus olhos castanho-claros, olhos de Outono cobertos de pranto, de pranto sem lágrimas, a fitar-me e a dizer-me
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depois numa voz musical, talvez um pouco grave, o que a trouxera ali. Um raio de sol tinha-lhe bulido nos cabelos, e talvez por isso ela tivesse na boca um sorriso, como a brisa leve de um. sorriso que a fizesse vibrar subtilmente.
E eu percebi, e senti, porquê?, que aquela mulher é que devia ter sido, é que ainda poderia ser, a companheira da minha vida. Assim de repente, sem saber mais nada, como se ela trouxesse nos olhos magoados, e na voz dorida, e no sorriso receoso, qualquer mensagem secreta que eu esperasse desde os sonhos da adolescência. Ela vinha vestida no sudário da noite contra a qual eu queria lutar, i cria mais uma irmã na dor do que uma companheira, conhecera bem o travo das violências e dos crimes, da justiça violada, e os dois, devia senti-lo inconscientemente, poderíamos fazer um «pacto de morte», não para nos inibirmos, mas para nos afirmarmos contra a morte.
Não, não a senti como uma mulher sensual. Ela não o era. Nem a sensualidade me tocou.
Estendeu-me dois passaportes: um com a fotografia dela e de duas crianças. Não me recordo como eram, nem interessa lembrá-las. O outro, de um homem de meia-idade, de traços bem vincados, ressumando firmeza de vontade. Uma testa alta e poderosa.
«-É o seu marido?»
Ela respondeu-me com um olhar, alargando o sorriso ainda hesitante na sua boca. Fiquei transtornado. Devo tê-lo odiado.
«-Que pretende, então?!
- Um visto...
Fixei-me nas suas mãos para não desvairar; precisava de conseguir um domínio total sobre a minha ansiedade que se tornara agressiva dentro de mim. As veias queimavam-me.
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Na primeira página dos passaportes o J com que os nazis punham o ferrete nos que deixavam sair ou que fugiam.
«-É possível?»--perguntou ela, talvez perturbada também com o meu silêncio.
Não lhe respondi. Não podia falar, não devia falar» só tinha para lhe dizer palavras absurdas. E canalhas.
«- É possível? - voltou a perguntar naquela voz grave e sinuosa que só ciciava.
-Para o seu marido é possível.»
Não fui capaz de me impedir de dizer aquilo. E não se me queimou a boca. Mas eu já tinha necessidade de Wanda.
«-E eu?!...
-A senhora ficará em Lisboa...»
Senti que ela precisava de que a olhasse para tentar compreender o que eu dizia; e olhei-a. Devo ter-lhe suplicado com os olhos que não pensasse mal de mim.
«-Mas não posso ficar em Lisboa... (Depois pensou também nos filhos.) E os meus filhos?!...
- Ficarão consigo.
-Mas como?!
- Eu tratarei de tudo. Não tenha medo.»
Wanda ficou pálida, talvez com os olhos mais tristes. Fez uma expressão de estranheza quando me encarou e leu em mim, tenho a certeza agora, a determinação que eu já dera à nossa vida. Pedira-lhe que não tivesse medo, mas Wanda devia estar apavorada por se sentir ali sozinha comigo. Pensou, deve ter pensado, talvez, que eu seria capaz de a forçar, pois fizera pior do que isso. Ainda pior do que isso.
Escreveu qualquer coisa num papel, levantou-se depois e sorriu-me. Baixou-me a cabeça e disse:
«- Vou pensar...
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- Eu espero - respondi num sussurro.
- Vou pensar» - repetiu.
Quando Wanda desapareceu na escada, percebi logo que nunca mais a veria. E nunca mais a vi.
Voltei quase a correr para dentro da sala e chorei desesperadamente.
Porquê?!...
Pergunto porquê e peço que me respondam, se me julgam ainda um depravado sentimental. Porque fiz aquilo?!...
Pedro contou-me que concebera ter esta conversa com os seus amigos. Pensara nela quando Jadwiga lhe fez a pergunta e ele receou que os seus amigos o soubessem também.
É difícil encontrar uma explicação total para o que se passou. Creio, porém, que nalguns dos seus pensamentos e invocações se achará o segredo oculto do seu comportamento. Pedro era um homem correcto. Sempre o conheci como tal. Dominava-se talvez excessivamente e daí aquela explosão de amor ansioso e exaltado perante uma mulher que só viu durante uns minutos.
«Estaria eu nesse momento predisposto a ser Werther ?!...», interrogou-se Pedro em certo momento da sua confissão. Talvez...
Em países de economia agrária e atrasada é possível encontrarem-se fósseis do romantismo. Mas a psiquiatria conhece-os também; aparecem, afinal, por toda a parte e cabem numa classificação, a de «o amor mortal». «Os chamados noivos da morte procuram-se para
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darem juntos o grande salto no vazio, para transporem o umbral da Eternidade e umirem-se no Nirvana.»
«As pessoas», li em Mira y López, «cujo canto amoroso apresenta essa clave tânica, gostam de enamorar-se de seres inválidos, absurdos ou estranhos. Essa eleição não é tanto por um impulso de caridade como por um desejo de acumular sofrimento no caminho, até o repouso eterno, que realmente é o fim ansiado: quanto pior se vive mais justificada está a Morte.» Em Pedro talvez antes houvesse o desejo de se fundir com uma mulher que vivesse plenamente um drama destinado também para ele, se, porventura, fosse compatriota de Wanda. No mundo já outras tragédias se haviam passado, sem que ele interviesse. Pedro acusava-se com frequência dessa falta.
O seu arrebatamento por Wanda seria, talvez, uma recusa em continuar afundado na cobardia e na resignação. Ela prolongou-se depois em Jadwiga, porque era algo mais do que uma mulher.
LEO
Há muito tempo que não discutíamos duma maneira tão feroz. Hoje podia ser o fim de tudo. E será, afinal, mais um dia entre os muitos dias algemados que passaremos juntos. Sem ela me dar ajuda, sequer, ao suportar esta interrogação abominável que é agora a nossa vida. Ambos prisioneiros. Fugimos e continuamos prisioneiros. Presos
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de mãos e pés, amarrados um ao outro, sem conseguirmos descobrir que deveríamos juntar esforços para esta condenação parecer menos terrível. Acabamos por nos tolher neste caminhar desencontrado, verberando-nos, e o ódio começa a surgir. Numa altura em que todos os laços humanos se cortam entre nós, talvez definitivamente, é que nos amarram assim. E o pior é que estamos resignados com a sentença. O mais dramático ainda é que nos tornámos carrascos um do outro.
Porque não fui capaz de continuar em Viena?!...
O Dr. Möller deixou-se abater na rua; fez-lhes frente a tiro e ficará como exemplo. No meu egoísmo burguês achei que o Dr. Möller fora simplesmente estúpido. Agora invejo-o. Mas esta inveja não é actuante. De nada serve. É mais um escombro a juntar aos muitos que me cobrem a alma. Se ainda tenho alma.
Sinto desejos de regressar, de poder entrar no meu escritório da Wippiingerstrasse, bons dias, meus senhores, bons dias, Ethel, traga-me as cotações, veja quantos pontos subiu a Farben, por favor, telefonou ao Raab?, de estar atento e emocionado às perspectivas da Bolsa, ali tão perto, ouvindo as campainhas dos telefones, sim, menina, ligue-me para Salisburgo, de mandar dizer a muitos que me procuravam, não, não estou, que me quer esse senhor?, de chamar o velho Josef e oferecer-lhe um charuto, pedindo-lhe informações dos turistas que fazíamos passar de hotel em hotel, temos a mais completa cadeia de hotéis da Áustria, um país delicioso, maravilhoso, espantoso, um país de música e de alegria. Voltar à minha casa de Hiet-zinger, o que por si só era um cartaz, morar em Hietzinger significava alta burguesia, depósitos nos bancos, genro de um banqueiro, filho do velho Samuel devorado pelo sogro, mas agora prestes a devorar a fortuna do sogro, quando
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ele morrer, casara com a sua filha única, belo casamento, belo casamento!, os meus parabéns!
Se nos vissem agora, se nos pudessem ver, haveria alguém capaz de me dar os parabéns?
Ela disse-me quando saímos: «Vês como ainda há homens neste mundo?»
E eu respondi-lhe: «Achas, então, que ele não vai exigir qualquer coisa... Penso o contrário.»
Não desconfiara de nada quando os vi junto um do outro. Não houvera um sorriso, um olhar intencional, nada! Mas aquela interrogação de Jadwiga alarmou-me. E mais do que isso, a maneira convicta como o defendeu»
Tenho a dureza das suas palavras bem presente:
«- Foi, talvez, por só acreditarmos no nosso dinheiro que estamos agora aqui. Vítimas daqueles a quem deste dinheiro...
- Eu? - perguntei-lhe transtornado.
- Sim, tu. Tu e o meu pai... e eu. Acreditámos que beneficiaríamos do poderio alemão; que a virilidade nazi era sinal de tempos novos, embora continuássemos a votar com Dollfuss e o empurrássemos para a morte, depois de termos festejado o esmagamento dos socialistas em Viena.»
Jadwiga disse-me aquilo com ódio na voz.
Ela sabe, também eu sei, que não regressaremos tão cedo, que não valeria a pena voltar, mesmo que não nos prendessem. Os chefes, sim, esses não deixariam de ter em conta o dinheiro oferecido por nós ao partido. Mas os outros, os pequenos burgueses já cansados de nos darem títulos, de andarem sem emprego, de carregarem às costas com a nossa futilidade vienense?
Agora a opereta transformara-se em tragédia. O prazer da bela vida, da cortesia e da gentileza, os piqueniques no Prater, as missas na Catedral de Santo Estêvão, as
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sombras dos parques, Sara, o meu escritório da Wippiin-gerstrasse, como tudo se transformou! E Jadwiga! Porque lhe perdoei aqueles dias de fuga em Paris, quando ela foi viver com Bóris?!...
Tive medo.
E agora apavoro-me com a ideia de que aquele homem recusou os cinquenta contos que estive disposto a dar-lhe. Se entre ele e Jadwiga tivesse havido uma aventura passageira, como pagamento daquele favor, isso não teria importância. Cada qual faz-se pagar na moeda que impõe. Aceitaria essa degradação. Mais essa degradação. Mas o que me transtorna, o que me perturba, é o calor de Jadwiga em defendê-lo; e mais ainda aquela frieza aparente com que ele a tratou, com que ele nos disse: «Não é nada!»
Estes homens que dizem «não é nada» querem sempre tudo.
E eu receio que ele queira Jadwiga. Não como tributo passageiro, mas como presa definitiva.
Faltam-me as preocupações dos negócios. Os meus empregados... os meus telefones... os meus hotéis... as minhas contas no banco... os meus furores repentinos... Tudo o que era meu! E um café no Mozart, uma noite na ópera, e Sara!
Posso comprar uma pistola.
Ou chegar à polícia e dizer: «Estes dois passaportes são falsos. Houve um homem que o sabia e que mos legalizou.»
Se me fazem regressar a Viena, andarei ao mando do filho da minha porteira. Fritz, o afável e submisso Fritz, que vi nos últimos dias fardado e de braçadeira com a cruz gamada, e me gritou «Heil», e a quem eu respondi «Heil Hitler!», vai poder escarrar-me em cima, vai vingar-se dos fatos e das camisas que lhe ofereci.
Serei capaz de suportar isto?!...
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Nem Sara já se lembrará de mim, com certeza. Gostaria de pensar que Sara me acolheria no alto da escada com o seu robe azul... Que palavras dirá agora a voz frágil e autoritária de Sara?...
Sara é judia e talvez já não fale. Talvez nunca mais me chame «o seu barão», nem o diga a qualquer outro. Contava-se em Nice... Mas aquilo que se dizia em Nice não deve passar de um boato. Eles não iam matar assim tanta gente! Não acredito! Não quero acreditar num crime -colectivo…
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CAPÍTULO SEGUNDO
AQUELA noite, Leo não jantou com a mulher. Entreteve-se num bar, perto do Chiado, onde ia agora passar quase todas as tardes, e aí arranjou companhia até as duas da madrugada. Sentira-se feliz, quase eufórico, em poder enganar Jadwiga antes que sucedesse o que previa; porém, mal acompanhou a rapariga a casa, ela chamava-se Elisabete, e ficou só dentro do automóvel, teve a sensação física, plena, de que caíra a um lago turvo, onde se afundava sem um grito nem um movimento de braços.
Como se o puxassem pelos pés e o enterrassem no fundo do lago, cravando-o na boca de um monstro que o esperasse.
O motorista perguntara «para onde vamos agora?» e mandara-o seguir, rodar pela cidade, ao acaso, só queria que não metesse pelas ruas iluminadas, mas não conseguiu que o outro o percebesse. Então, irritado, fê-lo parar num sítio desconhecido e saiu. Pôs-se a andar sem destino, procurando travéssas escuras. Caminhava devagar, em bicos de pés, como se evitasse acordar a cidade. Bebera bem, não sabia o quê, vinho, cerveja, whisky, cerveja talvez não, e sentia-se preso na boca do monstro, agora já sem dor, um pouco embriagado, à deriva, gozando também
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o prazer de estar só e de saber que Jadwiga olharia para o seu leito vazio, um pouco vexada com o que pensariam os criados quando o vissem entrar quase pela manhã.
Vivia ainda de aparências.
Julgava-se mulher inteligente e vivida, falava das suas estadas em Paris, mas não suportaria a ideia que os servos do hotel pudessem comentar aquelas vagabundagens dele. Deprimiam-na. Já lho dissera até, de uma maneira desabrida, «que não lhe consentia vexames; vexames, não, não me tomes por alguma portuguesa, a quem os maridos deixam sempre em casa; sou de Viena, a mulher austríaca nunca se submeteu». Achara-lhe graça e respondera-lhe apenas: «-Devemos perfilhar os hábitos dos países em que vivemos, Jadwiga. Em Viena mandavas tu. Eu trabalhava e tu divertias-te, sem saber, ao menos, por onde andavas; parecia mal fazer perguntas indiscretas à minha mulher. Aqui são os homens que se divertem, uma vez que são eles quem trabalham, e as mulheres dormem ou esperam. Se protestam, espancam-nas. Sabes lá ainda o mais que irás passar! Se tivermos de ir para África, será a tua vez de trabalhares...»
Quando voltou ao hotel de madrugada, apeteceu-lhe repetir exactamente o mesmo. Acendeu todas as luzes do quarto, cantarolou uma ária da opereta A Hospedaria do Cavalo Branco e, como Jadwiga continuasse impassível, resolveu ir tomar banho. Voltou ao quarto e ela permanecia no mesmo silêncio, enrolada na roupa e de cabeça tapada. Tinha a certeza de que a acordara. Só quando, já resignado, apagara as luzes, é que ela lhe disse:
- Parece impossível, Leo!
- Impossível porquê?... Achas que vim tarde?
- Não sou o teu relógio.
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-Ah, ainda bem! Começas a habituar-te...
- Começo a sentir-me feliz por estar sozinha.
Ele emudecera. Jadwiga prosseguira:
- Mas quereres acordar-me, de propósito, é que me parece excessivo.
- Todos temos os nossos excessos, minha querida -respondera já refeito e procurando mostrar-se zombeteiro. - Como preferes ficar só, o que já compreendi, procuro outras companhias. Sou um homem válido...
- Não estou compradora de escravos.
-'É pena!
Leo começava a sentir necessidade de dormir, estava cansado. Sabia que se a conversa prosseguisse iria perder o sono, irritar-se, cair naquela tensão em que se debatia quando o ciúme se apossava dele.
Mas naquela noite gozava também, agora que chegara junto de Jadwiga, uma impressão agradável de vitória. Elisabete fora uma bela companheira. Tinham-se entendido às mil maravilhas, como se os temperamentos se ajustassem e completassem. Na intimidade lembrara-lhe Sara; um pouco mais vibrante, talvez, mas menos imperiosa. Parecia um vime, mais um violino, isso mesmo, um violino, espontânea e simples, ao mesmo tempo requintada, de um requinte natural, sem afectações. Exactamente como ele lhe dissera: és uma pequena maravilha da natureza. Um vime...
Mas agora emendaria a imagem, logo que a encontrasse, talvez amanhã voltasse a aparecer. És um violino, Elisabete... Por isso lhe ocorrera aquela sensação física de ser puxado para o fundo de um lago, mais para o fundo de um pântano, quando tivera de a deixar. Depois da angústia experimentada no regresso do consulado, quando ouvira Jadwiga defender aquele homem, a convivência
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com Elisabete tornara-se bálsamo, como se no corpo se lhe tivessem cravado milhares de espinhos e ela lhos arrancasse um a um, sem deixar sensação de ferida, com aquelas mãos um pouco frias que ele aquecera com beijos.
Se Jadwiga assim fosse, não seria a fuga de Viena um passo tão doloroso. Talvez ao regressarem, um dia, pudessem recordar estes dias passados em Lisboa, como a sua verdadeira lua-de-mel. Pensara nisso exactamente quando tomaram o comboio em Nice.
Mas o seu amor continuava a quebrar-se na hostilidade dela. E devia reconhecer que só se sentira realmente feliz junto de Elisabete, quando pensara ter Jadwiga nos braços.
O sono não chegava.
Adivinhava os passos da insónia a caminhar para a sua cama, a envolvê-lo já; saltara-lhe para junto da cabeça e cingia-o, começava naquele enleio tão seu conhecido e que o obrigava a beber quase todas as noites. Não bebera, afinal, tanto quanto julgara. Ergueu-se da cama sem acender a luz, agora queria que a mulher dormisse, e orientou-se para o lado do roupeiro.
Jadwiga estava acordada e disse em tom repreensivo:
- Ainda não vens satisfeito?
Leo disse um palavrão, na gíria popular de Favoriten, o bairro pobre de Viena, e correu para o roupeiro logo que a mulher acendeu a luz. E à frente dela, ostensivamente, meteu a garrafa de genebra à boca e pôs-se a beber. Mas à medida que matava a sede da sua raiva, percebia, trago a trago, que fugia à insónia e se afastava ainda mais de Jadwiga.
- Apaga a luz! - gritou-lhe.
Quando regressou ao leito levava os olhos cheios de lágrimas.
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CAPÍTULO TERCEIRO
Foi Elisabete quem lhe tratou disso. i Ainda agora não saberia explicar como entrara em tais confidências com uma cortesã, mas o certo é que o homem lhe aparecera para se encarregar da vigilância. Ela servira de intérprete, falava francês com certa fluência, talvez fosse verdade andar num curso superior quando se metera na vida nocturna. Um desgosto de amor, e Leo, dizia ela, era muito parecido com esse homem que a empurrara para aquele caminho. «É um código internacional», pensara ele, «não há dúvida, dizem quase todas a mesma coisa.» Mas não tomara a mal uma armadilha tão visível, embora tivesse esfriado o seu entusiasmo por Elisabete.
O detective tomara as notas que lhe deram, escrevendo sinais cabalísticos, talvez para sossegar Leo quanto ao segredo rigoroso, eficiência e sigilo, garantias só verdadeiramente oferecidas pela sua agência. Adiantara-lhe algum dinheiro, Jadwiga andava muitas vezes de automóvel, e Leo só queria um relatório de quinze dias, uma quinzena bastaria «para lhe vertebrar a dúvida». Tinha o gosto do verbo «vertebrar», era um luxo da sua linguagem; e empregava-o com frequência para significar que desejava as coisas bem estruturadas e sólidas. Talvez porque
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o seu arcaboiço fosse poderoso. As suas vértebras eram construídas de aço puro do Rur, como ele dizia.
Vertebrar era a melhor expressão da sua antiga eficiência, o que levara Jadwiga a compará-lo a uma marabunta. Mas nem as marabuntas podem, certamente, viver fora do seu meio.
O tédio apossara-se de Leo. Sentia-se vazio, adiado. Um homem adiado. Para quando?
Era-lhe proibido negociar em Portugal, estava com visto de trânsito. Em que hei-de passar o tempo?... De resto aguardava que o sogro promovesse uma transferência de quantia mais grossa. Também isso o perturbava. Faltava-lhe o apoio do dinheiro, de depósito avultado para movimentar com a sua assinatura, e que lhe garantisse possibilidades de qualquer suborno, nem todos seriam como aquele gajo que recusara cinquenta contos, ou a compra imediata de uma saída rápida de Lisboa se chegasse a notícia de que a guerra rebentara.
Habituara-se a não prolongar hipóteses se não dispunha de meios para as concretizar. Tinha o mito da eficiência. Precisava de se sentir sólido, era o que dizia, de ver-tebrar convenientemente os seus projectos.
Durante os primeiros dias que se seguiram à conversa com o detective ardera em curiosidade, mas também chegara a arrepender-se de meter mais alguém nas suas preocupações. Aquela espécie de jogo, porém, acabou por empolgá-lo. Jadwiga estranhou a sua mudança de humor; há muitos meses que o não via sorrir sem esforço, só por cortesia. Talvez por ser um pouco anafado, Leo requintava-se nas reverências e no prazer de se tornar amável. Era um dos tiques da sua profissão.
Mas agora via-o realmente afectuoso, como bom amigo. Fora assim que prometera comportar-se quando ela regressou ao hotel, em Paris, depois dos dias passados
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no quarto de Bóris, mais para recordar Julien (ou a sua mocidade?) do que para viver uma aventura mal imaginada. Leo nunca lhe perguntava agora onde passara a tarde. E deixara de a perseguir com aquele olhar ansioso e penetrante com que parecia querer entrar dentro dela.
Pensava em lembrar-lhe o jantar combinado com Pedro, mas adiava também, cansada das suspeitas de que Leo a acusara no dia em que voltaram do consulado. E mais talvez ainda, sim., é 1550, começo a ficar apavorada com este apego de Leo pela bebida, ele está a destruir-se, eu não posso, não devo empurrá-lo para o suicídio, embora tenha queixas dele. Mas teremos de ser dois inimigos? É forçoso que o sejamos?!...
Nunca gostara de esperar. A liberdade concedida pelo pai desde muito jovem tornara-a voluntariosa, mais por atitude do que por temperamento. No fundo agia um pouco contra essa independência, ganha logo depois da morte da mãe. Agradava-lhe dispor dela, porque isso a fizera notada nos meios juvenis da alta sociedade vienense; porém magoava-a simultaneamente, por saber que a desfrutava como resultado da vida afanosa do pai, a quem sobrava tempo para todas as coisas menos para ela. O seu socialismo universitário não tivera outras raízes, embora depois, com o namoro de Otto, quase acabasse por entusiasmá-la. O pai era ainda, no fundo, o seu verdadeiro namorado. Achou que precisava de magoá-lo, tão profundamente quanto pudesse. Se ele era capitalista, e os vermelhos lutavam contra a plutocracia, julgou poder reconquistá-lo por esse caminho. Ele havia de lhe falar, supunha, e, então, poderia dizer-lhe o que pensava do desinteresse a que a votava.
O pai divertira-se quando soubera dessa história de Jadwiga afixar panfletos revolucionários, desfilando também pelas ruas de Viena com os operários grevistas e os
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estudantes. Era ela quem empunhava uma das bandeiras das hostes socialistas.
Informado de tudo, o pai disse ao jantar:
«- Soube que fizeste hoje um sucesso com a bandeira vermelha. Ficava-te bem... Ainda me ri por causa disso com os meus colegas da administração. Um pouco de socialismo na juventude não faz nada mal; conhecem-se melhor os inimigos e os seus processos quando atingirmos a maioridade. Só te peço... é o que te peço: evita conflitos com a polícia; podem não te conhecer e ferir-te.»
Ficara estarrecida com essas palavras. Desejara uma explicação com o pai, mas nunca esperara ouvi-lo falar-lhe naquele tom chocarreiro. Só lhe pediu licença para se levantar da mesa; e a correr, a correr desesperadamente, foi meter-se no seu quarto e aí, de porta fechada, soluçou de cabeça metida debaixo da roupa, para que ninguém a ouvisse chorar.
Dias depois abandonava a Universidade e pedia ao. pai para passar uns meses em Paris. A vida aventurosa que ali fizera entre Montmartre e o Quartier Latin, frequentando artistas e estudantes, até se tornar a companheira efectiva de Julien, constituíra a sua desforra a esse ultraje de Viena. O pai prometera frequentes vezes encontrar-se com ela, para visitarem juntos a Normandia e a Bretanha. Os negócios nunca lhe consentiram essa viagem, esperada por Jadwiga ansiosamente, como um reencontro com o seu verdadeiro amor.
Escrevera-lhe uma carta exaltada. Em resposta, o pai mandara entregar-lhe um automóvel, o seu primeiro automóvel privativo. Era um modelo convertível, vermelho. Do socialismo restava só o gosto pela cor.
E a estúrdia acendera-se mais, juntando ao automóvel uma casa isolada perto do Bosque de Vincennes, onde se
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-uniam rapazes e raparigas que liam e professavam o Kama-Sutra, o livro da alta sociedade hindu de há dois mil anos, erigido em Bíblia do amor devasso daquele grupo assanhado de antiburguesismo.
Mais velho do que ela vinte anos, Julien julgara-a empolgada com a depravação a que a levara. E quis juntar-lhes à intimidade permanente uma rapariga da Martinica, uma mestiça que viera a Paris com um grupo de bailados exóticos.
Fugiu nessa mesma noite da casa do Bosque de Vinennes, abandonando tudo. E apareceu em Viena, atingida por uma depressão nervosa que a levou ao catolicismo e a região dos lagos de Salzkammergut. «Preciso de me lavar de toda a ignomínia», era só o que pensava entre a bruma daquela melancolia. Acabou por se instalar em talistatt, entre as faldas de uma montanha coberta de florestas e o Halistãtter See, um lago maravilhoso. Aí, no meio das recordações de uma velha civilização pré-histórica, tão velha como o Kama-Sutra, sararam as feridas do seu amor transferido do pai Goldstein. E quando ele lhe apresentou Leo com tantos adjectivos, Leo colaborava na VOEST, a dominadora da indústria pesada de Linz e Weis, Jadwiga resolveu acolher-se àquele casamento protector, sem entender ainda que o seu desinteresse pela vida era mais uma metamorfose da queixa permanente que guardava do egoísmo do pai.
Sim, é isso, começo a ficar apavorada com este apego de Leo pela bebida, ele está a caminhar para o suicídio, e eu não posso, não devo empurrá-lo para o suicídio, embora já nada se possa salvar entre nós. Mas deveremos ser dois inimigos? É forçoso que o sejamos?!...
Lembrava-se das semanas passadas em Halistatt, naquela hospedaria onde Urmann lhe preparava o
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schnitzel vienense, o seu prato predilecto, e lhe ensinava» com as preces a S. Floriano, patrono dos incêndios e das inundações, algumas das valsas de Franz Lehar e Oscar Strauss, inspiradas nas paisagens esplendorosas da região do sal e do bucolismo. O Salzkammergut, que também imprimira certa cor à música de Brahms, insuflara no pai e em Leo um interesse, quase amoroso, pela indústria hoteleira da região dos quinze lagos.
Sentiam-na cada qual à sua maneira.
Jadwiga considerava essa permanência como a cura «das suas pequenas podridões antiburguesas». E acrescentava, piscando o olho para o pai: «onde aprendi também, e creio que definitivamente, a ornamentar, com orquídeas e lirismo de valsas, as gangrenas mais fundas da nossa alegria cosmopolita.»
Nunca lhe chegaria a dizer que Hitler também nascera na Alta Áustria, em Braunau, junto ao Inn, afluente do Danúbio das valsas azuis, e que em Mauthausen, e das pedreiras de granito -- como é belo o granito polido! -, descia-se aos Infernos alguns meses depois. 75 000 homens morreram nas pedreiras de granito de Mauthausen entre 1 de Outubro de 39 e 1 de Maio de 45. Mas Jadwiga não poderia, sequer, suspeitá-lo.
Certa noite, ao jantar, Leo recordou o convite que tinham feito a Pedro.
Quando saíram para o salão da entrada do hotel, um paquete entregou-lhe um ramo de flores.
-Apaixonados em Lisboa? -perguntou Leo exuberante.
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Jadwiga ficara um nadinha nervosa, sem adivinhar. Mascarando o seu contentamento, Leo arrancara-lhe das mãos o cartão de visita que acompanhava as rosas vermelhas. E depois dissera com voz dura:
-Avisa esse senhor de que és casada... Passou-lhe o cartão e ela riu. Também quem poderia ser?!...
- Fazes tão mal o papel de apaixonado - acrescentara para o distanciar.
O marido já não a ouvia. Ocorria-lhe o relatório entregue depois do almoço, numa pastelaria, e que Elisabete traduzira com certa dificuldade. Nem a mais leve suspeita. Jadwiga passava as tardes com uma amiga de Viena, chegada antes deles a Lisboa. No hotel desta, numa casa de chá do Chiado ou no cinema. Nem sombra de homem, a não ser a permanente perseguição dos apaixonados fatais das esquinas. O do consulado saía do escritório e metia-se em casa. Era casado. Sem filhos. As suas companhias habituais não eram politicamente recomendáveis.
- Quando achas que deveremos insistir no convite?
- Tu é que o deves fazer - respondeu Jadwiga.
-Eu, porquê?!...
- Não estamos em Viena, Leo. Estamos em Lisboa.
E aqui, segundo tu me lembraste...
-São os homens que trabalham e se divertem...
-E fazem, portanto, os convites aos amigos e conhecidos.
Seguira-se um silêncio. Voltava ao espírito de Leo o enigma do desinteresse daquele homem.
-Tens visto Herr Doktor Klemm? - perguntou Jadwiga.
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-Esta manhã... Voltou a pedir-me dinheiro para a Resistência. Já sabe que nos legalizaram os passaportes.
- Não achas estranho que ele te fale da Resistência?
Leo fez uma expressão de dúvida e de indiferença.
A dobadoura do ciúme voltara a prender uma nova ponta, girando-lhe no espírito. Lentamente.
PEDRO
Não sei bem onde li estas palavras, talvez uma parte me pertença, mas não sou capaz de joeirar as origens.
Leo, o marido, pareceu interessado em descobrir as minhas ideias. Mostrei-me reservado. Ter-lhe legalizado uma situação falsa, não significa, nem poderá significar, que mereça a minha confiança. Há sempre necessidade de esclarecer bem o que é um aliado provisório. Esta gente, de resto, nem poderá considerar-se aliada. São vítimas recentes e transitórias. E vítimas destas podem tornar-se, num momento, ainda mais cruéis do que os inimigos actuantes, pois nunca deixarão de o ser, e sucederá, fatalmente (estou a exagerar com este «fatalmente»), e poderá vir a suceder, que, com a pressa de retomarem o lugar nas suas fileiras, se tornem ainda mais cruéis do que aqueles que os perseguem.
Há sempre alguma coisa a recear dos que chegam à última hora a um ideal. Lembram-me aquelas fitas de Charlot em perseguição: ultrapassava quase sempre quem perseguia, depois girava com o pé no ar e a bengala em rodopio para continuar a correr, e novamente ultrapassar o perseguido. Os que chegam à última hora têm quase sempre muita pressa.
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Li aquelas palavras em qualquer livro, ou escutei-as?
E quando Jadwiga me falou das notícias recebidas de Viena, e Leo lhe acrescentou o pormenor do filho da porteira do seu escritório, repeti-as:
«-A mediocridade é o grande perigo. Em tudo... O homem medíocre numa civilização evoluída não será mais do que um idiota. Ou um conformista... Mas numa civilização medíocre, como a nossa, o medíocre só pode ser um desesperado. E o seu desespero, a aflição extrema desses homens sem mérito e sem esperança, atira para a vida com todas as suas terríveis disponibilidades de ódio. É essa a força do nazismo.
- Está pessimista - interveio Jadwiga em voz sumida.
- Não, não estou. Os pessimistas são espectadores, foi Guizot quem o disse. Eu luto contra isso, tanto quanto posso... É o mal da minha classe: o pessimismo e a mediocridade. E eu procuro avantajar-me a ela, embora nem sempre o consiga.
- Acha que uma revolução realmente socialista possa acarretar esse perigo também?
- Ignoro-o, minha senhora. Que sei eu disso? Mas penso que os medíocres não deixam de aparecer também nas horas sangrentas de todas as revoluções. O medíocre é aquele que está sempre a clamar pela morte...
- Como os tais que chegam à última hora - lembrou Jadwiga.
- O medíocre chega sempre depois. É o robot da nossa civilização. Desta civilização frenética que forma todos os dias milhões de homens quase sem vida interior, onde foi que li isto?, sem vida interior e disponíveis, portanto, para a monstruosidade. De nervos esgotados e força nos músculos, são de um egoísmo feroz...»
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Jadwiga fitou Leo, e este pareceu ficar inquieto.
O jantar acabara. Quiseram que fosse com eles a um dancmg; «gosta de jazz?, há aqui música de jazz?»
«- Certamente! - disse Jadwiga.
- Pode indicar-nos um, onde se esteja bem? Devemos festejar a possibilidade de ficarmos em Lisboa - acrescentou Leo. -Esta noite é de homenagem a si...
- Então dispense-me o dancing - respondi. -' Preciso de me deitar cedo.
- Deita-se sempre cedo?
-Nem sempre...
-O que faz nessas noites?
- Estás a ser incorrecto, Leo!
- Desculpe-me, mas acho que não, se eu responder como penso - disse para Jadwiga. E voltando-me para Leo: -À noite, trabalho quase sempre... Escrevo. Gosto de escrever.
- É poeta? - perguntou Leo com um sorriso de escárnio nos olhos raiados de sangue.
- Sou» - respondi por cumplicidade.
Já nos tínhamos levantado e saímos para a rua. Estava uma noite amável. Corria uma brisa marítima que convidava a passear. As luzes das ruas ofendiam a claridade suave do céu e o fogacho de uma lua plena deixava-se resvalar suavemente na noite.
Jadwiga ia no meio dos dois, de cabeça erguida, como. se quisesse coar nos olhos a cintilação das estrelas. Passeávamos em silêncio, como se cortássemos clandestinamente a penumbra das ruas tristes. Eu gostaria, posso. confessá-lo, de andar assim até de madrugada.
«- Está uma noite para si - disse Leo já fatigado. (Parecia, pelo menos, fatigado.)
- Está uma noite enganadora - respondi.
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-Ouve as vozes do silêncio?» - perguntou Jadwiga, tirando o chapéu.
Nos seus cabelos dourados o luar meteu os dedos. «-Não disponho dessa magia -respondi para tornar a conversa misteriosa.
- Julguei que os poetas tinham esse segredo...
- Nem todos.»
Leo quis regressar ao hotel. Jadwiga propôs-lhe que me fossem levar a casa.
«- Não, não, obrigado» - disse atabalhoadamente.
Estava a pensar em ir sozinho. E fui.
Aqui estou a recordar as palavras que trocámos. Quando chegar a casa vou ainda escrever algumas linhas;
preciso de as escrever. O ofício é duro. De vez em quando há necessidade de voltar ao princípio, esquecendo tudo o que se julga ter já aprendido. Mas nesta noite, até de madrugada, devo aproveitar a transparência que sinto agarrada ao sangue. No meio da angústia com que quase sempre escrevo, essas linhas ou páginas hão-de sempre distinguir-se. Seria curioso que um escritor anotasse, na margem dos seus livros, os factos e as pessoas que o acompanharam em cada momento. Saber-se-ia muito mais do fenómeno literário e do escritor. E dos homens também.
JADWIGA
Podemos ficar em Lisboa, acabou-se a suspeita por toda a gente que nos olhava mais demoradamente, pêlos. homens que paravam defronte do hotel, pelos que me seguiam na rua, desapareceu essa forma de pânico visível,
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mas agora afigura-se-me que essa ansiedade era ainda uma maneira de nos iludirmos, de jogarmos com o essencial, de não nos apercebermos, de eu não me aperceber, que iria ficar perante esta impressão de soterrada, soterrada e impotente, porque ficou comigo alguém a quem fui amarrada, o que torna tudo inútil, como se a inutilidade fosse o único horizonte aberto aos nossos passos.
Não receio a morte, mas o sofrimento, a permanência constante deste sofrimento premeditado por qualquer força, que não pode ser a de Deus, a menos que estejamos a cumprir à Sua determinação, em que os Hebreus seriam com opróbrios e tribulações feitos um espectáculo.
No fim de tudo, ao cabo de tudo, neste fim limitado e ilimitado que é a existência de cada ser e a existência da vida, ou agora só existirá a dor?
quando julgamos atingir a saída do subterrâneo onde nos metemos, onde fatalmente teríamos de nos meter, procura-se, olha-se à volta, sem sabermos que estamos cegos, e já começámos a jornada por outro subterrâneo de toupeira, sempre amarrados um ao outro, por um labirinto de subterrâneos cheios de falsas saídas, como se pudéssemos tomar o gosto brutal pela ignomínia e pelo insólito, que é bem o destino dos refractários à compreensão plena de um mundo imaginado para nós; digo nós, e direi nós, não sei se para sempre, bem consciente da vacuidade do caminho e da dor, e com a consciência plena de que todos os nossos caminhos, mesmo os aparentemente mais largos, só poderão ser agora, e quando muito, os rios subterrâneos que nunca mais poderão irromper para a luz aberta da vida plena.
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Rios que parecem vivos, porque hei-de evocar sempre os rios? e ainda o estão, mas se perdem irremediavelmente; a nossa experiência está decepada de todos os ramos e já não dará sombra a ninguém, já não aproveitará a mais ninguém, nem a nós, porque só a quererão os mortos.
«Que os mortos enterrem os seus mortos e os chorem» era o que dizia Otto muita vez, a propósito do meu pai e da nossa classe.
E aqui estamos, e aqui vamos, vazios, inúteis, frustrados, gloriosamente frustrados, e absurdos.
Absurdos como os crimes que estão a cometer-se em nosso nome; o que irá ainda suceder mais?
Ocorre-me a pantera que Rilke cantou, não sei se foi exactamente assim:
... O seu olhar está de tal modo fatigado com a passagem contínua pelas grades, que não fixa mais [nada
parece-lhe que há milhares de grades e para além desses milhares de grades, não há mundo...
Absurdos aos olhos da verdade, que tem os olhos compostos e facetados como as pedras preciosas, as borboletas ou as moscas, e neles recebem as imagens por mosaicos complicados, em que cada fragmento corresponde a uma faceta, e a que sempre faltam pedaços, às vezes
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os mais importantes;
saberemos alguma vez o que é mais importante?
Aprendi na Universidade que uma borboleta do grupo das Esfinges possui 27 000 facetas nos olhos, mas que só vê de perto. A verdade deve ter mais ainda, porque vê de longe, vê para dentro de nós e para além de nós, e está sempre a transformar-se, a colher o real e o absurdo, e a ganhar novas facetas nos olhos, abandonando as que se tornaram caducas, mas não as esquecendo, com a memória prodigiosa do pássaro de arribação ou da enguia.
Não seremos nós próprios, e eu também, borboletas tontas pela luz da vida que penetra, de repente, nos rios subterrâneos das nossas paixões, turvas e densas de frustrações ambíguas, e permanentes?
Foi Kafka quem escreveu numa carta, mais ou menos isto: «com a cabeça cheia de tantas interrogações, quantas moscas há neste prado.»
Lembro-me da mosca dos olhos de ouro, a Chrysopa Vulgaris Schn???., com grandes asas de gaze amarelo-rosado ou verde-claro, corpo verde, cabeça pequena com olhos dourados, salientes, muito brilhantes, munidos de milhares de facetas, e que voa ao crepúsculo, como eu agora, como vivem os que são como eu, neste crepúsculo dos deuses, dos homens-deuses, cujas larvas monstruosas, tal como a mosca dos olhos de ouro, sugam até à morte os animais de que se alimentam, deitando para as costas os despojos das suas vítimas, como os peles-vermelhas que penduravam no arção da sela do cavalo as cabeças escalpelizadas dos inimigos.
Somos a larva da mosca dos olhos de ouro... Cobrimo-nos com um manto estranho dos despojos das nossas vítimas, e agora estamos angustiados porque também nos vão devorar aqueles que nós armámos e alimentámos com as tetas monstruosas das nossas riquezas
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de rei Midas, a quem Dioniso conferiu o poder de transformar em ouro tudo aquilo em que tocasse, esquecidos de que o deus da riqueza é Pluto, e Pluto cegou, não tão cego que não levasse Aristófanes a pôr na sua boca:
depois que me possuem e se tornam ricos, a sua perversidade não tem limites.
Com milhares de facetas nos olhos, como a mosca dos olhos de ouro, ou as borboletas, e, ao mesmo tempo, cegos, como os cegos pedintes de Brueghel, que vão estatelar-se nus atrás dos outros, rindo-nos sempre dos que vão à nossa frente, sem percebermos que iremos cair também nos poços da ignomínia e do tédio, porque tirámos tudo da vida, tudo o que o dinheiro pode dar na vida, desvairados, a cavar nas minas de ouro, esquecendo as minas da sensibilidade e da inteligência.
Estou talvez a deixar-me enredar na mesma vertigem da pantera, falta-me personalidade, certamente, é a voz de Otto que me atormenta nos desfiles socialistas de Viena, as charangas e os corais, Avanti Popolo, quando devia exultar que se nesta luta cruel da vida humana em sociedade, fomos nós que ficámos com a melhor parte, é porque somos nós os melhores, os mais aptos, os verdadeiros condutores das massas humanas, e que esta fase transitória de crimes e humilhações não será mais do que um tributo a pagar, de vez em quando, por todos nós.
O dinheiro prolonga o homem, como Mefistófeles o diz numa das falas do Fausto, de Goethe, se puder pagar a seis corcéis não são minhas, porventura, as suas forças?
eu corro e sou um verdadeiro homem como se tivesse vinte e quatro pés... por isso cheguei a Lisboa, por isso mesmo iremos até onde houver terra para repousar, prolongados e salvos pelo nosso poder, há ainda a África, há ainda a América,
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mesmo que a Europa se perca, o meu pai nunca deixou de conseguir aliados, nunca nada está perdido, diz ele, quando ficamos com a lucidez suficiente para não enjeitarmos quaisquer aliados, sejam eles quais forem, depois se verá, mesmo que tenhamos de nos ligar aos que vencemos, para esmagar os que antes nos ajudaram a vencer; preciso agora de esmagar em mim esta tendência para enredar, para querer solidarizar-me com os que ficaram, deleitando-me no horrível, como em criança, porque a Jangada da «Medusa» está ainda a ser conduzida por nós, e nós já provámos que somos os melhores.
Preciso de vencer este prazer pelo horrível, deve ser essa agora a minha preocupação, porque os ecos destas ondulações do inconsciente terão de ser abafados em mim, de maneira a que possa continuar ainda, e sempre, até ao fim, esquecendo-me daquela mulher que morreu queimada no jardim da minha rua, era eu ainda criança, nunca mais a esqueci, mas gostava de esquecê-la agora.
Passava ali todas as manhãs, estava ela com o cão, eu ia para a escola, já a minha mãe morrera, e ela tinha uns cabelos compridos e muito louros, de um louro mais brilhante do que os meus, e eu ficava quase sempre a espreitá-la pelas grades até que ela dava por mim e me perguntava pelos meus estudos, que queria eu ser? Se ela soubesse o que hoje sou!
e eu respondia-lhe, quero ser intelectual, e ela aproximava-se da grade, fazia-me uma carícia no rosto, e eu pensava, gostava de pensar, que era ela a minha mãe e a tinham levado para ali, porque naquele jardim era o lugar da morte;
certa manhã comecei a ouvir gritos, lá ao fundo, gritos que tenho aqui, aqui dentro de mim, como os da mulher a gritar na estação de Viena, e pus-me a correr, corri
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muito, muito, ia sufocada, e então cheguei às grades e vi uma mulher a arder e a fugir, uivava como um cão, cheirava a carne assada, era um cheiro acre e doce ao mesmo tempo, e eu gritei com ela, veio gente, veio muita gente, e depois ela caiu, já não valeu a pena levarem-na, estava morta, diziam todas, e puseram-lhe um pano por cima, deixaram-na ali,
» eu pus-me a chorar mais e gritei, porque não a levam para casa?
explicaram-me que não podia ser, que tinha de ficar no mesmo sítio, antes que o médico viesse com a polícia não a podiam retirar dali.
Estive uns dias doente, andei meses a sonhar com ela, ,i identificar-me com ela, era a minha mãe que morta da segunda vez, e quando pude voltar à escola, aproximei-me da grade, como se conseguisse vê-la e falar-lhe, mas só vi a mancha queimada, a mancha da erva queimada no sítio em que ela acabara de arder, e ao pé, de cabeça entre as patas, só estava o cão que brincava à volta dela todas as manhãs. Chamei-o, ele conheceu a minha voz, veio a correr, lambeu-me a mão que eu meti por entre as grades, e depois voltou mais apressado ainda para o mesmo sítio, como se estivesse a fazer falta à mancha queimada do jardim. O cão ficou ali todos os dias até morrer também, nunca mais bebeu uma sede de água, nem engoliu qualquer coisa que lhe deram para comer. Queimou-se também, quis morrer também, e foi isto, descubro-o agora mais lucidamente do que nunca, foi isto que me deu uma espécie de devoção pelas coisas horríveis, porque aquilo caiu dentro de mim como a maldição bíblica, e também como a fidelidade que o cão tivera, e que todos nós deveríamos sentir pelos que sofrem...
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Não seria isto também que me fez andar com Otto pelas ruas de Viena?!...
Andamos todos atrás do desconhecido, temos a mania do desconhecido, mas deixamo-nos ficar ignorantes de nós próprios, sem sabermos o porquê das nossas reacções e dos nossos dramas íntimos, sem eu saber, por exemplo, se neste subterrâneo onde caí amarrada a Leo, será melhor o gosto da certeza e da morte lenta, se um de nós matar o outro;
o que sucederia?
se seria mais fácil depois arrastarmo-nos para fora com o companheiro assassinado, se deveria esperar-se que a morte viesse adormecer os dois inimigos solidários.
Dois inimigos solidários...
Leo deve estar a dormir, mas dorme mais sossegado do que é costume. Talvez agora tenha reencontrado a sua eficiência, a sua calma eficiente. Mal o ouço.
LEO
Jadwiga está repousada, nunca a vi dormir tão bem;
se não receasse acordá-la, iria vê-la à sua cama. Deve estar a sorrir.
Talvez seja possível reconquistá-la e acabar por esquecer o que me fez em Paris com Bóris. Ainda não disse ao pai Goldstein o que se passou, não são coisas para se tratarem por carta, mas preciso também de lhe dar confiança, fazendo-o esquecer que sou o filho do velho Samuel.
Perdi nesse dia, em que o meu pai apostou com o pai de Jadwiga, a maioria absoluta na assembleia dos altos
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fornos de Steyr e nas minas de ferro de Erzberg. Mas ganhei a VOEST, o direito exclusivo de transportar pelo Danúbio o carvão para os altos-fornos de Linz, o Danúbio é meu, será meu quando morrer o pai de Jadwiga, porque, suceda o que suceder na Áustria, o pai Goldstein tem muitos braços, pode chegar a toda a parte, até junto da secretária de Hitler e agarrar-lhe na mão para que ele escreva o que nós quisermos.
Tivemos de recuar; não aceito a ideia de fuga. Com a Áustria e o país dos Sudetas, o Grande Reich completou-se. E com o tempo nós regressaremos para nos apossarmos da VOEST, da Farben alemã, dos ramos químicos que temos em França e na América, nos caminhos-de-ferro do Próximo Oriente, que. é o caminho da nossa expansão para a Ásia, na cadeia de hotéis de turismo da Áustria e da Suíça, no petróleo e nos automóveis. Preciso que o pai Goldstein tenha mais confiança em mim, que deixe de me colocar em lugares secundários, embora diga considerá-los fundamentais. Tenho de chegar à direcção do Banco.
Mas aqui o que vou fazer?
Vejamos concretamente. O melhor de tudo seria tornar Jadwiga na minha verdadeira mulher. Julgo essa hipótese perdida. Então tentarei levá-la à resignação, fazendo-a entender que não vale a pena mudar de marido. E o meu amor por ela?!... E os meus ciúmes permanentes, que não há maneira de saber dominar?!...
Se esta situação acaba, se caducam os dois passaportes falsos, Jadwiga teimará em se separar. Não possuímos filhos e já não será possível agora que ela os tenha de mim. Casámos com separação de bens. Ficarei quase pobre. É possível, contudo, que o pai Goldstein não queira escândalos, embora a sua força nos jornais os faça calar a respeito da filha e dizerem tudo o que quiserem a meu
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respeito. Mas a lama agitada suja toda a gente. Ele não quererá a sua lama revolvida.
Poderei negociar com ele as condições do divórcio, tanto mais que nos casámos religiosamente. Ainda bem. Tive de abandonar por causa disso a religião hebraica, mas valeu a pena. Ele tem de me entregar outra vez, e pelo menos, o dinheiro roubado ao meu pai. Mas é isso o que realmente me interessa?
Não, não é isso.
Preciso de me tornar compreensivo para ela, e é isso que me dói, isso será o pior de tudo, a ferida mais funda de todo este drama, até que ela compreenda a conveniência em continuar a ser minha mulher. E tornar-me ainda, e antes disso, imprescindível ao Goldstein.
O pior é o tédio que esta vida passiva arrasta consigo. A falta de acção corrói-me. Devo fazer passar o tempo sem pensar... Como é terrível pensar! E bebo, estou a beber de mais, deito-me tarde.
Leio os jornais ingleses, comparo as cotações por hábito, fico a fazer conjecturas sobre a situação económica mundial, como evoluirá, o que poderemos nós fazer?, só a borracha, o petróleo e o aço continuam a subir, estamos mal ligados à borracha, os Ingleses não são amigos em que se confie nestas coisas...
Mas são tudo hipóteses nas quais não posso agir. Não gostei nunca da abstracção. Na pintura é divertido, claro, o pai Goldstein compra agora pintura abstracta, dizem os entendidos que vale a pena, deve vir a vender-se muito. Mas a abstracção nos negócios é o vazio. E o verdadeiro homem de acção precisa de lutar.
Aqui luto contra o tédio.
Comprar as coisas não é o pior. Estava a pensar que compro o esquecimento no whisky e o amor em Elisabete.
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Isso não tem importância. É até bom que assim seja, pois «i tinindo ??? deve habituar-se sempre a comprar do que gosta. Só assim a indústria poderá prosperar. Mas o terrível é comprar e não resolver. Estou aqui a fazer bolas de saluío, a jogar com a inutilidade. E o tempo a roer-me, como mio a petiscar um bocado de queijo. É deprimente.
Já vi o que isto aqui dá. É um país pobre. Cortiça, azeite, vinho. Para passar o tempo, interessaria. Mas aqui nem ao menos posso negociar. A não ser... Sim, é uma hipótese. Estou a pensar nesse tal Pedro Dias. Podia fazê-lo meu sócio. Ele abriria um escritório de importações e exportações, eu estaria por trás... Enfim. Mas ele sabe que o meu passaporte é falso, estou nas suas mãos. Um dia denuncia-me, ou resolve dizer-me, acabou-se, pronto, acabou-se! E acabou-se mesmo. Assim não é possível.
Jadwiga dorme. Também eu dormia sem preocupações se fosse a filha do Sr. Goldstein.
Vou sempre aparecer na mesma praça por mais voltas que dê. A avenida principal de Viena chama-se Ring, é o Anel. Anda-se à volta, tem vários nomes, mas é sempre o Anel e vamos dar sempre ao mesmo sítio. A minha vida também é um anel. Acaba sempre no Goldstein e isso quer. dizer Jadwiga. E Jadwiga não me ama. Agora estamos ligados por dois passaportes falsos, e o falso é que é o autêntico, o que me serve. Seria curioso se não fosse trágico. Enquanto esta situação se mantiver assim, serei o seu marido. Afinal, vendo bem, devo isto aos nazis. Serei o genro do Goldstein enquanto os nazis perseguirem os Judeus. E eu sou judeu.
Sou um judeu que conseguiu fugir.
Não sei por quanto tempo será possível manter este equívoco.
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Entretanto, há o amor de Elisabete, o bar e este sol admirável. Que lindo país!
Já não é mau... Já é ter alguma coisa.
Se fosse capaz de me resignar aos desvarios de Jadwiga, tudo estaria certo. Não restam dúvidas que a informação me garantiu nada haver contra ela. Mas. quem garante que ela própria não comprou o polícia a quem paguei?...
Aí está uma dúvida! Mais uma!
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CAPÍTULO QUARTO
Leo pôs-se a contar a Jadwiga como decorrera a sua primeira lição de Português, queria fazê-lo com graça, no fundo para esconder o que lhe parecia ser um sinal de fraqueza. Confessar à mulher que se considerava só, impotente para esmagar o tédio, diminuía-o. Faltavam-lhe as ocupações, os amigos. Sara, mais Sara do que qualquer outra coisa ou pessoa, o Café Mozart, aquela pequena casa de chá sobre o Danúbio onde ia passar alguns momentos. Assim, de um dia para o outro com toda a vida cortada das raízes verdadeiras, não seria estranho sentir-se deprimido. Mas não queria confessá-lo a Jadwiga;
bastava que ela o adivinhasse.
Indicaram-lhe o anúncio, um pouco por brincadeira, «Senhora livre dá lições de Português, em seis meses compromete-se a pôr os alunos a falar correctamente», número do telefone, Lisboa, ele acabara por admitir que o saber não ocupa lugar seria até útil aprender português, o Brasil ia ser uma grande nação, se o pai Goldstein não conseguisse que ficassem em Portugal. Em lugar de se meter na pastelaria e ter de aturar o Klemm, o Münzer, o David. Sim, o David Goldsmith, o das minas de sal de Halistatt, não conseguira safar o filho, parecia doido, estava doido.
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«- Lembras-te daquela senhora um pouco ridícula que ficava sempre junto à porta da entrada da pastelaria? Sim, miudinha, mas com uns restos de beleza... Devia ter sido linda! Apareceu morta debaixo do comboio. Ontem. Desastre... Sim, no fundo um desastre encadeado no grande desastre que todos vivemos, depois que começou a gritar-se na Europa central 'Juden raus!', fora com os Judeus!»
Havia diariamente novos motivos de alarme para eles. Cansava. A permanência da obsessão já ultrapassara os limites, sem saberem realmente até onde iriam as fronteiras do sofrimento humano. Só alguns anos mais tarde essa medida seria encontrada. Essa espantosa fronteira da capacidade do homem em resistir para viver no universo concentracionário.
O pior de tudo eram as manhãs e a parte da tarde, depois do almoço, até às cinco; depois havia o bar, para Leo havia o bar e Elisabete, e para Jadwiga o cinema, o chá com Irma e as montras.
-Meti-me num táxi, dei o endereço e bati à porta. Um terceiro andar. Apareceu-me uma mulher com quase cinquenta anos, uma montanha, de cabelos amarelos, incríveis, a fumar por uma boquilha de marfim; vestia um robe chinês, azul, com um enorme dragão vermelho nas costas... A pouco e pouco ela tornou-se no dragão vermelho. Meteu-me numa sala com as janelas cerradas, porque será que os Portugueses fecham tanto as janelas?, com um sofá forrado de veludo e o piano com um xaile espanhol a tapar-lhe a frente, foi só o que vi de começo no meio daquela barafunda de coisas, de almofadas, de leques, muitos leques, jarras com flores de pano, tapetes vários, uma pantera...
Jadwiga lembrou-se da pantera de Rilke, outra vez da pantera entre grades.
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-Um tapete de pantera, foi o que me pareceu. E então pôs-se a mostrar-me os quadros, as fotografias que estavam por toda a parte, enchendo as paredes e atravancando as mesas e o piano. Era ela. Por toda a parte só ela. Grande, mas mais magra. Apontava a fotografia, punha a mão no peito, e dizia «eu, sou eu, fui bailarina», tinha a mania de passar por bailarina oriental, por isso talvez fumasse naquela boquilha que lhe prolongava a boca como uma tromba. Umas vezes ficava triste, noutras ria. Era mais suportável na tristeza. Quando ria, o corpo balouçava-se todo e o robe abria-se, deixando ver os seios enormes e aperreados, pareciam dois melões, dois grandes melões já maduros... Apontava o nome das coisas e obrigava-me a repetir tudo, até as cidades onde dizia ter bailado. Não deixou uma cidade europeia...
- Talvez seja professora de Geografia - disse Jadwiga.
- Depois olhou o relógio, sentámo-nos, quis que nos sentássemos no mesmo sofá, e pegou-me na mão, e disse:
isto é a mão. Eu sorri-me... Ela fingiu-se um pouco perturbada quando lhe apertei a mão e lhe disse outra vez, «isto é a mon»; ficámos ali a teimar muito tempo, eu a dizer a «mon», ela a dizer é a mão. E, de repente, a bailarina oriental pôs-se a ladrar, ao, ao, ao, e eu comecei a rir, porque entrou um cão de verdade, um cão branco e felpudo que me ladrou também, como se viesse ensinar-me a dizer mão. Ela enxotou o cachorro, mas eu ria, ria, ela voltou e eu continuava a rir, paguei-lhe, ela escolheu uma das notas de vinte escudos da carteira, e saí a rir, a dizer-lhe ao, ao, até que ela afinou e me bateu com a porta na cara.
- Devias continuar - disse Jadwiga, a rir também. Calaram-se. Depois Leo rompeu o silêncio.
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-Vem hoje comigo ao cinema; poderemos» telefonar a Irma.
- Vamos, sim. Não vale a pena. Irma terá de namorar o seu português. Leo alarmou-se.
-Porque te espantas?..,
- Disseste um português?
- Disse um português. Estou a falar claro. Irma quer ficar na Europa, e nada a fará recuar. É divorciada e pode casar-se. Convém-lhe casar com um português para ficar. Ela e as filhas...
-Mas lima...
-Parece-te um fenómeno, Leo!
- Nunca julguei que uma vienense pudesse admitir um absurdo desses.
-Trata-se de um homem...
- Achava mais natural que ela procurasse um negro. Entendes agora?... Um português é um híbrido. Não gosto de coisas indefinidas...
- Foi Herr Doutor Klemm quem to disse?
Leo sentiu-se ruborizar.
- Não me achas capaz de dizer uma coisa dessas? Porque havia de ser o Klemm?
-Ele disse-me o mesmo...
- Pode ser que me tenha ouvido.
Jadwiga aceitou a explicação e levantou-se.
- Vamos ao cinema.
Meteram-se no cinema para queimar o tempo, seriam quase três horas, era o momento pior de passar. Jadwiga não queria deitar-se depois do almoço, pesava mais meio quilo desde a sua chegada a Lisboa, e Leo adormecia sempre que se atirava para cima da cama, de dia adormecia e de noite ficava alerta, se não bebesse ficava alerta.. atormentado pela insónia.
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Era também a melhor hora para encontrar mulheres sozinhas, descobrira Leo, numa tarde em que seguira Jadwiga e a vira entrar para um cinema. Fôra uma trégua di??? vida de clausura das mulheres deste país.
Estava-se a caminho do Verão de 1939.
Havia as que apareciam em grupos exuberantes, como se levassem galhardetes no olhar; outras vinham juntas, mas sentia-se a inquietação que as minava, taciturnas, ainda incapazes de gozarem plenamente aquelas horas de liberdade, enquanto os maridos não saíam do trabalho, não fossem ter algum encontro inesperado; outras vinham exactamente para os encontros da escuridão da sala, aproveitando-se das intimidades que proporcionava, como numa antecâmara de amor; algumas procuravam o acaso do companheiro que lhes coubesse ao lado, às vezes a lotaria também sai, e devoravam os estudantes, os desempregados, todos os homens, quando eles estavam de costas, mas pareciam assustar-se se algum deles lhe apanhava o olhar aceso.
- Vêm todas aqui imaginar a sua traição - disse Leo.
- Exageras...
- O cinema chama muita gente pelo mistério da semiobscuridade.
- Talvez - respondeu Jadwiga. - O quadrado mágico que é o animatógrafo não explica tudo. Mas há os que vêm por motivo idêntico ao nosso, para gastar o tempo...
- Quando é o tempo que nos gasta.
- Pior do que ele só o tédio, a fera de Baudelaire; a mais terrível de todas.
-'E Baudelaire não conheceu o nosso tempo...
-Todos os tempos são dramáticos, Leo.
A campainha tocou e entraram para a sala.
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-Repara: mal falam uns com os outros, ninguém ri... Não há uma palavra mais alta - sublinhou Jadwiga enquanto seguiam a arrumadora.
- Parece que a maior parte da assistência está aqui clandestinamente - respondeu ele.
- Ou na aula dum professor severo - ciciou Jadwiga já sentada.
-Aguardando um interrogatório...
As cabeças dos espectadores moveram-se ainda durante uns instantes, entravam retardatários, sempre apressados, e Jadwiga lembrou-se do que Pedro lhe dissera, como fora?, qualquer coisa dos medíocres que vêm sempre depois, já não o via há uma semana, um dia destes telefonava-lhe. Para quê?! Realmente, para quê?!...
Depois a sala aquietou-se e ficaram ambos no subterrâneo, nas trevas do subterrâneo, amarrados, pensou Jadwiga, com a tela iluminada ao fundo, parecendo que as silhuetas das pessoas eram montículos de trevas naquele caldo de claridade ligeira. Leo quis segurar a mão de Jadwiga, mas ela afastou-a, lembrando-se das grilhetas que os prendiam; ele pensou na sua primeira lição de Português e fez uma careta de repugnância. Passava um documentário do Japão. Pensaram ambos no eixo Berlim-Roma-Tóquio. Nem aqui... Nem aqui...
Leo começou a mover-se na cadeira, coçando as pernas, estendendo-as depois, para logo as encolher e voltar-se para o lado oposto ao que tomara Jadwiga. Olhou para o tecto, depois correu o olhar pelas paredes; abanou-se com o chapéu e respirou com enfado.
- Vou-me embora - disse para Jadwiga. Ela acenou a cabeça.
- Não vens?
- Para onde queres que vá?
- Passear...
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- Não, vai tu.
Leo levantou-se com arrogância e rompeu até a coxia, obrigando um casal, de mãos agarradas, a erguer-se também.
Para onde vou a esta hora?!...
Elisabete chegava sempre à volta das seis, era o seu romper da aurora, mas o bar estava aberto, embora sonolento como era hábito.
Então Leo sentou-se numa cadeira qualquer, disposto a ficar mais um bocado. Agora na tela apareciam os desenhos animados, lá vinha o gato e o rato espreitava-o, o rato vai enganar o gato, com certeza; e nós o que somos? Deviam servir bebidas nos cinemas, mesmo dentro da sala, agora apetecia-lhe começar já a beber. A música tornou-se estridente e irritou-o.
Espreitou ainda para a fila onde Jadwiga ficara sentada e depois saiu. Ia com pressa agora, como se tivesse qualquer coisa importante para fazer.
O porteiro olhou-o espantado, porque Leo ia a falar em voz alta.
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CAPÍTULO QUINTO
JADWIGA pensava na batalha entre Fausto e Mefistófeles para a conquista do cerne do homem, do seu nó interior, quando via Leo regressar pela noite dentro, ora agressivo, fazendo barulho até acordá-la, ora combalido e tímido, como se fosse um adolescente, receoso de chegar tarde e de ser castigado. Nestas ocasiões mais raras queixava-se à mulher da sua fraqueza, talvez a pedir-lhe cumplicidade. Ela assim o deduzia, porque Leo, nesses momentos, falava sempre no mesmo: «Se o pai Goldstein sabe da vida que faço aqui, estou liquidado, não te parece? Ele nunca me perdoará... Mas não sei o que é isto. Creio que tenho medo de mim... de ficar sozinho comigo.»
Ela procurava ajudá-lo.
Conhecia a causa daquela depressão. Recordava-se das raras férias passadas com o pai e do sofrimento que lhe adivinhava, quando não vinham telegramas ou telefonemas das fábricas ou dos escritórios das empresas. Descobria-lhe a irritação nos mais pequenos gestos. Uma bebida mais quente ou mais fria, a demora na preparação do banho, qualquer coisa insignificante lhe servia de pretexto para abrir os seus espinhos de ouriço, como ela lhe dizia, a sorrir. E o pai de Leo, o velho Samuel, não se suicidara, só porque não se sentira capaz de preencher a vacuidade dos dias condenados à ausência dos seus negócios
191…Goldstein, o pai de Jadwiga, tomara-lhe as fábricas, mas nunca se esquecera de lhe manter os rendimentos certos. Mas ao velho Samuel não importavam só os lucros. Interessava-lhe a acção, o poder intervir; não suportava aquela impressão de invalidez. Cortara as carótidas. Morte horrível. Fora ela quem descobrira o velho Samuel no quarto da mansão que ocupavam em Velden, na Caríntia. Pusera-se a gritar, mas depois reparara nas cartas escritas pelo suicida e guardara-as. Tivera o pressentimento de que o pai era apontado como o assassino do amigo, já o percebera nas conversas, quando partiam em digressão para a descoberta de mais algum dos duzentos lagos de água quente da Riviera austríaca.
Lera as cartas, dera-as ao pai para que ele tomasse consciência das consequências trágicas da sua ansiedade de domínio, e depois tirara-lhas das mãos, indo queimá-las num bosque, mesmo nas traseiras do palacete.
«-O velho Samuel era um fraco... Foi sempre um fraco - dissera Goldstein.
- Não devias ter aceitado a sua proposta - respondera Jadwiga.
- Ele perderia tudo naquela altura e de qualquer maneira. Estava em pânico. O craque americano tê-lo-ia levado ao suicídio... Ele era um suicida.
-Não o creio, pai; não, não, não o creio. O velho Samuel seria capaz de lutar. Roubaste-lhe essa possibilidade...
-Não sabes o que estás a dizer. Cala-te!»
Mas fora a partir daí que Goldstein começara a preparar Jadwiga para casar com Leo, como se assim pudesse tapar as culpas pela morte do amigo. Ela adivinhara-o, julgara-se desinteressada em construir uma vida sua, depois do fracasso com Julien em Paris, e acabara por aceitar, embora se mostrasse pouco conformada.
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Agora lembrava-se de Fausto e de Mefistófeles, via o velho Samuel deprimido ao seu lado, projectando-se no filho, no marido que o pai lhe escolhera e tinha agora de acompanhar enquanto existissem aqueles passaportes falsos. Leo devorava-se lentamente todos os dias. Naqueles meses, mais agora naquelas semanas, sentia-o consumir-se no fogo lento do tédio, como se pouco mais tivesse do que a carapaça exterior de um homem. De um homem que antes se embriagava com o poder da sua eficiência, e agora se rendia, pouco a pouco, à necessidade de esquecimento por qualquer preço.
O programa de Mefistófeles estava a cumprir-se, como Goethe o escrevera:
«- Que ele coma poeira e o faça com prazer.»
Algumas vezes com desespero, mas quase sempre com prazer, pensava Jadwiga, vendo o marido deitado sobre a cama, inerte, sem uma contracção no rosto cheio e lívido, inile??? avultavam uns olhos redondos de espanto, mesmo quando reflectiam abatimento.
E Leo não lhe contara, não era capaz de lhe contar, o tempo passado naquela tarde dentro de um dos bancos que vira abertos, só para voltar a sentir-se mais perto da ma vida. Por ali estivera olhando o movimento das caixas, as que pagavam e as que recebiam, os cheques apresentados e as fichas de metal, o preenchimento dos impressos para depósitos, o pagamento das letras, o cantar dos números das fichas e dos nomes pelos empregados da tesouraria.
Sentara-se a uma das escrivaninhas que tomavam o centro do salão, para daí observar melhor o estado de espírito dos que entravam. Havia os que escreviam quase letra a letra, preocupados, abrindo várias vezes as pastas sobraçavam; e, alinhando números, somavam e deduziam, tinham gestos bruscos de desânimo, e acabavam
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por entregar, num dos balcões, o documento preenchido, receosos e corteses, todos reverências para os empregados que os acolhiam com aquele ar profissional, distante e afectuoso. Outros irrompiam apressados, olhando o relógio grande do fundo e confrontando as horas com o seu; dirigiam-se a um funcionário, cumprimentavam-no e subiam, a correr, as escadas que levavam aos andares superiores. Todos vinham preocupados. Só vira, naquelas horas, três clientes com o ar seguro de quem está em casa sua. Esses foram atendidos imediatamente, tudo se passou depressa. Em certa altura surgira um velho que levara quase meia hora a passar um cheque. Tirara e pusera os óculos vezes sem conta, empunhara a caneta e abandonara-a sobre o livreco, sempre com expressões de dúvida; nos intervalos das suas indecisões, abanara-se com o chapéu, limpara a boca com o lenço, correspondera ao aceno de um dos empregados e, quando entregara o cheque e recebera a ficha, não largara o balcão, à espera de qualquer coisa importante que parecia recear. Por fim, veio um funcionário calvo e magro devolver-lhe o cheque. O velho movia os braços com frenesi, embora falasse baixo, deitando-se sobre o tampo, a franzir o rosto, a piscar os olhos.
Leo não vira o resto, porque um outro homem, em quem já reparara, veio perguntar-lhe o que desejava dali. Ele limitara-se a encolher os ombros, mas o homem falou-lhe em francês quando lhe disse que o não compreendia, e então Leo teve de mostrar o passaporte; de repente assustou-se, ao verificar que tinham desconfiado dele, podia ser um ladrão, no Banco Goldstein de Viena também havia polícia privativa para impedir os assaltos, e abalou mal deu as explicações, envergonhado por lhe ser interdito explicar quem era, não fossem ainda segui-lo e apanhar-lhe a documentação falsa que exibira.
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Nunca se sentira tão vexado.
Tivera aquela ideia, surgira-lhe ao passar por um dos portões de ferro, e entrara feliz, quase feliz, como se houvesse descoberto uma maneira de passar, de vez em quando, algumas horas daquela vida sem sentido. Sim, Incute??? era absurdo explicar que gostava de viver dentro dum banco, ao menos algumas horas; iriam julgá-lo louco se o confessasse.
Atirara-se para dentro dum táxi, mandando seguir para o bar onde se encontrava com Elisabete. Ela ainda não chegara. O empregado chamou-lhe a atenção para jutiii nipariga, uma loura, miudinha, como se fosse ado-Tiniriitc; ela sorriu-lhe, baixou-lhe a cabeça e ele fingiu não compreender o gesto. Começou logo a beber. Elisabete «pareceu acompanhada de um rapaz, foi sentar-se num dos altos do balcão e dali fez sinal a Leo para virm. Sentiu vontade de interferir naquele derriço, obrigando-a a vir para a sua mesa, houvesse o que houvesse; mas por entre o nevoeiro do álcool, Leo compreendeu que nem isso lhe consentiriam.
«Que posso fazer, afinal?», gritou em alemão.
Viraram-se todos para ele. Algumas raparigas riram com os companheiros de mesa, outros olharam-no com desdém, e entre esses a jovem que lhe sorrira e agora se vingava a da sua afronta. O criado aproximou-se e pediu-lhe, em voz baixa, que não armasse escândalo; devia ser isso que ele queria, deduziu Leo, pela misturanga de francês, espanhol e gestos com que se lhe dirigiu. A sorrir, fingindo sorrir, Leo atirou-lhe um golpe à cara com a ponta dos dedos, e depois meteu-lhe na mão uma nota de vinte escudos. O criado afastou-se.
Era a última coisa de que Leo se recordava, estendido na cama do hotel, tendo Jadwiga na sua frente.
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E dizia-lhe com a voz quebrada:
-Não contes nada ao pai Goldstein... Se sabe disto,
estou perdido. Não me perdoa. E tu?!... És capaz de me perdoar, Jadwiga?
- Faz por dormir... Despe-te e dorme.
- Mas tens de me prometer que nada mandas dizer ao teu pai...
- Já te prometi. Agora não são horas de conversarmos.
Leo continuava imóvel.
- Vou apagar a luz.
Ele não lhe respondeu.
Foi então que Jadwiga pensou em arranjar uma preocupação para Leo. Talvez assim o arranque à bebida. Não somos dois inimigos... Estamos soterrados juntos, mais ninguém está ao pé de nós, mas nenhum ganhará em matar o outro, mesmo simbolicamente, uma vez que nos amarraram juntos. Um morto deve ser difícil de arrastar. Dois inimigos juntos devem acabar por surpreender sentimentos inesperados um no outro. Cada um deles sabe odiar, mas também sabe e pode amar. Seria bom que assim fosse. O Eclesiastes diz que há tempo para tudo, mas agora espantaram-se os cavalos do Apocalipse. «Há tempo de nascer, e tempo de morrer... «Há tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou...
«Há tempo de matar, e tempo de sarar...
«Há tempo de destruir, e tempo de edificar...
«Há tempo de chorar, e tempo de rir...
«... Há tempo de calar, e tempo de falar...
«Há tempo de amor, e tempo de ódio...
«Há tempo de guerra, e tempo de paz...»
- Em que estás a pensar, Jadwiga? - perguntou Leo num sussurro.
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-A pensar que há tempo para tudo...
- Menos para nos amarmos.
- Agora estamos a viver o tempo do ódio, para nós não haverá outro tempo...
- É pena.
Ela sentiu-o levantar-se. Percebeu-o pela respiração e pela sombra projectada na parede. Teve receio.
-Amanhã... Estás a ouvir, Leo?
Como se o tivessem apanhado a realizar o que apenas l" usara, que posso fazer, afinal?, Leo deixou-se cair pesadamente na cama.
- Amanhã - prosseguiu Jadwiga - vou ao consullado falar com ele.
-Com ele porquê?!...
-Temos de arranjar uma casa. Não posso continuar num hotel. Isto é frio...
- Com dois quartos, pelo menos, não é isso?
- Sim.
-Eu ia levantar-me, mas não ia ter contigo... Acrescentou!...
- Foi isso que combinámos. Sei que és um homem de palavra.
-Como o meu pai... Por isso morreu. Depois deu uma gargalhada curta.
- De que te ris?
- Estava a lembrar-me da rapariga com quem me encontro todas as tardes. A que é, de facto, a minha mulher... Sabes como ela me chama? «Mon petít léon», o meu pequeno leão. Foi por isso que me ri... Que dizes a pequeno leão?!...
Jadwiga calou-se, puxando para o peito a roupa e apertando-a nos seios. Leo deixou o silêncio abrir-se à vontade entre os dois.
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CAPÍTULO SEXTO
Venho buscá-lo - disse Jadwiga quando Pedro entrou: -Convido-o para tomarmos chá. Aceita? Pedro ficou embaraçado; não porque tivesse dificuldade em decidir, agradava-lhe a ideia, pois claro, mas pelo inesperado da presença dela, quase garrida, um nadinha provocante, fitando-o e sorrindo-lhe com os seus olhos amendoados, de íris brilhante, como se nela luzissem esmeraldas. Trazia um vestido verde-seco muito cingido, de decote rasgado num bico fundo.
-Parece admirado...
- Um pouco.
- Já desaparecera do seu mundo, é claro! A vida das pessoas para si acaba com o visto que lhes dá.
-Nem sempre...
E se lhe perguntasse outra vez por Wanda? Não, não posso brincar; da outra vez não ficou muito contente com a interrogação.
- No meu caso, pelo menos.
Queria ser-lhe agradável, mas receava exagerar.
-Não é bem isso... Tenho pensado em si e no seu marido. Foram muito gentis naquela noite. Foi uma noite agradável.
- Se o tivesse adivinhado, não demoraria tanto tempo nu voltar. Mas receei maçá-lo. Tem a sua vida de poeta.
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- Não sou poeta - respondeu Pedro bruscamente.
Jadwiga cerrou os olhos, balouçando a cabeça radiosa.
- Parece ter-se assustado com a palavra. Também aqui se acabaram os poetas?
- Não, minha senhora. O nosso génio, dizem, está na poesia. Mas a verdade é que não o sou.
- Quer tratar-me pelo meu nome? Lembra-se?
-Talvez não...
- Jadwiga. Trate-me por Jadwiga. Somos amigos, creio. Gostava, pelo menos, que me considerasse assim... Eu tenho muitas razões para o ser...
Pedro deixava-a falar, tentando apreender as razões que a traziam ali. Vejamos o que me queres.
-O Sr. Dias...
- Trate-me por Pedro.
-O Pedro foi até agora, depois da nossa fuga de Viena, a única pessoa que realmente tudo nos deu e nada aceitou. Foi maravilhoso!
Agora perturbava-o a insistência das palavras.
- Foi um verdadeiro poeta no que fez - prosseguiu Jadwiga: -Mas falando de poesia: eu creio que disse a Leo...
- Não disse, confirmei para simplificar.
- A conversa maçava-o.
-Não é bem... Achei despropositado falar-lhes no meu vício secreto.
- Todos temos os nossos.
- Qual é o seu? - perguntou Pedro.
- Agora nenhum. Ou melhor, vivo com uma obsessão: a de poder regressar a Viena. Daria tudo para voltar depressa.
- Talvez não demore muito - disse Pedro sem convicção.
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Jadwiga notou a frouxeza daquele alento.
- Di-lo convencido? Realmente, e lealmente convencido?...
Ele hesitou, apagando o cigarro.
-Que posso saber de tudo o que se passa?
- Está a querer iludir-me. E não vale a pena, sabe? Eu tenho a certeza de que não voltaremos tão cedo. Os nazis apossaram-se de Nietzsche, apesar de ele dizer com frequência que «onde a Alemanha chega, corrompe a cultura». Apossaram-se dele e deformaram-no ainda.
-O irracionalismo espalha sempre as sementes do ódio. E quando as contradições se agudizam... vem sempre a deformação.
- Não percebo exactamente o que quer dizer...
Pedro ficou chocado. Não fui claro ou disse mais do que devia?
- Quis dizer somente que toda a filosofia oferece pretextos aos subfilósofos.
- Sim, será isso - respondeu Jadwiga de rosto concentrado. - Mas Nietzsche considerou que a piedade só nos decadentes é virtude», que a compaixão é um pecado. ..
- Eu também não gosto, devo confessar, de qualquer das expressões. Ambas significam que alguém foi derrubado e precisa de clemência.
- É contra a clemência? Em si parece um paradoxo.
- Não, não é bem isso. Sou contra as condições que levam os homens a ter de a invocar. É diferente.
- Gosta, então, das utopias.
- Não. Gosto de pensar na possibilidade de se realizarem certas utopias.
- Esquece que o nazismo está em plena euforia.
- A ninguém é possível esquecê-lo. O nazismo é o princípio do fim duma civilização.
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O paquete espreitou à porta e perguntou se o pessoal podia sair. Pedro viu as horas.
- Temos de sair -• disse para Jadwiga. E para o rapaz: -Eu não preciso de mais nada. O Sr. Oliveira já assinou o correio?
- Está tudo pronto - respondeu o paquete, voltando a fechar a porta.
Jadwiga levantara-se. Pedro tinha-a agora perto de si; não podia dizer que estivesse imperturbável, tocava-lhe com o pensamento, puxando-lhe os cabelos louros para trás das orelhas; gostava de ver umas orelhas bonitas a descoberto.
- Mas estava a dizer...
- Eu preferia que não voltássemos a falar desses problemas. Sangram em demasia para os vermos com inteligência e sem emoção. Embora ache a emoção parte preciosa da nossa condição humana. Mas talvez por isso mesmo...
Pediu-lhe que esperasse num gesto de mão e saiu quase a correr.
Ela aproximou-se da janela. Encostou o rosto ao vidro e soube-lhe bem aquele contacto morno. Viera ali para ajudar Leo; julgara que seria preferível despertar nele o ciúme, a ilusão do ciúme, do que deixá-lo entregue à frustração e ao tédio. Talvez o faça por mim. Não suporto as suas bebedeiras, serei capaz de provocar uma cena irremediável ou fugir-lhe, e agora isso é impossível, tenho medo da cadeia, sim, tenho medo, tenho medo... Se fosse possível fingir que voltava a suportá-lo, já que nunca o amei, teríamos uma solução, mas essa hipótese não cabe no subterrâneo onde vivemos juntos. O meu egoísmo talvez acabe por nos destruir definitivamente. Este Pedro... que hei-de pensar dele?
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- Vamos?!
Jadwiga voltou-se e demorou um pouco junto da janela, como a convidar Pedro a aproximar-se. Ele não lhe percebeu a intenção. Ou não a esperava ainda. Era um homem de premeditações longas e julgava os outros por si.
Um corredor longo e escuro era o que lhe lembrava a casa de chá escolhida por Jadwiga, talvez por causa de Irma, que vivia num hotel quase ao lado. A luz estava permanentemente acesa, como se tudo ali dentro tivesse de ser artificial.
Pedro nunca ali entrara. Não podia dizer que se sentisse à vontade, o contrário seria mais justo, não só por falta de hábito em frequentar aqueles meios de convívio mundano, mas porque lhe parecia também trair ali dentro as personagens do romance que estava a escrever. Um romancista, porém, não deve enjeitar seja o que for... A experiência é ferramenta preciosa, tanto como a visão do mundo. Antes de tudo é necessário sabermos a quem se ama, de que lado nos colocamos, e a quem se odeia. Ou melhor: contra o que estamos, pois odiar talvez impeça que a experiência se aprofunde. Será o ódio alguma vez salutar?
Jadwiga continuava a mostrar-se simples, adorável, talvez por ter compreendido que Pedro se sentia diminuído ali dentro. A amiga, Irma, a divorciada que tentava um casamento para ficar em Portugal, era uma mulher bela que gostava de se ver requestada, um pouco distante de todos, como se assim a pudessem notar melhor, um tanto afectada na voz e nos gestos preciosos de bailarina. Senhora de um pescoço esguio, movia a cabeça em poses lentas, procurando sempre ficar de perfil para os homens que lhe estivessem perto. Gostava por isso de
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escolher as últimas mesas, encostadas à parede do fundo, e aí se exibia, como se expusesse um teorema acerca da maneira correcta, correctíssima, de uma mulher ser elegante num país de gente quase primária.
A timidez de Pedro ofuscava-a.
Por isso se pusera a falar do futuro noivo, um conde da melhor aristocracia ibérica, era assim que Irma se lhe referia, nesse gosto tão vienense pelos títulos, como se aquele plebeu, apresentado por Jadwiga, acabasse por se achar humilhado com a sua presença magnificente.
Era alta e magra, uma falsa magra, sempre preocupada com os seus cabelos fulvos e a boca grande, um tanto desdenhosa, que de vez em quando admirava no espelho fronteiro. Achava saboroso, saborosíssimo, casar com um latino, raça de gente apaixonada, e cortês; o noivo era de origem espanhola, um Castro, descendente longínquo de D. Inês.
- Ah, não conheces ainda a história de Inês! É um drama pasmosíssimo... Deves ir a Alcobaça logo que possas. Estão lá os túmulos dos dois. D. Pedro era o tipo do verdadeiro amante, do amante ideal para uma mulher que seja bela e goste de ser amada.
E deu pormenores, exagerando. Jadwiga desdenhava aquele entusiasmo da amiga. Como Pedro continuasse calado, perguntou-lhe:
- São assim todos os Pedros portugueses? Ele achou a pergunta ridícula, e mais ridículo responder-lhe. Gostara de subir com ela o Chiado e encontrar alguns conhecidos, mas parecia-lhe um tributo bem caro a convivência com Irma naquela casa de chá.
- Conheço dois Pedros... O meu avô, que foi segeiro e só comeu corações de perdizes, ao que sei. Era um grande caçador, segundo conta a minha avó. E eu... que nem caçador posso ser. Falta-me o tempo e a espingarda.
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Jadwiga achou graça e riu; Irma mostrou-se vexada, mas acabou por aderir à brincadeira.
- E no amor?
-No amor sou cauteloso...
- Receia-o?
- Apavora-me. Complico sempre tudo. Sou homem de extremos. Por isso me chego ao amor como um homem que vai à caça ao leão... sem arma.
- É casado?
-Os homens assim casam sempre cedo e mal. Têm o talento da asneira.
-E gostam de persistir, uma vez que continua casado - sublinhou Irma, deixando a mão direita suspensa e um pouco voltada, de dedos abertos, quase em concha, como se agarrassem um fruto.
- Somos de natureza resignada - retorquiu Pedro num sorriso, talvez tocado por uma certa amargura.
-Os Franceses dizem que os Portugueses são alegres...
- Sabem pouco a nosso respeito. De resto, não lhes interessa conhecerem-nos melhor. Bastam-se a si próprios...
- Os Austríacos são de alegria superficial e de tristeza profunda - disse Jadwiga.
- Mas Viena é uma cidade alegre, espantosíssima - acrescentou Irma quase num grito. - Nós temos o prazer da convivência, da música...
- E da comida - concretizou Jadwiga.
- E nós o da melancolia. Talvez porque tivemos um grande passado que não somos capazes de repetir - disse Pedro.
- E porquê?! - perguntou Irma.
- Não se entra duas vezes no mesmo rio...
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-Os nossos escritores autênticos são quase sempre desesperados. Talvez por uma razão idêntica. Rilke e Kafka são nossos - disse Jadwiga.
- Svevo é de Trieste - lembrou Irma.
- Talvez por ser de uma cidade que nunca sabe a bandeira que hasteará no dia seguinte - disse Pedro.
-Virá daí a sua melancolia...
-E a sua lucidez - acrescentou Jadwiga.
-Entre nós a melancolia dá agora imobilismo. Noutro tempo levou ao suicídio alguns dos homens mais inteligentes e sensíveis. Unamuno chamou-nos um povo suicida. Exagerava.
Foi nesse momento que Leo se aproximou da mesa, sem que os três dessem pela sua presença.
- Proponho-me acompanhá-los - disse Leo.
Beijou a mão que Irma lhe estendia, tocou no ombro da mulher e cumprimentou Pedro com efusão. Parecia satisfeito em encontrá-lo ali. O criado veio e pediu chá.
- Não, não, sem bolos.
E insistindo na oferta que fizera à entrada:
- Se vão suicidar-se todos, posso acompanhá-los. Por profunda adesão.
Irma sorriu-lhe. Pedro encarou-o com o desejo de adivinhar o que significavam aquelas palavras. Como dizia a carta recebida por Unamuno? Lembrava Antera, Camilo, Soares dos Reis, considerava o isolamento de Herculano outra forma de suicídio, e afirmava que «essas figuras de trágico desespero nascem, ou irrompem espontaneamente, como árvores envenenadas, do seio da terra portuguesa».
- Entre nós, alguém chamou aos suicidas árvores envenenadas.
Seguiu-se um silêncio longo.
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- «Árvores envenenadas» é uma expressão lindíssima - sussurrou Irma em pose.
- Mas terrível - respondeu Pedro.
- Não somos todos nós, agora, árvores envenenadas? - perguntou Leo.
JADWIGA
Só depois entendi o que significava uma certa alegria de Leo, era a primeira vez que o via assim, depois da nossa partida;
a primeira vez não, ele também voltara a reencontrar a segurança de outrora naquela manhã em que foi procurar Pedro para nos legalizar os passaportes, estava confiado, confiava na eficiência do nosso livro de cheques, e então, só agora o vejo claramente, sentiu-se derrotado, a humilhação tomou conta dele, até aí só o meu pai o pudera humilhar, e isso é terrível para os homens como Leo, o de compreenderem que a sua força se torna inútil, são como certos aços das nossas fábricas que nunca vergam, mas partem, e estes homens assim, habituados a dominar, quebram depressa quando sentem resistência, são mais fracos para a adversidade fora dos negócios. Aí eles sabem empolgar-se, lutar sempre, voltar todas as vezes necessárias até conseguirem a vitória, são lúcidos, são frios e inteligentes, fazem maravilhas de audácia e de poder construtivo, recuperam sempre, sabem que a confiança e a pertinácia dobram todos os obstáculos, são eles o próprio destino, como diz o pai, e quando acrescenta, com a ajuda de Deus, fá-lo só no que respeita à saúde, à luta contra a morte,
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porque a outra luta depende deles e só deles, da oportunidade dos golpes, pacientemente preparados, como sucedeu na altura do craque americano em que muitos perderam tudo e o pai triplicou a sua fortuna, foi ele que mo disse; nessa altura rejuvenesceu uns anos, até arranjou tempo para fazer umas férias comigo, apetecia vê-lo raciocinar e agir, foi com ele que Leo aprendeu a ser eficiente.
Mas fora desse mundo, desse mar de tubarões, como Otto lhe chamava, eles são fracos, quebram depressa, como se os tirassem da água, não se sabem mover fora daí, parecem estúpidos, ineptos para apreender a sensibilidade dos outros, para os dramas e as alegrias alheios, tudo lhes soa a falso e a mesquinho, e esvaziam-se rapidamente, cedem e frustram-se, como se uma petrificação interior os atingisse.
O pai mostrou sempre compreender tudo, nunca se importou com a vida que fiz, e fi-la por sua causa, sabia que nunca me faltaria marido quando eu quisesse, ou ele quisesse, falou de Leo, ainda discutimos, mas eu recordei-me das cartas que apanhara no quarto do velho Samuel quando se suicidou, e então cedi, cedi também por julgar que nunca mais amaria qualquer homem e não valia a pena lutar contra o meu pai.
Mas quando ele me falou dos futuros netos, e eu lhe disse «não, isso é que nunca, acho que os filhos são sagrados de mais para entrarem nesta história de mortes e de dinheiro», e lho disse com os meus olhos nos dele, vi-o quebrar à minha frente, gritar-me ainda, mas já estava perdido, eu sabia-o, e então insisti, precisava de tirar a vingança do seu desprezo de sempre e daquele casamento preparado para lhe descansar a consciência, e
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repeti: «não, isso é que nunca terás, netos nunca terás, eu sou a tua única filha», e quando ele me bateu depois, foi a primeira vez, eu já sabia, eu tinha a certeza que ele acabaria a chorar ao pé de mim, numa mistura de fraqueza e de manha, talvez eu assim cedesse...
Foi nessa altura que lhe pus as mãos nos ombros, ainda com o rosto queimado pelas suas bofetadas, e lhe disse:
seremos nós dois os últimos Goldstein; as últimas flores de qualquer planta são sempre as mais perfumadas, e as mais belas também.
E ele olhou-me, sem que conseguisse perceber se naquele olhar só havia ódio ou também resignação; só sei, e de uma maneira definitiva, que ele não terá netos de mim e de Leo, e nisso, que é importante, pelo menos para se sentir prolongado para além da morte, o que é fundamental para um homem como ele, o senhor meu pai acabou vencido, embora ainda possa ter esperanças na minha juventude; mas nisso eu não cederei, haja o que houver, tanto mais agora que o seu dinheiro pode perder força, já a perdeu, o que não me vangloria, apesar de tudo.
Ainda bem que ninguém sabe como penso, penso, logo existo, dizia Descartes, mas para nós o pensar é sofrer, penso, logo sofro; penso, logo me entedio; penso, logo me degrado; penso, logo me petrifico; penso, logo me destruo; somos as tais árvores envenenadas de que Pedro falou, a nossa seiva é estéril ou maldita;
ainda bem que ninguém sabe como penso, vêem-me por fora, e é agradável olhar uma mulher com menos de trinta anos, embora cumpra também o programa de Mefistófeles,
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no Prólogo do Céu: que ele (o homem) coma poeira e o faça com prazer.
Comecei a pensar na alegria de Leo e logo me desviei neste fogo de artifício com aparência de estrelas em todos os sentidos, estrelas já mortas quando saem para a noite; preciso de segurar esta ânsia atrabiliária de me destruir, pensando.
Leo apareceu alegre. Parecia alegre. E à noite disse-me, nessa noite não bebeu nem chegou tarde, que achava eu, se ele propusesse a Pedro abrirem ambos um escritório de importação e exportação, cortiças, vinhos e azeites portugueses, em troca de máquinas, talvez suíças. Leo daria o dinheiro e Pedro daria o nome, já que nós não podemos comerciar aqui, temos vistos de trânsito, somos turistas, turistas fugidos à violência e ao crime; eu disse-lhe «experimenta», ele perguntou-me se não seria bom, agora nada é bom, pensei eu, e Leo saiu contente, até assobiava, já se sentia a agir, mergulhando outra vez no mar donde o arrancaram, e onde tudo lhe era fácil e possível.
Saiu contente de manhã e eu fiquei a ler um livro, talvez a olhar um livro, como quem corre os olhos quase cegos por uma paisagem de horizontes fundos e pouco consegue ver, embora ontem me tenha sentido mais acompanhada com Pedro, mais do que com Irma, obsessionada pelo casamento e pela fúria sexual de um amante com quem ainda se encontra às escondidas do noivo, o tal conde qualquer-coisa; ela tem a mania dos títulos nobiliárquicos, embora o amante que a empolga seja um plebeu da casca mais grossa.
Gostei de conversar com Pedro, estivemos os dois a fazer um pouco de teatro, é agradável, adorei ser actriz quando tinha dezasseis anos, mas continuei sempre pela
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vida fora a representar vários papéis, e nunca me saí mal verdadeiramente, o teatro apaixona-me, mas sinto-me junto dele um pouco diminuída, talvez por lhe dever um favor, um grande serviço, e agora percebo as razões que levaram Leo a hostilizá-lo quando me fala dele; gostaria de lhe ter pago, talvez...
lembro-me de uma réplica de Racine, «aprende-se a uivar com os lobos», e ficamos estranhos se encontramos um homem com linguagem diferente, embora Leo possa ter razão quando diz que Pedro tem o cabotinismo da honra; ele sabe que nunca será como nós, pois falta-lhe a cultura, a coragem, a agudeza da inteligência, e por isso nos hostiliza com as suas recusas em ser remunerado.
Sim, Leo foi falar com Pedro por causa da sociedade - voltou furioso, irritado, há muito tempo que o não via vibrar daquela maneira, porque o outro recusou-se a fazer o que ele lhe pedia; se o ouvisses, contou-me Leo, naquele tom aparentemente modesto, a declarar-me que lamentava muito não nos poder ser útil naquilo, mas não era possível aceitar por várias razões, não, nada disso, não receava comprometer-se com a insegurança da nossa situação, mas tratava-se de um princípio pessoal que pedia para respeitarmos.
Leo esta noite vai regressar de madrugada depois de beber com a tal que lhe chama o seu «pequeno leão»; admiro-me como ele lhe consente o tratamento, parece uma ironia, e talvez beba ainda mais do que é costume, já arrependido, certamente, de me ter dito que não deixasse de acompanhar Pedro, precisávamos de o segurar de qualquer maneira, exprimindo-se com um modo quase feroz, carregado de insinuações.
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Sinto-me agora como Kafka quando descreveu o campo por onde passeava, «com a cabeça cheia de tantas interrogações quantas moscas há neste prado. Um tanto na situação desta flor aqui à minha beira, a levantar a cabeça para o Sol, quem o não faria?, mas que está cheia de receios secretos por causa dos acontecimentos cruéis que se desencadeiam nas suas raízes e na sua seiva; qualquer coisa se passa aí, se passa sempre, mas a flor só tem disso noções confusas, cruelmente confusas, uma vez que já não pode debruçar-se até lá abaixo, arrancar a terra e ir ver o que se passa, é necessário que ela se comporte como as suas irmãs e que se conserve direita, é de resto o que ela faz, mas está cansada».
Cheia de interrogações e de receios secretos, há qualquer coisa de novo que se passa na raíz e na seiva do meu ser, talvez curiosidade, talvez vingança, uma pequena vingança, ou desejo inconsciente de ter alguma coisa de novo, não porque Leo me falasse da conveniência em segurá-lo» nem pelas sugestões de Irma quando me descreve os seus encontros com o amante, não é isso o que eu sinto, embora a minha natureza não seja surda a esses apelos.
Sinto-me cansada como a flor interrogativa de Kafka.
E lembro-me da casa do Bosque de Vincennes.
Cá estou eu a teatralizar...
Pensara provocar ciúmes a Leo, mas só vagamente admitira (ou pensara-o já inconscientemente?) que Pedro fosse o instrumento dessa cura dolorosa para ambos, mais para ele do que para mim, agora que nada nos liga a não ser este egoísmo de nos salvarmos juntos ou. Perecermos juntos, ele a querer que a situação se prolongue para eu ser ainda a sua mulher,
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eu a desejar que tudo isto acabe para recuperar a minha liberdade, talvez para que o velho Goldstein deixe de ser o último.
Não começo a ceder?
Cedo, realmente, ao sentir desejo de uma pausa nesta angústia?
E será assim tamanho o nosso drama, o meu e o de Leo, uma vez que fugimos, e a fuga pode significar um sinal de esperança? Ou será que o medo ao sofrimento nos paralisou e já não teremos capacidade para achar a saída do subterrâneo?...
Otto, quando foi preso, contaram-me os nossos amigos, sofreu todas as torturas dos interrogatórios sem denunciar qualquer camarada. Andou de prisão em prisão, não sei se o meu pai o recomendou à polícia, e quando saiu mal podia andar, a voz quase se lhe apagara, era uma sombra, fisicamente parecia uma sombra, encontrei-o na rua, já eu voltara de Paris, fiquei assombrada, tive medo dele, mas Otto sorriu-me ainda com os seus olhos azuis e só me disse: «quando eu morrer, vou morrer dentro de pouco tempo, eles rebentaram comigo, não me lamentes, Jad, sei porque morro, assim todos soubessem para que vivem. O teu pai e eu sabemos, cada um pelo seu caminho, sabemos o que queremos e por onde vamos...»
E eu agora para onde vou?!...
PEDRO
Leo ficou chocado com a minha recusa. É natural. As duas vezes que se me dirigiu, não atendi ao que pretendia. Não procedi assim por ter qualquer coisa contra ele, embora
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não me agrade a sua convivência. Que tenho eu a ver com ele? Da primeira vez vinha com ar vitorioso, foi incisivo, não mostrou grandes hesitações em me estender o livro de cheques; era o argumento final com que sempre resolvera os seus problemas. Não podemos pretender que um sapo coaxe "cantos líricos de rouxinol.
Agora veio menos orgulhoso, mais humano. Não é humano o orgulho? Talvez quando eu o use, o que é uma forma cínica de supor empregá-lo com inteligência. Voltei a recusar. Não entra nas minhas ambições, e sou ambicioso, ter o meu nome numa sociedade comercial, não porque o lucro me repugne inteiramente, mas por saber que me absorverá de corpo e alma, e esta quero-a disponível para o meu trabalho de escritor das horas vagas e dos fins-de-semana.
Fui talvez um pouco rude na resposta. Não sei bem se com o meu temperamento não haveria nela a explosão de um recalcamento provocado pela cena do cheque. Às vezes não perdoo certos vexames...
Jadwiga veio procurar-me dias depois, não sei se com esperanças de me demover. Deve ter compreendido, finalmente, que lhe legalizei os passaportes para me sentir de bem comigo próprio.
Nada mais!...
Alguma coisa mais, porém menos importante do que aquela: uma mulher agradável pode suavizar certos melindres a que sou susceptível, embora os não anule.
Jadwiga explicou-me, e nunca a encontrei tão mulher, que Leo carece de uma ocupação permanente, de qualquer coisa que o preocupe e o faça agir; de outra maneira corrompe-se. Achei graça ao termo, embora lho não dissesse. O Leo das corrupções, das milhentas corrupções, com certeza, a aviltar-se agora, em Lisboa, só por motivo de desocupação efectiva. Algumas palavras têm, na verdade,
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diferentes conteúdos e significados, segundo a pessoa que as emprega; melhor, segundo a classe da pessoa que as emprega. Haverá um dia que fazer um dicionário dessas palavras mágicas.
O que é ordem e o que é desordem, o que é honra, o que é corrupção, miséria, família, dever, um nunca mais acabar de vocábulos facetados e estranhos, como nenhuma jóia existe, límpidos de um lado, negros do outro, com todas as colorações e meios-tons, e caprichos, e subtilezas.
Pois Jadwiga apareceu com uma dessas palavras mágicas na sua boca bonita. Só os dentes são um nadinha pequenos. Devia vir convencida de que resolvia a proposta do marido, tão exuberante chegou. E provocadora. Mostrou prodigamente os joelhos, descansou a sua mão sobre a minha e teve os seus olhos nos meus, mais tempo do que seria possível esquecê-los, se Wanda não surgisse, ali naquele mesmo sítio onde ela se sentou, a lembrar-me que certa manhã eu fora uma espécie de canalha lírico, no meio dos impulsos de um homem desejoso de ternura.
Wanda não me deixa, não me abandona, é o meu fantasma, o fantasma de uma frustração transformada agora num dever, como se a minha fantasia desse para a escultura, e, de um certo pedaço de barro, eu criasse uma forma límpida de ritmo envolvente. Jadwiga veio para me subornar pelo amor, julgo não me enganar, mas eu disse «não é nada» quando lhe entreguei os passaportes, e nada será, nada, muito menos com uma moeda que não aceito de uma mulher por quem começo a interessar-me.
E por quem não devo interessar-me.
Quero concentrar em mim toda a força possível para que isto aconteça. É um dever a impor-se-me com a ajuda de Wanda. Muitos deveres são frustrações. Este será um deles. Mas agora tenho de beber o fel do ultraje feito a Wanda, não por ter perdido essa batalha de amor; ainda
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agora não entendo como se desencadeou aquele vendaval em mim!, mas porque ela me pediu socorro e eu lho quis prestar, propondo-me destruir-lhe a vida, em proveito de uma alucinação minha.
Wanda ficará junto de mim para sempre, tenho agora a certeza. Mais talvez do que se tivesse regressado para aceitar a minha proposta.
LEO
Pressinto o perigo, vejo-o crescer e rolar, como se fosse uma avalanche a descer uma montanha. Tudo se congrega contra mim. Até os que põem máscara de amigo. Que posso eu fazer sozinho?!... Falta-me Sara, a coragem e o dinamismo de Sara. Elisabete não é um refúgio onde ganhe poder para agir. É toca onde me escondo, onde busco o esquecimento. Mas a memória não me larga, é um cão pastor que me deitou os dentes, mesmo quando julgo adormecer.
E quanto mais adormeço, mais sinto, ao despertar, a impotência de todos os gestos realizados.
Já deixámos o hotel. Jadwiga achava o nosso quarto frio como um túmulo. Parece mais feliz. Agora arranja a parte de casa alugada; passou a tarde de ontem a comprar cortinados para substituir os que havia, quis os móveis mudados de sítio e trouxe flores. Encheu os dois quartos com flores. E eu sei que nada disto é por mim. Perguntei-lhe para que se preocupava tanto com a casa, se amanha poderíamos abalar, e respondeu-me estar cansada de coisas provisórias. «Tenho a impressão de que
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assim conseguirei tornar a nossa vida mais estável. Precisamos de ficar em Lisboa», foi o que me disse depois.
Obrigou-me a pensar em Bóris e na sua fuga de oito dias em Paris. Nestas aventuras ela não obedece ao temperamento. É uma mulher fria. Mas empreende-as para não se sentir morta, talvez para me vexar, é o que penso, ou para medir até onde chega a minha passividade. Quando casámos, o pai Goldstein teve uma longa conversa comigo. E pediu-me que eu a compreendesse e a desculpasse sempre; ela acabaria por se cansar; é muito imaginativa, julga-se ainda na sua boémia com artistas. «É um lavor que lhe ficarei a dever, Leo», disse-me por fim. «O senhor tem de a ajudar a encontrar o equilíbrio e eu nunca esquecerei o que fizer nesse sentido.»
Passaram estes anos de martírio, forçando-me a esquecer o meu amor, na esperança de que chegasse o dia em que ela reconhecesse o meu carinho e a minha compreensão. uns dias antes de saírmos de Viena propôs-me o divórcio.
«- Tens alguém que te interesse?
- Não. Mas não posso viver mais contigo.
- Falta-te alguma coisa?
- Tudo.»
Fomos obrigados a fugir e viemos juntos. Comprei os dois passaportes. E agora voltei a ser o seu marido. Enquanto os nossos documentos forem falsos, serei o seu marido; talvez até à morte, se chegar depressa. O que temo não é o presente e o amanhã mais próximo, mas o que virá depois, quando tudo voltar à calma do passado.
Aquele homem agrada-lhe. Adivinha-se-lhe na voz. Jadwiga muda de voz, como certos animais mudam de cor.
Tenho a certeza de que ela está a esmerar-se na casa para o receber aqui. Pressinto-o. Já disse à senhoria para
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me dar conta de quem vier visitá-la. Que faria se os encontrasse?! Necessito de impedir uma situação mais clara.. embora gostasse de saber toda a verdade. A dúvida é terrível, mas antes a dúvida. Faço vida de rico e estou realmente pobre. Todo o dinheiro extraído ao pai Goldstein ficou depositado no banco e na casa de modas de Sara. Fui sempre cabeça de turco nos negócios do Goldstein; aparecia em muitas empresas só para que o nome dele se apagasse um pouco, mas tudo continuava a pertencer-lhe. Jadwiga nunca me ajudou a convencer o pai de que era justo possuirmos alguma coisa no nosso próprio nome. Ele sofre por não ter netos. Jadwiga nunca lhos quis dar.
Estou realmente pobre. Se nos separássemos em Viena poderia ainda ligar-me ao grupo do Vost, o grande rival de Goldstein, e seria possível recompor a situação. Mas aqui estou na mão deles. Só um acto de desespero da minha parte mudará alguma coisa. Mas para o irremediável.
Estou realmente disposto a isso?!...
Jogarei essa ameaça na altura própria. Mas até lá necessito nervos de aço para não perder qualquer oportunidade. Preciso de me dominar. O pior é que esta falta de acção me está a desfazer todos os dias, lentamente. Foi por isso que propus, a Pedro, a sociedade de importação e exportação. Também para o ter sob a minha alçada. Há homens a quem é necessário alargar as ambições. Eles são capazes de se aguentar dentro de uma vida modesta, mas mal saem dela e apreciam as facilidades que o dinheiro oferece, já nada os detém. Desvairam.
Também isso recusou. O que quer aquele homem?!... Jadwiga, com certeza! Joga pela parada mais alta. Há jogadores de tudo ou nada, e ele é um desses. O seu cabo-tinismo da honra é uma forma de se insinuar. Não encontro outra explicação para nos legalizar os passaportes sem qualquer exigência, repelindo também a minha proposta
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de sociedade. Nem ela o forçou a aceitar. E isso perturba-me as hipóteses.
A sociedade aproximava-nos. Seria mais fácil estar junto dela. Parece o caminho normal. Mas deve tratar-se de um jogador de tudo ou nada. Não quer cúmplices, mesmo que seja eu.
Veremos quem joga melhor!
Sou ainda o seu marido. Agora poderia exigir que não voltasse a encontrá-lo. Mas a ameaça com Jadwiga não resulta. Ela tem o pavor da cadeia. E eu também.. E ela sabe-o. Deixei a cobardia apossar-se de mim e carecemos desse homem. Estamos nas suas mãos. É isso que ele pretende, afinal. Nunca se pagar em dinheiro, porque a sua moeda é outra. Dentro de vinte dias recorremos a ele para pedirmos novo prazo de revalidação, se quisermos ficar na Europa. O pai Goldstein escreveu-nos a recomendar o prolongamento da nossa estada aqui, e isso é o que desejo por um lado; só assim serei o marido de Jadwiga, mas é também o que receio.
Esta manhã discutimos.
Falei-lhe outra vez de Elisabete para descobrir a reacção dela, e Jadwiga teve um assomo de orgulho ferido,. assim o julgo.
«- Escusas de me falar dos teus amores, Leo. Estamos dentro do convencionado e eu não costumo faltar ao que trato. Sei que és um homem. Por isso mesmo deves recato às tuas aventuras. Espero que por teu lado não esqueças de que também sou uma mulher...»
Preferi não lhe perguntar o que significavam exactamente aquelas palavras de duplo sentido. Ciúme também ou invocação do seu direito a ter um amante?!...
O seu olhar turvou-se quando me disse aquilo.
Convém-me aguentar a situação, ela poderá ainda precisar de mim, e talvez se resigne a vivermos juntos.
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Será o extremo da cobardia, mas é agora o único pensamento permanente a acompanhar-me. Retê-la junto de mim, de qualquer maneira. Pode ser que a sorte vire toda para o meu lado, inesperadamente. Um telegrama da Suíça, por exemplo, um simples telegrama: David Gold-stein faleceu ponto venham imediatamente ponto.
O coração dele está cansado. As fortunas conquistam-se à custa do coração. E depois falaremos, Jadwiga! Teremos muito que falar!
Estou a querer iludir-me, no fundo. Casámos com separação de bens e já vivemos duas vidas separadas.
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CAPÍTULO SÉTIMO
Gostavam de se ver ao lado um do outro, julgavam completar-se, «como uma parelha de cavalos», pensava ele, que ligava aos cavalos uma ideia de beleza e de força harmoniosa, ou «como dois pássaros encarcerados - e cegos», pensaria Jadwiga se, naquele momento experimentasse a habitual sensação de exílio.
«Uma parelha de cavalos atrelada a um carro de ilusões», precisaria Pedro no seu prazer de encontrar imagens.
Ele era alto e seco, não sei se já o disse, e vestia agora com mais apuro, por causa dos dias em que ela ia procurá-lo. Jadwiga dava-lhe um pouco acima do ombro. Levava um vestido lilás-rosado para se harmonizar com o fato verde-escuro de Pedro, era o fato que devia trazer, deduziu, pois esperava que pusesse a gravata oferecida por ela.
Dava-lhes prazer acompanharem-se, não só por eles, mas por descobrirem que muitas pessoas os olhavam com agrado. Então, fitavam-se e sorriam, seguros um do outro, embora nunca aludissem ao prazer tão gulosamente experimentado.
Faziam sempre o mesmo caminho, sem um desvio. Ela esperava uma sugestão diferente da parte de Pedro, ou uma pergunta - para onde vamos? -; só assim lhe poderia
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responder - para onde quiser -, embora fosse de recear que ele tomasse a resposta à conta de indiferença ^ a levasse para a casa de chá, de que ele não gostava, aquilo parece um túnel, um túnel cheio de coisas e de pessoas artificiais.
Tentava percebê-lo, em vão. Sabia pela sua própria experiência da rua e do cinema, e ainda pelo que Irma lhe contava do noivo, que os Portugueses nunca deixavam de exprimir os seus desejos por uma mulher. Mas Pedro naqueles meses de convívio nunca tivera uma alusão, mesmo vaga, a qualquer sentimento por ela. Nem a qualquer contacto, o que já não dizia Irma, que se queixara dele, considerando-o atrevido e inconveniente por lhe ter procurado os joelhos por baixo da toalha.
Caminhavam sempre muito juntos e nunca se tocavam. Tinham uma noção exacta de proximidade e de distância, uma espécie de equilíbrio, permanente e duvidoso, entre a segurança e a emoção do perigo.
Cá vamos a fazer o número das facas, do homem que estira as facas no circo e desenha com elas o corpo da mulher.
Junto dela, Pedro caminhava com maior firmeza;
sabia que os estavam a ver. Os conhecidos e os amigos descobriam-no, com certeza, e invejavam-no. Iriam julgá-los amantes. E quantas mulheres o fixariam? Talvez esteja a fazer uma boa sementeira... As mulheres gostam de competição.
Jadwiga libertava-se com ele de obsessões, ria com frequência, achava-o um bom companheiro para afastar as perseguições da rua. Adivinhava Leo a vigiá-los a distância, e entendia que o ajudava assim a sair do tédio. Estava certa de que isso sucedia, porque Leo ainda não lhe insinuara ciúmes por Pedro.
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Estavam agora a aproximar-se da casa de chá. Subiam o Chiado. A tarde estava quente, um pouco abafadiça. As pessoas moviam-se lentamente.
Como era hábito, talvez para se verem juntos no vidro da montra, Pedro parou numa livraria, pode haver por aqui algum livro que me interesse. Jadwiga pôs-se a seu lado, mas ele viu-a corar, é exactamente o que comprei com Julien, corar cada vez mais, fazendo um movimento para sair dali.
- O que foi que a perturbou?
- Nada. Idiota! Para que estou a sentir este calor?... Já tudo acabou...
- Nunca a vi tão vermelha, Jadwiga. Alguma recordação?
- Já não tenho memória, Pedro.
Continuaram o caminho em silêncio, como se o movimento das pessoas os distraísse. Pedro sentia-se humilhado. Que lhe teria ocorrido? Jadwiga perante aquela reprodução de Gauguin, ela comprara duas em Paris e oferecera uma a Julien para que se lembrassem sempre um do outro, sempre, meu amor!, revivera, ia a reviver pelo Chiado acima, toda a boémia artística e sexual da casa do Bosque, o automóvel mandado pelo pai, a bailarina mulata da Martinica, e o seu abandono de tudo, de tudo, de tudo que a levara a resignar-se ao casamento com Leo. Para nos lembrarmos sempre um do outro, sempre, meu amor!
Ela acabou por sentir o silêncio.
Pedro deixava-o prolongar-se por hostilidade, agora hás-de ser tu a falar, num daqueles súbitos ressentimentos, próprios da sua hipersensibilidade quase infantil.
- Irma hoje não deve vir - disse Jadwiga.
Penetrava no labirinto da sua imaginação, como se quisesse arrancar da memória os sedimentos das recordações acumuladas.
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- Foi encontrar-se com o noivo - prosseguiu no mesmo tom.
Pedro sentia que ela estava a pensar noutra coisa;
aquelas palavras não correspondiam às suas preocupações.
- Está a ouvir-me? - disse Jadwiga, irritada.
-Não, não estou -respondeu Pedro com firmeza e sem a olhar.
Depois arrependeu-se:
-O que dizia, afinal?
-Nada de importância... Falava de Irma... Para que nos serve a memória?
-E do seu conde, certamente.
- Fala sempre dele com desprezo.
- Não, Jadwiga, está a ser injusta. Não conheço o conde de Irma, mas aprecio-o muito. Muitíssimo, como ela diz, com o seu prazer dos superlativos.
- Está hoje irónico. Que farias se eu te contasse o que ela me disse da mesa? Do jogo por baixo da mesa?
Pedro preferiu calar-se.
Acendeu outro cigarro na ponta do que acabara;
depois cumprimentou um grupo de conhecidos que descia a rua e lhe dirigiu olhares significativos e elogiosos.
Vamos acabar com isto.
-Ficará muito aborrecida... diga sinceramente, se eu lhe pedir para me dispensar do chá?
Jadwiga alarmou-se, voltando a corar. Olhou-o depois com hostilidade.
- Mas não o quero reter, Pedro. Desculpe-me por ter ido procurá-lo... Mas o facto de Irma não vir... Que tal?.'...
- Não interprete mal, Jadwiga. Tens o segredo da diplomacia. Eu sou seu amigo e não de Irma. Irma não me interessa...
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-E eu?! Vais responder?...
-A Jadwiga já sabe que sim.
- Como meu protector... Fui mais longe do que devia. Bem preciso que me protejam.
- Que quer agora que lhe responda? Está a julgar-me mal...
- Desculpe, Pedro. Estou velha.
- Como uma estrela acabada de nascer.
- Não é a idade que conta, mas o envelhecimento moral. «Tenho mais recordações do que se tivesse mil anos.»
- Rimbaud?
- Não, Baudelaire.
A comédia corria mal naquela tarde. Qualquer deles se sentia pouco seguro do papel.
Mas Pedro resolveu entrar, embora Jadwiga insistisse em não querer perturbar-lhe os afazeres. Dizia-lhe aquilo e retinha-o com os olhos, não, não me deixes ficar só, continuo terrivelmente deprimida para poder ficar só.
A mesa do canto estava ocupada.
Ficaram um pouco desnorteados, como se acontecesse um imprevisto. O criado apressou-se a tirá-los de embaraços, indicando-lhes um lugar mais junto da porta de entrada. Quando se sentaram, Jadwiga agradeceu-lhe com um sorriso triste. O rosto de Pedro era mais grave do que habitualmente.
-Magoei-o há pedaço... Desculpe. Mas tinha realmente que fazer?!...
- Julguei conveniente retirar-me. Pressenti...
- Porquê?
-Tenho o olfacto apurado.
-Como um elefante.
- Sim, como um elefante. • Se quiser como um elefante. ..
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O criado veio servi-los, já sabia o que tomavam.
- Senti que a Jadwiga gostaria de ficar só.
- Enganou-se. Nunca precisei tanto da sua companhia. Como reages agora?...
- As pessoas enganam mais do que os perfumes da floresta. É mais fácil ser elefante do que homem... É uma frase. O que significa realmente?
- Também o julgo.
- Mas insisto em pensar que lhe ocorreram muitas recordações quando parámos defronte da montra. Aí o olfacto funcionou à maravilha; tenho a certeza.
De rosto um pouco baixo, como se a preocupasse o açúcar que deitara na chávena, Jadwiga acenou a cabeça. Pedro viu as duas veias azuis moverem-se por debaixo da pele de porcelana. Sentiu desejos de estender a mão para a dela, abandonada sobre a toalha, como a dar-lhe coragem.
- Quase todas as minhas recordações são agora dolorosas - disse num fio de voz. - O agora que vivo, é dramático em demasia para que os ecos do passado o possam suavizar. Tudo parece, pelo contrário, ter acontecido exactamente para este fim.
-Os dramas têm coerência muitas vezes. Mas não deve falar de fim, Jadwiga. É ainda jovem.
-Moralmente senil. Exagero?!... E esta senilidade acaba por arrastar à decadência física. Há uma interacção... Uma palavra de que Otto gostava. No mundo de hoje, estes seres marginais, como eu, destinaram-se ao desespero. Otto tinha razão; mas de que lhe serve?
-Como os marinheiros dos romances de Conrad.
- Como todos os desenraizados. Os personagens de Conrad são o próprio Conrad, fugido da Polónia, depois de sofrer o cativeiro do pai, repelido da França e acolhendo-se à Inglaterra. Kafka é outro desenraizado
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em busca duma pátria. Essa ansiedade marcou-os. É semelhante a de Svevo, cidadão de Trieste, encruzilhada de dois mundos que se debatem aí, e que acabam por arrastá-lo à resignação. Por isso o mundo romanesco de Svevo é dominado por gente abúlica, na qual as virtudes e os defeitos são igualmente planos, quase sem contornos e sem eficiência. Eu vivo agora um drama semelhante.
- Que poderá superar se quiser...
- É quase impossível, Pedro. Parece que duvido disto. Quis ficar demasiado à parte das realidades profundas do nosso tempo, quais?, vendo nisso certo sinal de superioridade. Nunca aprendi a agir, embora a minha vida pareça cheia de acontecimentos. Demasiado cheia. Mas são tudo acontecimentos marginais, desvios, maneiras de fugir ao essencial, vendo no essencial uma aparência, e numa aparência outra, e outra... Caí no labirinto. Sou também uma árvore envenenada, como você lembrou no outro dia.
- Tenha confiança... Aqui está a burguesia.
- Levei uma vida fácil em demasia para alimentar essa ilusão. Fácil em prazeres materiais. Julga que posso abdicar deles, sem me sentir profundamente infeliz e derrotada?
- Talvez... Se amasse, talvez. Estou a fazer jogo perigoso.
- Se tivesse filhos, talvez...
-Quem lho impede?
- Eu própria. Sem amor não se devem ter filhos... Sei demasiado da minha infância para preparar outra igual a gente do meu sangue.
-Devemos tentar sempre... Não tem coragem para recomeçar?
- Não. As árvores envenenadas devem morrer sem deixar raízes.
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Calaram-se.
O ruído dos automóveis lá fora, dos diálogos nas mesas, dos passos, do bater da louça, da campainha da máquina registadora, do telefone, das ventoinhas a trabalhar, tornava-se obsessivo e tormentoso para Jadwiga. Num impulso, ergueu-se e saiu, sem nada dizer a Pedro. Só parou à porta, à espera que ele a seguisse.
Leo postara-se no passeio fronteiro, a fumar.
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CAPÍTULO OITAVO
Se Leo não aparecesse naquele momento, teria pedido a Pedro que a levasse consigo, sim, para qualquer parte onde estejamos sós, como fizera há poucos meses, em Paris, com Bóris, como resolvera tantas vezes no tempo de Julien, quando o desespero subia nela em ponta de lança, sempre e sempre, até romper qualquer coisa que a retinha normalmente e lhe dava aquele ar distante e ambíguo. Procurava, então, nesses momentos, e ansiosamente, uma imagem do amor nunca alcançado por ela.
Porque se lhe recusava essa revelação inteira, de que algumas amigas falavam com deslumbramento?!... Ou estaria incapacitada de penetrar nesse mundo perturbador, onde outras mulheres se realizavam?!...
E buscava essa miragem, e interrogava-se, até cair, de novo, na apatia profunda de quem sente frustrar-se alguma coisa de essencial.
Tomara o eléctrico com o marido, no desejo de prolongar o momento em que ficariam sós, para que saí, afinal, do hotel?, sempre encontrava mais pessoas, distraía-me, ao menos, a ver pessoas diferentes, de aparência diferente... Percebia com amargura que iria provocar uma situação irremediável com Pedro, se ele desviasse sempre, com serenidade embaraçosa, o rumo das conversas equívocas.
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Um dia perguntara-lhe:
«- Onde poderemos passar um fim-de-semana tranquilo?!»
Vira-o mover o olhar num fogacho, mas logo responder na mesma voz pausada e colorida, como se estivesse a falar-lhe de um encontro de há muito ansiado:
«- Depende do que você e Leo pretenderem... Uma praia?! Neste momento é agradável passar uns dias à beira-mar. Eu prefiro as praias em pleno Outono, ou mesmo no Inverno, quando debandaram os outros como eu. Vá ao Baleai. É um sítio maravilhoso!... O pior é que nesta altura o hotel está fechado. Muitas praias morrem a partir de fins de Outubro. Mas a Nazaré, por exemplo... Vai gostar...»
E depois continuara a dar exemplos de cidades e vilas perto de montanhas, ou em plena vida campestre, não sabia o que ela e Leo preferiam, sublinhava sempre, forçando-a a calar-se, para não se obrigar a despir-se assim à sua frente, pior do que se ficasse nua, como se estivesse apaixonada ou fosse uma mulher que buscasse desvairadamente uma mudança de amor físico.
A verdade é que não sentia por ele qualquer desses estímulos.
Tinha curiosidade, isso sim, em descobrir o mistério daquele homem a quem as mulheres pareciam atrair, que a olhava, muitas vezes, com ardor e intenção, mas nunca esboçara um gesto ou proferira uma palavra significativa de interesse por ela. Talvez fosse um aberrativo, embora as aparências lhe desviassem a hipótese, um desses homens complexos e estranhos que se deixam amar, mas nunca amam, ou que sofreram qualquer choque nas primeiras experiências de amor e se inibem depois, vivendo sempre entre o anseio de o desejarem e o receio de se ferirem mais uma vez, e irremediavelmente.
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E quem é Wanda?! O Dr. Klemm falou-me de uma maneira cínica, mas Pedro fingiu não saber quem era. Ou não o saberia na realidade?!...
Achava válida a primeira ideia, e, então, ele seria um cínico, orgulhoso e cínico, habituado a esperar das mulheres toda a iniciativa, para depois as afastar sem problemas, deixando-lhes a culpa e com ela o pudor de provocarem as habituais cenas de abandono pelo homem. Estava enganado, se era isso que esperava.
Agradava-lhe a companhia, precisava dele, ainda há quinze dias nos conseguiu a prorrogação da permanência em Lisboa, mas nada de equívocos, nada de presunções, Sr. Pedro, tenho recordações de quem viveu mil anos, não iria diminuir-se aos seus próprios olhos para dar glórias a um pobre D. Juan ibérico e melancólico. A vida dera-lhe muitos traumatismos, sabia que por isso fechara algumas janelas dentro de si, talvez para sempre, não, preciso ainda de ter esperança, depois disto tudo, quando me separar de Leo, sempre é uma certeza, e não queria, não se achava capaz de continuar a viver com essa certeza. O que perturba não é a dúvida, é a certeza! Quem disse isto?!...
Leo tocou-lhe no braço para se apearem e deixou-se ir a seu lado, atravessando o largo, qualquer dia hei-de voltar ao zimbório, Lisboa é linda vista lá de cima, e depois sentem-se vertigens e percebe-se que será bom cair lá de cima, para quem tiver coragem, a caminho do jardim, donde vinham gargalhadas e gritos de crianças.
Talvez tudo viesse do seu tempo de criança, como o afirmara Freud, seu patrício vienense; já se deixara psica-nalisar em Paris, ela ainda o vira a passear no Ring, gostava de passear a pé, e durante uns dias ela fora o centro do grupo que se reunia num bistrot de Saint-André-des-Arts, por causa de Freud, de quem tivera de dar pormenores inventados ali à pressa.
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Chegara a lembrar-se, quando se deixara psicanalisar, como eu gostava de dizer isto, psicanalisar, alguns tinham medo e ficavam espantados comigo, de certos acontecimentos do seu primeiro ano de vida, da fúria com que se atirava ao seio da mãe, como se quisesse devorá-la, já eram os ciúmes pelo pai, dissera-lhe o médico, um jovem médico, com quem acabara por ter relações mais íntimas;
rememorara o seu comprazimento em bater no pai, como forma de o amar, quando ele acariciava a mãe à sua frente; tudo nela já eram frustrações e ciúmes, desejos dolorosos e irreprimíveis de o fazer reparar só nela, como sucedera mais tarde ao andar com Otto pelas ruas de Viena, empunhando a bandeira vermelha, ou fugindo para Paris e perdendo-se com Julien e no seu meio, tonta e angustiada, em busca de um refúgio, ou de uma libertação que nem na psicanálise encontrara.
Ficara descrente dessa experiência com o freudismo. Recebera tudo aquilo, como mais uma forma de bruxaria evoluída; complexos em vez de maus-olhados, sedativos em lugar de ervas santas, e o cerco das perguntas a substituir a fiada de rezas. Uma mentira dourada, só acessível aos ricos, embora pensasse que Freud não devia ser acusado dos 'maus discípulos que diziam segui-lo, para viverem à custa do seu prestígio.
Acreditava ainda, e nisso agora mais do que nunca, que toda a vida psíquica tem o seu eixo no instinto da reprodução. Lembrava-o agora ali, sentindo terríveis dores no ventre, ao olhar as crianças que corriam pelo jardim, e vinham, numa revoada alegre, em direcção ao portão por onde ela passava com Leo, como se se lhe dirigissem a acusá-la de esterilidade premeditada.
- Vamos depressa! Vamos depressa!...
À frente dele, quase fugira para a parte de casa alugada, subindo as escadas numa corrimaça, como se os
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risos das crianças fossem monstros a persegui-la. Depois fechou a porta com estrondo e atirou-se sobre a cama, apertando os ouvidos com as mãos.
Leo só disse quando chegou:
- Estás doida?
Fingiu não dar por ele, mas logo que ouviu os seus passos a afastarem-se, gritou-lhe:
-O que queres?!... Preciso de o hostilizar. Vieste todo o caminho calado.
- Nada tinha para te dizer.
- Ou muita coisa.
Ele percebia-lhe a dureza das palavras e do rosto, não desejava indispor-se; ia naquela noite ao Estoril com Elisabete.
- Não vejo então porque me persegues...
-Eu?!
- Sim. Vi-te atrás de nós desde o Rossio. Que resultados tiraste da tua vigilância? Não vês que te tornas ridículo? E a mim também... Porque não me falas dos teus ciúmes?
- Tu estás doida.
- Já mo disseste, mas não acredito no que dizes.
-Ainda bem, Jadwiga. Sossega.
- Não me queres contar o que lago te insinua?
- Deixa-te de intelectualismos. Não estás em Viena. Aqui a vida é dura de mais para devaneios.
- És tu quem sai todas as noites e volta embriagado. Podias ter um pouco de respeito por mim.
-Se tu não o tens...
- O que te disse lago? - insistiu Jadwiga com hostilidade. Cobarde! Não passas de um cobarde! - É segredo, então! Pois fica-te com ele.
- lago és tu e o teu passado.
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-O passado morreu, Leo. Refiro-me ao presente. Tens ciúmes de Pedro, esquecendo-te de que tenho tanto direito como tu de ter um amante.
- Pedro é o único homem que eu consinto como teu amante - respondeu Leo, caminhando para ela num arremesso. Será ainda a única maneira de o evitar.
De pé, Jadwiga mediu-o com desprezo.
-És um amoral...
- Sou um realista.
-De um realismo baixo...
- Tudo agora é baixo, Jadwiga.
Por duas vezes o telefone tocou durante a noite. Quando Jadwiga atendeu, ficou um silêncio.
Leo regressou de madrugada.
JADWIGA
Está tudo a degradar-se, queremos todos tirar da vida o aturdimento para a esquecer, como se buscássemos desesperadamente o fim, entregues às tendências profundas e instintivas onde a lógica e a moral não cabem, esquecendo-nos dos seres que já fomos, e quando?
esquecendo-nos que soubemos emanar de zonas superiores através da cultura, da lógica, da razão, dos ideais, da moral, pusemo-nos a fechar as janelas abertas para a luz, voltámo-nos para nós, entrámos com todo o desespero para dentro de nós, e aí nos pusemos a agatanhar e a rasgar, à procura de uma resposta para a angústia que nos surpreendia, e julgámos que a solidão, e só a solidão, nos podia redimir e refazer;
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metemo-nos no labirinto dos nossos subterrâneos, sentindo a ansiedade de arrancarmos de nós todos os dramas vividos com os outros, julgando-nos incapazes de os resolver com eles, e afocinhámos como os monstros de Boch até ao coração das trevas, através das aparências, cada vez mais fundo, e agora não sabemos regressar, já não podemos encontrar forças para regressar, perdendo também a simpatia por nós, depois de repudiarmos a simpatia pelos outros.
Perdemos a alegria de errar e de corrigir, e agora só queremos o erro, sabemos que vamos por ele a caminho do vácuo, abolindo-nos e abolindo tudo, niilistas, pobres niilistas!
julgando-nos ainda seres refinados de inteligência e de sensibilidade, quando entrámos no infantilismo dos instintos, sem podermos refazer já o caminho que leva da infância à plenitude.
Vejo isto lucidamente numa transparência, e agora é tarde, embora julgue que nada disto se perca, ainda quero pensar na possibilidade de nada se perder no mundo dos homens,
talvez fosse bom recordar todas as coisas mortas no meu espírito, se estão mortas;
ou estará tudo estratificado dentro de mim, como as camadas geológicas da Terra?, para que alguém as encontre, para que eu própria as encontre ainda, amputadas talvez, mas com ramos ainda vivos, prestes a crescerem de novo, e diferentes...
Lembro-me de Otto e das suas palavras, e da sua coragem, e da sua fé, encontro-me com Julien, e o seu mundo de mitos e depravações, prolongo-me na fortuna do meu pai, alargo-me em prazeres materiais, nada me falta, e falta-me tudo, fico presa à morte do velho Samuel e caso-me com o filho, como cúmplice do meu pai, quero algumas
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vezes enjeitar tudo, esquecer tudo, e acobardo-me em caminhar sozinha, sinto-me cega sem o dinheiro do meu pai, inútil, vazia, frustrada, sob a ameaça de Leo, de quem agora tenho medo.
Ele chegou de madrugada, não vinha bêbado, antes viesse, meteu-se no meu quarto, «que estás a fazer, Leo?», ele sorriu-se com um sorriso terrível e determinado, percebi-o logo, «já esqueceste o que combinámos?», e ele só disse «isso foi antes, agora já não somos os mesmos, casámos outra vez», pegou na pistola e pô-la sobre a mesa de cabeceira, e eu disse «queres obrigar-me?» e ele respondeu «estamos em guerra e chegou a hora do saque, na hora do saque os soldados têm as mulheres que querem, e eu quero-te»; então eu tentei fugir-lhe, a porta estava fechada, compreendi que se gritasse ninguém entenderia as minhas razoes, a polícia podia chegar de um momento para o outro, se eu gritasse viria em meu socorro, e se viesse em meu socorro ele diria que os nossos passaportes eram falsos. Leo ameaçou denunciar-nos, e eu senti pela primeira vez que ele não tinha medo, agora dispunha da coragem dos que são atacados de pânico e buscam uma saída; vejo-o outra vez a avançar para mim, eu meti-me naquele canto ao pé da janela, e ele tapou-me a saída, até que ficámos um defronte do outro a pequena distância, «não me toques, não me toques», e ele respondeu, sem tirar os olhos de mim, «está descansada, eu espero, tenho sabido esperar», e ali ficámos não sei quanto tempo, a noite estava quente e eu comecei a sentir frio, um frio de morte, tapei os seios com os braços, como se só nos seios tivesse pudor, vinha do jardim leve rumor das árvores, sentia-as
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respirar e um poalho do clarão da cidade entrava no quarto, ou talvez do luar, e fazia uma cortina entre os dois, ambos nos limites da sombra; eu já preferia que ele me agarrasse e forçasse, não podia aguentar mais aquela violência sem contacto, e pus-me a chorar, pensei que o poderia comover, ele noutro tempo comovia-se, aquilo agora já não era amor, «tem pena de mim, Leo, porque me enganas? não, eu aqui nunca te enganei, nem com ele? tu sabes que não... mas ele agrada-te, não é verdade, gostas de o ver, foste tu que me pediste, pois fui, não queres que o veja mais?
ele é o único que eu consinto como teu amante, não é verdade, como o sabes?
Conheço-te», e lembrei-me outra vez da marabunta, senti uma impressão terrível nos pés, e logo depois em todo o corpo, como se um bando de marabuntas me tivesse entrado no sangue, a devorar-me lentamente, e lembrei-me dos insectos que morrem quando amam, e do que um dia pensei, uma hora, duas horas depois de comermos, hei-de levá-lo a amar-me; agora éramos dois insectos, os olhos com milhares de facetas, víamo-nos ambos por dentro, por dentro e por fora, e meu sangue estava a ser devorado, lentamente; Leo não me tocara ainda, só me olhava, mas o bando de marabuntas
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consumia-me, e então atirei-me para os seus braços, agarrei-me a ele e pedi-lhe que me levasse...
Foi uma luta de ódio, como se nos quiséssemos anular um ao outro, senti que os meus braços e os seus eram tenazes, mas que o espírito se amputava, ou deformava, metido no labirinto de galerias dos insectos cegos, um com o outro, amarrados um ao outro, sem que qualquer de nós se conseguisse libertar do companheiro inimigo, era preciso que um matasse o outro, mas depois seria mais difícil ainda encontrar a saída, arrastando um cadáver. Tomámos dois comprimidos cada um, precisávamos de dormir, não sei quanto tempo dormimos, quando acordei ele já não estava ao pé de mim, mas lembro-me agora que sonhei, perfeitamente, vejo tudo perfeitamente, fizemos um voo nupcial, saímos todos da casa de chá, mas estávamos em Viena, Pedro com Irma e o seu conde hipotético, o Dr. Klemm, todos os refugiados da pastelaria, os criados, o meu pai, Julien e Bóris, e Pierre, o médico que me psicanalisou, e Kurk, o meu médico de Viena, o meu apaixonado de Viena, só Otto apareceu para me libertar, mas Otto está morto, os nazis arrancaram aquela mulher aos braços do filho, e foram esses que me entregaram a Leo, voávamos todos, o mais alto possível, e então eu saí com Leo do cortejo nupcial, e os dois voámos mais alto ainda, sozinhos, e agarrámo-nos e amámo-nos com ódio, e eu devorei-o em seguida, quando ele estava morto, e de repente tudo ficou em trevas, no mesmo labirinto subterrâneo, desapareceram os outros, e eu fiquei dentro de um rio subterrâneo que devia ser o do sangue de Leo, e o meu, o sangue desta ferida no meu ventre, e agora eu tenho de o enganar, seja como for; não lhe perdoo a violência desta noite que me deixou morta, seja com quem for, com um desses homens que me perseguem
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na rua, ou com um qualquer procurado por mim, menos Pedro, ele é o único que eu consinto como teu amante, e não com Pedro porque ele mo disse, e será o único a quem agora amo, e não é possível neste Apocalipse eu pertencer a um homem amado, pois o amor está fora deste mundo, e só fora deste mundo eu poderei ter Pedro.
Estará ele também inibido para nunca me ter dito uma palavra?!...
Ou será que me não ama?!...
LEO
Consumiu-se o amor, consumou-se o ódio. Assim seja.
Seguirei Nietzsche. «Não pretender nada diferente do que se tem, nada antes, nada depois, nada por toda a eternidade.» E necessidade de solidão como ele, «isto é, de cura, de regresso a mim, do sopro da brisa pura e rápida...» Estou sem remorsos. Sei agora como dominar Jadwiga, embora fosse bom possuí-la feliz. Mas um soldado na guerra não está livre para escolher a maneira de matar e sobreviver.
Ontem lembrei-me do meu pai. Comportei-me exactamente com a filha de Goldstein como o seu pai se conduziu com o meu. Foi um acto de vingança decantada. Igual. Atenuou-se a mágoa e a raiva do meu ciúme permanente. Vivemos uma situação falsa e não posso eu buscar os caminhos da verdade, e ainda menos percorrê-los. Fiz o que dependia de mim, uma vez que não consigo obter o que depende dela. Não me era possível continuar como um
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pêndulo, entre a esperança e o desespero. Estes dias talvez sejam longos. É bom que o sejam.
Há muitos meses que não me sinto tão calmo. Sei-me agora capaz de desaparecer com ela, de anular os dois, no dia em que tiver a certeza de que iremos separar-nos. Perderei nessa hora o direito à fortuna do meu pai, absorvida pelo Goldstein, e a ilusão, tanto tempo mantida, de que ficaria também com a dele. Agora vejo claro. Finalmente. Preferi sempre as situações claras dentro de mim, embora gostasse de ofuscar as intenções de que me servia.
Ainda não me habituei, inteiramente, à ideia de ver Jadwiga morta. É horrível pensá-lo, mas é consolador saber que o farei. Antes isso, antes tudo, do que deixá-la partir sozinha. Dou-lhe uma compensação. Não a vigiarei mais. Já não careço de ciúme para viver, uma vez que a vida não me dá o seu amor. Como Deus não me dará o descanso eterno. Já ninguém me dará nada. Eu, e só eu, serei ainda capaz de realizar esta certeza de morrer depressa com ela.
As notícias alarmam-nos todos os dias, não só as que os jornais trazem, como as que relatam aqueles que ainda chegam, coisas horríveis, e também por isso se torna mais fácil resignarmo-nos a desaparecer, se não surgir, de imprevisto, como isso poderia ainda recomeçar tudo!, qualquer acontecimento que nos faça regressar a Viena. Mas o Klemm despediu-se de mim há três dias, partiu para a América do Sul, e nunca é bom sinal saber que os ratos abandonam o navio, eles têm um sexto sentido misterioso para se aperceberem da aproximação do irremediável. Não o julgo agente da Gestapo, como Jadwiga me disse, por sugestão de Pedro; ela é sua amante no espírito e isso é mais penoso ainda do que as ligações efémeras da carne, que se queimam depressa, mais depressa pelo menos do que as outras. Sei o que se passa com Elisabete, embora
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esta seja uma projecção de Sara, e Sara, e as outras, aparências da única que é minha perante as leis e nunca o foi por ela própria.
Vivo agora num jogo complicado de espelhos. Todos vazios, afinal.
Hoje não irei ao bar, desejo estar lúcido, tanto quanto ainda me é possível, para perceber o que realmente Jadwiga sentiu nesta noite. Fugi de manhã com receio dos seus olhos e não aparecerei à hora do almoço; só telefonarei para saber se está em casa. Pensei não vigiá-la... Basta-me, na verdade, a certeza do que sou capaz de fazer na hora decisiva?!... Que sei, afinal, de mim próprio?!...
Sei que não voltarei tão cedo a Viena; sei que Goldstein está na Suíça, tentando salvar o que lhe for possível;
sei que o Heine se suicidou; sei que milhares de políticos e judeus foram assassinados; sei que Jadwiga não me ama; sei do que me sinto capaz; sei que o primeiro rato abandonou o navio; sei que estamos em Agosto e que chegámos a Lisboa em Fevereiro. E de mim, verdadeiramente, o que sei eu?!... Que todas as horas me saem do sangue, que o tédio me devora, que o álcool me ajuda a esquecer, que no fim nada esqueço, e que possuo uma certeza. Será bom possuir uma certeza?! Talvez não!...
Sento-me no mesmo banco da avenida onde estive no primeiro dia, quando fui ao consulado. Aparece outro engraxador; não é o mesmo, e é como se fosse, todos são iguais na desgraça e no destino. Ele aponta-me os sapatos e eu digo que sim. Agora só podem limpar-me os sapatos e a roupa.
- Francês?
Nego com a cabeça.
-' Espanhol? Repito o gesto.
-Ah, americano!
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Digo-lhe que sim, para acabarmos com aquele pequenino jogo de adivinhas fúteis, e ele sorri abertamente, pede-me um cigarro e faz um gesto obsceno. Não entendo bem o que ele quer dizer, mas sinto curiosidade. Pára de engraxar, tira do fato remendado uma carteira e mostra-me retratos de raparigas. Aponta-me com o dedo, leva depois o indicador e o polegar à orelha, e sorri. Eu volto a acenar a cabeça. E ele salta do assento da caixa, põe-na ao ombro e começa a andar, chamando-me com a mão. Caminho agora a seu lado, e ele diz «very good, sir, very good, sir».
Preciso realmente de uma mulher que não me faça lembrar quem sou... Elisabete já sabe demasiado de mim.
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CAPÍTULO NONO
Deixou-se ficar em casa durante uns dias, não saberia depois dizer quantos, nem isso interessava. «Se a vida de um jovem, cheia de promessas, se destrói num momento, interessa saber, porventura, os dias de isolamento de uma mulher violentada?», pensava Jadwiga, no meio do torpor em que caíra, depois de umas horas de sofrimento em que sentira aquela chaga aberta no ventre, como se o tal soldado, na hora do saque, lho tivesse rasgado com a ponta da baioneta. Rememorou, então, certas imagens da guerra de 14-18, quando em Viena se dizia que os soldados desfloravam raparigas, e ela pensava, na ingenuidade dos seus 6 anos, que o faziam exactamente com as baionetas. A imagem que lhe ocorrera vinha de há mais de vinte anos e nunca mais lhe aparecera daquela maneira incisiva. E sempre a trouxera consigo. Não haverá este receio no fundo da minha insatisfação?
Ficara recolhida a pretexto do calor, assim o explicara à senhoria, uma velhota miúda e balofa, de ventre empinado, que passava os dias a espiá-la, é o Leo quem lhe paga, com certeza; deixara a janela aberta, de maneira a ver as árvores da Estrela e o zimbório, e lia um dos livros comprados em Lisboa, duas, três páginas, para abrir outro e repetir o mesmo gosto cansado, de desvendar o que Huxiey dizia. Depois cerrava os olhos, voltava-se de rosto
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para baixo, tapando a cabeça com a almofada, de maneira que nem um raio de luz a tocasse, e esperava. Tinha a sensação fluida de que Pedro era o seu marido ausente, e precisava de lhe contar o que sucedera com o soldado da baioneta agressiva, receando, ao mesmo tempo, o seu desaparecimento quando soubesse do sucedido.
Agora sentia que se dissipara também aquela impressão de vexame, deixada pelo silêncio de Pedro, nem se lembrava daquela penosa ideia de submissão, pelo facto de lhe dever um favor, e ele se não pagar em qualquer das moedas com que o podia fazer. Necessitava de sublimá-lo, e de se sublimar também no sofrimento. Mas porque não telefonava? Talvez fossem dele aquelas chamadas que a alarmavam, de vez em quando, correndo a levantar o auscultador, tão feliz, tão feliz, pelo telefone sou capaz de lhe dizer, meu amor, e ficando depois sem resposta aos seus apelos. Em seguida deduziu que deveria ser Leo, e disse «és tu, bem sei, estou em casa, sim, que me queres mais?»
Ficou com essa certeza, pois o telefone não voltou a tocar.
E Pedro não dá pela minha falta?... Depois da última vez já passou um tempo, eu não apareci mais e ele não pergunta por mim. Ele sabe o meu número...
Flutuava-lhe no torpor essa ideia carinhosa, muito vaga ainda, mas macia e persistente, sobressaltada, por instantes, pelo desejo de enganar Leo, não, com Pedro não; queria proceder com calma, para que a vingança fosse total, e não debaixo do impulso emotivo do seu agravo. Cruzavam-lhe o espírito esses dois sentimentos opostos.
Foi ao quarto de Leo procurar a garrafa de whisky, trouxe-a para junto da sua cama e pôs-se a beber. Trago a trago, esmagando o álcool na língua; tinha a sensação
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de ficar queimada, perdera o hábito, mas, a pouco e pouco, quando deixou de ver claramente o zimbório e as árvores do jardim, a impressão desagradável tornou-se em esvaimento suave. Cerrou os olhos e começou a falar. As palavras ficavam-lhe nos lábios, sumia-se com elas, todo o corpo fugia para dentro da almofada onde se recostara; desfizeram-se-lhe as lembranças do voo nupcial e a chaga da baioneta, deixou cair um braço, pesado e adormecido, e gritavam-lhe de longe, como se a voz viesse por um túnel afunilado, as palavras que queria repetir e a boca não articulava.
O telefone tocou. Estava realmente a tocar? Ou seriam os sinos da igreja?!...
Então, acendeu a luz da mesa de cabeceira, queima-me os olhos!, e pôs-se a marcar o número do consulado. O dedo parava sobre os círculos abertos, que algarismos são?, imprimia um movimento ao disco, mas não atingia o extremo, e começou a marcar ao acaso; depois deixou cair também o braço direito e recostou-se.
Quando acordou já era noite.
Leo sentara-se aos pés da cama, devia ser ele, aquela silhueta volumosa não era de outro homem. Fingiu continuar a dormir, inspirando devagar e expirando com ruído, a imitar o sono de alguém, esta noite não comemos, não comes comigo, mas Leo descobriu a fraude.
-Bem sei que estás acordada... Porque bebeste?...
- Apeteceu-me.
Ele fez um gesto para acender a luz.
- Não, isso não, faz-me doer a cabeça.
-Vamos jantar?...
- Vai tu. Não me apetece.
- Porque bebeste? Faz-te mal... „- E a ti?
- Já nada me prejudica.
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Pensou em Jadwiga desfigurada, porquê, não sabia, e acendeu a luz contra a vontade dela; mas Jadwiga escondeu o rosto.
- Deixa-me ver a tua cara.
E puxou-lhe os braços, ela começou a gritar, mas Leo só a largou quando conseguiu vê-la bem. A senhoria bateu na porta com os punhos, assustara-se, «estes estrangeiros»-Madame! Madame! Ele foi abrir e explicou-lhe que a mulher tivera um pesadelo; a velha espreitou e sentiu-se sossegada, quando reparou em Jadwiga deitada sobre a cama, e ela lhe respondeu à pergunta «se a madame estava bien».
Depois Leo apagou a luz e saiu.
Sabia-se culpado; essa auto-acusação tornava-se-lhe difícil de suportar ali dentro do quarto.
Ela foi espreitá-lo à janela. Corria uma aragem branda, a rumorejar nas árvores. Lá em baixo, na rua, onde Leo se perdera, passavam vultos. Os faróis dos automóveis iluminavam a parede fronteira, antes que ela os visse surgirem na curva e desaparecerem num sopro de monstros projectados.
Apetecia-lhe" sair, não entendia bem porquê. Talvez para se aproximar do rio, a noite estava calma, e recordar o passado distante, ou para entrar num clube nocturno, sozinha, sem pedir a companhia de Irma, que deixara de telefonar, quando lhe dissera: vou ausentar-me por uns dias; logo que chegue, digo-te. Onde vou? É segredo!
Esvaído o nevoeiro denso da embriaguez, parecia-lhe que a calma nascia em si pela primeira vez. Não sabia se era exacto designar por calma aquele estado quase passivo de aceitar a nova situação com Leo, e que poderia entender-se como resignação; nunca estivera, porém, menos resignada. Agora tinha a certeza de que iria vingar-se. Como?!... Há fins que admitem todos os meios.
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Vinha-lhe daí a serenidade.
Embora ainda encerrados no mesmo subterrâneo, já se haviam quebrado as grilhetas que antes os prendiam. Fora ele, o soldado vindo na hora do saque, quem os separara. Já nada os poderia amarrar de novo. Sabia esse momento a aproximar-se, o seu momento de desforra calculada e fria.
Faremos também o nosso voo nupcial, agora ainda não, pode demorar alguns meses. Mas sei que há-de chegar essa hora. Só necessito de serenidade para esperar...
Antes desse momento decisivo, que nunca previria exactamente, precisava de concretizar o primeiro momento da vingança. Sem precipitações. Agora seria necessário não falhar o mais pequeno ponto, nada, para que a confiança se mantivesse intacta. Tudo rigoroso, medido e repensado, com tempos matemáticos em cada instante, como os andamentos de uma sinfonia, impossível de condensar, sem a destruir. Em Beethoven não há pontos mortos, tudo faz falta. Como o seu próprio drama.
Assim deveria ser a sua desforra.
Começou a preparar-se para sair, depois de pedir à senhoria para lhe mandar comprar cigarros pela criada. O tabaco fazia-lhe falta pela primeira vez. Escolhera um vestido capaz de lhe desenhar bem o corpo, por uma razão indefinida - para a aventura que se prometera, talvez não... Iria ao acaso por essa cidade. A noite estava cálida, andava muita gente pelas ruas, podia encontrar alguém digno de interesse, mas também era possível regressar sem qualquer encontro. Numa cidade desconhecida nunca é possível escolher as ruas e os encontros. Em Viena saberia onde encontrar Kurk. Estará ainda vivo? Quem morreu e quem viverá?!
Calçou as meias, prendeu-as à cinta preta e foi mirar-se ao espelho depois de acender as luzes do quarto.
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Puxou-as melhor, passando as mãos pelas coxas, suavemente; depois voltou-se para ver a costura e repetiu a carícia. Enfiou o vestido sobre o corpo nu. Sentiu que o penteado não lhe ia bem. Trouxe uma madeixa para junto do rosto, talvez assim, fez o mesmo do outro lado, aconchegou-as com as mãos, e cerrou os olhos em sinal de concordância. Deu-lhes uma passagem com o pente, enrolando um pouco as duas madeixas, e depois sublinhou os lábios com o lápis da cor nocturna. Não, não levaria chapéu. Iria tornar-se notada.
Voltou mais uma vez à frente do espelho grande do guarda-vestidos, requebrou-se para um lado e outro, compôs umas pregas do vestido e achou-se pronta para sair. Para onde?! Vagamente, sentiu o absurdo do que ia fazer. Mas agora não queria recuar, fosse no que fosse; necessitava de se sentir segura, determinada.
Atirou com um «boa noite» à senhoria, que logo veio espreitá-la, muito apaparicadora e interrogativa.
- Ainda bem, ainda bem, que a vejo assim, madame. Parecia doente... malade...
Não deixou a conversa prolongar-se.
Quando chegou à rua, hesitou para onde devia ir. Preferiu descer pelo lado oposto ao largo, não fosse encontrar Leo já de regresso. Passou para junto do gradeamento do jardim, por causa da escuridão, e a brisa um pouco quente soube-lhe bem. Dava os primeiros passos na sua vingança. Tenho de quebrar a baioneta do soldado... Talvez fosse um símbolo, naquele momento em que, depois da Renânia e da Áustria, a Checoslováquia se incorporara no Grande Reich Alemão. O pai não devia estar satisfeito com o caminho dos acontecimentos. Os seus interesses na SKODA, checa, tinham levado, certamente, mais um golpe.
Um vulto surgiu do seu lado direito, de repente, e ouviu-o falar. Olhou à volta e viu-se só. Era com ela.
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Pensou apressar o passo, mas lembrou-se da serenidade, tenho de fazer tudo com serenidade e a calma também se conquista, e continuou com a mesma marcha repousada de quem passeia. Junto de um candeeiro o vulto mostrou-se. Era um homem ainda novo, moreno e alto. Quando notou que ela o fixava, aproximou-se mais e quase lhe tocou, sorridente. Não, assim não, não pode ser assim. Então, começou a falar num alemão cerrado e rápido, mostrando má cara. Alteou a voz, foi subindo o tom a pouco e pouco; estava a ganhar coragem. Na primeira esquina o homem desapareceu, mal notou que as pessoas o olhavam com hostilidade, pela maneira ostensiva com que Jadwiga se lhe dirigia. Quando o viu desaparecer assim, não conseguiu conter o riso. Alguns espantavam-se depressa. No fundo, eram tímidos que vinham ensaiar de noite o seu atrevimento clandestino e amador.
Recordou-se de Paris, numa tarde, em que ia atravessar a Concórdia para a Rua Royal e um rapazola se lhe dirigiu com toda a seriedade: «sabe onde é a Madalena, mademoiselle?', é capaz de me levar até lá?, é a primeira vez que vou à escola... pela mão, se faz favor, tenho medo dos automóveis.»
Tivera de sorrir e conversar. Uma conversa sem consequências - prometera-lhe voltar no outro dia, à mesma hora, e metera-se em Longchamp a ver as corridas de cavalos.
Mas já dois vultos a escoltavam, trocando palavras entre si e deixando-a no meio, de modo a verem as reacções que as suas palavras produziam. Não estava disposta a aturá-los. Poucas vezes saíra sozinha, e quase sempre com destino. Desviou-se, então, para a ponta do passeio, deteve-se, e entrou para o primeiro táxi vazio.
- Para um restaurante... Pode ir devagar...
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Encostou-se a um dos cantos para ver melhor a avenida por onde desciam. Tinha fome e sentia-se triste. Tornava, novamente, a sentir a vacuidade daquele passeio. Mas precisava de ir até o fim, já que saíra para fazer qualquer coisa.
Comeu uns mariscos, bebeu vinho branco gelado e fumou três cigarros.
Demorou quanto pôde, sempre a olhar o relógio, mas o tempo devorou-lhe o desejo de só voltar ao quarto de madrugada. Numa mesa quase defronte, um homem fitava-a com insistência, mas sem mostrar no rosto qualquer indício das suas intenções. Jadwiga admitiu a hipótese de que a vigiassem e assustou-se quando foi à mala e não viu o passaporte. Pediu a conta para pagar; o criado entregou-lhe um bilhete, indicando-lhe o senhor da mesa, que a cumprimentou num movimento sóbrio de cabeça. Atentou melhor no galanteador, um homem já cinquentão e cansado, todo aprumo no fato e na gravata flamante. De vez em quando puxava os punhos da camisa e movimentava o pescoço, magro dentro de um colarinho engomado, apesar do dia quente e da noite ainda abafadiça, que o obrigava a passar as costas da mão pelo rosto ensuado. Resolveu sorrir e responder em alemão ao bilhete que não compreendera. O criado teimava em não receber o dinheiro da despesa, encolhia os ombros com a insistência dela e voltava-se para o senhor, já irritado com aquele jogo do empurra, pedindo uma decisão que não lhe tomasse mais tempo.
Jadwiga acabou por se levantar e sair.
À porta tomou um automóvel. O galanteador surgiu quase a correr, ainda esbracejou, sem perceber aquele jogo inesperado, mas acabou por ficar no passeio,
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hesitante, enquanto Jadwiga lhe acenava a mão e ordenava ao motorista para que fosse depressa.
Leo já estava em casa quando chegou.
LEO
Fiz e desfiz várias vezes a teia de perguntas planeada longamente para a embaraçar, mas perturbei-me com o impudor daquele vestido, e achei-me ridículo. Senti vergonha pelos dois. O que pensei quando a vi assim ultrapassava tudo quanto admitira com a sua saída, tanto mais que Irma não se encontrara com ela - foi o que me disse pelo telefone.
A sua atitude contrastava com uma certa compreensão que passou a ter depois da noite em que a obriguei a aceitar-me na sua cama. Embora indiferente aos meus carinhos, deixa-me tocar-lhe, quando antes me lembrava sempre o que combináramos em Viena e em Nice. Tem receio de mim, bem o compreendo, não é assim que a quero, mas talvez, pouco a pouco, seja possível modificá-la.
Convém-me manter essa ameaça viva, embora me doa submetê-la dessa forma. Tenho esperança de que o tempo e o contacto possam repor a situação, pelo menos como nos primeiros meses de casados.
Vejo-a calma. Deixou de me hostilizar. Talvez seja humilhante esta situação, é humilhante, com certeza, mas a culpa não é minha. De resto estou disposto a ir até onde for indispensável para a não perder. A sorte está lançada, careço de tenacidade e decisão para dominar os acontecimentos, não me conformo, não aceito qualquer alternativa para o que pretendo.
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Preciso de ficar aqui todo o tempo que me seja possível. Embora dependa de Pedro. Ou, exactamente, porque dependemos de Pedro, há-de ser-nos fácil continuar em Lisboa até o Goldstein tomar uma decisão.
Na verdade o que nunca esperei é que Jadwiga me oferecesse este espectáculo de uma espécie de mulher pública. Foi melhor não lhe dizer o que pensei. Só lhe pedi para não voltar a pôr os cabelos daquela maneira. Ela estranhou-me e puxou as madeixas para detrás das orelhas. E eu disse-lhe ainda: tens de ter decoro. Ela respondeu-me: está bem, tens razão.
A resposta pareceu confirmar as minhas suspeitas, mas logo depois achei-as inquietantes. Não podia dizer em voz alta qualquer palavra sobre o seu desvairamento. Meti-me no meu quarto, despeitado e triste também, triste e tenso, como se os meus nervos estivessem prestes a soltar-se, o que poderia deitar a perder o meu plano. Não era possível tomar ainda uma atitude definitiva, talvez mesmo não fosse justo tomá-la naquele momento, embora visualizasse o que ela teria feito naquele passeio nocturno. A presença da pistola dentro do quarto fez-me recear a dificuldade em me dominar como era preciso; sabia que era necessário descarregar aquela tensão, pois adivinhava que, deitado, começaria a recordar-me de muitos pormenores aparentemente insignificantes, juntando-se a tantos outros, e ao passado tão cheio de acontecimentos. Tudo acabaria por tomar coerência e tomava medo dessa certeza. Gostava de perceber e receava fazê-lo.
Foi então que voltei a entrar no quarto de Jadwiga, sem saber ainda o que pretendia. Ela já se deitara. Como se nada tivesse acontecido, vi-a recostada num almofadão a ler. Desesperei-me. Olhei-a e os nossos olhos não se encontraram, o que significou para mim um indício de culpa. Atirado para as costas duma cadeira lá estava o
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vestido azul. Corri a agarrá-lo, não sei porquê cheirei-o, e depois peguei-lhe pelo decote com as duas mãos, rasgando-o de alto a baixo. Os nervos doíam-me. Não sabia exactamente o que estava a fazer, mas sabia que era conveniente agir, antes de me resolver a uma atitude precipitada por acumulação de factos pressentidos e de recordações exactas.
O que senti a rasgar-se nas minhas mãos foi o seu corpo. Tentei ainda abri-lo mais, mas não forcei com receio de me tornar ridículo. Depois aproximei-me da janela e atirei o vestido para a rua.
Tudo aquilo se passou sem uma palavra. Ela continuava a fingir-se entregue à leitura; não estava a ler, não, bem o adivinhei no estremecimento dos seus braços nus. Regressei ao meu quarto e atirei-me a chorar para cima da cama. Não me despi. Esperava a manhã com ansiedade, mas não fui capaz de resistir. Saí antes de o Sol nascer e pus-me a caminhar sem destino, pensando em procurar Elisabete; talvez já tivesse regressado da sua ida às praias do Norte, onde não era conhecida. Ela confidenciara-me sem pejo: vou fazer a minha tournée das praias; um dia hei-de encontrar um velho capaz de casar comigo. É a reforma.
Acabei por lhe passar à porta, vi a janela do quarto fechada e continuei depois a seguir os trilhos do eléctrico até me encontrar em pleno campo. Aí deitei-me debaixo duma árvore com a cabeça apoiada nas mãos cruzadas. A princípio resisti à serenidade da natureza, mas logo depois experimentei a sensação física duma calma profunda. Soubera resistir e esse facto dava-me a impressão de que podia dominar-me até o momento em que houvesse de agir de uma maneira implacável e decisiva. E adormeci. Acordei já o Sol nascera; espreitei o relógio, marcava quase dez horas, e alarmei-me, como se pudesse perder
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qualquer coisa de essencial, se chegasse muito tarde aonde queria. Fiquei indeciso por momentos, sem saber o caminho a tomar para o regresso, mas ouvi a campainha dos eléctricos e orientei-me por ela. Precisava de um automóvel. Não podia perder tempo.
Assim que encontrei o primeiro, mandei-o seguir para o consulado.
Evitara pensar nisso, mas talvez ali conseguisse saber onde Jadwiga passara parte da noite.
Pedro mostrou-se admirado por me ver àquela hora;
a sua atitude tornou-se-me estranha.
«- Esteve esta noite com Jadwiga?
- Não entendo a pergunta...
- Esteve?!
-Não... Ela desapareceu-lhe?
-Também não. Mas saiu.
- Não é costume sair?... Ou proíbe-a de o fazer sozinha, à noite? Você uma vez riu-se dos hábitos portugueses... Lembra-se?
- Desculpe, mas não estou interessado em recordar factos que me não dizem respeito. Só Jadwiga me interessa...
-Só?
- Só.»
Insisti em lhe perguntar se a não encontrara, e ele explicou-me que a não via há mais duma semana. Sublinhei a minha estranheza por esse facto; Pedro mostrou-se irritado com a minha insistência e acabou por dizer:
«- Basta-me a minha vida. De si e de Jadwiga nada pretendo. Devemos ficar entendidos duma vez para sempre. Quando lhes afirmei nada me deverem pela legalização dos passaportes, queria dizer exactamente que nada me tinham a pagar. Em qualquer moeda...
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- Jadwiga é uma mulher bonita - disse-lhe para o espicaçar.
-Também é verdade. Mas as pessoas a quem presto favores deixam de ter sexo. Sou ainda bastante orgulhoso da minha idade, para que obtenha mulheres, mesmo bonitas como a sua, por processos que são próprios de biltres ou de velhos.
-Parece que o magoei...
-O senhor não me conhece. Todos os homens têm as suas vaidades, quase sempre absurdas, e eu tenho esta. É, pelo menos, conveniente aos maridos que me devem alguma coisa. Serve-lhe a explicação?
- Inteiramente. Posso fazer-lhe mais uma pergunta?
- Quantas quiser se não forem longas.»
Compreendi que me despedia. Estive para me retirar imediatamente, mas refreei-me, lembrando-me que precisaríamos dele enquanto permanecêssemos em Lisboa.
«- Porque razão não aceitou a minha oferta de sociedade? Não leve a mal a pergunta, Pedro.
- Não exerço actividades que me não interessam.
- Despreza o dinheiro?
- Não. Mas só quero o necessário para sobreviver e resistir.
- Desculpe, mas não o compreendo.
- Não vejo conveniência em lhe dar mais explicações sobre o facto. O facto em si deve bastar-lhe.
- Posso considerá-lo meu amigo?
-Talvez não...
- Não o é?
- Não encontro razões para o ser.
- E de Jadwiga?»
Ele sorriu e afastou-se de mim; depois voltou para o meu lado e disse:
«- Sou amigo de Jadwiga.
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-Só amigo?!...
- Sem mais consequências. Aquele facto que lhe apontei, inibe-me que seja qualquer outra coisa.
-Você não é um homem do nosso tempo, há-de convir.
- Engana-se. Já sou um homem do nosso tempo. Esquece que vivemos agora vários tempos no mesmo momento. Não me peça explicações.
- Obrigado.»
Saí com a convicção de que ele não acompanhou Jadwiga a noite passada. Mas com quem andou ela?!... Não creio que tenha andado sozinha. Nós agora já não somos capazes de andar sós.
PEDRO
Nunca pensei até àquele instante que o sentimento de culpa deixado por Wanda se tivesse já transformado numa noção de dever. Meditei nisso algumas vezes, mas nunca duma forma profunda, como se receasse mutilar-me com essa pesquisa interior. Mantendo-me afastado de Jadwiga, sem concretizar o que algumas vezes desejei duma maneira ardente, julguei responder a Wanda, como se lhe fosse dado saber o meu comportamento posterior.
Era como se lhe dissesse: vês como sou? Esta mulher é mais bela do que tu, sinto que me deseja, e eu não a quero. Não sou, realmente, o canalha que tu pensaste. Era a ti quem eu queria, mesmo com o compromisso dos filhos doutrem.
Se Wanda me perguntasse porquê, sim, porquê, talvez não soubesse responder-lhe no mesmo tom. Se desejasse,
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ou se pudesse ser sincero, teria de dizer que o nosso encontro foi uma explosão da minha vida afectiva frustrada. Faria o mesmo com qualquer mulher - até com a minha, se a não conhecesse tão bem. O pior é esta lucidez, forçando-me a pôr um problema grave: se Wanda voltasse, o que teria acontecido depois?! Se ela fosse também impulsiva por desordem psicológica ocasional, como seria hoje, agora mesmo, a nossa vida?
A consciência nítida desse hipotético drama, depois de ter sido uma inibição, fez-me suspeitar que a integridade do meu eu se desagregava, levando-me quase a cair numa frustração, agora ultrapassada quando dei aquela resposta a Leo. A interiorização dessa agressividade levou-me a uma autopunição, criando-me um sentimento latente de culpa.
Sinto ter dito a Leo uma verdade profunda, meditada longamente no subconsciente. As mulheres a quem presto favores deixam de ter sexo. Isto é uma mistura de orgulho e de dignidade, e ainda bem. Ainda bem que Leo apareceu, para também compreender quanto ele a ama para além do que eu supunha.
Agora tudo parece claro no urdume desta teia complexa de desejos, vaidades, frustrações, recalcamentos, fugas explosivas e superações. Jadwiga é agora um despojo de guerra. Como Wanda. Um homem da minha estirpe criou compromissos consigo e com o futuro, a que não deve faltar. Tenho um encontro marcado com o futuro, e nenhum de nós faltará, mesmo que eu não seja vivo. Os homens de hoje já não se prolongam pelo dinheiro.
Devo ficar na simplicidade destas verdades elementares e profundas. Sem querer pensar que também eles, embora vivendo em Viena, são solidários pela morte do meu avô e dos meus tios. Esse ressentimento nunca me abandonará.
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O mundo de hoje é uma tragédia de Shakespeare só com duas famílias, como no Romeu e Julieta. Com duas famílias que se odeiam de morte. Mas neste momento quero libertar-me também dessa outra verdade elementar e profunda. Jadwiga e os seus maravilhosos olhos verdes podem ajudar-me a esquecê-la em certos momentos. Ao menos quando estou junto dela.
O ódio fica mais perto do amor do que da resignação. Não devo esquecer porém que durante uma semana ela não me procurou. Talvez por ter adivinhado a minha satisfação em acompanhala, exibindo pelas ruas de Lisboa esse despojo de guerra. Tenho de me desabituar da sua companhia.
Ontem encontrei a Palmira no eléctrico para a Baixa, àquela hora há sempre gente a mais na plataforma dos carros. Ocorreu-me o que Jadwiga me disse dela e reparei melhor na dactilógrafa. É realmente uma mulher com interesse. Naquela pequena viagem conhecemo-nos melhor do que em todos os longos meses de trabalho em comum. Estivemos muito perto um do outro. Demasiado perto.
Amanhã possivelmente, farei a viagem à mesma hora.
Atrasei o romance mais uns dias, mas caí agora numa apatia longa; talvez Palmira me ajude a vencê-la. Mesmo num romance sem amor, uma mulher faz sempre falta, para que as palavras ganhem ressonâncias que não têm.
O amor dá-lhes cor e rítmo.
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CAPÍTULO DÉCIMO
Nas margens do Tejo ia um mês de Agosto ibérico. Denso e pegajoso.
O Sol fundia-se nas alturas, vertendo-se sobre a terra e os homens, num calor pastoso, de luz intensa. Os corpos moviam-se com lentidão, como se boiassem num pântano;
e buscavam as sombras escassas das paredes, enfiando para dentro de cafés e cervejarias, em busca da aragem das ventoinhas.
Só lá para o fim da tarde chegaria das bandas do mar o bafozinho cansado duma brisa.
Jadwiga telefonara-lhe para o consulado, a dizer que iria meter-se já, mesmo já, no sítio do costume para apanhar a mesa do canto. Gostava de o ver, tinha saudades, estivera e não estivera doente, ele que viesse o mais cedo possível. Bem poderia morrer; da parte dele não haveria nunca o cuidado de saber como passava.
Enquanto falava ao telefone, Palmira, a dactilógrafa, não conseguira esconder a perturbação daquele diálogo, acabando por sair do escritório e esperá-lo no corredor para lhe fazer uma pequena cena de ciumeira. «Foi por isto mesmo que nunca quis reparar nela», pensava Pedro. «Tem olhos de ansiosa e eu adivinhava-o. Jadwiga é que me meteu nesta embrulhada.» Acabou por dizer que não apareceria naquela tarde, talvez não se encontrassem mais,
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se ela voltasse a reincidir nas insinuações. Nunca gostara do papel de algoz e aí estava a desempenhá-lo como os melhores, não tinha outro remédio. O Fernandes metera férias, o Oliveira escapara-se para a Arrábida com a família, passeando por lá os automóveis com o CC e os títulos de cônsul e de chanceler. Fez algumas recomendações ao ajudante e saiu antes das cinco.
Sentira também necessidade de chegar depressa. A voz de Jadwiga prometera-lhe, não sabia bem o quê, qualquer coisa, mas apetecia-lhe conversar um bocado com ela, esquecer o calor, esquecer a choraminguice da Palmira, muito agarrada à sua mão quando se despedira. Isto começa bem, não há dúvida. Só nos encontrámos duas vezes e já temos fitas à Francesca Bertini. Estas mulheres portuguesas complicam tudo... Ainda tinha uma folga no dinheiro e meteu-se num táxi. Dias não são dias. Tinham-lhe pedido um conto para uma revista de actualidades, cinquenta escudos, num mínimo de quatro páginas dactilografadas a dois espaços, o máximo de seis páginas, como se lhe encomendassem uma camisa de dormir, é mesmo uma camisa de dormir com aquelas recomendações todas por causa da censura. Começava já a gastar por conta da colaboração, -o que não condizia muito com os seus hábitos.
Agora ali estava em face de Jadwiga, sim, uma limonada gelada, bem gelada, revendo-se nos seus olhos verdes e melancólicos, magoados como nunca os vira. Pensava-a uma mulher inacabada. Não encontrara ainda, com certeza, o homem que merecia; as mulheres acabam de ser feitas pelas mãos que lhes tocam e as afagam. O amor sabe mais de escultura do que Rodin. O dinheiro do pai não permitiu que Jadwiga se fizesse mulher. Ficou na terceira infância, com a tirania e os dramas, e os recalcamentos do último período da infância.
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Pedro meditava naquilo, enquanto ela lhe contava, ou não contava, o que fizera em quase dez dias de ausência. Percebia-a a deformar o que relatava, para não concluir, simplesmente, que estava a mentir.
- Tem trabalhado muito no seu romance? - perguntara-lhe depois. Era uma espécie de rito obrigatório, a que Pedro fugia habilmente.
Jamais gostara de se exibir. Na escola, quando o professor de ginástica o mandava para a barra, deitava-lhe as mãos, fazia uma simples elevação, até o queixo tocar o ferro, e depois descia, caindo em flexão. Era tudo. Fora das horas obrigatórias esmerava-se em subidas de frente e de costas, suspendia-se pelos joelhos, balouçava-se e girava na barra, feliz da sua força. Perante o professor e a formatura nunca passara, durante os quatro anos de internato, duma escorreita elevação com os braços. Nada mais.
-Gosta do seu trabalho: -insistiu Jadwiga.
- Sofro, mas sinto prazer nesse sofrimento. Lá começo agora a representar. Acabo sempre por me meter no seu jogo. Mas agora já fiz a primeira escalada da montanha.
- Chegou depressa?
- Caí muitas vezes, ainda estou ferido dos trambolhões. Mas é bom cair e ter coragem para continuar...
- Porque considera o seu trabalho importante, certamente !
-Para mim... Sou um homem taciturno e calado; necessito de me exprimir.
O olhar de Jadwiga tornara-se mais vivo. Pedro continuou:
- Não penso, é claro, como Musil, que é mais importante escrever um livro do que governar um império. E mais difícil.
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-É menos trágico para os outros escrever um livro.
-Está a pensar no Império Alemão...
- Estou. Em que hei-de pensar?
- Esquece Schopenhauer, Nietzsche, Heidegger...
- Acha-os culpados do que se está a passar?
- Todo o irracionalismo é cúmplice do que se está a passar, embora nem todos os irracionalistas façam a apologia da violência e da guerra. Mas é sempre neles, nos momentos mais ásperos das lutas sociais, que se vão inspirar os filósofos de terceira água para justificarem os crimes consumados e a consumar.
- Eles são a causa...
- Não. A causa, não: o efeito. A Alemanha está a sofrer o drama de um grande povo que só muito tarde construiu a sua unidade. Bastante por culpa de alguns países europeus, ciosos de aproveitarem uma tal divisão. Esse é o drama alemão: já deu três guerras...
- Três ? Três como ?!...
- Já estamos na terceira guerra alemã. Esta começou na Renânia, em 1936... A Alemanha saltou do feudalismo para o capitalismo moderno, e isto não se faz sem sangue.
- É a tragédia de O Anel dos Nibelungos, de Wagner.
- Que começou por ser uma mensagem de rebeldia, quando Wagner acompanhava Feuerbach, e depois uma obra intemporal de atmosfera metafísica, de destruição do mundo e de impotência do homem, mal Wagnér se aproximou de Schopenhauer, um irracionalista.
-Wagner negou-se mais vezes.
- Era um monstro genial.
- A sua música perturba-me. Mesmo a de Tristão e I solda...
Estavam quase sós. O rosto de Jadwiga crispara-se. Pedro via-lhe as mãos pequenas, um pouco trémulas.
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- Importa-se de me acompanhar ao hotel de Irma? Estou a estranhar a demora...
- Acha que ela não se aborrecerá com a minha presença?
-Ah!, não, tenho a certeza... Você, no fundo, agrada-lhe.
Ele pediu a conta e pagou já de pé. Jadwiga continuava sentada, olhando-o com ternura, como se procurasse retê-lo ainda, talvez só nos olhos.
- Está hoje triste - disse-lhe Pedro, para acabar o silêncio comprometedor que se fizera entre eles.
-A raíz vienense é de tristeza...
Pedro pensou ainda em interpretar a razão dessa melancolia, mas achou que já perorara de mais, estou hoje com veia de orador, não há dúvida, e sorriu-lhe. Jadwiga levantou-se, passou-lhe à frente e dirigiu-se para a porta de saída. Ele acompanhava-lhe o ritmo da marcha, um pouco a distância, propositadamente a distância, para se comprazer naquele jogo subtil de tensão e elasticidade que o corpo dela desenvolvia com sobriedade e perícia. Era pena cobrir os cabelos, devia ficar mais harmoniosa com os cabelos dourados a caírem-lhe sobre o vestido. Nunca a vira sem chapéu.
Ela esperava-o no passeio e reparou na mudança de expressão de Pedro; ele ainda levava nos olhos a imagem daquele corpo tenso e elástico a mover-se à sua frente. É a primeira vez que te vejo assim... Depois acenou-lhe a cabeça num cumprimento, querendo significar admiração e prazer por esse olhar.
- Parece feliz...
- Tento um contraponto para a sua tristeza.
-Isso vem no seu romance?... .
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Ficou perturbado com o gracejo, achou-o de mau gosto, mas acabou por se rir. Jadwiga procurava a sombra mais larga do passeio.
- No esboço do meu romance não há pessoas capazes de dizerem isto.
- E porquê?
- Nenhum dos personagens a conheceu. Estou hoje com veia. Pois que saia. E é pena.
Parada à sua frente, ela mirava-o a sorrir.
-Também eu estou a desconhecê-lo... Ou é só assim para as Portuguesas?
- Gracejamos os dois.
- Fica-lhe bem essa forma de gracejar, Pedro. Porque me lembrei de repente daquela rapariga? Espero que já tenha reparado na sua colaboradora...
- Mais do que devia, Jadwiga. Vou mover-lhe um processo por perdas e danos...
Não lhe respondeu, é disparate!, mas não gostei da novidade!, caminhando um pouco mais depressa, talvez por terem chegado à porta do hotel. O porteiro fez girar o guarda-vento. Dois amigos de Pedro acenavam-lhe da porta duma livraria. Ele correspondeu com gestos exagerados de que se arrependeu. Cá está o nosso gosto das aparências. Depois entrou também. O porteiro levou a mão à pala do boné, enquanto Jadwiga se dirigia para o elevador.
- Não sai hoje, a mandriona. Está no quarto.
Pedro estendeu-lhe a mão para se despedir. Exagerava a vénia, mas ela não correspondeu, convidando-o a entrar e a subir.
-Irmã sabe que eu...
- Claro que sabe, claro que sabe, Pedro. Para quê essa timidez toda? Depois, e de repente, sem ninguém esperar...
Olhava-a sem entender a alusão.
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- Vai longe de mais.
-Tem razão de queixa?
-Ah, não, isso não! Podia dizer: antes pelo contrário. A correcção personificada está em si.
O elevador subia lentamente.
Iam só os dois com o paquete, já passara o primeiro piso, iam agora para o segundo, e Pedro achara melhor fingir-se distraído com a ascensão, olhando para fora. Jadwiga pensava: amuou. Apetecia-lhe aproximar-se daquele corpo seco e largo de ombros, talvez com a ajuda do alfaiate, embora... Tocar-lhe, como se tudo o que pensara até ali acerca dele se lhe tivesse esvaído e ele pudesse ser o primeiro agente da sua vingança. Leo disse-me aquilo exactamente para que eu me afastasse deste. O elevador estacara no terceiro piso, o paquete fizera correr a grade de ferro e saltara para o corredor, num pulo malandreco. Pedro estendeu-lhe uma moeda na mão fechada, que o rapaz recolheu com uma continência e um sorriso de cumplicidade equívoca.
Jadwiga seguia pelo corredor além, mal tocando a passadeira de veludo. O jogo dos músculos, tensos e flexíveis, tornara-se agora mais complexo no corpo dela, cingido pelo vestido ou pelo olhar devassador de Pedro, só os cabelos é que iam dentro do chapéu, era o que faltava para ser uma maravilha segui-la à distância; ainda bem que a luz estava acesa e o corredor era longo. Ela bateu a uma porta e ficou-se também a vê-lo aproximar-se;
desengonçava-se um pouco, talvez tivesse os braços compridos. Contra a luz era só uma silhueta a avançar para ela, um homem sem rosto, o desconhecido que primeiro procurara e depois repelira, na noite em que saíra sozinha depois de se ter embriagado.
Irmã já respondera duas vezes, mas Jadwiga continuava com a mão no puxador da porta, à espera que ele
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se chegasse mais, um pouco mais, como se gozasse o prazer do silêncio e da penumbra, sem ninguém junto deles, que faria agora se ele me agarrasse?, sozinhos; Pedro, porém, estacara a um metro e puxava dum cigarro, batia-o no maço, para não pensar também na cumplicidade do corredor. Quis dizer qualquer coisa, e foi então que a porta se abriu por dentro; Irma recuou um pouco quando o enxergou, levando a mão ao robe para esconder o seio. Estava morena, parecia menos postiça. E agora com a descoberta do peito de Irma, ele pôde adivinhar o resto sem dificuldade, a imaginação corria fácil, ia por aí fora;
apertava-lhe a mão e dizia «desculpe se venho incomodar», mas recortava-lhe o corpo com os olhos, não tinha problemas com aquela, uma mulher para mim deixa de ter sexo quando lhe presto um favor.
Jadwiga fora até à janela, não pode negar que é português, mas nunca o vi assim, e falava à amiga do calor que fizera todo o dia.
- Pior do que África, com certeza - disse por hostilidade.
Pedro não lhe deu resposta, tinha agora mais em que pensar, e Irma desculpava-se em aparecer naquele desalinho, estivera todo o dia em cima da cama, por causa daquela fornalha acesa, um horror! Ele olhou o desenho do corpo dela na colcha cor de sangue pisado, e voltou a deitá-la com a imaginação, assim queimada pelo sol da praia, esguia e simples, sem aqueles preciosismos da voz e das expressões.
-Vou arranjar-me num instante; desculpem. Estiveram a tomar chá?
- Hoje precisamos de coisas frescas - respondeu Jadwiga, sentando-se na cama.
- O chá é óptimo para o calor... Morno é óptimo.
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Lá está ela a estragar tudo com aquela voz!
Pedro encostara-se à meia porta de madeira e disfarçava o embaraço que começava a sentir, olhando para o Chiado, um pouco mais cheio de gente com a brisa da tarde. Irma perturbara-o. Ela mexia agora no gavetão da roupa, tirando para fora um adereço preto, e Pedro assobiava baixinho, qualquer coisa, tudo servia para conter a imaginação amarinhadora, sem limites para tantas sugestões de que o quarto estava cheio. Irma, assim mais morena, fez-lhe lembrar Palmira, uma fogueira sempre despertada, mas Jadwiga obrigou-o a recordar Wanda e ainda a conversa que tivera com Leo. Comprometera-se a não contar à mulher aquele encontro, é claro não ia falar nisso, mas parecia-lhe absurdo resistir àquele ambiente saturado, sem conversarem também os dois no assunto; uma simples alusão barraria logo o caminho à aventura de tanta coisa sugerida dentro daquelas quatro paredes, tão transparentes agora.
Quando ouviu fechar a porta, voltou-se e viu Jadwiga deitada sobre a cama. É estúpida, felizmente é estúpida, senão seria capaz de me esquecer da inibição de Wanda e da frase da mulher sem sexo. Deitar-se de chapéu ultrapassa toda a insensatez feminina. Acendeu outro cigarro.
- Sente-se, Pedro.
- Prefiro estar de pé.
- E se eu lhe pedir que se sente?
Conservava as duas mãos cruzadas debaixo da cabeça, sem tirar o olhar do florão do tecto. Será que o quero realmente junto de mim? Que fará agora?!... Descalçara os sapatos e movia os dedos dos pés para os relaxar melhor.
Pedro continuava perto da janela, indeciso e surpreendido. Sabia que as muralhas erguidas por ele começavam
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a derruir aos poucos, há um limite, claro, há um limite, não podia automutilar-se daquela maneira, embora lhe parecesse também, e só por instantes, que ela queria vê-lo dominado para melhor o manobrar ou repelir, lembrando-lhe o que nunca quisera esquecer, mas que gostava agora de esquecer.
- Puxe uma cadeira e venha para aqui... Não repare no meu silêncio.
Jadwiga pensava naquela noite em que Leo a forçara, no soldado com a liberdade de escolher a vítima do saque; ficaram-lhe essas mãos marcadas nos ombros, na carne magoada dos ombros, e a chaga aberta pela .baioneta do soldado, dos soldados da guerra de 14-18, abrindo o ventre das mulheres e, das raparigas - ficara com essa imagem em criança, e ainda agora não conseguia substituí-la.
Adivinhou a sombra de Pedro a mover-se, e esperou que ele a afagasse, para lhe sarar a chaga feita pelo soldado, nada mais podia ser por agora, agora ou talvez sempre, gostaria de o encontrar depois quando já estivesse só, e só então começar. Leo talvez aparecesse.
- Você disse, que um romance é como uma montanha.
- Às vezes inacessível... Vemo-nos embalar um ao outro. Mas há montanhas que, por isso mesmo, são mais amadas pelos homens.
- Um amigo meu de Paris dizia que um romance é como uma mulher.
- Uma mulher é também como uma montanha...
- Em que as inacessíveis são as mais amadas?
- Talvez...
Pedro interrogava-lhe o corpo estendido sobre a cama, lera Baudelaire por causa dela, e lembrava-se do poeta dizer que «o teu vestido será o meu Desejo, fremente, ondulante, o meu Desejo que sobe e que desce...»
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-Faz a apologia da frustração: -perguntou Jadwiga.
- Não, penso não ser um frustrado.
- Hoje todos o somos.
-Nem todos...
-Quem?!
- Os que não são espectadores. Todos que o não são.
- Otto, já lhe falei nele, diria agora que a frustração é um complexo de classe...
- Dos desenraizados e duma parte da pequena burguesia, com certeza.
- Kafka é um grande escritor...
- Um extraordinário escritor desenraizado. Ninguém dará melhor do que ele esse drama. O pior é que o querem decalcar, muitos que o não são. Mas o homem desenraizado desaparecerá, Jadwiga; é uma das circunstâncias do imperialismo.
-É contra a arte circunstancial...
- Toda a literatura é circunstancial, mesmo a que parece de evasão. Os escritores vivem sempre os dramas do seu tempo. Para que estamos a falar disto agora? Uns esmagados por eles, outros lutando para os ultrapassar.
- Quais considera mais válidos?
- Para a literatura, todos... Os ângulos de visão não se podem determinar ao escritor. Um dia, para além dos debates, se perceberá que todos foram necessários para dar a imagem quase total do homem do nosso tempo.
- Otto entendia que o escritor deve ser um juiz do seu tempo - disse Jadwiga.
- O tempo é que será nosso juiz. O escritor deve testemunhar...
-Sem ideias preconcebidas, claro.
- Isso é que já será querer bem pouco do homem inteligente que deve ser todo o escritor ou artista. Não
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há testemunhas imparciais: há testemunhas de defesa e testemunhas de acusação.
Estavam agora mais perto um do outro, embora nenhum deles se tivesse movido. Ela continuava com o olhar fixo no florão do tecto. Pedro repetia os versos de Bau-delaire.
- Você o que pretende ser?
- Uma testemunha lúcida - respondeu Pedro, iludindo a pergunta.
- E desapaixonada?
- Não o poderei ser inteiramente.
- Mesmo com o que se está a passar no mundo acredita no homem?
- Plenamente e mais do que nunca.
- É romântico...
- O contrário disso, Jadwiga. O romantismo amava a noite e a morte, sublimava a doença e enjeitava o que vibra para a vida. A vida neste momento és tu: uma mulher bela. Alguns destes temas quem os trata são os chamados escritores de vanguarda, como sabe.
Ele apoiara os cotovelos nas coxas, como se precisasse de repousar, e tinha a cabeça mais perto dela.
- Reflectem a nossa tragédia - disse Jadwiga, cerrando os olhos.
- Sim, a vossa tragédia - respondeu Pedro num sussurro.
Interrogava-lhe o corpo novamente, bastava estender a mão para lhe tocar, pensou ainda que tinham ambos agora o mesmo inimigo, para ele o inimigo de sempre, para ela um inimigo transitório, mas agora o mesmo, e que ela lhe aparecera tal qual. como Wanda, ambas fugidas à violência, e à morte; e Wanda não voltara por culpa dele, fora nesse momento um cúmplice dos que a perseguiam,
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mas agora ali naquele quarto gostaria de resistir, ela deitou-se porquê?, à minha frente e junto de mim porquê?!, seria bom poder esquecer que Jadwiga dependia dele, para outros isso seria a cobertura para não recear.
Eu não me quero diminuir aos meus próprios olhos... eles falam dos Portugueses como animais selvagens no amor, esse animal estaria dentro de qualquer homem encerrado ali com ela.
- Em que está a pensar, Jadwiga?
- Agora não estou a pensar. Ainda não percebeste?
- O chapéu não a incomoda? Porque se deitou de chapéu?...
Quase lhe tocava, as mãos tinham-se aproximado ainda mais.
Jadwiga voltou-se um pouco para o outro lado, meteu os polegares junto da nuca e pôs-se a descobrir os cálidos dourados.
Foi nesse momento exacto que o telefone começou a tocar.
Ela suspendeu o movimento de tirar o chapéu e levantou o auscultador. Pedro ouviu uma voz áspera do outro lado.
Ela falou em alemão e ficou pálida, foi-se pondo cada vez mais pálida. Os lábios e as mãos tremiam-lhe. Depois desligou bruscamente.
- É ele -disse sem o fitar. - Está lá em baixo à nossa espera.
Pedro pensou ainda retê-la por um momento, mas recordou-se da conversa que tivera com Leo.
- Desça você primeiro - ordenou Jadwiga. - Diga-lhe que fiquei com Irma.
A sua voz transformara-se, seca e áspera, como se ainda falasse alemão.
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JADWIGA
Não, apaixonada não estou, mas aquela intimidade perturbou-me, a sua voz macia insinua-se em mim, serão também as palavras, talvez por estarmos sempre a repretar um para o outro, é divertido e excitante, mas a sua voz adormece; não, apaixonada não estou, ainda não/sei o que é paixão, nenhum homem foi até agora capaz de preencher a magia do meu pai, do meu único senhor, talvez porque só ele saiba impor sempre o que deseja, sabe querer, e isto para mim é importante, foi sempre importante, mas agora mais do que nunca, dum momento para o outro pode chegar a oportunidade de agir e fazer o que penso; necessito de calma, não daquela calma perturbada de Pedro, que me irritou, agora não digam junto de mim que os Portugueses não medem oportunidades nem sabem conquistar uma mulher, pois eu estava rendida, e ele não fez um gesto, não disse uma palavra, só é possível suceder aquilo com um homem ferido pelo insucesso com as mulheres, ou um homem realmente vaidoso, gostando de ver as mulheres empreenderem todo o caminho para o amor.
Quando ele me disse para tirar o chapéu, aí, sim, percebi que alguma coisa de profundo se passara com ele, as mãos caminhavam, mas o telefonema de Leo recordou-lhe qualquer coisa, talvez tenha medo de que Leo o mate, é cobarde, e quando nos encontrámos cá em baixo, Pedro já desaparecera, e eu não posso esperar, não quero que a minha vingança se protele e eu me dissolva nesta atmosfera de passividade.
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«Nunca cedas, habitua-te a não ceder», foi a única e a grande lição que o pai me ensinou, e não devo perdê-la, a minha desforra deve ser exacta e fatal como uma operação matemática, outro homem para desafrontar a violação de Leo e depois, um dia, quando será esse dia?
voo nupcial dos insectos que morrem a amar; assim foi o sonho, e aquele sonho não é senão a realidade a impor-se e a libertar-me do soldado que veio ao saque e me forçou com violência.
Estou inteiramente subjugada pela vingança, nunca lhe perdoarei, não posso, ele faltou ao que combinámos,... eu acreditei na sua palavra e por isso vim, devia ter ficado na Suíça com o pai e acompanhei Leo;
talvez não tivesse outra alternativa por causa dos passaportes falsos, mas ele enganou-me neste caminho de ansiedade e nunca se deve perdoar a um camarada que abandona outro no caminho da ansiedade, era o que dizia Otto, Otto era jovem mas conhecia, como poucos, as regras de camaradagem.
E Leo traiu-me aí, no caminho da ansiedade e da angústia que fizemos juntos desde Viena, embora eu não o amasse e lho dissesse, tinha de lho dizer, o dinheiro do pai permitia-me ser sincera, ele violentou-me com ameaças, magoou-me, agora suceda o que suceder, foi o que pensei quando cheguei a tílisa e dei aquele corte no dedo. Um médico tem o segredo profissional, e pensei em Kurk e em Pierre, o médico que me psicanalisou, em Paris,
como eu gostava de dizer esta palavra: psica-na-lisar, fui a uma farmácia fazer um penso, cortei mais do que seria conveniente, e agora vou à procura dum médico,
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não sei como hei-de perguntar à empregada do consultório, mas talvez numa policlínica, esperando no corredor, até ver um médico que possa servir para a minha vingança.
Isto assim determinado e frio, afigura-se-me falso, soa-me a falso, julgo que talvez não vá até o fim, mas sinto na minha raíz e na minha seiva, como a flor encontrada por Kafka,
um demónio lasso e molesto alimentado por mim, transformando-se no demónio atento e lúcido, e original; nunca ninguém se vingou a amar o homem que não ama, como se as moscas dos olhos de ouro também fizessem um voo nupcial de desespero, arrebatamento e morte.
Se a morte é o fim de tudo, talvez o princípio e o fim de tudo, se não seremos nós os que irão procurar uma outra dimensão para o homem, tire cada qual do Carro de Feno tudo quanto consiga guardar, mesmo só a morte e a destruição; talvez nada mais seja possível da nossa parte, as notícias alarmam sempre, agora há pressão sobre a Polónia, e o Naufrágio, de Brueghel, está a concretizar-se e a ultrapassá-lo, a ultrapassar o hediondo dos próprios pintores alemães que pintaram o fim da Idade Média; Pedro falou no irracionalismo, a estrada é larga e vamos quase todos por ela, foi por aí que nos levou o refinamento da nossa inteligência em espiral, enrolando e enrolando-se, até deixar de ver o mundo, como a pantera de Rilke encarcerada, perdendo o sentido dos volumes, das distâncias e das cores, e tudo são grades, e tudo são baionetas que violentam mulheres, e acabam por violentar a própria inteligência estéril de todos nós.
Agora penso friamente no médico com que hei-de enganar Leo e pergunto ainda «é humano procurar a vingança por este caminho?», como se não entendesse que
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só os fins contam para a gente da minha estirpe; é mais justo do que com Pedro, pois dessa maneira não seria vingança como a desejei, exactamente no momento da violação, quando tive medo da morte ao lembrar-me do colar prometido por Leo, um colar feito pelos meus dedos, mas ele assim nada saberá e é preciso que ele não o saiba, para que tudo se concretize, lúcida e rigorosamente, como uma operação matemática.
Gozo ao imaginar que a seu lado ele levará uma mulher que o engana, e contra isso Leo não saberá reagir, deixando-lhe ainda, forjando-o todos os dias, o ciúme absurdo por Pedro; há-de devorar-se lentamente, entre a raiva e a dúvida, antes que chegue a hora do voo nupcial das moscas dos olhos de ouro, pobre soldado do saque e do estupro, acabarás por preferir a morte como a única saída libertadora.
Hoje preciso de rezar, de rezar muito, nunca como hoje senti necessidade de entrar numa igreja e pôr os joelhos no chão, sem almofadas, rojando-me como essa pobre gente que faz promessas, não sei se para me penitenciar, se para entender se Deus ainda fala comigo no silêncio duma igreja, ou se eu o escuto, só eu e Deus, sem mais ninguém, a não ser a sombra de meu pai, senhor poderoso da minha vida inútil e vazia.
Como o mundo está vazio e como eu estou só. Santo Deus!...
PEDRO
Poderia imaginar que a depravação da filha de um banqueiro é também uma forma de agir, mas não me devo sentenciar??: - o combate de hoje não será travado nas alcovas
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dos príncipes da burguesia. Um homem como eu deve saber enjeitar, pelo raciocínio, o que lhe exigem os desejos transitórios, mesmo os mais exaltados, ou até por isso, para que possa ganhar a força de recusar todos os compromissos transitórios ou permanentes.
É bom saber pensá-lo, embora sinta uma mágoa dolorosa sedimentar-se em mim. Tenho nos olhos, na imaginação do sangue, as sugestões, as múltiplas encruzilhadas daquele corpo abandonado, talvez ansioso de se completar com o meu, por capricho, não sei, mas a degradação do homem também pode estar num amor sem horizontes mais largos do que as paredes dum quarto de hotel. Para ignomínia já bastou o que disse a Wanda, embora nada se concretizasse. Concretizou-se, porém, o lado pior desse encontro fortuito, quase maravilhoso, porque não dizê-lo, duma mãe afugentada pelos magos do crime, vindo na sua ânsia de refúgio cair na alçada dum cúmplice. Devo dizer isto para opróbrio meu, mesmo que a minha necessidade de amor autêntico tenha encontrado uma mulher que parecia capaz de mo dar.
Jadwiga deve ser a expiação dessa culpa. Será através dela que me redimirei do que fiz a Wanda.
Gostaria agora de lhe telefonar, ela talvez o espere; é o que me apetece fazer para ouvir a sua voz, falando-lhe de amor, sem receio de ser repelido. Agora não quero ter dúvidas acerca da nossa comunhão. Mas essa certeza bastará para satisfazer esse pequeno D. Juan que vive em mim, ao lado do outro homem, embora irrealizado, que precisa de perdurar e se prolongará para além desta mágoa dolorosa de não alcançar a mulher desejada pelo libertino.
Jadwiga talvez não volte tão cedo a procurar-me. Vejo-a com os dedos a mover o chapéu, como se tirasse
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uma máscara, cautelosamente; divido-lhe os movimentos todos: primeiro o dos dois polegares sobre a nuca e os cabelos dourados, depois o pousar do resto da mão sobre as orelhas, o flectir das falanges na lentidão de carícias, a pausa da hesitação ou do momento que se desejou a empolga, porque vai suceder, e o leve pendor da cabeça e a ternura subtil na boca apetecida, logo a transformar-se, tudo se transformou, em seguida, quando a campainha do telefone retiniu, e os dedos dela, e os nossos rostos, e a imaginação do nosso sangue, se sentiram traídos pelo alvoroço daquele apelo estridente, que varreu )••< nossas ansiedades e transformou as cores, os volumes da luz da tarde numa superfície esmagada e sombria, complexa e dorida.
Agarrei-me sempre a estes pormenores insignificantes e não os outros, e nenhum de vocês compreenderá como isso é possível perder, ou ganhar?, aquele encontro de comunhão, que só não se totalizou por, eu desejar que os seus cabelos dourados estivessem soltos e livres para os meus olhos e as minhas mãos. Ou seria um preconceito nitado??? no meu subconsciente para me inibir todos os os de posse que boiavam em mim?
Sinto-me agora, julgo sentir-me, mais seguro do que rnicndi criar como um dever de comportamento para com In, e não por ela; talvez por Wanda e por mim. Um dia Jndwiga partirá... Imagino-o com melancolia.
Antes disso, porém, faremos ainda várias pequenas teas de alta comédia ou de drama contido. É fatal. Está nos??? nossos temperamentos. Gostamos de nos ouvir; representamos sempre um pouco, quando estamos juntos. Ela deve ter também a consciência disto. Mas há uma coisa que lhe ficarei a dever: preciso, penso-o só agora de consciência plena, é imperioso refazer a minha vida, libertando-me desse egoísmo absurdo e desumano
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que me fez protelar uma situação degradante. Sem isso não seria possível suceder o desvairamento com Wanda. Devo encontrar a minha felicidade individual, sim, no amor, enjeitando este monstro pequeno-burguês a aconselhar-me prudência e resignação no casamento enganoso que fiz. O homem social só se/realiza plenamente quando o indivíduo, que está nele, não o possa trair.
Não é possível ter o coração do lado da minha gente e as pantufas em casa do meu inimigo.
Abro a janela do escritório, vou até à estante dos meus livros, entro nalguns deles, e envergonho-me de mim, e conforto-me comigo. Em cima da secretária estão espalhadas algumas folhas do romance que não progride há semanas, à espera não sei de quê. Só sei que o meu romance gritará por socorro; é só o que sei, e isso me basta por agora. Depois, com o tempo, com os anos, hei-de apurar a minha visão do mundo, exprimindo-me doutra maneira ao escrever, porque, então, talvez as palavras sejam mais dóceis e se encham de ressonâncias que não sei agora encontrar.
«Antes um homem que um escritor», disse Pascal,
julgo que foi Pascal quem o afirmou. Eu quero tornar possível o encontro e a convivência de ambos em mim.
Vai ser tão difícil!...
Mas acabarei por chegar depressa, metendo por longos caminhos, sem cuidar da estafa nem do tempo da jornada. Nem das pedras que irão sempre arremessar-me, e sempre mais, quanto mais perto eu estiver do fim do meu caminho. Talvez ele possa ser o começo da jornada dos outros que virão depois e hão-de prolongar-me até onde eu nunca sonhei chegar alguma vez,
Sento-me na cadeira do meu calvário e da minha redenção, alienado e solitário, mas certo de que, mal
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comece a primeira palavra, virão até mim muitos companheiros de que nunca vi o rosto, mas cuja respiração me larga no bafo quente desta noite. Vou gritar por socorro. Vou gritar o mais alto que puder.
Um homem e um escritor fazem-se todos os dias. Devagar mas todos os dias. Através de contradições mas todos os dias.
Soou a campainha da porta.
Quem será a esta hora da noite?!... Virão buscar-me!...
LEO
Sentia a toda a hora que descíamos um declive. Já não poderia deter o carro da guerra, mas gostava de - iludir, talvez por não querer pensar no que sucederia ali. Depois da Áustria e da Checoslováquia a avalanche não parava, ninguém conseguiria suster a marcha abismo. Aí estava a sementeira que tínhamos festejado com uma ceia no nosso clube; estávamos todos, e felizmente Goldstein mais do que qualquer outro. Ele brindou pela paz e pela prosperidade, convencido de que entregue aos nazis austríacos nos poria a coberto de qualquer ameaça.
Depois, quando tivemos de fugir de Viena, quase udiei esse momento por causa de Jadwiga. O perigo aproximar-nos fatalmente, e seria possível, supunha mantermos ainda aquela medida de tolerância que prolongar a nossa união mais reforçada com a compra dos passaportes. A ilegalidade assegurava-me uma idade equívoca.
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Rememoro tudo isto a olhar um jornal de que só compreendo algumas palavras. Mas essas bastam para me deixar aterrado, sem quase poder levantar os olhos. Noutras mesas muitos choram, em silêncio, agora em silêncio, depois que levaram aquele velho que se pôs a gritar e a rir, sacudindo/os que estavam junto de si, «estamos mortos, estamos todos mortos». As vozes vieram de longe, foi um alarme, e começaram a caminhar para nós, a pesar-nos no coração, aí vinham, vinham por cima de todos os ruídos da praça, e num instante tudo se encheu daquela certeza alucinante, nós e as coisas, olhando uns para os outros, na esplanada e lá dentro, sem sermos capazes dum gesto, como se os primeiros que pegassem no jornal fossem acusados de desencadear o que nele se anunciava. Sabíamos de Dantzig, do pacto de não agressão germano-soviético, do alinhamento do Governo e do exército polacos com os nazis, mas para eles isso não era suficiente, eles queriam a hegemonia sobre toda a Europa. E as vozes gritavam agora à nossa frente, estendiam-nos a certeza, «a invasão da Polónia traz a guerra!»; e tolhidos, espantados, começámos a ouvir o velho, «estamos mortos, estamos todos mortos», até que alguém comprou o jornal, não sei quem foi, talvez eu próprio, e lá estava a certeza, a certeza irremediável de que iríamos ser assassinados também, se não conseguíssemos fugir.
Arrastaram o velho para fora e levaram-no, partiu um automóvel a buzinar, e ali ficámos aterrados, como se os nazis irrompessem dentro de instantes pela pastelaria e nos obrigassem a sair, à força de coronhadas. os Judeus lá para fora; era dessa ameaça que tínhamos fugido, da marca nos passaportes, da estrela amarela no fato, das cadeias, dos pelotões de fuzilamento, e de tudo o que não podíamos agora imaginar, ou do que
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imaginávamos para além das notícias que vinham dia a dia, nos jornais, nos noticiários da rádio e nos boatos.
Agora a Polónia, agora a Polónia, a colheita de judeus vai ser farta, que mais haverá amanhã?!
Fui ao telefone, marquei o número de casa, queria avisar Jadwiga, mas ela não estava, disse-me a senhora: fora ao médico por causa do dedo. Pensei nela e em Pedro, se calhar aquilo do médico era a maneira de esconder os seus encontros, mas até essa dúvida ia acabar, tudo iria acabar dentro em pouco. Saí do meu canto sem cumprimentar os que estavam ali perto, levantei a cabeça, envergonhava-me de encontrar outros olhos, e comecei a seguir??? em direcção a nossa casa, sem pressa, iria a pé, siguiria ainda pelo Chiado, talvez Jadwiga estivesse com Irma e Pedro a tomarem chá, embora fosse cedo. As pessoas agitavam-se a conversar e a discutir, havia mais gente na praça, os automóveis rodavam a maior velocidade, e luravam as sereias, tocavam, como se a guerra fosse chegar dentro de instantes até ali.
Aproximava-se o momento tão receado. Teríamos de nu da Europa. O equívoco acabaria quando atravessásse-nus o Atlântico. O Goldstein irá lá ter, com certeza, Jadwiga pedirá a separação, voltaremos a ser os mesmos que vivemos em Viena, e a hora da minha decisão vai chegar. Terei força para ir até ao fim!... julgo que não hesitarei quando tiver a certeza de que eles me querem alijar.
D bou homem para cruzar os braços. Tudo, é preferível ido, a tornar-me num pobre diabo, digno de compaixão. [ meu pai também exige vingança. E só eu lha posso oferecer.
Mas talvez exagere...
Preciso de saber esperar e agir. Parece-me que reencontro a minha calma e a minha eficiência dos tempos de menimo. O que será feito de Sara?!...
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CAPÍTULO DÉCIMO
QUIS estar sozinha com ele, antes de partir para Buenos Aires.
Para quê? Olha que pergunta! Não sabia bem... Se lhe fizessem a interrogação, talvez respondesse «para lhe agradecer», o que seria uma forma equívoca de não explicar o que pretendia.
Jantariam ainda na parte de casa alugada, perto do Jardim da Estrela, mas esse convívio de mais cinco ou seis horas seria também partilhado pelo marido. Embora sem esperança, gostaria de compreender o seu estranho comportamento. -Pensara dele coisas justas - com certeza! - e coisas absurdas. O que ele a obrigara a pensar!...
Pedro diria - o que ela o obrigara a fazer!
Uma tarde tão doce lá fora e os dois sentados ali, no fundo da pastelaria, mergulhados numa luz doente, como dois peixes bizarros dentro dum aquário. Dois peixes que por absurdo mimetismo tivessem tornado melancólica aquela tarde de Setembro.
Jadwiga estava triste. Estavam ambos tristes, para melhor dizer. Voltariam ainda a encontrar-se? Ela desejava-o agora.
- Já nos conhecemos há seis meses - que o lembrou.
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A tristeza ia-lhe bem com os cabelos dourados. Como se no instituto de beleza lhe recomendassem que se mostrásse apreensiva, numa forma subtil de sublinhar a harmonia do rosto. Ele nunca a vira tão bela. Os seus olhos verdes estavam líquidos, pareciam transparentes, de um verde que Pedro só julgara encontrar na praia do Baleal.
- Meio ano! - repetiu Jadwiga.
- E talvez nunca nos tivéssemos conhecido - respondera Pedro, olhando para a porta.
Ela trazia na cabeça um chapéu de feltro negro, como se assim protestasse contra a doçura daquela tarde. Pu-lo, só porque era o chapéu que ele tanto gostava de ver. Ela sabia-o, muito embora Pedro nunca lho dissera.
Eram quatro horas. Mais exactamente, quatro menos iam tomar o chá das cinco. Havia ainda pouca gente aquela hora. Não interessa referir quem estava, nem como espelhos. O salão tinha espelhos, é de supor. Lis não deixa conversar sem a presença de espelhos, ignorando que as pessoas estão cansadas de se verem repetidas pur seus olhos. Voltámos todos de um outro mundo, e não é agradável compreender que somos cadáveres vivos.
Pois eram quatro menos dez.
Queriam ficar até à hora de jantar. Ambos sabiam que a última vez que ali se encontrariam juntos. Ali e em qualquer outra parte, pensava ele. Talvez com amargura. ??? também com alegria. «Sim, estava cansado. Cansado de se dominar. E porquê?», pensava Pedro.
Olhavam-se e não demoravam esse contacto. Mas havia uma certeza, amanhã já não se poderiam ver, amanhã , e depois, talvez sempre, e estavam um defronte do outro. Para se perceberem ainda, pensava Jadwiga, numa última esperança. E foi por isso que perguntou:
-De quem é a culpa se não nos conhecemos?
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Tentava disfarçar a emoção com um sorriso. Como se sorrisse por causa da colher que fazia rolar na toalha.
- Não interessa agora averiguar- respondeu Pedro. Agora estou arrependido do que perdi. - Que ganharíamos com isso?
-Não gosta...
Ele interrompeu-a bruscamente:
- Não gosto de aprofundar certas coisas que se passam na minha vida.
Ela sorriu outra vez e pensou: «Quer presumir...»
- Esse sorriso significa que está a achar-me cobarde... E talvez tenhas razão.
- Não, engana-se. É um sorriso branco. Não pensava em coisa alguma. Aqui em Lisboa habituei-me a ser um corpo que não pensa. Meti-me nos vossos hábitos.
- Porque diz isso?
-Os senhores não deixam que as mulheres pensem.
Não gostas que to diga; tem paciência. Que vão, sequer, sozinhas a um café.
- Gostamos demasiado das mulheres - respondeu Pedro por gracejo.
E olhava-a agora bem nos olhos, nesses maravilhosos olhos verdes que nunca mais descansariam nos seus. Queria decorar-lhe todo o rosto, como dizem os romancistas quando descrevem duas pessoas que se amam. Sim, também aquele tom branco de pele, levemente rosado. E porquê, se gostava de morenas? E a penugem do rosto, e o feitio oval do rosto. E a boca pintada. Se a tivesse visto alguma vez sem a boca pintada, talvez a despedida não se fizesse ali naquele aquário. Apeteceu-lhe perguntar, zangado, porque andava ela de boca pintada.
Embaraçada com a insistência do olhar, Jadwiga voltou a sorrir, como se adivinhasse que ele lhe queria ver
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os dentes. Tinha uns dentes pequenos; não, não eram bonitos. Cor de marfim pálido. Talvez por isso fumasse pouco.
- Sabe que é o último dia que vimos aqui ?
-Sei... Infelizmente, sei.
- Juntos, quero dizer. Você virá com outras mulheres.
- Engana-se...
- Vão aparecer-lhe muitas no consulado...
- Talvez não. Mantém-se a interdição dos vistos.
- Poderá aparecer alguma como eu... Ou como Irma. Com essa terias outro comportamento. E você fará o mesmo, com certeza.
- Julgo que não.
-Gostava que voltasse aqui algumas vezes, Pedro. Sem mim para quê? Gostava sinceramente...
- Não é fácil.
- Não lhe agrada esta casa?
- É-me indiferente... Nunca aqui entrara. Sou um homem??? simples, como sabe. (Ia a dizer e modesto; mas julgou??? magoá-la.) Não é fácil voltar.
Jadwiga gostaria que ele lhe dissesse «não virei por tua causa», e Pedro pensava nisso mesmo. Mas preferiu omitir-se. Ela partia no dia seguinte e não era naquele momento que iria dizer-lhe o que sempre escondera.
- Se o convidarem não vem?
- Saberei impedir que me convidem. Veremos, veremos;??? não serei tão idiota como agora.
- Posso saber porquê?
- Não serei capaz de lhe dar uma explicação. Que ssam hoje as explicações?!
Ficaram silenciosos. O criado aproximou-se com um sorriso discreto e untuoso. Ela despediu-o com gesto da sua mão pequenina. Pedro lembrou-se que gostava das suas mãos. «Ainda bem», pensou. Apetecia-lhe??? segurar a que estava mais perto das suas.
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- Amanhã, a esta hora, irei na primeira classe de um barco, -talvez na amurada...
- A ver os golfinhos, esses cães do mar - interrompeu Pedro numa gargalhada curta, que depois lhe pareceu idiota.
- A pensar em Lisboa - comentou ela, fitando-o.
- Gosta assim tanto de Lisboa? Estamos românticos os dois.
Jadwiga acenou a cabeça. Evitava agora levantar os olhos. Tinha receio de se trair. Ele compreendeu-a e sentiu-se embaraçado.
-Vamos dar espectáculo para outro lado...
-Que espectáculo? Eu é que to dei e pouco edificante para mim...
- Ainda ontem reli a Epístola de São Paulo Apóstolo. Agora leio-a muitas vezes. Fixei duas passagens: uma diz que «é horrenda coisa cair nas mãos do Deus vivo». Daí a nossa fuga. Foi por isso... (Queria dizer: só assim nos conhecemos.) Foi por isso que vim para Lisboa. Eles vão destruir todos os judeus que encontrarem. Temos recebido notícias. Voltaram agora a fazer os guetos. A outra passagem recorda que os Hebreus foram feitos um espectáculo com opróbrios e tribulações. Regressámos aos primeiros dias...
-Mas a Jadwiga...
- Você assistiu a um espectáculo que lhe dei com o meu marido.
Não lhe respondeu. Nem um triângulo amoroso soubemos fazer. Puxou de um cigarro, apertou-o nos dedos trémulos. Um rapazola fardado estendeu-lhe um isqueiro aceso.
- Gostava de saber como vai acabar a nossa vida.
-Está a pedir demasiado...
- Algumas vezes faço como você: evito pensar.
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- Pensar no nosso tempo é um crime.
- Tenho medo do que penso - prosseguiu Jadwiga quando o rapaz se afastou.
-Na Argentina tudo mudará...
Ela deixou um sorriso amargar-lhe no rosto, esboçando com os dedos um gesto evasivo e cansado. Depois encarou-o.
- Um dia há-de falar-se muito dos judeus assassinados. Muito. Mas destes dramas...
-'Poderá chamar-se-lhe assim?
-Para os que os vivem, com certeza. Uns e outros fazem parte igualmente deste mesmo apocalipse.
- Como os dos exilados nas suas pátrias... Porque estarei a falar nisto?
- Que quer dizer?
- Que os dramas silenciosos não são os menos terríveis???.
- Refere-se a algum símbolo?
- Não. Falo de homens. E a maior tragédia do nosso limpo??? está ainda no facto de muitos não se aperceberem o que lhes sucede, ou de pensarem que a ameaça não paira sobre eles.
- Quer dizer...
- Quero lembrar outro aspecto do apocalipse que hoje vivemos.
- Posso fazer alguma coisa por si?
Já o fez. Só eu fui culpado da frustração do nosso rumo.
-Nunca conheci homem tão orgulhoso como você. Já reparou que me podia humilhar com essa atitude?
- Não falemos nisso. Se tivesse um automóvel, talvez Acacabássemos aqui...
Ela pediu-lhe um cigarro pela primeira vez. Apeteceu-lhe que Pedro se oferecesse para lho dar aceso. Ou que
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lho entregasse já assim. Mas pensou depois que estava a ficar romântica, não, não gosto de romantismos, embora gostasse de sentir que, finalmente, pelo menos na hora da despedida, não era uma mulher sem interesse para ele. Olhou-o com ternura. Teve vontade de baixar os olhos e de chorar. Mas Pedro parecia longe. A melancolia de sempre rasgava-lhe mais fundo os traços do rosto inquieto.
Foi Jadwiga quem quebrou o silêncio.
-O Apocalipse fala de um cavalo branco, de um cavalo vermelho, de outro amarelo e ainda de um negro. No cavalo vermelho vai a guerra montada... No cavalo amarelo galopa a morte...
- E o cavalo amarelo espantou-se e corre pelo mundo com o freio nos dentes.
-Não foi só o cavalo amarelo que se espantou, Pedro. Espantaram-se os quatro. Foi por isso que fugi... Ele não se conteve e disse:
- Foi também por isso que nos encontrámos. Jadwiga encolheu os ombros, como a perguntar acha que valeu a pena?
E pôs os seus olhos nos dele.
Ficaram assim por momentos, como esquecidos. Jadwiga pensava no voo nupcial da mosca dos olhos de ouro, e encheu-se-lhe o rosto de amargura, mais e mais, quando se pôs a afagar a dedeira que lhe tapava a ferida já imaginária do golpe no dedo. Tudo parecia destruído à sua volta, ela própria também, mas no meio das trevas havia ainda uma pequena chama.
-Se lhe escrever...
- Vai esquecer-se de mim muito depressa.
- Não vale a pena dizer-lhe agora tudo o que penso a seu respeito. Mas devo revelar-lhe que foi realmente o meu único amigo de sempre...
-Jadwiga!
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- Não, não estou a exagerar.
-Gostaria que fosse sincera.
- Já o fui no que é possível agora. O resto ficará para um dia...
-Porquê?
-Não mo pergunte. Mas diga-me: se lhe escrever, a pedir que nos encontremos em Buenos Aires, irá ter comigo?
-E Leo?... Tenho de ficar, Jadwiga, eu devo ficar. Não responde?
Ela desviou o olhar, talvez por sentir no de Pedro aquele mesmo fogo que lhe vira no quarto de Irma, um pouco antes do telefone os despertar para a realidade. O seu rosto parecia iluminar-se, por instantes, mas logo uma lembrança perpassava nele e o tocava de amargura, como se a solidão voltasse a correr os sete véus impossíveis de o atravessar, a não ser pelo amor.
- Em Buenos Aires poderei separar-me de Leo - disse por fim. - É forçoso que nos separemos.
- Isso quer dizer, Jadwiga...
- Não interprete nada. Já é tarde para o fazermos. Só deve responder ao que lhe perguntei: sim ou não?!...
E os seus olhos maravilhosos e tristes voltaram a fixá-lo, à espera. Ele só estendeu a mão, apertando a sua, apertando-a muito, a prometer-lhe tudo o que ela quisesse naquela hora de despedida.
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Epílogo
Onde se não recapitula nem se dá fim ao drama.
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rascunho da carta que Pedro nunca enviou a Jadwiga
Foi esta manhã, quando caminhava por pequeno bosque, onde o sol arrefece e a esperança desespera, onde a angústia se esquece e se agarra aos ramos mortos para ainda viver, que tive a sensação de me mover no fundo do mar como um velho tubarão solitário em busca de um refúgio para descansar e morrer, e só então pensei em te escrever uma carta, passados alguns anos do nosso encontro em Lisboa. Talvez por causa desta luz de Outono, luz doente e branda, e também doce, envolvido por folhas caídas das árvores sacudidas pelo vento, como tu e como eu; mas essas ainda subiam no espaço como se arranjassem asas e fossem noivar lá em cima sobre a minha cabeça urdida???. Mas nós... Que é feito de ti?
Deixa-me dizer-te primeiro o que me fez aliar esta luminosidade melancólica a ti, Jadwiga, meu remorso destes anos todos. Fui a Varsóvia e aí encontrei esta mesma coada??? e infeliz. Estive no gueto, onde viveram milhão meio de pessoas como nós, todas assassinadas. Pairava sobre aquela área destruída uma luz vazia que é preciso encher, um silêncio activo, um túmulo imenso que seria de esquecer, mas que deve estar vivo em todos nós.
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Ali, e apontaram-mo, ali fuzilaram, em menos de uma semana, quarenta mil homens e mulheres, o resto dos trezentos mil que viveram os últimos dias do gueto, cujos muros desapareceram, assim como as casas, as ruas e os becos, e os sorrisos, e as dores, e os gritos, e o amor, e o ódio, e o homem, e os homens. Onde estavam os homens? Onde estava Deus? Onde nos puseram? Quem os guardou para esta morte que senti roçar por mim naquela manhã tão doce?
Tão doce e tão dolorosa, de tal maneira terrível que me espantei de ali chegar o sol, como se o sol fosse mais uma chaga absurda naquele pântano de infâmias.
E o tal silêncio activo, o silêncio activo da morte, o silêncio da dor, o silêncio dos gritos amordaçados, o silêncio das balas na nuca, o silêncio recolhido e clamoroso de milhões de homens chacinados...
E aquela casa comprida e branca com um arco pelo qual se passava para um pátio onde não fui capaz de entrar, como se de repente te pudesse ver também, como se só tu ficasses assassinada, para eu te encontrar no meio daquele silêncio terrível e denso duma montanha. Silêncio ao mesmo tempo frágil, como choro de criança estrangulada, silêncio transparente da luz que caía do céu, filtrada e leve, magnânima e triste, talvez arrependida de voltar depois de tudo o que viu. Foi ali que os fuzilaram, um pouco por toda a parte, e só a casa branca, uma absurda casa branca, matadouro de gente, a recordar que por lá andaram'as alimárias da terra, de que me falaste uma tarde, em Lisboa, quando ias partir.
Agora só havia escombros, nem um palmo de parede em todo o gueto, ruínas, só ruínas, tudo pulverizado e tão ausente, e tão presente tudo, que também tu me apareceste, tu, Jadwiga, que podias ser o primeiro amor da minha vida, e talvez o último, e talvez o único.
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Onde estavam os homens?
Onde estava o Deus em que crias?
E porque deixa Ele que se ajoelhem aos seus pés os mesmos que fizeram este apocalipse?
Em que querem que tu agora acredites?!...
Não, não me perguntes como era a casa branca e comprida, nem o arco, nem o pátio, não sou capaz de te apontar um pormenor; sim, era uma casa, e talvez nem branca fosse, só sei que eram quarenta mil pessoas, e que também tu, por seres da mesma raça perseguida, podias estar entre eles com esses teus cabelos louros e esses teus olhos verdes, e essa tua voz tão branda e tão dorida, e tão minha, que eu nunca quis ouvi-la no mesmo travesseiro.
Foi ali que voltei a encontrar-te. Melhor: foi ali que realmente nos revelámos um ao outro, como se só então te visse.
No gueto de Varsóvia, sim, no gueto de Varsóvia, tão longe donde agora vives, se ainda vives, meu amor, e só uma vez te tratei por amor, sem ter coragem de to dizer;
quando morrer será isso um dos remorsos que levarei comigo. Eu tinha de ficar, eu precisava de ficar, não sei bem porquê, ou talvez o saiba demasiado, e nem ainda to posso dizer, calcula! Como eu vivo quase vinte anos depois de te conhecer, quando entre os quarenta mil fuzilados muitos houve que encararam a morte a sorrir, e cantaram para as metralhadoras, convencidos de que morriam para que eu e tu fôssemos felizes, e nunca mais se perseguissem e aniquilassem os homens...
Como tudo foi inútil! E como tudo foi necessário!...
À frente das ruínas e voltado para a casa, um monumento com um homem a empunhar uma bandeira, uma mulher a seu lado, e mais gente, e mais rostos ansiosos, todos a encararem o arco por onde entraram em filas cerradas quarenta mil mulheres e homens, que nunca mais
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sorriram, nem amaram, em filas cerradas como a que se vê no baixo-relevo do monumento, no qual só há a ponta de uma baioneta e o pedaço de um capacete, e essas sugestões bastam para estremecerem, não de medo, mas de horror e de repugnância, quantos ali passam para ver os traços da galopada infernal do cavalo amarelo, de que tu me falaste pela primeira vez.
Foi entre os escombros que nos encontrámos plenamente.
Senti a tua mão na minha, deixei-me chorar, chorávamos todos. E agora choro, às vezes, de repente, sem ninguém perceber de quê, nem eu próprio o sei, basta uma palavra, qualquer coisa que me lembre o drama de todos nós, os que morreram e os que ficaram para testemunhar e sofrer o resto.
Agora voltei a ter esperanças que irei viver em condições terríveis; nada me prende e me impede, porém, de seguir esse caminho. Mas os dramas individuais precisam de ser superados, pois o mundo não vai acabar, e os homens não podem deixar a degradação apossar-se deles, mesmo que pareçam enterrados na lama. O mundo vai continuar e somos nós, nós os que vivemos este tempo quase irremediável, que teremos de o erguer depois de assistirmos à destruição de muita coisa precária e de muita coisa essencial. Dolorosamente talvez, com todas as feridas a sangrarem, lamentando, ao princípio, cada gesto que iremos fazer, doridos de tudo, do próprio pensamento e até das vagas esperanças que nos convidam a recomeçar.
Um caminho ainda cheio de abismos, de sobressaltos, de recordações iníquas, mas a que não poderemos renunciar, porque a renúncia é o sinal da morte. Tomarei o risco de me enganar com a lúcida humildade de perceber que sou susceptível de cometer mais erros, mas também com o orgulho de aceitar que só procurando, mesmo na
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noite, na noite mais noite de quantas o homem até hoje viveu, se pode encontrar o caminho da saída para o ar livre.
Talvez ainda possamos sorrir. Feridos, quase exangues, como o soldado que se arrasta pela lama com os olhos cheios de visões dramáticas, sabendo, ou ignorando, que no fim dessa fornada de serpente conseguirá levantar-se encostado à própria dor.
A noite acabará por sucumbir. Não há outra fatalidade.
Será terrível, Jadwiga, mas não conseguimos recusar o mundo. É nele que estamos enraizados; é ele que nos faz e somos nós que o fazemos. Todos os dias. O drama está em cada um e no todo. E na carne da vida encontram-se as tragédias e as alvoradas numa luta permanente. Mesmo compreendendo - como é terrível sabê-lo! - que, depois de a noite ceder, outra noite virá. O que precisamos é de fazer com que as noites sejam menos longas. Depois de cada uma, é inútil e preciso lembrá-lo, o dia volta sempre também. Preparemos os dias. Tornemo-los cada vez maiores. É um caminho...
Como é quase absurdo, e bom, guardar ainda confiança no meio de tanta e tamanha dor!
Levo-te comigo. Não iremos sós.
Vai comigo a recordação de ti, Jadwiga, que nunca foste realmente minha, ou o foste demasiado, e ficarás na minha vida como qualquer coisa de essencial, talvez porque consegui recusar-te, não tanto por ti como mulher (só agora percebo quanto te desejei!), mas pelo que tu representavas de renúncia.
Um dia perguntaste-me quem era Wanda e eu não to disse.
E agora faço eu a pergunta: quem foi Wanda?...
Alves Redol
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