Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O CEMITÉRIO DOS BARCOS SEM NOME
Segunda Parte
MULHERES DE CASTELO DE PROA
— Está na hora — disse Tânger. Abriu os olhos e viu-a junto dele, esperando. Estava sentada num dos bancos de teca do poço do Carpanta e olhava-o atenta, como se tivesse passado algum tempo a observá-lo, antes de lhe sacudir o ombro. Coy estava deitado no outro banco, coberto com o seu casaco, a cabeça em direcção à proa e os pés junto do leme e da bitácula. Não havia vento, e só se ouvia o chapinhar suave das pequenas vagas entre os cascos dos barcos amarrados ao molhe de Marina Bay. Lá em cima, no céu e para lá do mastro que oscilava suavemente, os cúmulos mais altos adquiriam tons rosados.
— Está bem — respondeu, rouco.
Conservava o costume de acordar imediatamente, completamente lúcido. Muitos quartos de serviço à ponte tinham-no habituado a isso. Levantou-se, afastando o casaco, e fez alguns movimentos para desentorpecer o pescoço dorido. Depois desceu para passar a cara e o cabelo por água e subiu penteando-se para trás com as mãos, entre sacudidelas de cão molhado. A barba picava-o no queixo. Com a longa sesta, conveniente porque se propunham navegar de noite, tinha-se esquecido de se barbear. Ela continuava no mesmo sítio, e esquadrinhava agora o cimo do Rochedo com o ar preocupado de um montanhista que se dispusesse a escalar a rocha. Tinha trocado a saia comprida de algodão azul por umas calças de ganga e uma camisola de manga curta e levava uma camisola preta amarrada à cintura. Coy chegou ao convés rodeado pelo grito das gaivotas ao entardecer. Viu aí o Piloto a polir os amarelos com um pano e com as mãos negras de Sidol — cuida do barco, costumava dizer, que ele cuidará de ti. O Carpanta era um veleiro clássico com poço central, de um só mastro, construído em La Rochela quando o plástico não tinha substituído ainda o iroco, a teca e o cobre. — Piloto — chamou.
Os olhos cinzentos, rodeados por centenas de rugas morenas, olharam-no por baixo das sobrancelhas frondosas com uma piscadela amistosa e tranquila. De acordo com as suas próprias palavras, embora não fosse muito dado a elas, o Piloto navegava a caminho dos sessenta anos com o vento na alheta. Tinha sido corneteiro de ordens do cruzador Canárias quando nos cruzadores as ordens se davam com clarim, e também pescador, marinheiro, contrabandista e mergulhador. Tinha o cabelo da mesma cor acinzentada dos olhos, crespo, muito curto, a pele curtida como couro velho e umas mãos ásperas e hábeis. Há menos de dez anos, era ainda tão bem-parecido que teria podido encarnar um galã de cinema num filme de aventuras, de pescadores de esponjas ou de piratas, com Gilbert Roland e Alan Ladd. Agora tinha engordado um pouco, mas conservava os ombros largos, a cintura razoavelmente estreita e os braços fortes. Na sua juventude foi um excelente dançarino e, naquele tempo, as mulheres dos bares do Molinete rivalizavam para dançar um bolero ou um pasodoble com ele. Às turistas maduras, que alugavam o Carpanta para ir à pesca, tomar uns banhos ou dar umas voltas pelos arredores do porto de Cartagena, ainda lhes tremiam as pernas quando ele as colocava entre os braços para que agarrassem a roda do leme.
— Tudo bem?
— Tudo bem.
Conheciam-se desde que Coy era criança e fugia do colégio para vagabundear pelos molhes, entre barcos de bandeiras estranhas e marinheiros que falavam línguas incompreensíveis. O Piloto, filho e neto de outros marinheiros que também se chamaram
Piloto, podia encontrar-se pela manhã encostado a qualquer tasca do porto, honesto mercenário do mar, esperando clientes para o seu velho veleiro. Além de passear turistas a quem dava uma palmada no rabo para subirem a bordo, naquele tempo o Piloto mergulhava para desembaraçar cabos das hélices, raspar cascos sujos e resgatar motores fora de borda caídos à água. Nos tempos livres dedicava-se, como toda a gente na época, ao pequeno contrabando. Agora, os seus ossos já não estavam capazes de ficar muito tempo a demolhar, e ganhava a vida passeando famílias domingueiras, tripulantes de petroleiros ancorados diante de Escombreras, pilotos em dia de temporal, marinheiros ucranianos cheios até acima de jumilla que largavam lastro pela borda, a sotavento, depois de lhes terem partido as fuças nos bares da cidade. Ele e o Carpanta já tinham visto de tudo: o Sol no zénite, sem um sopro de brisa, fazendo arder os cabeços de amarração do porto. O mar batendo a sério, quando Deus se aborrecia. O levante vibrando na enxárcia como nas cordas de uma harpa. E o entardecer mediterrânico, longo e cor de fogo, quando a água parecia um espelho e a paz do mundo parecia a própria paz, e compreendíamos que não passávamos de uma gotinha minúscula em três mil anos de mar eterno.
— Estaremos de volta dentro de umas duas horas. — Coy deu uma olhadela ao alto do Rochedo, para onde Tânger continuava a olhar — Largamos amarras logo a seguir.
O outro concordou sem deixar de polir um dos cunhos de bronze. Ao seu lado, adolescente, Coy tinha aprendido algumas coisas sobre os homens, sobre o mar e sobre a vida. Juntos recuperaram ânforas romanas para as venderem por baixo da mesa, pescaram lulas ao entardecer na Punta de La Podadera, imperadores, marraxos e tintureiras com palangre, em frente a Cope, e meros de dez quilos com espingarda de elástico, entre as rochas negras do cabo de Paios, quando no cabo de Paios ainda havia meros para pescar. No Cemitério dos Barcos Sem Nome, onde as velhas embarcações terminavam a sua última viagem para serem desmanteladas e vendidas como sucata, o Piloto ensinara-o a identificar cada uma das partes que compunham um barco, enquanto temperavam
*1. Jumilla: vinho seco e doce produzido em Jumilla, na província de Múrcia. (N. da T.)
amêijoas e ouriços crus com sumo de limão, muito antes de Coy ir para a escola de náutica tornar-se marinheiro. E naquela paisagem desolada de pranchas oxidadas, de enormes arcaboiços encalhados na praia, de chaminés apagadas para sempre e cascos como baleias mortas ao sol, o Piloto tinha tirado de um maço de Celtas sem filtro o primeiro cigarro da vida de Coy, acendendo-o com um isqueiro de torcida, de latão, que tinha um cheiro acre, a morrão queimado.
Agarrou no casaco e saltou para o molhe. Tânger juntou-se-lhe, levando a carteira a tiracolo.
— Que tempo teremos esta noite? — perguntou ela.
Coy deu uma olhadela ao mar e ao céu. Algumas nuvens isoladas começavam a desvanecer-se, expondo filamentos em várias direcções.
— Bom tempo. Com pouco vento. Talvez um pouco de ondulação quando passarmos por Punta Europa.
Surpreendeu, divertido, um brevíssimo gesto de contrariedade quando ela ouviu a palavra ondulação. Teria graça, pensou, que enjoasse num barco. Até esse momento nunca tinha considerado a possibilidade de a ver enjoada como uma pescada, macilenta, apoiando-se abatida na amurada.
— Tens biodramina?... Talvez devesses tomar uma pastilha antes de largarmos.
— Esse não é um problema teu.
— Enganas-te. Se enjoares a bordo, serás um traste inútil. E isso já é um problema meu.
Não obteve resposta e Coy encolheu os ombros. Caminharam pelo molhe até ao Renault estacionado no terreno da marina. O Sol-poente, visível atrás das nuvens paradas sobre Algeciras, avermelhava a parede vertical do Rochedo, revelando os buracos escuros das antigas frestas de artilharia escavadas na rocha. Duas decrépitas lanchas contrabandistas reformadas do mar, com a pintura azul e preta caindo aos bocados, apodreciam sobre cavaletes, entre motores oxidados e bidões vazios. O rumor da cidade foi-se intensifi" cando à medida que se aproximavam do estacionamento. Um entediado funcionário aduaneiro via televisão na sua guarita. Uma longa fila de automóveis fazia bicha para atravessar a fronteira na direcção de La Línea de La Concepción.
Foi ela quem ficou ao volante. Conduziu com cuidado, com a carteira no colo, segura e sem pressa, pela rua que continuava atrás dos baluartes fronteiros à baía, virando depois à esquerda, na direcção da rotunda do cemitério de Trafalgar. Não dissera uma palavra até esse momento. Então parou o carro, puxou o travão, consultou o relógio e parou o motor.
— Qual é o plano? — perguntou Coy.
Não havia plano nenhum, respondeu ela. Iam subir ao miradouro Old Willis e ouvir o que Nino Palermo tinha para dizer. Iam fazer exactamente isso e depois regressariam ao porto, deixariam o carro no estacionamento e as chaves na caixa de correio da Avis, e largariam como estava previsto.
— E se houver complicações?
Coy pensava em Horacio Kiskoros e no berbere. Palermo não era tipo para fazer uma proposta e se conformar com a resposta vamos ver e até logo. Por isso, antes de descer a terra, munira-se de uma navalha náutica Wichard bem afiada, com uma lâmina de meio palmo, e uma chave de manilha, que o Piloto tinha para cortar adriças em caso de emergência. Sentia-a cravada no bolso traseiro das calças de ganga, entre a nádega direita e o assento. Aquilo não era grande coisa, mas sempre era melhor que fazer vida social de mãos a abanar.
— Não creio que haja complicações — respondeu ela. Olhava para a porta fechada do cemitério. Depois do almoço, dando um passeio, tinham passado por ali e Tânger esteve muito tempo diante de uma das lápides: a do capitão de infantaria da marinha Thomas Norman, que morrera a 6 de Dezembro de 1805 das feridas recebidas a bordo do navio Mars, em Trafalgar. Depois tinham subido até ao miradouro para estudar o sítio onde iam encontrar-se com Palermo ao anoitecer. Aí Coy continuou a observá-la, enquanto caminhava sobre as velhas estruturas de betão desprovidas de canhões. Tânger examinava tudo com muita atenção, a estrada de acesso e a que subia até aos túneis do Grand Asedio, os barracões militares caiados e vazios, a bandeira britânica sobre Morish Castle, o istmo onde ficava o aeroporto, a extensa praia de Atunara que se estendia para nordeste, em território espanhol. Parecia um militar estudando o terreno antes de um combate. E Coy deu consigo próprio a calcular possibilidades, abrigos e perigos, como quando se estuda em cartas ou roteiros uma costa perigosa onde se chega de noite.
— Aconteça o que acontecer — disse Tânger — não intervenhas.
Agora apoiava as mãos no volante, sem afastar os olhos da porta do cemitério. Isso é fácil de dizer, pensou Coy. De modo que continuou calado. Tinha pensado em pedir ao Piloto que os acompanhasse também até lá acima. Dependendo da necessidade, três era um número melhor do que dois. Do que ele e ela sozinhos. Mas não queria implicar demasiado o seu amigo. Ainda não.
Tânger consultou outra vez o relógio. Depois meteu uma mão na carteira e tirou o maço de Players. Desde Madrid que não a via fumar e, se calhar, era o mesmo maço, porque só restavam quatro cigarros. Pressionou o isqueiro do tablier e pôs-se a fumar devagar, travando o fumo muito tempo antes de o expelir.
— Tens mesmo a certeza? — quis saber ele.
Assentiu em silêncio. No seu pulso direito, o ponteiro dos minutos tinha passado das quinze para as nove para as dez para as nove. A brasa do cigarro já lhe roçava as unhas curtíssimas. Então abriu a janela e atirou a beata para a rua.
— Vamos lá.
Era como um daqueles filmes de que ela gostava, concluiu Coy, admirado. Henry Fonda apoiado na vedação sob um amanhecer a preto e branco, preparando-se para ir até ao O.K. Corral. E, no entanto, alguma coisa na sua atitude era tão diabolicamente real, tão firme aquela forma de ligar novamente o motor e subir pela encosta do Rochedo, passando junto do Hotel Rock e reduzindo a marcha à medida que a inclinação da estrada se tornava mais pronunciada, que tirava qualquer possível artifício à situação. Aquilo era completamente real, e Tânger não interpretava nenhum papel em sua honra. Não pretendia impressioná-lo. Era ela própria quem conduzia, quem tentava manter o carro afastado da perigosa berma e dos precipícios, quem fazia as curvas estreitas com uma calma fria, segura, uma mão no volante e outra no manípulo das velocidades, olhando de vez em quando para o cimo da montanha com uma expressão atenta. E, por fim, ao chegar lá acima, no terreno aberto junto do miradouro, ainda manobrou o carro de modo a deixá-lo voltado novamente para a estrada, ladeira abaixo. Pronto para sair zunindo, pensou Coy inquieto, enquanto ela abria a porta e saía do carro com a camisola amarrada à cintura e a carteira nas mãos.
Havia um Rover estacionado perto, junto à muralha do antigo baluarte. Foi a primeira coisa que Coy viu ao sair do carro: o Rover e o motorista berbere apoiado ao guarda-lamas. Depois, o seu olhar descreveu um arco para a esquerda, para a estrada dos túneis, para a encosta em direcção ao cimo escarpado do Rochedo, para as casamatas abandonadas e para o mirante sobre o aeroporto, com o istmo e Espanha ao fundo, montanhas sombrias, céu escuro, mar cinzento a oeste e negro a este, e a iluminação de La Línea acendendo-se em baixo, ao lusco-fusco. Feio sítio para conversar, disse para consigo. E depois olhou para o parapeito do miradouro, onde Nino Palermo os esperava.
Tânger já lá estava. Foi atrás dela aspirando o aroma que anunciava o Mediterrâneo, sal, tomilho e resina, na brisa que fazia mover os arbustos e as copas das árvores. Deu outra vista de olhos em redor, sem ver Horacio Kiskoros em lado nenhum. Palermo permanecia encostado ao parapeito, com as mãos nos bolsos de um blusão leve, sem colarinho. Aquela peça de roupa fazia-o parecer ainda mais corpulento do que era.
— Boa noite — disse.
Coy murmurou um «boa noite» automático e Tânger não disse nada. Estava imóvel diante do caçador de tesouros, observando-o.
— Qual é a proposta? — perguntou.
Como se ela não estivesse ali, Palermo dirigiu-se a Coy.
— Algumas vão directas ao assunto, não é verdade?
Coy não respondeu, recusando aceitar a cumplicidade que ele lhe oferecia. Ficou mais atrás, um pouco afastado mas atento, ouvindo. Ela era a chefe, e naquela noite ele participava mais como guarda-costas do que como outra coisa qualquer. Sentia o peso da navalha no bolso de trás e disse para consigo que o berbere não era um tipo muito eficiente, apesar de tudo, vigiando-o ao longe. Revistava-o quando ia limpo e não o revistava quando o devia fazer. Talvez agora acatasse ordens de Palermo, a quem convinha mostrar-se diplomático.
O caçador de tesouros voltou a olhar para Tânger. A luz decrescente começava a apagar-lhe as feições.
— É ridículo brincar às escondidas — disse. — Andamos a perder tempo, quando vamos acabar por nos encontrar todos no mesmo sítio.
— E que sítio é esse? —perguntou Tânger.
A voz saía-lhe serena, nem provocadora nem inquieta. Palermo riu-se um pouco, baixinho.
— Os destroços, naturalmente. E se eu lá não estiver, estará a Polícia. A legislação vigente...
— Eu conheço a legislação vigente.
Palermo fez um movimento com os ombros, dando a entender que, nesse caso, havia pouco a acrescentar.
— Você tem uma proposta — disse Tânger.
— Isso. Tenho... Valha-me Deus! Claro que tenho uma proposta! Vamos passar uma esponja no que aconteceu, menina. Você fodeu-me e eu fodia-a — fez uma pausa. — Em sentido metafórico, entenda-se. Estamos quites.
— Não sei onde foi buscar a ideia de que estamos quites. Tinha falado num tom de voz tão baixo que o outro se inclinou
para a. frente, inclinando um pouco a cabeça para ouvir melhor. Aquele gesto dava-lhe um ar inesperadamente cortês.
— Tenho meios que vocês nunca terão — disse. — Experiência. Tecnologia. Contactos adequados.
— Mas não sabe onde está o Dei Gloria.
Desta vez, ela falara alto e claro. Palermo soprou.
— Já poderia saber se você não se tivesse dedicado a colocar-me pedrinhas nos sapatos. A bloquear-me a passagem entre essa máfia de arquivistas e bibliotecários... Maldita! Aproveitou-se da minha boa-fé.
— Você não sabe o que é boa-fé desde que abandonou o bi-berão.
O caçador de naufrágios voltou-se para Coy.
— Estás a ouvi-la? — perguntou. — ...Eu podia gostar desta tipa, juro-te. Eu... Valha-me Deus! Vocês já...? Diacho — troçava entredentes, com o ruído de um mastim ofegante depois de uma corrida. — Aproveita, amigo, antes que ela te esprema também como um limão e te deixe de lado.
As estrelas começavam a acender-se no céu como se alguém estivesse a acender interruptores. As sombras fechavam-se cada vez mais sobre o rosto do caçador de tesouros, e agora era a claridade das luzes de La Línea, em baixo e atrás dele, o que escurecia a sua silhueta no parapeito.
— Esmeraldas, vê lá tu — continuou dizendo a Coy. — O tesouro dos jesuítas. Suponho que nesta altura ela não teve outro remédio senão contar-to... Um carregamento de esmeraldas vale... Deus. Uma fortuna em qualquer sítio, incluindo no mercado negro. Isso, claro, se ela conseguir apoderar-se dele e tirá-lo de águas espanholas sem que o Estado lhe caia em cima.
A mesma claridade que contornava a silhueta das costas largas de Palermo iluminava o rosto de Tânger desde o queixo. Isso endurecia-lhe as feições, recortando-lhe o perfil entre a cortina clara do cabelo.
— Se isso fosse verdade — disse arrogante — não teria motivos para partilhar nada consigo.
— Esquece-se de que eu a pus na pista — insurgiu-se o outro. — E de que estou a trabalhar nisto há muito tempo. Esquece-se de que tenho meios para impor uma associação proveitosa para todos... E esquece-se também de que a ambição desgraçou a ratinha sabichona(2).
Por cima deles, como um pano de fundo perfurado por alfinetadas luminosas, o céu estava já completamente negro. O Sol devia estar uns quinze graus abaixo do horizonte, calculou Coy, vendo aparecer a Ursa Menor sobre a cabeça de Palermo e a Ursa Maior sobre o seu ombro direito.
— Oiçam — dizia o caçador de naufrágios. — Quero propor uma coisa... Valha-me Deus! Uma coisa razoável. A caça ao tesouro não é chegar e abrir o cofre. Mel Fisher demorou vinte anos a encontrar o Atocha... Eu disponibilizo os meus meios e os meus contactos. Isso inclui as ligações e os subornos para que ninguém interfira... Até tenho mercado para as esmeraldas. Isso significa...
*2. Referência a uma história infantil, «La ratita presumida», que fala de uma ratinha que recusou todos os pretendentes e se casou com o que lhe pareceu mais bonito, o gato, acabando por ser comida por este. (N. da T.)
Dá-se conta? — dirigia-se agora apenas a Tânger. — Muitíssimo dinheiro para nós. Para todos nós.
— Em que termos?
— Cinquenta por cento. Metade para si e metade para mim. Ela voltou um pouco o rosto na direcção de Coy.
— E ele?
— Ele é... Bom. Problema seu, não é verdade?... Não me compete a mim pagar-lhe.
Troçou novamente, baixinho, novamente o riso de cão grande e exausto. Continuava imóvel no parapeito, com as luzes longínquas em baixo, atrás.
— Tem apenas de fornecer-me dois dados: latitude e longitude, para os colocar nas cartas esféricas de Urrutia... Acompanhados, naturalmente, do manifesto da carga e do relatório oficial sobre o naufrágio.
Tânger ficou calada por um momento. Parecia estar a considerar a proposta.
— Pode consultar tudo isso nos arquivos — disse. Palermo blasfemou sem o menor complexo.
— Sabe muito bem que... Raios a partam! Vedaram-me o acesso aos arquivos, da mesma forma que em Barcelona me tirou o Urrutia debaixo do nariz. Mesmo assim, consegui uma reprodução da carta. Também fui informar-me sobre os malditos arquivos, e disseram-me... — reteve o ar nos pulmões e suspirou ruidosamente. — Já sabe. Esses documentos desapareceram... Retirados para estudo, dizem as fichas. E ponto.
— É uma pena.
Palermo estava longe de apreciar aquela demonstração de pesar.
— Não — disse irritado. — É uma manobra suja da qual você é responsável.
— Era isso que procuravam na minha casa?
— Era isso que Horacio devia obter. — O caçador de naufrágios hesitou alguns instantes. — Quanto ao cão, garanto-lhe...
— Esqueça o cão.
Cada sílaba era uma gota gelada. Coy reparou que Palermo se mexia, pouco à vontade. Agora a claridade vinda de baixo marcava os seus traços graves. Um empurrão, pensou. Bastaria um empurrão para que este fulano desse um passeio de cem ou duzentos metros pelas rochas abaixo. Pumba! Algo enunciável como LGO: Lei da Gravidade Oportuna. Depois lembrou-se do berbere postado ao pé do carro e reflectiu sobre a possibilidade de o empurrão serem eles a dá-lo. LGI: Lei da Gravidade Incómoda.
— Juntando os seus conhecimentos aos meus — estava dizendo Palermo — e sem nos aborrecermos mais uns aos outros, comprometo-me a peneirar esses destroços em menos de um mês... Deadman's Chest tem um barco equipado com sonar de detecção lateral, penetrador de fundos, sondas, magnetómetros, detector de metais, equipas de mergulho e tudo o que for necessário... Depois, uma vez lá em baixo, é preciso trabalhar com os planos, marcar, medir e dividir em quadrículas, retirar areia e lodo... Sobre isso não fazem a mais pequena ideia. Além disso, as esmeraldas são frágeis... Imaginem: aderências para eliminar, limpeza adequada... Vocês nem sabem sequer o que é um banho electrolítico para limpar uma simples moeda de prata... Nem quero pensar nos destroços. Vão fazer uma porcaria. São amadores.
Ria-se novamente entredentes, sem rasto de humor. De repente, um brilho inesperado cegou Coy, que tinha ainda o pensamento num alvoroço com empurrões dados e levados. Isso fê-lo dar um salto.
— Além disso, é preciso contactos. — Palermo levava a chama do isqueiro ao cigarro. — Conhecer o mercado clandestino onde colocar o achado... E eu controlo — o cigarro nos lábios deformava-lhe a voz — ...Valha-me Deus! Oitenta por cento do tráfico de esmeraldas no mundo é clandestino, dirigido pelas máfias judias da Bélgica e de Itália... Julga que não sei porque viajou até Antuérpia?
Antuérpia. Coy tinha lá estado tal como em muitos outros lugares: um porto imenso, quilómetros de gruas, barracões e barcos. Que Tânger também tivesse lá estado era uma surpresa, pensou. Embora, de repente, lhe tenha vindo à memória aquele bilhete-postal junto da taça de prata, no apartamento do Paseo de La Infanta Isabel. De modo que se dispôs a ouvir com muita atenção, sem criar demasiadas ilusões. Em relação àquela mulher, não havia uma única novidade que fosse tranquilizadora, nem agradável.
— Não me digas que ela não te falou de Antuérpia. — A brasa do cigarro brilhava como um olho irónico apontado para Coy na boca do caçador de tesouros. — Deveras?... Pois ficas a saber: antes de se conhecerem em Barcelona, ela fez uma viagenzinha discreta. Algumas visitas que... ora, ora — baixou a voz para evitar que o motorista o ouvisse. — Incluindo uma certa direcção da Ru-benstraat: Sherr e Cohen. Especialistas em talhar pedras para alterar o seu aspecto e apagar vestígios... Eu também conheço gente que me conta coisas.
Coy sentia o cheiro a tabaco. O fumo cinzento-claro deslizava à contraluz antes de se desfazer, afastando-se da silhueta de Palermo.
— De modo que também não te falou disso. É incrível. Vendi a alma, pensava Coy. Vendi a alma a esta gaja e, entre todos, vão-me enrabar e bem. Ela, este. Até o berbere. Isto é como querer nadar entre marraxos esfomeados. Se eu fosse esperto, e nesta altura das coisas é evidente que não sou, punha-me agora a correr pelo monte abaixo, saltava para bordo do Carpanta, dizia ao Piloto que largasse e desaparecia daqui a toda a pressa. O olho avermelhado olhava novamente para Coy.
— Ainda não te falou das esmeraldas?... Não te disse que é a mais rendível das pedras preciosas?... Eu já vi muitas. Consegui várias nos meus tempos com Fisher. E garanto-te que em Antuérpia pagarão o que for preciso por um lote dessas pedras antigas e em bruto. A tua amiguinha... Ela sabe-o muito bem.
— E se eu não aceitar?
Tânger apertava a carteira contra o peito e o seu perfil dava tesouradas masculinas à penumbra. Não me admirava nada, pensou Coy, que levasse uma pistola no raio da carteira.
— Colar-nos-emos a vocês como se fôssemos as vossas sombras. — A brasa do cigarro mexia-se enquanto Palermo fazia o aviso num tom de voz objectivo, como quem recita um manual de instruções. — A zona entre o cabo da Gata e o cabo de Paios... Bom. Não é muito grande e, assim que identificar aí a vossa embarcação, posso usar um helicóptero... Localizá-los, compreendem, em plena actividade. E se dermos o negócio por perdido, arranjo as coisas de forma a receberem a visita de um barco patrulha da guarda civil.
O riso canino deu sinal de si pela terceira vez. Havia estrelas fugazes que caíam do céu ao longe, como anjos caídos, ou almas penadas, ou mísseis cansados. Aí vou eu, pensava Coy. Deixem passar.
— Se eu não entrar — acrescentou Palermo — não têm quaisquer possibilidades. Não esquecendo certos riscos físicos.
Fez-se um longo silêncio e, depois, ela disse:
— Você assusta-me.
Não parecia absolutamente nada assustada. Pelo contrário, aquilo soava de uma forma arrogante, fria como uma farpa de gelo e também muito perigosa. Palermo tinha tirado a beata da boca e dirigia-se a Coy:
— Tem raça, não é verdade?... É uma cabra com muita raça. Não me admira que te tenha preso pelos tomates.
Levou a beata à boca e a brasa tornou-se mais intensa. Aquele fulano, pensou Coy quase agradecido, tinha a rara virtude de proporcionar-lhe válvulas de escape no momento apropriado, de tornar-lhe as coisas mais fáceis. E ainda sentia aquela vaga de gratidão quando tomou impulso, assestando-lhe o primeiro murro na cara. Para conseguir acertar-lhe bem, uma vez que Palermo era bastante mais alto, ergueu um pouco o cotovelo e disparou o braço com toda a sua alma, de baixo para cima e um pouco na diagonal, esmagando-lhe a brasa do cigarro na boca. Ouviu o grito sufocado de Tânger à sua direita, que tentava contê-lo, mas nesse momento ele já abanava outra vez o gibraltino, com uma nova pancada que o deitou de rins sobre o parapeito. Também não é preciso caíres, pensou com uma réstia de lucidez. Não te quero matar, de modo que não me faças a sacanice de te despenhares agora. Por isso quis agarrá-lo pela roupa para evitar que caísse lá para baixo, quis atraí-lo a si e sacudi-lo uma terceira vez, sem que ele caísse monte abaixo gritando, como acontece a todos os maus dos filmes. Mas nesse intervalo, Palermo pareceu espevitar, ergueu os punhos e Coy sentiu que alguma coisa explodia entre o pescoço e a sua orelha esquerda. As estrelas do céu misturavam-se com as que fabricaram, acto contínuo, os seus sentidos maltratados. Aquilo parecia um identificador de estrelas, e caiu para trás aos tropeções.
— Cafrão! — mastigava Palermo — Cafrão!
O «f», em vez do «b» correspondente, indicava que o caçador de tesouros devia ter o cigarro incrustado nas gengivas. Isso foi um pequeno consolo para Coy. Mas, enquanto tentava conservar o equilíbrio, ouviu os passos do berbere correndo rapidamente sobre o piso de betão e compreendeu que, com efes ou com bês, as suas possibilidades chegavam ao zero nesse instante e que ele próprio ia ter graves dificuldades de pronunciação daí a nada. LPTD: Lei da Porrada a Torto e a Direito. De modo que perdido por cem, perdido por mil. Respirou fundo, agachou a cabeça e atirou-se novamente contra Palermo, baixo e compacto como era, com a fúria cega de um touro. Se chegar antes que o maricas do teu mouro, pensou, acompanhas-me parapeito abaixo, ou eu não me chame Coy.
Não chegou. O que bate primeiro, bate duas vezes. Mas o que o ditado não especifica é que depois dessas duas vezes, podemos apanhar duzentas. O berbere caçou-o pelas costas a meio caminho, Coy ouviu rasgar-se o seu casaco por uma costura e, nessa altura, Palermo já tinha o punho preparado, de modo que foi uma questão de segundos ficar sem respiração, de joelhos no chão, com as têmporas cheias de zumbidos, os tímpanos a vibrar e um olho negro. Estava furioso consigo mesmo e perguntava a si próprio por que razão os joelhos e os braços não obedeciam às suas ordens de levantar-se e lutar. Quis tentá-lo vezes sem conta, mas desfalecia sempre antes de o conseguir. Paraplégico, pensou. Estes cabrões deixaram-me paraplégico. Parecia ter passado a língua sobre ferro velho, tal o sabor que tinha na boca. Cuspiu, sabendo que cuspia sangue. Estão a pôr-me, disse para consigo, lindo de morrer.
Estava enjoado e começou tudo a andar às voltas. Nessa altura, ouviu a voz de Tânger e pensou: pobrezinha, chegou a vez dela. Ainda quis levantar-se, mais uma vez, para deitar a mão àquela bruxinha malvada. Para impedir que tocassem num fio da roupa dela, enquanto ele tivesse forças para fechar os punhos. O problema é que já não estava em condições de fechar os punhos, nem de fechar nada que não fosse o olho pisado e deitar-se de barriga para cima, como um jogador de boxe fora de combate. Mas não podia abandoná-la assim. Não nas mãos de Palermo e do berbere; embora, no seu estilo, ela fosse pior que os dois juntos. De modo que, com um último e supremo esforço, resignado, desesperado, afogou um gemido enquanto conseguia, finalmente, pôr-se de pé. Nessa altura lembrou-se da navalha do Piloto, tacteou o bolso de trás à procura dela, enquanto passava os olhos em volta com uma expressão de apalermado e viu os dois fulanos um ao pé do outro.
Olhavam para Tânger, que continuava imóvel junto do parapeito; eles também estavam muito quietos, como se alguma coisa atraísse poderosamente a sua atenção. Coy observou melhor, com o olho são. O que tanto atraía o interesse daqueles dois era um objecto que Tânger tinha na mão, como se estivesse a mostrá-lo. E ele disse para consigo que devia estar muito mal, muito apalermado, porque aquele objecto tinha reflexos metálicos e parecia — não se atreveu a asseverar completamente semelhante barbaridade — um pistolão ameaçador, enorme.
Ela não disse nada até terem voltado a passar pela rotunda deserta, diante do cemitério de Trafalgar. Ou, pelo menos, não disse nada expressamente dirigido a Coy, depois das breves palavras que pronunciara lá em cima, no miradouro, enquanto se afastava com ele em direcção ao carro, deixando os outros no parapeito como pastorinhos de Belém, exemplarmente petrificados diante da visão da ferramenta que Tânger acabara por exibir quase com fastio. É por tua culpa, disse a Coy, num tom mais informativo que reprovador, enquanto manejava o volante e o manípulo das velocidades encosta abaixo, com a carteira no regaço, e os faróis iluminavam as curvas apertadíssimas nas encostas do Rochedo, e ele tossia como os tuberculosos dos filmes. Tossia como Margarita Gautier, e umas gotinhas de sangue que se coagulavam na boca passavam entre os kleenex e iam parar ao pára-brisas. Um bruto. Era um bruto e nada daquilo era necessário, tinha acrescentado ela depois. Não era de todo necessário e, além disso, complicava as coisas. Coy franzia o sobrolho quando os hematomas o permitiam, enfurecido. Quanto aos últimos parágrafos do diálogo que Tânger tinha mantido com Nino Palermo debaixo do sombrio nariz do berbere silencioso, estes tinham sido do género esse tipo está louco, por parte do caçador de tesouros, enquanto ela tentava retirar a carga emocional ao assunto. Coy é um tipo impulsivo e costuma funcionar conforme lhe apetece, etc.
— E você, Palermo, é um imbecil.
O revólver, um 357 Magnum pesado e achatado que Coy nunca tinha visto antes nas mãos de Tânger, ajudou o outro a digerir aquilo sem torcer demasiado o nariz. O que se passa com o acordo, disse nessa altura. Passa-se que tenho de pensar no que se passa, acabou por responder ela. Nesse momento, precisou, não podia dizer que sim nem que não, antes pelo contrário. Então Palermo, que parecia ter recuperado o uso dos efes e dos bês, disse-lhe que, por favor, ela e a mãe dela fossem levar na crica. Foi exactamente isso que ele disse: ela e a mãe dela e, desta vez, parecia deveras furioso. A mim não me vais levar à certa, cachorra, pespegou-lhe do parapeito, perdendo visivelmente as estribeiras diante da aprovação silenciosa do motorista. Isso, vocalizado a alguns metros de um canhão de bolso com seis chumbos do tamanho de bolotas no tambor, situava os tomates de Palermo numa cota admirável, quase digna. E Coy, apesar de estar aturdido e com a cara num oito, soube apreciar o gesto por simples reflexo de solidariedade masculina. Mesmo assim, far-lhe-ei chegar a minha resposta, tinha dito ela, muito educada com a sua camisola preta na cintura, e teria dado a impressão de nunca ter partido um prato, se não continuasse com aquele ferro-velho ameaçador na mão. Recordou-se de ter ouvido Palermo dizer uma vez que ela era das que mordiam com a boca fechada. Segurava naquelas oitocentas gramas de ferro sem apontar, com o braço caído, o canhão para o chão, o ar quase enfastiado. E isso, curiosamente, dava mais credibilidade ao gesto do que se tivesse adoptado poses de filme policial. Depois dir-lhe-ei se há acordo ou não, disse. Seja bonzinho e dê-me alguns dias. E Palermo, que continuava sem acreditar e talvez nunca mais acreditasse, ou talvez captasse a ironia, pusera-se a despejar uma fiada de imprecações bastante barrocas e muito mediterrânicas, sem dúvida aparentadas com o seu sangue maltês. A mais branda era que ao seu marinheiro louco lhe ia cortar as pendurezas. Ficou tudo a flutuar no ar nas costas de Tânger, enquanto esta se encaminhava para o Renault, depois de pôr uma mão no ombro de Coy e de obter um grunhido como resposta à sua pergunta de como estava.
— Numa merda — disse ele mais tarde, quando Tânger lhe perguntou pela segunda vez, já na estrada que descia a encosta. E então, ela pusera de lado o ar sério e desatara-se a rir. Um riso de rapaz, contido e alegre, quase feliz, que ele ouviu com assombro olhando com o olho são o seu perfil iluminado pelo brilho dos faróis.
— És um tipo incrível — disse. — Estiveste quase a estragar tudo, mas és um tipo incrível — riu-se outra vez, e ainda se ria admirada quando voltou o rosto para lhe dirigir um olhar rápido de simpatia. — ...Às vezes acho que adoro ver-te lutar.
O reflexo dos faróis punha lâminas de aço nos seus olhos, mas esse aço brilhava como sob a luz do Sol. Então, ela tirou a mão do manípulo das velocidades e apoiou-a no pescoço de Coy. Apoiou o dorso dos dedos, os nós dos dedos, como se acariciasse o queixo por barbear, entumecido pelas pancadas de Palermo e do berbere. E Coy, exausto, desconcertado, encostou a nuca no apoio da cabeça. Sentia um calorzinho agradável no sítio onde ela mantinha a mão e também onde as telenovelas dizem que se tem o coração. E teria sorrido como uma criança desajeitada, se a sua boca inchada o permitisse.
Largado o último cabo, o Carpanta afastou-se devagar do molhe. Depois, o convés vibrou suavemente, enquanto o veleiro ficava imóvel entre os reflexos de luz na água, e o motor aumentou as rotações devagar a vante com o Piloto ao leme. Os candeeiros do porto desfilavam agora lentos, ficando para trás à medida que a embarcação ganhava velocidade, com a proa ao mar alto e as luzes de La Línea, da refinaria de San Roque e da cidade de Algeciras limitando ao longe o contorno da baía. Coy acabou de colher em aduchas o cabo à proa, apertou bem o chicote e dirigiu-se depois para o poço central, lançando mão aos óvens quando, já fora da protecção do porto, o barco se pôs a cabecear na ondulação. As luzes de Gibraltar ainda iluminavam o veleiro, revelando a silhueta do Piloto na roda do leme, avermelhados os traços inferiores do rosto devido à claridade da bitácula onde a agulha magnética rodava pouco a pouco para sul.
Coy aspirava a brisa com deleite, pressentindo a iminência do mar alto. Desde a primeira vez que pisou o convés de um barco, o momento da partida provocava-lhe sempre uma sensação de calma singular, muito próxima da felicidade. A terra ficava para trás, e tudo o que poderia vir a precisar viajava com ele a bordo, circunscrito aos limites estreitos da embarcação. No mar, pensava, os homens viajavam com a casa às costas, como a mochila de um explorador, ou a concha que se desloca com o caracol. Bastavam alguns litros de gasóleo e de óleo, algumas velas e o vento adequado, para que tudo o que a terra firme continha se tornasse supérfluo, prescindível. Vozes, ruídos, gente, odores, tirania dos ponteiros do relógio deixavam de fazer aqui qualquer sentido. Mover-se até deixar a costa bem lá atrás, à popa, era já um fim. Diante da presença ameaçadora e mágica do mar omnipresente, dores, anseios, vínculos sentimentais, ódios e esperanças diluíam-se na esteira de espuma, enfraquecendo até parecerem distantes, sem sentido, porque o mar tornava os seres humanos egoístas e absortos em si mesmos. Havia coisas intoleráveis em terra, pensamentos, ausências, angústias, que só podiam suportar-se no convés de um barco. Nunca existiu analgésico tão potente como aquele. E ele tinha visto sobreviver, a bordo de barcos, homens que noutro lado teriam perdido para sempre a razão e a calma. Rumo, vento, ondulação, posição, singra-dura, sobrevivência: ali, só essas palavras significavam alguma coisa. Porque era verdade que a liberdade verdadeira, a única possível, a verdadeira paz de Deus, começava a cinco milhas da costa mais próxima.
— Tudo bem, Piloto?
— Tudo bem. Dentro de meia hora dobraremos Punta Europa.
Imóvel na coberta de popa, Tânger observava as luzes que deixavam para trás. Tinha vestido a camisola e agarrava-se a um dos brandais, junto da bandeira que ondulava suavemente na brisa. Olhava para cima, para o cimo da massa escura do Rochedo, como se não conseguisse deixar para trás coisas que a preocupavam, ou que talvez tivesse querido levar consigo. O Carpanta governava enfiado a sul, e pelo lado de bombordo iam ficando para trás as grinaldas luminosas do porto principal, os barcos amarrados aos molhes, a linha negra das docas e os relâmpagos brancos, um a cada dois segundos, do farol principal do dique sul.
O Piloto manobrou para evitar um grande navio mercante ancorado e depois pôs o regime do motor em duas mil e quinhentas rotações. Sobre a bitácula, o ponteiro do odómetro indicava a velocidade de cinco nós, e o balanço tornou-se um pouco mais intenso. Coy desceu à casa de pilotagem para ligar o rádio Sailor VHF, pôs os canais nove e dezasseis em dupla escuta e depois foi até à coberta da popa, para junto de Tânger. O farol de popa iluminava com tons fosforescentes a esteira rectilínea que o barco deixava na água.
— Palermo tem razão — disse Coy.
— Não me aborreças — replicou ela.
Não acrescentou mais nada. Continuava atenta ao cimo do enorme rochedo escuro, que se assemelhava a uma nuvem ameaçadora suspensa sobre a cidade.
— Pode dar cabo de nós se decidir fazê-lo — prosseguiu Coy. — E é verdade ele ter os meios para localizar o Dei Gloria. A oferta dele...
— Ouve — finalmente voltara-se e observava-o, perfilhada na claridade que deixavam a bombordo, na direcção da alheta do veleiro. — Eu fiz todo o trabalho. Vê se me entendes de uma vez. E aquele barco é meu.
— Nosso. Aquele barco é nosso. Teu e meu — apontou para o Piloto. — E agora também é dele.
Tânger pareceu reflectir sobre aquilo.
— Claro — disse, passado um instante. — E ele deve ocupar-se dos seus assuntos e tu dos teus... Mas Palermo não é um problema vosso.
— Se houver problemas, Palermo será um problema de todos nós.
— És o único que esteve prestes a causar problemas. Tu e os teus impulsos varonis — agora ria-se sem vontade e Coy não conseguiu ver-lhe a expressão. — Só pareces estar bem quando te partem a cara.
Vejam só, pensou ele. LCE: Lei das Compensações Evidentes. Primeiro uma cenoura, depois uma paulada. Agora não me pões a mão no pescoço nem sorris, lindinha. Não, agora. Não, quando arrefeces e te pões a pensar e descobres que a minha estupidez altera os teus planos.
— Estou a ver — limitou-se a dizer. — ...Continuas a achar que podes manipular toda a gente, não é verdade?
— Continuo a achar que sei muito bem o que estou a fazer. Mantinha os olhos nalgum ponto acima do rochedo escuro.
Coy olhou por sua vez. Por baixo da encosta parecia subir um minúsculo clarão azul. Um pouco mais acima havia uma claridade avermelhada, como uma fogueira. Oxalá, pensou, o berbere se tenha despenhado com o carro e estejam os dois esturricando como pipocas.
— E essa pistola? — Pronunciar a palavra «pistola» fê-lo sentir um formigueiro de rancor. — ...Não podes andar a passear-te com ela, assim sem mais nem menos.
— Estás a ver que, de facto, posso.
Coy esfregou o olho dorido, voltado para a esteira luminosa do Carpanta, tentando encontrar uma resposta adequada. Na primeira oportunidade que se lhe apresentasse, decidiu, aquele mamarracho ia sair borda fora. Chap! Não gostava de pistolas, nem de espingardas, nem de armas em geral. Nem sequer gostava de navalhas, apesar de ter ainda consigo, no bolso de trás das calças de ganga, a inútil Wichard do Piloto. Quem anda com este tipo de ferramentas, pensava, fá-lo com a intenção inequívoca de perfurar, cravar ou cortar. O que significa que está muito assustado ou tem muito maus fígados.
— As armas — concluiu em voz alta — trazem sempre problemas.
— Também te livram deles quando te portas como um idiota. Voltou-se um pouco. Picado.
— Olha lá, disseste que gostavas de me ver lutar.
— Disse isso?
Agora, a claridade da cidade distante e o farol de popa na esteira revelavam um ângulo do sorriso entre as pontas luminosas do cabelo revolto. Coy sentiu que o seu rancor se misturava com muitas outras coisas.
— Calma — ela começou-se a rir. — Não penso usar aquela pistola contra ti.
O farol meridional já era visível pelo lado de bombordo: relâmpago de cinco segundos e cinco segundos de escuridão. A ondulação do mar alto fazia balançar o Carpanta com maior violência e, no alto do mastro, debilmente desenhadas pela luz de navegação a motor, o cata-vento e a pá do anemómetro giravam desmaiadas, ao capricho da oscilação do barco e da falta de vento. Coy calculou por instinto a distância a que se encontravam de terra e depois deu uma vista de olhos à alheta de estibordo, por onde um navio mercante que tinha estado a aproximar-se de este estava já safo. Com as mãos no leme — uma roda clássica de madeira com seis malaguetas e quase um metro de diâmetro, situada no poço atrás de uma pequena cabina com capuchana e toldo de lona — o Piloto mudava pouco a pouco o rumo, orientando a proa para levante com a luz do farol à vista. Sem necessidade de consultar o repetidor do GPS ligado sobre a bitácula ao pé do piloto automático, do odó-metro e da sonda, Coy soube que estavam nos 36° 6 minutos norte e 5° 20 minutos oeste. Tinha traçado demasiadas vezes rumos para ou desde aquele farol nas cartas náuticas — quatro do Almirantado britânico e duas espanholas — para conseguir esquecer-se da latitude e da longitude de Punta Europa.
— O que te parece? — perguntou ao Piloto.
Não se voltou para olhá-la. Ela continuava imóvel na popa, agarrada aos brandais, contemplando o rochedo preto que deixavam para trás. O Piloto esteve algum tempo sem responder. Coy não sabia se reflectia sobre a pergunta ou se atrasava voluntariamente a resposta.
— Suponho — acabou por dizer — que sabes o que fazes. Coy torceu o nariz na penumbra.
— Não te pergunto por mim, Piloto. Pergunto-te por ela.
— É das que mais convém que fiquem em terra.
Coy esteve prestes a dizer o que era óbvio: ela não ficou em terra. Também podia ter acrescentado: é aquela de que todos os marinheiros falam ou inventam diante dos seus companheiros, no camarote ou nos antigos castelos de proa. Aquela que todos eles conheceram, ou conhecemos, neste ou naquele porto. Esteve prestes a dizer isso, mas não disse. Em vez disso, contemplou o céu negro por cima do mastro oscilante. A maior parte das estrelas deviam estar à vista, embora a claridade da proximidade da costa as apagasse.
— Pode haver problemas, Piloto.
O outro não respondeu. Continuava a corrigir o rumo, malagueta a malagueta, mantendo alguma distância de resguardo da costa. Só passado algum tempo inclinou um pouco a cabeça, como se verificasse a sonda.
— No mar há sempre problemas — disse.
— Desta vez não serão só por causa do mar.
O silêncio do Piloto indicava preocupação.
— Há o risco de perder o barco?
— Não creio que as coisas cheguem a tanto — tranquilizou-o Coy. — Eu refiro-me a problemas em geral.
O Piloto parecia reflectir.
— Disseste que também pode haver algum dinheiro — acabou por insinuar. — Isso vinha a calhar... Agora há pouco trabalho.
— Vamos à procura de um tesouro.
A revelação não alterou o Piloto. Continuava atento à roda do leme e à luz do farol.
— Um tesouro — repetiu, com voz neutra.
— Isso mesmo que ouviste. Esmeraldas antigas. Valem um dinheirão.
O outro concordou, dando a entender que todas as esmeraldas antigas deviam valer um dinheirão, mas que não era nisso que estava a pensar. Depois deixou a roda do leme livre, o tempo necessário para agarrar no odre de vinho que tinha pendurado à bitácula, deitar a cabeça para trás e beber um longo gole. Voltou a empunhar as malaguetas, após limpar a boca com as costas de uma mão, enquanto com a outra, passava o odre a Coy.
— Um dia, lembra-me — disse — que te conte as histórias de tesouros que já ouvi na minha vida.
Coy bebia como o Piloto, com o odre levantado, tentando fazer que o balanço do barco não lhe derramasse vinho para cima. Reconhecia o sabor. Era um clarete aromático e fresco, do campo de Cartagena.
— Esta história não é totalmente inverosímil — replicou antes do último gole. — E julgo que conseguiremos localizar o naufrágio.
— Um naufrágio de quando?
— De há duzentos e cinquenta anos — tapou o odre e pendurou-o no sítio. — Baía de Mazarrón. A pouca profundidade.
O Piloto abanava a cabeça, céptico.
— Isso deve ter-se desintegrado. Os pescadores devem ter levado toda a vida a prender as redes nos vestígios, a areia deve ter coberto tudo... O que houver para tirar, ou já o tiraram ou está perdido.
— És homem de pouca fé, Piloto. Como os teus colegas do lago Tiberíades. Até verem o outro a andar sobre as águas não o levaram a sério.
— Não te imagino caminhando sobre as águas.
— Não. Suponho que não. E eu a ela também não. Voltaram-se os dois para a observar, ainda imóvel na coberta da popa, recortada pela claridade vinda de terra. O Piloto tinha tirado um cigarro do blusão para o pôr na boca, sem acender.
— Além disso — disse sem que viesse a propósito —, estou a ficar velho.
Ou talvez, pensou Coy, viesse a propósito. O Piloto e o Car-panta envelheciam da mesma forma que aquela escuna apodrecia no porto de Barcelona, ou no Cemitério dos Barcos Sem Nome as carcaças dos navios mercantes desmantelados se oxidavam ao sol e à chuva, roídas pelo salitre, lambidas pela água na areia suja da praia. Tal como o próprio Coy tinha estado a apodrecer enquanto vagueava pelo porto, atirado para terra por uma rocha não assinalada pelas cartas no oceano Índico. Embora, como o mesmo Piloto
— ou talvez já não fosse o mesmo — lhe tinha dito há vinte e muitos anos: os homens e os barcos deveriam ficar para sempre no mar alto, afundando-se aí com dignidade.
— Não sei — disse, com sinceridade. — A verdade é que não sei. Pode ser que fiquemos, no fim, de beiça caída. Tu e eu, Piloto. Talvez mesmo ela.
O outro fez um gesto lento e afirmativo com a cabeça, como se aquela conclusão lhe parecesse a mais lógica. Depois tirou do bolso o isqueiro de torcida, bateu na rodinha com a palma aberta, soprou a mecha e aproximou-a da extremidade do cigarro que tinha na boca.
— Mas não se trata de dinheiro, não é verdade? — murmurou.
— ...Pelo menos tu não estás aqui por isso.
Coy sentia o cheiro do tabaco misturado com o fumo acre da torcida, que a brisa, que começava a aumentar atrás de Punta Europa, levava rapidamente para poente.
— Ela precisa... — calou-se de repente, sentindo-se ridículo.
— Bom. Pode ser que ajuda não seja a palavra.
O Piloto aspirou uma longa passa do seu cigarro.
— Se calhar és tu quem precisa dela.
Na bitácula, a agulha magnética marcava 70°. O Piloto carregou na tecla correspondente na repetidora do piloto automático, transferindo-lhe o rumo.
— Conheci mulheres assim — acrescentou. — ...Hum! Conheci algumas.
— Uma mulher assim... Assim, como?... Não sabes nada dela, Piloto. Eu próprio não sei muitas coisas.
O outro não respondeu. Tinha largado a roda do leme e verificava o comportamento do piloto automático. Sob os seus pés sentiam o rumor do sistema de direcção corrigindo o rumo grau a grau na ondulação.
— É má, Piloto. Má que se farta.
O patrão do Carpanta encolheu os ombros, sentando-se no banco de teca para fumar protegido da brisa que continuava a aumentar na proa. Voltava-se para a figura imóvel à popa.
— Tem frio na mesma, só com aquela camisola.
— Já se agasalhará.
O Piloto esteve a fumar em silêncio durante algum tempo. Coy continuava de pé encostado à bitácula, com as pernas um pouco abertas e as mãos nos bolsos. O relento da noite começava a molhar o convés, filtrando-se pelas costuras descosidas nas costas do seu casaco, a que tinha levantado a gola e as lapelas. Apesar de tudo, desfrutava do balanço familiar da embarcação e só lamentava que o vento soprasse de proa, impedindo-os de soltar as velas. Isso atenuaria o vaivém, eliminando o incomodativo ronronar do motor.
— Não há mulheres más — disse de repente o Piloto. — Tal como não há barcos maus... São os homens a bordo quem os torna de uma maneira ou de outra.
Coy não disse nada, e o Piloto manteve-se calado outro bocado. Uma luz verde deslizava com rapidez entre eles e a terra, aproximando-se pela alheta de bombordo. Quando ficou na contraluz do farol, Coy reconheceu a silhueta longa e baixa de uma lancha turbo HJ, de vigilância aduaneira espanhola. Base em Algeciras, patrulha rotineira à caça de haxixe de Marrocos e de contrabandistas do Rochedo.
— O que procuras nela?
— Quero contar-lhe as sardas, Piloto. Já reparaste...? Tem milhares, e quero contá-las a todas, uma por uma, percorrendo-a com o dedo como se fosse uma carta náutica. Quero traçar rumos de cabo a rabo, ancorar nas enseadas, fazer navegação costeira na sua pele... Compreendes?
— Compreendo. Queres fodê-la.
Da lancha aduaneira brotou um feixe de luz que procurou o nome do Carpanta, o seu porto de registo e matrícula escritos nos bordos. Da popa, Tânger perguntou o que era aquilo e Coy disse-lhe.
— Sacanas —murmurou o Piloto fazendo pala com a mão, en-cegueirado.
Nunca falava mal, e Coy raras vezes o ouvira dizer um palavrão. Tinha a velha educação das pessoas humildes e honradas, mas não suportava os guardas alfandegários. Tinha jogado demasiado com eles ao gato e ao rato, desde os tempos longínquos em que remava com o seu botezinho de vela latina, o Santa Lucía, para arredondar a jorna recolhendo caixas de tabaco americano que lhe atiravam navios mercantes de passagem, aos quais fazia sinais com uma lanterna, escondido atrás da ilha de Escombreras. Uma parte para ele, outra para os guardas-civis do cais, a principal para quem o empregava e nunca corria riscos. Ao Piloto o tabaco podia tê-lo enriquecido se trabalhasse por conta própria; mas sempre lhe bastara o facto da mulher poder estrear um vestido novo no Domingo de Ramos, ou poder tirá-la da cozinha para a levar a comer uma parrilhada de peixe nas cantinas do porto. E, às vezes, quando os amigos insistiam muito e havia demasiado sangue pulsando e demasiados diabos por expulsar, o fruto de uma noite inteira de risco e trabalho, labutando num mar infame, derretia-se nalgumas horas, de música, copos, ancas mercenárias e complacentes, nos bares de má fama do Molinete.
— Não é isso, Piloto — Coy continuava olhando para Tânger na popa, iluminada agora pelo foco dos aduaneiros. — Pelo menos, não é só isso.
— Claro que é. E até a conseguires comer não terás o tombadilho claro... Partindo do princípio que alguma vez o conseguirás.
— Esta tem tomates. Juro-te.
— Todas têm. Olha para mim. Quando me dói alguma coisa, é a minha mulher quem me leva à consulta do médico: «Senta-te aqui, Pedro, que o doutor já vem»... Já a conheces. No entanto, ela pode rebentar, mas cala-se. Há mulheres que, se fossem bezerras, paririam touros bravos.
— Não é só isso. Vi uma fotografia antiga, sabes?... E uma taça de prata amolgada. Também havia um cão que me lambia a mão e que agora está morto.
O Piloto tirou o cigarro da boca e deu um estalo com a língua.
— Aqui está a mais tudo o que não possa escrever-se num caderno de bordo — disse. — ...O resto, temos de deixá-lo em terra. Caso contrário, perdem-se os barcos e os homens.
A lancha da polícia, terminada a inspecção, mudava de rumo. A luz verde do seu estibordo tornou-se branca à popa, e depois vermelha quando guinou até mostrar o lado de bombordo, antes de as apagar para prosseguir a caçada nocturna com mais discrição. Instantes depois não era mais do que uma sombra que se deslocava rapidamente para oeste, em direcção a Punta Carnero.
O barco deu um solavanco e Tânger apareceu no poço. Movia-se com a falta de jeito de uma garotinha no balanço da ondulação, procurando agarrar-se com prudência para manter o equilíbrio antes de dar cada passo. Ao passar junto deles apoiou uma mão no ombro de Coy, e este perguntou a si próprio se ela estaria enjoada. Por alguma razão perversa, a ideia divertiu-o imenso.
— Tenho frio — disse ela.
— Lá em baixo há um casacão — ofereceu o Piloto. — Pode vesti-lo.
— Obrigada.
Viram-na desaparecer pela escotilha. O Piloto continuou a fumar em silêncio durante um bocado. Olhava para Coy sem dizer nada e, no fim, falou como se retomasse uma conversa interrompida:
— Leste sempre demasiados livros... Isso não podia trazer nada de bom.
A COSTA DOS CORSÁRIOS
O vento de levante rodou para terra antes do amanhecer, embora tenha voltado a soprar da proa quando o Sol se levantou um pouco no horizonte. Não era muito forte, apenas dez ou doze nós, mas bastou para transformar a ondulação na pequena vaga de vento, curta, picada e incomodativa do Mediterrâneo. Dessa forma, cabeceando impelido pelo motor, entre pequenos salpicos que às vezes deixavam rastos de sal na capuchana do poço, o Carpanta passou a sul de Málaga, chegou ao paralelo 36° 30' e aí rumou directo a oeste.
Ao princípio, Tânger não mostrou sinais de enjoo. Coy tinha estado a observá-la na escuridão, sentada e imóvel numa das cadeiras de madeira que o barco tinha presas à balaustrada da coberta de popa, metida no casacão marinheiro do Piloto, cujas lapelas levantadas lhe cobriam meia cara. Pouco depois da meia-noite, quando a ondulação aumentou, foi levar-lhe um colete salva-vidas auto-insuflável e um conjunto de segurança, cujo mosquetão ele próprio prendeu ao brandal. Perguntou-lhe como se sentia, ela respondeu perfeitamente, obrigada, e ele sorriu no seu íntimo, lembrando-se da caixa de biodramina que, há pouco, ao descer em busca do casaco e dos equipamentos de protecção, tinha visto aberta em cima do beliche que o Piloto lhe atribuíra nos camarotes da popa. De qualquer forma, estar sentada ali com a brisa nocturna na cara fá-la-ia sentir-se menos incomodada. Mesmo assim, disse-lhe, embora te sintas perfeitamente, eu se fosse a ti sentar-me-ia no outro lado, a bombordo, longe da saída de gases do motor que fica aí debaixo. Tânger replicou que estava bem ali. Ele encolheu os ombros, regressando ao poço, e ela aguentou dez minutos antes de mudar de lugar.
Às quatro da manhã, o Piloto entrou de quarto e Coy desceu para descansar. Deitou-se no seu estreito camarote à popa, que tinha espaço apenas para um beliche e um cacifo. Deitou-se vestido, em cima de um saco-cama e, minutos depois, dormia embalado pelo balanço. Uma sonolência profunda, desprovida de sonhos, onde vagueavam sombras difusas parecidas a barcos, mergulhadas numa fantasmagórica penumbra verde. Por fim, despertou-o um raio de sol que entrava pela gaiuta, subindo e descendo com o vaivém da ondulação. Ficou sentado no beliche, esfregando o pescoço e o olho dorido, com a barba a picar-lhe na palma da mão. É melhor barbeares-te de uma vez, disse para si próprio. De modo que passou pelo corredor estreito em direcção à casa de banho e, de caminho, olhou para dentro do outro camarote à popa, que tinha a porta e a vigia abertas para fazer corrente de ar. Tânger estava a dormir de barriga para baixo no beliche, ainda com o colete salva-vidas e o arnês postos. Não lhe via o rosto, porque o cabelo louro e despenteado o cobria. Os pés, calçados com ténis, saíam para fora do beliche. Apoiado no umbral da porta, Coy esteve a ouvir a respiração dela, às vezes interrompida por um sobressalto ou por um leve gemido. Depois foi barbear-se. O olho inchado não estava muito mal, e a mandíbula só doía muito quando bocejava. Apesar de tudo, meditou consolando-se, não se saíra muito mal da entrevista em Old Willis. Animado com a ideia, ligou a bomba de água para se lavar um pouco, aqueceu café no microondas e, tentando que não se derramasse com o balanço, bebeu uma chávena e levou outra ao Piloto. Ao assomar a cabeça pela escotilha encontrou-o sentado no poço, com um gorro de lã na cabeça e pêlos cinzentos de barba na cara acobreada. A costa andaluza adivinhava-se para além da neblina, cerca de duas milhas por bombordo.
— Mal foste dormir, ela vomitou pela borda — informou o Piloto, agarrando na chávena quente. — Despejou tudo. Até a primeira papa.
A cabra orgulhosa, pensou Coy. Lamentava ter perdido o espectáculo: a rainha dos mares e dos naufrágios, com toda a sua grande e manifestada superioridade, agarrada ao guarda-mancebos e chamando pelo gregório. Maravilhoso.
— Não posso acreditar!
Era evidente que acreditava. O Piloto observava-o, pensativo.
— Parecia que só estava à espera que desaparecesses...
— Sobre isso não tenhas a menor dúvida.
— Mas não se queixou nem uma vez. Quando fui perguntar-lhe se precisava de alguma coisa, mandou-me para o diabo. Depois, mais calma, desceu para se deitar, como uma sonâmbula.
O Piloto bebeu alguns goles de café e estalou a língua, como fazia cada vez que chegava a uma conclusão.
— Não sei porque sorris — disse. — Essa pequena tem raça.
— Demasiada, Piloto. — Coy deixou escapar por entre os dentes uma gargalhada amarga. — Demasiada raça.
— Até a vi levantar-se tacteando à procura do sotavento, antes de despejar tudo... Não se precipitou, ao contrário, foi até lá devagar, sem perder as boas maneiras. E depois, ao passar ao meu lado, olhei para a cara dela à luz da casa de pilotagem e estava branca, mas ainda teve forças para me dar as boas-noites.
Dito isto, o Piloto ficou calado durante um bocado. Parecia reflectir.
— Tens a certeza de que ela sabe o que faz?
Oferecia a Coy a chávena, ainda a metade. Este bebeu um golinho antes de lha devolver.
— Eu só de ti tenho a certeza.
O outro coçou-se por baixo do gorro e, passado algum tempo, concordou. Não parecia muito convencido. Semicerrava os olhos para contemplar a difusa linha de terra, uma mancha alongada e parda, difícil de precisar, a norte, entre a bruma.
Cruzaram-se com poucos barcos à vela. A temporada turística na Costa do Sol ainda não tinha começado, e as únicas embarcações desportivas avistadas foram um francês de um só mastro e, mais tarde, um ketch holandês, que navegavam a um largo na direcção do estreito. À tarde, e por alturas do Motril, uma escuna de casco preto passou em sentido contrário, muito perto, a sessenta braças, com a bandeira inglesa no penol da carangueja do mastro grande. Os outros eram pesqueiros na faina, que o Carpanta com frequência teve de evitar. O regulamento para evitar abalroamentos ordenava que qualquer barco desse resguardo aos pesqueiros com os utensílios de pesca submersos, de forma que durante os seus quartos à ponte — ele e o Piloto revezavam-se de quatro em quatro horas — Coy teve de desligar o piloto automático e passar a leme manual para evitar palangreiros e arrastões. Fê-lo com muito má vontade, porque não simpatizava com os pescadores. Devia-lhes horas de incerteza na ponte dos navios mercantes em que navegara, quando de noite as suas luzes pontilhavam o horizonte, saturando os ecrãs do radar e as paragens toldadas pela chuva ou pelo nevoeiro. Além disso, achava-os carrancudos e egoístas, dispostos a arrasar sem remorsos qualquer pedaço de mar ao seu alcance. Mal-humorados por uma existência de perigos e sacrifícios, viviam dia a dia, exterminando espécie atrás de espécie sem lhes importar um futuro que, para eles, não ia além do lucro de cada jornada. Entre todos, os mais impiedosos eram os japoneses. Com a cumplicidade de comerciantes espanhóis e perante a passividade suspeita das autoridades da marinha e da pesca, estavam a aniquilar o atum-vermelho no Mediterrâneo com sonares ultramodernos e avionetas. De qualquer forma, os pescadores não eram os únicos culpados. Naquelas mesmas águas, Coy tinha visto mais de um rorqual asfixiado por ter engolido sacos de plástico à deriva, e cardumes inteiros de golfinhos enlouquecidos pela contaminação suicidando-se nas praias, entre miúdos e voluntários que choravam impotentes, empurrando-os para um mar aonde se negavam a voltar.
Foi um longo dia de manobras entre pesqueiros de comportamentos imprevisíveis, que tanto navegavam a toda a velocidade como guinavam de repente para bombordo ou estibordo para largar ou recolher as redes. Coy dirigia entre eles, alterando o rumo com paciência profissional* enquanto pensava que a bordo de um navio mercante, em alto mar ou em países com menor vigilância das suas águas, os marinheiros agiam com menos consideração.
Embarcações à vela e pesqueiros na faina tinham, teoricamente, prioridade de passagem. Mas, na prática, mais lhes valia manterem-se afastados de um navio mercante com máquinas avante toda a força, com tripulação reduzida por razões de poupança do armador, bandeira de conveniência, indianos, filipinos ou ucranianos dirigidos por oficiais mercenários, uma rota o mais directa possível para economizar tempo e combustível e, às vezes, de noite, uma vigilância mínima na ponte: máquinas não assistidas e um oficial sonolento, confiante quase por completo nos aparelhos de bordo. E se de dia era pouco frequente tocar nas máquinas ou no leme para alterar a velocidade ou o rumo, de noite um barco destes convertia-se numa ameaça letal para qualquer embarcação pequena que se cruzasse no seu caminho, tivesse ou não direito a rumo. A vinte nós, o que equivalia a vinte milhas percorridas numa hora, um navio mercante para além do horizonte podia passar-lhes por cima em dez minutos. Uma vez, na rota de Dakar para Tenerife, o barco em que Coy navegava como segundo-oficial tinha abalroado um pesqueiro. Passavam cinco minutos das quatro da madrugada, ele acabava de sair do seu quarto à ponte no Hawaiian Pilot, um cargueiro de dois mastros de 7000 toneladas e, quando descia pelas escadas em direcção ao seu camarote, pareceu-lhe ouvir um ruído surdo a estibordo, como se alguma coisa rangesse da proa à popa. Espreitou pela borda a tempo de ver uma sombra escura afundando-se na vaga do barco, com uma luz fraca, parecida à de uma lanterna de pouca intensidade, que se agitava loucamente antes de se apagar de repente. Regressou rapidamente à ponte, onde o primeiro-oficial estava a verificar tranquilamente na repetidora da agulha-padrão o rumo da agulha giroscópica. Acho que abalroámos um pesqueiro, disse Coy. E o primeiro, um indiano fleumático e triste chamado Gujrat, ficou a olhar para ele sem dizer uma palavra. No teu quarto ou no meu? — acabou por perguntar. Coy respondeu que às quatro e cinco tinha ouvido o ruído e visto a luz apagar-se. O primeiro ainda olhou para ele durante algum tempo, pensativo, antes de ir até a uma das asas da ponte dar uma olhadela rápida à popa e verificar depois no radar, onde os ecos das ondas não indicavam nada de especial. No meu quarto não há novidade, concluiu, voltando a ocupar-se da giroscópica. Depois, quando o primeiro-oficial levou as suspeitas de Coy ao conhecimento do capitão — um inglês arrogante, que fazia listas da tripulação onde separava os súbditos britânicos dos estrangeiros, incluindo os oficiais — este aprovou não se ter feito constar o incidente no livro de bordo. Estamos em alto mar, disse. Para quê complicarmos a vida?
Às dez da noite chegaram aos 3 graus de longitude a oeste de Greenwich. Excepto em raras aparições na coberta, sempre com o seu ar de sonâmbula, Tânger ficou quase todo o tempo recolhida no seu camarote e, nas poucas vezes que Coy passou por lá, encontrando-a adormecida, verificou que os comprimidos da caixa de biodramina diminuíam rapidamente. No resto do tempo, quando estava acordada, voltava a sentar-se à popa, quieta e silenciosa, diante da linha da costa que passava devagar por bombordo. Mal tocou na comida que o Piloto preparou, embora tenha aceitado jantar um pouco melhor, quando este lhe disse que isso lhe acalmaria o estômago. Foi dormir cedo, mal escureceu, e os dois homens permaneceram no poço vendo aparecer as estrelas. O vento soprou de proa toda a noite, obrigando-os a navegar a motor. Isso fê-los decidir entrar no porto de Almerimar às seis da manhã do dia seguinte, para meter gasóleo, descansar um pouco e comprar provisões em terra.
Largaram às duas da tarde com vento favorável, um su-sueste fresquinho que, mal deixaram a safo a bóia de Punta Entinas, lhes permitiu finalmente desligar o motor e soltar primeiro a vela grande e depois a genoa amurada a estibordo, navegando à bolina a uma velocidade razoável. A ondulação tinha diminuído e Tânger sentia-se bastante melhor. Em Almerimar, amarrados junto de um antiquado pesqueiro báltico transformado pelos ecologistas para seguirem cetáceos no mar de Alborán, tinha estado a ajudar o Piloto a lavar a coberta à mangueira. Parecia dar-se bem com ele, que a tratava com uma mistura de atenção e respeito. Depois de almoçarem no clube náutico estiveram a beber café num bar de pescadores, e aí Tânger explicou as vicissitudes da viagem do Dei Gloria, que tinha seguido, disse, uma rota semelhante à que eles percorriam.
O Piloto interessou-se pelas características marinheiras do bergantim, e ela respondeu a todas as suas perguntas com o aprumo de quem tinha estudado o assunto ao pormenor. Uma rapariga esperta, comentou o Piloto num aparte, quando regressavam ao veleiro carregados de pacotes de comida e garrafas de água. Coy, que a via caminhar à frente deles pelo cais, calças de ganga, camisola de manga curta e sapatilhas desportivas, a cintura esbelta e o cabelo agitado pela brisa, um saco de supermercado em cada mão, mostrou-se de acordo. Talvez demasiado esperta, esteve prestes a dizer. Mas não o disse.
Ela não voltou a enjoar. O Sol começava a descer no horizonte, à popa, e o Carpanta navegava a toda a vela e com quatro nós na barca, diante do golfo de Adra, com o vento rodando agora para sul. Coy, cujo olho tumefacto já estava razoavelmente aliviado, vigiava a proa. E, no poço, com as mãos experientes em remendar redes e velas, o Piloto cosia com agulha e linha as costuras descosidas do casaco pelo incidente de Old Willis, sem dar um ponto em falso, apesar do balanço. Tânger espreitou pela escotilha, perguntou a posição e Coy disse-lhe. Passado algum tempo, veio sentar-se entre eles com uma carta náutica na mão. Quando a desdobrou ao abrigo da pequena cabina, Coy viu que era a 774 do Almirantado britânico: de Motril a Cartagena, incluída a ilha de Alborán. Para utilizar em longas distâncias, as cartas inglesas de pequena escala eram mais cómodas que as espanholas: tinham todas o mesmo tamanho e eram muito manejáveis.
— Foi por aqui, e mais ou menos a esta hora, que do Dei Gloria viram as velas do corsário — explicou Tânger. — Navegava seguindo a sua esteira, encurtando a distância pouco a pouco. Podia tratar-se de um barco qualquer, mas o capitão Elezcano era um homem desconfiado e pareceu-lhe suspeita essa aproximação depois de deixarem Almería para trás, e só tendo por diante uma longa costa desprovida de refúgios para o bergantim... De modo que ordenou largar mais pano e manter a vigilância.
Indicava a posição aproximada na carta, oito ou dez milhas a sudoeste do cabo de Gata. Coy conseguiu imaginar a cena sem esforço: os homens, na coberta inclinada, esquadrinhando a popa, o capitão no tombadilho estudando o seu perseguidor através do óculo, os rostos preocupados dos padres Escobar e Tolosa, o cofre de esmeraldas fechado à chave na câmara. E de repente o grito, a ordem de largarem mais pano, que leva os marinheiros enfrechates acima para desfraldarem mais lona; as velas da proa ondulando sobre o gurupés, antes de se enfunarem com o vento, o barco afogando mais algumas tábuas do costado ao sentir em cima o aumento de pano. O sulco de espuma rectilíneo no mar azul e, atrás dele, na direcção do horizonte, as velas brancas do Chergui iniciando abertamente a caçada.
— Faltava pouco para o anoitecer — prosseguiu Tânger, depois de dar uma olhadela ao Sol que continuava baixando na direcção da popa do Carpanta. — Mais ou menos como agora. E o vento soprava de sul, e mais tarde de sudoeste.
— É o que está a acontecer — disse o Piloto, que tinha acabado de coser o casaco e observava o mar encrespado e o aspecto do céu. — Ainda rodará algumas quartas para a popa antes de cair a noite e teremos levante fresco ao dobrar o cabo.
— Magnífico — disse ela.
Os olhos azul-marinhos iam da carta ao mar e às velas, expectantes. Tinha as narinas dilatadas, verificou Coy, e respirava profundamente com a boca entreaberta como se, nesse momento, estivesse a contemplar as velas na mastreação do Dei Gloria.
— De acordo com o relatório do ajudante de piloto sobrevivente — prosseguiu Tânger —, o capitão Elezcano hesitava inicialmente em içar todas as velas. O barco tinha sofrido durante o temporal dos Açores e os mastros superiores não estavam de fiar.
— Referes-te aos mastaréus — insinuou Coy. — Os mastros superiores chamam-se mastaréus. E se, conforme dizes, estavam em mau estado, um excesso de vela podia acabar por parti-los... Se o bergantim tinha o vento como nós pela alheta, suponho que largaria velas da proa, velas baixas de estai, carangueja, traquete, e talvez a gávea e o velacho, bem orientadas a sotavento e reservando as velas altas, as joanetes, para não correr riscos... Pelo menos de momento.
Tânger concordou com um movimento de cabeça. ContempW" va o mar à popa como se o corsário estivesse ali.
— Devia voar sobre o mar. O Dei Gloria era um barco rápido. Coy, por sua vez, olhou para trás.
— Pelos vistos, o outro também era.
Agora transferia-se com a imaginação para a coberta do corsário. Segundo as características do barco que lhes tinha sido descrito por Lúcio Gamboa em Cádis, o Chergui, chaveco semelhante à polaca, navegaria nesse momento com todas as velas, a enorme vela latina do traquete bem enfunada pelo vento e presa no gurupés, velas do mastro grande desfraldadas, latina e gávea na mesma mezena, sulcando o mar com as suas linhas afiadas de barco construído para o Mediterrâneo, os portalós fechados, mas a tripulação de guerra preparando os canhões, pronta para combater, e aquele fulano inglês, o capitão Slyne, ou Misián, o grande filho da puta, de pé no tombadilho alto e inclinado, sem afastar os olhos da sua presa. A caçada pela popa costumava ser caçada longa, o bergantim perseguido também era rápido, e a tripulação corsária devia encarar as coisas com calma, consciente de que, excepto se a presa partisse alguma coisa, não estariam próximos até depois do amanhecer. Coy conseguia imaginá-los perfeitamente: renegados, escória perigosa dos portos. Malteses, gibraltinos, espanhóis e norte-africanos. O pior de cada casa, prostíbulo e taberna, piratas qualificados que navegavam e combatiam sob uma cobertura tecnicamente legal, a carta de corso, que, teoricamente, os punha a salvo de serem pendurados numa corda, caso fossem capturados. Populaça afoita e cruel, desesperados sem nada a perder e tudo a ganhar, sob o comando de capitães sem escrúpulos que faziam o corso com cartas dos reizinhos mouros ou de sua majestade britânica, conforme as circunstâncias, com cúmplices em qualquer porto onde as vontades se comprassem com dinheiro. Espanha também tivera gente assim, oficiais expulsos da marinha, privados do seu título ou caídos em desgraça, aventureiros à procura de fortuna ou de continuarem a pisar a coberta de um navio, que se punham ao serviço de qualquer um, frequentemente sociedades comerciais que armavam barcos e vendiam o produto das presas, cotando tranquilamente na bolsa. Noutro tempo, pensava Coy com íntimo sarcasmo, oficial desonrado e sem trabalho, talvez ele próprio tivesse acabado como corsário. Com as vicissitudes do mar, podia encontrar-se quer a bordo da presa quer a bordo do caçador, há dois séculos e meio, navegando naquelas mesmas águas, a todo o pano e com a silhueta parda do cabo de Gata adivinhando-se no horizonte.
— Nunca saberemos se foi ou não um encontro casual — disse Tânger.
Contemplava o mar, pensativa. Incursão de um corsário à procura de presa ao acaso, ou o dedo de Madrid, guiando o rumo do Chergui para interceptar o Dei Gloria, sabotar a manobra dos jesuítas e roubar o carregamento de esmeraldas. Alguém podia estar a fazer jogo duplo no gabinete da Pesquisa Secreta. Mas aquele era talvez o único mistério que jamais seria resolvido.
— Talvez o tenha seguido desde Gibraltar — disse Coy, percorrendo horizontalmente a carta com o dedo.
— Ou talvez o esperasse escondido em qualquer enseada — replicou ela. — Durante vários séculos, toda esta costa foi frequentada por corsários... Aproximavam-se muito de terra, refugiando-se em praias escondidas para se protegerem dos ventos ou se abastecerem de água e, sobretudo, à espreita de presas. Vêem? — indicou um lugar na carta, entre a Punta de los Frailes e a Punta de La Polacra. — ...Esta enseada aqui e que agora se chama dos Escullos, no início do século XIX ainda se chamava enseada de Mahomet Arráez, e como tal é mencionada nas cartas e roteiros da época. E um «arráez» era, entre outras coisas, o capitão de um barco corsário mourisco... E reparem neste outro sítio: ainda se chama Isleta dei Moro. É por essa razão que todas as povoações se construíam no interior ou nas alturas, para se protegerem das incursões piratas...
— Mouros na costa — referiu Piloto.
— Sim, a frase feita vem daí. Por isso está cheia de antigas torres de vigilância, atalaias encarregadas de alertar os moradores.
O Sol, cada vez mais baixo pela popa, começava a dar tons avermelhados à sua pele pintalgada. A brisa fazia esvoaçar a carta náutica que tinha nas mãos. Observava a costa próxima com concentrada avidez, como se os acidentes geográficos estivessem a revelar-lhe velhos segredos.
— Naquela tarde de 3 de Fevereiro — prosseguiu — ninguém teve de alertar o capitão Elezcano. Ele conhecia os perigos de sobra e devia estar prevenido. Por isso, o corsário não conseguiu surpreendê-lo e a perseguição foi longa — agora Tânger percorria o litoral traçado na carta, em direcção ascendente. — ...Durou toda a noite, com o vento pela popa, e o corsário só pôde atacar quando, ao içar mais pano, o mastro do traquete do Dei Gloria se partiu.
— Com certeza — sugeriu Coy — por ter decidido largar os joanetes. Se o fez, apesar da mastreação em mau estado, é porque devia ter o corsário mesmo em cima. Um recurso desesperado, suponho — consultou o Piloto. — Demasiado pano.
— Devia querer tentar chegar a Cartagena — disse o outro. Coy observou o seu amigo com curiosidade. A habitual fleuma
deste parecia dar lugar a um interesse que raras vezes vira nele. Como se também, pensou assombrado, o ambiente estivesse a contagiá-lo. Pouco a pouco, à medida que se intensificava o fascínio do mistério próximo, Tânger alistava-os a todos naquela estranha tripulação seduzida pelo fantasma de um barco envolto em penumbra verde. Cravado no coto do seu mastro apodrecido, o dobrão de ouro do capitão Ahab brilhava para todos.
— Claro — afirmou Coy. — Mas não chegou a sítio nenhum.
— E porque não se rendeu, em vez de lutar?
Como de costume, Tânger tinha uma explicação para isso:
— Se os corsários fossem berberes, o destino dos marinheiros capturados teria sido acabarem como escravos. E caso fossem ingleses, o facto de nesse momento Espanha estar numa paz relativa com Inglaterra, piorava as coisas para a tripulação do Dei Gloria... Aquele tipo de acções costumava terminar com o extermínio das testemunhas, para não deixar provas. Além disso, havia as esmeraldas... De modo que não é estranho o capitão Elezcano e os seus homens lutarem até ao fim.
Com o odre de vinho na mão, o Piloto estudava a carta. Bebeu um gole e estalou a língua.
— Já não há marinheiros como esses — disse.
Coy estava de acordo. À crueldade do mar e à sua dureza, às condições abjectas da vida a bordo, os marinheiros daquele tempo deviam somar os perigos da guerra, os tiros de canhão, as abordagens. Se já era terrível enfrentar um temporal, pior teria de ser enfrentar um barco inimigo. Recordava as aulas práticas como aluno no Estreita del Sur e tremia só de imaginar-se trepando pela enxárcia oscilante de um barco para ferrar uma vela entre a metralha e os tiros de canhão, com as adriças partidas e os estilhaços saltando por todo o lado.
— O que já não há — murmurou Tânger — é homens como aqueles.
Contemplava o mar e as velas do Carpanta enfunadas pelo vento e, na sua voz, latejava a nostalgia de tudo o que não conhecera, do enigma descoberto entre velhos livros e cartas náuticas, alertando-a, como o relâmpago longínquo de um farol na ondulação, de que havia ainda mares por navegar, naufrágios por descobrir, perseguições a todo o pano, esmeraldas e sonhos para trazer à luz do dia. Entre as pontas dos cabelos que lhe batiam na cara, os seus olhos pareciam absortos, evocando cobertas inclinadas, rumor da água, sulco de espuma, aquela caça que, de repente, parecia reviver dramaticamente diante dos seus olhos e que também os arrastava aos dois: ao marinheiro sem barco e ao marinheiro sem sonhos. E Coy compreendeu de súbito que, nesse longínquo entardecer de 3 de Fevereiro de 1767, Tânger Soto teria gostado de estar num daqueles dois barcos. Não tinha era a certeza se a bordo da presa, se do caçador. Embora talvez desse no mesmo.
Tal como prognosticara o Piloto, o vento saltou um pouco para a popa antes do anoitecer e ainda mais quando dobraram o cabo de Gata, já ao lusco-fusco e com o Sol abaixo do horizonte, o feixe do farol iluminando de vez em quando as paredes rochosas da montanha. De modo que arriaram a vela grande e seguiram rumo a nordeste, frouxa a escota da genoa fixa agora a bombordo. Antes que escurecesse completamente, os dois marinheiros prepararam o barco para a navegação nocturna: cabos de segurança a cada bordo, coletes salva-vidas auto-insufláveis com arnês de segurança, binóculos, lanternas e foguetes de sinalização ao alcance da mão. Depois, o Piloto preparou um jantar rápido à base de fruta, ligou o radar, o candeeiro vermelho da mesa de cartas e as luzes de navegação à vela e foi dormir um bocado, deixando Coy de vigia no poço.
Tânger ficou com ele. Embalada pelo balanço do barco, com as mãos nos bolsos do casacão do Piloto, a gola levantada, olhava para as luzes que, às vezes, apareciam ao longe pontilhando a costa de Almeria, cujo perfil escarpado podia adivinhar-se na pouca claridade do céu de poente. Passado pouco tempo, manifestou a sua estranheza por ver tão poucas luzes e Coy disse-lhe que aquele sector, do cabo de Gata ao cabo de Paios, era o único do litoral mediterrânico espanhol ainda não invadido pela praga de cimento das urbanizações turísticas.
Demasiadas montanhas, costa rochosa e poucas estradas obravam o milagre de o manter quase virgem. Por agora.
Mar dentro, no lado oposto à terra, pequenos pontos de claridade atrás do horizonte denunciavam a presença de navios mercantes que seguiam rumos paralelos ao Carpanta. As suas rotas mais abertas que a do veleiro mantinham-nos longe, mas Coy tentava não os perder de vista e, intervaladamente, fazia marcações mentais das suas respectivas posições: marcação constante e distância a diminuir, segundo o velho princípio marinheiro, significava colisão certa. Inclinou-se sobre a bitácula para verificar o rumo e barca. O Carpanta navegava com a proa de 40° da magnética, a quatro nós. Impelido pelo levante bonançoso, com o rumor da água ao longo do casco, o barco deslizava facilmente sobre o mar encrespado, sob a abóbada escura onde já podiam reconhecer-se as estrelas. A Polar estava no seu sítio, sentinela imutável do norte, na vertical da amura de bombordo. Tânger seguiu o olhar dele para o alto.
— Quantas estrelas conheces? — perguntou.
Coy encolheu os ombros, antes de responder que conhecia trinta ou quarenta. As imprescindíveis para o seu trabalho. Aquela era a estrela mestra, a Polar, disse. À sua esquerda podia ver-se a Ursa Maior, com a sua forma de papagaio invertido e, um pouco acima, estava Cefeu. O grupo em forma de W era Cassiopeia. W de whisky.
— E como consegues localizá-las, entre tantas?
— A determinada hora e conforme as épocas do ano, umas são mais visíveis que outras. Se tomares a Polar como ponto de partida e fores traçando linhas e triângulos imaginários, consegues identificar as principais.
Tânger olhava para cima, interessada, o rosto iluminado apenas pela claridade avermelhada que saía da escotilha. A luz das estrelas reflectia-se nos olhos dela e Coy lembrou-se de uma toada da sua juventude:
A cantar a una nina yo la ensenaba...
Sorriu na penumbra. Quem diria, vinte e tal anos atrás.
— Se formares um triângulo — disse — com as duas estrelas mais baixas da Ursa Maior e com a Polar, no terceiro vértice, vês?... encontras Capela. Ali, sobre o horizonte. A esta hora ainda a vemos muito em baixo, embora mais tarde suba, porque essas estrelas giram para poente em volta da Estrela Polar.
— E aquele montinho luminoso?... Parece um cacho de uvas.
— São as Plêiades. Brilharão mais quando estiverem mais altas. Ela repetiu «as Plêiades» em voz baixa, contemplando-as por
muito tempo. Aquelas luzinhas nas pupilas, pensou Coy, faziam-na parecer espantosamente jovem. Novamente a fotografia na moldura, a taça amolgada vaguearam pela sua memória, envoltas na velha canção:
Nombres de las estrellas
saber queria.
— Aquela tão luminosa é Andrómeda — indicou. — Está junto ao quadrado de Pégaso, que os antigos astrónomos imaginavam como um cavalo alado visto ao contrário... E ali mesmo, se reparares, um pouco à direita, está a Nebulosa... Vês?
— Sim... Vejo-a.
Havia uma suave excitação na sua voz, a descoberta de alguma coisa nova. Uma coisa inútil, inesperada e bela.
Que noche aquella,
en que le di mil nombres
a cada estrella.
Coy cantarolava entre dentes, baixinho. O balanço do barco, a noite cada vez mais intensa, a presença próxima dela, mergulhavam-no num estado muito próximo da felicidade. Vamos ao mar, pensava, para vivermos momentos assim. Passara-lhe os binóculos de 7 x 50 e Tânger observava o céu, as Plêiades, a Nebulosa, procurando pontos luminosos que ele ia apontando com o dedo.
— Ainda não se consegue ver Orion, que é a minha favorita. Orion é o Caçador, com o seu escudo, o seu cinto e a bainha da sua espada... Tem uns ombros que se chamam Betelgeuse e Belatriz e um pé que se chama Rigel.
— Porque é a tua favorita?
— É o mais impressionante que existe lá em cima. Mais do que a Via Láctea. E uma vez salvou-me a vida.
— Não me digas! Conta-me isso.
— Não há muito que contar. Eu devia ter treze ou catorze anos e tinha saído para pescar, com um barquinho à vela. Começou o mau tempo, muito cerrado, e a noite surpreendeu-me no mar. Não levava bússola e não conseguia orientar-me... De repente abriram-se um pouco as nuvens e reconheci Orion. Marquei o rumo e cheguei ao porto.
Tânger ficou algum tempo calada. Talvez esteja a imaginar-me, aventurou Coy. Um menino perdido no mar, à procura de uma estrela.
— O Caçador, o cavalo Pégaso — ela voltava a percorrer o céu. — ... És capaz, deveras, de ver todas essas figuras lá em cima?
— Claro. É fácil quando olhas durante anos e anos... De qualquer forma, depressa as estrelas brilharão inutilmente sobre o mar, porque os homens já não precisam delas para procurar o seu caminho.
— Isso é mau?
— Não sei se é mau. Sei que é triste.
Havia uma luz muito ao longe na direcção da popa, pela amurada de estibordo, que aparecia e desaparecia sob a sombra escura da vela. Coy deu uma vista de olhos atenta. Talvez fosse um pesqueiro, ou um navio mercante que navegava perto da costa. Tânger olhava para o céu e ele ficou algum tempo a pensar sobre luzes: brancas, vermelhas, verdes, azuis ou de qualquer outra cor, ninguém, alheio ao mar, podia suspeitar o que significavam para um marinheiro. A intensidade da sua linguagem de perigo, de aviso, de esperança. O que significava a sua busca e identificação em noites difíceis, entre ondas tempestuosas, em arribadas calmas, com os binóculos colados à cara, tentando distinguir a cintilação de um farol ou de uma bóia entre milhares de odiosas, estúpidas, absurdas luzes acesas em terra. Existiam luzes amigas e luzes assassinas, e até luzes vinculadas ao remorso. Como daquela vez em que Coy, segundo-oficial a bordo do petroleiro Palestine, na rota de Singapura para o Pérsico, julgou ver às três da manhã dois foguetes de sinalização vermelhos, lançados não muito longe. Apesar de não ter a certeza absoluta de que fossem sinais de socorro, tinha acordado o capitão. Este subiu à ponte meio vestido, sonolento, para dar uma vista de olhos. Mas não se viram mais foguetes e o capitão, um basco de Guipúzcoa seco e eficiente chamado Etxegárate, não achou oportuno desviar-se da rota, já tinham perdido, disse, demasiado tempo, deixando para trás o farol Raffles e o estreito de Malaca com o seu tráfego diabólico. Naquela noite, Coy passou o resto do quarto de serviço atento ao canal dezasseis da rádio, a ver se captava a chamada de um barco em apuros. Não aconteceu nada, mas nunca conseguiu esquecer-se dos dois foguetes vermelhos, talvez a provisão de emergência que um marinheiro angustiado disparava na escuridão, como uma última esperança.
— Conta-me — disse Tânger — como foi aquela noite a bordo do Dei Gloria.
— Achei que já o sabias de sobra.
— Há coisas que eu não posso saber.
O tom da sua voz não tinha nada a ver com o de outras vezes. Para sua surpresa verificou que soava muito próximo, quase doce. Isso fê-lo remexer-se pouco à vontade no banco de teca e, ao princípio, não soube o que responder. Ela esperava, pacientemente.
— Bom — acabou ele por dizer —, se o vento fosse o mesmo que o nosso neste momento, quase de popa arrasada, o mais lógico é que o capitão...
— O capitão Elezcano — lembrou ela.
— Sim... é isso... Que o capitão Elezcano tenha mandado arriar as velas da proa e as velas de estai, se as levava. Certamente deixaria também sem velas o mastro grande, para que a grande vela carangueja não forçasse o leme, nem tapasse o vento ao velacho e ao traquete, ou talvez se tenha limitado a tirar a carangueja, deixando desfraldada a gávea. Também podia ter largado as varredeiras, embora duvide que o fizesse de noite... O mais certo é que, conhecendo o seu barco, o tenha posto com capacidade de fugir o mais possível, sem que um excesso de pano lhe partisse um mastro.
O vento refrescava um pouco, sempre pela popa, levantando uma pequena ondulação. Deu uma olhadela ao anemómetro e depois observou a enorme sombra da vela. Colocou a manivela no alvéolo do molinete de estibordo, caçou um pouco a escota e o Carpanta escorou alguns graus, ganhando meio nó.
— Segundo me contaste — prosseguiu depois de pôr a manivela no sítio e colher em aduchas o chicote da escota —, o vento devia ser um pouco mais forte do que o que temos agora. Temos dezasseis nós de vento real, o que é força quatro na escala de Beaufort... Eles possivelmente teriam entre vinte e vinte e tal nós, o que significa força cinco a seis. Algo para os fazer correr, evidentemente. Iriam mais rapidamente do que nós, ligeiramente amurados a estibordo, com o vento chegando-lhe de igual forma, muito longo, desde a popa.
— O que faziam os homens ?
— Dormiriam pouco, em especial os teus dois frades. Com certeza estariam todos atentos ao perseguidor, que mal conseguiriam distinguir de noite. Se a essa hora houvesse lua, talvez, de vez em quando, avistassem a sombra da sua vela à popa... Um e outro iriam sem luzes, para não revelar a sua posição. O pessoal de quarto estaria agrupado no pé dos mastros, dormitando um pouco ou olhando preocupados pela borda, à espera das ordens para subirem novamente para manobrar o pano... Os restantes, ao pé dos canhões, prevenidos, caso o corsário lhes caísse em cima de repente. O capitão no tombadilho todo o tempo, atento atrás ao ranger da mastreação e ao embate das velas contra os mastros lá em cima. Um timoneiro ao leme, mantendo o rumo... Sem dúvida, nessa noite dirigia o melhor timoneiro.
— E o ajudante de piloto?
— Perto do capitão e do piloto, atento às suas ordens. Anotando no livro de bordo as ocorrências, as horas, as manobras... Era um rapaz novo, não é verdade?
— Quinze anos.
Reparou numa nota de comiseração na voz de Tânger. Quase uma criança, queria dizer. Pelo menos, pensou, tinha vivido para contar.
— Naquele tempo, embarcavam desde os dez ou doze anos para aprender o ofício... Suponho que estaria excitado com a aventura. Nessa idade não nos assustamos facilmente. E aquele rapaz já era veterano. Pelo menos, atravessara o Atlântico uma vez em ambas as direcções.
— O seu relato foi bastante preciso. Era um rapazinho esperto... Graças a ele podemos reconstituir aproximadamente o que se passou. E graças a ti.
Coy fez uma careta.
— Eu só posso imaginar como terá acontecido o que tu me contas.
A luz avermelhada que saía pela escotilha continuava a iluminar o rosto de Tânger. Ela ouvia com avidez as explicações de Coy, com uma atenção que este nunca a vira dedicar-lhe em terra.
— E o corsário? — perguntou ela.
Coy tentou evocar a situação a bordo do chaveco. Caçadores profissionais em plena faina.
— Com este rumo e com este vento — aventurou —, talvez tivesse a vantagem da sua grande vela latina no traquete. Era um barco desenhado para navegar no Mediterrâneo, adaptando-se às mudanças de vento e à pouca força com que este soprava... Naquela noite, essa vela à proa fê-lo sem dúvida ir muito depressa. O seu aparelhamento de polaca permitir-lhe-ia, além do mais, levar alguma gávea desfraldada e talvez o joanete do mastro grande. Creio que levaria um rumo que o situasse pouco a pouco entre o Dei Gloria e a costa, para cortar ao bergantim a possibilidade de se refugiar em Águilas, quando o vento rondou ao amanhecer.
— Deve ter sido angustiante.
— Claro que sim.
Olhou para a linha um pouco mais sombria da costa, atrás da qual se escondia já a luz do farol de Gata. Pelo bordo, uma ponta de terra sombria começava a revelar a enseada luminosa de San José. Com essas duas referências fez alguns alinhamentos mentais, situando-se sobre uma carta imaginária. Pensou na tripulação do bergantim subindo às escuras aos mastros, ferrando ou largando a vela de acordo com o vento e as necessidades da manobra, a lona áspera nos dedos entumecidos, o estômago apoiado nas vergas, os pés oscilantes no vazio com o único apoio dos guarda-mancebos.
— Julgo que terá acontecido mais ou menos assim — concluiu. — E a esperança do capitão Elezcano de deixar o chaveco para trás durou toda a noite. Talvez tenha tentado alguma manobra evasiva, como mudar de rumo e tentar despistá-lo na escuridão, mas aquele tal Misián devia sabê-las todas... Ao nascer o dia, os tripulantes do Dei Gloria deviam ter ficado destroçados quando viram o Cbergui ainda ali, entre eles e a terra, diminuindo a distância... Talvez nessa altura, enquanto o piloto se encarregava de calcular a posição, o capitão do bergantim tenha tomado a decisão mais desesperada: largar mais pano, desfraldando joanetes. Então partiu-se o mastaréu e o corsário caiu-lhes em cima.
E falando em cair em cima, observou Coy, a luz à proa que a genoa escondia de vez em quando parecia estar mais perto, na mesma posição que antes. De modo que agarrou nos binóculos Steiner e andou pelo lado de barlavento, agarrando-se aos ovéns, até à balaustrada da proa, junto à amarra mordida pelo gato de escape. A luz tinha uma forma estranha, demasiado forte para um simples pesqueiro, mas não conseguia identificá-la com uma forma definida. Se fosse um barco navegando ao rumo inverso, talvez um navio mercante pela quantidade e pelo tamanho das suas luzes, deveria avistar a luz vermelha de bombordo ou a verde de estibordo, ou as duas, no caso de o outro ter a proa apontada para eles, ou seja roda a roda. Mas não conseguia ver nada disso. E, no entanto, decidiu, inquieto, parecia demasiado perto.
Navegar de noite era uma merda do caraças, disse para consigo aborrecido, regressando ao poço. Tânger olhava para ele interrogativamente.
— Põe o colete salva-vidas — disse ele.
Alguma coisa não estava bem e o seu instinto de marinheiro começava a tocar para o combate. Desceu à casa de pilotagem, pôs a funcionar o radar que estava em espera e no ecrã verde apareceu um eco negro. Mediu a distância e marcação, verificando que estava a duas milhas e que vinha directamente na direcção deles. Um eco grande e ameaçador.
— Piloto! — chamou.
Não sabia que diacho era aquilo, mas dentro de pouco tempo iam tê-lo em cima. Enquanto subia a escada da escotilha fez cálculos rápidos. Nas imediações do cabo de Gata, o dispositivo de separação do tráfego ordenava aos navios mercantes em rota para sul a manterem-se a cinco milhas da costa. O Carpanta navegava perto desse limite, de modo que podia tratar-se de um navio navegando mais junto a terra do que o habitual. A sua velocidade seria de uns quinze nós. Unidos aos cinco do Carpanta, isso fazia vinte milhas percorridas em sessenta minutos. Duas milhas em seis: era esse o tempo de que dispunham para um ou outro manobrarem, antes da colisão. Seis minutos. Talvez menos.
— O que se passa? — perguntou Tânger.
— Problemas.
Comprovou que ela tinha vestido o colete salva-vidas auto-insuflável, provido de uma luz estroboscópica que se acendia em contacto com a água. Começou a vestir o seu, agarrou na lanterna e voltou para a proa, iluminado ao passar pela luz vermelha de bombordo situada nos ovéns. As outras luzes, ameaçadoras, estavam cada vez mais próximas, sem alterar o rumo. Acendeu a lanterna, fazendo sinais intermitentes na direcção delas e depois repetiu a mesma coisa, iluminando a grande vela desfraldada do Carpanta. Qualquer marinheiro na ponte de um navio mercante devia ver aquilo. Iluminou um instante a esfera do relógio. Meia-noite menos cinco. Aquela era a pior hora do mundo. A bordo do barco que se aproximava deviam estar prestes a mudar o pessoal de quarto. Certamente, confiado no radar, o oficial estava sentado na mesa de cartas, escrevendo as ocorrências no diário náutico antes de ser substituído, e o responsável pelo quarto seguinte ainda não estava na ponte. Talvez houvesse um sonolento timoneiro filipino, ucra-niano ou indiano mandriando em qualquer lado, ou na retrete. Os grandes canalhas.
Regressou apressadamente ao poço. O Piloto já lá estava, perguntando o que se passava. Coy apontou para as luzes à proa.
— Jesus! — murmurou o Piloto.
Tânger observava-os desconcertada, com a grossa faixa vermelha do colete salva-vidas ajustada sobre o casacão.
— É um barco?
— É um filho da puta e vem a direito.
Ela tinha o mosquetão do arnês de segurança na mão e olhava para um e para outro, como se não soubesse o que fazer. Coy achou-a insolitamente indefesa.
— Não te prendas a nada — aconselhou. — Por causa das coisas...
Não era bom estar amarrado a um barco que podia ser partido em dois. Voltou a meter-se pela escotilha e colou-se ao ecrã do radar. Navegavam à vela e teoricamente tinham prioridade de passagem, mas isso e nada era a mesma coisa. Por outro lado, estavam já demasiado perto para manobrarem, afastando-se da rota do outro. E do que não havia dúvidas era de que se tratava de um barco grande. Demasiado grande. Amaldiçoava-se pelo descuido, por não ter previsto antes o perigo. Continuava sem ver luzes vermelhas ou verdes e, no entanto, o navio mercante estava ali, em linha recta na direcção deles, a uma escassa milha. Sentiu estremecer o motor do Carpanta ao iniciar a marcha. O Piloto acabara de ligá-lo. Veio novamente cá fora.
— Não nos vê — disse.
E, no entanto, tinham as suas luzes de navegação acesas, tinham feito sinais luminosos e o Carpanta arvorava no cimo do mastro um bom repetidor de sinais de radar. Coy acabou de ajustar o colete salva-vidas. Estava furioso e baralhado. Furioso consigo próprio por se ter distraído com as estrelas e com a conversa, e não ter previsto o perigo. Baralhado, porque continuava sem ver as luzes vermelha e verde daquilo que lhes vinha para cima.
— Não podem avisá-lo por rádio? — perguntou Tânger.
— Já não há tempo.
O Piloto tinha desligado o piloto automático e governava manualmente, mas Coy sabia qual era o problema. A manobra evasiva mais lógica era guinar para estibordo, porque, se o navio mercante os avistasse no último momento, também ele deveria guinar para o seu estibordo. O problema era que, navegando tão perto da costa, o estibordo deste podia levá-lo para muito perto de terra e era possível que, em vista disso, o oficial da ponte fizesse a manobra contrária, procurando o seu bombordo e o mar alto. LPPA: Lei do Pior que Pode Acontecer. Assim, ao querer afastar-se da rota do outro, o Carpanta acabaria exactamente a meio desta.
Tinham de se fazer ver. Coy agarrou num dos foguetes de sinalização brancos que estavam no poço e voltou para a proa. As luzes pareciam um arraial, luzes por toda a parte, uma claridade que devia estar já a menos de meia milha. Do mar chegava agora um rumor surdo, constante e sinistro: o ruído das máquinas do navio mercante. Agarrou-se à balaustrada da proa e deu uma última olhadela, tentando compreender, ao menos, o que estava a acontecer, antes do outro lhe passar por cima. E então, a apenas duzentas jardas de distância, recortada como um fantasma sombrio no esplendor da sua própria luz, conseguiu distinguir uma massa negra, alta e terrível: a proa do navio mercante. Agora, as suas luzes permitiam distinguir numerosos contentores empilhados na coberta. E de súbito, finalmente, Coy compreendeu o que tinha acontecido. De longe, as luzes vermelha e verde tinham ficado escondidas pelas outras, mais fortes. De perto, da posição mais baixa do veleiro, era a própria proa e o casco largo do navio mercante que impedia vê-las.
Tinha menos de um minuto. Segurando-se com os joelhos contra a balaustrada da proa, pondo o corpo para fora do estai da genoa, tirou a tampa superior do foguete, fez girar a base, afastou-o bem do corpo, estendendo o braço o mais a sotavento que pôde, e bateu com força no disparador usando a palma da outra mão. Desde que não esteja caducado, pensou. Então ouviu-se um sopro forte, uma fumarada saltou do foguete e uma claridade ofuscante iluminou Coy, a vela e uma boa porção de mar em volta do Car-panta. Agarrado ao estai e com a outra mão erguida, encegueirado pelo brilho intenso, viu como a proa do navio mercante ainda mantinha o rumo alguns instantes e depois começava a virar a estibordo, a menos de cem metros. E a luz já agonizante do foguete avisou-o da enorme onda do barco, uma crista branca que se lançava sobre o veleiro. Atirou o foguete ao mar, agarrando-se com as duas mãos, enquanto o Piloto metia toda a roda do leme do Car-panta para estibordo. Agora, o costado preto, iluminado em cima como numa festa, passava muito perto, entre o estrépito das máquinas, e o veleiro, atingido pela onda, bailava enlouquecido. Então a enorme genoa, apanhada pelo vento do outro lado, ficou de repente totalmente exposta ao vento, a vela mareada no bordo oposto atingiu Coy e este viu-se projectado por cima da balaustrada da proa, mergulhando no mar.
Estava fria. Estava demasiado fria, pensou aturdido, enquanto a água negra lhe cobria a cabeça. Sentiu as turbulências da hélice do veleiro quando quando o casco passou junto dele, afastando-se, e depois outras maiores, que faziam borbulhar em seu redor a esfera escura e líquida onde onde se agitava: as grandes hélices do navio mercante.
A água atroava com o ruído das máquinas, e nesse instante compreendeu que ia afogar-se irremediavelmente, porque a turbulência puxava para baixo as suas calças e o seu colete e, de um momento para outro, teria de abrir a boca para respirar, para encher os pulmões de ar, e o que ia lá entrar não era ar, muito pelo contrário, era água salgada criminosa e abundante. Pela sua cabeça não passou toda a sua vida em imagens rápidas, mas uma fúria cega por acabar daquela forma absurda, e o desejo de nadar para cima, de sobreviver a qualquer custo. O problema era a turbulência o embrulhar na maldita esfera negra, e em cima e em baixo serem conceitos demasiado relativos, mesmo supondo que ele estivesse em condições de nadar em direcção a algum sítio. A água começou a entrar-lhe pelo nariz, com uma sensação incómoda e bastante aguda, e ele disse para consigo: já está, estou a afogar-me. Já estou feito. De modo que abriu a boca para blasfemar com o último sorvo e, para sua surpresa, encontrou ar limpo, estrelas no céu e a luz estroboscópica do colete salva-vidas auto-insuflável lampejando-lhe junto da orelha, com clarões brancos que lhe cegavam o olho direito. E com o olho esquerdo, menos ofuscado que o outro, viu a claridade do navio mercante que se afastava e, no outro lado, a sessenta braças de distância, com a luz verde de estibordo aparecendo e desaparecendo atrás da enorme sombra da genoa que ondulava ao vento, a silhueta escura do Carpanta.
Tentou nadar na direcção dele, mas o colete salva-vidas entorpecia os seus movimentos. Sabia de sobra que um barco pode passar cem vezes junto de um homem na água, de noite, e não o ver. Procurou o apito de emergência que devia estar ao pé da luz estroboscópica, mas não estava aí. E gritar àquela distância era inútil. A ondulação era incómoda, com vagas que o faziam subir e descer, tapando-lhe a vista do veleiro. Também o escondiam a ele, pensou desolado. Depois pôs-se a nadar devagar, às braçadas, evitando cansar-se demasiado, com o objectivo de encurtar a distância. Calçava sapatilhas desportivas que o tolhiam pouco, de modo que decidiu mantê-las calçadas. Não sabia quanto tempo ia passar na água e serviriam para protegê-lo um pouco mais. O Mediterrâneo não era um mar de baixas temperaturas e, naquela época do ano, de noite, um náufrago vestido e de boa saúde podia manter-se vivo várias horas.
Continuava a ver as luzes do Carpanta, onde pareciam estar a recolher a genoa. Pela sua posição relativamente a ele e ao navio mercante, Coy compreendeu que, mal o vira cair à água, o Piloto tinha atravessado as velas, parando, e agora preparava-se a fim de voltar para trás a fim de tentar aproximar-se do ponto onde caíra. Sem dúvida, ele e Tânger estavam cada um do seu lado do veleiro, procurando-o entre o movimento do mar. Talvez tivessem deitado à água o salva-vidas de emergência com a bóia luminosa amarrada à extremidade de uma espia, dirigindo-se agora na sua direcção para ver se ele tinha conseguido encontrá-la. Quanto à sua própria luz, a do colete, certamente a ondulação continuava a tapá-la.
A luz verde de estibordo passou diante dele, perto, e Coy gritou, agitando inutilmente o braço. O gesto fê-lo mergulhar no meio de uma crista e, quando veio com a cabeça à tona, soprando a água salgada que lhe ardia no nariz, nos olhos e na boca, a luz verde passara para a branca de popa: o veleiro dava-lhe a popa, afastando-se.
Tudo isto é demasiado absurdo, pensou. Começava a ter frio, e aquela luz que cintilava no seu ombro parecia invisível para todos, menos para ele. O colete insuflado à volta do pescoço mantinha-lhe a maior parte do tempo a cabeça fora de água. Agora não via a luz do Carpanta, só o brilho do navio mercante, muito ao longe. E existe, disse para consigo, a possibilidade de não me encontrarem. Existe a possibilidade de esta maldita luz gastar as pilhas e apagar-se, e eu ficar aqui às escuras. LAV: Lei de Apaga e Vamos. Uma vez, jogando às cartas, um velho maquinista disse-lhe: «Há sempre um tonto que perde. E se olhares em volta e não vires nenhum, é porque o tonto és tu.» Olhou à sua volta, o mar escuro que chapinhava contra a gola insuflada do colete salva-vidas. Não viu ninguém. Às vezes há alguém que morre, acrescentou no seu íntimo. E se não vires mais ninguém, quem morre podes ser tu. Observou os pontos das estrelas lá no alto. Podia estabelecer a direcção da costa com a sua ajuda, mas não servia de nada: estava demasiado longe para alcançá-la a nado. Se o Piloto, que devia ter anotado a posição da sua queda no mar, lançasse via rádio um may-day de homem ao mar, a busca efectiva só começaria ao amanhecer. E nessa altura ele já podia ter cinco a seis horas de molho, com todas as rifas no bolso para apanhar uma perigosa hipotermia. Não havia nada que pudesse fazer, excepto poupar forças e fazer que a perda de calor se verificasse o mais devagar possível. Posição HELP, lembrou-se. Heat Escape Lessening Posture, diziam os manuais.
Ou uma coisa do género. De modo que tentou adoptar uma postura fetal, colocando as coxas dobradas junto ao ventre com os braços cruzados em cima do peito. Isto é ridículo, pensou. Linda postura, na minha idade. Mas enquanto a luz estroboscópica continuasse a cintilar, havia esperança.
Luzes. À deriva, agitado pela ondulação, com os olhos fechados e mexendo-se apenas de vez em quando para conservar o calor e, ao mesmo tempo, economizar energias, com os lampejos brancos por cima do ombro que o cegavam intermitentemente, Coy continuava a pensar em todo o tipo de luzes, até à obsessão. Luzes amigas e luzes inimigas, de popa, de atracação, de bombordo e estibordo, lanternas verdes, azuis, brancas, bóias, estrelas. Diferenças entre a vida e a morte. Uma nova crista de uma onda fê-lo girar sobre si próprio, como uma bóia na água, submergindo-lhe novamente a cabeça. Emergiu esbracejando, a pestanejar para expulsar o sal que lhe abrasava os olhos. Outra crista fê-lo girar novamente e, nessa altura, ali mesmo, a menos de dez metros, viu duas luzes: uma vermelha e outra branca. A vermelha era a de bombordo do Carpanta e a branca era o foco da lanterna com que Tânger, na proa, o mantinha iluminado, enquanto o Piloto manobrava devagar para se colocar a barlavento.
Deitado no beliche do seu camarote, Coy ouvia o rumor da agua no casco. O Carpanta navegava novamente para nordeste, com vento favorável. E o náufrago que já não era náufrago tinha adormecido com o balanço, debaixo do cálido aconchego dos cobertores e do saco-cama que o cobriam. Tinham-no içado a bordo pela popa, depois de lhe passarem o laço de um cabo sob os ombros, esgotado e desajeitado com o colete e com as roupas molhadas e com a luz que continuou a piscar no seu ombro até, já na coberta, ele próprio a ter arrancado do colete e atirado ao mar. As pernas fraquejaram-lhe mal pisou o poço. Pusera-se a tiritar violentamente e, entre o Piloto e Tânger, desceram-no até ao camarote, depois de o terem coberto com um cobertor. Aí, aturdido, dócil como um recém-nascido sem vontade e sem forças, tinha-se deixado despir e secar com toalhas, embora o Piloto tentasse não esfregar demasiado, a fim de impedir que o frio que lhe entorpecia braços e pernas avançasse pelos vasos sanguíneos em direcção ao coração e à cabeça. Enquanto o despojavam da última peça de roupa, deitado de barriga para cima no beliche como na neblina de uma estranha dormência, tinha sentido o toque áspero das mãos do Piloto e também o tacto das de Tânger sobre a sua pele nua. Sentiu os dedos dela tomando-lhe primeiro a pulsação, que latejava debilmente, com lentidão. Depois, segurando-lhe no tronco enquanto o Piloto lhe tirava a camisola, nos pés para lhe tirar as meias e, finalmente, na sua cintura e coxas quando lhe tiraram as cuecas empapadas. Nesse momento, a palma da mão dela apoiara-se por um instante na anca de Coy, no início da coxa, ficando ali, leve e cálida, alguns segundos. Depois fecharam o saco-cama empilhando cobertores em cima, apagaram a luz e deixaram-no sozinho.
Vagueou através da penumbra esverdeada que o chamava lá de baixo e fê-lo em quartos de serviço intermináveis de nevoeiros, neblinas e ecos no radar. Marcava com lápis de cera rumos rectilíneos no indicador panorâmico de radar; enquanto na coberta havia cavalos comendo contentores de madeira que diziam conter cavalos, e capitães silenciosos percorriam a ponte para cima e para baixo sem lhe dirigirem a palavra. A água cinzenta e tranquila parecia chumbo ondulado. Chovia sobre o mar, os portos, as gruas e os cargueiros. Sentados nos cabeços de amarração, homens e mulheres imóveis, empapados pelo aguaceiro, permaneciam absortos em sonhos oceânicos. E lá em baixo, junto de um sino de bronze silencioso, no centro de uma esfera azul, havia cetáceos dormindo aprazivelmente com uma prega em forma de sorriso na boca, de cabeça para baixo e cauda na vertical, suspensos sem se afundarem no sono leve das baleias.
O Carpanta balanceou um pouco, acentuando o seu abatimento. Coy entreabriu as pálpebras na escuridão do camarote, aconchegado naquele calor reconfortante que devolvia pouco a pouco a vida ao seu corpo entumecido, encaixado pelo abatimento entre o beliche e o casco. Estava ali, a salvo, e tinha conseguido escapar às fauces do mar, tão impiedoso nos seus caprichos como imprevisível na sua clemência.
Estava a bordo de um bom barco governado por mãos amigas e podia dormir o que quisesse sem se preocupar com nada, porque outros olhos e outras mãos velavam o seu sono, guiando-o para além do fantasma do barco perdido que aguardava nas trevas onde estivera prestes a mergulhar para sempre. As mãos de mulher que o tocaram ao tirar-lhe a roupa tinham voltado mais tarde, para o destapar um pouco antes de postar-se à sua frente e tomar a pulsação. E agora, a lembrança daquele toque, da palma da mão imóvel na primeira vez sobre a sua anca nua, fê-lo ter uma lenta, cálida erecção, ao abrigo das coxas que recuperavam o calor. Isso fê-lo sorrir para consigo, imóvel e sonolento, quase com surpresa. Era bom estar vivo. Depois adormeceu novamente, franzindo o sobrolho, porque o mundo já não era imenso e o mar encolhia-se. Sonhou que sentia saudades desesperadas de mares proibidos e costas bárbaras, ilhas onde nunca chegavam ordens de captura, nem sacos de plástico, nem latas vazias. E vagueou de noite por portos sem barcos, entre mulheres acompanhadas por outros homens. Mulheres que olhavam para ele por não serem felizes, como se quisessem contagiar-lhe a sua desgraça.
Chorou em silêncio, com os olhos fechados. Para se consolar, apoiava a cabeça no costado de madeira do barco, sentindo o rumor do mar no outro lado das tábuas de três centímetros de grossura que o separavam da Eternidade.
O MAR DOS SARGAÇOS
Quando subiu à coberta, o barco estava imóvel no amanhecer, sem um sopro de brisa, com a abrupta linha da costa muito próxima e o céu sem nuvens passando, a oeste, do cinzento-escuro ao azul, vermelha a pedra, vermelho o mar a levante, vermelhos os raios que o Sol dirigia horizontalmente para o mastro do Carpanta sobre a superfície da água parada.
— Foi aqui — disse Tânger.
Tinha uma carta náutica aberta em cima dos joelhos e, ao seu lado, o Piloto fumava um cigarro, com uma chávena de café na mão. Coy foi até à coberta da popa. Vestira umas calças secas e uma camisa de manga curta, e o cabelo despenteado e os lábios tinham restos de sal do mergulho nocturno. Olhou em volta, entre as gaivotas que planavam grasnando antes de pousarem na água. A costa estava a pouco mais de uma milha para oeste e depois abria-se para cima em forma de enseada. Reconheceu Punta Percheles, Punta Negra, o cabeço e a ilha de Mazarrón à distância. E, ao longe, umas oito milhas a este, a mole escura do cabo Tinoso.
Regressou ao poço. O Piloto tinha descido para lhe trazer uma chávena de café quente, e Coy bebeu-a de um gole, fazendo ma cara ao saborear as últimas gotas da bebida amarga. Tânger apontava na carta a paisagem que tinham diante dos olhos. Conservava a camisola preta vestida e estava descalça. Madeixas louras fugiam-lhe do cabelo, coberto pelo gorro de lã do Piloto.
— É este o sítio — disse — onde o Dei Gloria partiu o mastro e teve de combater.
Coy concordou sem deixar de observar a costa próxima, enquanto ela explicava os pormenores do drama. Tudo o que tinha investigado, os pormenores reunidos aqui e ali em papéis amarelados, em manuscritos, nas antigas cartas náuticas do Urrutia, tomava forma na voz tranquila, tão segura como se ela também tivesse lá estado. Nunca tinha ouvido ninguém tão convicto do que dizia. E ouvindo-a, com os olhos fixos no arco da costa parda que se afastava para nordeste, Coy tentou reconstruir a sua própria versão dos factos: o que acontecera, ou, mais exactamente, o que poderia ter acontecido. Invocava para isso os livros que lera, a sua experiência de marinheiro, os dias e as noites da sua juventude impelida por velas silenciosas através daquele mar a que ela o trouxera de volta. Por isso pôde imaginar facilmente. E quando Tânger interrompia o seu relato e olhava para ele, e os olhos azuis do Piloto também o olhavam, Coy encolhia um pouco os ombros, coçava o nariz e preenchia os buracos da narração. Dava pormenores, aventurava situações, descrevia manobras, situando-as naquele amanhecer de 4 de Fevereiro de 1767, quando o vento virou para norte ao nascer do Sol, pondo o caçador e a presa a navegar à bolina. Nessas circunstâncias, disse, o vento aparente somava-se ao vento real, e o bergantim e o chaveco tinham de limitar-se a sete ou oito nós, com carangueja, vela grande, velas de proa, gáveas, e as vergas bem braceadas a sotavento, no Dei Gloria; latinas de traquete e mezena tensas como lâminas de navalha, no corsário, e este ganhando barlavento melhor que a sua presa. Muito inclinados ambos para estibordo, com a água escorrendo-lhes pelos embornais de sotavento, e os timoneiros atentos à roda do leme, os capitães dependentes do vento e das velas, numa corrida onde o primeiro que cometesse um erro perderia a partida.
Erros. No mar, tal como na esgrima — Coy ouvira-o nalgum lado — tudo se resumia em manter o adversário à distância, prevendo os seus movimentos. A nuvem negra que se desenhava plana e baixa à distância, na zona levemente escura da água encrespada, a espuma quase imperceptível contra a rocha à tona de água, auguravam estocadas mortais que só a vigilância perpétua permitia esquivar. Isso convertia o mar em símile perfeito da vida. A altura de colher os rizes à vela, dizia o sensato princípio marinheiro, era justamente quando nos interrogávamos se não seria a altura certa de colher os rizes à vela. O mar escondia um velho canalha, perigoso e obstinado, cuja aparente camaradagem só esperava pelo momento de desferir uma patada ao menor descuido. Matava facilmente, sem piedade, os descuidados e os estúpidos. E o melhor dos marinheiros podia aspirar, quando muito, a que o tolerasse entre as suas ondas, sem incomodar. A passar despercebido. Porque o mar carecia de sentimentos e, tal como o Deus bíblico, nunca perdoava, excepto por acaso ou por capricho. As palavras caridade, compaixão e muitas outras também ficavam em terra, quando soltavam amarras. E de certa forma, pensava Coy, era justo que assim fosse. O erro, concluiu, acabara por cometê-lo o capitão Elezcano. Ou talvez não tenha havido erro e tenha acontecido que a lei do mar se inclinou naquela ocasião a favor do corsário. Cada vez mais perto do inimigo, que o impedia de pôr-se a salvo ao abrigo dos canhões da torre artilhada de Mazarrón, o bergantim teria caçado os joanetes, apesar do mau estado dos mastaréus. Não era difícil adivinhar o resto: o capitão Elezcano olhando para cima, angustiado, enquanto os marinheiros, balançando-se nos guarda-mancebos, suspensos sobre o mar a estibordo, soltam os envergues das velas superiores e estas se desfraldam com um breve bater da lona nos mastros, esticando ao subir as vergas e ao caçar escotas. E o ajudante de piloto que se aproxima do tombadilho com a latitude e a longitude obtidas pelo piloto, e a ordem distraída de anotá-las no diário náutico dada pelo capitão, que não afasta os olhos de cima. O ajudante de piloto ao seu lado, voltado por sua vez para cima, enquanto mete no bolso o papel com as coordenadas escritas a lápis. E de súbito, craque!, o ranger sinistro da madeira partindo-se, as adriças e a lona caindo a sotavento enredadas pelo vento sobre a gávea do velacho, e o barco dando uma guinada suicida, e o coração na boca de todos os homens a bordo, que nesse instante compreendem que a sua sorte está decidida.
Devia haver marinheiros lá em cima, cortando a enxárcia inútil e atirando os restos do mastaréu e da vela ao mar, enquanto em baixo o capitão Elezcano dava a ordem de abrir fogo. Os portalós dos canhões estariam abertos desde as primeiras horas do dia, carregadas as suas bocas, com os artilheiros preparados. Talvez o capitão tenha decidido cair de improviso para um bordo para apanhar de surpresa o perseguidor próximo, dando-lhe sem dúvida de estibordo, com os homens inclinados atrás dos canhões, esperando que o casco e as velas do chaveco aparecessem diante deles. Combate quase penol a penol, dizia o relatório escrito pelas autoridades da marinha, baseado no testemunho do ajudante de piloto. Isso significava que os barcos estariam muito próximos, prontos os do corsário para a descarga dos canhões e abordagem, quando o Dei Gloria mostrou o seu estibordo com os portalós abertos, atrás dos quais fumegavam as mechas, e atirou uma descarga à queima-roupa, cinco canhões cuspindo balas de quatro libras. Teve de causar estragos. Mas nesse momento, o corsário devia estar guinando também a estibordo, só que as suas velas latinas lhe permitiram continuar no rumo, bolinando, e cortar a esteira do bergantim, atirando-lhe por sua vez uma descarga vingativa, mortífera, que varresse a coberta da popa à proa. Dois canhões longos de seis libras e quatro de quatro libras: quinze a vinte quilos de ferro e metralha partindo cabos, madeiras e carne humana. Depois, enquanto a bordo do corsário os artilheiros gritavam de júbilo, vendo os feridos e moribundos do adversário arrastando-se pelas cobertas escorregadias de sangue, os dois barcos foram-se aproximando cada vez mais, lentamente, até ficarem quase imóveis, um ao pé do outro, disparando com ferocidade.
O capitão Elezcano era um biscainho tenaz. Decidido a não oferecer em vão o pescoço ao machado do verdugo, devia percorrer de cima a baixo a borda do bergantim, animando os seus desesperados artilheiros. Devia haver canhões destruídos, estilhaços, metralha, balas de canhão e de mosquete voando por toda a parte, pedaços de cabos, mastros e velas que caíam de cima. Por essa altura, os dois jesuítas já estariam mortos, ou talvez tenham descido até à câmara para defenderem até ao último instante o cofre das esmeraldas, ou para o atirarem ao mar. As últimas descargas do corsário foram, sem dúvida, devastadoras. O mastro do traquete, com as suas velas caídas como sudários, rangeu antes de se desmoronar na coberta do bergantim, palco de uma carnificina. E talvez o capitão Elezcano já estivesse morto nessa ocasião. O barco estava à deriva, arrasado e sem governo. Talvez, acocorado entre rolos de cabos com um sabre de combate na mão que lhe tremia, o assustado ajudante de piloto de quinze anos esperasse o fim, vendo aproximar-se entre o fumo os mastros do Chergui pronto para a abordagem. Mas via-se um fogo a bordo. Os tiros de canhão dados à queima-roupa pelo bergantim, ou os do próprio chaveco, tinham incendiado algumas das suas velas baixas, que não tiveram tempo de recolher pelo inesperado da manobra. E agora aquela lona ardia, caindo sobre a coberta do navio corsário, talvez perto de uma carga de pólvora, ou da escotilha aberta do paiol de pólvora. Azares do mar. E de repente houve uma labareda e um estampido seco que bateu no agonizante bergantim, derrubando-lhe o segundo mastro, como um punho de ar, e enchendo o céu de fumo preto, de estilhaços e faúlhas, de restos humanos que caíram por toda a arte. Então, levantando-se sobre a borda coberta de sangue, ensurdecido pela explosão e desorbitados os olhos de horror, o ajudante de piloto pôde ver que onde estivera o navio corsário só restavam madeiras fumegantes que crepitavam afundando-se no mar. Nesse momento, o Dei Gloria escorou por sua vez, com a água invadindo as entranhas do seu casco desgarrado, e o ajudante de piloto deu consigo a flutuar entre restos de madeiras e cordames. Estava só, e perto dele flutuava o bote que o capitão Elezcano tinha mandado deitar à água para libertar o convés, minutos antes de dar início ao combate.
— Deve ter acontecido mais ou menos assim — disse Tânger. Estavam os três calados, diante do mar imóvel como a laje de
um túmulo. Lá em baixo, em algum lugar e parcialmente escondidos na areia do fundo, estavam os ossos de quase uma centena de homens mortos, os restos dos barcos e uma fortuna em esmeraldas.
— O mais lógico — prosseguiu ela — é o Chergui ter-se desfeito com a explosão e os seus restos estarem espalhados. O bergantim, no entanto, afundou-se intacto, excepto os mastros partidos. Como a profundidade não é muita, o normal é que assentasse sobre a quilha, ou sobre um bordo.
Coy estudava a carta, calculando distâncias e profundidades. O Sol começava a aquecer atrás de si.
— O fundo é lodo e areia — disse. — E algumas rochas. É possível que esteja tão enterrado que não possamos escavar.
— É possível — Tânger inclinou-se sobre a carta, tão perto que as suas cabeças se roçaram. — Mas isso só o saberemos depois de estarmos lá em baixo. A parte coberta estará melhor que a exposta à ondulação e às correntes. Os teredos já terão feito o seu trabalho roendo a madeira... O que a areia não protegeu, estará desfeito. O ferro, oxidado. Também depende de a água ser mais ou menos fria... Um barco pode permanecer intacto a baixas temperaturas, ou desaparecer em pouco tempo em águas quentes.
— Aqui não são muito frias — insinuou o Piloto. — Excepto alguma corrente.
Mantinha-se interessado mas um pouco à parte, com a sua cara inexpressiva sulcada pelo vento, pelo Sol e pelo salitre. Fazia e desfazia nós mecanicamente, com um pedaço de adriça nos dedos calosos, de unhas tão curtas e partidas como as de Tânger. As suas íris, desbotadas por anos de luz mediterrânica, iam de um para o outro, tranquilas. Um olhar estóico que Coy conhecia bem: a do pescador ou do marinheiro que nada espera, excepto encher razoavelmente as redes e regressar ao porto com o necessário para continuar a viver. Ele não era dos que tinham ilusões. O mar quotidiano diluía as quimeras e, no fundo, a palavra esmeraldas parecia-lhe ser tão indefinida como o sítio onde o arco-íris se apoia no mar.
Tânger tinha tirado o gorro de lã. Agora apoiava inadvertidamente uma mão no ombro de Coy.
— Até termos situado o casco com a ajuda dos planos e sabermos onde se encontra cada parte, não teremos a certeza de nada... O importante é a zona da popa estar acessível. Aí estavam os aposentos do capitão e as esmeraldas.
A sua atitude era cada vez mais distinta da que mantinha em terra firme. Natural e menos arrogante. Coy sentia a suave pressão da mão dela no seu ombro e a proximidade do seu corpo. Cheirava a mar e a pele aquecida pelo Sol, que subia devagar no céu. Agora precisas de mim, pensou. Agora precisas mais de mim, e nota-se.
— Talvez tenham atirado as esmeraldas ao mar — disse.
Ela negava com a cabeça, a sombra encolhendo muito devagar sobre a carta 463A. Depois calou-se um pouco e disse que talvez. Isso era impossível sabê-lo ainda. De qualquer forma, o cofre estava perfeitamente descrito: uma caixa de madeira, ferro e bronze, de vinte polegadas de comprimento. O ferro não resistia bem debaixo de água e estaria convertido numa massa escurecida e irreconhecível. O bronze aguenta melhor, mas a madeira teria desaparecido. Lá dentro, as esmeraldas estariam soldadas umas às outras com aderências. O aspecto seria mais ou menos o de um bloco de pedra escura, um pouco avermelhada, com veios esverdeados do bronze. Teriam de procurá-lo entre os despojos e não seria fácil.
Evidentemente que não. Coy achava dificílimo. Uma agulha num palheiro, como tinha sugerido em Cádis, entre duas gargalhadas e dois cigarros, Lúcio Gamboa. E se os destroços estavam enterrados, seriam necessárias mangueiras extractoras para o lodo e para a areia. Nada discreto.
— De qualquer forma — concluiu Tânger —, primeiro temos de localizá-lo.
— O que se passa com a sonda? — perguntou Coy. O Piloto terminava um nó duplo de calabre.
— Nenhum problema — disse. — Instalam-na esta tarde em Cartagena, e também um repetidor do GPS para a cabina — olhou para Tânger com uma gravidade desconfiada. — Mas será necessário pagar tudo isso...
— Claro — disse ela.
— É a melhor sonda de pesca que consegui encontrar — o Piloto dirigia-se a Coy. — Uma Pathfinder Optic de três faces, como me pediste... O transductor pode instalar-se no espelho de popa sem muito trabalho.
Tânger olhou para ele interrogativamente. Coy explicou que, com aquela sonda, podiam cobrir um leque de 90 graus sob o casco do Carpanta. Usava-se para localizar bancos de peixes, mas também dava uma visão clara do fundo, com o perfil bastante pormenorizado da superfície deste. O importante era que, graças a utilização de diversas cores no ecrã, a Pathfinder diferenciava os fundos de acordo com a sua densidade, dureza e estrutura, detectando qualquer irregularidade. Uma rocha isolada, um objecto submerso, até as mudanças de temperatura, apareciam nitidamente. Até o metal, o ferro ou o bronze dos canhões, se sobressaíssem na areia, ver-se-iam numa cor intensa, mais escura. A sonda de pesca não era tão precisa como os sistemas profissionais que Nino palermo podia utilizar, mas a uma profundidade de vinte a cinquenta metros devia bastar. Dessa forma, navegando devagar até passar a pente fino a área de busca e atribuindo coordenadas a cada objecto submerso que chamasse a atenção, podiam traçar um mapa da zona com os lugares possíveis do naufrágio. Numa segunda fase explorariam cada ponto com o aquaplano: uma tábua rebocada que mantinha um mergulhador à vista do fundo.
— É estranho — disse o Piloto.
Tinha tirado da bitácula o odre de vinho que estava lá pendurado e bebia inclinando a cabeça para trás, de olhos abertos para o céu. Coy sabia no que ele estava a pensar. Com um naufrágio em tão pouco fundo, as redes dos pescadores prender-se-iam aí. Tinha de saber-se. E nesta altura, alguém já teria dado uma vista de olhos lá em baixo, para bisbilhotar. Qualquer mergulhador amador podia fazê-lo.
— Sim. Pergunto a mim próprio por que razão nenhum pescador falou de um naufrágio por aqui. Costumam conhecer estes fundos melhor que o corredor das suas casas.
Tânger mostrou-lhe a carta: A, F, P. As pequenas iniciais estavam disseminadas por toda a parte, junto aos números da sonda.
— Também há rochas, vêem?... E isso pode ter protegido os destroços.
— Protegê-lo dos pescadores, talvez — replicou Coy. — Mas um barco de madeira afundado entre rochas não aguenta muito. Com tão pouco fundo, a ondulação e as correntes destroem o casco. Nenhum se conserva como na tua ilustração de O Tesouro de Rackam, o Terrível.
— Talvez — disse ela.
Contemplava o mar com uma expressão obstinada, e os olhos do Piloto e de Coy encontraram-se. De repente, mais uma vez, tudo aquilo parecia absurdo. Não vamos encontrar nada, dizia a expressão do marinheiro, enquanto passava o odre a Coy. Estou aqui porque sou teu amigo e, além disso, pagas-me, ou é ela quem o faz, o que, no fim de contas, é o mesmo. Mas a ti esta mulher desviou-te a agulha magnética. E o mais engraçado é que nem sequer estás a comê-la.
Estavam em Cartagena. Tinham navegado perto da costa, sob a parede escarpada do cabo Tinoso, e agora o Carpanta entrava no canal do porto, já utilizado por gregos e fenícios. Carta-Hadath: a Nova Cartago das gestas de Aníbal. Reclinado numa cadeira de teca na popa do veleiro, Coy observava a ilha de Escombreras. Aí, sob a abertura da face sul, tinha tirado ânforas romanas na sua juventude. Recipientes para vinhos e azeites, de gargalos elegantes, com pegas alongadas e marcas em latim dos seus fabricantes, algumas ainda seladas como quando se afundaram. Há vinte anos, aquela zona era um imenso campo de resíduos procedentes de naufrágios e, também, diziam, de navegantes que atiravam oferendas ao mar à vista de um templo dedicado a Mercúrio. Coy tinha mergulhado ali muitas vezes, para subir imediatamente, sem exceder nunca a velocidade das suas próprias bolhas de ar, na direcção da silhueta escura do Carpanta que esperava em cima, no tecto polido da superfície, com a linha de água curvada para as profundezas. Uma vez, a primeira que baixou a sessenta metros — sessenta e dois marcava o batímetro no seu pulso — Coy tinha descido lentamente, com pausas para compensar o aumento de pressão nos tímpanos, deixando-se cair no interior daquela esfera esverdeada onde as cores iam desaparecendo até se converterem numa luz fantasmagórica, difusa, e só restarem diversos tons de verde. Tinha perdido de vista a superfície e depois caído, sempre muito devagar, de joelhos sobre o fundo de areia limpa, com o frio das profundezas subindo-lhe pelos músculos e pelo ventre sob o casaco de neopreno. 7,2 atmosferas, pensou, surpreendido com a sua própria audácia. Mas tinha dezoito anos. A sua volta, até perder-se de vista no círculo verde, espalhadas de qualquer maneira sobre a areia lisa, semienterradas nela ou agrupadas em pequenos montículos, via dúzias de ânforas partidas ou intactas, gargalos e bases pontiagudas, barro milenário que ninguém tinha tocado ou exposto à luz em vinte séculos. Bocas alongadas, redondas, largas e estreitas por onde moreias mal-encaradas assomavam as cabeças e nadavam peixes escuros. Embriagado pelo mar sobre a sua pele, fascinado por aquela penumbra e pelo vasto campo de vasos imóveis como golfinhos adormecidos, Coy afastou a máscara do rosto, mantendo o bocal de ar preso entre os dentes, para sentir na cara toda a tenebrosa grandeza que o envolvia. Depois, subitamente alarmado, colocou novamente a máscara, esvaziando a água com ar expelido pelo nariz. Nesse momento, o Piloto, prolongado pelas suas barbatanas de borracha, convertido noutra silhueta verde-escura que descia do cimo da esfera na extremidade de um longo e recto penacho de bolhas de ar, tinha chegado ao pé dele, movendo-se com a lentidão dos homens nas profundezas, apontando com uma expressão severa para o batímetro que tinha no pulso e depois para uma das têmporas com um dedo, perguntando-lhe silenciosamente se tinha perdido o juízo. Subiram juntos, muito devagar, atrás das medusas de ar que os precediam, levando cada um deles uma ânfora nas mãos. E quando já estava quase à superfície, e o Sol começava a filtrar os seus raios pelo esmeril turquesa sobre as suas cabeças, Coy tinha levantado a sua, invertendo-a, e um rasto de areia fina derramou-se do seu interior, brilhante como ouro em pó na contraluz da água, envolvendo-o numa nuvem que parecia um sonho dourado.
Amava aquele mar, que era tão velho, céptico e sábio como as inúmeras mulheres que latejavam na memória genética de Tânger Soto. As suas margens tinham a marca dos séculos, pensou, contemplando a cidade sobre a qual escreveram Virgílio e Cervantes, resguardada no fundo do porto natural entre as altas paredes rochosas que, durante três mil anos, a tornaram quase inexpugnável aos inimigos e aos ventos. Apesar da sua decadência, das fachadas decrépitas e sujas, dos terrenos de casas arruinadas e por reconstruir que às vezes lhe davam o aspecto estranho de uma cidade em guerra, era bonita vista do mar, e pelas suas ruelas estreitas ressoavam ecos de homens que tinham lutado como troianos, pensado como gregos e morrido como romanos. Já podia distinguir-se o antigo castelo sobre uma elevação acima da muralha, no outro lado do quebra-mar que protegia o canal e a entrada para o arsenal. Os velhos fortes abandonados de Santa Ana e Navidad passavam lentamente a bombordo e a estibordo do Carpanta, ainda com um esgar de ameaça nas suas ameias vazias que, como olhos cegos, continuavam a apontar para o mar.
Aqui nasci, pensou Coy. E deste porto acedi aos livros e aos oceanos pela primeira vez. Aqui me atormentou o desafio das coisas remotas e a nostalgia prematura do que não conhecia. Aqui sonhei em remar até à baleia com a faca nos dentes e o arpoador preparado na proa. Aqui pressenti, antes de falar inglês, a existência do que o Mariners Weatber Log chama ESW: Extreme Storm Wave, onda de tempestade extrema. E soube que qualquer homem tem sempre, dê ou não dê com ela, uma ESW esperando-o nalgum lugar. Aqui vi lápides de marinheiros mortos em túmulos vazios, e compreendi que o mundo é um barco em viagem de ida e que essa viagem não tem regresso. Aqui descobri, antes de precisar disso, o substituto da espada de Catão, do veneno de Sócrates. Da pistola e da bala.
Sorria de si próprio, dos seus pensamentos, enquanto olhava para Tânger de pé junto da âncora, segura com uma mão à genoa enrolada no seu estai, e o barco demandava porto, navegando a motor. No poço, o Piloto dirigia à mão por umas águas onde podia perfeitamente navegar às escuras. Uma corveta cinzenta da Armada, fazendo-se ao mar do dique de San Pedro, passava por estibordo, com os jovens marinheiros inclinados sobre a borda para observar a mulher imóvel na proa do veleiro, como uma figura de proa dourada. Chegava até ao Carpanta, trazido pela brisa da terra, o cheiro dos montes próximos: despidos, secos e calcinados pelo Sol, com tomimo, alecrim, palmito e figueira-da-índia entre as suas fragas pardas, barrancos secos onde cresciam figueiras e amendoeiras em terraços protegidos por murinhos de pedra. Apesar do cimento, do vidro, do aço e das escavadoras, da sucessão interminável de luzes bastardas que maculavam as suas margens de costa a costa, todo o Mediterrâneo continuava ali, por pouca atenção que se prestasse ao ténue rumor da memória: azeite e vinho tinto, Islão e Talmude, encruzilhadas, pinheiros, ciprestes, túmulos, igrejas, poentes cár-deos como o sangue, velas brancas ao longe, pedras talhadas pelos homens e pelo tempo, hora singular da tarde em que tudo permanecia imóvel e em silêncio, excepto o canto da cigarra, noites à luz de uma fogueira feita com madeira à deriva no mar, enquanto a Lua subia devagarinho sobre um mar de ilhas sem água. E também espetadas de sardinhas, louro e azeitonas, cascas de melancia flutuando imóveis no suave ondular vespertino da praia, rumor de calhaus na ressaca do amanhecer, barcas pintadas de azul, branco e vermelho, encalhadas em margens com moinhos em ruínas e oliveiras cinzentas, e uvas que amadureciam nas latadas. E à sua sombra, perdidos os olhos no azul intenso que se estendia para levante, homens imóveis olhando para o mar, heróis queimados e barbudos que sabiam de naufrágios em enseadas designadas por deuses cruéis, ocultos sob a aparência de mutiladas estátuas que dormiam, com os olhos abertos, um silêncio de séculos.
— O que é isso? — perguntou Tânger.
Tinha vindo à popa e apontava para bombordo, atrás do dique de Navidad, junto dos grandes túneis gémeos de betão destinados, noutros tempos, a albergar submarinos. Ali, a praia preta do Espal-mador estava coberta pelos restos dos navios desmantelados.
— É o Cemitério dos Barcos Sem Nome.
O Piloto voltara-se para Coy. Tinha um cigarro meio consumido na boca e olhava para ele com olhos onde afloravam as lembranças, à espreita de algum sentimento que evitou exteriorizar. Na margem, meio submersos na água os seus cascos oxidados, entre esqueletos, pontes, cobertas e chaminés, elanguesciam barcos abertos como grandes cetáceos desventrados, mostrando cavernas metálicas e divisórias despidas, pranchas de aço cortadas e amontoadas na praia ao pé das gruas. Era ali que os navios condenados à morte, desprovidos já de nome, matrícula e bandeira, se submetiam à última viagem, antes de acabarem sob o maçarico. Os novos planos urbanísticos da cidade condenavam aquele lugar a desaparecer, mas demoraria meses a concluir os últimos desmantelamentos e a limpar o lugar dos restos disseminados por toda a parte. Coy viu um velho bulkcarrier de que só restava a popa, parcialmente afundada no mar e cujos dois terços anteriores já tinham desaparecido entre um caos de ferros na praia. Havia peças desmontadas por toda a parte, uma dúzia de grandes âncoras gotejando ferrugem na areia escura, três chaminés absurdamente conservadas, umas ao pé das outras, visíveis ainda os restos de pintura com a bandeira dos seus armadores, e o quase centenário esqueleto de um paquete russo ou polaco, o Korzeniowski, que estava um pouco mais longe, junto da torre de vigia, desde que Coy se lembrava: uma ponte de ferro oxidado com restos de pintura branca, tábuas apodrecidas e a cabina quase intacta, a bordo do qual sonhava, rapaz ainda, em sentir o movimento de um navio debaixo dos seus pés, e o mar aberto diante dos olhos.
Aquele tinha sido durante muitos anos o seu local favorito propenso aos sonhos oceânicos, quando passeava a caminho do quebra-mar com uma cana de pesca ou a espingarda de elástico e as barbatanas, ou quando mais tarde ajudava o Piloto a limpar o casco do Carpanta encostado ao Espalmador, em pouca água. Aí, no interminável entardecer do porto, quando o Sol se ia escondendo atrás dos esqueletos inertes dos velhos barcos, o Piloto e ele tinham conversado com palavras ou silêncios sobre a crença, partilhada por ambos, de que os barcos e os homens deveriam terminar sempre dignamente, no mar, em vez de se verem desmantelados em terra. E mais tarde, muito longe dali, na ilha Decepción, a sul de Horn e do estreito de Drake, Coy tinha sentido idêntico estado de espírito quando desembarcou na areia de uma praia que era negra como aquela, entre milhares de ossos de baleia que a embranqueciam até perder de vista. O espermacete desses animais convertera-se em óleo queimado em candeeiros muitíssimo antes de ele ter nascido, mas os ossos continuavam ali como um embuste, naquele estranho mar dos Sargaços antárctico. Havia entre os restos um velhíssimo ferro de arpão oxidado, e Coy viu-se de pé diante dele, olhando-o com repugnância. No fim de contas, ilha Decepção era um bom nome para aquele sítio. Baleias desfeitas, barcos desfeitos. Homens desfeitos. O arpão cravava-se na mesma carne, porque se tratava sempre da mesma história.
Atracaram no porto de recreio e andaram pelo cais, sentindo, como acontecia sempre que pisavam terra, que esta oscilava suavemente sob os seus pés. No cais comercial, no outro lado do clube náutico, havia um cargueiro de mastros: o Felix von Luckner, da Zeeland Ship, que Coy conhecia por fazer habitualmente a rota Cartagena-Antuérpia. A sua mera visão evocava longas esperas sob a chuva, o vento e a luz amarelada do Inverno, as silhuetas fantasmagóricas das gruas sobre a terra plana, a comporta e as manobras intermináveis no Escalda. E, apesar de ter conhecido sítios do mundo muito mais confortáveis, Coy não conseguiu evitar uma pontada de nostalgia.
Foram os três à esplanada do bar Valência, junto ao azulejo centenário com os versos que Miguel de Cervantes tinha dedicado à cidade na sua Viaje del Parnaso, ao pé da muralha construída por Carlos III, quando o Dei Gloria estava apenas há três anos jazendo no fundo do mar, e beberam grandes canecas de cerveja fria, de frente para o relógio da Câmara, das palmeiras agitadas pelo levante que aumentava de intensidade ao meio-dia, e do pináculo do monumento aos marinheiros mortos em Cuba e Cavite, com dúzias de nomes gravados em placas de mármore juntamente com os de barcos que estavam, tal como eles, há cem anos singrando o silêncio das profundezas. Depois o Piloto foi encarregar-se da sonda e Tânger acompanhou Coy pelas ruas estreitas e desertas da cidade velha, sob varandas com sardinheiras e vasos de manjericão e os mirantes envidraçados onde, às vezes, se podia ainda ver uma mulher sentada, com um bordado nas mãos, que os via passar com curiosidade. Agora a maior parte daquelas varandas estava fechada e os mirantes vazios, com vidros desprovidos de cortinas, em casas de janelas condenadas e portas onde se acumulava a sujidade. E Coy procurava nelas, inutilmente, uma cara conhecida, uma música familiar atrás das persianas verdes, um miúdo a brincar na esquina ou na praça mais próxima, no qual reconhecesse alguém, ou se reconhecesse.
— Fui feliz aqui — disse ele de repente.
Estavam parados numa rua escura, diante do terreno de uma casa arruinada entre outras duas que ainda se mantinham de pé. Os pedaços de parede despida conservavam tiras de papel, pregos enferrujados de onde não pendiam quaisquer quadros, marcas de móveis, fios eléctricos desfiados. Percorreu-as com o olhar, tentando recuperar o que contiveram noutro tempo: estantes com livros, móveis de nogueira e caoba, corredores de azulejos, quartos com clarabóias ovais no cimo, retratos amarelados, rodeados por uma aura esbranquiçada que intensificava o seu ar fantasmagórico. Já não existia a relojoaria do rés-do-chão, nem as lojas de carvão e a mercearia no fim da rua, nem a taberna com uma fonte de mármore ao centro, anúncios de Anis del Mono e cartazes tauromáquicos na Parede, que exalava um cheiro a vinho quando se passava à frente da porta, e em cuja montra costas de homens taciturnos, inclinados sobre copos vermelhos, deixavam correr as horas. E o menino de calças curtas que andava por aquela mesma rua com uma garrafa de sifão em cada mão, ou colava o nariz, maravilhado, nas montras cheias de brinquedos iluminadas para o Natal, há muito que o mar o tinha levado.
— Porque partiste? — perguntou Tânger.
A sua voz soava estranhamente doce. Coy continuava a contemplar as paredes da casa inexistente. Fez um gesto apontando para trás, em direcção ao porto do outro lado da cidade.
— Havia um caminho ali — voltou-se devagar. — Quis fazer o que outros sonham.
Ela inclinou a cabeça, em sinal de concordância. Observava-o daquela maneira singular que tinha às vezes, como se estivesse a vê-lo pela primeira vez.
— Andaste longe — sussurrou.
Parecia invejá-lo, ao dizer aquilo. Coy encolheu os ombros com um sorriso de tempo e de naufrágios. Uma careta deliberada, consciente de si própria.
— Há algumas linhas — disse, contemplando novamente as paredes da casa que já lá não estava. — Uma página que li ali em cima.
Recordou em voz alta, sem dificuldade:
«Vem aqui, tu, o do coração partido. Aqui há outra vida sem o intermédio da morte. Aqui podem conhecer-se, sem morrer, maravilhas sobrenaturais. Eu provoco mais esquecimento que a Parca. Vem, levanta a tua lápide sepulcral no cemitério e casa-te comigo.» Ouvindo esta voz a este e a oeste, da madrugada ao anoitecer, a alma do ferreiro respondeu: "Sim, para aí vou." E assim, Perth foi para a caça da baleia...»
Encolheu novamente os ombros, quando terminou, e ela continuava a olhar para ele da mesma forma. As íris azul-marinhas estavam fixas na boca dele.
— Foste o que quiseste ser — disse.
A voz dela soava ainda como um sussurro pensativo. Coy ergueu um pouco as palmas das mãos.
— Fui Jim Hawkins, e depois fui Ismael, e durante algum tempo julguei ser Lord Jim... Depois soube que nunca fui nenhum deles. Isso aliviou-me, de certa forma. Como se me livrasse de amigos incomodativos. Ou de testemunhas.
Dirigiu uma última olhadela às paredes despidas. Havia sombras escuras que o cumprimentavam de cima: mulheres enlutadas conversando na luz decrescente da tarde, uma lamparina de óleo diante da imagem de uma virgem, o crepitar aprazível de bilros tecendo uma renda, uma tabaqueira de cabedal preto com iniciais de prata e o cheiro a tabaco de um bigode branco. Gravuras de barcos que navegavam de velas ao vento, entre o ranger do papel das páginas de um livro. Fugi, pensou, para um lugar que já não existia, de um lugar que já não existe. Voltou a sorrir para o vazio:
— Como costuma dizer o Piloto, nunca sonhes com a mão no leme.
Ela permaneceu em silêncio depois de ouvir aquilo, e não disse mais nada. Tinha tirado da carteira o maço com a efígie de Héroe e acendia um cigarro com o maço ainda nas mãos, tão devagar como se aquele bocado de cartolina pintada a consolasse dos seus próprios fantasmas.
Jantaram michirones(1) e ovos estrelados com batatas na Posada de Jamaica, no outro lado do antigo túnel da Calle Canales. O Piloto juntou-se-lhes aí, com as mãos manchadas de óleo e a notícia de que a sonda estava instalada e funcionava bem. Havia rumor de conversas, fumo de tabaco formando estratos cinzentos no tecto, e Rocio Jurado cantava ao fundo, na rádio, La Lola se Va a los Puertos. A veterana casa de pasto tinha sido reformada e, em vez das toalhas de oleado que Coy toda a vida vira, havia agora toalhas de pano e talheres novos, azulejos, enfeites e até quadros nas paredes, embora a clientela continuasse a ser a mesma, sobretudo à hora do almoço: moradores do bairro, pedreiros, mecânicos de uma oficina próxima, reformados atraídos pela comida caseira e económica. De qualquer forma, como disse a Tânger, servindo-lhe mais vinho tinto com gasosa, só o nome do local fazia que valesse a pena lá ir.
A sobremesa, enquanto o Piloto descascava uma tangerina, definiram o plano de busca. Largariam de madrugada, para começar a
*1. Michirones- guisado típico da zona de Múrcia, feito à base de favas secas, carnes salgadas e enchidos de porco. E muitas vezes servido como petisco. (N. da T.)
peneirar a zona a meio da manhã. O sector de busca inicial ficava definitivamente estabelecido entre os 1 graus 20 minutos e 1 graus 22 minutos de longitude oeste e os 37° 31,5 minutos e 37° 32,5 minutos de latitude norte. Abordariam esse rectângulo de uma milha de comprimento por duas de largura na sua parte exterior, desde a maior à menor profundidade, com sondas que iriam diminuindo a partir dos cinquenta metros. Conforme Coy fez notar, isso tinha a vantagem de, ao começarem longe da costa, os movimentos do Carpanta demorarem mais a chamar a atenção vistos de terra, da qual se iriam aproximando pouco a pouco. A uma velocidade de dois a três nós, a Patbfinder permitia-lhes sondar em pormenor franjas paralelas de uns cinquenta a sessenta metros de largura. A zona de exploração estava dividida em setenta e quatro dessas franjas, de modo que, contando o tempo perdido nas manobras, percorrer cada uma delas levaria uma hora, e cobrir a área completa, umas oitenta. Isso dava cerca de cem ou cento e vinte horas reais de trabalho, e precisariam de dez a doze dias para cobrir a área de busca. Sempre e desde que o tempo ajudasse.
— A previsão meteorológica é boa — disse o Piloto — Mas perderemos com certeza alguns dias.
— Duas semanas — calculou Coy. — Esse é o prazo mínimo.
— Talvez três.
— Talvez.
Tânger ouvia atentamente, com os cotovelos em cima da mesa e os dedos entrelaçados sob o queixo.
— Disseste que podíamos chamar a atenção, vistos de terra... Isso despertaria suspeitas?
— Inicialmente, não acredito. Mas à medida que nos aproximarmos, talvez. Nesta época, já há gente que vai à praia.
— Também há pesqueiros — disse o Piloto, com um gomo de tangerina na boca. — E Manzarrón fica perto.
Tânger olhou para Coy. Tinha agarrado numa das cascas do prato do Piloto e partia-a aos bocadinhos. O aroma perfumava a mesa.
— Há alguma forma de nos justificarmos?
— Suponho que sim. Podemos estar a pescar ou a procurar alguma coisa perdida.
— Um motor — sugeriu o Piloto.
— É isso. Um motor fora de borda caído ao mar. Temos a nosso favor o facto de o Piloto e o Carpanta serem bastante conhecidos na zona e chamarem pouco a atenção... No que se refere a terra, não há problema. Podemos atracar uma noite em Mazarrón, outra em Águilas, outras em Cartagena, e nas outras fundear longe da zona. Um casal que aluga um barco para quinze dias de férias não tem nada de estranho.
Troçava ao dizer aquilo, mas Tânger não parecia achar o comentário divertido. Ou talvez fosse a palavra casal. Inclinava a cabeça com a casca de tangerina nos dedos, avaliando a situação. Lavara o cabelo à tarde, antes de descer a terra, e as pontas louras e assimétricas voltavam a roçar-lhe o queixo.
— Há lanchas-patrulha? — perguntou, impassível.
— Duas — disse o Piloto. — A de vigilância aduaneira e a da guarda civil.
Coy explicou que a H. J. da Alfândega costumava operar de noite e ocupava-se em vigiar o contrabando. Não era necessário preocuparem-se com ela. Quanto à da guarda civil, a sua missão era vigiar a costa e fazer cumprir as leis de pesca. Em princípio, o Carpanta não era problema seu, mas havia a possibilidade de que, ao vê-lo ali um dia após o outro, se aproximassem para bisbilhotar.
— A vantagem é o Piloto conhecer toda a gente, incluindo os guardas. Agora as coisas mudaram, mas na sua juventude associou-se a alguns deles. Podes imaginar: tabaco americano, bebidas, uma percentagem dos lucros — olhou-o com afecto. — ...Sempre soube ganhar a vida.
O Piloto fez uma expressão fatalista e sábia, antiga como o mar onde navegava, herança de inúmeras gerações de ventos contrários.
— Vive e deixa viver — disse com simplicidade.
O próprio Coy acompanhara-o algumas vezes noutros tempos, desempenhando as funções de grumete em expedições clandestinas e nocturnas perto do cabo Tinoso ou na direcção do cabo de Paios, e recordava aqueles episódios com a excitação própria dos seus poucos anos. Às escuras, com a luz do farol próximo brilhando na noite, à espera das luzes de um navio mercante que diminuía a marcha, parando o tempo necessário para que alguns fardos descessem para a coberta do Carpanta. Caixas de tabaco americano, garrafas de whisky, aparelhos electrónicos japoneses. E depois, o caminho de regresso na escuridão, talvez o desembarque do contrabando numa enseada discreta, passando-o para as mãos de sombras que avançavam com a água até ao peito. Para o jovem que Coy era nessa altura não havia diferença entre aquilo e o que lia, bastando isso para justificar a aventura. Do seu ponto de vista, aquelas velhas páginas, Moonfleet, David Balfour, A Flecha de Ouro e todas as outras — esperar por um tiroteio na escuridão foi, durante muito tempo, o seu desejo mais íntimo — proporcionavam pretextos suficientes. O problema era que, mais tarde, ao voltarem ao porto e atirarem para terra um cabo inocente para lhe dar volta no cabeço de amarração, havia sempre algum guarda civil ou um oficial da marinha que ficava com a parte de leão. E ao Piloto, após ter arriscado o seu barco e a sua liberdade, ficava-lhe o estritamente necessário para chegar ao fim do mês, enquanto outros enriqueciam à sua custa. Vive e deixa viver, mas há sempre alguém que vive melhor do que nós. Ou à custa dos outros. Uma vez, no bar Tai-billa, enquanto comiam sanduíches de lombo de porco com tomate, alguém levou Piloto à parte e lhe propôs fazer uma viagem um pouco mais complicada, indo ao encontro, numa noite sem lua, de um pesqueiro procedente de Marrocos. Ketama(2) puro, disse. Cinquenta quilos. E aquilo, explicou o sujeito a meia voz, podia fazê-lo ganhar mil vezes o que tirava das suas esporádicas excursões nocturnas. Da mesa, com a sanduíche na mão, Coy viu como o Piloto ouvia com muita atenção, acabava a cerveja sem se apressar, deixava depois o copo vazio em cima do balcão antes de levar o outro, à bofetada, do bar até à Calle Mayor.
Tânger pagou o jantar e saíram. A temperatura estava agradável, e foram andando devagar em direcção às portas de Múrcia e à cidade velha. Estava um soldado de infantaria da marinha, imóvel diante da porta branca da capitania: o mesmo edifício, comentou Tânger, onde foi interrogado o ajudante de piloto do Dei Gloria. Também se viam luzes verdes de taxistas aborrecidos à porta do Cinema Mariola e gente sentada nas esplanadas. Às vezes, Coy cruzava-se com um rosto conhecido e trocava um cumprimento silencioso, um movimento de cabeça, olá, até logo, como estás,
*2. Ketama: região marroquina onde se produz o melhor haxixe. (N. da T.)
pronunciados por um e por outro sem intenções de se verem mais tarde nem nunca, nem de esperarem pela resposta. Já não havia nada em comum sobre o que falar. Viu uma antiga namorada de juventude convertida em matrona respeitável, com duas crianças pela mão e outra num carrinho, acompanhada por um marido de cabelo grisalho e escasso, que lembrava vagamente a Coy um colega de escola. Passou inexpressiva à luz dos pavorosos candeeiros pós-modernos que obstruíam os passeios, sem dar sinais de reconhecimento. Mas conheces-me bem, pensou ele, divertido. LQTVQTV. Lei de Quem Te Viu e Quem Te Vê. Eu esperando-te na Porta de San Miguel, o roçar das mãos no Café Mastia. Aquela farra na noite de fim de ano em casa dos teus pais que estavam de viagem: Je t'aime, moi non plus, e os pares abraçados com pouca luz, enquanto Serge Gainsbourg e Jane Birkin faziam aquilo no gira-discos. E o canto escuro, e a cama do teu irmão com uma bandeirola do Atlético de Madrid pregada com tachas à parede, e como ficou o teu pai quando chegou, de improviso, estragando a festa e encontrando-nos aí, a brincar aos médicos. Pois claro que me conheces!
— A fase da busca — disse — preocupa-me menos do que encontrarmos o Dei Gloria... Nesse caso, e mesmo que dissimulemos com idas e vindas, a nossa imobilidade será mais suspeita à medida que passarem os dias. — Voltou-se para Tânger: — ...O que não sei é quanto tempo pode levar isso.
— Eu também não.
Tinham subido pela Calle del Aire até à Taberna del Macho. Os degraus da ladeira da Baronesa subiam até às ruínas da catedral velha e do teatro romano, entre entradas de ruas estreitas, já quase todas desaparecidas, mas cujo traçado permanecia indelével na memória de Coy. Mais além, o bairro popular de operários portuários e pescadores que recordava apinhado sob o castelo, com roupa estendida de varanda a varanda, surgia agora meio destruído, povoado de imigrantes africanos que olhavam das esquinas, carrancudos ou cúmplices. Haxixe do bom, meu. Recém-chegado de Marrocos. Havia gatos deslizando junto às paredes como comandos em plena incursão nocturna, sob gradeamentos antigos com vasos. Das tascas vizinhas saía um cheiro a vinho e a anchovas fritas, e uma puta solitária passeava-se ao longe, tal como uma sentinela aborrecida, sob a lanterninha que iluminava um nicho com a Virgen de la Soledad.
— Será preciso tirar medidas dos destroços comparando-as com os planos — disse Tânger — para situar a proa e a popa. E depois peneirar o lugar onde deve estar situada a câmara do capitão.. Ou o que dela restar.
— E se estiver enterrado?
— Nesse caso, sairemos daí e voltaremos com os meios adequados.
— Tu mandas. — Coy evitava os olhos do Piloto, que sentia fixos nele. — Tu lá sabes.
A Taberna del Macho já não se chamava assim, nem cheirava a azeitonas e a vinho barato, mas conservava o balcão antigo, as pipas de carvalho escuro e o aspecto de antiga adega de que Coy se lembrava. O Piloto bebia cognac Fundador, e a mulher nua tatuada no seu antebraço esquerdo movia-se lascivamente cada vez que contraía os músculos ao levantar o copo. Coy tinha visto aqueles traços azuis irem ficando mais desbotados com o passar do tempo. O Piloto tinha feito a tatuagem muito novo, aquando de uma visita do Canárias a Marbella, e depois ficara com febre durante três dias. O próprio Coy estivera quase a fazer uma tatuagem em Beirute, quando navegava como terceiro-oficial no Otago: uma serpente alada muito bonita, escolhida entre os modelos expostos na parede pelo gravador. Mas já com o braço nu estendido e a agulha prestes a tocar-lhe na pele, arrependeu-se. De modo que pôs dez dólares em cima da mesa e foi-se embora com o antebraço intacto.
— Há outro inconveniente: Nino Palermo. Se calhar, já tem alguém por aqui, vigiando-nos. Não me surpreenderia que nos deixasse procurar, e aparecesse assim que déssemos com os destroços.
Bebeu um gole da sua genebra azul com água tónica, deixando-a escorregar, fresca e aromática, pela garganta. Ainda sentia o gosto de sal do banho nocturno.
— É um risco que temos de correr — disse ela.
Segurava entre dois dedos, polegar e indicador, um cálice de moscatel que mal provara. Coy observou-a por cima do rebordo do seu copo. Pensava no 357 Magnum. Tinha revistado a bagagem dela, blasfemando em voz baixa, sem o encontrar. Estava disposto a atirá-lo ao mar, mas só encontrou os cadernos de apontamentos,
óculos de sol, roupa, alguns livros. Também uma caixa de tampões e uma dúzia de cuequinhas de algodão.
— Espero que saibas o que estás a fazer.
Tinha olhado para o Piloto antes de se dirigir a ela. Era melhor o marinheiro ignorar aquilo do revólver, pois não ia achar graça nenhuma navegar com o Carpanta artilhado. Graça nenhuma.
— Soube-o sempre — respondeu Tânger, glacial. — Vocês preocupem-se em encontrar o barco e deixem que eu me preocupe com Palermo.
Tem cartas na manga, disse Coy para consigo. A grande cabra tem cartas na manga que só ela conhece, caso contrário, não estaria tão segura de si quando trazemos à baila o cabrão do dálmata. Aposto o meu pescoço como já avaliou todas as hipóteses: as possíveis, as prováveis e as perigosas. O único problema é saber em qual delas é que eu entro.
— Resta ainda um assunto. — Havia poucos clientes e o taberneiro estava na outra extremidade do balcão, mas mesmo assim baixou a voz ao falar: — ... As esmeraldas.
— O que se passa com elas?
Nos olhos do Piloto, Coy leu que o seu amigo também pensava o mesmo: se um dia jogares ao póquer, tenta não fazê-lo com ela. Embora jogues há bastante tempo.
— Suponhamos que aparecem — respondeu. — Que encontramos o cofre. É verdade o que Palermo disse?... Que já te encarregaste de as colocar?... Será preciso limpá-las, sei lá. Coisa de especialistas.
Ela franziu o sobrolho. Olhava para o Piloto de soslaio.
— Não acho que seja o momento...
Coy fechou um punho em cima do balcão. A sua irritação ia em crescendo e, desta vez, não se incomodou em disfarçá-la.
— Ouve. O Piloto está metido nisto até ao pescoço, tal como tu e como eu. Arrisca o barco e também problemas com a justiça. É preciso garantir-lhe...
Tânger levantou uma mão. A mim tremer-me-ia às vezes, pensou Coy. De facto, tremem-me quase todo o maldito tempo. A ela, em compensação...
— Para já, o valor que paguei justifica os riscos que corre. Mais tarde, com as esmeraldas, todos seremos compensados e satisfeitos.
Tinha sublinhado todos, voltando-se para Coy com dureza. Depois, enquanto ele perguntava a si próprio, uma vez mais, com quantas peças ela tinha construído a sua personagem, levou o cálice de moscatel aos lábios, molhando-os apenas, e colocou-o no balcão. Inclinava o rosto como se estivesse a avaliar a conveniência de acrescentar mais alguma coisa ou não. Verónica Lake, pensou Coy admirando a cortina assimétrica que lhe tapava metade do rosto. Tânger tinha falado de O Falcão de Malta, mas era mais Kim Bassinger em L.A. Confidencial, que tinha visto milhares de vezes no camarote do Fedallah. Ou Jessica Rabbit em Quem Tramou Roger Rabbit? Na realidade não sou má. Desenharam-me assim...
— Quanto às esmeraldas — acrescentou Tânger passado uns instantes —, posso dizer-vos que tenho um comprador. Falei com ele, como disse Palermo... Alguém virá aqui para se encarregar delas, assim que as tirarmos do mar. Sem trâmites nem complicações — fez outra pausa e desafiou-os olhando-os fixamente. — Com dinheiro suficiente para todos.
Não ia ser tão fácil, pressentia Coy olhando-lhe para as sardas. Ou, para ser mais exacto, sabia que não seria tão fácil. Continuam na ilha dos escudeiros e dos cavaleiros, e o último cavaleiro há séculos que estava morto e enterrado. A sua caveira mumificada conservava a expressão perplexa de um tanso.
— Dinheiro — repetiu mecanicamente, pouco convencido. Coçou o nariz antes de consultar interrogativamente o Piloto,
que ouvia com aparente indiferença. Passado um instante, viu que este semicerrava os olhos, concordando.
— Estou a ficar velho — comentou o Piloto. — O Carpanta está a dar as últimas e eu nunca descontei para a Segurança Social... Comprava um barquinho pequeno, a motor, para levar o meu neto a pescar aos domingos.
Quase sorria, levando a mão à cara por barbear, coberta de pêlos grisalhos. O neto tinha quatro anos. Quando iam passear de mão dada pelo porto, o miúdo contava escrupulosamente as cervejas que ele bebia, por ordem da avó, e depois bufava ao chegar a casa. Felizmente, só tinha aprendido a contar até cinco.
— Hás-de comprar esse barquinho, Piloto — disse Tânger. — Prometo-te.
Tinha apoiado uma mão no seu antebraço com um gesto espontâneo. Um gesto de camaradagem, quase masculino. Exactamente, observou Coy, sobre a tatuagem desbotada da mulher nua.
Como o titubear de uma viola rouca, as primeiras notas de Lady be good pontilhavam as luzes da cidade nos reflexos da água negra, entre a popa do Carpanta e o molhe. Pouco a pouco, o velho swing das cordas do baixo foi coberto pela complexa entrada dos restantes instrumentos, os trompetes de Killian e McGhee, os solos de piano de Arnold Ross e o saxofone-tenor de Charlie Parker. Coy ouvia tudo isto atentamente, com os auscultadores nos ouvidos, olhando para os pontinhos luminosos da água como se as notas que inundavam a sua cabeça se materializassem naquela superfície negra e oleosa. O metal de Parker, decidiu, cheirava a álcool e a mangas de camisa fumadas de tabaco e a agulhas de relógio cravadas, verticais, como navalhas no ventre da noite. Aquela melodia, como todas as outras, sabia a escala em terra, a mulheres sozinhas no canto de um balcão de um bar. Sabia a silhuetas titubeantes ao pé de caixotes de lixo e também a neón vermelho, verde e azul iluminando, parcialmente, caras vermelhas, verdes e azuis de homens indecisos, sonolentos e embriagados. A vida simples, olá e adeus, sem mais complicações, além da tolerância do estômago e do outro, aguenta que é serviço. Não havia tempo para cortejar a princesa do Mónaco, caramba, como você é bonita, menina, permita-me convidá-la para um chá, eu também leio Proust. Por isso, Roterdão, ou Antuérpia, ou Hamburgo tinham cinemas pornográficos, bares topless, matronas de ocasião que faziam ponto no outro lado de montras com cortinas, gatos com ar filosófico observando a passagem da Tripulação Sanders, ziguezagueando de passeio em passeio, vomitando aguarrás rótulo negro(3) à espera do momento em que os devolvesse ao ronronar das pranchas de aço, aos lençóis enxovalhados de um beliche, à luz cinzenta do amanhecer filtrando-se entre as cortinas da escotilha. Tararará. Dong. Tarará.
*3. Aguarrás rótulo negro: álcool de muito má qualidade, engarrafado com rótulos de marca. (N. da T.)
O saxofone de Charlie Parker continuava sublinhando a ausência de compromisso, o carácter quase autista do invento. Era como os portos da Ásia, Singapura e tudo o resto, quando ficávamos fora ancorados, bordejando em volta da âncora, com a costa no outro lado do cimo da amurada onde apoiávamos os braços, esperando a lancha com a Mamã San e as meninas da Mamã San e o seu chilrear de passarinhos agitados ao subirem a bordo ajudadas pelo terceiro-oficial, com Mamã San anotando a giz na porta de cada camarote, tal como um empregado de mesa no mármore da sua tasca: uma cruz, uma rapariga; duas cruzes, duas raparigas. Peles de cetim complacentes e frágeis, coxas flexíveis, bocas obedientes. Não problema, marinheiro, olá e adeus. Ninguém o fez como deve de ser, dizia o Torpedeiro Tucumán, até o ter feito aqui com três ao mesmo tempo. Nenhum marinheiro parecia deprimido quando a Ásia ou as Caraíbas ficavam à proa, entre os olhos dos escovéns. Pelo contrário. Coy vira homens, fortes como rochedos, chorando na rota contrária, apenas porque regressavam a casa.
Ergueu a vista dirigindo o olhar para o outro lado do cais, mais além. Os tripulantes de um veleiro sueco jantavam no poço, à luz de um candeeiro em redor do qual esvoaçavam borboletas nocturnas. De vez em quando, apesar da música, chegava até ele uma frase dita em voz muito alta ou um riso. Eram todos louros e enormes, tamanho XXL, com crianças pequenas que durante o dia passeavam nuas pela coberta, amarradas com um arnês ao guarda-mancebos. Louros, recordou, como o piloto do porto de Stavanger que tinha conhecido, quando o Monte Pequeno passou aí dois meses sem carga útil. Era uma beleza nórdica como as das fotografias e dos filmes, grande e alta. Uma norueguesa de trinta e quatro anos com o posto de capitão da marinha mercante que, da lancha, em alto mar, subiu a bordo, desenvolta, pela escada de corda, cortando a respiração a todos os homens que estavam na ponte, e depois dirigiu a manobra fiorde adentro num inglês impecável, orientando os rebocadores com um walkie-talkie que trazia pendurado ao pescoço, enquanto Dom Agustín de La Guerra a olhava de soslaio e o timoneiro olhava para ele «Stop her. Dead slow ahead. Stop her. A little push now. Stop.» Depois bebeu com o capitão um copo de whisky e fumou um cigarro, antes de Coy, então um jovem estagiário de vinte e dois anos, a acompanhar ao portaló, atlética dentro das calças de lona e do grosso anoraque vermelho, sorrindo-lhe antes de se ir embora. «So long, officer.» Encontrou-a três dias mais tarde no Ensomhet, enquanto a tripulação do petroleiro enlouquecia com aquelas escandinavas de sonho: um bar luxuoso e triste junto das casas vermelhas do molhe Strandkaien, cheio de homens e mulheres para quem uma farra equivalia a emborcar durante horas sem abrir a boca, como atuns, até apanharem um pifo de calibre nove Parabellum. Tinha entrado no bar por acaso e ela, que estava com um norueguês barbudo e impassível que parecia recém-licenciado de um drakkar viquingue, reconheceu-o como o jovem do portaló do petroleiro. O pequeno espanhol, disse em inglês. «The shorty spanish boy.» Depois sorriu, antes de o convidar para um copo. Uma hora mais tarde, o viquingue impassível continuava apoiado no balcão do mesmo bar, imaginava Coy, enquanto ele, nu, empapado em suor, sentindo o ar frio da madrugada que entrava por uma janela aberta para o fiorde e para os cumes nevados sobre o mar, arremetia contra a sólida presença da mulher, costas largas e coxas musculosas e olhos claros que o olhavam fixamente da penumbra, enquanto os seus lábios, cada vez que a boca de Coy os deixava livres, emitiam estranhos sussurros numa língua bárbara. Chamava-se Ingá Horgen e, nos dois meses em que o Monte Pequeno esteve em Stavanger, Coy, invejado por toda a tripulação, desde o ajudante de cozinheiro até ao capitão, passou com ela todo o seu tempo livre. De vez em quando bebiam cerveja e aquavita com o viquingue impassível, que nunca colocou objecções ao facto de, todas as noites, quando a mulher se afastava do balcão com os olhos brilhantes e alguma indecisão na forma de andar, o shorty spanish boy se esfumar na companhia daquela valquíria cuja estatura o ultrapassava em quase três palmos. Com ela conheceu Lysefi-jord e Bergen, o koldtbord, algumas palavras íntimas em norueguês e alguns segredos úteis sobre anatomia feminina. Aprendeu, mesmo, a julgar-se apaixonado, e também que nem todas as mulheres se dão ao trabalho, ou à precaução, de antes se apaixonarem. Também aprendeu que, às vezes, quando uma pessoa se aproxima o bastante e presta atenção, a mulher de máscara ausente, cujos olhos entreabertos vagueiam perdidos pelo tecto, enquanto abrimos caminho entre o mais profundo, tem o rosto de todas as mulheres que durante séculos povoaram o mundo. E, finalmente, numa noite em que houve um problema a bordo e foi para terra mais tarde do que o habitual, o shorty spanish boy foi directamente para a casa de troncos negros e janelas brancas, e encontrou aí o viquingue impassível, tão bêbado como ao balcão do bar do costume, com a diferença de que desta vez estava nu. Ela também estava e olhou para Coy com um sorriso fixo e indiferente, turva de álcool, antes de pronunciar algumas palavras que não lhe chegaram aos ouvidos. Talvez lhe tenha dito vem, ou talvez vai embora. Então ele fechou a porta devagar e regressou ao seu barco.
Dong, dong. Dong. Charlie Parker, que ia morrer daí a pouco, tinha deixado o saxofone no chão e descansava exausto bebendo um copo ao balcão ou — o que era mais provável — metia alguma coisa na casa de banho dos homens. Agora destacava-se solitário o dedilhar do baixo de Billy Hadnott que, nesta última parte, era novamente dono da melodia. E foi naquele momento que o Piloto subiu da casa de pilotagem juntando-se a Coy e sentando-se na outra cadeira de teca presa à varanda da popa. Tinha na mão a garrafa de cognac que trouxera da Taberna del Macho para acabar de bebê-la a bordo. Ofereceu-a com um gesto e, quando Coy abanou a cabeça numa negativa, ao compasso da música que se ia extinguindo nos seus ouvidos, o outro bebeu um gole antes de a colocar muito direita no colo. Coy desligou os auscultadores, tirando-os dos ouvidos.
— O que está Tânger a fazer?
— Está a ler no camarote.
Os faróis de San Pedro e Navidad pestanejavam no outro lado do espigão do molhe, balizando a entrada do porto. Verde e vermelho, grupos de relâmpagos de dez em dez e de catorze em catorze segundos, luzes familiares que para Coy sempre ali tinham estado, desde que conseguia lembrar-se. Olhou para cima, sobre os muros de sombras que circundavam o porto. Nas montanhas, os castelos iluminados de San Julián e Galeras pareciam suspensos no ar como nos quadros dos pintores antigos. A claridade da cidade matava as estrelas.
— O que achas, Piloto?
O relógio da Câmara deu onze badaladas antes do outro responder.
— Ela sabe o que faz. Ou, pelo menos, comporta-se como se o soubesse... a pergunta é se tu o saberás.
Coy enrolava à volta do gravador o fio dos auscultadores. Tinha um meio sorriso no reflexo das luzes oleosas da água.
— Trouxe-me de volta ao mar. O Piloto ficou a olhar para ele.
— Se é um pretexto, está bem — disse. — Mas não me venhas com histórias.
Bebeu outro gole e passou a garrafa a Coy. Este pôs o gargalo à boca.
— Já to disse uma vez: quero contar-lhe aquelas sardas — limpava a boca com as costas da mão. — Contá-las todas.
O outro não disse nada, limitando-se a recuperar a garrafa. Um vigilante nocturno passou pelo embarcadouro, fazendo ressoar as tábuas do molhe flutuante. Trocou um cumprimento com eles e continuou o seu caminho.
— Ouve, Piloto. Os homens vão pela vida aos tropeções, de cá para lá... Costumamos envelhecer e morrer sem compreender bem o que se passa. Mas elas são diferentes.
Fez uma pausa, esticando-se para trás na cadeira, com os braços estendidos. A cabeça roçou na bandeira que pendia flácida do mastro, junto à antena em forma de seta do GPS. A noite estava tão tranquila que quase podiam ouvir-se os parafusos da balaustrada da proa a oxidarem.
— Às vezes olho para ela e penso que sabe coisas de mim que eu próprio não sei.
O Piloto ria-se, baixinho, com a garrafa nas mãos.
— A minha mulher diz a mesma coisa.
— Falo a sério. Elas são diferentes. Lúcidas como se a lucidez fosse uma doença, entendes?
— Não.
— É uma coisa genética... Até acontece às estúpidas.
O Piloto ouvia atentamente, com boa vontade, mas o gesto da sua cabeça um pouco inclinada para a frente era céptico. De vez em quando dava uma vista de olhos em redor, ao mar e às luzes da cidade, como se procurasse alguém que trouxesse sensatez a tudo aquilo.
— Estão ali caladas, olhando-nos — prosseguiu Coy. — Há séculos que olham para nós, entendes?... Aprenderam olhando-nos.
Ficou calado e o Piloto também. Do barco dos suecos chegava o rumor das suas vozes levantando a mesa antes de irem dormir. Depois, o relógio da Câmara deu a primeira badalada dos quartos de hora. A água estava tão imóvel que parecia sólida.
— Esta é perigosa — acabou por dizer o Piloto. — Como aquele mar onde se atolavam os navios até apodrecerem...
— O mar dos Sargaços.
— Tu disseste-me que ela era má. Eu digo apenas que é perigosa.
Tinha-lhe passado novamente a garrafa de cognac, que Coy segurava na mão, sem beber.
— Foi o que disse Nino Palermo, Piloto. O que achas?... No dia em que falei com ele em Gibraltar.
O Piloto encolheu os ombros. Esperava, paciente.
— Não sei o que te diga. Coy deu um gole na garrafa.
— Nós, os homens, somos maus por estupidez, Piloto. Por desonestidade. Somos por ambição, por luxúria ou por ignorância... Entendes?
— Mais ou menos.
— Quero dizer que elas são diferentes.
— Elas não são diferentes. São apenas sobreviventes.
Coy ficou calado, surpreendido pela exactidão do comentário.
— Foi também o que Palermo disse.
Depois apontou para o outro com a mão que agarrava a garrafa, mas não disse mais nada. O Piloto inclinou-se para lhe tirar a garrafa das mãos:
— Demasiados livros.
Depois de dizer aquilo bebeu um último gole, colocou a tampa e deixou a garrafa na coberta. Agora olhava para Coy, esperando que este deixasse de rir.
— De que se defende ela? — perguntou.
Coy ergueu as mãos, evasivo. Como diacho, dizia o gesto, te poderei contar?
— Ela luta — disse — por uma menina que conheceu há muito tempo. Uma menina protegida, sonhadora, que ganhava concursos de natação. Que cresceu feliz até deixar de o ser e saber que todos morremos sozinhos... Agora recusa-se a deixá-la desaparecer.
— E qual é o teu papel nisto?
— Entesa-me tanto como a qualquer outro, Piloto.
— É mentira. Isso tem remédio, e nada a ver com ela.
Tem razão, disse Coy para consigo. No fim de contas, já estive de pau feito outras vezes e nunca andei por aí armado em idiota. Não mais do que o habitual.
— Talvez tenha alguma relação com os barcos que passam de noite — disse. — Já reparaste?... Estás na amurada e passa um barco do qual ignoras tudo: nome, bandeira, para onde se dirige... Vês apenas umas luzes, e pensas que lá também deve estar alguém apoiado na amurada olhando nesse momento para as tuas luzes.
— De que cor são as luzes que vês?
— O que importa a cor? — Coy encolhia os ombros, irritado. — Eu sei lá... Vermelhas, brancas.
— Se forem vermelhas, o outro tem prioridade. Guina para estibordo.
— É uma metáfora, Piloto... Entendes?
O Piloto não disse se compreendia ou não. O seu silêncio era eloquente, pouco favorável às metáforas de barcos, ou de noites, ou de qualquer outra coisa. Não baralhes a agulha magnética, dizia a sua austeridade de palavras. Estás pelo beicinho e ponto final. Mais cedo ou mais tarde, acaba tudo passando por aí. A causa é problema teu; a mim o que me inquietam são as consequências.
— E o que vais fazer? — acabou por perguntar.
— Fazer? — Coy coçou o nariz. — Não faço ideia... Ficar aqui, suponho. Observá-la.
— Pois então lembra-te do ditado: a mulher e o vento querem muito tento.
Depois de dizer aquilo, o Piloto mergulhou noutro silêncio carrancudo. Contemplava as luzes do porto na água oleosa.
— Foi uma pena, aquilo do teu barco — acrescentou passado um bocado. — Ali estava tudo resolvido. Em terra só há problemas.
— Estou apaixonado por ela.
O outro levantara-se. Esquadrinhava o céu, interrogando-o sobre o tempo que faria no dia seguinte.
— Há mulheres — disse como se não tivesse ouvido nada — que têm coisas estranhas na cabeça, tal como outras têm gonorreia. E acontece que tas pegam.
Inclinara-se para agarrar na garrafa e, ao levantar-se, as luzes da cidade iluminaram-lhe os olhos, muito próximos.
— No fim de contas — disse — talvez a culpa não seja tua. Com as rugas fazendo-lhe sombras na cara, e o cabelo curto e
grisalho que a penumbra tornava cinzento, parecia um Ulisses cansado; indiferente às sereias e às harpias e às jovenzinhas púberes à espreita em praias tentadoras, e aos olhares turvos, vem ou vai, depreciativos ou indiferentes. De repente, Coy invejou-o com todas as suas forças: na idade dele, já era difícil que uma mulher valesse para um homem a vida ou a liberdade.
SUDOESTE QUARTA AO SUL
Ao amanhecer do quarto dia, o vento, que tinha estado a soprar suavemente de oeste, começou a rodar para sul. Inquieto, Coy olhou para a oscilação do anemómetro e depois para o céu e para o mar. Era um dia anticiclónico convencional, de princípio de Verão. Tudo parecia tranquilo na aparência, a água encrespada e o céu azul, com alguns cúmulos. Mas podiam distinguir-se cirros médios e altos deslocando-se à distância. O barómetro também mostrava tendência em baixar: três milibares em duas horas. Ao acordar, depois de dar um mergulho na água azul e fria e de ouvir o boletim meteorológico, tinha anotado no caderno da mesa de cartas a formação de um centro de baixas pressões que se deslocava em cunha pelo Norte de África, perto de um centro de altas pressões de 1012 milibares, imóvel sobre as Baleares. Se as isóbaras de um e de outro se aproximassem demasiado, os ventos soprariam fortes vindos do mar, e o Carpanta teria de se refugiar num porto e interromper a busca.
Desligou o piloto automático, passou a leme manual e fez o veleiro guinar 180°. A proa apontou novamente para norte, para a costa iluminada pelo Sol sob a franja escura do cabeço das Víboras, iniciando a exploração do sector que, na carta de busca, era designado como a passagem número quarenta e três. Aquilo significava que a Pathfinder já tinha coberto mais de metade da área, sem resultado. A parte positiva era ter ficado fora de pesquisa na carta o sector de maiores fundos, onde as imersões teriam sido complicadas e profundas. Coy olhou para bombordo na direcção de Punta Percheles, onde um pesqueiro lançava redes tão perto de terra que parecia disposto a levar as conchas da praia. Calculou rumo e distância, concluindo que não se aproximariam demasiado um do outro, embora o comportamento errático dos pesqueiros fosse imprevisível. Depois deu mais uma vista de olhos ao céu, ligou o piloto automático e desceu à casa de pilotagem, onde o ronronar monótono do motor, situado sob a escada, se tornava mais intenso.
— Passagem quarenta e três — disse. — Rumo norte.
O Sol estava no meridiano e fazia calor, apesar das escotilhas abertas. Sentada diante da mesa de cartas, junto à sonda, ao radar e ao repetidor do sistema de posicionamento por satélite, GPS, Tânger vigiava o ecrã numa atitude de aluna aplicada, anotando latitude e longitude cada vez que o fundo revelava alguma irregularidade. Coy olhou para o indicador da sonda e da velocidade: trinta e seis metros, 2,2 nós. À medida que o Carpanta seguia a rota traçada pelo piloto automático, no ecrã da Pathfinder modificava-se o contorno preciso do fundo do mar. Tinham feito ali turnos suficientes para serem capazes de identificar, sem dificuldade, os diferentes tons que o instrumento atribuía às características do fundo: cor de laranja suave era areia e lodo, cor de laranja escuro, algas, vermelho pálido indicava rocha solta e cascalho. Os bancos de peixes constituíam manchas móveis castanho-avermelhadas com veios verdes e rebordos azulados, e as irregularidades importantes, grandes rochas soltas, até os restos metálicos de um velho pesqueiro afundado e assinalado nas cartas, pormenorizavam-se com a aparência de lombas pontiagudas numa intensa cor vermelha.
— Nada — disse ela.
Areia e algas, indicava o ecrã. Só em duas ocasiões o eco se tornara vermelho-sangue, com cristas significativas no relevo submarino, ecos duros em sondagens respectivas de quarenta e oito e de quarenta e três metros. Não foram capazes de esperar, de modo que anotaram as posições, regressando na manhã seguinte, muito cedo, depois de terem passado a noite, como de costume, fundeados entre Punta Negra e a Cueva de los Lobos. Coy estava sob os últimos efeitos de uma constipação, pequena lembrança do mergulho nocturno, mas suficiente para o impedir de compensar a pressão nos tímpanos e nos seios frontais; de modo que foi o Piloto quem se equipou com o seu remendado fato de neopremo preto e se deixou cair ao mar, com a garrafa de ar comprimido nas costas, colete auto-insuflável, faca na barriga da perna direita e uma corda de cem metros amarrada com um lais de guia à cintura. Coy permaneceu em cima, nadando à superfície com barbatanas, tubo e máscara, vigiando o rasto de bolhas que subia do arcaico regulador Snark Silver III com dupla traqueia de borracha que o Piloto continuava empenhado em usar, porque não se fiava no plástico moderno e aquelas bagatelas de antigamente, dizia, nunca te deixavam ficar mal. Os ecos do fundo, informou ao emergir, procediam de uma rocha enorme com restos de redes enganchadas e de três bidões metálicos grandes, cobertos de ferrugem e de algas. Num deles ainda podia ler-se Campsa.
Por cima do ombro de Tânger, Coy olhou para o traçado plano do fundo que a sonda ia desenhando. Ela mantinha os olhos fixos no ecrã de cristal líquido, a caneta de prata nos dedos, a carta quadriculada à frente, os braços pintalgados sob as mangas curtas da camisola de algodão branco, as costas molhadas de suor. O balanço do barco fazia oscilar, como de costume, as pontas húmidas do seu cabelo, que prendia com um lenço à volta da testa. Vestia umas calças curtas de caqui e tinha as pernas cruzadas debaixo da mesa. Sentado no fundo da casa de pilotagem, junto de uma escotilha que fazia incidir um raio de sol nos curtos caracóis grisalhos, o Piloto talingava no fio de pesca um anzol de corrica, com um penacho artesanal que acabara de fabricar com restos de adriça. De vez em quando erguia os olhos do seu trabalho e olhava-os.
— O tempo pode mudar — disse Coy.
Sem afastar os olhos do ecrã, Tânger perguntou se isso os obrigaria a interromper a busca. Coy respondeu que talvez fosse necessário, se houvesse vento ou ondulação forte, uma vez que a sonda daria falsos ecos e, além disso, iriam ficar bastante incómodos dançando por ali fora. Nesse caso, o melhor seria descansarem em Águilas ou Mazarrón. Ou voltar a Cartagena.
— Cartagena fica a vinte e cinco milhas — disse ela. — Prefiro ficar por aqui.
Continuava pendente da Pathfinder e da carta quadriculada. Apesar de fazerem turnos diante da sonda, era ela quem passava a maior parte do tempo olhando para as curvas e para as cores que evoluíam no ecrã, até os olhos avermelhados ficarem injectados de sangue e ter de ceder o lugar. Quando a ondulação se tornava um pouco mais intensa, levantava-se, pálida, com o cabelo colado à cara suada e sinais visíveis de que o balanço e o ronronar constante do motor de gasóleo a afectavam mais do que a conta. Mas nunca dizia nada, nem se queixava. Obrigava-se a comer qualquer coisa, sem vontade, e viam-na desaparecer a caminho da casa de banho, onde lançava água pela cara, antes de ir deitar-se um pouco no seu camarote. O seu pacote de biodramina, observou Coy, tinha cada vez mais espaços vazios. Outras vezes, ao finalizar uma série de passagens ou quando já estavam todos demasiado fartos do calor e ruído contínuos, paravam o barco e ela, da popa, atirava-se ao mar, nadando para longe, em linha recta, com longas braçadas de crawl, lentas e, seguras. Nadava com um ritmo e com uma respiração correctas, sem levantar desnecessariamente água com os pés, cravando as palmas das mãos como facas em cada braçada. Às vezes, Coy atirava-se ao mar para acompanhá-la um bocado, mas ela tentava manter-se à distância, de uma forma que, só na aparência, era casual. Por vezes via-a nadar debaixo de água, com amplos movimentos dos braços e o cabelo ondulante junto de bancos de peixes que se afastavam à sua passagem. Nadava com um fato de banho inteiro, preto com alças finas e um decote profundo na parte de trás que estreitava em V as suas costas acobreadas e lhe ficava muito bem. Depois subia a bordo pela escada da popa, secando-se muito bem e sacudindo o cabelo que lhe pingava nos ombros. Tinha umas pernas longas e esbeltas, talvez um pouco magras — demasiado alta e magrizela, tinha opinado o Piloto num aparte. Os peitos não eram grandes, mas arrogantes como ela própria. Quando tirava o fato de banho no seu camarote e tinha o corpo molhado, os bicos imprimiam no algodão da camisola círculos de humidade que, ao evaporar-se, deixavam um rasto de sal. E, finalmente, Coy pôde averiguar o que pendia na extremidade da corrente que ela tinha ao pescoço: uma chapa de identificação em aço, com o nome, o BI e o grupo sanguíneo: «O» negativo. Uma chapa de soldado.
A sonda registou uma alteração no tom avermelhado do fundo, e Tânger inclinou-se para anotar latitude e longitude. Mas tratava-se de um falso alarme. Deixou-se cair novamente para trás na cadeira da mesa de cartas, com o lápis entre os dedos de unhas mordiscadas que, agora, nos seus intensos quartos de vigia, roía a todo o instante. Conservava aquela expressão grave, concentrada, de aluna-modelo da turma, que Coy se divertia em observar. Com frequência, vendo-a absorta com o bloco-notas, com a carta ou o ecrã, tentava imaginá-la de peúgas brancas, uniforme e tranças louras. Tinha a certeza de que, antes de se esconder nas casas de banho a fumar e de se tornar insolente com as freiras, antes de sonhar com o tesouro de Rackam, o Terrível, com cartas esféricas e com presas de corsários, alguém lhe colocara alguma vez a faixa de menina exemplar. Não era difícil entrever a sua expressão obstinada recitando rosa-rosae, SO4H2, e tudo o resto num lugar de La Mancha. Com flores a Maria.
Apoiou-se na mesa junto dela, para ver a quadrícula em que tinham dividido a área de busca marcada na carta. Na parede o rádio ouvia-se rouco e baixinho, ligado em escuta dupla: uma fragata da Armada pedia pessoal de amarração, e o pessoal de amarração não aparecia em lado nenhum. De vez em quando, marinheiros ucranianos ou pescadores marroquinos mantinham longas conversas na sua língua. O patrão de um pesqueiro queixava-se de que um vapor lhe tinha cortado os palangres. Um barco patrulha da guarda civil estava bloqueado, devido a uma avaria na ponte, no porto Tomás Maestre.
— Podemos perder dois ou três dias — disse Coy. — Na realidade sobra-nos tempo.
Ela anotava alguma coisa e deixou de o fazer, o lápis suspenso a alguns milímetros da cara.
— Não nos sobra nada. Precisamos de todas as horas de que dispomos.
O tom era severo, quase de censura, e Coy voltou a sentir-se irritado. A meteorologia, pensou, está-se nas tintas que tu precises das horas disponíveis.
— Se soprar vento forte não poderemos trabalhar — explicou. — O mar ficará picado e a sonda perderá eficácia.
Viu-a entreabrir a boca para replicar e depois morder os lábios. Agora, o lápis tamborilava sobre a carta. Na antepara, junto ao barómetro, dois relógios indicavam a hora local e a hora do meridiano de Greenwich. Ela ficou a olhar para eles e depois consultou o relógio de aço no seu pulso direito.
— Quando acontecerá isso? Coy coçou o nariz.
— Não há certezas... Talvez esta noite. Ou amanhã.
— Então, por agora, continuaremos aqui.
Voltava a concentrar-se no ecrã da Pathfinder para dar o assunto como encerrado. Coy ergueu a vista, deparando-se com o olhar do Piloto. Tu próprio, diziam os olhos plúmbeos. Tu decides. Havia muita troça naquele olhar, e Coy desviou a vista com o pretexto de subir à coberta. Aí pôs-se a observar novamente o céu, ao longe, onde as nuvens altas revelavam franjas fibrosas e desfiadas como caudas de égua branca. Oxalá, pensava, o tempo piore a sério e tenhamos de sair daqui com fogo no rabo, com a biodramina dela acabada, e eu possa vê-la na amurada, despejando a bílis. A grande cabra.
As previsões cumpriram-se, pelo menos em parte. A biodramina de Tânger não se acabou mas, no dia seguinte, o Sol brilhou pouco tempo entre um halo de nuvens avermelhadas que mais tarde ficaram escuras e cinzentas, e o vento rodou para sudeste levantando carneirinhos brancos no mar. Ao meio-dia, a ondulação era incomodativa, a pressão tinha descido outros cinco milibares e o anemómetro indicava força seis. E a essa mesma hora, depois de ter apontado cuidadosamente a última posição na zona de busca quadriculada da carta — passagem 56 —, o Carpanta navegava com rizes na vela grande e na genoa, amurado a bombordo, rumo ao porto de Águilas.
Coy tinha desligado o piloto automático e governava manualmente, sudoeste quarta ao sul na bússola e a grande rocha do cabo Cope no horizonte cinzento, as pernas abertas para compensar a inclinação, sentindo nas malaguetas da roda do leme a pressão da porta na água e a força do vento nas velas, com o caturrar poderoso do veleiro a cortar a ondulação. Por cima da bitácula, o anemómetro marcava vinte e dois-vinte e quatro nós de vento real. Às vezes, a proa do Carpanta investia contra uma crista e os salpicos de água chegavam até ao poço, enchendo a capuchana de espuma. Cheirava a sal e a mar, e o assobio subia de oitava em oitava na enxárcia, fazendo repicar as adriças contra o mastro a cada balanço.
Era óbvio que Tânger não precisava de biodramina. Estava sentada na braçola do poço com as pernas para fora, para o lado de barlavento, vestida com as calças impermeáveis vermelhas que o Piloto lhe tinha emprestado e, apreciava sem dúvida, a navegação. Para surpresa de Coy, não se mostrara muito contrariada, quando o vento os obrigou a interromper a busca. Parecia que nos últimos dias se tinha adaptado melhor aos altos e baixos do mar, assumindo o fatalismo próprio da sorte variável do marinheiro. No mar, o que não podia ser, não podia ser, e mais que isso era impossível. Agora, sentada ali, o peitilho folgado, as alças largas, a camisola de manga curta, o lenço amarrado em redor da testa, os pés descalços davam-lhe um aspecto singular, e Coy tinha dificuldade em afastar os olhos dela para prestar atenção ao rumo e às velas. Reclinado no poço, protegido, o Piloto fumava tranquilamente. De vez em quando, depois de ficar um bocado a observar Tânger, Coy tropeçava com os olhos do seu amigo fixos nele. O que queres que te diga, respondia em silêncio. As coisas são como são e não como gostaríamos que fossem.
O anemómetro marcou entre vinte e cinco e vinte e nove nós e uma rajada endureceu o tacto da roda do leme nas mãos de Coy. Força sete. Era forte, mas não muito. O Carpanta tinha enfrentado temporais de força nove, com quarenta e seis nós uivando na enxárcia e ondas de seis metros curtas e rápidas. Como naquela vez em que o Piloto e ele tiveram de correr vinte milhas com mar de popa e as velas recolhidas, depois de se ter partido o mastaréu do gurupés. Apesar do motor, passaram à justa a entrada do porto de Cartagena, apenas a cinco metros das rochas e, uma vez atracados, o Piloto ajoelhou-se muito sério para beijar a terra. Comparado com tudo isso, vinte e nove nós não era muito. Mas quando Coy olhava para cima, para o céu cinzento sobre o mastro oscilante, via que os cirros altos avançavam à esquerda do vento que soprava ao nível do mar, e que, para levante, começava a definir-se uma linha de nuvens escuras, de aspecto ameaçador, baixo e sólido. Daí viria o vento dentro de pouco tempo. De modo que, concluiu, era melhor ficar de olhos abertos.
— Eu colho o segundo rize, Piloto.
Disse-o quando o outro olhava para a vela grande, consciente de que pensava a mesma coisa. Mas o Piloto era o patrão a bordo e incumbia-lhe aquele tipo de decisões, de modo que Coy ficou na expectativa até o ver fazer um gesto com a cabeça, atirar o cigarro para sotavento e levantar-se. Ligaram o motor para dar a proa ao mar e ao vento, a genoa grivando com um terço da sua vela enrolada no estai. Tânger agarrou no leme, mantendo o rumo, e enquanto o Piloto puxava a espicha para o centro e depois arreava a adriça da vela grande, deixando que caísse batendo contra o mastro até ao segundo rize, Coy meteu alguns envergues nos bolsos, segurou outro com os dentes e foi para junto do mastro, tentando evitar que o balanço violento do barco o atirasse ao mar pela segunda vez numa semana. Aí, segurando-se com os joelhos contra a capuchana do poço, encaixou o olhal do segundo rize no gancho de barlavento. Depois, quando o Piloto esticou novamente, Coy deslocou-se para a popa, inclinando o corpo ao compasso dos movimentos do barco, e passou um envergue por cada olhal da vela, amarrando-os sob a espicha para ferrar a lona sobrante. Nesse momento, uma vaga espessa quebrou-se sobre a coberta empapando-lhe as costas e Coy fugiu de um salto para o poço, para junto de Tânger. Os seus corpos chocaram com o balanço e, para não cair, ele teve de se agarrar a roda do leme, em volta dela, cingindo-a num abraço involuntário.
— Já podes arribar — disse ele. — Deixa-o cair pouco a pouco para sotavento.
O Piloto olhava para eles divertido, aduchando a adriça da vela grande. Ela rodou as malaguetas da roda do leme para estibordo e as velas deixaram de grivar. E, um pouco antes de o Carpanta ganhar velocidade, o mar sacudiu-o de través, fazendo oscilar o mastro e fazendo também Tânger estremecer entre os braços e o peito de Coy, que a ajudava a fazer a volta precisa do leme. Finalmente, a rocha do cabo Cope, cinzenta entre as nuvens baixas, ficou novamente na amurada de estibordo, sob a vela inchada da genoa; e a agulha da barquilha estabilizou nos cinco nós. Nessa altura veio uma vaga mais forte do que as anteriores, que quebrou em cima deles molhando-lhes a cara, as mãos e a roupa. Coy reparou que a água fria eriçava a pele do pescoço e dos braços da rapariga e que esta, com o rosto voltado para ele, mais perto do que alguma vez estivera, sorria de uma forma estranha, feliz e doce, como se, por alguma razão, lhe devesse a ele esse momento. Os salpicos de água multiplicavam até ao infinito as sardas do rosto, e a boca entreabria-se como se fosse pronunciar palavras que certos homens há séculos esperam ouvir.
Na esplanada do restaurante, um alpendre de madeira, canas, gesso e folhas de palma cujos dois andares se erguiam sobre a praia, a orquestra tocava música brasileira. Eram dois rapazes e uma rapariga que faziam uma boa imitação de Vinícius de Morais, Toquinho e Maria Bethânia. Cantavam levando alguns clientes, sentados às mesas, a moverem-se nas suas cadeiras ao ritmo da melodia. A rapariga, uma mulata bastante bonita, de olhos grandes e boca africana, batia ritmicamente os bongos enquanto cantava olhos nos olhos do guitarrista, um jovem barbudo e sorridente: A Tonga da Mironga do Kabuleté. Havia caipirinhas e rum nas mesas, e palmeiras contornando a beira-mar, e Coy pensou que a cena podia adequar-se ao Rio ou à Baía.
Olhou para o outro lado da balaustrada de madeira aberta à praia, onde ainda viam o Piloto afastando-se a caminho do porto de recreio cujo pequeno bosque de mastros se erguia um pouco mais ao longe, atrás de um pequeno espigão. Ao fundo da enseada, sobre a rocha alta que protegia os molhes e lota pesqueira, o Castelo de Aguilas estava rodeado de um penacho cinzento que o entardecer escurecia aos poucos. Na outra extremidade, a ondulação quebrava na língua de terra e na ilha cuja forma dava nome ao porto. Mas o vento tinha parado e um chuvisco fino e quente imprimia reflexos na areia cinzenta-escura da praia, onde a água estava calma. Nesse momento viu acender-se o farol principal, visível ainda à luz incerta, com a sua torre pintada às riscas brancas e pretas. Ficou a observar a cadência até conseguir estabelecê-la: dois relâmpagos brancos de cinco em cinco segundos.
Quando se voltou novamente para Tânger, esta olhava-o. Ele tinha estado a falar, contando-lhe uma história casual relacionada com a música e com a praia. Tinha começado a contá-la sem muita convicção, para preencher um silêncio incómodo depois de o Piloto ter bebido o seu café e se ter despedido, deixando-os diante um do outro com a música e a última claridade cinzenta apagando-se devagar na baía. Tânger parecia esperar que ele continuasse com a sua história, mas esta tinha acabado há algum tempo, e Coy não sabia o que trazer à baila para preencher o silêncio. Felizmente havia a música, as vozes da rapariga e dos seus acompanhantes, o clima da melodia intensificado pela proximidade da praia e a chuvinha miúda que sussurrava nas folhas de palma do telhado. Podia manter-se calado sem que isso fosse uma violência, de modo que estendeu uma mão em direcção ao copo de vinho branco e levou-o aos lábios. Tânger sorriu. Movia um pouco os ombros ao compasso da música. Ela passara, há já algum tempo, para a caipirinha que lhe brilhava nas íris azul-marinhas fixas em Coy.
— O que estás a ver?
— Observo-te.
Constrangido, ele voltou-se novamente na direcção da praia e depois deitou mais vinho no copo, embora estivesse quase cheio. Os olhos continuavam diante dele, perscrutadores.
— Conta-me — disse ela — o que mudou no mar.
— Eu não disse nada disso.
— Claro que disseste. Diz-me por que razão agora é diferente.
— Não é agora. Já era diferente quando comecei a navegar. Continuava a olhar para ele com atenção, parecendo realmente
interessada. Vestia a sua saia comprida e ampla de algodão azul e uma blusa branca que sublinhava o bronzeado dos últimos dias. O cabelo estava sedoso e limpo tal como uma simples cortina de ouro. Vira-a lavá-lo durante a tarde. Para a ocasião, substituíra o relógio masculino por umas escravas de prata, cujos sete aros brilhavam à luz da vela que ardia no gargalo de uma garrafa, num dos lados da mesa.
— Isso quer dizer que o mar já não presta?
— Também não é isso — Coy fez um gesto vago. — Presta. O que acontece é que... Bom. Já não é fácil manter-se longe.
— Longe de quê?
— Há telefone, fax e Internet... Entramos para a escola náutica porque... Não sei. Porque queremos partir. Queremos conhecer muitos lugares, muitos portos e muitas mulheres...
Os seus olhos distraídos pousaram na cantora mulata. Tânger seguiu a direcção do olhar.
— Conheceste muitas mulheres?
— Neste momento não me lembro.
— Muitas putas?
Encarou-a, irritado. Como aprecias o teu maldito jogo, pensava. Agora tinha pela frente uns olhos de ferro azulado que olhavam para ele implacáveis. Pareciam divertidos mas também curiosos. Coçou o nariz.
— Algumas — respondeu.
Tânger examinou a cantora de soslaio.
— Negras?
Ele bebeu um gole de vinho, esvaziando meio copo de uma vez. Fez barulho ao colocá-lo novamente sobre a mesa.
— Sim — disse. — Negras. E chinesas. E mestiças... Como dizia o Torpedeiro Tucumán, o melhor das putas é não nos pedirem conversa, mas dólares.
Tânger não parecia aborrecida. Olhou novamente para a cantora. Sorria pensativa e ele não viu nada agradável naquele sorriso.
— E como são as negras?
Observava agora os antebraços fortes de Coy, nus sob as mangas arregaçadas da camisa. Ele ficou a contemplá-la um instante e depois deixou-se cair para trás, recostando-se na cadeira. Tentava imaginar uma barbaridade adequada.
— Não sei o que dizer-te. Algumas têm a cona cor-de-rosa.
Viu-a pestanejar, entreabrindo a boca. Por um momento, reparou maldosamente satisfeito, o sorriso parecia desconcertado. Tou-ché, cabrinha. Depois voltou a encontrar o olhar sereno, a careta irónica, o metal azul-marinho reflectindo a luz da vela.
— Porque gostas de te armar em grosseiro e em duro?
— Não me armo. — Bebeu o que restava no copo de vinho. Fê-lo demorando o seu tempo e depois ergueu um pouco os ombros. — Uma pessoa pode ser grosseira, pode ser dura e, além disso, pode ser idiota... Nessa tua ilha, tudo isso parece ser compatível.
— Já chegaste à conclusão se sou cavaleiro ou escudeiro? Ficou pensativo, tocando no copo vazio.
— O que tu és — disse — é uma maldita bruxa má.
Não se tratava de um insulto, mas de um comentário. O enunciado de uma circunstância objectiva, que ela encaixou sem mexer um músculo da cara. Olhava-o tão fixamente que Coy acabou por perguntar a si próprio se acaso estaria a olhar para ele.
— Quem é o Torpedeiro Tucumán?
— Era.
— Quem era o Torpedeiro Tucumán?
Meu Deus, pensou. Como é contida e esperta! Como é diabolicamente esperta! Depois colocou novamente os braços em cima da mesa e abanou a cabeça, rindo-se quase para si próprio. Um riso resignado que fez desaparecer a sua irritação tal como o vento dissipa a névoa. Quando ergueu os olhos viu que ela continuava a olhá-lo, mas que a sua expressão tinha mudado. Também sorria, mas desta vez o sarcasmo já não estava ali. Era um sorriso franco. Não é nada pessoal, marinheiro. E ele sabia que, no fundo, era verdade. Não se tratava de nada pessoal. De modo que pediu à empregada de mesa uma genebra azul com água tónica e depois pôs uma cara de quem recorda: cara de Popeye evocador diante de um copo. Aquelas noites com Olívia, etc. E como se tratava exactamente disso, e ela estava à espera, e não havia nada para inventar porque estava tudo ali, na sua memória, colocou sobre a toalha, sem esforço, a própria personagem, deixando-a correr ao sabor da genebra na sua língua. De modo que falou do Torpedeiro, e da Tripulação Sanders, e do cavalinho de feira que roubaram uma noite num parque de atracções de Nova Orleães, e do Anita's, de Guayaquil e do Happy Landers, de El Callao, e do bordel mais austral do mundo, que era o bar La Turca, de Ushuaia. E da bronca de Copenhaga, e de outra com polícias em Trieste, quando o Torpedeiro e o galego Neira também se puseram em fuga depois de meterem para dentro a mandíbula de um polícia: pernas para que te quero, com Coy suspenso como de costume entre ambos, um em cada braço, e ele balançava os pés no ar sem tocar no chão, e assim chegaram a salvo ao barco. E também contou a Tânger, que o ouvia muito atenta e inclinada para a frente na mesa, a mais fabulosa briga que jamais viram os portos do mundo: a do rebocador de Roterdão que levava marinheiros e estivadores de molhe em molhe e de barco em barco, sentados em bancos compridos, quando um estivador holandês completamente entornado caiu sobre o Torpedeiro e a luta se desencadeou como um regueiro de pólvora — viva Zapata, gritava o galego Neira —, e oitenta homens cheios de álcool envolveram-se aos murros, na camarinha. Coy foi para a coberta apanhar ar e, de vez em quando, o Torpedeiro espreitava por uma escotilha, respirava e voltava a meter-se lá dentro. E tudo acabou com o rebocador arriando, no fim da viagem, marinheiros e estivadores inconscientes, tumefactos e cheirando a álcool, atirando-os como fardos para aqui e para ali, cada qual no seu molhe e no seu barco, tal como um distribuidor de telepizas.
De telepizas, repetiu. Depois ficou calado, com um sorriso vago na boca. Tânger estava imóvel, como se receasse deitar abaixo um castelo de cartas.
— O que mudou, Coy?
— Tudo. — Deixou de sorrir, bebeu mais um pouco e o aroma da genebra azul foi-lhe escorregando pela garganta, anestesiante. — Já não há viagem, porque já quase não há barcos a sério... Agora, um barco é como um avião: não viajamos, transportam-nos do ponto A ao ponto B.
— E antes era diferente?
— Claro que sim. A solidão do viajante era possível. Estávamos entre A e B, suspensos no meio, e o trajecto era longo... íamos com pouca bagagem e o desenraizamento não importava.
— O mar continua a ser o mar. Tem segredos e perigos.
— Mas não como antes. Agora é como chegar demasiado tarde a um molhe vazio e ver o fumo da chaminé afastando-se no horizonte... Quando somos alunos, usamos o vocabulário correcto, bombordo e estibordo, e tudo o resto. Tentamos conservar tradições, confiamos no capitão como em criança confiávamos em Deus... Mas já não funciona... Eu sonhava em ter um bom capitão, como o MacWhirr do Tifón. E sê-lo também, algum dia.
— O que é um bom capitão?
— Alguém que sabe o que faz. Que nunca perde a cabeça. Que sobe até à ponte durante o nosso quarto de serviço e vê um barco obstruindo-nos por um bordo e, em vez de dizer mete tudo a estibordo que vamos abalroar, cala-se, olha para nós e espera que façamos a manobra correcta.
— Tiveste bons capitães?
Coy fez uma careta. Aquela era uma boa pergunta. Virou mentalmente as páginas de um álbum de fotografias antigas com manchas de água do mar. Também havia manchas de merda.
— Tive de tudo — disse. — Miseráveis, bêbados, cobardes, mas também gente estupenda. Mas confiei sempre neles. Toda a minha vida, até há pouco tempo, a palavra capitão me inspirou respeito. Já te contei que a associava com aquele capitão que Conrad descreve: «O temporal cruzara-se com aquele homem taciturno e só conseguiu arrancar-lhe algumas palavras...» Lembro-me de um temporal duro de noroeste, o primeiro da minha vida, no golfo da Biscaia, com ondas enormes que cobriam a proa do Migalota até à ponte. Tínhamos escotilhas McGregor com problemas de juntas que não encaixavam bem. Entrava água a cada vagalhão, e a carga era de minério que, ao molhar-se, desliza facilmente... E cada vez que a proa afundava na água parecendo que não ia voltar a sair, o capitão, Dom Ginés Sáez, que estava agarrado à temoneira, murmurava «Deus» muito baixinho, entredentes... Na ponte estavam quatro ou cinco pessoas. Mas eu, que estava ao lado dele, era o único que conseguia ouvi-lo. Ninguém mais se deu conta. E quando olhou de soslaio e viu que eu estava por perto, não tornou a abrir a boca.
Os três artistas tinham terminado a sua actuação e despediam-se entre aplausos. Foram substituídos por música enlatada, através de altifalantes situados no tecto. Uma guitarra fez-se ouvir. Alguns casais começaram a dançar. Partes porque eu quero que partas. Bolero. Por um milésimo de segundo teve a tentação de a convidar para a pista de dança. Ah! Os dois ali, abraçados, as caras próximas. E quero que outros lábios te beijem, dizia a canção. Imaginou-se com uma mão na cintura dela, pisando-lhe os pés como um pato. Além disso, de certeza que ela era daquelas que interpunham os cotovelos.
— Antes — prosseguiu, esquecendo-se do bolero —, um capitão tinha de tomar decisões. Agora fica assinando os documentos em segurança, há uma diferença de meia tonelada, e aí o temos telefonando ao armador. Assino os papéis, não assino os papéis ?
E num gabinete há três tipos, três lixos com gravata, que lhe dizem não assines. E ele não assina.
— E o que resta do mar?... Quando te sentes ainda marinheiro? Nos problemas, explicou ele. Quando tinham um ferido a bordo, ou quando se quebrava alguma coisa, as pessoas costumavam portar-se bem. Uma vez, contou, uma onda tinha arrancado a porta do leme do Palestine, diante do Cabo. Estiveram dia e meio desgovernados, até chegarem os rebocadores. E os tripulantes voltaram a parecer marinheiros a sério. No geral não passavam de camionistas do oceano e funcionários sindicalizados, mas com a crise retornava o companheirismo. Uma deslocação da carga, uma avaria grave. O mau tempo e tudo isso. Os temporais.
— Soa terrivelmente essa palavra: temporal.
— Há más e há piores. O mais desagradável para um marinheiro é quando calcula o seu rumo e o do temporal, e se dá um empate... Quero dizer, quando chegam os dois ao mesmo tempo e ao mesmo sítio.
Fez uma pausa. Havia coisas que nunca conseguiria explicar-lhe, decidiu. Ventos de força onze diante da Terra Nova, muralhas de água cinzenta e branca fervendo numa névoa de espuma que a funde com o céu, pancadas e rangidos do casco, tripulantes gritando de medo amarrados aos beliches dos seus camarotes, a rádio saturada de maydays de barcos em apuros. E alguns homens com a cabeça tranquila na ponte, ou atando a carga solta nos porões, ou lá em baixo nas máquinas entre caldeiras, turbinas e tubagens, sem saber o que está a acontecer lá em cima, pendentes dos controlos, das luzes de alarme e das ordens, preocupados com a agitação do gasóleo nos depósitos, com a fissura no casco que pode meter água no combustível, com a avaria nos queimadores que os deixe à mercê do mar. Marinheiros tentando salvar um barco e com ele as suas vidas, acelerando nas descidas para manter o controlo, moderando precisamente antes das cristas, procurando espaços para virar entre as ondas maiores, quando o barco já não aguenta de proa. É o momento angustiante em que, em plena manobra, aparece um recife assassino que bate no casco de través e o inclina quarenta graus, enquanto as pessoas, agarradas ao que podem, se entreolham aterrorizadas, perguntando a si próprias se o barco acabará direito ou não.
— Nesses casos — concluiu Coy em voz alta — tudo volta a ser como antes.
Soava demasiado nostálgico, receava. Era impossível sentir saudades do horror. Ele referia-se à nostalgia do comportamento de alguns homens no horror. Mas isso era impossível de explicar à mesa de um restaurante ou em qualquer outro sítio. De modo que resfolegou um pouco, olhando incomodado para um lado e para outro. Estava a falar de mais, pensou de repente. Falar não tinha nada de mal, mas ele não estava habituado a contar a sua vida dessa maneira. Apercebeu-se de que Tânger era daquelas pessoas que faziam falar com facilidade, aquelas cuja conversa consistia em colocar as perguntas adequadas e os silêncios suficientes para que o outro se encarregasse do assunto. Um truque habilidoso: aprendem e ainda por cima ficam bem sem se comprometerem. Ao fim e ao cabo, toda a gente gostava de falar de si própria. És um óptimo conversador, diziam depois. E não tinham aberto a boca. Cretinos. Ele próprio era, de cima a baixo, um cretino e uma língua de palmo e meio. E, no entanto, mesmo consciente de tudo isso, reparava que falar daquilo, mesmo falar sozinho, com Tânger à frente a ouvir, fazia-lhe bem.
—"Agora — disse momentos depois —, a navegação romântica com que sonhávamos em criança vai ficando reduzida a esses pequenos barcos de pavilhões esquisitos que ainda andam fazendo cabotagem por aí, ferrugentos, com o nome pintado por cima do anterior, com capitães sujos de óleo e mal pagos... Eu, acabado de ser nomeado segundo-piloto, andei num porque não encontrei trabalho noutro. Chamava-se Otago e poucas vezes naveguei com tanto prazer como nessa altura. Nem sequer nos barcos da Zoe-line... Mas isso descobri-o mais tarde.
Ela disse que talvez fosse por nessa época Coy ser jovem. E ele reflectiu um pouco; depois mostrou-se de acordo. Sim, admitiu, é provável que fosse feliz nessa altura por ser jovem. Mas com as bandeiras de conveniência, os capitães funcionários e os armadores para quem um barco não diferia muito de um camião com reboque, fora tudo para o caraças. Alguns barcos levavam tão pouca tripulação que necessitavam a bordo de gente de terra para amarração. Filipinos e indianos eram agora tripulantes de elite, e capitães russos, a abarrotar de vodka, destruíam os seus petroleiros um pouco aqui e ali. A única possibilidade de o mar continuar a parecer-se com o mar era num veleiro. Aí ainda se tratava dele e de nós. Mas já não se conseguia viver de um veleiro, acrescentou. Aí estava o exemplo do Piloto.
No copo dela só restava gelo. Os seus dedos de unhas roídas brincavam lá dentro, fazendo-o tilintar. Coy fez tenções de chamar a empregada, mas Tânger abanou a cabeça, recusando.
— Na outra noite, na proa com o foguete de sinalização, impressionaste-me.
Depois de dizer isto, calou-se, olhando-o. E o seu sorriso era mais intenso. Ele riu-se baixinho, novamente de si próprio.
— Não me admiro. Mais impressionado fiquei eu quando caí à água.
— Não estou a falar disso. Estava paralisada vendo aquelas luzes que vinham para cima de nós. Não sabia como agir... Mas tu ias fazendo umas coisas atrás das outras, sem sequer pensar. Uma espécie de rotina diante do desastre. Não perdeste a calma nem alteraste a voz. Nem o Piloto. Parecia uma espécie de fatalismo. Como se fizesse parte do jogo.
Coy encolheu um pouco os ombros, com simplicidade. Olhava para as suas próprias mãos largas e desajeitadas. Nunca imaginara ter de falar dessas coisas com alguém. No seu mundo, ou no mundo aquático de onde fora expulso há pouco tempo, era tudo demasiado óbvio. Só em terra pediam explicações.
— São as regras — disse. — Lá fora assumimos que o desastre está incluído. Não de bom grado, claro. Rezamos ou blasfemamos e, se tivermos garra, lutamos até ao fim. Mas aceitamo-lo. O mar é isso. Podes ser o melhor marinheiro do mundo, mas o mar vem e liquida-te. O único consolo é fazermos o melhor que soubermos... Imagino que assim se devia ter sentido o capitão do Dei Gloria.
A menção do bergantim obscureceu a expressão de Tânger. De repente inclinava a cabeça para o lado, distraída. Tinha os cotovelos em cima da mesa, o queixo apoiado nas mãos. O recorte do cabelo roçava-lhe um ombro.
— Não parece um grande consolo — comentou.
— A mim serve-me. Talvez a ele também lhe tenha servido. Tinham-se acendido os candeeiros que iluminavam o contorno
da baía, e a água da beira-mar tinha reflexos amarelados sob a chuva miudinha, interrompidos por estremecimentos prateados como se bancos de peixes minúsculos nadassem perto da superfície. A luz do farol estava mais precisa, com o feixe prolongado, que a humidade tornava quase corpóreo, girando sem parar na direcção do negrume cerrado que rastejava sobre o mar.
— Deve estar muito escuro lá fora — disse ela.
Um tremor involuntário insinuava-se na sua voz e isso levou Coy a observá-la atentamente: ela tinha os olhos fixos na noite.
— Cair ao mar na escuridão — acrescentou ela, após uns instantes — deve ser terrível.
— Não é agradável.
— Tiveste muita sorte.
— É verdade. Quando caímos assim, o normal é não nos encontrarem.
Tânger colocou a mão direita em cima da mesa, com um tilintar das escravas de prata. Pô-la muito perto do braço de Coy, sem chegar a tocá-lo, mas este sentiu os seus pêlos eriçarem-se.
— Eu já sonhei com isso — estava ela a dizer. — Sonhei com isso durante anos... Caio numa escuridão espessa, densa e negra.
Examinou-a com interesse, um pouco perplexo com o tom confidencial e também com a forma como se voltava de vez em quando na direcção das sombras.
— Suponho que se trata da morte — prosseguiu Tânger, em voz baixa.
Ficou em silêncio, muito quieta, olhando com apreensão para a chuvinha, por cima da balaustrada. Parecia, pensou ele, olhar para além do mar em sombras.
— Morrer sozinha como Zas. Às escuras.
Tinha pronunciado aquelas palavras, após um silêncio enorme, num tom que era quase um sussurro, quase inaudível. De repente parecia realmente assustada, ou perturbada, e Coy agitou-se um pouco na cadeira, desconcertado, com uma confusão de sentimentos. Ergueu uma mão para apoiá-la na dela, mas tornou a deixá-la cair para o lado, sem concluir o gesto.
— Se alguma vez acontecer — disse — gostaria de estar perto de ti para te segurar a mão.
Ignorava como aquilo soaria, mas era-lhe indiferente.
Estava a ser sincero. De súbito via uma menina com medo da noite, aterrada em viajar sozinha através da escuridão infinita.
— Não serviria de nada — respondeu ela. — Ninguém pode acompanhar ninguém nessa viagem.
Tinha-o observado atentamente quando ele dissera o que dissera: estar perto e à mão. Muito séria, muito absorta, analisando o que acabara de ouvir. Mas agora abanava a cabeça como se menosprezasse aquilo com resignação, ou derrota.
— Ninguém.
Depois de dizer aquilo, ficou calada. Olhava-o de súbito com tanta intensidade que Coy voltou a contorcer-se na cadeira, pouco à vontade. Teria dado tudo o que tinha — na realidade não tinha nada — para ser um tipo atraente, com classe, ou, pelo menos, com dinheiro suficiente para sorrir seguro de si próprio, antes de pousar a sua mão sobre a dela, protector. Para lhe dizer eu cuidarei de ti, pequena, àquela mulher a quem apenas há instantes chamara maldita bruxa e que de repente voltava a recordar-lhe a miúda sardenta que sorria nos braços do pai na fotografia emoldurada. A campeã do concurso infantil de natação, vencedora da taça de prata que agora, amolgada e sem uma asa, escurecia numa prateleira. Mas Coy era apenas um pária com um saco ao ombro a bordo de um veleiro que também não era seu, e estava tão longe dela que nem sequer podia aspirar a servir-lhe de consolo, ou de derradeira mão que se aperta, antes de uma viagem hipotética no fim da noite. Por isso sentiu uma impotência muito amarga quando ela contemplou a distância que separava as mãos de ambos sobre a toalha e sorriu tristemente, como se o fizesse às sombras, fantasmas e remorsos.
— Tenho medo disso.
Disse. Então Coy, desta vez sem pensar, esticou a mão até tocar na dela. Ela, sem deixar de o olhar nos olhos, retirou-a muito devagar. E ele virou o rosto para o lado, para que ela não o visse corar, atrapalhado pelo seu deslize, ou pela sua escorregadela. Mas passado meio minuto pensou que, às vezes, a vida proporciona-nos situações singulares com a precisão de uma coreografia rigorosa ou com a má intenção de um brincalhão escondido na toca da eternidade. Porque, no preciso momento em que se voltava na direcção da balaustrada e da praia, envergonhado da sua mão desajeitada e solitária em cima da toalha, viu uma coisa que veio em seu auxílio de uma forma tão oportuna que teve de conter-se para não exteriorizar o seu júbilo: um impulso cego, totalmente irracional, que de repente o fez contrair os músculos dos braços e das costas e projectou um feixe de intensa lucidez no seu cérebro. Porque lá em baixo, perto das luzes que contornavam a praia, sob o alpendre de um quiosque de bebidas já fechado, acabava de reconhecer a silhueta pequena, inconfundível, quase íntima já, de Horacio Kiskoros, ex-oficial da Marinha argentina, sicário de Nino Palermo e anão melancólico.
Desta vez ninguém lhe arrebataria o atum do anzol. De modo que aguardou trinta segundos, desculpou-se pretextando uma visita à casa de banho, e desceu os degraus de dois em dois, saiu pela porta das traseiras, entre baldes de lixo, e foi fazendo uma volta na direcção contrária ao restaurante e à praia. Caminhava com cuidado sob as palmeiras e os eucaliptos, pensando como fazê-lo: um lado a estibordo e um lado a bombordo. A chuvinha miudinha começou a molhar-lhe o cabelo e a camisa, refrescando-lhe o vigor que afinava o seu corpo, tenso do prazer acre da expectativa. Atravessou a estrada até um descampado, andou entre o funcho da valeta e tornou a atravessar a estrada com a escuridão pelas costas, apoiando-se num contentor de lixo. Assopra para aí, disse para consigo. Estava a barlavento da presa que, alheia ao que a esperava, fumava, protegendo-se da chuvinha molha-tolos sob um alpendre de madeira e canas. Estava um carro estacionado junto ao passeio, um Toyota pequeno, branco, com a matrícula de Alicante e com o autocolante de aluguer no vidro traseiro. Coy deu a volta ao carro e viu que Kiskoros mantinha os olhos fixos na esplanada iluminada e na porta principal do restaurante. Vestia um casaco leve, lacinho, e o seu cabelo preto, penteado para trás, reluzia de brilhantina à luz do candeeiro mais próximo. A navalha, pensou Coy, lembrando-se do arco dos guardas-marinhas. Tenho de ter cuidado com a navalha dele. Depois sacudiu as mãos e fechou os punhos, evocando em sua ajuda os fantasmas do Torpedeiro Tucumán, do galego Neira e do resto da Tripulação Sanders. Os ténis ajudaram-no a dar oito passos silenciosos, num sigilo feroz, antes que o outro ouvisse o ruído sobre o cascalho e começasse a voltar-se para verificar quem chegava por trás. Coy viu os olhos de rãzinha simpática perderem a simpatia, abrindo-se desmesuradamente, e o cigarro cair da boca transformada num buraco escuro, com o último fumo ainda enredado em espirais no bigode. Nessa altura saltou, cobrindo a distância que lhe faltava e o primeiro murro atingiu Kiskoros em pleno rosto e fez claque, atirando-lhe a cabeça para trás como se acabasse de quebrar-lhe o pescoço, enquanto o projectava contra a parede do quiosque, justamente por baixo do cartaz: «Quiosque Costa Azul. Especialidades de polvo.»
A navalha, continuava a pensar obcecado, enquanto lhe batia sem parar, sistematicamente e com eficácia, em silêncio. Agora soava a glória: pumba e claque, e também plafe. E Kiskoros, incapaz de manter-se de pé diante da arremetida, escorregava encostado à parede, procurando desesperadamente o bolso. Mas Coy adivinhou-lhe o desejo, de modo que se afastou um pouco, tomou impulso e o pontapé que assestou no braço do argentino fê-lo soltar, pela primeira vez, um prolongado uivo de dor, como um cão a quem tivessem pisado a cauda. Nessa altura agarrou-o pelas lapelas do casaco e puxou por ele com violência, fazendo-o atravessar a calçada em direcção à areia da praia. Puxava e parava para lhe bater e puxava outra vez. E o outro emitia uma série de grunhidos surdos, agónicos, debatendo-se para tentar levar a mão ao bolso e, de cada vez, Coy batia-lhe novamente. Naquela noite feliz não necessitava de espinafres. Agora és meu, pensava atropeladamente, com aquela estranha lucidez que costumava conservar a meio do arrebatamento e da violência. Agora tenho-te inteirinho e não há árbitro, nem testemunhas, nem polícias, nem ninguém que me diga o que devo ou não devo fazer. Agora vou amassar-te até ficares numa polpa de merda e as costelas partidas te espetarem por dentro e engolires seis a seis os teus dentes partidos, não te restando fôlego nem para assobiar um tango.
Tal como um touro que procurasse a barreira para cair, Kiskoros já quase não se debatia. Tinha o lacinho na orelha. A navalha, que acabou por conseguir tirar do bolso, tinha escorregado pelos seus dedos desajeitados e estava na areia, depois de Coy a ter afastado com um pontapé. A luz dos candeeiros vizinhos dava densidade à chuvinha que continuava a cair sobre eles enquanto, à patada, Coy fazia o argentino, coberto de areia húmida, rolar até à beira da água.
Pumba! Ai! Pumba! Ai! Deu os últimos golpes quando o outro já chapinhava na beira-mar, gemendo dorido, numa tentativa para manter a boca fora da água. Pumba! Meteu-se nela até aos tornozelos para desfechar-lhe um último pontapé que o fez rolar um metro, imergindo-o por completo nos reflexos amarelados e na miragem da chuvinha sobre a água negra.
Voltou para trás sentando-se na areia, perto da beira-mar. Enquanto recuperava o fôlego, a tensão dos seus músculos começava a decair. Doíam-lhe os tornozelos de tantas patadas e as costas da mão direita, até ao antebraço e ao cotovelo, pareciam ter os tendões cheios de nós. Nunca na minha vida, disse para consigo, enchi alguém de pancada com tanto gosto. Nunca. Esfregava os dedos para os desintumescer, levantando a cara para que a chuva fina lhe molhasse a testa e os olhos fechados. Assim, imóvel, respirando profundamente com a boca muito aberta, esperou que o galope violento que sentia no peito diminuísse. Ouviu um ruído à sua frente e abriu os olhos. Escorrendo água que o fazia brilhar entre os reflexos, Kiskoros arrastava-se pela beira-mar. Coy ficou sentado na areia, observando os seus esforços. Podia ouvir a respiração entrecortada e os grunhidos sombrios de besta espancada, o chapinhar desajeitado de mãos e pernas incapazes de se levantarem.
Era bom lutar, pensava. Era como limpar sentinas. Era óptimo para a circulação do sangue e dos sucos gástricos colocar nos punhos toda a angústia, mau humor e desesperança que lastravam a alma. Era quase terapêutico que a acção desse tréguas por algum tempo ao pensamento, e os impulsos atávicos, que faziam o ser humano escolher entre a morte ou a sobrevivência, reclamassem a sua parte no jogo da vida. Talvez por isso o mundo estivesse agora como estava, reflectiu. Os homens tinham deixado de lutar, porque era mal visto e isso estava a enlouquecê-los.
Continuava a esfregar a mão dorida. A sua cólera desvanecia-se. Há muito tempo que não se sentia tão bem, tão em paz consigo próprio. Viu que o argentino, de gatas, tirava parte do corpo da água e voltava a desmoronar com água da cintura para baixo. A luz amarelada revelava-lhe o cabelo e o bigode manchados de areia, que escuros regueiros de sangue avermelhavam ao correr por ela.
— Cabrão — disse Kiskoros da beira-mar, sufocado, gemendo como se cada letra lhe doesse.
— Desaparece e vai levar no cu.
Ficaram os dois em silêncio. Coy sentado, olhando. O argentino de barriga para baixo, respirando com dificuldade, um gemido em voz baixa de vez em quando, ao querer mudar de posição. Finalmente, conseguiu arrastar-se para a frente com os cotovelos, deixando um sulco na areia até conseguir tirar as pernas da água. Parecia uma tartaruga prestes a desovar, e Coy continuava a observá-lo desapaixonadamente. A sua cólera tinha desaparecido, ou quase. Não sabia muito bem o que fazer agora.
— Faço apenas o meu trabalho — murmurou Kiskoros passado algum tempo.
— O teu é um trabalho perigoso.
— Limitava-me a vigiar.
— Pois vai vigiar a puta que te pariu na pampa. Levantou-se sem pressas, sacudindo a areia das calças de ganga.
Depois dirigiu-se ao argentino, que tentava levantar-se com muita dificuldade, e ficou a olhar para ele durante um bocado até decidir arremessar-lhe outro soco, desta vez menos impulsivo e mais funcional, derrubando-o novamente de barriga para cima. Pequeno, molhado, tumefacto e coberto de areia, Kiskoros parecia um croquete patético. Inclinou-se para ele, ouvindo-lhe a respiração — milhares de silvos assobiando-lhe nos pulmões — e revistou-o minuciosamente. Levava um telemóvel, um maço de cigarros empapado e as chaves do automóvel de aluguer. Atirou as chaves e o telemóvel ao mar. A carteira era grande e estava cheia de dinheiro e de papéis. Foi até ao candeeiro mais próximo dar uma vista de olhos: um documento de identidade espanhol com a fotografia e o nome de Horacio Kiskoros Parodi, cartões-de-visita alheios, dinheiro espanhol e britânico, um cartão Visa e outro American Express. Também a fotocópia a cores de uma página de revista, que desdobrou com precaução, pois já tinha sido muito manuseada e estava ensopada de água do mar. Sob o título: «Os nossos mergulhadores tácticos humilham a Inglaterra», uma fotografia mostrava vários soldados da Marinha inglesa de braços no ar, guardados por três soldados argentinos com a cara enfarruscada que lhes apontavam pistolas-metralhadoras. Um desses três era de pequena estatura, com olhinhos esbugalhados de rãzinha e bigode inconfundível.
— Olha, tinha-me esquecido. O herói das Malvinas.
Meteu o documento de identidade e os cartões na carteira, juntou o recorte, guardou o dinheiro e atirou a carteira para cima de Kiskoros.
— Conta-me coisas, anda.
— Não tenho nada para dizer.
— O que quer Palermo?... Está aqui perto?
— Não tenho nada para...
Interrompeu-se quando Coy lhe desfechou outro murro na cara. Fê-lo desapaixonadamente, quase sem vontade, e ficou a ver como o argentino, tapando o rosto com as mãos, se contorcia como uma minhoca. Depois foi sentar-se outra vez na areia, sem deixar de o observar. Nunca se tinha enfurecido com ninguém daquela maneira, e espantava-o não sentir compaixão. Mas sabia quem era o homem que estava no chão, não conseguia esquecer-se de Zas, envenenado sobre o tapete, e estava a par do destino que mulheres como Tânger tinham sofrido nas mãos do oficial Horacio Kiskoros e companhia. De modo que aquele fulano podia fazer um canudo com o seu recorte das Malvinas e metê-lo cuidadosamente na anilha.
— Diz ao teu chefe que me estou a cagar para as esmeraldas. Mas se alguém lhe toca, a ela, mato-o.
Disse-o com uma simplicidade insólita, quase com modéstia, e nem sequer chegou a soar como uma ameaça. Era só uma informação desprovida de ênfase ou de matizes. Um aviso à navegação. De qualquer forma, até o ouvinte menos atento teria compreendido que, tratando-se de Coy, aquilo era uma informação verídica. Kiskoros grunhiu de uma forma sombria ao mexer-se sobre um dos lados. Tacteou à procura da carteira, guardando-a com mãos desajeitadas.
—És um estúpido — mastigou. — E estás muito enganado com o senhor Palermo e comigo... Também estás enganado com ela.
Fez uma pausa para cuspir sangue. Agora olhava para Coy por entre o cabelo despenteado, húmido e sujo, que lhe caía sobre a cara. Os olhinhos de rãzinha já não estavam simpáticos: brilhavam de ódio e de desejo de vingança.
— Quando chegar a minha vez...
Sorriu de uma forma horrível com a sua boca inchada, deixando a frase no ar, ameaçador e grotesco ao mesmo tempo, interrompido por um acesso de tosse.
— Estúpido — repetiu com rancor, novamente a cuspir sangue.
Coy ficou a olhar para ele sem dizer nada, antes de se levantar novamente, devagar, quase de má vontade. Não posso fazer mais nada dele, disse para consigo. Não posso matá-lo agora à pancada, porque há coisas que receio perder, e ainda me importam a minha liberdade e a minha vida. Isto não é um romance nem um filme, e na vida real há polícias, juízes e gente assim. Nenhum barco me espera, a fim de levar-me depois rumo às Caraíbas, para me refugiar em Tartaruga, entre os Irmãos da Costa(1), e fazer vinte presas, apesar do inglês. Hoje, os Irmãos da Costa reciclaram-se em construtores de apartamentos, e o governador da Jamaica recebe as ordens de busca e captura por fax.
E continuava assim, entre aborrecido e indeciso, calculando a oportunidade de dar a Kiskoros outro murro na cara ou não lhe bater, quando viu Tânger de pé junto da estrada, sob a luz amarelada do candeeiro. Estava imóvel, olhando para eles.
Na extremidade da baía, o feixe de luz do farol girava horizontalmente, rectilíneo na noite quente de chuvinha miúda. Os intervalos luminosos pareciam estreitos cones de bruma ao passarem repetidamente, recortando de cada vez os troncos esbeltos e as copas imóveis das palmeiras, grávidas de água e de reflexos. Coy deu uma olhadela a Kiskoros, antes de se afastar pela beira-mar na peugada de Tânger. O argentino conseguira chegar até ao carro, mas não levava consigo a chave atirada ao mar, de modo que estava sentado no chão, com as costas apoiadas numa roda, empapado de água e sujo de areia, vendo-os afastarem-se. Desde o aparecimento da mulher não voltara a abrir a boca e ela também não tinha dito nada, limitando-se a observar ambos em silêncio. Mesmo quando Coy, que ainda estava um pouco fora de si, lhe perguntou se não queria aproveitar a conjuntura para enviar cumprimentos a Nino Palermo.
*1. Irmãos da Costa: confraria de flibusteiros do século XVII que actuava sobretudo na zona das Caraíbas, cuja base em terra era a ilha Tartaruga. Libertários por essência, para quem o mais importante era a sua condição de homens livres, não admitiam a propriedade individual e viviam em liberdade e fraternidade sem preconceitos de nacionalidade ou religião. (N. da T.)
Ou talvez, acrescentou, lhe apetecesse interrogar o sudaca(1). Disse isso mesmo, interrogar o sudaca, sabendo que, por muitas patadas que continuassem a dar-lhe, já não havia quem conseguisse arrancar uma palavra a Kiskoros. Sem responder, ela pôs-se a caminhar pela praia, afastando-se dali. E Coy, após uma breve hesitação, dirigiu um último olhar ao maltratado sicário e pôs-se a andar atrás dela.
Alcançou-a em meia dúzia de passos e estava furioso. Já não pelo aparecimento do argentino, que no fim de contas fora oportuno para despejar a bílis que lhe amargava o estômago e a garganta, mas pela forma como ela parecia voltar as costas à realidade, quando lhe interessava. Olá, não gosto, e adeus. Tudo o que não encaixava nos seus planos, os aparecimentos imprevistos, os inconvenientes, as ameaças, as irrupções do mundo real no sonho aparente da sua aventura, era negado, adiado, posto de parte como se nunca tivesse existido. Como se a sua mera consideração atentasse contra a harmonia de um conjunto cuja perspectiva real só ela conhecia. Aquela mulher, concluiu enquanto caminhava mal-humorado pela areia, defendia-se do mundo recusando-se a ver. E não era ele quem podia censurá-la.
E, no entanto, pensou, alcançando-a e agarrando-a por um braço, voltada de repente para ele à luz turva dos candeeiros longínquos, nunca na sua vida maldita tinha visto uns olhos que olhassem tão profundamente e tão longe, quando queriam. Agarrou-a com uma brusquidão quase excessiva, fazendo-a parar, e ficou diante dela observando o cabelo húmido sob a chuva, os reflexos nos olhos dela, as gotas de água multiplicando-lhe as pintas da pele.
— Tudo isto — disse ele — é uma loucura. Nunca conseguiremos...
De repente verificou, surpreendido, que ela estava assustada e tremia. Viu que os lábios entreabertos se agitavam e que um tremor lhe percorria os ombros, quando a luz do farol deslizou sobre eles, marcando os contornos de ambos no seu estreito feixe de luz branca. Viu tudo isso de súbito, com o relâmpago e, alguns segundos mais tarde,
*2. Sudaca: termo depreciativo com que os espanhóis designam os latino-americanos. (N. da T.)
a contraluz seguinte iluminou a chuva quente que de repente começava a tornar-se grossa e intensa. E ela continuava a tremer, enquanto a água lhe caía no cabelo e na cara, colando-lhe a blusa empapada ao corpo, molhando também os ombros e os braços de Coy quando este os abriu para a acolher entre eles, quase sem reflectir. E a carne tépida, trémula sob a noite e a chuva como se a cintilação da luz fosse névoa fria, veio sem reticências refugiar-se de encontro ao corpo dele de modo preciso, deliberado. Veio directamente para ele, para o seu peito e Coy manteve por um instante os braços abertos, ainda sem a abraçar, mais surpreendido que indeciso. Depois fechou-os apertando-a com suavidade, sentindo latejarem os músculos, o sangue e a carne sob a blusa molhada, as coxas longas e firmes, o corpo esbelto que continuava a tremer contra o seu. E a boca entreaberta muito próxima, a boca cujo tremor serenou com os seus lábios, de uma forma prolongada, até ter deixado de estremecer e se tornar de repente bastante quente e suave, abrindo-se mais. E depois foi ela quem apertou o abraço em torno das costas fortes de Coy que ergueu uma mão até à nuca dela, uma mão larga, forte, que segurou o seu pescoço e a sua cabeça, sob o cabelo a pingar de toda aquela chuva que aumentava com um intenso rumor sobre a areia. Dessa forma, as duas bocas abertas procuraram-se com uma ânsia inesperada, como se estivessem ávidas de saliva, de oxigénio e de vida, os dentes entrechocaram-se e as línguas húmidas enlaçaram-se batendo impacientes. Até, finalmente, Tânger se afastar um instante e alguns centímetros para respirar, os olhos abertos olhando-o de muito perto, insolitamente confusos. E depois foi ela quem se lançou para a frente com um gemido prolongadíssimo, semelhante ao de um animal a quem doesse muito uma ferida. E ele manteve-se firme esperando-a, abraçando-a novamente para apertá-la tanto que receou partir-lhe algum osso. E depois andou às cegas com ela suspensa nos seus braços até se aperceber de que estavam metidos no mar, que a chuva caía com uma intensidade atroadora, espessa, e que apagava os contornos da paisagem, enquanto os salpicos crepitavam como se a baía fervesse à sua volta. Os seus corpos sob as roupas empapadas continuavam a procurar-se violentamente, chocando-se em fortes abraços, em beijos desesperados que o desejo precipitava, lambendo a água da cara, os lábios cheios de chuva e de sabor a pele molhada sobre carne quente.
E ela fazia deslizar na boca do homem o seu queixume interminável de animal ferido.
Foram para o barco a pingar água, procurando-se desajeitadamente até tropeçarem na escuridão. Chegaram abraçados, beijando-se a cada passo, apressados no resto do caminho, deixando regueiros de água na escada e no chão da casa de pilotagem. E o Piloto, que fumava às escuras, viu-os descer pela escotilha e desaparecer no corredor a caminho dos camarotes da popa. E talvez tenha sorrido quando os dois se voltaram na direcção da brasa do seu cigarro para lhe desejarem boa-noite. Depois, Coy guiou Tânger levando-a à frente, as mãos na cintura dela, enquanto a mulher se voltava a todo o instante para o beijar avidamente na boca. Tropeçou numa sandália que ela acabava de descalçar e depois noutra e na porta dos camarotes Tânger parou e apertou-se contra ele, e abraçaram-se esmagados contra a antepara de teca, as bocas procurando-se novamente com urgência, às cegas na penumbra, reconhecendo os seus corpos sob a roupa que já arrancavam um ao outro: botões, cinto, a saia caindo ao chão, as calças de ganga abertas pelas ancas de Coy, a mão de Tânger entre elas e a pele dele, o calor da mulher, o triângulo de algodão branco quase arrancado das coxas dela, o tilintar da chapa metálica de soldado. E o vigor masculino, o reconhecimento mútuo fascinado, o sorriso dela, a suavidade incrível dos seus peitos despindo-se lisos, erectos. Homem e mulher cara a cara, arquejos que soavam a desafio. O gemido animador dela e o impulso dele para a frente, na direcção do beliche, através do camarote estreito e das últimas peças de roupa molhadas num lado e noutro, revoltas sob os corpos cobertos de chuva que empapava os lençóis, numa busca mútua pela enésima vez, olhando-se de perto, sorridentes, absortos, cúmplices. Matarei quem se interpuser agora, pensava Coy. Quem quer que seja. A sua pele, a sua saliva e a sua carne abriam caminho, sem dificuldade, noutra carne cada vez mais húmida, mais quente e mais acolhedora, profundamente, muito profundamente, para lá de onde todos os enigmas tinham a sua chave oculta, e onde a passagem dos séculos forjou a única verdadeira tentação, na forma de resposta ao mistério da morte e da vida.
Muito depois, às escuras, com a chuva ouvindo-se em cima, na coberta, Tânger rodou até ficar de lado, com o rosto afundado na concavidade do ombro de Coy e uma mão entre as coxas dele. Ele, aplacado, sentia o corpo nu colado ao seu, a mão da rapariga quente e imóvel sobre a sua carne exausta, ainda molhada e com o cheiro dela. Tinham encaixado um no outro como se durante as suas vidas respectivas e anteriores não tivessem feito outra coisa a não ser procurar-se. Era bom sentir-se bem-vindo, pensou, e não apenas tolerado. Era boa aquela cumplicidade imediata, instintiva, que não precisava de palavras que justificassem o inevitável. Aquele percurso feito por cada um da parte do caminho que lhe competia, sem falsos pudores. Aquele presságio do vem aqui não pronunciado; aquele duelo estreito, cerrado, ofegante, intenso, cuja naturalidade, nessa noite, quase tinha roçado os maus-tratos, de igual para igual, sem necessidade de pretextos, nem de quaisquer justificações. Sem passar a factura, sem equívocos, sem condições. Sem enfeites nem remorsos. Era bom que no fim tivesse acontecido tudo aquilo, exactamente como tinha de acontecer.
— Se acontecer alguma coisa — disse ela de repente — não me deixes morrer sozinha.
Permaneceu quieto, com os olhos abertos na escuridão. De repente, o rumor da chuva parecia sinistro. O seu estado de sonolenta felicidade ficou em suspenso e tudo se tornou novamente agridoce. Sentia a respiração dela no seu ombro, lenta e quente.
— Não fales disso — murmurou. Sentiu que ela mexia a cabeça, grave.
— Tenho medo de morrer às escuras e só.
— Isso não vai acontecer.
— Isso acontece sempre.
A mão continuava imóvel entre as coxas de Coy, a cara na concavidade do ombro, os lábios sussurravam de encontro à pele. Ele sentiu frio. Rodou a cara para o lado, afundando-a no cabelo ainda molhado da rapariga. Não lhe conseguia ver o rosto, mas soube nesse momento que era o mesmo da fotografia da moldura de prata. Todas as mulheres, sabia-o agora, tiveram esse rosto alguma vez.
— Estás viva — disse. — Sinto latejar o teu pulso contra mim. Tens carne e sangue que a percorre. És bonita e estás viva.
— Um dia não estarei mais aqui.
— Mas ainda estás.
Sentiu-a encostar-se mais ainda. Aproximar a boca do seu ouvido.
— Jura... que não me deixarás... morrer só.
Disse-o muito devagar, e a sua voz era um sussurro. Coy permaneceu imóvel por um tempo, com os olhos fechados, ouvindo a chuva. Depois abanou a cabeça afirmativamente.
— Não te deixarei morrer só.
— Jura.
— Juro.
Sentiu que o corpo dela, nu, montava em cima do seu, com as coxas abertas sobre as suas ancas, o roçar dos peitos e a boca procurando a sua. Então, uma lágrima quente e grossa caiu-lhe na cara, vinda de cima. Abriu os olhos surpreendido, para se deparar com um rosto feito de sombras. E enquanto lhe beijava, confuso, os lábios entreabertos e húmidos, apercebeu-se de que por eles deslizava outra vez, ténue como um suspiro, aquele longo, doloroso queixume de fêmea ferida.
O MESTRE CARTÓGRAFO
O Dei Gloria não estava ali. Coy foi adquirindo essa convicção pouco a pouco, à medida que a quadrícula traçada sobre a carta ia ficando coberta sem encontrarem nada. Com sondagens entre os sessenta e os vinte metros, a Pathfinder tinha já traçado quase todo o relevo das duas milhas quadradas onde deveriam encontrar-se os restos do bergantim. Os dias passavam e estavam cada vez mais quentes e tranquilos, e o Carpanta navegava a dois nós, com o ronronar do seu motor a gasóleo, por um mar plano e luminoso como a superfície de um espelho, bordo para norte e bordo para sul com precisão geométrica, com contínuas mudanças de posição por satélite, enquanto o feixe da sonda varria o relevo sob a quilha e Tânger, Coy e Piloto se revezavam, empapados em suor, diante do ecrã de cristal líquido. Os símbolos de fundo, cor de laranja suave, cor de laranja escuro, vermelho pálido iam-se sucedendo com exasperante monotonia: lodo, areia, algas, cascalho, rochas. Tinham coberto sessenta .e sete das setenta e quatro passagens previstas e efectuado catorze imersões para fazer o reconhecimento de ecos suspeitos, sem encontrar o menor indício dos restos de um barco submerso. Agora, a esperança desvanecia-se com as últimas horas de busca. Ninguém dizia em voz alta o veredicto fatídico, mas Coy e o Piloto dirigiam um ao outro longos olhares, e Tânger, obstinadamente imóvel diante da sonda, parecia cada vez mais carrancuda e silenciosa. A palavra que flutuava no ar era fracasso.
Na véspera do último dia fundearam com trinta metros de amarra em sete metros de água, entre a ponta e a ilha da Cueva de los Lobos. Quando o Piloto parou o motor e a proa do Carpanta rodou devagar em torno da âncora para aproar sem muita convicção para poente, o Sol escondia-se atrás das fendas da serra parda, iluminando em tons dourados e avermelhados as matas de tomilho, os palmitos e as figueiras-da-índia. Ao pé das rochas, o mar estava quase imóvel, agitando-se suavemente nas rochas próximas e na pouca areia, branca entre as algas.
— Não está aí — disse Coy em voz baixa.
Não falou para ninguém em concreto. O Piloto tinha acabado de ferrar a vela grande à espicha e Tânger estava sentada nos degraus de popa, com os pés dentro de água, olhando para o mar.
— Tem que estar — respondeu ela.
Mantinha o olhar imóvel no mesmo sítio, a quadrícula imaginária que tinham navegado quase sem descanso durante duas semanas. Vestia uma camisola de manga curta de Coy que lhe ficava grande, cobrindo-a até ao início das coxas, e mexia os pés devagar, chapinhando suavemente como as crianças que brincam à beira-mar.
— Tudo isto é absurdo — comentou Coy.
O Piloto tinha descido à casa de pilotagem, e por uma portinhola aberta chegavam os ruídos que fazia preparando o jantar. Quando subiu novamente à coberta para abrir a caixa da botija de butano e ligar o gás da cozinha, o seu olhar grave encontrou o de Coy. É problema teu, marinheiro.
— Tem que estar — disse Tânger de repente.
Continuava como antes, agitando os pés na água. Coy estava um pouco mais apoiado na bitácula, procurando alguma coisa adequada para dizer ou para fazer. Como não lhe ocorria nada, foi à procura de uma máscara de mergulho e atirou-se ao mar, da proa, para comprovar o unhar da âncora. A água estava limpa, tépida e agradável, e a luz decrescente permitia seguir a linha da amarra espalhada sobre o fundo de areia com algumas rochas. A âncora, uma CQR de vinte e cinco quilos, estava na posição correcta, livre de algas que pudessem fazê-la desunhar, se o vento aumentasse durante a noite. Desceu um pouco para a ver bem e depois subiu devagar, regressando ao veleiro, nadando de costas apenas com o movimento das pernas, sem pressa, desfrutando o mergulho. Desejava adiar o mais possível o momento de encontrar-se novamente com Tânger cara a cara.
Uma vez a bordo, esfregou-se com uma toalha, contemplando a costa, que o Sol-poente ia tornando totalmente avermelhada, prolongada em arco para este: a rota do mármore, das legiões romanas e dos deuses. Desta vez, no entanto, a visão não lhe causou qualquer prazer. Pôs a toalha a secar e desceu pela escotilha, sentando-se nos últimos degraus da escada. O Piloto ocupava-se com as caçarolas na cozinha, preparando uma travessa de macarrão, e Tânger estava sentada na casa de pilotagem, com as cartas náuticas abertas em cima da mesa de navegação.
— Não há engano possível — garantiu ela, antes que Coy lhe dissesse alguma coisa.
Tinha o seu lápis na mão e indicava as coordenadas de latitude e longitude sobre as diversas cartas, marcando milhas nas escalas das latitudes para as transportar com o compasso de pontas para o rectângulo quadriculado da zona, tal como ele a ensinara a fazer.
— Tu próprio reviste os cálculos — acrescentou. — Alinhamentos para Mazarrón, Cabezo de Las Víboras, Punta Percheles, cabo Tinoso — inclinava-se muito séria, mostrando-lhe os resultados, como uma estudante que quisesse convencer o professor. — ... 37° 32 minutos a norte do equador e 4° 51 minutos a este de Cádis nas cartas esféricas de Urrutia, correspondem a 37° 32 minutos de latitude norte e 1° 21minutos de longitude oeste relativamente ao meridiano de Greenwich... Estás a ver?
Coy fingiu rever os números. Tinha efectuado aquelas operações tantas vezes que as sabia de cor. As cartas estavam cheias de anotações feitas pela sua mão.
— As tabelas de correcção podem estar erradas...
— Não estão — ela abanava energicamente a cabeça. — Já te disse que provêm das Aplicações de Cartografia Histórica de Néstor Perona. Aí, até o erro de 17 minutos de longitude de Cádis relativamente a Greenwich que tinham as cartas de Urrutia foi corrigido. São precisas em cada minuto e segundo... Graças a elas encontrou-se há dois anos o Caridad e o São Rico.
— A posição dada pelo ajudante de piloto podia estar errada. Com a pressa, alguém pode ter cometido um erro.
— Não. Isso não pode ser. — Tânger continuava a negar com as reticências de quem ouve o que não deseja ouvir. — Era tudo demasiado exacto. O ajudante de piloto falava mesmo da proximidade do cabo, a nordeste... Lembras-te?
Olharam ao mesmo tempo pela porta aberta por estibordo, em direcção à mole avermelhada que se perfilava no extremo do arco da costa, para lá da baía de Mazarrón e do cabo Falcó. Tendo já avistado o cabo, tinha declarado o ajudante de piloto, de acordo com o relatório.
— Também pode acontecer — acrescentou Tânger — que o Dei Gloria esteja muito enterrado na areia e tenhamos passado por ele sem o detectarmos...
Era possível, disse Coy. Embora pouco provável. Nesse caso, explicou, a sonda teria assinalado pelo menos diferentes densidades na estrutura do fundo. Mas estivera durante todo o tempo indicando cangadas de areia e lodo com, pelo menos, dois metros. Era demasiada profundidade para não ter detectado nada.
— Alguma coisa teria de haver aí — concluiu —, nem que fosse apenas o metal dos canhões. Dez canhões juntos são uma massa de ferro importante... E a esses dez é preciso acrescentar, embora possam ter ficado dispersos pela explosão, os doze do corsário.
Tânger tamborilava na carta com o lápis. Tinha a outra mão na boca, roendo a unha do dedo polegar. A sua testa tinha agora rugas como cicatrizes. Coy esticou uma mão para a colocar no pescoço dela, na esperança de apagar aquela carranca, mas ela permaneceu insensível à carícia, pendente das cartas que tinha à frente. Os planos do bergantim e do chaveco também estavam à vista, presos com fita-cola a uma das anteparas da casa de pilotagem. Tinham mesmo calculado nas cartas a área de dispersão dos canhões do corsário, tendo em conta a explosão, a deriva e a distância relativamente ao fundo.
— O ajudante de piloto — sugeriu Coy, retirando a mão — pode ter mentido.
Tânger voltou a abanar a cabeça negativamente e as marcas na sua testa tornaram-se mais pronunciadas.
— Demasiado jovem para urdir um engano desse calibre. Referiu-se ao cabo próximo, à costa a algumas milhas... E trazia no bolso, anotados a lápis, os dados de latitude e longitude.
— Então não me lembro de mais nada... A não ser que o meridiano não seja o de Cádis.
Tânger dirigiu-lhe um olhar sombrio.
— Também pensei nisso — disse. — Foi a primeira coisa que fiz, entre outras coisas, porque em O Tesouro de Rackam, o Terrível, Tintim e o capitão Haddock cometem um erro semelhante, ao confundir a longitude de Paris com a de Greenwich...
Às vezes, pensava Coy ouvindo-a, pergunto a mim próprio se não estará a gozar comigo. Ou se tudo isto não passa de uma peripécia infantil, imaginada num livro de histórias aos quadradinhos. Porque não é sério. Ou não o parece. Ou não o pareceria, rectificou, se não andasse pelo meio aquele anão argentino com a sua navalha, colado às nossas sombras, e aquele dálmata do seu chefe. O sonho de uma menina que brincava procurando barcos afundados. Com tesouros e com maus.
— Mas nós conhecemos bem todos os meridianos usados na época — disse. — Temos a posição fornecida pelo ajudante de piloto, e podemos confirmá-la na carta, dispondo mesmo do sítio onde o recolheram após o naufrágio... Não pode tratar-se de Hierro, nem de Paris nem de Greenwich.
— Claro que não — ela indicava a escala na parte superior de uma das cartas. — A longitude é relativa a Cádis, sem a menor dúvida: com ela tudo coincide. O meridiano zero da nossa busca é o castelo dos guardas-marinhas, já o era em 1767 e continuou a sê-lo até 1798. Longitude antiga de Cádis ao naufrágio: 4 graus 51minutos este. Longitude actual, uma vez corrigida: 5graus 12minutos Este. Correspondência com Greenwich: 1graus 21minutos oeste. Nenhum outro meridiano permite situar o Dei Gloria no Urrutia e nas cartas modernas de uma forma tão perfeita.
— Tudo isso está muito bem. De uma forma perfeita, dizes. Mas falta-nos o mais importante: o barco.
— Alguma coisa devemos ter feito mal.
— Isso é evidente. Agora diz-me o quê.
Ela tinha atirado o lápis para cima da mesa. Levantava-se, olhando para a carta. Coy observou os seus pés descalços sobre as tábuas do chão, as coxas longas e pintalgadas sob a camisola que se adaptava às formas do peito. Voltou a acariciar-lhe o pescoço e, desta vez, ela encostou-se um pouco contra ele. O seu corpo firme, morno, cheirava levemente a suor e a sal.
— Não sei — disse, pensativa. — Mas se há um erro, cometemo-lo nós. Tu e eu... Se amanhã terminarmos a busca sem resultados, será preciso começar de novo.
— Como?
— Não sei. Pela aplicação das correcções cartográficas, suponho. Um erro de meio minuto significa quase meia milha. E embora as tabelas de Perona sejam bastante exactas, os nossos cálculos podem, em vez disso, não o ser. Bastaria uma pequena imprecisão na latitude e na longitude do ajudante de piloto; dez segundos ou algumas décimas de minuto inestimáveis com os sistemas de posicionamento da altura, mas decisivas quando transferimos tudo para a carta... Talvez o bergantim esteja uma milha mais a sul, ou mais a este. Talvez nos tenhamos enganado ao reduzir tanto a área de busca.
Coy suspirou o mais fundo que pôde. Aquilo era razoável, mas significava começar de novo. Em todo o caso, também significava continuar junto dela. Rodeou-lhe a cintura com os braços. Ela voltara-se para ele e olhava-o de muito perto, inquisitiva, com a boca entreaberta. Tem medo, compreendeu ele, resistindo à tentação de beijá-la. Tem medo que o Piloto e eu digamos basta.
— Não dispomos de uma eternidade — disse. — O tempo pode piorar novamente... Até agora tivemos sorte com a guarda civil, mas podem começar a aborrecer-nos um dia destes. Perguntas e mais perguntas. E depois, Nino Palermo e a sua gente — apontou para o Piloto, que levantava a mesa para colocar a toalha, fingindo não estar a ouvir a conversa. — .. .Também é preciso pagar-lhe.
— Não me angusties — libertara-se devagar, com suavidade, das mãos que lhe enlaçavam a cintura. — Preciso de pensar, Coy. Preciso de pensar.
Sorria um pouco, distante, embaraçada, como se pretendesse dulcificar o gesto. De repente voltava a ficar a milhas de distância, e Coy sentiu que uma tristeza escura lhe escorregava pelas veias.
O vazio dos olhos azul-marinhos intensificou-se quando estes voltaram à porta aberta sobre o mar.
— E, no entanto, está aí, nalgum lado — murmurou ela. Apoiava-se à porta com ambas as mãos, inclinada para fora, de costas para Coy. Este passou uma mão pela cara mal barbeada, apalpando a sua própria desolação. De repente, ela parecia novamente isolada, sozinha, egoísta. Voltava para a nuvem de onde todos estavam excluídos, e ele nada podia fazer para mudar as coisas.
— Sei que está lá em baixo, perto — acrescentou Tânger em voz muito baixa. — A minha espera.
Coy não disse nada. Sentia uma raiva surda, impotente. A de um animal debatendo-se numa armadilha. E soube que passaria aquela noite acordado na escuridão, junto ao muro intransponível de umas costas silenciosas.
E é agora que eu estou prestes a aparecer nesta história, embora brevemente. Ou que, para sermos mais exactos, nos aproximamos da parte mais ou menos decisiva que eu tive na resolução — para a designar de alguma forma — do enigma sobre o naufrágio do Dei Gloria. Na realidade, como talvez algum leitor perspicaz tenha reparado, fui eu próprio quem esteve, durante todo este tempo, a contar-vos tudo isto, o capitão Marlowe do romance, se admitirem a comparação. Com a reserva de que, até agora, não achei necessário sair da cómoda posição que utilizei, quase sempre, na terceira pessoa. São, dizem, as regras da arte. Mas alguém referiu uma vez que os relatos, tal como os enigmas e a própria vida, são sobrescritos fechados que contêm outros sobrescritos fechados no seu interior. Além disso, a história do barco perdido, de Coy, o marinheiro desterrado do mar, e de Tânger, a mulher que o devolveu a ele, seduziu-me desde o momento em que os conheci. Já quase não acontecem, que eu saiba, histórias como esta. E muito menos são aqueles que as contam, mesmo enfeitando-as um pouco, tal como os antigos cartógrafos decoravam as zonas brancas ainda inexploradas. E talvez não as contem, porque já não existem caramanchões rodeados de buganvílias onde escurece devagar, enquanto empregados malaios servem genebra — Bombaym azul-safira, naturalmente e numa cadeira de baloiço um velho capitão desfia a sua história envolto no fumo do seu cachimbo. Há muito tempo que os caramanchões, os empregados malaios, as cadeiras de baloiço e mesmo a genebra azul são propriedade dos operadores turísticos. Além disso, não é permitido fumar, nem cachimbo nem qualquer outra coisa. É difícil, portanto, fugir à tentação de brincar às velhas histórias, contadas como sempre se contaram. De modo que, retomando o assunto, chegou o momento de abrirmos o penúltimo embrulho: aquele que me traz, modestamente, para primeiro plano. Sem essa voz narrativa, compreendam-no, não haveria aroma clássico. Deste modo diremos apenas, em jeito de prelúdio imediato, que o veleiro que naquela tarde atravessou a entrada do porto de Cartagena era um barco derrotado. Como se, em vez de regressar de uma viagem de apenas algumas milhas a sudoeste, voltasse tosquiado, depois de ir buscar lã, do encontro real com um corsário que o tivesse despojado de ilusões. Na mesa das cartas, a quadrícula sobre a carta náutica 4631 estava cheia de cruzinhas inúteis, tal como um cartão de bingo usado, decepcionante e imprestável. Durante aquela vinda, falou-se pouco a bordo do Carpanta. Os seus tripulantes ferraram em silêncio as velas, pairando diante dos esqueletos oxidados do Cemitério dos Barcos Sem Nome e depois dirigiram-se a motor para um dos molhes do porto de recreio. Desceram juntos a terra, balançando pela falta de hábito de pisarem terra firme, passaram junto ao Felix von Luckner, o porta-contentores belga da Zeeland Ship, que se preparava para largar do molhe comercial, e começaram pelo Valência e pelo Taibilla, continuaram com o Gran Bar, o bar Sol e a Taberna del Macho, e acabaram a via-sacra três horas mais tarde em La Obrera, uma pequena tasca portuária situada num ângulo atrás da antiga câmara municipal. Naquela noite, recordar-se-ia Coy mais tarde, pareciam três camaradas, três marinheiros que desciam a terra, depois de uma longa e azarada viagem. E beberam até se lhes turvar a vista: um e mais um e mais outro ainda, que tem de ser, o penúltimo, em uníssono e sem complexos. O álcool distanciava as coisas, as palavras e os gestos. De modo que Coy, consciente disso, assistia ao serão, incluindo ao seu próprio espectáculo, com uma curiosidade perversa que era simultaneamente atónita e culpada. Aquela também foi a primeira e a última vez que viu Tânger beber bastante, e fazê-lo de uma forma deliberada, intensa. Sorria como se, de repente, o Dei Gloria fosse um pesadelo deixado para trás, e apoiava a cabeça no ombro de Coy. Bebeu o mesmo que ele, genebra azul com gelo e um pouco de água tónica, enquanto o Piloto os acompanhava com valentes pancadas de cognac Fundador moderadas com copos de cerveja. O Piloto contava histórias curtas e incoerentes de portos e de barcos, com aquele ar sério e a voz muito lenta e cuidadosa que punha quando o álcool lhe tornava a língua insegura, e semicerrava os olhos que brilhavam divertidos, pícaros, amistosos. Às vezes, Tânger ria-se e beijava-o, e o Piloto, encavacado, sempre tranquilo, baixava um pouco a cabeça, ou olhava para Coy e sorria novamente, com os cotovelos apoiados na desengonçada mesa de fórmica. Parecia estar bem, e Coy também: acariciava a cintura tensa de Tânger, a curva esbelta das suas costas, sentindo o corpo dela encostado ao seu, os lábios dele na orelha e no pescoço dela. Tudo poderia ter acabado ali, e não era um mau final para um fracasso. Porque tudo era grotesco e lógico ao mesmo tempo, concluiu. Não tinham encontrado o bergantim e, no entanto, era a primeira vez que os três se riam juntos sinceramente, sem problemas, soltos e ruidosos. Aquilo parecia exactamente uma libertação. E com esse estado de espírito beberam o tempo todo como se interpretassem papéis sobre si próprios, conscientes do ritual que as circunstâncias exigiam.
— Pela tartaruga — disse Tânger.
Ergueu o copo, tocando no de Coy, e esvaziou o que restava de um gole, com o gelo arrefecendo-lhe os lábios que depois pousou longamente nos dele. Tinham-na avistado a caminho de Cartagena, à tarde, uma milha a sul da Islã de Las Palomas: um chapinhar na água, ao longe. Tânger perguntou o que era aquilo e Coy deu uma vista de olhos com os binóculos: uma tartaruga-marinha debatendo-se numa rede de pesca. Tinham aproado na sua direcção, observando os esforços do animal para tentar libertar-se. A rede envolvia a carapaça e as patas ensanguentadas, estrangulando a cabeça que se esforçava por manter-se fora de água, à beira da asfixia. Era raro encontrar tartarugas naquelas águas e a sua própria situação revelava bem porquê. A rede era uma daquelas intermináveis, submersas por todo o Mediterrâneo: centenas e centenas de metros suportados por bidões de plástico em jeito de flutuadores, labirintos mortais onde caía qualquer animal vivo. A tartaruga nunca conseguiria libertar-se, as forças faltavam-lhe e crispavam-se-lhe, agonizantes, as pálpebras enrugadas sobre os seus olhos esbugalhados. Mesmo que se libertasse da rede, o seu esgotamento e as suas feridas sentenciavam-lhe a morte. Mas para Coy era indiferente. Antes que alguém dissesse o que quer que fosse, atirara-se ao mar com a faca do Piloto na mão, cego de raiva, e cortara com rasgões ferozes a rede em volta do animal. Rasgava a malha com fúria, como se estivesse diante de um inimigo que odiasse com toda a sua alma. Aspirava e mergulhava para cortar mais abaixo, a meio da água que o sangue tornava rosada e, ao emergir, via muito ao perto um olho desorbitado do animal, olhando-o fixamente. Cortou o mais que pôde, rugindo de ira ao tirar a cabeça para fora, a fim de respirar, antes de mergulhar de novo e destruir a rede o mais possível. E mesmo depois da tartaruga ficar finalmente livre e deixar-se ir à deriva, devagar, agitando debilmente as barbatanas, continuou a cortar malhas até o braço deixar de responder-lhe e não aguentar mais. Então nadou até ao Carpanta, depois de dar uma última vista de olhos à tartaruga, cujo olho agonizante continuava a olhar para ele enquanto se afastava. Não teria muitas oportunidades, exausta e com aquele sangue que mais cedo ou mais tarde atrairia alguma tintureira voraz. Mas, pelo menos, seria um final no mar alto, de acordo com o seu mundo e a sua espécie, e não uma morte miserável, estrangulada entre uma meada de cordas trançadas pela mão do homem.
Em La Obrera pediram mais genebra, mais cognac e mais cerveja, e Tânger continuava a encostar a cabeça no ombro de Coy. Ciciava em voz baixa uma canção e de vez em quando interrompia, erguia o rosto e ele procurava os lábios dela, frios do gelo e perfumados da genebra, para os aquecer com os seus. Ninguém mencionava o Dei Gloria e tudo parecia de acordo com os cânones, com o que era exigido pelas circunstâncias e pelas personagens que eles, excepto talvez o Piloto — ou talvez este também, inconscientemente —, interpretavam naquela versão actualizada do velho assunto. Tinham vivido essa cena cem vezes antes, e era tranquilizador perder a partida em tempos em que os homens eram educados para verem esfumar-se certo tipo de êxitos. No balcão, diante do taberneiro que Coy recordava ali desde sempre com o seu avental e a sua beata na boca, bêbados de nariz vermelho, clientes habituais de braços magros e tatuados esvaziavam copos de vinho e taças de cognac voltando-se de vez em quando para a mesa deles, sorrindo-lhes com cumplicidade. Eram velhos conhecidos do Piloto e, de quando em quando, o taberneiro servia uma rodada por conta dos três da mesa. À tua saúde, Piloto, e à companhia. À tua, Ginés. À tua, Gramola. À tua, Jaqueta. Tudo estava perfeito; Coy sentia-se em paz e recreava-se com a sua própria personagem e só faltava, lamentou, o piano. Com Lauren Bacall olhando de soslaio enquanto cantava com aquela voz rouca, um pouco velada, que na versão original com legendas se parecia à de Tânger. Ou vice-versa. Depois, chegados a um certo ponto, o álcool encarregar-se-ia de pintar as imagens a preto e branco. Porque depois de tantos romances, tantos filmes e tantas canções, já nem sequer havia bêbados inocentes. E Coy perguntou a si próprio, invejando-o, o que deveria sentir o homem que pela primeira vez saiu à caça de uma baleia, de um tesouro ou de uma mulher, sem antes o ter lido em livro nenhum.
Despediram-se na muralha. Tinham deixado o barco limpo e ancorado e o Piloto ia passar essa noite na sua casa do bairro de pescadores de Santa Lucía. Ficaram a vê-lo afastar-se com passo inseguro entre as palmeiras e as grandes magnólias e depois olharam para baixo, para o porto, onde para lá do clube naval e do Restaurante Maré Nostrum, o Felix von Luckner largava amarras com toda a coberta iluminada e com as suas luzes reflectindo-se na água escura do molhe. Tinha soltado o lançante de popa e Coy repetiu mentalmente as ordens que o piloto estaria a dar, de uma das asas da ponte, nesse momento. Leme todo a estibordo. Devagar a vante. Pára a máquina. Leme a meio. A ré meia força. Larguem espias de proa. Tânger estava ao seu lado, observando também a manobra do barco, e de repente disse quero tomar um duche, Coy. Quero despir-me e tomar um duche bem quente, com tudo cheio de vapor como se fosse névoa no mar alto. E quero que tu estejas entre essa névoa e que não me fales de barcos, nem de naufrágios, nem de nada. Esta noite bebi tanto que só quero abraçar um herói rude e silencioso, alguém que regresse de Tróia e cuja pele e cuja boca saibam a fumo de cidades queimadas e a sal. Disse isto e ficou a olhar da forma que olhava às vezes, calada, muito séria e atenta, como se espreitasse alguma coisa nele. Olhou-o dessa forma, com o ferro azulado dos seus olhos que a genebra diluía em azul-marinho muito brilhante, quase líquido. E entreabria a boca como se o gelo de todos os copos bebidos a tivesse arrefecido tanto que precisasse da boca de Coy durante horas para aquecê-la. Então, ele esfregou o nariz e sorriu como costumava fazer, com aquela expressão tímida que lhe infantilizava o rosto e suavizava os seus traços duros, o seu nariz demasiado grande e as feições toscas, quase sempre mal barbeadas. Herói rude e silencioso, dissera ela. Naquela ilha específica dos cavaleiros e dos escudeiros, nenhum deles pronunciara as palavras mágicas. Apenas, mentir-te-ei e trair-te-ei. Mas mesmo nesse contexto de mentir ou de trair, ninguém dissera ainda: amo-te. Embora nesse preciso instante, com o mundo oscilante em volta e o álcool deslizando pelas veias a cada batimento, ele esteve prestes a ser vulgar e a fazê-lo. Tinha chegado mesmo a abrir a boca para pronunciar as palavras indizíveis. Mas ela, como se o pressentisse, colocou os seus dedos sobre os lábios de Coy. Fê-lo aproximando-se muito, o azul líquido dos seus olhos, cintilante e escuro ao mesmo tempo, e ele voltou a sorrir, resignado, beijando aqueles dedos. Depois respirou fundo, como se fosse mergulhar no mar, e olhou em volta durante cinco segundos, antes de lhe dar a mão e atravessar a rua em linha recta até à porta da Pensão Cartago, de uma estrela, quartos com casa de banho e vista para o porto. Tarifas especiais para oficiais da marinha mercante.
Naquela noite, entre azulejos brancos e espesso vapor de água, choveu nas margens de Tróia, enquanto as naves zarpavam. Era, com efeito, uma bruma tépida, cinzenta ou feita de cinzentos, onde todas as cores ficavam subordinadas a essa chuva mansa caindo sobre uma praia deserta, na qual podiam ver-se vestígios do desenlace: um capacete de bronze esquecido, o fragmento de uma espada partida e semienterrada na areia, cinzas que o vento trazia da cidade queimada, invisível no cenário mas que se adivinhava próxima, ainda fumegante, enquanto os últimos navios aqueus içavam as suas velas húmidas, afastando-se ao longe. Era o nostos dos heróis homéricos: o regresso e a solidão dos últimos guerreiros que regressavam a casa após a batalha, para serem assassinados pelos amantes das suas mulheres ou se perderem no mar, vítimas da cólera ou do capricho dos deuses. E entre aquela névoa quente, o corpo nu de Tânger procurava o de Coy, a água com sabão à altura das coxas, a pele pintalgada e limpa, reluzente de humidade. Procurava-o com determinação e uma intensa fixação do olhar, encurralando-o literalmente contra a borda da banheira. E ali encostado, com a água quente na cintura e a chuva cálida sobre a cabeça, escorrendo-lhe pela cara e pelos ombros, Coy viu-a erguer-se devagar, elevar-se sobre ele e descer depois decidida, lenta, milímetro a milímetro, sem lhe deixar outra saída senão a fuga para a frente, entre as suas coxas profundas, o abraço intenso, desesperado, na corda bamba da lucidez que desaparecia com a sua entrega e com a sua derrota. Nunca, até essa noite, Coy se sentira violado por mulher alguma. Nunca tão minuciosa e deliberadamente posto à margem. Porque não sou eu, raciocinava com os últimos vestígios daquele naufrágio onde o seu pensamento se desvanecia. Não é a mim que ela abraça, nem é ninguém a quem possa atribuir-se um rosto, uma voz, uma boca. Não foi por mim que noutras vezes gemia longa e dolorosamente, nem é a mim que agora imagina. É o herói rude, masculino e silencioso que antes reclamava com voz rouca. O sonho que ela, que todas elas, trazem na pele e no ventre desde que o mundo existe: aquele que colocou a semente nas suas entranhas e depois embarcou rumo a Tróia em navios gregos. O homem cuja sombra nem sequer os cínicos sacerdotes, os pálidos poetas, os razoáveis homens da paz e da palavra, que espreitam junto do tapete inacabado, conseguiram jamais apagar completamente.
Ainda era de noite quando Coy acordou e ela não estava ao seu lado. Tinha sonhado com um buraco negro, o ventre de um cavalo de madeira e com companheiros cobertos de bronze que deslizavam silenciosos, de espada na mão, pelo coração de uma cidade adormecida. Sentou-se, inquieto, para ver a silhueta de Tânger recortada na penumbra da janela, sobre as luzes da muralha e do porto. Fumava um cigarro. Estava de costas e não conseguiu vê-la, mas sentia o cheiro do cigarro. Levantou-se, nu, e foi até ela. Tinha vestido a camisa de Coy, sem abotoar, apesar do fresco da noite que entrava pela janela aberta. Ao pescoço brilhava a corrente de prata com a chapa de soldado.
— Julguei que estavas a dormir — disse ela, sem se voltar.
— Acordei e não te vi.
Tânger não disse mais nada e ele permaneceu imóvel, olhando-a. Expelia o fumo muito devagar, depois de o reter cada vez que inspirava. A brasa, ao avivar-se, iluminava de vermelho as suas unhas roídas e rombas. Coy colocou-lhe uma mão no ombro e ela tocou-lhe de uma forma ausente, distraída, antes de chupar novamente o cigarro.
— O que terá acontecido à tartaruga? — perguntou passado um bocado.
Coy encolheu os ombros:
— A esta hora já morreu.
— Se calhar não. Pode ter sobrevivido.
— Pode ser.
— Pode ser?... — observou-o por um instante, de soslaio. — Às vezes há finais felizes, Coy.
— Claro. Às vezes. Reserva-me um.
Ficou novamente calada. Olhava outra vez para a zona da muralha, para o buraco deixado no molhe pelo barco da Zeeland Ship.
— Já tens resposta para o problema do cavaleiro e do escudeiro? — acabou por perguntar em voz muito baixa.
— Não há resposta para isso.
Ela riu-se baixinho, ou pareceu fazê-lo. Coy não tinha a certeza.
— Enganas-te — disse. — Há sempre uma resposta para tudo.
— Então diz-me o que faremos agora.
Demorou a responder. Parecia tão longe dali como os despojos do Dei Gloria. O cigarro consumira-se e ela inclinou-se para o apagar no parapeito da janela, com muito cuidado, desfazendo a brasa até à última partícula. Depois deixou-o cair para a rua.
— Fazer? — inclinava a cabeça para um lado, como se reflectisse sobre essa palavra. — ...O que temos feito todo este tempo, naturalmente. Continuar procurando.
— Onde?
— Outra vez em terra firme. Os barcos afundados nem sempre se encontram no mar.
E foi assim que os vi aparecer no dia seguinte no meu gabinete da Universidade de Múrcia. Estava um daqueles dias muito luminosos que costumamos ter por aqui, com grandes paralelogramos de sol dourando as pedras do claustro entre os reflexos dos vidros e da água das fontes. Tinha posto os óculos de sol para ir ao bar da esquina tomar um café e, no regresso, em mangas de camisa e casaco ao ombro, encontrei Tânger Soto à minha espera na porta: loura, bonita, sardenta, com uma saia comprida, azul. Inicialmente tomei-a por uma aluna, dessas que por estas épocas me vêm pedir ajuda na preparação da tese. Depois reparei no tipo que estava com ela, perto mas mantendo-se um pouco à distância. Suponho que sabem a que me refiro se, por esta altura, conhecem um pouco Coy. Então ela, que trazia uma carteira de cabedal ao ombro e um cilindro de cartão debaixo do braço, apresentou-se e tirou da carteira um exemplar do meu livro Aplicações de Cartografia Histórica. E eu pude identificá-la como a jovem de que me falara algumas vezes a minha querida amiga e colega Luisa Martín-Merás, chefe de cartografia do Museu Naval de Madrid, descrevendo-a como esperta, introvertida e eficiente. Lembrei-me até de que tínhamos mantido algumas conversas telefónicas sobre correcções no Atlas de Urrutia e sobre documentos históricos arquivados na universidade.
Convidei-os a entrar, ignorando a expressão carrancuda dos alunos que esperavam no corredor. Era época de exames e os trabalhos por corrigir amontoavam-se em cima da minha mesa, no chiqueiro que tenho por gabinete. Retirei os livros das cadeiras, para se poderem sentar, e ouvi a sua história. Para ser mais preciso, ouvi-a a ela, que foi quem falou durante quase todo o tempo e também ouvi a parte da história que naquele momento ela achou por bem contar-me. Vinham de Cartagena, a apenas meia hora de carro pela auto-estrada, e o assunto podia resumir-se a um barco afundado, uma documentação que possibilitava a sua localização, um infrutífero tactear prévio e as coordenadas exactas da latitude e da longitude que, por alguma razão, estavam inexactas. O mesmo de sempre. Porque devo dizer que estou habituado a consultas deste tipo. Embora, por motivos pessoais, assine os meus trabalhos e os meus livros com o mesmo nome e com o modesto título que figura no meu cartão-de-visita sob o anagrama, familiar ao meu ofício, do T dentro do O — Néstor Perona, mestre cartógrafo —, lecciono a cátedra de Cartografia da Universidade de Múrcia há já muito tempo, as minhas publicações têm algum significado no mundo científico e, com alguma assiduidade, tenho de responder a dúvidas e problemas colocados por instituições ou particulares. Não deixa de ser curioso que, num tempo em que a cartografia sofreu a maior revolução da sua história (com a fotografia aérea, os mapas por satélite e a aplicação da electrónica e da informática), afastando-se dos rudimentares mapas antigos traçados por exploradores e navegantes, os estudiosos se vejam na necessidade, cada vez maior, de que alguém mantenha o frágil cordão umbilical que une a modernidade a épocas pretéritas da ciência, que no fim de contas não é mais que o mito provado. O problema existia já nos séculos XV e XVI, quando os então evoluídos cartógrafos flamengos tiveram de se esforçar para conciliarem as indicações contraditórias dos autores da Antiguidade com as novas descobertas dos navegadores portugueses e espanhóis, e repetiu-se nas gerações sucessivas. Dessa forma, agora, sem gente como eu — desculparão esta pequena vaidade, talvez legítima — o mundo antigo perder-se-ia de vista, e muitas coisas deixariam de fazer sentido à luz fria do neón da ciência moderna. Por isso, cada vez que alguém precisa de olhar para trás e entender o que vê, vem ter comigo. Com os clássicos. Naturalmente, recebo consultas de historiadores, bibliotecários, arqueólogos, hidrógrafos e também caçadores de naufrágios e de tesouros, em geral. Talvez se lembrem da descoberta do galeão São Rico em frente a Cozumel, da procura da Arca de Noé no monte Ararat, ou daquela famosa reportagem para a televisão do National Geographic sobre a localização do Virgen de La Caridad diante de Santoíía, no golfo da Biscaia, e do resgate de dezoito dos seus quarenta canhões de bronze: esses três episódios — apesar do da arca ter terminado num fracasso grotesco — foram possíveis graças às tabelas de correcção desenvolvidas pela minha equipa de colaboradores da Universidade de Múrcia. E até outro velho conhecido desta história, Nino Palermo, me deu a determinada altura a honra duvidosa de algumas consultas, embora depois as coisas não fossem mais longe, quando andava atrás da pista, creio, de oitenta mil ducados que se afundaram com uma galera espanhola em 1562, diante da torre de Vélez Málaga. Enfim... Para mais pormenores, remeto para as minhas publicações na revista Cartographica e para vários dos meus livros: as já citadas Aplicações, por exemplo; ou o estudo das loxodrómias — loxos e dromos, vocês já sabem — em Os Enigmas da Projecção Mercator. Também podem consultar o meu trabalho sobre os 21 mapas do atlas inacabado de Pedro de Esquivel e Diego de Guevara, ou as biografias do padre Ricci (Li Mateu: O Ptolomeu da China) e de Tofino (O Hidrógrafo do Rei), o Catálogo Hidrográfico Antigo que fiz em colaboração com Luisa Martín-Merás e Belén Rivera, ou as monografias Cartógrafos Jesuítas no Mar e Cartógrafos Jesuítas no Oriente. Escrevi tudo isto num gabinete, naturalmente. Certas coisas, como os sonhos juvenis, devem visitar-se pessoalmente apenas quando se é jovem. Na maturidade, os postais e o vídeo impõem-se aos sentidos, e deparamo-nos em Veneza não com o esplendor, mas com a humidade.
Mas vamos ao assunto. E este é que, naquela manhã, no gabinete da universidade, os meus dois visitantes expuseram o seu problema. Ou melhor, expô-lo ela, porque ele, sentado entre as pilhas de livros que eu afastara para lhe dar lugar, ouvia discretamente. E devo confessar que aquele marinheiro silencioso — ainda demorei um bocado a conhecer a sua profissão — me pareceu simpático, talvez pela sua forma de ouvir mantendo-se à margem, ou pelo seu aspecto tosco mas boa pessoa, com o olhar franco que costumava manter no nosso, pela sua forma de coçar o nariz quando parecia desconcertado ou perplexo, pelo sorriso tímido, as calças de ganga e os ténis, os braços fortes sob a camisa branca com as mangas arregaçadas até ao cotovelo. Era desse tipo de homens, nos quais, com razão ou sem ela, pressentimos poder confiar. E o papel dele em toda esta peripécia, a sua intervenção no nó e no desenlace é a razão principal que me leva a contá-la. Na minha juventude eu também li certos livros. Além disso, costumo recorrer à extrema cortesia — cada qual tem os seus métodos — como forma superior de desprezo para com os meus semelhantes. E a ciência a que me dedico é uma forma tão eficaz como qualquer outra de manter à distância um mundo povoado de gente que no fundo me irrita, e entre quem prefiro escolher sem o menor sentido de equidade, consoante as minhas simpatias ou antipatias. Como diria o próprio Coy, cada qual se organiza como pode. De modo que, por alguma estranha razão chamem-lhe solidariedade ou afinidade — sinto necessidade de justificar este marinheiro desterrado do mar, e talvez seja esse o motivo de lhes narrar a sua história. No fim de contas, relatar a sua aventura junto de Tânger Soto parece-se um pouco com a projecção cartográfica mercatoriana: para representar plana uma esfera, às vezes é preciso forçar um pouco as superfícies nas altas latitudes.
O caso é que naquela manhã, no meu gabinete, Tânger Soto me pôs ao corrente dos traços gerais do assunto, para passar depois a colocar o problema: 37° 32minutos norte e 4° 51minutos este numa carta esférica de Urrutia. Um barco que se afundara aí no último terço do século XVIII e isso correspondia, feitas as correcções adequadas com a ajuda das minhas próprias tabelas cartográficas, a uma posição moderna de 37° 32minutos norte e 1° 21minutos oeste. A pergunta da equipa visitante consistia em se estaria correcta essa transformação. E eu, depois de avaliar um momento, disse que, se as tabelas tivessem sido bem aplicadas, possivelmente estaria.
— No entanto — disse ela — o barco não está aí.
Olhei-a com alguma reserva. Neste tipo de coisas sempre desconfiei das afirmações inapeláveis e das mulheres, bonitas ou feias, armadas>em espertas. Foram muitas as que passaram pelas minhas aulas.
— Tem a certeza?... Imagino que um barco afundado não anda delatando a sua posição aos gritos.
— Eu sei. Mas investigámos a fundo, mesmo no terreno.
Ou seja, que tinham molhado os pés, deduzi. Tentava situar o casal nalguma das espécies catalogadas por mim, mas não era fácil. Arqueólogos amadores, historiadores ávidos, caçadores de tesouros. De trás da minha secretária, sob a reprodução da Tabula Itinerária de Peutinger que tenho emoldurada na parede — oferta dos meus alunos quando obtive a cátedra —, dediquei-me a estudá-los com atenção. Fisicamente, ela encaixava nas duas primeiras categorias, e ele na terceira. Partindo do princípio de que os arqueólogos, os historiadores ávidos e os caçadores de tesouros têm um aspecto definido.
— Então não sei — disse. — Só me ocorre o mais elementar: os dados originais estão errados. A latitude e a longitude são falsas.
— Isso é improvável — ela abanava a cabeça, segura, fazendo o cabelo louro, que reparei estar cortado numa curiosa assimetria, roçar-lhe o queixo. — Há razões documentais sólidas. Nesse sentido, só seria aceitável uma relativa margem de erro, o que nos levaria a um sector de busca mais amplo... Mas antes queremos descartar qualquer outra possibilidade.
Achei graça ao tom de voz da dama. Tão competente e seguro. Formal.
— Por exemplo?
— Uma falha da nossa parte ao aplicarmos as suas tabelas... Gostaria de lhe pedir para rever os cálculos.
Voltei a olhar para ela por alguns instantes e depois dei uma olhadela ao outro, que nos ouvia muito quieto, muito calado e muito bom rapaz na sua cadeira, com as manápulas apoiadas nas pernas. A minha curiosidade era limitada. Já ouvira muitas histórias de buscas como aquela. Mas os alunos que esperavam lá fora acabrunhavam-me, o dia estava demasiado bonito para corrigir exames, ela era insolitamente atraente — sem ser uma beleza por causa daquele nariz visto de lado, ou talvez justamente por isso — e ele parecia-me simpático. Porquoi pas? Disse para comigo tal como o comandante Charcot. Aquilo não ia roubar-me muito tempo, de modo que concordei. O tubo de cartão continha algumas cartas enroladas, que Tânger Soto abriu em cima da minha mesa. Entre elas reconheci uma reprodução em tamanho natural de uma carta esférica de Urrutia. Conhecia aquela carta, evidentemente, e examinei-a com afecto. Menos bonita que as de Tofifio, claro. Mas magnificamente gravada a ponta seca em placas de cobre batido e polido e bastante precisa para a sua época.
— Vejamos — disse. — Data do naufrágio?
— 1767. Costa sudeste espanhola. Posição por marcações a terra quase simultâneas ao momento do naufrágio.
— Meridiano de Tenerife?
— Não. Cádis.
— Cádis — sorri um pouco, animador, enquanto procurava a escala de longitudes correspondente na parte superior da carta. — Adoro esse meridiano. Refiro-me ao velho, naturalmente. Tem o aroma tradicional daquilo que se perdeu, como a Islã de Hierro do velho Ptolomeu... Já sabem ao que me refiro.
Coloquei os óculos para ver ao perto e comecei a trabalhar sem que eles me dissessem se o sabiam ou não. A latitude foi o que primeiro estabeleci sem dificuldade: nisso era bastante exacta. Na realidade, há três mil anos que os navegadores fenícios já sabiam que a altura do Sol na meridiana, ou a das estrelas próximas ao Pólo Norte sobre o horizonte de um lugar, mede a latitude geográfica do mesmo. Agora até uma criança poderia fazê-lo. Uma criança com noções de cosmografia, claro. Também não é qualquer criança.
— Têm sorte por este episódio ter acontecido em 1767 — comentei. — ...Apenas cem anos antes, a latitude poderia obter-se quase com a mesma facilidade, mas a longitude teria deixado muito a desejar. Em 1583, Mattteo Ricci, que era um dos grandes cartógrafos da época, cometia erros de até cinco graus ao calcular longitudes relativamente ao meridiano de Tenerife... O globo de Ptolomeu demorou mil e quinhentos anos a desinchar e fê-lo pouco a pouco... Suponho que conhecem a famosa frase de Luís XIV, quando Picard e La Hire deslocaram o mapa de França um grau e meio: «Os meus cartógrafos tiraram-me mais terra que os meus inimigos.»
Ri-me sozinho da anedota batida, e Tânger teve a cortesia de me acompanhar com um sorriso. É deveras interessante, disse para comigo, observando-a pormenorizadamente. Estive algum tempo a tentar situá-la com mais precisão, até ter decidido desistir. A mulher é o único ser que não pode definir-se com duas orações consecutivas.
— De qualquer forma — continuei — Urrutia aperfeiçoou muito, embora tenha sido necessário esperar por Tofirlo para que, com o fim do século, a cartografia hidrográfica espanhola se ajustasse à realidade... De qualquer forma... Vamos lá ver. Bom. Considero que a sua latitude estimada é absolutamente correcta, minha querida. Está a ver?... Trinta e dois minutos norte. Segundo parece, tanto o cartógrafo como o cavalheiro que tirou a latitude no seu mapa afinaram bem.
Disse cavalheiro e não dama porque, apesar de não ser verdade, gosto de armar-me em repugnante machista diante das minhas alunas. Também queria comprovar se Tânger Soto era das que têm tempo livre para se ofenderem com este tipo de asneiras. Mas não
parecia ofendida. Limitou-se a voltar-se um pouco na direcção do seu acompanhante.
— Esse cavalheiro é este marinheiro.
Olhei para Coy por cima dos meus óculos com um interesse renovado.
— Marinha mercante?... Muito gosto. Os seus cálculos e os meus são idênticos, em princípio.
Não disse nada. Sorriu vagamente, pouco à vontade, e coçou o nariz algumas vezes. Inclinada sobre a minha mesa, Tânger apontava a escala superior na carta esférica.
— Estabelecer a longitude — disse — colocou-nos mais problemas.
— Lógico — encostei-me para trás na cadeira, professoral. — Até os relógios marítimos de Harrison e Berthoud se terem aperfeiçoado, e isso foi muito depois de meados do século XVIII, estabelecer a longitude foi o grande problema dos navegadores. A latitude era dada pelo Sol ou pelas estrelas, mas a longitude, que agora qualquer relógio de pulso barato nos facilita, só podia calcular-se através do método impreciso das distâncias lunares. Quando Urrutia levantou as suas cartas, situar-se no mar relativamente a um meridiano ainda não estava totalmente resolvido. Havia relógios de pêndulo e sextantes, mas faltava o instrumento fiável: um cronometro seguro que calculasse esses quinze graus contidos em cada hora de diferença entre a hora local e a do primeiro meridiano... Por isso, os erros de longitude eram mais apreciáveis que os de latitude. Até 1700, vejam bem, não se estabeleceu a verdadeira longitude do Mediterrâneo: vinte graus a menos dos sessenta e dois que lhe atribuiu Ptolomeu.
Concedi a mim próprio uma pausa para observá-la. Não parecia, de todo, impressionada. Coy também não. Se calhar já sabiam tudo isto que lhes estava a contar. Mas eu era um mestre cartógrafo, e eles tinham vindo ver-me ao meu gabinete por sua própria vontade. Cada qual tem a sua personagem e interpreta-a o melhor que pode. Se aqueles dois queriam ajuda, teriam de pagar portagem. Ao meu ego.
— Parece mentira, não é verdade? — prossegui no mesmo tom de voz, permitindo-me acrescentar um toque terno. — ...Quando vejo um miúdo pintando com lápis de cor o seu caderno de geografia, penso que, desde sempre, calculando triangulações, distâncias lunares e eclipses de planetas, os homens estudaram a terra e as suas costas, observando cada acidente do terreno, sondando metro a metro, para desenhar mapas do que viam. «Sendo este caminho tão dificultoso, escrevia Martin Cortês, seria difícil dá-lo a entender com palavras ou escrevê-lo com a pena. A melhor explicação que para isto descobriram os engenhos dos homens é dá-lo pintado numa carta»... Dessa forma se dominou a natureza, se tornaram possíveis as explorações e as viagens... Com o seu talento e com as ajudas rudimentares da agulha magnética, do astrolábio, do quadrante, da balestilha e das tabelas afonsinas, o homem começou a desenhar as costas, marcou nas cartas os perigos, colocou faróis e torres nos sítios adequados — apontei para a Tabula Itinerária sobre a minha cabeça. Não era o paradigma da exactidão, com todas aquelas calçadas romanas e o rigor geográfico sacrificado à eficácia militar e administrativa, mas era o gesto que contava. — ...E fê-lo com tanta imaginação e eficácia, apesar das imprecisões lógicas, que ainda hoje os satélites mostram paisagens que foram descritas quase na perfeição por homens que as exploraram e navegaram há centenas de anos... Homens que, sobretudo, falaram, observaram e pensaram... Conhecem a história de Eratóstenes?
Contei-a, evidentemente. De fio a pavio e sem poupar nos pormenores. Um rapaz esperto, esse cireneu. Director da biblioteca de Alexandria, para terem uma ideia. Havia um poço em Assuão a cujo fundo só chegavam os raios de sol de 20 a 22 de Junho. Isso situava o poço no Trópico de Câncer e, por outro lado, a cidade de Alexandria situava-se a norte desse ponto, à distância conhecida de 5000 estádios. De modo que Eratóstenes mediu o ângulo do Sol ao meio-dia de 21 de Junho e deduziu que o arco medido, uns 7o, era a quinquagésima parte do meridiano da Terra. Calculou para o meridiano 250 000 estádios, ou seja, uns 45 000 quilómetros. Têm de reconhecer que não estava nada mal, não é verdade? Considerando que a medida real da circunferência terrestre é de 40 000 quilómetros. Menos de catorze por cento de erro, uma grande precisão relativa, tratando-se de um fulano que viveu dois séculos antes de Cristo. ,
— Por isso — concluí —, adoro o meu ofício.
Continuavam sem se mostrar impressionados, mas eu estava nas minhas sete quintas. E é verdade que adoro o meu trabalho. Posto isto, decidi continuar a ocupar-me com a consulta.
— Bem — disse, após os cálculos oportunos. — Os meus parabéns. Aplicaram correctamente as minhas tabelas. Obtenho, tal como vocês, uma longitude moderna de Io 21' a oeste de Green-wich...
— Então temos um problema sério — disse Tânger. — Porque aí não há nada.
Olhei-a com uma expressão de pesar, novamente por cima dos óculos que têm a tendência incomodativa de deslizarem para a ponta do meu nariz. Observei o marinheiro de soslaio. Não parecia incomodado pela forma como eu apoiava um cotovelo na mesa e examinava a loura. Talvez a sua fosse uma simples relação profissional de toma lá, dá cá. Concebi esperanças.
— Terão de rever então essa posição original no Urrutia, receio bem. Ou ampliar, como você previa, a área de busca... O barco pode ter derivado desde a última posição conhecida, ou ter navegado mais um pouco antes de afundar... Um temporal?
— Combate — disse ela, concisa. — Com um corsário.
Que bonito e que clássico, pensei. E que poucas possibilidades de acertar tinham aqueles dois. Pus uma cara de circunstância.
— Então — alvitrei com gravidade —, entre o estabelecimento da posição e o local do naufrágio podiam ter acontecido muitas coisas... E a bordo estariam demasiado ocupados para se porem a determinar a altura do Sol ou marcações a terra. Creio que isso vos coloca numa situação difícil.
Deviam estar conscientes disso antes de virem falar comigo, porque as minhas palavras não pareceram inquietá-los mais do que já estavam. Só ele se limitou a olhar para ela, como se estivesse pendente de uma reacção que não se produziu. Tânger continuava a observar-me como se olhasse para um médico que só tivesse desembuchado metade do diagnóstico. Dei uma nova olhadela à carta à procura de uma boa notícia. Ficará tetraplégico, mas poderá assobiar pasodobles, ou pintar com os dedos de um pé. Alguma coisa do estilo.
— Suponho que não há dúvidas quanto às cartas utilizadas serem as de Urrutia — comentei. — ...Qualquer outra poderia significar alterações da posição teórica com a qual estamos a trabalhar.
— Nenhuma dúvida. — Perguntei a mim próprio, ouvindo-a se aquela dama duvidaria alguma vez. — Há testemunhos directos dos tripulantes.
— Tem a certeza de que se trata do meridiano de Cádis?
— Não pode ser nenhum outro. Paris, Greenwich, Ferrol, Cartagena... Nenhum deles se adequa à área geral do naufrágio. Só Cádis.
— O meridiano velho, imagino — sorriso profissional, o meu. De acordo. — Não terão caído no erro, mais frequente do que se julga, de confundi-lo com San Fernando.
— Naturalmente que não.
— Está bem. Cádis. Reflecti a sério.
— Dou por assente — disse passados alguns instantes — que você me conta apenas o que acha conveniente contar-me, e compreendo-a. Entendo esse tipo de circunstâncias. — Ela suportava o meu olhar com um enorme sangue-frio. — ...No entanto, talvez possa confiar-me mais alguma informação sobre o barco.
— Era um bergantim procedente da costa andaluza. Rumo nordeste.
— Bandeira espanhola?
— Sim.
— Quem era o armador?
Vi que hesitava. E se tudo tivesse ficado por aí, eu não teria continuado a perguntar e ter-me-ia despedido deles com toda essa cortesia a que anteriormente já me referi. Não se pode vir espremer um mestre cartógrafo a troco de uma cara bonita, e, ainda por cima, esconder com uma mão o que parece mostrar-se com a outra. Ela deve ter lido esse pensamento na minha cara, porque começou a abrir a boca para falar. Mas foi Coy, da sua cadeira, quem pronunciou as palavras adequadas:
— Era um barco jesuíta.
Observei-o com afecto. Era um bom rapaz, aquele marinheiro. Suponho que esse foi o momento preciso em que me conquistou para a sua causa. Olhei para a mulher. Concordava com um leve sorriso, enigmático, a meio caminho entre a desculpa e a cumplicidade. Só as mulheres bonitas se atrevem a sorrir desta forma, depois de termos estado prestes a apanhá-las numa mentira.
— Jesuíta — repeti.
Depois abanei a cabeça de cima para baixo algumas vezes, saboreando a informação. Aquilo era bom. Era mesmo estupendo, e uma pessoa, imagino, torna-se cartógrafo para poder gozar de momentos como este. Demorando o meu tempo, contemplei com muita atenção a carta aberta sobre a mesa, consciente do duplo olhar fixo em mim. Contei mentalmente meio minuto.
— Convidem-me para almoçar — acabei por dizer ao chegar aos trinta. — Acho que acabo de ganhar um bom vinho e uma excelente refeição.
Levei-os à Pequena Taberna, um restaurante de cozinha huer-tana1, que fica atrás do Arco de San Juan, perto do rio. Fi-lo, divertindo-me com o lance, como os toureiros que não têm pressa, e desfrutei da sua expectativa, doseando a coisa a conta-gotas: aperitivo, uma garrafa de Marquês de Riscai grande reserva, mais do que razoável, pisto2 murciano, sangue frito com cebola, verduras grelhadas. Eles mal tocaram na comida, mas eu fiz as honras ao lugar e à mesa.
— Esse barco — disse, uma vez decorrido o tempo adequado — não pode ser encontrado nos 37° 32 minutos de latitude e nos 1° 21minutos de longitude este de Cádis, pela simples razão de que nunca aí esteve.
Pedi mais pisto. Estava delicioso e abria o apetite vê-lo sobre o balcão, exposto em enormes alguidares de barro. Também abria o apetite ver a cara que punham à medida que lhes desfiava a história.
— Os jesuítas tinham uma longa tradição cartográfica — prossegui, molhando o pão no molho. — O próprio Urrutia contou com a sua ajuda técnica para o levantamento das suas cartas esféricas... Ao fim e ao cabo, a tradição científica e hidrográfica da Igreja vem de longe: a primeira citação de um instrumento náutico encontra-se nos Actos dos Apóstolos: «E deitando a sonda, acharam vinte braças.»
*1. Cozinha huertana: a região de Múrcia é considerada a horta de Espanha e a sua cozinha integra muitos legumes, hortaliças e vegetais. (N. da T.)
Aquele toque erudito não lhes fez muita mossa. Estavam impacientes, claro. Ele nem pretendia escondê-lo, com as mãos imóveis de cada lado do prato, olhando-me com cara de estar a pensar: «quando será que este imbecil vai parar com os rodeios?» Ela ouvia com uma calma aparente que me atrevo a qualificar de profissional: valia para isso, sem dúvida. Não mostrava indícios de nada que não fosse uma atenção extrema, como se cada uma das minhas vaquida-des fosse ouro puro. Sabia manipular os homens. Mais tarde, soube até que ponto.
— O caso — prossegui, entre duas dentadas e dois goles do grande reserva —, é que alguns dos mais importantes cartógrafos pertenceram à Companhia de Jesus: Ricci, Martini, o padre Four-nier, autor da Hydrographie... Tinham os seus sistemas, as suas missões na Ásia, as suas reduções americanas, as suas próprias rotas, os seus feudos de todo o tipo. Os seus barcos, capitães e pilotos. Blasco Ibanez descreveu-os como A Aranha Negra e, de certa forma, tinha razão.
Continuei com a refeição e com os pormenores, reservando o golpe de efeito final. Os jesuítas, acrescentei, dispunham das suas escolas de cosmografia, cartografia e náutica. Sabiam como eram impostantes os conhecimentos geográficos exactos, e os seus religiosos, desde o tempo de Inácio de Loiola, estavam encarregados de recolher, em todas as viagens, dados úteis para a Companhia. Até o marquês de Ia Ensenada — apontei com um espargo verde espetado no garfo — lhes encomendou, no tempo de Felipe V, um mapa moderno e pormenorizado de Espanha, que não se chegou a imprimir devido à queda do ministro. Também falei da sua estreita relação com Jorge Juan e António de Ulloa, os cavalheiros do Punto Fijo3 que mediram o grau de meridiano no Peru. Em matéria científica, em suma, os jesuítas meteram o nariz em todo o lado. Nos amigos e nos inimigos, naturalmente. Por isso tomavam precauções. Eu próprio, no decurso dos meus trabalhos, tinha 3 Cavalheiros do Punto Fijo: Jorge Juan e António de Ulloa percorreram a cordilheira dos Andes à procura da linha ideal que dividia o mundo em dois. Para as suas medições, um deles tinha de ficar horas e dias inteiros, imóvel, no cume de um pico enquanto o outro fazia os seus cálculos e medições no cume mais próximo. Os índios da cordilheira, ao vê-los tão quietos durante tanto tempo, passaram a chamá-los «Caballeros dei Punto Fijo». (TV. da T.)
tropeçado com documentos que às vezes foram difíceis e outras vezes impossíveis de interpretar. Aqueles tipos tinham uma infra-estrutura dedicada ao que hoje — sorri — chamaríamos contra-espionagem.
— Quer dizer que utilizavam códigos e linguagem cifrada?...
— Sim, minha querida. Esse vosso barco navegava dentro de um sistema de códigos internos e secretos. Como todos os da Companhia, ia pelo mundo com cartas que, tal como as de Urrutia e as outras, indicavam escalas de meridianos e paralelos necessários à navegação: Cádis, Tenerife, Paris, Greenwich — bebi um gole de vinho e concordei satisfeito: o empregado acabava de abrir a segunda garrafa. — ...Mas existe uma particularidade. Lembrem-se de que o meridiano é um conceito relativo, que serve para nos situarmos num mapa que imita a superfície da Terra mediante uma projecção esférica... Há cento e oitenta meridianos que, em princípio, são arbitrários. O primeiro, que outros chamam meridiano zero, pode passar por onde quisermos, pois não há nem no céu nem na Terra sinal fixo que obrigue a contar a longitude a partir daí. Dada a forma da Terra, todos os meridianos estão aptos a serem considerados o principal e, qualquer deles, pode receber tão citado e ilustre nome. Por isso, até se ter adoptado Greenwich como referência universal, cada país teve o seu — bebi outro gole de vinho e olhei para eles, limpando a boca com o guardanapo. — ...Estão a seguir-me?
— Perfeitamente. — Os olhos de ferro escuro observavam-me com uma fixação extraordinária e não pude deixar de admirar todo aquele sangue-frio. — ...Dito em poucas palavras, os jesuítas utilizavam o seu próprio meridiano.
— Exactamente. Só que eu detesto dizer as coisas em poucas palavras.
Coy abanava a cabeça devagar, sem dizer nada: um gesto afirmativo muito lento e muito abatido. Vi que aproximava a mão do seu copo e, agora sim, bebia um gole de vinho. Um gole enorme.
— Então — disse Tânger —, as correcções que estivemos a fazer com as suas tabelas não devem fazer-se relativamente a Cádis...
— Claro que não. É preciso fazê-las relativamente ao meridiano secreto que os jesuítas utilizavam em 1767 para calcular a longitude a bordo dos seus barcos — fiz outra pausa e olhei para eles, sorridente. — ...Vêem onde quero chegar?
— Maldição! — exclamou Coy. — Diga-o de uma vez. Dirigi-lhe um olhar de afecto. Julgo ter-vos dito que gostava
cada vez mais daquele indivíduo.
— Não me prive do prazer do suspense, querido amigo. Não me prive... O meridiano que vocês procuram corresponde aos actuais 5o 40' oeste de Greenwich. E passa exactamente pela escola de cosmografia, geografia e navegação, e pelo observatório astronómico que, até à sua expulsão em 1767, os jesuítas tiveram naquela que é hoje a Universidade Pontifícia, antigo Colégio Real da Companhia de Jesus...
Fiz uma última pausa teatral, allez bop, damas e cavalheiros, e tirei o coelho da cartola. Um coelho branco, lustroso, que mastigava com naturalidade uma cenoura.
— ...A poucos metros — precisei — da torre da Catedral de Salamanca.
Houve um silêncio de, pelo menos, cinco segundos. Primeiro olharam um para o outro e depois Tânger disse não pode ser. Disse-o assim, em voz baixa: não pode ser, olhando para mim como se eu fosse um marciano. A sua frase não soava a objecção ou a incredulidade, mas a lamento. Sou uma estúpida, em tradução livre.
— Receio que sim — afirmei.
— Mas isso significa...
— Significa — interrompia-a, receoso de perder protagonismo — que nessa latitude, entre o meridiano de Salamanca e o do colégio de guardas-marinhas de Cádis, em muitos mapas da época havia, em 1767 uma diferença de quarenta e cinco minutos de longitude oeste...
Enquanto falava dispus alguns talheres, um pedaço de pão e um copo para reconstruir aproximadamente o traçado de uma costa. O copo ficava ao centro, representando Cartagena, e a extremidade de um garfo marcava o cabo de Paios. Não era uma carta de Urrutia, mas a verdade é que não estava mal de todo. Era o que faltava! Até os quadrados da toalha pareciam paralelos e meridianos de uma carta esférica.
— E vocês — concluí, contando quadradinhos com o dedo na direcção do garfo situado à direita — estiveram à procura desse barco trinta e seis milhas a oeste do sítio onde realmente está.
O MISTÉRIO DAS LAGOSTAS VERDES
Navegavam para leste fendendo a bruma do amanhecer ao longo do paralelo 37° 32', com um ligeiro desvio do rumo para norte, tentando ganhar um minuto de latitude. Aparafusado à sua antepara, o barómetro metálico tinha a agulha inclinada para a direita: 1022 milibares. Não havia vento e as tábuas da coberta estremeciam com a trepidação suave do motor. A neblina começava a desvanecer-se e embora fosse ainda cinzenta na esteira, a proa filtrava deslumbrantes raios de sol e tons dourados, e pelo lado de bombordo distinguia-se, às vezes, esfumado e muito alto, o relevo pardo e fantasmagórico da costa.
Lá em cima, no poço, o Piloto vigiava o rumo. E lá em baixo, na casa de pilotagem, inclinada, com paralelas, compasso, lápis e borracha, como uma aluna aplicada a preparar-se para um exame difícil, Tânger quadriculava a carta 464 do Instituto Hidrográfico da Marinha: De cabo Tinoso a cabo de Paios. Sentado junto dela, com uma chávena de café com leite condensado na mão, Coy via-a traçar linhas e calcular distâncias. Tinham trabalhado toda a noite, sem dormir, e quando o Piloto acordou e largou antes do amanhecer, já tinham estabelecido no papel a nova zona de busca, com o centro situado nos 37° 33minutos norte e 0° 45minutos oeste: o rectângulo da carta que Tânger, agora, à luz da mesa de cartas, com paciência e muito cuidado devido às oscilações do Carpanta, dividia em faixas de cinquenta metros de largura. Uma área de milha e meia de altura por duas e meia de largura, a sul de Punta Seca, seis milhas a sudoeste do cabo de Paios:
«... Mas acontece que depois o vento girou para norte e tendo já avistado o cabo a nordeste, ao forçar vela para evitar a caçada de que era objecto, teve apouca sorte de faltar o mastaréu do traquete, iniciando-se combate vivíssimo quase penol a penol. Perdeu-se o mastro do traquete com quase toda a gente na coberta morta ou fora de combate por o outro lhes haver atingido para ré do través; mas quando o chaveco se dispunha a atracar para a abordagem, o incêndio de uma das suas velas baixas, conforme julga ter visto o declarante, estendeu-se a alguma carga de pólvora, em resultado do qual foi pelo ar o chaveco com apouca sorte de a explosão também ter derrubado o mastro grande do bergantim, enviando este a pique. Segundo o declarante, não houve mais sobreviventes além dele, que se salvou por saber nadar e a bordo da lancha que o bergantim tinha largado ao iniciar combate, passando aí o resto do dia e da noite, até que sobre as onze horas do dia seguinte foi resgatado seis milhas a sul desta praça pela tartana Virgen de los Parales. Segundo o declarante, o afundamento do bergantim e do chaveco deu-se a duas milhas da costa em 37° 32' norte e 4° 51' este, posição que coincide com a anotada em meia folha de papel que trazia no bolso ao ser recolhido, por lhe ter sido confiada pelo piloto uma vez estabelecida numa carta esférica de Urrutia, para a anotar no livro de bordo, não tendo podido fazê-lo por causa da rapidez com que se iniciou o combate. Ficou internado o declarante sob cuidado médico no hospital da marinha desta cidade ã espera de outras diligências. Solicitou no dia seguinte o Exm° Senhor Almirante novas averiguações sobre certos pontos deste acontecimento, dando-se a circunstância de o declarante ter abandonado as dependências do hospital durante a noite, sem que até ao momento haja notícias do seu paradeiro. Circunstância sobre a qual o Exm° Senhor Almirante ordenou iniciar as diligências oportunas sem prejuízo da depuração de responsabilidades. Datado na Capitania da Marinha de Cartagena, a oito de Fevereiro de mil setecentos e sessenta e sete. Tenente de navio Ricardo Dolarea.»
Tudo se encaixava. Discutiram-no do direito e do avesso com a cópia da declaração do ajudante de piloto em cima da mesa, analisando cada costura daquela partida póstuma, exasperante, com que os fantasmas dos jesuítas e dos marinheiros naufragados com o Dei Gloria tinham troçado deles e de todos. Com a 464 aberta diante dos olhos, um compasso de pontas na mão, o traçado da costa na parte superior da carta — cabo Tinoso à esquerda, cabo de Paios à direita e o porto de Cartagena ao centro —, Coy tinha calculado facilmente as dimensões do erro: naquela noite de 3 para 4 de Fevereiro de 1767, com o corsário colado à sua popa, o bergantim navegou muito mais rapidamente e para muito mais longe do que pensavam. E, ao amanhecer, o Dei Gloria não se encontrava a sudoeste do cabo Tinoso e de Cartagena. Tinha já ultrapassado essas longitudes e navegava mais para levante. Estava a sudeste do porto e o cabo que avistava à proa, a nordeste, não era o cabo Tinoso mas o cabo de Paios.
Tânger tinha terminado. Pousou sobre a carta o lápis e as paralelas e ficou olhando para Coy.
— Por isso torturaram o menorita Gándara durante dezoito anos... Procuraram o barco na posição dada pelo ajudante de piloto. Talvez tenham até descido com mergulhadores ou balões de ar e não encontraram nada, porque o Dei Gloria não estava ali.
A falta de sono marcava círculos escuros sob os seus olhos, fazendo-a parecer mais velha. Menos atraente e mais fatigada.
— Conta-me agora o que aconteceu — disse. — A tua versão final.
Ele observou a 464. Estava sobre a reprodução da carta de Urrutia, cheia também de traços a lápis e anotações. O desenho castanho da costa, a faixa azul das sondas mínimas, percorriam-na ascendendo numa diagonal suave até à ponta de Paios e às ilhas Hormigas, visíveis no canto superior direito da carta. Todos os acidentes geográficos estavam à vista, de oeste para este: cabo Tinoso, o porto de Cartagena, a ilha de Escombreras, cabo de Agua, a enseada de Portman, cabo Negrete, Punta Seca, cabo de Paios... Talvez naquela noite o vento de sudoeste tivesse sido mais forte, explicou Coy. Vinte e cinco ou trinta nós. Ou talvez o capitão Elezcano tivesse assumido antes o risco de forçar a mastreação largando mais pano. Também pode ter acontecido o vento ter rodado para norte, convertendo-se em vento vindo de terra muito antes do amanhecer, e que o corsário, bom bolineiro graças à vela de proa do gurupés e às velas latinas dos seus mastros do traquete e da mezena, tivesse ganho barlavento, interpondo-se entre o bergantim e Carta-gena, para o impedir de se refugiar nesse porto. Também havia a possibilidade de que, no decurso de alguma manobra nocturna para despistar o corsário, o Dei Gloria se tivesse afastado perigosamente do seu único abrigo possível. Ou pode ser que o capitão, obstinado e rigoroso, tivesse ordens estritas de não tocar noutro porto além do de Valência, a fim de que as esmeraldas não corressem o perigo de cair noutras mãos.
Tentou descrever as primeiras luzes, a ainda confusa linha da costa, os olhares inquietos do capitão e do piloto tentando saber onde se encontravam exactamente e a desolação ao descobrirem que o corsário continuava ali, perseguindo-os cada vez mais perto, sem que tivessem conseguido enganá-lo na escuridão. De qualquer forma, com essa primeira claridade, enquanto o capitão olhava para cima, para a mastreação, perguntando a si próprio se aguentaria tanto pano navegando à bolina, o piloto foi para bombordo e fez marcações a terra para estabelecer a posição. Sem dúvida obteve marcações simultâneas e fê-lo situando nos 345° o Junco Grande, o cabo Negrete nos 295° e o cabo de Paios nos 30°. Depois transferiria a intersecção desses azimutes para a carta, a fim de estabelecer aí a posição do bergantim. Não era difícil imaginar o piloto com o óculo e a alidade ou aparelho de marcar sobre a agulha-padrão, alheio a tudo o que não fosse o procedimento técnico do seu ofício. E o ajudante de piloto ao seu lado, com o lápis e o papel prontos para anotar as observações, olhando de esguelha para as velas do corsário, avermelhadas pelo crepúsculo matutino, cada vez mais próximas. Depois, a toda a pressa para baixo, fazer o cálculo na carta de Urrutia, e o ajudante de piloto correndo de regresso ao tombadilho na coberta inclinada, o papel com os resultados na mão, mostrando-o ao capitão justamente no momento em que, lá no cimo, o mastaréu se partia com um estalido, vindo tudo abaixo, o capitão ordenava que o cortassem e alijassem ao mar e prevenissem os artilheiros. E o Dei Gloria dava a guinada trágica que o defrontaria com o seu destino.
Calou-se, ao reparar num tremor na sua própria voz. Marinheiros. No fim de contas, aqueles homens eram marinheiros como ele. Bons marinheiros. Podia imaginar até o último dos seus medos e sensações com tanta exactidão como se ele próprio tivesse estado a bordo do Dei Gloria.
Tânger olhava-o atentamente.
— Contas bem as coisas, Coy.
Ele esfregou o nariz. Contemplava através da escotilha a luz abrindo caminho entre a bruma, à medida que o Sol subia sobre o difuso círculo cinzento. Também via a proa do corsário Chergui aparecendo pouco a pouco diante de um dos portalós do bergantim.
— Não é difícil — disse. — ...De certa forma não é difícil. Semicerrava os olhos. Sentia a boca seca, o suor no tronco nu, o pano que acabara de amarrar à testa encharcado. Porque nesse momento, inclinado atrás do canhão preto de quatro libras, entre o fumo das mechas acesas, ouvia a respiração dos seus companheiros agachados junto ao reparo do canhão com o soquete, a lanada e o saca-trapos a postos, prontos para soltar trincas, limpar, carregar e disparar novamente.
— De qualquer forma — acrescentou passado uns instantes —, eu não digo que as coisas tenham acontecido assim.
— E como explicas a posição do ajudante de piloto?
Coy encolheu os ombros. O fragor dos tiros de canhão e os estilhaços que soavam na sua cabeça apagaram-se lentamente. Agora, o seu dedo indicava um ponto na carta, antes de descrever uma linha diagonal para sudoeste.
— Tal como explicámos anteriormente — disse. — Com a diferença de que o vento que soprava após o naufrágio, fazendo o bote ir à deriva, não era de noroeste mas de nordeste. O vento que soprava de terra ao amanhecer podia ter rodado algumas quartas para levante, quando o Sol ficou no alto, arrastando nessa altura o ajudante de piloto mar adentro e aproximando-o da vertical de Carta-gena, algumas milhas a sul, onde no dia seguinte foi recolhido.
Isso também não era difícil de imaginar, pensou, observando a linha de deriva no papel marcado com os números das sondas.
O rapaz sozinho no seu bote desgovernado, aturdido, atirando a água fora. O sol e a sede, o mar imenso e a costa cada vez mais longínqua, inatingível. O dormitar de barriga para baixo, para evitar que as gaivotas lhe bicassem a cara, a cabeça erguida de vez em quando para olhar em volta, abatida imediatamente com desesperança: apenas o mar impassível, com os segredos bem guardados nas suas entranhas. E em cima, na superfície ondulada pela brisa outro Ismael flutuando sobre o túmulo azul dos seus companheiros.
— É estranho que não desse a posição real do Dei Gloria ~ disse Tânger. — Um miúdo como ele não podia ter consciência de todas as implicações.
— Não era tão miúdo. Já te disse que embarcavam muito novos e, depois de quatro ou cinco anos no mar, amadureciam depressa. Eram homens de fibra. Marinheiros a sério.
Ela abanava a cabeça, convencida.
— Mesmo assim — disse — é espantosa a forma como guardou segredo... Era aluno de náutica, tinha de saber que a longitude não se referia ao meridiano de Cádis... E, no entanto, soube calar-se e enganou os investigadores. Não há na acta do interrogatório a mínima sombra de dúvida.
Era verdade. Tinham estado a rever os documentos, a declaração do náufrago, o relatório oficial: nem uma única contradição. O ajudante de piloto mantivera-se firme quanto à latitude e à longitude. E tinha no bolso o papel anotado como prova.
— Era um bom rapazinho — acrescentou Tânger, pensativa. — Um rapaz leal.
— É o que parece.
— E muito esperto. Lembras-te da declaração dele?... Fala do cabo que está a nordeste, mas não o nomeia. Pela posição que deu, todos acreditaram tratar-se do cabo Tinoso. Mas ele evitou corrigi-los. Nunca chegou a dizer que cabo era.
Coy olhava outra vez para o mar através da porta.
— Suponho — disse — que essa foi a sua forma de continuar a lutar.
O Sol já estava alto e a bruma desvanecia-se. O perfil escuro da costa ia ficando mais preciso pelo lado de bombordo: a Punta de Ia Chapa, com o seu farol branco a este da baía de Portman; o antigo Portus Magnus, com os escombros das minas abandonadas sobre a velha calçada romana, e o lodo entupindo a enseada onde, já antes do nascimento de Cristo, navios com olhos pintados na proa carregavam lingotes de prata.
— Pergunto a mim próprio o que teria acontecido ao rapaz.
Referia-se ao seu desaparecimento do hospital da marinha. A esse respeito, Tânger tinha a sua própria teoria. De modo que a expôs, deixando que Coy, como de costume, tivesse o trabalho de preencher os espaços em branco. Em síntese, no início de Fevereiro de 1767 os jesuítas ainda dispunham de muito dinheiro e poder em toda a parte, incluindo no departamento marítimo de Cartagena. Não era difícil subornar as pessoas certas e garantir uma retirada discreta do ajudante de piloto para segundo plano: bastava uma carruagem, cavalos e garantias para atravessar as portas da cidade. Sem dúvida, agentes da Companhia fizeram-no sair do hospital antes de ser sujeito a um novo interrogatório, levando-o para longe, a salvo, no dia seguinte ao da sua recolha no mar. Desaparecido sem licença, estava escrito na documentação: uma atitude irregular para um marinheiro mercante extremamente jovem, sujeito a uma investigação da Armada. Mas o desaparecimento sem licença tinha sido corrigido mais tarde por mão anónima, substituindo-o por uma alta com licença. Aí perdia-se o rasto.
Era fácil, pensava Coy ao ouvir o relato de Tânger. Tudo encaixava e também isso conseguia imaginar sem dificuldade: a noite, os corredores desertos do hospital, a luz de uma vela. Sentinelas ou guardas encegueirados pelo ouro, alguém que chega encapuçado e com instruções precisas, o rapaz rodeado de gente segura. Depois, as ruas vazias, o conciliábulo clandestino no convento jesuíta da cidade. Um interrogatório grave, rápido, tenso, e sobrolhos que se desfazem ao descobrir que o segredo continua bem guardado. Talvez palmadas nas costas, mãos admiradas que lhe pousam no ombro. Bom rapaz. Bom e valente rapaz. E depois a noite novamente e gente que, de uma esquina na sombra, faz sinais: não há novidades. A carruagem, as portas da cidade, o campo aberto e o céu cheio de estrelas. E um marinheiro de quinze anos que dormita no assento, habituado desde pequeno a balanços piores que aquele, velado no sono pelos espectros dos seus companheiros mortos. Pelo sorriso triste do capitão Elezcano.
— No entanto — concluiu Tânger —, há alguma coisa... Talvez divertida, ou curiosa. O ajudante de piloto chamava-se Miguel Palau, lembras-te?... Era sobrinho do armador valenciano do Dei Gloria, Luis Fornet Palau. E pode ser apenas uma coincidência. — Espetou um dedo para cima, como se reclamasse um momento de atenção e rebuscou entre os documentos que tinha na gaveta da mesa de cartas. — ...Mas olha. Quando estive a averiguar os nomes e datas, ao consultar em Viso dei Marquês algumas listas da marinha, bastante posteriores, dei com uma referência à balandra Mulata, de Valência. Essa embarcação teve, em 1784, um combate com o brigue inglês Undated, perto dos Freus de Formentera. O brigue quis capturá-la, mas a balandra defendeu-se muito bem e conseguiu escapar... E sabes como se chamava o capitão espanhol?... M. Palau, diz a referência. Tal como o nosso ajudante de piloto. E até pela idade poderia coincidir: quinze anos em 1767, trinta e dois ou trinta e três em 1784...
Passara uma fotocópia a Coy e este leu o texto: «Notícia do que aconteceu no dia quinze do corrente, sobre o combate mantido pela balandra Mulata comandada pelo capitão Dom M. Palau, com o brigue inglês Undated diante da ilha dos Abarcados...»
— Tratando-se do mesmo Palau — disse Tânger — também não se rendeu dessa vez, não é verdade?
«Informa-se perante a autoridade marítima deste porto de Ibiza que fazendo a rota de Valência para esta localidade, quando ia em demanda do Freo Grande de Formentera e nas proximidades das Negras e dos Ahorcados, a balandra espanhola Mulata, de oito canhões, foi atacada pelo brigue-goleta inglês Undated, de doze, que se tinha aproximado recorrendo ao engano da bandeira francesa, tentando capturá-la. Apesar da diferença de porte susteve vivíssimo fogo com muitos estragos de ambas as partes e também uma. tentativa de abordagem dos ingleses, que conseguiram meter três homens na balandra, sendo os três mortos e atirados ao mar. Separaram-se as embarcações e prosseguiu o combate muito encarniçado por um espaço de meia hora, até que a Mulata, apesar do vento contrário, conseguiu passar para, este lado dos canais graças a uma manobra de enorme risco, que consistiu em meter-se no canal do meio, com apenas quatro braças de fundo na mediania e muito perto do recife da Barqueta; manobra de grande perícia que deixou do outro lado o inglês, cujo capitão não ousou seguir em frente pelas condições do vento epela incerteza do fundo, conseguindo a Mulata arribar a este porto de Ibiza com quatro homens mortos e onze feridos a bordo e sem mais novidades...»
Coy devolveu a Tânger a cópia do relatório. Sorria. Há anos, num veleiro de pouco comprimento e calado, tinha passado o canal médio naquele mesmo sítio. Quatro braças eram pouco mais de seis metros e, além disso, a sonda diminuía rapidamente a partir do centro de um lado e de outro. Lembrava-se bem da visão sinistra do fundo através da água transparente. Uma balandra artilhada podia ter três metros de calado, e o vento contrário dificultava um rumo em linha recta. De modo que, fosse ou não fosse o mesmo homem, ajudante de piloto Miguel Palau ou capitão M. Palau, quem dirigia a Mulata tinha nervos de aço.
— Talvez o nome seja apenas uma coincidência.
— Talvez — Tânger relia pensativa a fotocópia antes de voltar a colocá-la na gaveta. — Mas agrada-me pensar que era ele.
Ficou calada um instante e voltou-se depois para a porta, olhando para a linha da costa que a bruma já revelava limpa e livre, na direcção da amura de bombordo, com o sol iluminando a pedra escura do cabo Negrete.
— Agrada-me pensar que o ajudante de piloto voltou ao mar e continuou a ser um homem valente.
Durante oito dias peneiraram a nova zona de busca com a Pathfinder, passagem a passagem, com rumos de norte a sul, começando por este, em sondagens que iam dos oitenta aos dezoito metros. Mais profundo e aberto aos ventos e às correntes que a enseada de Mazarrón, o local era agitado por ondulação desagradável que entorpecia e atrasava o trabalho. O fundo era irregular, de rocha e areia e, tanto o Piloto como Coy, tinham de fazer muitas imersões — que a profundidade excessiva tornava necessariamente breves — para comprovar irregularidades detectadas pela sonda, incluindo uma velha âncora solitária que os fez alimentar esperanças até a terem identificado como uma de almirantado com cepo de ferro: um modelo posterior ao século XVIII. Dessa forma, acabavam, exasperados e exaustos, por fundear ao abrigo do cabo Ne-grete nas noites de pouco vento, ou resguardados de levantes e sudestes no pequeno porto de cabo de Paios. Os boletins meteorológicos anunciavam a formação de um centro de baixas pressões no Atlântico e, se a borrasca não se desviasse para o nordeste da Europa, os seus efeitos demorariam menos de uma semana a chegar ao Mediterrâneo, obrigando-os a suspender a busca por algum tempo. Tudo isso os tornava nervosos e irritáveis. O Piloto passava dias inteiros sem abrir a boca, e Tânger mantinha a sua obstinada vigilância da sonda com uma atitude sombria, como se cada dia decorrido lhe arrancasse outro pedaço de esperança. Uma tarde, Coy deu uma vista de olhos ao caderno onde ela tinha estado a anotar os resultados da exploração e encontrou as folhas cheias de gatafunhos incompreensíveis, espirais e cruzes sinistras. Também havia uma cara de mulher pavorosamente deformada, com traços tão fortes que nalgumas linhas rasgavam o papel. Uma mulher que parecia gritar para o vazio.
As noites não eram muito mais agradáveis. O Piloto dava as boas-noites e fechava a sua porta na proa e eles os dois deitavam-se cansados, com a pele a cheirar a suor e a sal, sobre os colchões de um dos camarotes de popa. Encontravam-se em silêncio, procurando-se com uma urgência tão excessiva que parecia artificial, para encaixarem um no outro de uma forma intensa e brutal, rápida, sem palavras. De todas as vezes Coy tentava prolongar o instante, prender Tânger nos seus braços, encurralá-la contra a antepara, controlar o corpo e a mente daquela desconhecida. Mas ela debatia-se, fugia, tentava acelerar o processo, pondo apenas esforço e carne, longínqua a cabeça, inacessível o pensamento. Às vezes, Coy julgava possuí-la finalmente, atento ao ritmo da sua respiração, aos beijos da sua boca aberta, à pressão das coxas nuas em volta da sua cintura. Oprimia com os lábios o pescoço ou os seios da rapariga e agarrava-a com firmeza, poderosamente, prendendo-lhe os pulsos, sentindo o latejar do sangue dela na língua e nas virilhas, cravando-se profundamente nela como se pretendesse atingir o coração e empapá-lo, até conseguir que fosse tão suave como aquele interior húmido e aquela boca. Mas ela retrocedia, debatendo-se para fugir do abraço e, mesmo agarrada, prisioneira, negava-lhe em última
instância o pensamento que ele se esforçava por capturar. Os olhos, olhando fixamente para as sombras, brilhantes e inatingíveis, transfiguravam-se, ausentes, para além de Coy, do barco e do mar, absortos em maldições arcanas de solidão e negrume. E então abria a boca para gritar, tal como a mulher que ele descobrira no desenho, para gritar um grito de silêncio que ressoava nas entranhas do homem como o mais doloroso dos insultos. Coy sentia correr aquele lamento pelas suas veias e mordia os lábios reprimindo uma angústia que lhe inundava o peito, o nariz e a boca, como se estivesse a afundar-se, sufocado, num mar de densa tristeza. Tinha vontade de chorar como quando era criança, com lágrimas bem gordas e copiosas, incapaz de aquecer o calafrio de tantas solidões. Aquele era um peso demasiado grande. Limitara-se a ler alguns livros, a navegar alguns anos e a entrar em algumas mulheres. Por isso julgava carecer de palavras e de gestos, e achava também que até os seus próprios silêncios eram toscos. No entanto, teria dado a vida para poder chegar dentro dela, infiltrando-se pelos tecidos da sua carne e aproximando-se do seu cérebro nu para o lamber devagar, suavemente, com toda a ternura de que era capaz, limpando-o de tudo o que centenas de anos, milhares de homens, milhões de vidas, foram deixando ali como um lastro, uma escória, um tumor doloroso e maligno. E dessa forma Coy, depois de cada vez, após o último estremecimento dela, insistia tenaz, esquecido de si próprio, acicatado pelo desespero, quando ela parava de se agitar para ficar imóvel, respirando com dificuldade em busca do fôlego perdido. E ele, ou as suas células vivas, o seu sangue e a sua memória, concluíam que a amavam mais que a qualquer outra pessoa ou coisa. Mas ela fora demasiado longe e ele não existia. Era um intruso nesse mundo e nesse instante. E seria assim, pensava com tristeza, o fim de tudo: não um estrondo, mas um quase imperceptível suspiro. Nesse minuto de indiferença, pontual como uma condenação, tudo morria nela, tudo ficava em suspenso, enquanto a pulsação não recuperava a normalidade. E novamente a pele do homem tomava consciência da porta aberta para a noite e do frio que rastejava vindo do mar, como uma maldição bíblica. Isso atirava-o para uma desolação árida como uma superfície de mármore, polida, imensa, perfeita. Um mar dos Sargaços aterradoramente imóvel, uma carta esférica com nomes como os que os antigos navegadores inventavam: ponta da Decepção, baixio da Solidão, baía Amarga, ilha de Guarda-nos Deus... Depois, ela beijava-o antes de voltar-lhe as costas, e ele ficava de barriga para cima oscilando entre o ódio para com aquele último beijo e o desprezo por si próprio, com uma mão apoiada na anca próxima, nua e adormecida. Com os olhos abertos na escuridão, ouvindo o rumor da água contra o casco do Carpanta e o vento a aumentar na enxárcia. Pensando que ninguém foi capaz, nunca, de desenhar a carta esférica que permite navegar através de uma mulher. E com a certeza de que Tânger ia sair da sua vida sem que ele chegasse algum dia a possuí-la.
Foi por aqueles dias que tive outra vez notícias do grupo. Tânger telefonou-me de El Pez Rojo, um restaurante de cabo de Paios, para pedir-me alguns esclarecimentos sobre um problema técnico que aumentava a margem de erro em meia milha de longitude este. Clarifiquei a dúvida, interessando-me pelos seus trabalhos e ela respondeu-me que tudo corria bem, muito obrigada e que mais tarde teria notícias suas. A verdade é que demorei duas semanas a ter essas notícias. Quando as obtive foi pelos jornais e nessa altura senti-me tão estúpido como quase todas as personagens desta história. Mas não apressemos os acontecimentos. A chamada telefónica fê-la Tânger num dia em que tinham o Carpanta atracado no molhe da antiga povoação piscatória convertida em localidade turística. A borrasca do Atlântico Norte continuava estacionária e o Sol brilhava nas longitudes e latitudes do sudeste da Península Ibérica. A agulha do barómetro estava alta, sem ultrapassar a perigosa vertical para a esquerda. E era isso, paradoxalmente, o que os tinha levado daquela vez até ao pequeno porto que se estendia em volta de uma ampla enseada negra, suja de escolhos a flor da água, sob a torre do farol que se erguia sobre uma rocha, mar adentro. De manhã, o calor tinha feito aparecer à esquerda do vento cúmulos-nimbos que se agrupavam em forma de bigorna, aumentando para cima num tom cinzento ameaçador. O vento, de doze a quinze nós de intensidade, ia na direcção dessas nuvens. Mas Coy, ao dar uma vista de olhos, compreendeu que, se a bigorna de cúmulos-nimbos continuasse a crescer à medida que se aproximava, duras rajadas de tempestade rebentariam do lado contrário, quando a massa cinzenta estivesse sobre as suas cabeças. Bastou uma troca silenciosa de olhares com o Piloto, cujas rugas das pálpebras se acentuavam ao olhar na mesma direcção, para que os dois marinheiros se compreendessem sem palavras. Então o Piloto apontou a proa para cabo de Paios. E ali estavam, no alpendre caiado de El Pez Rojo, comendo anchovas fritas, salada e vinho tinto.
— Mais meia milha — disse Tânger, sentando-se.
Falou com um tom de voz irritado. Agarrou numa anchova da bandeja, olhou-a por um momento, como se procurasse alguma responsabilidade a atribuir-lhe, e depois pô-la de lado com desprezo.
— Mais meia milha maldita — repetiu.
Na sua boca, maldita era quase um palavrão. Era estranho ouvi-la falar dessa forma e muito mais vê-la perder o controlo, de modo que Coy observou-a com curiosidade.
— Não é muito grave — disse.
— É outra semana de busca.
Tinha o cabelo sujo, acachapado de salitre e a pele brilhava-lhe queimada pelo sol, pela falta de água e de sabão. Piloto e Coy também não tinham melhor aspecto, depois de vários dias sem se barbearem, tão queimados e sujos como ela. Todos vestiam calças de ganga, camisolas de manga curta, pólos desbotados e ténis, e era patente a marca dos dias passados no mar.
— Uma semana — repetiu Tânger — no mínimo.
Olhava sombria para o Carpanta ainda iluminado pelo Sol e atracado lá em baixo, no molhe da barra. A bigorna cinzenta escurecia pouco a pouco a enseada, como se alguém corresse devagar uma cortina que apagasse o reflexo do Sol nas casinhas brancas e na água azul-cobalto. E ela está perdendo a esperança, disse Coy para consigo de repente. Depois de tanto tempo e de tanto esforço, começa a encarar a possibilidade de existir a palavra fracasso. A profundidade da zona de exploração é maior e isso pode significar que, mesmo que encontremos os despojos, estes estejam fora do nosso alcance. Além disso, o prazo destinado à busca está a acabar e o seu dinheiro também. Agora, pela primeira vez desde sabe-se lá quando, está a conhecer a dúvida.
Observou o Piloto. Os olhos cinzentos do marinheiro deram silenciosamente razão às suas conclusões: a aventura começava a roçar as margens do absurdo. Todos os dados estavam certos e foram provados, mas faltava o principal: o barco afundado. Ninguém duvidava de que estava ali, nalgum sítio. Talvez se conseguisse mesmo, da pequena elevação do restaurante, ver o local exacto onde o bergantim e o corsário tinham ido a pique. Talvez tenham passado várias vezes por cima dos destroços, ocultos sob metros de lodo e areia. Talvez tudo não passasse de uma imensa sucessão de erros. E o mais importante de todos era que o tempo de procurar tesouros não resistia à lucidez do tempo adulto e razoável.
— Falta ainda milha e meia por explorar — disse Coy suavemente.
Ainda não tinha acabado de pronunciar a frase e já se sentia ridículo. Ele a animá-la. Nunca se vira. Na realidade, limitava-se a atrasar o último acto. A desejar atrasá-lo, antes de voltar a flutuar só e órfão, agarrado ao caixão de Queequeg. Ao esquife do Dei Gloria.
— Claro — respondeu ela, átona.
Com os cotovelos em cima da mesa, as mãos cruzadas sob o queixo, continuava a olhar para a enseada. A bigorna cinzenta já estava sobre o Carpanta, fechando o céu sobre o seu mastro nu. Nessa altura o vento cessou, o mar recobrou a calma diante do molhe tda barra, as adriças e a bandeira do barco ficaram imóveis. Depois, Coy viu como, ao fundo, as rochas da margem e os escolhos se riscavam de traços brancos, espuma que começava a bater, enquanto uma coloração mais escura se estendia como uma mancha de óleo pela superfície do mar. Ainda havia sol no alpendre do restaurante quando a primeira rajada correu ao longo da baía, encrespando a água; e no Carpanta a bandeira ondulou de repente e rangeram as adriças contra o mastro, tilintando furiosas, enquanto o barco se inclinava na direcção do molhe, batendo contra as defen-sas. A segunda rajada foi mais forte: trinta e cinco nós pelo menos, calculou Coy a olho. A baía estava agora cheia de ovelhinhas brancas e o vento uivava subindo de nota em nota pelos buracos das chaminés e pelos beirais dos telhados. De repente, o ambiente tornou-se sombrio e cinzento, quase assustador e Coy alegrou-se por estar sentado ali comendo anchovas fritas e não no alto mar.
— Quanto tempo durará isto? — perguntou Tânger.
— Pouco — disse Coy. — Uma hora, talvez. Talvez um pouco mais. À tarde deverá ter acabado. É só uma tempestade de Verão.
— O calor — explicou o Piloto.
Coy olhou para o amigo, sorrindo no seu íntimo. Também ele, disse para consigo, sente o dever de a consolar. No fim de contas foi isso que, deveras, nos trouxe até aqui, embora o Piloto não encare racionalmente esse tipo de coisas. Ou, pelo menos, assim o creio. Nesse momento, os olhos do marinheiro pousaram nos de Coy, tranquilos, tão serenos como sempre, e este rectificou. Talvez ele encare afinal esse tipo de coisas.
— Amanhã teremos que procurar também meia milha mais além — anunciou Tânger. — Até aos 47' oeste.
Coy não precisava de uma carta. Tinha a 464 gravada na cabeça, de tanto a estudar. Até ao último pormenor da área de busca.
— A parte positiva — disse — é que por esse lado diminui a profundidade até dezoito e vinte e quatro metros. Tudo será mais fácil.
— Que fundo existe?
— Areia e rochas, não é verdade, Piloto?... Com manchas de algas.
O Piloto concordou. Tirou do bolso um maço de cigarros e pôs um na boca. Como Tânger olhava para ele, concordou novamente.
— As algas aumentam à medida que nos aproximamos do cabo Negrete — disse —, mas este sítio está limpo. Rocha e areia, como Coy disse... Com algum cascalho no sítio das lagostas verdes.
Tânger, que nesse momento bebia um gole de vinho, deteve o gesto, com o copo ainda nos lábios, atenta ao Piloto.
— O que é isso de lagostas verdes?
O Piloto estava ocupado com o seu isqueiro de mecha, acendendo o cigarro. Fez uma expressão indecisa.
— E isso mesmo — expelia o fumo entre os dedos, ao falar. — Lagostas de cor verde. É o único sítio onde se encontram. Ou se encontravam. Já ninguém apanha lagostas aqui.
Tânger tinha pousado o copo. Colocou-o cuidadosamente sobre a toalha, como se receasse derramá-lo. Continuava a olhar com uma atenção extrema para o Piloto, que enrolava com parcimónia a mecha em volta do isqueiro.
— Tu estiveste lá?
— Claro. Há muito tempo. Era um bom sítio quando eu era jovem.
Coy lembrava-se disso. O amigo falara-lhe uma vez de lagostas mouras de carapaça verde, em vez do habitual vermelho-escuro ou castanho raiado de branco. Isso foi há vinte ou trinta anos, quando ainda havia peixes e marisco naquelas águas: lagostins, amêijoas, atuns e meros de vinte quilos.
— O sabor era bom — explicou o Piloto —, mas a cor afugentava os clientes.
Tânger estava pendente das suas palavras.
— Porquê?... Como era essa cor?
— Verde-bolor, muito diferente do vermelho ou do azulado que têm as lagostas acabadas de pescar, ou daquele verde-escuro da lagosta africana ou americana — o Piloto esboçou um sorrisinho entre o fumo do tabaco. — ...Não abria muito o apetite... Por isso só os pescadores as comiam ou vendiam os rabos já cozidos.
— Lembras-te do sítio?
— Claro que sim. — O Piloto começava a mostrar-se incomodado com o interesse dela e aproveitava as chupadas no cigarro para fazer pausas cada vez maiores, olhando para Coy. — .. .O cabo de Agua,de través e o cabeço de Junco Grande uns 10° a norte.
— Que profundidade?
— Escassa. Vinte e poucos metros. A lagosta pode andar mais abaixo, mas naquele sítio havia sempre umas quantas.
— Mergulhavam aí?
O outro olhou novamente para Coy. Diz-me onde quer ela chegar, diziam os olhos dele. E este, que tinha as mãos apoiadas na mesa, voltou-as um pouco para cima, mostrando as palmas. Versão para surdos-mudos: não faço a mínima ideia.
— Nessa época não havia tantos equipamentos de mergulho como agora — acabou por responder o Piloto. — Os pescadores trabalhavam mergulhando as nassas de junco ou o tresmalho que, quando se perdiam, ficavam lá em baixo.
— Lá em baixo — repetiu ela.
Depois permaneceu calada. Passado um momento estendeu a mão para o seu copo de vinho, mas teve de parar porque os dedos lhe tremiam.
— O que se passa? — perguntou Coy.
Não compreendia a atitude dela, nem o tremor, nem o repentino interesse de Tânger pelas lagostas. Era mesmo um dos pratos que constavam na lista do restaurante e tinham-na visto passar por ele com indiferença.
Ela ria-se. De uma forma estranha, quieta. Ria-se entredentes, inesperadamente sarcástica, abanando a cabeça como se a divertisse uma piada que tivesse contado a si própria. Levara as mãos às fontes como se de repente lhe doessem e olhava para a água da baía que já estava cinzenta, clareada pela espuma das ondas curtas, levantadas pelas rajadas incessantes. A luz depurada do exterior acentuava o metal azulado dos seus olhos absortos. Ou estupefactos.
— Lagostas — murmurou — ...Lagostas verdes.
Agora estremecia, com o riso demasiado parecido a um soluço. Após uma nova tentativa, tinha derramado o copo de vinho sobre a toalha. E espero que não tenha enlouquecido, pensou Coy, alarmado. Espero que não tenha ficado destrambelhada com toda esta merda e que, em vez de a levarmos ao Dei Gloria, acabemos por ter de levá-la ao manicómio. Limpou um pouco o vinho com o guardanapo. Depois colocou-lhe uma mão no ombro e, ao fazê-lo, sentiu o tremor.
— Acalma-te — sussurrou.
— Estou muito calma — disse ela. — Nunca estive tão calma em toda a minha vida.
— Que diacho se passa?
Ela tinha deixado de rir, ou de soluçar, ou o que quer que fosse, e continuava observando o mar. Por fim parou de tremer, suspirou profundamente e olhou para o Piloto com uma expressão estranha, antes de se inclinar sobre a mesa e depositar um beijo na cara do ruborizado marinheiro. Agora sorria, radiante, quando se voltou para Coy.
— Passa-se que é aí que está o Dei Gloria. No lugar das lagostas verdes.
Mar encrespado, quase plano, e brisa suave. Nem uma nuvem no céu e o Carpanta baloiçando suavemente a duas milhas e meia da costa com a amarra da âncora caindo verticalmente da roldana: cabo de Agua de través e o Junco Grande em cima, 10° a nordeste.
O Sol ainda não estava alto, mas já ardia nas costas de Coy quando este se inclinou para comprovar o manómetro das duas garrafas: dezasseis litros de ar comprimido, a reserva em cima, o equipamento preparado. Verificou a anilha e encaixou depois em cima dela o regulador que iria fornecer-lhe o ar a uma pressão variável, consoante a profundidade, para compensar o aumento das atmosferas sobre o seu corpo. Sem esse aparelho para equilibrar a pressão interna, um mergulhador ficaria esmagado ou explodiria como um balão demasiado cheio. Abriu completamente a torneira e depois fechou-a três quartos de volta. O bocal era um velho Nemrod. Sabia a borracha e a pó de talco quando a meteu na boca para verificar o funcionamento. O ar circulou ruidosamente pelas membranas. Tudo em ordem.
— Meia hora a vinte metros — recordou-lhe o Piloto. Concordou, enquanto vestia o casaco de neopreno, o cinto de lastro e o colete salva-vidas de emergência. Tânger estava de pé diante dele, agarrando-se com uma mão ao brandal, olhando-o em silêncio. Vestia um fato de banho preto de nadadora olímpica e tinha umas barbatanas nos pés, uma máscara de mergulho e um tubo respirador. Tinha passado quase toda a tarde e parte da noite explicando-lhes aquilo das lagostas verdes. Expôs o assunto vezes sem conta, do direito e do avesso, depois de interrogar o Piloto até ao mais ínfimo pormenor, fazendo esboços com lápis e papel, calculando distâncias e profundidades. A carapaça das lagostas, dissera, possui faculdades miméticas. Tal como a muitas outras espécies, a natureza proporciona a estes crustáceos a capacidade de se camuflarem como meio de defesa. Dessa forma adaptam-se aos fundos onde vivem. Estava provado que as lagostas que habitavam em barcos de ferro afundados adquiriam com frequência o tom avermelhado do óxido das pranchas em decomposição. E a cor verde-bolor descrita pelo Piloto coincidia exactamente com a tonalidade que o bronze adquire após longas imersões no mar.
— Que bronze? — tinha perguntado Coy.
— O dos canhões.
Coy tinha as suas reservas. Tudo aquilo se parecia demasiado com o «Caranguejo das Tenazes de Ouro», ou a qualquer outra aventura semelhante. Mas eles não moravam num álbum do Tintim. Ele, pelo menos, não.
— Tu própria disseste, e comprovámo-lo, que os canhões do Dei Gloria eram de ferro... Não havia grandes quantidades de bronze a bordo do bergantim.
Ela olhou para ele tranquila e superior, como naquelas vezes em que parecia dar-lhe a entender que tinha a braguilha aberta, ou que era imbecil.
— Os do Dei Gloria, sim — afirmou —, mas não os do Cher-gui. O chaveco levava dez canhões: quatro compridos de seis libras, oito de quatro e além desses, quatro pedreiros, lembras-te?... Procedentes de uma velha corveta francesa artilhada, a Flamme. E pelo menos os canhões de seis e os de quatro eram de bronze. — Tinha tirado da antepara o plano do chaveco, atirando-o para a mesa diante de Coy. — Isso consta na documentação que nos deu Lúcio Gamboa em Cádis. Há quase quinze toneladas de bronze lá em baixo.
Coy trocou outro olhar com o Piloto, que se limitava a ouvir em silêncio, e não colocou mais objecções. Tudo o resto, tinha continuado Tânger a explicar, era óbvio. Os dois barcos afundaram-se muito perto um do outro. O mais provável, devido à explosão que acabou com o Chergui, era que os restos do corsário estivessem dispersos à volta dos destroços principais. Ao sulfatar-se um dos seus elementos, o cobre, o bronze fora adquirindo aquela coloração característica no fundo do mar, adoptada pelas lagostas que, sem dúvida, fizeram as suas casas nos restos do naufrágio e nas bocas dos canhões. E verificava-se, além disso, uma circunstância complementar e animadora: o mais importante. Se as lagostas tinham estado em contacto com o bronze, isso significava que a área de dispersão não era muito grande e que os restos não estavam cobertos pelo lodo ou pela areia.
Ouviu um mergulho e viu que Tânger já não estava junto ao brandal. Atirara-se ao mar e nadava em redor da popa do Carpan-ta, com a máscara de mergulho e o respirador pronto, aguardando. Não ia descer com ele, ia ficar à superfície vigiando as bolhas de ar para o manter localizado. O raio em que teria de se deslocar tornava difícil mantê-lo preso ao barco com uma corda de segurança. Coy prendeu a faca na barriga da perna direita, o batímetro e o relógio num dos pulsos e a bússola no outro e dirigiu-se até à beira do degrau da popa. Aí, sentado e com os pés na água, calçou as barbatanas, cuspiu no vidro da máscara e colocou-a depois de enxaguá-la no mar. Depois levantou os braços para que o Piloto lhe colocasse a garrafa de ar comprimido nas costas. Ajustou as correias e colocou o bocal. O ar ressoou nos seus ouvidos ao circular pelo regulador. Rodou sobre um lado, protegeu com uma mão o vidro da máscara e, aproveitando o peso da garrafa, deixou-se cair de costas no mar.
A água estava muito fria. Demasiado para a época do ano. Os mapas de correntes indicavam ali um fluxo suave de nordeste para sudoeste, com uma diferença de cinco a seis graus relativamente à temperatura mínima geral. Sentiu a pele arrepiar-se com a sensação desagradável da água penetrando sob o casaco de neopreno. Demoraria alguns minutos a aquecer com o calor do corpo. Respirou lenta e profundamente algumas vezes, para verificar o regulador e, com a cabeça meio fora de água, viu a popa do Carpanta quase por cima e o Piloto lá em pé. Depois mergulhou um pouco, olhando em voka no panorama azul que o circundava. Perto da superfície, com os raios de sol clareando a água limpa e serena, tinha boa visibilidade. Uns dez metros na horizontal, calculou. Podia ver a quilha preta do veleiro com a porta do leme virada a bombordo e a amarra da âncora descendo verticalmente para as profundezas, as pernas de Tânger nadando perto, com impulsos suaves das suas barbatanas de plástico cor de laranja. Deixou de pensar nela para se concentrar no que fazia. Olhou para baixo, onde o azul se tornava mais escuro e intenso, verificou a posição dos ponteiros do relógio e começou a deixar-se cair lentamente para o fundo. Agora, o ruído do ar ao inspirá-lo através do regulador era muito forte, ensurdecedor. E quando a agulha do batímetro chegou aos cinco metros, parou para levar os dedos ao nariz, sob a máscara, e compensar o aumento da pressão nos ouvidos. Cluc. Cluc. Ao fazê-lo ergueu o rosto, aliviado, e viu as bolhas de ar ascendentes da sua última expiração, a superfície do mar que o Sol convertia em tecto de prata polida, o casco preto do Carpanta lá em cima e Tânger que tinha mergulhado um pouco e nadava junto dele, olhando-o por detrás da sua máscara de mergulho, com o cabelo louro agitando-se na água, as pernas esbeltas, prolongadas pelas barbatanas, movendo-se devagar para manter a profundidade perto de Coy. Respirou novamente e outro penacho de bolhas de ar subiu na direcção dela, que acenou num cumprimento. Depois, Coy olhou para baixo e prosseguiu a lenta descida através da esfera azul que se fechava sobre a sua cabeça, escurecendo à medida que se aproximava do fundo. Fez a segunda paragem para compensar, quando o batímetro marcava catorze metros e a água era já uma esfera translúcida que extinguia todas as cores excepto a verde. Estava nesse ponto intermédio onde, às vezes, os mergulhadores, sem referências, perdem a orientação e o sentido do que está em cima e do que está em baixo e de repente se vêem contemplando bolhas de água que parecem descer em vez de subir e só a lógica, se é que a conservam, lhes lembra que, em qualquer circunstância, uma bolha de ar dirige-se sempre para cima. Mas não chegou a esse extremo. A penumbra do fundo começou a desenhar formas e, momentos depois, Coy deixava-se cair muito devagar sobre um leito de areia pálida e fria, perto de uma espessa pradaria de anémonas, posidónias e algas filamentosas entre as quais nadavam pequenos cardumes. O batímetro marcava dezoito metros. Coy olhou em volta, através da pouca claridade que o circundava: a visibilidade era boa e a corrente suave que sentia limpava a água. Num raio de cinco a sete metros conseguia distinguir bem a paisagem, as estrelas-do-mar, as conchas vazias, os grandes bivalves em forma de pá cravadas verticalmente na areia, as cristas de pedra com formações rudimentares de coral que marcavam o limite da pradaria submarina. Pequenos microorganismos arrastados pela corrente flutuavam à deriva, à sua volta. Sabia que, se acendesse uma lanterna, a luz devolveria as cores naturais a todos aqueles objectos de monótona aparência verde, aumentados de tamanho através do vidro inquebrável da máscara. Respirou várias vezes pausadamente para adaptar os pulmões à pressão e oxigenar o sangue, e orientou-se consultando a bússola. O seu plano era afastar-se quinze ou vinte metros para sul e depois descrever um círculo em volta do fundeadouro do Carpanta, que tinha ficado para trás, a norte. Começou a nadar devagar, com as mãos aos lados e com suaves movimentos das pernas e das barbatanas, mantendo-se a um metro do fundo. Observava a areia com muita atenção, pendente de qualquer indício de alguma coisa enterrada por baixo, embora os canhões de bronze, tinha insistido Tânger, tivessem de estar à vista. Foi até ao limite da pradaria submarina e deu uma vista de olhos entre as algas e os filamentos ondulantes. Se houvesse alguma coisa naquela espessura ia ser difícil dar com ela, de modo que decidiu continuar a explorar a parte nua da areia que, apesar de parecer plana, descia num declive suave para sudoeste, conforme pôde verificar com o batímetro e a bússola. O ruído do ar acompanhava-o com uma inspiração e uma expiração aproximadamente de cinco em cinco segundos, entre intervalos de silêncio absoluto. Procurava deslocar-se devagar, reduzindo ao mínimo o esforço físico. A menor fadiga, rezava a velha regra do mergulho, correspondia menos ritmo de respiração, menos consumo de ar e mais reservas disponíveis. E aquilo ia ser longo. Com lagostas ou sem elas, era uma agulha num palheiro.
Havia algumas manchas escuras na areia e Coy aproximou-se para dar uma vista de olhos: cascalho e rochas semienterradas com pequenas algas em cima. Um pouco mais longe encontrou o primeiro objecto relacionado com a vida na superfície: uma lata de conservas oxidada. Prosseguiu sem pressa, movendo a cabeça para olhar em volta, e parou quando calculou que tinha atingido o limite do raio da circunferência que tinha previsto descrever sobre o fundo. Nessa altura orientou-se novamente e começou a nadar em arco para a direita. Estava prestes a passar do leito de areia para as rochas que marcavam o limite da pradaria de algas quando distinguiu uma sombra um pouco mais afastada, quase no final do seu campo de visão. Foi até aí e verificou, decepcionado, que se tratava de uma pedra circular coberta por formações calcárias. Demasiado circular e demasiado perfeita, pensou de súbito. Moveu-a um pouco, levantando areia do fundo, e a pedra revelou-se surpreendentemente leve ao partir-se entre as mãos, descobrindo no interior uma matéria verde-acinzentada semelhante a madeira podre. Atónito, Coy demorou um pouco a compreender que se tratava precisamente disso: de madeira velha e apodrecida. Talvez a roda de uma carreta de canhão. Sentiu palpitar mais depressa o coração sob o neopreno. A respiração já não era tranquila, tinha subido para três golfadas a cada cinco segundos quando esgaravatou sem encontrar mais nada e, ao fazê-lo, levantou tanta suj idade do fundo que teve
de subir um pouco para chegar a uma zona de água limpa e continuar a olhar em volta. Nessa altura, viu o primeiro canhão sobre a areia.
Nadou dando um impulso suave com as barbatanas, como se receasse que a grande peça de bronze fosse desfazer-se diante dos olhos tal como a roda de madeira. Devia ter dois metros de comprimento e jazia sobre o fundo como se alguém tivesse acabado de o depositar ali com muito cuidado. Estava quase todo a descoberto, com a sua patina bolorenta e algumas incrustações calcárias. Mas eram perfeitamente visíveis os adornos das pegas em forma de golfinhos, a bola da maçaneta da culatra e os grossos munhões. Devia pesar perto de uma tonelada.
Um pouco mais longe conseguia distinguir a sombra escura de outro canhão. Foi até aí e verificou que era idêntico, embora estivesse numa posição distinta, porque devia ter caído no fundo quase verticalmente, cravando-se de boca e na diagonal. Mais tarde, o peso tê-lo-á afundado na areia até acima dos munhões. Também havia estranhas pedras avermelhadas que, ao serem abertas com a faca revelavam interiores ocos parecidos com moldes: a marca de objectos de ferro desaparecidos pela corrosão, mas que conservavam as suas formas impressas na formação calcária que os cobriu com o passar do tempo. Coy teve de se controlar para não subir até à superfície, anunciando aos gritos que tinha descoberto o Chergui, ou o que dele restava. Bastava-lhe agitar a mão para remover o fundo, e sob este aparecerem fragmentos de madeira e objectos mais bem conservados graças à protecção da areia. Desenterrou uma garrafa de aparência muito antiga, cuja base estava intacta mas deformada e fundida pelo calor. O chaveco corsário, concluiu, tinha explodido precisamente ali, vinte metros acima, na superfície, e os seus restos ficaram espalhados por esse local. Um pouco mais longe, muito juntos, encontrou outros dois canhões. Também tinham a cor verde do bronze submerso durante dois séculos e meio e, excepto algumas incrustações e a patina bolorenta exterior, estavam razoavelmente limpos. Agora, os restos eram abundantes: madeiras que saíam da areia, objectos metálicos em diversos graus de corrosão, balas de canhão semienterradas, loiça partida, aglomerados de tábuas e pregos de ferro. Coy deparou-se mesmo com uma estrutura de madeira quase intacta que, ao esgaravatar na areia, revelou ser maior e estar em melhor estado do que parecia à vista desarmada. Parecia uma mesa de guarnição, com grandes vigotas e fragmentos de cordame que se desfez ao tocá-la. E mais canhões. Contou até nove, espalhados numa área de uns trinta metros de diâmetro.
Surpreendia-o a limpeza em que tudo se encontrava, a ausência de acumulação de sedimento sobre os restos que, na sua maior parte, consistia em finas camadas de areia. A suave corrente fria que se deslocava para sudoeste podia ser uma explicação, mantendo o sítio limpo e encaminhando o fluxo na direcção de uma depressão aberta um pouco mais abaixo, atrás de uma pequena crista rochosa, atapetada de anémonas. Coy foi até aí para comprová-lo e viu que a depressão, em forma de fenda natural, drenava os sedimentos, desviando-os para uma série de degraus que davam para zonas mais profundas. Um polvo, surpreendido na sua guarida pela presença do intruso, afastou-se pela areia, com os braços abertos em forma de estrela nervosa, lançando jorros de tinta para cobrir a retirada. Coy consultou o relógio. O ar do regulador tornava-se mais duro, de modo que olhou para cima, para a claridade verde-azulada que se esfumava sobre a sua cabeça, trespassada pelas bolhas de ar que pareciam de prata. Eram horas de subir. Levou a mão à base da garrafa para accionar a reserva e o ar voltou a chegar-lhe aos pulmões com normalidade.
Preparava-se para subir quando viu uma âncora. Estava justamente na beira de uma segunda crista rochosa, já gasta pela erosão, no outro lado da fenda de drenagem. E era grande, antiga, com as grandes unhas de ferro bastante oxidado e coberta de incrustações calcárias. Tanto a âncora como a crista de pedras e anémonas tinham, agarrados a elas, restos de redes velhas e nassas desfeitas. Com o tempo, muitos pescadores haviam perdido as suas artes neste lugar. Mas o que lhe chamou a atenção foi que a âncora era das de cepo de madeira, embora este tivesse desaparecido e restasse apenas alguns pedaços sob o anete. Era uma âncora como as que um chaveco ou um bergantim poderiam ter usado, e isso animou Coy a atravessar a fenda, a rodear a crista e a aproximar-se dela, aproveitando os últimos minutos da sua reserva de ar. No outro lado das rochas, a areia alternava com um leito de cascalho; o declive era mais pronunciado e descia dos vinte e seis aos vinte e oito metros de sonda. E aí, na penumbra verde, diluindo-se na profundidade como uma fantasmagórica sombra escura, estava o Dei Gloria.
AS ÍRIS DO DIABO
Com frases musicais tensas e curtas, o saxofone-contralto improvisava como nunca ninguém o fizera. Ouvia-se Koko, um dos temas que Charlie Parker tinha gravado quando inventou tudo o que estava destinado a inventar antes de apodrecer e rebentar com um ataque de riso. Por essa ordem: primeiro apodreceu e depois morreu de riso, vendo televisão. Isso foi há meio século. E agora Coy ouvia a gravação digitalizada daquela velha melodia, sentado, nu, numa cadeira de baloiço diante de uma mesa com uma bandeja de fruta e junto à janela de um quarto com vistas chuvosas do porto, na Pensão Cartago. Tarará. Tum, tum. Tarará. Tinha uma garrafa de limonada na mão e via Tânger dormir.
Chovia sobre o porto, sobre as gruas, molhes, sobre os barcos da Armada atracados de dois em dois no dique de San Pedro e sobre os cascos ferrugentos do Cemitério dos Barcos Sem Nome, onde estava o Carpanta atracado de popa para o espigão e tendo largado uma âncora à proa. Chovia a cântaros porque a borrasca tinha, finalmente, chegado. Fê-lo do seu quartel-general de baixas pressões, situado sobre a Irlanda, estendendo isóbaras malignamente concêntricas e próximas umas das outras. Fortes ventos de oeste empurraram sucessivas frentes nebulosas em direcção ao Mediterrâneo, e os mapas do tempo encheram-se de advertências negras, raios e sinais de chuva, e as costas foram trespassadas por flechas com dois ou três rabinhos de penas na cauda que apontavam para o coração dos navios incautos. De modo que, depois de três dias de trabalho nos destroços, os tripulantes do Carpanta viram-se obrigados a regressar ao porto. Apesar da impaciência de Tânger, ela própria admitiu que a pausa seria boa para planificar os últimos passos e adquirir equipamento necessário antes do assalto final aos segredos da tumba submarina. Uma tumba, a do Dei Gloria, situada definitivamente a duas milhas da costa, nos 37° 33,3minutos de latitude norte e nos 0° 46,8minutos de longitude oeste, com a popa a vinte e seis metros de profundidade e a proa a vinte e oito.
Durante aqueles dias em que viveram com um olho no mar e outro no barómetro, Tânger tinha dirigido a operação da casa de pilotagem do Carpanta. Coy e o Piloto trabalharam duramente, fazendo turnos lá em baixo por períodos de meia hora a quarenta minutos, com intervalos suficientes para não serem obrigados a fazer longas descompressões. O barco, verificaram desde as primeiras explorações, encontrava-se em bom estado, se tivessem em conta os dois séculos e meio de permanência debaixo de água. Afundara-se de proa, deixando uma das suas âncoras na crista rochosa antes de pousar no fundo, orientado num eixo nordeste-sudoeste. O casco, jazendo sobre estibordo, estava enterrado na areia com sedimentos até ao convés, a coberta podre e cheia de aderências marinhas, mas com a popa ainda intacta. Na direcção da proa, todo o madeiramento, o forro da coberta e os vaus tinham desaparecido, e da areia assomavam algumas extremidades das cavernas do navio, semelhantes a costelas de um esqueleto limpo. Quando, nas imersões seguintes, Coy e o Piloto exploraram o resto do Dei Gloria, puderam verificar que a sua terça parte posterior, aproximadamente, estava a descoberto, com destroços que teriam sido maiores noutras águas e noutra posição. O convés parecia coberto por uma confusão de madeiras, aglomerados de ferro apodrecido pela corrosão, areia e sedimentos, que se amontoava na direcção da proa desfeita e enterrada. Era evidente que, com a inclinação do bergantim enquanto se afundava, os dez canhões de ferro da coberta e todos os objectos pesados se tinham deslocado para a proa. E aí, com o tempo, aquele peso tinha feito o madeiramento ceder, afundando-o na areia. Esse era o motivo pelo qual a popa se encontrava um pouco alta e com menos destroços, embora muitos vaus e cavernas tenham cedido e a areia se amontoasse entre o madeiramento apodrecido. Podia distinguir-se a guinada do mastro grande partido em combate, uma pirâmide de tábuas petrificadas em forma de escotilha da gaiuta, duas portas de canhão na amurada de bombordo, o cadaste que conservava, ainda preso por pernos de bronze bolorento e cheio de filamentos e incrustações, e restos da porta do leme.
Tinham tido sorte, explicou Tânger na primeira noite, enquanto baloiçavam fundeados sobre o naufrágio, reunidos em volta da carta de Urrutia e dos planos do Dei Gloria, à luz diminuta do candeeiro da casa de pilotagem, celebrando a descoberta com uma garrafa de branco Pescador que o Piloto tinha a bordo. Tiveram muita sorte por várias razões e a principal era o bergantim ter ido a pique de proa e não de popa, deixando mais acessíveis a câmara do capitão, onde costumavam guardar-se os objectos valiosos. O mais provável era as esmeraldas, caso estivessem a bordo no momento do naufrágio, estarem aí ou no piso contíguo, reservado aos passageiros. O facto de a popa não estar completamente enterrada facilitava a tarefa, porque procurar debaixo da areia teria exigido mangueiras de extracção e um equipamento mais complexo. Quanto ao estado de conservação, óptimo depois de tanto tempo no fundo do mar, devia-se à crista rochosa atrás da qual se encontravam os destroços, com os canais naturais e as pedras que o protegiam da acção da ondulação, dos sedimentos marinhos e das redes dos pescadores. Também a corrente suave de água fria que circulava desde o cabo de Paios tinha atenuado a acção dos teredos, os vermes marinhos devoradores de madeira que encontram condições favoráveis em águas quentes. Por tudo isto, o trabalho que tinham pela frente parecia ser esgotante, mas não impossível. Ao contrário dos arqueólogos que investigavam naufrágios, eles não tinham que conservar nada, podiam permitir-se qualquer estrago necessário para chegar mais depressa ao seu objectivo. Não havia meios técnicos nem tempo para considerações. De modo que no dia seguinte, actuando em paralelo com o trabalho de Tânger sobre os planos abertos em cima da mesa de cartas ou nas anteparas do Carpanta, Coy e o Piloto perderam todo um dia de imersões sucessivas a estender um cabo branco que ia da proa à popa do barco afundado, seguindo a linha aparente de meio-navio. Depois, deslocando-se com precaução entre as madeiras partidas e as incrustações calcárias que podiam cortar como facas, cruzaram de dois em dois metros cabos mais curtos, perpendiculares a ambos os lados da linha longitudinal e lastrados com chumbo nas extremidades. E, dessa forma, fizeram uma divisão dos destroços em segmentos, cuja correspondência Tânger tinha traçado com régua e lápis nos planos do bergantim. Assim estabeleceram pontos rudimentares de identificação entre a realidade e o papel, situando em baixo cada parte do casco conforme figurava em escala 1:55 nos planos fornecidos por Lúcio Gamboa. No dia em que o barómetro começou a descer e os boletins meteorológicos os levaram a decidir abrigar-se em Cartagena, já tinham conseguido calcular a posição do pavimento inferior da popa, da casa de pilotagem e da câmara, situados sob o tombadilho. A questão principal estava em tentar averiguar o estado interior dos aposentos do capitão Elezcano, e se o estado do madeiramento interior resistira à pressão dos sedimentos, ao apodrecimento da madeira e se era possível deslocarem-se lá dentro quando descobrissem a forma de entrar. Ou, pelo contrário, se estaria tudo tão destruído e revolto que tornasse necessário começar por cima, partindo e desentulhando até descobrir os doze metros quadrados, junto da popa, ocupados pelo alojamento do capitão.
A chuva continuava a cair atrás dos vidros e Charlie Parker extinguia-se naquela paisagem com o seu saxofone, aconchegado, a caminho do sonho eterno, pelo piano de Dizzy Gillespie. Fora Tânger que oferecera a Coy aquela gravação, depois de a comprar numa loja de música da Calle Mayor. Estavam sentados na porta do Gran Bar com o Piloto, depois de um passeio sob a chuva até ao Museu Naval da cidade e de se abastecerem pelo caminho em lojas de artigos náuticos, supermercados, lojas de ferragens e drogarias, com dinheiro que ela levantou de um caixa automático, após duas tentativas que a obrigaram a diminuir o valor por falta de liquidez. Eu também estou a mergulhar na reserva, disse sarcástica, guardando a carteira com o cartão de crédito num bolso traseiro das suas calças de ganga. Tinham conseguido comprar o necessário, desde ferramentas a produtos químicos, e as compras estavam em sacos entre as pernas das cadeiras, enquanto o toldo de lona do bar os protegia da chuvinha quente, que envernizava a rua dando um aspecto melancólico às galerias vazias dos edifícios modernistas cujos andares térreos, que Coy recordava animados por velhos cafés, se tinham convertido em lúgubres dependências bancárias. E estavam ali os três, bebendo aperitivos e vendo passar impermeáveis e guarda-chuvas molhados, quando Tânger deixou o diário local sobre a mesa — tinha-o aberto na página de entradas e saídas de navios, observou Coy — se pôs em pé e foi até à loja de música que ficava junto de Revistas Mayor, diante da Livraria Escarabajal. Voltou com um embrulho na mão e pô-lo à frente de Coy sem dizer pega, é para ti, sem dizer nada. Lá dentro estavam dois CD duplos com os masters dos oitenta temas que Charlie Parker tinha gravado para as editoras Dial e Savoy entre 1944 e 1948. E, dadas as circunstâncias, ele só pôde apreciar o gesto. O velho Parker custava um dinheirão.
Naquele mesmo dia, Coy julgou ver novamente Horacio Kiskoros. Regressavam ao Carpanta carregados com as compras e, sob os muros do antigo forte Navidad, junto ao cemitério dos barcos, ele deu uma vista de olhos em redor. Fazia-o com frequência, por instinto, cada vez que estavam em terra. Embora Tânger parecesse indiferente às ameaças de Nino Palermo, Coy continuava a levá-las em conta e não se esquecia do último encontro com o argentino na praia de Águilas. O caso é que caminhava na direcção do espigão em cuja extremidade estava atracado o Carpanta, na peugada de Tânger e do Piloto, quando viu Kiskoros ao pé da torre velha. Ou julgou vê-lo. Aquela era uma passagem frequentada por pescadores que iam ao quebra-mar, mas a silhueta que se destacou no contraluz cinzento, entre a torre e a ponte desmontada do Korzeniowski, não tinha aspecto de pescador: miúda, imaculada, vestida com o que parecia ser um Barbour{ verde.
— Aquele é Kiskoros — disse.
Tânger parou, perplexa. Ela e o Piloto voltaram-se, olhando para onde Coy apontava, mas já não estava ninguém. De qualquer forma, pensou Coy, LBLTL: Lei de Branco, Líquido e em Tetrabrik
*1. Barbour: marca de roupa, muito difundida entre os praticantes de vela devido aos seus casacões impermeáveis. (N. da T.)
deve ser Leite. De modo que Barbour, anão e por ali, só podia tratar-se de Kiskoros. Além disso, quando os maus rondam, o normal é, mais cedo ou mais tarde, algum pôr o nariz de fora. Pousou os sacos no chão. Nesse momento não estava a chover, e as rajadas de sudoeste quente que desciam assobiando pelas ladeiras de San Julián agitavam a água dos charcos que os seus pés chapinhavam, na corrida em direcção à torre. Continuava a não estar ninguém quando lá chegou, mas tinha a certeza de ter visto o herói das Malvinas; e o seu desaparecimento brusco reforçava-lhe essa convicção. Deu uma vista de olhos entre as pranchas cortadas a maçarico, entre os ferros retorcidos que tingiam a areia de ferrugem e, permanecendo muito quieto, aguçou o ouvido. Absolutamente nada. O metal ressoou inseguro com os seus passos quando trepou por uma escada da ponte desmantelada do paquete, sujando as mãos de ferrugem. Os restos de chuva pingavam do tecto, empapando as madeiras apodrecidas do chão. Algumas cediam sob o seu peso, de modo que tentou ver onde punha os pés. Desceu pelo outro lado, até à barriga aberta do bulkcarrier meio desmantelado, com as anteparas interiores sujas de óleo preto e seco: aquilo era um labirinto de ferro-velho, de sucata amontoada por toda a parte. Rodeou a base de uma das gruas e penetrou no barco através de um corredor inclinado, onde a água formava charcos no chão contra as braçolas. Os seus sentidos tensos, em estado de alerta, acusaram a tristeza opressiva de toda aquela desolação intensificada pela luz suja que se filtrava do exterior. No outro lado de um aposento desguarnecido e vazio, com todos os cabos retirados e amontoados a um canto, espreitou para a cavidade escura de um porão. Deixou cair um bocado de metal e o eco sinistro ecoou no fundo, entre as pranchas invisíveis. Impossível descer sem uma lanterna. Nessa altura ouviu um ruído atrás de si, no fundo do corredor. De modo que, com o coração saltando-lhe no peito, a respiração suspensa até lhe doer a mandíbula, voltou para trás. O Piloto estava ali, carrancudo e tenso, empunhando um barrote de ferro de três palmos, e Coy blasfemou entredentes, a meio caminho entre a decepção e o alívio. Tânger esperava atrás, apoiada numa antepara, com as mãos nos bolsos e uma expressão sombria. Quanto a Kiskoros, se de facto se tratava dele, tinha voado.
Tirou os auscultadores quando o longínquo relógio da Câmara dava as sete badaladas. A toada parecia rematar as últimas notas. Pum! Bebeu um gole de limonada e continuou olhando para Tânger, adormecida na cama revolta. A claridade cinzenta depurava sombras à contraluz dos lençóis que lhe cobriam os joelhos, o tronco e a cabeça. Dormia de lado, com uma mão estendida e outra entre as pernas dobradas, com a cintura e as coxas a descoberto, de costas para a luz incerta do amanhecer, e a curva das suas ancas nuas era o escorço por onde resvalavam claridade e sombras moldando pele pintalgada, covinhas da carne, fendas e curvas. Imóvel na cadeira de baloiço, Coy observava os pormenores da cena: o rosto oculto, o cabelo entre os lençóis enrugados que definiam a consistência dos ombros e das costas, a cintura a descoberto, o alargamento das ancas e a linha interior das coxas vistas de trás, o belo ziguezague das pernas flectidas, as plantas dos pés. E em especial aquela mão adormecida, cujos dedos espreitavam presos entre as coxas, muito perto da insinuação do pêlo púbico, dourado e com tons escuros.
Pôs-se de pé e caminhou silenciosamente, aproximando-se da cama para melhor fixar tudo aquilo na sua memória. Ao fazê-lo, o espelho do armário do fundo reflectiu um fragmento da cena: a outra mão de Tânger estendida sobre a almofada, o esboço de um joelho, o corpo moldado sob o lençol. E também o próprio Coy integrado ali através da parte do seu corpo reflectida no mercúrio do espelho: um braço e uma mão, o contorno da sua anca nua, a certeza física de que aquela imagem não pertencia a outro nem era um jogo de espelhos da sua memória. Lamentou não ter à mão uma máquina fotográfica para reter os pormenores. De modo que se esforçou por gravar na sua retina aquele mistério semidescoberto que o obcecava; a intuição do momento volúvel, curtíssimo, que talvez explicasse tudo. Havia um segredo e o segredo estava à vista, apenas dissimulado no óbvio. Outra questão era isolá-lo e compreender, mas sabia que não ia dispor de tempo e que, num instante, os deuses ébrios e caprichosos, que ignoravam a sua própria faculdade de criar enquanto sonhavam, bocejariam acordando e tudo se esfumaria como se nunca tivesse existido. Talvez nunca mais se repetisse com tanta evidência, pensou desolado, esse momento fugaz, o relâmpago de lucidez consoladora capaz de colocar as coisas no seu sítio, de equilibrar vazio, horror e beleza. De reconciliar o homem reflectido no espelho com a palavra vida. Mas Tânger começava a mexer-se sob os lençóis e Coy, que se sentia em risco de roçar a chave do enigma, sentiu que, tal como numa fotografia imperfeita, entre a cena e o observador se interpunha já uma décima de segundo a mais ou a menos, como o desajuste de uma imagem impossível de solucionar. E no espelho, para lá do escorço do seu próprio corpo e da mulher estendida na cama, os barcos sob a chuva eram outra vez reflexos de navios negros num mar milenar. Nessa altura ela acordou e, com ela, acordaram todas as mulheres do mundo. Despertou morna e sonolenta, com o cabelo revolto e colado à cara, cobrindo-lhe os olhos, a boca entreaberta. O lençol escorregou-lhe pelos ombros e pelas costas revelando o braço estendido, a linha da axila na direcção dos músculos dorsais, o início tenso de um seio comprimido sob o peso do corpo. Agora as costas queimadas pelo sol, com a marca mais clara do fato de banho, apareciam em toda a sua extensão até mais abaixo da cintura enquanto arqueava os rins, espreguiçando-se como um animal belo e tranquilo, com os olhos deslumbrados pela claridade suja da janela, descobrindo a proximidade de Coy com um sorriso, primeiro perplexa e depois quente, por fim repentinamente séria, grave, consciente da sua nudez e da observação de que fora objecto. E finalmente o desafio, a volta lenta e deliberada diante dos olhos do homem, totalmente despojada dos lençóis, de barriga para cima, com uma perna estendida e a outra dobrada em ângulo, impudica, a mão junto ao sexo sem chegar a escondê-lo, as linhas do ventre convergindo para a face interior das coxas como sinais sem retorno, a outra mão abandonada sobre o lençol. Imóvel. E o olhar sempre firme, calmo, os olhos fixos no homem que a observava. Depois, após uns instantes, ela escorregou para um lado até ficar de joelhos em frente ao espelho, mostrando-lhe por trás a nudez das costas e das ancas. Aí, aproximando os lábios do vidro, respirou até embaciá-lo e, sem afastar os olhos de Coy, ou da imagem de Coy, imprimiu a marca da sua boca no bafo que embaciava o reflexo. Foi isso que fez. Depois levantou-se e, vestindo uma camisola de manga curta pelo caminho, foi sentar-se no outro lado da mesa, junto da bandeja com fruta. Descascou com os dedos uma laranja inteira e começou a comê-la sem separar os gomos, mordendo a polpa que derramava pelos lábios, pelo queixo e pelas mãos. Coy colocou-se à frente dela, sem dizer uma palavra, e de vez em quando Tânger olhava-o, com os dedos e a boca cobertos do sumo da laranja, da mesma forma que o olhara quando estendida na cama, com a diferença de que agora sorria um pouco, apenas. Sorria e depois levava os pulsos à boca para chupar o sumo que lhe escorria até aos cotovelos, e a laranja desfeita entre os dedos desaparecia entre os seus lábios e a língua lambia os espaços entre os dedos, novamente os restos de polpa nas palmas das mãos, novamente os pulsos. Então, Coy abanou a cabeça como se negasse alguma coisa. Abanou-a de um lado para outro antes de suspirar como se lhe tivesse escapado um queixume triste, resignado. Depois rodeou a mesa sem se apressar, atraiu a mulher para si e, tal como estava, sentada, com a camisola levantada até às ancas, o sabor da laranja na boca, procurou o caminho para ítaca na outra margem daquele mar velho e cinzento como a memória.
Regressaram ao Dei Gloria quando passou a borrasca, depois de as últimas nuvens se afastarem ao amanhecer deixando um rasto avermelhado a barlavento. Novamente o mar se tornou azul intenso, e o Sol iluminou as casinhas brancas da costa levando o vento pela mão na forma de uma brisa suave, a soprar favorável, nas palavras do Piloto. E naquele mesmo dia, com luz vertical projectando a sombra de Coy na superfície da água, este voltou a mergulhar com duas garrafas de ar comprimido nas costas para descer ao longo da baliza — uma das grandes protecções laterais do Carpanta — que tinham fixado, com trinta metros de cabo e um nó a cada três metros, à extremidade de uma âncora. Tocou no fundo a pouca distância do lado de bombordo, à altura do convés, e nadou ao longo do casco para verificar se as marcas fixadas antes da borrasca continuavam no sítio. Depois consultou o plano que trazia desenhado a lápis de cera numa tabuinha de plástico, calculou as distâncias com a ajuda de uma fita métrica e; começou a desentulhar a escotilha da popa, petrificada e coberta de incrustações marinhas. Com uma alavanca de ferro e uma picareta partiu as tábuas apodrecidas, que se desfizeram numa nuvem de sujidade. Trabalhava devagar, tentando não fazer esforços que aumentassem a sua necessidade de ar. Às vezes afastava-se um pouco para descansar, enquanto os sedimentos pousavam e recuperava a visibilidade. Dessa forma desmontou a escotilha e, quando a água clareou um pouco, pôde meter a cabeça lá dentro, como fizera no dia anterior no porão do bulkcar-rier. Desta vez meteu com cuidado o braço com a lanterna e iluminou as entranhas revoltas do bergantim, onde peixes desorientados pela luz nadavam enlouquecidos, procurando rotas de fuga. A lanterna devolvia a cor natural, anulando a monotonia do verde das profundezas. Havia anémonas, estrelas-do-mar, formações coralinas vermelhas e brancas, algas coloridas que se agitavam suavemente, e as escamas fugitivas dos peixes cortavam o feixe como navalhas de prata. Coy viu um tamborete de madeira aparentemente bem conservado, caído contra uma antepara e coberto de limo: podiam distinguir-se os adornos em espiral talhados nos pés. Exactamente por baixo da escotilha havia uma coisa que parecia uma colher cheia de aderências e, junto dela, aparecia a parte inferior de um candeeiro de petróleo com o latão coberto de caramujos, meio enterrado num montículo de areia que se fora infiltrando por entre as tábuas apodrecidas. Descrevendo um arco com a lanterna, Coy viu os restos do que parecia ser um aparador, destruídos a um canto e, entre uma pilha de tábuas partidas, pôde ver rolos de cabos de pita rodeados de filamentos pardos e objectos de metal e louça: pichel, jarros, alguns pratos e garrafas, tudo coberto por uma finíssima camada de sedimentos. No entanto, noutros aspectos o panorama não era tão animador: os vaus que suportavam a coberta tinham cedido em muitos sítios e metade da câmara era uma desordem de madeiras e montes de areia que se tinham introduzido pelas cavernas esburacadas. O feixe da lanterna iluminava buracos suficientes para se deslocar pelo interior com muitas precauções, desde que as cavernas e os vaus que mantinham a estrutura do casco não cedessem. Era mais prudente, decidiu, levantar o maior número de tábuas possível do tombadilho e agir a partir do exterior, a céu aberto, retirando o madeiramento com a ajuda de flutuadores de ar que reduzissem o esforço. Isso tornaria o trabalho mais lento, mas era preferível a ele ou ao Piloto se verem presos lá dentro, ao menor descuido.
Tirou as duas garrafas com muito cuidado, passando-as para a frente sobre a cabeça. Inspirou uma boa golfada de ar e deixou-as na coberta, com o bocal preso debaixo das torneiras. Depois meteu meio corpo pela escotilha, tendo cuidado para não ficar preso a nada e, iluminando com a lanterna, aproximou-se do candeeiro semienterrado até conseguir apanhá-lo. Era muito leve e soltou-o do fundo sem dificuldade. Nesse momento viu os olhos de um grande mero que o observava boquiaberto de um buraco por baixo da escotilha. Cumprimentou-o acenando com a mão e depois retrocedeu de costas, pouco a pouco, até ficar novamente à altura da coberta, atento a não deixar sair nem um sopro do ar que precisaria para esvaziar o bocal do regulador e respirar novamente. Mordeu o bocal, soprou no regulador borbulhante e inspirou ar fresco sem problemas. Depois passou as garrafas para as costas, fechando as correias. No pulso, o relógio Seiko à prova de água do Piloto indicava que tinha passado trinta e cinco minutos ali em baixo. Eram horas de subir, parar à altura do nó que marcava os três metros e aguardar os sete minutos exigidos pelas tabelas de descompressão. De modo que deu cinco puxões sucessivos no cabo de kevlar que o mantinha unido a um cunho do Carpanta e começou a subir devagar com o candeeiro na mão, a menos velocidade que as suas próprias bolhas de ar, vendo a água clarear, passando da penumbra esverdeada para o verde e deste para azul. Antes de chegar acima, parou na marca dos três metros, agarrado ao nó do cabo, com a sombra negra do veleiro imóvel sobre a sua cabeça, sob a superfície cujos reflexos pareciam vidro polido. Nesse momento o vidro partiu-se na espuma de um mergulho e Tânger, com óculos de mergulho e os cabelos ondulando na água, desceu dando braçadas até Coy. Nadava à sua volta como uma estranha sereia, e a luz que se filtrava de cima empalidecia a sua pele pintalgada, fazendo-a parecer estranhamente despida e vulnerável. Mostrou-lhe o candeeiro do Dei Gloria e viu os olhos dela abrirem-se, maravilhados, atrás do vidro da máscara.
Durante quatro dias, revezando-se em imersões sucessivas, Coy e o Piloto levantaram parte da coberta do bergantim à altura da câmara. Desobstruíram, retirando o madeiramento apodrecido de cima para baixo, abrindo com alavancas de ferro e picaretas, com cuidado para não afectarem a estrutura de cavernas e de vaus que mantinha a forma do casco sob o tombadilho. Para levantar as madeiras grandes recorriam ao princípio de Arquimedes, procurando um volume de ar equivalente ao peso de cada objecto a levantar: uma vez livres das madeiras grossas, usavam flutuadores semelhantes a pára-quedas de plástico com fios de nylon, que enchiam com o ar comprimido das garrafas de reserva arreadas verticalmente do Carpanta, com a ajuda de um cabo. O trabalho era lento e esgotante; às vezes, a nuvem de sedimentos era muito espessa e impedia a visibilidade ao ponto de serem obrigados a descansar até a água clarear novamente.
Havia ossos humanos. Surgiam entre o madeiramento do barco ou parcialmente enterrados na areia, amiúde com fragmentos do que tinham sido os seus cintos ou sapatos. Como o crânio com uma brecha no parietal que Coy encontrou sob uma fina camada de sedimentos, junto de uma das portas, e que voltou a enterrar na areia, num impulso de respeito atávico. Os marinheiros do Dei Gloria continuavam ali, tripulando o seu barco afundado e, às vezes, quando se deslocava entre as madeiras sombrias do bergantim, tendo a sua respiração no regulador de ar comprimido por única companhia, Coy podia senti-los perto na penumbra verde que o rodeava.
Todas as noites faziam um balanço à luz da casa de pilotagem, em reuniões que pareciam conselhos de guerra presididos por Tânger, com os planos do bergantim à frente: Coy e o Piloto vestidos com camisolas de lã apesar da temperatura suave, para compensar o frio que tinham dentro de si após demasiadas horas de imersão. Depois, Coy dormia um sono pesado, sem sonhos ou imagens e, na manhã seguinte, voltava novamente a mergulhar. Tinha a pele como grão-de-bico demolhado.
No terceiro dia, quando subia disposto a parar na marca dos três metros para expurgar o nitrogénio dissolvido no sangue, olhou para cima e ficou estupefacto: a silhueta escura de outro casco balançava junto ao Carpanta, na ondulação crescente. Subiu à superfície sem completar a descompressão, com uma ferroada de alarme que se intensificou ao encontrar ali a lancha-patrulha da guarda civil. Aproximaram-se para dar uma vista de olhos, curiosos os seus tripulantes com a imobilidade do Carpanta. Felizmente, o tenente ao comando da embarcação era conhecido do Piloto e a primeira coisa que Coy captou ao emergir foi um olhar tranquilizador deste: estava tudo sob controlo. Ele e o tenente fumavam e conversavam passando o odre de vinho de barco para barco, enquanto dois guardas jovens, vestidos com fatos-macaco verdes e ténis, dirigiam olhares nada desconfiados a Tânger, que lia na coberta da popa, óculos de sol, fato de banho, chapéu de lona e aparente indiferença relativamente à cena. A história que o Piloto acabara de contar em frases soltas, sem dar excessiva importância, sobre turistas amadores de mergulho que lhe tinham alugado o barco e a suposta busca desportiva de um pesqueiro naufragado há alguns anos naquelas águas — o Leo y Vero, de Torrevieja — tinha parecido razoável ao tenente. Especialmente quando soube que o homem que saía da água e lhes estendia a mão num cumprimento, depois de pendurar as garrafas, pelas correias, na escada de popa, com o ar vagamente surpreendido, era nativo de Cartagena e oficial da marinha mercante. A lancha-patrulha foi-se embora, depois de o tenente se conformar em deitar uma vista de olhos à licença de mergulho de Coy e recomendar que a renovasse, por estar caducada há um ano e meio. E assim que ficou a meia milha de distância na extremidade de uma esteira recta e branca, Tânger fechou o livro do qual fora incapaz de ler uma única linha e os três entreolharam-se com um alívio silencioso. Coy voltou a atirar-se à água com as garrafas de ar comprimido, desceu até à marca dos três metros e ficou ali, rodeado de medusas brancas e pardas que passavam devagar, levadas pela corrente, até se terem diluído as bolhas de nitrogénio que a precipitada emersão começava a formar no seu sangue.
No quinto dia, o tombadilho do bergantim estava suficientemente desobstruído para uma primeira exploração séria. Quase todo o madeiramento da coberta tinha desaparecido, e a estrutura despojada do casco na popa revelava parte dos alojamentos do capitão, os restos de uma antepara intacta, um paiol e a câmara contígua, que era a dos passageiros. Dessa forma, a céu aberto, Coy pôde começar a busca desenterrando a desordem de objectos, restos e fragmentos de madeira que se amontoava formando uma camada de quase um metro de espessura. Escavava com as mãos enluvadas e uma pá de cabo curto, atirando os restos inúteis pela borda, para fora do casco, parando de vez em quando para se afastar um pouco até a nuvem de sedimentos pousar. Dessa forma desenterrou coisas que, noutras circunstâncias, teriam despertado a sua curiosidade, mas que agora se limitava a descartar, impaciente: ferragens diversas, jarros de peltre, um candelabro, fragmentos de vidro e olaria. Encontrou parte de um sabre cuja folha tinha desaparecido com a corrosão. Tinha um punho de bronze, grande, com o coto de uma folha larga e enormes copos para proteger a mão: um sabre cuja única utilidade era a de cortar carne humana durante as abordagens. Encontrou também, aglomerado por aderências marinhas, um bloco de balas de mosquete que conservava a forma da caixa onde se afundara, apesar de a madeira já não existir. Enterrada na areia descobriu meia porta que mantinha as ferragens e a chave na fechadura, balas redondas de canhão de quatro libras, pregos petrificados de ferro, com o interior desvanecido em manchas de ferrugem, e outros de bronze que se conservavam em melhor estado. Sob as tábuas desfeitas de um aparador descobriu malgas e pratos de cerâmica de Talavera milagrosamente inteiros e limpos, ao ponto de se poder ler as marcas dos fabricantes. Encontrou um cachimbo de barro, dois mosquetes cheios de caramujos, discos enegrecidos e colados uns aos outros que pareciam moedas de prata, a ampulheta partida de um relógio de areia, e também uma régua articulada de latão, que deve ter traçado rumos nas cartas de Urrutia. Como medida de segurança, tinham decidido não levar para o Carpanta nenhum objecto que pudesse levantar suspeitas, mas Coy fez uma excepção quando desenterrou um instrumento coberto de aderências calcárias: era composto originalmente de metal e madeira, embora esta se tenha desfeito entre os dedos quando o sacudiu para limpá-lo, conservando apenas um braço com peças presas na sua parte superior e um arco na inferior. Emocionado, identificou-o sem dificuldade: tinha na mão as partes metálicas, de latão ou bronze, correspondentes ao braço e ao limbo graduado de um antigo octante, aquele que talvez tenha sido utilizado pelo piloto do Dei Gloria para estabelecer a latitude. Era uma boa troca, pensou. Um octante do século XVIII em troca do sextante que tinha vendido em Barcelona. Colocou-o à parte, de forma a poder recuperá-lo facilmente mais tarde.
Mas o que realmente lhe revolveu as entranhas foi o que encontrou num canto do paiol, coberto por minúsculos filamentos pardos, atrás das tábuas de um cofre: um simples rolo de cabo perfeitamente enrolado, com um nó bem apertado nas duas últimas voltas, tal como fora ali deixado pelas mãos experientes de um marinheiro consciencioso, conhecedor do seu ofício. Aquele rolo de cabo intacto afectou Coy mais que tudo o resto, incluindo as ossadas dos tripulantes do Dei Gloria. Mordeu o bocal de borracha para reprimir uma careta amarga, a tristeza infinita que sentia atropelar-se-lhe na garganta e na boca, à medida que aumentava o rasto dos tripulantes mortos no naufrágio. Há dois séculos e meio, homens como ele, marinheiros habituados ao mar e aos seus perigos, tiveram aqueles objectos nas suas mãos. Tinham calculado rumos com a régua de latão, enrolado o cabo, medido os quartos de serviço dando voltas à ampulheta de areia, obtido a altura dos astros com o octante. Tinham trepado às escorregadias vergas lutando contra o vento que tentava arrancá-los dos ovéns, e tinham uivado o seu medo e a sua coragem humilde na oscilante mastreação, recolhendo as velas entre dedos hirtos de frio, dando a cara a temporais de noroeste no Atlântico, a mistrais ou levantes assassinos do Mediterrâneo. Tinham lutado a tiros de canhão, roucos de tanto gritar, cinzentos de pólvora, antes de irem para o fundo com a resignação dos homens que fazem bem o seu trabalho e vendem cara a sua pele. Agora, os ossos de todos eles estavam espalhados em redor, entre os restos do Dei Gloria. E Coy, deslocando-se lentamente sob o fluxo de bolhas de ar que subia rectilíneo naquela penumbra semelhante a um sudário, sentia-se como um saqueador furtivo que viola a paz de um túmulo.
A luz vinda da porta baloiçava devagar sobre a pele nua de Tânger. Era uma mancha de sol pequena, quadrangular, que subia e descia com o movimento do barco, e que lhe deslizou pelos ombros e pelas costas quando ela se separou de Coy, ainda sufocada pelo esforço, abrindo a boca como um peixe fora de água. Tinha o cabelo, que os dias de mar clarearam nas pontas tornando-as quase brancas, colado à cara com suor. E esse suor escorria-lhe pela pele, fazendo brilhar a chapa de soldado na extremidade da corrente de prata, deixando-lhe regueiros entre os seios e depositando gotinhas na parte superior dos lábios e das pestanas. O Piloto estava vinte e seis metros mais abaixo, trabalhando no seu turno de imersão. O Sol quase vertical aquecia o poço como um forno e Coy, encostado no banco sob a escada que levava à coberta, deixava as suas mãos escorregarem pelos flancos húmidos da mulher. Tinham-se abraçado ali mesmo, inesperadamente, quando ele tirava o colete de mergulho e procurava uma toalha, depois de ter estado meia hora nos destroços do Dei Gloria, e ela passara ao seu lado, roçando-o involuntariamente. De repente, a fadiga dele desapareceu de chofre e ela ficou muito quieta olhando-o com aquela reflexão silenciosa com que às vezes o olhava e, um instante depois, estavam agarrados ao pé da escada, arremetendo um contra o outro com tanta fúria como se se odiassem. Agora, ele apoiava-se no espaldar, desfalecido, e ela afastava-se devagar, inexoravelmente, voltando-se de lado e libertando nesse gesto a carne húmida de Coy, com aquela mancha de sol que lhe resvalava por cima, e o olhar, que era novamente azul-metálico, azul-escuro, azul-marinho, azul-de-ferro-azulado, voltado para cima, para a claridade e para o Sol que, da coberta, entravam pela escotilha. Então Coy, de baixo, ainda reclinado, viu-a subir nua pela escada como se partisse para sempre. Apesar do calor, sentiu um arrepio percorrer-lhe a pele, exactamente nos sítios que conservavam a marca dela. E de repente pensou: um dia será a última vez. Um dia abandonar-me-á, ou morreremos, ou envelhecerei. Um dia sairá da minha vida e eu da dela. Um dia não terei mais que imagens para recordar, e depois nem sequer terei vida para recompor essas imagens. Um dia apagar-se-á tudo, talvez hoje mesmo seja a última vez. Por isso esteve a olhar para ela enquanto ela subiu pela escada da escotilha até desaparecer na coberta, gravando na memória o mais ínfimo pormenor. Fê-lo com muita atenção, e a última coisa que reteve daquela imagem foi uma gota de sémen que deslizava lentamente pela face interior de uma das coxas dela e que, ao chegar ao joelho, reflectiu de súbito a luz ambarina de um raio de sol. Depois ela desapareceu do seu campo de visão e Coy ouviu o rumor de um mergulho no mar.
Passaram aquela noite fundeados sobre o Dei Gloria. A agulha do cata-vento girava indecisa junto da lâmpada acesa no topo do mastro, e a água mansa reflectia como um espelho o clarão intermitente do farol de cabo de Paios, sete milhas a nordeste. Havia tantas estrelas que o céu parecia aproximar-se do mar e até serem demasiadas para as distinguir com facilidade. Coy ficou sentado na coberta da popa, olhando-as e traçando entre elas linhas imaginárias que permitiam identificá-las. O triângulo de Verão começava a subir em direcção a sudeste e podia avistar-se um rasto da Cabeleira de Berenice, a última das constelações da Primavera a desaparecer. A leste, brilhando sobre a paisagem negra como tinta, o cinto do caçador Orion era bastante visível e, prolongando uma recta de Aldebarã até ele, sobre a Ursa Maior, encontrou a luz saída oito anos antes de Sírio, a estrela dupla mais brilhante do céu, lá onde a Via Láctea alongava a sua esteira na direcção do sul, a caminho das regiões do Cisne e da Águia. Todo aquele mundo de luzes e de imagens míticas movia-se lentamente sobre a sua cabeça e ele, como no centro de uma estranha esfera, participava do seu silêncio e da sua paz infinita.
— Já não me ensinas nomes de estrelas, Coy.
Não a ouvira aproximar-se até estar ao seu lado. Foi sentar-se muito perto mas sem tocá-lo, com os pés nos degraus da escada da popa.
— Ensinei-te todos os que sei.
Ouviu um leve chapinhar quando ela meteu os pés descalços na água. Intermitentemente, o clarão do farol delineava o contorno impreciso da sua sombra.
— Pergunto a mim própria — disse — o que recordarás de mim.
Tinha falado com suavidade, em voz baixa. E não era uma pergunta, era uma confidência. Coy ficou a pensar naquilo.
— É cedo para saber — acabou por dizer. — Ainda não acabou.
— Pergunto a mim própria o que recordarás depois de acabar. Coy encolheu os ombros, sabendo que ela não podia ver o gesto. E houve um silêncio.
— Não sei que mais esperas — acrescentou Tânger passado algum tempo.
Ele continuou calado. Da casa de pilotagem chegava o rumor do rádio VHF: eram dez e um quarto e o Piloto ouvia o boletim meteorológico para o dia seguinte. A sombra da mulher permaneceu imóvel:
— Há viagens — murmurou — que só podemos fazer sozinhos.
— Como morrer.
— Não fales disso — protestou ela.
— Morrer sozinhos, lembras-te? Como Zas... Uma vez falaste-me do medo que sentias de que isso te acontecesse.
— Cala-te.
— Pediste-me que ficasse perto. Que o jurasse.
— Cala-te.
Coy deixou-se escorregar até apoiar as costas nas tábuas do pavimento da coberta, com a abóbada celeste aberta diante dos seus olhos. A silhueta escura inclinou-se sobre ele: um buraco negro nas estrelas.
— O que poderias tu fazer?
— Dar-te a mão — respondeu Coy. — Acompanhar-te nessa viagem para não ires sozinha.
— Não sei quando acontecerá. Ninguém sabe.
— Por isso quero ficar contigo. Esperando.
— Farias isso?... Ficarias comigo para esperar?... Para não me deixar ir sozinha quando chegasse a hora?
— Claro.
A silhueta escura deixou o céu livre. Ela desviava-se, afastando-se. Olhava para a água nas trevas, ou para o firmamento.
— Que estrela é aquela?
Coy seguiu a direcção do traço negro da mão dela.
— Régulo. A garra dianteira do Leão.
Tânger parecia voltada para cima, procurando o animal descrito nas luzes que pestanejavam lá em cima. Um momento depois, voltou a agitar os pés na água.
— Talvez eu não te mereça, Coy.
Disse-o em voz muito baixa. Ele fechou os olhos exalando devagar o ar.
— Isso é problema meu.
— Enganas-te. Não é problema teu.
Ficou calada, fazendo ruído no mar. Os pés dela continuavam a remexer a água negra.
— És um bom tipo — disse de repente. — A sério que o és.
Coy abriu os olhos para os encher de estrelas e suportar a angústia que lhe subia do peito. De repente sentia-se desamparado. Não se atrevia a mover-se, como se receasse que, ao fazê-lo, a dor se tornasse insuportável.
— Melhor que eu própria — prosseguia ela — e que toda a gente que conheci. Pena que...
Interrompeu o que estava a dizer e o seu tom de voz era diferente quando voltou a falar. Mais duro, seco e definitivo:
— É uma pena.
Sobreveio outro silêncio. Uma estrela cadente caiu lá longe, a norte. Um desejo, pensou Coy. Tenho de pedir um desejo. Mas a minúscula centelha extinguiu-se antes que conseguisse formular um pensamento adequado.
— Onde estavas quando ganhei a minha taça de natação?
Que ela fique comigo, acabou por pedir. Mas já não havia estrelas cadentes no firmamento gelado, verificou. Estavam todas fixas e implacáveis.
— Vivendo — respondeu. — Preparava-me para te conhecer. Falou com simplicidade e depois calou-se. Havia um rasto de claridade no rosto escuro de Tânger. Um reflexo muito ténue. Ela olhava-o:
— És um bom tipo.
Depois de repetir aquilo, a sombra inclinou-se mais e ele sentiu a boca húmida dela na sua. Depois Tânger levantou-se.
— Oxalá — disse — encontres depressa um bom barco.
A rede de chumbo de uma vigia conservava ainda restos de vidro. Afastou-se um pouco para deixar repousar a nuvem de sedimentos e continuou a trabalhar. Tinha chegado a um lugar da câmara onde a areia voltava a encher o buraco assim que era retirada e tinha de fazer idas e vindas constantes com a pá curta para a deitar pela borda. Isso cansava-o bastante e fazia-o gastar mais ar do que convinha. As bolhas de ar subiam a um ritmo superior ao normal, de modo que pousou a pá a um lado e foi até aos restos de uma caverna, apoiando-se nela para descansar e convencer os seus pulmões a serem menos exigentes. Debaixo dos pés tinha uma bala de canhão acorrentada, daquelas que se utilizavam para quebrar a enxárcia do inimigo, que o Piloto tinha desenterrado na imersão anterior. O seu estado de conservação era mais que razoável, graças à areia que a protegera durante dois séculos e meio. Talvez fosse uma das disparadas pelo corsário, terminando ali o seu percurso depois de provocar alguns estragos nos cabos e no velame do bergantim. Desceu um pouco para a ver melhor — o que inventa um homem para destruir outro, pensava — e nessa altura, por um buraco na base de uma antepara muito próxima, viu espreitar a cabeça de uma moreia. Era grande, com um palmo de largura, num sinistro tom escuro. Abria as fauces, mal-humorada pela intrusão no seu território daquele estranho ser borbulhante. Coy retrocedeu prudentemente diante daquela boca aberta, cujos dentes podiam arrancar-lhe meio braço de uma dentada, e foi até à espingarda de caça submarina que pendia de um cabo com os flutuadores vazios e as outras ferramentas. Armou o arpão esticando os elásticos e regressou à toca da moreia. Detestava matar peixes, mas não podia trabalhar entre tábuas apodrecidas com a ameaça de uns dentes farpados e venenosos no pescoço. O animal continuava vigilante sob a antepara, defendendo a entrada do seu orifício doméstico: lar doce lar. Manteve os olhos malignos fixos em Coy quando este se aproximou empunhando o arpão e o colocou diante das suas fauces abertas. Não é nada pessoal, companheira. Tens apenas pouca sorte. Apertou o gatilho e a moreia debateu-se trespassada, dando dentadas furiosas à alavanca de aço que lhe saía pela boca, até Coy ter tirado a faca e lhe ter cortado a medula espinal à altura da nuca. Regressou ao trabalho, desentulhando um ângulo da câmara onde estavam amontoadas madeiras e objectos. A areia enchia novamente os buracos que ele abria com as mãos e os caramujos e os restos de metal tinham-lhe transformado as luvas em tiras — era o terceiro par que rompia ali em baixo — e os dedos numa lástima de cortes e arranhões. Encontrou o canhão de uma pistola cuja culatra de madeira tinha desaparecido e também um crucifixo que parecia de prata, preto e coberto de aderências, e um sapato de cabedal quase intacto, com a sua fivela. Depois retirou algumas tábuas que se partiram sob a picareta, subiu para deixar assentar os sedimentos e, ao descer novamente, viu um bloco escuro, coberto de aderências avermelhadas e pardas. A olho nu parecia um tijolo grande, quadrado. Quis deslocá-lo e pareceu-lhe colado ao fundo. É impossível, disse para consigo. Os cofres dos tesouros têm uma tampa que se abre e mostra o interior brilhante, as pérolas, as jóias e as moedas de ouro. E as esmeraldas. Os cofres dos tesouros não têm a aparência anódina de um bloco calcário e oxidado, nem aparecem tão facilmente debaixo de um sapato velho e de algumas tábuas. De modo que é impossível que isto que tenho à frente seja o que andamos a procurar. Esmeraldas grandes como nozes, íris do Diabo e coisas do estilo. É demasiado fácil.
Escavou a areia em volta do bloco de aderências, iluminando-o com a lanterna para verificar as suas cores reais. Devia ter dois palmos de comprimento, outros dois de largura e um pouco menos de profundidade, e os ângulos conservavam cantoneiras de bronze que tingia de verde as incrustações e os caramujos mais próximos. O resto estava coberto por uma crosta rígida e quebradiça, com restos de madeira apodrecida e manchas de ferrugem. Bronze, madeira e ferro em decomposição, tinha previsto Tânger. E também tinha dito que, caso encontrasse alguma coisa com estas características,, tinha de manipular com cuidado. Nada de pancadas nem de esgaravatar no seu interior. As esmeraldas, se é que se tratava delas, estariam coladas umas às outras num bloco calcário que deveria desfazer-se por meios químicos. E as esmeraldas eram muito frágeis.
Libertou o bloco da areia com pouco esforço. Não parecia muito pesado, pelo menos na água, mas era sem dúvida um cofre. Ficou imóvel durante quase um minuto, respirando pausadamente, libertando bolhas de ar a um ritmo cada vez mais lento, até acalmar um pouco, a pulsação deixar de latejar nas fontes e o coração voltar a bater com normalidade sob o colete de neopreno. Encara-o com calma, marinheiro. Cofre ou não, encara-o com muita calma. Sê fleumático, por uma vez na tua vida, porque os nervos são incompatíveis com o facto de estares a respirar ar comprimido a duzentas atmosferas de pressão, a vinte e seis metros de profundidade. De modo que ficou ali algum tempo; depois foi à procura de um dos flutuadores de plástico, fixou uma rede de malha muito fina em forma de saco na extremidade das adriças e prendeu-a à grilheta com um lais de guia. Pôs o bloco na rede e, com o seu próprio bocal, deixou sair um pouco de ar comprimido para encher em parte o flutuador. Em seguida, apesar das instruções de Tânger, esgaravatou um pouco o bloco com a ponta da faca, soltando parte da crosta, sem encontrar nada de especial. Esgaravatou um pouco mais e um bocado do tamanho de meio punho desprendeu-se do resto. Agarrou-o para olhá-lo de mais perto à luz da lanterna e, nessa altura, um fragmento desse bocado soltou-se, caindo muito devagar até pousar na areia do fundo. Era uma pedra translúcida de formas irregulares e com arestas rectas, poliédricas. Numa cor verde-esmeralda.
O CEMITÉRIO DOS BARCOS SEM NOME
Via-se a cidade ao fundo, concentrada sob o castelo numa névoa de tons esbranquiçados, pardos e azuis, acentuada pela luz poente. O Sol começava a pôr-se a oeste, sobre a silhueta maciça do monte Roldán, quando o Carpanta, amurado a bombordo com a genoa desfraldada e a vela grande com rizes, entrou pelo canal entre os dois faróis, passando por baixo das ameias dos antigos fortes que guardavam a entrada da barra. Coy manteve o rumo até ter pela alheta o farol de Navidad e as canas dos pescadores sentados entre os blocos do quebra-mar. Nessa altura meteu a roda do leme a barlavento e as velas grivaram enquanto o barco orçava parando na água tranquila, ao abrigo do dique. Tânger movia a manivela de um molinete, recolhendo a genoa, quando ele libertou o mordente da adriça da vela grande e esta caiu deslizando ao longo do mastro. Depois, enquanto o Piloto a ferrava à espicha, Coy ligou o motor e aproou para a doca, na direcção dos cascos desmantelados e das estruturas ferrugentas dos barcos sem nome.
Tânger acabou de colher em aduchas as escotas e ficou a olhar para ele. Fê-lo demoradamente, como se lhe estudasse a cara, e ele respondeu com uma ameaça de sorriso. Ela também sorriu e foi depois encostar-se à escotilha, voltada para a proa onde o Piloto tinha aberto o poço da âncora. Coy olhou para o cais comercial, onde o Felix von Luckner estava amarrado junto de um grande navio de passageiros e lamentou que aquela chegada fosse clandestina. Teria gostado de ostentar no mastro um sinal de vitória, tal como os comandantes dos submarinos alemães arvoravam na torre bandeirolas com as toneladas afundadas. Regressamos de Scapa Flow, missão cumprida. Comunico que os tesouros existem e que trazemos um a bordo.
Porque as esmeraldas estavam a bordo do Carpanta. O bloco de aderências calcárias que as continha estava envolto em várias camadas de espuma protectora, embrulhado numa mala de viagem de aparência inocente. Limparam-no com muito cuidado antes de o embalarem, quase sem acreditar no que viam, maravilhados por terem tornado realidade o sonho que Tânger — Clero / Jesuítas / Vários nº 356 — tivera diante de um maço de papéis velhos, há muito tempo. Era como uma nuvem onde flutuavam os três, ao ponto de Coy não se ter atrevido a mencionar ao Piloto o valor aproximado que aquele bloco pétreo e sujo, resgatado do mar, atingiria no mercado clandestino da joalharia internacional. O Piloto também não fez perguntas, mas Coy conhecia-o bem e captava uma inquietação invulgar atrás da indiferença aparente do marinheiro, um brilho especial nos olhos, uma forma diferente de manter os seus silêncios, uma curiosidade contida pelo pudor das gentes do mar, certa do seu mundo mas cheia de incertezas, timidez e interrogações a respeito das armadilhas e tentações da terra firme. E Coy receava assustá-lo contando-lhe que duzentas esmeraldas em bruto, mesmo mal vendidas por Tânger pela quarta parte do seu valor final, dariam um lucro mínimo de vários milhões de dólares. Uma cifra que, embora possuindo imaginação suficiente, o Piloto nunca teria sido capaz de imaginar. De qualquer forma, o plano era esperar algum tempo, enquanto Tânger negociava com os intermediários e depois dividir os lucros: 70 por cento para ela, 25 por cento para Coy e 5 por cento para o Piloto — que iriam fluindo de uma forma suficientemente discreta para evitar suspeitas. Tânger tratara de estabelecer os mecanismos necessários durante a visita que efectuara há meses a Antuérpia, onde o seu contacto local mantinha relações com bancos das Caraíbas, Zurique, Gibraltar e ilhas inglesas do canal.
Nada impediria que, mais tarde, o Piloto comprasse um novo Carpanta matriculado em Jersey, por exemplo. Ou que Coy recebesse, enquanto não recuperava a sua licença de marinheiro, um salário apropriado de uma hipotética companhia de navegação sedeada nas Antilhas. Quanto a ela própria, respondera Tânger a uma pergunta de Coy, sem levantar a vista do pincel que nesse momento utilizava para limpar as aderências do bloco de esmeraldas, esse era um problema só dela.
Tinham falado de tudo durante a última noite, à luz da mesa de cartas, depois de içarem para bordo, com muito cuidado, o cofre dos jesuítas do Dei Gloria. Lavaram-no em água doce e, depois, com paciência, instrumentos adequados e vários manuais técnicos à mão, Tânger foi eliminando com dissolventes químicos a camada exterior de incrustações calcárias, num alguidar de plástico, enquanto Coy e o Piloto a observavam com um respeito reverencial, sem se atreverem a abrir a boca. Finalmente tinha aparecido uma superfície de aglomerado de cristais com arestas rectas e indícios de formações hexagonais, ainda por talhar e conservando as irregularidades originais, que à luz da câmara lançava suaves reflexos de um verde-azulado, tão limpo e transparente como a água.
Eram esmeraldas perfeitas, tinha murmurado Tânger, fascinada, sem deixar de trabalhar, secando com as costas da mão o suor que lhe colava o cabelo à testa. Tinha um olho semicerrado e uma lupa de ourives diante do outro, uma lupa pequena e estreita, de dez aumentos, e inclinava-se sobre o bloco para observar o seu interior a três centímetros de distância, iluminando-o de diversos ângulos com uma potente lanterna Maglite. Verde translúcido, Be3-Al2-Si6-O18 à letra, pedras ideais na cor, brilho e limpeza. Tinha estudado, lido, perguntado pacientemente durante meses para emitir agora aquele parecer em voz baixa. Esmeraldas de vinte a trinta quilates em bruto, sem jardins de impurezas, nítidas como gotas de óleo que, nas mãos de ourives habilidosos, uma vez talhadas em facetas de quadriláteros ou octógonos aproveitando as zonas de mais bela cor e refracção, se transformariam em jóias valiosas que as damas da alta sociedade, as mulheres ou as amantes de banqueiros milionários, mafiosos russos ou xeques do petróleo, ostentariam em pulseiras, diademas e colares sem fazerem perguntas sobre a sua procedência, nem sobre o longo caminho percorrido por aquelas singulares formações de sílica, alumina, berilo, óxidos e água, pelas quais os homens tinham matado e morrido sempre, e continuavam a fazê-lo. Talvez, quando muito, entre alguns, poucos, iniciados, corresse o boato de que algumas dessas esmeraldas, as melhores, provinham de um naufrágio documentado com dois séculos e meio. E então, o preço das melhores peças, das maiores e mais artisticamente talhadas, dispararia até limites de loucura nos mercados clandestinos. Na sua maior parte, aquelas pedras voltariam a dormir um longo sono na escuridão, desta vez dentro de cofres de segurança de bancos de todo o mundo. E alguém, numa discreta oficina de uma rua de Antuérpia, multiplicaria a sua fortuna.
Coy manobrou com brusquidão para evitar a lancha de pilotos que se aproximava por estibordo, em direcção a um dos petroleiros que aguardavam diante da refinaria de Escombreras. Distraíra-se por um instante e sentiu, da proa, o olhar inquisitivo do Piloto. Na realidade, estava a pensar em Horacio Kiskoros. Na sua presença, que pressentia próxima. Mas pensava sobretudo no chefe dele. Com as esmeraldas a bordo, estava prestes a descer a cortina sobre o último acto, e Coy tinha dificuldade em admitir que Nino Palermo deixasse as coisas acabarem assim. Lembrava-se das advertências do gibraltino, a sua decisão de não ficar à margem do negócio. E aquele fulano era dos que cumpriam as suas ameaças. Observou Tânger que, de cotovelos sobre a escotilha, imóvel, olhava para o lugar aonde se dirigiam. Não parecia preocupada mas ausente, mergulhada na grata realidade do seu sonho verde. Porém, Coy sentia uma inquietação crescente, como quando o mar está tranquilo, o céu limpo, mas uma nuvem negra aparece no horizonte e o vento faz sentir de uma forma suspeita o seu rumor na enxárcia. Estudou com apreensão o pequeno espigão cinzento do ancoradouro. Relativamente a Palermo, a pergunta era como e quando.
O levante soprava perpendicular ao espigão, de modo que Coy se aproximou devagar a vante e um pouco a barlavento em direcção à extremidade deste, pôs ponto morto à distância de três comprimentos, e a âncora libertada pelo Piloto caiu na água com ruído. Quando a sentiu unhar, Coy acelerou um pouco, metendo todo o leme para estibordo, para que o Carpanta guinasse sobre a âncora, amarrado de popa. Depois pôs o leme a meio e marcha a ré e, enquanto ouvia correr os elos da amarra pela roldana da proa, retrocedeu aproando na direcção da ponta do espigão. A meio comprimento deste parou o motor, foi à popa, agarrou no chicote de um dos cabos atados aos cunhos e, com ele na mão, saltou para terra para parar a suave inércia do Carpanta sobre o molhe. Depois, enquanto à proa, o Piloto metia dentro um pouco da amarra para deixar o barco no sítio, deu volta ao cabo num dos cabeços — um pequeno e ferrugento canhãozinho antigo metido no cimento até aos munhões — e depois levou um segundo cabo para outro. O veleiro estava agora imóvel, rodeado de velhos cascos meio desmantelados e de esqueletos abandonados. Tânger pusera-se de pé no poço e, quando os olhos dela encontraram os de Coy, este achou-os mortalmente sérios.
— Acabou-se — disse ele.
Ela não respondeu. Olhava para longe, para a outra extremidade do espigão, e Coy voltou-se na mesma direcção para dar uma vista de olhos ao que tinha atrás de si. E aí, sentado nos restos de um bote salva-vidas estilhaçado, consultando o relógio como se alardeasse a sua pontualidade num encontro minuciosamente programado, estava Nino Palermo.
— Reconheço — disse o caçador de naufrágios — que fizeram um bom trabalho.
O Sol acabava de esconder-se atrás da encosta de San Julián, e no cemitério dos barcos intensificavam-se as sombras. Palermo tirara o casaco, dobrando-o cuidadosamente sobre um dos bancos partidos do bote salva-vidas e dobrava com parcimónia as mangas da camisa, fazendo brilhar o pesado relógio do seu pulso esquerdo. Formavam um grupinho de aparência quase cordial, os cinco sob a ponte da velha embarcação, conversando como bons amigos. E o número era cinco porque, além de Coy, de Tânger, do Piloto e do próprio Palermo, Horacio Kiskoros também estava ali. Na realidade, a sua presença era decisiva pois, caso não estivesse com eles, seria improvável a conversa fluir, como de facto acontecia, por vias civilizadas. Embora talvez tivesse influência o facto de Kiskoros, para a ocasião, ter substituído a sua navalha por uma bonita pistola cromada com as placas da coronha em madrepérola, cujo aspecto teria sido inofensivo se não tivesse um cano com uma abertura inquietantemente grande e orientada na direcção dos tripulantes do Carpanta. Sobretudo na direcção de Coy, de cujos arranques temperamentais Kiskoros e Palermo pareciam conservar uma lembrança ingrata.
— Nunca pensei que o conseguissem — prosseguiu Palermo. — Deveras que... Quem diria... Amadores, hem?... Pois foi uma coisa muito bem feita. Bem feita, juro por Deus. Bem feita.
Mostrava-se sincero na sua admiração. Abanava a cabeça para sublinhar as palavras, agitando o rabicho grisalho, com o ouro que trazia ao pescoço a tilintar. E às vezes voltava-se para Kiskoros, pondo-o por testemunha. Pequeno, cheio de gel, esmeradíssimo com o seu casaco leve aos quadrados e de lacinho, o argentino concordava com o seu chefe sem perder Coy de vista pelo canto do olho.
— Encontrar esse barco — continuou o caçador de tesouros — tem muito mérito. Com os meios de que dispõem, é... Quem diria! Subestimei-a, senhora. E também aqui ao marinheiro — sorria como um tubarão rondando a presa. — Eu próprio... Valha-me Deus! Eu não teria feito melhor.
Coy olhou para o Piloto. Os olhos plúmbeos permaneciam atentos, com o fatalismo de quem aguarda apenas o sinal adequado para agir num ou noutro sentido: atirar-se contra aqueles tipos arriscando-se a receber um balázio, ou ficar ali a ver onde param as modas, à espera de que alguém decida alguma coisa. Tu dás as cartas, dizia aquele olhar. Mas Coy achava que já tinha arrastado o amigo longe de mais, de modo que semicerrou devagar as pálpebras. Calma. Viu que o Piloto as semicerrava por sua vez e, quando se voltou para Kiskoros, verificou que este os observava alternada-mente e que o cano da pistola descrevia arcos paralelos ao seu gesto. O herói das Malvinas, decidiu Coy, não chupava no dedo.
— Receio — concluiu Palermo — que Deadman's Chest tome o comando das operações.
Tânger, impassível, examinava-o fixamente. Fria como um granizado(1) de limão, comprovou Coy. O ferro das suas pupilas estava
*1. Granizado: refresco feito com gelo picado e fruta esmagada. (N. da T.)
mais escuro e mais duro do que nunca. Perguntou a si próprio onde teria ela escondido o revólver. Lamentavelmente, não com ela. Não naquelas calças de ganga e naquela camisola de manga curta. Pena.
— Que operações? — perguntou ela.
Coy observou-a, admirado. Palermo erguia um pouco as mãos, abarcando a cena, o barco. Quase parecia abarcar o mar.
— As do resgate. Estou há dois dias a observá-los da costa com binóculos... Compreendem?... E agora somos sócios.
— Sócios em quê?
— Ora... No que há-de ser... Naquele barco. Já fizeram a vossa parte... Fizeram-na maravilhosamente. Agora... Pelo amor de Deus! Isto é assunto para profissionais.
— Não precisamos de si para nada. Já lho disse.
— Já mo disse, é verdade. Mas engana-se. Precisam de mim, sim. Ou estou... Valha-me Deus! Ou estou por dentro ou rebento-lhe o negócio a si e a estes lobinhos do mar.
— Essa não é maneira de se associar.
— Compreendo o seu ponto de vista. E creia que lamento toda esta parafernália pistoleira. Mas o seu gorila... — apontou para Coy com o polegar. — Bom. Jurei a mim mesmo que ele não me surpreenderia pela terceira vez. Horacio também não tem boas recordações do cavalheiro — coçou maquinalmente o nariz, com os olhos bicolores voltados para Coy com uma mistura de rancor e curiosidade. — Demasiado agressivo, não é verdade?... Demasiado agressivo.
Kiskoros torcia o bigode numa careta que gotejava vitríolo. O seu rosto citrino ainda conservava vestígios do encontro na praia de Águilas e, talvez por isso, parecia menos equânime que o seu chefe. A pistola moveu-se-lhe significativamente na mão, e Palermo sorriu ao ver esse gesto.
— Já vês — outra vez a cara de cação. — Está desejando meter-te um tiro na barriga.
— Prefiro — sugeriu Coy — que o meta na puta da sua mãe.
— Não sejas grosseiro — o gibraltino parecia deveras escandalizado. — Lá por Horacio te apontar uma pistola, não te dá o direito de insultá-lo.
— Referia-me à puta da sua mãe. À sua, não à dele.
— Ora! Confesso que tenho vontade de te dar, eu próprio, um tiro.
O que acontece é que... Ora! Isso faz barulho, compreendes? — Dir-se-ia que Palermo estava sinceramente interessado em que Coy compreendesse. — ...O ruído é mau para os meus negócios. Além disso, podia indispor a senhora. E já estou cansado de tantos diz tu, direi eu. Só quero chegar a um acordo. Cada qual receba o seu... Está bem? Que tudo acabe em paz — tinha agarrado no casaco e, com um gesto, convidava-os a segui-lo. — Vamos instalar-nos comodamente.
Caminhou na direcção do casco do bulkcarrier meio desmantelado, sem se voltar para verificar se o seguiam ou não. Por outro lado, Kiskoros limitou-se a mover o cano da pistola, indicando-lhes a direcção adequada. De modo que Tânger, Coy e o Piloto começaram a andar atrás de Palermo. Não levavam as mãos no ar, nem a atitude do argentino era especialmente ameaçadora. Um passeio amistoso. Mas quando estavam ao pé da escada estendida desde o castelo de proa do barco e Coy parou um momento, titubeando e olhando para o Piloto, Kiskoros demorou apenas meio segundo a encostar-lhe a pistola à cabeça.
— Tenta não morrer jovem — sussurrou muito baixinho, com inflexões de tango.
Atravessaram corredores húmidos e em ruínas, com os cabos pendendo do tecto e as anteparas meio desmanteladas, e depois desceram entre o óxido das cavernas e a sobrequilha despida, pela escada de um porão.
— Agora vamos ter uma longa conversa — ia dizendo Palermo. — Passaremos a noite na conversa e amanhã podemos... Sim. Voltar lá todos juntos. Tenho um barco com o equipamento pronto em Alicante. Deadman's Chest ao seu serviço. Discrição absoluta. Eficácia garantida — dedicou a Coy uma careta trocista. — A propósito, o meu motorista está lá à espera, com o equipamento. Manda-te cumprimentos.
— Voltar? Onde? — perguntou Coy. Palermo riu-se da graça, canino.
— Não faças perguntas tontas.
Coy ficou com a boca aberta, processando aquilo. Olhava para Tânger, que permanecia impassível.
— Existe outra opção? — perguntou ela, como se Palermo fosse um vendedor de enciclopédias às prestações. A sua voz soava a 5o negativos.
— Sim — afirmou o outro acendendo uma lanterna. — Mas é mais desagradável para vocês... Cuidado com a cabeça. Isso. Ponha os pés aí, por favor. Assim — a voz dele ressoava cada vez mais abaixo, nas entranhas do recinto metálico. — A opção é Kiskoros trancá-los aqui por tempo indefinido...
Fez uma pausa iluminando os pés de Tânger para ajudá-la a chegar ao fundo do porão. Cheirava a ferrugem e a sujidade misturada com os aromas remotos das mercadorias que aquele recinto já contivera: madeira, grão, fruta podre, sal.
— Também — acrescentou — pode meter-lhes uma bala na cabeça.
Uma vez lá em baixo, com Kiskoros e a sua pistola pendentes dos três convidados, o caçador de tesouros utilizou o seu Dupont de ouro para acender a mecha de um candeeiro de petróleo que iluminou o local com um brilho mesquinho e avermelhado. Então apagou a lanterna, pendurou o casaco num gancho e guardou o isqueiro no bolso, antes de sorrir novamente para a assistência.
— Afastem-se da escada. Todos lá para o fundo, isso mesmo... Instalem-se.
Nesse momento Coy compreendeu tudo. Ele não sabe, disse para consigo. Este idiota de merda e o seu anão ainda não sabem que as esmeraldas já estão a bordo do Carpanta, e que esta palhaçada é desnecessária porque lhes basta lá ir apanhá-las. Olhou novamente para Tânger, assombrado com o sangue-frio dela. Quando muito parecia incomodada, como se estivesse em frente do guiché de um funcionário incompetente, à espera de resolver qualquer assunto. Isto vai acabar, pensou com amargura. Não sei de que raio de maneira, mas vai acabar. E continua a espantar-me a massa de que é feita esta tipa.
— Agora vamos falar um bocado — disse Palermo.
Coy viu que Tânger fazia um gesto insólito: olhava para o relógio.
— Não tenho tempo para falar — disse ela.
O gibraltino parecia parado em seco. Durante três segundos ficou mudo e com uma expressão atónita. Depois sorriu forçada-mente.
— Vejam só! — Os dentes brancos sobressaíam à luz gordurosa do petróleo. — Pois receio...
Tinha ficado outra vez sério, de chofre, examinando-a como se a visse pela primeira vez. Depois observou Kiskoros, o Piloto e, finalmente, deteve-se em Coy.
— Não me digam que... — murmurou — .. .Não é possível! Deu dois passos sem rumo pelo porão, pôs uma mão na escada e olhou para o rectângulo estreito de claridade que se ia apagando lá em cima, na escotilha.
— Não é possível! — repetiu.
Voltara-se novamente para Tânger. A voz estava tão rouca que nem parecia dele.
— Onde estão as esmeraldas?... Onde?
— Isso não lhe interessa — disse Tânger.
— Deixe-se de parvoíces. Já as têm?... Não me diga que já as têm! ?... Isto é... Pelo amor de Deus!
O caçador de tesouros desatou-se a rir e, nesse momento, em vez do seu riso habitual de cão cansado, deu uma gargalhada que fez estremecer os ferros das anteparas. Um riso de admiração e de surpresa.
— Tiro o chapéu, palavra de honra! E suponho que o Horacio também o tira. Maldita seja a minha estupidez... Juro-lhes que... Bem jogado sim senhor! — Observava Tânger com uma curiosidade extrema. — Os meus respeitos, senhora. Surpreendentemente bem jogado.
Tinha tirado um maço de cigarros do casaco e acendia um. A chama de gás dilatava-lhe mais a pupila do olho pardo que a do olho verde. Era evidente que estava a dar a si próprio uma pausa para reflectir.
— Espero que não levem a mal — concluiu —, mas a nossa sociedade acaba de ser dissolvida.
Expelia o fumo devagar, semicerrando os olhos, olhando para o grupo como que interrogando-se sobre o que fazer com eles. E Coy percebeu, com uma desolada resignação interior, que tinha chegado o momento. Que esse era o ponto a partir do qual seria necessário tomar decisões, antes que outros as tomassem por ele. E que, mesmo com decisões próprias ou sem elas, havia a possibilidade de, dentro de alguns minutos, ele próprio estar de barriga para cima com um orifício no peito. De qualquer forma, isso não poderia acontecer sem tentar a sua sorte, pedindo outra carta. Seis e meia. Sete. Sete e meia. LUC: Lei da Última Carta. Até o casco partir contra as rochas ou a água invadir a coberta, continuamos a bordo.
— Não se pode ganhar sempre, compreendam — comentava Palermo. — Às vezes nunca se chega a ganhar.
Coy trocou um olhar com o Piloto e pressentiu a mesma decisão resignada. De acordo. Vemo-nos em La Obrera para beber umas imperiais. Em La Obrera ou noutro sítio qualquer. Quanto a Tânger, a partir desse ponto já nada podia fazer por ela, excepto facilitar-lhe na refrega o caminho da escada que levava à coberta. A partir daí, cada um nadava sozinho. No fim, ela teria de se desenrascar sem a mão dele na escuridão, quando chegasse a sua vez. Porque ele ia largar amarras muito antes. Ia fazê-lo agora mesmo, secundado pelo Piloto, que sabia tenso e pronto para a briga.
— Nem penses! — Palermo tinha adivinhado a sua intenção e trocava olhares precavidos com Kiskoros.
Coy calculou a distância que o separava do argentino. Sentia a pulsação acelerar-se-lhe e um vazio no estômago. Dois metros eram dois balázios e ignorava se, com todo aquele lastro no corpo, ia conseguir chegar até ele e em que condições estaria se o conseguisse. Quanto ao Piloto, esperava que Palermo não tivesse também uma arma, mas chegado esse momento nem o Piloto nem Palermo seriam já problema seu. Tânger tinha afirmado uma vez ao pé do cadáver de Zas: todos morremos sozinhos.
— Já perdemos muito tempo — disse ela de repente.
Para estupefacção de todos, pôs-se a andar na direcção da escada, como se estivesse decidida a abandonar uma reunião social aborrecida, fazendo caso omisso da pistola e de Kiskoros. Palermo, que nesse momento levava o cigarro à boca para dar uma passa, ficou petrificado, com o gesto a meio.
— Está louca? Não se dá conta de que... Espere!
Ela estava agora ao pé da escada, apoiada no corrimão e parecia deveras disposta a ir embora sem problemas. Voltara-se um pouco e olhava em volta sem ligar a Palermo, como que perguntando a si própria se teria esquecido alguma coisa.
— Fique aí ou lamentá-lo-á — disse o gibraltino.
— Deixe-me em paz!
Palermo ergueu a mão que segurava o cigarro, ordenando a Kiskoros que mantivesse a pistola quieta. A cara do argentino era uma máscara sombria à luz da chama do petróleo. Coy olhou para o Piloto e dispôs-se a saltar. Dois metros, recordou. Talvez, graças a ela, agora consiga percorrer esses dois metros sem me darem um tiro.
— Juro-lhe que... — estava Palermo a dizer.
De repente ficou calado e o cigarro caiu-lhe da mão, entre os pés. E Coy, que preparava o salto para a frente, sentiu gelar-se-lhe o movimento antes de o iniciar. Porque a pistola de Kiskoros tinha descrito um perfeito semicírculo e apontava agora para Palermo. E este balbuciou alguns sons confusos, do tipo que merda estás a fazer e o que caraças está a acontecer, sem terminar de pronunciar uma única palavra, ficando depois a olhar estupidamente para o cigarro que fumegava entre os pés, como se aquilo fosse a explicação de alguma coisa, antes de erguer novamente os olhos para a pistola, disposto a confirmar que fora tudo um engano dos seus sentidos e que a arma continuava a apontar na direcção correcta. Mas o buraco negro do cano continuava orientado para o estômago do caçador de tesouros, e este olhou em volta, para Coy, para o Piloto e, por fim, para Tânger. Olhou-os um por um, levando o seu tempo, como se esperasse que alguém esclarecesse em pormenor o que se passava com tudo aquilo. Por último voltou-se para Kiskoros.
— Pode-se saber que merda estás a fazer?
O argentino permanecia impassível, sempre impecável e esmerado, imóvel como o crómio e a madrepérola da sua pistola na mão direita, a silhueta minúscula projectada contra a antepara pela lanterna. Não tinha cara de mau, nem de traidor, nem de chalado, nem de nada em especial. Estava ali como se não fosse nada com ele, muito cortês e tranquilo, com o seu cabelo esticado, o seu bigode, mais anão, porteno e melancólico do que nunca, diante do seu chefe. Ou, de acordo com todos os indícios, seu ex-chefe.
Palermo voltara-se para os outros, mas desta vez deteve-se mais tempo em Tânger.
— Alguém... Valha-me Deus! Alguém pode explicar-me o que está a acontecer?
Coy fazia a si próprio a mesma pergunta, apercebendo-se de um buraco estranho no estômago. Tânger continuava ao pé da escada, apoiada no corrimão. De repente ele percebeu que não era uma treta. Ela estava mesmo prestes a ir embora.
— Passa-se — disse ela muito lentamente — que é aqui que nos despedimos todos.
O vazio no interior de Coy estendeu-se às pernas. O sangue, se é que nesse momento circulava, devia fazê-lo tão devagar que teria sido incapaz de encontrar a pulsação. Sem se dar conta do que fazia, foi-se agachando pouco a pouco, até ficar de cócoras, com as costas apoiadas numa antepara.
— Filhos da puta! — amaldiçoou Palermo.
Olhava para Kiskoros como se estivesse hipnotizado. A realidade acudia finalmente, de uma forma coerente, à sua cabeça. E, à medida que as peças encaixavam, a sua expressão desfigurava-se cada vez mais.
— Trabalhas para ela — disse.
Parecia mais atónito que indignado, como se a principal censura a formular fosse a sua própria estupidez. Sempre silencioso e imóvel, Kiskoros deixou que a pistola que continuava a apontar ao gibraltino confirmasse a questão.
— Desde quando? — quis saber Palermo.
Perguntou-o a Tânger que, sob a luz avermelhada do candeeiro, parecia prestes a esfumar-se nas sombras. Coy viu-a iniciar um gesto vago, como se a data em que o argentino decidira mudar de bando não tivesse importância. Consultava novamente o relógio.
— Dê-me oito horas — disse a Kiskoros, de uma forma neutra. O outro concordou, sem deixar de vigiar Palermo, mas quando o Piloto fez um movimento casual, a pistola moveu-se, apontando para ele também. O marinheiro olhou para Coy, estupefacto, e este encolheu os ombros. Para ele, há já algum tempo que a linha que dividia cada bando era clara. E, acocorado a um canto, pensou em si próprio. Para sua surpresa, não sentia fúria nem amargura. O que sentia era a materialização de uma certeza muitas vezes intuída e esquecida, tal como uma corrente de água fria que lhe fosse entrando no coração e começasse a solidificar-se em camadas de geada. Estivera tudo ali, compreendeu., Fora tudo evidente desde o início, em sinais sobre a estranha carta náutica das últimas semanas: sondas, perfis da costa, baixios, escolhos. Ela própria tinha fornecido toda a informação que devia tê-lo prevenido. Mas ele não soube, ou não quis, interpretar os indícios. Agora anoitecia com a costa a sotavento e nada ia arrancá-lo dali.
— Diz-me uma coisa — continuava acocorado contra a antepara, alheio aos outros, olhando para Tânger. — Diz-me só uma coisa.
Colocava-o com uma seriedade tal que ele próprio se surpreendeu. Tânger, que já fazia tenções de subir a escada, deteve-se, voltada para ele.
— Só uma — concedeu.
Talvez te deva pelo menos essa resposta, dizia a expressão dela. Paguei de outras maneiras, marinheiro. Mas pode ser que te deva isso. Depois subirei pela escada, tudo seguirá o seu curso e ficaremos quites.
Coy apontou para Kiskoros:
— Ele já trabalhava para ti quando matou Zas? Observou-o em silêncio, fixamente. A luz de petróleo projectava traços sombrios na pele pintalgada. Voltou-se para cima, como se se dispusesse a subir pela escada sem responder. Mas, por fim, pareceu mudar de ideias:
— Já tens a resposta para o problema dos cavaleiros e dos escudeiros?
— Sim — admitiu ele. — Na ilha não há cavaleiros. Todos mentem.
Tânger pensou um instante. Nunca a tinha visto sorrir daquela forma tão estranha.
— Talvez tenhas chegado a essa ilha demasiado tarde. Depois subiu a escada e desapareceu lá em cima, nas sombras.
E Coy soube que já tinha vivido essa cena anteriormente. Um raio de sol e uma gota de âmbar, recordou. Olhou para a pistola de Kiskoros, para a expressão desolada de Palermo, para a imobilidade taciturna do Piloto, antes de encostar a cabeça contra a antepara de ferro. Agora, a sua certeza e a sua solidão eram tão intensas que pareciam perfeitas. Talvez, reflectiu, no fim de contas, estivesse enganado e não fossem tão evidentes os limites entre cavaleiros e escudeiros. Talvez, à sua maneira, ela tenha estado todo o tempo a sussurrar-lhe a verdade.
Bem vistas as coisas, a traição tinha um gosto singular para a vítima. Uma pessoa escavava a sua ferida, gozando com a sua própria agonia. E, tal como o ciúme, podia ser mais intensamente saboreada por quem sofria as consequências do que pelo responsável do acto em si. Havia algo perversamente grato na estranha libertação moral que resultava disso, na dolorosa expectativa de se aperceber de indícios, ou na satisfação mórbida de confirmar suspeitas. E Coy, que acabava de descobrir tudo isso, pensou muito naquela noite, sentado com as costas contra a antepara, no porão do bulkcarrier meio desmantelado, junto do Piloto e de Nino Palermo, diante da pistola de Horacio Kiskoros.
— É uma questão de paciência — comentava o argentino. — Como disse um poeta meu compatriota: quando amanhecer, cada ladrão com a sua velha mãe.
Tinha decorrido quase uma hora e Kiskoros acabou por se mostrar moderadamente loquaz. Quando o seu antigo chefe acabou de o insultar e de censurar o seu virar de casaca, o herói das Malvinas foi-se descontraindo um pouco. E talvez em memória dos velhos tempos insinuou algumas confidências em voz baixa, facilitadas pela penumbra do candeeiro de petróleo, pelo local e pela longa espera. Não era, comprovou Coy, muito falador. Mas tinha, como toda a gente, uma certa necessidade de se justificar. Souberam dessa forma como Kiskoros se aproximara de Tânger pela primeira vez, com uma mensagem de Palermo; e como ela, com uma habilidade espantosa e bons reflexos, tinha alterado o panorama das suas lealdades durante uma longa conversa — de homem para homem, esclareceu Kiskoros — onde expôs as vantagens de uma associação mútua, com Palermo posto de lado e incluindo trinta por cento dos lucros da empresa para o argentino, se decidisse trabalhar como agente duplo. Porque, conforme esclareceu Kiskoros, a vida era um cambalacho, etc. E, sobretudo, porque guita era guita. Além de que a miúda, sublinhou, era uma dama a sério. Recordava-lhe outra guerrilheira que conheceu em 1976, lá no bairro prateado pela lua da ESMA: depois de uma semana de picanha(2), ainda não tinham
*2. Picanha: instrumento de tortura através do qual se transmitem descargas eléctricas no corpo da vítima. (N. da T.)
conseguido arrancar-lhe o segundo apelido. Coy não teve dificuldades em imaginá-lo, enquanto o bigode castrense do ex-sargento Kiskoros se torcia numa careta de nostalgia, onde o cheiro da carne electrocutada se misturava com o aroma dos bifes mal passados da Costanera, com a música do Viejo Almacén e com as raparigas da Calle Florida. Catche Florida, pronunciava Kiskoros tocando melancolicamente nos suspensórios. Mas essas, interrompeu-se, são outras histórias. De modo que, voltando a Tânger — à dama, insistia — cada vez que Nino Palermo o mandava vigiá-la ou pressioná-la, o que ele fazia era fornecer-lhe a ela as informações. De uma ponta a outra, com sujeito, verbo e predicado. E isso incluía Barcelona, Madrid, Cádis, Gibraltar e Cartagena. Tânger esteve sempre a par da sua proximidade e Kiskoros pontualmente informado de cada um dos seus passos junto de Coy — ou de quase todos, esclareceu com delicadeza o argentino. Quanto a Palermo, o seu suposto sicário tinha-o intoxicado todo o tempo com informação limitada. Até que o gibraltino, farto de milongas(3) pamperas(4), decidiu dar uma vista de olhos. Isso esteve prestes a deitar tudo a perder. Mas, felizmente para Tânger, as esmeraldas já estavam a bordo do Carpanta. Kiskoros não teve outra alternativa senão seguir a corrente de Palermo. A diferença era que, em vez de estarem Coy e o Piloto sozinhos naquele porão, o caçador de tesouros estava a fazer-lhes companhia. Três pássaros de um tiro. Embora, relativamente a esse tiro, Kiskoros esperava não ter de dispará-lo.
— Isto não vai ficar assim — dizia Palermo. — Encontrar-te-ei onde... Maldita seja! Onde quer que vás. Encontrá-la-ei a ela e encontrar-te-ei a ti.
Kiskoros não pareceu preocupar-se excessivamente.
— A dama é bem desenrascada e sabe cuidar de si — replicou. — E eu penso ir para longe... Volto na mesma à pátria «con La frente marchita»(5) e compro uma fazenda em Rio Gallegos.
— Para que quer ela oito horas?
— É óbvio. Para pôr as pedras em lugar seguro.
— E deixar-te plantado, como a todos.
*3. Milonga: dança popular argentina. (N. da T.)
— Não — Kiskoros negava com o cano da pistola. — O nosso assunto está claro. Ela precisa de mim.
— Essa cabra não precisa de ninguém!
O argentino levantara-se, com o sobrolho franzido. Os seus olhinhos esbugalhados fulminavam Palermo.
— Não fale assim dela.
O gibraltino ficou a olhar para ele como quem olha para um marciano verde.
— Não me lixes, Horacio. Não me... Vá lá! Não me digas que ela também te sugou o cérebro.
— Cale-se!
— É de cair de cu!
Kiskoros deu um passo em frente. A pistola apontava directamente para a cabeça do seu ex-chefe.
— Já lhe disse que se calasse. Ela é uma dama a sério.
Não dando importância à arma, o caçador de tesouros dirigiu a Coy um olhar sarcástico.
— É preciso reconhecer — disse — que essa sujeita tem... Bolas! Muita raça. Enganar-te a ti e ao teu amigo, suponho que não seria difícil. Quanto a mim... Valha-me Deus! Isso tem mais mérito. Mas.comer o filho da puta do Horacio... Entendes?... Isso já é renda de bilros.
Suspirou, admirado. Em seguida, esticou o braço para o casaco e tirou o maço de cigarros. Depois de pôr um na boca ficou pensativo:
— Começo a achar que ela merece deveras as esmeraldas. Procurava o isqueiro, absorto nos seus pensamentos. Sorriu, trocista:
— Somos uns idiotas.
— Não generalize — exigiu Kiskoros.
— Está bem. Rectifico. Eu e estes dois somos tontos. Tu és idiota.
Nesse momento, a sirene de um barco que atravessava a entrada da barra ouviu-se através das anteparas: um apito rouco, breve, com que da ponte avisavam uma embarcação menor que deixasse a passagem livre. E como se esse apito fosse o culminar de um longo processo de reflexão que mantivera Coy ocupado na última hora — na realidade, de uma forma inconsciente, dedicava-se a isso há muito mais tempo — viu aberto, diante dos seus olhos, todo o resto da jogada, até ao fim. Viu-o com tanto pormenor que abriu a boca, prestes a proferir uma exclamação. Cada um dos indícios, suspeitas, interrogações, de que se apercebera nos últimos dias, adquiriu de chofre um significado. Até o papel que Kiskoros desempenhava nesse momento, incluindo as oito horas de prazo e a escolha daquele porão como calaboiço temporário podiam explicar-se em duas palavras. Tânger preparava-se para abandonar a ilha. E eles, escudeiros enganados, ficavam ali abandonados:
— Ela vai desaparecer — disse em voz alta.
Todos olharam para ele. Não abrira a boca desde que Tânger desaparecera pela escotilha da coberta.
— E deixa-te plantado — acrescentou em honra de Kiskoros — tal como a nós.
O argentino ficou a examiná-lo durante um longo bocado. Depois sorriu, céptico. Uma rãzinha enfatuada e de cabelo esticado. Auto-suficiente. Ricaço.
— Não digas baboseiras.
— Acabei de perceber. Tânger pediu-te para nos reteres aqui até ser dia, não é verdade?... Depois fechas a escotilha, deixas-nos aqui e reúnes-te com ela, não é assim? Às sete ou às oito da manhã em tal sítio. Diz-me se estou a ir bem — o silêncio e o olhar do argentino revelaram que, com efeito, ia bem. — Mas Palermo tem razão, ela não vai aparecer. E vou dizer-te porque não: porque a essa hora estará noutro lado.
Aquilo não agradou a Kiskoros. A sua expressão era tão sombria como o buraco negro da pistola.
— Julgas-te muito esperto, não é verdade?... Pois até agora não tens sido muito.
Coy encolheu os ombros:
— Pode ser — aceitou. — Mas até um tonto compreende que um jornal aberto em tal ou tal página, um certo tipo de perguntas, um postal, algumas visitas, uma carteirinha de fósforos e uma informação fornecida há algum tempo, de uma forma casual, por Palermo em Gibraltar, conduzem a um sítio determinado... Queres que to diga, ou calo-me e esperamos que o descubras sozinho?
Kiskoros brincava com a patilha de segurança da pistola, mas era evidente que tinha o pensamento noutro sítio. Franzia a boca, indeciso.
-Diz.
Sem deixar de olhar para ele, Coy apoiou novamente a cabeça na antepara.
— Partimos do facto — disse — de que Tânger já não precisa de ti. A tua missão, fazer um jogo duplo, controlar Palermo, convencer-me de que ela estava desprotegida e em perigo, termina esta noite, retendo-nos enquanto ela se vai embora. Ela já não pode obter nada de ti. E o que achas que faz?... Como vai partir com um bloco de esmeraldas?... Nos aeroportos controlam a bagagem de mão com raios X e não pode arriscar-se a expedir essa fortuna tão frágil numa mala. Um carro de aluguer deixa pistas perigosas. Um comboio significa fronteiras e transbordos incómodos... Ocorre-te alguma alternativa?
Ficou calado, à espera de uma resposta. Dizer tudo aquilo em voz alta fazia-o sentir um estranho alívio, como se partilhasse a vergonha e o fel que sentia a rebentar-lhe por dentro. Esta noite há para todos, pensou. Para o teu chefe. Para o pobre Piloto. Para mim. E tu não vais sair de mão beijada, anormal.
Mas a conclusão veio de Palermo e não de Kiskoros. O gibraltino acabava de dar uma palmada na coxa:
— Claro! Um barco... Um maldito barco!
— Exactamente.
— Santo Deus, que a tipa é esperta!
— Essa é a minha pequena.
De pé junto da escada, aturdido, Kiskoros tentava digerir o assunto. Os seus olhinhos de batráquio iam de um para o outro, oscilando entre o desdém, a desconfiança e a dúvida razoável.
— São demasiadas suposições — acabou por contrapor. — Julgas-te muito inteligente, mas baseias tudo em conjecturas, não há nada que confirme essa mixórdia... Não há provas. Não há um dado concreto a que agarrar-se.
— Enganas-te. Há, sim — Coy olhou para o seu relógio: estava parado. Voltou-se para o Piloto, que continuava imóvel e atento no seu canto. — Que horas são?
— Onze e meia.
Observou Kiskoros com muita troça. Ria-se entredentes ao fazê-lo e o argentino, ignorando que, na realidade, Coy estava a rir-se de si próprio, não parecia gostar daquele riso. Tinha deixado de manusear a patilha de segurança e agora apontava para ele.
— A uma da manhã — informou Coy — zarpa o cargueiro Felix von Luckner da Zeeland Ship. Bandeira belga. Duas viagens por mês entre Cartagena e Antuérpia, com carga de citrinos, creio. Admite passageiros.
— Poça! — murmurou Palermo.
— Em menos de uma semana — Coy não tirava os olhos de Kiskoros — ela venderá as esmeraldas num certo local da Ruben-strasse que o teu antigo chefe pode confirmar — convidou Palermo com um movimento de cabeça. — ...Diga-o.
— É verdade — admitiu o outro.
— Já vês — Coy voltou a rir-se daquela forma desagradável. — Mas terá na mesma o cuidado de te enviar um postal.
Desta vez, Kiskoros acusou o golpe. A sua maçã-de-adão subia e descia na confusão de retorcidas lealdades. Também os canalhas, pensou Coy, têm o seu coraçãozinho.
— Ela nunca falou disso — Kiskoros olhava fixamente, como se o culpasse. — íamos...
— Claro que não te falou! — Palermo tentava acender o cigarro que tinha na boca. — Cretino.
Kiskoros foi-se abaixo por momentos.
— Tínhamos um carro alugado — murmurou, confuso.
— Pois já podes — sugeriu Palermo — devolver as chaves.
O seu isqueiro não funcionava, de modo que o caçador de tesouros se levantou, inclinando-se sobre a chama do candeeiro de petróleo com o cigarro na boca. Parecia divertido com aquela belíssima piada na qual cada um tivera o seu quinhão.
— Ela nunca... — começou Kiskoros a dizer.
Talvez cheguemos a tempo, pensou Coy, enquanto trepavam pela escada e o ar da noite lhe refrescava a cara. Havia muitas estrelas e as silhuetas dos barcos desmantelados tinham uma aparência fantasmagórica, recortadas nas luzes do porto. Lá em baixo, no chão do porão, o argentino já não gemia. Tinha deixado de o fazer quando Palermo parou de dar-lhe pontapés na cabeça, e o sangue que lhe saía aos borbotões pelo nariz chamuscado se misturava com a ferrugem do chão, ou crepitava ao molhar a sua roupa fume-gante. Debatia-se ao pé da escada com o casaco a arder, com grande alarido, depois de Nino Palermo, inclinado para acender o cigarro, atirar contra ele, de improviso, o candeeiro. Um arco de chamas que sulcou com um zumbido a penumbra do porão, passou à frente de Coy e acertou em Kiskoros no peito, justamente quando este estava a dizer isso de ela nunca. E nunca souberam o que ela nunca teria feito ou dito porque, nesse instante, o petróleo do candeeiro derramou-se em cima dele, fazendo-o largar a pistola, logo que uma labareda ateou na sua roupa e lhe cobriu a cara. Um instante depois, Coy e o Piloto estavam de pé mas Palermo, muito mais rápido, já se tinha agachado, apoderando-se da pistola. Ficaram assim os três, olhando uns para os outros sem pestanejar, enquanto Kiskoros se contorcia no chão, entre labaredas, dando uns gritos que gelavam o sangue. Por fim, Coy agarrou no casaco de Palermo e apagou as chamas, batendo com ele e deitando-o por cima. Ao retirá-lo, Kiskoros fumegava como um frangalho. Em vez de cabelo e bigode tinha restolhos chamuscados, dizia ai, ai, e nos intervalos emitia um ruído surdo, como se estivesse a fazer gargarejos com aguarrás. Foi nessa altura que Palermo lhe deu todos aqueles pontapés na cabeça de uma forma sistemática, quase contabilística. Como se estivesse a pôr em cima de uma mesa as notas da sua indemnização por despedimento. E depois, com a pistola na mão mas sem apontar para ninguém, com um sorriso muito pouco risonho na boca, suspirou satisfeito e perguntou a Coy se alinhava ou não. Foi o que disse: alinhas ou não, olhando para ele à claridade das últimas chamas do candeeiro quebrado no chão, com cara de tubarão noctívago prestes a saldar velhas contas.
— Se a magoares, matar-te-ei — respondeu Coy.
Era essa a condição. Disse-o assim, embora fosse o outro quem tinha a pistola de crómio e madrepérola na mão. E Palermo não lho levou a mal, limitando-se a acentuar a careta branca de cação, dizendo, de acordo, não a mataremos esta noite. Depois guardou a pistola no bolso e começou a subir a toda a pressa na direcção do rectângulo de estrelas. E agora estavam os três, Coy, Palermo e o Piloto, correndo juntos pelo convés escuro do bulkcarrier, enquanto no outro lado do porto, sob as gruas iluminadas e os focos dos molhes, o Felix von Luckner se preparava para soltar amarras.
Havia luz na janela da Pensão Cartago. Junto a Coy ouviu-se o riso de mastim exausto: Palermo também olhava para cima.
— A dama faz as malas — alvitrou o caçador de tesouros. Estavam sob as palmeiras da muralha, com o porto atrás, em baixo. Os edifícios iluminados da Universidade Politécnica sobressaíam na extremidade da avenida deserta.
— Deixa-me falar antes com ela — disse Coy.
Palermo tocou no bolso, onde levava a pistola de Kiskoros.
— Nem penses! Agora somos todos sócios — continuava a olhar para cima, a careta sombria. — Além disso, de certeza que se arranja para te convencer outra vez.
Coy encolheu os ombros:
— De quê?
— De alguma coisa. Dá-lhe tempo e de certeza que te convence de alguma coisa.
Atravessaram a rua seguidos pelo Piloto. Palermo fê-lo sem perder de vista a luz da janela e, uma vez na porta da pensão, voltou a apalpar o bolso.
— Ela ainda tem aquele pistolão de Gibraltar?
Olhava com uma enorme fixação. O olho claro parecia vidro frio.
— Não sei. É possível.
— Merda.
Palermo reflectiu um momento. Depois voltou a observar Coy, como se reconsiderasse a sua oferta de falar com Tânger a sós.
— Ela tem os seus motivos — insinuou Coy. O gibraltino fez um meio sorriso.
— Claro. Todos temos — olhou para o Piloto que esperava atrás, expectante. — Até ele os tem.
— Deixa-me ser eu a falar-lhe.
O outro ainda pensou um pouco.
— De acordo.
A encarregada da pensão cumprimentou Coy, confirmando-lhe que a senhora estava lá em cima e que pedira a conta.
Atravessaram o vestíbulo e subiram ao segundo andar, tentando não fazer barulho nas escadas. Havia gravuras emolduradas de barcos nas paredes e uma escultura em madeira da Virgen del Cármen num nicho. A porta do quarto abria directamente para o patamar, no cimo dos degraus. Estava fechada. Coy chegou à porta seguido por Palermo. A alcatifa amortecia-lhes os passos.
— Tenta a tua sorte — sussurrou o gibraltino com a mão no bolso. — Tens cinco minutos.
Coy agarrou na maçaneta, fazendo-a girar sem dificuldade. A porta não estava fechada à chave. Enquanto a abria compreendeu a inutilidade de tudo aquilo. O absurdo da sua presença ali, amante despeitado, amigo enganado, sócio vigarizado. Na realidade descobriu de repente, considerando as coisas a frio, que não tinha nada para dizer. Ela estava prestes a partir, mas na verdade já tinha ido há muito tempo, deixando-o para trás, à deriva. E nada do que ele pudesse dizer ou fazer ia mudar o curso das coisas. Quanto às esmeraldas, habituado a pensar nelas como uma quimera inatingível, nunca lhe tinham importado anteriormente e continuavam a não lhe importar agora.
Tânger era o que tinha querido ser. Quis escolher livremente e ele sempre soube que seria assim, desde o princípio. Tinha visto a velha taça de prata sem uma asa e a fotografia da menina que sorria a preto e branco. Era suficiente para compreender que a palavra engano estava deslocada, mesmo apesar dela própria. E Coy teria dado nesse momento a volta para se ir embora, passar junto do Piloto e continuar a andar até ao Carpanta com escala prévia no bar mais próximo, se não tivesse iniciado já o movimento de abrir a porta. Não sentia rancor e já nem sequer sentia curiosidade. Mas a porta abria-se cada vez mais, revelando o quarto, a janela do fundo sobre o porto, o saco de viagem por acabar em cima da mesa, o pacote das esmeraldas e Tânger de pé, com a saia azul de algodão escuro, a blusa branca e as sandálias, o cabelo acabado de lavar e ainda húmido, com as pontas assimétricas pingando-lhe os ombros. E a pele pintalgada e escura por todas aquelas semanas de mar e de sol, os olhos azul-marinhos arregalados de surpresa, azulados e metálicos como o aço da 357 que acabava de ir buscar acima da mesa ao ouvir a porta. Então, Nino Palermo jogou o seu papel naquela tragicomédia de enganos e, sem esperar pelos cinco minutos prometidos, passou atrás de Coy deslizando para um lado, com a pistola de crómio e madrepérola brilhando-lhe na mão. Coy abriu a boca para gritar não, chega, basta, rebobinemos toda esta história absurda que já vimos milhares de vezes no cinema. Mas ela já tinha contraído a mão e um clarão explodiu à altura das suas ancas, com um estampido que chegou a Coy um milésimo de segundo depois do impacto sob as suas costelas, um estalido de raspão que o fez dar meia volta, atirando-o sobre Palermo que, por sua vez, disparava nesse instante. Desta vez, o tiro soou muito perto dos ouvidos de Coy, que quis gesticular para impedir o gibraltino de usar novamente a pistola. Mas nesse momento houve outro clarão atrás de si, outro estampido agitou o ar e Palermo saltou para trás como se tivesse sido arrancado dos seus braços, projectado através do patamar pelas escadas abaixo. Não se ouvira bang, como nos filmes, mas pumba! pumba! pumba! três vezes e tudo muito seguido. Agora só havia uma fumarada dos diabos no quarto, um cheiro acre muito áspero e um silêncio absoluto. Quando Coy se voltou para olhar, Tânger já não estava ali de pé, mas no outro lado da mesa, estendida no chão, com um buraco na blusa por onde saía o sangue num jorro muito vermelho, denso e intermitente, manchando a blusa e o chão, manchando tudo. Estava ali, mexendo os lábios e de repente parecia muito jovem e muito sozinha.
Foi nessa altura que saiu para a rua e verificou que estava uma noite perfeita, com a Estrela Polar visível no seu lugar exacto, cinco vezes à direita da linha formada por Merak e Dubhé. Andou até apoiar-se na balaustrada da muralha e ficou ali, pressionando com uma mão a ferida que lhe sangrava na anca. Apalpara-a sob a camisa e vira que as costelas estavam intactas, que a ferida era superficial e que não morreria desta vez. Contou cinto débeis batimentos do seu coração, enquanto contemplava a doca escura, as luzes dos molhes, o reflexo dos castelos nas montanhas. E a ponte e o convés iluminados do Felix von Luckner, prestes a soltar amarras.
Tânger falara-lhe. Continuava a mexer os lábios quando ele se inclinou para ela, enquanto o Piloto tentava fechar o buraco do peito por onde a vida se lhe escapava. Falava muito baixo, de uma forma quase inaudível e teve de se aproximar bastante da boca dela para entender o que dizia. Custava-lhe demasiado compor as palavras, cada vez mais fraca, apagando-se à medida que o charco vermelho se espalhava pelo chão sob o seu corpo. Dá-me a mão, Coy, tinha-lhe dito. Dá-me a mão. Prometeste que não me deixarias partir sozinha. A voz extinguia-se e o resto de vida parecia ter-se-lhe refugiado nos olhos, muito abertos, quase fora das órbitas, como se nesse momento assomassem a um páramo desolado que lhe inspirasse horror. Juraste, Coy. Tenho medo de partir sozinha.
Não lhe deu a mão. Ela estava no chão, tal como Zas no tapete daquela casa em Madrid. Tinham decorrido milhares de anos, mas para ele essa era a única coisa impossível de esquecer. Ainda a viu mover os lábios um pouco mais, pronunciando palavras que já não ouviu porque se tinha levantado e olhava em volta com um ar aturdido: o bloco de esmeraldas em cima da mesa, o revólver negro no chão, o charco vermelho que se espalhava cada vez mais, as costas do Piloto inclinado sobre Tânger. Caminhou pelo seu próprio páramo desolado ao atravessar o quarto e descer os degraus, passando pelo cadáver de Palermo que estava estendido de barriga para cima a meio das escadas, com as pernas para cima, a cabeça para baixo e os olhos nem abertos nem fechados, a careta de tubarão impressa na cara e o sangue correndo pelos degraus até aos pés da aterrorizada recepcionista da pensão.
O ar da noite apurou-lhe os sentidos. Apoiado na muralha sentia a ferida da anca a pingar, por baixo da roupa, a cada batimento do coração. O relógio da Câmara Municipal deu uma badalada e, nesse momento, a popa do Felix von Luckner começou a afastar-se lentamente. Sob os focos de halogénio do convés podia ver o primeiro-oficial vigiando o trabalho dos marinheiros no castelo da proa, junto aos escovéns das âncoras. Estavam dois homens numa das asas da ponte, atentos à distância entre o casco e o molhe. Sem dúvida o piloto e o capitão.
Ouviu os passos do Piloto atrás de si, sentindo que este se apoiava na balaustrada ao seu lado.
— Morreu.
Coy não disse nada. Uma sirene da polícia soava ao longe, vinda da cidade baixa. No molhe acabavam de soltar a última amarra do barco que começou a afastar-se. Coy imaginou a penumbra da ponte, o timoneiro no seu posto, o capitão atento às últimas manobras, enquanto a proa apontava para a entrada da barra, entre as luzes verde e vermelha. Adivinhou a silhueta do piloto descendo para a lancha pela escada de cunhos que pendia de um bordo. Agora, o barco ganhava velocidade, deslizando com suavidade em direcção ao mar negro e aberto, com as suas luzes tremeluzentes reflectidas na esteira e um último toque rouco de buzina que deixou atrás como uma despedida.
— Agarrei-lhe na mão — disse o Piloto. — Ela julgava que eras tu.
A sirene da polícia soava mais perto e um clarão azul apareceu na outra extremidade da avenida. O Piloto tinha acendido um cigarro e o clarão do isqueiro de mecha encegueirou Coy. Quando conseguiu voltar a ver, o Felix von Luckner já navegava por águas livres. Sentiu uma saudade imensa ao ver afastarem-se as suas luzes na noite. Podia pressentir o aroma da chávena de café do primeiro quarto de serviço, os passos do capitão na ponte, o rosto impassível do timoneiro iluminado de baixo pela agulha giroscópica. Podia sentir a vibração das máquinas sob o convés, enquanto o oficial de quarto se inclinava sobre a primeira carta náutica da viagem, acabada de abrir sobre a mesa para calcular um rumo qualquer, um bom rumo traçado com réguas, lápis e compasso de pontas, em papel grosso, cujos sinais convencionais representavam um mundo conhecido, familiar, regulamentado por cronómetros e sextantes que permitiam manter a terra à distância.
Oxalá, pensou, me devolvam ao mar. Oxalá encontre rapidamente um bom barco.
Arturo Perez Reverte
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