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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CEGO DE SEVILHA - p.2 / Robert Wilson
O CEGO DE SEVILHA - p.2 / Robert Wilson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

   

 

SEGUNDA PARTE

 

10 de Fevereiro de 1943

 

Nada do que o desertor ucraniano nos contou nos preparou para isto. As 6h. 45, as armas de Kolpino abriram fogo sobre nós. Mil peças de artilharia dispararam simultaneamente. A devastação, numa questão de minutos, foi tão grande como na sequência de um tremor de terra. Saltaram colinas inteiras, numa erupção semelhante à provocada por pressão vulcânica. Os pinheiros eriçados do gelo incendiaram-se. A neve à nossa volta derretia-se instantaneamente. Posições fortemente fortificadas, atrás de nós, desapareciam engolidas pela terra fumegante. Estávamos isolados. Não havia telefones nem visibilidade: o ar ficou coberto de fumo preto e fedendo a turfa. Agachámo-nos sob uma torrente de terra, pranchas, arame farpado, blocos de gelo e, por fim, membros humanos. Braços, pernas, cabeças enfiadas em capacetes, um torso meio queimado. Era o preâmbulo. Rezava assim: «Não vão sobreviver.»

 

Alguns dos homens soluçavam, mas não de medo, apenas por incapacidade de absorverem o choque. Esperámos. O inevitável «Urra!» e os Vermelhos carregaram. Lançaram-se pelo nosso campo de minas e, dez metros depois, estavam todos por terra. Seguiu-se nova leva. Mais dez metros e estavam todos por terra. Quando atingiram o limite do campo de minas, abrimos fogo e ceifámos as fileiras deles, uma após outra. Havia já cinco camadas de cadáveres e, ainda assim, eles não desistiam. Disparámos sem trégua, com os canos das nossas metralhadoras pesadas surpreendentemente rubras, apesar do frio gelado da manhã.

 

Os Vermelhos mandaram os novos tanques KV-1 contra o seu objectivo, os montes Sinevino. Os nossos obuses de 37 mm ricocheteavam na blindagem.

 

Estávamos isolados à esquerda e à retaguarda. Massacraram a nossa posição. O nosso capitão foi atingido num braço. Os pequenos tanques T-34 irrompiam contra as nossas fileiras, com a infantaria atrás deles, que nós desfazíamos, escorrendo sangue por baixo das capas dos camuflados brancos. Atingiram-nos com morteiros antitanque, até deixarmos de conseguir pensar. No final, não tínhamos uma única metralhadora pesada. Nem espingardas automáticas. Qualquer russo que se aproximasse era puxado para dentro da trincheira e apunhalado. Mais fogo de morteiro. Apetecia-me rir da nossa posição, que era completamente desesperada. O capitão foi atingido numa perna. Andava aos saltos de um lado para o outro, exortando-nos a permanecer firmes. «Arriba España! Viva la muerte!» Estávamos estupidificados pela batalha. As nossas caras estavam todas negras, à excepção dos olhos, que eram brancos. Dormíamos onde estávamos. O capitão iniciou um discurso final inflamado: «A Espanha está orgulhosa de vocês. Eu estou orgulhoso de vocês. E é absolutamente um privilégio para mim tê-los comandado na batalha de hoje...» Foi interrompido por vinte espingardas russas apontadas para dentro da nossa trincheira.

 

12 de Fevereiro de 1943, Sablino

 

A primeira pergunta dos Vermelhos foi: «Quem tem relógio?» Os nossos dois oficiais restantes ficaram sem relógio. Quatro dos nossos feridos foram passados à baioneta onde estavam. Puseram-nos em marcha pela estrada Moscovo-Leninegrado. O cenário de devastação era tão descomunal, as baixas russas acumulavam-se a tal altura no chão, que era compreensível que todos os Vermelhos que encontrávamos estivessem toldados pelo álcool. Alguns dos nossos guardas desviavam-se no percurso para várias celebrações etílicas. Quando chegámos ao rio, dois russos escoltaram o capitão, para interrogatório. Restaram quatro homens, que nos iam levar para um curro de arame farpado, em Ian Izhora. Não nos agradava passar a noite ao relento. Conversámos em espanhol e, a um sinal, deitámo-los abaixo. Um único golpe na garganta do guarda mais próximo de mim e eis-me em fuga da estrada de troncos, correndo na direcção da turfeira, ziguezagueando pelos campos. Puseram-se a disparar à toa. Alcançámos uma velha trincheira antitanque e corremos por ela até onde tinham estado as nossas linhas. Apenas vimos russos bêbados e sonolentos. Chegámos à estrada principal, onde ouvimos as palavras: «Alto! Quién vive?» Respondemos: «España!» e caímos em braços amigos.

 

13 de Fevereiro de 1943

 

O que vi há dias enfraqueceu-me. Sou menos humano depois do que vi e fiz. Glória em batalha é coisa do passado. Os heróis individuais desaparecem no miasma da guerra moderna, em que máquinas trovejantes aniquilam e volatilizam. É-se corajoso e pode-se sentir ufano nem que seja por se ter entrado na arena. Eu entrei e sobrevivi; e nunca me senti tão sozinho. Mesmo depois de ter fugido de casa, nunca me senti tão só como agora. Não conheço ninguém e ninguém me conhece. Tenho frio, mas vem de dentro. Com o meu casaco de pele de lobo e o meu gorro de pele de urso sou um animal solitário, sem alcateia, perdido na planície nevada, em que o horizonte se funde com a paisagem de modo que não se reconhece princípio nem fim. Estou cansado, com um cansaço que me esmaga os ossos, de tal modo que só desejo dormir, com sonhos tão brancos como a neve e num frio que sei que me levará embora sem dor.

 

9 de Setembro de 1943

 

Não escrevo uma palavra desde Krasni Bor. E agora que li para trás, percebo porquê. Estou destacado no 14º Batalhão de Retorno e isso dá-me forças para encarar outra vez as páginas. Hoje os russos disseram-nos que os italianos tinham capitulado. Escreveram um cartaz, em enormes letras vermelhas: «Españoles, Italia se ha capitulada! Pasares a nosotros.» Alguns guripas esgueiraram-se por baixo do arame, destruíram o cartaz e substituíram-no pelo deles: «No somos italianos.» Por uma vez, os alemães puseram-se do nosso lado.

 

A minha cabeça está assestada para o regresso a casa, só que não tenho casa. Só quero voltar para Espanha, sentar-me sob o calor seco da Andaluzia com um copo de tinto. Decidi que vou para Sevilha e que Sevilha será a minha casa.

 

14 de Setembro de 1943

 

Marchámos para longe da frente de Volosovo cerca de 60 km. Esperava ficar feliz; a maioria dos guripas cantava. Ainda estou dominado pela fadiga. Esperava que o afastamento da frente me ajudasse, mas o meu espírito está toldado e mal consigo falar. Suo durante a noite, a minha almofada fica encharcada, apesar de não estar calor. Nunca adormeço de forma gradual. É mais uma sucessão de espasmos, que começam na cintura e vão estalando até à minha cabeça, como chicotadas. A minha mão esquerda treme e está espasmódica. Acordo com a sensação de que as mãos não me pertencem e vivo permanentemente aterrado. Olho para os meus desenhos e não é a linha de horizonte de Leninegrado com a cúpula da catedral de Sto. Isaac e a agulha do Almirantado, nem os retratos dos meus camaradas e dos prisioneiros russos que me tocam. São as paisagens de Inverno. Folhas de papel branco com esboços vagos de edifícios, izbas ou pinheiros. São uma abstracção de um estado mental. Uma vastidão gelada em que até as certezas são apenas uma presença vacilante. Mostrei um a outro veterano da frente russa e ele olhou longamente para ele. Acho que viu nele o mesmo que eu, mas devolveu-o com estas palavras: «Isso é um lobo com um aspecto estranho.» Fiquei perplexo com aquilo; mas de vez em quando diverte-me e dá-me o primeiro vislumbre de esperança desde Fevereiro.

 

7 de Outubro de 1943, Madrid

 

Deixei hoje, oficialmente, a Legião, depois de doze anos de serviço. Tenho uma mochila e uma sacola com os meus diários e desenhos. Tenho dinheiro suficiente para me aguentar um ano. Vou para a Andaluzia, para a bela luz outonal, o céu de azuis ofuscantes e o calor sensual. Vou desenhar e pintar durante um ano e ver o que sai daí. Vou beber vinho e aprender a ser preguiçoso.

 

Devido ao bloqueio americano, há pouco combustível para transportes. Vou ter de ir até Toledo a pé.

 

Quarta-feira, 18 de Abril de 2001, casa de Falcón, calle Bailén, Sevilha

 

Os desastres no sono: todas as quedas e cuspidelas de mãos-cheias de dentes e exames a que não se chega a tempo e carros sem travões e precipícios a desmoronarem-se. Como é que se lhes sobrevive? Devíamos morrer de medo, noite após noite.

 

Falcón atirou-se para a escuridão envolvente com estes pensamentos em queda livre pelo poço da sua mente. Sobreviveria ele aos seus desastres pessoais? Só se banisse o sono, fugindo ao esmagamento de um império em decadência e aterrando nos cacos do seu próprio mundo.

 

Foi fazer uma corrida à beira do rio escuro. A madrugada estava a romper e, no regresso, parou para observar um barco com oito remadores. O casco deslizava através da água, afundando um pouco a cada impulso gerado pela equipa harmoniosa. Gostaria de estar lá com eles, fazer parte daquela máquina inconscientemente brilhante. Pensou na sua própria equipa, com a sua falta de coesão e os esforços fragmentados; e no seu comando. Andava alheado, tinha perdido o controlo, não conseguia imprimir um rumo à investigação. Retesou-se, atirou-se para o chão e, por entre 50 flexões, foi dizendo às pedras da calçada que hoje ia ser um dia diferente.

 

A Jefatura estava silenciosa. Chegara cedo outra vez. Deu uma olhada ao relatório de Ramírez. O portero não se lembrava de ver Eloisa Gómez entrar no cemitério, o que não o surpreendia. Serrano tinha terminado a ronda pelos hospitais e fornecedores de material cirúrgico e não havia registo de roubos ou vendas inusitadas. Leu o resultado da autópsia de Eloisa Gómez. A médica forense tinha revisto a hora da morte para as 9h 00 de sábado. O conteúdo do estômago revelava uma refeição parcialmente digerida de solomillo, lombo de porco, que teria sido consumido depois da meia-noite. Também havia um petisco praticamente por digerir, composto provavelmente por chocolate y churros. O nível de álcool no sangue revelava que tinha estado a beber a maior parte da noite. Falcón imaginou o assassino levando Eloisa a sair, como se fosse sua namorada, a oferecer-lhe um jantar caro, a levá-la a um bar ou a um clube e depois o clássico petisco da madrugada. E a seguir? Vamos para minha casa? Talvez não a tenha cloroformizado, e tenha soltado a meia, enrolando-a pela perna abaixo, beijando-lhe a coxa, o joelho, o pé. Depois, quando ela se atirou para trás, na cama, para ser amada no verdadeiro sentido do acto, se calhar pela primeira vez, teria sentido qualquer coisa e aberto os olhos. E dado com a cara dele sobre si, com a meia preta retesada entre os pulsos e os olhos antecipando o gozo de uma garganta palpitante a debater-se com estertor sob as suas mãos.

 

Só que ele tinha-lhe dado clorofórmio. Havia vestígios. Falcón passou adiante da análise do estômago e do sangue. A vagina e o ânus mostravam sinais de actividade sexual recente. Havia vestígios de espermicida, mas não tinha sémen na vagina, e havia um lubrificante oleoso no ânus, que estava distendido devido à penetração frequente. O espírito de Falcón voltou a divagar e viu Eloisa Gómez a servir os clientes na traseira dos automóveis, e no quarto, à espera da chamada, a chamada por que tinha ansiado o dia inteiro. A chamada em que pensava enquanto a sua voz, desligada do corpo, soluçava e produzia queixumes em resposta às intrusões brutais dos clientes. A chamada que lhe tocou tão esperançosamente, com as palavras a soarem-lhe como uma pena na orelha de uma criança e que a comoveu, a alterou, lhe fez o estômago chegar quase ao coração. Uma sedução tão grosseira, exercida sobre uma pessoa que saltava quando as sombras se moviam, só podia partir de alguém que tivesse feito um estudo da natureza humana com propósitos muito precisos em mente. À sua maneira, o assassino tratou-a com a mesma brutalidade de todos os clientes dela.

 

A única coisa interessante a extrair do relatório era que parecia que o assassino tinha levado Eloisa Gómez para o cemitério na manhã de sábado, provavelmente logo à abertura, e a tinha matado lá.

 

Ramírez chegou com o resto da brigada às 8h. 30. Fez-lhes um relato dos últimos desenvolvimentos e deu-lhes o perfil do assassino, que a partir de agora passaria a ser referido como «Sérgio». Se o assassino a tinha estrangulado no cemitério no sábado de manhã, então era óbvio que tinha voltado à noite para a colocar no jazigo dos Jiménez. Isso queria dizer que tinha provavelmente transporte e também alojamento em Sevilha. Aquilo galvanizou o grupo. A ideia de ser um habitante local tornou as coisas de certo modo pessoais. Fernández, Baena e Serrano ficaram com a área interior e exterior do cemitério, para tentarem encontrar alguém que tivesse visto Eloisa Gómez na manhã de sábado. O assassino podia ter estacionado o carro nas imediações, quando voltou para tratar do cadáver, pelo que o pessoal da segurança da zona industrial teria de ser interrogado, dado que o caminho estreito nas traseiras do cemitério era a via mais provável de acesso para Sérgio.

 

Com a Sra. Jiménez, iria ser seguida uma estratégia diferente. Ramírez iria pedir-lhe para observar os contentores guardados no armazém das Mudanzas Triana e também para datar as diferentes cenas do vídeo da Família Jiménez, a ver se havia um padrão nas filmagens de Sérgio.

 

O subinspector Pérez apresentou a lista dos administradores das maiores empresas de construção ainda existentes e que tinham estado envolvidas no desenvolvimento das obras do recinto da Expo’92. Falcón mandou-o às Mudanzas Triana, para dar sequência ao trabalho de Baena, interrogando os empregados. Queria saber se alguma pessoa estranha tinha sido vista no local e quem geria e tinha acesso ao armazém.

 

Uma vez deixado só, Falcón olhou para a lista das empresas de construção e contou quarenta e sete. Consultou a lista original de Pérez e descobriu que apenas uma empresa tinha deixado de existir, desde que tinha sido terminado o recinto da Expo: a MCA Consultores SÁ.

 

Falcón foi à Câmara do Comércio e procurou a MCA, cuja actividade era descrita como de consultoria em matéria de segurança de edifícios, aconselhamento sobre estrutura, concepção e materiais, em edifícios de grande circulação. Passou os olhos por três anos de contabilidade, em que a empresa tinha gerado entre 400 e 600 milhões de pesetas por ano, até ao encerramento, no final de 1992. Havia um endereço na avenida República Argentina.

 

Os administradores da empresa saltavam da página: Ramón Salgado, Eduardo Carvajal, Marta Jiménez e Firmin Léon. Perguntava-se o que saberia Ramón Salgado de segurança de edifícios: o mesmo que a filha incapacitada de Raúl Jiménez, Marta. Pelo menos, o comisario Léon tinha uma profissão vagamente relacionada com isso. O que não bastava para convencer Falcón de que não se tratava apenas de uma empresa de fachada para canalizar fundos para Raúl Jiménez e os seus amigos de eleição. E Eduardo Carvajal... por que é que aquele nome lhe era familiar?

 

Fotocopiou os documentos e regressou à Jefatura. Quando entrou no estacionamento, lembrou-se de que o nome de Carvajal tinha surgido num caso de que ainda havia ecos quando chegou de Madrid para assumir as suas novas funções. O computador da polícia revelou que Eduardo Carvajal tinha feito parte de uma rede de pedofilia condenada em Tribunal. Mas ele não chegou a ir a julgamento: morreu num acidente de automóvel, na Costa del Sol, em 1998.

 

Falcón pediu para ser recebido pelo comisario Lobo.

 

Antes de subir, viu as suas mensagens, que incluíam uma da polícia de Cádis: iam trazer a irmã de Eloisa Gómez para identificar o corpo. A outra era do seu médico, perguntando por que faltara à consulta. Telefonou ao Dr. Valera e contou-lhe dos quadros do pai na sala de espera.

 

- Já lhe passou pela cabeça, Javier, que devia falar com alguém sobre isso?

 

- Não; mas se for o caso, não gostaria de falar com alguém que...

 

- Que, o quê? - acompanhou Valera.

 

- Que acha que conhece o meu pai.

 

- Tem de dar a estas pessoas mais crédito pela sua inteligência...

 

- Tenho? - perguntou Falcón. - O senhor nunca foi às suas «vernissages», Dr. Fernando.

 

- Pode ser difícil - disse Valera. - Era um homem famoso.

 

- Mas nem toda a gente se interessa por arte.

 

Desligaram. Falcón foi ter com Lobo, que pegou nas fotocópias e meditou sobre elas com o ar de um homem que se prepara para comer criancinhas. Perguntou como é que Falcón tinha chegado àqueles documentos.

 

- De todas as empresas directamente envolvidas na construção da Expo’92, esta era a única que deixou de existir. Pedi ao subinspector Pérez...

 

- Sabe que o Pérez e o Ramírez são amigos de longa data? - interrompeu Lobo.

 

- Reparei que se davam um com o outro.

 

- Que relevância tem isto para a sua investigação?

 

- Com o assassínio da Eloisa Gómez, acho que este caso ganhou contornos diferentes - disse Falcón. - Uma relação de negócios mal sucedida pode ter sido o motivo inicial; mas agora, penso, o assassino está a trabalhar por conta própria.

 

- Ouvi dizer que o Ramírez tem outras ideias e o juez Calderón também.

 

- Mandei o inspector Ramírez ter com a Sra. Jiménez sozinho. Vai aplicar-lhe um tipo de pressão diferente do meu. Veremos se fica ou não satisfeito - disse Falcón. - Quanto ao juez Calderón, parece-me uma pessoa de espírito aberto. Tem uma atitude prática, não obsessiva, em relação ao principal suspeito.

 

- Acha o Ramírez obsessivo?

 

- A Sra. Jiménez é exactamente o tipo de mulher que o inspector Ramírez despreza. Acho que ela representa uma mudança na ordem das coisas, para a qual ele ainda não está preparado.

 

Lobo anuiu e voltou aos documentos.

 

- Desta lista, com quem poderia falar em privado?

 

Ramón Salgado, mas ele está fora até ao final da semana. Tenho tentado falar-lhe desde que nos encontrámos no funeral. Ofereceu-se para me dar informações sigilosas sobre Raúl Jiménez.

 

- Que espécie de informações?

 

- Falta de confiança no mundo elitista de ambos.

 

- Alguma razão para lhe ser dado crédito? - perguntou Lobo. - Deve ter sido, no mínimo, amigo de Raúl Jiménez, para estar nesta lista.

 

- Tenho as minhas dúvidas em relação a ele.

 

- E o que lhe vai custar esse tipo de informações?

 

- Acesso ao estúdio do meu pai - disse Falcón; e lembrou-se de uma conversa com Consuelo Jiménez. - Eles conhecem-se, o Salgado e a Sra. Jiménez. Ela mostrou-se reticente sobre a existência de um relacionamento. Diz que se conheceram numa das festas em casa do meu pai, mas pode vir bastante mais de trás. Ela movia-se no mundo da arte em Madrid e o Salgado também circulava por esse mundo.

 

- Parece-me que vai ter de falar com o Salgado, mas em pessoa - concluiu Lobo. - E estes documentos ficam entre nós... entendido?

 

Lobo olhou-o nos olhos e meteu os papéis dentro da gaveta. Falcón recebeu isso como uma indicação de fim da conversa.

 

- Não fazia ideia de que a sua nomeação se viesse a revelar tão política - disse Lobo para a nuca de Falcón. - As forças estão agora organizadas contra nós. Somos mais pequenos, mas temos a vantagem de sermos mais inteligentes. Não podemos, contudo, ultrapassar a linha da ética. Espero que a sua combinação com o Salgado seja como disse.

 

Falcón foi directamente para a casa de banho e tomou um Orfidal, com água recolhida na concha da mão.

 

A irmã de Eloisa Gómez, Gloria, parecia muito pouco mais velha do que ela, mas não manifestava a mesma segurança. Sentou-se no lugar do passageiro, encostada à porta, de braços cruzados contra o peito, enquanto abriam caminho através do trânsito, até ao Instituto Anatómico Forense. Tinha um rosto determinado, vivo, que não dava margem para conversa fiada. Era metida para dentro, fechada, sozinha num mundo em que ninguém merecia confiança.

 

- Sabia o que a sua irmã fazia na vida? - perguntou Falcón.

 

- Sim.

 

- Ela abria-se a esse respeito? - perguntou.

 

- Fizemos o mesmo trabalho... por uns tempos. Até eu ter ficado grávida.

 

- Referia-me a coisas mais recentes - corrigiu Falcón. - Ela falava do que se ia passando na vida dela?

 

Silêncio. Um olhar de soslaio disse-lhe que não contava com a confiança dela. Voltou atrás.

 

- A pessoa que matou a Eloisa, assassinou um dos clientes dela também. É possível que volte a matar. Sabemos que a Eloisa o conhecia. Ele fazia-se passar por escritor. Tornaram-se amigos e talvez até mais do que isso. Acho que a Eloisa começou a encará-lo como uma saída para a vida que levava...

 

- Era isso que ele era - disse cruamente, o que silenciou Falcón; ao que ela acrescentou: - Quando uma rapariga contrai SIDA, aponta-se para a SALIDA.

 

- Ela disse que ele se chamava...

 

- Sérgio - concluiu Gloria.

 

- Ela falou-lhe do Sérgio?

 

- Eu disse-lhe para esquecer o Sérgio. Disse-lhe que ele era uma fantasia e para ter cuidado com ele.

 

- Porquê?

 

- Porque ele estava a dar-lhe esperanças e isso faz-nos ver as coisas de maneira diferente. Começa-se a acreditar em possibilidades. Deixa-se de estar atento. Fazem-se asneiras.

 

- Tinha razão.

 

- É o que acontece quando se confia nas pessoas - disse e levantou o cabelo na nuca, para mostrar a cicatriz fossilizada e brilhante de uma queimadura de grande dimensão. - Desce-me pelas costas abaixo.

 

- Então saiu da vida.

 

- Tive de escolher: o trabalho ou a pobreza. Preferi a pobreza, em vez da dor e morte.

 

- Mas isso não convenceu a Eloisa?

 

- Nunca lhe aconteceu nada - disse Gloria. - Já lhe tinham apontado uma faca, claro. E alguém lhe apontou uma arma à cabeça uma vez. Levou umas bofetadas; mas não ficou com cicatrizes. No entanto, logo que começou a falar do Sérgio, percebi que ele a tinha seleccionado.

 

Descruzou os braços e ficou com eles descaídos ao lado do corpo, como se tivesse sido completamente vencida pela vida, como se tudo o que havia a acrescentar ao somatório das suas experiências fosse a culpa do sobrevivente.

 

- O que é que ela lhe contou do Sérgio? - perguntou, antes que se afundasse sem deixar rasto.

 

- Disse que ele era guapo. São sempre guapos. Disse que ele era como nós.

 

- Como vocês! - perguntou Falcón.

 

- Eloisa e eu costumávamos chamar-nos a nós mesmas las forasteras. As de fora. Chamávamos aos clientes los otros. Mas ela dizia que ele não era... dos outros.

 

- E o que a levava a dizer isso?

 

- Tudo o que ela contava dele dizia-me que era um’de los otros. Era culto, bem vestido, tinha um carro, apartamento.

 

- Ela não falou acerca do tipo de carro e do apartamento?

 

- Ele não era estúpido. Los otros são sempre estúpidos. Nesse aspecto, ele era diferente.

 

- Então, o que tinha Sérgio, para fazer dele un forastero?

 

- Ela pensou que fosse estrangeiro ou que tivesse sangue estrangeiro. Parecia espanhol. Vestia à espanhol. Falava espanhol. Mas era diferente.

 

- Magrebino?

 

- Ela não disse isso e a Eloisa não gostava desses. Nunca foi com eles. Não teria sido atraída por ele, se tivesse aspecto de africano. Ela pensava que ele talvez tivesse estado muito tempo ausente ou que tivesse tido uma educação mista.

 

Chegaram ao Instituto. Estava silencioso e vazio. Viram o corpo por detrás de um vidro. Tinham-lhe enchido os olhos. Gloria Gómez pôs as mãos no vidro e pressionou a testa contra ele. O sofrimento gemia como madeira em esforço e extravasava para fora dela.

 

- Algum dos seus pais é vivo? - perguntou para a nuca dela, onde o cabelo estava já a ficar ralo; o casaco barato descaía-lhe no ombro.

 

Ela rodou a cabeça de um lado para o outro no vidro.

 

- A Eloisa tinha alguma razão para ir ao cemitério de San Fernando?

 

Gloria virou as costas à irmã morta.

 

- Ela ia lá sempre que podia - disse. - A filha está lá enterrada.

 

- A filha?

 

- Teve uma menina aos quinze anos. Morreu com três meses.

 

Voltaram de carro para a Jefatura, em silêncio. No parque de estacionamento, Falcón fez uma última tentativa para saber se Eloisa tinha mencionado alguma coisa acerca do aspecto de Sérgio.

 

- Ela disse que ele tinha umas mãos lindas - foi tudo o que conseguiu sacar.

 

O telefone estava a tocar, quando entrou no gabinete. Era o Dr. Fernando Valera, a dizer-lhe que tinha resolvido o problema dele e que tinha encontrado um psicólogo que lhe podia garantir não ter interesse por arte. Falcón não estava com disposição para discutir.

 

Chama-se Alicia Aguado. Recebe-o na casa dela, Javier - disse o médico e deu-lhe uma morada na calle Vidrio. - A psicologia clínica segue uma formação muito rigorosa e ela combina isso com algumas... técnicas pessoais. É muito boa. Sei que é difícil dar início a estas coisas, mas quero muito que a vá ver. Você já está numa fase desesperada. É importante.

 

Desligou, pensando que toda a gente via o seu desespero, o sentia no ar; Incluindo Sérgio. Ramírez entrou e sentou-se, esticando os pés.

 

- A Sra. Jiménez cedeu?

 

Ramírez sacudiu qualquer coisa imaginária da gravata, como se se preparasse para partilhar uma confidência sexual - não, um triunfo.

 

- Aposto que ela usa lingerie cara. E tanga, no Verão.

 

- Estou a ver que ela lhe deu a volta - disse Falcón.

 

- Telefonei ao Pérez, no armazém das Mudanzas Triana, e disse-lhe para levantar o caixote com o conjunto de cinema-em-casa - disse Ramírez. - Ela acedeu, sem problema. Mas talvez lhe interesse o que acrescentou quando eu ia a sair.

 

Falcón apontou um dedo para ele, com ar de ter acertado.

 

- Disse: «Leve esse caixote e apenas esse. Se espreitar para dentro de qualquer dos outros, pode ter a certeza de que nenhum será admitido como prova.»

 

Falcón pediu para repetir, o que ele fez. Percebeu-o com mais clareza da segunda vez: Ramírez estava a mentir e muito. Tinha as maiores dúvidas de que Consuelo Jiménez fosse tão pouco subtil.

 

- E quanto a datar as cenas do filme Família Jiménez*.

 

- Disse que ia ver isso, mas que estava muito ocupada de momento e que não conseguiria pegar-lhe antes do final da Feria.

 

- Grande ajuda.

 

- É difícil, quando se perdeu tanto - disse Ramírez.

 

Quarta-feira, 18 de Abril de 2001, casa de Falcón, calle Bailén, Sevilha

 

Falcón estava à mesa, com o garfo suspenso sobre o almoço intocado, pensando, não em Ramírez, mas no comisario León, que não teria chegado à sua posição sem considerável talento político. Se León estava em contacto com a investigação através de Ramírez e permitia que este exercesse pressão sobre Consuelo Jiménez - que presumivelmente não sabia nada sobre a MCA - o que é que isso significava, uma vez que o comisario tinha sido director da consultora? Falcón pousou o garfo, quando uma onda de paranóia o percorreu como uma náusea. Iam retirá-lo do caso na primeira oportunidade. Enquanto os pormenores sobre a MCA ficassem adormecidos, o comisario León achava bem que se ocupassem a bater à porta pesada de Consuelo Jiménez. Se houvesse uma fuga, Falcón estava arrumado.

 

Retomaram o trabalho depois de almoço, para visionarem alguns dos filmes antigos de Raúl Jiménez. Pérez, que os tinha trazido das Mudanzas Triana, juntou-se à sessão. Relatou que o armazém tinha apenas uma entrada e que todo o material de armazenamento de longa duração ficava numa área das traseiras do edifício. Cada cliente tinha uma espécie de jaula com fechadura própria, para caixas e mobília. Todas as caixas estavam seladas com fita-cola. Esta datava do armazenamento das caixas, pelo que, se alguém as tivesse aberto, isso seria evidente. As caixas de Raúl Jiménez eram das peças mais antigas. Todo o pessoal das Mudanzas Triana tinha acesso ao armazém, mas apenas o fiel do armazém tinha as chaves das jaulas. Ninguém lhes podia aceder sem que ele estivesse presente. As chaves eram arrumadas num cofre, no seu escritório. O armazém era patrulhado à noite por dois seguranças com cães. Nos últimos quarenta anos, tinham sido registadas quatro tentativas de assalto, sem que tivesse havido realmente roubo, pois todas tinham sido interrompidas.

 

Falcón ficou satisfeito por Pérez participar na sessão, para obstar à virulência dos comentários de Ramírez. Não contava ficar tão emocionalmente envolvido com as imagens sincopadas, a preto-e-branco, da anterior e mais feliz vida de Raúl Jiménez. Nunca antes, na escuridão do cinema, tinha ficado tão comovido. A ficção nunca tinha conseguido fazer-lhe aquilo. Via sempre o lado fantasioso, criando distância em relação ao imperativo emocional, sem jamais verter uma única lágrima sentimental.

 

Neste caso, acabara por conhecer os protagonistas de forma mais pessoal. Observava na escuridão José Manuel e Marta a brincarem na praia, enquanto ondas descomplicadas rebentavam na costa. A mulher de Raúl, Gumersinda, entrou no campo de filmagem, virou-se e abriu os braços. Correndo para ela vinha, trôpego, Arturo. Alcançou o seu abraço, ela fechou as mãos sobre o peitinho dele e ergueu-o por cima da cabeça, fazendo com que as suas pernas ficassem penduradas; e ele olhou para baixo, para a cara sorridente da mãe, com puro e intenso prazer. Quando o garotinho foi atirado ao ar, o estômago de Falcón revirou-se. Recordou essa sensação e teve de apertar as lágrimas, percorrido pelo peso da tragédia que tinha destruído completamente aquela família.

 

Não conseguia compreender a intensidade emocional que o ligava a este núcleo. Tinha estado em contacto com outras famílias assoladas por assassínios e violações, dependência de drogas ou formas de violência extrema. Por que é que a família Jiménez era tão diferente? Tinha de falar sobre isso, antes que o desespero passasse a ter livre curso. Alicia Aguado... daria resultado?

 

As luzes acenderam-se na sala. Ramírez e Pérez viraram-se, olhando para o seu superior.

 

- Há montes de bobinas destas - disse Ramírez. - O que é que estamos aqui a fazer ao certo, inspector jefe?

 

- Estamos a acrescentar pormenores ao perfil do nosso assassino - respondeu. - Temos uma ideia física dele, a partir das ampliações que obtivemos do vídeo tirado no cemitério. Disseram-nos que é guapo e tem umas bonitas mãos. Fisicamente, vai ganhando forma. Mentalmente: referimos a sua criatividade e sentido lúdico. Sabemos que está interessado em cinema. Sabemos que fez um estudo da família de Jiménez...

 

Deu consigo atolado. Com efeito, por que estavam eles a ver aqueles filmes?

 

- A caixa em que estes filmes estavam guardados estava selada - disse Pérez, reiterando o seu relatório. - Estas bobinas não vêem a luz do dia desde que lá foram enfiadas.

 

- Mas que dia aquele - disse Falcón, como um náufrago agarrando-se a juncos flutuantes. - O dia em que ele expurgou da cabeça a memória do filho mais novo.

 

- Mas o que é que isso acrescenta ao perfil? - perguntou Ramírez.

 

- Estava a pensar naqueles horríveis cortes auto-infligidos - argumentou Falcón. - Antes de Jiménez ter feito isso a si próprio, recusava-se a observar qualquer coisa na televisão. Depois, cortaram-lhe as pálpebras e o que viu? O que teria induzido Raúl Jiménez a fazer aquilo a si próprio?

 

- Se alguém me cortasse as pálpebras... - começou Pérez.

 

- Viu o rapazinho, o garotinho indefeso - disse Falcón. - Ouviu-o guinchar e gritar nos braços da mãe... Não acham que...?

 

Travou. Os dois homens estavam a olhar com dureza para ele, de rostos vazios e incrédulos.

 

- Mas, inspector jefe - disse Pérez -, o filme era mudo.

 

- Bem sei, subinspector... - começou Falcón, mas não tinha dado por isso e o espírito fechou-se-lhe subitamente, sob um pânico incolor, e nem do nome do colega se conseguia lembrar.

 

Não conseguia lembrar-se de qualquer outra palavra para juntar à que tinha acabado de dizer. Tinha-se tornado no tipo de actor que mais temia: aquele que encena a sua própria vida.

 

Recuperou, como se a bolha em que tinha estado encerrado tivesse rebentado e a vida real tivesse voltado a correr à sua volta. Os homens tinham-se levantado e estavam a desmontar o ecrã. Falcón ficou surpreendido por serem quase 21 horas. Tinha de sair, mas sentia necessidade de salvar, antes, alguma coisa daquela situação. Encaminhou-se para a porta.

 

- Faça o relatório destes filmes, subinspector... - disse, com o nome ainda ausente. - E depois, quero que use a imaginação. Quero que pense sobre quem estava a segurar a câmara e o estado mental do homem naquele tempo.

 

- Com certeza, inspector jefe - disse Pérez. - Mas disse-me sempre para relatar factos e não tentar interpretá-los.

 

- Faça o melhor que puder - disse e saiu.

 

Tentou engolir um Orfidal a seco, mas ficou-lhe entalado na garganta e teve de ir à casa de banho, salpicar os lábios e a cara, que estava a ferver. Secou-se e descobriu que não reconhecia os seus olhos no espelho. Eram de outra pessoa qualquer, umas coisas raiadas, veladas, encovadas, retraídas no crânio. Estava a perder a autoridade. Ninguém podia ter respeito por uns olhos daqueles.

 

Saiu da Jefatura para o ar fresco da noite. Meteu-se no carro e foi para casa. Caminhou depois até ao pequeno apartamento da Dra. Alicia Aguado, na calle Vidrio, chegando lá um pouco antes das 22 horas, que eram o combinado. Andou para trás e para a frente no passeio em frente da casa, recentemente recuperada, nervoso como um actor antes de uma audição. Até que não conseguiu aguentar mais e tocou à campainha. A porta automática abriu-se e Alicia Aguado chamou-o; Falcón subiu uma escada escura em direcção à luz.

 

Na sala do consultório, reparou que as paredes azuis-claras estavam nuas e não havia bibelots. Efectivamente, a única mobília era um sofá e uma conversadeira em S.

 

A sala era estreita e a casa pequena e contida, fazendo a sua parecer absurda de tão grande. Era manifestamente um espaço bem organizado e confortável para residir. Por comparação, a loucura bizantina da sua - vasta, cheia de quartos, vários andares, varandas, barroca - era como um asilo fechado, em que se escondia um único ocupante, até que tudo se aquietasse...

 

Alicia Aguado tinha cabelo negro, curto, rosto pálido e sem vestígios de maquilhagem. Estendeu-lhe a mão, mas não olhou directamente para ele. Quando as mãos de ambos se tocaram, disse:

 

- O Dr. Valera não lhe disse que sou parcialmente cega.

 

- Apenas me garantiu que não se interessava por arte.

 

- Bem gostava de poder, mas tenho este problema desde os doze anos.

 

- E que problema é?

 

- Retinite pigmentosa.

 

- Nunca ouvi falar.

 

- Tenho células de pigmentação anormais, que, por razões ignoradas, se agregam à retina. O primeiro sintoma é cegueira nocturna e o último, muito mais tarde, a cegueira total.

 

Jiménez ficou paralisado com esta conversa. Continuava a apertar-lhe a mão, e ela retirando-a lentamente, apontou-lhe o cadeirão em S.

 

- Tenho de lhe explicar algumas coisas sobre o meu método - disse, sentando-se perto dele, mas de frente, naquele sofá duplo especialmente desenhado para o efeito. - Não tenho possibilidade de ver a sua cara com precisão e comunicamos imenso através do rosto. Como deve saber, somos fortemente motivados para o reconhecimento facial logo à nascença. Isso significa que tenho de utilizar outros meios para registar os seus sentimentos. É um método semelhante ao dos médicos chineses, e centra-se no pulso. Assim, sentamo-nos neste assento pouco vulgar, apoia o seu braço no meio, eu seguro-lhe no pulso e o senhor fala. A sua voz será gravada por um aparelho instalado no interior do braço da cadeira. Está de acordo?

 

Falcón acenou com a cabeça, tranquilizado pela autoridade calma da mulher, pelo rosto plácido e pelos olhos verdes que não viam.

 

Faz parte do meu método raramente instigar a conversa. A ideia é que o senhor fale e eu oiça. Apenas tentarei orientar os seus pensamentos ou fazer sugestões quando chegar a um beco sem saída. Contudo, tomarei sempre a iniciativa no arranque das sessões.

 

Ligou um interruptor no lado da cadeira, que accionou o gravador. Pegou no pulso de Falcón, com ar experiente, mas suave.

 

- O Dr. Valera disse-me que está a sentir sintomas de stress. Percebo que está ansioso, neste momento. Ele disse que a mudança na sua estabilidade mental começou com uma investigação de um assassínio especialmente brutal. Também mencionou o seu pai e o facto de o senhor ter relutância em ser tratado por alguém que pudesse conhecer a obra dele. Lembra-se por que é que o primeiro incidente pode... O que foi?

 

- O quê?

 

- A palavra «incidente»; provocou uma forte reacção em si.

 

- É uma palavra que aparece nos diários do meu pai, que comecei há pouco a ler. Refere-se a qualquer coisa que aconteceu quando tinha dezasseis anos e que o fez fugir de casa. Nunca diz o que foi.

 

Agora que tinha visto a eficácia do método, tinha de controlar o desejo de tirar o pulso da mão dela. Alicia Aguado parecia sintonizada não só com a anatomia humana, mas também com as dificuldades da alma.

 

- Acha que foi por isso que ele escreveu o diário?

 

- Está a sugerir que o possa ter feito para resolver esse «incidente»? Não me parece que fosse essa a intenção. Acho que ele nem teria sequer começado se um dos camaradas não lhe tivesse dado um caderno para ele escrever.

 

- Essas pessoas às vezes são-nos enviadas.

 

- Como este assassino me foi enviado?

 

Silêncio, enquanto ela deixava aquilo sedimentar.

 

- Tudo o que for dito nesta sala é confidencial, incluindo informações de polícia. As gravações são guardadas num cofre. Quero que me diga o que desencadeou este processo.

 

Ele contou-lhe acerca do rosto de Raúl Jiménez. Como o assassino tinha querido que Jiménez olhasse para qualquer coisa que ele se recusava a ver. Falcón não poupou pormenores na descrição de como devia ser recobrar os sentidos sem pálpebras e de como isso, combinado com o horror do que o assassino lhe estava a mostrar, tinha levado Raúl Jiménez a uma horrível automutilação. Estava convencido de que o seu colapso nervoso tinha começado ao ver aquele rosto, porque, nele, viu a dor e o pânico de alguém que tinha sido obrigado a confrontar-se com o mais profundo dos seus terrores.

 

- Acha que o assassino considera ter competências profissionais específicas? De psicólogo ou psicanalista?

 

- Ah! - reagiu Falcón. - Quer saber se eu o vejo como tal?

 

- E vê?

 

Silêncio, até que Alicia Aguado decidiu avançar.

 

- Estabeleceu uma ligação qualquer entre este caso de assassínio e o seu pai.

 

Ele contou-lhe das fotografias de Tânger que encontrou no escritório de Raúl Jiménez.

 

- Nós vivemos lá na mesma época. Pensei que era capaz de encontrar o meu pai nas fotografias.

 

- Só isso?

 

Javier abriu e fechou as mãos, incomodado com o fluxo de informações que saíam através do pulso.

 

- Pensei que poderia encontrar uma fotografia da minha mãe, também. Ela morreu em Tânger, em 1961, tinha eu cinco anos.

 

- E encontrou? - perguntou Alicia, ao fim de algum tempo.

 

- Não, não encontrei. O que encontrei, em segundo plano numa das fotografias, foi o meu pai a beijar a mulher que viria a tornar-se a minha segunda mãe... Quer dizer, a sua segunda mulher. A data no verso era anterior à morte da minha mãe.

 

- A infidelidade não é assim tão invulgar.

 

- A minha irmã concorda consigo. Diz que ele «não era anjo nenhum».

 

- Isso teve algum efeito sobre a forma como vê o seu pai?

 

Falcón deu por si a pensar afanosamente. Pela primeira vez na vida, estava realmente a escrutinar as vielas do cérebro. O suor brotou-lhe da testa. Limpou-o.

 

- O seu pai morreu há dois anos. Era muito chegado a ele?

 

- Julgava que sim. Era o seu preferido. Agora... estou... estou confuso.

 

Falou-lhe no testamento, nos desejos expressos pelo pai para que destruísse o conteúdo do estúdio e como lhe estava a desobedecer, ao ler os diários.

 

- Acha isso estranho? Os homens famosos gostam, normalmente, de deixar alguma coisa para a posteridade.

 

- Deixou uma carta, avisando-me de que poderia ser uma caminhada penosa.

 

- Então por que se meteu nela?

 

Falcón chegou a um beco sem saída na sua mente, uma parede branca, lisa, feita de pânico. O silêncio adensou-se.

 

- O que disse que mais o aterrorizou na vítima do assassínio? - perguntou ela.

 

- O ter sido forçado a ver...

 

- Lembra-se de quem procurava nas fotografias da vítima?

 

- A minha mãe.

 

- Porquê?

 

- Não sei.

 

No silêncio que se seguiu, Alicia levantou-se, ligou a chaleira e fez um chá de ervas. Tacteou à procura de chávenas de porcelana. Serviu o chá e pegou-lhe outra vez no pulso.

 

- Interessa-se por fotografia? - perguntou ela.

 

- Até há pouco, sim. Tenho até uma câmara escura em casa. Gosto de fotografia a preto-e-branco. Gosto de revelar as minhas próprias fotografias.

 

- Como é que olha para uma fotografia? O que vê?

 

- Vejo uma memória.

 

Contou-lhe dos filmes caseiros que tinha estado a ver nessa tarde e como o tinham feito chorar.

 

- Ia muito à praia quando era criança?

 

- Oh sim, em Tânger a praia ficava mesmo junto à cidade... quer dizer, quase dentro da cidade. No Verão, íamos lá todas as tardes. Os meus irmãos, a minha mãe, a criada e eu. Algumas vezes, só eu e a minha mãe.

 

- Você e a sua mãe.

 

- Está a perguntar onde estava o meu pai?

 

Ela não reagiu.

 

- O meu pai estava a trabalhar. Tinha um estúdio. Com vista para a praia. Fui lá algumas vezes. Costumava vigiar-nos, que eu sei.

 

- Vigiá-los?

 

- Tinha uns binóculos. Deixava-me usá-los às vezes. Ajudava-me a encontrá-los... a minha mãe, a Manuela e o Paco, na praia. Dizia que era um segredo nosso: «É assim que vos tenho debaixo de olho.»

 

- Tinha-os debaixo de olho?

 

- Quer dizer, soa como se nos estivesse a espiar - disse Falcón. - Mas não faz sentido. Por que é que um homem havia de espiar a sua própria família?

 

- Nesses filmes domésticos que viu hoje, alguma vez viu o pai?

 

- Não, ele estava por trás da câmara.

 

Ela perguntou por que é que tinha visto aqueles filmes e ele explicou-lhe toda a história de Raúl Jiménez. Ouviu-o, fascinada, apenas interrompendo para mudar a fita, a meio da conversa.

 

- Mas por que é que estava a ver esses filmes? - voltou a perguntar, no final.

 

- Acabei de lhe contar. Passei a última meia hora...

 

Parou e pensou durante uns longos e infinitamente complexos minutos.

 

- Já lhe disse que vejo as fotografias como memória. Fascinam-me, porque tenho um problema de memória. Disse-lhe que costumávamos ir à praia em família, mas não me lembro realmente disso. Não o vejo. Não é uma coisa que esteja dentro de mim e que eu recorde. Inventei isso para preencher as lacunas. Sei que íamos à praia, mas não me lembro de isso se passar comigo. Faz sentido?

 

- Todo o sentido.

 

- Procuro, nesses filmes e fotografias, ginasticar a memória. Quando falei com o José Manuel Jiménez acerca da tragédia da família dele, contou-me que tinha problemas em recordar-se da juventude. Isso fez-me tentar descobrir qual era a minha recordação mais antiga. E entrei em pânico, porque sabia que não existe.

 

- Agora, pode responder-me à pergunta anterior, sobre por que está a ler os diários - disse.

 

- Sim, sim - disse ele, como se se tivesse dado um clique. - Estou a desobedecer-lhe, porque acho que os diários podem conter os segredos para chegar à minha memória.

 

A fita acabou com um estalido. Os sons distantes da cidade encheram o quarto. Esperou que ela mudasse a fita, mas não se mexeu.

 

- É tudo por hoje.

 

- Mas ainda agora comecei.

 

- Bem sei. Mas não vamos deslindar tudo sobre si numa única sessão. É um processo moroso. Sem atalhos.

 

- Mas estávamos mesmo... estávamos mesmo a começar a aflorar as coisas.

 

- É verdade. Foi uma boa primeira sessão. Quero que vá pensar para casa. Quero que se interrogue sobre se vê algumas semelhanças entre a família Jiménez e a sua.

 

- Ambas as famílias têm o mesmo número de filhos... eu era o mais novo...

 

- Não vamos falar disso agora.

 

- Mas eu preciso de fazer progressos.

 

- Já fez, mas há um limite para a realidade que o espírito humano pode abarcar. Tem de começar por se habituar a isso.

 

- Realidade?

 

- É disso que andamos à procura.

 

- Mas em que é que estamos agora, se não é a realidade? - disse, em pânico com este pensamento. - Tenho mais doses diárias de realidade do que qualquer pessoa que conheço. Sou detective de homicídios. Vida e morte são a minha profissão. Mais real do que isso, não há.

 

- Mas não é dessa realidade que estamos a falar.

 

- Explique lá.

 

- A sessão terminou.

 

- Explique-me só isso.

 

- Dou-lhe uma analogia física.

 

- O que quiser... Preciso de saber.

 

- Há dez anos, parti um copo e, quando andava a limpar, enfiou-se-me um estilhaço no polegar. Não o consegui tirar e, por causa dos nervos dessa zona, o médico não lhe quis mexer. Ao longo dos anos, de vez em quando doía, mas nada de especial; e o corpo foi-se sempre protegendo daquele vidro. Formou camadas de pele à volta dele até ficar como uma ervilha. Finalmente, um dia,o corpo rejeitou-o. A ervilha veio à superfície e, com a ajuda de sulfato de magnésio, saltou do meu polegar.

 

- E é essa a sua explicação para o tipo de realidade de que estávamos a falar?

 

- Os estilhaços de vidro podem entrar no espírito, também - disse, e só a ideia bastou para o deixar nauseado. - Algumas vezes são demasiado dolorosos para serem enfrentados. Empurramo-los para as profundezas da mente. Pensamos que podemos esquecê-los. A nossa mente protege-se deles, embrulhando-os em camadas... ou seja, mentiras. E assim, distanciamo-nos do estilhaço. Até que um dia acontece qualquer coisa e, sem razão especial, vem à superfície da consciência. A diferença entre o mental e o físico está em que não podemos aplicar sulfato de magnésio para trazer o estilhaço do espírito ao consciente.

 

Ele levantou-se e pôs-se a andar de um lado para o outro da sala. Esses pequenos estilhaços de vidro a virem à superfície despertaram um pequeno terror. Era como se conseguisse senti-los na cabeça, que estalava como... como um campo de gelo. Seria outra analogia física?

 

- Está assustado, o que é normal. Nada disto é fácil. Exige uma grande coragem. Mas é altamente compensador. A recompensa acabará por ser uma verdadeira paz de espírito e o reinício de todas as possibilidades.

 

Ele desceu a escada, deixando para trás a luz da porta de Alicia e entrando na escuridão da noite. Voltava àquela última frase, concordando com o facto de ela pensar que ele tinha chegado ao ponto em que o fim das possibilidades era uma probabilidade.

 

Chegou à rua e caminhou rapidamente, ultrapassando um grupo de jovens que se dirigiam para o centro. A maior parte das artérias estava deserta, ainda de ressaca, depois do êxtase e excessos da Semana Santa. Os bares estavam fechados, só reabrindo no dia seguinte, quando os sevilhanos finalmente regressassem ao ritmo de vida normal. Falcón deu por si em praças habitualmente cheias de gente, mesmo a meio da semana, mas que estavam agora silenciosas e escuras, apenas com vozes dispersas, como se fosse muito mais tarde; e os varredores discutiam o futebol da véspera. A cabeça dele estava vazia do habitual congestionamento quotidiano, em que nada é pensado e cada acção gera a seguinte.

 

As vozes dispersas calaram-se. Não lhe apetecia ir para casa. Iria vaguear assim por umas horas. Comparou a família Jiménez com a sua. Sim, a sua família também tinha sido devastada. Não, devastada era demasiado forte.

 

A morte súbita da mãe não os tinha destruído; mas tinha-os danificado, como o estalado no vidrado da faiança. Recordou o rosto amargurado do pai quando olhava para o Paco, a Manuela, o Javier. E de certo modo, observava o seu próprio rosto fragmentado, dilacerado, vendo o mundo ser-lhe roubado. Estes pensamentos desencadearam a acumulação de um terror tenebroso, que o fez acelerar o passo sobre as pedras acetinadas do passeio.

 

Vieram-lhe à cabeça melhores tempos. O regresso luminoso de Mercedes. A mulher que se tornaria a segunda esposa do pai. Javier gostou dela imediatamente. E agora essa memória tinha sido ensombrada por aquela fotografia encontrada no apartamento de Raúl Jiménez: o pai envolvido com Mercedes antes da morte da mãe. Aquilo trouxe ao de cima algo pior e ele acelerou a travessia da Plaza Nueva, com os troncos e os ramos iluminados pelas luzes das festas. Era Natal todos os dias, agora. Olhou sem ver a iluminação estudada da MaxMara, roupas impecáveis em manequins eternamente perfeitos. Almejou uma vida menos complicada, em que não tivesse aqueles pensamentos e emoções que o flagelavam interiormente, deixando-o inalterado no exterior, mas a sangrar por dentro e em carne viva, como vítima de uma explosão.

 

O suor brotava-lhe na testa, à medida que caminhava, quase a trote, pela calle Zaragoza abaixo. E o estômago sentiu algo parecido com fome, pelo que pensou em ir ao El Cairo e comer uma tapa de merluza rellena de gambas. Preferia sangre encebollada, mas sangue e cebolas, numa noite como aquela, requeria um estômago mais forte. Passou pela galeria de Ramón Salgado, que tinha uma única escultura iluminada na montra. Mais à frente ficava uma casa sevilhana clássica, que tinha sido convertida em café, com um restaurante caro por cima, povoado de homens de negócios e advogados com as esposas e namoradas.

 

Em contraluz, de pé à entrada, no último degrau, estava Inés, a quem ajudavam a vestir o casaco. Tinha o cabelo levantado e ela apenas o usava assim quando queria mostrar-se atraente e sensual, nunca para ir trabalhar. Não viu o homem com quem estava, porque saíram para a escuridão da rua, de braço dado e avançaram para a Reyes Católicos. Não estava mais ninguém. Tinha sido um jantar a dois. Ficou aterrado quando Inés olhou para trás e, depois, os saltos altos ressoaram na calçada, numa corrida momentânea para apanhar o par. Seguiu-os do outro lado da rua. A fome e os sinais de exaustão foram esquecidos, agora que o seu espírito tinha recebido um novo combustível.

 

Atravessaram a Reyes Católicos e passaram em frente do bar La Tienda, que estava fechado. Cortaram pela calle Bailén e seguiram por trás do museu, entrando na Plaza del Museo, o que fez com que ele tivesse de ficar para trás até que desaparecessem pela calle San Vicente. Esperou e depois seguiu-os; mas, entretanto, a rua ficara deserta. Subiu e desceu os primeiros cem metros, perguntando-se se sonhara tudo aquilo ou se o homem teria um apartamento ali, naquela rua, a um escasso quilómetro da sua residência.

 

Retirou para casa, completamente destroçado; a fome tinha desaparecido e a exaustão da derrota tinha tomado conta dele. Tomou um duche, mas só o sarro do dia saiu. Tomou uma pastilha para dormir e rastejou para debaixo dos cobertores. Fixou os olhos no tecto, que lhe fugia para cada vez mais longe. Estava hipnotizado, como quando o foco dos faróis fazia desenrolar uma sequência de pequenos clarões brancos no meio da estrada. Pensou que tinha de resistir, que era perigoso adormecer ao volante. O seu sentido de orientação estava distorcido. Esticou uma mão, temendo que tudo descarrilasse repentinamente, que o campo de visão passasse a incluir uma barreira, um barranco e uma árvore contra a qual embater e acabar com a vida. Voou para o sono como através de um pára-brisas sem vidro, em direcção à noite.

 

Excertos dos diários de Francisco Falcón

 

12 de Outubro de 1943, Triana, Sevilha

 

Um camião do exército deu-me uma boleia de Toledo para Sevilha, o que foi uma sorte. O país está de rastos, sem gasolina e com pouca comida. Há pouco trânsito nas estradas, à excepção de uma ou outra carroça conduzida por cavalos ou mulas escanzelados.

 

Aluguei um quarto a uma mulher gorda com aspecto de moura, de cabelo preto comprido até ao fundo das costas, que apanhava num carrapito. Tem olhos baços como o carvão e sua constantemente, como que à beira do colapso. Os seios perderam-se um do outro e vivem isolados, um de cada lado da sua caixa torácica. Tem uma barriga grande como a de um bêbado, que lhe baloiça por baixo das saias pretas, quando anda. Os tornozelos são roxos e inchados e tem dificuldade em respirar, quando passa de quarto em quarto. Gostava de a desenhar e pintar, de preferência nua; mas tem um companheiro, tão magro como um cão de aldeia e que anda sempre com uma faca, que o ouço todos os dias afiar ternamente, antes de sair. O quarto tem uma cómoda, cujas gavetas não abrem e uma cama com um quadro da Virgem à cabeceira. Aluguei-o, porque tem um pátio que apenas a senhoria utiliza, como estendal. Larguei as sacas e saí para comprar material de pintura e bebida.

 

25 de Outubro de 1943, Triana, Sevilha

 

Deve ser do soldado que há em mim, entrei numa rotina, apesar de ter deixado de me levantar cedo. Não acontece nada nesta cidade antes das 10 da manhã. Fui à Bodega Salinas, na calle San Jacinto, bebi um café e fumei um cigarro. Frequento esse bar porque o proprietário, o Manolo, tem os melhores barris de tinto, com que enche os meus garrafões de cinco litros. Também vende uma aguardiente caseira, que compro ao litro. Volto para o meu quarto e trabalho até às 3 da tarde. A única interrupção é do aguadeiro. Às 3 horas, almoço no bar, com um jarro de tinto, torno a encher a minha garrafa e volto para o quarto, para dormir até às 6 da tarde. Recomeço a trabalhar, até às 10, janto e fico no Manolo, a beber com os meliantes e idiotas que ali se reúnem.

 

29 de Outubro de 1943, Triana, Sevilha

 

Ontem, na Bodega Salinas, um dos outros clientes, apenas conhecido por Tarzan (por causa do filme «Tarzan o homem-macaco») veio-se sentar à minha mesa. Tem uma barriga enorme e um rosto que parece uma saca de batatas (Johnny Weismuller não teria apreciado a comparação). Tinha os olhos semicerrados e inchados. Sentou-se e toda a gente ficou a ouvir.

 

- Então - disse ele, pondo um antebraço carnudo em cima da mesa - onde foi buscar esse ar?

 

- Qual ar? - perguntei, baralhado com a pergunta.

 

O Tarzan não tem nada de agressivo, apesar da sua cara esmurrada. Usa um chapéu preto que nunca tira, mas que de vez em quando empurra para trás, para coçar a testa.

 

- Um ar que diz que não pertence cá - responde calmamente, mas senti os olhos inchados olharem através das frinchas, como por um cano de espingarda.

 

- Acho que não estou a perceber.

 

- Não é de Sevilha. Não é andaluz.

 

- Vim de Marrocos. Tetuão e Ceuta - mas isso não lhe chegou.

 

- Olha para nós e toma notas. Tem olhos de velho numa cabeça de jovem.

 

- Sou pintor. Tomo notas para me lembrar de coisas que vi.

 

- E o que viu?

 

Percebi então que aquelas pessoas não pensavam que eu fosse quem dizia ser. Pensavam que fosse um guardia civil (que são sempre de fora) ou pior.

 

- Fui soldado - disse, evitando a palavra Legião. - Estive na Rússia, com a Divisão Azul.

 

- Onde? - perguntou um tipo com pernas arqueadas, que é um picador com uma certa reputação.

 

- Dubrovka, Teremets e Krasni Bor.

 

- Eu estive em Shevelevo - disse e apertámos as mãos.

 

Ficaram todos aliviados. Por que pensariam que um membro da polícia secreta se havia de sentar abertamente num bar a tomar notas sobre eles (o grupo mais denso de idiotas no Sul de Espanha), não faço ideia.

 

15 de Dezembro de 1943, Triana, Sevilha

 

Um jovem, com cerca de vinte anos, entrou hoje no bar. Chama-se Raúl e todos o conhecem e gostam dele. Esteve em Madrid a trabalhar; mas só sabe falar, desde o primeiro momento, em ir para Tânger, onde há montes de dinheiro para ganhar. Gozam com ele e dizem-lhe que devia falar com El Marroquí, que é o meu novo nome. O R. sentou-se à minha mesa e contou-me das fortunas que podem ser feitas com o contrabando de Tânger. Disse-lhe que o dinheiro que tenho me chega e que só me interessa tornar-me pintor. Insistiu em que há muito dinheiro a ganhar com tabaco americano, mas que tudo dá dinheiro por causa do bloqueio americano aos portos espanhóis. Só está preocupado porque, agora que a Divisão Azul foi expulsa da Rússia, isso pode aliviar a atitude dos americanos para com Franco e levantarem o bloqueio. Interessei-me, porque me dei conta de que não é apenas um idiota com pesetas na cabeça, mas alguém que percebe a situação real. Ofereci-lhe uma bebida. A sua companhia é mais animada do que a dos clientes habituais da Bodega Salinas. Aprendi que o estatuto de porto livre de Tânger significa que todos os produtos podem entrar e ser comercializados livremente, sem inspecção nem impostos. As empresas que compram e vendem esses bens também não têm de pagar impostos. É tudo muito barato. Tudo o que é preciso é comprá-los, embarcá-los para o lado de cá do estreito e podem vender-se com lucro. Isto soa muito bem, só que ele não tem dinheiro para comprar mercadorias nem barco para as transportar. Fez um gesto com a mão, como se fosse um pormenor sem importância. «Começas por trabalhar para os outros. Vês como é que o negócio funciona e depois instalas-te por tua conta.» Onde há dinheiro, disse, fixando-me com os olhos de jovem inexperiente, há perigo.

 

Perguntei por que é que se dirigia a mim com aquela conversa; e ele apenas respondeu que o perigo significa um aumento nos preços.

 

O R. tinha estado em Madrid, a trabalhar na construção civil, mas o dono do edifício ficou sem dinheiro. Entrou então para uma organização de engraxadores. Só os ricos mandam engraxar os sapatos. Percebeu que os ricos são-no apenas porque têm um conhecimento superior das coisas. Ouviu-os e o que diziam de Tânger, onde a administração é simultaneamente espanhola e corrupta e assim vai permanecer num futuro previsível. O R. tem tudo pensado. Tive de lhe recordar que não preciso de dinheiro. Discordou veementemente e contou-me o pouco que ganham os pintores, mesmo os conhecidos, com o seu trabalho. Ao fim da tarde, estávamos bastante bêbados e ele perguntou se podia dormir no chão do meu quarto. É alegre e animado, pelo que concordei, com a condição de sair antes de eu começar a trabalhar.

 

21 de Dezembro de 1943

 

Fui roubado. Regressei com o R. da Bodega Salinas, abri a porta do quarto e descobri que alguém tinha entrado pelo pátio e roubado tudo, excepto os cadernos de notas, os desenhos e as pinturas. As minhas roupas, as tintas e até a Virgem na parede tinham desaparecido. Esta última foi a maior perda, porque todo o meu dinheiro estava nas traseiras do quadro. Só fiquei com o que tinha no bolso. Contei à senhoria o que tinha acontecido. Estava furioso e insinuei qualquer coisa a respeito do outro utilizador do pátio. Ela virou-se a mim e a nossa relação ficou sem hipótese de recuperação. Mais tarde, descobrimos vasos partidos no pátio e o R. apontou para onde alguém deve ter subido a parede, utilizando os vasos, que estavam presos no reboco, para entrar e para sair.

 

22 de Dezembro de 1943

 

A cabra da moura gorda não me perdoou e apareceu com o estupor do pau-mandado do marido e outros bandidos residentes, para nos convencerem a sairmos. Com o meu treino, fui tentado a parti-los em pedaços, mas então teria de me haver com a Guardia Civil e a prisão. O R. e eu fomo-nos embora. Ele não pára de me tentar convencer e eis-nos rumo ao sul, a caminho de Algeciras.

 

O R. apareceu a dizer que tinha encontrado um contrabandista que nos oferecia dois meses de trabalho, comida e alojamento no barco, com garantia de nos deixar em Tânger com 10 dólares cada um.

 

Se correr bem, podemos renegociar as condições depois desse período de experiência de dois meses. Perguntei-lhe o que temos de fazer, mas isso não é pormenor que lhe interesse. Sacou de dois cigarros, o que me calou. Pergunto-me por que me entreguei tão completamente nas mãos dele; até me recordar de todos aqueles legionários que saíram e voltaram a Dar Riffen, incapazes de enfrentar o mundo exterior.

 

O R. disse-me uma coisa pessoal, como para nos unir. O seu tom era desapaixonado. Contou-me que entrou um camião cheio de anarquistas na aldeia dele, em 1936, e pediram ao alcaide para entregar todos os fascistas. O alcaide disse-lhes que tinham fugido todos. Os anarquistas voltaram dois dias depois com uma lista de nomes. Entre eles os dos pais do Raúl. Os anarquistas levaram-nos até às ravinas e fuzilaram-nos. «Quase toda a gente que eu conhecia foi morta a tiro nessa tarde», recordou. Tinha doze anos.

 

27 de Dezembro de 1943

 

Pensava que os russos eram pessoas primitivas e extremamente pobres; mas as aldeias por que temos passado revelam que esta parte da Espanha se perdeu inapelavelmente na Idade das Trevas, com a insanidade por constante companhia. Não é invulgar ver pessoas uivarem à lua. Ao procurar comida numa aldeia, o R. encontrou um rapaz com uma coleira de metal ao pescoço, acorrentado à parede. Os olhos eram só pupila e, ao olhar para dentro deles, o R. não viu nada que desse uma indicação de que algo de humano habitasse nele.

 

5 de Janeiro de 1944, Algeciras

 

Chegámos cá meio mortos de fome e esfarrapados, depois de termos sido atacados por cães selvagens, mais esfomeados do que nós. Matei três com as mãos, antes de a matilha fugir, deixando-nos dilacerados e a sangrar. O R., que se tem mostrado sempre respeitoso, agora tem-me uma espécie de reverência. Há uma astúcia, neste rapaz que me incomoda.

 

7 de Janeiro de 1944, Algeciras

 

A Espanha, neste estado, não é país para ninguém. A África está tão perto, visível e próxima, do outro lado do estreito. Sinto-lhe o cheiro e surpreende-me o facto de querer tanto lá voltar.

 

10 de Janeiro de 1944, Algeciras

 

O barco do contrabandista é uma velha traineira de 15 metros, com 3 ou 4 de largo. Tem um grande espaço de carga à popa e os alojamentos à proa. Tem uma pequena cabina com a roda do leme e dois painéis de vidro estalado; por baixo, ficam as máquinas, e foi onde encontrámos o Armando. É robusto, tem cabelo preto e cara suja, com a barba por fazer. Tem olhos castanhos, suaves, mas tem lábios finos e um sorriso sardónico. Não desgosto dele, especialmente quando faz feijoada com tomate, alho e chorizo. Disse-nos que tínhamos roupa numa das cabinas, que nos serviria melhor do que as suas. Comemos e bebemos e fiquei cheio e ensonado. Mas lembro-me de ter perguntado ao A. de quem eram as roupas que tínhamos vestidas. Pertenciam à anterior tripulação, que tinha sido morta a tiro por uns italianos. O R. perguntou-lhe como tinha sobrevivido e ele disse, impante: «Matei os italianos.» Á vista da decadente e sórdida Algeciras, Tânger é uma cidade próspera. O porto está cheio de navios e as gruas estão todas a funcionar. A doca está apinhada de marroquinos, encapuçados nos seus albornozes ou vergados ao peso das diferentes cargas. Camiões e carros rastejam no meio da mole humana; muitos são grandes carros americanos. Por cima do porto, em posição de comando, fica o Hotel Continental. Outros hotéis alinham-se pela avenida de España - o Biarritz, o Cecil, o Mendez. Empalideço perante a possibilidade de o meu pai se ter mudado para aqui, para aproveitar a maré.

 

O R. pôs-se a andar pelo convés de proa, aos pulos, gritando de alegria. O A. olhava para mim com olhos de carneiro mal-morto e perguntou o que era aquilo. Disse-lhe que o R. tem o mesmo faro para dinheiro que um cão por uma cadela em cio. O A. cofiou o queixo, fazendo um som de lixa contra as mãos calejadas pelos cabos. Gostava de desenhar aquelas mãos... e a cara, que reúne sensualidade e brutalidade.

 

Assim que atracámos, o A. teve uma conversa em particular com o R., que desapareceu. O A. ficou a fumar cachimbo; deu-me mortalha e tabaco para enrolar um cigarro. Soltou uma baforada e disse-me: «São a melhor tripulação que já tive.» Disse-lhe que ainda não tínhamos feito nada. «Mas vão fazer. O R. trata dos negócios e tu das mortes.» Estas palavras deram-me volta às tripas. Era só isso que ele conseguia ver quando olhava para a minha cara? Percebi que o R. tinha andado a dar com a língua nos dentes.

 

11 de Janeiro de 1944

 

Saímos para o mar, na noite passada. O R. tinha regressado passadas poucas horas, seguido por um americano e dois marroquinos que traziam dois barris de 200 litros de gasóleo. O combustível foi mais barato do que o A. alguma vez tinha comprado. O R. e o A. conversaram sobre mais preços e, pelas nove da noite, estávamos a carregar sacas de grão e farinha e 8 bidões de gasolina. O R. ofereceu-se para tratar da contabilidade e o A respondeu: «Qual contabilidade?» O R. sabe ler e escrever, mas a verdadeira vocação dele são os números. Fazia a contabilidade dos pais desde os onze anos. «Quando iam ao mercado, compravam isto e vendiam aquilo. Eu assentava tudo. Ao fim de seis meses, sabia dizer-lhes em que é que estavam a ganhar ou perder dinheiro.» Esse mercado ficava numa vila próxima.

 

«Então já sabes por que é que os anarquistas mataram os teus pais.» Nunca tal lhe passara pela cabeça.

 

13 de Janeiro de 1944

 

Mantivemo-nos afastados da costa, antes de entrarmos na pequena aldeia piscatória de Salobrena, a coberto da noite. O A. fez sinal para a costa e, recebendo a resposta combinada, avançou. Enquanto esperávamos, o A. mostrou-me a sua única arma de fogo, uma pistola com embutidos de prata sobre a guarda do gatilho. «Uma obra de arte para matar», disse eu. Enerva-me pensar que terei de desempenhar este papel apenas com dois tiros, mas ele garantiu-me que o estampido do tiro seria muito dissuasor para quem estivesse na margem. Saíram ambos para tratar dos negócios e eu fiquei de guarda ao barco. Voltaram passada meia hora, a discutir. Os compradores não aceitavam os preços inflacionados do R. O A. estava furioso por ter de navegar até outro porto e procurar outro comprador. O R. disse-lhe para ter paciência, que eles voltariam para falar connosco outra vez. O A. andava de um lado para o outro no convés. O R. fumava. Às 3 da manhã, o R. disse ao A. para pôr os motores em marcha. Quando o R. se preparava para zarpar, quatro homens vieram a correr para nós. Patrulhei o convés com arma. Vi dinheiro a mudar de mãos. Descarregámos e partimos antes do sol raiar.

 

15 de Janeiro de 1944

 

O R. demonstrou ao A. que, se tivesse aceitado o preço oferecido na Salobrena, não teria tido lucro nenhum e, se tivesse pago o preço habitual pelo gasóleo, teria mesmo perdido dinheiro. O R. discutiu com ele o tipo de carga a que se dedica. É demasiado pesada e pouco rendosa para um barco pequeno. Disse-lhe que devia dedicar-se aos cigarros. «Os cigarros são a nova moeda. Compra-se de tudo com cigarros. Francos, marcos alemães, liras não significam nada.» O A. ficou lívido com a sugestão. Os italianos controlam esse sector e ele não se quer meter com eles. O R. apontou para mim e disse: «Ele é um soldado bem treinado. Esteve na Legião. Esteve na Rússia. Não há italiano que lhe possa fazer frente.» O R. fez o trabalho de casa. Não lhe contei nada daquilo. O A. olhou para mim e eu disse: «Não faço isso com uma pistola. Se quer meter-se nos cigarros, preciso, pelo menos, de uma pistola-metralhadora.» O R. riu-se de mim: «Uma pistola-metralhadora! Aquele americano que nos vendeu o gasóleo e a gasolina... arranja-te o que quiseres. Uma Howitzer, um tanque Sherman, um bombardeiro B-17... apesar de dizer que pode levar algum tempo mais a arranjar.»

 

29 de Janeiro de 1944

 

Os Aliados entraram em Arizio na semana passada e o R. está nervoso, com medo que o seu precioso mercado venha a ser destruído com o fim da guerra. Disse-lhe que os Aliados ainda têm muito que fazer e que os alemães não vão ceder território com facilidade. O R. está desesperado para arranjar o seu próprio barco e eu lembro-lhe que ainda não ganhámos os nossos primeiros 10 dólares, quanto mais dinheiro para comprar nem que fosse um barco a remos. O R. insiste em que o A. lhe ensine tudo sobre o barco e o mar - a ler um mapa, traçar uma rota, ler uma bússola e navegar pelas estrelas. Também assisto a essas lições.

 

20 de Fevereiro de 1944

 

O A. continua a fazer as coisas à sua maneira e temos feito travessias regulares com grão, farinha e gasolina; até que o R. arranjou um estranho negócio para entrega de uma carga de pimenta preta para a Córsega, a um preço muito baixo.

 

O fretador é um alemão vindo de Casablanca, que comprou esta carga a um judeu. Não imagino para que é que os corsos querem tanta pimenta e, quando o alemão percebeu que falo a língua dele e lutei na Rússia, confidencia-me que o material vai ser depois transferido e acabar numa fábrica de munições na Alemanha...

 

24 de Fevereiro de 1944

 

Rumámos à Córsega e o R. ficou encantado por ter contactado simultaneamente com corsos e alemães. Parece que, a partir de agora, vamos passar a rumar à Córsega com cargas de cigarros e os corsos ficarão encarregados de os introduzir em Marselha ou Génova. Como salientou ao A., faz-se mais dinheiro com menos risco. O A. não acreditou nele, só por esta pequena amostra de negócio. Ele reina porque é dono do barco e não percebe como é importante a inteligência do R. para tornar lucrativo o seu estúpido barco.

 

Tive uma conversa com o A. acerca da diferença entre camponeses e pescadores. Os pescadores são sempre humildes em relação ao mar. A força do mar torna-os coesos. Ajudar-se-ão sempre uns aos outros. Os camponeses só têm o seu pedaço de terra. Isso torna-os mesquinhos e possessivos. Nunca são humildes, são sempre desconfiados. São taciturnos, porque qualquer coisa que digam pode dar vantagem ao vizinho. A sua natureza manda-os proteger e expandir. Se um camponês vir um vizinho tropeçar e cair, procura maneira de se aproveitar disso. Ele rematou com a afirmação: «Eu sou pescador e o teu amigo R. é camponês.»

 

O R. está a dar comigo em doido com aquela fixação de ter o seu próprio barco.

 

1 de Março de 1944

 

Deixámos a carga com os corsos e rumámos a Nápoles com o barco vazio, para o R. se encontrar com um italiano com quem ia fazer negócio. Tinha sabido pelos corsos que precisava de autorização. O A. não quis sair do barco e percebi a que ponto o incidente com os italianos o tinha afectado.

 

12 de Março de 1944

 

O R. estava decidido a mostrar ao A. quanto dinheiro se pode ganhar num acordo bem organizado com os italianos. O nosso barco encheu-se de Lucky Strike. Quase ficámos sem lugar para dormir, por causa dos pacotes e caixas e até maços soltos. O A. estava nervoso. Todo o seu dinheiro estava metido nesta viagem. Entrámos furtivamente no Golfo de Nápoles à noite e ficámos suspensos na escuridão fria de um mar muito calmo, à espera. O R. veio ter comigo à cabina onde guardo a pistola-metralhadora. Disse-me para estar preparado, para não revelar a minha presença e para, ao primeiro sinal de problema, não tentar perceber e matar toda a gente. «Mas pensava que tínhamos autorização», disse eu. «Por vezes, é preciso provar aquilo de que se é capaz, antes de se obter autorização. Nada é garantido, com esta gente.» Perguntei-lhe por que é que não tinha dito isso ao A. e ele respondeu: «Todos os homens têm de pensar pela sua própria cabeça. Entregarem-se nas mãos dos outros, fá-los correr um grande risco.»

 

Verifiquei que os quatro carregadores estavam cheios e meti um no encaixe da arma. A água batia nos costados do barco. Passados minutos, ouviu-se o borbulhar de um motor a aproximar-se. Deitei fora o cigarro, fui para a casa do leme e acocorei-me por baixo dos painéis de vidro. Senti que alguma coisa tinha mudado no R., mas a aproximação do barco não me deu tempo para pensar nisso. A nossa embarcação iluminou-se, com a abordagem. As defensas, feitas de velhos pneus, rangeram quando os barcos se tocaram. Ouvi uma voz italiana, cantada e nada ameaçadora. Espreitei por cima do parapeito da janela. O A. e o R. estavam próximos da amurada, cerca de três metros à minha frente. O italiano compreendia espanhol. Dois homens introduziram-se por cima da amurada à popa e rodearam a cabina do leme, para a parte sombria. Eu sabia que isso não estava certo. Ouvia os dois homens do outro lado da divisória, roçando as roupas contra os madeiramentos. Seria o primeiro presságio de problemas? Ouvi um grito e nem pensei: disparei uma rajada curta através da parede da casa do leme. Corri lá para fora e galguei a amurada, para dentro do barco italiano. Não estava ninguém no nosso convés. Percorri a popa do barco italiano. O motor tentou subitamente arrancar e disparei uma rajada curta contra a casa do leme, matando dois homens. Passei o motor para ponto-morto e o barco afastou-se lentamente do nosso. Pus-me alerta e escrutinei o convés. Depois desci. A cabina estava vazia. A porta do porão abriu-se para uma escuridão que cheirava a gasóleo. Encontrei uma tocha na cabina. Virei as costas para a amurada e introduzi a tocha pela porta. Nada. Nenhum disparo. Aninhado no canto do porão, estava um rapaz, com 17 anos no máximo. Encontrei-lhe apenas um canivete. Tremia de medo. Puxei-o para o convés. O casco branco do barco do A. ainda era visível na escuridão oscilante. Apareceu luz na casa do leme e o motor arrancou. O R. estava ao leme. O rapaz italiano estava de joelhos a rezar. Disse-lhe para se calar, mas ele tinha embalado.

 

O R. atirou-me um cabo. «Todos mortos?», perguntou. Apontei para o rapaz, a meus pés. O R. abanou a cabeça e disse: «É melhor matá-lo.» O rapaz soltou um lamento. O R., que, reparei então, estava todo ensopado, passou-me uma pistola.

 

- Preciso de uma razão um pouco melhor para o matar.

- Ele viu tudo - disse o R.

 

- Talvez seja altura de tu sujares as tuas mãos.

 

- As minhas já estão sujas - respondeu.

 

A arma estava na minha mão. Puxei o rapaz, que chorava, para a amurada. A cabeça ficou fora do braço. O choro estrangulava-o. Dei-lhe um tiro por trás da orelha. Entreguei a arma ao R., pensando: «É disto que eu sou capaz.»

 

A mesma mão que puxou o gatilho está agora a guiar as palavras para fora da caneta e não estou mais próximo da compreensão de como esta mão pode ser instrumento de criação e de destruição.

 

Levámos os barcos para a Córsega e atirámos os corpos borda fora pelo caminho. Fiquei no barco italiano e pusemo-los a par. Eram necessários dois homens para içar cada corpo. Chegou a vez do A. e eu disse que devíamos proferir uma oração em sua homenagem. O R. encolheu os ombros. Fiz o que costumávamos fazer quando caía um camarada da Legião. Gritei o seu nome e dei a resposta, que era: «Presente!» Quando o levantámos, vi que tinha sido atingido duas vezes, no ombro e na nuca.

 

Descarregámos os cigarros e pusemos ambos os barcos em doca seca, em Ajaccio. Remodelámo-los e pintámo-los com o dinheiro dos cigarros. O R. desapareceu por um dia e voltou com papéis para ambos os barcos, um em nome de cada um de nós. Navegámos para Cartagena e registámo-los com bandeira espanhola, mudando-lhes os nomes. Não tivemos tempo para falar acerca do que aconteceu. E, à medida que o tempo passa sobre o incidente e a memória do A. desaparece, constato que um dos talentos do R. é fechar portas.

 

A sua ligação a mim vem de me ter confiado a única memória que tem importância para ele, isto é, a morte dos pais. Acho que foi quando decidiu que a memória era uma coisa que interferia, em vez de clarificar, oferecendo apenas saudade como recompensa pela ausência de pertença; não tinha valor.

 

14 de Março de 1944

 

A conversa com o R. foi a que se segue.

 

Eu: O que aconteceu com os italianos?

 

R.: Tu viste, estavas lá.

 

Eu: Não vi como começou.

 

R.: Então por que abriste fogo?

 

Eu: Os dois tipos que vieram a bordo do nosso barco não deviam tê-lo feito. Abri fogo ao primeiro sinal de problema... como tinhas ordenado.

 

R.: Só assim?

 

Eu: Ouvi um tiro... como um sinal.

 

R.: O italiano tinha uma arma. Gritei. Ele matou o A. Saltei para a água. Ouvi o estouro da tua pistola-metralhadora e os italianos também. Fugiram.

 

Eu: O A. foi alvejado duas vezes.

 

R.: O que é que queres dizer?      

 

Eu: Foi atingido no ombro e na nuca.

 

R.: Eu estava na água. Talvez o italiano disparasse duas vezes.

 

Eu: Onde foste arranjar a pistola?

 

R.: Por que é que me estás a interrogar?

 

Eu: Quero saber o que aconteceu. Disseste que tinhas as mãos sujas. Disseste que por vezes, é preciso provar aquilo de que se é capaz, antes de se obter autorização.

 

Pausa longa, durante a qual percebi que nunca vou saber o que vai dentro da cabeça do R.

 

R.: A arma pertencia a um dos italianos que tu mataste.

 

Respondeu por fim, ainda que com uma mentira.

 

23 de Março de 1944

 

Algumas informações adicionais sobre aquilo a que agora chamo Noite de Ópera. Fui ter com o americano de Tânger para arranjar mais munições para a pistola-metralhadora e pedi-lhe mais munições para a arma que vendera ao R. Deu-me uma caixa de balas de calibre 45 sem fazer perguntas. Também me disse, de passagem, que a melhor coisa que os Aliados fizeram para os negócios foi terem entregado os de Nápoles a Vito Genovese. Não conhecia o nome. O americano contou-me que era um gangster da Camorra, que, descobri mais tarde, é a versão napolitana da Mafia siciliana.

 

Tem-se dado uma mudança no R. desde que embarcámos neste negócio. Não é já tão simpático como era. A sua afabilidade passou a ser ligada e desligada, conforme as conveniências. O R. vive agora perdido no mundo com a única e escaldante memória do fuzilamento dos pais. O meu comentário irreflectido de que teriam sido mortos precisamente devido à sua perspicácia deve tê-lo trespassado como uma baioneta incandescente. A culpa que induzi nele deve tê-lo tornado cruel e selvagem. Fez-me seu sócio. Não sei porquê, porque agora não parece precisar de ninguém.

 

30 de Março de 1944, Tânger

 

O R. pagou-me 100 dólares. Aconselhou-me a manter o dinheiro em dólares e apenas trocar o que precisasse em pesetas. Anunciei-lhe que ia voltar a ser pintor e ele disse que eu não tinha aprendido nada.

 

Eu: É o que tenho de fazer.      

 

R.: Respeito isso.

 

Não respeita nada.

 

Eu: Como disseste, temos de pensar pela nossa cabeça.

 

R.: Desculpa, mas o que estás a fazer não é pensar.

 

Eu: Quero ver até onde consigo ir.

 

R.: Pensas que o talento tem alguma coisa a ver com o sucesso, no mundo da arte?

 

Eu: Ajuda.

 

R.: Então és um louco.

 

Eu: Não achas que Van Gogh, Gauguin, Picasso e Cézanne tinham talento?... Sabes ao menos de quem estou a falar?

 

R.: O louco pensa sempre que loucos são os outros. Claro que sei quem são. Esses homens têm génio.

 

Eu: E eu não tenho?

 

Encolheu os ombros.

 

Eu: E desde quando é que te tornaste especialista em arte?

 

Voltou a encolher os ombros e ia cumprimentando com a cabeça algumas pessoas. Estávamos sentados na esplanada do Café de Paris, na Place de France.

 

Eu: Como é que um camponesito de um pueblo poeirento dos arredores de Almeria sabe o que quer que seja sobre arte?

 

R.: Como é que um ex-legionário se torna um génio? El Marroquí. E como vais assinar a tua obra?

 

Eu: O génio não é selectivo.

 

R.: Mas quem decide? Gauguin e Van Gogh foram reconhecidos no seu tempo?

 

Eu: O que te leva a pensar que quero ser célebre?

 

Não disse nada, mas olhou para mim com intensidade e percebi que estava sentado diante de alguém que tinha encontrado o seu meio, um homem absolutamente confiante na sua substância e que tinha visto em mim algo que eu próprio não vira.

 

R.: Por que é que escreves aqueles diários? Por que é que andas a passar a tua vida para o papel?

 

Eu: Apenas escrevo o que acontece e o que me ocorre.

 

R.: Mas porquê?

 

Eu: Não é para consumo público.

 

R.: Para que é?

 

Eu: É um registo, tal como os teus livros de contabilidade.

 

R.: Apenas te recordam onde te situas no mundo?

 

Eu: Isso mesmo.

 

R.: Não achas que as pessoas vão lê-los e pensar: «Que homem extraordinário!»?

 

às vezes penso isso, mas não lho digo.

 

R.: Todo o homem com alguma coisa dentro tem de ter uma certa vaidade.

 

1 de Abril de 1944

 

Tivemos a nossa primeira folga, para o R. perceber como funcionam os bancos.

 

Instalámo-nos na Residencial Almeria. Há cá gente de todas as nacionalidades e muitas raparigas solteiras, que trabalham nas centenas de empresas que aqui se instalaram desde o início da guerra.

 

O R. goza o dinheiro que tem. Mandou fazer um fato a um judeu francês, no Petit Soco. Veste-o para visitar os bancos. Janta num restaurante gerido por uma família, espanhola, no Grand Hotel Villa de France. Depois de comer, dá um passeio curto pela Rue Hollande e depois sobe ao Hotel El Minzah, onde toma o seu café e brandy. A sua vaidade é pensar-se rico. Funciona, porque fez contactos e negoceia nesses locais, que estão cheios de negociantes do mercado negro à procura de gente como o R. para levar os seus produtos para a Europa.

 

Eu gosto de me sentar na medina ao sol, perto do Café Central, e observar o caos do Soco Chico. À noite, sou impelido a ir até à sordidez do porto. Há um bar espanhol chamado La Mar Chica, com serradura no chão e uma velha marafona de Málaga que dança um flamenco passável. Cheira mal, como se toda a sua biologia estivesse a falhar e, ao suar, estivesse realmente a purgar o sistema de todas as suas maleitas.

 

26 de Junho de 1944

 

Desde que os Aliados invadiram a Normandia, temos trabalhado sem parar. O R. encontrou um bêbado escocês que precisa de dinheiro para pagar dívidas de jogo, e por isso, somos os novos proprietários do «Highland Queen». Um espanhol chamado Miguel, que costumava trabalhar em barcos de pesca em Almunecar, vai pilotar o novo barco.

 

3 de Novembro de 1944

 

Parados à saída de Nápoles, aos primeiros alvores, fomos atacados. Procuravam o «Highland Queen», que tinha levantado âncora. Na altura em que passei perto, tinham o M. no convés, com uma arma apontada à cabeça. Não percebi a língua deles. O R. disse-me por rádio que abrisse fogo, o que fiz. Todos se atiraram para o convés, incluindo o M. O barco dos piratas deu força às máquinas e eu usei uma Lee Enfield .303 britânica, que tem grande precisão à distância, para matar o homem do leme. Eram gregos. Rebocámos os dois barcos para Nápoles. O M. tem uma ferida feia na perna direita e tivemos de o deixar lá. A nossa frota é agora de quatro embarcações.

 

15 de Novembro de 1944, Tânger

 

O R. está a preparar-se para alugar um armazém no porto e outro na cidade. A minha missão é tratar da segurança, o que significa ter homens de confiança que impeçam os desconhecidos de entrar e os conhecidos de roubar. Diz que as pessoas têm medo de mim. Fico surpreendido. Ouviram falar de como lidei com os gregos. Percebi que foi o R. que criou este mito em meu redor e não tenho força para o parar.

 

17 de Fevereiro de 1945, Tânger

 

O R. arranjou os armazéns. Fui directo à Legião, em Ceuta, e recrutei uns veteranos que me conhecem. Regressei com doze homens.

 

8 de Maio de 1945, Tânger

 

A guerra acabou hoje. A cidade entrou em histeria. Está toda a gente bêbada, excepto eu e os meus legionários. Os subúrbios da cidade têm-se estado a encher de berberes, rifenhos e tanjawis, que têm vindo a ser a fugir das montanhas estéreis e a instalar-se em chabolas feitas de contentores e de placas de madeira. Não têm nada a perder e roubarão qualquer coisa. Temos de ser severos. A pancada não os dissuadiu. Agora, quando os apanhamos, cortamos-lhes uma orelha; na vez seguinte, o nariz ou o polegar e o indicador. Depois disso, se voltarem, atiramo-los de um precipício, fora da cidade.

 

8 de Setembro de 1945, Tânger

 

A administração espanhola está a retirar-se de Tânger. O R. ficou momentaneamente assustado; mas parece que a cidade vai regressar ao anterior estatuto internacional e os negócios não vão ser afectados.

 

7 de Outubro de 1945, Tânger

 

Voltei a pintar. Desenho a casa e pinto-a em abstracções de escuro e claro. Por vezes, surgem padrões no meio dessas estruturas de preto-e-branco. Penso nos trabalhos russos e percebo de onde vem esta obsessão monocromática.

 

26 de Dezembro de 1945, Tânger       rrtyft  

 

No meio da nossa Consoada de Natal, o R. perguntou-me se queria casar-me. «Contigo?», perguntei; e rimos tão alto que a verdade se revelou gradualmente penosa. Ele é uma presença de vulto na minha vida. (Eu menos na dele.) Ele controla cada movimento meu. Somos sócios, mas ele paga-me as despesas, instrui-me quanto às medidas de segurança e traça os planos. Eu tenho mais oito anos do que ele. Fiz trinta, este ano. Deve ter sido a Legião, aquela vida... Preciso de uma estrutura para agir. Não sou senhor de mim próprio... excepto quando me retiro para aqui, para o meu pátio.

 

Esta casa é como a minha cabeça, o que, sendo a casa de um louco (de acordo com as palavras do R.), é revelador. Ocupei mais quartos. Um com um tecto muito alto e, no topo, uma janela rendilhada de madeira. Sento-me na carpete, fumo haxixe e observo, completamente fascinado, o padrão projectado na parede, movendo-se com o sol.

 

O P, o empregado do Café Central no Petit Soco, indicou-me um «colega pintor espanhol», há dias. Tinha pior aspecto do que alguns dos habitantes das chabolas, no extremo da cidade. Chama-se Antonio Fuentes. Pinta, mas não vende nem expõe. Não percebo qual é a intenção e tentei debater isso com ele, mas mantém-se impenetrável. O P. apresentou-me a um músico americano, Paul Bowles. Falamos em árabe, porque o meu inglês é fraco e o espanhol dele ainda pior. Falou de «majoun», uma espécie de compota de haxixe, de que ouvi falar mas nunca experimentei. O P. faz e nós comprámos-lhe um pedaço.

 

1 de Outubro de 1945, Tânger

 

Decidimos investir no imobiliário. Encontrei a casa perfeita, à saída do Petit Soco, um edifício labiríntico, construído em torno de um pátio central, em que há uma enorme figueira. A luz entra dos lugares mais surpreendentes. O R. acha que é a casa de um louco. A dele fica mesmo por dentro da porta da medina, a seguir ao Grand Soco, onde vive uma série de outros espanhóis. Assusta-me que esteja constantemente a falar da filha de 13 anos de um advogado espanhol que vive em frente dele. O pai da rapariga tornou-se miraculosamente nosso advogado e foi ele que redigiu os contratos de compra das casas. Paguei 1500 dólares e o R. 2200 e não tivemos de pedir um cêntimo emprestado.

 

5 de Janeiro de 1946, Tânger

 

Está frio e húmido. O tempo tem estado mau para sair com os barcos. O R. mostrou-me o presente que comprou para dar à jovem filha do nosso advogado - uma boneca esculpida em osso. É extraordinariamente delicada, mas um pouco macabra. Mais tarde, vimos a rapariga atravessar a rua com os pais, a caminho da medina e da catedral espanhola. É muito bonita, mas ainda uma menina. Os seios são pequenas saliências e as linhas do corpo totalmente direitas, da axila até às coxas. Não percebia o que o excita nela, até que ele me revelou outro acontecimento do seu passado. Ela lembra-lhe uma rapariga da sua aldeia cujos pais foram assassinados no mesmo dia que os dele. Aquela rapariga, contudo, nunca deixava os pais, e os anarquistas não conseguiam separá-la deles, sobretudo do pai. Em desespero, mataram-na também. O que é que isto diz da atracção do R. pela filha do advogado? Ela lembra-lhe o que ele mais preza.

 

25 de Janeiro de 1946, Tânger

 

Tomei um pedaço de «majoun». Barrei-o no pão e comi-o na estranha sala de tecto alto. Ajudei-o a descer com um chá de menta. Ainda mal tinha pousado o meu copo no tabuleiro, caí para trás, num torpor relaxado. Ao fim de alguns minutos senti o corpo voltar à vida, das pontas do cabelo até aos calos dos pés. Flutuei até cerca de 20 centímetros do tecto e olhei para fora da janela de portadas rendilhadas, por cima dos terraços dos edifícios da medina até às muralhas, com o mar cinzento para lá delas. Um sol desmaiado reproduzia os desenhos da janela na minha camisa. Esbracejei e esperneei, angustiado por estar 7 metros acima do chão, sem apoio visível. Fechei os olhos e relaxei-me. Senti mais frio do que alguma vez tive, mesmo na Rússia. Abri os olhos para o tecto caiado e, a destacar-se dessa vastidão branca, apareceram pequenas manchas negras, que viria a constatar serem aglomerados de cadáveres congelados. Fiquei cheio de medo. Queria sair daquele estado, mas prolongou-se durante horas. Acordei no escuro. Esta manhã, vi manchas de bolor no tecto, provocadas pelas chuvas de Inverno. Pequenas aglomerações de esporos, os mortos-vivos.

 

Quinta-feira, 19 de Abril de 2001, Jefatura, calle Blas Infante, Sevilha

 

Falcón ia pensando que aquele Raúl dos diários do pai não podia ser outro senão Raúl Jiménez, enquanto telefonava a Ramón Salgado; disseram-lhe que a agenda dele se mantinha inalterada. Tinha um jantar, cedo, em Madrid, tomava o AVE e não estaria em casa antes da 1 da manhã de sexta-feira. Tinha já um encontro para a manhã. A secretária dele, Greta, sugeriu o almoço, o que dava mais tempo do que Falcón queria passar com Salgado; mas, por outro lado, seria interessante ver a cara do velho negociante quando a MCA Consultores lhe fosse incluída no ramalhete da conversa.

 

A Jefatura estava silenciosa. Recostou-se, exercitando a memória, no sentido de tentar lembrar-se de alguma ocasião em que o nome de Raúl Jiménez tivesse sido mencionado pelo pai. Em 1961, quando a mãe morreu, o pai dedicava-se exclusivamente à pintura. Não havia negócios de que se lembrasse. E enquanto esteve em Sevilha, nunca Raúl Jiménez visitou a casa. Era igualmente surpreendente que o pai não constasse da parede dos famosos de Jiménez. Deviam ter-se desentendido.

 

Balançou a cadeira para trás e passou os olhos pelos relatórios da brigada. Alguém tinha visto uma carrinha cinzenta perto da pequena zona industrial, por trás do cemitério. Um dos seguranças dava-a como sendo uma Golf, o outro uma Seat. A matrícula estava demasiado suja para se ver, apesar de um deles ter visto as iniciais «SE», reveladoras de uma placa sevilhana. O relatório de Serrano mencionava que apenas carros com comportamentos suspeitos eram registados; e esta carrinha cinzenta tinha circulado devagar em redor das fábricas que estavam coladas ao cemitério.

 

O relatório de Pérez sobre as Mudanzas Triana era um trabalho de perito, feito em profundidade. Tinha até uma planta do piso do armazém, com a localização da jaula dos contentores de Jiménez. Interrogatórios extensos com o encarregado, Sr. Bravo, e os outros trabalhadores mostravam que era pouco provável que o assassino tivesse tido tempo para fazer as filmagens para o Familia Jiménez enquanto mantinha este tipo de trabalho. No dia em que o Betis perdeu 4-0 com o Sevilla, todo o pessoal regular estava fora, em serviços. Na manhã do funeral de Raúl Jiménez, estavam igualmente todos a trabalhar. Havia uma lista dos empregados eventuais do último ano e, finalmente, a admissão de que alguns eram ilegais. Apenas uma pequena percentagem deixava morada. O relatório de Pérez sobre os filmes domésticos era composto por duas linhas absolutamente factuais.

 

Fernández tinha andado a mostrar a fotografia de Eloisa Gómez aos visitantes com que se cruzava no cemitério. Nenhum se lembrava dela. Os jardineiros não trabalhavam ao sábado nem ao domingo. A área de depósito dos detritos de jardim era ocultada por espessos arbustos. Fernández era de opinião que Eloisa Gómez podia facilmente ter sido assassinada e escondida no sábado de manhã. Os portões do cemitério abrem às 8h. 30, ao sábado, mas poucas pessoas aparecem antes das dez.

 

Depois de ter lido os relatórios, Falcón trabalhou uma série de perguntas, destinadas a quebrar a determinação de Consuelo Jiménez, se ainda se mantivesse.

 

Os membros da brigada chegaram entretanto. Falcón fez o ponto da lenta evolução da situação e destinou o cemitério e a zona industrial aos mesmos três homens. Pediu a Ramírez para sair e disse a Pérez que estava convencido de que não tinha o entusiasmo que este caso requeria. Transferiu-o para outra investigação. Pérez saiu, furioso.

 

Ramírez voltou a entrar e ficou de pé à janela, brincando com o anel, como se estivesse a ponto de bater em alguém. Compreendeu perfeitamente o que tinha acabado de acontecer. Falcón mandou-o levar um perito de investigação criminal ao quarto de Eloisa Gómez e fazer-lhe uma inspecção aturada. Ramírez saiu do gabinete sem uma palavra. Falcón telefonou a Consuelo Jiménez, a qual, como sempre, concordou em recebê-lo imediatamente.

 

Encontraram-se no escritório à saída da plaza Alfalfa. A Sra. Jiménez, pressentindo que trazia munições, jogou umas tácticas diversórias. Deixou-o sozinho durante cinco minutos, para ir supervisionar a feitura do café.

 

Não ficou satisfeito com o relatório do inspector Ramírez sobre a nossa... conversa? - perguntou, reclinando-se na cadeira com o café, de perna traçada e com o pé a dar.

 

- Sim, até onde chegaram - disse Falcón. - Ele é um bom polícia e um homem desconfiado. Sabe quando alguém está a mentir, a não dizer a verdade ou a omiti-la. Satisfez-lhe a curiosidade em dois dos aspectos.

 

- Todos mentimos, inspector jefe. Somos instigados a mentir. Amo os meus filhos e, de uma maneira geral, são bons miúdos, mas... mentem. É instintivo. Pense na quantidade de vezes que a sua mãe entrou na sala para saber quem partiu um copo ou uma caneca e quantas vezes ouviu: «Caiu.» Os seres humanos foram feitos para se meterem por caminhos sinuosos.

 

- Acha que, na minha profissão, lido com pessoas que querem contar a verdade? O assassínio desenvolve uma propensão muito mais forte para a negação do que qualquer outro crime, à excepção, talvez, da violação. Por isso, se encontramos alguém, numa investigação, com um motivo poderoso e uma sistemática propensão para a dissimulação, insistimos naturalmente, repetidamente, tentando descobrir o que esconde.

 

- E por isso, gasta tempo comigo.

 

- Não tem sido muito aberta connosco.

 

- Tenho uma regra de conduta na vida, que é nunca mentir a mim mesma.

 

- E todas as outras formas de falsidade são permitidas?

 

- Imagine passar um dia inteiro a falar sempre verdade. O estrago que faria. Nada funcionaria. Os sistemas políticos caíam. O mundo legal seria uma balbúrdia. Seria completamente impossível concretizar qualquer espécie de negócio. A razão está em que são tudo sistemas feitos pelo homem para obter resultados. Mesmo no mundo da Matemática e da Física, têm de trabalhar com informações imperfeitas, para alcançarem a verdade primordial. Não, inspector jefe, não se chega à verdade sem mentiras.

 

- E onde teve oportunidade de desenvolver tal pensamento filosófico?

 

- Não foi em Sevilha. Nem o Basilio el Tonto se pode medir comigo a esse nível, com toda a sua estúpida formação.

 

- O meu pai estaria de acordo consigo nesse ponto. Achava que a universidade era uma oportunidade para outros idiotas imprimirem nos alunos os seus ridículos sistemas de ideias.

 

- Eu gostava do seu pai... imenso. Até lhe perdoo aquela pequena aldrabice de me vender cópias «originais».

 

Falcón endireitou-se na cadeira. Aquela mulher sabia carregar nos pontos sensíveis.

 

- Uma das qualidades que demonstra na gestão dos restaurantes é, penso eu, a parcimónia. Espero que em matéria de gestão da verdade tudo o que se possa apontar-lhe seja manifestação dessa mesma característica...

 

Eu tenho uma imagem muito construída, inspector jefe. Aprendi a apresentar-me à sociedade. O senhor, e provavelmente meia Jefatura, sabe hoje coisas a meu respeito que apenas eu conhecia. Mas eu conhecia-as. Vivi com elas praticamente todos os dias. Claro que fico incomodada quando são trazidas a lume, como aconteceu recentemente; mas suprimi qualquer instinto que pudesse ter para a negação. Quando se entra por essa via, caminha-se para a loucura. É um caminho com pouca margem de recuo. O meu marido atingiu o único fim possível para quem se meteu pela Calle Negación.

 

- Só que não se matou, não é verdade?

 

- Tornou-se vítima. Começou a mover-se num mundo perigoso. Meti o dedo do pé nesse mundo e estava frio. O meu marido só terá percebido um dos seus aspectos, que é o de o dinheiro ser o seu sangue reptiliano vital. Mas o que pensa que as pessoas que vivem nesse mundo viam quando um homem como Raúl Jiménez aparecia? Eu digo-lhe: não era toda a força que o tornou um homem de negócios bem sucedido. Viam as fraquezas. Viam um cego, aos tropeções num mundo obscuro.

 

- Agora, está a expor-me uma teoria.

 

- Tive de ouvir o inspector Ramírez dar-me a teoria dele ontem. Fui um modelo de paciência. Fiquei lisonjeada com o facto de os poderes que se movem na Jefatura acreditarem que uma mulher possa ter capacidade para executar um plano tão elaborado. Mas realmente a morte do Raúl deixou-me o controlo do seu império, e talvez por isso a teoria não fosse assim tão disparatada.

 

- Um império que o seu marido estava a tentar vender.

 

- Sim, o inspector Ramírez foi muito insistente nesse particular. Mas matar a prostituta, inspector jefe. Meter o corpo dela no jazigo dos Jiménez. Nada disso me parece o trabalho de um assassino profissional contratado.

 

- Seria para mim uma surpresa que uma pessoa como a senhora tivesse vários assassinos profissionais por onde escolher. Penso que teria de recorrer ao primeiro que conseguisse... persuadir a fazer o trabalho.

 

- Nunca me exporia a outra pessoa a esse ponto. Ter-me-ia na mão para o resto da vida - disse e acendeu um cigarro. - Mas acredite em mim quando lhe digo, inspector jefe, que sei por que é que continua a bater-me à porta.

 

- Não é porque não tenhamos outras a que bater - mentiu. - É porque nunca saímos daqui satisfeitos. Fica sempre qualquer coisa pendurada. Há dias, disse que não havia pastas sobre a presidência do seu marido na Comissão de Construção da Expo’92. Ontem disse ao inspector Ramírez que só podia retirar de armazém as caixas que continham os filmes caseiros, mais nenhuma. Ameaçou-o...

 

Bem, agora revela-me outra coisa. A Jefatura é tão permeável à cultura da falsidade como o mundo exterior - disse ela, encantada. - Pode mexer em todas as caixas que quiser. São história passada, para mim. Não têm qualquer relação com a minha vida com o Raúl. Esse inspector Ramírez é mesmo uma besta.

 

- Então, é apenas isso que tem estado a fazer, não é? - comentou Falcón. - A proteger a sua privacidade.

 

- Por que é que havia de deixar intrometerem-se em áreas que não dizem respeito à investigação?

 

- Como sabe que não dizem?

 

- Porque não matei o meu marido nem mandei que o fizessem.

 

- As suas reticências forçam-nos a intrometer-nos.

 

- Diga-me o que o trouxe, inspector jefe; não aguento mais o suspense.

 

- Quero saber o que é que a Marta Jiménez sabe sobre estrutura e concepção de edifícios de grande circulação, em matéria de segurança.

 

Ela pestanejou e esmagou o cigarro.

 

- Quero saber a natureza das relações do seu marido com Eduardo Carvajal.

 

Acendeu outro cigarro.

 

- Estou interessado em saber que outros negócios pode a senhora ter com... como é que ele se chama? Um dos velhos amigos de Tânger do Raúl...

 

- Não brinque comigo, inspector jefe.

 

- Ramón Salgado.

 

Ela engoliu e limitou-se a fumar. Mudou de posição, ouvindo-se o roçar das meias de nylon.

 

- Não vou falar de nada disto sem a presença do meu advogado.

 

- Não me surpreende.

 

- Mas vou-lhe dizer uma coisa: esta linha de inquirição não vai resolver o seu caso de assassínio.

 

- Como pode estar tão segura? Fala sempre como se soubesse alguma coisa. Já deve ter percebido que é essa sua reticência que está a alimentar a animosidade contra si lá na Jefatura.

 

- Estou a proteger os meus interesses, não um assassino.

 

- Conhecia Ramón Salgado antes de vir para Sevilha?

 

Silêncio.

 

- Do mundo da arte de Madrid? - acrescentou ele.

 

Mais silêncio.

 

- Foi Ramón Salgado que a apresentou a Raúl Jiménez?

 

- O senhor é como um mau cirurgião, inspector jefe. Abre o paciente e vai à procura de qualquer coisa que esteja doente para extirpar. O que me preocupa é que corte alguma coisa perfeitamente saudável, só para mostrar trabalho.

 

- Coopere, doña Consuelo, é só o que lhe peço.

 

- Cooperei consigo na investigação da morte do meu marido. Tudo o que encontrou foram reticências, e perde-se em áreas que não deviam preocupar um detective de homicídios.

 

- Cooperaria com alguém vindo de Madrid? Um dos investigadores com poderes especiais e especializado em corrupção e fraude?

 

- As ameaças costumam pôr as pessoas na ofensiva.

 

- Estamos a tornar-nos belicosos, não estamos?

 

- Eu sei quem começou - disse ela, apagando o cigarro.

 

Mediram-se um ao outro por entre o fumo produzido na batalha.

 

- A senhora é perspicaz. Sabe qual é o meu interesse. Estou pouco preocupado com fachadas e fraudes. Compreendo que os negócios têm favores a pagar. Tem de se mostrar reconhecimento aos amigos, pagar a iniciativa de uma boa palavra nos ouvidos certos ou premiar o silêncio. Que isso seja feito com dinheiros públicos é um expediente compreensível. Só o Estado tem montantes desses nos cofres.

 

- Folgo em que tenha recuperado a urbanidade.

 

- Percebo as relações do seu marido com todas essas pessoas... menos uma. Eduardo Carvajal. E não estou em situação de lhe poder perguntar isso directamente, visto que já não está entre nós.

 

- Acho que morreu num desastre de automóvel.

 

- Há alguns anos. Fazia parte de uma rede de pedofilia, que foi toda incriminada posteriormente.

 

- Tenho pena de si, inspector jefe. Tem de passar o tempo nos mais frios e sombrios lugares do mundo.

 

- O seu marido apaixonou-se pela primeira mulher quando ela tinha pouco mais de treze anos.

 

- Como sabe?

 

- Por duas fontes. O filho mais velho do seu marido e os diários do meu pai.

 

- O seu pai e o Raúl conheciam-se?

 

- Mantiveram negócios em comum durante alguns anos, em Tânger.

 

- Que negócios?

 

- Acho que é chegada a minha vez de ser reservado em relação a esses factos, doña Consuelo.

 

- De qualquer modo... estava a dizer... A atracção do Raúl pode ter sido bastante inocente. Não foi certamente ilegal.

 

- Frequentava a prostituta Eloisa Gómez, que não era menor, mas sem dúvida o parecia.

 

- Casou comigo e teve três filhos meus, também.

 

- Não vamos voltar à agressividade, doña Consuelo. Quero apenas saber por que é que ele sentiu que tinha de recompensar Eduardo Carvajal. Isto não vai para registo e tudo o que disser não será utilizado como admissão de culpa. Só quero uma indicação, nada mais.

 

- Eu avanço sempre com cuidado, quando o que me apresentam parece jogar a meu favor.

 

- Tenho a certeza de que, mesmo aqui em Sevilha, manteve os ouvidos bem alerta para o estalar do gelo.

 

- Isso não tem grande importância se já estiver muito longe da margem.

 

- Então, vá com cuidado.

 

Ela brincou com um novo cigarro e o isqueiro.

 

- Tem uma nova teoria - disse, apontando-lhe o isqueiro.

 

- Estou a fazer uma investigação. O meu trabalho é pensar com criatividade sobre problemas insolúveis. Nunca abandono velhas teorias, mas na ausência de pistas, tenho de examinar novas possibilidades.

 

- Não fazia ideia de que o trabalho da polícia fosse tão exigente.

 

- Depende da forma como se aborda.

 

- E você é filho do Francisco Falcón.

 

- Ele nunca teve em grande apreço a minha decisão de entrar para a polícia.

 

- Mesmo pós-Franco, calculo que estivesse cheia de gente indesejável. O que o fez ir para lá?

 

- Romance.

 

- Apaixonou-se por uma mulher-polícia?

 

- Apaixonei-me por filmes americanos. Fiquei fascinado com a ideia da luta do indivíduo contra as forças do mal.

 

- Foi mesmo assim?

 

- Não. É muito mais complicado. O mal raramente nos faz o favor de ser puro. E nós, na linha da frente, não somos sempre tão bons como devíamos.

 

- Está a reavivar a minha admiração, don Javier.

 

Pensar que podia ter inflamado algo nela deu-lhe uma estranha satisfação. Nas duas vias paralelas à espinha, piscaram luzes... Ela acendeu outro cigarro e atirou o fumo por cima da cabeça dele.

 

- Eduardo Carvajal... - disse, para a relembrar.

 

- Pensa então que o assassino possa ter sido um rapaz violentado que tenha voltado para se vingar? Não me parece, don Javier. Ele nunca teve queda para aí...

 

- Uma rede de pedofilia raramente abusa só de uma criança. São muitos e com gostos diferentes. Talvez seja uma criança violentada a agir em nome de outras.

 

- Acha que alguém assim mataria a prostituta também? Não se iriam considerar irmanados como vítimas?

 

Segundo a irmã da Eloisa Gómez, tinham-se tornado íntimos ao ponto de ele lhe ter dado esperança. Se ele, entretanto, lhe revelasse que o relacionamento com ela tinha sido um expediente, ela podia tornar-se uma entidade perigosa, alguém que mais tarde poderia querer fazer um acordo com a polícia, por exemplo. Podia ser demasiado perigosa, para deixar por aí.

 

- Já pensou em tudo.

 

- Apenas volto a isto por causa da recompensa que o seu marido deu ao Carvajal.

 

- Sabe o que está a fazer, don Javier?

 

- Não.

 

- Está-me a meter em trabalhos.

 

- Não sabe por que foi?

 

- Nunca vi o Sr. Carvajal.

 

- Isso pode significar que não havia relações de trabalho entre o seu marido e o Sr. Carvajal. Se houvesse, tê-lo-ia conhecido, não é?

 

- Ele não estava metido na restauração.

 

- Tudo o que sei é que era um homem de negócios - disse Falcón, levantando-se da cadeira.

 

- Vai-se embora? - perguntou ela.

 

- Já esgotámos o nosso assunto.

 

Ela inclinou-se por cima da secretária e olhou para ele, com os olhos azuis-aço.

 

- Sabe, don Javier, quando isto tiver acabado, devíamos jantar os dois.

 

- Era capaz de ficar desapontada.

 

- Porquê?

 

- Nunca seríamos capazes de recriar a electrizante dinâmica de a ter a si como suspeita principal de um caso de assassínio e eu o responsável pela investigação.

 

Ela riu-se - com vontade, sem constrições, sensual.

 

- Há mais outra coisa - disse ele, quando chegou à porta. - Gostávamos de ter acesso aos seus registos telefónicos, tanto de trabalho como de casa, dos últimos dois anos. É capaz de arranjá-los?

 

Os olhos de ambos cruzaram-se e prenderam-se. Ela abanou a cabeça, sorriu e pegou no telefone.

 

Quinta-feira, 19 de Abril de 2001, Edificio de los Juzgados, Sevilha

 

Falcón andava de um lado para o outro, em frente do gabinete de Calderón. Tinha-lhe telefonado depois do encontro com Consuelo Jiménez e tinham combinado encontrar-se às seis. Eram quase sete horas e as secretárias que passavam já lhe lançavam olhares compreensivos. Dava-se por satisfeito por não ter sido posto à espera por um delegado do Ministério Público, nos escritórios por cima do Palacio de Justicia, no edifício ao lado, onde teria sido atormentado por todos os que tinha conhecido através da Inés. Teria repetido a lembrança das noites de Inverno em que a tinha ido buscar ao trabalho e apanhado no meio do seu mundo agitado. A beleza dela atraía a excitação da fama. Ele era o apaixonado dela. O escolhido. As pessoas olhavam-no com olhares inquisitoriais e sorrisos rasgados, querendo conhecer o seu segredo. O que é que o Javier Falcón tinha? Teria sido imaginação dele? As mulheres a inalarem o ar, à sua passagem; e os homens a espreitarem por cima das divisórias do urinol.

 

Enquanto andava ali de um lado para o outro, em frente do gabinete de Calderón, de repente percebeu que tinha sido tudo uma questão de sexo. Ele tinha sido levado, não apenas pelo seu próprio desejo, mas também pelo das pessoas em volta. Tinha-se equivocado nisso e o mesmo se passara com Inés. Tinham pensado que era genuíno, mas não era. Aquela simples atracção física passageira tinha sido tomada por amor devido à necessidade dos que os rodeavam de satisfazer um desejo de romantismo. O que devia ter sido apenas uns meses de sexo louco, tornou-se num casamento sob coacção - só que não era o pai a exercê-lo. Era o sentimento.

 

O Dr. Spinola, o magistrado juez decano de Sevilla, saiu do gabinete de Calderón. Parou para apertar a mão a Falcón e pareceu na iminência de fazer uma pergunta indiscreta, mas desistiu da ideia. Calderón mandou-o entrar e pediu desculpa por tê-lo feito esperar.

 

- O Dr. Spinola não é uma pessoa fácil de se mandar embora - disse Falcón.

 

Calderón não estava a ouvi-lo. Vasculhava o cérebro; pegou num cigarro, acendeu-o e inalou profundamente.

 

- É a primeira vez que vem a um dos nossos gabinetes para debater um caso específico - disse, para a parede por trás da cabeça de Falcón. - Normalmente, eu é que o procuro e lhe traço uma panorâmica dos casos.

 

- O que é que o traz tão preocupado?

 

- Boa pergunta - disse Calderón. - Estou confuso.

 

- Se tem a ver com o nosso caso, talvez eu possa ajudar.

 

Numa fracção de segundo, Calderón avaliou a situação. Reduzindo o problema ao nível do instinto, olhou para Falcón, pensando: «Posso confiar neste homem?» Decidiu que não, mas foi à tangente. Se tivessem tido mais uns momentos como os do cemitério, Falcón pensava que Calderón teria confiado nele.

 

- O que me traz, inspector jefe? Não veio com o inspector Ramírez hoje?

 

Falcón tinha aparecido sem Ramírez porque queria desenvolver uma relação pessoal com Calderón e, simultaneamente, cortar o acesso de Ramírez a informações, tirá-lo do quadro mais vasto e entregar-lhe pequenas peças do puzzle. Agora, tinha mudado outra vez de opinião. Ver o Dr. Spinola tinha-o tornado cauteloso. Talvez não fosse uma ideia muito boa ter o nome de Carvajal a flutuar pelos corredores do Edificio de los Juzgados. Não havia lógica naquilo, a não ser a ténue ligação que extraía do facto de Spinola estar nas fotografias de famosos de Jiménez, juntamente com León e Bellido, e Carvajal estar na lista de pagamentos da MCA Consultores. Deixar isso transparecer de forma vaga a Consuelo Jiménez tinha sido um risco calculado. Primeiro, queria ver se ela tinha conhecimento disso, o que não foi conclusivo. E tinha a certeza de que ela veria nisso apenas uma maneira de afastar a pressão de cima dela. Se Falcón tornasse isso mais oficial, por intermédio do juez Calderón, poderia ter repercussões desconhecidas. A fuga de informações poderia chegar ao comisario León. O único problema agora era não ter nada para dizer a Calderón, excepto aquilo que ansiava por evitar.

 

- O senhor tinha uma ideia, antes de sermos desviados pela mensagem do Sérgio - disse Falcón.

 

- Sérgio?

 

- É o nosso nome para o assassino. Era o que usava com Eloisa Gómez. Lembra-se: íamos contactar com ele, apontar-lhe uns erros e irritá-lo para que fizesse outros que lhe fossem fatais.

 

- Ele deixou o telemóvel com o cadáver - disse Calderón.

 

- Mas ainda tem o de Raúl Jiménez.

 

- Sabe mais alguma coisa acerca de Sérgio, desde que passou a ter um nome?

 

- Eloisa Gómez e a irmã falaram dele, enquanto pessoa. Definiram-no como un forastero, um estranho.

 

- Um estrangeiro?

 

- Forastero, para elas, representa um estado mental. É alguém que vê e compreende coisas para além do quotidiano. Sabe como as coisas realmente se passam. Tem uma compreensão automática do que acontece nas entrelinhas.

 

- Isso parece-me muito enigmático, inspector jefe.

 

- Não nas franjas da sociedade, em que as pessoas se afastaram da normalidade. Onde, por exemplo, vendem o corpo por sexo a cada dia, ou matam alguém porque não têm o dinheiro. Não é muito diferente no outro extremo da escala. As pessoas com poder, as que sabem como conseguir mais ou como manter as suas posições. Nenhuma delas vê as coisas como as pessoas normais, que têm emprego e filhos e casa para lhes ocupar o espírito.

 

- E acha que um artista, como descreveu o nosso assassino no cemitério, teria a mesma perspectiva pouco habitual - adiantou Calderón.

 

- Integra-se no perfil - disse Falcón. - Mencionou «estrangeiro». Eloisa Gómez contou à irmã que, apesar de Sérgio aparentar ser espanhol, havia qualquer coisa de estrangeiro nele. E tinha sangue estrangeiro também, ou tinha estado afastado das suas raízes espanholas.

 

- Em que é que isso altera a sua abordagem?

 

- Acho que apontar um erro é demasiado óbvio. Ele ia achar isso risível. Os forasteros sabem quando estão a ser manipulados.

 

- Talvez devamos mostrar-lhe que o compreendemos.

 

- Mas enquanto artista. Não devemos ser prosaicos. Temos de o intrigar como ele nos faz a nós. Ainda não estamos nem perto de perceber a última lição de ver. «Por que têm de morrer aqueles que se encantam com o amor?»

 

- Não estaria apenas a dizer-nos que a tinha matado porque ela o tinha visto: o dom da visão perfeita?

 

- Mas, e «aqueles que se encantam com o amor»? Ele está a apresentá-la como um emblema e escolheu uma prostituta para o seu propósito. Está a tentar alterar a forma como vemos as coisas e temos de fazer o mesmo. Temos de tentar que ele veja qualquer coisa, como se fosse a primeira vez.

 

- Portanto, tudo o que necessitamos agora é de um génio residente - disse Calderón. - Aparentemente, este edifício está cheio deles, a acreditarmos no que se diz.

 

- Vamos buscar génios aos clássicos - avançou Falcón. - Ele é um poeta e um artista... é a sua linguagem.

 

- «Los buenos pintores imitan la naturaleza, pero los malos la vomitan.» Os bons pintores imitam a natureza, os maus vomitam-na. Cervantes.

 

- Isso pode ter o condão de o irritar, também.

 

- Mas o que é que tentamos com esta estratégia? O que é que queremos dele?

 

- Estamos a tentar trazê-lo até nós, iniciar um diálogo, fazê-lo abrir-se. Queremos que comece a deixar escapar informações.

 

Falcón, perdendo a coragem no último momento, digitou a frase de Cervantes no telemóvel e mandou-a como mensagem de texto. Os dois homens encostaram-se nas cadeiras, sentindo-se estúpidos. O mundo da investigação reduzido ao absurdo de mandar frases de Cervantes para o éter.

 

Agora tinham de se remeter às suas pessoas, mas sem outro ponto de contacto para além do reconhecimento mútuo da inteligência de cada um. Falcón não iria falar de futebol e Calderón não ia puxar o assunto.

 

- Vi ontem um filme no vídeo - disse Calderón. - «Todo sobre mi madre», tudo sobre a minha mãe. Viu? É do Pedro Almodóvar.

 

- Ainda não - disse Falcón, e aconteceu a tal coisa estranha.

 

A sua memória entreabriu-se e, por um instante, estava de novo em Tânger, a chapinhar na água e depois no ar, aos gritos.

 

- Sabe o que me chamou a atenção nesse filme? Nos primeiros minutos, o realizador cria uma incrível relação de intimidade entre mãe e filho. E depois, o filho é morto logo a seguir. E... nunca tive uma experiência como aquela; quando morre, é como se fôssemos a mãe. Parece que nunca vamos recuperar daquela perda terrível. Isso é que é génio, para mim. Mudar o mundo em poucos metros de celulóide.

 

Falcón queria dizer qualquer coisa. Queria responder àquilo, porque, pela primeira vez, via ali uma possibilidade de conversa. Mas não conseguia atirá-lo para fora. Apenas as lágrimas lhe marejaram os olhos, que teve de apertar para as afastar. Calderón, sem ter consciência da luta de Falcón, abanou a cabeça encantado.

 

- Temos aqui qualquer coisa - disse Calderón, pegando no telemóvel. Leu o que estava no visor. Formou-se uma ruga, que se transformou em dor.

 

- Sabe francês? - perguntou, passando o telemóvel a Falcón. - Quer dizer, é simples, mas... muito estranho. «Aujourd’hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas.»

 

Falcón sentiu-se mal, nauseado ao ponto de vomitar.

 

- Percebo o que está escrito. Mas o que quer dizer?

 

- «Hoje, a mãe morreu. Ou foi ontem, não sei» - traduziu Falcón. - E há mais: «Não me contactes outra vez, cabrón; eu vou contar a minha história.»

 

- Virou o bico ao prego - disse Calderón. - Mas o que quer dizer?

 

- Não conseguiu resistir. Tinha de nos mostrar que estava um passo à nossa frente.

 

- Mas como?

 

- Deve ter tido uma educação francesa - disse Falcón.

 

- Aquilo é tirado da literatura?

 

- Não sei. Não tenho a certeza. Mas se tivesse de arriscar uma hipótese, diria que saiu de «l’étranger», de Albert Camus.

 

O Edificio de los juzgados estava quase vazio àquela hora da noite. E os passOS de Falcón ecoavam por todo o seu corpo oco, à medida que caminhava pelo longo corredor que levava às escadas. Teve de se segurar ao corrimão para descê-las e parou no patamar para controlar a tremura das pernas. Tentava persuadir-se de que era coincidência, que não havia uma estranha telepatia entre ele e Sérgio. A vida está cheia desses momentos estranhos. Há uma palavra para isso: sincronismo. Devia ser uma coisa boa. Os seres humanos gostam que as coisas se sincronizem. Mas não aquilo. Não a discussão deles sobre Estranhos, Calderón a falar acerca do filme com aquele título que não dava para mencionar e depois Sérgio a esbofeteá-los com aquela frase terrível. Uma Frase que o desligava do mundo normal das relações humanas, da profunda ligação fili-maternal. Eram as palavras do indivíduo mais solitário do planeta e caíram sobre Falcón como uma motosserra.

 

Conseguiu chegar junto dos seguranças, com os reflexos motores já nor[malizados. Do lado oposto, viu Inés, a pôr a carteira e a pasta na máquina de raios-X. Era a última pessoa que Falcón queria ver e, assim que o pensou, precipitou-se tudo na sua cabeça: a beleza dela, o sexo, os desejos dele, o falhanço dos dois. Ela esperou pelas malas, olhando directamente para ele, quase trocista.

 

- Hola, Inés.

 

- Hola, Javier.

 

O ódio era patente. Ele estava condenado a ser o não perdoado. Não conseguia perceber a razão disso, porque não era capaz de encontrar vestígios de rancor dentro de si. Tinham cometido um erro. Fora reconhecido. Tinham-se separado. Mas ela não o suportava. O segurança entregou-lhe as malas e ele ofuscou-o com um sorriso. Os lábios voltaram a transformar-se numa linha vermelha rígida na direcção de Falcón. Gostaria de ter tido um pouco de inspiração, naquele momento. Para, de algum modo, transformar tudo instantaneamente melhor, como acontece nos filmes. Mas não lhe veio nada à cabeça. Não havia nada para dizer. Era um relacionamento que não suportava sequer a possibilidade de uma amizade. Ela desprezava-o em demasia.

 

Ela avançou. Os ombros estreitos, o peito magro, as ancas balouçantes, o passo seguro e os saltos a marcarem a distância.

 

O segurança trincou o lábio, olhando para ela, e Falcón recordou a razão por que ela o odiava tanto. Ele tinha destruído a perfeição da vida dela. A vibrante, bela e brilhante estudante de direito, que se tinha tornado uma excepcional jovem delegada do Ministério Público, idolatrada por homens e mulheres, onde quer que fosse, tinha-se apaixonado por ele, Javier Falcón. E ele tinha-a recusado. Tinha sido incapaz de a amar. Tinha manchado a sua perfeição. Era por isso que ela achava que ele não tinha coração, porque era a única explicação possível para esse falhanço.

 

Na rua, postou-se ao lado de um dos pilares do edifício anexo. Tinha uma boa vista para a porta principal do Edifício de los Juzgados. Minutos depois, Inés reapareceu à porta, seguida por Esteban Calderón. Esperou por ele, beijou-o nos lábios, passou-lhe o braço e avançaram por baixo da arcada, na direcção da calle Menéndez Pelayo.

 

Tinham-se beijado? Teria sido uma ilusão provocada pela luz?

 

A sua capacidade de dissuasão abandonou-o. Tinha sido claro de mais. E, na sombra oblíqua das colunas neoclássicas, deu-se conta de outra anomalia da lógica. A fraqueza do circuito humano, que podia curtocircuitar mesmo o pensamento mais claro. Ele não a amava. Ele não lhe tinha rancor. Não havia esperança para eles. Então, por que é que ele sentia o sangue, os órgãos, os nervos e os tendões consumidos por um monstruoso ciúme?

 

Falcón correu para o carro, guiou de regresso à Jefatura, agarrando o volante com tanta força que teve dificuldade em desdobrar os dedos para escrever o seu relatório. Tentou ler os outros relatórios. Impossível. A concentração saltava-lhe do afundamento da sua investigação para a inexplicável certeza que lhe dizia ser Calderón um atleta sexual infatigável.

 

Perdera um bloco de tempo. Perdera uma jornada.

 

Num momento, estava completamente mergulhado naqueles relatórios e, no seguinte, estava sentado com Alicia Aguado, com os dedos dela segurando-lhe delicadamente o pulso.

 

- Está perturbado - disse ela.

 

- Tenho estado ocupado.

 

- No trabalho?

 

Lançou uma risada como se fosse um vómito. Ficou histérico em segundos, com uma gargalhada tão intensa que não parecia vir dele: ele era a própria gargalhada. Ela largou-o da mão, quando ele se atirou para cima do sofá, com o estômago aos pulos. Passou-lhe. Limpou as lágrimas, pediu desculpa e voltou a sentar-se.

 

- Ocupado... essa palavra é tão absurda, tão pouco adequada para descrever o meu dia - disse ele. - Nunca me dei conta de que a vida de um louco estivesse arrumada de forma tão compacta. Estou a rechear todos os espacinhos que consigo encontrar com toda uma vida. Ninguém me pode dizer nada sem que tudo seja revolvido a fundo. Quando um juiz, sentado no seu gabinete, me fala do seu momento favorito de um filme, vejo-me a correr praia fora, salpicando-me com as ondas, e sou atirado ao ar, aos gritos.

 

- Pela sua mãe?

 

Falcón hesitou.

 

- Essa agora é a parte estranha.

 

Silêncio.

 

- Veio-me à memória com a clareza de um sonho. Só que dei-me conta de que faltava um pormenor, que agora já vejo. Era um homem que me atirava ao ar.

 

- O seu pai?

 

- Não, não. É um estranho.

 

- Nunca o tinha visto antes?

 

- É marroquino. Parece-me que devia ser um amigo da minha mãe.

 

- Isso era invulgar?

 

- Não, não. Os marroquinos são pessoas muito amigáveis. Adoram conversar. São muito curiosos e inquisitivos. Têm uma facilidade incrível...

 

- Eu queria dizer, para a sua mãe, uma mulher casada, encontrar-se com um estranho na praia. Permitir que atire o filho ao ar.

 

- Não tenho a certeza de que fosse totalmente um estranho. Não. Já o tinha visto antes. Era provavelmente proprietário de uma loja de que a minha mãe seria cliente habitual. Devia ser qualquer coisa como isso.

 

- O que é que aconteceu no gabinete do juiz?

 

Contou-lhe a reunião: a tentativa de diálogo com Sérgio, o filme de Almodóvar, a terrível resposta de Sérgio e o que lhe tinha provocado.

 

- O que me abanou foi a conversa inicial sobre estranhos e depois o assassino utilizar uma frase do livro. Tenho a certeza que é de «L’étranger». O estrangeiro. Faz com que me sinta enlouquecer.

 

- Ignore isso. Sincronismo. Está sempre a acontecer. Concentre-se nos factos.

 

- Que são quais?

 

Silêncio da parte de Alicia Aguado.

 

- A minha mãe. Isso é um facto.

 

- Por que é que a frase de Camus teve um efeito tão terrível em si?

 

- Não sei.

 

- Como é que a sua mãe morreu? Estava doente?

 

- Não, não, não estava doente. Teve um ataque cardíaco, mas...

 

Um longo silêncio, durante o qual Falcón pestanejou uma vez por minuto.

 

- Houve qualquer coisa... uma confusão qualquer na rua. Estava em casa com o Paco e a Manuela. E havia uma grande discussão na rua, em frente à nossa casa. Não me lembro porquê. Foi depois disso, no entanto, que o pai nos veio contar que a mãe tinha morrido. Mas não consigo lembrar-me... do que aconteceu.

 

- O que aconteceu depois de ela ter morrido?

 

- Houve um funeral. Desse dia, só me lembro de pernas de pessoas, e da tristeza geral. Era Fevereiro e estava a chover. O pai passou imenso tempo connosco. Tomou conta de nós o tempo todo.

 

- Voltou a ver o estranho da praia?

 

- Nunca mais.

 

- Quanto tempo foi isso antes de o seu pai voltar a casar?

 

- Já conhecíamos a Mercedes. Era amiga da família há muito tempo. Ajudava muito o meu pai; fazia o marketing dele na América. Tiveram um caso amoroso, antes de a minha mãe morrer... contei-lhe já? Descobri há pouco tempo.

 

- Continue.

 

- A Mercedes ainda era casada quando a minha mãe morreu e depois o marido dela morreu na América. De cancro, acho. Voltou para Tânger no iate do marido. Deve ter sido cerca de um ano depois de a minha mãe morrer que casaram.

 

- Gostava da Mercedes?

 

- Adorei a Mercedes mal a conheci. Ainda guardo uma memória vaga de a ver pela primeira vez. Era miudinho. Foi ao estúdio do meu pai e pegou em mim. Acho que brinquei com os brincos dela. Adorei-a desde esse momento, mas o meu pai sempre disse que eu era uma criança muito dada.

 

- O que aconteceu à Mercedes?

 

Foi uma época muito boa. O meu pai tinha grande sucesso. Os nus de Falcón andavam nas bocas do mundo da arte. Era incensado como um novo Picasso, o que era ridículo dada a dimensão e qualidade da sua obra. Depois, sobreveio a tragédia. Foi depois do jantar da véspera de Ano Novo. Foram todos para o iate, no porto, para ver o fogo-de-artifício; e depois, alguns saíram de barco à noite e desencadeou-se uma tempestade. A Mercedes caiu pela borda fora. Nunca encontraram o corpo dela. Mas... mas imediatamente antes da saída dos convidados de casa, saí sorrateiramente do quarto e a Mercedes viu-me - disse, como se estivesse a passar o filme de novo, através da porta da sua mente. - Levou-me outra vez para a cama. Lembrei-me disso há dias, por causa... Foi isso. Está a juntar-se tudo. Na minha investigação de assassínio, a primeira vítima, Raúl Jiménez, fumava aqueles cigarros, Celtas, e era o cheiro que havia nos cabelos dela. Acabei de saber que o meu pai conhecia Raúl Jiménez desde os anos 40 e agora percebo que ele deve ter estado na festa, só que... já tinha deixado Tânger nessa altura.

 

- Com certeza outras pessoas fumariam essa marca, naquela época.

 

- Sim, claro - concordou Falcón. - Então, a Mercedes pôs-me na cama, beijou-me e apertou-me com força contra o peito. Estava-me a apertar com tanto amor que eu mal podia respirar. Tinha posto perfume, que hoje sei ser Chanel nº 5. As mulheres já não o usam muito, hoje em dia. Mas há alguns anos, quando me cruzava com esse cheiro na rua, ele fazia-me regressar àquele momento. Voltava a estar nas garras do amor.

 

- E depois de a Mercedes o deixar?

 

Falcón agarrou na barriga com a mão livre, atacado por uma dor.

 

- Ouço... - disse, debatendo-se. - Ouço os saltos dos sapatos a afastarem-se no corredor e nas escadas. Ouço as vozes e o riso dos outros convidados. Ouço a porta fechar-se. Ouço os sapatos a baterem nas pedras da calçada. E lembro-me de que nunca mais voltou.

 

As lágrimas ofuscaram-lhe a visão. A boca encheu-se de saliva. Não conseguia engolir. As últimas palavras saíram-lhe da parede palpitante do estômago.

 

- Não houve mais mães depois disso.

 

Alicia fez um chá. A chávena queimou os dedos dele e o chá escaldou-lhe a língua. A física trouxe-o de volta à sala. Sentiu uma estranha novidade, uma satisfação renovada, como quando ele e Paco tinham raspado e recuperado um velho curral na finca e o tinham caiado, transformando-o num cubo branco compacto no meio da paisagem cor de siena queimada. Tinha fotografado aquilo. Tinha qualquer coisa da simplicidade das grandes obras de arte.

 

- Nunca tinha recordado tudo seguido - disse ele. - Ficava sempre no ponto antes de os passos dela se afastarem.

 

- E agora já sabe, não sabe, Javier, que não foi por sua culpa que ela não voltou?

 

- Aí está uma questão.

 

- Que questão?

 

Meditou por um longo momento e abanou a cabeça.

 

- Sabe que não foi por culpa sua - afirmou ela.

 

Ele assentiu.

 

- Sabe o que fez esta tarde, Javier?  

 

- Calculo que me vá dizer que revivi um momento.

 

- E viu-o à luz natural - disse ela. - É assim que o processo funciona. Se negarmos as coisas que nos são penosas, não se vão embora. Apenas nos escondemos delas. Acaba de ter a primeira vitória na maior investigação da sua vida.

 

Meteu-se no carro e foi para a calle Bailén, estranhamente renovado, como se tivesse estado a correr e tivesse expelido pelos poros todas as toxinas do corpo. Estacionou e caminhou pela casa silenciosa, às escuras, até chegar ao pátio interior e à límpida pupila de água negra e brilhante. Acendeu a luz por baixo do claustro. As mãos tremiam-lhe quando entrou no escritório. Os olhos flutuaram por cima da secretária, das fotografias dispersas da mãe com os filhos. Foi até ao velho ficheiro cinzento, destrancou-o e pegou numa pasta castanha, marcada com a letra «I». Sentou-se à secretária com a pasta, sabendo que ia dar o passo seguinte para vencer a culpa. Pegou nas 15 provas a preto-e-branco e colocou-as em cima da secretária, voltadas para baixo. Perguntou a si mesmo, reflectido no vidro do quadro da parede: «Que me trazem de novo?»

 

Voltou a primeira fotografia. Inés estava deitada de barriga para baixo, nua, num lençol de seda, em cima da cama. Estava a olhar para ele, com a cabeça sustentada no pulso. O cabelo espalhava-se por todo o lado. Falcón fechou os olhos, enquanto a dor o invadia. Voltou a fotografia seguinte e abriu os olhos. O pescoço abanou com a tensão. Não conseguia engolir. Inés estava amparada pelas almofadas, de novo nua, à parte um pedaço de seda à volta dos ombros. Olhava para a máquina com uma intenção profundamente sexual. As coxas estavam bem afastadas, revelando o sexo rapado. Ele estava por trás da câmara no mesmo estado. A magnífica excitação ao raparem-se um ao outro, as risadas com as mãos a tremerem. Não tinha sido nada perverso. A alegria estava na inocência do acto. O esplendor daquele dia veio-lhe à mente. O calor tórrido daquela tarde longa e arrastada, os raios de luz intensa em torno das persianas, iluminando a penumbra do quarto, de modo que se podiam ver um ao outro no espelho. A privacidade dos dois sozinhos na casa enorme permitia que, quando tinham demasiado calor, ele lhe pegasse e, sempre ligados, descesse a escada, com as coxas dela apertadas em torno da cintura, tornozelos cruzados, calcanhares a baterem no cimo das suas nádegas. Ele ia até ao olho da fonte e mergulhavam na água fria.

 

Era tão insuportável que teve de afastar a pasta e voltar a fechar o armário à chave. Olhou para o cinzento repositório metálico da sua memória. Alicia tinha razão. Não é possível trancar as coisas para as afastar. Não se podem obsessivamente ordenar, acondicionar, meter na pasta «I» e esperar tê-las confinado no lugar que lhes compete. Por mais ordem que se introduzisse, nunca é possível parar a tendência do cérebro para deixar escapar coisas. Por isso é que as pessoas desesperadas davam um tiro nos miolos. A única maneira segura de parar as fugas era destruir o reservatório para sempre.

 

A questão ressurgiu. Ainda não tinha forma. Não acreditava muito no que Alicia tinha dito sobre o que tinha conseguido naquela noite. Não tinha a certeza de não ser ele a razão pela qual Mercedes não tinha regressado. Tinha sido o responsável e o pensamento atirou-o para dentro da gabardina e para o ar da noite, que estava agora húmido, com as pedras da calçada brilhando debaixo de uma chuva miúda. Foi até à Plaza del Museo e sentiu um estranho conforto a andar de um lado para o outro debaixo das árvores escuras e gotejantes.

 

À uma da manhã, parou um táxi no cruzamento da calle San Vicente com a calle Alfonso XII. Inés saiu e esperou na rua. Calderón, no banco de trás, pagou ao motorista. Falcón saiu de debaixo das árvores, com o cabelo húmido, e ficou especado na sombra do quiosque da praça.

 

Calderón pegou na mão de Inés. Ela varreu a rua com o olhar, para cima e para baixo, e percorreu a praça. Voltaram-se e seguiram pela calle San Vicente. Falcón galgou a praça, correndo abaixado. Viu os namorados nas sombras do outro lado da rua. Caminhou por trás dos carros estacionados ao longo do passeio. Pararam. Calderón tirou as chaves. Inés virou-se e deu com ele, paralisado entre um carro e a parede de uma casa. Agachou-se e correu até à entrada do prédio mais próximo, onde se endireitou, colado à parede, achatando-se contra a escuridão, com o coração e os pulmões lutando como uma saca de animais selvagens. Inés disse a Calderón para subir. Os saltos ressoaram na rua e pararam no pavimento, perto dele.

 

- Sei que estás aí - disse ela.

 

O sangue troava-lhe nos ouvidos.

 

- Não é a primeira vez que te vejo, Javier.

 

Ele fechou os olhos com força, qual criancinha à beira de ser apanhada e castigada.

 

- A tua cara está sempre a saltar-me ao caminho, à noite. Persegues-me e eu não vou tolerar isso. Destruíste a minha vida uma vez e não vou deixar que o faças de novo. Isto é um aviso. Se volto a ver-te, vou directamente para tribunal e peço que te seja aplicada uma medida de afastamento compulsivo. Percebes? Vou-te humilhar como me fizeste a mim.

 

Os saltos finos afastaram-se e depois regressaram, desta vez mais próximos.

 

- Odeio-te - segredou. - Sabes quanto te odeio? Queres ouvir, Javier: vou subir e o Esteban vai-me levar para a cama com ele. Ouviste? Ele faz-me coisas que tu não és capaz nem de sonhar.

 

Excertos dos diários de Francisco Falcón

 

26 de Junho de 1946, Tânger

 

Tenho uma terrível dor no fundo das costas e fui ao médico espanhol da calle Sevilha, que fica relativamente perto da casa do R. Examinou-me, levou-me para a sala anexa e deitou-me de barriga para baixo num banco coberto com um lençol. Abriu-se outra porta e apresentou-me a filha, Pilar, que trabalha com ele como enfermeira. Ela esfregou-me um óleo nas costas que gerou um enorme calor. Esfregou-mo até ao cóccix. No final do tratamento, fiquei embaraçado com o estado do meu sexo. As mãozinhas dela são mágicas. Disse-me que tinha de ir ter com ela para uma sessão diária, durante uma semana. Todos os males fossem como este.

 

3 de Julho de 1946, Tânger

 

Depois de intermináveis negociações, convenci a Pilar a vir e posar para mim; mas à hora do almoço apareceu um rapaz a dizer que ela não podia vir. Ao fim da tarde, o Carlos Gallardo veio visitar-me. É outro daqueles «camaradas artistas», mas não é como o Antonio Fuentes. Não tem nada de ascético. É descuidado. Bebe muito e geralmente no Bar La Mar Chica, que foi onde nos conhecemos. Temos fumado haxixe juntos e vimos os trabalhos um do outro sem comentários.

 

Trouxe um rapazinho marroquino para lhe carregar as mercearias, que deixou à porta. Sentámo-nos em cadeiras baixas de madeira, numa das salas escuras e frescas, afastados do calor do pátio. O meu criado pôs um narguilé entre os dois e encheu-o com uma mistura de tabaco e haxixe. Fumámos. O haxixe actuou e senti-me bem.

 

Pensamentos desconexos flutuaram no meu espírito como peixes de aquário. O rapaz do C. ficou de pé junto à cadeira dele, com um dos pés castanhos descansando em cima do outro. Foi tosquiado, provavelmente pelo C., contra os piolhos. Sorria para mim. Não tinha mais de dezasseis anos. Foquei a minha visão e percebi que o C. tinha a mão dentro da túnica do rapaz e estava a acariciar-lhe as nádegas. Não sabia isso do C., mas não me repugnou. Fiz um comentário qualquer. «Sim», disse ele, «claro que gosto de mulheres, mas há qualquer coisa de inibidor em ter relações sexuais com uma mulher. Atribuo isso a nós, espanhóis, e às nossas mães. Mas com estes jovens locais é tão normal, foi sempre assim e não tem qualquer estigma. Sinto-me à vontade para aproveitar. Afinal de contas, sou um sensualista. Deves ter percebido isso no meu trabalho.»

 

Rosnei uma resposta qualquer e ele continuou: «Ao passo que tu, meu amigo, és completamente gelado, frio e glacial. Sinto o vento a soprar através das tuas telas. Devias estar a derreter neste calor, mas não vejo isso. Talvez te fizesse bem tomares um rapaz para um pouco de sensualidade isenta de culpa.» Fumámos um pouco mais e a minha pele parecia veludo. O C. disse: «Leva agora o Ahmed para o teu quarto e deita-te com ele.» A ideia provocou um choque eléctrico, que me atravessou o corpo. Descobri que não estava horrorizado com a sugestão, bem pelo contrário. O rapaz aproximou-se. Mal conseguia falar, mas consegui recusar a oferta.

 

5 de Julho de 1946, Tânger

 

A P. veio com a mãe. Não estava um calor demasiado sufocante pelo que nos sentámos no pátio, debaixo da figueira. Conversámos. Os olhos das mulheres adejavam em redor, como pássaros num bosque. Senti-me como um felino a planear uma refeição. A mãe da P. veio para saber coisas a meu respeito...

 

Porque a empresa do R., de que sou sócio, é uma das mais conhecidas da comunidade espanhola de Tânger, veio rapidamente comer-me à mão, como se estivesse cheia de milho. Mantenho-me à margem de todos os entediantes eventos sociais e ninguém me conhece. Se ela fosse às chabolas, nos arredores da cidade, todos fugiriam aterrorizados à menção de El Marroquí. E também não a estou a ver a entrar distraidamente pelo Bar La Mar Chica. Mas a mãe da P. vive entre o seu lar e a catedral espanhola, portanto estou seguro.

 

Pediu-me para ver os meus quadros e recusei educadamente, mas acabei por aceder sob pressão. A P. ficou siderada com as formas e padrões monocromáticos, enquanto a mãe andava às voltas, tentando encontrar qualquer coisa que percebesse. Parou no desenho de um tuaregue, que, pelo menos, tem alguma cor. Assinei-o e dei-lho; e pedi-lhe para me deixar pintar um retrato da filha. Disse-me que ia falar com o marido sobre o assunto.

 

Saíram e, momentos depois, bateram com energia à porta. Era o rapaz que tinha vindo com o C. há dias, Ahmed. Estava a comer um pêssego e o sumo escorria-lhe pelo queixo e besuntava-lhe as bochechas. Lambeu os lábios. Não era subtil, mas foi eficaz. Arranquei-o da rua e segui-o, a tremer, através dos inúmeros quartos e corredores. Ele tinha noção da urgência e corria, chutando o fato com os pés nus. Quando cheguei ao quarto, o seu corpo cor de caramelo estava estendido debaixo do mosquiteiro. Caí sobre ele como um edifício demolido. Dei-lhe depois algumas pesetas e foi-se embora contente.

 

3 de Agosto de 1946, Tânger

 

Estabeleceu-se um laço de confiança entre mim e o médico; e a P. foi autorizada a visitar-me em casa sozinha, para posar para o retrato. As sessões têm lugar à tarde, quando o consultório fecha, e pode ficar apenas uma hora. Está muito calor. Tenho de trabalhar num dos quartos próximos do pátio, por causa da luz.

 

Estava a desenhar. Ela estava sentada numa cadeira de madeira. Fiquei próximo do seu rosto. Ela não pestanejou. Não falei até olhar para as mãos dela. Estavam pousadas no colo, pequenas, de dedos compridos, delicados instrumentos de prazer.

 

Eu: Quem a ensinou a fazer massagens?

 

P: Por que acha que alguém me ensinou?

 

Eu: A perícia dos seus dedos deu-me a entender que resultava de instrução e não de tentativa e erro.

 

P: Quem o ensinou a pintar?

 

Eu: Tive algumas ajudas que me mostraram a olhar para as coisas.

 

P: Quem me ensinou foi uma cigana, em Granada.

 

Eu: É de lá?

 

P: Nasci lá, sim. O meu pai foi médico em Melilha durante alguns anos, antes de virmos para cá.

 

Eu: E o seu pai permitia que se misturasse com os ciganos?

 

P: Sou bastante independente, apesar do que os meus pais querem que pense de mim.

 

Eu: Tem autorização para sair?

 

P: Faço o que quero. Tenho vinte e três anos.

 

O criado apareceu com chá de menta. Remetemo-nos ao silêncio. Trabalhei as mãos dela e depois bebemos o chá.

 

P: Faz desenhos figurativos, mas as pinturas são abstractas.

 

Eu: Ensino-me a ver com os desenhos e interpreto isso com a pintura.

 

P: O que viu hoje?

 

Eu: Estive a ver a estrutura.

 

P: O que acha da minha constituição?

 

Eu: Delicada e forte.

 

P: Sabe do que gosto em si?

 

A pergunta emudeceu-me.

 

P: Tem força e individualidade, mas é vulnerável, também.

 

Eu: Vulnerável?

 

P: Sofreu muito, mas existem ainda laivos de rapaz dentro de si.

 

Este diálogo íntimo selou qualquer coisa entre nós. Disse-me algo que escondeu aos pais. Viu algo em mim que eu não neguei. Mas está errada. Sou aquelas coisas... mas não sou uma individualidade... ainda.

 

10 de Agosto de 1946, Tânger

 

Estou outra vez aflito, com dores nas costas. Tenho um alto no lado direito da coluna. A P. chegou para posar e viu imediatamente o meu problema. Saiu e regressou com uma pequena caixa com frascos de óleo. O quarto está fora dos limites. Deitei-me no chão. Tentou trabalhar de lado, mas não resultou. Disse-me para fechar os olhos. Ouvi a saia a deslizar-lhe pelas pernas. Baixou-se até ficar com as pernas uma de cada lado da parte de trás das minhas coxas. As pernas nuas dela apenas tocavam nas minhas, pelo lado de fora. Sentia o calor dela por cima de mim. Amassou-me o alto das costas com as pontas dos dedos, enquanto eu me enraizava no chão.

 

Deu o trabalho por terminado. O meu corpo ficou colado ao chão. Vestiu a saia e disse-me para me pôr de pé. Ficámos frente a frente. Consegui controlar-me fisicamente, mas mentalmente fiquei todo desarticulado. Disse-me para dar uma volta pela sala. Fi-lo e não senti dor, para lá de um incómodo difuso nos testículos. Disse-me para continuar a andar. A actividade é o segredo para umas costas saudáveis. Não me devo sentar para pintar e desenhar. Foi-se embora. Fumei haxixe até me sentir liquefeito, como azeite a fluir, verde, de sala para sala.

 

O Ahmed veio mais tarde com um amigo. É malicioso, o rapaz. Pergunto-me se o C. está a instruí-lo nisto, como experiência artística. A P. e eu somos muito reservados fisicamente, mas estes rapazes são completamente desinibidos. Fumei e eles exibiram-se para mim, os corpos musculados de adolescentes enleando-se como cordas. Voltaram a atenção para mim. A reacção foi explosiva e eles riam-se como crianças a brincar em torno de uma fonte. Antes de saírem, Ahmad enfiou uma tâmara entre os meus dentes. Fiquei ali estendido, com a doçura onírica a invadir-me, repleto e saciado como um paxá sonolento.

 

11 de Agosto de 1946, Tânger

 

Foi-me relatado que dois dos meus legionários se pegaram à pancada por uma namorada, num quarto de hotel da cidade. A luta foi longa e sangrenta e o chão do quarto ficou tão escorregadio como o de um talho. Um deles morreu, a amante está muito ferida e o outro legionário está na cadeia. Pedi ao chefe da polícia autorização para ver a amante, pensando que poderia resultar num incidente internacional, se ela morresse. Respondeu-me que não me preocupasse, porque «a amante» era um rapaz rifenho. Encolheu os ombros, arqueou as sobrancelhas, abriu as mãos: «es la vida»...

 

Paguei um suborno e o legionário foi libertado, com a condição de sair imediatamente da Zona Internacional. Levei-o até Tetuão e dei-lhe algum dinheiro. Durante a viagem, contou-me que tinha estado na Divisão Azul na Rússia, que se manteve na Legión Española de Voluntários e que, depois de a terem dissolvido, alistou-se nas SS. Estava com o famoso cap. Miguel Ezguera Sánchez, quando os russos caíram sobre Berlim. Mostrou-me uma mão-cheia da moeda corrente dos últimos dias - pílulas de cianeto. Deu-me duas amostras, como estranha recordação; e, fazendo-me novio de la muerte, uma bizarra maneira de me agradecer.

 

1 de Setembro de 1946, Tânger

 

O R. contraiu um empréstimo e comprou mais dois barcos. Fui a Ceuta outra vez e recrutei mais legionários. Treinamo-los para pilotarem os barcos e pagamos-lhes bem. Gostam do trabalho. Continuam a ter uma arma nas mãos e há um lado de aventura, apesar de, devido à nossa reputação de violência, ninguém se chegar perto. Os piratas contentam-se em atacar o peixe miúdo. A minha importância para o negócio é agora desmedida, porque segurança é um bem raro. Os fortes laços que unem os legionários traduzem-se em podermos confiar neles e não sermos roubados. Liberta-nos, a mim e ao R., de pilotarmos os barcos. O R. anda a investir no sector imobiliário. Estamos a fazer construções e eu asseguro a segurança dos estaleiros. O R. actua nos mercados do ouro e dos câmbios com o fluxo interminável de dinheiro líquido resultante das operações de contrabando. Não percebo nada desses mercados e não tenho predisposição para me envolver neles.

 

Agora que a Barbara Hutton, a herdeira da Woolworth, se instalou no palácio de Sidi Hosni, o R. diz-me que Tânger se vai tornar na nova Côte d’Azur. Planeia investir mais fortemente no imobiliário «para construir hotéis para toda essa gente que vai vir aquecer as mãos na nossa riqueza». Disse-me ainda que La Rica comprou o palácio por 100 000 dólares - um montante inimaginável para os tangerinos. O Caudillo, como é agora conhecido o general Franco, tinha oferecido 50 000 dólares. Deve estar sentado no palacio de El Pardo a fumegar.

 

3 de Setembro de 1946, Tânger

 

A P. veio posar outra vez. Quando abri a porta, detectei-lhe atrevimento nos olhos, mas também diversão e troça. Estava calor, a meio da tarde. Começámos a trabalhar no habitual silêncio, até eu ter perdido a concentração. Ela pôs-se a andar à volta da sala, à procura de algo que não tivesse visto antes. Encontrou uma pedra de haxixe no meio dos pincéis e frascos, em cima da mesa, e cheirou-o. Sabia o que era, mas nunca tinha experimentado. Pediu para fumar. Nunca a tinha visto nem com um cigarro, mas carreguei o narguilé para ela. Minutos mais tarde, queixou-se de não acontecer nada. Disse-lhe para ter paciência e ela soltou um gemido, que imagino idêntico ao que deverá soltar no seu primeiro contacto sexual. Os olhos dela foram ganhando distância, como se se estivesse a retirar para dentro de si. Lambeu os lábios devagar e com sensualidade. Tive vontade de pôr a minha boca na dela. Desloquei-me um pouco e fiquei a observar a variação da luz no quarto. A P. disse: «Acho que me deves desenhar como sou realmente.» É o que tento fazer há semanas. Com rápidos movimentos fluidos, pôs-se de pé, tirou a blusa, deixou cair a saia, soltou o sutiã e despiu as cuecas. Fiquei sem palavras. Pôs-se à minha frente, com o longo cabelo negro solto sobre os ombros nus, as mãos repousando no alto das coxas, emoldurando-lhe o triângulo dos pêlos púbicos. Colocou vagarosamente as pontas dos dedos nos ombros e fê-las deslizar por cima dos seios, até aos mamilos pontiagudos, que enrijaram ao toque. Os dedos desenharam-lhe o contorno do corpo. Ficámos ambos tão envolvidos na sensualidade do momento que pensei tratar-se dos meus dedos. «Esta é que sou eu», disse. Peguei em paus de carvão e folhas de papel. A minha mão percorreu-as ligeira, com movimentos arrojados e fluidos. Devo tê-la desenhado seis, sete, oito vezes numa questão de minutos. À medida que os terminava, cada desenho ia escorregando para o chão. Ela continuou a posar, magnífica e nua, com a confiança suprema da feminilidade absoluta. E foi essa misteriosa essência que eu fui «vendo» e consegui desenhar. Depois, como por vezes acontece com o haxixe, passámos para um momento diferente. Ela voltou a enfiar a roupa. Fez menção de se ir embora e eu fiquei de pé, com os desenhos a meus pés. Olhou-os no chão e depois levantou os olhos para mim: «Agora já sabes», disse. Os lábios dela roçaram pelos meus com a suavidade da areia e a frescura da água. O toque electrizante da ponta da sua língua na minha manteve-se em mim durante horas.

 

20 de Setembro de 1946

 

Voltei de Tarragona e fui informado de que a P. tinha voltado para Espanha com a mãe, cuja irmã tinha morrido. O médico não sabe quando voltarão. Sinto-me simultaneamente espoliado e estranhamente livre. Ahmad e o amigo vieram à noite e senti-me com disposição para celebrar. Acabo de ter uma noite de completo hedonismo.

 

23 de Setembro de 1946

 

Mostrei ao Carlos os desenhos da P. Ficou boquiaberto. Pela primeira vez, disse alguma coisa sobre o meu trabalho e a palavra foi: «Excepcional!»

 

Mais tarde, enquanto fumávamos o narguilé em conjunto, disse: «Vejo que o degelo já começou. Espero que o Ahmad e o Maomé tenham dado uma ajuda.» Olhei-o como se não soubesse do que estava a falar. Disse que me ia mandar outros. «Não quero que te aborreças.» Não lhe disse nada.

 

30 de Outubro de 1946

 

Continuo a não ter notícias da P. e agora o pai também foi para Espanha. A única referência que tenho deles é Granada.

 

O R. vendeu um lote de terreno a um americano, que quer construir um hotel. Uma das condições da venda é sermos nós a construí-lo. É o nosso primeiro grande contrato de construção. Quero envolver-me no projecto, mas o R. insiste em que eu me remeta à minha arte e trabalhe separadamente. «Todas as pessoas que me estão associadas te conhecem como meu conselheiro para a segurança... Não posso pôr-te também a desenhar a recepção.»

 

Sexta-feira, 20 de Abril de 2001, casa de Falcón, calle Bailén, Sevilha

 

Libertar-se das garras do sono era um trabalho árduo. Como é que dormir podia ser tão trabalhoso? Veio à tona, balbuciando como um velho louco que ninguém visita, num lar para os que estão à beira do fim. O telemóvel tocava, cintilando por cima dos ossos da cara dele. Tinha a boca seca como se tivesse comido ração. O telefone parou de tocar. Mergulhou outra vez no túmulo de feltro de um sono drogado.

 

Foi horas depois ou apenas minutos? O trinado enlouquecido do telemóvel parecia ecoar através dos seios perinasais. Foi bruscamente catapultado do sono. Encontrou a luz, o telefone, o botão. Chupou água fria por cima daquele naco empastado de língua que tinha na boca.

 

- Inspector jefe?

 

- Já tinha telefonado?

 

- Não.

 

- O que se passa?

 

- Acabámos de receber a comunicação de outro cadáver.

 

- Outro cadáver? - remoeu, com o cérebro tão espesso como lã de vidro.

 

- Um assassínio. Como o de Raúl Jiménez.

 

- Onde?

 

- Em El Porvenir.

 

- Morada?

 

- Calle de Colombia, número 25.      

 

- Conheço essa morada.

 

- A casa pertence a Ramón Salgado, inspector jefe.      

 

- É ele a vítima?

 

- Ainda não temos a certeza. Acabámos de mandar um carro-patrulha investigar. O corpo foi visto pelo jardineiro, a partir do exterior da casa.

 

- Que horas são?

 

- Acabou de dar as sete.

 

- Não telefone a mais ninguém da brigada. Vou sozinho. Mas é melhor notificar o juez Calderón.

 

O nome dilacerou-o, quando desligou. Tomou duche, de cabeça caída e braços enfraquecidos pela crueldade das palavras de Inés na noite anterior. Quase soluçou ao pensar que ia encarar Calderón. Barbeou-se, virando a cara interrogativamente para o espelho. Aquilo não seria mencionado. Claro que não. Como podia uma coisa como aquelas ser abordada entre dois homens? Era o fim do seu relacionamento com Calderón. «Coisas... que tu não és capaz nem de sonhar.»

 

Pôs a cabeça debaixo de água fria, tomou um Orfidal, vestiu-se e entrou no carro. Verificou as mensagens no primeiro semáforo. Havia uma das 2h. 45 dessa madrugada. Ouviu-a. Começava com uma música, que reconheceu ser o Adagio de Albinoni. Pelo meio dela, conseguia ouvir os guinchos abafados e desesperados de alguém que tentava gritar ou implorar através de uma mordaça. Os móveis batiam contra um chão de madeira, enquanto a música subia num crescendo, com os violinos a guindarem a fina dor da perda para novos patamares. E depois, uma voz calma:

 

- Sabes o que tens a fazer.

 

Elevou-se da música um som terrível, misto de estertor e crepitação, que só podia ter sido produzido por uma garganta esganada. Enquanto durou o apogeu emocional do adagio, o ricochete da mobília tornou-se frenético, na sequência de sons de alguém a debater-se. Até que se deu um estrondo e um silêncio abrupto, cortado pelos violinos, de regresso com uma nota ainda mais alta, e a mensagem terminou.

 

Buzinaram atrás dele e arrancou, beirando o rio até ao semáforo seguinte. Telefonou para a Jefatura e pediu para o passarem ao carro-patrulha. Ainda não tinham chegado à moradia, mas havia a confirmação de um corpo no meio do chão de uma grande sala que dava para a varanda e jardim, nas traseiras da casa. O corpo estava atado a uma cadeira, caída de lado, e havia muito sangue no chão de madeira. Pediu para procurarem a criada ou verem se algum vizinho tinha uma chave sobressalente.

 

No Parque de Maria Luisa, afastou-se do rio pela avenida de Eritana, passou a esquadra e a Guardia Civil, que ficavam a escassas centenas de metros da casa de Ramón Salgado.

 

Quando chegou à morada, ainda não se sabia da chave, o que deu tempo a que chegasse uma ambulância, seguida por Calderón e, finalmente, Felipe e Jorge, da Policia Científica.

 

Um vizinho apareceu com um chaveiro suplente, às 7h. 20, e Falcón e Calderón entraram, ambos utilizando luvas de borracha. Dirigiram-se à grande sala das traseiras, com livros forrando a parede do fundo. No meio estava uma secretária, constituída por um vidro de três centímetros de espessura apoiado em dois cubos de madeira escura. Havia um computador iMac, ligado e com o «desktop» aberto. Na parede por trás da secretária, havia quatro reproduções de grande qualidade dos nus de Falcón. Entre a secretária e essa parede, jazia Ramón Salgado, de lado, atado a uma cadeira com espaldar do tipo escada e sem braços. Um pulso estava preso por baixo dele, o outro tinha sido atado de modo a que ficasse a apontar para a perna de trás da cadeira. Um tornozelo descalço estava atado à perna da frente da cadeira e o outro levantado bem no ar, com bastante corda enrolada em torno do dedo grande do pé. A corda passava por um candeeiro de tecto, feito de 4 focos presos a uma placa de metal. Escondida nessa placa, havia uma roldana. A corda passava por ela e descia pelo pescoço de Salgado, que parecia estar partido. A corda estava completamente esticada, de modo que a cabeça de Salgado, suspensa pelo pescoço, não chegava a tocar no chão. Numa inspecção mais atenta, descobriram que a roldana tinha sido bloqueada por um nó feito na corda.

 

- Mal a cadeira se virou - disse Falcón -, já era um homem morto. Calderón rodeou o sangue do chão.

 

- O que diabo se estava aqui a passar, antes disso?

 

O médico forense - o mesmo de Raúl Jiménez - apareceu à porta.

 

Era a primeira vez que Falcón via alguém conhecido assassinado. Não conseguia tirar da cabeça a última vez que tinha estado com Salgado, bebendo manzanilla no Bar Albariza. Agora, ao vê-lo inanimado, com o sangue espalhado pelo chão, a brutal indignidade da forma de morte, penalizou-se por não gostar do homem. Avançou para a parede forrada de livros, para conseguir ver a cara de Salgado. Viu que as maçãs do rosto tinham linhas de sangue e estavam inchadas, recheadas com as meias dele. O colarinho da camisa estava ensopado de sangue. Os olhos fixavam Falcón e teve uma reacção de sobressalto. No sangue que ia coagulando no chão, viu o que temia: um pedaço de pele com pêlos finos.

 

Tiraram fotografias e Felipe e Jorge começaram a tirar amostras de sangue de cada salpico no chão, até terem aberto caminho para o médico forense poder ajoelhar-se junto ao corpo. Este murmurou os seus comentários para o gravador - uma descrição física de Salgado, uma relação dos ferimentos infligidos e a provável causa de morte.

 

- ... perda de sangue devida a ferimentos na cabeça, causados pelo embate contra as arestas vivas das costas da cadeira... pálpebras removidas... vestígios de asfixia... pescoço possivelmente partido... hora da morte: nas oito horas antecedentes...

 

Falcón estendeu a Calderón o telemóvel e mostrou-lhe a mensagem que tinha sido deixada às 2h. 45. Calderón ouviu e passou-a ao médico forense.

 

- «Sabes o que tens a fazer»? - Calderón repetiu a instrução de Sérgio a Salgado, baralhado.

 

- Esta roldana não foi posta pelo assassino - disse Falcón. - Já cá estava. De algum modo, Sérgio sabia que Salgado tinha uma predilecção pelo auto-estrangulamento. Estava a dizer-lhe como podia acabar com tudo, levando a sua tendência sexual a passar do limite.

 

- Auto-estrangulamento? - perguntou Calderón.

 

- Ficar no limite da asfixia, durante uma experiência sexual, intensifica o clímax - explicou Falcón. - Infelizmente, a prática tem riscos.

 

«Coisas... que tu não és capaz nem de sonhar», recordou Falcón.

 

Um dos polícias do carro-patrulha apareceu à porta. Um guarda da esquadra ao fundo da rua queria falar com Falcón, acerca de um assalto que tinha investigado na casa de Salgado, duas semanas antes. Falcón foi ter com o guarda à entrada e perguntou-lhe por onde tinham entrado os assaltantes.

 

- Isso é que foi estranho, inspector jefe, não havia vestígios de arrombamento e o Sr. Salgado disse que não tinham roubado nada. Só sabia que alguém tinha estado dentro de casa. Estava convencido de que tinham lá passado o fim-de-semana.

 

- Porquê?

 

- Não me conseguiu dizer.

 

- A criada vem aos fins-de-semana?

 

- Não, nunca. E o jardineiro só vem aos fins-de-semana no Verão, para regar. O Sr. Salgado gostava de manter a sua privacidade, quando estava em casa.

 

- Costumava estar muitas vezes fora?

 

- Foi o que me disse.

 

- Inspeccionou a casa?

 

- Claro. E ele andou sempre atrás de mim.

 

- Alguns pontos fracos?

 

- No andar térreo, não; mas há um quarto no último andar com um terraço privativo no telhado e a fechadura dessa porta era praticamente inútil.

 

- E quanto ao acesso?

 

- Uma pessoa que suba para cima do telhado da garagem, quase pode lá chegar - disse o polícia. - Disse-lhe para mudar a fechadura e pôr um ferrolho na porta... Nunca o fazem...

 

Falcón subiu ao último andar. O guarda confirmou que a porta e a fechadura eram as mesmas. A chave tinha caído da fechadura e estava no chão. A porta abanava, folgada, no caixilho.

 

No escritório de Salgado, o exame médico tinha terminado e Felipe e Jorge estavam de novo a tirar amostras de sangue no chão. Falcón telefonou a Ramírez, pô-lo ao corrente do que se passava e disse-lhe para mandar Fernández, Serrano e Baena juntarem-se a ele em El Porvenir. Havia muito trabalho a fazer, só em entrevistas aos vizinhos, antes que saíssem para os empregos.

 

- Há um ícone no ecrã do computador - disse Calderón. - Chama-se «Família Salgado» e está um cartão por baixo do teclado, com a inscrição «Lição de ver nº 3».

 

Já passava do meio-dia, quando Calderón assinou o levantamiento del cadáver. Felipe e Jorge tinham tido para várias horas a recolher amostras de cada mancha de sangue, para o caso de alguma pertencer ao assassino. O corpo de Salgado foi removido e o pessoal de limpeza das cenas de crime desinfectou a sala. A cadeira foi envolvida em plástico de bolhas e levada para o laboratório da polícia. Eram 12h. 45 quando Falcón, Ramírez e Calderón se conseguiram sentar em frente do iMac e ver o Família Salgado.

 

O filme começava com cenas repetidas de Salgado a sair de casa com uma pasta e a meter-se num táxi. Seguia-se-lhes uma repetição de cenas de Salgado a sair do táxi na Plaza Nueva e a andar pela calle Zaragoza, até à sua galeria. Seguia-se uma sucessão de planos - Salgado num café, Salgado num restaurante, Salgado no exterior do Bar La Company, Salgado a ver montras, Salgado no El Corte Inglés.

 

- Sim, e então... qual é o interesse? - perguntou Ramírez.

 

- O homem passa muito tempo sozinho - respondeu Calderón.

 

A cena seguinte mostrava Salgado a chegar à porta de uma casa. Era uma porta sevilhana clássica, em madeira envernizada com rebites de cobre ornamentais. Chegava repetidamente àquela casa, que tinha uma fachada muito identificável em tijoleira, com a esquadria da porta e os frisos realçados a amarelo claro.

 

- Sabemos onde fica esta casa? - perguntou Calderón.

 

- Sim, sabemos - disse Falcón. - É a minha casa... a casa do meu falecido pai. Salgado era agente dele.

 

- Se o seu pai está morto - disse Calderón, parando o filme - por que é que Salgado...?

 

- Estava sempre a tentar aceder ao velho estúdio do meu pai. Tinha as suas razões, que nunca me contou.

 

- O senhor estava sempre em casa, quando ele aparecia? - perguntou Ramírez.

 

- Por vezes. Nunca abria a porta. Não gostava de Ramón Salgado. Aborrecia-me e evitava-o sempre que possível.

 

Calderón repôs o filme em movimento. Salgado aparecia num cruzamento. Por cima da sua cabeça, havia um letreiro do Hotel Paris e Falcón percebeu que ele estava na calle Bailén, olhando na direcção da casa. Salgado arrancou. A câmara seguiu-o ziguezagueando no meio das pessoas que enchiam as ruas. Salgado estava a seguir alguém. Foi só quando chegaram à Marqués de Paradas que conseguiram ver que ele andava a seguir o próprio Falcón. Viram-no a ir ao Café San Bernardo, que tinha uma entrada pela calle Julio César. Salgado entrou pela Marqués de Paradas e encenou um encontro «casual». O operador da câmara entrou também no café, sentou-se e observou a conversa dos dois ao balcão. O empregado deu um café solo a Falcón e uma chávena maior, com pires, a Salgado. Regressou com uma leiteira de metal com leite quente. Falcón chegou-se para trás, enquanto o leite era deitado na chávena de Salgado.

 

- O que é que se passou? - perguntou Ramírez. - Ele disse-lhe alguma coisa?

 

- Estava sempre a pedir a mesma coisa: «Posso deitar só uma vista de olhos ao estúdio do teu pai...?»

 

- Mas por que é que recuou, como se...?

 

- Isso não tem importância nenhuma, é só porque não gosto de leite. É uma alergia ou coisa assim.

 

- Agora estamos no cemitério - disse Calderón.

 

- É no funeral do Jiménez - disse Ramírez. - Sou eu, entre os ciprestes, a filmar os acompanhantes do funeral.

 

O filme mostrava Falcón e Salgado à conversa e depois parava abruptamente. Calderón sentou-se para trás.

 

- O Sérgio parece pensar que o senhor é a única família que o Salgado tem, inspector jefe - disse Calderón.

 

- Salgado tinha uma irmã - disse Falcón. - Tinha acabado de a instalar num lar em Madrid.

 

- Houve alguma coisa diferente, naquele último encontro, depois do funeral? - perguntou Calderón.

 

- Ofereceu-me uma informação sobre Raúl Jiménez em troca do acesso ao estúdio. Também disse que não queria nada do estúdio, apenas passar algum tempo lá dentro. Sempre pensei que ele quisesse montar uma última exposição de Francisco Falcón, mas ele insistiu em que não era isso. Deu um ar de que seria uma coisa nostálgica.

 

- Que tipo de informações?

 

Ele conhecia Raúl Jiménez e a mulher. Insinuou que sabia quem eram os inimigos do homem. Disse que tinha recolhido informações privilegiadas dos clientes endinheirados que frequentavam a sua galeria. Insinuou que podia apontar-me a direcção certa, relativamente a pessoas que tinham confiado em Raúl Jiménez e que ele tinha desiludido. Abarcou também tópicos como a lavagem de pesetas sujas, antes da chegada do euro, como o negócio da restauração criava pesetas sujas e como o imobiliário e a arte eram boas saídas para elas. Pôs um tom cheio de promessa, mas eu conheço o Ramón Salgado...

 

- E não tem ideia do que ele podia querer do estúdio do seu pai? - perguntou Calderón.

 

- Possivelmente, algum esqueleto enterrado naqueles papéis todos - disse Falcón. - Mas duvido que alguma vez se venha a encontrar.

 

- Até onde é que Ramón Salgado conhecia Consuelo Jiménez?

 

- Tenho a certeza de que ele a apresentou ao meu pai e que ela lhe comprou quadros em três ocasiões. Estou convencido de que Consuelo Jiménez conhecia Ramón Salgado do mundo da arte de Madrid. E pode até ter sido Salgado a apresentá-la a Raúl Jiménez, na Feria de Abril de 1989. Ela não foi clara acerca do seu relacionamento com Ramón Salgado, desde o princípio. Pode ser apenas ela a proteger a sua privacidade - não gosta mesmo nada das nossas intromissões - ou pode ser que Salgado soubesse realmente alguma coisa acerca de Raúl Jiménez e que ela nos quisesse manter afastados dele. Ela referiu-se a «um amigo do marido, dos tempos de Tânger», que tenho a certeza seria Salgado. Isso quereria dizer que os dois se conheciam há mais de 40 anos.

 

- Denota um motivo aí algures, não é? - intuiu Calderón.

 

- Ela também mandou dar cabo do Salgado - opinou Ramírez. – Tenho a certeza.

 

- Não vamos tirar já conclusões, inspector - disse Calderón. - É uma pista que vale a pena seguir, nada mais. Vamos ver esta «lição de ver», agora.

 

Ramírez retirou o cartão de dentro do saco de prova. Havia dois nomes escritos no verso. «Francisco Falcón» e «H. Bosch».

 

- O cartão estava entalado debaixo do teclado - lembrou Falcón. - Podem ser códigos de acesso a ficheiros.

 

Calderón clicou duas vezes no ícone do disco rígido e apareceu uma caixa pedindo um código de acesso. Escreveu «Francisco Falcón». O disco abriu-se, revelando vinte pastas com nada de especial nos nomes: Cartas, Clientes, Contabilidade, Despesas, etc. Abriram-nas todas, mas apenas «Desenhos» pedia outro código de acesso. Escreveram «H. Bosch» e abriu outra série de ficheiros. Calderón abriu um ao acaso. Continha centos de fotografias, cada uma identificada com iniciais e datada.

 

- Espero que não tenhamos de ver a colecção completa de bonecos, para encontrarmos o que o Sérgio quer que vejamos - aventou Calderón.

 

Falcón desceu ao fundo da lista.

 

- Estes últimos cinco são filmes - disse Calderón.

 

- Talvez as fotografias não sejam assim tão inocentes - alvitrou Ramírez.

 

-   - Podiam destinar-se a fins de seguro - disse Falcón.

 

Ramírez pegou no rato e clicou duas vezes num ícone de filme. A imagem de abertura estava emoldurada num pequeno ecrã. Era um rapazinho, atado de barriga para baixo num antigo cavalo de ginástica, em couro. Tinha os braços atados de maneira a abraçar o cavalo; os tornozelos estavam presos às pernas de metal. Tinha ainda a cintura enfaixada ao aparelho e as nádegas tinham sido grotesca e obscenamente subidas. Estava indefeso e o rosto, apesar de mole e atordoado com drogas, ainda mostrava o germe do medo.

 

- Não precisamos de ver isto - disse Falcón.

 

- Abra uma das fotografias - disse Calderón. - Todos estes ficheiros podiam ter sido disfarçados.

 

Ramírez abriu uma. Outro rapaz impubescente, com sombra azul nos olhos e batom cor-de-rosa, estava a ser explicitamente empalado pelo pénis de um adulto. Aquilo bastou-lhes e desligaram o computador.

 

- É melhor entregarmos isto aos Costumes - sugeriu Falcón.

 

- E onde é que isto nos leva? - indagou Calderón. - Por que é que o Sérgio chama a nossa atenção para isto?

 

- Era uma lição de ver - disse Falcón. - Esteve apenas a mostrar-nos a verdadeira natureza do homem. Se antes pensávamos que Ramón Salgado era um respeitável idoso, solitário, rico, bem relacionado, dono de uma galeria prestigiosa de Sevilha, agora já o vemos com outros olhos.

 

- Parece-me um nó cego - disse Ramírez. - É apenas outra maneira de nos mandar por uma pista errada. Não é por coincidência que a Sra. Jiménez está intimamente ligada a ambas as vítimas.

 

- Houve também uma terceira vítima - lembrou Falcón.

 

- Sabe o que quero dizer, inspector jefe - disse Ramírez. - A puta foi uma ocorrência infeliz e outra forma de nos confundir a investigação, para além de servir para gastar o nosso tempo. Consuelo Jiménez tinha toda a informação para entalar o marido e, pelo jeito, Ramón Salgado também. Continuo a pensar que devíamos levá-la para a Jefatura e apertar a sério com ela.

 

- Antes de pensarmos em levá-la para interrogatório, sugiro que passemos revista a esta casa, de alto a baixo e que mandemos uma equipa à galeria da calle Zaragoza - disse Falcón. - Para a levarmos, vamos precisar de munições.

 

- E de que andamos à procura, inspector jefe - perguntou Ramírez.

 

- Andamos à procura de uma ligação obscura entre Consuelo Jiménez e Ramón Salgado - respondeu Falcón. - Portanto, deixe o Fernández a entrevistar os vizinhos e vá com o Serrano e o Baena até ao último andar. Comece a trabalhar de cima para baixo, atrás do Felipe e do Jorge.

 

Ramírez saiu da sala. Falcón fechou a porta atrás dele e voltou para ao pé de Calderón, sentado à secretária.

 

- Quero falar-lhe em privado por um momento - disse Falcón.

 

- Olhe, ah... don Jav..., inspector jefe - disse Calderón, apanhado desprevenido, com o privado e o profissional a chocarem-se na sua cabeça. - Não sei o que aconteceu a noite passada. Não sei o que a Inés lhe disse. Sei, evidentemente, que vocês... mas ela disse-me que estava tudo acabado, que se tinham divorciado. Penso que o senhor deve... Não sei... Quer dizer... O que é que estava ali a fazer a noite passada?

 

Falcón ficou petrificado. A manhã tinha sido tão preenchida que nem tinha pensado em Inés. Do que ele queria falar em particular era da MCA Consultores SÁ, não tinha nada a ver com a sua vida privada. Fixou os olhos no tecto, ansiando por um salto no tempo que o trouxesse de volta uma semana depois, noutro caso, com um juiz diferente. Isso não ocorreu e viu-se numa dessas lutas titânicas que costumava observar nos suspeitos à beira da confissão. Queria dizer qualquer coisa. Queria de algum modo encarar a complexidade da sua recente experiência, para mostrar que, ele, como Calderón, era capaz de ultrapassar esta situação embaraçosa. Mas apenas se lhe deparou um imenso desaire sexual. Falcón sentiu-se a retroceder. Mexeu nos botões do casaco, como para se certificar de que estavam bem apertados.

 

- Não tinha intenção de falar disso nesta conformidade - disse, constrangido com a pomposidade e contenção das suas palavras. - As minhas preocupações são meramente profissionais.

 

Detestou-se instantaneamente e o desagrado de Calderón em relação a ele atingiu-o como um bafo fedorento. Tinham-lhe dado civilizadamente oportunidade de chegar a um entendimento e ele tinha virado as costas. E agora era impossível voltar atrás.

 

- O que é que me queria, inspector jefe ? - disse Calderón, cruzando as pernas com uma calma glacial.

 

Tudo se tinha esboroado naquele instante. Falcón tinha falhado a nível humano com Calderón e tinha manchado a sua credibilidade profissional. Sentiu que ia haver resistência às suas ideias ou talvez até pior: a antipatia do homem podia voltar-se contra ele. Calderón nunca seria um aliado e as ideias que Falcón lhe apresentasse podiam estar a fornecer ao inimigo os meios para o destruir.

 

Mas não conseguiu evitá-lo. E deu-se conta de que não era o profissionalismo que o fazia contar a Calderón acerca da MCA Consultores; era o seu falhanço. Era por causa do ridículo e ilógico pensamento de que o jovem juiz pudesse ter ficado com uma ideia errada e passasse a concordar com Inés e dizer: «Sim, Javier Falcón não tem coração.»

 

Sexta-feira, 20 de Abril de 2001, casa de Ramón Salgado, El Porvenir, Sevilha

 

Calderón foi tomando notas, à medida que Falcón falava. No final, acendeu um cigarro, enquanto Falcón olhava para o luxuriante jardim de Salgado.

 

- Foi disso que me quis falar ontem? - perguntou Calderón.

 

- Acho que concordará que há pontos sensíveis nesta teoria - disse Falcón. - E quando vi o Dr. Spinola a sair...

 

- O Dr. Spinola não constava dessa lista de administradores - cortou Calderón, ríspido.

 

- Estava na parede de famosos de Raúl Jiménez. Há uma ligação ténue. Tinha de ser considerada - argumentou Falcón, sentindo a resistência de Calderón e a sua patética necessidade de se pôr do lado dele. - Há-de reparar também que a prova de que Raúl Jiménez estaria implicado no abuso de menores é circunstancial e fraca. Apenas o mencionei devido à rede condenada por pedofilia em que Carvajal estava envolvido e pelo que descobrimos aqui hoje.

 

- Acha, então, que estamos à procura de um rapaz de que abusaram e acha que Consuelo Jiménez está envolvida? - perguntou Calderón.

 

- Sérgio é do sexo masculino. Conseguiu de algum modo estabelecer uma relação com Eloisa Gómez, possivelmente por empatia... na qualidade de forastero. Não li as notas do caso de Carvajal, por isso não sei quais as suas preferências; mas Salgado parecia interessado em rapazes e Jiménez em raparigas.

 

- Nesse caso, o Sérgio ou está a agir sozinho, como vingador de todos os abusados, ou, o que é plausível, alguém lhe está a apontar os alvos - disse Calderón.

 

- Consuelo Jiménez adora os filhos. De facto, são todos rapazes. Mas se encontrasse na colecção de pornografia do marido alguma coisa relacionada com abuso de crianças, tenho a certeza de que não ia tolerar isso. Ela conhecia o Ramón Salgado...

 

- Mas como é que ela podia ter chegado ao conhecimento disto a respeito dele? - disse Calderón, escrevendo no computador.

 

- Isso não sei. Estou apenas a teorizar acerca da sua capacidade, não a provar o envolvimento dela - disse Falcón. - Tem-se mostrado evasiva quanto aos negócios do marido. Quando lhe demonstrei ter algum conhecimento da MCA Consultores, não quis falar sem ter o advogado presente. É uma mulher determinada e, embora diga que abomina a violência, bateu em Basilio Lucena com força suficiente para lhe fazer sangue. É inteligente e calculista. Em sua defesa, pode não saber eventualmente nada acerca da MCA ou estar apenas a ser cautelosa. E ofereceu-se para se informar sobre o relacionamento do marido com Carvajal.

 

- É frágil, inspector jefe. Como disse antes, podia estar apenas a proteger a sua privacidade, bem como a herança dela e dos filhos. Ela bateu em Lucena, mas foi sob uma provocação extrema, dados os perigos da promiscuidade dele. Inteligência e calculismo são pré-requisitos para o sucesso nos negócios.

 

- Tem razão, evidentemente - concordou Falcón, odiando o tom obsequioso que se tinha insinuado na sua voz. - Estamos de acordo em que os assassínios estão relacionados, juez? Quero dizer, não estamos a assistir a uma série de actos aleatórios. É um crime múltiplo, mas não em série.

 

Calderón apertou a cartilagem da orelha e olhou fixamente através do tampo de vidro.

 

- O castigo a que Sérgio sujeitou os dois principais alvos é coerente com o que esperaríamos de alguém que tivesse sido vítima de abuso sexual - disse Calderón. - As vítimas são escolhidas com precisão e há uma ligação, uma vez que se conhecem. Concordo consigo que o Sérgio os forçou a confrontarem-se com os seus terrores mais profundos. A ablação das pálpebras e a subsequente mutilação que ambas as vítimas infligiram a elas próprias parece indicá-lo. A questão é: como é que o Sérgio sabe estas coisas? Não é informação que se apanhe por aí. São coisas profundamente pessoais. São histórias secretas. Como é que o Sérgio se introduz na cabeça das pessoas?

 

Falcón contou-lhe sobre a investigação de assalto pela polícia local.

 

- Bem, se ele passou aqui o fim-de-semana, isso sugere que já tinha marcado Salgado. Talvez inclusivamente já soubesse do terror específico deste homem e apenas procurasse os meios para lho recordar.

 

- Ele está obcecado com filmes. Vê isto como memória.

 

- Sabe como é... filmes e sonhos. As pessoas misturam sempre as duas palavras. É compreensível. A escuridão fechada do cinema, as imagens. Não é muito diferente do que se vê quando se dorme.

 

- Já falámos da criatividade dele antes - lembrou Falcón. - Ele está a fazer o que todos os artistas querem fazer. Entra na cabeça das pessoas e faz com que vejam as coisas de maneira diferente ou, melhor, fá-las ver o que já sabem, mas a uma luz diferente. E tem de ser criativo nesse propósito, porque as pessoas não guardam registo dos seus horrores, pois não?

 

- Enterram-nos - anuiu Calderón.

 

- Talvez seja a natureza do mal - disse Falcón. - O génio do mal.

 

- O que o leva a dizer isso?

 

- Porque está para lá da nossa imaginação.

 

Calderón voltou a cadeira para os quatro nus de Falcón.

 

- Felizmente há outros tipos de génio. Para contrabalançar os maus.

 

- No caso do meu pai, acho que ele desejava nunca o ter tido.

 

- Porquê?

 

- Porque o perdeu - disse Falcón. - Se nunca o tivesse tido... não teria passado o resto da vida com esse sentimento de perda.

 

Falcón deslocou-se até à janela, agora que a componente pessoal reentrara na conversa. Perguntava-se se podia fazê-lo agora - salvando a situação. Se podia falar acerca do pai dele daquela maneira, por que não de Inés? Por que não expor o pescoço a este homem? Bateram à porta. Fernández meteu a cabeça.

 

- O inspector Ramírez encontrou um baú no sótão. A fechadura foi serrada e o pó da tampa mexido. O Felipe está à procura de impressões digitais.

 

Trouxeram o baú para o rés-do-chão, depois de Felipe ter declarado que estava limpo. Era pesado. Abriram-no e retiraram o papel pardo que cobria o conteúdo - livros e velhos catálogos, exemplares de uma revista chamada «Tangier-Riviera», envelopes de papel pardo cheios de fotografias. Entalado nos lados estavam quatro bobinas de fita magnética, do tipo utilizado nos antigos gravadores. Havia uma lata de filme isolada, mas não havia câmara nem equipamento de projecção. Havia um diário, cujo primeiro registo era de 2 de Abril de 1966, e que se esgotava vinte páginas depois, num registo final datado de 3 de Julho de 1968.

 

Calderón saiu para uma reunião, quando viu que o baú não proporcionava uma solução rápida. Marcaram uma reunião para segunda-feira ao meio-dia. À saída da casa, Calderón confrontou-se com quatro jornalistas, que estavam demasiadamente bem informados para serem ignorados. Deu uma conferência de imprensa improvisada, em que um dos jornalistas disse que os meios de comunicação chamavam ao assassino El Ciego de Sevilla. Ao que ele replicou, automaticamente, que não tinha lógica chamar ao assassino o cego, quando era precisamente o contrário.

 

- Pode então confirmar que o assassino corta as pálpebras às vítimas? - perguntou um jornalista e a conferência de imprensa foi prematuramente encerrada.

 

Falcón e Ramírez dividiram as tarefas. Ramírez ficou satisfeito por levar Fernández à galeria da calle Zaragoza, quando soube que ele tinha uma secretária loura e de olhos azuis chamada Greta. Baena e Serrano continuaram a busca à casa, com Felipe e Jorge; o baú foi levado para o escritório e o conteúdo espalhado em cima da secretária. Uma busca mais aturada do sótão não revelou nenhuma câmara de filmar nem equipamento de projecção; mas havia um velho gravador de fita magnética, que Felipe conseguiu pôr a funcionar.

 

O diário parecia o lugar óbvio para começar, mas tinha poucos registos. O primeiro mostrava por que é que Salgado o tinha iniciado. Estava feliz. Ia casar com uma senhora chamada Carmen Blázquez. Falcón, que nunca tivera conhecimento de que Salgado tivesse sido casado, resmungou ao ler as palavras. Salgado, já orgulhoso, pomposo, untuoso, com trinta e três anos: «Francisco Falcón deu-me a grande honra de aceitar ser meu testigo. O seu génio vai tornar a ocasião num dos acontecimentos mais badalados do calendário social de Sevilha.» Não lhe admirava que o homem não escrevesse mais: não tinha nada para dizer. A única vez que se revelou tocante foi ao falar da esposa. Aí, despojou-se de todos os artifícios e escreveu numa prosa sem rendilhados: «Amo mais a Carmen cada dia que passa.» «Ela é boa pessoa, o que dá ideia de que é aborrecida; mas é a sua bondade que afecta toda a gente que a conhece. Como diz o Francisco: ”Faz-me esquecer a fealdade da minha vida. Quando estou com ela, sinto como se tivesse sido sempre um homem bom.”»

 

Falcón tentou imaginar o pai a dizer aquelas palavras e concluiu que eram invenção de Salgado. Abriu o envelope de fotografias e encontrou uma de Carmen, datada de Junho de 1965, em que parecia estar próxima dos trinta anos. Não havia nada de distintivo no rosto dela, à excepção das sobrancelhas, que eram curtas, escuras e completamente horizontais, sem se arquearem nada. Davam-lhe um ar empenhado e dedicado, de alguém que havia de tratar bem do marido.

 

Outro registo, datado de 25 de Dezembro de 1967: «Ontem à noite, antes do jantar, fui transportado à minha infância. Os meus pais davam-nos sempre uma prenda na véspera de Natal; e a Carmen deu-me a melhor prenda da minha vida. Está grávida. Estamos delirantes de alegria e deixei-me embebedar bastante com champanhe.»

 

O diário acompanhava a gravidez rotineira de Carmen, entremeando os relatos com pormenores surpreendentes de exposições bem sucedidas e valores de vendas. Salgado mencionava a aquisição do gravador de fita magnética, que comprou para gravar Carmen a cantar, o que nunca conseguiu, devido ao acanhamento dela diante do microfone. Salgado manifestava-se fascinado com a barriga de Carmen, que estava enorme. Chegou a perguntar-lhe se deixava Francisco Falcón desenhá-la. Ela ficou escandalizada com a sugestão.

 

O último registo diz: «O médico aceitou deixar-me gravar o primeiro choro do meu filho ao vir ao mundo. Estão desorientados com o pedido. Parece que os homens nunca estão presentes nos partos. Perguntei ao Francisco onde estava quando os filhos nasceram e ele disse-me que não se lembra. Quando lhe perguntei se tinha estado à cabeceira da Pilar, ficou chocado com a ideia. Serei o único homem em Espanha a ficar fascinado com uma ocasião assim momentosa? E do Francisco, um artista com tanto génio, esperava que achasse o nascimento tão exaltante como a inspiração.»

 

Estranho remate para um diário. Falcón contou os meses e concluiu que, se Carmen tinha anunciado a sua gravidez em Dezembro, então o bebé devia ter nascido em Julho. Vasculhou o conteúdo do baú, para ver se havia um registo de nascimento da criança. Numa pasta azul desbotada estava a resposta: a certidão de óbito de Carmen Blázquez, datada de 5 de Julho de 1968. O relatório médico anexo pormenorizava um parto catastrófico, devido a tensão alta, retenção de fluidos, septicemia e, finalmente, morte de mãe e filho.

 

A ideia do baú fechado a cadeado, arrumado bem fundo no sótão da casa de Salgado, tornou-se extremamente pungente para Falcón. A solidão do homem - o jantar sem companhia, as compras solitárias, a ausência de um projecto de vida próprio - ele que dedicara toda a vida ao génio de Francisco Falcón, deambulava pelas ruas, com a sua única possibilidade de ser feliz remetida para um local esconso e poeirento.

 

Voltou às fotografias do envelope, às sobrancelhas horizontais da recatada Carmen Blázquez e ali estavam eles no dia do casamento. Ramón e Carmen de mãos dadas. Toda a sua felicidade contida naquela bolsa. Era espantoso para Falcón ver Salgado tão jovem. Os trinta e cinco anos seguintes tinham feito dele um caco. A infelicidade era um fardo que ele carregava no rosto.

 

A pilha de fitas magnéticas chamou a atenção de Falcón. Mas continuou a passar as fotografias, até chegar a uma do pai sentado com Carmen no jardim, os dois a rir. Era verdade que o pai sempre tivera atracção por mulheres «bondosas», A mãe, Mercedes... até a excêntrica Encarnación era tolerada por ser «uma boa mulher». Prosseguiu a vistoria do maço de fotografias e concluiu tratar-se da colecção completa das fotografias de Salgado sobre Carmen. Tinham tamanhos diferentes e tinham sido tiradas por várias máquinas. Salgado devia tê-la retirado sistematicamente do registo fotográfico da sua vida.

 

As fitas magnéticas. Só pensar nelas pôs-lhe as mãos a transpirar. Não queria ouvir o que continham. As mãos tremiam-lhe, ao passar a fita magnética pelas cabeças do gravador. Pô-la a rodar e ficou aliviado por descobrir que estava completamente vazia.

 

A segunda entrou de repente numa conversa entre Carmen e Salgado. Ele implorava-lhe que cantasse. Ela recusava. Os saltos andavam de um lado para o outro, sobre um chão de madeira, enquanto Salgado lhe pedia, suplicando-lhe, qualquer coisa que lhe ficasse como recordação dela, se calhasse ela morrer antes dele. A conversa passou para música clássica, seguida por flamenco e Falcón acelerou a passagem da fita até ao final.

 

A terceira banda magnética começava com o Adagio de Albinoni. Seguiam-se outras peças entusiásticas de Mahler e Tchaikovski. Mal conseguiu passar a quarta fita pelas cabeças, tão escorregadias estavam as mãos. Carregou no «Play» e ouviu apenas o som da estática; mas depois seguiu-se tudo o que temera. Eram gritos, exclamações e pânico. Havia pés a correrem em chão duro, tabuleiros de metal a baterem em tijoleira, mesas e biombos a cair, tecido a ser rasgado. Ouviu-se um último grito de alguém que tinha sido levado pelo mar sem horizonte de vida, apenas com a visão do seu amor, impotente e sumindo-se na costa: «Ramón! Ramón! Ramón!» E depois, um clique áspero e silêncio.

 

O tampo de vidro serviu-lhe de apoio. Os gritos finais de Carmen atingiram-no como três murros no corpo e partiram-no ao meio. Sentiu os órgãos dilacerarem-se.

 

Concentrou-se na respiração - o efeito calmante de valorizar um reflexo motor. Desligou o gravador, limpou sumariamente o suor sobre o lábio de cima. Estava praticamente afogado em culpa por ter sido tão insensível para com o velho amigo do pai. Todas as vezes em que o tinha visto no exterior da casa da calle Bailén e pensado que a última coisa que queria era aturar aquele chato.

 

Mas depois ali estava o conteúdo chocante do computador. O que teria acontecido a este homem, depois de ter perdido a mulher? A infelicidade tê-lo-ia incitado? Tê-lo-ia empurrado para aquela via desprezível, até à depravação última, solitária, do auto-estrangulamento, enquanto lhe passavam diante dos olhos fotografias abjectas de crianças destroçadas? Talvez lhe estivesse na natureza e ele tivesse visto o seu terrível potencial. Mas depois, Carmen tinha entrado na sua vida e tinha-lhe dado um vislumbre de bondade, que lhe tinha sido brutalmente roubada. Sim, desilusão parece ser uma palavra insignificante para descrever o estado de Ramón Salgado quando, saído do hospital, sob o calor mortal do Julho sevilhano, deu os primeiros passos vacilantes para o inferno.

 

Baena entrou com um grande saco de plástico.

 

- Acabámos dentro de casa, inspector jefe - disse e estendeu-lhe o saco.

- O Serrano já acabou o jardim com o Jorge. A única coisa de interesse foi isto. É um chicote. Do género que os fanáticos religiosos usam para se flagelarem a eles próprios. Mea culpa. Mea culpa.

 

- Onde estava?

 

- Na parte de trás do guarda-fatos de parede do quarto de dormir. No entanto, não havia coroas de espinhos nem cilícios.

 

Falcón emitiu uma risada cava e disse a Baena para fazer um inventário do baú e levá-lo para a Jefatura. Deixou Serrano a selar a casa e conduziu para o centro da cidade. Estacionou na Reyes Católicos e comeu uma tapa rápida de solomillo al whisky, depois, caminhou pela calle Zaragoza, até à galeria de Salgado, que tinha a sala de exposições às escuras.

 

Greta, a assistente suíça de Salgado, estava sentada à secretária, nas traseiras do salão, com as mãos entaladas entre as pernas, olhando para o vazio. Tinha os olhos inchados e estava dilacerada pelo choro.

 

- Devia ir para casa - disse Falcón, mas ela não queria ficar sozinha. Disse-lhe que fazia dez anos que trabalhava para Ramón Salgado. Tinham planeado uma comemoração para a Feria daquele ano. Divagou por memórias antigas e somou frases feitas acerca do «bom homem que era Ramón». Falcón perguntou-lhe se havia alguns artistas que lhe ocorresse que não gostassem de Ramón, que talvez tivessem sido rejeitados por ele.

 

- Há sempre gente a surgir. Estudantes, jovens. Eu lido com eles. Não percebem como funciona o negócio, que o Ramón não funciona a esse nível. Alguns deles fazem espalhafato, como se não fôssemos merecedores do génio deles. Os outros vão falando e, se me agradam, deixo-os mostrar-me os seus trabalhos. Se forem bons, digo-lhes a quem o devem mostrar. O Ramón nunca se encontrou com essas pessoas.

 

- Quantos lhe mostram instalações utilizando filmes, vídeo ou grafismos de computador?

 

- Mais de metade. Já poucos miúdos pintam, hoje em dia.

 

- Não é o estilo do Ramón, pois não?

 

- Não é o estilo dos clientes do Ramón. São conservadores. Não sabem avaliá-los. A este nível, estamos sobretudo a lidar com dinheiro e investimento... e um CD com algumas coisas criativas digitalizadas não parece, nem aparece como um investimento de dez milhões de pesetas.

 

- Havia algum artista que ele representasse que estivesse insatisfeito?

 

- Ele trabalhava em grande proximidade com os artistas. Não cometia erros desse tipo.

 

- E nos últimos seis meses? Lembra-se de alguma coisa suspeita, desagradável ou humilhante...

 

- Ele não andava tão concentrado no trabalho. Estava preocupado com a irmã. E esteve muitas vezes fora. Sobretudo no Extremo Oriente: Tailândia, Filipinas.

 

A ideia de Salgado satisfazendo as suas necessidades com rapazes orientais congelou-se no espírito de Falcón. Sentiu-se sujo diante da loura Greta – ele com as suas novas informações, ela com as suas memórias inconspurcadas. Deu-se conta de que tinha perdido com a verdade, e ela mantinha-se impecável na sua ignorância.

 

- O Ramón alguma vez lhe falou da esposa?

 

- Não sabia que tinha sido casado - disse ela. - Era um homem muito reservado. Nunca o vi sequer como muito espanhol. Havia nele muito da contenção suíça.

 

«Somos coisas tão diferentes para as diversas pessoas», pensou Falcón. Salgado era calmo, poderoso, simpático e reservado com uma mulher que não precisava de impressionar; e eis que, com Falcón, era oleoso, entediante, servil e afectado. Dotados de boa memória, podemos ser quem quisermos com quem preferirmos - somos todos actores numa peça que muda todos os dias.

 

Subiu ao escritório de Salgado, agora ocupado por Ramírez e Fernández, em mangas de camisa, um de cada lado da secretária, a desfolharem papéis.

 

- Não estamos a avançar muito, por aqui - disse Ramírez. - O melhor que conseguimos foi o que a Greta nos deu na primeira meia hora. É a lista de clientes, a lista de artistas que já tinha representado, os que ainda representa e os que recusou. O resto são cartas, contas, as coisas habituais. Não há correspondência entre ele e a Sra. Jiménez. Nem um bilhetinho do Sérgio a dizer: «Estás lixado.»

 

Era tarde. Falcón disse-lhes para arrumarem com o assunto. Voltou para a Jefatura. O baú do sótão de Salgado já lá estava. Pegou no filme e montou-o no equipamento de projecção de Raúl Jiménez. Era composto por sete sequências de Ramón e Carmen. Estavam felizes em todas as cenas. Salgado adorava-a visivelmente. O olhar que lhe lançava quando ela se virava para a câmara e o olhar fixo nas suas bochechas não enganavam.

 

Falcón sentou-se no escuro com as imagens a cintilarem. Não tinha tido como controlar-se. Não tinha ninguém que o obrigasse a controlar-se. Chorou sem saber porquê e desprezou-se por isso, como costumava fazer em relação ao público do cinema que carpia com o sentimentalismo grosseiro da indústria cinematográfica.

 

Excertos dos diários de Francisco Falcón

 

2 de Novembro de 1946, Tânger

 

Um americano veio ontem ter comigo. Um pedaço considerável de humanidade. Apresentou-se como Charles Brown III e pediu para ver o meu trabalho. O meu inglês tem melhorado com o súbito aparecimento de tantos americanos no Café Central. Não o quero a folhear os meus desenhos. Disse-lhe que tinha de lhos mostrar convenientemente e que voltasse da parte da tarde. Isso deu-me tempo para descobrir pelo R. que se trata do representante de Barbara Hutton, a nova Rainha da Alcáçova. Preparei os trabalhos que queria mostrar e, quando voltou e entrou na sala, eu disse: «Está tudo à venda excepto este», que é o desenho da P.

 

Correm rumores de que, dentro do palácio de Sidi Hosni há um mundo de riqueza muito para lá até da imaginação do R. Cada um dos trinta quartos tem um relógio de mesa Van Cleef & Arpels, em ouro, de 10 mil dólares. Qualquer pessoa que gaste um terço de um milhão de dólares para saber as horas, só pode avaliar as coisas apenas pelo preço. «Ela não te vai comprar um quadro por 20 dólares», disse-me o R. «Ela não sabe o que isso seja. É tão pouco para ela como para nós um centavo.» Disse-lhe que nunca vendi um quadro na vida. «Então deves vender a tua primeira obra por nunca menos de 500 dólares.» Ensinou-me a técnica de vendas, que pus em prática.

 

Segui Charles Brown em torno da sala e falei-lhe a propósito do trabalho, mas sentia o desespero dele para voltar ao desenho da P. No final, perguntou: «Só p’ra saber, quanto custa o desenho a carvão do nu?» Disse-Lhe que não está à venda. Não tem preço. Passou o tempo a usar aquela frase: «Só p’ra saber.» E eu a dizer: «Não sei.» Voltava sempre lá. Segui as instruções do R. e não o acompanhava até ao desenho, ficando a fumar, no canto oposto da sala; pus o ar de quem se está a divertir, em vez do que me apetecia - que era rebentar como um balão de água, de maneira a que nada reste a não ser um charco de gratidão.

 

- Sabe - disse ele -, isto é tudo muito interessante. Gosto. E estou a ser sincero: gosto. As formas que se interpenetram na tradição mourisca. O caos que obedece a um padrão. As paisagens áridas. Tudo isto me diz qualquer coisa. Mas não estamos a falar de mim. Eu compro para clientes. E é isto que os meus clientes querem. Não querem obras intelectualmente depuradas... as pessoas que vêm para Tânger, não é isso que procuram. Procuram... como direi?... as promessas do Oriente.

 

- Na ponta noroeste de África?

 

- É uma maneira de dizer. Significa que querem qualquer coisa de exótico, sensual, misterioso... É, mistério, é isso. Por que é que este não está à venda?

 

- Porque é importante para mim. É um desenvolvimento novo e recente.

 

- Estou a ver. Os outros desenhos são perfeitos... uma observação meticulosa. Mas este... é diferente. E tão revelador... e, contudo, proibido. Talvez seja isso. A natureza do mistério é que mostra um pouco de si próprio, provoca, mas proíbe o acesso ao conhecimento global.

 

Teria Charles Brown estado a fumar?, perguntei-me. Mas ele estava a ser sincero. Insistiu outra vez num preço. Não abdiquei. Disse-me que o seu cliente tinha de ver a obra. Não a deixei sair dali de casa. Rematou a nossa conversa com as palavras:

 

- Não se preocupe, eu trago a montanha ao Maomé.

 

Saiu, apertando a minha mão húmida. Tremia de excitação. Estava todo suado e arranquei a roupa, deitando-me no chão, nu. Fumei um cigarro de haxixe, um dos vinte que preparo para mim todas as manhãs. Olhei para o retrato da P. Estava tão priápico como Pã e, como por telepatia, chegou um dos rapazes do C. e libertou-me a tensão.

 

4 de Novembro de 1946, Tânger

 

Há dois dias que estou deitado no meu quarto, num estado de relaxação controlada. Tenho o ouvido treinado e sintonizado para o mais leve toque na porta da rua. Adormeci e, quando senti o toque, vim de um salto à superfície, como um homem libertado de um navio a afundar-se. Lutei contra o travesseiro e tentei vestir-me ao mesmo tempo. Fiz uma pirueta, porque o criado estava especado ao lado da cama, com um envelope. Foi ele que me arrancou ao sono. Rasguei o envelope. Dentro, vinha um cartão gravado a ouro da Sr.a D. Barbara Woolworth Hutton, em que ela, pelo seu próprio punho, pedia se podia visitar Francisco González na sua morada, no dia 5 de Novembro de 1946, às 14h. 45. Mostrei o cartão ao R., que ficou impressionado, reparei.

 

- Temos aqui um problema - disse o R.

 

O R. gosta de problemas, razão pela qual está sempre a criá-los. O problema era o meu nome.

 

- Dá-me um González que tenha feito alguma coisa digna de registo no mundo da arte - disse o R.

 

- Julio González, o escultor - respondi eu.

 

- Nunca ouvi falar.

 

- Trabalhou a ferro, em formas abstractas geométricas. Morreu há quatro anos.

 

- Sabes o que me diz o nome Francisco González? Vendedor de botões.

 

- Porquê de botões? - perguntei e ele ignorou-me.

 

- Qual é o apelido da tua mãe?

 

- Não posso usar o apelido da minha mãe - disse eu.

 

- Por que não?

 

- Não posso, é só.

 

- Qual é?

 

- Falcón.

 

- No, no, no, que no... esto es perfecto. Francisco Falcón. A partir de agora, passa a ser o teu nome.

 

Tentei dizer-lhe que estava fora de questão, mas não quis revelar mais do que o necessário, por isso, aceitei o meu destino. Sou Francisco Falcón e devo admitir que o nome tem qualquer coisa... Para além de repetir a inicial, tem ritmo, como em Vincent van Gogh, Pablo Picasso, Antoni Gaudí, até o simples Juan Miro... têm todos o ritmo da fama. Há anos que sabem isso em Hollywood, e é por isso que temos Greta Garbo e não Greta Gustafson - ou Judy Garland e não Frances Gumm, nunca Frances Gumm.

 

5 de Novembro de 1946, Tânger

 

Veio, como prometido, e eu fiquei completamente em delírio. Não fumei esta tarde, para que o brilho de diamante não se perdesse no torpor do haxixe.

 

Chegou acompanhada pelo Charles Brown, que é enorme ao lado dela e extremamente deferente. Impressionou-me a extraordinária graciosidade e elegância dela, a perfeição do seu vestido, a macieza das suas luvas, que podiam ser de pele de anho. Aquilo de que gostei mais foi do seu ar de natural desaprovação. A sua fortuna, que é uma aura que a afasta dos comuns mortais, tornou-a exigente. Mas percebi que, quando cai... estatela-se ao comprido. Os saltos dela espalhavam diques caros pelo meu chão de tijoleira.

 

Disse:

 

- A Eugenia Errázuriz adoraria estes azulejos.

 

Não faço ideia de quem seja.

 

Fiquei rendido, mas surpreendi-me por não ficar mudo, quando passámos à sala de exposição. Refinei a técnica do R. e, desta vez, o desenho nem estava exposto. Andou à volta da sala, colocando cuidadosamente um pé à frente do outro.

 

Charles Brown ia-lhe murmurando palavras ao ouvido, que imagino forrado a madrepérola. Ela ouvia e acenava. Foi atraída pelas formas mouriscas. Passou ligeira pelas paisagens desoladas da Rússia. Ficou suspensa dos desenhos de Tânger.

 

Girou nos calcanhares. Descalçou as luvas de pele de anho, que ficaram dependuradas numa das suas mãozinhas brancas.

 

- É um trabalho excelente - disse ela. - Notável. Original. Bastante estranho. Muito perturbador. Mas o Charles disse-me que tem uma coisa que consegue ultrapassar a excelência destas obras que teve a amabilidade de me deixar apreciar.

 

- Sei a que se refere e disse ao Sr. Brown que não estava à venda. Achei que seria injusto mostrar-lho, sequer.

 

- Queria apenas vê-lo - disse. - Nunca procuraria ficar-lhe com uma coisa tão importante para si.

 

- Então está bem - disse eu. - Siga-me.

 

Coloquei o desenho de modo a estar perfeitamente iluminado, ao fundo de um longo corredor escuro e encostei-o a uma velha parede de tijolo de barro, por baixo de um arco branco, texturado por décadas de caiação. Esta zona da casa é bastante sombria e sabia que ela iria deparar inesperadamente com ele e seria atraída como uma traça. Não me enganei. E acho que não estou enganado: quando viu o desenho, soltou um gemidinho voluptuoso. Caminhou para ele e, vi-lhe no olhar, já estava perdida. O meu trabalho estava feito. Cheguei-me para trás e deixei-a ficar à vontade. Não se mexeu durante dez minutos. Depois, fez uma vénia com a cabeça e afastou-se. Ao despedir-se à porta, os olhos brilhavam-lhe.

 

- Agradeço-lhe muitíssimo - disse. - Espero que me dê a honra de ser meu convidado para jantar, um dia destes.

 

Despedi-me de beija-mão.

 

6 de Novembro de 1946, Tânger

 

O dia começou com um convite da B.H. para jantar. Uma hora depois, o Charles Brown apareceu. Mandei vir chá de menta e fumei um cigarro. A conversa foi longa e sinuosa e incluiu uma indagação sobre o meu passado. Menti monstruosamente, ocorrendo-me que assim é melhor, que deste modo nunca vão saber quem sou; talvez até eu próprio. Alimentarei assim uma aura de mistério que se tornará a chancela da minha obra.

 

Perdi-me neste pensamento: mesmo depois de eu morrer e de serem feitos esforços laboriosos, académicos, para atingir o âmago de Francisco Falcón (aqui está: a transformação já é completa; escrevi isto sem pensar - o Francisco González desapareceu), as camadas de cebola vão ser separadas uma após outra, conduzindo à verdade fulcral. Mas, como toda a gente sabe, a verdade da cebola não existe.

 

Quando se abre o último extracto de matéria da cebola, não fica nada. Nem um brinde. Nada. Eu não sou nada. Nós não somos nada. A compreensão deste facto dá-me uma força imensa. Sinto um impulso fortíssimo para a libertação imoral. Para mim, não há regras.

 

Regressei ao presente, sobressaltado por ouvir a voz do C. B. Estava ele a perguntar-me se eu não podia equacionar a possibilidade de vender. Disse que não. Pediu-me se podia levá-lo comigo para o jantar, para mostrar aos outros convidados. Isso seria debilitante do ponto de vista psicológico, por isso, voltei a dizer que não. Avançámos os dois para a porta e ele disse:

 

- Tem a noção de que a Sra. Hutton estaria disposta a despender um montante significativo com o seu quadro...

 

- Não subsistem quaisquer dúvidas, na cabeça de ninguém, sobre a fortuna da proprietária do palácio de Sidi Hosni - disse eu.

 

Ele jogou o último trunfo no momento da despedida.

 

- Quinhentos dólares - disse ele e caminhou pela rua estreita, virando à esquerda e voltando a subir para a alcáçova.

 

Utilizei todos os meus poderes de contenção para não o chamar.

 

11 de Novembro de 1946, Tânger

 

Devia ter escrito isto ontem, quando a perfeição daquela noite ainda estava fresca no meu espírito. Regressei tão bêbado e numa tal excitação que tive de fumar vários cachimbos de haxixe para atingir o estado de torpor. Acordei com a cabeça pesada, e com uma memória volátil, pouco firme, dos factos.

 

Cheguei ao palácio de Sidi Hosni, onde me foram franqueados os portões por um tanjawi de libré de calça branca, assim que mostrei o convite. Entrei instantaneamente num mundo de sonho, em que fui passando de criado para criado. Atravessei salões e pátios, onde não foi poupada qualquer despesa pelo anterior proprietário, cujo nome me escapa. Blake? Ou seria Maxwell? Ou talvez os dois.

 

O palácio era composto por diversos edifícios, que tinham sido unidos numa estrutura central, à qual me conduziram. O efeito era confuso, mágico e misterioso. É um microcosmo da mentalidade marroquina. O criado deixou-me numa sala em que alguns convidados se comportavam como se estivessem num beberete e outros num museu. Ambos os grupos tinham razão. Eu estava de fato, mas mais tisnado, devido à minha vida no exterior, o que me punha à margem das pessoas muito brancas que predominavam na sala. Uma senhora quase me pediu uma bebida; mas no último minuto, percebeu que eu não tinha luvas nem fez. Em vez disso, perguntou-me de que madeira era feito o chão. O C.B. salvou-me e apresentou-me pela sala. A cada apresentação, crescia uma vibração rumo aos candelabros (que estão para ser substituídos por um lustre de cristal de Veneza), como o levantar de um bando de pombos. Percebi que este jantar tinha sido preparado para mim, para me apresentar à sociedade, para me agradar. Colocaram-me uma bebida na mão. Ferozmente alcoólica. O colossal C.B. pôs-me a mão no ombro, como se eu fosse uma réplica sua em mais pequeno, e se, com um pouco mais de bronze, eu pudesse aspirar a dominar uma praça tão grande como a dele.

 

Nada da anfitriã. Estava mal preparado para a ocasião, não em termos de conversa, mas de traquejo social. A conversa passava por Nova Iorque, Londres e Paris, por cavalos, moda, iates, propriedades e dinheiro. Foram-me dizendo coisas sobre a nossa anfitriã, que tinha doado a casa de Londres ao governo americano, que o tapete mural era de Qom, que os embutidos de madeira eram de Fez, que a cabeça de bronze era do Benim. Sabiam tudo acerca do mundo de B.H., mas nenhum deles tinha penetrado na carapaça da sua substancial fortuna. Eu, sim. E era por isso que ali estava. O C.B. III tinha dito a toda a gente, com grande dispêndio de palavras, que eu tinha decifrado e feito isso por meio do mais simples e, contudo, mais fascinante dos desenhos a carvão, que dizia mais no seu traço do que o interminavelmente restruturado, laboriosamente trabalhado e excessivamente mobilado palácio de Sidi Hosni. À medida que circulava pela sala, ia recolhendo convites para outros acontecimentos sociais, bem como inúmeras propostas sexuais de mulheres. A mesma depravação que grassa escondida nas ruelas do Soco Chico estava ali, por trás das paredes douradas da casa palaciana do velho homem santo muçulmano, Sidi Hosni.

 

A B. H. dirigiu-se directamente a mim, estendendo-me a mão. Beijei-lha. Éramos o centro das atenções. Disse-me: «Tenho de lhe mostrar uma coisa.» Saímos da sala. Avançou para uma porta guardada por um núbio muito negro e alto, de calças brancas, mas de peito nu. Destrancou a porta, que foi aberta com dificuldade pelo núbio, e entrámos na sua galeria privada. Havia um Fragonard, um Braque, até um El Greco. Um quadro dessa tremenda fraude chamada Salvador Dali, um Manet e um Kandinsky. Fiquei atordoado. Havia desenhos, também. Vi um Picasso e outros que me disseram ser de Hassan el Glaoui, filho do paxá de Marráquexe. Chegou então o grande momento psicológico da noite. A B. H. conduziu-me a um espaço na parede. «Aqui», disse, «quero pôr uma coisa que seja a súmula do que para mim representa Marrocos. Tem de ser ilusória. Clara e, contudo, intocável, reveladora, mas incompreensível, acessível mas proibida. Tem de fascinar como a verdade, de modo a que, parecendo que está ao nosso alcance, se mantenha fugidia.» Não foram exactamente estas as suas palavras, algumas foram emitidas pelo C. B. e outras, acho, foram acrescentadas por mim. Terminou com estas palavras: «Quero que o seu desenho faça parte desta colecção.»

 

Isto era um assalto concertado. Eu sabia que era altura de ceder. Resistir mais tempo, equivaleria a poder aborrecer os meus sitiantes. Acenei. Aquiesci. Ela agarrou com força o meu bicípite. Olhámos encantados para o espaço na parede.

 

«O Charles fala consigo dos pormenores. Quero que saiba que me fez muito feliz.»

 

O resto da noite passou-se numa ofuscação de cristal, como se a tivesse visto através de uma torrente de cristal de Veneza. Muito disso devia-se à prodigalidade de álcool introduzido nas bebidas. Quando saí, já há muito que a B. H. se tinha retirado; o C. B. puxou-me para um lado e disse-me que eu tinha tornado a Sra. Hutton muito generosa. «Ela premeia o génio. Recebi instruções, não para negociar, mas apenas para lhe entregar isto.» Era um cheque de 1000 dólares. Prometeu passar lá por casa na manhã seguinte, para ir buscar a peça. Valho agora um décimo de um relógio de mesa Van Cleef & Arpels, em ouro.

 

23 de Dezembro de 1946, Tânger

 

Continuo a não receber uma palavra da Pilar; estou desesperado. Tento adiantar o trabalho. Tento passar para a tela o que vi naquela tarde, mas a transposição não resulta. O que era tão simples, tornou-se complicado. Preciso que a P. volte e me relembre o que vi naquele dia. Larguei a vida mundana. Aborrecem-me as mesuras. Fui muito requisitado, depois do meu triunfo junto da B.H., mas agora a besta devoradora passou adiante. Sinto-me aliviado, mas ainda atordoado.

 

7 de Março de 1947, Tânger

 

Parei de trabalhar. Sento-me diante dos sete desenhos sobrantes da P, sem uma única ideia na cabeça. Já trabalhei mesmo sob a influência do majoun. Depois de uma dessas sessões, regressei à realidade com a sensação de ter feito algo grandioso, para depois constatar que tinha pintado sete telas negras. Pendurei-as numa sala de paredes caiadas e mirei-as num estado de desolação total.

 

25 de Junho de 1947, Tânger

 

Repele-me a minha própria rapacidade. A minha incapacidade para criar provocou-me uma necessidade de incessante mudança. Faço a ronda dos bordéis, em caça de novos jovens, e canso-me deles instantaneamente. Fumo haxixe em grandes quantidades e passo os dias inteiros vogando como uma bandeira ao enervante cherqi que bate incessantemente às portas. Os meus braços estão fracos, o meu pénis flácido. Passo noites inteiras no Bar La Mar Chica, rodeado de bêbados, facínoras, idiotas e putas. Deixei o majoun; sob sua influência, apenas revisito velhos horrores - paredes cobertas de sangue, rampas de cadáveres, lama e sangue, carne e ossos expostos voltejando na minha cabeça.

 

1 de Julho de 1947, Tânger

 

Depois de me apanhar bêbado à sua porta, o R. mandou-me de volta para o trabalho nos barcos.

 

1 de Janeiro de 1948, Tânger

 

Um novo ano. Tem de ser melhor que o anterior. Continuo a não conseguir encarar a tela branca. É a primeira vez que escrevo, desde Julho. Estou em melhor forma física. Já não estou gordo, mas sou incapaz de me livrar deste sentimento de desolação. Tentei encontrar a P. Fui mesmo a Granada, apenas para descobrir que a casa dela tinha sido vendida e que a família se tinha mudado para Madrid, mas ninguém sabia para onde.

 

Não tenho nada para relatar. As chabolas fustigadas pelo vento nos limites da cidade não contêm nada que se compare com a infelicidade do meu corpo de privilegiado. Espalhei os sete desenhos da P. à minha frente, na esperança de sentir um novo surto de possibilidades. Consegui exactamente o contrário.

 

Foi-me dada a oportunidade de ascender ao enorme privilégio de encostar o olho à brecha e ver a verdadeira natureza das coisas; transportei-a comigo e mostrei-a aos vulgares mortais. Mas a P. tinha parte nisso; era a minha musa e perdi-a. Não volto a pintar ou a desenhar. Estou destinado a sucumbir ao desesperante quotidiano a que todos se vergam: comer, trabalhar, dormir.

 

25 de Março de 1948, Tânger

 

Eu vi-a. No mercado, às portas do Petit Soco. Eu vi-a. No meio de um milhar de cabeças. Eu vi-a. Seria ela?

 

1 de Abril de 1948, Tânger

 

Estarei eu tão desesperado que prenda as minhas esperanças a fantasmas? Vou a todos os médicos da cidade, para ver se ela está lá empregada. Nada. O R. quer mandar-me outra vez para os barcos, para eu não me despenhar no solo como uma ave fulminada por uma insolação.

 

3 de Abril de 1948, Tânger

 

Ia a sair de casa e ei-la na rua, andando de um lado para o outro. Ao vê-la, tive de me segurar à porta, que as minhas pernas tinham desaparecido. Pedi-lhe que entrasse. Ela não disse nada e atravessou a ombreira, à minha frente. O cheiro dela encheu-me o peito e soube imediatamente que tinha sido salvo. O criado fez-nos chá. Ela não se sentou, nem quando o chá chegou. Tocou na cabeça do rapaz. Ele saiu deslizando como se tivesse sido tocado por um anjo.

 

Eu não sabia por onde começar.

 

Era como se estivesse em frente da tela e a minha mão fosse de um canto para o outro, para cima, para o meio, para baixo, e não deixasse marca. Era como se fizesse isso horas a fio e, quando finalmente decidisse onde ia tocar na tela branca, branca, não ficasse marca nenhuma. Não tinha tinta no pincel.

 

Era assim que me sentia naquele momento.

 

Obriguei-me a falar.

 

Eu: Fui procurar-te a Granada... quando deixei de saber de ti.

 

Silêncio.

 

Eu: Disseram-me que a tua tia tinha morrido, que a tua mãe estava doente e que tinham ido todos para Madrid.

 

P: É verdade.

 

Eu: Não tinham nenhuma morada vossa. Fiquei sem maneira de te contactar.

 

P: Não é verdade.

 

Silêncio.

 

Eu: Como é que não é verdade?

 

P: Sabiam exactamente onde estávamos. O meu pai disse-lhes; mas também lhes pediu para não dizerem a ninguém com a tua descrição, vindo de Tânger, que perguntasse pela filha.

 

Eu: Não compreendo.

 

P: Ele não queria que nos voltássemos a ver.

 

Eu: Teve alguma coisa a ver comigo... quer dizer... com aqueles desenhos? Soube deles? Que estiveste em pé diante de mim...?

 

P: Não. Isso ficou só entre nós os dois.

 

Eu: Então o que aconteceu? Não vejo o que poderia ter-lhe desagradado em mim. Apenas falámos das minhas costas.

 

P: O meu pai fala árabe.

 

Eu: Naturalmente, se esteve em Melilha. Onde está o teu pai? Tenho de falar com ele.

 

P: Morreu.

 

Eu: Lamento.

 

P: Morreu seis meses depois da minha mãe.

 

Eu: Tens sofrido muito.

 

P: Tive dezoito meses de luto. Envelheceu-me e tornou-me mais dura.

 

Eu: Continuas igual ao que eras, à vista. Não o carregas no rosto.

 

P: Estava a dizer-te que o meu pai falava árabe e, como também falava alguns dialectos rifenhos, pediram-lhe se passava uma manhã por semana a tratar os pobres das chabolas, nas imediações da cidade. A americana, «La Rica», a Sra. Hutton tinha dado dinheiro para medicamentos e comida. Ele tornou-se voluntário. Encontrou aquelas coisas habituais dos subnutridos. Mas também um número surpreendente de mutilações; faltavam orelhas, dedos, polegares cortados, narizes arrancados. Ninguém lhe queria dizer como esses ferimentos tinham ocorrido, até que tratou uma mulher que tinha lá estado na semana anterior com o filho, que tinha perdido uma orelha. Ela estava cheia de vergonha por ter de ser tocada por um homem; mas tinha tantas dores que tinha cedido. Ele perguntou-lhe pelo filho e a razão por que ninguém lhe contava o que tinha acontecido. «Não falam porque é a sua gente que anda a fazer isso», disse ela. O meu pai ficou siderado. Contou-lhe como aqueles rapazes tinham roubado por estarem cheios de fome e os ferimentos que sofriam para alimentar as famílias e as mortes que daí resultavam. O meu pai ficou consternado e perguntou quem fazia aquilo. «Os homens que guardam os armazéns.»

 

Fiquei calado. O meu corpo gelou por dentro. O meu peito era uma gruta de gelo pelo qual circulava o vento mais frio. A minha musa tinha regressado para me dizer por que razão nunca mais me podia falar.

 

P: Trouxeram para o consultório um rapaz com uma ferida infectada. Não era habitual, mas a sua coragem e estoicismo, suportando a dor sem um queixume, tinham sensibilizado o meu pai. O rapaz recuperou e o meu pai empregou-o em casa. Um dia, à hora de almoço, ele desapareceu. Procurámos pela casa. Estava agachado nos fundos da rouparia. Não dizia nada para além de perguntar: «Ele já se foi embora? Ele já saiu?» O seu terror era genuíno. Perguntámos-lhe de quem tinha medo e ele só dizia: «El Marroquí.» No dia seguinte, voltou a acontecer o mesmo. O meu pai foi ver ao livro de consultas e o único paciente desse dia era o Sr. Cardoso, que tinha oitenta e dois anos, e... tu. No dia seguinte, trouxe o rapaz ao Petit Soco. Ocupavas o teu lugar habitual no Café Central. E o rapaz disse ao meu pai que eras tu: El Marroquí.

 

Não me conseguia mexer. Os olhos verdes estavam assestados em mim. Eu sabia que isto era o momento crucial. Sabia-o porque tudo desfilava por mim como se ambas as nossas vidas estivessem a ser comprimidas nesse instante singular. Decidi ignorar aquilo. Ia mentir. Tal como tinha mentido a todos os outros - o C.B., a Rainha da Alcáçova, a condessa de Blá e o duque de Flá. Ia mentir. Sou Francisco Falcón. Não. Ele é o Francisco Falcón. Eu deixei de existir.

 

P: Foste responsável pelo que aconteceu àquelas pessoas?

 

Os olhos verdes estavam a pedir-me, a implorar-me, e eu sabia que estava perdido. Olhei para as minhas mãos, que continham a água da vida, e vi-a borbulhar e piscar-me o olho, a gozar comigo, enquanto se escoava pelos meus dedos.

 

Eu: Sim, fiz coisas dessas. Sou responsável por isso.

 

Ela não se foi embora. Olhou para mim e percebi que tinha agido acertadamente.

 

P: Os meus pais fizeram uma investigação discreta acerca da empresa para que trabalhavas. O pai descobriu que tinhas sido legionário e contrabandista e que era o teu potencial de violência que inspirava receio em todos os teus inimigos e concorrentes. Resolveram mandar-me embora. Foi uma coincidência a minha tia ter adoecido.

 

Eu: Mas porquê forçarem-te a ires-te embora? Por que não apenas proibirem-te de me veres?

 

P: Porque sabiam que eu estava apaixonada por ti.

 

Sentou-se, finalmente, e pediu um cigarro. Mal o conseguia segurar. Acendi-lho e pus-lho nos dedos. Ela olhava fixamente o chão. Contei-lhe tudo. Contei-lhe «o incidente» (ou quase tudo a respeito dele) que me fez sair de casa dos meus pais e juntar-me à Legião. Contei-lhe que tinha estado na Guerra Civil, na Rússia, em Krasni Bor. Contei-lhe por que larguei Sevilha, o que aconteceu em Tânger... Tudo. Contei-lhe da minha agonia. Contei-lhe como ela me preenche, como ela é a minha estrutura.

 

Ela ouviu. O céu foi escurecendo. O vento levantou-se. O rapaz trouxe mais chá de menta e uma vela que hesitava na corrente de ar. Só houve uma coisa que não lhe contei. Contei-lhe todos os pormenores mais hediondos, mas não lhe falei dos rapazes. Não é coisa para os ouvidos de uma mulher. As confissões foram de tal enormidade que introduzir depravação iria tirar-me qualquer possibilidade de redenção. Acabei a falar acerca do trabalho. Como tinha parado de trabalhar. Como era incapaz de passar dos desenhos. Como preciso dela para me voltar a abrir os olhos. Pedi-lhe que se recordasse das últimas palavras que me disse no dia em que fizemos os desenhos. Abanou a cabeça. Repeti-lhas: «Agora já sabes.»

 

Enquanto escrevo isto, ela está deitada na cama, uma forma vaga por baixo da rede mosquiteira. Uma vela com uma chama alta arde perto da cama dela. Dorme. Vou buscar carvão e papel.

 

3 de Junho de 1948, Tânger

 

A P. disse-me que está grávida. Largo o trabalho para o resto do dia e ficamos deitados na cama, juntos, com as gargantas tão cheias que não conseguimos falar acerca da plenitude do nosso futuro em conjunto e dos filhos que vamos ter.

 

18 de Junho de 1948, Tânger

 

Depois de uma cerimónia civil na Legação Espanhola e uma missa curta na catedral, estamos casados, a P. e eu. O R. organizou uma recepção no Hotel El Minzah. Como começaram agora a dizer, no mais puro estilo da Riviera: le tout Tânger estava lá. Estávamos rodeados de estranhos no nosso próprio casamento e fomos embora assim que pareceu possível sem sermos indelicados. Desaparecemos debaixo de uma rede mosquiteira, com um cigarro de haxixe. Flutuámos nas carícias um do outro e fizemos amor como marido e mulher pela primeira vez.

 

Ela estava cansada e queria dormir. Descansei a minha cabeça sobre a sua barriga, a ouvir as células multiplicarem-se lá dentro. Estava com demasiada energia e levantei-me para trabalhar. Achei que era um dia auspicioso, por isso peguei nas tintas e fiz a minha primeira marca na tela. Foi um início. Fiquei nervoso e decidi ir dar uma volta pela medina, subir à alcáçova, olhar o mar nocturno a partir das fortificações e contemplar o meu futuro.

 

Fui parado no Petit Soco, por gente que me queria dar os parabéns e oferecer-me uma bebida. Foram insistentes. O C. estava entre eles. Não o via há meses. Deixei-o pagar-me um uísque. Conversámos e gracejámos durante um pedaço e saí. O C. apanhou-me quando subia para a alcáçova. Deu-me o braço e perguntou-me por que andava a evitá-lo e por que tinha mandado os rapazes embora. Disse-me que eu tinha voltado a congelar, que o casamento é para advogados e médicos, que a vida burguesa é inimiga do artista. Recordei-lhe quem é a P. íamos em passo de passeio e começou a conduzir-me na direcção de uma casa. Disse-me que era um bar e que me queria pagar uma última bebida. Sentámo-nos num pátio e serviram-nos. Havia uma zona de circulação em torno do pátio, como num claustro. Sem eu reparar, acenderam-se velas nessa zona e, de repente, apareceram por ali uns rapazes. O C. pôs-se a arengar patetices sobre a subversão da sensualidade, a anarquia da depravação. Não o ouvia, mas observava o recorte musculado das coxas dos rapazes que deambulavam sob a luz incerta. Fiquei perturbado. O C. passou-me um cigarro. Tinha haxixe dentro, que me invadiu o sangue com suavidade. Os meus lábios acariciaram o cigarro. A noite envolveu-me. Mais rapazes flutuaram em meu redor. O C. saiu com um deles. Pegaram-me pelos braços e levaram-me dali. Despiram-me. Amassaram-me os músculos tensos. A massagem venceu-me a resistência. Cedi ao toque deles.

 

Acordei com os lábios nas costas de um rapaz. Vesti-me à pressa. Dirigi-me ao pátio. Não havia sinal do C. Voltei para casa a pé. Despi-me na casa de banho e esfreguei os órgãos genitais até ficarem quase feridos. Estaquei aos pés do leito conjugal, nu, a olhar para a minha mulher adormecida. Que raio de homem sou eu?

 

Ela mexeu-se sob o meu olhar fixo e a cabeça emergiu-lhe da almofada. «O meu marido», disse e sorriu. Acariciou o espaço a seu lado na cama. Deitei-me. Que raio de homem sou eu?

 

Sábado, 21 de Abril de 2001, casa de Falcón, calle Bailén, Sevilha

 

Qual é o ingrediente contido nas pastilhas para dormir que tira os sonhos? Será o mesmo que seca a boca e forra o cérebro com pano turco? Falcón estava deitado no escuro, apertando os dedos contra o rosto, como um pugilista a inspeccionar os danos da noite anterior. E aqueles buracos negros na memória? Recordou as palavras de Alicia da véspera:

 

- A neurose é como um buraco negro no espaço. É estranho e inexplicável. Como é que se dá uma coisa tão catastrófica como o desaparecimento de uma estrela? Como pode uma coisa que aconteceu a um ser humano ser tão dolorosa que ele se recuse a lembrar-se dela, que faça desaparecer essa parte da mente? - discorreu ela. - Há mais nesta analogia, porque o desaparecimento de uma estrela tem um impacto gravitacional tão forte que suga constantemente mais matéria para o seu mundo negativo. Também a neurose puxa todas as coisas positivas da nossa vida para ela, consome-as e torna-as antipositivas. Descreveu-me algumas relações importantes na sua vida, nomeadamente a sua primeira namorada a sério, Isabel Álamo, e a sua ex-mulher, Inés. Ambas eram relações fortes, com paixão dos dois lados, mas não conseguiram suportar a atracção gravitacional do buraco negro que há em si.

 

- Com a Inés, foi apenas sexo. Agora sei que foi - disse ele.

 

- Sabe? Já pensou se não foi você que quis que se mantivessem a esse nível? Sexo é coisa que se pode gerir. Amar é complexo.

 

- Sei que foi só sexo. Por isso, estou a sofrer este ciúme ilógico.

 

- Sexo normalmente esgota-se.

 

- E foi o que aconteceu. O sexo esgotou-se e não ficou nada.

 

- Excepto continuar fascinado por ela. Ainda a deseja. Há uma parte de si que ainda não cortou com ela... o que é uma das razões pela qual não é capaz de falar com o juiz acerca dela.

 

O pensamento cíclico desgastava-o. Estava demasiado cansado para aquilo. Saiu da cama. O baque cavo do diário do pai a cair no chão trouxe-lhe à memória a leitura da noite anterior. A pena e a aversão que sentia por ele. Estava atónito com a fraqueza do pai, essa faceta patética completamente desconhecida de Javier. Que forte a mãe tinha sido, que apaixonada, para acreditar no pai e como tinha sido tão mal paga, dada a ambivalência e insaciável sexualidade dele. Era frágil, aquele génio, e outra pessoa com queda para a indignidade.

 

Vestiu o fato de treino e desceu. O telefone piscava. Ouviu a única mensagem que lhe tinham deixado, pensando: «Ninguém me telefona; tenho centos de chamadas no emprego e nenhuma em casa.» A voz de Paco fez-se ouvir, dizendo-lhe que o torero Pedrito de Portugal tinha torcido um joelho nos treinos e havia uma vaga para segunda-feira à tarde, precisamente o dia em que ele fornecia os touros. Tinha a certeza de que iam dar uma oportunidade ao Pepe.

 

Falcón correu até ao rio e seguiu a sua margem escura até à Torre del Oro. Um corredor cumprimentou-o com a cabeça quando se cruzaram e outro fez-lhe uma meia saudação. Tinha-se tornado um frequentador habitual, desde que tinha acabado com a loucura do ciclismo parado.

 

Os seus estranhos canais estavam a abrir-se. Não tinha mencionado a Alicia as suas lágrimas burlescas a propósito do filme de Ramón e Carmen. De onde é que lhe vinha aquele sentimentalismo? Não havia lugar para ele no seu trabalho. O pensamento paralisou-o. Estava completamente sem fôlego. Tinha estado inconscientemente a correr com velocidade, para se afastar dos pensamentos irritantes. Teria sido por isso que tinha ido para a polícia? Serviria a sua necessidade de uma observação desapaixonada das terríveis crises da vida? Era uma intuição? Correu para casa, pegou num «ABC» e viu a notícia do funeral de Salgado.

 

Quando se viu despido para o banho, os progressos feitos com a corrida já se tinham evaporado. As costas dobravam-se com os nervos e tinha-se aberto um furo no estômago, com grandes semelhanças com o buraco negro de Alicia. Todos os pensamentos positivos pareciam ser engolidos por ele e isso assustou-o muito, pela ideia de que tudo, incluindo a sua sanidade, podia ser absorvido. Tomou um Orfidal.

 

Falcón telefonou ao irmão, antes que ele saísse para o prado, a fim de recolher os touros que ia levar para a tourada de segunda-feira, em Sevilha.

 

- Como está a perna? - perguntou Falcón.

 

- A perna está boa - disse Paco. - Já há notícias?

 

- Ainda não.

 

- Olha, outra coisa - disse Paco. - Já somos oito para domingo.

 

Silêncio.

 

- Tinhas-te esquecido, não tinhas?

 

- Tenho tido muito que fazer. Lembras-te do Ramón Salgado, o agente do Papá? Foi assassinado ontem de manhã. Tenho esse e mais dois assassínios, por isso não tive...

 

- Alguém matou o Ramón Salgado? - estranhou Paco.

 

- É verdade. O funeral é esta tarde.

 

- Não vejo por que é que alguém se havia de dar a esse trabalho.

 

- Pois olha, alguém deu.

 

- De toda a maneira... somos oito para domingo.

 

- Lembra-me lá.

 

- Vamos para tua casa almoçar no domingo; dormimos todos aí, vamos almoçar perto do rio no dia seguinte; depois é a tourada, em seguida jantar fora. Voltamos aqui para a finca na terça de manhã.

 

- Tinha-me esquecido.

 

- É melhor falares à Encarnación.

 

Desligou e telefonou para a Encarnación, que disse que podia preparar os quartos, mas não podia cozinhar no domingo; mas tinha uma sobrinha que iria no seu lugar. Disse-lhe para deixar dinheiro, que ela comprava toda a comida ao fim da manhã. Foi ao multibanco da calle Alfonso XII e levantou

30 mil pesetas. O telefone estava a tocar, quando voltou, às nove horas. Era Pepe Leal, a dizer que lhe tinham dado a vaga de Pedrito de Portugal. Falcón ofereceu-lhe dormida, mas ele preferiu ficar com a quadrilha no Hotel Cólon.

 

- Apareço no domingo à noite. Para conversarmos. Podes preparar-me para segunda-feira, acalmar-me os nervos.

 

Falcón falou-lhe do famoso touro retinto de Paco e sentiu a excitação do rapaz, agora que tudo se estava finalmente a compor para ele.

 

Às 9h. 30, Falcón estava a telefonar a Felipe, o perito de investigação criminal, para saber se tinha descoberto alguma coisa. Não tinham sido deixadas impressões digitais em casa de Salgado. Estavam a trabalhar nas amostras de sangue, mas até ali, todas remetiam para Salgado. Falcón telefonou ao médico forense, perguntando o que tinha acontecido ao relatório da autópsia. O médico forense ainda não o tinha redigido, porque estavam à espera que viessem do laboratório uns resultados de análises ao sangue.

 

- Quando vi a vítima em cima da mesa, reparei que tinha três contusões no olho direito. Todas as outras eram atrás e aos lados da cabeça. Estas eram as únicas três na frente. E eram diferentes. Não foram feitas por nada duro e afiado, mas por algo sem arestas e relativamente macio, como um punho. O assassino esmurrou-o três vezes na cara e pergunto-me por que o teria feito. Pela maneira como as marcas se apresentam, percebi que lhe bateu com a mão esquerda, mas sei que o assassino é destro.

 

- Como?

 

- Se quiser cortar as pálpebras a alguém que já esteja preso a uma cadeira, vou por trás e puxo-lhe a cabeça. Ora, a incisão inicial do bisturi no olho esquerdo da vítima foi feita da esquerda para a direita, o mesmo acontecendo com o olho direito.

 

     - Então por que acha que ele lhe bateu com a mão esquerda?      

 

- Porque a direita estava ocupada.

 

- De que maneira?

 

- Estava entalada na boca da vítima. Ele estava a ser mordido.      

 

- Pode provar isso?

 

- Depois de o ter cloroformizado para efectuar a operação, retirou-lhe as peúgas da boca, para que a vítima não sufocasse enquanto estava inconsciente. Quando a vítima recobrou os sentidos, voltou a enfiar-lhe as meias na boca; mas ou não foi suficientemente rápido ou houve um acto reflexo da vítima.

 

- Mas como é que sabe isso tudo?

 

- Encontrei sangue que não era dele na boca e nas meias. A vítima é O+ e este é AB+. Acabei de dar instruções para se fazer um teste de ADN.

 

Desligou e o telemóvel começou a tocar. Era Felipe com a confirmação de que uma das manchas de sangue era AB+. A posição dessa marca ficava a 1,20 m da perna da frente da cadeira, na direcção da porta. Enquanto falava, o telefone da rede fixa começou a tocar. Desta vez, era Consuelo Jiménez.

 

- Como obteve este número?

 

- Telefonei para a Jefatura e disseram-me que ainda não tinha chegado.

 

- Eles não dão este número e já tinha o número do meu telemóvel.

 

- Tinha este número há muitos anos. O Ramón deu-mo como um favor. Costumava falar com o seu pai de vez em quando.

 

- Tem alguma coisa para me dizer sobre o Sr. Carvajal?

 

- Li no jornal que o Ramón Salgado foi assassinado pelo mesmo assassino do meu marido. Não me disse que lhes tinham cortado as pálpebras.

 

- Os jornais estão a ser sensacionalistas - disse e deixou o assunto por ali.

 

- Eu e o Ramón éramos bons amigos.

 

- Mas não tão bons amigos que se lembrasse do nome dele no início da investigação.

 

- Fiquei muito perturbada com o nível de intrusão do assassino; estava apenas a exercer um certo controlo sobre as intrusões dos investigadores... foi só.

 

- Já lhe ocorreu que o atraso em estabelecermos a ligação pode ter custado a vida ao Ramón? - disse ele, esticando a verdade até ao limite, para tentar ganhar alguma vantagem emocional.

 

- Ele disse-me que ia ter consigo.

 

- Quando?

 

- Temos falado todos os dias, desde que o Raúl foi assassinado. Não verificou os extractos telefónicos?

 

- Ainda não li esse relatório.

 

- O Ramón era um homem muito sensível e cuidadoso.

 

- Quando lhe disse que nos íamos encontrar?

 

- Devia ter sido ontem ao almoço.

 

- Disse-lhe o que queria discutir comigo?

 

- Não.

 

- Não lhe pareceu que fosse coisa que a implicasse, pois não?

 

- Por que havia de ser?

 

- Ele falou-lhe do nosso pequeno acordo?

 

- Não.

 

- Ele ia dar-me informações que apontavam inimigos de Raúl e, em troca, eu deixava-o passar um dia no estúdio do meu pai. Sabe por que é que ele queria isso? Isto é, passar um dia no estúdio do meu pai. Disse que não era por razões comerciais.

 

- Ele era muito dedicado ao seu pai. Toda a vida e sucesso do Ramón se deviam ao génio do seu pai.

 

- Então o que seria? Queria comunicar com o espírito do meu pai?

 

- O cinismo não lhe assenta bem, don Javier.

 

- Até onde ia o seu conhecimento do Ramón... há quanto tempo?

 

- Há quase vinte anos.

 

- Sabia que ele foi casado?

 

Silêncio.

 

- Sabia que a mulher morreu de parto?

 

Silêncio

 

- Sabia que no seu... - Falcón travou-se; a futilidade estava subitamente a tomar conta dele.

 

O fato pesava-lhe nos ombros.

 

- O quê? - perguntou ela.

 

- Conte-me o que sabe do Ramón Salgado. Ele foi uma presença constante na minha vida desde que me lembro. Até apareço no filme do assassino, intitulado «La Familia Salgado». Mas agora dou-me conta de que não sei nada sobre ele, à parte os desinteressantes aspectos superficiais da sua existência.

 

- Não quero acreditar que ele não me tenha contado que tinha sido casado. Falávamos de tudo.

 

- Talvez não de tudo - disse Falcón.

 

- Bom, por exemplo, disse-me que tinha matado um homem.

 

- O Ramón Salgado matou alguém?

 

- Disse que tinha sido um acidente... um terrível acidente, mas tinha matado alguém e isso pesava-lhe muito na consciência.

 

- Por que é que havia de lhe contar uma coisa dessas?

 

- Porque eu tinha acabado de lhe contar tudo a meu respeito. Estava bêbeda e deprimida, depois do meu segundo aborto e do fim da minha relação com o filho do duque. Contei-lhe do aborto anterior e de como tinha ganho o dinheiro e... já sabe, a conversa tornou-se muito pessoal.

 

- São segredos muito grandes para se partilhar.

 

- Éramos duas pessoas solitárias e decepcionadas e abrimo-nos um ao outro num café da Gran Via, sob efeito do álcool.

 

- Disse quando matou esse homem?

 

- No início dos anos 60, em Tânger. Empurrou alguém, numa discussão de bêbados. O outro caiu e bateu com a cabeça no sítio errado e morreu. Foi tudo abafado. Pagou uns dinheiros e saiu do território.

 

- Não lhe pareceu que estivesse a mentir?

 

- Por que havia ele de admitir algo tão terrível?

 

- Além de a fazer sentir-se melhor consigo própria? Bem, dá ao Ramón uma certa mística... algo que faltava quase totalmente na sua personalidade.

 

- Tudo o que lhe posso dizer é que não foi o senhor que o ouviu dizer aquelas palavras. Não viu o que lhe custou.

 

- Muito bem - disse Falcón. - É verdade. Isso foi há quarenta anos...

 

- Quando investigou o assassínio do Raúl, recuou isso tudo. Disse que era para conhecer os antecedentes. Pois aqui tem mais antecedente.

 

- O problema é que eu e os meus superiores precisamos agora mais de presente. Nem tenho como demonstrar que o seu marido e o Ramón estiveram em Tânger juntos. Nem essa ténue ligação existe.

 

- O Raúl apresentou o Ramón ao seu pai. Deu-lhe uma carta de apresentação para levar para Tânger.

 

- O que aconteceu entre o Raúl e o meu pai? - perguntou Falcón, momentaneamente fascinado com a divagação. - Tanto quanto sei, depois de virem para Sevilha, nunca mais se viram.

 

- Não sei. Nunca me falou disso. Perguntei-lho e ele ignorou a pergunta.

 

- Muito bem - disse Falcón, voltando ao assunto. - Fale-me das relações mais recentes do Ramón com o seu marido. Que relações eram essas?

 

- Foi o Ramón que a apresentou ao Raúl, não foi?

 

- Doze anos atrás são agora presente, para si - admirou-se ela. - Quando é que a história começa?

 

- Que tal na Expo’92? Os nomes que lhe dei estavam ligados através...

 

- Isso foi só há nove anos. Está a ficar mais moderno, inspector jefe.

 

- Se tivessem abusado de si em criança, quanto tempo pensa que ia guardar isso consigo?

 

Silêncio, tão profundo e prolongado que Falcón teve de perguntar se ela ainda estava lá.

 

- Que nomes estão implicados e o que têm a ver com abuso de crianças? - disse ela, agora zangada.

 

- Isso é parte de um inquérito policial e tem de permanecer confidencial. Mas sabe um nome... Eduardo Carvajal.

 

- Se está a dizer que, quer o Ramón quer o meu marido, tinham alguma coisa a ver com a rede de pedofilia, ter-me-á a mim e aos meus advogados a responder-lhe.

 

- Mantenha-se atenta aos jornais - disse ele; e ela atirou-lhe com o telefone. Segundos depois, o telemóvel soava. Ainda não tinha largado os telefones desde que voltara do multibanco. O mundo inteiro convergia para ele.

 

- Onde está? - perguntou o comisario Lobo.

 

- Ainda não consegui sair de casa - disse Falcón. - Tenho recebido chamadas umas atrás das outras.

 

- Óptimo. Vou estar num daqueles cafés da Plaza de Armas, na ponta mais próxima da avenida del Cristo de la Expiración. Quinze minutos.

 

Lobo nunca se tinha encontrado com ele fora do gabinete. E que lugar para se encontrarem... Isso só podia querer dizer que o assunto da conversa era demasiado sensível para os ouvidos no betão das paredes da Jefatura.

 

Falcón chegou ao pátio exactamente quando o telefone fixo tornou a tocar. Voltou para dentro de casa, encostou o auscultador ao ouvido. Silêncio.

 

- Diga.

 

- O que pensas agora do Ramón Salgado, tio Javier?

 

- Hola, Sérgio - disse ele, a única coisa que cortou a subida da adrenalina.

 

- Não me chames isso.

 

- Então não me chames tio - disse Javier.

 

- Não respondeste à minha questão sobre a colecção Jerónimo Bosch do teu velho amigo... o lugar perfeito para as guardar, não achas?

 

- Eram obscenas, mas, sabes, temos leis neste país contra o abuso de menores e temos penas específicas e severas para punir os agressores. Não tens de...

 

- Estou a ver por onde estás a ir agora, inspector jefe. O gosto do Raúl por rapariguinhas e o do Ramón por rapazes torturados... muito interessante.

 

- E Eduardo Carvajal.  

 

   Silêncio.

 

- Pára com as mortes, Sérgio. Não tens de continuar com isto.

 

- Não matei ninguém. Não tive de o fazer.

 

- Como é que está o teu polegar? - perguntou Falcón e a chamada caiu.

 

Apertou o auscultador contra a cabeça. Tinha-o perdido. Todas as perguntas e estratégias lhe chegaram à mente com segundos de atraso. Atirou com o telefone e saiu para se encontrar com Lobo.

 

Ao caminhar pela calle Pedro del Toro pensou na natureza do silêncio quando mencionou o nome de Eduardo Carvajal. Foi o silêncio de alguém que nunca tinha ouvido o nome antes e percebeu que estava a apontar para outro beco sem saída.

 

A Plaza de Armas tinha sido a estação principal de Sevilha, mas foi convertida em abrigo para as pessoas sem destino que rondavam as lojas, cafés e bares de comida rápida ali localizadas. Lobo estava sentado sozinho numa mesa próxima da velha entrada. Tinha duas chávenas de café na frente e trazia um casaco demasiado quente para o estado do tempo.

 

- Tem um aspecto cansado, inspector jefe.        

 

- Acabei de falar com o nosso assassino.

 

- Ainda se está a divertir?

 

- Não estava preparado para ele, depois de todas as chamadas que tive esta manhã. Confundiu-me ao chamar-me «tio» e eu nem tive a presença de espírito para lhe perguntar como conseguiu o meu número.

 

- Que número?

 

- O número de telefone antigo do meu pai... ele nunca o dava.

 

- Talvez o tenha encontrado na casa de Ramón Salgado.

 

- É possível.

 

Falcón fez-lhe um resumo dos telefonemas. Lobo passava distraidamente os dedos pela borda da mesa.

 

- Ele pareceu surpreendido com a relação que estabeleceu dos factos - disse Lobo.

 

- Reconheço que isso me perturbou.

 

- E não temos informações da Sra. Jiménez sobre as relações entre o marido e o Carvajal, excepto ter ficado furiosa com a insinuação. O que vai fazer agora, inspector jefe?

 

- Continuo a achar que devo mandar o computador para os Costumes; pode ser que haja uma ligação ao Carvajal através desse material.

 

- A razão pela qual estamos aqui pode ter alguma coisa a ver com isso. O nome da MCA Consultores chegou-me já por outra fonte. Houve uma fuga. Falou com alguém?

 

- Mencionei os nomes de alguns administradores à Sra. Jiménez, mas não o da empresa. E quando vi a natureza do material do computador de Salgado, decidi contar ao juez Calderón a minha nova teoria, o que envolvia mencionar-lhe a MCA.

 

- Então é essa a nossa fuga - disse Lobo. - Foi como isso chegou ao comisario León, o que é muito interessante.

 

- Teria o juez Calderón contado ao Dr. Spinola ou ao fiscal jefe Bellido?

 

- Como é que julga que o juez Calderón chegou a juiz antes de fazer trinta e seis anos? - perguntou Lobo.

 

- Parece uma pessoa muito capaz.

 

- E é, mas o pai dele também é casado com a irmã mais nova do Dr. Spinola. São parentes.

 

- Então, como é que lhe apareceu outra vez a MCA? - perguntou Falcón.

 

- Estamos todos à mercê das nossas secretárias - disse Lobo.

 

- E em que é que isso vai afectar a minha investigação?

 

- Aconteça o que acontecer, ficaremos com uma indicação do nível de culpa - disse Lobo.

 

Sábado, 21 de Abril de 2001, galeria de Salgado, calle Zaragoza, Sevilha

 

A galeria estava aberta, mas vazia. No andar de cima, Greta e Ramírez estavam sentados ao pé um do outro, percorrendo a lista dos artistas que ela lhe tinha dado no dia anterior. Ela olhava para baixo e falava. Ele admirava o cocuruto dela. Afastaram-se quando Falcón chegou ao cimo das escadas; e teve a certeza de ter ouvido soltar-se um elástico sexual. Pediu a Greta para os deixar, para falarem por momentos.

 

- Encontrámos sangue - começou Falcón, conquistando a atenção de Ramírez.

 

- Na casa do Salgado?

 

- No chão e na boca dele.

 

- Na boca dele?

 

- O Salgado mordeu Sérgio, quando ele lhe ia meter as peúgas outra vez na boca.

 

Ramírez sentou-se para trás e sorriu, com os braços bem abertos.

 

- Agora só precisamos de o encontrar - disse. - Pelo menos o juez Calderón vai ficar feliz por saber que, quando o fizermos, já pode montar um caso.

 

- O trabalho com a Greta...

 

- Tem sido um prazer.

 

- Crie uma lista de todos os artistas que tenham usado filmes ou vídeos nos seus trabalhos, com moradas quer em Sevilha quer em Madrid.

 

- Madrid?

 

- Ele enviou-nos uma coisa de Madrid. Pode ainda ter casa lá.

 

- Que grupo etário procuramos?

 

- Vá até aos quarenta e cinco, só por segurança... desde que sejam fortes e saudáveis. Conhece alguém nos Costumes que pudesse ver aquele material do computador do Salgado e dar-nos uma opinião sobre de onde vem?

 

Ramírez confirmou com a cabeça; era um homem sempre pronto a tecer favores. Passaram em revista o perfil de Sérgio, só para confirmarem. Falcón virou-se para as escadas, preparando-se para sair.

 

- Se a Greta souber de alguém dessa lista condensada que tenha tido qualquer tipo de educação francesa, ou que tenha passado uns tempos em França ou no Norte de África, assinale-o.

 

Falcón saltou por cima da fita da barreira de polícia na casa de Salgado e entrou. A casa estava sem ninguém e, tendo cessado a actividade relacionada com o cenário do crime, ficara sem vida. Não havia sequer um pouco de tristeza. Tinha apenas a esterilidade de um homem de gostos emprestados. As paredes do andar de baixo tinham sido pintadas há pouco. Não havia bricabraque, nem fotografias, nem coisas amontoadas. O mobiliário era todo de linhas depuradas. Na sala de estar, havia apenas um quadro na parede, um acrílico abstracto quase sem cor. No escritório, a meio da estante, estava a única fotografia à vista: Francisco Falcón e Ramón Salgado, abraçados um ao outro, a sorrir.

 

Subiu até ao quarto do último andar, que dava para o pequeno terraço no telhado, por onde pensavam que Sérgio teria entrado. Felipe e Jorge tinham-no deixado exactamente como o tinham encontrado. Até a chave da porta estava na posição original. Pestanejou e telefonou a Felipe, perguntando onde tinha deixado a chave.

 

- Voltámos a pô-la na porta, para não se correr o risco de andar a ser chutada pelo chão.

 

- Nesse caso... ele voltou cá - disse Falcón.

 

- Onde estava a chave?

 

- No chão, perto da porta, onde a encontrámos da primeira vez. Por que voltaria alguém ao local do crime, Felipe?

 

- Porque deixou alguma coisa aí - alvitrou Felipe.

 

- Quer dizer que ele perdeu qualquer coisa - disse Falcón e uma palmeira alta no jardim das imediações balouçou com o vento e fez barulho com as folhas.

 

Os pêlos eriçaram-se no pescoço de Falcón e apurou o ouvido. Ainda estaria lá? Não à luz do dia. Começou uma busca lenta e metódica à casa. Estava vazia. Voltou à sala onde tinham encontrado o corpo de Salgado. Ficou de pé em frente da secretária e reconstituiu mentalmente a cena.

 

Salgado recuperou quando Sérgio lhe estava outra vez a encher a boca com as peúgas. Mordeu-o. Sérgio retaliou batendo-lhe três vezes no rosto. Depois recuou, apertando o polegar ou o indicador feridos. Onde iria? A cozinha era o local mais próximo; arrancou a luva de borracha e lavou a ferida. Estava provavelmente em pânico e ainda a sangrar, sem nada para proteger o corte, sem pensos por perto.

 

Papel de cozinha. Arrancou um pedaço de papel de cozinha, cobriu a ferida e foi até à casa de banho. Devia estar abalado, nesta fase, com o ânimo já não tão firme como antes. Talvez também estivesse zangado. Queria acabar aquilo e sair o mais depressa possível. Portanto, voltou para junto de Salgado, montou o terrível dispositivo, fez o telefonema e assistiu à morte da vítima. Depois saiu, com pressa.

 

«Por que telefonou esta manhã? Estava preocupado? Quando desligou? Quando lhe perguntei pelo polegar. Isso deu-lhe a resposta? Deve ter dado. Ficou a saber que eu não sabia que tinha sido o indicador.»

 

As imagens na cabeça de Falcón associaram-se. Bobinas de memória desenrolavam os seus segredos. A mãe entrava na casa de banho, para lhe dar banho e esfregar as costas com sabão. Já estava pronta para sair para uma festa. Tirou os anéis e pousou-os numa concha à beira da banheira.

 

Falcón voltou ao lava-loiças da cozinha. Agora, percebia. Fora assim que Salgado ganhara três murros na cara. O anel estava a dar-lhe trabalho. Devia ter puxado o anel por cima da articulação e, quando Sérgio descalçou a luva rasgada, caiu no lava-loiças. Teria? Era um lava-loiças de aço inoxidável. O barulho de um anel de metal a bater no lava-loiças teria despertado a sua atenção mas se entrasse directamente pelo buraco do esgoto... Meteu os dedos no buraco. Tinha uma membrana de borracha à volta. Não fez barulho. Devia ter descido directamente para o triturador de lixo. Sacou da lanterna de bolso. Não se via nada dentro do buraco. Telefonou a Felipe e perguntou-lhe acerca do lava-loiças, ao que o perito reconheceu ter-lhe feito apenas uma inspecção visual. Havia uma caixa de ferramentas por estrear num armário por baixo das escadas. Em quarenta minutos, Falcón tinha desmontado o triturador. Levou-o para a Jefatura. Felipe e Jorge ainda estavam a trabalhar. Abriram o invólucro do aparelho e desmantelaram as peças de trituração, que pareciam estar encravadas. Rasparam todas as matérias vegetais para uma placa de vidro e Jorge espalhou-as. E ali estava ele: um anel de prata, triturado.    

 

- Deve ter tentado tirá-lo - disse Felipe. - Não conseguiu, decidiu destruí-lo e isso encravou o aparelho. A partir daí restava-lhe desmontar tudo, por isso, deixou ficar.

 

- Consegue recompô-lo, para ver que aspecto tinha? - pediu Falcón.

 

Felipe atirou-se ao trabalho e, quase imediatamente, pediu a Jorge para voltar à matéria vegetal da câmara da trituradora. Tinha detectado um engaste, o que queria dizer que devia faltar uma pedra.

 

- O que é mais estranho nisto - comentou Felipe - é que tenho a certeza de que era originalmente um anel de mulher. Olhe...

 

Pôs o anel ao microscópio e, quando Falcón espreitou, apontou-lhe o aro do anel.

 

- Foi utilizada uma qualidade de prata diferente para o alargar. Vê-se onde foi cortado e inserido metal novo. Foi bem feito. A única diferença está na cor da prata.

 

- O que sabe sobre pratas?

 

Felipe abanou a cabeça. Jorge anunciou que encontrou a pedra. Era uma pequena safira. Fixaram o anel em cima de plasticina e puseram a pedra no lugar.

 

- É um anel de mulher, não há dúvidas - disse Felipe.

 

- Por que é que um homem usa um anel de mulher?    

 

- Uma amante? - ponderou Felipe.

 

- Se uma mulher lhe der um anel como recordação, usa-o? Dava-se ao trabalho de mandar alargá-lo e usava-o?

 

- Talvez não. Quereria mantê-lo intacto - disse Jorge.

 

- Diria que é mais provável ter pertencido a uma mulher que morreu. É um bem de herança.

 

- Mas ainda não respondeu à sua pergunta: por que é que um homem usa um anel de mulher? Tem de ter um significado.

 

- O Ramírez usa um anel de mulher - disse Jorge. - Pergunte-lhe.

 

- Como sabe?

 

- Nunca se interrogou por que é que ele usa aquele anel com os três diamantezinhos engastados em ouro? Quero dizer... sobretudo o Ramírez. Eu perguntei-lhe uma vez, num bar - disse Jorge. - Era o anel da avó. Não tinha irmãs. Mandou-o alargar. Era muito chegado à avó.

 

- O que é que isto nos diz sobre Sérgio?

 

- Não tem irmãs - disse Jorge e os agentes riram.

 

- Temos alguém que saiba de pratas? - perguntou Falcón.

 

- Já recorremos a um joalheiro na cidade. Reformou-se, mas ainda tem uma oficina na Plaza del Pan. Mas não sei se o vai encontrar lá, num sábado à tarde.

 

A oficina estava fechada e ninguém, nas lojas em redor, tinha uma morada ou telefone de contacto com o dono. Falcón tentou outros joalheiros, mas ou estavam ocupados ou não tinham competência para o efeito. Voltou à calle Zaragoza e bateu à porta da galeria, desta vez, para o caso de Ramírez ter feito avanços em relação a Greta. A porta estava fechada à chave. As lojas em volta estavam a fechar para almoço.

 

Pegou no saco de prova que continha o anel e veio-lhe uma lembrança qualquer à cabeça, muito rápida, como uma mosca de anzol na água em relação ao olho de um peixe. Perdeu-a na escuridão e lembrou-se do pai dizer que eram as ideias que valiam alguma coisa, as que vinham das profundezas e desapareciam. Voltou a pôr o saco no bolso. A mulher que estava a fechar a loja do lado disse-lhe que Greta tinha ido, provavelmente, ao El Cairo para comer qualquer coisa.

 

Greta e Ramírez estavam no bar, a comer tapas: lulas e pimentos recheados com pescada. Bebericavam cerveja. Os joelhos de ambos tocavam-se. Falcón mostrou o anel a Ramírez. Tirou-o e observou-o à luz, enquanto Falcón lhe fazia o relatório sobre ele.

 

- Não voltou por ele por causa de ser valioso - disse Ramírez. - Prata e uma safira não são caras.

 

- Tem de ter significado - disse Falcón. - Foi por isso que ele me telefonou esta manhã. Precisava de saber se eu o tinha encontrado.

 

- Acha que ele ficaria aborrecido se, de alguma forma, tivéssemos percebido o seu significado?

 

- Há uma história evidente para isto. Ser um anel de mulher, alargado para caber num dedo de homem, dá-lhe logo uma história.

 

- Mas qual é a história? E como e porquê devemos percebê-la?

 

- Lembra-se da chamada em que ele me disse que tinha uma história para contar e que eu não ia ser capaz de o impedir? Isto faz parte dessa história e acho que lhe pusemos as mãos demasiado cedo. Se decifrarmos a história do anel, ficaremos a saber demasiado a respeito do trabalho dele. De uma maneira ou de outra, isso há-de apontar-nos o caminho para ele.

 

- Mas nós não sabemos se é assim - disse Ramírez, baralhado com a importância que Falcón estava a atribuir a uma prova tão pequena.

 

- Mas vamos saber - disse Falcón, virando-se para a porta. - Vamos descobrir tudo.

 

Saiu para a rua de rajada, com os rostos dos dois bem viva na mente. Greta parecia-lhe preocupada e Ramírez pensava claramente que ele estava desequilibrado.

 

De regresso à casa da calle Bailén, foi directo para o estúdio. Sabia que o resto da casa estava despojada de pertences pessoais do pai. Encarnación tinha tratado de tudo nas semanas que se seguiram à morte. Abriu as portadas da sala e pôs-se a andar à volta das mesas amontoadas no meio. Estava a trabalhar a memória da mãe a dar-lhe banho, depois de tirar os anéis. Onde estavam as jóias dela? Naturalmente, a Manuela havia de ter ficado com elas. Ligou-lhe pelo telemóvel. Ela disse que nunca viu nada disso. Era muito miúda para usar jóias, quando a Mamá tinha morrido e, mais tarde, quando perguntou ao pai o que lhes tinha acontecido, confessou que as tinha perdido na mudança de Tânger.

 

- Perdeu? - espantou-se Falcón. - Não se perdem as jóias da mulher.

 

- Sabes como era entre mim e ele - disse Manuela. - Ele estava convencido de que eu só me interessava por dinheiro, por isso, se eu lhe pedisse alguma coisa, obrigar-me-ia sempre a implorar. Em relação às jóias da mãe, não lhe dei esse prazer. Não tinha nenhuma que fosse assim tão especial, tanto quanto me lembro.

 

- De quais te lembras mesmo?

 

- Ela gostava de anéis e broches, mas não de braceletes ou colares. Dizia que eram cadeias para nos prenderem. Nunca mandou furar as orelhas também, pelo que só tinha brincos de mola. Não gostava de jóias caras e, como era morena, preferia a prata. Acho que o único anel que tinha em ouro era a aliança de casamento - adiantou, como se estivesse à espera da pergunta. - Para que precisas tu, maninho, de saber isto num sábado à tarde?

 

- Preciso de me lembrar de uma coisa.

 

- O quê?

 

- Se eu soubesse...

 

- Estou a brincar, Javier. Precisas de abrandar. Está a levar o trabalho de uma forma demasiado... pessoal. Ganha alguma distância dele, hijo. O Paco contou-me que te tinhas esquecido do almoço de amanhã.

 

- Também vens?

 

- Sim; e levo o Alejandro e a irmã.

 

Tentou lembrar-se dos pormenores da dieta da irmã de Alejandro e desligou. Foi à arrecadação onde tinha descoberto os diários e procurou em todas as caixas. Não encontrou nada. A única coisa que viu e que não tinha visto anteriormente foi um rolo com cinco telas, das quais, quando as abriu, se soltou um pequeno diagrama, que caiu para o meio das caixas. Abriu as telas no estúdio, mas não as reconheceu. Não eram obras do pai. Camadas e camadas de tinta acrílica, provocando um efeito luminoso, como um luar coado por nuvens. Voltou a enrolá-las.

 

Já estava escuro e caiu no chão, apercebendo-se de que se tinha esquecido de comer e de ir ao funeral de Salgado. Sentou-se encostado à parede, com as mãos penduradas entre os joelhos. Estava a ficar obsessivo. A confusão do estúdio do pai parecia ter-lhe entrado na cabeça. O cérebro estava tão conturbado como um emaranhado de fio de pesca. Telefonou a Alicia e foi remetido para o atendedor de chamadas. Não deixou mensagem.

 

Tirou um livro da estante e percebeu que havia muito espaço por trás dos livros. A sua obsessão ressurgiu. Procurou por cima e por baixo das estantes, até que, por trás dos livros de arte, encontrou uma caixa de madeira que reconheceu do toucador da mãe. Lembrava-se até do seu dedito no meio das jóias, uma arca de tesouro de um livro de aventuras.

 

A caixa tinha um desenho mourisco geométrico, na tampa e dos lados. Não conseguia abri-la e não tinha fechadura à vista. Procurou durante quase uma hora, até que torceu uma pequena pirâmide de madeira e a tampa saltou por efeito de uma mola.

 

A visão das jóias da mãe, trouxe-a até ele de uma forma tão vívida que aproximou a cara, para ver se, depois de tantos anos, ainda havia vestígios do cheiro dela. Não havia nada. Os metais eram frios ao toque. Espalhou as peças em cima da mesa. Brincos de mola, cachos de uvas de prata pobre. Um broche com uma cimitarra de prata cravejada de ametistas, um grande cubo de ágata montado num aro de prata. Como a Manuela tinha dito, não havia nada em ouro. A aliança de casamento foi provavelmente enterrada com ela.

 

Olhou para todas as peças e esperou que a bendita memória voltasse, a que quase recordara fora da galeria de Salgado. Tudo o que recordou foi a concha cheia de anéis, da sua visão fugidia, em que ele se sentava no banho enquanto a mão ensaboada da mãe passava para cima e para baixo nas suas pequenas costelas.

 

Excertos dos diários de Francisco Falcón

 

2 de Julho de 1948, Tânger

 

Esguicho o óleo sobre a paleta. Espalho-o com o pincel. Procuro que as cores se misturem umas nas outras.

 

A P. está deitada no divã. Nua. O braço repousa sobre uma almofada cor-de-rosa. Os pés cruzam-se no tornozelo. O corpo dela está mais cheio pela gravidez. Tem um colar, que eu lhe apertei, qual gargantilha, ao pescoço (ela não gosta disso) e que lhe cai pelas costas macias. Pressiono a tinta contra a tela. Desliza com suavidade. O óleo está a empurrar o pincel. Estou quase. Estou mesmo quase. Aparece a forma.

 

17 de Novembro de 1948

 

A P. está enorme de grávida, a barriga está completamente distendida, os seios, com os mamilos castanhos largos, separaram-se e pendem como sacas nos flancos. Tem um cheiro diferente. Leitoso. Enjoa-me. Não toco em leite desde criança. Só a memória da nata a forrar-me a boca e a língua e o cheiro a vaca a encher-me as cavidades da cabeça fazem-me vómitos. A P. bebe um copo de leite morno antes de se deitar. Não consigo dormir com o copo vazio no quarto. Não trabalho desde Agosto.

 

12 de Janeiro de 1949, Tânger

 

Tenho um filho com 3,850 kg. Olho para a cara amassada e vermelha, com um tufo de cabelo preto, e tenho a certeza de que nos entregaram o bebé chinês de alguém, por engano. Os gritos da criança enervam-me e aflige-me a ideia da sua presença impositiva em casa. A P. quer chamar-lhe Francisco, o que me parece confuso. Ela diz que lhe chamaremos sempre Paco.

 

17 de Março de 1949, Tânger

 

Dirijo agora os projectos de construção do R. Trabalho com o arquitecto, um galego meditabundo, de Santiago, cujas ideias sombrias precisam de ser avivadas. Espalho luz pelas suas estruturas sólidas e ele foge dela como um vampiro. O americano para quem estamos a construir o hotel parece capaz de me dar um beijo.

 

17 de Junho de 1950, Tânger

 

A P. está grávida. Passei o estúdio para fora de casa, para ganharmos espaço. Encontrei um lugar na baía, com luz de norte, e que dá para Espanha. Instalei uma cama de pessoa só e uma rede mosquiteira. Pus uma tela na parede, mas não me vem cor nenhuma à cabeça.

 

20 de Junho de 1949, Tânger

 

O R. casou hoje com a sua mulher-criança. Gumersinda (o nome da avó passado de geração) tem o rosto e a doçura de um querubim... É um homem diferente, ao pé dela, calmo, respeitador, atencioso e, suponho que seja isso, completamente apaixonado com a imagem que tem dela. Não consigo extrair dela mais do que um gritinho agudo. Desfaço os miolos à procura de temas de conversa - bonecas, ballet, fitas - e sinto-me lupino na sua presença.

 

1 de Janeiro de 1950, Tânger

 

O hotel ficou pronto antes do Natal e comemorámos o Ano Novo com uma exposição das minhas paisagens abstractas, a que veio le tout Tânger. Vendi tudo no primeiro dia. O C. B. comprou duas peças e puxou-me à parte com estas palavras: «Isto é magnífico, Francisco, realmente magnífico. Mas, sabe, continuamos à espera.» Insisto que explique e ele diz: «A verdadeira obra. O regresso ao corpo, Francisco. A forma feminina. Só você sabe fazê-lo.»

 

Esta tarde, peguei num dos desenhos a carvão da P. e contei-lhe o que o C. B. me tinha dito. Ela aceitou posar para mim. À medida que se despia, senti-me como um cliente com a prostituta e peguei no desenho, cuja simplicidade continua magnificente. A P. disse: «Pronto.» Precisamente o que uma puta diria. Voltei-me. Os ombros e os braços estão pesados, os seios olham cada um para seu lado, a barriga pende-lhe por cima do bosque de pêlos púbicos. As coxas estão grossas, os joelhos descaídos. Tem um joanete no pé esquerdo. O verde dos olhos nadou para mim como uma maré de azeite. Olhou por cima de mim para o desenho antigo. «Já não sou assim», disse. Disse-lhe para se vestir. Saiu. Olhei para o desenho, como um homem que sabe que não consegue fazê-lo com a puta. Pus tudo de lado.

 

20 de Março de 1950, Tânger

 

O R. chamou-me a casa para me dizer que a G. deu à luz um rapaz. O bebé era grande e o parto foi longo e árduo. Está muito abalado.

 

20 de Julho de 1950, Tânger

 

O C. chegou furioso com um jovem marroquino à trela. Não o via (e não por acaso) desde a minha vergonhosa noite de casamento. Exige que lhe dê explicações sobre o não lhe ter contado sobre o novo estúdio. O rapaz fez chá. Sentámo-nos e fumámos. O C. deslizou para um estado de estupor e adormeceu. O rapaz e eu trocámos olhares e fomos para debaixo do mosquiteiro. Acordei mais tarde, com o C. numa fúria ainda maior e o rapaz a segurar a bochecha em que ele lhe tinha batido. Parece que o C. se tinha afeiçoado particularmente a este rapaz e estava danado por vê-lo comportar-se como uma puta barata. Não consegui acalmá-lo e saiu com o rapaz, que segurava o nariz com ambas as mãos e o sangue a pingar-lhe a túnica branca. A porta fechou-se. Olhei para a minha tela branca e decidi que o vermelho é que era.

 

15 de Fevereiro de 1951, Tânger

 

Tenho uma filha cor-de-rosa e plácida, o que é um alívio bem-vindo, depois do Paco, cujos primeiros gritos foram apenas o início de uma longa campanha de infindáveis exigências. Manuela (o nome da mãe da P.) dorme constantemente e apenas acorda para soprar bolhinhas e beber um bocadinho de leite.

 

8 de Junho de 1951, Tânger

 

Encontrei o C. no Bar La Mar Chica, que se tornou poiso tardio de aristocratas e outras beldades. Apostam dinheiro na Carmella, que espalha no ar os horrores dos seus sovacos, e não prestam atenção ao parceiro, Luis, que é muito melhor bailarino. Não via o C. desde o incidente com o rapaz no meu estúdio. As coisas não lhe têm corrido bem. Está bêbado e feio. Parece esgotado e chupado. A anarquia da depravação voltou-se contra ele e tem-lhe roubado grandes pedaços. Soltou uma tirada em inglês dirigida a mim, para gáudio dos assistentes.

 

Vejam: Francisco Falcón, artista, arquitecto, contrabandista e legionário. O mestre da forma feminina. Sabiam que um dia vendeu um quadro a Barbara Hutton por mil dólares? Não, não foi um quadro, foi um desenho. Uns riscos de carvão num papel e um milhar de notas caiu-lhe em cima da cabeça.

 

Sentei-me. Era inofensivo, mas o C. tinha agora audiência e empolgou-se. Sabia que eram do género de não quererem Luis mas Carmella, e premiou-os.

 

- Mas deixem-me contar-vos sobre Francisco Falcón e o seu profundo conhecimento da forma feminina. Ele é um impostor. Francisco Falcón não sabe nada da forma feminina. Mas é um perito em rapazes... Ah pois, deixem-me contar-lhes os cus e pilas que tem saboreado. Essas são as suas verdadeiras especialidades e eu sei bem, porque me usou como chulo...

 

Nessa altura, Luis avançou e mandou-o calar. Eu estava lívido de raiva, mas sereno na aparência. O C. não se calou, antes arrancando uma tirada final mais venenosa, que terminou com a minha noite de núpcias.

 

Luis pegou nele e atirou-o para fora do bar. Não regressaram. Saí, seguido pela audiência, que presumiu que, depois de terem visto os podres, iam cheirar agora o sangue. O Luis tinha levado dali o C. e, apesar de me sentir capaz de rachar as palmeiras ao meio, caminhei tranquilamente para casa.

 

12 de Junho de 1951, Tânger

 

O C. foi encontrado morto nos seus aposentos na medina, com a cabeça esmigalhada numa polpa irreconhecível. O rapaz cujo nariz ele tinha partido no meu estúdio foi encontrado com o corpo, e com sangue nas roupas. Foi acusado do assassínio. É o supremo final do sensualista - o beijo já não satisfaz, o toque é demasiado delicado e, então, chega a um ponto em que já só uma bofetada resolve, e depois um murro e, finalmente, a moca.

 

18 de Junho de 1951, Tânger

 

Decidi passar os meses de Verão aqui no estúdio. A casa está uma confusão e tresanda a caca e leite. O ar está cheio de conversas idiotas. Prefiro ficar aqui meio azamboado, debaixo da rede, com o mundo vago na frente e apenas o chamamento do almuadem aos crentes, para a oração, a pontuar o meu dia. Os chamamentos parecem vir-lhe do estômago e ressoam-lhe no peito antes de serem lançados pela boca - mais lastimosos do que qualquer flamenco do Luis. O som vem sempre do silêncio e a sua misteriosa espiritualidade não precisa de tradução. Cinco chamamentos por dia e eu comovo-me de todas as vezes.

 

2 de Julho de 1951, Tânger

 

Num dos raros almoços a que compareço, hoje em dia, a P. perguntou-me o que tenho feito. Comecei uma longa diatribe sobre pintar o chamamento do almuadem como uma representação abstracta do céu e ela interrompeu-me. Tinha ouvido boatos maliciosos de depravações. Parece que os processos dos tribunais chegaram ao seu mundo de fraldas. Ela indaga e eu fico como uma ostra viva, que, no seu mundo frio e fechado, se retrai das intrusões da lâmina penetrante. Peço-lhe para visitar o meu estúdio e ver o trabalho que estou a fazer. Convenço-a da minha vida ascética. Ela fica convencida de que eu estava a falar a sério. Sou um monstro... ou pelo menos é o que o Paco pensa. Dá gargalhadas e agarra a minha enorme cabeça, enquanto eu lhe como a barriguinha apertada. Não sabe o que é o medo, este pirralho.

 

5 de Julho de 1951, Tânger

 

Acordei atordoado, com um Maomé ou outro do género deitado ao meu lado e a P. à porta da rua. Mandei-o ir para o telhado e abri a porta. Fiz chá. Ela pediu-me para ver o meu trabalho. Mostrei-me evasivo, porque não tinha nada para mostrar. Tocou-me de uma forma que me deixou perceber que não tinha vindo cá exactamente com aquele propósito. Estava esgotado depois de passar a tarde toda na marmelada e sentia-me sujo, também. Ela ficou irritada com a minha ronha e entornou chá de menta a ferver nos meus pés descalços, o que me pôs aos saltos. E o rapaz no telhado soltou uma gargalhada, que espero que ela não tenha ouvido. Saiu pouco depois.

 

26 de Agosto de 1951, Tânger

 

Revejo os anos para trás, folheando estes diários, e fico estupefacto com as revelações. Espero agora que nunca sejam lidos. Se alcançar qualquer espécie de fama com o meu trabalho e estes diários vierem a lume, o que é que vão fazer à classificação do meu génio? Tornaram-se confissões, não diários. Não são as notas nobres que se esperariam de um mestre exausto; são antes apontamentos grotescos de um velhaco depravado. Acho que devo andar a fumar demasiado e a não passar tempo suficiente com gente animada, apesar de não saber onde se encontra disso. Aquele Paul Bowles que já mencionei anteriormente teve algum êxito com um livro que não me dei ao trabalho de ler. Tentei encontrá-lo, mas está sempre fora. Fui ao Bar do Dean, mas está cheio de bêbados e meliantes, sem uma única ideia dentro deles. O resto são turistas que têm outras coisas em que pensar. Não mantive os meus contactos com o mundo da B. H. O C. B. não está cá. Desisti dos encontros de sociedade.

 

O C. B. disse-me que tinha vendido dois quadros meus a umas mulheres ricas do Texas. O cheque era substancial, contou-me, mas eu estava à espera de um lugar no MoMA. Tentou serenar-me dizendo que o Picasso uma vez lhe tinha dito que «os museus são apenas um monte de mentiras», o que é fácil de dizer quando se está exposto nos melhores, em todos os países do mundo ocidental.

 

17 de Outubro de 1951, Tânger

 

O R. disse-me que a G. está outra vez grávida. Está simultaneamente feliz e aterrado, depois da experiência anterior. Fico pasmado como este monumento de crueldade pode ficar reduzido a puré. Treme com a ideia de ela sofrer.

 

Quando contei à P. da gravidez, ela olhou para mim langorosa e compreendi por que foi ter comigo ao estúdio, em Julho.

 

8 de Fevereiro de 1952, Tânger

 

O R. vendeu todos os nossos barcos a vários concorrentes, que lhe pagaram o preço mais alto do mercado. Esvaziou igualmente os armazéns e alugou-os aos mesmos que compraram os barcos. Estou abismado, mas ele garantiu-me que o negócio do contrabando não ia dar mais, que havia negociações secretas entre os Estados Unidos e a Espanha. Os americanos queriam construir bases para conterem a ameaça soviética latente. Franco vai aceitar, porque quer manter-se no poder. Seguir-se-ão as relações comerciais.

 

20 de Abril de 1952, Tânger

 

A G. entrou em trabalho de parto e foi ainda pior que da outra vez. As complicações foram tais que os médicos chegaram a perguntar ao R. quem queria que salvassem, a mãe ou a criança. Ele escolheu a. G., porque não seria capaz de viver sem ela. Já depois de decidido isso, a G. recuperou e a criança nasceu, aparentemente sem problemas.

 

Esta proximidade com a tragédia, aproximou-nos, à P. e a mim, e voltámos aos velhos tempos, redescobrindo alguma da nossa paixão. Vem ao estúdio à tarde e eu trabalho e deito-me com ela. As pinturas estão melhores do que antes, mas ainda não voltaram a capturar aquele momento perdido.

 

18 de Novembro de 1952, Tânger

 

Numa recepção no hotel El Minzah, conheci Mercedes, uma espanhola casada com um banqueiro americano. O marido tinha comprado trabalhos meus na galeria do C. B. em Nova Iorque e, por isso, conhece-me como a um velho amigo. Depois de anos na América, tem um ar muito moderno, sem nada da espanhola típica do outro lado do Estreito. Convidei-a a vir ao meu estúdio e apareceu no dia seguinte, num Cadillac com motorista, que mandou embora. Fiz chá. Agarrou-se ao varandim e olhou para o mar. Tem um corpo arrapazado, com anca estreita, peito pequeno e pernas magras e musculadas. Mostrei-lhe algumas paisagens abstractas de Tânger que andava a fazer, e que ela reparou ter elementos cubistas de Braque flutuando em bandas coloridas avermelhadas, como tinha visto nos trabalhos de Rothko, em Nova Iorque. Fiquei sensibilizado com a sua inteligência. Fomos atraídos um para o outro e não demorei muito a descobrir do que aquele corpinho bem feito, ou melhor, aquele cerebrozinho era capaz. Há uma certa perversidade na maneira como funciona. Quando atinge o clímax, entra num frenesim em que nada mais importa (seguramente, não eu, em quem ela vai embatendo com a pélvis) e uiva como uma loba. Vimo-nos caídos no chão, onde ela ficou deitada, de olhos brilhantes, maçãs do rosto coradas, lábios brancos e uma veia saliente no pescoço, grossa como uma corda, pulsando com um sangue escuro carnal. É estimulante descobrir tanta sofisticação completamente destruída por desejos primários. E é perigoso, também. A M. parece capaz de me levar a atravessar fronteiras para onde não há limites. É irónico que estejamos em Tânger, cativos da Zona Internacional de Marrocos, ponta-de-lança de África, onde um novo estilo de sociedade está a ser criado. Uma sociedade em que não há códigos. A comissão reguladora de países europeus, naturalmente desconfiados, criou um caos permissivo de que está a emergir um novo tipo de humanidade, que não segue as leis habituais da vida em comunidade e que procura apenas satisfazer as exigências do eu. Os negócios isentos de impostos e de regras da Zona Internacional produzem-se numa sociedade à margem de qualquer forma de moral. Somos um microcosmo do futuro do mundo moderno, uma cultura numa caixa de Petri, no laboratório do desenvolvimento humano. Ninguém dirá: «Ó, Tânger! Isso é que eram tempos.» Porque estaremos todos na nossa própria Tânger. É por isso que temos andado a lutar como cães, por todo o mundo, nas últimas quatro décadas.

 

15 de Março de 1953, Tânger

 

O R., depois de ter vendido os nossos barcos do contrabando, comprou um iate. Um brinquedo para ele andar por aí e parecer próspero. Talvez pudesse comprar um também, com o dinheiro da sociedade e as vendas que tenho feito através dos contactos da M. em Nova Iorque. Mas não me ia dar gozo. Tenho quase quarenta anos e sou bastante bem sucedido, mas tenho consciência do meu problema. A minha mente afasta-se dele na primeira oportunidade. Nada da minha fortuna resulta do que eu faço. O R. estruturou toda a minha vida de uma forma em tudo semelhante ao que tinha feito a Legião. A P. foi a minha musa, sem ela os desenhos a carvão nunca teriam sido feitos. A M. construiu a minha reputação entre os americanos, por isso vendo bem em Nova Iorque. Mas sou uma concha. Bate-se em mim e ecoa o meu vazio.

 

2 de Abril de 1953, Tânger

 

O sucesso do Paul Bowles atraiu uma multidão de artistas e escritores americanos à nossa pequena Utopia. Conheci um homem chamado William Burroughs que, ao que me parece, não fez nada digno de registo, excepto viver de uma reputação substancial que o precede. Matou a mulher a tiro, no México, numa exibição à Guilherme Tell, em que falhou o copo que ela tinha na cabeça e a bala abriu-lhe um buraco na testa. O americano que me contou esta história, fê-lo entre o divertido e o assustado, como se fosse uma coisa de um filme que tivesse visto há pouco. Percorri com o olhar o chão sujo do Bar La Mar Chica, até onde o W. B. estava sentado e preparava-me para ficar fascinado com o assassino da mulher. Em vez disso, deparei com um empregado bancário, igualzinho aos que temos na cidade, só que este tinha o tipo de crânio da figura de O Grito, de Edvard Munch. Quando nos apresentámos, disse-lho e ele respondeu: «Como é que o sacana sabia o que estava para acontecer, nunca saberemos. Merda. E digo-lhe, é assim que às vezes vejo o céu... precisamente assim. Sabe... como sangue. Como o caraças do sangue.» O magnetismo dele reside nos seus acessos de selvajaria instantâneos. Solta-os em cima daqueles que o rodeiam e de quem não gosta, mas acho que reserva a verdadeira ferocidade para si próprio. É como um animal uivador e lembro-me daquele rapaz louco que o R. viu há anos na aldeia serrana, de coleira e acorrentado na rua. Isto ajuda-me a perceber por que ponho palavras no papel.

 

28 de Junho de 1953, Tânger

 

Tenho três vidas. Com a P. e os filhos, sou decoroso. Os parâmetros foram traçados para mentes curtas. Sou meigo e quase bem disposto, enquanto o meu peito é percorrido por dilacerantes bocejos. Olho para a P., a mãe perfeita, e pergunto como pôde ter sido alguma vez a minha musa.

 

Tenho a minha vida no estúdio. O trabalho avança. As paisagens de Tânger têm evoluído para outras coisas. Vastos céus vermelhos sangram para cima de um compacto continente negro; e entre ambos perpassa uma nódoa de civilização. O trabalho é interrompido por uma corrente de rapazes que aparecem para ganhar umas pesetas.

 

A minha terceira vida é com a M., a minha companheira de desvios, na sociedade e na cama.

 

23 de Outubro de 1953, Tânger

 

O C. B. convidou-me e à P. para passarmos um serão com a B. H. Não me agrada isto de uma vida entrar pela outra. Fomos ao palácio de Sidi Hosni e, como de costume, esperámos pela nossa anfitriã no meio da sua riqueza fabulosa.

 

A P. ficou aborrecida e o C. B. levou-a dali; sendo o cavalheiro que é, conseguiu encantà-la com o seu espanhol arranhado. A B. H. chegou quando eu já me propunha sugerir que nos fôssemos embora. Deu uma volta para chegar até nós e, ao conhecer a P., assaltou-a uma ideia. Conduziu-nos à sala guardada pelo enorme núbio e só quando entrámos me lembrei de que nunca tinha contado à P. da venda do desenho. A B. H. levou-a direita ao quadro, na sua posição de destaque, junto do Picasso. A P. pestanejou, como se tivesse visto um dos filhos magoado. Percebi, pelo olhar verde que me foi dirigido, que considerou aquilo um abuso de confiança. A B. H., que já tinha bebido uns copos, não se deu conta daquele choque e foi o C. B. que nos tirou dali. A caminho de casa, a P. foi sempre calada, tremeluzindo através da alcáçova, com os saltos a ressoarem na calçada. Eu hesitava atrás dela, pregado às suas costas como um pedinte a quem tivesse sido recusada uma esmola.

 

19 de Fevereiro de 1954, Tânger

 

O R. foi a Rabat e a Fez para falar com os responsáveis da Administração francesa e marroquina. Pediu-me para ir com ele, mas estou a trabalhar nuns enormes abstractos que espero me venham a tirar daquilo a que a M. chama «Selecção B» dos pintores respeitados. Quer que o meu nome emparelhe com os do outro lado do Atlântico, como Jackson Pollock, Mark Rothko e Willem de Kooning. Acha que o meu trabalho de paisagens é tão forte como o de Rothko. Eu olho para Rothko e vejo-o abordar o seu tema de um ângulo diferente. Ele procura elevação, na busca de um elemento espiritual; eu estou apontado para a escuridão e a decadência.

 

3 de Março de 1954, Tânger

 

O R. voltou das suas viagens, muito contente com os burocratas. Alarmou-me ao dizer que embarcou num negócio com os marroquinos. Disse-lhe que ele não compreende a natureza conspirativa da mente marroquina - têm maneiras de passar o laço ao pescoço do mais perspicaz dos negociadores. Ele descartou essa possibilidade e disse-me para não me preocupar. Não vou estar envolvido nisso.

 

18 de Junho de 1954, Tânger

 

Passei pela minha casa na medina uma tarde destas e fiquei surpreendido por não encontrar a P. lá. As crianças estavam a brincar no pátio. O Paco fazia de torero e a irmã de touro. Ele executava grandes floreados com a camisa e ela vacilava à toa através dela, encantada por se encontrar do outro lado. Como é que esta brincadeira apareceu não sei, porque o Paco nunca viu uma tourada. Eu estou ausente das suas vidas. Mas onde estava a P.? Ninguém sabia. Brinquei com as crianças, proporcionando ao Paco um toro um bocadinho mais perigoso. Fiquei surpreendido com a destreza dele com a camisa e percebi um pouco o entusiasmo da Manuela. Aborreci-me rapidamente daquilo e voltei para o meu estúdio.

 

20 de Dezembro de 1954, Tânger

 

Tivemos sorte de escapar à pior das catástrofes. Os preços do imobiliário vieram por aí abaixo. A esperança de que Tânger se tornasse o Mónaco de África ruiu. Isso fez o R. pegar em todo o seu capital e voámos para a Suíça, onde ele abriu uma conta em meu nome, depositando a fantástica quantia de 85 000 dólares, que é a maior parte do meu quinhão dos lucros dos nossos dez anos de sociedade. Não tive maneira de protestar e fizemos um jantar de comemoração. É o fim de uma era. O R. vai seguir caminho pelos negócios. No final da refeição, abraçámo-nos.

 

17 de Maio de 1955, Tânger

 

A P. procurou-me no estúdio, pela primeira vez há anos. Esteve cá três dias seguidos e fizemos amor todas as tardes. A M. está em Paris com o marido e só esporadicamente apareceu um rapaz à porta, que teve de ser mandado embora com um suborno. Fiquei confundido com o seu súbito ardor, até me dar conta de que, com a ausência da M., tinha estado mais em casa e me tinha reabilitado perante a família.

 

Quando se foi embora, fiquei deitado sob o laço que prende a rede mosquiteira e a gaze balouçante recordou-me nascimento, rebentamento de águas, e pergunto a mim próprio se não terei sido manipulado para fazer outro filho.

 

11 de Julho de 1955, Tânger

 

Como as coisas convergem. Faço hoje quarenta anos. A P. disse-me que vou ser pai outra vez. O R. depositou-me mais 25 000 dólares na minha conta e a sociedade foi oficialmente dissolvida. O marido da M. pediu o divórcio e está preparado para pagar uma soma significativa para o obter (uma texana de vinte e dois anos é a razão). Eu deixei a abstracção e voltei à figuração. Talvez tenha sido inspirado por De Kooning, que abandonou os padrões densos e caóticos da sua «Execution» e está mais orientado para «Women». Ou não. Talvez esteja apenas a perseguir o sonho do C. B. e o meu. Trabalhei até a luz desaparecer. Preparo-me para ir jantar com a família. Sinto apenas um tremendo desespero.

 

1 de Novembro de 1955, Tânger

 

No mês passado, o sultão Maomé V foi chamado do exílio em Madagáscar, para onde os franceses o tinham enviado há três anos. Deve chegar ainda este mês. É o princípio do fim, embora não pareça pelo comportamento dos estrangeiros que aqui estão. Entretêm-se enquanto Roma arde, mas o que lhes importa? Estou ansiando pela M., que está ausente há meses, tratando do divórcio. Vamos todos ser consumidos pelo fogo.

 

12 de Janeiro de 1956, Tânger

 

Outro filho, a que decidi dar o nome de Javier, que é um nome de que sempre gostei e não tem nada a ver com família. Pela primeira vez, olho para um filho meu e sinto, não tanto um ímpeto de amor paternal, mas um sentimento desmedido de esperança. Esta criança, com os pulsos bem fechados e os olhos em fenda, por uma razão qualquer faz-me pensar que grandes coisas são possíveis. É o único raio de luz verdadeiramente brilhante no meu quadragésimo primeiro ano.

 

28 de Junho de 1956, Tânger

 

Deito-me de costas sob a rede, com o Javier sobre o meu peito. As pernas são arqueadas como as de uma rãzinha, os dedos dos pés cravam-se na minha barriga. A minha mão abarca-lhe as costas todas. Dorme e, de vez em quando, inconscientemente, estimula-me o peito, na esperança gorada de que saia leite. Que cedo o desapontamento entra nas nossas vidas.

 

Fica deitado num cobertor, enquanto eu trabalho. Vou-lhe falando dos quadros, das ideias, das influências. Lentamente, vai juntando os pés e as mãos, como se a gozar comigo num aplauso silencioso e displicente. Olho para ele e abrem-se pequenas brechas em mim. O corpinho macio, os grandes olhos castanhos, a cabeça felpuda, tudo se conjuga e, como um escopro metido no meio das minhas costelas, abro-me ao meio.

 

Domingo, 22 de Abril de 2001, casa de Falcón, calle Bailén, Sevilha

 

A sobrinha de Encarnación, Juanita, foi a primeira a chegar, às 11h. 00. Falcón estava ainda grogue de um sono pesado induzido por soporíferos. A pastilha suplementar, tomada às 4 da madrugada, enterrou-o praticamente em betão.

 

Tomou um duche e vestiu umas calças cinzentas, agora tão largas na cintura, que teve de procurar um cinto. O casaco, também, não lhe assentava nos ombros. Estava a perder peso rapidamente. No espelho, as bochechas apareciam flácidas e os olhos fundos e escuros. Estava a transformar-se na imagem que tinha de um louco.

 

Na cozinha, Juanita movimentava-se nuns ténis pretos volumosos, que chiavam no chão. Atirou a farta cabeleira para as costas, soltando uma cascata de cabelo negro. Falcón verificou se o frigorífico estava bem recheado com fino e manzanilla e foi à cave buscar vinho tinto, para beberem com o borrego assado.

 

A cave ficava nas traseiras da casa, por baixo do estúdio. Tinha utilizado aquele espaço fechado como câmara escura, mas não tinha voltado lá desde que a Inés tinha saído de casa. O seu equipamento de revelação continuava a um canto. Um fio atravessava a sala, com molas de roupa penduradas para secar as provas. Sentiu falta da excitação da revelação, da folha branca a deslizar para dentro do revelador, emergindo lentamente do líquido, para surgir nela um rosto. Era isso que tinha na cabeça? Todas aquelas imagens apenas precisavam de um revelador para que memórias latentes ganhassem forma, atravessassem a sua consciência e resolvessem as suas dificuldades.

 

A garrafeira estava dividida em duas partes. Franceses e espanhóis. Nunca tinha mexido nos franceses, tudo garrafas caras, compradas pelo pai.

 

Mas, desta vez, sentiu-se com espírito de comemoração. Os parágrafos finais que tinha lido no diário do pai tinham-no mandado para a cama a chorar e sentiu vontade de brindar à generosidade do falecido. A intimidade deles tinha sido reforçada e encontrou vestígios de perdão para toda a depravação e infidelidade do pai. Tirou garrafas de Château Duhart-Milon, Château Giscours, Montrachet, Pommard e Clos-des-Ursules. Levou-as para a casa de jantar e pousou-as em cima do aparador. Ao subir da cave pela segunda vez, reparou numa urna que nunca tinha visto, num nicho por cima da porta.

 

Tinha apenas uns 15 centímetros de altura, demasiado pequena para conter restos humanos. Pousou as garrafas e levou-a para cima da mesa de revelação. Acendeu a luz por cima dela. O fecho era apenas um cone de barro, selado com cera. Não havia marcas na urna, que era de barro não vidrado. Quebrou a cera e tirou o fecho. Verteu o conteúdo em cima da mesa. Era amarelo esbranquiçado e granuloso. Alguns pedaços maiores eram bastante afiados. Revolveu-os com um dedo. Havia também alguns pedaços castanhos e subitamente o conteúdo pareceu-lhe macabro, algo como ossos esmagados. Deixou aquilo na mesa, com repulsa.

 

Paco e a família chegaram primeiro. Enquanto as mulheres subiam e as crianças corriam pela galeria, Paco carregou um jamón inteiro, que tinha trazido de Jabugo, na sierra de Aracena. Encontraram um suporte no aparador e prenderam o jamón na posição certa. Paco afiou uma faca comprida e fina e começou a cortar fatias fininhas como papel de saboroso jamón vermelho-escuro, enquanto Javier enchia copos com fino.

 

Juanita pôs a mesa no pátio e guarneceu-a de azeitonas e outros pinchas. Paco acrescentou um prato de jamón às fatias. Manuela chegou com os convidados dela e ficaram todos de pé pelo pátio, a beber fino e a gritar para as crianças pararem de correr. O único adulto que não disse a Javier que parecia muito magro foi a irmã de Alejandro, que era tão gorda como um louva-a-deus, ela própria.

 

Paco estava feliz e animado com os seus touros, que tinham sido descarregados em perfeitas condições naquela manhã, para a corrida do dia seguinte. A ferida no flanco ainda era visível no retinto, mas ele era muito forte. Tinha-lhe chamado Biensolo e o único aviso que lançou a Javier foi que as pontas dos cornos eram invulgarmente viradas para cima e o espaço entre elas muito estreito. Entrar por ali a matar seria sempre muito difícil, mesmo com a cabeça muito baixa.

 

Sentaram-se para comer o borrego assado às quatro da tarde. Manuela reparou imediatamente na qualidade do vinho e perguntou quantas garrafas mais o «maninho» tinha escondidas. Javier contou-lhe sobre a urna, para desviar a atenção. Ela pediu para a ver e, quando a refeição terminou e Paco estava a acender o seu primeiro Montecristo, Javier foi buscá-la à cave. Ela reconheceu-a imediatamente.

 

- É estranho - disse ela. - Não sei como é que o Papá perdeu as jóias da Mamá e, no entanto, isto fez a viagem toda de Tânger para aqui.

 

- Ora, Manuela, ele nunca deitava nada fora - disse Paco.

 

- Mas isto é da Mamá. Lembro-me. Esteve no toucador dela dois ou três dias... cerca de um mês antes dela morrer. Perguntei-lhe o que era, porque era diferente de tudo o que tinha no toucador. Pensava que podia ser a poção de uma rifenha, que era criada dela. Disse que continha o espírito do génio puro e nunca devia ser aberto... estranho, não é?

 

- Estava só a brincar contigo, Manuela - disse Paco.

 

- Vejo que a abriste. Algum génio?

 

- Não - disse Javier. - Pareciam ossos ou dentes esmagados.

 

- Não parece muito espiritual - disse Paco.

 

- É mesmo macabro - disse Javier.

 

- Pensava que, depois de tanto sangue que tens visto, eras capaz de aguentar uns velhos ossos secos, maninho - disse Manuela.

 

- Mas triturados? Pareceu-me violento.

 

- Por que julgas que são humanos? Pode ser de um velho osso de vaca ou coisa assim.

 

- Mas porquê o «espírito do génio puro»? - perguntou Javier.

 

- Sabes quem lhe deu isso, não sabes? - perguntou Paco. - O Papá... há muito tempo. Estavam a acontecer umas coisas estranhas lá em casa, nessa altura. Não te lembras? A Mamá ateou um fogo no pátio. Viemos da escola e havia uma mancha negra junto à figueira.

 

- Ele era demasiado pequeno - disse Manuela. - Mas tens razão, ele deu-lhe a urna no dia seguinte. E a outra coisa estranha: aquela linda escultura que ele deu à Mamá no aniversário do ano anterior... essa desapareceu. Tinha-a junto ao espelho. Ela adorava aquilo. Perguntei-lhe o que tinha acontecido e ela limitou-se a dizer: «Deus dá, Deus tira.»

 

- Ela começou a ir à missa quase todos os dias, por essa altura, também - disse Paco.

 

- Pois, antes apenas ia uma vez por semana - recordou Manuela. - E deixou de usar anéis. Só usava aquele cubo barato de ágata que o Papá lhe tinha dado pelos anos. Disso lembras-te, com certeza, maninho...

 

- Não.

 

- O Papá entregou-te o presente dela para lhe dares no jantar de aniversário. Ela desmanchou o embrulho e a tampa saltou e bateu-te no nariz, ao mesmo tempo que saltava de dentro uma flor de papel. Dentro da flor estava o anel. Foi muito romântico. A Mamá ficou comovida. Lembro-me do olhar no rosto dela.

 

- Ela devia saber que lhe estava para acontecer alguma coisa - disse Paco.

- Ir à missa a toda a hora, apenas usar aquele anel em particular, que o Papá lhe tinha dado. Aconteceu-me o mesmo quando fui colhido na La Maestranza.

 

- Qual o mesmo? - perguntou Javier, fascinado por essas velhas memórias, tocando mesmo no nariz, para tentar lembrar-se da caixa a bater-lhe.

 

- Eu sabia que alguma coisa ia acontecer.

 

- Como? - perguntou o sogro de Paco, um dos maiores cépticos do mundo.

 

- Sabia, apenas - disse Paco. - Sabia que estava para assistir a um grande momento e, sendo jovem e arrogante, presumia que ia ser de glória.

 

- Mas o que é que sabias? - perguntou o sogro.

 

- Não sei - disse Paco, com as mãos adejando por todos os lados. - Um sentimento de coisas a arrumarem-se.

 

- Em convergência - disse Javier.

 

- Os toreros foram sempre supersticiosos - disse o sogro.

 

- Sim, bem, quando se arrisca a vida assim... tudo ganha significado - disse Paco. - Estrelas, planetas... essas coisas todas.

 

- Alinhando-se para ti? - troçou o sogro.

 

- Estou a exagerar - justificou-se Paco. - Talvez fosse apenas um sexto sentido. Talvez seja só em retrospectiva que dou maior importância a um acontecimento que, numa questão de segundos, arruinou a minha juventude.

 

- Desculpa, Paco - disse o sogro. - Não estava a menosprezar...

 

- Mas era por isso que eu queria ser torero - disse Paco. - Adorava a crueza do perigo. Era como viver a vida potenciada àquele expoente de percepção. Aconteceu apenas que interpretei mal os sinais. Ninguém podia ter previsto aquele desastre. Durante toda a minha faena, o touro nunca tinha feito gancho da direita e subitamente... quando eu estou mesmo em cima dos cornos, ele engancha à direita. Enfim, tive sorte em sobreviver. É como a Mamá disse à Manuela: «Deus dá, Deus tira.» Não há uma razão.

 

O almoço acabou depois disso e Manuela saiu com os convidados dela. A família de Paco e os sogros foram dormir a siesta. Javier e Paco sentaram-se com uma garrafa de brandy no meio deles. Paco estava no limiar da bebedeira.

 

- Talvez tu fosses demasiado inteligente para seres torero - disse Javier.

 

- Fui sempre péssimo na escola.

 

- Então, talvez pensasses demasiado para seres um bom torero.

 

- Nunca. Os pensamentos vieram depois. Quando a perna se espatifou, tive de fazer uma limpeza total da cabeça. Tive de me libertar de todos aqueles relatos e filmes dos meus momentos de glória que nunca aconteceram nem viriam a acontecer. Fiquei completamente vazio. Tinha pesadelos e toda a gente pensou que era a reviver aquele terrível momento, mas, no que me dizia respeito, isso era passado. Os meus pesadelos eram em relação ao futuro.

 

Paco serviu-se de mais um pouco de brandy e empurrou a garrafa na direcção de Javier, que abanou a cabeça. Paco rolou um charuto para Javier, mas este devolveu-o, rolando.

 

- Sempre o homem controlado.

 

- É isso que tu achas? - disse Javier, quase estoirando a rir.

 

- Ó pois, nunca nada te atinge ou perturba a tua calma interior. Não és como eu. Eu fiquei num turbilhão. A minha perna em farrapos e sem futuro. O Papá salvou-me, sabes. Instalou-me nA finca. Comprou os meus primeiros animais. Tirou-me daquilo... apontou-me um rumo.

 

- Bem, ele era um militar. Percebia os homens - disse, consciente de estar a torcer as coisas a favor do pai, para agradar a Paco.

 

- Ainda andas a ler os diários?

 

- A maior parte das noites.

 

- Faz alguma diferença em relação ao que pensavas sobre ele?

 

- Bem, ele é completa e aterradoramente honesto na sua escrita. Admiro-o por isso, mas as suas revelações... - disse Javier, abanando a cabeça.

 

- Quando estava na Legião? - perguntou Paco. - Eram os mais duros de todos, os legionários, sabes disso.

 

- Esteve envolvido em algumas intervenções brutais na Guerra Civil e na Rússia, durante a Segunda Guerra Mundial. Alguma da brutalidade que viveu nessas guerras não o largou quando foi para Tânger.

 

- Nunca a vimos - disse Paco.

 

- Foi bastante cruel, nalgumas operações relacionadas com os negócios. Utilizou as mesmas técnicas que utilizava na guerra... o terror. E isso só acabou quando se dedicou a tempo inteiro à pintura.

 

- Achas que a pintura o ajudou?

 

- Acho que pôs muita violência na sua pintura. Ficou famoso pelos nus de Falcón, mas muito do seu trabalho abstracto está imbuído de vazio, violência, negrura, decadência e depravação.

 

- Depravação?

 

- Ler estes diários é como trabalhar numa investigação criminal. Vem tudo gradualmente à superfície. A vida secreta. A sociedade (e nós também) apenas vemos o que é aceitável, mas acho que ele nunca se libertou da brutalidade.

 

Mostrava-a de outras maneiras. Lembras-te que costumava vender aqueles quadros e depois ia para cima e pintava o mesmo quadro que tinha vendido? Acho que isso era uma forma de brutalidade. Era sempre o último a rir.

 

- Dás ideia que ele não era um tipo muito íntegro.

 

- Escrupuloso? Quem é que é íntegro, hoje em dia? Somos todos complicados e difíceis. Só que o Papá tinha algumas dificuldades especiais numa época brutal.

 

- Ele diz alguma vez por que é que se alistou na Legião?

 

- É a única coisa de que não fala. Apenas se refere a isso como «o incidente». E, dado que fala de tudo o resto, deve ter sido tremendo. Uma coisa que alterou a sua vida e com que nunca acertou contas.

 

- Era um garoto - disse Paco. - O que raio pode acontecer aos 16 anos?

 

- O bastante.

 

A campainha da porta soou.

 

- É o Pepe - disse Javier.

 

Pepe Leal era alto e fino que nem um caniço. Mantinha-se perfeitamente erecto, de pés juntos e cabeça levantada, como em constante expectativa. Tinha sempre um ar sério e usava casaco e gravata em todas as ocasiões. Nunca o tinham visto usar calças de ganga, sequer. Tinha um ar de rapaz regressado do colégio, não o de alguém que estava para entrar numa arena com um touro de 500 quilos, preparando-se para matá-lo com graça e pose.

 

Abraçaram-se. Javier conduziu Pepe à casa de jantar, com um braço por cima dos ombros. Paco também o abraçou. Sentaram-se numa ponta da mesa, apesar de - como Javier constatava invariavelmente - o torero se destacar sempre das pessoas vulgares. Não tinha nada a ver com a condição física perfeita, só beber água e sentar-se uns centímetros afastado da mesa. A diferença estava em ser um homem que regularmente enfrentava o medo e o ultrapassava. E não era como se tivesse atingido um estado de permanente falta de medo. Era humano. Sempre que entrava na plaza para arriscar a vida, tinha de ultrapassar um novo medo.

 

Javier tinha-o visto tremer e empalidecer nas horas que antecediam a corrida, sentado no quarto de hotel, nunca rezando, porque não era dos toreros crentes, e nunca olhando para ninguém para acalmar os nervos. Era apenas um ser humano petrificado que não conseguia controlar o terror. Então vestia-se e isso dava início ao processo. Assim que começava lentamente a meter-se no traje de luces, o uniforme da profissão, o medo era contido. Não continuava a esvair-se de dentro dele, inundando o quarto num contágio invisível.

 

O trajo de luzes actuava sobre ele, recordava-lhe a tarde brilhante em que tinha tomado a alternativa e se tinha tornado um torero acabado; ou talvez apenas encapsulasse a nobreza da profissão e o portador apenas pudesse comportar-se com a dignidade que ele exigia. Contudo, não o livrava do medo, apenas o metia para dentro. Alguns toreros nunca tinham sequer alcançado este nível de contenção e Javier tinha-os visto, na plaza, brancos e a suar, à espera da sua vez, rezando para a verem ultrapassada.

 

- Pareces em boa forma, Pepe - disse Paco. - Como te sentes?

 

- Como de costume - disse, animado. - E como estão os touros?

 

- O Javier falou-te do meu retinto, o Biensolo?

 

Pepe acenou.

 

- Se te calhar, prometo-te que nunca mais vais ter de esperar para assinares um contrato. Madrid, Sevilha e Barcelona vão ser tuas.

 

Pepe voltou a acenar, com os nervos demasiado à superfície para articular palavra. Paco traçou-lhe uma panorâmica dos outros touros e, sentindo que Pepe queria ficar sozinho com Javier, arranjou uma desculpa e foi fazer a siesta. Pepe relaxou-se quase dois milímetros na cadeira.

 

- Estás com o ar de quem tem trabalhado em demasia, Javier.

 

- Pois é, estou a perder peso.

 

- Vais poder ir ao hotel antes da corrida!

 

- Vou tentar, claro. Tenho a certeza de que a minha investigação pode passar sem mim por umas horas.

 

- Tu ajudas-me sempre.

 

- Tu já não precisas de mim - disse Javier.

 

- Preciso. É importante para mim.

 

- E como está o medo?

 

- Sempre o mesmo. Sou coerente nisso. O meu nível é fixo... mas mais alto do que o da maioria.

 

- Interessava-me saber - disse Javier, vendo subitamente uma oportunidade - como controlas o medo.

 

- Da mesma maneira que tu, quando te confrontas com um homem armado.

 

- Estava a pensar num medo diferente.

 

- É tudo medo, quer estejas à beira de morrer ou alguém te diga: «Buu!»

 

- És um perito - disse Javier, rindo e agarrando Pepe pelo pescoço, incapaz de refrear o afecto que nutria pelo rapaz.

 

«Talvez fosse mau estar a falar-lhe naquilo», pensou. «Ainda lhe afecto o espírito com as minhas idiotices.»

 

- Diz-me o que te preocupa, Javier. Como dizes, o medo é a minha especialidade. Gostava de ajudar.

 

- Tens razão... temos medo dessas coisas que nos são exteriores... Temes o touro, eu temo o homem armado. São ambos imprevisíveis. Mas são apenas momentos de medo. Sentimos uma terrível apreensão, defrontamo-los e desaparecem.

 

- Ora aí está. Sabes tanto como eu. Controlar o medo está na tua formação, no teu desejo de confronto, na sua inevitabilidade.

 

- Inevitabilidade?

 

- És obrigado pelo Estado a lidar com criminosos perigosos, a bem dos cidadãos de Sevilha. Eu sou obrigado por contrato a lutar com um touro. São responsabilidades inevitáveis, a que não nos podemos furtar, ou não voltamos a ter trabalho. A inevitabilidade ajuda.

 

- O teu medo de falhar é maior do que o teu medo do touro.

 

- Se pensares em todos aqueles soldados que lutaram em todas as guerras com algum do armamento mais destrutivo que o homem conhece... quantos se acobardaram? Quantos fugiram? Muito poucos.

 

- Talvez isso signifique que temos uma enorme capacidade de aceitação do destino.

 

- Para quê tentar controlar o incontrolável? Eu podia desistir de ser torero amanhã, porque temo demasiado os ferimentos e a morte; e no entanto, continuo a atravessar ruas movimentadas, guio nas estradas e ando de avião, onde facilmente posso encontrar um fim inglório.

 

- Portanto, é inevitável. E a respeito do desejo de confronto? Soa-me a valentia.

 

- É. Somos valentes. Temos de ser. O que é diferente de não ter medo. É reconhecimento. É a admissão de uma fraqueza e ter a vontade de a ultrapassar.

 

- Falas muito sobre isto?

 

- Com alguns dos toreros mais subtis. Não é uma profissão conhecida por ter grandes pensadores. Mas temos todos de lidar com isso, mesmo os maiores. O que respondeu o Paquirri quando um entrevistador lhe perguntou qual era a coisa mais difícil de fazer quando enfrentava um touro? «Cuspir. Nada más.»

 

- Da primeira vez que tive de enfrentar um homem armado, um oficial superior disse-me, quando entrei: «Lembre-se, Falcón, a coragem é sempre retrospectiva. Só vai ter que baste depois de ter acabado.»

 

- Isso é que é uma verdade - exclamou Pepe. - E é por isso que podemos falar, Javier.

 

- Mas agora estou agarrado por um medo diferente - confessou Falcón -, um que nunca defrontei. Estou a viver num permanente estado de medo e o pior de tudo é que não há nem homem armado nem touro. Não importa a minha valentia, porque não tenho nada para defrontar... excepto eu próprio.

 

Pepe franziu-se. Queria ajudar. Falcón pôs o problema de lado.

 

- Não importa. Não devia ter falado nisso. Estava só a tentar perceber se havia alguns truques da profissão, uma forma pela qual os toreros, que convivem com o medo, enganassem o pensamento...

 

Nunca - disse Pepe. - Nós nunca nos enganamos a nós mesmos a esse respeito. É uma das grandes ironias. Precisas do medo. Agradeces que exista, apesar de o odiares, porque é o medo que te ajuda a ver. É o medo que te salva.

 

Excertos dos diários de Francisco Falcón

 

7 de Julho de 1956, Tânger

 

Eu devia envolver-me mais no que está a acontecer. Continuo a tomar café com o R. no Café de Paris e todas as conversas são sobre um Marrocos independente e o que vai acontecer connosco, os comedores de lótus, em Tânger. (Talvez eu seja o comedor de lótus e todas as outras pessoas estejam firmes num paraíso fiscal.) Mas não ligo. Flutuo. Raramente preciso de fumar, porque o meu estado natural parece imensamente leve e flutuante. O meu estúdio, com o Javier choramingando (nunca gritando), parece ambrósia. Assusto-me porque a minha mente de repente se volta para mim, noite alta, quando a caneta paira sobre este diário, e toca-me, dizendo: «Estás feliz.» Penso nisto e imediatamente o contentamento é assolado por pensamentos inquietantes. Não tenho notícias da M. Há tensão na medina, como se as ruelas estivessem cheias de vapores de gasolina - uma faísca e vai tudo pelos ares. As pessoas pressentem a independência. Estão à beira dela e estão convencidas de que isso vai significar que vão ser tão livres e ricas como os estrangeiros. A lentidão do processo político traz-lhes a raiva e frustração à superfície.

 

18 de Agosto de 1956, Tânger

 

Tumultos na medina, que extravasam para o Grand Soco. Nenhum europeu ou americano se aventura a sair à rua. Partem as montras e roubam as lojas. À noite, as mulheres ululam, um barulho que os europeus acham aterrador. É animal, potencialmente selvagem, como o riso das hienas ou as raposas em cio. De manhã, as ruas enchem-se de homens e rapazes a cantarem o Istiqlal (independência) e a fazerem a saudação dos três dedos (Alá, o Sultão, Marrocos). Retratos de Maomé V flutuam numa maré de pessoas e depois tudo se encarniça outra vez. Fiquei em casa. A P. está nervosa, sobretudo à noite, e o efeito do leite quente já não é tão calmante. A rifenha passa agora o leite morno por amêndoas esmagadas, o que acalma o estômago descansa o cérebro. Funciona. Esta gente sabe coisas que nós já esquecemos.

 

26 de Outubro de 1956, Tânger

 

Está feito. O estatuto de Tânger foi revogado. O regime internacional acabou; mas as condições financeiras, monetárias, económicas e comerciais vigentes na nossa Utopia continuam em vigor até que o Sultão se lembre de vir com outras ideias. Os contactos do R. garantiram-lhe que isto não vai ser radicalmente diferente do ancien régime. O dinheiro fala muito mais alto, por cima do discurso do orgulho nacional e do fervor islâmico. Baniram a venda de álcool num raio de

50 metros das mesquitas, o que encerrou todos os meus refúgios alcoólicos na medina. O R. não faz planos para se ir embora. Continuo a encontrar-me com ele no Café de Paris, mas anda agora rodeado de homens vestidos de túnica, que usam fez e óculos de aros espessos.

 

26 de Novembro de 1956, Tânger

 

Já sei por que é que a M. tem estado tão silenciosa. Um escritor americano (são todos escritores, hoje em dia) que afirma ser amigo do De Kooning, encontrou a M. num jantar em Nova Iorque. A M. estava com o novo marido, um filantropo e coleccionador de sessenta e nove anos chamado Milton Gardener. A notícia deixa-me boquiaberto e a pestanejar feito tolo. O meu instinto é sentir-me traído; mas depois pergunto-me do que estava à espera. Não faço tenções de largar a P.

 

15 de Junho de 1957, Tânger

 

A M. chegou há três dias com o novo marido, cujo nome completo é Milton Rorschach Gardener IV. Encontrámo-nos numa recepção no hotel El Minzah. Fiquei encantado e, na primeira oportunidade, tentei levar a M. escada acima para um dos quartos vagos, mas ela pôs-me rapidamente no meu lugar. Apresentou-me o M. G., que não é um velho tonto e trémulo, antes um homem muito alto, imponente e impressionante. Tem uma bengala e um joelho que estala com um clique metálico, quando o dobra. Pediram para irem ao estúdio.

 

Apareceram no dia seguinte, precisamente quando eu estava a explicar as minhas novas paisagens figurativas interligadas ao Javier, que agora teve de ser enjaulado num parque de madeira. Preocupante é que, ao criar essas paisagens interconectadas, parece estar implícita uma rede fantástica de ligações humanas, em que não me parece que acredite. A M. olhou para o Javier, pegou-lhe e levou-o para a varanda. Foi amor à primeira vista de ambos. Enquanto o M. G. e eu falamos, mas não podemos resistir a observá-los, sentindo-nos como dois pretendentes abandonados num baile.

 

O M. G. é atraído pelo meu novo trabalho, mas viu o desenho da P., na colecção da B. H. Perguntou-me se tinha desenvolvido aquela ideia em pintura e disse: «É lá que está o seu futuro, se quer a minha opinião.»

 

A M. disse-me mais tarde que o «dinheiro velho» do M. G. veio do aço, mas o «dinheiro novo» vinha de jogar em mercados de futuros. Aparentemente, nesses mercados pode-se apostar no preço futuro de produtos como o trigo, açúcar ou até toucinho (isto não me parece um trabalho que se tenha) e percebo como o meu mundo se tornou limitado. Por causa do meu talento, acho a arte importante. Mas agora vejo que dependo de um pequeno grupo de gente rica que compra os meus quadros, podendo, por outro lado, estar a fazer fortuna com acções de toucinho fumado. É uma espécie de epifania, talvez invertida, agora que me vejo como um dos mercados de futuros do M.G., que vai olhando para os meus pedaços de toucinho, perguntando-se se vale a pena investir neles. Digo à M. que ele devia comprar o «Carcass of Beef» do Chaim Soutine; ela não acha graça, mas eu acho que o velho judeu lituano teria rido também. Agora que penso nisso, até as paisagens do Chaim Soutine eram muito parecidas com vísceras. Coloquei a questão à M., que disse: «Sim, muito viscerais», uma piada cujo efeito se perde, porque tem de ma explicar.

 

3 de Setembro de 1957, Tânger

 

O R. está satisfeito com a Carta Real de Maomé V, que entrou em vigor há alguns dias. O mercado monetário continua livre e as exportações e importações sem restrições. A comunidade dos negócios está eufórica. Eu estou numa depressão funda. A M. e o M. G. foram-se embora. Compraram uma das minhas «humanisagens», portanto nem tudo foi perdido. Dei à M. de presente um quadro (muito) pequenino de uma fila de carcaças dependuradas na câmara frigorífica de um talho. Entre as carcassas está um pequeno auto-retrato. Estou pendurado de cabeça para baixo, de tórax e barriga abertos, enganchado pelo meu calcanhar de Aquiles. A M. ralha comigo por ser um cínico, mas fica com ele. «Porque eu sei que um dia vais ser famoso.» Chamei ao quadro «Futuros em arte». Revejo agora a estupidez da minha piada, porque carreguei na miserável verdade. Não estou a operar num mundo sagrado. Estou num mercado. Aqui estamos todos ansiando por uma grande verdade, quando, de facto, nos atolamos na lama do comércio.

 

Saí do estúdio e, num impulso, peguei nos desenhos da P. (que guardo em casa, senão passo os dias a olhar aparvalhado para eles). Pus-me a andar de um lado para o outro, como se estivesse a inspeccionar as tropas, até descobrir que a P.

 

estava no quarto comigo. Contei-lhe que estava a tentar encontrar uma maneira de dar continuidade àquele trabalho. Ela disse, numa voz profética: «Não vais ser capaz de dar continuidade a isso até seres capaz de ver para além deles.» Perguntei-lhe o que queria dizer. «Tu só vês o que está à tua frente», disse e fiquei na mesma.

 

Segunda-feira, 23 de Abril de 2001, Plaza del Pan, Sevilha

 

Às 8. h30, Falcón estava à espera, em frente à oficina do joalheiro. O velho apareceu dez minutos depois. Falcón seguiu-o até uma sala que tinha relógios a forrarem as paredes e, suspensos de ganchos em várias prateleiras, centenas de relógios de pulso. Na bancada de trabalho, estavam as entranhas de várias peças.

 

- O senhor não é joalheiro? - perguntou Falcón.

 

- Já fui - disse o velho. - Reformei-me. Acho que este trabalho agora é mais adequado a um homem da minha idade. É sempre bom manter um olho no tempo, quando já se tem tão pouco pela frente. O que me traz?

 

- Queria que me identificasse a qualidade da prata de um anel - pediu Falcón, mostrando o distintivo de polícia.

 

O velho sentou-se, pegou numa lupa de monóculo e esvaziou o saco de plástico da prova para cima de um pedaço de veludo que estava na bancada.

 

- Foi alargado - disse automaticamente. - Utilizaram um teor de prata diferente. A original é prata de lei, que é 92,5 por cento pura, no mínimo. A outra prata é muito menos pura. Vê-se pelo ar mais acinzentado do material. Deve ter uns 20 por cento de mistura na liga, em vez de 7,5.

 

- Onde se encontra prata desta?

 

- Não é feita na Europa. Ninguém a aceitaria. Se me dissesse que o encontrou em Sevilha ou na Andaluzia, diria que veio provavelmente de Marrocos. Eles usam esse teor de prata lá e muita vem para cá sob a forma de joalharia barata. Quando se tira um anel como este, deixa uma marca esverdeada, acinzentada, no dedo. É uma liga com muito cobre na prata.

 

- E quanto ao anel original? De onde é?

 

- Não podia atestá-lo em tribunal, porque não tem contraste, mas, na minha opinião, é espanhol, dosanos 30. Houve uma moda, nessa altura, de os pais darem às filhas anéis de prata quando se tornavam mulheres. Não durou. Já não se vêem.

 

Na Jefatura, foi direito ao laboratório, ter com Felipe e Jorge; e deu-lhes um pedaço de jornal enrolado, contendo uma pequena porção da substância da urna que tinha encontrado em casa. Pediu-lhes para identificarem o material.

 

Ramírez e o resto do grupo estavam à sua espera no gabinete. Ramírez tinha na mão a lista que tinha seleccionado dos nomes dos artistas obtidos no escritório de Salgado. Havia mais de 40 nomes na lista, divididos em três níveis de probabilidade.

 

- Estão aqui imensos nomes - disse Falcón.

 

- Não são apenas os clientes ou rejeitados de Salgado - disse Ramírez. - A Greta reuniu isto: é uma lista de toda a gente da área de Sevilha que está envolvida no mundo da arte e que utiliza filme, vídeo ou alta tecnologia. Começou a trabalhar numa lista para Madrid, também.

 

Ramírez passou-lhe seis folhas de papel, que ele pousou na mesa. Viu uma carta que lhe era endereçada e ignorou-a.

 

- Acho que deviam trabalhar nisto aos pares - disse Falcón. - Ele pode ser perigoso e estar à espera de uma visita nossa... se estiver na lista. Estamos à procura de um indivíduo do sexo masculino, com cerca de 1,80 m de altura e 70 quilos de peso, de compleição escura. Pode ter sangue estrangeiro, talvez do Norte de África. Sabe francês e pode ter tido educação francesa a certa altura da vida, embora seja espanhol e fale sem sotaque. A marca identificadora mais importante, neste momento, é uma mordidela no indicador da mão direita e possivelmente nós dos dedos esfolados ou negros na mão esquerda.

 

Falcón segurou no saco de prova que continha o anel.

 

- Isto foi encontrado na trituradora do lava-loiças da casa de Salgado. É um anel de mulher, que foi alargado para servir no dedo de um homem pequeno. A prata utilizada é de baixo teor, possivelmente com origem no Norte de África. Isto não quer dizer que estejamos à procura exclusivamente de um indivíduo masculino magrebino. Está possivelmente naturalizado espanhol e há várias gerações. Mantenham abertura de espírito neste domínio. Não quero queixas de perseguição racial. O inspector Ramírez vai dividir a lista e distribuir-vos as tarefas.

 

Ramírez levou os homens para o gabinete exterior. Falcón abriu a carta que tinha em cima da mesa e que continha uma marcação para uma consulta com o Dr. David Rato, na Jefatura, às 9h. 30. Voltou a chamar Ramírez e perguntou-lhe quem era aquele médico.

 

- É o psicólogo da polícia - disse Ramírez.

 

- Quer ver-me.

 

- Provavelmente, é apenas uma avaliação de rotina.

 

- Nunca tive nenhuma.

 

- Aos oficiais em situações de grande stress são marcadas - disse Ramírez.

- Eu tive uma depois de ter matado a tiro um suspeito, há três anos.

 

- Eu não matei ninguém.

 

Ramírez encolheu os ombros. Falcón recordou-lhe o encontro com o juez Calderón ao meio-dia. Ramírez saiu do edifício, levando o resto do grupo com ele. Falcón telefonou a Lobo, cuja secretária disse que ia estar fora o dia inteiro. O suor escorreu-lhe de um ponto alto da testa. Apertou um lenço contra a cabeça, como se fosse uma ferida. «Raios partam isto», pensou. As palmas humedeceram-se. Foi à casa de banho, lavou as mãos e a cara e tomou um Orfidal.

 

O gabinete do psicólogo ficava numa parte pouco frequentada da Jefatura, no segundo andar, com uma vista diferente do parque de estacionamento. Foi chamado imediatamente. Apertaram as mãos e sentaram-se. O psicólogo tinha pouco mais de cinquenta anos e vestia um fato cinzento antracite com colete. Tinha uma única folha de papel na secretária, diante dele.

 

- Acho que nunca fui a um psicólogo da polícia - disse Falcón.

 

- Então e as duas vezes em Barcelona? - perguntou o médico.

 

O pânico invadiu-o. Foi directo a um branco da memória. Duas vezes em Barcelona?

 

- Tinha investigado uma explosão de um carro em que morreu a filha de doze anos de um político e houve um tiroteio num escritório de advogado que matou a mãe de três crianças.

 

- Desculpe. Claro, queria dizer desde que estou em Sevilha.

 

O médico fez-lhe um exame físico, que incluiu pesá-lo e medir a tensão. Voltou para a sua cadeira, junto da secretária.

 

- Por que estou aqui?

 

- Está a lidar com um caso muito difícil com pormenores horrendos nos assassínios.

 

- Já vi piores - mentiu.

 

- Todas as pessoas na Jefatura acham que é um dos piores casos de sempre.

 

- Em Sevilha - disse Falcón. - Eu estive em Madrid antes de vir para cá.

 

- Está com menos cinco quilos do que o seu peso habitual.

 

- Casos como este consomem muita energia nervosa.

 

- Naqueles dois casos de que se ocupou em Barcelona pesava 79 quilos. Agora está com 74 quilos.

 

- Não tenho comido com regularidade.

 

- Quer dizer, desde que se separou da sua mulher?

 

Um pequeno abismo abriu-se quando Falcón percebeu quantos factores podiam estar em jogo.

 

- A minha governanta cozinha-me as refeições. Só não tenho tido tempo para as consumir.

 

- A sua tensão está alta. Na sua idade, esperaria que estivesse um pouco acima do seu normal 12/7; mas está com 14/8,5, o que fica já no limite, e tem os olhos encovados. Tem dormido bem?

 

- Durmo muito bem.

 

- Está a tomar algum medicamento?

 

- Não - disse, com naturalidade.

 

- Notou alguma diferença nas suas funções orgânicas? - perguntou Rato. - Suor. Diarreia. Perda de apetite.

 

- Não.

- E nas funções mentais?

- Não.

 

- Pensamentos cíclicos, perdas de memória, tendências obsessivas... como lavar as mãos repetidamente?

 

- Não.

 

- Dores nas articulações? Ombros, joelhos?

 

- Não.

 

- Vê alguma razão para que alguém, dentro ou fora da Jefatura, possa ter ficado preocupado com o seu comportamento, nos últimos tempos?

 

Mais um acesso de pânico. A diarreia que acabara de negar tornou-se uma possibilidade.

 

- Não, não vejo.

 

- O stress actua nos indivíduos de formas diferentes, inspector jefe, mas no fundamental são as mesmas. Formas ligeiras de stress, como o excesso de trabalho com problemas em casa, podem induzir reacções físicas tendentes a fazerem as pessoas parar. Não são invulgares dores nos joelhos. As formas extremas de stress fazem disparar o mecanismo atávico conhecido por «luta ou fuga», uma descarga de adrenalina que lhe dá força para atacar ou fugir. Já não vivemos na selva, mas a nossa selva urbana pode induzir a mesma reacção. A pressão combinada de uma carga de trabalho pesada com pormenores angustiantes, a morte de um parente ou um divórcio, podem desencadear uma subida permanente da adrenalina. A tensão arterial sobe. O peso baixa, devido à perda de apetite. O cérebro acelera. O sono torna-se pouco estável. O corpo reage como se tivesse encontrado qualquer coisa temível. Aparece suor, ansiedade, assomos de pânico, seguidos de perda de memória e pensamentos circulares obsessivos. Inspector jefe, o senhor tem todos os sintomas de um homem em grande stress. Diga-me, quando foi a última vez que tirou uma tarde de folga?

 

- Vou tirar hoje.

 

- Quando foi a última vez?

 

- Não me lembro.

 

- Desde que chegou a Sevilha, há quase três anos, não tirou mais dia nenhum para além de um único período de duas semanas de férias - disse o Dr. Rato. - Qual era a sua carga de trabalho antes de se encarregar desta investigação?

 

Branco. O pânico espalhou-se como éter contra o peito.

 

- Eu digo-lhe, inspector jefe - disse Rato. - Investigou quinze assassínios este ano, contra trinta e quatro do último ano que passou em Madrid.

 

- Onde quer chegar, doutor?

 

- Acha que se está a esconder no trabalho?

 

- A esconder?

 

- Há coisas atraentes, mesmo nos trabalhos horríveis que tem de fazer. Há uma rotina. Há uma estrutura. Tem colegas. E não acaba, se não quiser. Podia preencher o ano só com trabalho burocrático, calculo.

 

- É verdade.

 

- A vida real é uma confusão. Os relacionamentos não funcionam. Os amigos vão e vêm. E, na sua idade, as pessoas vão perdendo energia. Tem de encarar perdas, mudanças, desilusões; mas no meio de tudo isto, há uma hipótese de alegria. Contudo, só se alcança se for estabelecida uma ligação. Quando teve relações pela última vez?

 

Outra pergunta chocante, que quase tirou Falcón da cadeira e o pôs a andar de um lado para o outro da sala.

 

- Não tinha a intenção de ofender - disse o médico.

 

- Não, claro. É só que não me faziam essa pergunta desde os tempos da Universidade.

 

- Os amigos, homens, nunca lhe fizeram essa pergunta?

 

«Nem amigos, nem amigas», pensou Falcón. Quase lhe chegou uma lágrima aos olhos, com o pensamento de que não tinha amigos. Parecia impossível que a vida lhe tivesse escapado desta forma sem se dar conta. Quando tinha sido a última vez que tinha contado com um amigo? Chocou com a parede branca da sua memória, até pensar que Calderón poderia ter sido um amigo.

 

- Quando foi a última vez que teve relações sexuais? - voltou a perguntar o médico.

 

- Com a minha mulher.

 

- Quando se separou?

 

Branco.

 

- No ano passado.

 

- Mês.

 

- Maio.

 

- Foi em Julho, razão pela qual provavelmente não tirou férias - disse o Dr. Rato. - Quando foi a última vez que teve relações antes de se separar?

 

Falcón teve de fazer cálculos, utilizando a mais horrível das álgebras. «Se nos separámos em Julho e ela não me deixou tocar-lhe durante dois meses, então deve dar Maio.»

 

- Isso é que foi em Maio.

 

- Um ano sem sexo, inspector jefe- disse o médico. - Como está a sua libido? «Libido soa bem», pensou. «Parece uma praia privativa. Vamos à libido.»

 

- Inspector jefe?

 

- Provavelmente não tem estado muito boa, como pode ter adivinhado.

 

A imagem de Consuelo Jiménez veio-lhe à memória, ajoelhada em frente da cadeira, com a saia subida. Isso era libidinoso? Cruzou as pernas. O médico deu a consulta por terminada.

 

- Só isto? Não tem nada para me dizer?

 

- Vou escrever um relatório. Não me cabe a mim dizer-lhe o que quer que seja. Está nas mãos dos seus superiores. Não mando em si.

 

- Mas o que lhes vai dizer?

 

- Não é assunto para discutirmos.

 

- Dê-me uma ideia geral - disse Falcón. - «Metam-no num manicómio» ou «mandem-no tirar férias»?

 

- Não se trata de uma opção com escolha múltipla.

 

- Vai recomendar que me seja feita uma avaliação psicológica completa?

 

- Isto foi um inquérito preliminar, seguindo algumas preocupações exteriores.

 

«É o Calderón», pensou Falcón. «Aquela história à porta do apartamento dele, com a Inés.»

 

- Conte-me o que vai dizer no relatório.

 

- A sessão terminou, inspector jefe.

 

Foi mais por sorte do que por opção que Falcón saiu dos curros da Maestranza com Biensolo no seu lote, para Pepe correr nessa tarde.

 

Quase chocou contra um motociclo à saída da Jefatura, e por pouco que não entrou pela traseira de uma caleche, cheia de turistas. Faltavam agora sete sinalizadores de obras no Paseo de Cristóbal Cólon.

 

O processo de selecção de touros passou-lhe ao lado. Chegou-lhe uma vaga conversa sobre a ferida da cornada do nº 484; e os outros confidentes aproveitaram-se da sua distracção para lhe darem o lote que nenhum deles queria. Telefonou a Pepe para o Hotel Cólon e deu-lhe as notícias.

 

Foi para casa. Não estava capaz de coisa nenhuma. A sua concentração esvoaçava como uma bandeira rasgada. A memória crivava imagens e pensamentos desconexos no cérebro. Arrastou-se até ao quarto e atirou-se de barriga para baixo em cima da cama. O corpo balouçava a cada soluço, levantando-lhe os ombros. A pressão era demasiada. As lágrimas correram-lhe para a almofada. Combateu o nó que queria sair-lhe pela garganta. E adormeceu. Sem pastilhas. Pura exaustão.

 

O telemóvel acordou-o. Os olhos pareciam pedras em brasa e as pálpebras estavam encortiçadas. Paco disse-lhe que já estavam no restaurante e que estava prestes a comer-lhe as chuletillas. Tomou um duche com ar de tonto, de queixo caído. Vestiu-se e isso devolveu-lhe algum equilíbrio. Até se sentiu relativamente positivo, como se a explosão nervosa tivesse reparado um mecanismo qualquer, pequeno mas vital.

 

Durante a Feria de Abril, a zona exterior ao Hotel Cólon ficava totalmente ocupada. Os empregados fardados não paravam, porque entravam carros e mini-autocarros e saíam agentes, promotores e membros das equipas. Os aficionados pairavam pelos cafés do outro lado da rua. Eram menos nesse dia, porque não havia grandes nomes em cartaz - Pepín Liria era o mais conhecido, seguido por Vicente Bejarano e depois o desconhecido Pepe Leal.

 

Falcón subiu ao quarto de Pepe. Um dos banderilleros estava em pé no corredor, de mãos atrás das costas. Abriu a porta, como à viúva. Murmurou umas coisas a Pepe e mandou Falcón entrar.

 

Pepe estava sentado numa cadeira, no meio do quarto. A camisa estava desabotoada e por fora das calças. Não tinha casaco, nem gravata, nem sapatos nem meias. O cabelo estava em desalinho nos sítios onde segurava a cabeça. Tinha um veio de suor na testa e no meio do peito. Estava branco. O medo era evidente.

 

- Não me devias ver assim - disse.

 

Bebeu um golo de um copo de água que estava no chão e abraçou Javier; depois correu para a casa de banho e vomitou no lavatório.

 

- Apanhaste-me na descida - disse. - Estou quase a bater no fundo do medo. Daqui a pouco estou a dizer disparates e dentro de meia hora estou um homem diferente.

 

Voltaram a abraçar-se. Falcón detectou o cheiro penetrante do vomitado.

 

-- Não te preocupes comigo, Javier. É bom. As coisas estão a compor-se. Sinto-o. Hoje vai ser o meu dia. La Puerta del Principe vai ser minha.

 

Cuspia as palavras em grande velocidade. Abraçaram-se outra vez e Falcón saiu.

 

Tanto o bar como o restaurante estavam apinhados de gente. O barulho era insuportável. Espremeu-se para passar ao comedor e beijou e abraçou todos à volta da mesa. Sentou-se, engoliu o atum com cebolas, ensopou o pão no molho dos pimentos assados, chupou os ossinhos das chuletillas e bebeu copos de um vinho tinto carregado Marqués de Arienzo. Sentiu-se outra vez em pleno, cheio e sólido. Os nervos estavam intactos. Tinha havido um certo alívio por ter sido apanhado. Já não se importava. Ver Pepe tão profundamente assustado tinha-o feito robustecer-se. Ia aguentar tudo, incluindo o seu fado.

 

Às cinco da tarde, avançaram pelas ruas mornas para La Maestranza. O cheiro de charutos caros e baratos misturava-se com colónia, brilhantina e perfume. O sol ainda ia alto e havia uma brisa muito suave. As condições eram quase perfeitas. Agora era com os touros.

 

O grupo dividiu-se. Paco e Javier tomaram os seus lugares privilegiados de assinantes, na Sombra, e a família tomou os lugares de cortesia, no Sol y sombra. Paco e Javier sentaram-se duas filas acima das barreras. Paco passou ao irmão uma almofada com o ferro da finca bordado. Inspiraram a atmosfera de la España profunda. A multidão murmurante, os Ducados e os puros, os homens com o cabelo penteado para trás em sulcos de brilhantina, ajudando as esposas vestidas de seda a subirem para os respectivos lugares. Uma fila de raparigas com as tradicionais mantillas de renda branca ocupava os lugares por baixo do camarote do director da corrida. Rapazes com caixas de gelo cheias de cerveja e refrigerantes percorriam os patamares. As latas eram sabiamente atiradas e apanhadas pelos clientes, que passavam o dinheiro por entre a multidão cooperante.

 

Os toreros encabeçavam as respectivas quadrilhas, todos em trajes de luces; seguiam-nos três cavalos ruços, de alta escola, perfeitamente ajaezados, de cabeça orgulhosamente erguida. Pepe Leal tinha-se recomposto e estava resplandecente no fato azul e ouro. Tinha a expressão séria de um homem que veio para cumprir o seu trabalho.

 

Os cavalos saíram, seguidos pelas mulas que haviam de arrastar o touro morto para fora da plaza, balouçando as suas borlas vermelhas. Os três toreros ensaiaram passos lentos, bonitos, com as suas capas cor-de-rosa. A expectativa da multidão adensava-se. Os toreros passaram para trás das barreiras, deixando Pepe Leal, a quem cabia lidar o primeiro touro, sozinho no meio da plaza, com a sua capa.

 

A porta para o escuro abriu-se de par em par. Silêncio. Uma voz isolada deu um grito de incitação e o touro de meia tonelada irrompeu na plaza ensolarada, sob o rugido da multidão. O touro olhou em redor, carregou, desistiu e reduziu para trote. Pepe chamou o touro, que passou pesadamente por ele sem manifestar interesse pela capa e foi agredir uma das barreiras com os cornos. Pepe obrigou-o a voltar à arena e executou duas medias verónicas com a capa e a multidão fez-se ouvir.

 

Uma trompete anunciou os picadores, com as suas lanças, que se moviam pesadamente nos cavalos vendados e acolchoados. Pepe conduziu o touro para o cavalo de um dos picadores. Quando o touro bateu, o picador dobrou-se para a frente sobre a lança e traçou o ponto sobre o alto do músculo do cachaço. As patas da frente do cavalo levantaram-se do chão. A multidão aclamou a vontade do touro em carregar e a sua força.

 

Os picadores deixaram a arena. A quadrilha de Pepe alinhou com as suas banderillas, que colocaram eficientemente no pescoço do animal. Pepe avançou para a sua faena e Javier e Paco inclinaram-se para a frente para estudarem o acto final.

 

O nervoso e o desinteresse pela capa que o touro tinha mostrado no início tornaram-se mais evidentes na faena. Levou quase meia faena para que Pepe conseguisse convencê-lo a chegar-se à muleta. Quando o touro finalmente reagiu, a banda tocou un paso doble lento. Pepe avançou bem para matar o touro. Javier e Paco acharam que tinha sido uma actuação meritória com um bicho distraído. A multidão aplaudiu, mas não apareceram lenços no ar a pedir uma orelha.

 

O primeiro touro de Pepín Liria não queria entrar na arena. Acabou por entrar desencabrestado, fez dez investidas e voltou costas. Trotou em redor, marrando contra as barreiras. O único momento alto surgiu quando, ao correr para a capa, um corno apanhou o chão e o touro executou uma cambalhota perfeita de meia tonelada.

 

O touro de Vicente Bejarano era forte e pesado e interessado na muleta. A multidão incitava o animal, mas Bejarano não estava nos seus dias. Não conseguiu forjar qualquer ligação com o bicho e, apesar de ter produzido alguns momentos bem esculpidos, nunca controlou o touro.

 

Às 18h. 40, o sol ainda brilhava sobre a expectante multidão sentada no sector de Sol, quando a porta se abriu e Biensolo entrou a trote e fez a sua avaliação. Não houve precipitação louca, não houve cargas contra as barreiras, nem marradas sem sentido. Olhou em torno da plaza e decidiu que era sua.

 

A multidão murmurou, insegura quanto a este touro, preocupada em que ele soubesse mais do que devia. Pepe saiu ao seu encontro e pôs-lhe a capa aos pés. O touro ofendeu-se com a intrusão e carregou contra ele, rápido, directo, de cabeça baixa. A partir desse momento, a multidão soube que este era o touro do dia e que, se Pepe o controlasse, iam ver algo realmente sublime.

 

- Este havia de ter sido o touro do Pepín - disse o homem sentado ao lado de Paco.

 

- Preste atenção - disse Javier. - No final, vai estar aos gritos com o resto de nós.

 

Pepe executou duas verónicas completas e uma chicuelina com a capa. A multidão estava eufórica com a expectativa. Houve uma troca de palavras entre o torero e o picador e, quando Biensolo avançou sobre o lado acolchoado do cavalo, com tal violência que cavalo e cavaleiro foram transportados pelo ar até à barreira, a turba irrompeu. Adoravam aquele touro.

 

Paco agarrou Javier pelo pescoço e beijou o irmão na testa.

 

- Eso es un toro, no?

 

Um dos banderilleros de Pepe foi excelente a colocar as banderillas. As pontas dos cornos estavam praticamente nas axilas do homem quando ele se inclinou na sua corrida oblíqua e houve um momento sem respiração, em que homem e touro ficaram um só, antes de se separarem miraculosamente.

 

Pepe saiu para a sua faena e a multidão calou-se no mais puro silêncio da Espanha. O silêncio de respeito pelo touro.

 

O touro, de boca fechada, ombros arfantes, com uma faixa vermelha de sangue descendo pelo flanco direito até ao cimo da pata da frente, olhou para Pepe. Pepe desenrolou a muleta, dando ao capote a sua extensão máxima. Avançou para o touro, esticando a ponta do pé em cada passo, segurando a muleta atrás de si. O touro era paciente. A quatro metros, Pepe voltou um ombro para o bicho e abriu o peito e, lentamente, mostrou a muleta, como a dizer-lhe: «Posso oferecer-te isto?» O touro percebeu, correu com força e depressa, baixando os cornos. Pepe pareceu segurá-lo ali, forçando-o a abrandar, de modo a que só quando o focinho tocou na muleta ele o deixou prosseguir, desenhando-lhe o percurso, mostrando-lhe que aquele era o passo real. E foi uma coisa bonita de se ver, a gradual movimentação elástica do corpo de Pepe, suave e forte como ferro trabalhado ao rubro.

 

Levou Biensolo para diante e para trás, e a cada passagem a dança melhorava, a relação crescia mais forte, o respeito mútuo aprofundava-se. A ligação foi feita tão lentamente que a multidão nem deu por que se tinha estabelecido, o pacto selado, que homem e animal iam jogar aquilo até à única conclusão possível.

 

Em momento nenhum da faena Pepe tentou dominar demasiado. Tinha sido isso que ele tinha percebido no touro, desde o momento em que Biensolo entrou na arena. Este era o território do touro e ele permitiu que Pepe entrasse nele.

 

Executou os seus naturales. Biensolo passava por ele em corrida como se estivesse a empurrar a Espanha toda com os cornos. E então, Pepe parou de pé diante do touro e apenas lhe mostrou uma ponta da sua muleta, não maior do que um quadrado de tijoleira, por trás das costas. Algumas mulheres no público não aguentaram e soltaram ais de aflição e gritinhos de medo. O touro avançou com violência passando ao lado da figura solitária, o junco ao vento dobrando-se levemente com a corrente de ar. Sem se virar, Pepe mostrou-lhe outra ponta da muleta e, de novo, Biensolo passou por ele, a rasgar. Até os homens não aguentaram esta. Paco tinha os punhos enfiados nos olhos. O homem ao lado dele chorava. Sabiam que estavam a observá-lo: o impossível génio do homem e animal na sua dança de morte.

 

O silêncio era tão absoluto quando Pepe foi trocar a espada direita pela espada curva de matador, que Javier acreditou que conseguia ouvir as sapatilhas pretas dele na areia da plaza. O touro observava-o, com as patas da frente levemente afastadas, a pata direita e o ombro ainda escorrendo sangue, o peito arfando golfadas silenciosas de ar, as banderillas soando um chocalho de morte nas costas. O seu par de dança voltou, com a muleta debaixo do braço e a nova espada mortal ao lado. A sombra longa de Pepe tocou na cabeça do touro e avançou para ele.

 

Os cornos levantaram-se. As suas mentes voltaram a acasalar. A multidão, que sabia que se Pepe matasse bem Biensolo conquistaria tudo - orelhas, rabo, la puerta del principe -, adensou o já apertado silêncio. Pepe soltou a muleta. Caiu como um contentor de sangue. O touro acenou, consentindo a sua gentil colaboração. Pepe olhou para a posição dos cascos do touro e, com vários passos curtos, manobrou-o para a barreira. Depois provocou-o suavemente com movimentos da muleta até ficar alinhado com os cornos dele apontados para o público da Sombra. Pepe, agora de costas para Javier, moveu-se com leveza, como se temesse perturbar uma criança adormecida. Levantou o estoque. Pepe procurou o alvo do tamanho de uma moeda entre os ombros do touro. Os pés firmaram-se-lhe contra o chão da plaza. O corpo já não era humano e tinha assumido a forma de uma ave brilhante correndo sobre a água.

 

O clímax. A velocidade era de cortar a respiração, quando as duas forças se encontraram.

 

Mas correu mal. A cabeça de Pepe levantou-se. A espada bateu no osso e resvalou. O corno direito rasgou-lhe o interior da coxa e, com uma pirueta desajeitada, Biensolo atirou-o ao ar. Foi tão rápido que ninguém se mexeu quando Pepe rebolou no vendaval triunfante dos cornos do touro. O corpo de junco veio para baixo, tão partido como a vítima de um torturador, e o corno desapareceu na sua barriga. O touro correu para a frente, de cabeça baixa, pondo a funcionar um atavismo recuperado, agora que o pacto entre ambos tinha sido quebrado. Marrou nas tábuas da barreira com um estouro surdo que deixou o público todo em tensão absoluta. A quadrilha de Pepe irrompeu do fosso. A paralisia abandonou a multidão e as mulheres soltaram gritos lancinantes em uníssono. Javier correu para as tábuas, saltando por cima das cabeças dos espectadores horrorizados. Correu, veloz, para a barreira onde Pepe estava entalado. O touro marrava selvaticamente na sua presa, com uma força renovada. Pepe agarrava o corno espetado na barriga com ambas as mãos, como um general que tivesse visto o desastre e se executasse a si próprio. O rosto apenas mostrava a tristeza do malogro.

 

A quadrilha tentava insistentemente distrair o touro. Por cima da barreira, estendiam-se braços para segurar em Pepe. As suas pernas dilaceradas, com o horrível traço vermelho da artéria femural impulsionando um sangue espesso, escuro, vital, que batia e salpicava as tábuas.

 

O touro afastou-se, voltando-se vicioso para as capas ondulantes à sua volta e olhando cada um individualmente, como um imperador vitorioso mas impopular, que tem de suportar a frivolidade da política em tempos de paz.

 

Içaram Pepe por cima da barreira, de braços agora abertos, com o vermelho a borbotar-lhe do estômago e, por instantes, tão desamparado como uma pietà, quando o levaram da arena para a enfermaria.

 

Javier correu atrás dos seis homens que carregavam Pepe, que lhe estendeu uma mão. As notícias correram velozes e nem se preocuparam em levá-lo para a enfermaria, mas directamente para a ambulância. Os paramédicos puseram-no numa maca e projectaram-no para dentro da ambulância.

 

Pepe chamou Javier, as palavras pouco mais que um sopro.

 

Falcón debruçou-se sobre as costas do paramédico que estava já a apertar uma compressa na ferida do estômago. A ambulância saiu a toda a velocidade da plaza. O outro paramédico cortou as calças e mergulhou as mãos na ferida profunda na coxa de Pepe. Pepe arqueava as costas e gritava de agonia. O paramédico pediu um grampo. Atiraram um pacote a Javier, que o rasgou e passou o grampo ao paramédico que estava a mexer na ferida, tentando encontrar a artéria. Javier segurou na mão de Pepe, acolheu a cabeça dele no seu colo. Não havia sangue no rosto de Pepe e a palidez da morte estava a tomá-lo. Javier apertou-lhe os ombros, sussurrou-lhe ao ouvido tudo aquilo de que se lembrou que pudesse ajudá-lo a resistir.

 

A ambulância desfilou pela Cristóbal Cólon abaixo, com as sirenes aos berros, e avançou para o viaduto perto da Plaza de Armas. Pepe passou a língua pelos lábios. A sua boca estava tão seca como cartão, devido à catastrófica perda de líquidos; e a sua mão tão fria como carne morta. O paramédico cortou a manga do traje de luces de Pepe e arrancou um saco de sangue do frio.

 

O outro paramédico gritou pelo grampo. Javier dobrou-se e estancaram a artéria femural. Virou-se para ajudar a ligar o litro de sangue ao braço de Pepe. Javier gritava a Pepe para aguentar. Viu que ele tentava falar. Pôs o ouvido junto aos lábios dele. Até o hálito do rapaz estava frio.

 

- Lamento muito - disse Pepe.

 

Terça-feira, 24 de Abril de 2001, Sevilha

 

Tinha chovido durante a noite. O novo dia amanheceu lavado e refrescado. O sol brincava com as contas de orvalho nas árvores gotejantes e os primeiros jacarandás abriram as suas flores violáceas no alto. Falcón parou quando as viu, encostou o carro e baixou o vidro. Raramente fizera aquilo na cidade - encontrar na natureza uma expressão das complexidades da condição humana. Mas a folhagem verde, frágil, recortada dos jacarandás pairando contra o céu azul límpido, e os cachos de flores violetas-pálidos dependurados na manhã sem vento, falavam a mesma linguagem: todos falavam de dor.    

 

Ligou o rádio do carro. As notícias locais foram todas sobre Pepe Leal. A comunicação social tentava criar uma história em torno do facto de, precisamente quando Pepe avançou para a estocada, ter erguido a cabeça. Um jornalista tauromáquico falou inconclusivamente acerca de uma incompreensível distracção. Alguém, no painel, falou do grande número de flashes de •máquinas fotográficas que tentavam captar o momento. Outra pessoa dizia que se lembrava de um flash maior. O jornalista tauromáquico zombou dele. O mito tinha começado. Falcón desligou o rádio.

 

Quando chegou à Jefatura, os homens já se tinham dispersado. Só RamíIrez tinha ficado. Apertaram as mãos. Ramírez abraçou-o e apresentou-lhe as suas condolências. Passou-lhe uma mensagem, dizendo que o comisario León o queria ver logo que chegasse. Apanhou o elevador para o último andar, olhando para o seu vago reflexo nos painéis de aço inoxidável. Estava preso por fios. Não ia apresentar resistência.

 

Dez minutos depois, descia outra vez. O peso do comando tinha-lhe sido tirado dos ombros. Tinham-lhe sido atribuídas duas semanas de licença por luto e tinha de fazer uma avaliação psicológica completa quando regressasse.

 

Não disse nada. Estava sem defesas. Foi ao gabinete e limpou a secretária descobrindo que não havia nada de pessoal, apenas algumas cartas, que pôs no bolso, e o revólver de serviço, que devia devolver ao armeiro mas não devolveu.

 

Às seis da tarde, acompanhou o funeral de Pepe Leal. Toda a comunidade tauromáquica esteve na cerimónia. Paco estava lá, inconsolável e descontrolado. Com as mãos na cara, de ombros a abanar com a tragédia toda pesando sobre ele. Toda a gente chorava. Os acompanhantes, os empregados do cemitério, as floristas, os passantes, os visitantes. E a dor era genuína, só não era por Pepe Leal. Ele era praticamente desconhecido para aquela gente. Não era um grande nome. Javier, de pé, sofrendo de olhos secos no meio dos choros e fungadelas, compreendeu por que era aquela dor. Estavam a carpir as suas próprias perdas - juventude, perspectivas, saúde, talento. A morte de Pepe Leal tinha, pelo menos temporariamente, posto um ponto final na possibilidade. Era por isso que Javier achava de mau gosto e não queria chorar com eles. Não se juntou a eles a seguir. Foi para casa, para a sua casa silenciosa e magoada, e para o luto da sua licença forçada.

 

Sentou-se no escritório, ainda de gabardina, rabiscando num papel com uma caneta. Queria sair da cidade. O corno de Biensolo tinha feito um buraco na Feria e Falcón sairia da cidade para derramar lágrimas de sangue pela morte de Pepe. Pegou num mapa de Espanha, colocou um lápis sobre Sevilha e rodou-o três vezes. Das três, apontou sempre claramente para Sul. E ao sul de Sevilha não havia nada a não ser uma aldeiazita de pescadores chamada Barbate. Mas para lá do estreito, em frente a Barbate, ficava Tânger.

 

O telefone tocou, sobressaltando-o. Não atendeu. Dispensava mais condolências.

 

Na manhã seguinte, fez a mala, incluiu o diário que lhe faltava ler, pegou no passaporte e tomou um táxi para a estação de camionagem, nas traseiras do Palacio de Justicia. Cinco horas e meia depois, estava a bordo de um ferry em Algeciras, a caminho de Tânger.

 

A viagem demorou uma hora e meia. Passou a maior parte desse tempo a observar uma versão marroquina de si próprio, tomando notas dos pormenores de um grupo de seis rapazes - imigrantes ilegais, que estavam a ser repatriados.

 

Estavam animados. Os turistas mostravam-lhes o polegar voltado para cima e davam-lhes cigarros. O polícia era firme, mas não era antipático.

 

Tânger surgiu da bruma sem lhe trazer resquícios de uma única memória. O longo Inverno chuvoso tinha deixado os campos em redor viçosos e de um verde profundo, cor que não associava a Marrocos. Havia qualquer coisa de familiar na cascata de casas caiadas e carcomidas dentro das paredes da cidade velha, descendo da alcáçova, no alto da falésia, até à mesquita central, na parte baixa. Para lá dos muros, a ville nouvelle tinha-se espalhado mais em torno da baía. Tentou encontrar a velha casa onde tinha sido o estúdio do pai, mas ou estava escondida pelos blocos de apartamentos ou tinha sido destruída para lhes dar lugar.

 

O taxista levou-o do porto para o Hotel Rembrandt e tentou cobrar-lhe 150 dirhams, o que provocou uma discussão renhida e um desconto desonroso, com metade desse montante a mudar de mãos. Na recepção, ainda com o esplendor de mármore dos anos 50, foi-lhe dada a chave do quarto 422 e levou ele próprio a bagagem para lá.

 

O hotel tinha sofrido com um meio século muito interventivo. Faltava um painel de vidro a uma das portas do quarto. A tinta estava a descamar-se do metal das janelas. A mobília parecia que se tinha refugiado das sevícias de um marido violento. Mas tinha uma vista perfeita da baía de Tânger e Falcón sentou-se na cama a admirá-la, enquanto se espalhavam pela sua cabeça pensamentos de desenraizamento.

 

Saiu para comer qualquer coisa, por saber que comem cedo em Marrocos; mas descobriu que tinham duas horas de diferença da Espanha e às seis da tarde não havia nada aberto. Caminhou até à Place de France, depois passou pelo Hotel El Minzah até ao Grand Soco; entrou na medina pelo mercado, o que o levou a uma rua próxima da catedral espanhola. Daí, tentou lembrar-se do trajecto para a antiga casa da família. Devia tê-lo percorrido milhares de vezes com a mãe. Não conseguiu recordá-lo e em breve estava perdido no emaranhado de ruelas estreitas, até que, perfeitamente por acaso, se viu diante de uma casa que reconheceu.

 

A porta foi aberta por uma criada que só falava árabe. Desapareceu. Um homem dos seus cinquenta anos, vestindo um albornoz branco e babuchas de pele brancas veio à porta. Falcón explicou-se e o homem ficou siderado. Tinha sido o pai dele a comprar a casa a Francisco Falcón. Javier foi convidado a entrar. O homem, Maomé Rachid, levou-o a ver a casa, que continuava estruturalmente exactamente igual, com a figueira ainda no mesmo lugar e o estranho quarto com a janela no alto.

 

Rachid convidou Falcón para jantar. Por sobre uma grande tigela de cuscuz, Javier revelou que a mãe tinha morrido naquela casa e perguntou se algum dos vizinhos estaria vivo nessa altura. Um dos rapazes foi mandado à rua com instruções. Voltou minutos depois com um convite para tomar café na casa ao lado.

 

A família vizinha incluía um senhor de setenta e cinco anos, que teria trinta e quatro à data da morte da mãe. Lembrava-se do incidente muito bem, porque a maior parte do que aconteceu tinha tido lugar à sua porta.

 

- O que foi invulgar foi que apareceram dois médicos - disse o velho - e houve um desentendimento sobre qual devia ver a paciente. Entretanto, a mulher, a sua mãe, já tinha morrido e, por isso, o seu pai tinha chamado o médico dele para tratar do assunto. O seu pai regressou do estúdio para tomar o pequeno-almoço e encontrou a mulher morta na cama. Na confusão, chamou o único médico que conhecia, que era o seu. Um alemão. O médico da sua mãe, um espanhol, pareceu compreender o sucedido e preparava-se para se ir embora quando uma rifenha, a criada da sua mãe, saiu da casa em alvoroço e anunciou que a patroa tinha sido envenenada. Segurava um copo de qualquer coisa, que disse estar à cabeceira da patroa. Ninguém acreditou nela e tomou a iniciativa dramática de beber o líquido. O seu pai arrancou-lhe o copo da mão e, com grande encenação, ela caiu para o chão. Houve grande consternação. O médico espanhol avançou para ela. Mas era uma encenação. Ela não estava morta. Não havia veneno. E a criada foi despedida por ser histérica.

 

Falcón não conseguiu controlar as mãos trémulas, nem juntando-as. O suor começou a descer-lhe pelo rosto e uma tontura abalou-lhe a cabeça, perante a leveza desta reconstituição do drama. Sentado em almofadões no chão, pôs-se vacilantemente de pé, batendo na chávena de café por beber. Maomé Rachid levantou-se para o ajudar.

 

Caminharam até uma praça de táxis, no Grand Soco, e um Mercedes amassado levou-o de volta ao Hotel Rembrandt. Uma vez fora da casa e da medina, acalmou, controlando o pânico. O relato benigno do velho tinha-lhe trazido toda a história à memória. O horror daquela manhã. A mãe morta na cama e aquela incrível agitação na rua. Lembrava-se disso e, no entanto, ainda havia falhas, e não tinha querido que o velho continuasse porque... Não sabia porquê. Tinha querido sair dali quanto antes.

 

De regresso ao hotel, afundou-se na cama, na escuridão do quarto, e olhou para o mar por cima das luzes da cidade e do porto. Estava arrasado. O corpo era percorrido por um espasmo de solidão. E toda a dor diferida pela morte de Pepe veio à tona. Caiu para trás, encolheu os joelhos na posição fetal e tentou recompor-se, com medo de, se não o fizesse, se fragmentar sem possibilidade de recuperação. Horas mais tarde, libertou-se e despiu a roupa toda. Tomou uma pastilha para dormir, puxou as roupas de cama para cima dele e perdeu o conhecimento.

 

A manhã estava quase a acabar quando acordou. Não havia água quente. Tomou duche de água fria, o que lhe trouxe claramente ao espírito o inexplicável facto de estar a chorar uma torrente mansinha de lágrimas que era impotente para travar. As mãos caíam-lhe inertes e abanou a cabeça de tristeza. O corpo estava fora do seu controlo.

 

Foi até à Place de France e tomou um café no Café de Paris. Daí, foi até ao consulado espanhol e, depois de mostrar a sua identificação de polícia, perguntou se ainda havia algum espanhol a viver em Tânger que estivesse lá nos anos 50 e 60. Disseram-lhe para ir a um restaurante chamado Romero e pedir para falar com uma Mercedes com aquele apelido.

 

O restaurante ficava num jardim, encaixado entre duas ruas que davam para uma praça. A porta foi aberta por um idoso, de casaco branco e fez, cujas dificuldades respiratórias eram manifestas. No caminho para a mesa, foi atacado por um cão pequinês. Javier fez um esgar de dor em resposta ao latido penetrante.

 

Encomendou um bife e perguntou por Mercedes Romero. O velho apontou para uma senhora de idade, loura e bem penteada, que fazia paciências numa mesa isolada, do outro lado do restaurante vazio. Pediu ao empregado para lhe levar uma nota de apresentação, que escreveu numa página do bloco de notas. O homem avançou num passo pouco firme, colocou o papel diante de Mercedes, transmitiu-lhe a encomenda e foi-lhe dado dinheiro para ir comprar o bife.

 

Mercedes atravessou lentamente a sala. Agarrou no pequinês pelo cachaço, fez-lhe uma festa na barriga e atirou-o para baixo de uma mesa vazia. Sentou-se em frente dele e perguntou-lhe se era filho de Francisco Falcón, o que Javier confirmou.

 

- Não o cheguei a conhecer. Nem à Pilar; mas fui grande amiga da sua madrasta, Mercedes, que era mais ou menos da minha idade. Ela costumava comer no restaurante que a minha família tinha então no Grand Hotel Villa de France. Éramos muito chegadas e fiquei arrasada com a morte dela.

 

- Nunca lhe chamei madrasta - confidenciou Falcón. - Sempre me referi a ela como a minha segunda mãe. Também éramos muito chegados.

 

- Sim, ela disse-me que pensava em si como seu filho natural e como ansiava por vê-lo seguir as pegadas do seu pai. Esperava que viesse a ser um pintor ainda maior do que ele.

 

- Eu só tinha uns oito anos, nessa altura.

 

-Então não se lembra disto - disse ela, acenando para trás dele.

 

Numa moldura simples, na parede por cima da sua cabeça, estava um desenho linear de mulher. Por baixo, estava escrito «Mercedes».

 

- Não, não lembro.

 

- Foi você que desenhou aquilo, no Verão de 1963. A Mercedes deu-mo como presente de Natal. É ela, evidentemente, não sou eu. Perguntei-lhe por que mo dava e ela disse uma coisa estranha: «Porque contigo sei que fica seguro.»

 

As lágrimas afloraram aos olhos de Falcón. Tinha desistido de fazer qualquer tentativa para controlar as suas emoções.

 

- Ela afogou-se - disse ele. - Ainda me lembro da noite em que saiu e não voltou. Nunca recuperaram o corpo e acho que não a ter visto tornou tudo mais difícil. Vi a minha mãe no caixão...

 

- Onde está o seu pai agora? - perguntou Mercedes.

 

- Morreu há dois anos.

 

- Talvez se lembre de uma pessoa dessa época: o agente do seu pai, Ramón Salgado?

 

Falcón abanou a cabeça como um louco; contou-lhe como Salgado tinha acabado de ser assassinado e que ele era o responsável pela investigação. E revelou que era por isso que estava em Tânger. Foi nessa altura que o velhote do fez voltou a coxear com o bife e a salada, para cima da qual arfou abundantemente, enquanto servia.

 

- Talvez se fosse detective naquela altura tivesse lidado com o assunto da morte da Mercedes de uma maneira mais efectiva do que a polícia local.

 

- Por que diz isso?

 

- Não acredito em boatos (oiço demasiados, aqui no restaurante); mas houve muitos por aí, na altura. Suficientes para fazer alguém que investigasse seriamente aquela tragédia colocar perguntas mais incisivas do que as que foram postas na altura.

 

- O que está a insinuar, Sra. Romero? - perguntou Falcón calmamente.

 

- Eu não devia dizer mal dos mortos, mas a Mercedes era minha amiga e tive muita pena de a perder, especialmente num acidente de barco. Ela tinha passado imenso tempo em barcos. O marido, o Milton, tinha um. Tinha navegado através do Atlântico várias vezes. Era uma marinheira segura e aguentava-se bem no mar. Não cometia erros. Disseram que a noite estava agitada, que se tinha levantado uma tempestade no estreito, mas eu posso assegurar-lhe que não foi nada comparado com algumas tempestades que atravessou no Atlântico. Disseram que caiu ao mar e, lamento, mas não acreditei nisso. Não acreditei no boato que corria sobre a extraordinária falta de cuidado do seu pai, que o levara a perder duas mulheres. Rejeitei-o. Mas quer o seu pai quer Ramón Salgado deviam ter sido forçados a prestar contas dos seus actos num inquérito oficial, pelo menos.

 

Falcón levantou-se da mesa, sem ter tocado no bife e saiu do restaurante. Não estava preparado para ouvir aquele tipo de coisas. Era o que acontecia quando alguém se tornava famoso. As pessoas adoravam especular por sua conta. Muito bem. Mas ele não ia tomar parte nisso. Voltou a pé directamente para o Hotel Rembrandt, correu para o quarto 422 e atirou-se para cima da cama, dobrou uma almofada sobre as orelhas e apertou os olhos com força. Era de noite quando acordou e exibia-se uma grande tempestade por cima do estreito, até Espanha. A cortina de relâmpagos cobria centenas de quilómetros, iluminando o vasto céu, com pilhas de nuvens fervilhando na noite. Na rua, a chuva caía em bátegas. Procurou um restaurante e comeu uma tagine de borrego acompanhada de uma garrafa de Cabernet Président. Voltou vacilante para o hotel, caiu para cima da cama e acordou a suar, completamente vestido. Despiu-se e rastejou de volta para a cama. A chuva fustigava e escorria na janela.

 

Sexta-feira acordou cinzenta e empapada. Tinha uma última investigação para fazer, que provavelmente se revelaria menos proveitosa do que o resto. Pagou o hotel e apanhou um grand taxi para Tetuão, que se avariou pelo caminho, fazendo com que chegasse já ao fim da tarde. Deu uma volta rápida pela comunidade espanhola da cidade, tentando encontrar alguém que pudesse ter conhecido a família González, que tinha um hotel por volta dos anos 30.

 

Pelas sete da tarde, tinha perdido o seu guia na medina e andava à toa pelas ruelas, atrás de carroças com pilhas altas de menta fresca, quando deparou com uma cena, numa rua estreita, que o paralisou totalmente de pânico.

 

Um homem com uma carroça de bilhas de metal estava a vazar leite nas cabaças das mulheres da terra, nas quais elas fariam iogurte. A toalha de líquido branco provocou-lhe náuseas. A calma branca das cabaças cheias fê-lo voltar-se e desatar a correr como louco pelas ruas, até sair da medina.

 

Desistiu de tentar encontrar alguém que lhe explicasse «o incidente» dos diários do pai. Encontrou um hotel barato com bar. Bebeu cerveja e comeu albóndigas no meio de uma multidão de homens marroquinos, sob uma densa atmosfera de fumo de cigarro. Entrou na conversa comezinha só para não voltar a resvalar para pensamentos desesperados.

 

Nessa noite, foi acordado por um sonho, um sonho terrível, que o obrigou a levantar-se para fugir dele. O sonho era sobre o nada, era apenas uma terrível brancura - um vazio amorfo e devorador, sem memórias, sem passado, sem presente e sem futuro. Era o fim dos tempos e parecia reclamá-lo.

 

Excertos dos diários de Francisco Falcón

 

12 de Janeiro de 1958, Tânger

 

Voltei para casa cedo, para fazer uma surpresa ao Javier no seu segundo aniversário; mas nem ele nem a P. estavam em casa. Os outros garotos estão na escola. Estava apenas a única criada em casa, uma rifenha que fala um dialecto berbere impenetrável, que só a P. compreende. Fiquei danado e voltei para o estúdio. Pintei uma tela com terríveis traços vermelhos, como se estivesse a abrir caminho pelas linhas do inimigo. O resultado foi um trabalho de uma energia aterradora, terrível violência, como só me acometeu no campo de batalha. Queimei-o; e ver os traços de tinta serem consumidos pelo fogo deu-me um prazer quase sexual.

 

15 de Julho de 1958, Tânger

 

O R. apareceu-me no estúdio (nunca o tinha feito antes). A G. está grávida outra vez e ele está num estado terrível. Contava que eu o admoestasse. Não disse nada e ele chamou-me amigo de verdade. O médico foi violentíssimo com ele. Repetiu-me tantas vezes que tinha sido um acidente, que deixei de acreditar nele. «Desta vez, vou perdê-la», disse; e eu vi a sua paixão por ela, uma paixão que eu costumava sentir pela P. e que agora tenho pelo Javier. Fiquei comovido e tentei acalmá-lo. «Ela vai ter de ficar em repouso absoluto durante toda a gravidez», disse ele. E pela primeira vez, achei que estava ali mais alguma coisa em jogo. Parecia assustado pelo facto de ela não se poder deslocar e, quando o pressionei sobre essa questão, disse de repente: «Devíamos ir todos embora e voltar para Espanha.» Acho que está com problemas nos negócios, mas não se estendeu sobre o assunto.

 

25 de Setembro de 1958, Tânger

 

Tenho sido um ingénuo. Devia saber que, embora o R. se oriente nos negócios com crueza e tacto, quando toca a assuntos de coração, é um rapazinho, incapaz de objectividade e sujeito ao capricho das suas, ainda adolescentes, paixões. Sei agora por que não me conseguiu dizer nada antes. Estava envergonhado. Parece espantoso, vivendo em Tânger, onde as orgias da Roma Antiga parecem tão bem comportadas como os encontros da hora do chá em Inglaterra, que um adulto seja capaz de sentir vergonha. O R. é uma ilha de virtude no meio de um mar de falta de vergonha. Nunca se deslocou a locais de rapazinhos e choca-o a ideia, a que chama «antinatural». Desde que conheceu a G., tanto quanto sei, nunca transgrediu, nem sequer com uma prostituta, nem mesmo antes do casamento. Só o pensamento da excitação na sua noite de núpcias deixa-me doente.

 

As revelações do R. foram um choque para mim e saíram-lhe com visível dificuldade. Estávamos na varanda do estúdio e, quando não estava a segurar a cabeça com as mãos, a fazer-me a sua confissão (que começou por parecer de um prelado gordo e corrupto), andava de um lado para o outro e sempre alerta, não fosse alguém na vizinhança ouvir. O R., aos trinta e cinco anos, transgrediu, mas de uma forma incrivelmente irresponsável. Percebo que tenho andado a tomar o assunto de ânimo leve, mas o que o R. fez é grave. Não estou certo de que tenha sido possível sem a astúcia dos marroquinos com quem tem tido negócios. Nós, europeus, e os americanos, em particular, somos impressionados pelos pontos fortes, gostamos de vê-los diante de nós, especialmente nos negócios. Os marroquinos, contudo, e talvez os africanos em geral, não se interessam tanto pelos pontos fortes, que estão sempre à vista, mas pelos fracos, que estão escondidos. É triste que a virtude seja vista como uma fraqueza... ou será uma virtude? Sempre me perturbou a paixão do R. pela G. quando ela era ainda uma criança. Voltou a sucumbir. Viu uma das filhas mais novas do sócio dele de Fez. A rapariga ainda não usava véu, pelo que não devia ter ainda doze anos. O interesse do R. foi captado, a rapariga foi disponibilizada, o R. transgrediu e agora está em causa a que é provavelmente a coisa mais séria na sociedade marroquina - a honra. O R. tem de casar com a rapariga. Isso é impossível. E aqui está o fosso cultural e a razão para o tormento do R. Há uma solução: sair do país. Perde todos os investimentos no projecto marroquino, que ascende a 25 000 dólares. Mas a G. não se pode mexer e ele não pode deslocar a família sem fazer algumas revelações desagradáveis. Teme que, agora que a Zona Internacional já não existe, a família corra riscos. De quê? Deixou a sua revelação final para o último momento. A rapariga árabe está grávida. Acha que, se deixar Tânger, pode haver um ataque de retaliação sobre a família.

 

7 de Outubro de 1958, Tânger

 

Como medida de segurança, o R. alugou uma casa quase em frente da sua e colocámos lá quatro Legionários. A pressão sobre ele está a aumentar e ele está a ganhar tempo, continuando a investir dinheiro no projecto marroquino. Custa-lhe milhares de dólares, mas ele está preparado para pagar qualquer montante. A P. esteve com a G. e ela não está em condições de ser deslocada, muito menos para fazer uma travessia do estreito no Inverno.

 

14 de Dezembro de 1958, Tânger

 

A pressão sobre o R. tem sido demasiada. A saúde ressentiu-se e tem estado em casa com uma infecção pulmonar. Andei-lhe a dizer que, assim que estivesse melhor, devia ir-se embora. Foi o que fez ontem, levando com ele a Marta, a menina de seis anos (que, depois das dificuldades do parto, ficou um bocado apatetada). O R. fez tudo o que era possível. Subornou Tânger inteira. Não sei a extensão dos recursos dele, mas devem ser consideráveis, ao ponto de aumentar o seu investimento com os marroquinos para 40 000 dólares. Deu-lhes uma desculpa qualquer para ter de ir a Espanha e que não tinham nada a temer de um homem de honra. Gostava de saber mais a respeito desta gente, mas o R. não me deixa aproximar desse tipo de soluções. Não faço ideia se são oportunistas que viram uma maneira de espremer um europeu vulnerável, ou se são tradicionalistas genuínos que observam as convenções e um código de conduta antigos. O R. diz que eles não percebem por que é que ele simplesmente não se divorcia da G. Na cultura deles, têm apenas de dizer as palavras três vezes e está feito.

 

22 de Janeiro de 1959, Tânger

 

As águas da G. romperam e ela entrou num prolongado trabalho de parto, que a P. descreve como sendo uma contracção quase constante. A P. estava convencida de que o bebé não ia ser capaz de sobreviver ao trauma. Telefonei ao R. para Espanha. Recebeu a notícia em silêncio. Doze horas depois, apareceu em casa, que estava escura como um túmulo numa manhã sombria de Inverno. O médico espanhol, de cinquenta e cinco anos, e a parteira fizeram tudo para tirarem o bebé. Mas ele estava virado ao contrário e ainda por cima entalado. A atmosfera na casa era de desânimo. Havia qualquer coisa de câmara de tortura naquilo, com os gritos da G., a atenção do pessoal médico e a desolação pesada e escura de todos nós. Depois de cinquenta e duas horas, o rapaz saiu. Pesava três quilos. A G. ficou tão exausta que, se dormisse demasiado profundamente, podia nunca mais acordar. O médico teve um monólogo brutal com o R., que lhe perguntou quando é que a G. se podia deslocar. «Ela pode nunca mais sair desta casa viva, mas sabê-lo-á dentro de uma semana», disse ele.

 

7 de Fevereiro de 1959, Tânger

 

Desci ao porto, com os bolsos cheios de dólares. É melhor para a G. ser deslocada num mar tranquilo do que levada para Ceuta por estradas difíceis. A noite está calma. Os oficiais são maleáveis. Trouxemos a G. para o porto num Studebaker pesadão e metemo-la no iate que o R. fretou. Quando estavam quase a sair, chegou um carro de polícia ao cais e gerou-se uma discussão em que os documentos foram confiscados, a autorização de saída revogada e tivemos de ir todos à esquadra para interrogatório. Perguntámos qual era a acusação e ficámos siderados quando declararam fraude, mencionando a empresa em que o R. tinha andado a investir. O R., acreditando que o jogo tinha chegado ao fim, avançou 200 dólares. A quantia era tão grande que se gerou um silêncio profundo, em que a situação podia dar para um lado ou para o outro. O dinheiro foi metido ao bolso. Os documentos devolvidos. A autorização dada. E com direito a continência.

 

12 de Fevereiro de 1959, Tânger

 

Quando os legionários que eu tinha colocado na casa em frente da do R. iam a sair, um grupo de marroquinos apareceu com polícia e um mandato. Deitaram a porta da casa do R. abaixo e retiraram todo o conteúdo. Mais tarde, apareceu uma carta em minha casa, em árabe, que eu não sei ler. Levei-a à Legação Espanhola, onde até o tradutor empalideceu com o conteúdo.

 

Sou Abdullah Diouri. Fui sócio do seu amigo cujo nome não consigo escrever. Talvez saiba que ele ofendeu profundamente a honra da minha família. Tratou uma das minhas filhas mais novas como uma vulgar prostituta. A vida dela ficou arruinada. Não há dinheiro que possa reparar o mal que lhe foi feito e ao nome da minha família. Fica a saber que desisti dos negócios em que eu e os meus sócios tínhamos investido.

 

Diga ao seu amigo que a família de Abdullah Diuri será vingada e o preço será exactamente o mesmo que nos foi extorquido. Perdi uma filha, a minha família foi desonrada. Vou procurar o seu amigo até ao fim do mundo e reclamar dele a honra da minha família.

 

Era a crueza e a falta de afectação desta carta que lhe davam o selo de autenticidade. Os pontos por cima e por baixo das linhas caligrafadas tinham sido acrescentados a tinta vermelha. O efeito era de sangue aspergido. Mandei o original e a tradução ao R., que ainda não tinha conseguido tirar a G. do hospital de Algeciras, onde chegou inconsciente depois da travessia.

 

17 de Março de 1959, Tânger

 

Tenho estado demasiado ocupado com os problemas do R., nestes últimos seis meses, para abarcar o fim de uma era. Essa noção tem-se materializado sub-repticiamente em mim e vejo-me mergulhado na agitação da sua esteira. A partida do R. atingiu-me com mais força do que pensava. Sento-me sozinho na sua mesa do Café de Paris e a conversa parece um lamento contínuo. Os escritórios fecharam. Não se pode carregar tabaco nem bebidas no porto. Os hotéis estão vazios. Temos de usar o dirham. As lojas elegantes do Boulevard Pasteur fecharam e foram tomadas por marroquinos que vendem lixo para turista. Se não fosse a B. H. no palácio de Sidi Hosni, teríamos saído completamente do palco do mundo. O meu trabalho encalhou. Tudo o que pareço andar a fazer é a copiar De Kooning, apesar da M. me escrever a dizer como tem sido admirada a minha «humanisagem» por aqueles que frequentam a casa do M. G. Mesmo essas palavras não conseguem estancar a minha sensação de declínio. Sinto-me como um velho romano, após uma bacanal, exausto e apático, prostrado de tédio e ansiedade ante a queda do Império.

 

O R. mandou-me recado de que está a viver na Sierra de Ronda. O ar seco e claro faz bem à G.

 

18 de Junho de 1959, Tânger

 

O primeiro calor do Verão é brutal. O meu cérebro está fervilhante de nada. Arrasto-me pelas carpetes do meu estúdio, bebendo chá e fumando. Durmo toda a tarde e acordo às oito da noite, quando a temperatura já é mais suportável.

 

Lembrei-me de repente que é o aniversário da P. e que não lhe comprei uma prenda. Remexo nas gavetas e encontro um cubo de ágata num anel de prata barato. Deve ser um salvado da M. Enfeitei-o com papel colorido à volta, de modo a parecer o pistilo de uma flor. Fechei-o numa caixa e apertei uma tampa por cima, de maneira a que salte quando abrir. Atei com tiras de tecido vermelho e fui para casa.

 

Pela meia-noite, tínhamos jantado. As crianças estavam prestes a ir para a cama quando me lembrei do presente. Mandei o Javier dar a volta à mesa até junto dela com a minha caixinha. A P. abriu-a com grande cerimónia. A flor saltou e a tampa da caixa bateu no nariz do Javier. Ficou toda a gente encantada, incluindo a P., mas depois a sua cara foi atravessada por um olhar de completa perplexidade. Fiquei em pânico que pudesse ser um dos velhos anéis dela e que eu lho estivesse a dar outra vez. Mas tinha a certeza de que não era. Ter-me-ia dado conta. O momento passou. Ela pôs o anel. Beijei-a e reparei que era o único anel no seu dedo, para além da aliança de casamento. Isso surpreendeu-me, porque havia sempre um anel que ela não tirava - um aro de prata decorado com uma pequena safira, que lhe foi dado pelos pais quando se fez mulherzinha. Quase lhe perguntei se o tinha perdido, mas aquele olhar na sua cara quando viu o cubo de ágata deixou-me pouco à vontade.

 

Sábado, 28 de Abril de 2001, Tetuão, Marrocos

 

Falcón levantou-se cedo para apanhar o grand taxi para Ceuta antes do romper da aurora. De lá, tomou o barco para Algeciras. O último registo do diário queimava-lhe no cérebro. O anel de prata com a safira em solitário era o anel da mãe. O assassino tinha andado a usar o anel da sua mãe. Por isso, tinha de voltar, para o encontrar, porque agora Falcón sabia que os diários eram a chave. De alguma forma, o assassino tinha tido acesso à casa do pai, tinha lido os diários, roubado a secção vital e avançado no seu festim vingador. Mas como é que tinha entrado na posse de um anel que a mãe nunca tirava? Verdades difíceis atravessaram-lhe o espírito, juntamente com a memória de ser atirado ao ar à beira-mar na baía de Tânger, com as pernas a dar pontapés no ar, por cima de uma cara que não conseguia recordar.

 

Às duas da tarde, chegou a Sevilha. Havia uma mensagem do comisario Lobo no atendedor de chamadas. Estava furioso e utilizou uma grande quantidade de fita para lhe dizer que não era por coincidência que o lacaio do comisario León, Ramírez, tinha removido oficialmente Consuelo Jiménez da lista de suspeitos, assim que assumiu o controlo da investigação de Falcón. Não queria saber. Foi direito ao estúdio do pai. A caixa das jóias ainda estava aberta em cima da mesa, onde a tinha deixado. Apertou o cubo de ágata na mão fechada, como se a impressão da sua geometria o pudesse fazer atravessar a fechadura da memória. Andou de lado para lado, deu um chuto na pilha de revistas que estava por baixo da mesa, e que se espalhou.

 

A capa de uma das revistas era totalmente preta e o título, inglês, era «Bound». Abriu-a com o pé e recuou. As duas fotografias que viu eram visões do Inferno - duas mulheres vendadas, a serem torturadas por homens densamente tatuados. Afastou a revista com um pontapé.

 

Tinha sido naquilo que o pai dera? A perda do génio que o fez pintar o sublime - e que se lhe escapou - tê-lo-ia atirado para o pólo oposto, fazendo-o sentir-se atraído pelas imagens mais horrorosas... com que finalidade? Para perturbar a sua mente e com isso conseguir regressar à grandeza? Para se enterrar na esperança filosófica de que a beleza só pode existir se houver fealdade? Falcón não via o momento de tirar aquelas horrorosas imagens de casa e, ao chutá-las, viu que toda a pilha era composta de pornografia - hardcore, bestialidade, depravação para lá do imaginável.

 

Na mesa, por cima da pilha de revistas estava o rolo das cinco telas, nenhuma das quais conhecia. Desenrolou-as e prendeu-as na parede. Reparou que a tela era antiga, mas a tinta era acrílica, e o pai só a tinha começado a usar no final dos anos 70. Também tinha a certeza de que não eram trabalhos dele e lamentou que Salgado não estivesse vivo para lhe contar o que eram aqueles quadros.

 

Depois lembrou-se do copista. O tipo meio cigano que vivia algures na Alameda, aquele de que não tinha gostado, que se postava de pé em cuecas pretas e coçava as partes, enquanto o pai falava com ele. Como era o nome? Tinha qualquer coisa estranha. Não era um nome verdadeiro. Lembrou-se de qualquer coisa sobre o dia em que tinha ido com o pai ter com o copista. Todos os quadros estavam de pernas para o ar nos cavaletes. Ele copiava de pernas para o ar. El Zurdo - era isso. O canhoto. Para imitar as pinceladas dos destros, costumava pintar de pernas para o ar. Falcón encontrou um endereço do copista, mas sem telefone, na velha lista telefónica do pai, em «Z».

 

Apanhou um táxi à porta do Hotel Cólon e foi para a calle Parras, próxima da Alameda. Ninguém respondeu do apartamento de El Zurdo; mas o vizinho disse-lhe que ele tinha ido almoçar ao sítio do costume, um bar na calle Escuderos, chamado La Cubista.

 

Havia seis homens isolados, sentados em mesas individuais, comendo e vendo televisão. Não reconheceu nenhum deles.

 

- Perguntava-me quanto tempo ia demorar - disse uma voz, quando Falcón entrou no bar.

 

A actividade dos talheres parou, a novela na televisão continuou. O homem de cara escura com dentes de cavalo, que tinha falado, levantou-se. Tinha cabelo cinzento por baixo de um chapéu preto, com diversos crachás e pins espetados na aba. Estava vestido de preto da cabeça aos pés.

 

- Tens de ser o Javier Falcón.

 

- O que o faz pensar isso?

 

- Porque acabas de entrar aqui com um rolo de telas debaixo do braço, parecendo o filho perdido de alguém.

 

- El Zurdo?

 

O homem apontou-lhe uma cadeira em frente à dele.

 

- Já comeste?

 

- Perguntava-se quanto tempo ia demorar...

 

- Até que o Javier Falcón viesse e me encontrasse - disse, olhando por cima do ombro de Falcón para o menu no quadro de ardósia. - Agora: cordero en salsa, escalopinas de cerdo ou atún en salsa?

 

- Cordero.

 

El Zurdo gritou a encomenda através da sala. Falcón deixou as telas encostadas à mesa ao lado. Deram-lhe vinho tinto.

 

- Só nos encontrámos uma vez - disse Falcón.

 

- Sou bom a fixar caras - disse El Zurdo. - Não gostaste de mim, lembro-me disso.

 

- Nem falámos.

 

- Não me quiseste apertar a mão.

 

- Tinha acabado de a usar para se coçar.

 

El Zurdo riu-se. Uma mulher pôs um prato de ensopado de borrego na frente de Falcón.

 

- Que tens aí? - perguntou El Zurdo, apontando com a cabeça para as telas.

 

- Cinco telas. Não as reconheço. Não são trabalhos do meu pai. Queria saber se as tinha copiado.

 

El Zurdo afastou o prato vazio e pegou num palito de um frasco que estava na mesa. Falcón começou a comer.

 

- Por que é que queres saber coisas sobre esses quadros? - perguntou El Zurdo. - És polícia, não és? O teu pai contou-me.

 

- Não estou em serviço, se é isso que quer dizer - disse Falcón. - Estou de folga.

 

- Queres vendê-los?

 

- Quero saber o que são, antes de os queimar.

 

El Zurdo acendeu um cigarro, pôs-se de pé e juntou duas mesas. Desfez o rolo das telas e passou as cinco displicentemente.

 

- São todas minhas - disse. - São cópias que fiz para o teu pai, mas não são trabalhos dele. Pediu-me para lhe fazer um favor e copiar estas coisas para um pintor suíço que tinha acabado de as vender à galeria do Salgado e queria evitar pagar impostos. O tal suíço deveria ter levado as cópias com ele, para mostrar na Alfândega que não as tinha vendido. Por isso, não percebo o que ainda estavam a fazer no estúdio do teu pai.

 

- O meu pai deu-lhe as telas?

 

- Sim. Eram todas velhas e já tinham tido qualquer coisa pintada, que ele tinha coberto com um barramento.

 

- Algo que ele tinha feito?

 

- Não perguntei.

 

El Zurdo fumou mais um bocado. Falcón comeu.

 

- Queres saber o que está por baixo daquilo? - perguntou El Zurdo.

- Parece-me que sim.

 

- Não pareces muito seguro.

 

- Pensa-se que se quer saber, até se descobrir o que é.

 

Apanharam um táxi, que os levou até à calle Larana e ao instituto das Bellas Artes. Atravessaram o pátio interior e subiram ao primeiro andar. Por

15 000 pesetas, um amigo de El Zurdo pôs as telas numa máquina de radiografia e deu-lhes cinco impressões do trabalho original que estava por baixo daqueles. O que foi revelado não parecia ser nada: uma amálgama de cruzamentos de linhas, faixas pretas em branco com um pormenor ou outro reconhecível, como um olho, uma perna, um casco, uma cauda de animal. El Zurdo não conseguiu perceber-lhes o sentido. Separaram-se na escadaria do edifício. El Zurdo disse-lhe que, se precisasse de falar com ele, estava sempre no La Cubista ao almoço. Javier foi a pé para casa. Atirou as telas e as impressões para um canto e telefonou a Alicia, para combinar um encontro para essa tarde.

 

- Fui destituído do comando da investigação - disse, quando Alicia lhe pegou no pulso. - Volto daqui a dez dias, para avaliação psicológica.

 

- Isso não me surpreende. O seu comportamento tinha-se tornado provavelmente bastante estranho.

 

- Aquele assunto com a Inés e o juez de instrucción foi decisivo. Ela achou que eu estava a persegui-la, mas eu apenas me cruzei com ela na rua, como poderia ter feito na minha imaginação.

 

- Já me contou isso.

 

- Já? Pois, para um louco, os dias tornam-se séculos. Estou sempre a reviver a minha vida, até embater num branco de memória; que martelo até ficar fraco e então volto atrás; e volto a viver o mesmo trecho outra vez, até atingir a mesma porta fechada. É esgotante e faz com que o tempo entre experiências reais do quotidiano pareçam memórias passadas. Disse-lhe que fui a Tânger?

 

- Ainda não. Por que decidiu ir até lá?

 

- Foi-me dada uma licença por luto.

 

Contou-lhe acerca da morte de Pepe Leal.

 

- O que esperava encontrar em Tânger... quarenta anos depois?

 

- Respostas. A vida não se move com o mesmo ritmo no Terceiro Mundo. Pensei que ainda seria possível encontrar gente que se lembrasse de coisas que eu esqueci e que poderiam estimular-me a memória.

 

- Mas porquê Tânger? Perdeu o trabalho por causa da Inés. Por que não resolver isso? Que ímpeto foi esse?

 

- Fui levado para lá. Não tomei uma decisão consciente. Fui para onde o destino me levou. Pus-me nas mãos dos outros... e acabei diante da minha antiga casa, na medina.

 

- Sem uma decisão consciente?

 

- Nenhuma.

 

- Recorde-me como é que essa sua loucura se manifestou, para começar.

 

- Senti a mudança quando vi a cara da primeira vítima.

 

- E qual foi a primeira coisa que aconteceu, fora da investigação, que o fez pensar que a mudança não era só, por exemplo, um choque perante uma visão horrorosa?

 

Um longo silêncio.

 

- Fui ao centro para ir buscar a lista de endereços da vítima e fui apanhado numa procissão da Semana Santa. Por qualquer razão, ao ver a Virgem... quase desmaiei. Foi uma experiência que me afectou muito.

 

- É religioso?

 

- Não, de todo.

 

- E depois disso?

 

- Vi o meu pai numa das fotografias da vítima e fiquei a saber que ele tinha um caso, antes de a minha mãe morrer.

 

- Mas na sua vida?

 

- Descobrir os diários com a sua letra... isso desencadeou qualquer coisa. Quer dizer, agitou... uma espécie de escuridão. Comportei-me muito estranhamente nessa noite. Pensei que podia haver um lado mau em mim. Nunca tinha visto esse lado da minha natureza. Fui sempre coerentemente bom. Decidido a ser bom.

 

- Porque tem medo?

 

- Sim.

 

- De quê?

 

- Aconteceu mais uma coisa naquela noite - disse Falcón. - Estava a tentar encontrar a prostituta que tinha estado com a vítima na noite do crime. Ela tinha desaparecido. O assassino contactou-me pela primeira vez. Perguntou-me: «O que achas da nossa proximidade?» e disse: «Maior do que julgas», como se soubesse qualquer coisa a meu respeito, o que agora sei que sabe.

 

- O que pensou que saberia a seu respeito?

 

- Pensei que ele queria dizer que estávamos fisicamente próximos, que ele me estava a seguir. Mas mais tarde, pensei que talvez quisesse dizer que não éramos pessoas muito diferentes - disse Falcón, tropeçando nas palavras. - E percebi que ele tinha matado a rapariga e senti-me culpado por isso.

 

- Culpado?

 

- Suspeitámos de uma ligação entre a rapariga e o assassino e não a aprofundámos. Devíamos ter-nos esforçado mais. Falhámos...

 

- Você não falhou - disse Alicia - Ela não lhe ia contar. Ela estava a protegê-lo por razões só dela.

 

- Mesmo assim.

 

- Mas culpado de quê? Longo silêncio.

 

- Nessa noite, cruzei-me com outra procissão. De uma das irmandades do Silêncio. Uma das ordens inquisitoriais. E sabe... ela era tão linda... a Virgem. É ridículo que um manequim com uma túnica possa ser tão... comovente. Não aguentei. Não aguentei tudo o que ela representava e tive de ultrapassá-la. Tive de me afastar dela.

 

- E isso está ligado ao seu sentimento de culpa em relação à rapariga?

 

- Sim. Falhei.

 

- Sabe quem é a Virgem?

 

-Sei.

 

- Sabe o que representa?

 

Acenou com a cabeça.

 

- Diga - disse Alicia.

 

- O expoente da mãe.

 

- O expoente da mãe - repetiu-lhe ela. - Diga-me por que é que foi a Tânger.

 

- Queria saber como... queria saber o que aconteceu quando ela morreu.

 

- Soube?

 

- Foi inconclusivo. Descobri o que aconteceu na rua, que era uma memória que me incomodava. Mas foi apenas a criada rifenha da minha mãe que teve um ataque de histeria. Não é invulgar nas mulheres árabes. Já, provavelmente...

 

- Não acredita no que está a dizer, pois não, Javier? Deu-lhe alguma importância.

 

- Não me parece - disse.

 

Alicia expirou devagar. A parede de tijolo voltou a fechar-se.

 

- Que mais descobriu em Tânger?

 

- Uns boatos disparatados sobre a morte da minha segunda mãe.

 

- A sua segunda mãe?

 

- Não tem credibilidade que mereça repeti-lo.

 

- E que mais? - perguntou Alicia, cortante, devido à resistência dele em falar.

 

- Tenho um medo inexplicável de leite - e contou-lhe acerca do incidente na medina de Tetuão e do sonho que se seguiu.

 

- Que significado tem para si o leite?

 

- Nenhum.

 

- E foi sobre isso que sonhou?

 

- Queria dizer que não tem outro significado para além de eu ter sempre detestado produtos lácteos... tal como o meu pai.

 

- E o que é que as mães produzem para alimentar os bebés?

 

- Tenho de me ir embora - disse abruptamente. - Terminou a hora. Devia ter sido mais rigorosa comigo.

 

Foram até à porta. Ele foi até à escada sem olhar para ela. Não acendeu a luz. Tacteou pela escada abaixo.

 

- Vai voltar a visitar-me, não vai, Javier? - chamou ela atrás dele. Não respondeu.

 

Em casa, sentou-se no escritório, folheando as impressões a preto-e-branco da máquina de raios-X, enquanto culpa e falhanço lhe ecoavam na cabeça. Prendeu as cópias na parede e afastou-se delas. Não tinham significado nenhum. Trocou-as, pensando que podia ter qualquer coisa a ver com a ordem, mas rapidamente se deu conta de que havia milhares de arranjos possíveis.

 

O vento fustigava o pátio, fazendo trepidar a porta. Saiu e sentou-se na borda da fonte, batendo com os pés no mármore gasto das lajes, cuja forma lhe recordou o diagrama que tinha caído do rolo de telas.

 

Arrancou os papéis da parede e correu a toda a velocidade para o estúdio. Encontrou o diagrama no chão da arrecadação, no meio das caixas. Cinco rectângulos interligados, cada um com um número. Voltou a correr escada abaixo, possuído pela ideia de que aquilo era a chave que iria resolver todo o mistério. Mas de quê? Abrandou até parar no pátio.

 

As certezas, a ideia do seu próprio colapso, chegaram até ele numa série de cenas de filme bíblico: estátuas tombadas, chaves de arco caídas, arcos quebrados, colunas decapitadas em colossais fragmentos canelados. A visão do pai tinha vindo a mudar - o legionário violento, o veterano traumatizado de guerra de Leninegrado, o contrabandista assassino e, finalmente, o artista torturado.

 

E ainda assim, de algum modo era tudo explicável. Não era a natureza, era o determinismo do século mais selvagem da História. A brutal e sangrenta Guerra Civil, a catastrófica Segunda Guerra Mundial, a brutalidade remanescente que eventualmente levou ao hedonismo na Tânger do pós-guerra. Podia também apontar para as influências exteriores que tinham actuado com um efeito brutal sobre o estado de fragilidade do pai. Mas talvez isto fosse diferente. Podia acontecer que isto revelasse algo profundamente pessoal, uma fraqueza terrível que pusesse a nu o monstro escondido. Queria isso?

 

O que é que Consuelo lhe tinha chamado e à Inés, no primeiro encontro? Uma união de pesquisadores da verdade. A verdadeira razão pela qual ele começara esta terrível jornada foi o irresistível apelo da descoberta. Ia agora recuar e acabar na única saída da Calle Negación? E depois? Viveria a sua vida como se nada disto tivesse acontecido e Javier Falcón afundar-se-ia sem deixar rasto.

 

Pegou nos rolos de tela e levou-os para o estúdio. Emparelhou cada um com as cópias de papel respectivas, mas não encontrou nenhum sistema de numeração. Não estava nada escrito nas traseiras das telas, excepto as letras «I» e «D», e ele sentiu-se subitamente cansado e desesperado para ir para a cama. Foi então que viu, na beira das cópias, umas marcas de tinta. Percebeu que o pai tinha numerado as telas na frente, para lá do sítio onde elas seriam esticadas por cima da estrutura de madeira. Jogou com os números e descobriu a ordem certa por um processo de eliminação. Depois, percebeu que o «I» e o «D» significavam izquierda e derecha. Marcou as impressões em conformidade e depois aparou as bordas das folhas A3. Voltou-as e prendeu-as como mostrava o diagrama. Pegou na peça resultante, elevou-a na parede de trabalho do pai e prendeu-a lá com fita-cola. Afastou-se dela. Foi até às prateleiras, na parede mais afastada, e estava quase a virar-se quando sentiu uma erupção de suor - o familiar fio a descer-lhe pela face.

 

Era a sua última oportunidade de se ir embora.

 

Voltou-se, com os olhos fechados com toda a força.

 

Abriu-os e viu o que o pai tinha feito.

 

Domingo, 29 de Abril de 2001, oficina de El Zurdo, calle Parras, Sevilha

 

Falcón prendeu as impressões na parede, enquanto El Zurdo se ocupava a enrolar e a acender um charro. Javier deu-lhe uns toques no ombro, exactamente quando ele ia a dar a primeira passa. El Zurdo voltou-se.

 

- Joder. O que é isso?

 

- Isso? - disse Falcón, cuspindo. - Ela. Ela é a minha mãe.

 

- Joder - disse El Zurdo, aproximando-se, fascinado. - Mas que belo trabalho.

 

- Não é um belo trabalho - disse Falcón. - É uma bela merda.

 

- Eh, eu não estou envolvido da mesma maneira que tu - disse El Zurdo.- Eu olho para isto...

 

- Como arte? - disse Javier, incrédulo.

 

- Tecnicamente. Quer dizer, é extraordinário criar cinco trabalhos que se entrecruzam, que são desprovidos de sentido e aparentemente desconexos... Nem sequer vi as juntas no puzzle e, no entanto, quando se reúnem...

 

- Tornam-se na mais vil expressão do ódio de um homem pela sua mulher e mãe dos seus filhos, que só a mente de um monstro seria capaz de produzir - disse Javier.

 

Os dois homens ficaram de pé, em silêncio, com a obra do horror enchendo a sala. O quadro revelava uma mulher enlaçada e servida por dois vorazes sátiros, um penetrando-a por trás enquanto o outro lhe enchia falicamente a boca. Mas não era uma violação. Havia consentimento no único olho visível da mulher. Era repugnante. Javier passou à frente de El Zurdo, rasgou o quadro da parede, torceu-o e atirou-o para o canto vazio da oficina.

 

- O que é que podia fazê-lo querer produzir...?

 

- Toma uma passa - disse El Zurdo.

 

- Não quero passa nenhuma.

 

- Isto acalma-te.

 

- Não me quero acalmar.

 

- Olha... talvez ele tenha descoberto que ela tinha um amante.

 

- Oh - disse Javier -, e ele era absolutamente inocente? Ele, que passava a vida a sodomizar jovens a cada oportunidade...

 

- Era diferente para as mulheres, naquele tempo - disse El Zurdo.

 

- Ele, que foi sodomizá-los na noite de núpcias. Ele que tinha um caso com uma amante, que se iria tornar a sua segunda mulher, antes da primeira morrer.

 

- Ele odiava mulheres.

 

- Do que é que estás a falar, El Zurdo?

 

- Apenas o que disse... e não estou a falar do nível de misoginia completamente normal que existia naquela época. Ia para além disso... bastante para lá.

 

- Ele casou duas vezes, pintou os quatro nus mais sublimes de mulher que o mundo alguma vez viu e tu pensas que ele odiava mulheres?

 

- Eu não penso nada - disse El Zurdo. - Foi o que ele me disse.

 

- Ele disse-te isso? Desde quando é que eras tão íntimo do meu pai que ele te fosse revelar uma coisa dessas a ti?

 

- Desde que nos tornámos amantes.

 

Cresceu um longo silêncio, em que Javier caiu pesadamente numa cadeira de braços maltratada. Todas as forças se escoaram dele. Estava consciente de estar com o queixo descaído, a cara flácida do choque, os braços sem força.

 

- Quando? - perguntou, em voz baixa.

 

- Desde por volta de 1972, por uns onze ou doze anos, até se ter assustado com a sida.

 

- Então... quando cá vim com ele...?

 

El Zurdo confirmou com a cabeça. Mais um momento constrangedor.

 

- E não te parece que isto é a mais amarga das ironias de todos os tempos?

- perguntou Javier.

 

- Que tenha pintado aqueles nus? - disse El Zurdo. - Isso era apenas o seu trabalho... não tinha de ser também a sua vida.

 

- De onde lhe vinha... o ódio? - perguntou Javier. - Não percebo de onde lhe podia vir.

 

- Da mãe.

 

O cérebro de Javier parecia um metrónomo, contando os segundos antes de ser acometido pela insanidade.

 

- Nos diários, ele refere «o incidente» - disse Falcón. - Uma coisa que aconteceu quando era rapaz, que o fez sair de casa e entrar para a Legião. Talvez tenha contado a alguém o que foi, talvez a minha mãe fosse uma delas, mas nunca o escreveu. Ele contou-te?

 

- Contou - disse El Zurdo. - Posso contar-to se quiseres. Quer dizer... essas coisas, quanto mais passam à história, menos importantes parecem ser. Apenas serviram para decidir o rumo de uma vida, num determinado momento.

 

- Conta-me. - O que é que sabes dos pais dele?

 

- Praticamente nada. - Bem, tinham um hotel em Tetuão, nos anos 20 e 30. Eram muito conservadores. A mãe dele era uma católica devota e o pai era um bêbado. Tinha mau vinho e descarregava as suas fraquezas nos filhos e empregados. É só o que precisas de saber, para perceberes o que aconteceu. Um dia, o pai apanhou o Francisco na cama com um dos criados e ficou completamente furioso. Enquanto o Francisco se encolhia na cama ao canto do quarto, o pai desancou o criado até à morte, à frente dele. Só quando lhe passou aquela fúria terrível é que o pai percebeu o que tinha feito. Os dois deram sumiço ao corpo e o Francisco foi fechado no seu quarto ensanguentado, incumbido de o limpar até à última gota de sangue e caiar as paredes.

 

El Zurdo sentou-se para trás, com as mãos abertas.

 

- Onde é que a mãe entra na história? Disseste...

 

- Ela nunca mais lhe dirigiu uma palavra. Pôs de lado qualquer afecto maternal e agia como se ele não existisse. Nem sequer guardava lugar para ele à mesa. Para ela, na sua tacanha mente católica, ele tinha transgredido para lá de qualquer possibilidade de remissão.

 

- Quando é que ele te disse isso?

 

- Há muito tempo. Há mais de vinte anos.

 

- Quando eram amantes?

 

- Sim. Levou um tempo até ele voltar aos homens, depois daquilo. Só depois de ter chegado a Tânger, a seguir à Segunda Guerra Mundial, é que ele... apesar de ter tido uma paixão por outro legionário que foi morto na Rússia, Pablito... Mas nunca deu nada e, é claro, o Pablito foi atraiçoado por uma mulher...

 

- Fala dele nos diários. O meu pai estava no pelotão de fuzilamento que matou a rapariga. Ele apontou-lhe deliberadamente à boca.

 

- Sabes como é que ele e eu permanecemos amantes por tanto tempo? avançou El Zurdo. - Porque nunca fiz qualquer tentativa de o compreender. Nunca o pus em questão. Algumas pessoas não gostam de intimidades e o teu pai era uma delas. As mulheres gostam. Querem conhecer o seu homem. E quando descobrem e não gostam, fazem uma de duas coisas: apostam em mudá-lo ou abandonam-no. São palavras do teu pai, não são minhas. Eu nunca fui com mulheres. Os meus gostos são mais dirigidos.

 

Foram para o La Cubista almoçar. Javier pediu o atum, El Zurdo o porco. Bebeu vinho, perante o silêncio atormentado de Javier, e incitou-o a fazer o mesmo. A comida chegou.

 

- Sabes a outra razão pela qual o teu pai gostava de mim? Essa é que é estranha. Gostava de mim porque sou copista. Extraordinário, não é? Admirava o facto de eu pintar de pernas para o ar. Interpretava isso como uma falta de respeito pelo original, apesar de eu lhe explicar que só o fazia porque não queria ser distraído pela estrutura e a globalidade da peça, quando tudo o que eu estava a fazer era a tentar copiar aquilo com precisão. Sabes, algumas vezes ele achava que as minhas cópias eram realmente melhores do que os originais dele. Por isso, há dois coleccionadores americanos que têm as minhas cópias assinadas por ele nas paredes. Isso, disse-me ele, é arte. Nada é original.

 

Falcón deu um golo no vinho, pegou na faca e no garfo e começou a comer.

 

- Quando o viste pela última vez? - perguntou.

 

- Há cerca de cinco anos. Almoçámos aqui. Estava feliz. Tinha resolvido o seu problema de solidão.

 

- Sentia-se só?

 

- O dia inteiro, todos os dias. O homem famoso, na sua grande casa sombria.

 

- Ele tinha amigos, não tinha?

 

- Disse-me que não. O único que tinha, tinha-o perdido em 1975.

 

- Quem era?

 

- Raúl Jiménez... parece que foi assassinado recentemente - disse El Zurdo. - O teu pai não ia ficar triste com isso.

 

- Por que é que deixaram de ser amigos?

 

- É interessante. Não percebi por que é que aquilo o tinha deixado tão fulo. Disse-me que tropeçou no Raúl, na rua, um dia, em Sevilha. Viviam os dois na mesma cidade, um de cada lado do rio, aparentemente sem saberem. Foram almoçar. O teu pai perguntou pela família do Raúl e ele disse que estavam todos bem. Falaram acerca da fama do teu pai e do sucesso do Raúl nos negócios - as merdas todas de que se espera que dois amigos conversem. Só que o teu pai não lhe perguntou por que é que não o tinha contactado. Quer dizer, com a fama do teu pai, o Raúl deve ter sabido que ele estava a viver em Sevilha, há dez anos ou mais. Mas isso foi explicado pelo que aconteceu. No final do almoço, o Raúl disse-lhe uma coisa a despropósito... nada a ver com aquilo de que tinham estado a falar. Deves ter lido nos diários que o teu pai deixou a Legião e veio para cá pintar. Tinha poupado dinheiro na tropa. O pré de combate na Rússia.

 

- E alguém roubou o dinheiro - disse Falcón. - Razão pela qual o meu pai foi dar a Tânger.

 

- Pois - confirmou El Zurdo. - E foi o que lhe contou o Raúl no final do almoço: ele é que tinha roubado o dinheiro. E nunca mais se voltaram a falar.

 

- Porquê?

 

- O teu pai não achava que o Raúl Jiménez tivesse o direito de alterar o curso da vida de outro homem. Eu achava que, se tinha sido para melhor, qual era o problema? Tinha feito fortuna lá, tinha-se tornado famoso... Mas ele não queria saber. Fez uma tempestade em casa, gritando: «Ele arruinou-me, aquele cabrón arruinou-me.» E pela minha saúde, Javier, nunca vi ruína naquilo que ele fez.

 

- Ele também estava danado pelo facto de o Raúl Jiménez lhe ter contado o que tinha feito. Não compreendia, até ter descoberto o que tinha realmente acontecido à família do homem. A mulher tinha-se suicidado. O filho mais novo tinha morrido. A filha estava numa instituição psiquiátrica e o outro filho tinha deixado de lhe falar. Era um desastre e foi quando percebeu que a última coisa que o Raúl Jiménez queria, naquela fase da vida, era ter um amigo íntimo. O que ele queria era uma vida nova... sem Francisco Falcón.

 

- Disseste antes que o meu pai tinha resolvido o seu problema de solidão.

 

- Disse-me que não queria amigos, o que realmente queria era companhia.

 

- Então e a Manuela? - perguntou Javier. - A Manuela não aparecia com frequência?

 

- Aparecia, mas ele nunca gostou da Manuela. Ela aparecia umas horas por semana, mas não era disso que ele andava à procura. Queria apenas alguém para lhe preencher os espaços vazios na casa. Gostava da ideia de ter gente nova, descomplicada e com visão, que fosse inesgotavelmente bem disposta. Fez um acordo com a universidade daqui e de Madrid, para lhe mandarem de vez em quando um estudante, por um mês de cada vez. Para ele, servia. Eu teria detestado.

 

- Ele não me contou isso.

 

- Talvez não quisesse admiti-lo perante ti - disse El Zurdo. - Talvez ele não quisesse alterar o curso da tua vida.

 

Estava quase escuro quando Javier fez um grande circuito de regresso a casa. Quando entrou, deu um pontapé em dois embrulhos que estavam no chão. Ambos tinham sido empurrados pela abertura da caixa de correio e nenhum estava endereçado. Tinham apenas os números 1 e 2 escritos por fora.

 

Levou-os para o escritório, onde tinha um par de luvas de borracha. Abriu o primeiro volume e tirou o envelope em que estava escrito «Lição de ver nº 4». Dentro, lia-se num cartão: La muerte trágica del genio. A morte trágica do génio.

 

Havia mais uma coisa dentro do embrulho, com mais peso. Colocou papel sobre a mesa e esvaziou o que pensou ser um pedaço de vidro, até ver que era um caco de espelho. Virou-o com a ponta de uma esferográfica. As iniciais «P. L.» estavam escritas no que parecia ser sangue seco.

 

Falcón encostou-se na cadeira. Sabia o que Sérgio estava a fazer. Estava a recuperar o mito da comunicação social, dizendo-lhe que tinha usado o caco de espelho para distrair Pepe Leal, quando avançou para estocar o touro. Javier não acreditava nisso. Não era possível. Mas interessou-o, porque percebeu que tinha finalmente forçado a mão de Sérgio. Havia algum desespero no modo de operar, arrogante e sem subtileza.

 

Deu umas pancadinhas no cartão em que estava escrita a lição de ver. As mesmas palavras que a mãe utilizara quando disse à Manuela o que continha a urna de barro. Os palpites comprimiam-lhe a membrana do consciente, mas não conseguiam rompê-la. Atirou o cartão por cima da secretária. Abriu o segundo embrulho, que continha um conjunto de fotocópias. Pela escrita, sabia que eram os diários do pai.

 

7 de Julho de 1962, Tânger

 

Perdi praticamente o rasto ao Salgado, desde o nosso regresso de Nova Iorque. Foi então, precisamente quando esse pensamento tinha atravessado a calma plácida do meu horizonte, que apareceu um rapaz com um recado dele, escrito no papel do Hotel Rembrandt e dizendo-me para ir imediatamente ao quarto 321, sozinho. Não fiquei muito surpreendido com o recado. Não há aqui telefone. Só quando me pus a caminho do Boulevard Pasteur é que me comecei a questionar. O que poderia ter acontecido que o fizesse interromper-me no meu horário de trabalho? Fiquei intrigado e perturbado. O elevador do Hotel Rembrandt, que é recente, é um daqueles casos hesitantes que me fazem sentir que o cabo se pode partir a qualquer momento. Cheguei à porta do 321 num estado de catástrofe iminente. Há um pequeno corredor entre a porta principal e a porta do quarto, uma daquelas complicações de concepção que parecem feitas apenas para este tipo de situações. O que significa que Salgado me pôde puxar à parte e explicar a enormidade das circunstâncias sem que o horror do incidente nos esmagasse completamente.

 

Cortando curto: havia um rapaz morto no quarto.

 

Salgado disse-me que tinha sido morto acidentalmente.

 

- Acidentalmente? - perguntei.

 

- Ele caiu e bateu com a cabeça - respondeu. - Deve ter batido mal, mas está inapelavelmente morto.

 

- Como é que caiu?

 

- Ia a sair para ir à casa de banho... mas eu empurrei-o de novo para a cama.

 

- Então por que é que não chamamos a polícia e lhe explicamos assim o incidente?

 

Silêncio de Salgado.

 

- Posso dar só uma olhadela? - disse eu e não esperei pela resposta. Empurrei-o para dentro do quarto e vi o rapaz nu tapado por um pedaço de lençol. Tinha um braço atirado para o lado. A língua não lhe cabia na boca e os olhos estavam salientes. Havia nódoas negras à volta do pescoço.

 

- Não me parece que tenha batido com a cabeça, pois não, Ramón?

 

- Foi um acidente.

 

- Não sei como é que se estrangula acidentalmente alguém, Ramón.

 

- Estava a tentar que soubesse melhor.

 

Olhámos um para o outro e o Ramón virou-se subitamente para a parede e começou a bater nela com a cabeça, entoando qualquer coisa que soava a basco. Sentei-o numa cadeira e perguntei-lhe o que se tinha passado. Entalou a cabeça nos punhos e repetiu vezes sem fim que tinha sido um acidente. Disse-lhe que ia chamar o chefe da polícia, mas que ele não lhe podia dizer só aquilo, com o rapaz estendido na cama, sodomizado e estrangulado. Ele levantou-se e começou a andar pelo quarto, atirando com os braços e a fazer grandes declamações na mesma língua estranha. Dei-lhe uma bofetada. Transformou-se numa criatura patética e afundou-se até ao chão. Pôs-se a chorar e os seus ombros de ave mostravam-se convulsos. Voltei a esbofeteá-lo, o que o fez voltar-se para mim.

 

- Diz-me o que se passou. Não estou aqui para te julgar.

 

- Matei-o - disse ele.

 

- Estavas apaixonado por ele?

 

- No, no, no, que no! - disse com grande ênfase.

 

Com demasiado ênfase.

 

Olhei fixamente para ele e vi a sua corrupção, tão terrível que não a conseguia admitir para si próprio. Sei que Salgado não matou o rapaz por mais razão nenhuma do que por aquilo em que o estava a transformar. Salgado é vaidoso. E um grande galanteador de mulheres. A M. e ele adoram-se mutuamente. Tem casos que nunca duram. Agora é rico, famoso no seu pequeno círculo e tem boa reputação. Mas... gosta de sodomizar rapazes e isso interfere com a imagem dourada que construiu de si. Pelo menos, esta é a minha leitura. Matou o rapaz porque ele o estava a obrigar a ver o que detestava.

 

Disse-me as palavras fatais:

 

- Eu não ia suportar o escândalo.

 

Não sinto desprezo por ele, nem mesmo por isso. Quem sou eu para sentir desprezo por alguém? Sentei-me aos pés do rapaz. Acendi um cigarro.

 

- Vais ajudar-me? - pediu.

 

Contei-lhe uma história, que ouvi a um amigo da B. H. nos anos 40, acerca de um homossexual rico que tinha recolhido um molho de magalas num bar de bichas muito conhecido de Manhattan e os levou para uma festa no apartamento da mãe dele, na Quinta Avenida. Estavam todos bêbados e um dos soldados desmaiou. Tiraram-lhe as cuecas e, por graça, começaram a barbear-lhe os pêlos púbicos. E, acidentalmente - insisto neste aspecto -, cortaram-lhe a gaita. Então o que fizeram?

 

Salgado olhou para mim como o Javier quando lhe estou a contar uma história para adormecer, todo curvado e de olhos muito abertos. Embrulharam-no num cobertor e deixaram-no junto de uma ponte qualquer. Teve sorte, porque um polícia encontrou-o e levou-o para o hospital antes que se esvaísse até à morte.

 

- O que é que extrais daqui, Ramón?

 

Piscou os olhos, desesperando por não dizer o que não devia e ser posto fora da sala de aula.

 

- Se me ajudares, Francisco, não torno a fazer uma coisa destas nunca mais.

 

- O quê? Matar alguém?

 

- Não, não, quero dizer é... nunca mais ando com rapazes. Vou levar uma vida exemplar.

 

- Eu ajudo-te, mas quero saber o que pensas da minha história.

 

Mais silêncio. O pânico impedia-o de pensar.

 

- Pagaram uma maquia ao soldado - acrescentei. - Para que não apresentasse queixa. Quanto calculas tu?

 

Abanou a cabeça.

 

- Duzentos mil dólares, e foi em 1946! - disse eu. - Ganhava-se mais dinheiro, naquela época, por perder a gaita do que a pintar quadros.

 

Salgado passou por mim a correr e foi vomitar na casa de banho. Voltou a limpar a boca.

 

- Não sei como é que podes ficar tão calmo com uma coisa destas, Francisco.

 

- Matei milhares de pessoas. Todas elas tão culpadas ou tão inocentes como tu e eu.

 

- Mas isso foi na guerra - disse ele.

 

- Estou só a explicar que, quando se viram morticínios à escala que eu vi, um rapaz morto num quarto de hotel não é assim tão horroroso. Agora, comenta-me lá a minha história.

 

- Foi uma coisa horrível de se fazer - disse ele, girando o cigarro. ^

 

- Pior do que matar um rapaz?

 

- Por eles, tanto se lhes fazia: ele podia ter morrido.

 

- Correcto. E o que é que isso revela das pessoas que tu queres tão desesperadamente impressionar? - perguntei. - O responsável continua à solta, a propósito, e continua a ser amigo da Barbara Hutton.

 

Ramón estava demasiado confuso para poder pensar sozinho numa saída.

 

- Nós somos os seus cãezinhos de luxo. Somos os seus pequenos prodígios. Sim, mesmo eu, Ramón. Fazem-nos festas, apaparicam-nos, provocam-nos e depois fartam-se de nós e deitam-nos fora. Não somos nada, para os muito ricos. Absolutamente nada. Menos que brinquedos. Por isso, lembra-te, quando bebes o champanhe deles, que foi por causa da elevada opinião dessas pessoas sem valor que tu mataste este rapaz.

 

As palavras embateram no peito dele como balas de alto calibre. Caiu desamparado na cadeira.

 

- Por causa deles? - disse, baralhado.

 

- Mataste o rapaz por não gostares da ideia de essas pessoas saberem isto a teu respeito. Mataste-o porque é uma coisa que tu achas horrorosa em ti e achas que os outros também acham. E estás muito enganado.

 

Ele soluçava. Dei-lhe umas palmadinhas nas costas.

 

- Francisco, onde é que eu estaria sem ti?

 

- Num lugar muito mais feliz - repliquei.

 

Não foi difícil livrarmo-nos do cadáver. Levámo-lo para o jardim do hotel, às três da manhã e passámo-lo por cima do muro. Metemo-lo no carro, levámo-lo para os penhascos à saída da cidade e atirámo-lo ao mar. No regresso, Ramón veio a olhar fixamente pela janela, completamente mudo; um homem a contas com um mundo mudado, em que, devido a um momento de cegueira, nada voltará a ser igual.

 

Se tiveres de matar. Se não houver nada a fazer. Então, mata sempre com os olhos bem abertos.

 

Falcón deixou as folhas fotocopiadas caírem-lhe do colo. Espalharam-se pelo chão. Estava embrenhado nos seus pensamentos. A confirmação de que o assassino tinha tido acesso aos diários do pai. E agora, com a informação adicional de El Zurdo, compreendia que tinha de ser um dos estudantes de arte que o pai tinha recebido para o aliviarem da solidão.

 

As Bellas Artes já estavam fechadas. El Zurdo estava incontactável. Percorreu a lista de endereços do pai e encontrou o nome de alguém da universidade com um telefone de casa. Telefonou, mas não obteve resposta.

 

Os pensamentos viraram-se para Raúl Jiménez e a revelação que tinha quebrado a amizade com o pai. Pensou que era improvável que o pai tivesse deixado passar isso sem comentário nos diários. Mas tinha ocorrido numa data posterior ao último registo, em que o pai anunciara o seu tédio absoluto.

 

Javier atirou com a cadeira e correu escada acima. Abrandou ao percorrer a galeria e parou fora do estúdio. Olhou para a pupila negra da fonte do pátio. Um pensamento aparentemente desgarrado tinha-o assaltado. Um dos elementos insolúveis do caso era o que Sérgio teria mostrado a Raúl Jiménez. Onde tinha ele ido buscar as imagens? Os terrores de Salgado eram aparentemente fáceis de resolver. Ele tinha encontrado o baú no sótão e as imagens e banda sonora necessárias. Mas no caso de Raúl Jiménez não tinham sido bem sucedidos. Apesar dos intermináveis interrogatórios nas Mudanzas Triana, não tinham encontrado pistas de que tivessem mexido nos bens armazenados há longa data.

 

Afastou-se da parede da galeria e entrou no estúdio do pai. Encontrou o último diário na arrecadação. E ali estava, umas dez páginas adiante do que pensava ser o último registo.

 

13 de Maio de 1975, Sevilha

 

Estou com uma tal fúria que tive de voltar ao confessionário, na esperança de que isto me acalme.

 

O registo contava a história que tinha ouvido a El Zurdo e acabava com a frase:

 

Não consigo imaginar o que o compeliu a contar-me isto agora, e berrei-lho quando saí de rompante do restaurante para a rua. Ele respondeu-me: «Se não tivesse sido eu, estarias a pintar caixilhos de janelas na Triana, nesta altura.» Foi um insulto monumental e calculado, pelo qual vai receber o castigo adequado.

 

17 de Maio de 1975, Sevilha

 

Um post-scriptum ao meu último acesso de violência. Descobri que o castigo já tinha sido servido ao meu velho amigo R. Parece que o filho mais novo foi morto em Almeria, a mulher suicidou-se, atirando-se ao Guadalquivir, aqui em Sevilha, a filha Marta acabou internada no hospício de Ciempozuelos e o filho mais velho vive em Madrid e deixou de lhe falar. Tudo o que eu pudesse ter em mente, parece uma alfinetada, depois de uma série de calamidades como esta. Acho agora que só me contou o que tinha feito para se ver livre de mim. Eu era apenas uma relíquia de uma época conturbada.

 

Falcón folheou as páginas vazias até ao fim. Voltou ao último registo e leu-o de novo. Ciempozuelos ficou-lhe entalado no espírito. Sérgio devia saber tudo sobre este registo - a tragédia integral da família - e viu uma aberta: Marta, em Ciempozuelos. Mas Marta mal podia falar. Falcón recordou a visita que tinha feito lá. A ferida de Marta a ser tratada por um médico. Ahmed a levá-la de volta para a enfermaria. Ela a vomitar, depois do choque da queda. Ahmed a sair para ir buscar o material de limpeza. E foi quando o voltou a ver, tão nítido como uma ideia criativa: o baú por baixo da cama de Marta.

 

Domingo, 29 de Abril de 2001, casa de Falcón, calle Bailén, Sevilha

 

Ahmed não lhe tinha chegado a dizer o que estava no baú. Falcón olhou para o relógio e eram dez da noite. Desceu ao escritório, encontrou o bloco de notas, passou as páginas com violência, até chegar ao nome do médico de Marta - Dra. Azucena Cuevas. Telefonou para o hospital de Ciempozuelos. A Dra. Cuevas já tinha voltado de férias e estaria ao serviço na manhã seguinte. Falcón falou com a enfermeira de vela à enfermaria de Marta, explicou-lhe o problema e o que queria ver. A enfermeira disse que a única altura em que Marta deixava que lhe tirassem o fio do pescoço era para o banho diário e que falaria pela manhã à Dra. Cuevas acerca do seu pedido.

 

Falcón tomou uma pílula a mais para dormir e não acordou a horas. Conseguiu apanhar o AVE do meio-dia para Madrid mesmo à pele, que, às segundas-feiras, ia cheio.

 

Tinha voltado a vestir o fato, levava gabardina e transportava o revólver carregado. Telefonou à Dra. Cuevas do comboio. Ela concordou em que atrasassem o banho diário de Marta para a tarde.

 

Da estación de Atocha, apanhou um táxi directamente para Ciempozuelos e, cerca das 15h. 30, estava sentado no consultório da Dra. Cuevas, à espera que a empregada da limpeza trouxesse o baú de Marta.

 

- O que sabe do enfermeiro dela, Ahmed? - perguntou Falcón.

 

- Sobre a vida privada, nada. Quanto ao seu trabalho, é excelente, um homem de uma infinita paciência. Nunca levanta a voz para estes desaventurados.

 

O baú chegou e, uns minutos depois, uma enfermeira trouxe a chave e o medalhão do fio de Marta. Abriram o baú. Lá dentro, era um pequeno altar a Arturo. A tampa estava tapada com fotografias em mau estado. Havia um cartão de parabéns feito à mão, representando uma mulher-palito com os olhos fora da cabeça, cabelo espetado e «Marta» garatujado por baixo. Dentro do baú havia carrinhos de folha, uma peúga cinzenta de criança, um velho caderno de exercícios, lápis roídos, com marcas de dentes na ponta. No fundo, havia dois rolos de filme de 8 mm, como os do espólio encontrado no armazém das Mudanzas Triana. Levantou um contra a luz. Ali estava Arturo nos braços da irmã. Pôs tudo lá dentro outra vez, fechou o baú e voltou a fechá-lo à chave. Abriu o medalhão. Continha apenas um caracol de cabelo castanho. Entregou outra vez o fio à enfermeira. A empregada da limpeza levou de novo o baú para a enfermaria.

 

- Onde se encontra o Ahmed agora?

 

- Está a passear duas pacientes pelo jardim.

 

- Não queria que ele soubesse nada da minha visita.

 

- Isso vai ser difícil - disse a Dra. Cuevas. - As pessoas conversam. Não há mais nada para fazer, aqui.

 

- Houve algum estudante de arte que tivesse trabalhado na enfermaria da Marta?

 

- Há algum tempo, fizemos uma experiência de três meses com terapia pela arte.

 

- Como correu? - perguntou Falcón. - Quem foram os terapeutas?

 

- Foi uma coisa feita aos fins-de-semana. Não foi trabalho remunerado. Foi apenas para ver se os pacientes reagiam a uma actividade criativa que lhes pudesse recordar a infância.

 

- De onde vinham os artistas?

 

- Um dos membros da administração do hospital é realizador de cinema. Recrutou pessoas da sua empresa com preparação artística. Eram todos muito jovens.

 

- Há algum registo de quem eram?

 

- Claro, tem de haver. Pagámos-lhes as despesas de transporte. -

 

- Como foram pagos?

 

- Uma vez por mês, por cheque, tanto quanto sei - disse ela. - Terá de ir à contabilidade para mais pormenores.

 

- Lembra-se dos nomes dos homens que ajudaram nesse curso?

 

- Apenas os primeiros nomes: Pedro, António e Júlio.

 

- Não havia nenhum Sérgio?

 

- Não.

 

- Vou então à contabilidade.

 

A Dra. Cuevas lembrava-se bem. Tinha estado lá um Pedro e um António, com nomes integralmente espanhóis. Havia um terceiro nome, dado pela secretária da contabilidade, que chamou a atenção de Falcón, porque, completo, era Júlio Menéndez Chefchaouni.

 

Eram 9h. 00 quando voltou à calle Bailén e, assim que abriu a porta, deu um chuto noutro pacote que resvalou pelo chão. Outra vez sem endereço. Tinha o número 3 escrito na frente.

 

Estava exausto. Largou o embrulho no escritório. O atendedor de chamadas estava a piscar. Havia uma mensagem do comisario Lobo, dando um número de telefone de casa. Não se sentiu com forças para isso e foi antes tomar um duche.

 

A cozinha proporcionou-lhe pão e chorizo, que engoliu com vinho tinto. Levou gelo consigo para o escritório e encontrou uma garrafa de uísque na garrafeira. Deitou dois dedos por cima do gelo. Espreguiçou-se antes de se sentar e pensou que, pela primeira vez, tinha estado um passo à frente de Sérgio. Já não estava a perseguir, mas a cercá-lo. Abriu o embrulho. Eram mais fotocópias de páginas dos diários do pai.

 

1 de Julho de 1959, Tânger

 

Tenho um novo brinquedo, que é um par de binóculos. Sento-me na varanda e observo as pessoas na praia. Desenho-lhes os corpos, distraídos, imóveis, quais naturezas mortas. Em vez dos corpos flexíveis dos jovens, sinto-me sobretudo atraído pela geografia decadente dos velhos. Desenho-os como paisagens - escarpas, contrafortes, cordilheiras, planícies e o inevitável desprendimento de terras.

 

Quando estava a treinar os meus olhos de ver ao longe pela praia, dei com a P. e as crianças. A minha família na brincadeira. O Paco e a Manuela estavam a construir um castelo gaudiesco, enquanto o Javier implicava com a P., que o levou até à água. A P. caminhava e o Javier saltava a rebentação com passos de gigante, segurando a mão da mãe. Fiquei enlevado com aquela visão doméstica, que parecia mais adorável pelo facto de estarem a agir com toda a naturalidade. Até que a P. parou e o Javier desatou a correr e foi apanhado nos braços de um desconhecido, que o levantou no ar e voltou a pô-lo no chão. O Javier bateu o pé numa exigência e o desconhecido cedeu e voltou a atirá-lo ao ar. Era um marroquino de uns trinta e tal anos. A P. aproximou-se e percebi que o conhecia. Falaram por minutos, enquanto o Javier fazia montes de areia em cima dos pés do desconhecido. Depois, a P. foi-se embora, arrastando o Javier, que se voltava e dizia adeus ao homem. Voltei a focar o marroquino, que continuou de pé, com a cabeça bem erguida ao sol. Olhou para a P. e o garoto, durante todo o tempo que demoraram a perder-se na multidão da praia. Vi-lhe admiração no rosto.

 

1 de Novembro de 1959, Tânger

 

Primeiras chuvas e ninguém nas praias. Há poucas pessoas na cidade. O porto está vazio. No mês passado, o decreto de Maomé V que conferia um estatuto especial a Tânger foi derrogado. O Café de Paris está vazio, para além dos poucos resmungões que responsabilizam por essa iniciativa a comunidade de negócios de Casablanca, sempre invejosa da vantagem competitiva de Tânger.

 

Fui para a medina e sentei-me sob as varandas gotejantes do Café Central, onde agora apenas é servido um café chilro ou chá de menta. Tive a sensação de estar a ser observado, o que é invulgar, porque sou normalmente o observador. Os meus olhos percorreram as cabeças envoltas em turbantes, os albornozes apertados até ao queixo, as babuchas chinelando contra calcanhares calejados; até dar com o rosto do homem da praia que esteve a falar com a P. Tinha um lápis na mão. Os nossos olhos encontraram-se e percebi que sabe quem eu sou. Saiu pouco depois. Perguntei ao criado se o conhecia, mas nunca o tinha visto ali antes.

 

O R. disse-me que vai mudar de casa outra vez. A carta de Abdullah Diouri minou-lhe o ânimo.

 

3 de Dezembro de 1959, Tânger

 

A M. escreveu, mto. deprimida. As dores de estômago do M. G. foram diagnosticadas como sendo de cancro do fígado e nenhum cirurgião está disposto a operá-lo. Tudo indica que venha a morrer dentro de meses, se não de semanas. Apaixonou-se fortemente pelo M. G. e sei que estas notícias são arrasadoras. Perguntou pelo Javier, outro ser que penetrou o seu coração. A carta pôs-me nostálgico de como a P. e eu éramos dantes. Este pensamento fez-me saltar da cadeira e pus-me às voltas no quarto. Há um intruso na minha cabeça. Pus-me à procura da mentira e dei com a cara do homem da praia. Sei que não vou ter descanso enquanto não souber quem é.

 

7 de Abril de 1960, Tânger

 

Deixei de trabalhar. Não consigo. A minha mente não tem onde se agarrar. Não aguento estar no estúdio. Andei pela cidade e medina, procurando rostos, atento, esperando encontrar o desconhecido. É a minha nova obsessão. Vivo para dentro, numa cabeça que tem a estranha lógica da medina, mas tudo o que encontro são becos.

 

10 de Maio de 1960, Tânger

 

Já tinha praticamente perdido a esperança, quando, ao caminhar pelo Boulevard Pasteur, fui estranhamente atraído por uma peça em osso gravado, na montra de uma das lojas de turistas. Ao levantar os olhos da escultura, vi o desconhecido da praia a atender o público. De início, pensei que a loja fosse dele, até ter visto um velho a tratar do dinheiro. Entrei e, ignorando o desconhecido, que estava a atender uns turistas, perguntei ao velho sobre a peça da montra. Disse-me que era feita pelo filho. Fiquei interessado e perguntei o nome dele, que me disse ser Tarique Chefchaouni. O velho disse que o filho tem um local de trabalho nos arredores da cidade, na estrada para Arzila. Enquanto falávamos, vi junto à sua caixa do dinheiro um cestinho de anéis baratos. Quatro deles são cubos de ágata montados em simples aros de prata.

 

Agora percebo a perplexidade da P. Ou seria medo?

 

Quando leu aquele nome pela primeira vez, Falcón pôs-se de pé e deu uma volta ao escritório de punhos cerrados. No dia seguinte, teria o bilhete de identidade do assassino e uma morada. Bebeu mais uísque e voltou a servir-se.

 

2 de Junho de 1960, Tânger

 

Uma carta da M., dizendo que o M. G. IV tinha morrido, tendo sobrevivido mais dois meses do que se esperava. Ela está de rastos. Escrevi-lhe uma carta de condolências, dizendo-lhe para vir para Marrocos, deixar a cidade, deixar o cenário da dor. Isto é egoísta. Preciso de companhia. A P. e eu movemo-nos em torno um do outro como estranhos, ou pior, com um estranho pelo meio. Devia perguntar-lhe por Tarique Chefchaouni. Como marido, devia exigir saber com quem estava a confraternizar na praia. Mas não o faço. Porquê? Revolvo a minha mente à procura de razões e não encontro nenhuma, a não ser o estar assustado com a perspectiva. Isto parece possível em mim, o veterano de Krasni Bor? Mas não é medo físico. Assusta-me revelar a minha vulnerabilidade. Estou atónito com a descoberta de que o tormento começou no Verão passado e já dura há um ano.

 

3 de Junho de 1960, Tânger

 

Voltei ao Boulevard Pasteur e fiquei do lado de fora da loja, à espera que o homem mais novo saísse. Entrei e perguntei ao pai quanto queria pela escultura em osso que estava na montra. Disse que não estava à venda (uma técnica que eu reconheço) e regateámos. Não joguei bem a minha parte, porque estava com medo que o T. C. regressasse. Paguei 30 dólares, o que me pareceu um exagero, até trazer a escultura para o meu estúdio e ver que é realmente uma muito boa peça. Tem uma espantosa beleza de linhas e formas, que contrasta com a macabra qualidade do material utilizado. Transmite uma mensagem de algum modo ambígua sobre a qualidade do ser humano. Começo a pensar que o velho, em vez de ter sido bom negociador, cometeu de facto um erro imperdoável.

 

18 de Junho de 1960, Tânger

 

Eu sou assim. A P. faz anos hoje. Em vez de lhe dar a habitual jóia, embrulhei a escultura de osso. Pedi-lhe para vir ao estúdio ao fim da tarde e servi champanhe na varanda. Ainda havia luz e estava uma temperatura muito agradável, com uma brisa suave soprando do mar. Desfrutávamos de um momento perfeito, quando lhe dei o presente. Ela estava animada, porque normalmente dou-lhe uma caixinha, e não uma coisa com 40 cm de altura. Rasgou o papel como uma garota. Eu olhava para ela como um lobo, à espreita do instante em que tivesse descascado tudo até ao osso. A cara dela, por uma fracção de segundo, dividiu-se em duas. Os olhos cresceram e esbugalharam-se. Recuperou. Voltámos ao champanhe. O céu escureceu. Percebi pelo olhar dela que me vê como um animal estranho com forma humana, mas que foi pouco cuidadoso e deixou um casco peludo à mostra. Tive o que queria. Ela tem o que deseja. A peça está no toucador dela.

 

Recebi carta da M. a dizer que sofreu um atraso devido a uma batalha judicial. Parece que os filhos de anteriores casamentos do M. G. não acham que ela mereça ficar com metade da fortuna dele.

 

3 de Agosto de 1960, Tânger

 

Encontrei o retiro do T. C. e disseram-me que nunca lá vai no Verão. A casa é composta por apenas dois quartos, já confirmei, com um jardim por trás. Está separada de qualquer outro edifício, pelo que não faz parte da casa de família. Voltei à noite, esperei e observei. Estava silenciosa. Voltei na noite seguinte e saltei o muro, para o luxuriante jardim, que cheirava a terra molhada. Tem um grande tanque no meio, cheio até à borda. A fechadura de trás está muito solta, no final do Verão, e abre-se com facilidade. Lá dentro, há um colchão de palha num estrado de madeira e uma cabaça a um canto, mais nada. Hesitei, quando cheguei à porta do quarto ao lado, como se tivesse uma premonição de que a minha vida iria mudar ao atravessar a soleira. O quarto é o seu estúdio. Está cheio com a mesma parafernália do meu. O meu facho vogou por trabalhos em ferro, esculturas em pedra, gravuras em corno e joalharia; até apanhar a ponta de um quadro.

 

Fixei o meu foco nele e fui atraído como caindo sobre a minha própria espada. Ao fundo do quarto estão três nus abstractos. Olhar para eles através de um pequeno feixe de luz não é a melhor maneira de ver essas obras; mas mesmo nessa lastimável penumbra, a qualidade deles ressalta. Dois nus reclinados e um de pé. Soube imediatamente que, apesar de serem abstractos, o tema é a P. Fiquei dilacerado ao olhar para eles. São os desenvolvimentos perfeitos e magníficos dos desenhos de carvão da P. que eu fiz há quinze anos. Rolaram-me lágrimas quentes pelas faces, ao entrar-me na cabeça a ideia de que aquele teria sido o final certo da minha obra.

 

Na mesa, estava um caderno de esquissos, que não consegui resistir a folhear.

 

Os desenhos são da melhor qualidade. São figurativos de pormenores. Uma mão, um tornozelo, seios cheios, nádegas, uma cintura, uma barriga. São extasiantes. Depois vem a minha própria cara, brilhantemente esboçada.

 

Olhei para os desenvolvimentos. Caricaturas. Cada vez mais feias até que, no canto inferior direito, sou um brutamontes, um monstro de banda desenhada. A minha mão ficou a tremer de raiva. Vê-los dá-me legitimidade. Sou capaz de qualquer coisa, agora.

 

30 de Outubro de 1960, Tânger

 

O Verão terminou. Os turistas abandonaram-nos. Saí de casa e esperei pela P. no mercado. Atravessou o Petit Soco até à praça de táxis do Grand Soco e meteu-se num velho Peugeot. Segui-a noutro táxi, dando dirhams ao motorista, enquanto lhe dizia por onde seguir. O Peugeot parou no estúdio do T. C. Ela saiu e entrou na casa. Disse ao taxista que me esperasse. Trepei o muro do jardim. A porta do quarto estava aberta. Ouvia-se a conversa do T. C. e o riso da P., vindos do estúdio. A porta estava aberta de par em par. Vi-a nua, depois de tirar a roupa interior, caminhar para um lençol amarrotado estendido no chão. Ajoelhou-se de costas para o T. C., cuja túnica já mostrava sinais absurdos de excitação. Começou por trabalhar com lápis. Tem uma maneira própria de entregar todo o corpo na criação de cada linha. As linhas transformaram-se em floreados de bailado, como se estivesse a tirar o trabalho de dentro de si, para o papel, numa dança. Fez três folhas e pediu à P. para mudar de posição. Pôs-se atrás dela e prendeu-lhe o cabelo em cima, segurando-o com um pincel. Passou para a frente dela e endireitou-lhe os ombros para trás, de modo a formar uma cordilheira ao longo da coluna. A P. apercebeu-se da erecção e, com instintiva intimidade, levantou-lhe a túnica e mexeu-lhe até ele ficar todo a tremer. Avançou a cabeça e ele arfou. Levou uma mão às nádegas dele e puxou-o para ela. Inclinou lentamente a cabeça, como em oração. As mãos dele tremeram-lhe nos ombros e ele soltou um grito de criança subitamente acordada na noite. Ela sorveu-o. Eu saí.

 

Voltei para o meu estúdio no táxi e peguei no pincel pela primeira vez em meses. Tinha cinco telas, que prendi com tachas à parede. Preparei tinta preta. Peguei num lápis. O meu cérebro parecia aço. Os pensamentos disparavam pelos canais como balas e, dentro em pouco, tinha esboçado um desenho de total obscenidade, com a P. entre sátiros de chocante priapismo. Pintei com veemência e raiva, mas com clareza e precisão. De tal modo que, quando pousei os quadros no chão, o observador não vê nada, a não ser cinco telas com preto e branco. A minha vingança apenas ganha forma com uma configuração precisa.

 

3 de Dezembro de 1960, Tânger

 

Não trabalho. Só vigio. O meu olhar apenas descansa no enlevo de duas pessoas. Arrefeci até gelar. O meu cérebro trabalha com a clareza de um grito através de um campo imóvel e coberto de neve.

 

Já conheço a rotina de Inverno do T. C. Levanta-se tarde, sempre depois do meio-dia. Vai até um pequeno café, toma o pequeno-almoço e bebe chá. Fuma três ou quatro cigarros. À tarde, raramente regressa ao estúdio. Às vezes, vai até à casa da família. É casado e tem três filhos, dois rapazes e uma rapariga, entre os cinco e os oito anos. Outras vezes, vai até à praia. Gosta do mau tempo. Vejo-o do meu estúdio, de pé ao vento e à chuva, com os braços bem abertos, como a acolher o poder de limpeza dos elementos. À noite, trabalha.

 

Tenho-o observado. Fica tão absorto que não dá por nada. Por vezes, trabalha despido, mesmo sob um frio gelado. De vez em quando, cai, literalmente, para o chão do estúdio, exausto. Completou o quarto nu. A P. de joelhos. É fenomenal. Um prodígio da misteriosa simplicidade da forma, mas com a mesma qualidade que distingue os três anteriores - as alegrias e os perigos do fruto proibido.

 

28 de Dezembro de 1960, Tânger

 

Está uma noite gelada, talvez a mais fria que tive em Tânger. O vento sopra de noroeste, trazendo o frio do Atlântico. Andei pela cidade vazia. Nem os cães saíram à rua. Foi uma longa caminhada até ao estúdio do T. C. e levou-me mais de uma hora. Não pensei, mas subi o muro no lugar habitual (descobri um local que me permite cair num caminho, em vez de em cima de terra). Entrei no quarto e ouvi os pés dele movendo-se no chão, o que me disse que estava a trabalhar. Penetrei na luz do estúdio. Estava agradável, devido a uma salamandra acesa ao canto. Continuou a trabalhar. Movi-me na direcção das costas dele. Os músculos estavam tensos, por baixo da túnica. Parei muito perto dele e continuou a não dar por mim. Espalhava camadas de tinta, patenteando o corpo do modelo. Respirei-lhe para cima do pescoço e ficou hirto como pedra. Não se virou. Não foi capaz de se voltar.

 

- Sou eu - disse-lhe.

 

Voltou-se. Os olhos dele procuraram razão nos meus e, quando isso se provou infrutífero, piedade. Não tinha necessidade nem vontade de compensação verbal e, portanto, a minha mão atravessou veloz e parti-o pela garganta, com tamanha força bruta que ela rachou audivelmente. O pincel e a paleta caíram-lhe das mãos. Ele caiu sobre os joelhos. Ouvia-o a tentar desesperadamente respirar através da laringe desfeita. Pus-me atrás dele e coloquei-lhe a minha mão sobre a boca, apertando-lhe o nariz. A força tinha-lhe sido inteiramente retirada pela violência do meu primeiro assalto. Só quando a morte lhe povoou o espírito, o reflexo de sobrevivência deu energia aos braços, mas era já demasiado tarde. Segurei-o com força e abafei-lhe o último sopro de vida. Pousei-o no chão, de barriga para baixo. Peguei nos quatro nus, retirei-os das grades e enrolei-os. Pu-los à porta. Peguei num garrafão de 5 litros de essência de terebintina e espalhei-a pelo chão e pelo corpo inerte do T. C. Havia aguarrás e álcool também. Atirei-lhes um fósforo e saí. Voltei para o meu estúdio a pé. Escondi as telas por cima da cama, no telhado. Deitei-me. O meu trabalho está feito e não me vai custar adormecer.

 

Javier bebeu o resto do uísque do copo. Quando a enormidade do que tinha estado a ler transbordou da página e encheu a sala como um tumor pavoroso, voltou a encher sucessivamente o copo de uísque até ficar bêbado. O sentimento de triunfo inicial tinha desaparecido. O seu rosto parecia borracha amassada. Os pés estavam cobertos de folhas fotocopiadas, que se lhe soltaram da mão enfraquecida. A cabeça descaiu-lhe para o ombro. O pescoço endireitou-se com um estalo, devido ao reflexo para evitar o sono e o que o esperava nele. Mas perdeu toda a resistência: a exaustão venceu, corpo e espírito foram completamente postos fora de jogo.

 

Sonhou consigo completamente adormecido, mas não em adulto, em garoto. Sentia as costas mornas e uma sensação de segurança, debaixo da rede mosquiteira. Estava naquele meio-sono em que sabia que o calor que sentia nas costas era do sol e em que via a irregularidade superficial da parede caiada à sua frente. Sentia a alegria enérgica da infância subir-lhe do estômago, ao ouvir a mãe chamá-lo:

 

- Javier! Javier! Despiértate ahora, Javier!

 

Acordou instantaneamente, porque sabia que a ia encontrar naquela sala e ia ser feliz e amado.

 

Mas não era ela. O que quer que fosse que ali estava embrulhou-se na sua visão por um momento, até conseguir focar. Estava de regresso ao escritório. Estava na sua cadeira, só que não era a cadeira habitual. Era uma das cadeiras de espaldar alto da sala de jantar. E não se conseguia mexer para a frente, porque tinha qualquer coisa a cortar-lhe o pescoço, os pulsos e os tornozelos. Tinha os pés descalços e frios no chão de tijoleira.

 

Segunda-feira, 30 de Abril de 2001, casa de Falcón, calle BaiLén, Sevilha

 

Não estava nada em cima da secretária, à sua frente. Os quadros tinham sido retirados da parede.

 

- Estás acordado, Javier? - perguntou uma voz por trás dele.

 

- Estou acordado.

 

- Se tentares gritar, vou ter de te meter as peúgas na boca, portanto faz o favor de teres juízo.

 

- Já estou para lá do grito - disse Javier.

 

- Estás? - disse a voz. - Vejo que andaste a ler. Acabaste?

 

- Acabei.

 

- E o que pensas do grande Francisco Falcón e seu agente de confiança, Ramón Salgado?

 

- O que esperavas que pensasse.

 

- Diz-me. Gostava de ouvir.

 

- Comecei por pensar que era um monstro... encontrei aqueles cinco quadros no estúdio... e agora... sei-o. O que eu não sabia é que era também uma fraude. Isso acrescenta... ou antes, retira, a dimensão final. Agora é apenas um monstro. Não sobrou nada.

 

- As pessoas são muito tolerantes para com os génios - disse a voz. - O teu pai sabia isso. Hoje em dia, pode-se violar e matar, mas se fores um génio, és tolerado. Por que achas que toleramos a maldade em pessoas com um talento dado por Deus? Por que é que suportamos a arrogância e rudeza de um futebolista, só porque marca grandes golos? Por que é que aceitamos as bebedeiras e o adultério num escritor, desde que ele nos dê poemas? Por que é que somos capazes de violar, mutilar e matar por alguém que é capaz de nos dar a ilusão de acreditar em nós? Por que é que damos rédea solta aos génios?

 

- Porque nos entediamos com facilidade - disse Javier.

 

- O teu pai tinha razão - disse a voz. - Tu vês as coisas de maneira diferente.

 

- Quando te disse ele isso?

 

- Está algures naqueles diários.

 

- Ele disse-me sempre que eu tinha sido abençoado com a normalidade.

 

- Isso era porque suspeitava de alguma coisa.

 

- Como, por exemplo?

 

- Não é esta a ordem das coisas - disse Sérgio.

 

- Então diz-me qual é.

 

- Até onde pensas tu que chegava a terrível monstruosidade do teu pai? - perguntou a voz. - Até agora, ficámos a saber que era um assassino, um pirata, um hedonista depravado, uma fraude e um ladrão. O mundo está cheio de gente dessa laia. São monstros bastante vulgares, diria. O que o transformaria em alguém extraordinário?

 

- O meu pai era carismático. Tinha charme, era espirituoso e inteligente...

 

- Não podes andar por aí com sangue a escorrer-te dos lábios - disse Sérgio. - Tens de ter duas caras ou a sociedade trata logo de ti.

 

- Ele compreendeu a ambiguidade do ser humano, que o bem e o mal habitam todos nós...

 

- Isso é uma desculpa, Javier - disse a voz. - Não foi isso que o fez extraordinário.

 

O cérebro vogava-lhe de um lado para o outro, enquanto lutava contra as cordas.

 

- Ele é um profanador da inocência - disse Javier.

 

- Normal.

 

- É um abusador da confiança.

 

- Normal, mas estás mais quente - disse o homem. - Tenta pensar no mais extraordinário, incompreensível...

 

- Não consigo. O meu cérebro não funciona assim. Talvez o teu seja capaz. Descobres coisas sobre as pessoas e mostras-lhes os seus terrores mais secretos. Isso é extraordinário.

 

- Achas monstruoso o que eu fiz?

 

- Mataste três pessoas da maneira mais brutal…

 

- Não matei nada.

 

- Então estás louco e eu não falo contigo.

 

- O Ramón Salgado enforcou-se para não ter de enfrentar a sua música.

 

- Então, facilitar-lhe o suicídio torna-te inocente?

 

- O Raúl Jiménez mutilou-se até à morte. .   ,

 

- E quanto à inocente Eloisa?

 

- Oh, talvez eu esteja apenas em negação... como tu.

 

- Apenas a sociedade é culpada - disse Javier, com desprezo.

 

- Não sejas trivial. Não estou aqui para levar com frases feitas. Quero ideias criativas.

 

- Vais ter de me ajudar.

 

- Quem achas tu que te ama ou amou?

 

- A minha mãe amava-me.

 

- É verdade.

 

- A minha segunda mãe amava-me.

 

- Que comovente não lhe chamares madrastra.

 

- E gostes ou não, o meu pai amava-me. Amávamo-nos um ao outro. Éramos íntimos.

 

- Eram?

 

- Ele disse-mo. Até mo escreveu, na carta que acompanhava os diários. Silêncio, enquanto os horizontes mudavam na sua cabeça.

 

- Conta-me da carta - disse a voz. - Não vi essa.

 

Javier recitou-lhe literalmente a carta.

 

- Que interessante. E o que compreendeste tu desse documento, Javier?

 

- Confiava em mim. Confiava totalmente, muito para além do que fazia com os meus irmãos mais velhos.

 

- É interessante que te tenha feito guardião e destruidor dos seus trabalhos. O que achas que lhe ia no espírito quando te imaginou a leres aquela carta na arrecadação, rodeado por todas aquelas tentativas merdosas de copiar a obra do meu avô?

 

- O teu avô? - disse Javier, para si próprio, com o suor a romper da linha de escalpe e a escorrer em fio pela cara.

 

- Não mencionaste a data da carta - disse a voz. - Quando a escreveu?

 

- Na véspera de morrer.

 

- Que sentido de oportunidade extraordinário.

 

- Já tinha tido um ataque cardíaco.

 

- E quanto ao testamento final? De quando é a data? - perguntou a voz.

 

- Três dias antes de morrer.

 

- Suponho que nem a coincidência é assim tão extraordinária.

 

- O que estás a insinuar?

 

- Onde foi encontrado o teu pai depois do segundo ataque cardíaco?

 

- Ao fundo das escadas.

 

- Já saberia então que lhe faltava o diário, que estava à beira de ser desmascarado e do fim do seu mundo - disse o homem. - Que fácil atirar-se para o mármore inflexível e deixar tudo nas mãos do filho favorito.

 

Aquilo calou Javier. Sentiu a pressão instalar-se-lhe na mente, o chão da sua memória gemendo sob o velho peso.

 

- É assim que a consciência trabalha. É lenta. Escalar as paredes de alta segurança da negação exige persistência - disse a voz. - Mas não, tempo é um luxo a que não nos podemos dar. Diz-me lá por que é que achas que o teu pai queria que lesses estes diários?

 

- Não queria. A carta deixa isso claro.

 

- O que é que deixa claro? - disse a voz com dureza. - Imaginas seriamente que ele esperava que tu, um detective, pusesses a carta de lado e seguisses a tua vidinha?

 

- Por que não?

 

- Olha, Javier. Vou dizê-lo eu por ti. Aquela carta estava a mandar-te ler os diários. E por que o queria ele?

 

- Para que... para que eu pudesse partilhar a dor da sua vida atormentada?

 

- Isso é frase de algum filme? Uma coisa sentimental e comportadinha de Hollywood, não? - disse a voz. - Não vou tolerar essas coisas aqui, Javier. Agora diz lá porquê (já pareço o teu pai a falar com o Salgado), diz lá for que queria ele que lesses os diários?

 

- Para aprender a odiá-lo?

 

- Estás tão pateticamente carente, Javier. Por que é que ele havia de valorizar tanto as tuas qualidades de polícia e dizer-te que iriam ser úteis para encontrares o diário em falta?

 

Javier lutou contra a ideia que lhe tinha acabado de entrar na cabeça. Mesmo agora, continuava a refrear-se. Era tudo o que lhe restava. Era uma das poucas coisas que o sustentava. O amor de quarenta e três anos do pai. Mesmo do amor de um monstro era difícil abrir mão.

 

- Vai uma ajuda, Javier. Não vou ler tudo... apenas os trechos pertinentes. Estás pronto?

 

7 de Abril de 1963, Nova Iorque

 

A caminho de Nova Iorque, o Salgado sugeriu que, antecedendo a exposição do último nu de Falcón, eu devia publicar os meus diários. Sufoquei com hilaridade consternada perante a sugestão. Que fantástica desconstrução isso daria. Ri-me espasmodicamente, como num forte ataque de soluços. Foi a Mercedes que lhe meteu a ideia na cabeça. Vi-os cozinharem planos e a M. já me assustou uma série de vezes, insinuando-se quando atiro para o papel as minhas anotações disentéricas. (Ela tem umas sandálias douradas muito maleáveis e silenciosas - tenho de espalhar cascas de noz para dar por ela.) Dei ao Salgado um enfático não por resposta, o que lhe aumentou a fascinação.

 

31 de Dezembro de 1963, Tânger

 

Tenho sido desleixado e isso mudou tudo. A M. e eu estivemos no estúdio ontem. As crianças estavam a brincar na rua, tão excitadas com a brincadeira que não esperaram para chegar à areia macia da praia. O Javier, desejoso de acompanhá-los, caiu e bateu com a cabeça. Tinha a cara coberta de sangue. Saí do estúdio a correr, meti-o no carro e levei-o directamente para o hospital, onde lhe deram uns pontos na cabeça. Quando voltei ao estúdio, percebi que tudo tinha mudado.

 

O que é que está realmente diferente? Continuamos a ser marido e mulher, continuamos a viver na mesma casa, continuamos a ter a festa de Ano Novo logo à noite.

 

Quando regressei do hospital, a M. não perguntou imediatamente pelo Javier, que ficou em casa, com a criada. Estava na varanda a olhar para mim, como se eu fosse um lobo solitário num campo gelado. Avancei para ela, contando-lhe sobre o Javier, como numa audição. Ela evitou-me, dando a volta para dentro do quarto. Disse-lhe que ele estava em casa e que a queria ver. Ela praticamente correu porta fora. Fizemos o percurso de carro num silêncio gelado, com o Paco e a Manuela a brigar no banco de trás. Ela subiu e eu fui para o meu estúdio.

 

Aqui estou, vinte e quatro horas depois, a ver a sombra dela no tecto do quarto do Javier. Já está escuro. É apenas uma questão de horas, antes de os convidados chegarem para jantar. Mais tarde, iremos para o barco, ver a exibição do fogo-de-artifício britânico no porto. Estou quase paralisado de tristeza. Vejo a sombra dela, que está mais ampla porque tem o Javier no colo. Vão até à janela e olham para o pátio escuro e para a negritude, ainda maior, da figueira. Tenho lágrimas nos olhos, porque sei que se está a despedir do Javier, que vai ser minha mulher nesta festa e nunca mais. Vai partir e, ao fazê-lo, vai trair-me. Tenho de ir agora para o quarto, vestir o meu smoking branco.

 

5 de Janeiro de 1964, Tânger

 

Estou esgotado, mas tenho de voltar a encarar a página branca, meu prístino confessionário. Foi nisso que o meu diário se transformou. Vomito e a horrível náusea da minha existência serena.

 

Na véspera da festa, estava eu a vestir-me. Ela foi direita para a casa de banho, como a esconder-se. Esperou que eu saísse, para vestir o fato de noite. Fui ver como estavam as crianças. Ela não desceu até os convidados chegarem. Os meus olhos seguiram-na, enquanto fazia sala; uma vez por outra, os nossos olhares chocavam e repeliam-se. O jantar foi animado e barulhento, mas vivi-o como uma criança debaixo da mesa. Depois da refeição, reunimo-nos no átrio, enquanto as senhoras enfiavam os casacos. E subitamente, o Javier apareceu ao fundo da escada. A M. levou-o de volta para a cama, com a cabeça enfiada no pescoço dela. Saímos de casa em grupo, a M. de braço dado com o Salgado. Saltaram rolhas de champanhe à nossa chegada ao iate. Viu-se o fogo-de-artifício. Os convidados começaram a ir-se embora.

 

Disse ao Salgado que queria sair com o barco e pedi-lhe que convencesse a M. «Ela faz tudo por ti», disse-lhe eu. «Mas a mim pode facilmente dizer-me que não alinha.»

 

Saímos os três, uma hora mais tarde. Estava frio e mar chão. E uma meia lua ajudava ao gelo. Bebemos champanhe junto à roda do leme, com a M. embrulhada num casaco de raposa do Árctico. O silêncio ao largo era horrível. Depois o vento levantou-se, não se sabe de onde, e o Ramón, que estava bêbado, desceu. Voltei o barco de novo para Tânger.

 

Por fim, a M. disse: «Vou-te deixar... sabes isso, não sabes?»

 

Perguntei-lhe como tinha encontrado os diários. Tinha convencido o Javier a dizer-lhe onde eu os guardava. O rosto dela estava muito perto do meu quando falou e acrescentou: «O teu segredo fica entre nós.» Se pensasse sobre aquilo, por um momento que fosse, não teria sido capaz de agir. Por isso, preguei-lhe um murro com os nós dos dedos no plexo solar e ela dobrou-se para cima do meu braço. Empurrei-a com força, atirando-a de costas contra a amurada, que lhe acertou por baixo da anca. Ela deu uma volta e, como numa pirueta cómica, os pés mergulharam na escuridão. O barulho da queda foi inaudível. Não olhei para trás. O mar encapelou-se à minha frente e havia uma tempestade a soprar quando regressámos a Tânger. Assim que entrámos no porto, chamei a M. e o Salgado, para virem para o convés. O Salgado apareceu com os olhos obnubilados. Disse-lhe para ir acordar a M. e ele voltou a descer. Segundos depois, estava de volta, dizendo que ela não estava na cabina. Andámos loucos à procura, no barco, antes de encararmos a terrível verdade e chamarmos a guarda costeira. Não a encontrámos. No dia seguinte, contei ao Javier o que tinha acontecido. Ele ficou destroçado.

 

A voz continuou, mas à distância, porque, agora, Javier estava de volta àquele momento, caminhando para a sala que costumava ser o estúdio do pai. Tinha sido chamado lá para lhe darem a terrível notícia, que já lhe tinha chegado através das espessas paredes caiadas, nessa manhã. Uma tristeza profunda tinha enchido a casa e ele só conseguia ouvir o seu próprio coração, quando atravessou a porta para ir à presença do pai. Este chamou-o e ele pensou que o ia apertar contra o peito e beijar-lhe a testa. Mas em vez disso, pegou-lhe pelo braço, apertando-o e torcendo-lhe o bicípite, de tal maneira que Javier se endireitou nos bicos dos pés. A face e a enorme cabeça do pai desceram ao nível da dele. Apontou o dedo para o olho de Javier, como se estivesse carregado.

 

- Sabes por que é que a Mercedes não volta, não sabes, Javier?

 

O Javier ficou mudo perante a dupla dor na sua carne magoada e o que eu percebi ser o pesado vazio que se desenhava e que mais temia.

 

- Isto é importante - disse-lhe eu, puxando-o para mim de modo a que a sua cara retraída ficasse mesmo junto à minha. - Não podes dizer nunca, a ninguém, onde é que eu guardo os meus diários. É o meu segredo. Quero que te lembres disso... A partir de agora, javier, deixou de haver diários.

 

De regresso ao corredor, fora do estúdio do pai, olhava para o braço. As lágrimas inundavam-lhe os olhos e caíam-lhe rapidamente pela face macia. A boca estava cheia de saliva e ele sabia que Mercedes nunca mais regressaria. O cheiro dela nunca mais voltaria para ele, quando estivesse debaixo dos lençóis justos ao corpo. Os seus dedinhos nunca mais percorreriam as orelhas dela. E tudo por culpa sua. Nunca lhe devia ter dito. Desatou a correr, corredor fora, escada acima, para o quarto, para a cama. Mas mantinha-se o vazio negro da constatação e a dor apertada do braço a arder.

 

- Isto clarifica-te as coisas? - perguntou a voz.

 

E Javier teve um sentimento de pressa, como numa rua movimentada, até regressar à realidade, ainda a olhar para o bicípite, como se a examinar a nódoa negra que lhe tinha sido infligida há tantos anos.

 

- Ele amava-me, apesar de tudo - disse Javier, cuspindo as palavras através da saliva que se juntara na boca. - Estava só a avisar-me, mas continuava a amar-me. Não vivemos todos aqueles anos juntos...

 

- Continuas a não querer acreditar. Percebo isso, Javier. É difícil desistir de uma coisa dessas... como é difícil desistir da própria vida... até ela se tornar totalmente intolerável. Até que as nossas acções se tornem...

 

- Mas quem és tu? - perguntou Javier. - Mas quem diabo és tu?

 

- Sou os teus olhos - disse a voz. - Através de mim, aprenderás a ver. Até onde vai a tua valentia, Javier?

 

Abanou a cabeça, nada valente, ainda esmagado com o peso da morte de Mercedes na consciência e aterrado perante as novas possibilidades, os horrores renovados, aqueles que conhecia, mas ainda não sabia.

 

- Estás com medo, não estás, Javier? Estás com medo do que vais ver. A cara tremia-lhe debaixo da tensão da corda.

 

- O que mostraste aos outros... Ao Raúl e ao Ramón? - perguntou Javier, desesperado por adiar o momento. - O que descobriste para lhes mostrar que era tão horrível?

 

- Já o deves saber, nesta altura - disse a voz. - Não lhes mostrei nada de terrível. Nem crianças abandonadas, nem bebés mortos. Nem raparigas violadas, nem rapazes sodomizados estrangulados. Podes ver disso no cinema, nas revistas, na Internet, na televisão. Estamos calejados pela brutalidade da condição humana. Nada nos pode já horrorizar. Viste as fotografias que o Salgado tinha no computador? Viste o que o Raúl Jiménez estava a ver enquanto fodia a puta? Eles eram homens muito versados em horror. Não havia mais nada que eu lhes pudesse mostrar nesse domínio.

 

- Então o que lhes mostraste?

 

- Mostrei-lhes a felicidade que tinham renegado.

 

- A felicidade?

 

- O Arturo a brincar na praia com a Marta. Ela estava a fazer-lhe cócegas, sabes. Estava a fazer-lhe cócegas até ele não aguentar mais. Acrescentei uma banda sonora. A Manuela alguma vez te fez isso? Fazer cócegas até quase morreres? Fazer cócegas até que já não sejam cócegas, mas tortura. Oh, o cérebro prega cada partida, Javier... depois de décadas de negação.

 

- E o Ramón? O que mostraste ao Ramón? A sua mulher feliz...

 

- Penso que o Raúl lhes deve ter dado aquele filme como presente de casamento. O casal feliz, Ramón e Carmen. Ouviste as fitas magnéticas?

 

Javier confirmou com a cabeça.

 

- Havia outra, que levei comigo. A Carmen acabava por cantar, no fim. A voz não era muito boa, mas cantava para o Ramón... uma ária de amor. O Ramón batia palmas no final e percebia-se a emoção na sua voz. Alterei-a um pouco. Não havia palmas... apenas aqueles três últimos gritos desesperados: «Ramón! Ramón! Ramón!»

 

Javier tremeu perante o rebuscamento terrível daquela tortura. Os homens encarando o duplo horror da cirurgia irreversível e dos últimos momentos de verdadeira felicidade, cruelmente desfigurados pela banda sonora acrescentada.

 

- E eu? O que me vais mostrar a mim? - perguntou Javier, a quem o medo estava a pôr danado, enquanto tentava lembrar-se do seu último momento de felicidade. - Que felicidade reneguei eu?

 

- Vou-te vendar por uns momentos - disse a voz. - Quando te tirar a venda, verás.

 

Prendeu-lhe um elástico na parte de trás da cabeça e recebeu a suave escuridão de uma máscara acolchoada, das que se usam para dormir. Estava-se bem na escuridão do veludo e do forro. Pensou que não devia sair nunca de debaixo dela. Foi colocada qualquer coisa em cima da secretária. A cadeira foi manobrada para a frente. A adrenalina subiu no seu sistema. A pureza do pânico insidioso transformou-lhe o sangue num líquido fluido e frio como o éter.

 

Sentiu frio e tremia. Os dedos aliviaram-lhe a máscara e Falcón manteve os olhos fechados com força.

 

- Abre os olhos, Javier. Tu, melhor que ninguém, sabes o que acontece se não abrires os olhos. Não é de facto nada de terrível.

 

- Eu vou abri-los. Dá-me só um tempo.

 

- Vê-lo todos os dias da vida.

 

- Sabes tão bem como eu que não é o que está em cima da mesa - disse Javier. - É o que está na minha cabeça.

 

- Abre os olhos.

 

- Vou abrir.

 

- O tempo é curto.

 

- Eu abro.

 

- Eu obrigo-te. Sabes que o faço. Sabes como o faço.

 

Javier sentiu a cabeça presa no gancho de um cotovelo e inclinou-a para trás de modo que o pescoço ficou esticado, tão esticado que não podia gritar. Sentiu-lhe o toque. Era como gelo. A queimadura gelada da lâmina insensível. O calor desceu por um fio na sua face, mais espesso do que suor ou lágrimas. Os olhos abriram-se totalmente, quando a cabeça se inclinou para a frente.

 

Na mesa estava apenas um copo de leite, branco. Procurou afastar-se, mas era tarde de mais: a imagem agarrou-se-lhe ao cérebro como um estilhaço de vidro. Não fazia ideia porque estava tão assustado. Não havia lógica a acompanhar o medo que lhe corria por impulsos, de sinapse para sinapse, de nervo para nervo, até todo o corpo estar convulso, em espasmos de fazer abanar a cadeira.

 

A venda desceu, fechou a ridícula realidade de um copo de leite. Uma mão agarrou-lhe o cabelo num molho; um corpo chegou-se para diante, a seu lado.

 

- Inspira.

 

Inspirou um cheiro de intensidade nauseante, vomitiva. Brotou-lhe na boca um sabor sulfuroso e um suor frio irrompeu-lhe pelo corpo. Vomitou.

 

O cheiro foi retirado, o copo foi substituído em cima da secretária. O homem instalou-se por trás dele.

 

- Eu sabia que ias ser corajoso.

 

- Não me sinto corajoso - disse Javier, ainda a recuperar o fôlego e a tossir do vómito.

 

- A que te cheirou?

 

- Amêndoas e leite. Como sabes que detesto amêndoas e leite?

 

- Quem costumava beber leite de amêndoas antes de adormecer, todas as noites?

 

- Acho que era a minha mãe.

 

- Tu sabes que era a tua mãe. Quem lhe levava o leite de amêndoas para ela beber, todas as noites?

 

- A criada levava-lho...

 

- Não, essa fazia-lho. Quem lho levava?

 

- Eu, não - disse ele muito depressa, como uma criança, numa mentira instintiva. - Não fui eu. Foi a Manuela.

 

- Sabes por que é que o teu pai te odiava?

 

Javier deixou pender a cabeça de infelicidade. Abanou-a de lado para lado, negando-o, recusando tudo o que lhe vinha à cabeça.

 

- Por que é que o teu pai te fez amá-lo?

 

- Já não te compreendo.

 

- Calma agora, Javier. Vou-te ler uma história, tal como fazia o teu pai quando ias para a cama. O que vai ser esta noite? Pois, esta noite vai ser: «um pequeno historial de dor, que passará a ser teu».

 

3 de Janeiro de 1961, Tânger

 

Durante seis dias, sentei-me diante da P. e observei a sua cara transformar-se em cinzas. Apenas as crianças trazem animação ao seu ser. Pergunto-lhe o que tem e diz sempre o mesmo: «Nada, nada.» Passei pelo estúdio do T. C., a porta ardeu totalmente e não tem telhado. Ouço no café que o T. C. costumava frequentar que não vai haver inquérito policial. Foi um acidente trágico. A P. começou a ir à missa frequentemente. Olho para o mar com os meus binóculos. Está chão e cinzento como aço. A praia está vazia. Observo as gaivotas a mergulhar.

 

12 de Janeiro de 1961, Tânger

 

O Javier fez cinco anos e fizemos-lhe umafestinha. A P. andou toda animada. Espanta-me a sua energia. Fui a estrela da tarde, a fazer de monstro das profundezas. Bandos de crianças fugiam de mim aos gritos. Capturava uma e comia-a com prazer - a massa de criança, elástica, esperneante e de riso nervoso -, até que uma menina fez xixi por ela abaixo. Fim do monstro. As crianças foram cedo para a cama e a P. e eu jantámos sozinhos, no silêncio habitual. Até os criados andavam como por cima de vidros partidos. Acabámos de comer. Os criados saíram. Ficámos sozinhos. Pus-me a beber um brandy e a fumar. Fiz as minhas observações habituais acerca da sua postura e, desta vez, ela bateu na mesa com ambos os punhos. Foi como um disparo de espingarda.. Os olhos estreitaram-se e inclinou-se para mim, por cima da mesa.

 

P.: Eu sei que foste tu.

 

Eu: O quê?

 

P: Eu sei que foste o responsável.

 

Eu: Por quê?

 

P: Pela morte dele.

 

Eu: Quem?

 

P: És tão frio como as paisagens que costumavas pintar. Aquelas vastidões geladas. Não tens coração, Francisco Falcón. ´És vazio, és frio e és um assassino.

 

Eu: Já tinha admitido o meu passado.

 

P: Oh, que Deus me perdoe, devia ter prestado mais atenção. Devia ter dado ouvidos ao meu pai. Nunca devia ter deixado as tuas mãos de gelo aproximarem-se de mim. És uma besta. És um autêntico monstro. Arrepiou-me até aos ossos ver-te hoje com as crianças; porque aquilo és tu, aquilo é o que...

 

Eu: De que estás tu a falar, Pilar?

 

P: Eu digo-to na cara, se quiseres.

 

Eu: E quero.

 

P: Tu mataste Tarique Chefchaouni.

 

Eu: Quem?

 

O desprezo dela quase não cabia na sala.

 

P: Tu sabes que eu não sou tola. Quando me deste aquele anel, quando me deste a escultura de osso... não pensaste que eu sabia precisamente o que estavas a fazer? No entanto, isso não me impediu, Francisco. Nunca me impediria de gozar a verdadeira paixão de um homem com mais génio num só cabelo do que tu em toda essa alma esvaziada.

 

As palavras caíram-me como bastões, cada uma atingindo um órgão vital ou uma articulação crucial.

 

P: Então diz-me, Francisco, por que o mataste? Não acredito que fosse porque ele andava... a comer-me. Ou foi? Foi porque ele andava a dar prazer à tua mulher, enquanto tu fazias joguinhos com a tua puta rica ou sodomizavas rapazes com os teus amigalhaços do Bar La Mar Chica. Foi isso? Quando fizemos amor pela última vez? Alguma vez fizemos?

 

Eu: Estás a levar isto longe de mais, Pilar.

 

P: Estou a levar isto longe de mais para ti, não estou? É a mãe dos teus filhos a falar. Ela diz-te o que és. És desleal. És um sodomita. Nega-o!

 

Eu: Não falas assim comigo!

 

P: Falo. E digo-te, Francisco: vai saber-se tudo. Tudo... até o facto de teres saído para sodomizar rapazinhos na nossa noite de núpcias, com aquele ser repugnante... nem consigo dizer o nome dele.

 

Eu: Quem te contou isso?

 

P: Eu ouço tudo. Vem tudo ter comigo. Eu sei de tudo, Francisco. Até sei por que casaste comigo, besta sem coração.

 

Eu: Por que é que casei contigo?

 

P.: Porque pensaste que eu podia extrair o teu génio, que comigo ele fluiria. Mas génio, Francisco, é uma dádiva de Deus. Foi-te dado. Tiveste um vislumbre. Pegaste-lhe. E o que fizeste com ele? Vendeste-o. E foi por isso que Deus nunca mais voltou a ti. Reconheceu-te pela puta que és.

 

Eu: Cala-te! Cala-te! Cala-te!

 

P: No, no, no que no! Acabou, Francisco Falcón. Vais ouvir tudo. Foi-te dado ver. Foi-te dada uma visão especial. Foi-te permitido ver dentro da natureza das coisas e trataste isso como moeda. Quando voltei para ti, oh, foste tão patético. Tão agradecido. A tua musa tinha regressado. E pediste para ver outra vez; mas, devido ao homem que és, não conseguiste ver por dentro. Apenas viste a superfície. E qualquer um pode pintar a superfície. Afinal, até a medina é caiada todos os dias.

 

Eu: Não aturo isto.

 

P: Aturas. Admite para ti próprio, ainda que não possas fazê-lo para mim, que a razão pela qual mataste o Tarique Chefchaouni e destruíste a sua obra...

 

Eu: Cala-te, Pilar!

 

P: ... foi porque ele, um rapazinho árabe do Rife, estava a ter êxito onde tu falhaste. Ele ficou quase louco de raiva quando descobriu que o pai tinha vendido a escultura de osso. Apenas sossegou quando soube que era eu que a tinha. A sua obra não era para vender. Era entre ele e o Criador. Era esse o seu princípio. Era essa a sua moral. Não vendes a tua visão a quem dá mais.

 

Levantei-me com as pernas a tremer. A minha força estava a transformar-se numa fúria visceral. Era como um vulcão prestes a irromper. Tive de me segurar à mesa com ambas as mãos para me conter. Ela inclinou-se para mim, de modo que as nossas caras ficaram próximas e vi-lhe a brancura forte e incisiva dos dentes. Os olhos dardejavam-me, ardendo em chamas verdes.

 

Eu: Então o que estava a escultura dele a fazer na montra de uma loja?

 

P: Nenhum de nós está isento de vaidade; mas só alguns são completamente consumidos por ela.

 

Bati-lhe. Acertei-lhe com as costas da mão na cara. Foi um estaladão incrível, que a mandou em voo para o outro lado da sala, até colidir com a parede e cair como uma barata tonta. Rastejou desorientada para o canto e sentou-se a recuperar os sentidos. Os ossos da minha mão estalaram. Senti-me verdadeiramente assassino e selvagem, mas qualquer coisa me segurou. A P. ergueu-se do chão, encostando-se à parede, que soltou a cal. Os olhos piscavam-lhe e abanava a cabeça. Tinha um ar determinado.

 

P: Tenho mais uma coisa para essa besta voraz que vive na tua cabeça se alimentar. É bom que saibas que mataste o pai do meu último filho e nunca terás perdão.

 

Saiu da sala. O meu cérebro enraivecido teve dificuldade em decifrar as palavras complexas. Cada letra tão afiada como arame farpado apertado. Tive de me sentar. Fiquei no paroxismo da agonia. O meu coração parecia ter-se contraído, feito em cãibras. Através do uivo de dor lancinante do meu cérebro, ouvia os passos dela percorrerem os corredores de tijoleira. Uma porta bateu. Uma fechadura fez dique. Queria chamá-la para me salvar. Mas estava sozinho com qualquer coisa horrível a passar-se dentro de mim, que não tinha a certeza que a minha caixa torácica pudesse conter. Fechei os olhos num esgar prolongado de agonia. Solucei e atrás do soluço veio um arroto estrondoso que encheu a sala com o cheiro de chorizo rançoso. O alívio foi imediato. A morte passou ao lado. Saí de casa e fui dormir para o meu estúdio. Acordei de manhã com a cabeça limpa e escrevo isto como se tivesse sido um sonho agitado. Não acredito no que me disse acerca do Javier. O despeito foi a sua única defesa contra a espontaneidade da minha violência.

 

13 de Janeiro de 1961, Tânger

 

Voltei para casa à tarde. Assim que abri a porta, cheirou-me a queimado, ou melhor, a fogo apagado. Havia uma mancha negra no pátio e o vento fazia rodopiar os flocos negros de papel queimado, que se espalhavam como uma praga de insectos sem fuga possível. Desloquei-me pelo meio desse mundo de borboletas da noite, com os flocos negros a prenderem-se à minha cara, fresca mas suada. Não percebi por que tinham acendido uma fogueira ali, até ver um pedaço de papel, com as pontas queimadas como um folho negro. Voltei-o e vi vestígios de uma linha de carvão. Fui ao quarto que tinha sido o meu estúdio. Fiquei de pé diante da cómoda cuja gaveta de baixo estava aberta. Os sete desenhos da P. que tinham sobrado... tinham desaparecido.

 

Fiquei enraivecido e atravessei a casa até ao quarto dela, que estava fechado à chave. Meti o ombro à porta e rebentei-a. Estava vazio. Peguei na escultura de osso e voltei para o meu estúdio na baía. Peguei em martelos e fui para o telhado. Esmaguei-o aos pedaços, com um martelo em cada mão. Recolhi os pedaços e, com uma força louca, obsessiva, triturei-os no almofariz. Meti o pó de osso num saco e fui a uma loja barata para turistas comprar uma urna simples de barro. Meti lá dentro o pó de osso. Levei-a para casa e coloquei-a no toucador.

 

18 de Janeiro de 1961, Tânger

 

Não houve comentários. A mancha negra do pátio desapareceu. Não sei onde está a urna. Ficou em cima do toucador por uns dias e depois desapareceu. Movemo-nos em torno um do outro como se estivéssemos no centro da queda de um império, como se fôssemos imperador e imperatriz, traçando desígnios para o colapso final. Sabemos o que requer. A suspeita espreita nos corredores. Somos atraídos para a companhia um do outro, que é mutuamente abominável, porque temos de estar atentos ao que o outro faz. Ela só come e bebe o que lhe prepara a criada rifenha. Manifesto desinteresse e tomo as minhas refeições no Grand Hotel Villa de France. Vigio-lhe a rotina e espero. Havia uma história na Roma Antiga de um casal exactamente na nossa situação. A mulher reparou que o marido comia figos de uma determinada figueira. Pintou-os com veneno e assistiu à morte dele. Não estamos em época de figos.

 

25 de Janeiro de 1961, Tânger

 

Estou sentado no estúdio. Levou-me o dia todo a encontrar esta rosca de papel que tenho à minha frente. Fumo e aliso o papel. Toco nas duas cápsulas de vidro com cianeto que me foram dadas pelo legionário que salvei da prisão. Cheiro-as. Nada. Nas profundezas do meu cérebro, recordo-me que o cianeto cheira a amêndoas.

 

2 de Fevereiro de 1961, Tânger

 

A P. tem ido mais cedo para a cama e a rifenha passou a chamar uma das crianças para lhe levar o leite morno de amêndoas. O Paco e a Manuela mandam sempre o Javier, que fica encantado por desempenhar a tarefa. Observo do pátio. A P. pousa o leite na mesa de cabeceira, dá um beijo ao Javier e abraça-o antes de o mandar para a cama. Bebe o leite e apaga a luz.

 

Pergunto-me se era aquilo que eu queria. Tornar-me um uxoricida. Não tenho moral? A questão não parece relevante. A pressão vem de um sector diferente. As noites são cada vez mais longas e os meus pensamentos perdem mais tempo na escuridão solitária. Deito-me no centro do meu estúdio, com a rede mosquiteira atada por cima da cabeça e vem-me uma imagem dos primeiros dias na Rússia. Vejo a traidora de Pablito no meu raio de visão. O seu peito arfante está no centro da minha mira. Desloco-a e, à voz de fogo, acerto-lhe na boca. O queixo sai pulverizado. Eis a resposta que procurava.

 

5 de Fevereiro de 1961, Tânger

 

Sentei-me por baixo da figueira, no pátio. Tinha ambas as cápsulas comigo. Rolei-as na palma da mão. Não me consumia o ódio, era apenas movido pela inevitabilidade. Estávamos num momento crucial. Não havia maneira de mudar o desfecho.

 

Ouvi a rifenha chamar. Momentos depois, os pés descalços do Javier a andar na tijoleira. Escondi-me num dos quartos do corredor que dava para o da P. Ouvi aproximar-se o roçagar do pijama do Javier.

 

Uma vez mais, a voz de Sérgio recuou, à medida que as palavras ecoavam inexoráveis. Javier deu por si a olhar para os pés nus sobre a tijoleira, com o copo de leite de amêndoas à altura do queixo. Apertava o lábio com concentração, tentando não deixar cair uma gota e assustou-se com a aparição súbita do pai, à altura dos seus ombros. A cara grande, emergindo da escuridão com tal brusquidão, quase fez com que Javier deixasse cair o copo, que o pai, graças a Deus, lhe tirou da mão.

 

- Sou apenas eu - disse; e abriu muito os olhos, apertando os dedos por cima do copo, com a palavra: Abracadabra.

 

Devolveu-lhe o copo.

 

- Está tudo bem agora - disse e beijou-lhe a cabeça. - Vai. Leva isso. Não deixes cair.

 

Javier agarrou o copo com força e o pai deu-lhe uma palmadinha no ombro; os pés dele voltaram a caminhar por cima da tijoleira, com o contorno de cada junta ou falha a imprimir-se nas solas descalças. Chegou à porta, pôs o copo no chão; precisava das duas mãos para rodar a maçaneta. Pegou no copo e entrou. A mãe levantou os olhos do livro. Fechou a porta, empurrando-a com as costas até ouvir o clique do trinco. Colocou o copo em cima da mesa-de-cabeceira e trepou para cima da cama. A mãe apertou-o com força contra o peito e ele perdeu-se momentaneamente na macieza da sua camisa de dormir. Sentiu a mão dela, uma mão sem anéis, segurando-lhe o ventre tenso, e o hálito dela e o toque dos lábios na sua cabeça, as cócegas que lhe faziam. Ela era quentinha e o algodão cheirava a ela; e ela apertava-lhe as costelas contra as suas e dava-lhe um último beijo muito forte na testa, marcando-o para sempre com o seu amor.

 

Javier gelou na cadeira, de regresso à realidade sombria da máscara. As cordas ainda o magoavam, a pálpebra ainda lhe ardia, com o veludo da venda ensopado de lágrimas e a voz por trás dele debitando as palavras definitivas do diário do pai:

 

Momentos depois, o Javier corria para o quarto dele. Fui à janela e olhei pelas frestas das portadas. A P. segurava o copo de leite. Soprou-lhe e bebeu o primeiro centímetro. Voltou a pô-lo na mesa. Mal se voltou, o cianeto já tinha actuado no sistema nervoso. Fiquei surpreendido com a velocidade. É tão rápido como o sangue. Ela teve uma convulsão, levou a mão ao pescoço e caiu para trás. A rifenha foi ao quarto das crianças e a luz apagou-se. Foi para o quarto dela pouco depois. Fui ter com a P. e retirei o copo. Lavei-o cuidadosamente na cozinha e enchi-o até meio com uma garrafa de leite de amêndoas que preparei previamente no estúdio. Recoloquei o copo perto da cama da P. e apaguei a luz. Voltei para o estúdio, para escrever isto.

 

Tenho de ir dormir já, porque amanhã tenho de me pôr cedo a pé.

 

Sérgio terminou e fez-se silêncio na casa. As lágrimas de Javier, que tinham ensopado a venda, misturadas com o sangue da pálpebra cortada, escorriam-lhe agora pela cara abaixo. Estava esgotado. Sentiu movimento atrás de si. Um trapo fechou-se-lhe sobre o nariz e a boca; e um químico forte, que cheirava tão mal como amoníaco, mandou-lhe o cérebro para outra galáxia, sem som.

 

Segunda-feira, 30 de Abril de 2001, casa de Falcón, calle Baillén, Sevilha

 

Era uma trégua. O cérebro cloroformizado regressou, trôpego, através do espaço em silêncio. O regresso à realidade era fragmentário - estilhaços de som e cacos visuais. A cabeça levantou-se e a sala inclinou-se. Fatias de luz penetravam-lhe no olho e, subitamente, ficou totalmente acordado, devido ao medo de que alguma coisa terrível lhe pudesse ter sido feita.

 

Conseguia ver e as pálpebras ainda se abriam e fechavam. O alívio espalhou-se por ele. Tossiu. Já não tinha corda à volta da cara e os pés estavam livres das pernas da cadeira; mas os pulsos ainda estavam atados. Orientou-se na sala. Estava agora de costas para a secretária. Inclinou-se para diante, tentando engolir o vómito que lhe subia do peito para a garganta. Soluçou, lutando contra as memórias e as certezas quebradas. Haveria alguma possibilidade de recuperação daquilo?

 

Um som. Rodízios na tijoleira. A passagem rápida de qualquer coisa demasiado próxima. Uma pancada de ar. Um homem - Sérgio, ou era Júlio agora?

- passou por ele em grande velocidade e foi até à parede mais afastada, na sua cadeira com rodas.

 

- Acordaste? - perguntou e empurrou-se com o cotovelo para longe da parede, aproximando-se estonteantemente para um ponto em frente de Javier.

 

Júlio Menéndez Chefchaouni recostou-se na cadeira, relaxado. A primeira impressão de Javier foi de beleza. Tinha um ar quase feminino, como uma estrela de uma boys’ band, cabelo comprido escuro, olhos castanhos suaves, pestanas compridas, maçãs de rosto salientes e uma compleição suave e clara. Era o género de cara que uma câmara adoraria, mas apenas por um momento.

 

- Aqui está, inspector jefe - disse, desenhando com as mãos uma moldura ao nível do queixo. - O rosto da personificação do Mal.

 

- Ainda não acabaste? - disse Falcón. - Que mais pode haver, Júlio?

 

- Acho que o projecto precisa... não exactamente de um final, porque não acredito em finais... nem princípios ou meios, aliás... mas precisa de tornar conhecido o seu propósito.

 

- O projecto?

 

- Como me lembro de o teu pai ter constatado: «Já ninguém pinta.» Atirar tintas para a tela não está muito longe do que costumavam fazer os homens das cavernas. Sabes: «Ceci n’est pas une pipe» e isso tudo. A arte tem a ver com evolução, não é? Não podemos parar. Temos de estar sempre a mostrar às pessoas coisas novas. Ou mostrar-lhes que as coisas antigas podem ser vistas de novas maneiras. O Equivalent VIII//de Carl André, os de tubarões e vacas de conserva de Damien Hirst. Aqueles cadáveres reais passados a resina, da exposição «Body Worlds» de Gunther von Hagen. E agora, Júlio Menéndez.

 

- E como se chama esse teu projecto?

 

- Até isso é inovador. O título está constantemente a evoluir. São três palavras em inglês, que podem ser colocadas em qualquer ordem, utilizando qualquer preposição entre elas. As palavras são: «Art», «Real», «Killing». Portanto, pode ser «Real Art of Killing», a verdadeira arte de matar. Ou talvez «Killing Real Art», matar a verdadeira arte.

 

- Ou «Art of Real Killing», a arte de matar a sério.

 

- Eu sabia que ias perceber logo.

 

- Onde vai esse projecto ser exibido?

 

- Oh, isso não está nas minhas mãos - disse Júlio. - Será tudo entregue aos meios de comunicação, evidentemente; mas claro que já ouviste falar de pessoas que dedicaram as suas vidas a coisas como a literatura. Isto é uma extensão disso. Acho que insistirá provavelmente em ser póstumo.

 

- Começa pelo princípio - disse Falcón. - Sou um tipo convencional.

 

- Como sabes agora, Tarique Chefchaouni era meu avô; a minha mãe era a sua única filha, que casou com um espanhol de Ceuta. O gene artístico saltou uma geração, mas apanhou-me a mim. Depois do meu primeiro ano cá, em Bellas Artes, fui com a minha mãe visitar a família em Tânger. Pedi para ver trabalhos do meu avô e disseram-me que tinha sido tudo destruído no fogo que o tinha matado, à parte alguns objectos e livros. Só alguns anos depois a família me telefonou a dizer que, ao fazerem uma remodelação da casa, tinham encontrado uma caixa de estanho, por baixo do chão do quarto dele. Eu estava cá em Sevilha, a estudar arte e sabia bastante acerca dos nus de Falcón, porque tinha feito um trabalho sobre eles, nos segundo e terceiro anos. De facto, eu já tinha uma obsessão por eles, mesmo antes de vir para Sevilha e, quando descobri que o teu pai vivia cá, até me encontrei com ele algumas vezes, para esclarecer alguns pormenores técnicos que não compreendia.

 

Claro, só me conhecia como Júlio Menéndez. Era muito... amável. Gostámos um do outro. Disse-me que lhe podia telefonar se precisasse de mais alguma coisa. Quando voltei a Tânger e abri a caixa de estanho, fiquei completamente fascinado por saber que o meu avô parecia ter tido a mesma obsessão. Só que... como era possível? Já tinha morrido, quando os nus de Falcón apareceram! Júlio abriu a caixa e tirou quatro pedaços de tela do tamanho de postais. Mostrou cada um deles a Falcón. Eram reproduções perfeitas dos nus de Falcón.

 

- Só consegues vê-los bem com uma lupa e boa luz, mas posso garantir-te que são perfeitos... cada pincelada é uma miniatura perfeita do original. Agora vê atrás.

 

Segurou o verso das miniaturas e cada peça estava dedicada a Pilar, seguida das datas «Maio de 1955», «Junho de 1956», «Janeiro de 1958» e «Agosto de 1959».

 

- Havia outra coisa na caixa que já não está na minha posse.

 

- O anel de prata com a safira - disse Falcón. - O anel da minha mãe.

 

- A minha primeira reacção quando vi as miniaturas foi mostrá-las ao teu pai; podia ele tê-las perdido e terem estranhamente ido parar à posse do meu avô. Mas depois lembrei-me de que os nus de Falcón tinham sido todos pintados no espaço de um ano, o que não se coadunava com as datas inscritas nos versos. Fiquei confuso.

 

- Quando foi isso?

 

- No final de 1998, princípio de 1999.

 

- E quando é que pensaste que pudesse haver algo mais sinistro do que isso?

 

- Enquanto estive em Tânger, o teu pai teve um ataque cardíaco e veio um artigo no jornal, acompanhado de uma velha fotografia dele, nos anos

  1. Um dos membros mais velhos da família disse que aquele era o homem que tinha aparecido lá em casa, depois do meu avô morrer, e tinha comprado os poucos desenhos que se salvaram. Voltei para Sevilha e ouvi, nas Bellas Artes, que ele continuava a receber estudantes, por algumas semanas de cada vez. Telefonei-lhe. Lembrava-se de mim e ofereci-me para lhe fazer companhia. Estava fraco, depois do ataque cardíaco, e eu fazia a manutenção do estúdio. A arrecadação era mantida fechada à chave, mas abri-a em pouco tempo. E aí fui encontrar toda a confirmação de que necessitava, através da chocante mediocridade das suas tentativas de reproduzir o trabalho do meu avô; e depois, nos diários. Li-os todos e, quando acabei, roubei o diário crucial e fui-me embora. Nunca mais voltei. Nunca mais lhe voltei a falar. Fiquei louco de raiva. Ia publicar o diário, para mostrar ao mundo o verdadeiro Francisco Falcón... mas ele morreu.

 

- Por que é que não o publicaste na mesma?

 

- Estava a ver tudo a ser-me retirado - disse Júlio. - Eu queria ter o controlo.

 

- Mas então alguma coisa deve ter acontecido.

 

- Porquê?

 

- Para se ter tornado no teu projecto.

 

- Não aconteceu nada - disse Júlio. - É essa a natureza do processo criativo. Um dia, decidi que me ia interessar por saber tudo sobre Raúl Jiménez e Ramón Salgado. Os homens como eram naquele momento. Então, comecei a filmar La Familia Jiménez e cresceu a partir daí.

 

- E quanto à Marta?

 

- É espantoso como, quando começas a trabalhar um tema, esse tipo de coisas vem ao teu encontro, em vez de seres tu a ires à procura delas. Sabia, pelos diários, que ela estava em Ciempozuelos. Estava muito interessado em vê-la, saber mais sobre ela, mas não tinha maneira de o fazer sem chamar a atenção sobre mim. Nessa altura, fazia alguns efeitos de computador para uma empresa cinematográfica de Madrid e um dos administradores perguntou se algum de nós estaria interessado em ajudar doentes mentais de Ciempozuelos numa tal terapia pela arte. Inscrevi-me como voluntário, mas a Marta não era um dos pacientes envolvidos no curso. Continuava a ter de a procurar.

 

- E foi por isso que te tornaste amigo do Ahmed?

 

- Quando vi o baú de metal debaixo da cama, soube que tinha de ver o que lá estava dentro. E o Ahmed era a minha única oportunidade. Tenho jeito para fazer amigos, especialmente pessoas como Ahmed; sabes, forasteros... como eu.

 

- Como a Eloisa.

 

- Sim - disse Júlio com suavidade. - Ahmed mostrou-me a ficha da Marta e, quando li a carta do psicanalista do José Manuel Jiménez, soube que tinha ali um projecto.

 

- E onde foste buscar a ideia de matar pessoas?

 

- A ti, quando descobri que eras inspector jefe del Grupo de Homicidios de Sevilha - disse Julio. - Ter o filho do grande Francisco Falcón a investigar os crimes do pai pareceu-me uma oportunidade demasiado boa para a perder. Dava sentido ao todo.

 

- Isso não foi uma decisão racional.

 

- Os artistas não têm um espírito racional. Como posso esperar perturbar os espíritos dos outros se o meu for chão?

 

- Matar não é uma arte.

 

- Faltou-te a palavra «real» - disse Julio, de pé, com as pupilas subitamente grandes e de um negro muito brilhante, apenas sorvendo a luz, sem verem.

- Devias ter dito Real Killing is not Art, o assassínio real não é uma arte; ou Killing is not Real Art, matar não é uma verdadeira arte.

 

- Senta-te, Julio. Senta-te um bocado... ainda não acabámos.

 

- Sabes, o problema está... - disse Julio - está... está... em que vejo as coisas com demasiada clareza agora. Não me parece que consiga reduzir a minha escala visual. Quando matas alguém, tudo se torna intensamente real e isso é insuportável. Sabias isso, tio meu, sabias?

 

- Tens razão, sou teu tio - disse Javier, tentando manter Julio sob controlo.

 

- E sei isso.

 

- Foi por isso que não te matei. Só tentei fazer-te bem. Salvar-te da tua cegueira.

 

- Sim, agora percebo e estou-te grato. Só falta mais uma coisa que preciso que me digas.

 

- Já foi tudo dito e feito e escrito e filmado... só falta fazer uma coisa agora - disse ele.

 

Foi por trás de Falcón e voltou a cadeira de modo a enfrentar a parede oposta. Na secretária, estava o copo com o leite de amêndoas, o diário com capa de pele e o revólver de polícia. Julio pegou numa faca e cortou a corda que prendia a mão direita de Falcón.

 

- Agora, tenho de ir - disse, atirando a faca para cima da secretária. - Sabes o que tens a fazer. Não és obrigado a ver mais do que já viste.

 

Os olhos de ambos encontraram-se e voltaram-se para o revólver colocado em cima do diário, ao lado do copo de leite - um repositório de tudo o que tinha feito e de tudo o que tinha perdido.

 

- Aí está a tua solução - disse Julio. - A única forma de colmatar o caso e pôr tudo para trás das costas para sempre.

 

As mãos de Falcón começaram a suar e pingava-lhe suor da testa. Como conseguia ainda ter tanto sumo dentro dele? Pegou no revólver, deslocou o cilindro e viu que as câmaras estavam todas cheias. Destravou a segurança com o polegar. Olhou para a arma na sua mão trémula e levou-a lentamente à cabeça. O suicídio tinha atractivos, naquele momento. Era a solução mais simples em face do súbito vazio. Um passado desaparecido e um futuro incerto e frágil. O amor do pai... que nunca existiu. Apenas ódio, que ele, Javier, tinha alimentado... pelo simples facto de existir. E, quem era ele agora? Era ainda sequer Javier Falcón? Os fios que o mantinham unido eram culpa e dor; sem eles, desintegrava-se. E agora podia acabar tudo. Com um simples apoio no gatilho, podia estourar o reservatório de toda a sua dor.

 

Uma parede da sua memória cedeu subitamente e, em vez de mais sofrimento a inundar a sua mente conturbada, recordou aquele beijo, o que lhe tinha sido dado pela mãe, que o marcara com o seu amor para sempre. E, sob a recordação da pressão dos seus lábios, descobriu quem era, relembrou-se do rapazinho que tinha sido para ela. Isso desfez qualquer coisa, desfez um pedaço do vasto nó, e foi capaz de ver, subitamente, claras linhas de pensamento, que não sendo isentas de complicação, eram pelo menos exequíveis.

 

Sentiu-se aliviado de uma parte da pressão. Não pertencia ao homem que tinha conhecido como seu pai e, no entanto... tinha havido sempre algo. Estavam intrinsecamente unidos, mas... porquê? Teria sido tão simplista como Julio tinha dito? Que Javier tivesse percorrido a terra como uma recordação constante para os falhanços do pai? Era um emblema de ódio? Ou tinha aquele acto final do pai sido tão ambíguo como somos todos? As nossas constantes necessidades tornam-nos fracos. A adversidade leva-nos por caminhos traiçoeiros a actos desprezíveis e à indignidade. Mas há sempre aquela atracção para o poder da ligação original. Raúl com Arturo. Ramón com Carmen. Francisco Falcón com Javier.

 

O pai, ao obrigá-lo a conhecer os diários, podia muito bem estar a dizer: «Agora sabes o homem que eu fui, estás à vontade para me odiar e absolveres-te.»

 

Javier voltou-se. Julio continuava de pé à entrada da porta, à espera. A tremer, Javier estendeu o braço e apontou a arma à cara de Julio, cuja beleza, facial, tinha desaparecido, transtornada pela sua insanidade.

 

- Vem cá - disse Javier, sem rudeza, e Julio acedeu.

 

Avançou a direito para ele, até o cano da pistola lhe tocar entre os olhos.

 

- Eu não te vou matar - disse Falcón, com o outro pulso ainda preso à cadeira.

 

Tudo se precipitou. Antes de Falcón poder sequer pensar em palavras que pudessem penetrar no espírito perturbado que tinha diante de si, as mãos do rapaz voaram-lhe para a cara. Uma agarrou o pulso de Falcón e a outra carregou no gatilho. E o barulho colossal do tiro encheu a sala e o pátio e ecoou através da casa vazia.

 

Julio foi catapultado e atravessou as portas de vidro que davam para o pátio. O sangue espalhou-se pelas lajes de mármore, na direcção das paredes de pedra da fonte.

 

Pelas 22h 00, o levantamiento del cadáver tinha sido concluído e o juez de guardia, que não era Esteban Calderón, tinha saído. Ramírez tinha acabado de tomar nota das declarações preliminares de Falcón, com a supervisão do comisario Lobo, enquanto eram retiradas todas as provas relevantes.

 

Pelas 22h. 30, Lobo conduzia-o ao hospital, para levar uns pontos na pálpebra. Voltou a contar-lhe como tinha obtido a demissão do comisario León. Javier não respondeu.

 

- Sabe - disse Lobo, a caminho do hospital - vai haver grande interesse da comunicação social sobre este caso, especialmente... devido ao invulgar envolvimento do seu pai.

 

- Era essa a intenção do Julio - disse Javier. - Ele queria a maior e mais chocante exposição possível... como qualquer artista. Agora, está fora do meu controlo. Eu apenas...

 

- Bem, espere... Acho que posso ajudá-lo a controlar isso. Javier levantou uma sobrancelha.

 

- Podíamos confinar a história a um único jornalista - disse Lobo. - Assim, pode avançar a sua versão dos factos, em vez de lhe serem arrancados e transformados numa qualquer fantasia sinistra.

 

- Não tenho medo nenhum disso, comisario, apenas porque não acredito que algum redactor conseguisse pensar em algo mais sinistro sobre o meu pai do que ele ser brutal, pirata, ladrão, impostor, duplo uxoricida e uma fraude.

 

- Pelo menos, assim, a primeira versão da história será tão próxima da verdade quanto possível. Acho sempre melhor que a primeira impressão seja...

 

- Talvez já tenha chegado a um acordo com um jornalista, comisario - disse Javier.

 

Silêncio. Lobo ofereceu-se para ir com ele à sala das urgências. Javier recusou.

 

Entrou no hospital e sentou-se por baixo do néon brilhante da sua nova vida, enquanto lhe punham dois pontos de seda na pálpebra. O cérebro retraiu-se perante a crueza da luz da sala de operações e fechou os olhos, deixando os pensamentos revolverem-se. Como é que o Paco e a Manuela iriam reagir ao assalto dos meios de comunicação? O que lhes ia dizer? O vosso pai... que não era meu, era um monstro? A Manuela iria descartar-se ou fazer com que a verdade resvalasse nela. Mas o Paco... O pai tinha-o «salvo» depois do acidente, tinha-lhe dado a finca e preparado uma vida nova para ele. Não seria fácil a rejeição por parte do Paco. E Javier ficou aliviado por pensar que ainda existia uma ligação, que aquilo não ia mudar nada para ele.

 

- Estou a magoar? - perguntou o médico.

 

- Não - disse Javier.

 

- Enfermeira, enxugue estas lágrimas.

 

Estava na rua por volta da meia-noite, ainda com a camisa ensanguentada. Tomou um táxi para casa. Ficou parado no meio do pátio, a olhar para a estátua de bronze a saltar por cima da fonte. Não pára de se mexer, o rapaz. Subiu ao estúdio; a pupila negra da fonte seguiu-o no percurso pela galeria. Entrou na arrecadação e retirou todas as tentativas do pai de reproduzir o trabalho de Chefchaouni e as cinco telas que constituíam a pintura obscena da mãe. Atirou-os para o pátio. Acompanhou-os com a caixa do dinheiro e a pornografia.

 

Pegou num garrafão de cinco litros de álcool e fez uma pilha com tudo aquilo, junto à fonte. Vazou o álcool por cima e atirou-lhe um fósforo. As chamas irromperam e uma luz ictérica cintilou no pátio silencioso.

 

Entrou no escritório, onde a caixa de estanho continuava em cima da secretária. Ergueu as preciosas miniaturas e dispô-las lado a lado. A obra do seu pai. Do seu verdadeiro pai. E por um momento, voltou a ser lançado ao ar, olhando para baixo, para o rosto de que nunca se conseguira lembrar e que via agora pela primeira vez.

 

Tomou banho e pôs uma camisa lavada. Não lhe apetecia ir para a cama nem ficar em casa. Tinha uma súbita necessidade de estar com gente, mesmo estranhos... sobretudo estranhos. Saiu para a noite e foi atraído pelas luzes que bordejavam o rio negro. Depois atravessou para a Plaza de Cuba e a multidão levou-o pela calle Asunción, na direcção do recinto da Feria.

 

Acabou diante do Edificio del Presidente, onde tudo tinha começado, numa vida passada. E Consuelo Jiménez veio-lhe à memória, com os seus olhos desafiadores. Admirava-lhe a força. Nunca tinha hesitado, apesar dos assaltos continuados. Calderón tinha razão, ela mantinha-os a todos no lugar. Recordou-se da proposta para jantar e do clique dos saltos-agulha nas lajes de mármore. Abanou a cabeça. Era demasiado cedo para isso.

 

Voltou-se e entrou na Feria de Abril através dos grandes pórticos garridamente iluminados da entrada principal e entrou num mundo surreal, em que toda a gente era linda e feliz. Onde as raparigas se exibiam em requebros, nos seus trajes de flamenca floridos e colados ao corpo, com pentes de tartaruga no cabelo, enquanto os homens afivelavam poses nos casacos de bolero cinzentos e chapéus de aba direita. Foi caminhando, olhando em redor com uma fascinação infantil, por sob lampiões e bandeiras, passou pelas intermináveis tendas onde toda a gente comia, bebia finos e dançava. O ar estava cheio do incenso da alegria - música, comida e tabaco. Por baixo dos tectos sedosos das tendas, as mulheres entreteciam o ar por cima das suas cabeças com braços sinuosos; os homens mantinham-se direitos, de queixo levantado, de ombros abertos em poses de torero.

 

Caminhou pelo meio das pessoas, todas a sorrirem ou a rirem, como se estivessem drogadas. Como podiam ser tantas e tão felizes? Nesta pequena galáxia, parecia ser o único humano presente com uma ligação directa para a infelicidade, o único com memórias e culpa, desespero e medo. Perguntava-se se alguma vez iria ter uma vida completa, em vez da meia existência em que tinha vivido.

 

Uma explosão de palmas atirou-o de novo para o mundo de fantasia da Feria.. O ritmo das sevillanas, cantadas e dançadas à sua volta, insinuou-se e, quando passava por uma das casetas mais pequenas, ouviu gritarem o seu nome:

 

- Javier, eh, Javier!

 

Uma mulher pequenina e quadrada, num traje de flamenca branco com grandes bolas encarnadas, pareceu conhecê-lo. Dançou uns quantos passos, com uns pés subitamente airosos e com as mãos rodando e contorcendo-se, ordenando o ar, como a encorajá-lo.

 

- Não me conhece. Sou a Encarnación. Bem-vindo, estranho - disse ela.

- Quer dançar uma sevillana comigo, na primeira noite da Feria de Abril?

 

A governanta, a perfeita estranha, a que representava tudo o que havia de menos complicado no mundo, tinha finalmente adquirido forma física. Seguiu-a até à caseta. Ela insistiu para que começassem por uma dança e um copo de fino. Tomou dois golinhos de um pálido Tio Pepe, enquanto Javier engolia o seu de uma assentada. Bateu com o copo na mesa, ergueu a cabeça, juntou os tacões e deram início à sua primeira sevillana.

 

Encarnación transformou-se instantaneamente. A mulher de sessenta e cinco anos tornou-se elegante e fogosa, vaidosa e audaz. Dançaram quatro ou cinco sevillanas, uma após outra. Ele pediu mais fino. Comeram um prato de paella e alguns calamares e ele recordou o bom sabor da comida. Voltaram a dançar. A sua angústia foi posta de lado, a tristeza afastada. Esqueceu-se de tudo e concentrou-se numa única coisa - o espírito da sua sevillana - e atirou-se à dança, cada sequência aproximando-o mais da expressão perfeita. Percebeu que tinha reencontrado a solução sevilhana para a tristeza - la fiesta. E os problemas rodopiaram para fora da sua cabeça, pelo corpo abaixo até aos pés, e calcou-os com força no chão.

 

                                                                                Robert Wilson  

 

                      

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