Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O CHÁ DE AMOR
Segunda Parte
FIONA OLHAVA para a montanha de caixotes de madeira empilhados na calçada com as mãos nos quadris. O entregador estendeu-lhe uma folha de papel. Ela leu e assinou. Depois, fechou os olhos e inspirou profundamente. Ela podia sentir o aroma, mesmo com os caixotes fechados. Cheiro de chá. Aconchegante, rico e divertido. Não havia nada igual.
— Você sabe que está maluca, não é? — disse Michael, surgindo subitamente por trás da carroça de entrega da Millard‘s. — São cinquenta caixotes de chá! Cinquenta! Em que diabo de buraco a gente vai colocar tudo isso?
— No 166. Bem aqui do lado. Lá é limpo e claro. Não há nada que interfira aroma do chá porque era uma loja de tecidos, não um estábulo ou qualquer coisa fedorenta. Mas o senhor sabia de tudo isso. Eu lhe contei que tinha falado com o senhor Simmons e que ele tinha feito um bom contrato de aluguel — acrescentou, com impaciência.
— Achei que era só conversa! Não pensei que você estava falando sério.
— Será que o senhor pode ajudar os homens a levar os caixotes para dentro em vez de ficar aqui desperdiçando conversa? — ela flagrou o irmão e caixotes. — Seamie! Desce daí antes que você caia!
— Puxa, Fi!
— Fiona, aí tem dois mil e quinhentos quilos de chá — disse Michael, seguindo-a enquanto ela se dirigia até o irmão para tirá-lo de cima dos caixotes. — Dois mil e quinhentos quilos! Você gastou uma verdadeira fortuna! Quem você está pensando que é? Um Astor? Um Vanderbilt? Bem, sinto lhe dizer, mas você não é...
— Não, por enquanto — ela o interrompeu. — Seamie! Já falei pra você descer!
— Me pega, tio Michael! — gritou Seamie, jogando-se nos braços do tio. — Que diabo... uufa! — ele grunhiu, cambaleando para trás com o menino de cinco anos nos braços. — Meu Deus, rapazinho. Quase que você me fez estatelar a bunda no chão!
—Talvez assim o senhor se cala por cinco minutos! — disse Fiona a meia voz, acrescentando para o irmão. — Vai se lavar para comer!
Sacudindo a poeira da camisa, Michael retornou ao falatório.
— O que eu gostaria de saber é quem vai pagar por tudo isso?
— Nós, a Millard‘s nos deu noventa dias e não trinta. E um prazo suficiente.
Michael balançou a cabeça.
— Duvido! Por que você tinha que comprar cinquenta caixotes de uma só vez?
— Eu queria comprar todo o estoque de chá indiano da Millard‘s. Pra que ninguem mais pudesse tê-lo. Eu também já tinha falado isso para o senhor. O senhor não prestou atenção.
— Daqui a dois meses, nós ainda estaremos sentados nesta pilha, devendo centenas de dólares à Millard‘s...
Fiona o interrompeu.
— Não estaremos, não! Somando a loja e o meu salão de chá e as vendas por atacado...
— Que salão de chá?
— O que eu terei. Já comecei a procurar uma loja.
— E que vendas por atacado?
— O senhor sabe, para Macy‘s, para Crawford‘s. Para os restaurantes Child‘s...
— Eles encomendaram?
— Bem, ainda não. — Michael revirou os olhos. — Mas vão fazer isso! — ela insistiu. — Tenho entrevistas marcadas com os compradores deles na próxima semana. Sei que comprarão o chá logo que o provarem. Só preciso dar um nome para ele. E uma embalagem para que eu possa apresentá-lo. Se o senhor ajudar com os caixotes e me deixar ir até o Nate e a Maddie...
— Você e essas suas grandes ideias — resmungou Michael, tirando um par de luvas de trabalho do bolso. — Foi esse William McClane que pôs essas ideias na sua cabeça. Aposto que da próxima vez você comprará uma plantação inteira de chá.
Fiona ignorou o comentário. Ela não gostou da menção que ele fez de Will. Sentira — se feliz na companhia dele e entristecida por ele não mais a ter procurado, embora se supreendesse por nutrir expectativas. Dizia para si mesma que era estupidez pensar que alguem da estatura dele pudesse se interessar por ela, quando nem mesmo para um barraqueiro de Whitechapel tinha sido boa o bastante. A perda de Joe fizera mais do partir seu coração, aniquilara sua autoconfiança, fazendo-a se sentir feia e sem valor. Sentimentos que eram confirmados pela aparente falta de interesse de Will.
Por fim, exausto de encher os ouvidos dela, Michael agarrou uma zorra na carroça e empurrou-a até os caixotes de chá. Fiona voltou para a loja, onde seus amigos a aguardavam. Mastigando a ponta do lápis e com as sobrancelhas vincadas, Nate contemplava o desenho que Maddie tinha desenrolado sobre o balcão de carvalho.
Fiona também o olhou.
— Oh, Maddie! — ela exclamou, encantada. — Está lindo!
— Gostou? — disse Maddie, corando de prazer.
— Eu adorei!
— Fico muito feliz. Não me sentia segura com esse pano de fundo. Mesmo sim, eu gostaria de ter a opinião de Nick. Ele é um bom observador, ele está vindo não é? Para o jantar, não foi o que você disse?
— Ele vem, sim — disse Fiona, virando-se para olhar o relógio. Ficou preocupada quando viu que já eram quase seis e meia. — Já era pra ele ter chegado. Eu só quero saber o que o impediu — ela acrescentou, bem preocupada. Na última vez que o tinha visto, Nick não parecia bem, mas disse que estava se sentindo ótimo. E também que ela não devia fazer uma tempestade em copo d‘água. Ela tinha consciência que se preocupava demais. Com Nick, com Seamie, com todo mundo. Isso os deixa bem incomodados, mas ela não conseguia evitar. Tinha perdido tanta gente que era impossível não se preocupar com tosses, resfriados e as travessuras do irmãozinho.
— Talvez sejam os quadros — disse Maddie. — Ele falou que os receberia nesta semana. E teria que colocá-losna parede. Lembra? Talvez esteja atrasado por isso.
— Você tem razão. Ele deve chegar aqui a qualquer momento. — Aliviada Fiona voltou a prestar atenção na ilustração da amiga.
Maddie tinha criado uma cativante cena de uma procissão indiana. Marajas ricamente ornados assentados em elefantes brancos lideravam o desfile, seguidos por mulheres que vestiam sáris e seguravam cestas de folhas de chá e por crianças que saltitavam em meio a papagaios e macacos. Os marajás seguravam uma faixa sem nada desenhado ou escrito nela.
— Vai ter alguma coisa aqui? — perguntou Fiona, apontando para a faixa.
— O nome do chá — disse Nate. — Ele precisa de um nome. Temos que criar uma marca.
— Uma marca?
— É. Temos que ensinar as pessoas a pedir pelo seu chá da mesma maneira que elas pedem uma Hires‘s quando querem uma cerveja e um Ivory quando querem um sabonete. Elas têm que ser convencidas de que o seu chá é melhor do aquele que é vendido a varejo nos armazéns.
— E como se faz isso?
— Para começar, discutindo as ideias que nos vierem à cabeça. Pegue aqui este papel e um lápis. Pegue esse outro aqui, Maddie. Vamos começar escrevendo tudo o que a gente acha que esse chá tem de bom, todas as qualidades dele, e depois a gente vê se consegue um bom nome ou um bom slogan.
Os três começaram a escrever, trocando palavras e descrições entre eles.
— Ativo... maltado... abiscoitado... — sugeriu Fiona.
— Abiscoitado? — repetiu Nate.
— É, sim. Isso significa que a folha tem um bom aroma porque foi tostada de maneira adequada.
— Especializado demais. Continue.
— Hum... delicado... revigorante... — continuou Fiona.
— Bom... qual dos dois? — perguntou Nate.
— Ambos.
— Como ambos?
— Não sei, mas é isso.
— Acobreado... forte... audaz... — disse Maddie.
— Refrescante... restaurador... — disse Nate.
Os três seguiram dessa maneira por um tempo, nomeando tudo que eles consideravam bom, até que as folhas de papel se encheram de palavras, sem que tivessem gostado de algum nome. Aturdido, Nate largou o lápis no balcão. Seus olhos passearam pela folha de Maddie à procura de alguma palavra que tivesse passado despercebida, e depois pelo papel onde Fiona fizera suas anotações.
— Eh! — ele exclamou. — O que é isso que você escreveu, Fi?
— Nada, somente uns rabiscos.
— Não, isso é muito bom. Na verdade, é genial! Olhe só Maddie.
No rodapé esquerdo da folha ela tinha escrito as palavras ―delicioso‖ e ―saboroso‖. Depois, ela escreveu a expressão ―saboroso‖ e ―saboroso chá‖; em seguida, ou a terminação ―roso‖ de ―saboroso‖, substituiu-a por ―chá‖ e obteve a para ―sabochá‖, fazendo o mesmo com outras palavras como ―rarichá‖ (raridade fundindo com chá) e ―qualichá‖ (qualidade fundindo com chá).
— Acho que temos algo aqui — ele disse, entusiasmado. — Que tal isso... Gostochá: um qualichá... com enorme aceitachá,.. não, não ficou bom, a terminação bateu. Rum... que mais nós temos? Propriechá, sutilchá, personalichá, honestichá, hospitalichá...
— Hospitalichá? — repetiu Fiona. — Ora, Nate, isso já é apelação demais.
— Não... não, suprachá — sugeriu Maddie.
— E isso, cara! — exclamou Nate, dando um beijo na esposa. — Vejamos, Goschá... GostoChá... um qualichá...
— Um honestochá, o mais refrescante suprachá! — gritou Fiona.
— Sim! Sim! Perfeito! Você pode encaixar isso na faixa, Mad?
— Si, si, tenho bastante espaço para isso — respondeu Maddie.
— Olhe aí, Fiona, você já tem o seu anúncio! Pode colocá-lo nos jornais, quadros para cartazes, nos ônibus, e também pode usar o desenho na embalagem..
— Obrigada a vocês dois. Isso é tão excitante! — disse Fiona, apertando braço de Nate. — Já imaginaram, a minha própria marca de chá! Ai, meu De espero que venda! Tem que vender, eu tenho dois mil e quinhentos quilos lá fora e um tio que já está a ponto de me estrangular.
— E claro que vai vender — disse Nate. — Com uma agência como a Brandolini Feldman por trás, não tem erro. E tem mais uma coisa, Fiona — ele acrescentou, excitado.A marca é só o começo, é só a ponta do iceberg. Existem outros tipos de chá, não é?
— Sim. Dezenas de tipos diferentes.
— Pois é, imagine então uma gama de chás, todos vendidos sob a marca Gosto Chá. Imagine o pequeno salão de chá que você abrir tornando-se um elegante lugar da moda, e depois ampliando-o até se transformar numa cadeia! Já imaginou, salões de chá por toda Nova York e atravessando o Brooklyn e Boston e Filadélfia...
— ... e por toda a costa leste, pelo país inteiro! — exclamou Fiona.
— E você pode vender no atacado para os hotéis — continuou Nate.
— E para as lojas de departamento — acrescentou Fiona, radiante.
— E para as linhas marítimas e terrestres — completou Maddie.
— E vocês dois cuidarão da publicidade do GostoChá e...
— Será tudo um grande sucesso — disse Maddie, explodindo de felicidade... Para todos nós!
Sorrindo, Fiona pegou a amiga pelas mãos e começou a rodopiar pela loja. Elas que ficaram tão tontas que Nate teve que segurá-las. Os três faziam tanta aIgazarra que não perceberam o menino que entrava na loja com o boné na mão. Tinha aproximadamente uns dez anos. Ficou parado por um tempo, observando-os com aflição; na espera de que alguém o notasse, e por fim desistiu e puxou Nate pelo paletó.
— Desculpe, senhor — ele disse.
— Eu é que devo pedir desculpas, filho — disse Nate. — Não vi que você aí. O que você quer?
— E aqui que mora a Fiona Finnegan?
— Sim, sou eu — disse Fiona, encostando-se no balcão para recuperar o equilibrio.
— A senhorita tem que vir comigo. Rápido — ele disse dirigindo-se para a porta. — Eu sou Stevie Mackie. Minha mãe mandou buscá-la. Ela falou que o inquilino dela, o senhor Soames, está morrendo.
FIONA SUBIU A ESCADA DO NÚMERO 24 da 16th Street, pulando dois degraus de cada vez. Os pensamentos a respeito do chá e dos salões de chá tinham esvaído de sua mente. Agora ela só tinha um pensamento, um receio: perder o melhor amigo que tivera em toda a sua vida.
Stevie lhe disse na carruagem que tomaram que somente naquela tarde a mãe dele soube da doença de Nick. O aluguel estava um pouco atrasado e ela foi vê-lo. Como ninguém atendia à porta, ela entrou no apartamento e o encontrou cama. Ele estava muito doente.
— Ele tem o quê, Stevie? — perguntou Fiona, morrendo de medo da resposta.
— Não sei. Minha mãe não disse. Ela nem me deixou entrar no apartamento.
Estava com medo de ser cólera. Ela achou uma agenda na mesa dele, com o seu endereço do médico. E aí me mandou atrás de você, e o meu irmão, atrás do médico.
Eu não devia ter dado ouvidos a ele, pensou Fiona, enquanto galgava os úItimos degraus. Ele não estava bem. Eu sabia disso. Não devia ter acreditado naquelas explicações esfarrapadas. Chegou à porta, com Stevie atrás dela, e forçou a maçaneta. A maçaneta não girou, a porta estava trancada.
— A chave, Stevie — ela disse com voz trêmula. — Cadê a chave?
— Mãe! — ele gritou para baixo da escada. — Mãe, a senhorita Finnegan está aqui. Ela precisa da chave.
Fiona ouviu passos no andar de cima, e uma mulher na casa dos quarenta, feiosa, ossuda e vestindo chita, desceu as escadas.
— A senhora tem a chave? — perguntou Fiona, aflita.
— Senhorita Finnegan?
— Eu mesma.
— Eu sou a senhora Mackie...
— Eu preciso da chave — disse Fiona, elevando a voz.
— Sim, sim, é claro — disse a senhora Mackie, atrapalhada. Ela procurou num bolso e depois no outro. — Ele está chamando a senhorita. Não sei há quanto tempo ele esta assim. Acho que alguns dias...
— As chaves! — gritou Fiona.
— Aqui — a senhora Mackie achou a chave. Fiona arrancou-a da mão dela e enfiou-a na fechadura. — Ele está mal, senhorita — continuou a mulher, agitada. — Se eu fosse a senhorita, não entrava. Não é uma cena para ser vista por uma jovem, só Deus sabe o que ele tem.
Fiona abriu a porta e correu para dentro do apartamento, deixando a senhora Mackie na entrada. O ambiente estava escuro, com as cortinas fechadas, mas ela achou o caminho. Já tinha estado lá.
— Nick? — ela gritou, atravessando apressada o vestíbulo, o corredor, a cozinha, a sala dupla, um outro corredor, o banheiro até o quarto dele. — Nick? — ela chamou de novo, sem resposta. — Por favor, meu Deus, faça com que ele esteja bem-sussurrou. — Por favor.
Quando ela abriu a porta, um cheiro forte entrou pelas suas narinas, um cheiro de suor, doença e algo mais, algo pesado, sombrio e assustadoramente familar cheiro de desespero. — Nick? — ela murmurou, correndo até ele. — Sou eu, Fiona.
Deitado numa enorme cama de ébano, ele vestia apenas as calças, molhadas de urina. Ainda estava vivo, mas tão branco e encharcado de suor quanto os lençóis debaixo dele. O homem lindo que tinha conhecido em Southampton desaparecera, deixando em seu lugar um espectro descarnado. Ela segurou o rosto dele, notou que estava morno, apesar de viscoso, e soluçou aliviada. Afastou uma mecha de cabelo ensopada da testa dele e beijou-o.
— Nick, sou eu, Fiona — ela disse. — Você está me ouvindo? Responde, Nick, por favor, me responde.
As pestanas de Nick tremularam. Ele engoliu em seco.
— Fi — ele falou, rouco —, sai daqui — seus lábios estavam rachados, e a boca, seca. Ela correu até o banheiro, achou um copo e o encheu de água. Depois, segurou a cabeça dele por trás e pôs o copo em seus lábios. Ele agarrou o copo e bebeu a água com voracidade. Engasgou e vomitou boa parte da água. Fiona o amparou até que ele a acabasse de vomitar e em seguida o ajudou a beber mais, devagar, um gole de cada vez.
— Assim — ela disse. — Tem muita água aqui. Devagar, assim.
Quando ele terminou de beber todo o conteúdo do copo, ela abaixou a cabeça dele com cuidado até os travesseiros.
— Por favor, vai embora, Fiona — ele sussurrou, — Não quero você aqui... eu cuidar de mim — ele começou a tremer. Suas mãos tentaram puxar as cobertas, sem êxito. Fiona pegou o cobertor que ele tinha empurrado para o pé da cama e o cobriu.
— É, eu estou vendo. Você trabalhou direitinho — ela disse. Os dentes dele começaram a bater. Ela recostou-se ao lado, pôs os braços em tomo dele e o abraçou, tentando aquecê-lo. — Eu juro, Nick, que vou matá-lo por isso, logo que você melhorar.
— Eu não vou melhorar.
— Vai, sim! Diz o que há de errado!
Ele balançou a cabeça em negativa. Ela já ia replicar quando ecoou um ―Alô‖ vindo da entrada do apartamento.
— Aqui! — ela gritou.
Um homem careca de óculos e barba grisalha entrou no quarto.
— Eu sou o doutor Werner Eckhardt — ele disse. — Com licença, por favor — ele afastou Fiona para examinar Nick.
Ao pé da cama, Fiona observava ansiosa, de braços cruzados, enquanto o médico examinava Nick, verificando os olhos, apalpando o pescoço e ouvindo o peito.
— Pra que isso? — ela perguntou quando o viu pegar uma seringa.
— Pra equilibrar as batidas cardíacas — ele respondeu. — Há quanto tempo ele está assim?
— Eu... eu não sei. Eu o vi no último domingo. Hoje é sábado...
O semblante do médico mostrou um profundo desgosto.
— Eu falei pra ele que isso podia acontecer. E o aconselhei a descansar e se alimentar bem — ele preparou uma segunda seringa. — E pra combater a desidratação — ele disse. — Preciso de uma bacia com água quente e sabão. E também roupas novas e toalhas. Ele está com escaras por ter ficado deitado na umidade. Tenho que limpá-las antes que infeccionem.
Fiona fez o que o médico pediu. Pegou tudo o que Eckhardt solicitou e depois, sob os débeis protestos de Nick, ajudou o médico a lavá-lo, mudar a roupa de cama vesti-lo com um pijama limpo. Ela se orgulhava de ter um estômago forte e não se abalou com as horrendas feridas que se espalhavam pelas coxas e costas de Nick, mas a visão do ilio saltando da pele, das rótulas esqueléticas e dos buracos entre as costelas a fez ficar de queixo tremendo. Ele tinha perdido peso. Ela soube que ele tinha passado mal no navio. Durante todo o tempo, alguma coisa parecia errada. Por que, oh, por que não o havia pressionado?
— Acabamos, está melhor agora. Vamos deixá-lo descansar por alguns minutos, está bem? Para a medicação fazer efeito. Conversamos lá fora, Vamos.
Tão logo eles se distanciaram de Nick, Fiona agarrou o braço do médico.
— Ele está bem? Ele não vai morrer, não é?
— A senhorita é parente do senhor Soames? — perguntou Eckhardt.
— Sou. Eu sou... prima dele — ela mentiu. — Ele está morrendo, não está? — ela perguntou, chorando.
O médico balançou a cabeça.
— Não, mas está muito doente. Ele vai superar esta crise, mas, se não começar a se cuidar, vai piorar. E rapidamente. Eu lhe direi a mesma coisa que disse a ele: a espiroqueta é uma bactéria oportunista. Boa alimentação e muito repouso são essenciais para impedir que ela avance. Até agora, o tratamento...
— Por favor, doutor Eckhardt Fiona o interrompeu, preocupadíssima com Nicholas e atordoada com a longa explanação do homem. — O que há de errado com ele? O que é que ele tem?
Eckhardt olhou-a por cima dos óculos, com uma expressão de surpresa.
— Ele tem sífilis, é óbvio. Desculpe, pensei que a senhorita sabia.
— SENHORITA FINNEGAN, VOCÊ TEM QUE TIRÁ-LO DAQUI AGORA! — a senhora Mackie soltou um grito esganiçado. — É uma vergonha! Uma desgraça! Eu não o quero debaixo do meu teto!
Fiona sentou-se no sofá de Nick.
— Senhora Mackie — ela tentou manter a voz equilibrada, controlando a raiva que sentiu. — Eu não sei se ele pode ser removido agora.
— Ou você o tira daqui ou o boto pra fora. Junto com todas as coisas. Jogo tudo na rua!
Fiona respirou fundo, tentando desesperadamente imaginar o que devia fazer com o amigo bastante doente e com o apartamento e as coisas dele. Ela não queria removê-lo, ele estava sem condições, mas, aparentemente, não havia outra opção. A senhora Mackie estava no cômodo ao lado durante a conversa que ela teve com o o doutor Eckhardt e tinha ouvido tudo.
Fiona observava a mulher a se esgoelar. Essa visão fez o terrível temperamento de Fiona se empinar, dando coices em seu cérebro como um cavalo selvagem. Aquela mulher tinha entrado no apartamento para pegar o dinheiro do aluguel. Viu Nick, viu como ele estava e voltou para o seu apartamento, deixando-o a míngua, encharcado em urina e suor. Não lhe deu nem mesmo um copo d‘água. E agora queria despejá-lo. Fiona cerrou os punhos. O que ela mais queria na momento era esmurrar a senhora Mackie. Mas não podia, precisava da cooperação da mulher.
— Olhe, senhora Mackíe — ela disse por fim. — Eu vou tirar o senhor Soamie daqui agora mesmo, mas deixe que as coisas dele fiquem aqui por mais duas semanas por favor. Nós lhe pagaremos um mês extra de aluguel por esta inconveniência.
A senhora Mackie apertou os lábios, refletindo sobre a oferta.
— Mas eu fico com o depósito — ela enfim respondeu. — Com ele todo.
Fiona concordou, aliviada. As telas de Nick que tinham sido enviadas por engano para Johannesburgo em vez de Nova York já tinham chegado e os caixotes estavam no andar de baixo. Ela não podia permitir que aquela megera jogasse tudo no meio da rua. Não fazia a menor ideia de onde as colocaria, isso era um problema para ser resolvido depois. Agora o importante era cuidar de Nick.
Quando voltou para o quarto, ela o encontrou recostado nos travesseiros. De olhos fechados, mas a respiração parecia melhor e a pele já não estava tão pálida. Mas ele ainda estava com uma aparência dolorosamente enfraquecida, e ela se perguntava como conseguiria vesti-lo e colocá-lo dentro de uma carruagem.
— O médico te contou — ele disse, débil.
— Sim.
Ele virou o rosto para o outro lado.
— Imagino então que agora você vai me deixar. Eu compreendo.
As palavras dele foram o fósforo que faltava para acender a raiva dela, raiva da senhora Mackie, raiva do doutor Eckhardt com sua forma burocrática de falar e de Nick por ter se deixado ficar tão doente. E a combustão fez explodir toda a sua fúria.
— É isso que você pensa? Que vou abandoná-lo só porque você está doente? Então, por que implorei para um Deus no qual eu nem acredito para salvar o seu rabo? Para abandoná-lo?
Nicholas se calou.
— Responde, Nick! Por que você mentiu pra mim?
— Eu tinha que mentir!
— Não pra mim!
— Eu... eu pensei que te perderia, Fiona. Pelo amor de Deus, é sífilis!
— Nem que fosse a peste, nunca mais minta pra mim, Nick! Eu sabia que tinha alguma coisa errada e você me disse que estava tudo bem! Você podia ter morrido!
— Por favor, não fique tão zangada assim comigo — ele disse, encolhido.
Fiona se deu conta de que estava berrando com um homem doente. Rodeou a cama para poder ver o rosto dele.
— Não estou zangada com você. Mas sem mais lorotas, está bem? Estamos nessa. Você vai pra casa comigo e vai melhorar.
Nick balançou a cabeça em negativa.
— Eu não quero ser um transtorno pra você.
— Não será nenhum transtorno — disse Fiona, sentando-se na cama. — Você vai dormir no meu quarto. Eu e a Mary nos revezaremos pra cuidar de você e...
— Fiona, tem uma coisa que preciso lhe contar. Existem coisas a meu respeito que você não sabe. Eu não peguei esta doença de... de uma mulher.
Ela assentiu com a cabeça e Nick começou desajeitadamente a explicar suas preferências sexuais, até que ela o calou.
— Nicholas... eu sei disso. Eu vi a fotografia. Um dia, eu estava guardando o relógio e ela caiu. Ele parecia tão feliz, o rapaz da foto. Achei que você tinha tirado a foto e que ele devia ser o seu amante.
— Ele era — disse Nick, com tristeza.
— Era? Onde ele está agora? — ela perguntou.
Nick fechou os olhos por alguns segundos. Quando os reabriu, brilhavam de lagrimas.
— Em Paris. No cemitério Père Lachaise. Ele morreu no último outono.
— Oh, Nick, eu sinto muito, Como? O que houve?
Durante a hora que se seguiu, Nick contou tudo sobre Henri para Fiona, com pausas para água e descanso. Contou como eles se conheceram e o quanto Henri significara para ele. E significou tanto que por esse amor ele virou as costas a a família e foi viver em Paris com Henri. A felicidade dele era tanta, disse Nick para Fiona, que eu não me arrependi dessa escolha, mas numa noite de setembro essa felicidade acabou.
Ele e Henri estavam passeando pelo rio Sena, explicou Nick, quando Henri começou a passar mal. Sentia calafrios e dores. Nick viu que ele estava com febre e o abraçou para ampará-lo. Normalmente, ele não tocava Henri em público — muito perigoso —, mas estava tão preocupado que nem pensou. O gesto foi visto por um grupo de palermas que caminhava atrás dos dois. Eles os atacaram e o empurraram para dentro do rio, mas Nick conseguiu tirá-lo da água.
— Ele estava consciente quando o levei para casa — disse Nick. — Mas, quando o socorro chegou, já estava inconsciente.
Nick também tinha se acidentado, apresentava cortes, escoriações e um olho preto, mas nada de mais sério. Henri, por sua vez, teve fratura do crânio. Ele não recobrou a consciência e morreu dois dias depois.
— Eu fiquei destroçado — disse Nick. — Não conseguia comer nem dormir. Fiquei um mês sem aparecer no trabalho e fui despedido.
O hospital avisou os pais de Henri: um casal de burgueses que morava forade Paris. Eles não aprovavam nem a pintura nem os companheiros do filho, de modo que se recusaram a permitir que algum deles comparecesse ao funeral.
— Tive que sofrer sozinho — disse Nick. — Cheguei até a pensar que ficaria louco de tanto sofrer. Eu não conseguia suportar a visão do nosso apartamento, das ruas por onde caminhávamos, dos cafés onde comíamos.
Duas semanas depois, ele recebeu uma carta da mãe, implorando que reconsiderasse e voltasse para casa. As palavras dela chegaram num momento que ele estava vulnerável. Atormentado, carente do conforto da família, mesmo sabendo que nunca poderia tocar no nome de Henri, ele acabou retornando. Em Paris não restava mais nada para ele.
Ao chegar em casa, sua mãe e suas irmãs ficaram felizes por vê-lo, mas o pai estava furioso e o culpava seguidamente por ignorar as responsabilidades. Nick fez de tudo para agradar o homem. Assumiu seus deveres, trabalhou duro, supervisionou a abertura de novas agências e inclusive exerceu a preparação e o comando da oferta pública pretendida pelo Albion, debruçando-se sobre um sem-número de balancetes, títulos e folhas de pagamento. Visitou fábricas e armazéns nas docas, minas e usinas mas nada do que fazia era bom o bastante. Ficou muito deprimido, começou a beber e chegou até a pensar em suicídio. Para evitar o pai, ele saía todas as noites. Triste, amargurado e desesperado por não ter encarado seu sofrimento, juntou-se a um grupo de jovens falidos, decadentes e farristas da classe alta cuja maioria estava no mesmo barco que ele. Uma noite, já completamente bêbados, foram parar num bordel de rapazes no Cleveland Street e ele acabou dormindo com prostitutos. Era um contato humano, uma forma de se esquecer de si mesmo. Ele arrependeu-se na manhã seguinte, mas fez a mesma coisa inúmeras vezes. Continuou a beber e, em diversas ocasiões, acordava sem conseguir lembrar onde tinha passado a noite ou como chegara em casa.
A saúde de Nick ficou abalada. Sentia-se fraco, letárgico. A mãe notou e o obrigou a consultar o médico da família, o doutor Hadley. Ele achou que seria tratado pelo homem com discrição, mas estava enganado. O doutor Hadley diagnosticou a sífilis e contou imediatamente para o pai dele, que o espancou. O pai o jogou contra a parede do escritório, chamou-o de abominável e amaldiçoou Deus por ter lhe dado um fflho assim. Ele expulsou Nick de casa. Mas lhe deu uma escolha: ir para a América e morrer por lá, devidamente forrado pelo fundo de investimento que abriria para o filho e que renderia um bom lucro, ou permanecer em Londres e morrer nas ruas sem um centavo.
— Eu fiquei estirado no chão, Fi, tentando recuperar o fôlego. Meu pai já estava saindo do seu escritório quando de repente ele se voltou, debruçou-se em cima de mim e disse que sabia o que eu era. Contou que sabia tudo sobre Paris e Arles, e também sobre Henri. O meu sangue gelou. Ele descreveu a casa onde eu morava e deu os nomes dos cafés que eu frequentava. ―Se o senhor sabe de tudo então deve saber da morte de Henri, não é?‖, eu falei. E, enquanto falava, era tomado pelo ódio. Eu sempre soube que ele era um monstro, mas pensar que ele sabia da minha perda e não tinha dito nada era demais! E aí, Fiona, ele riu, e disse: ―Se eu sei disso? Nicholas, eu paguei para que isso acontecesse!‖
Quando Nick acabou de contar a história, Fiona estava em prantos. Seu coração sofria por ele. Para ela, era inconcebível que um pai pudesse fazer o que o pai de Nick tinha feito. Mandar matar o amante do filho. Jogar o sangue de seu sangue e a carne de sua carne nas ruas como um cachorro.
Nick enxugou os olhos. A pequena dose de energia obtida com o medicamento do doutor Eckhardt se esvaía. Fiona se deu conta de que tinha que levá-lo o mais rápido possível para casa, antes que a energia dele se extinguisse por inteiro.
Enquanto procurava roupas limpas para vesti-lo, ele disse:
— Pelo menos agora eu não preciso esperar muito para me juntar ao Henri.
— Não diga isso — ela disse, com voz firme. — Henri vai ter que esperar. Agora você está nas minhas mãos. E vai melhorar porque farei você melhorar.
ELES ESTÃO AUMENTANDO — disse Davey O‘Neill. — A cada semana mais gente se filia. Eles não têm medo. Estão furiosos e não vão voltar atrás. A greve deve ocorrer antes do fim do ano. Desconfio que no final do outono.
O‘Neill notou que o semblante de Burton escureceu. Ele viu quando Burton escorregou a mão para dentro do bolso e segurou alguma coisa.
— Muito cuidado agora, chefe. Se cortar a outra, teremos que encontrar uma outra pessoa para fazer o seu trabalho de escuta — disse Bowler Sheehan, contendo o riso.
Davey não recuou. Permaneceu imóvel. Era melhor assim. Burton evocava para ele um animal selvagem — um lobo ou um chacal —, aquele tipo de animal que observa à espreita e só ataca quando a presa corre. Burton já o tinha cortado uma vez, lá mesmo, no Armazém do Oliver; e ele não queria sentir aquela faca outra vez. embora a dor fisica não tivesse durado muito, por pior que tenha sido. Era uma dor de outra espécie, daquela que vem de dentro, de um lugar ferido onde sua alma costumava ficar, deixando-o enlouquecido. Uma dor que o fazia querer cortar a sua própria garganta toda vez que ele se sentava nas reuniões do sindicato, memorizando nomes, datas e planos. Ou quando ouvia um dos companheiros se perguntando em voz alta como é que os patrões e os capatazes sempre sabiam de antemão os próximos passos do sindicato, antes mesmo que eles. Se não fosse pela mulher e os filhos, ele já teria se suicidado. Mas, sem ele, a família ficaria na miséria. O dinheiro do Burton lhes deu uma segurança que até então não conheciam. Ele já podia pagar um médica para Lizzie e comprar a medicação certa. Ver o rostinho dela tomando cor de novo e o corpo engordando eram as únicas coisas que lhe davam alegria.
Sarah, sua esposa, nunca questionou a história que ele contou sobre a orelha e a súbita mudança nas finanças. Ela simplesmente recebia o dinheiro extra quando ele lhe entregava toda semana, sem comentar nada, agradecida por tê-lo. Agora havia carne para todos na hora das refeições. E agasalhos e botinhas novas para crianças. Ela pediu uma saia nova e um casaco novo, mas ele negou. Ela tambem queria que a família se mudasse para uma casa melhor, a umas poucas ruas de distância, mas ele não permitiu. A mulher protestou e ele disse que ela devia acatar suas palavras e não questioná-lo porque ele tinha bons motivos.
Mas um dia, irritada com a avareza dele, ela acabou comprando um chapéu novo: um lindo chapéu de palha adornado com cerejas vermelhas. Ela chegou em casa com o chapéu na cabeça, feliz e orgulhosa pela única coisa nova que já tinha tido. Ele o arrancou da cabeça de Sarah e o atirou no fogo. Depois, esbofeteou-a com tanta violência que ela caiu no chão. Ele nunca tinha feito isso. Nunca, ela gemeu e chorou e ele sentiu o estômago revirar, mas teve que ameaçá-la, de que, se ela o desobedecesse outra vez, seria pior.
Os trabalhadores das docas não eram estúpidos. Se de repente a esposa de um deles exibisse um chapéu novo, se os filhos aparecessem com roupas novas, isso logo chamaria a atenção. Embora Tillet e os outros líderes fossem notoriamenente contrários à violência, Davey sabia que havia outros membros que poderiam cortá-lo em pedacinhos, caso descobrissem que ele era um espião.
Depois desse episódio, Sarah não comprou mais nada para ela. E também deixou de sorrir. Ela não o aceitava mais na cama e seus olhos gelavam quando o olhavam. Certa vez, ele a ouviu conversando com a mãe, dizendo que desconfiava que o dinheiro era proveniente de roubo. Oh, Sarah, ele pensou, se ao menos eu tivesse essa nobreza!
Burton tirou a mão do bolso e estalou os dedos.
— Qual é o número exato? Quantos são dentro daquele baú deles?
— É impossível dizer com exatidão — retrucou Davey, achando que podia blefar.
— Tente, senhor O‘Neill, tente. Ou o meu amigo aqui entrará na sua casa e quebrará o pescoço de sua filha, como se ela não passasse de um filhote indesejado.
Outra vez abatido pela sua impotência, Davey abriu o bico.
— Somando os operadores de chá e os trabalhadores em geral, já são aproximamente oitocentos membros — ele disse.
— E o dinheiro?
— Nada expressivo.
Sheehan riu e perguntou para Burton com o que ele se preocupava. Mas em seguida Davey disse que o sindicato dos estivadores já contava com quase cinco mil membros e com uma quantia de mil e quinhentas libras em seus cofres. E que eles tinham oferecido apoio. Ou seja, se os trabalhadores das docas cruzassem os braços, eles também cruzariam os seus. E mais os homens que trabalhavam nas barcaças. Burton ergueu uma sobrancelha ao ouvir isso, mas Sheehan fez um gesto de descrédito.
— Quanto mais estiverem de folga, mais famintos eles ficarão — ele argumentou. — Mil e quinhentas libras não alimentam todos os trabalhadores do rio. Não por muito tempo. Mesmo que façam a tal da greve, isso acaba em dois ou três dias. O dinheiro deles termina logo.
— Espero que o senhor esteja certo, senhor Sheehan — disse Burton, com tranquilidade. A calma e o tom baixo de sua voz exasperavam Davey. — Eu não tenho como aguentar uma greve. Não agora. Meu capital não me permite.
— Isso nunca vai acontecer — disse Sheehan. — O senhor está se preocupando toa, chefão. Da mesma forma que fez com a tal da Finnegan. Eu falei que ela desapareceria e foi isso que aconteceu. Talvez até já esteja morta.
Burton tirou um envelope do bolso do paletó e o estendeu para Davey. Os olhos dos dois se encontraram por alguns segundos quando Davey pegou o envelope, e ele pôde notar que o olhar de Burton era tão impassível quanto o de um tubarão. Os olhos eram destituídos de fúria e, embora isso pudesse deixá-lo tranquilo, não era assim que se sentia. Ele preferia ver a raiva refletida naqueles olhos e não o que via naquele momento: um vazio escuro e aberto. Terrivelmente sem fim.
— Tem ratos aqui embaixo de nós. Posso ouvi-los cavoucando — disse Burton. Davey não ouviu nada.
— Me... desculpe, senhor, o que foi?
— Os ratos comem qualquer coisa quando estão famintos. Até carne humana. Você não sabia?
— Nã... não, senhor. Eu não sabia.
— Vai pra casa, O‘Neiil — ele disse. — Vai pra casa e vê se mantém os ratos afastados — ele se virou em seguida e caminhou para a beirada da doca.
Confuso, Davey olhou para Sheehan, mas este se limitou a dar de ombros. Davey se retirou. Caminhou de volta pelo ancoradouro escuro como sempre fazia. Primeiro, normalmente, e de repente saindo em disparada, aos tropeções, até chegar à porta que dava para a rua. Enquanto segurava a maçaneta, ele olhava para trás, por cima do ombro, achando que Burton poderia estar atrás dele com a faca erguida, com seus pavorosos olhos fantasmagóricos em cima dele. Apressou-se sair e correu pela Wapping High Street, com muito mais medo do que quando Burton o cortara, com um pavor que nunca havia sentido na vida.
MANTENHA-OS assim só mais um pouco, querido, enquanto eu coloco isso em você. — Só mais um segundo... pronto! — disse Mary, enfiando os braços de Nick nas mangas da camiseta do pijama já lavado e passado. Passou a pela cabeça dele, abotoou-a no pescoço e depois o recostou nos travesseiros. — Que ótimo! Você não conseguia fazer isso na semana passada; eu tinha que segurar seus braços no alto para vestir o pijama.
— Daqui a uma semana eu estarei correndo cem metros rasos — ele disse, rindo. — Espere só.
— Duvido, mas você está bem melhor. Sua cor voltou e você está mais forte que antes. Se ao menos pudéssemos colocar um pouco mais de carne nesses ossos. Mas tudo bem, agora é hora da parte de baixo. — Mary deslizou as calças dele para fora, molhou uma esponja em água morna e começou a lavá-lo da cintura para baixo.
Nick ficou mortificado quando ela o lavou pela primeira vez. Até então ninguém tinha feito isso, exceto Alien, sua babá, mas só em sua infância. Ele protestou, alegando que podia tomar banho sozinho na banheira, mas Mary fingiu não ouvir. Tirou as roupas dele e ficou brincando para fazer a vergonha passar.
— Sabe, já vi um desses antes — ela disse. — O senhor Munro, que Deus o tenha, era muito bem equipado. Como você acha que tive o lan?
Nick riu do seu próprio membro.
— Tenho certeza de que o meu equipamento vai deixar você desapontada, Mary. Eu não posso competir com um escocês grandalhão. Os escoceses são bem anvantajados.
— Verdade, rapaz, e como! — ela disse com uma ponta de malícia na voz que o fez rir ainda mais.
Ele olhava para a sua mesa de cabeceira enquanto Mary o banhava. Em cima dela, um vaso e rosas que Alec lhe dera, um livro e poemas de Walt Whitman presenteado por Nate e Maddie e um autorretrato desenhado por Seamie. Todos estavam sendo extremamente bons para ele. Nick se impressionava com tamanha gentileza. Sentia as mãos suaves de Mary massageando suas panturrilhas, fricciondo seus tornozelos. Para estimular a circulação do sangue, ela explicava. Sua própria mãe nunca o havia tocado daquela maneira.
E Fiona... ele sentiu um nó na garganta ao pensar nela. Ela o salvara. Ele só estava vivo por causa dela, por causa da bravura dela. Ela implorou, incentivando-o a reagir. A devoção dela o surpreendia e o deixava sem graça. Ela chegou a sair de sua cama para dormir no chão, em cima de um tapete, perto dele. Nas primeira noites, quando ele sentia medo, ela conversava com ele no escuro. Quando a dor se tornava insuportável, ela esticava o braço e segurava a mão dele. A força daqueIa mão... ele agora sabia que tinha exagerado um pouco, mas naquelas horas a sensação de que o vigor e a vontade inquebrantável dela fluíam para ele, impregnando-ode coragem.
Nick ainda não estava completamente recuperado, mas, graças a Fiona e sua familia e os Munro, ele estava melhor que o esperado e já começava a pensar que sairia da cama. Eckhardt, aquele anjo das trevas, o visitaria naquela tarde e diria quando ele estaria livre da cama.
Mary terminou o banho de esponja, vestiu-lhe a calça do pijama e o cobriu com os lençóis. Ele tentou agradecer, mas ela fez um gesto para que se calasse. Saiu para despejar a água do banho e depois voltou com o bebê nos braços.
— Tenho que começar a fazer o jantar — ela disse. — Posso deixar a Nell um pouco com você? Você acha que consegue?
Nick respondeu afirmativamente. Ela ajeitou o bebê nos braços dele, deixando uma rosca para a menina, e foi para a cozinha falando sozinha. O bebê mordiscava o biscoito quando Seamie entrou saltando no quarto e subiu na cama, peindo para que ele contasse uma história.
— Onde você esteve? Está imundo! — perguntou Nick.
— Fazendo umas armadilhas para as lagartas. Elas estão acabando com as flores.
— Cavou um buraco para elas? Olhe as suas orelhas!
— Ah, você está aí! — disse Michael, entrando no quarto. — Vem, está na hora do banho.
— Nããão! — gritou Seamie, reagindo como se o tio o ameaçasse com a guilhotina e não com a banheira.
— Mary disse que você tem que tomar banho. Você está muito sujo para se sentar à mesa.
— Mas eu não quero tomar banho!
— E muito simples, rapazinho: sem banho, nada de jantar.
Seamie olhou para Nick em busca de cumplicidade, mas este balançou a cabeça em sinal negativo, como se não houvesse saída.
— Sinto lhe dizer que não há ajuda pra isso, meu velho. Ela também me fez tomar banho.
Seamie concordou, saindo do quarto de cabeça baixa com o tio, como um condenado. Nick tentava impedir que Nell esfregasse o biscoito babado no vestidinho quando ouviu uma leve batida à porta.
— Signora! — ele exclamou, encantado com a presença de Maddie ali. — Ciao mia bella!
— Ciao, bello. Você tem um tempinho? Quero lhe mostrar o desenho para as caixas de chá de Fiona. Já está quase acabado, mas acho que o pano de fundo ainda precisa ser trabalhado. Está vendo o lugar da dobra que fecha a caixa? O que você acha?
— Chega mais perto, Maddie... aqui, por que não puxa uma cadeira?
Ela sentou-se ao lado da cama e segurou a ilustração no alto.
— Estou vendo o que você quer mostrar — disse Nick. — Quando a caixa for cortada e montada, o bangalô vai desaparecer. Tira logo ele. Você não precisa dele. O desfile já é suficiente. Só estique a folhagem um pouco mais para o alto e...
Enquanto eles conversavam, começou uma barulheira medonha no banheiro.
Falta muito pra chegar em casa, sou um vagabundo jogador,
E se você não gosta de mim, me deixe em paz, por favor.
Eu comerei quando estiver faminto e beberei quando secar.
E se o uísque não me matar, viverei até a morte chegar.
— O que é isso? — perguntou Maddie, alarmada.
— Seamie e Michael cantando — disse Nick, rindo. — Não é medonho?
Ele já estava para terminar suas considerações a respeito do trabalho de Maddie quando os dois ouviram a porta do apartamento se abrir e se fechar em seguida com uma batida. Passos rápidos e resolutos vinham pelo corredor.
— Tio Michael — Fiona passou aos gritos pela porta de Nick, empunhando uma concha de metal.
Nick e Maddie trocaram expressões intrigadas.
— O que você quer? Estou ocupado! — ele gritou lá dentro do banheiro.
— Foi o senhor que deixou um saco de canela em cima de um caixote de chá na loja? A porcaria do saco impregnou tudo! Cheire só isso! O saco arruinou uns bons vinte e cinco quilos de chá!
— Não entra, Fi, eu estou pelado! — berrou Seamie. Você vai ver o meu piu-piu!
— Ora, Seamie, ninguém aqui está interessado no seu piu-piu. E eu não quero saber de você ficar cantando essa música estúpida de beberrões!
— Aqui é sempre barulhento assim? — perguntou Maddie, rindo a valer.
— Isso não é nada — disse Nick. — Você devia estar aqui duas noites atrás, quando o Seamie pulou do sofá e caiu. Você nem imagina o estardalhaço que foi.
Mary entrou no quarto com uma xícara de caldo de carne. Maddie tirou o bebê do colo de Nick para que ele pudesse beber.
— Vai ter que beber tudo, Nick — disse Mary. — Cada gota. E mais tarde eu quero vê-lo comendo um pouco de comida sólida. Um pouco de purê de batata e molho.
Ela saiu. Poucos segundos depois, Seamie passou correndo pela porta, nu, perseguido por Michael. Alguns minutos se passaram e Fiona apareceu com uma bandeja de chá.
— Oi, Maddie, como é que está ficando a caixa de chá? Oi, Nick, como está sentindo? — ela perguntou aos dois. Antes que pudessem responder, acrescentou. — Podem provar isso pra mim? E depois me digam se gostaram. O tio Michael deixou um saco enorme de paus de canela em cima do chá. Eu pensei que tinha tragado o chá, mas já estou achando que ele pode ter inventado um novo produto, chás aromatizados! Imaginem, podemos fazer o mesmo com favas de baunilha. E cravos-da-índia. E talvez com cascas de laranja desidratadas.
— Está impressionantemente bom — disse Nick.
— Uma delícia! — exclamou Maddie, tomando mais um pouco.
A sineta da porta tocou.
— Já vai! — eles ouviram Mary gritar. Fiona sentou-se ao pé da cama de Nick. Descalçou as botas e descansou os pés sobre elas. Enquanto confabulavam em torno de outros sabores, Nate entrou pela porta.
— Como está o paciente? — ele perguntou, calorosamente.
— Cada vez melhor — respondeu Nick.
— Passei numa banca de jornal quando voltava do escritório de um cliente. Achei que você gostaria de um jornal. Oi, Fi. Oi, Mad — ele cruzou o quarto, debruçou-se sobre a mulher e beijou-a. — Que cheiro gostoso é esse?
Tomada por sua mais nova invenção, Fiona explicou-aquase sem parar para respirar. Nate adorou a ideia e, junto com Maddie, começou a sugerir nomes. De roupas limpas e cabelo penteado para trás, Seamie entrou no quarto carregando um livro infantil e subiu no colo da irmã. A sineta tocou mais uma vez. Michael foi abrir a porta, resmungando, dizendo que o apartamento dele tinha virado a Grande Estação Central.
Eles conversavam despreocupadamente enquanto tomavam chá quando, de repente, o doutor Eckhardt apareceu à soleira da porta, com sua maleta preta. Ele deu uma olhada em torno do quarto e disse em seguida:
— Se não me engano, eu recomendei descanso e silêncio.
O constrangimento foi geral.
— Vem Seamie, temos que sair agora — disse Fiona, tirando-odo seu colo.
— Por quê? Eu quero uma história!
— Depois. O médico tem que examinar o Nick pra ele ficar bom.
— Ele vai beijar o dodói do Nick pra ele ficar bom?
Fiona soltou uma gargalhada, seguida por Nate, Maddie e Nick, E saíram as pressas com o olhar intimidador que Eckhardt lançou para eles. O médico fechou a porta e começou a examinar seu paciente; passou um longo tempo auscultando o coração, sentindo o abdômen, inspecionando os dedos dos pés e das mãos. Quando terminou, ele declarou que Nick estava bem melhor do que o esperado.
— Isso é uma boa notícia — Nick alegrou-se. — O que está causando essa melhora? O remédio?
Eckhardt deu de ombros.
— Tenho cá minhas dúvidas. Riso, conforto, carinho... tudo isso é um remedio muito mais potente do que posso oferecer. Mas você deve continuar descansando na cama. Pode andar pelo apartamento algumas vezes por dia; na verdade, eu até aconselho isso, mas não exagere. Se sentir vontade de comer comida normal, pode comer. Quanto ao resto — ele inclinou a cabeça em direção à porta —, os especialistas ali do lado parecem ter de sobra, Presumo que seja a sua família, não é?
— Não, eles são... — Nick deu uma pausa. Pensou no pai que o atirara contra a parede. Pensou na mãe e nas irmãs, que não tinham escrito uma só linha nas semanas em que ele estava ali. Pensou em Mary, em seus toques gentis. Pensou Michael, em Seamie e lan e Alec. E pensou em Fiona, a pessoa que ele mais amava na vida. Depois, abriu um sorriso e disse:
— Sim, doutor Eck. Minha família.
QUE DIABO, MARY! De onde veio tudo isso? — perguntou Fiona, tentando entender o grande número de rosas nos vasos sobre as mesinhas, nas jarras em cima do parapeito da janela, no console da lareira, na escrivaninha, em buquês dispostos sobre o chão.
— Eu não sei! Faz uma hora que chegaram. Eu quis avisá-la, mas você e o Michael estavam muito ocupados, por isso tive que pedir ao entregador que trouxesse pra cá e coloquei tudo na água. Deve haver umas duzentas. Ah, eu quase me esqueci! Olhe aqui o cartão...
Fiona leu o nome na frente do envelope.
— É para... o tio Míchael? — ela disse, sem acreditar. — Quem será que mandou para ele todas essas rosas? — ela estava embirrada e um pouco enciumada. Ninguém jamais lhe tinha enviado tantas rosas.
— Flores de estufa — era Alec cheirando as flores com desprezo, enquanto inspecionava os botões.
Seamie segurou uma rosa de talo longo como se fosse uma varinha e fez cócegas no nariz de Nell, fazendo-a rir.
— Fiona? — gritou Michael da soleira da porta.
— Aqui — ela gritou de volta.
— Você está com a chave da porta da loja? Não consigo achá-la... Jesus! O que significam todas essas flores? Vocês ganharam no grande prêmio da corrida de cavalos?
— Não. Há alguma coisa que o senhor queira nos contar?
— Contar o quê?
— Aqui — ela estendeu o cartão. — Elas são para o senhor.
— O quê? — ele puxou o cartão, viu seu nome e o abriu. — Que figura — ele disse de modo zombeteiro, — Um típico paspalho podre de rico. Enviou quatrocentas rosas quando um ramo de tulipas seria o suficiente.
— Quem foi que enviou? — perguntou Fiona.
— Quem é o paspalho? — perguntou Seamie.
— Esquece, Seamie. Tio Michael, quem foi que enviou?
— William McClane.
Fiona arqueou a sobrancelha.
— Verdade? Eu não desconfiava que havia alguma coisa entre vocês dois.
— Você é muito engraçadinha, Fiona, mas ele não mandou pra mim. Elas são para você...
Fiona arregalou os olhos.
— ... o cartão é pra mim. Ele quer levá-la ao Dalmonico‘s no sábado, mas primeiro quer a minha permissão. Ele diz que as flores são uma pequena demonstração da estima dele. Ele diz...
— Me dê isso! — ela agarrou o cartão.
— O que está escrito, menina? O que está escrito? — perguntou Mary, empolgada, enquanto segurava Fiona pelo braço.
Fiona leu o cartão em voz alta.
Caro senhor Finnegan,
Com a sua permissão, eu gostaria de convidar sua sobrinha para jantar no Delmonico’s, no sábado. Eu passaria para buscá-la às oito horas. E poderia levá-la para casa à meia-noite. Por favor, peça a sua sobrinha para aceitar essas rosas como uma pequena demonstração da minha estima.
Aguardo sua resposta.
Respeitosamente,
Wiílíam Robertson McClane
Ela abraçou o cartão em seu peito.
— Oh, Fiona, que excitante! disse Mary, vibrando. Nada menos que William McClane!
Ele queria vê-la outra vez. E ela também queria vê-lo. E a ideia de que ele tinha pensado nela, de que tinha ido a uma floricultura e escolhido rosas vermelha — muitas e muitas — e lhe enviado só porque sabia que eram suas flores preferidas, deixava-a incrivelmente feliz. Era tão bom sentir que alguém — aquele homem — desejava agradá-la.
— O Delmonico‘s é um lugar elegante, não é, Mary? — Os olhos de Fiona cintilavam. O que devo vestir?
— A gente sai pra comprar, Fiona. Uma tarde dessas, quando a loja estiver mais calma e você puder dar uma saidinha, eu deixo a Nell com o Alec e aí vamos até a 6th Avenue e encontraremos um lindo vestidinho pra você.
Michael lançou um olhar furioso para Mary visivelmente insatisfeito com o entusiasmo dela.
— O que afinal esse William McClane tem de tão excitante? — ele resmungou. — Eu já o vi. Ele não é lá essas coisas. E da igreja errada, você sabe. E também é do partido errado. Ele é republicano — ele disse, de maneira soturna, como se revelasse que Will era um assassino das massas. — E, além do mais, ainda não dei meu consentimento.
— O senhor nem pense em dizer não — Fiona o avisou.
— Como é que eu posso dizer sim? Não posso bancar o acompanhante para alguém dez anos mais velho que eu.
— Acompanhante? Não preciso de acompanhantes, tio Michael. Eu tenho dezoito anos!
— E ele é um quarentão e podre de rico! Sobrinha minha não vai circular pela cidade de braços dados com um...
— O que está havendo? — perguntou Nick, sonolento. Tinha saído da cama e amarrava o cinto de seu roupão de seda. — Ouvi vozes. Achei até que estava sonhando — ele se espantou quando viu as rosas. — Minha nossa, olhe só quantas flores! Alguém morreu? — ele perguntou, alarmado. Pôs a mão no coração para sentir as batidas. — Meu Deus! Espero que não tenha sido eu!
PARE COM ESSE BARULHO, Baxter — Joe resmungou, puxou o cobertor por cima da cabeça e se afundou um pouco mais no feno. As batidas continuaram, forçando-oa despertar para a consciência. Ele deu um grunhido. Não queria acordar. Isso significava que todos os demônios banidos pelo sono retornariam. Tentou ignorar a barulheira e voltar a dormir, mas as batidas eram incessantes. — Baxter! — ele gritou. — Fique quieto!
As batidas cessaram. Joe se pôs atento, torcendo para que fosse o fim da barulheira, mas, logo em seguida, as batidas voltaram ainda mais fortes. Ele se deu conta de que não era o cavalo. Baxter batia os cascos quando queria alguma coisa. Aquelas batidas eram na porta, altas e insistentes.
— Joe! Joe Bristow!
O chamado eliminava completamente a possibilidade de ser Baxter.
— Joe, você está aí? Abra a porta! Agora!
Joe ergueu-se. Ele conhecia aquela voz. Mais até do que conhecia a sua própria. Levantou-se e vestiu-se com rapidez. Depois, desceu correndo pela escada do celeiro e abotoou a camisa enquanto abria a porta.
—Mãe.
— Ah, então você se lembra de mim? — disse Rose Bristow Ela estava com o chapeu torto e a face rubra de tanto bater na porta. Tinha nas mãos uma pesada cesta.
— Como é que a senhora soube que eu estava aqui?
— O Matt da Meg Byrne me disse que tinha estado com você — os olhos dela faiscavam de raiva. — Ele disse que o ajudou a conseguir um emprego. E também disse que você tinha saído de casa. E que Míllie perdeu o bebê. E que vocês estão divorciando. Coisas sem importância, suponho, mas seria bom que você nos tivesse contado! Que droga, rapaz, eu estava preocupada com você! Não sabia o que tinha acontecido. E se não fosse o Matt, eu ainda estaria sem saber. Você nem imagina a vergonha que senti em saber tudo por ele. Em não saber o que aconteceu pela boca do meu próprio filho!
— Desculpe, mãe. Eu não queria preocupá-la.
— Não queria me preocupar? E como você acha que eu ficaria? Sem ter notícias suas, sem vê-lo, sem nem mesmo saber onde você estava...
Joe cravou os olhos no chão. Agora ele podia acrescentar o nome de sua mãe à lista das pessoas que tinha ferido e desapontado. A lista crescia a cada dia.
Rose seguiu com suas reclamações por mais alguns minutos, e depois seu semblante furioso se suavizou.
— Ah, esquece — ela disse, abraçando-ocom força. — Pelo menos já o encontrei. E a tempo, pela aparência das coisas — ela o soltou. — O que o afligiu? Por que você não voltou? Devia estar em casa com sua família, e não vivendo num estábulo como a mula que você é. Vai me convidar para entrar ou não?
— Claro, entre, mamãe. O lugar não é lá grande coisa. Vou arrumar alguma coisa para a senhora se sentar.
Rose entrou e sentou-se num banco bambo que Joe encontrou. Ele se sentou no terceiro degrau da escada.
— Onde você dorme? — ela perguntou, olhando ao redor do estábulo.
— No celeiro.
— O que você come? Está um fiapo de gente. Suas roupas estão dançando no seu corpo.
— Numa cantina perto daqui.
— Oh, meu querido, isto é horrível. O que você está fazendo aqui? O que houve?
Joe contou tudo para ela. Desde a sua terrível noite de núpcias até a sua descoberta do que tinha acontecido com Fiona e o aborto de Millie.
Rose suspirou quando ele terminou, exprimindo em seu rosto cansaço, raiva e pena.
— Sou obrigada a dizer que você arrumou uma encrenca gloriosa para a sua vida.
Ele assentiu miseravelmente com a cabeça.
— Vamos pra casa — ela disse. — Agora você precisa ficar com sua família.
— Não posso, mãe. Depois de tudo o que fiz, eu preciso estar sozinho. Não posso ficar com as pessoas. Eu magoo tudo que toco. Arruinei a vida de Fiona. E de Millie também. Matei o meu próprio filho — ele cobriu o rosto com as mãos. tentando conter as lágrimas. Sentia-se bastante culpado, corrosivamente culpado e dolorosamente triste pelo que tinha feito.
Rose segurou a cabeça do filho.
— Escute, Joe. Olhe pra mim... — ele tirou as mãos do rosto. Seus olhos mostravam tanta dor, tanto sofrimento, que os olhos de sua mãe se encheram lágrimas. — Eu não dou a mínima para o que aconteceu com Millie — ela disse. — É uma moça egoísta e ardilosa. Sempre foi e sempre será. Ela o caçou, levou-o para a cama e você fez o que ela queria. Isso não quer dizer que você seja inocente, de maneira alguma, mas haverá outro marido e filhos para Millie. Ela vai ficar bem talvez tenha aprendido a não tomar o que não lhe pertence. Quanto ao bebê, acho que foi melhor ele voltar para Deus. Acho mesmo. Não há nada pior para uma criança nascer numa família de pais que não se amam. O coitadinho sofreria. Ele ouviu as brigas, sentiu a frieza e decidiu voltar e esperar; foi isso.
Joe fechou os olhos e chorou. Ele tentava desesperadamente conter as lágrimas, não queria chorar na frente da mãe, mas não pôde evitar, as lágrimas escorreram pelo seu rosto como o sangue que brota de um ferimento profundo. Ele sabia que Fiona o odiava. Millie o odiava. Tommy também o odiava. Ele se odiava. Achava que sua mãe o odiaria, mas ela não o odiava, e o fez se sentir redimido com as palavras e o carinho que lhe deu.
Rose secou-lhe os olhos, acalmando-ocom seu toque, com sua voz, tal como fazia quando ele era criança.
— Você está pagando pelos seus erros, rapaz. E vai continuar. Perdeu quem amava, perdeu seu filho. É um preço alto. Mas você tem que se manter de pé. Não pode afundar. Só deixaria as coisas piores. Todo mundo comete erros e todo mundo tem que conviver com o que fez. Você não é exceção.
Joe assentiu com a cabeça, assoando o nariz.
— Olhe, olhe o que eu trouxe pra você — ela pegou a cesta e tirou de dentro uma torta de carne e rins, uma tigela de purê de batatas, um jarro de molho, pratos e talheres.
Joe esboçou um sorriso. Aquela era sua mãe, alguém que pensava que tudo se resolveria com uma boa torta e um cremoso purê. E por isso ele a adorava.
Seja um bom rapaz e vá pegar alguma coisa pra beber. Você não disse que aqui perto existe uma cantina?
— Disse, sim.
Ele pegou duas canecas rachadas que mantinha no parapeito da janela e saiu para comprar chá. Quando voltou, Rose já o esperava com um prato cheio. Ele mergulhou no prato, ávido por uma comida caseira.
— Está gostando? — ela perguntou, sorrindo.
Ele retribuiu o sorriso.
— Está uma delícia.
FIONA SAIU da carruagem de William McClane e olhou deslumbrada para a fachada suntuosa do restaurante Delmonico‘s, na esquina da 26th Street com a 5th Avenue. Um casal estava à frente deles, subia os degraus em direção à porta e ao vestíbulo ornamentado de maneira suntuosa. O homem se distinguia em seus trajes de noite junto à mulher em seu elegante vestido de seda vinho, com um penacho preto nos cabelos.
Essas pessoas são do mundo de Will, não do meu, ela pensou. Eram pessoas inatingíveis, ricas, que sabiam como se portar, como pronunciar os nomes dos vinhos franceses e como usar o desgraçado do garfo para peixes. Nick lhe havia ensinado algumas dessas coisas, mas ela já tinha esquecido. Afinal, por que alguém precisaria de tantos garfos? Ela se atormentou. Só se pode pôr um de cada vez na boca. Ela sentiu que sua segurança se estilhaçava e por um segundo não quis mais nada senão voltar correndo para dentro da carruagem. WilI segurou seu braço e também o de Mary e disse:
— Vocês duas estão deslumbrantes esta noite; vão deixar todos os homem no restaurante com inveja de mim — ele chegou mais perto e cochichou. — De mim, o tipico paspalho podre de rico.
Fiona e Mary começaram a rir, seguidas por Will; depois, ele as conduziu pelos degraus da entrada e, à porta, Fiona ria tanto que tinha até esquecido do nervosismo.
— Oh, Will, eu sinto muito. Ele está completamente fora de controle. Tornou-se a criança mais malcomportada de Nova York — ela disse, quando já estavam lá dentro.
— Você está falando do seu tio, eu suponho.
— Não! — ela exclamou, rindo. — Bem... sim! Dele também. Mas eu me referia ao Seamie.
—Acho que essa foi a coisa mais engraçada em toda a minha vida — disse Mary. — Você viu a cara do Michael quando o Seamie falou? Achei que ele ia ter um treco.
— Não, eu estava ocupada, me perguntando se é ilegal vender uma criança para o circo — retrucou Fiona.
A recepção para Will na casa de Fiona fora um verdadeiro desastre desde o momento em que ele cruzou a porta de entrada. Ele cumprimentou um Michael mal-humorado; depois, Mary; depois, Alec, de quem não conseguiu entender quase nada do que falava por conta do sotaque; depois, Nick, que estava sentado no canapé com seu roupão vermelho, coberto por uma manta xadrez e acomodado entre duas almofadas como um paxá; depois, lan; e por fim, Seamie, que pegou mão e o cumprimentou afetuosamente, dizendo:
— É você o típico paspalho podre de rico?
Mortificado, Michael ordenou que o menino se desculpasse, mas Seamie o desafiou, lembrando-oque fora ele o primeiro a dizer isso. Mary praticamente empurrou todos para dentro da sala de visitas para melhorar o clima, e pediu a Michael para servir os drinques. lan foi autorizado a beber um cálice de xerez, bebeu tudo de uma só vez e quase engasgou. Alec ficou bêbado e desandou a contar piadas sem graça. Até que Nick, o seu eterno salvador, introduziu o assunto do metrô na conversa e os ânimos se assentaram. Michael, que tinha trabalhado como escavador quando chegou em Nova York se interessou pelos aspectos da engenharia. Mary quis saber da segurança. lan mostrou-se curioso em relação à velocidade dos trens. Por fim, Fiona olhou o relógio e disse que já eram quase oito horas e que seria melhor saírem. Felizmente, Mary tinha convencido Michael a ser ela a acompanhante e não ele.
Eles ainda não estavam no interior do restaurante quando foram abordados. Um homem pegou o sobretudo e o chapéu de Will; um outro, a estola de Fiona. Os clientes iam e vinham, e paravam para conversar com Will. Ele parecia conhecertodo mundo. Em poucos minutos, Fiona e Mary conheceram o prefeito, a diva Adelina Patti, Mark Twain, William Vanderbilt, o arquiteto Stanford White e VictoriaWoodhull, a escandalosa advogada do amor livre. O Delmonico‘s era um cadinho onde a origem social não significava nada. Não fazia diferença se o seu dinheiro fora obtido duzentos anos ou dois dias antes. Políticos, atores, vedetes, nobres, todos eram bem recebidos desde que pudessem pagar a conta. Fiona já se perguntava se Nova York inteira estava no restaurante quando, de repente, ouviu de Will:
— Vocês, moças, sabem fazer reverência?
— Reverência? Por quê? A rainha está aqui? — perguntou Fiona, divertida.
—Não, mas o filho dela está.
Segundos depois, ele fez uma pequena reverência e apertou a mão de um homem corpulento e careca, com olhos exageradamente pálidos e uma barba pontuda e grisalha. Fiona aguardava que Will a apresentasse e subitamente se deu conta de que estava diante de Albert Edward, príncipe de Gales e herdeiro do trono da Inglaterra. Ela e Mary se entreolharam, apavoradas. Mary fez uma reverência razoável e Fiona fez a sua de modo rápido. Não foi uma reverência graciosa nem elegante, mas o principe pareceu não ter notado. Ele pegou a mão dela, beijou-ae lamentou-se por já ter jantado porque gostaria de convidá-los para a sua mesa. Aproximou-se um pouco mais de Fiona, disse que tinha detectado Londres na voz dela e perguntou por que uma rosa inglesa tão linda se transplantara. Fiona explicou que se transferira para fazer fortuna em Nova York e que estava montando o seu próprio negócio de chá.
— É mesmo? — disse o príncipe. — Que incomum! Mas, hoje em dia, os jovens estão assumindo as mais diversas atividades, não é? Espero que a senhorita possa ensinar aos ianques uma ou duas coisas a respeito do chá. Na minha opinião, o chá que circula neste país é simplesmente pavoroso.
— É porque o senhor ainda não experimentou o meu chá. Amanhã mesmo vou mandá-lo para o senhor. Acompanhado de uma cesta com bolinhos, geleia caseira de framboesa e um bolo de frutas feito pela senhora Munro, para que o senhor tenha um decente chá das cinco e não a porcaria que eles servem aqui.
Embora Fiona não soubesse, suas palavras tinham sido terrivelmente audaciosas. O protocolo não permitia que os homens de negócio divulgassem seus produtos para o futuro monarca. Mas ela não fazia a menor ideia de que existia um protocolo real e muito menos de que o tinha violado. Ela só estava sendo amistosa. E o príncipe, por sua vez, que não se limitava ao cerimonial quando um rosto bonito estava em pauta, mostrou-se encantado.
— Eu adoraria, senhorita Finnegan — ele disse. — Estou no 5th Avenue Hotel.
— Então, está combinado.
O príncipe se despediu em seguida, dando um tapinha no ombro de Will.
— Preste atenção nesta moça, meu velho — ele aconselhou. — Você pode aprender alguma coisa.
Depois que o príncipe saiu, Will balançou a cabeça, incrédulo.
— Você é mesmo incrível — ele disse, sorrindo.
— Eu? Por quê?
— Aposto que, se eu procurasse a palavra ―comerciante‖ no dicionário, encontraria a sua foto lá.
— Não, eu acho que está na palavra ―tresloucada‖ — disse Mary.
Fiona arrebitou o nariz.
— O príncipe precisa de um chá decente. Era o mínimo que eu podia fazer.
— Eu só espero que você tenha um bom estoque disponível — disse Will. — Se a notícia de que o príncipe de Gales toma GostoChá se espalha, você será bombardeada pelas encomendas.
— Espalhar, onde? E como? Só você e Mary ouviram.
— Nos jornais. Pelo menos dois repórteres conhecidos, ou talvez mais, estavam de orelha em pé e ouviram a conversa. Um deles era Peter Hylton, o maior fofoqueiro da cidade. Se eu fosse você, me preparava.
— Senhor McClane, sua mesa está pronta. Queira me acompanhar — disse o maítre.
Fiona e Mary seguiram à frente de Will. Já dentro do salão do restaurante Fiona mantinha os olhos nas costas do maítre para não se embasbacar, mas isso impossível. O ambiente a tinha envolvido desde o momento em que ela o adentrou, seduzindo-a com seu esplendor. Era opulentamente decorado com lustres de cristal, revestido por um belíssimo papel de parede vermelho, e desenhado à mão com volumosas cortinas de seda. A iluminação a gás refletia-se em grandes espelhos, cintilando em garfos de prata, taças de cristal e gargantilhas de diamantes presas em pálidos pescoços. Ela se viu tomada pelo murmurinho aconchegante das conversas e dos risos, pontuado pela sonoridade dos talheres que tocavam a pratos de porcelana e das taças que brindavam.
Ao sentir que os olhares — de admiração, por parte dos homens; de avaliação por parte das mulheres — estavam cravados em cima dela, Fiona começou a achar que o seu cabelo não estava apropriado e que o seu vestido não era de boa qualidade. Modesta, ignorante de sua beleza e dos efeitos que causava nos outros, pensou que aqueles olhares só podiam ser de crítica. Seu sentimento era de que não combinava com aquela gente vestida em roupas carissimas, da mesma forma que não combina com Millie Peterson e seu círculo. Tímida, ela olhava de soslaio para as mulheres ao redor, mulheres enroladas em metros e metros de cetinse tafetás, rufados, pregueados, bordados, ornados de pedras, contas e babados, drapeados, franzidos e plissados. Gemas do tamanho de moedas pendiam das orelhas e fios de pérolas descaíam em cascata de colos alvos, moldados por finos batistas franceses e reforçados por barbatanas de baleia.
Por insistência de Nick, o conjunto de Fiona era simples e discreto. Ela usava vestido de georgette de seda marfim quase sem mangas, com uma faixa ametista amarrada à cintura e arrematada por uma cascata de lilases purpúreos que pendiam pela saia. O material fluido aderia ao seu corpo com decoro e lhe dava uma aderência esguia e encantada, em contraste com as muitas mulheres no salão que se mostravam excessivamente estofadas.
Ela nunca usava espartilho; nunca tivera um. Mary a fez experimentar um na seção de lingerie da Macy‘s depois da compra do vestido, mas o espartilho apertava e lhe provocava coceiras e ela achou melhor não o comprar. O bom corpete de algodão que ela estava acostumada a usar lhe bastava. Além do mais, ela preferia que os seios ficassem em seu lugar, e não espremidos debaixo do queixo.
Um par de brincos de pérolas emprestados, da caixa de joias da finada tia, era a unica joia que ela usava. Não exibia plumas nem ornamentos de diamantes nos cabelos, apenas um ramalhete de rosas cor-de-rosa colhidas por Alec. A medida que cruzava pelo salão, as cabeças se viravam, encantadas com seus passos confiantes e ariscos com sua face curiosa, radiante, fresca e aberta como uma violeta. Olhando-a, as mulheres achavam que usavam joias demais e que seus cabelos estavam exagerados e seus vestidos, excessivamente rebuscados. Os homens cochichavam uns com os outros.
— Quem é essa que está com William McClane? — Ela era um diamante bruto, alguém cuja beleza se veria diminuída se estivesse trajada de forma exagerada.
O interesse de Fiona pelo salão e seus ocupantes logo foi substituído pela curiosidade em relação às intenções do maitre. O homem já estava a ponto de atravessar todo o salão e não aparentava qualquer intenção de acomodá-los em uma mesa. Intrigada, ela voltou-se para Will.
— Eu reservei um aposento privado — ele explicou. — Ele parece um aquário. Espero que você não se importe — continuaram caminhando até o fim do salão e depois subiram um lance de degraus, onde o maítre se deteve na frente de uma porta dupla, abriu-ae deu um passo atrás para que eles pudessem entrar.
— Primeiro, você — disse Will atrás dela.
Fiona ficou surpresa ao entrar no aposento.
— Oh, Will — ela murmurou, enquanto se dirigia ao centro do aposento com os olhos cravados em cada canto.
— Meu Deus! — exclamou Mary tão surpresa que não conseguiu sair da soleira da porta.
Will tentava de todas as maneiras demonstrar indiferença, mas se sentia obviamente embevecido pela reação de Fiona.
— Você me disse que gostava de rosas — ele disse.
O aposento fora convertido em um lindo caramanchão florido. Rosas espalhadas por todos os lados; dependuradas em guirlandas, dentro de vasos. Peônias e hortênsias escondiam a lareira. Samambaias ornamentavam os cantos. Até o chão se ocultava sob um felpudo carpete verde. No centro do recinto, a mesa estava coberta por uma toalha branca de linho, decorada com mais rosas. E com dois candelabros de prata no extremo do aposento, dois grupos de portas francesas abertas, o que permitia a entrada da brisa do verão e do luar. Fiona quase não acreditava no que via, não lhe passava pela cabeça que alguém pudesse ter feito aquilo. Estava atordoada, tomada por uma sensação de irrealidade. Saira do seu mundo — onde as pessoas trabalhavam com as próprias mãos e se alimentavam de linguiças, bebendo cerveja — e entrara no mundo de Will, onde as pessoas se davam ao luxo de erguer jardins dentro de restaurantes. Por uma noite. Aquilo parecia um sonho, um trabalho de fadas, mas não era. Era Will.
Ela desviou o rosto, inclinou-se sobre um ramalhete de rosas-de-toucar e inalou o perfume, disfarçando a sua emoção. Joe lhe dera uma rosa. Na Old Stairs. Uma simples rosa vermelha. Ela lhe dera o coração, seus sonhos, sua vida. Ele não deu valor a nada disso e estragou tudo. Para Will, ela não dera nada de importante, apenas conversa, risos e uma hora juntos. E ele fizera tudo aquilo. Para ela. Só porque ela gostava de rosas.
— Gostou, Fiona? — ele perguntou, gentil.
Ela se virou sorrindo, com o semblante iluminado.
— Se eu gostei? Will, é maravilhoso! Eu... nem sei o que dizer. Nunca vi uma coisa tão linda.
— Se vocês me permitem — disse Mary, estrategicamente. — Eu vou dar um pulo na sala de estar.
Will esperou que ela saísse e depois deu uma rosa para Fiona. Ele foi se achegando cada vez mais e, antes que ela notasse, tornou-anos braços e beijou-a. Ao sentir a pressão delicadamente insistente dos lábios dele, ela apagou de sua memória todas as lembranças de Joe, toda a tristeza e toda a saudade. Quando ela começou a retribuir o beijo, aquecida pelo gosto e a emoção dele, ouviu-se umaa voz à porta.
— Champanhe antes do jantar, senhor? Ah! Desculpe-me.
Will soltou-a. Ela se afastou, embaraçada, fingindo ocupar-se com a saia do vestido.
— Uma garrafa de Heidsieck, por favor — ele disse.
— Está bem, senhor.
O homem se retirou. WilI estava para tomá-la outra vez nos braços quando ouviu os passos de Mary.
— Bom Deus! Estou me sentindo como se tivesse dezesseis anos — ele resmungou.
Logo que Mary retomou, o garçom chegou com o champanhe e eles se sentaram. Tal como acontecera na primeira noite em que caminharam juntos, Fiona pôde ver que Will não era intimidador e que era incrivelmente aberto à conversa. Mary estava no ápice do seu costumeiro bom humor, e os três se entrosaram muito bem. Conversaram durante todo o jantar, que teve ostras ao vinho como entrada e depois sopa de tartaruga, franguinhos ao molho de trufas com batatas gratinadas e vagens e ainda lagosta Newburg, fechando com torta Alaska, uma sobremesa que era a assinatura do Dolmenico‘s.
No transcorrer daquele indelével jantar, Fiona se viu inteiramente envolvida por um sentimento que nunca tinha vivido: a maravilhosa sensação de que estava sendo cuidada e protegida de todas as preocupaçoes e perigos do mundo. Enquando WiIl lhe dava conselhos sobre a loja de chá, ela o olhava e se dava conta do quanto ele era bonito. Era o homem mais elegante e gracioso que já vira. Ela o varria com os olhos, capturando seus cabelos castanhos, seu sorriso largo e seu queixo. Mesmo sentado, ele era esplendoroso, alto e mantinha a coluna ereta. Sua gola era alva como a neve, sua gravata, atada de maneira impecável. Seu paletó tinha um corte perfeito. Ela lembrou do pai vestido em um paletó xadrez de segunda mão. E do paletó de Charlie, puído nos cotovelos, e do paletó de tweed que Joe costumava usar, com listras azuis que combinavam com os olhos dele... Outra vez Joe, aquele desgraçado. Fiona tinha feito um pacto consigo mesma de nunca mais pensar nele, e agora lá estava ele se intrometendo em sua noite perfeita, como um penetra que não foi convidado. Era como se ele estivesse sentado à mesa, uma quarta cadeira, observando, ouvindo, rindo de maneira afetada. Ela chegou até a imaginar que ele lhe perguntava sorrindo se o beijo de Will era tão bom quanto o dele.
— O beijo foi tão bom quanto o meu? — ele perguntava.
— Foi. Muito melhor — ela respondia em silêncio para ele.
Ele balançava a cabeça em sinal negativo.
— Não, é tudo isso — ele apontava para as flores e para o elegante jantar. — É isso que você acha bom, não o beijo. Ninguém a beijou como eu. E ninguém beijará.
— Acho que o salão de chá é uma excelente ideia, Fiona — disse Will, cortando os pensamentos dela. — Com a boa fonte de chá que você já tem e os talentos culinários de Mary, tenho certeza de que será um sucesso. Você já pensou onde localizá-lo?
— Já — ela respondeu. — Procurei nas proximidades da Union Square, mas os aluguéis são muito caros, perto da Madison Square, e também...
Will assentia com a cabeça enquanto ela falava, ouvindo, questionando, corajando-a. Ela notou como os olhos dele eram amorosos, e como formavam discretas rugas quando ele sorria. Ela então decidiu que os olhos castanhos eram muito mais bonitos que os azuis. A boca de Will também era linda, mas, por culpa do garçom, ela quase não teve tempo de saborear o beijo dele. Mas teria uma outra chance. A noite ainda era uma criança.
Eu vou mostrar para você, Joe Bristow, o que é bom, ela prometeu em silêncio. Espere só pra ver.
— O PARQUE É LINDO SOB A LUZ DO LUAR, NÃO É? Eu nunca tinha vindo aqui à noite — disse Fiona.
— Nenhum lugar é tão lindo quanto você — disse Will, apertando a mão dela.
Eles caminhavam ao longo do Bethesda Terrace na direção do lago; WiIL tinha sugerido uma caminhada depois do jantar. Mary pulou fora, alegando que estava muito cansada e preferia ficar sentada na carruagem. Teria a companhia cocheiro se ficasse entediada, ela disse.
— Muito obrigada, Will, por tudo — disse Fiona. — Pelas flores, pelo jantar...
por aguentar o meu tio. A noite foi maravilhosa.
— Fico feliz, Fiona. Fico mesmo. Eu gostaria de ver você de novo. Logo.
— Eu também gostaria.
WilI tirou um relógio de ouro do bolso e o consultou na escuridão.
— Acho que já é hora de voltarmos. Já são quase onze e meia.
— Ainda não — retrucou Fiona. Olhou para trás para se certificar de que não havia gente por perto e puxou Will para um recanto protegido por algumas árvores. Depois, puxou-o para perto dela e o beijou. Ele se afastou e olhou surpreso para ela.
— Eu pensei que tinha sido muito atrevido no restaurante — ele disse. — Acha que você talvez não quisesse me...
— Me beije outra vez, Will. Eu quero — ela sussurrou. E queria mesmo. Desesperadamente. Queria os lábios dele nos dela. Queria o calor, o perfume e emoção dele, para apagar cada toque, cada promessa que Joe lhe fizera. Ela queria preencher seus sentidos com ele, preencher sua memória com ele, de modo que não restasse espaço dentro dela para abrigar Joe.
Will tomou-a nos braços, apertou-acontra si e beijou-aintensamente. E assim chegou a vez de Fiona se surpreender. Isso é um homem, ela se deu conta, não um garoto. Ela sentia o calor de mãos vigorosas em suas costas, o calor daquele peito em suas mãos. Ele a beijou na face, nas orelhas e no pescoço. Segurou os seios e os beijou. Era tão bom que ela fechou os olhos e suspirou. Tudo ficará bem, ela pensou. Esquecerei Joe. Esquecerei. De repente, ele segurou seu rosto e beijou-a na testa. Ela abriu os olhos, intrigada. Ele afastou-se ligeiramente.
— Agora, tenho que levá-la para casa, senhorita Finnegan, porque, se demorar um pouco mais, eu não a levo e seu tio virá atrás de mim com uma espingarda.
Fiona riu e ruborizou-se, entendendo o significado dessas palavras. Ele afagou os cabelos e lhe deu o braço. Mas em seguida balançou a cabeça, em negativa.
— O que há de errado? — ela perguntou.
— Eu preciso de um minutinho — ele disse desajeitado, endireitando a calça.
Fiona olhou para a braguilha dele. Mesmo em meio à escuridão, ela pôde ver que o tecido da calça se elevara. E caiu no riso.
— Francamente, Fiona! Eu gostaria que você não risse — ele disse, se fingindo — ultrajado. — É uma situação humilhante para um homem de quarenta e cinco anos — olhou na mesma direção e assoviou, admirado. —Meu Deus! Eu não tinha ereção assim desde os meus tempos de colégio!
—Will!
— O quê? Foi você que fez isso!
Fiona caiu outra vez na risada, beijando-o sob os protestos dele. Ele argumentou que, se ela não parasse, só chegariam em casa de manhã. Ela se sentia feliz, esperançosa e excitada. Ficaria apaixonada por ele. Ela estava certa disso. Quase se lembrava de como era se apaixonar; afinal, ela passou toda a sua vida apaixonada pelo Joe, mas devia ser parecido com o que estava sentindo.
Quando Fiona e Will caminhavam de braços dados de volta à carruagem, ela admitiu que havia encontrado um novo homem, como Rose Bristow havia afirmado. Um homem gentil e inteligente, divertido e maravilhoso. Um homem que erigia jardins em sua homenagem, mesmo ela não sendo rica nem tendo um pai comerciante. Um homem que a fazia esquecer de Joe. Ele agora flutuava nos confins sua consciência como um fantasma na névoa de uma floresta, mas ela estava certa de que logo o esqueceria por completo. Ele sairia de sua vida, de sua mente, sua memória. Sairia de vez. Para sempre.
FIONA OLHOU PARA o endereço escrito no pedaço de papel que tinha em mãos, e depois olhou para o número do prédio de tijolinhos à frente. Era aquele mesmo: vinte é um da Nassau Street. Hurst, Brady e Gifford — Corretores da Bolsa. Durante o jantar no Delmonico‘s, Will insistiu que ela fizesse uma visita aos corretores dele para ter uma orientação sobre o mercado de ações.
— Você sabe qual é a diferença entre o rico e o pobre? — ele perguntou.
— Sei. O rico é cheio de dinheiro — ela respondeu.
— Não, minha querida — ele disse. O rico sabe que dinheiro gera dinheiro. Pegue uma parte do seu lucro, invista de maneira inteligente e em pouco tempo você terá o dinheiro que precisa para abrir o seu salão de chá.
E agora, três semanas depois do jantar, ela estava com um pouco mais dinheiro para investir do que tinha quando conversaram sobre isso; a previsão de Will se realizara. Os jornais noticiaram seu encontro com o príncipe de Gales. Peter Hylton escreveu que o futuro rei da Inglaterra podia tomar chá nas maiores salas que a cidade lhe oferecia e que, no entanto, preferia a lojinha de uma pequena comerciante de chá do Chelsea. E WiIliam McClane também.
WiIl se enfureceu por ver seu nome estampado numa coluna de fofocas, da mais daquela maneira obscena, mas Fiona não teve tempo de se ofender; foi prontamente assolada por uma invasão de clientes. Tipos jovens e elegantes chegavam em carruagens, excitados com a ousadia de terem ido até o West Side. Empregadas e criadas apareciam em nome de suas patroas. E choveram encomendas dos de hotéis e lojas. Apavorada, Fiona se viu obrigada a correr à gráfica para encomendar mais caixas e solicitar a Stuart que lhe conseguisse mais chá. Teve que contratar duas moças em período integral para tratar das encomendas e uma outra para empacotar o chá. Ela se juntava com frequência às moças, sem acreditar que tinha chegado até aquele ponto para se ver outra vez empacotando chá.
Will devia acompanhá-la nessa tarde, mas acabou ficando preso numa reunião. Ele enviou a sua carruagem com um bilhete, no qual explicava a sua ausência e dizia que ela fosse sem ele. Fiona não queria ir, estava muito ocupada. Mas na noite anterior ele dera uma parada para vê-la, viu a pilha de dinheiro que ela tinha em mãos e foi taxativo.
— Meu corretor. Amanhã. Sem desculpas — ele disse.
Ela foi até a entrada, empurrou a porta aberta e se viu num lugar que parecia o inferno num mau dia. Na frente da sala, uma grande escrivaninha. O dono estava sentado em sua cadeira de costas para ela, e gritava. Atrás da escrivaninha, balaustrada de madeira atravessava a sala, separando a área da recepção das escrivaninhas dos funcionários. Homens de viseiras e mangas arregaçadas estavam sentados em suas escrivaninhas; eles mergulhavam penas em vidros de tinta e escreviam furiosamente, com o suor escorrendo em seus rostos. Um vaivém de corretores gritavam para os funcionários. A barulheira que faziam junto ao ruído dos telégrafos e das máquinas de teleimpressão era ensurdecedora. As expressões que ela ouvia eram mais apropriadas para a zona portuária do que para um lugar de negócios.
Um dos funcionários gritou, aborrecido.
— Mas eu acabei de escrever para aquele babaca comprar a dez!
— E ele quer vender antes que caia pra cinco! Depressa!
— Barnes! — berrou um homem do fundo da sala. — O Hobson está na linha. E quer esfolar você pela sua sugestão de comprar as ações da SuLlivan. Está dizendo que você o arruinou.
— Ah, é? E eu podia lá saber que isso ia acontecer? Diz pra ele ir pro inferno! — Fiona se dirigiu até a balaustrada, pensando em como ela lhe evocava uma cerca, e os homens dentro dela, touros selvagens que bufavam e se desafiavam, curralados para a segurança dos outros, Aproximou-se do homem na cadeira.
— Por favor, senhor — ela arriscou.
Ele a ignorou. Ouvia um rapaz afogueado, quase sem fôlego, que estava num grupo de homens.
— Eu já ia cancelar a troca — disse o rapaz. — Que confusão! As pessoas estão amando aos berros. Já presenciei umas três brigas...
— E os irmãos Sullivan? — alguém perguntou.
— Um deles está no hospital. Ataque cardíaco. O outro, morto. Suicidou-se com um tiro.
As notícias provocavam expressões de raiva e desgosto.
Fiona tentou outra vez.
— Desculpe, senhor, mas o senhor Hurst está disponível? — era como se ela estivesse invisível. O homem continuava a ignorá-la. Ela já estava começando a se desesperar porque ninguém a ouvia quando sentiu uma mão em suas costas.
— Will! — ela exclamou, feliz por vê-lo. — Achei que você não podia vir.
— Eu dei uma escapada. Não posso demorar — ele disse. — Minha secretária encheu minha agenda para hoje. São tantos encontros que nem sei se estou chegando ou indo — ele estremeceu quando ouviu um grito obsceno. — Que diabo está acontecendo aqui? Onde está o Hurst?
— Não sei. Estou tentando chamar a atenção de alguém, mas sem sucesso.
— Senhor Martin — Will vociferou para o homem na cadeira. Ele se virou. — uma dama presente. Espero que o senhor se comporte de forma adequada.
— Desculpe, senhor McClane. Eu não a tinha visto, senhorita. Ele se virou, colocou dois dedos na boca e soltou um assovio forte.
Ele a tinha visto. Mas, quando a viu, ela não estava com Will.
— Dama na casa, pessoal! — berrou Martin. Os homens esticaram o pescoço e viram Fiona e Will, calando-se de imediato. O senhor Martin pegou o telefone e informou ao senhor Hurst que William McClane queria vê-lo. Meio segundo depois, um homem atarracado descia correndo os últimos degraus da escada que dava para os s superiores, com a mão estendida. Ele os cumprimentou com efusão e depois gritou para um contínuo trazer refresco para o senhor McClane e sua acompanhante.
Fiona já estava se acostumando com a maneira com que as águas se abriam para Will. Durante as três semanas em que estavam juntos, ele a tinha levado para um pique-nique com Seamie nas paliçadas de Nova Jersey, a um jantar no Rector‘s. Seu tio permitiu que ela fosse sem acompanhante, achando que Seamie seria suficiente e insistiu em que ela fosse acompanhada na ópera por Nick, que já estava restabelecido. Ele tinha ouvido rumores sobre as coisas impróprias que aconteciam noscamarotes. E obrigou Mary a acompanhá-los no Rector‘s, pois fora informado que o lugar era suspeito e fechado. Em qualquer lugar que fossem, as pessoas se esmeravam para agradar Will. Fiona teve que aprender a esperar o garçom quando estava com ele, e não entregar o prato ao garçom nem tirar o guardanapo nem servir o vinho. Ao ver como Peter Hurst corria para recebê-lo, ela mais uma vez se dava conta do quanto ele era poderoso.
— Peter, por que essa comoção toda? — ele perguntou.
— Uma apropriação.
— De que companhia?
— Um estaleiro do Brooklin. O Sullivan Brothers. Parece que três dos acionistas arremataram as ações. Eles consolidaram hoje a destituição da familia. Ninguém previu. Foi um negócio terrível.
— Eles podem fazer isso? — perguntou Fiona, seguindo os dois homens ao escritório de Hurst. — Alguém pode tirar outra pessoa de uma companhia?
— Eu receio que sim — disse Hurst. — Não é uma forma elegante de fazer negócio mas é perfeitamente legal... — ele foi interrompido pelo som do telefone. Desculpou-se e o atendeu, passando o fone em seguida para Will. — É para o senhor.
— O que é, Jeanne? Agora? — ele suspirou. — Está bem, sim. Diga a ele que estarei lá — devolveu o telefone. Desculpe — disse para Fiona. — Eu tenho que ir. É o prefeito. O metrô. O absurdo de sempre. Vou pegar uma carruagem de aluguel e deixarei a minha com você.
— Cuidaremos muito bem dela, senhor McClane — disse Hurst.
— Otimo. Eu a verei à noite, querida — disse WiII, levantando-se para sair.
Fiona o seguiu até o vestíbulo.
— Will, você parece cansado. Você está bem?
— Estou ótimo, é só aquele maldito homem. Estou louco para resolver tudo. - ele sorriu. — Desde que tudo seja resolvido a meu favor, é claro.
— Você vai conseguir fechar o contrato. Tenho certeza.
Ele beijou o rosto dela, disse que gostaria de sentir a mesma confiança e saiu.
Fiona retomou ao escritório de Hurst e ele lhe explicou as coisas básicas. Embora nenhuma delas fosse difícil de se entender, ele falava devagar, como se estivesse falando para um imbecil. A mente dela voou quando ele ensinou pela segunda vez a diferença entre ações, debêntures e mercado futuro. Ela não conseguia deixar de pensar na comoção que vira lá embaixo, nos dois homens que perderam as suas companhias e nos acionistas que ficaram com elas. Sentia-se corroida por esse pensamento. Havia alguma coisa faltando nesse caso, e ela não se dava conta do que era.
— Um momento, senhor Hurst — ela disse, interrompendo-o. — Sobre os Sullivan o senhor disse que eles não previram. Eles não perceberam o que estava acontecendo?
— Nâo. E estou certo de que tampouco procuraram se inteirar. É uma ocorrencia rara...
— Mas que acontece... — ela disse, mais para si do que para o senhor Hurst. As peças estavam se encaixando. Uma imagem nítida assomou à sua cabeça: investir era instrumento financeiro, um modo de fazer dinheiro. Mas também podia ser uma arma. Compre muitas ações de uma empresa e um dia você a possui.
— Oh, sim — ele disse, — Os proprietários se tomam desleixados. Excesso de confiança. E de arrogância também. Eles acham que são invulneráveis — Hurst sorriu de forma simpática. — Vejo que tudo isso a deixou preocupada, senhorita Finnegan. Que forma terrível de entrar no mercado. Por favor, não se desencoraje com isso. A maioria de nossas transações é segura. Vamos passar para os tópicos mais agradáveis.
Fiona, no entanto, não estava preocupada. Nem desestimulada. Pelo contrário. Uma possibilidade nova cintilava em sua mente, o verdadeiro começo de um plano. Hurst continuou a explicar monotonamente como a conta dela funcionaria, comprar e vender, e tudo mais sobre horários e comissões. Dissecou o recente estratagema da Dow Jones no The Wall Street Journal. E ela o deixou falar. Sua mente estava a cem milhas por hora, animada com as possibilidades do seu plano; um plano que se ocultara dela por muito tempo.
— Então, veja — por fim, ele dava um fecho em sua lição, arrastando-se pesadamente —, a senhorita pode acompanhar o progresso de suas ações simplesmente consultando o jornal. Vamos supor que ontem a senhorita tenha comprado cinco mii ações do metrô do McClane a quinze dólares por ação. Hoje, nós vemos aqui que ela fechou a dezesseis dólares e vinte e cinco centavos — ele pegou um lápis. — Isso nos dá então...
— ... um dólar e vinte e cinco centavos por ação multiplicados por cinco mil, o que me daria um lucro de seis mil e duzentos e cinquenta dólares. Meu Deus, senhor Hurst, o senhor McClane está absolutamente certo. Essa é uma boa forma fazer dinheiro!
Hurst se espantou.
— É, sim. Agora, se há mais alguma coisa que eu possa fazer pela senhorita...
— Há, sim — ela disse, inclinando-se sobre a mesa dele. — Eu gostaria de compraralgumas ações da Burton Tea. Uma companhia inglesa.
Hurst franziu a testa.
— Tem certeza de que isso é sensato, senhorita Finnegan? Uma transação assim tão rápida? O senhor McClane me fez acreditar que a senhorita era novata no mercado financeiro.
— Eu era. Graças a sua excelente explanação, senhor Hurst, já não sou. E então, e sobre as ações da Burton?
— Um momento. Tenho que consultar o preço.
Hurst desapareceu no vestíbulo. Fiona pegou uma apólice que estava sobre a escrivaninha dele. Era uma apólice correspondente a dez mil ações da Carnegie Steel. Não passava de um papel, mas era um pedaço da companhia. Logo ela poderia ter nas mãos um pedaço da companhia de Burton. Só um pedacinho, mas ela podia aumentá-lo; mesmo que levasse vinte anos para fazer isso. E quando esse pedaço estivesse grande o bastante ela poderia arruinar Burton.
— Aqui estou de novo, senhorita Finnegan — ele retornava à sua mesa. Olhou-a e em seguida deu uma pausa. — A senhorita está bem? Seu rosto está vermelho. Está com calor? Eu posso abrir uma janela.
Fiona garantiu que estava bem. Ele disse que a Burton Tea estava negociando suas ações a vinte dólares por unidade. Ela solicitou dez ações. Era uma grande quantia e um pequeno começo, mas, acima de tudo, era um começo. Ele estendeu —lhe alguns papéis. As mãos dela tremeram de emoção quando os preencheu. Ela sentia os olhos do homem cravados nela. E se perguntava: será que ele pode ver? Será que pode ver a raiva dentro de mim? O pesar? Todas as coisas sombrias e que o Burton deixou aqui dentro? Terminou de preencher os papéis e tentou capturar o olhar dele enquanto os entregava de volta. Ela o encarou por um instante e depois ele desviou os olhos. Era como se ele estivesse olhando alguma coisa que preferia não olhar.
Fiona agradeceu pela ajuda. E disse que gostaria de marcar uma entrevista a cada sexta—feira para adquirir mais ações da Burton Tea.
— Toda sexta? A senhorita deve acreditar muito nessa empresa. Conhece o presidente?
Fiona assentiu com a cabeça.
— Muito bem, senhor Hurst. Muito bem.
Vai ser um menino, eu sei — disse Isabelle, a nora de Will.
— Como você sabe? — perguntou Emily, sua irmã, enquanto fiava renda.
— Ele é agitado. Está sempre chutando. Não para nunca.
— Que nome você escolheu pra ele? — perguntou Edmund, o filho mais novo.
— William Robertson McClane Terceiro — disse Will Junior, marido de Isabelle, dando uma tacada na bola de golfe e acertando-a no interior de um vaso virado no chão.
— Que original — bufou Edmund, sentado numa poltrona com uma perna esticada no braço dela. Viera de Princeton para passar o verão em casa e estava trabalhando na cidade com WiIl Junior, no projeto do metrô. — Eu tenho um nome melhor.
—O quê?
— Edmund!
O irmão atirou a bola de golfe em cima dele, mas errou e acertou a mesinha.
— Meninos... — disse Will, distraído, fazendo com que todos rissem.
— Ele pensa que ainda temos cinco anos — disse James, o segundo mais velho.
— Penso isso quando vejo vocês jogando golfe dentro de casa — replicou Will, enquanto contemplava para além das portas francesas da enorme e ensolarada sala de estar, na direção da suave ondulação de sua propriedade, dos cavalos distantes e do rio Hudson ao longe. Se não estivesse se sentindo tão indolente após uma farta refeição, talvez tivesse dado uma caminhada. Quem sabe um pouco depois, com um de seus filhos ou com Richard, seu genro. As mulheres ficariam em casa. Isabelle estava nas últimas semanas do seu confinamento. Uma mulher de sua posição não podia aparecer em público e só via a família e as amigas.
Olhando a sua família, Will sentia um forte orgulho paternal. Emily tinha escrito e lhe pediu que fosse passar o fim de semana na casa de Hyde Park. Argumentou que queriam vê-lo e que ele estava muito isolado. Will desconfiava que a famiia achava que ele sentia muita falta de sua mulher. A preocupação deles o sensibilizava, mas ele preferia ficar na cidade com Fiona. Queria passear com ela em Saratoga ou Newport, para desfrutar juntos um longo e ensolarado fim de semana de julho, mesmo que para isso tivesse que convidar Mary ou Nick como acompanhantes. Mas o fato é que chegou a carta de Emily e, quando Fiona soube disse, aconselhou-o a visitar a família. Andava muito ocupada com a loja de chá e não podia ficar fora um fim de semana inteiro. Além do mais, tinha prometido levar Seamie para passear em Coney Island no sábado à tarde. Junto com os Munro, Nick e Michael. Ela disse que, se ele mudasse de ideia com relação a Hyde Park e quisesse comer cachorro-quente, atirar bolas em alvos e ver a mulher barbada, seria muito bem-vindo.
Will deu de ombros para essa ideia. Em certos momentos, lembrava-se da grande diferença que havia entre eles, uma diferença que o fazia se sentir desconfortável quando estava no ambiente dela, mas que nunca pareceu afetá-la quando estava no dele. Ela sempre se portava de maneira graciosa e encantava a todos a quem era apresentada.
Aos poucos ele começava a introduzi-la na sociedade, e ela estava se saindo muito bem. Duas semanas antes, ele a tinha levado junto com Nick a uma festa no Metropolitan Museum of Art, em homenagem ao famoso pintor Albert Bierstadt. Ela estava maravilhosa em seu vestido verde-azulado, com um par de brincos que pareciam diamantes, mas que na verdade eram bijuterias emprestadas da amiga Maddie. O vestido tinha um corte reto, quase grego. Ele já tinha o notado o dom de Fiona de usar a coisa mais simples e causar um grande efeito.
Ele soube por ela que Nick a ajudava a escolher o vestido. Nutria algum ciúme pelo rapaz, mas tentava não demonstrar. Uma vez perguntou a ela se não estava competindo com Nick e se surpreendeu quando a viu rir. Ela responde que se havia alguma competição, era a dela com o Nick. Ele geralmente conseguia distinguir essas coisas, mas não se deu conta com o Nick. Não era um rapaz efeminado. Claro, ele se interessava por arte e se excedia ao se vestir — os coletes paramentados dos da Liberty of London, os ternos de linho branco e as gravatas escandalosas mas, para Will, isso era uma excentricidade decorrente da nacionalidade. Afinal de contas, tratava-se de um inglês e isso explicava tudo. Fiona e Nick eram muito próximos, inseparáveis até, e pela ternura que demonstravam um pelo outa sabia que não teria tido uma chance com ela se o jovem Soames se interessase pelas mulheres. Para agradá-la, ele o suportava e já tentava alavancar a carreira do rapaz. Na festa de Bierstadt, ele o apresentou a William Whitney, a Anthony Drexel e a J. P. Morgan, todos colecionadores de arte.
Também apresentou Fiona para Caroline Astor, a soberba rainha da sociedade nova-iorquina. A maioria das mulheres tremeria. Não Fiona. Ela somente abriu um sorriso, apertou a mão de Caroline e disse:
— A festa está uma delícia, não é? — Caroline olhou-a com frieza, mas não pôde deixar de perguntar onde ela havia comprado aquele adorável vestido. — Paris? — ela quis saber. — Londres?
— Não, na Macy‘s — retrucou Fiona.
Os olhos de Caroline se arregalaram e depois ela riu calorosamente. Fiona exercia esse efeito sobre as pessoas. Ela era completamente despretensiosa. Encantava as mulheres mais esnobes da sociedade e os homens de negócio mais arrogantes apenas com sua personalidade adorável e irreverente. Chegou até a neutralizar Morgan — o homem mais rico do país — quando Will os apresentou e ela desarmou o olhar arrogante dele com um sorriso e um aperto de mão como se fosse homem. Mais tarde, Morgan reclamou de bom humor para Will que, se ela não se intimidava com ele, pelo menos podia ter feito o favor de demonstrar algum respeito.
Will estava perdidamente apaixonado por ela e morria de vontade de lhe dizer isso. Já tinha dito uma vez, quando retornavam na carruagem de um jantar e notou que ela ficou tensa. Achou que talvez ela duvidasse de sua sinceridade. Talvez ela temesse, como um dia ele também temeu, que as coisas não dessem certo entre eles e estivesse com medo de se magoar. Will tinha a sensação de que ela já passara por isso. Ela possuía uma natureza apaixonada. Ele sentia isso na forma como ela o tocava, em como o beijava, mas também sentia que ela se resguardava. Ele queria apresentá-la o mais rápido possível para a família. Isso mostraria que suas intenções eram sérias. E também queria fazer isso pelo bem de seus filhos. Ele e Fiona poderiam encontrar por acidente com Will Junior ou James em algum restaurante, assim como alguém poderia comentar que o vira com ela. Felizmente, nenhum deles lia a ter‘s Patter‖. Hylton praticamente lançou um foco sobre Fiona. Ela era mencionada na coluna dele quase toda semana. Sempre descrevia o que ela vestia e notavaque ela sempre estava acompanhada ou pelo vistoso inglês Nick Soames ou por Will, e que ninguém podia prever quem a conquistaria. Obviamente, a orientação sexual de Nick e seu papel de acompanhante também lhe escaparam.
— Pai? — disse Will Junior. — Eu lhe fiz uma pergunta. O senhor ouviu?
— Não, desculpe. Eu estava a milhas de distância. — Ele viu o olhar que Emily lançou antes de retornar ao seu bordado.
— Eu perguntei se já chegaram os relatórios dos engenheiros sobre a linha do Brooklyn.
— Ainda não. Devem chegar amanhã.
Fez—se silêncio outra vez. James manejava o taco. Edmund brincava com a bola de golfe, jogando-a para o alto. Emily bordava. Os olhos de Will cravaram-se nas mãos da irmã. Eram tão delicadas e brancas. Completamente diferentes das de Fiona que estavam sempre avariadas pelo trabalho. Uma noite, no Rector‘s, quando ela pegava o copo de vinho, ele notou um arranhão em uma das mãos. A visão daquela mão — a mãozinha de uma lutadora — derreteu o seu coração. As mãos de Fiona não eram bonitas, não como as de Emily, mas para ele eram maravilhosas.
James pigarreou. Will ergueu o olhar e percebeu nitidamente uma tensão no ar. Viu que que Will Junior fez um sinal para Emily e ela se levantou prontamente e chamou Isabelle para acompanhá-la numa caminhada. Só uma voltinha, ela disse, alegando que faria bem. Isabelle se pôs de pé, com ajuda do marido, e saiu caminhando desajeitamente atrás de Emily. Will foi deixado com seus três filhos e o genro. Edmund tinha apanhado mais duas bolas e agora fazia malabarismos, alheio à pesada vibração no ar. Richard zanzava furtivamente no fundo da sala. De pé e próximos do console da lareira, Will Junior e James já não brincavam com o taco de golfe. Estava acontecendo algum coisa. Eles o chamaram para perto por alguma razão. Ele encarou Will e James, provocando-lhes um visível mal-estar, e disse em seguida:
— Bem, o que é?
— O que é o quê? — disse Edmund, pegando as bolas e olhando para o pai.
— Pai... — Will Junior começou a falar — ... nós queremos conversar com o senhor.
— Vocês não podiam fazer isso em Nova York?
— Não, é um assunto pessoal — disse Will Junior, movimentando-se de modo claramente desconfortável.
— Nós temos ouvido algumas coisas — continuou James, — As pessoas têm visto o senhor com uma jovem.
— Não é da nossa conta — acrescentou Wil Junior —, mas o falatório está correndo. Nós só... só achamos que não é certo exibir uma amante de maneira tão aberta.
A preocupação com os bons costumes por parte do filho provocou um sorriso em Will.
— A mulher a quem você se refere não é minha amante. O nome dela é Fiona Finnegan. Estou cortejando-a. De maneira muito respeitável, devo acrescentar. Desculpe, eu devia ter imaginado que vocês acabariam sabendo. Já devia ter falado sobre ela para vocês.
— Cortejando! — repetiu Wíll Junior, com uma expressão de choque. — Com intenção de se casar?
Will começou a se irritar com o interrogatório.
— E muito cedo para isso, mas, se você quer saber, sim... é uma possibilidade!
— Papai! — exclamou Edmund, sorrindo calorosamente. — Isso é o máximo. Como ela é? É bonita?
Will riu.
— Muito bonita.
Will Junior não disse nada. Limitou-se a encarar o pai com um olhar de descrença.
— Eu já conheci a família dela — continuou Will. — No momento certo eu a apresentarei para vocês.
— Pai, nós não... o senhor não pode... isso não pode acontecer — disse James, com frieza.
— Eu ouvi dizer que ela não tem nem vinte anos. E que é uma caixeirinha — disse Will Junior, cuspindo a palavra como se tivesse deixado um gosto ruim em sua boca. — O senhor ficou maluco?
— Francamente! — retrucou Will, afrontado tanto pela pergunta quanto pelo tom do filho.
— Ela não pertence ao nosso meio — disse James. — Além do mais, só a diferença de idade...
— Eu tenho quarenta e cinco anos, e não oitenta e cinco, se você não sabe — rebateu Will.
Will Junior, que andava pela sala visivelmente irritado, voltou-se para o pai.
— Pensem em como isso pode afetar os investidores do metrô. Não podemos enfrentar um escândalo agora, não podemos nos expor a comentários desfavoraveis. Não com o Belmont no jogo. Não depois de toda a batalha que tivemos.
— Um escândalo? — disse Will, olhando o filho como se este estivesse louco. — Deixe de ser ridículo.
— Não estou sendo ridículo! — replicou Will Junior, subindo o tom de sua voz. — O senhor não vê...
— Sei muito bem qual é sua verdadeira objeção — disse WilI, interrompendo-o. — Por que você não fala claramente? E porque ela é irlandesa e da classe operária, não é?
— Minha objeção é que isso... essa sua aventura arruinará todo o trabalho que vemos.
— Will, deixe o pai em paz — interferiu Edmund, saindo em defesa do pai. — Ele sabe o que está fazendo. E tem o direito de namorar, se essa é a vontade dele.
— Namorar? Cale a boca, Edmund! — gritou Will Junior. — Você não sabe o que esta falando. O que você pensa que é isso? Uma reunião estudantil? É negócio, vida real, meu irmão, isso não é papo de escola. Não podemos fazer concessões.
—Filho, já chega — Will o cortou bruscamente. Esperou alguns segundos, o bastante para que Will Junior esfriasse a cabeça, e depois disse, em tom conciliatório. — Espere até conhecê-la. Você verá a pessoa maravilhosa que ela é. Vai mudar sua opinião.
—Não tenho a menor intenção de conhecê-la. Não agora. Nem nunca — replicou raivoso. E saiu da sala num rompante, seguido por James e Richard.
Edmund permaneceu na sala.
—Não liga pra eles, papai — ele disse com tranquilidade.
Will soltou um forte suspiro. Levantara-se no meio da discussão e agora se sentava outra vez.
— Talvez seja muito cedo. Muito perto da morte de sua mãe.
— Ora, por favor, papai. já faz dois anos que a mamãe morreu. O problema dele é que falta pouco pra ele entrar no Congresso. Está preocupado que o seu romance com uma mulher muito mais nova possa roubar os votos que ele teria dos conservadores.
— Você está sendo injusto, Edmund. Will junior é ambicioso, mas não é tão diloso, tão áspero.
Edmund deu de ombros.
— Se o senhor pensa assim, tudo bem. De minha parte, eu acho que ele é tão áspero quanto uma lixa.
— Talvez ele esteja realmente preocupado com o metrô. Está se entregando ao projeto de corpo e alma, e vem realizando um ótimo trabalho. Talvez esteja realmente nervoso com a competição. Se ao menos já tivéssemos assinado o contrato — disse Will. — Eu então poderia provar que ele está errado. Se eu já tivesse os papéis assinados, ele não teria como se opor.
— E o que importa a objeção dele, pai? Esquece ele! O que ele pode fazer? Cortar a sua mesada?
Will sorriu para o filho.
— Não — ele respondeu. — Mas pode criar uma situação desagradável. Todos vocês são muito importantes pra mim. Eu não gostaria de ver nenhum de vocês zangado ou infeliz. Vou redobrar meus esforços com o metrô. Tão logo eu consiga o contrato, ele mudará de ideia, Edmund. Estou certo disso.
PARA JOE, o número 8 da Montague Street era como uma faca cravada em seu coração. Ele parou na frente da casa e rogou a Deus que a porta se abrisse e ela estivesse lá, sorrindo com seus olhos azuis a brilhar, como naquele dia em que ele foi buscá-la para um passeio até West End. No ano anterior, nessa mesma época, ele morava nessa rua, ainda se reunia com seus amigos à noite, ainda sonhava com uma loja e uma vida com Fiona. Passara-se apenas um ano, mas parecia uma vida inteira.
Saiu da frente da casa, caminhou até o número 8 e bateu à porta. Seu pai atendeu.
— Veja só. O filho pródigo retorna à casa — ele disse.
— E bom te ver também, papai.
Peter Bristow olhou para o buquê de cravos cor-de-rosa que o filho segurava e fechou a cara.
— Você pelo menos podia ter trazido um buquê de rosas. Ela quase morreu de preocupação com você. Não sabia onde você estava. Os vizinhos comentaram. Os homens no mercado falaram que o Peterson tinha dado um pé na sua bunda. Imagine o que tive que ouvir por sua causa...
— Desculpe, papai. Desculpe. Está bem?
Peter balançou a cabeça.
—Vou avisar que você chegou. Entre. Não costumo jantar na porta aos domingos. Joe revirou os olhos e seguiu o pai, contente por ter se decidido a não voltar para casa. Ele foi saudado calorosamente por Jimmy, seu irmão de dezesseis por Ellen, sua irmã de treze anos, que por sinal estava mais alta e mais bonita que em suas recordações; e por Cathy, sua irmãzinha de oito anos, com rabo de cavalo e bata. Beijou a mãe que tirava um pernil de carneiro do forno. E quase ralhou com ela quando viu a comida — ele sabia como custava caro um pernil de carneiro —, mas ela estava tão orgulhosa em ver todo mundo junto e feliz por tudo ter dado certo, que ele não disse nada. Ela viu os cravos na mão dele, fez uma festa ao pegá-los e depois pediu a Ellen que os colocasse num vaso. Joe carregou o pernil para a mesa enquanto as irmãs se encarregavam das batatas e da couve-de-bruxelas. Instalou-se um silêncio constrangedor quando todos se sentaram para comer, até Cathy se manifestou:
— A mamãe disse que a Millie perdeu o bebê, Joe. Como o perdeu? Ela o esqueceu em algum lugar? Ainda não o encontrou?
— Quieta, Cathyl — ralhou Ellen.
Joe parou de cortar sua carne.
— O bebê não está perdido, querida — ele disse baixinho. — Está no céu.
— Mas por quê? Por que ele está lá?
— Ei! Coma a sua comida e não se intrometa na vida dos outros — o pai vociferou. — Vamos acabar com essa conversa de bebês, Millie ou seja quem for.
— Idiota! — sussurrou Ellen para a irmã, dando—lhe uma cutucada.
— Não sou, não! — replicou Cathy, emburrada. — Eu só disse...
— Por favor, me passa o molho, Cathy, como uma boa menina — disse Rose. — Fale sobre o seu novo trabalho, Joe.
Joe atendeu o pedido da mãe, agradecido pela mudança de assunto proposta por ela. Quando ele terminou de falar, seu pai disse:
— Acho que, com toda a sua experiência, você bem que poderia ter conseguido um trabalho melhor.
Rose lançou um olhar fulminante para o marido.
— Bem que eu tentei, mas o Tommy me boicotou. Tenho sorte por estar onde estou. — disse Joe, Mastigou um pedaço de carne e engoliu. — Mas é temporário. Estou economizando quase todo o dinheiro que ganho — hesitou por um segundo acrescentou. — Tenho uma ideia para um novo negócio.
— E qual é, meu querido? — perguntou Rose, empolgada.
— Logo que tiver dinheiro suficiente, comprarei um carrinho de mão. Vou enchê-lo com as melhores mercadorias e venderei de porta em porta num bom bairro. Talvez em Mayfair. Se juntar mais dinheiro, comprarei um cavalo e uma carroça para cobrir distâncias maiores. Por exemplo, Knightsbridge. E contratarei um outro homem para se encarregar do carrinho de mão e da rota de Mayfair. Depois, continuarei acrescentando carroças e rotas até cobrir West End inteira — ele agora falava com animação. Um pouco do seu antigo ânimo estava de volta. — Dessa forma, a cozinheira e a dona de casa poderão ter à disposição, na porta de suas casas, os melhores produtos. Elas poderão escolher sem ter que sair para as compras ou se contentar com os produtos velhos que o armazem da esquina entrega em domicílio, entenderam? Estou pensando em chamar o meu negócio de ―Montague‘s — Onde Qualidade e Conveniência se Encontram‖. Pensei em nossa rua. O que vocês acham?
— Acho que é uma ótima ideia — disse Rose.
— Eu vou trabalhar pra você — disse Jimmy. — Posso ajudá-lo de manhã e voltar a tempo para poder ajudar o papai de tarde.
— Acho que é a ideia mais idiota que já ouvi — disse o pai. — Como é que você vai fazer para que as cozinheiras e cozinheiros comprem de você? Elas já têm suas lojas preferidas...
— Peter... — Rose o interrompeu. Mas ele não lhe deu ouvidos.
— ... e como você saberá o que colocar no carrinho? E a quantidade? Você corre o risco de ter pouca quantidade de um produto e muita de outro. E melhor você ficar no trabalho que está e dar graças a Deus por ele.
— Mas o senhor acabou de dizer que eu podia conseguir um melhor! — argumentou, frustrado com as constantes criticas do pai, com a recusa dele de abrir para novas ideias.
— Mantenha a sua cabeça no lugar e não faça outra besteira — retrucou Peter.
Joe amassou o guardanapo.
— Não sei por que voltei aqui — ele disse, levantando-se para sair. — Desculpe mamãe, obrigado pelo jantar.
— Sente-se! — ordenou Rose. — Você não vai a lugar nenhum. Vai acabar de comer a comida que eu fiz pra você!
Ela voltou-se furiosa para o marido e Joe pôde ver que o pai dele, com quarenta quilos a mais e bem mais alto que sua mãe, encolheu-se.
— E você, Peter, seria melhor que pelo menos uma vez ficasse do lado seu filho, ao invés de chamá-lo de idiota por ter apresentado uma nova ideia. Uma ótima ideia! Se ele tivesse tido em casa um pouco de estímulo, nunca teria ido para Covent Garden. E nunca teria se envolvido com gente como o desgraçado do Tommy Peterson e sua filha!
A família inteira se pôs em silêncio. E todos continuaram a comer com mansidão. Ellen se serviu de mais carne. Cathy comeu toda a couve-de-bruxelas do prato, mesmo odiando-a. Joe espalhou molho sobre as batatas. Peter espetou o garfo num pedaço de carne e, resmungando, falou que podia ver um carrinho à venda. Acrescentando que talvez pudesse dar um depósito como entrada e Joe pagaria o restante. Rose fez um afago na mão do marido e olhou para o filho com esperança.
O resto do jantar transcorreu de maneira pacífica. Quando terminou, Peter sentou-se na frente da lareira com um jornal nas mãos e o cachimbo na boca. Jimmy saiu para se encontrar com os amigos, enquanto Ellen e Cathy se prontificaram a ajudar a mãe a lavar a louça. Rose perguntou para Joe se ele gostaria de dar uma volta antes de retornar a Covent Garden. Ele aceitou.
Quando desciam pela Montague Street, os olhos de Joe se viraram para a casa de Fiona. Sua mãe notou.
— Agora moram duas famílias ali. Uma no andar de cima e a outra no baixo. Ah, meu Deus, como sinto falta deles, Kate era como uma irmã para mim. — ela disse.
Joe balançou a cabeça. Ele também sentia falta deles. Tanto que chegava a doer. Voltou-se para a mãe e perguntou:
— A senhora acha que ela me perdoou, mamãe? Não que possa me amar de novo. Sei que é pedir muito, mas ela podia pelo menos me perdoar.
Rose hesitou.
— Não sei,querido. É espantoso o que o coração pode aguentar. As pessoas dizem que ele quebra, mas não quebra. Seria mais fácil se quebrasse. Se parasse de bater se parasse de sentir. — Eles viraram a esquina. Suponho que ela possa. Isso acontece. Eu mesma um dia perdoei seu pai.
— Pelo quê? Por ser um velho miserável?
Rose negou com a cabeça e Joe se deu conta de que ela olhava para o vazio um com semblante triste.
— Pelo quê, mamãe?
— Quando você tinha seis anos, o Jimmy, três, e a Ellen tinha acabado de nascer seu pai foi embora. Ele se juntou com uma viúva que trabalhava no mercado Spitalfields. Não era uma mulher bonita, mas seus filhos já estavam criados e dispunha de uma casa só para si.
— Meu próprio pai — disse Joe, confuso.
Rose assentiu com a cabeça.
— Ele não conseguia lidar com o casamento e mais a paternidade e um bebê recem-nascido. Não tinha dinheiro. Nós morávamos com meus pais. E ele trabalhava com o pai dele. Era um tempo muito difícil.
— Mas você aguentou, mamãe.
— E claro que sim, meus filhos precisavam de mim. Eu podia aguentar. Ele não pôde.
Joe olhava a mãe, ainda chocado.
Rose riu da expressão do filho.
— Filho, os homens é que são fracos, Você não sabia? Oh, sim, vocês fazem muito barulho, mas as mulheres é que são fortes. Naquilo que mais pesa. Aqui — ela apontou o próprio coração. As lembranças enchiam seu rosto de dor. — Um recém-nascido, cheio de cólicas. Mal nutrido. Não me deixava dormir. Você e Iimmy pequenos. Dinheiro curto. E aí o meu marido me abandona — ela riu com amargura. — E, para completar, o meu pai me pergunta o que eu tinha feito para que ele fosse embora. Graças a Deus, havia a minha mãe. Eu não conseguiria sem ela.
— O que aconteceu? Ele voltou? Você deixou?
— Sim. Em trinta dias, ele estava de volta. Com o rabo entre as pernas.
— Por que você o aceitou de volta?
— Eu precisava do meu marido. Vocês precisavam do pai. E eu amava o infeliz. Levou um tempo, mas o perdoei. Ele estava sentido, mas lutou muito para que tudo desse certo. E mesmo tendo causado muita dor, eu pude compreendê-lo. Só de ver vocês chorando sem parar, eu acabei esquecendo de mim.
— Meu Deus, meu próprio pai — disse Joe. — Eu não fazia ideia.
— Talvez isso explique seu pai, meu querido, O fato de ele ser desse jeito. Tão cuidadoso e cauteloso. Ele tem medo de pisar errado e estragar outra vez as coisas. Talvez seja por isso que está zangado com você. Você cometeu o mesmo erro dele.— Joe assentiu com a cabeça. — Falei tudo isso só para mostrar que não sei se Fiona pode perdoar você. A mim não cabe responder. Mas sei o quanto ela o amava. E vc não pode passar o resto da vida sem pelo menos tentar saber se ela o desculpou.
— Eu queria muito saber disso, mamãe. Se ao menos eu pudesse encontrá-la.
Rose franziu a testa.
— Vocês não conseguiram descobrir nada? Nem mesmo com aquele detetive?
— A única coisa que descobrimos é que ela vendeu algumas coisas na loja de penhores perto da casa do Roddy. Só isso.
— Fiona é uma moça capaz, tenho certeza de que ela está bem, esteja lá onde estiver. E, mesmo sendo muito estranho, estou certa de que ela teve lá suas razões de partir do jeito que partiu.
Joe disse que isso também o preocupava. Ele contou para a mãe o que ainda não tinha contado para não a deixar alarmada: sua briga com Stan Christie.
— Oh, Joe, não estou gostando nada disso — ela disse, aflita. — Que raio de coisa o Bowler Sheehan iria querer com a Fiona?
— De acordo com o Roddy, Sheehan disse que ela roubou um dinheiro e ele quer de volta.
— O quê? Isso não faz sentido! Nada disso faz sentido. Fiona não seria capaz de roubar. E dificilmente deixaria de dizer ao Roddy para onde iria. Logo o Roddy! Ele era como um pai para ela. Era mais da família que o próprio tio dela, que não foi capaz de escrever uma carta e nem mesmo enviou dinheiro para Kate depois que o Paddy morreu.
Joe interrompeu a caminhada. Segurou a mãe pelos ombros.
— O tio dela... — ele disse, pausadamente.
— Claro. Ele vive em Nova York. Se não me engano, ele tem uma loja. Lembro da Kate me dizendo que o Charlie queria ir pra lá, pra trabalhar com ele.
— Mãe, é isso! — ele gritou. — E lá que ela está, tenho certeza. Para onde mais ela iria? Especialmente tendo o Seamie para cuidar. A senhora sabe o nome dele? O endereço?
— Não sei, não. Deve ser Finnegan, é claro, mas não sei o primeiro nome. O Roddy é que deve saber. Talvez saiba até o endereço.
— Mãe, eu vou me preparar pra ir — ele disse, excitado, — Pra Nova York. Ela está lá, eu sei que ela está lá. Irei assim que tiver o dinheiro. Só preciso de um pouco mais, eu acho. O bastante pra chegar lá e pra pagar um quarto e as despesas enquanto estiver procurando por ela. Preciso começar o meu negócio. Farei mais dinheiro trabalhando por conta própria do que para o Ed.
— Vamos voltar e perguntar ao seu pai sobre o carrinho que ele mencionou. Eu tenho um pouco de dinheiro guardado, posso ajudar no depósito — disse Rose.
Joe a beijou.
— Obrigado, mamãe. Antes de voltarmos pra casa, primeiro vamos ver o Roddy. Vamos ver se ele sabe o endereço e, se souber, eu posso escrever logo pra ela.
— Está bem — disse Rose. — Vamos — ela foi para a direção errada.
— Não é por aí — disse Joe. — Vem, mamãe, depressa!
FIONA FOLHEAVA AS PÁGINAS de um livro luxuosamente encadernado.
— O que você está lendo? — perguntou Will.
— Poemas escolhidos, do Lord Alfred Tennyson.
Ele deu uma olhada no livro.
— Primeira edição. Muito rara. Editada em Veneza — ele disse, limpando a poeira da garrafa de vinho que segurava. — Você gosta do Tennyson?
— Até que gostaria, se na escola não tivessem me obrigado a decorá-lo — ela respondeu. Fechou os olhos, abraçou o livro à altura do peito e recitou ―Cruzando a barreira‖ na íntegra, reabrindo os olhos ao terminar o último verso.
— Muito bem! — disse Will, livrando-se da garrafa para aplaudir. Ele tinha tirado o paletó e a gravata e os deixado sobre um canapé de couro. Usava uma camisa engomada que tinha nos punhos um par de abotoaduras retangulares de ouro gravadas com suas iniciais, um colete de seda e uma calça da mais pura lã.
Fiona ruborizou-se com o elogio. Recolocou o livro na estante alta de carvalho. As paredes da enorme biblioteca de WiIl eram cobertas de estantes. Escadas posicionadas nas vigas permitiam o acesso às prateleiras mais altas. A biblioteca era o dobro do tamanho do apartamento inteiro de Michael e era apenas um dos comodos da mansão que ocupava todo um quarteirão na cidade: a esquina da 5th Avenue com a 62th Street. Era a primeira visita de Fiona à casa de WilI. Ele a tinha levado para jantar no Delmonico‘s, acompanhados por Nick. Tão logo terminou o jantar, eles se separaram de Nick, que alegou que precisava encontrar um amigo ator no centro da cidade. Combinaramde se ver depois no Delmonico‘s, antes da meia noite, para retornarem pela 8 th Avenue sem que Michael ficasse sabendo de nada. Já tinham agido assim duas vezes e Míchael não desconfiara. Era a maneira de Fiona de ficar a sós com Will. Na primeira vez, caminharam pelo parque e, na segunda, deram uma longa volta de carruagem. Assim eles tinham tempo de conversar sem que uma terceira pessoa ouvisse e também de se beijarem.
Ao chegarem, cerca de uma hora antes, ele mostrou-lhe a casa. Foi um longo percurso. Era uma casa impressionantemente grande e opulenta. Tinha uma sala de recepção, dois salões, três salas de visita, uma sala de jantar, longos corredores, uma sala de estar, um salão de jogos, diversos estúdios, uma galeria, copa e cozinhas gigantescas, um salão de baile onde cabiam umas trezentas pessoas, diversos aposentos que aparentemente não serviam para nada, a enorme biblioteca de Will, e ainda muitos quartos de dormir, banheiros e acomodações a criadagem. Para Fiona, era mais um palácio que uma casa e diversas vezes quase tropeçou, deslumbrada com o mármore talhado, o dourado, os painéis pintados, a tapeçaria, as cortinas de seda, os lustres de cristal, as pinturas e as esculturas. Esgotada, ela se alegrou quando finalmente chegaram à biblioteca, com uma decoração menos rebuscada. Nela só havia estantes de livros, duas escrivaninhas, duas poltronas de couro e um canapé, sendo que esses últimos agrupados na frente da lareira. A noite estava fria, embora fosse verão, e o mordomo acendeu a lareira para eles. A lua, ajudada por diversos candelabros, iluminava o ambiente.
— Will... — ela disse, dando uma olhada nos milhares de livros à frente. Quantos livros você tem?
Ele pensou por alguns segundos, pelejando com a rolha da garrafa de vinho.
— Cerca de cem mil.
— Meu Deus! — ela sussurrou, enquanto percorria a extensão de uma das paredes, com os saltos das botas tamborilando no piso de pedra pálida. Ouviu o barulho da rolha que se soltava.
— Ah! Consegui. Voce gosta de um Margaux, Fiona? Safra de 1869. Mais velho que você.
Fiona não manifestou surpresa.
— Não conheço. Nunca provei. Aliás, eu nunca tinha bebido vinho até o dia em que você me levou ao Delmonico‘s. Só champanhe. Era o que Nick bebia no navio, e eu também.
Will olhou-a, surpreso.
— Jura? E o que é que você bebia em Londres?
— Chá.
— Quer dizer, no almoço e no jantar.
Fiona segurou o queixo.
— Hmmm... no almoço. E no jantar preciso pensar. Ah, sim, agora me lembro... chá. E depois, chá. Ora, todos nós bebíamos chá, Na maioria das vezes, um Assam vagabundo comprado na loja da esquina, mas, de vez em quando, um divino — ela pestanejou ao dizer a palavra — Darjeeling, quando caia um caixote nas docas e meu pai e seus companheiros o pegavam antes que o capataz o visse.
Will encarou-a.
— Você está me gozando?
Ela soltou um largo sorriso.
— Você acha que se bebe o quê, com o salário de um trabalhador das docas?
— Qual é o salário deles?
— Vinte e poucos xelins. Cerca de cinco dólares.
Will escancarou um sorriso.
— Acho que, com um salário desses, você não podia mesmo beber um vinho, é? Mas agora pode. Vem provar este aqui.
Ele sentou-se no canapé. Fiona o acompanhou. Estar naquele lugar era adoravel. Sentia-se segura sentada ao lado dele. Aonde quer que fossem, ela sempre se sentia segura junto a ele. Segura e cuidada. Eram emoções boas. Não tão boas quanto a falta de ar e a sofreguidão e o desejo que o amor provoca. Ainda assim, pensava que um dia essas últimas emoções se revelariam. Um dia. Com o tempo. Estava certa disso. Ainda era muito cedo. Afinal, ela pouco conhecia Will. Não tinha estado o bastante com ele para ficar apaixonada. Ainda estava se apaixonando o que era completamente diferente.
Ele encheu duas taças de vinho. Ela pegou uma taça, mas ele a impediu de beber.
— Não tão depressa. Primeiro, uma lição, antes de beber um dos melhores vinhos do mundo.
— Devo cuspi-lo? Teve uma aula de degustação de vinho no navio. Eu assisti. Os degustadores mantinham o vinho na boca e depois o cuspiam num balde. Achei que eles não estavam gostando.
— Cuspa esse vinho e eu a estrangulo.
— Então, ele é bom?
— Muito. Feche os olhos.
Ela fechou.
— O que eu faço agora?
— Feche a boca. Só por alguns segundos. Dá pra fechar?
Ela riu.
— Primeiro, sinta o perfume dele — disse Will, aproximando a taça do nariz dela. — Inale profundamente — ela obedeceu. Podia senti-lo perto de si; sentia o calor e a ressonância da voz dele. — Que cheiro está sentindo?
— Hum... uvas?
— E o que mais?
Ela inalou de novo.
— Groselhas, acho. Sim, groselhas. E... pimenta? E uma pitada de uma outra coisa... eu conheço... baunilha! — ela abriu os olhos.
— Muito bem. Você tem um excelente nariz. Estou impressionado. Ele devolveu a taça para ela. Era de cristal e pesada como um tijolo. Ela bebeu o vinho. Era como se bebesse veludo. Tomou outro gole e um calor se espalhou pelo seu corpo. Ela notou que ele estava sentado bem perto dela. Conseguia enxergar os flocos acobreados dentro dos olhos castanhos, uma pintinha bem acima do lábio superior, um fio branco nos cabelos. Ela sentia o odor de roupa limpa e da pele dele. Era um odor maravilhoso, muito melhor que uma taça de vinho de boa safra. Sustentou o olhar por alguns segundos, na certeza de que seria beijada e desejando que ele a beijasse. E ele a beijou.
— Você também tem uma excelente boca — ele disse, tirando a taça da dela e colocando-a na mesa. Ele beijou o pescoço e atrás da orelha, fazendo-a estremecer. Segurou-lhe os seios, por cima da roupa, de maneira firme mas gentil fazendo-a suspirar. Ele estava seguro de si. Confiante na maneira de tocá-la, e uma vez ela se deu conta de que ele não era um garoto. Já tinha tido uma espose e o tio dela estava certo, algumas amantes. Ele sabia o que fazia, mais do que podia falar. Quando sentiu as mãos dele em suas costas, desabotoando sua roupa e descendo seu corpete, ela de repente entendeu por que ele a tinha levado casa, por que tinham ido para aquele lugar em vez de passear no parque.
— Will, não... — ela disse sem fôlego, sentindo que não estava pronta para aquilo. Mas ele não parou. A medida que as velas se consumiam, projetando um brilho nas estantes, no vinho, no canapé de couro e na pele de Fiona, ele investia em seus seios nus, beijava seus lábios e escorregava a mão por baixo de suas saias.
Ele era um homem experiente. Sabia perfeitamente onde e como tocá-la. Ele a fazia com as mãos e os lábios; a região entre as pernas doía e o desejo dela era tirar a roupas dele e puxá-lo para dentro do seu corpo. Tomada pelo desejo, ela não queria que ele parasse. Ansiava sentir o calor da pele dele contra a sua, senti-lo dentro dela.
Ele a beijou mais uma vez e disse:
— Vem pra cama comigo, Fiona. Eu quero você.., quero fazer amor com você.
Ela gelou. Segundos antes, o fogo incendiava suas veias e agora virava gelo; Afastou-se dele.
— Não, Will — ela disse bruscamente. — Eu não quero... eu... eu não posso.
Ele recostou-se no canapé e fechou os olhos.
— O que é? O que há de errado — perguntou.
— Eu... eu posso engravidar.
Ele abriu um dos olhos e piscou para ela.
— Sabe, existem formas de evitar. Tomarei minhas precauções.
— Bem... não é só isso... eu não posso... eu não...
— Está bem, Fiona — ele disse, pegando a mão dela. Você não está pronta. Isso é tudo que preciso saber. Não precisa explicar. Eu compreendo. Eu não devia ter forçado tanto.
— Não, Will, você não forçou nada — ela começou a falar —, eu... eu também o quero, de verdade.., só que...
— Shhh — ele disse, cortando as palavras dela com um beijo. Ele fechou o corpete. — Pelo menos esconda os seios. E muito para um homem aguentar.
Fiona abotoou a roupa. Seu rosto estava rubro, mas não de vergonha.
Ela mentira. Para Wil. Para si mesma. Deixou que ele acreditasse que sua indecisão se devia ao medo de engravidar, mas ela sabia que não era por isso, sabia e se recusava a admitir. Quando ele disse, eu quero você... quero fazer amor com você, usou as mesmas palavras de Joe, as palavras que ele disse para ela naquela tarde em Covent Garden, quando fizeram amor naquela cama estreita e ele falou que a amava e que a amaria para sempre. No instante em que WiIl as pronunciou, ela se viu tomada pela imagem de Joe. E lhe veio à mente a forma com que ele a olhou quando despejou o dinheiro da caixa chocolate no colo dela, e quando lhe deu o modesto anel de safira e a tomou em seus braços. Lembrou-se do toque dele, do modo como a fez se abrir para ele, do modo como se abriu para ela e ambos se fizeram um só corpo, um só coração, uma só alma.
Essas imagens eram uma tortura. Ela queria estar com Will, pensar somente nele, amá-lo. Ela queria seguir em frente, deixar Joe para trás. Queria muito. E tentava fazer isso, mas não conseguia. Ele sempre voltava. As vezes, ela ouvia uma voz parecida com a dele ou se deparava com dois olhos tão azuis quanto os dele; ouvia passos com o mesmo andar cadenciado dele e, de repente, lá estava ele outra vez em sua mente, em seu coração.
— Fiona? — disse Will, com gentileza. — Você está chorando?
Embaraçada, ela rapidamente limpou o rosto. Nem se dera conta de que estava chorando.
Ele tirou o lenço do bolso e secou os olhos dela.
— Deixei você perturbada, desculpe. Eu não devia ter avançado tanto. Sou mesmo um imbecil. Um verdadeiro idiota. Não chore, querida. Suas lágrimas partem meu coração — puxou-a e disse no ouvido dela. — Eu nunca me aproveitaria de você. Nunca. Antes morrer que magoá-la. Eu me deixei arrebatar, foi isso. Meus sentimentos por você são tão fortes — soltou-a, olhou-a no fundo dos olhos disse. — Sou péssimo para essas coisas, Fiona. Sou capaz de discorrer durante horas sobre negócios, como já está cansada de saber, mas, quando se trata de coração, sinto-me totalmente perdido. Foi sempre assim — ele deu uma pausa de alguns segundos e arrematou. — Nunca lhe disse isso...
As mãos dela se afastaram. Não, Will, ela pensou. Agora, não. Por favor, por favor, não agora.
— ... já faz tempo que eu queria dizer isso, mas tive, bem... medo, eu suponho de não ser correspondido em meus sentimentos por você. Eu... eu te amo, Fiona.
Por que ele tinha que dizer isso? Por que dizer isso logo agora? Por que não disse numa daquelas noites perfeitas em que caminhavam de braços de braços dados, divertindo-se tanto que a lembrança de Joe ficava a milhas de distância? Tiveram noites assim. Noites que lhe haviam trazido esperança e a fizeram acreditar que podia esquecê-lo.
Will beijou-a nos lábios com ternura, apaixonadamente. Olhou-a no fundo dos olhos, à espera de uma resposta.
Ela devia lhe dizer que aquilo não daria certo. Devia dizer que amava um outro homem e que sempre o amaria. E que tinha tentado arrancá-lo do coração, mas em vão. E que envelheceria ainda o amando. E que se odiava por amá-lo tanto...
Em vez disso, ela disse:
— Oh, Will... eu... eu também te amo.
EU NÃO DEVIA deixar você fazer isso. É muito cedo
para tanta caminhada — queixou-se Fiona.
— Ora, não seja chata! Estou ótimo — replicou Nick, irritado. — Todo mundo me trata como se eu fosse uma flor delicada. Como se fosse tombar com o sopro um vento mais forte. Você sabe que já dei algumas saídas. Já saí para festas, jantares e outras coisas. Não sou um inválido!
— Não é, mas com certeza é muito mal-humorado.
— Desculpe — ele disse, tentando mostrar-se arrependido. — Mas sinto-me bem, Fiona. De verdade.
— Sem lorotas?
— Sem lorotas. Estou bem. Só estou desanimado com as porcarias que já vimos.
Mais à frente, na esquina da Irving Place com a 18th Street, o corretor imobiiário virou-se e disse:
— Tudo bem, senhor Soames? O senhor não está cansado, está? Tenho certeza de que vão gostar do próximo imóvel. É uma joia.
— Aposto que é. Outra porcaria — resmungou Nick. Ele estava desesperado para encontrar um novo lugar para a sua galeria. Já tinham se passado dois meses desde que caíra de cama e ele estava louco para voltar ao trabalho.
— Toda essa caminhada me deixou com uma sede terrível. Eu gostaria que se algum lugar por aqui para sentar e tomar alguma coisa — ele disse, apoiando o braço de Fiona. — Seria interessante se houvesse um salão de chá pelas redondezas. Você já procurou por aqui?
— Não, mas vou procurar. Não tenho tido sorte em outros lugares. Mas acho que não terei mais sorte do que você está tendo hoje. Parece que não há nada disponivel. Ou o imóvel é pequeno demais ou o preço é astronômico.
Nick assentiu com a cabeça.
— Desconfio que não vou encontrar um lugar como aquele outro. Era perfeito.O Will sabe de algum?
— Não. Já perguntei pra ele.
— E como vai a investida do senhor McClane?
— Muito bem. Eu... estou apaixonada por ele, Nick.
Nick levou um susto com essas palavras.
— Tão depressa? Você tem certeza?
— Absoluta — ela disse, radiante.
Radiante demais. Isso é muito repentino, ele pensou.
— Você se lembra que me falou que eu me apaixonaria de novo? Que acabaria me esquecendo de Joe? Pois é, aconteceu. Eu não tinha acreditado em você, mas você estava certo. Aconteceu realmente.
Ele sorriu desconfiado para ela.
— Isso é maravilhoso — ele começou a falar. — Ele é muito...
— E um homem indescritível — disse Fiona, entusiasmada. — E inteligente e gentil. E ele me ama. Já disse que me ama.
A quem você está tentando convencer, sua truta velha? A mim ou a si mesma? Nick se perguntou. Ela evitava o olhar dele e seu rosto exibia uma expressão sombria. Sua testa estava cortada por rugas de preocupação e seus olhos pareciam tensos.
— Você já conheceu a família dele? — ele perguntou.
— Não, ainda não. Eles não estão facilitando. Pelo que parece, o filho mais velho de WilI não aceita a ideia de que o pai possa me namorar. Acho que é porque não tenho pedigree.
— Ah, é? E quem esse merdinha pensa que é? — disse Nick, furioso. — Ele teria a sorte danada se tivesse você na família. Essses americanos estúpidos com suas prentensões sociais ainda mais estúpidas! Duas gerações com dinheiro no bolso e já começam a achar que são aristocratas!
Fiona sorriu pela heróica defesa a seu favor. Já estava mais parecida consigo mesma.
— E você acha que é o quê, seu riquinho? — ela brincou com ele, pegando-o pelo braço. — O duque melancólico? O príncipe ranzinza?
— Mais ou menos isso — ele retrucou, subitamente constrangido. Esses títulos, por mais inusitados que fossem, soavam de maneira terrivelmente familiar aos ser ouvidos. Fazia muito tempo que não era chamado pelo seu verdadeiro título. Ele já duvidava que isso viesse a ocorrer outra vez. O que era ótimo. Sua origem nobre só lhe trouxera desgostos. Ele a tinha abandonado quando partiu da Inglaterra e esperava nunca mais fazer parte dela.
— Olhe, príncipe atarantado, aquela casa — disse Fiona.
— Hmmm? — ele murmurou, feliz pela mudança de assunto.
— Aquela casa abandonada. Logo ali. Já passamos umas duas vezes por ela. Como é que alguém deixa uma casa nesse estado? — ela soltou o braço dele e foi na direção da casa, protegendo os olhos do sol para vê-la melhor. Nick também olhou para a casa tentando ver o que Fiona via. Estava praticamente em ruínas, apesar de uma linda roseira à frente que subia pela porta de entrada.
— Senhor Soames? — gritou o corretor.
— Vem, Fi — disse Nick. — Estão nos chamando. É hora de ver um outro lugar escuro, minúsculo e lúgubre.
O corretor mostrou mais quatro imóveis para eles, sendo que nenhum despertou interesse, e no fim os deixou na esquina da Irving com a 18th, com a promessa de que se comunicaria com Nick caso aparecessem outros imóveis disponíveis.
— Vamos comer alguma coisa, Fi? — perguntou Nick, avaliando os méritos do 5th Avenue Hotel em comparação com os dos novos restaurantes Child, com pisos imaculadamente brancos e garçonetes rápidas e eficientes. — Chá com bolinhos? Ou um milk-shake? Ou um daqueles sundaes com creme chantilly por cima e castanhas e... Fi?
Ele achou que ela estava ao seu lado, mas não estava. Encontrava-se a alguns metros de distância, de novo na frente da casa abandonada. Ela se apoiava com as mãos na cerca de ferro que separava a fachada da casa da calçada. Vistoriava as janelas altas trancadas com expressão sonhadora.
— Que diabos você está olhando aí? - ele perguntou, juntando-se a ela.
— Esta casa deve ter sido deslumbrante.
— Mas não é mais. Vamos, antes que a cornija caia em cima da gente e nos mate.
Mas Fiona não arredou o pé.
— Alguém deve ter gostado muito desta casa. A roseira não nasceu espontaneamente, e olhe só isso... — ela se debruçou na cerca e tocou um espigão alto e azul de delfínio. — Ela foi abandonada, Nick. Alguém que simplesmente partiu e a deixou. Como é que alguém pode fazer isso?
Nick suspirou com impaciência. Ele queria sair dali. Estava exausto e faminto, mas era mais que isso. Ele se sentia desconfortável, com a incômoda sensação de que estavam sendo vigiados. Olhou ao redor, dizendo para si mesmo que aquilo era ridículo. Mas não era. Um homem varria a calçada duas casas abaixo e os olhava de cara amarrada.
— Ei! O que vocês estão fazendo aí? É proibido vagabundear nesta rua — ele disse.
— Não estamos vagabundeando — replicou Fiona. Ela soltou a cerca e se dirigiu até ele. — Estamos admirando a casa.
— Você, não eu — resmungou Nick.
— O senhor sabe por que ela está fechada?
— É claro que sei. Eu sou o zelador, não é?
Fiona acercou-se e apresentou-se. Não restou outra opção para Nick senão segui-la. Depois de dizer o seu nome — Fred Wilcox —, o zelador explicou que tomava conta da casa para a proprietária, uma senhora chamada Esperanza Nicholson.
— Por que ela abandonou a casa?
— O que a senhorita tem a ver com isso? — perguntou Wilcox.
— Fico triste por ver uma casa tão bonita caindo aos pedaços.
— É triste — disse Wilcox, menos irritado e comovido pela honestidade de Fiona. Faz cinquenta e poucos anos que a senhorita Nicholson ganhou a casa do pai como presente de casamento. Depois da lua de mel, seria a residência dos noivos. A casa foi decorada com mobília, tapetes, papéis de parede, não faltou nada. E tudo da melhor qualidade, de primeira. Então, na véspera do casamento, ela foi abandonada pelo noivo. Ficou destroçada. Passou a viver reclusa na casa do pai. O velho morreu alguns anos atrás, mas ela ainda vive na casa dele. Fechou esta casa para que ficasse em ruínas. Nunca ninguém morou aqui. Ela se recusa a alugar ou vender.
— É como se ela punisse a casa pelo que aconteceu — disse Fiona. — Senhor Wilcox, nos deixaria ver a casa? Podemos entrar?
Nick se desesperou ao perceber que não teria a sua xícara de chá. Já estava irritado porque não tinha encontrado um local para a sua galeria. O que ele mais desejava era sair de Gramercy Park e esquecer aquela tarde improdutiva. Mas ele sabia que não conseguiria convencer Fiona a não entrar na casa. Quando ela enfiava uma coisa na cabeça, não havia quem a demovesse. Ele então enfiou a mão no bolso, tirou uma nota de um dólar e estendeu-a para Wilcox, na esperança de agilizar o processo. E agilizou.
— Está bem, então, eis a chave da porta — disse o zelador, dando uma chave velha e escurecida para Fiona. — Se acontecer alguma coisa com vocês, se quebrarem o pescoço lá dentro, não tenho nada a ver com isso. Vocês entraram por conta própria e passaram em cima de alguma tábua solta, está bem assim?
— Tudo bem — retrucou Nick. Ele deu as costas ao zelador e foi na direção de rua, que já atravessava o portão. Caminhou pelo mato até a porta, que Fiona lutava para abrir. — Se aparecer algum rato, eu caio fora — ele disse.
— Vem aqui e me ajuda a girar esta chave. Não estou conseguindo. Acho que a fechadura está enferrujada.
Nick usou toda a força que tinha.
— Está emperrada. Espere... consegui.
Fiona estava tão ávida para entrar que quase o derrubou para que ele saisse do caminho. Empurrou a porta e entrou. Partículas de madeira podre e de metal enferrujado caíram sobre sua cabeça, Nick sacudiu a poeira do cabelo divertindo-se com a cena. A porta principal jazia no saguão de entrada, sem as dobradiças. Eles passaram em cima dela e se viram no interior da casa.
— Oh, é maravilhosa, Fiona! De verdade! — disse Nick com sarcasmo, olhando ao redor. O teto estava praticamente destruído. A ripa, exposta nos lugares onde o reboco caíra. O papel de parede, descolado e dependurado em tiras. Um lustre jazia no chão, estilhaçado. O mofo escurecera os lençóis outrora alvos que cobriam a mobília. — Já chega; vamos sair daqui.
Mas Fiona não arredou o pé. Saiu daquele primeiro cômodo e atravessou as portas que davam para o segundo. Nick a seguia, achando que ela havia enlouquecido, sem entender a obsessão que aquele lugar despertara nela. Na metade do percurso, seu pé se prendeu num buraco da madeira do piso. Ele se desprendeu, xingando.
— Nick, não é incrível? — ela gritou do outro cômodo.
— É, sim, se você for um cupim — ele respondeu, cruzando as portas. Enquanto sacudia as lascas de madeira da bainha da calça, Fiona se encantava com os espelhos ornados e já quase descascados. Ele abriu a boca para reclamar da poeira que o fazia espirrar, mas alguma coisa no semblante dela o fez desistir. Até então não compreendia a obsessão dela por aquela casa arruinada, mas, observando-a melhor, vendo a emoção estampada em seu rosto enquanto ela tirava as teias de aranha, ele de repente compreendeu. Ela se identificava com aquele lugar. A casa era uma criatura que também tinha sido abandonada.
Ela inclinou-se para examinar os entalhes do console e se assustou com uma família de gatos que saiu da lareira. Eles passaram por ela, correndo na direção dos fundos, e saíram por uma vidraça quebrada. Feliz, com a mão no peito, ela os seguiu.
— Acho que tem um jardim lá fora — ela disse. — Vamos ver.
A porta estava emperrada. A fechadura funcionava, mas as dobradiças estavam enferrujadas. Juntos, eles a empurraram, até que se abriu uma fresta por onde passaram. Fiona foi a primeira a passar. Ele ouviu perfeitamente a expressão de espanto dela ao chegar lá fora.
— Oh, Nick! Depressa! Você tem que ver!
Ele se espremeu pela fresta, perguntando-se o que podia tê-la deixado tão admirada. E foi aí que ele as viu. Rosas-chá. Centenas e centenas delas. O jardim inteiro —e era enorme — estava cheio delas. Exuberantes ao sol, subiam pelos muros, espalhavam-se pelo caminho, em cima de um banco de ferro enferrujado. Ele as reconheceu de imediato. O pai dele as apreciava e as mantinha no jardim de sua casa em Oxfordshire. Rosas-chá, as mocinhas aristocráticas dos jardins. Ele se lembrava do jardineiro que contava como as ancestrais dessas flores tinham sido trazidas da China centenas de anos antes por um inglês apaixonado pela sua sedução e seu aroma inebriante. Para florescer, elas precisavam de cuidados especiais, mas aquelas floresciam em pleno calor do verão!
— Sinta o cheiro delas, Nick, têm perfume de chá! — disse Fiona. — Olhe essas aqui... já viu uma rosa como esta? Olhe o amarelo-pálido daquela... — ela caminhava entre as roseiras e enterrava o rosto nas flores como se fosse uma abelha.
Nick levou um botão ao nariz, fechou os olhos e inalou. Por um segundo, ele se viu de volta a um maravilhoso dia de verão em Oxford. Reabriu os olhos a tempo de ver Fiona correndo em sua direção. Ela ria de felicidade com uma rosa atrás da orelha acercar-se dele, jogou os braços em volta do seu pescoço e o abraçou com força.
— Meu Deus, minha amiga! Eu não sabia que as rosas a afetavam tanto!
— E como! — ela disse, segurando-o pelas mãos. — E também esses velhos e encantados casarões de Gramercy Park. E o chá! Oh, Nick, é esta! Você não vê? Esta casa será a sua galeria... e o meu salão de chá!
ELA NÃO PODERIA DISPOR apenas de cinco
minutinhos pra mim? — implorava Fiona. — Prometo que não vou abusar.
— A senhorita já está abusando. A senhorita Nicholson não recebe visitas.
— Mas eu só quero fazer umas perguntas sobre a propriedade... a casa de Oracy Park...
— Então, sugiro que a senhorita procure o advogado dela, o senhor Raymond Guioyle, no número 48 da Lexington Avenue — o mordomo da senhorita Nicholson apressou em fechar a porta. Fiona a bloqueou com o pé.
— Eu já fiz isso. Ele me disse que ela não quer alugar a casa.
— Então, a senhorita já tem a resposfa.
— Mas...
— Por gentileza, tire o pé daí, senhorita Finnegan. Bom dia.
Quando a porta se fechou, Fiona ouviu o grito de uma voz feminina dentro da casa.
— Harris, quem está aí? O que é?
— Nada de importante, madame.
Porta fechada. Fiona plantada na frente da casa da senhorita Nicholson. Bem, é o final de tudo, ela pensou, abatida. Tanto Wilcox como Guilfoyle tinham avisado que a senhorita Nicholson não alugaria a casa, mas, como uma tola, ela pensou que, se falasse pessoalmente com a mulher, poderia convencê-la a mudar de ideia. Chegou ali cheia de esperanças, mas agora tudo ia por água abaixo.
Um pé de vento tirou o chapéu dela. Ela o pegou do chão e o recolocou na cabeça.
— Que droga! — ela exclamou. Queria aquela casa. Desesperadamente. Desde que a vira, há mais de uma semana, ela não a tirava da cabeça. Claro, a casa parecia destroçada, mas, com alguns reparos, ficaria linda. Wilcox tinha dito que o encanamento estava perfeito. Depois de comprar a casa, o pai da senhorita Nicholson trocou todo o encanamento antigo, e as torneiras eram abertas com regularidade e a água jorra limpa. Os tijolos precisavam de reparos, assim como o telhado. As paredes, os pisos e acabamentos de madeira precisavam de algumas mudanças e a cozinha era antiquada mas a casa tinha uma boa estrutura. Embora a senhorita Nicholson não desse atenção para o que acontecia com a casa, Wilcox admitiu que não suportava vê-la em ruínas e que, por isso, procurou mantê-la em pé com pequenos reparos ao longo dos anos.
Ela e Nick já tinham conversado a respeito de como funcionaria a casa. Fonai ficaria com o jardim e o primeiro andar, e Nick, com os outros dois andares, um para a galeria e o outro para sua moradia. Rachariam o aluguel e pediriam um empréstimo ao First Merchants para fazer os reparos. Eles preferiam não recorrer ao banco, mas isso era inevitável, porque os dois ainda não dispunham de um bom fluxo de caixa.
Fiona investira seu dinheiro no GostoChá. Só no último mês tivera de contratar mais duas moças para trabalharem na loja, além de ter comprado uma carruagem para as entregas junto com dois cavalos para puxá-la e contratado um homem para conduzi-la. Também gastou uma pequena fortuna para desenvolver e propagar os seus novos chás aromatizados. Ela e Stuart fizeram experiências durante algumas semanas — testando e rejeitando diversos tipos de chá — e, por fim, conseguiram uma mistura forte o bastante para suportar os sabores que ela havia criado, mas não tão forte a ponto de se sobrepor a eles.
Ela também investira pesado nas ações da Burton Tea. Finalmente, os trabalhadores das docas de Londres paralisaram o trabalho. Após as agitadas reinvindicações ao longo de meses por melhores salários e uma jornada diária de oito horas, o sindicato acabou optando pela greve quando suas reinvindicações foram negadas. Os homens se uniram e entraram em greve. Todos os negócios do setor fluvial foram afetados. O preço das ações da Burton Tea despencou para a metade de do valor original e Fiona fez uso de cada dólar dos seus lucros para comprar o máximo que podia. Ela também enviou quinhentos dólares para o sindicato dos trabalhadores das docas por via anônima, Michael ficou furioso quando descobriu mas ela não ligou. Era uma doação para o pai e a mãe e Charlie e Eileen, e mandaria um milhão se tivesse.
Nick também dispunha de pouco dinheiro. Ele estava esperando a chegada do dinheiro do seu investimento em Londres, mas até aquele momento isso ainda não tinha ocorrido. Ele não tinha dúvida de que o dinheiro estava sendo retido pelo pai, na esperança de poupar o custo do envio com sua morte. Embora tivesse saido de Londres com duas mil libras, já tinha gastado a maior parte: nas taxas cobradas pelo envio das telas por navio, nas obras do espaço que a senhora Mackie alugara e na aquisição de telas de jovens pintores que ele conhecera em Nova York, pintores como Childe Hassam, William Merrit Chase, Frank Benson e outros. No fim, ele ficara com trezentos dólares.
Fiona acabou por descobrir que Nick era uma negação com dinheiro. Já era agosto, fazia cinco meses que estavam em Nova York, e ele ainda não tinha aberto uma conta no banco. Quando ela o levou para o apartamento do tio, descobriu que ele guardava dinheiro dentro de um par de sapatos marrons: as notas no pé direito e as moedas, no pé esquerdo. Ele argumentou que detestava bancos e se recusava a se aproximar de qualquer um. Ela retrucou, dizendo que abriria uma conta para ele no First Merchants. Mesmo porque, o que ele faria quando vendesse uma tela? Depositaria o cheque do cliente no sapato e esperaria que se transformasse magicamente em dinheiro vivo?
Ele lidava com dinheiro como uma criança que acredita que sempre haverá mais. Fazer dinheiro era um conceito estranho aos seus olhos. Uma semana depois de ter chegado ao apartamento de Michael, ele deu um dinheiro para lan, e pediu e o garoto comprasse algumas coisas. Incapaz de decifrar o que ele tinha escrito, Ian entrou na loja para que Fiona o lesse. Depois de ler a lista, ela entrou no quarto dele e disse que ele já tinha gastado muito e que devia apertar o cinto até que chegasse mais dinheiro de Londres. Ele se pôs embirrado. Precisava daquelas coisas. Não conseguia ler livros que não tivessem capas de couro. Ele simplesmente odiava os livros com capas de papel comuns e horríveis. Ele também precisava de um novo par de pijamas de seda. E um vidro de colônia. E folhas de papel refinadas, uma caneta-tinteiro de prata da Tiffany‘s. Era pedir muito? Ela não podia beber um chá ruim, não era o caso?
— Uma caixa de chá custa bem menos que a obra completa de Mark Twain encardenada em couro vermelho marroquino, Nicholas — ela argumentou, raivosa.
Ele não entendia como alguém podia viver um único dia sem Beluga ou um champanhe francês. Restringido pela doença, ele concordou em seguir à risca as recomendações do doutor Eckhardt, todas, exceto o champanhe. Enfraquecido e doente, ainda assim ele se sentou na cama e declarou com arrogância que era um homem e não um bárbaro, e que, se era para viver daquela maneira, ele preferia morrer. Eckhardt acabou desistindo, convencido de que a angústia que infligiria ao seu paciente talvez fizesse um mal maior que algumas taças de bebida.
Preparando-se para retornar ao Chelsea, Fiona tentava aceitar a situação. Ela e Nick tinham que recomeçar a procura de imóveis e ponto final. Mas seu coração insistia em lembrar as graciosas linhas das grades das varandas, dos janelões que permitiam muita entrada de luz, dos espelhos trabalhados e das rosas... oh, as rosas! Ela visualizava o jardim cheio de mulheres em vestidos brancos e chapéus com abas largas tomando chá. Um salão de chá naquela casa seria um sucesso, estava certa disso. Não tinha erro.
Mas já tinha falhado, ela disse para si mesma. Aos suspiros, ela decidiu que era melhor sair dali antes que o mordomo chamasse a polícia, o que certamente ele gostaria de fazer. Ela estava no meio da escada quando a porta se abriu de novo. Virou- se.
— Já estou indo — ela disse. — Não precisa me puxar pela manga.
— A senhorita Nicholson quer vê-la — disse o mordomo.
— O quê? — ela perguntou, confusa. — Por quê?
— Não tenho o hábito de discutir os assuntos de minha patroa na porta de entrada — ele respondeu com frieza.
— Desculpe — ela disse, voltando a subir os degraus.
O mordomo fechou a porta atrás deles e a introduziu no escuro saguão de entrada revestido de um mórbido papel de parede avermelhado.
— Siga-me — ele a conduziu através de um longo corredor abarrotado de retratos de homens e mulheres com aparência assustadora, e em seguida por um conjuto de pesadas portas de madeira que davam numa salinha tão escura quanto o saguão.
— A senhorita Finnegan está aqui, madame — ele disse, e se retirou, fechando a porta.
As cortinas estavam cerradas. E o lugar, escuro. Acostumada com a luminosidade, Fiona levou alguns segundos para ajustar os olhos. Por fim, ela pôde vê-la sentada num divã. Uma de suas mãos coberta de joias e veias azuis pousava sobre o cabo de uma bengala de ébano. Com a outra mão, ela afagava um cachorrinho senttado em seu colo. Usava um vestido negro de seda, com um babado de renda no pescoço. Fiona esperava encontrar uma velha senil, mas se via diante de de olhos cinzentos que a avaliavam de forma aguçada. A expressão daquele rosto enrugado e coroado pelos cabelos brancos puxados por um coque era penetrante.
— Boa tarde, senhorita Nicholson — Fiona começou a falar, com nervosismo. — Eu sou Fiona...
— Eu sei quem você é. Quer saber alguma coisa sobre a minha propriedade? — ela apontou uma poltrona com a bengala.
— Sim, madame — respondeu Fiona, sentando-se. — Eu quero alugá-la. Pretendo abrir um salão de chá no térreo, eu tenho um negócio de chá, não sei se a senhora sabe, e o meu amigo gostaria de alugar os andares superiores. Ele vai abrir uma galeria de arte — Fiona expôs os planos dela e de Nick para a senhorita Nicholson.
A mulher franziu a testa.
— Minha casa está em péssimas condições. Você não pode alugar outra?
— Eu tenho procurado, mas não consegui encontrar nada tão maravilhoso como a sua propriedade. É uma pena deixar morrer uma casa tão adorável como a sua senhorita Nicholson. Está um pouco quebrada, mas tem boa estrutura. E as rosas... oh,a senhora tem que vê-Ias! Centenas e centenas de botões. Em tons de rosa e amarelo. Elas dariam o tom do lugar. Ninguém mais em Nova York teria um salão de chá com rosas-chá no jardim. Tenho certeza de que o lugar ficaria cheio de gente.
O rosto da mulher se pôs mais suave quando ela ouviu a menção às rosas.
— Vieram da Inglaterra — ela disse. — Já faz cinquenta anos. Fui eu que as plantei. O jardineiro do meu pai queria plantá-las, mas não deixei.
Fiona já estava começando a se animar, achando que fazia progressos, quando os olhos da senhorita Nicholson se estreitaram.
— Como você sabe sobre as rosas? — ela perguntou.
Fiona olhou para o chão.
— Eu entrei na casa — ela disse, retraída.
— Você invadiu.
— Sim — ela admitiu. — Tinha uma tábua solta e eu...
— Wilcox — disse a senhorita Nicholson com desdém. — Ele deve ter enriquecido com essa tábua solta. Toda semana aparece um tolo para fazer uma oferta pela casa. Geralmente por uma ninharia. Quanto você tem, senhorita Finnegan?
— Receio que não muito. Apenas uns mil dólares. Investi uma fortuna no meu negócio. Estou tentando produzir uma nova espécie de chá, é um chá aromatizado, e isso está levando muito dinheiro. Mas está indo bem — ela acrescentou rapidamente. — Os lucros da minha linha original são grandes. Sei que posso ganhar dinheiro com esse salão de chá, senhorita Nicholson. Já tenho a cozinheira e só vou precisar de uma equipe de garçons. Depois que acabarem as obras, é claro. Eu me disponho a pagar por elas, mas espero que o aluguel corresponda às condições atuais da casa e...
Enquanto falava, Fiona notou que a senhorita Nicholson a ouvia com atenção. Ainda não me botou pra fora, ela pensou. Talvez eu a esteja conquistando. Talvez ela me dê uma chance. Mas, antes que acabasse de falar, a senhorita silenciou-a abruptamente, afirmando que não estava interessada em alugar e despedindo-se com um bom- dia.
Fiona ficou desapontada, e também irritada. Achou que a mulher tinha se divertido com ela, deixando suas esperanças aflorarem para em seguida derrubá-las. Ela se levantou com elegancia, tirou um cartao da bolsa e o pôs sobre o tampo de marmore de uma mesa.
— Se a senhora mudar de ideia, pode me encontrar nesse endereço — se, forçando um sorriso. — Muito obrigada pelo tempo cedido — não fazia a ideia se a mulher a ouvia ou não. O olhar dela focava um quadro dependurado sobre a lareira.
Fiona se dirigiu para a porta da sala, mas, antes de atingi-la, ela ouviu da senhorita Nicholson.
— Por que você está se esforçando tanto por um negócio, senhorita Fint Por que você não se casa? Uma mulher tão linda como você deve ter muitos admiradores. Não tem um namorado? Alguém que você ama?
— Tenho.
— Por que você não casa com ele?
Os olhos cinzentos da mulher capturaram os de Fiona. Era como se pudesse enxergar a sua alma.
— Eu não posso. Ele casou com outra — ela disse abruptamente, mortificada por ter admitido isso para uma estranha. — Desculpe pelo incômodo, senhorita Nicholson. Bom dia.
— Bom dia — disse a velha, com um semblante pensativo.
— Que petulância — Fiona bufava, enquanto percorria a calçada. — Bisbilhotando a minha vida. Perguntando sobre o Will e por que não me caso com ele. Isso não é da conta dela.
De repente, ela se deteve, e se deu conta com tristeza de que não tinha pensado em Will quando respondera à senhorita Nicholson. Ela pensara em Joe.
A ÚNICA JANELA DO escritório de Kevín Burdick estava suja de fuligem. As redes que um dia eram pintadas de branco tinham amarelado com o tempo e a fumaça de tabaco. Era um dia quente de verão e o ar no interior do comodo fedia a gordura e suor.
— Eu quero que você ofereça dinheiro para ela, senhor Burdick — disse William McClane Junior. — Cinco... dez mil... o que for necessário. Só quero que ela deixe o meu pai.
Burdick, detetive particular, balançou a cabeça em negativa.
— Não é uma boa jogada. E se ela não engolir a isca? E se ficar ofendida e correr direto para o seu pai? Ele não vai ter muito trabalho para descobrir quem está por trás da oferta.
— Você tem uma ideia melhor?
— Tenho, sim — disse Burdick. A cadeira de madeira rangeu alto quando ele se recostou nela. — A melhor maneira de lidar com isso é obter alguma informação sobre a garota... essa... — consultou suas anotações — senhorita Finnegan. Alguma coisa de natureza escabrosa. Depois você chega ao seu pai com a informação e alega estar preocupado. Ele rompe com a moça e agradece por você o ter alertado, sem desconfiar do grau do seu envolvimento.
Wil Junior sorriu, O homem estava certo, a tática dele era bem mais segura que tentar comprar a moça.
Burdick levou as mãos à nuca, expondo enormes manchas de suor nas axilas.
— Vou precisar de um tempo, é claro. E metade dos meus honorários como adiantamento.
— Isso não é problema — Will Junior enfiou a mão no bolso do paletó. Enquanto tirava a carteira, ele viu uma mosca pousada no resto do lanche de Burdik, um vistoso sanduíche de carne defumada e picles. Seu estômago se revirou.
— Como está indo o projeto do metrô? — perguntou Burdick.
— O prefeito ainda não decidiu. O nosso projeto é claramente o melhor, mas quantas vezes os chefões da cidade fazem a melhor escolha? É o tipo de coisa que ninlguém pode prever — ele colocou o dinheiro sobre a mesa. Burdick conferiu e o no bolso em seguida.
— Você acha realmente que o relacionamento entre seu pai e essa moça pode prejudicar as chances de vocês?
Will Junior bufou.
— E claro que não. Isso é o que eu alego pra ele.
— Então, por que estragar o romance dele? E por que você se preocupa com quem ele está transando? Com o tempo, ele acaba com ela e segue a vida adiante. Não, estou certo? Pelo que você me disse, ela não pertence ao meio do seu pai. É pouco provável que ele se case com ela.
— Esse é o problema, Burdick. Talvez ele case. Parece ter perdido a cabeça.
Burdick assentiu com a cabeça.
— Eu sei aonde você quer chegar — ele disse. — Não quer saber de ter outro irmão nãoé?
— Exatamente. Ela é nova. E certamente terá filhos. Talvez um bocado deles. Afinal, ela é irlandesa Viverá mais que o meu pai. Ele deixará tudo pra ela e seus pirralhos, e eu não verei um tostão. E isso não é justo. Os congressistas não ganham tanto dinheiro quanto os industriais.
Wil Junior já tinha uma vida luxuosa para sustentar: a casa em Hyde Park, o apartamento na cidade, toda a criadagem, o crescimento da família, o apetite insaciável de Isabelle por roupas novas, seu próprio apetite por atrizes bonitas. E a situação só podia piorar.
— Senhor Burdick, eu preciso do dinheiro do meu pai para chegar à Casa Branca. Não vou ficar parado enquanto uma cadela interesseira enfia as mãos no dinheiro dele — ele disse, levantando-se para sair.
— Ela não vai, não — garantiu Burdick.
— Tomara que você esteja certo.
Burdick arrotou.
— Confie em mim.
FIONA ESTAVA TÃO EXCITADA QUE PRATICAMENTE DANÇAVA NA calçada.
— Vamos! Não dá pra ir mais depressa? — ela apressava o tio, pegando-o braço. — Nick, Alec, vocês estão atrás dele, empurrem que eu puxo. Talvez assim ele ande mais rápido.
— Pare com isso. Estou andando o mais rápido que posso — disse Michael soltando-se da sobrinha. — Você está agindo como uma lunática.
—Vou chamá-la de Rosa-Chá. Por causa das rosas. Espere só pra vê-las! Mas não se esqueça do que lhe falei, tio Michael. O senhor tem que usar um pouco de imaginação.
— Jesus, você já disse isso umas cinco vezes! Acalme-se, Fiona!
Ela, no entanto, não conseguia se acalmar. Dois dias antes, Raymond Guifoyle, o advogado de Esperanza Nicholson, entrou na loja e mudou a sua vida. Quando Fiona o viu, seu coração disparou, sua expectativa era de que ele tinha ido comunicar que a senhorita Nicholson lhe alugaria a a casa. Mas ela estava enganada. Em vez disso, ele informou que a sua cliente queria lhe vender a casa por dois mil dólares. Uma ínfima fração do que ela realmente valia.
— Desculpe, mas não estou entendendo — ela disse,
— Fiquei tão surpreso quanto a senhorita — disse Guilfoyle. — E faço questão de dizer que tentei aconselhá-la arduamente a não fazer isso. A casa vale dez vezes mais do que ela pediu, mesmo nas péssimas condições em que está, mas a senhorita Nicholson não me deu ouvidos. Nem a ninguém mais. Ela só segue a cabeça.
Ele deixou um contrato para Fiona assinar e aconselhou-a a consultar advogado para lê-lo.
Ela teve que se dirigir de imediato até o First Merchants, em busca do empréstimo que cobrisse a compra da casa e as obras, mas Franklin Ellis lhe lhe que não podia liberar o empréstimo.
— Seria uma temeridade emprestar essa quantia para uma jovem solteira senhorita Finnegan — ele disse, acrescentando que, se o tio dela ficasse como avalista e colocasse a loja como garantia, sua decisão seria reconsiderada.
Fiona esteve a ponto de reagir furiosamente. Já tinha provado o seu valor para este homem. Salvou a loja do tio, tornando-a mais rentável, e também abriu a própria loja de chá. Por que ele precisava da assinatura de uma outra pessoa para lhe conceder o empréstimo em detrimento da sua própria assinatura? Por um segundo, ela se viu tentada a recorrer a Will, mas ele tinha viajado a negócios e, além do mais, talvez o homem quisesse que ela se lamentasse para Will. Ele se vira ferido em seu orgulho quando Will passou por cima de sua decisão por causa dela. E aggora ele tinha a chance de ferir o orgulho dela. Pois bem, ela não deixaria. Era capaz de travar suas próprias batalhas, sozinha. Michael seria o avalista do empréstimo. Ela só precisava mostrar a casa para ele.
Finalmente, eles viraram a esquina e avistaram a casa, número 32 da Irving Place.
— Lá está ela! — disse Nick com alegria. — Aquela grandona. Do outro lado da rua.
Michael olhou-a.
— Que diabo! — ele disse por fim. — O que é isso? — o tom de sua voz era de horror, mas Fiona não reparou porque estava encantada pela casa.
— Não é maravilhosa? — ela disse. — Vamos entrar. Alec, cuidado para não tropeçar.
— Isso aqui parece que foi bombardeado — resmungou Michael, entrando no vestíbulo. — Achei que você tinha feito um bom negócio ao comprar uma casa em Gramercy Park por dois mil dólares, mas agora me pergunto se a senhorita Nicholson não ganhou com a transação.
Ele percorreu todo o lugar, inspecionando os cômodos com um ar de insatisfeito. Alec foi ao jardim. Ele queria ver as rosas. Nick subiu para medir o espaço que ocuparia.
— A quem você planeja servir chá neste lugar, mocinha? — perguntou Michael, tirando a poeira do console da lareira. — Para os mortos? Acho que só eles podem apreciar esta decoração.
Fiona o fulminou com o olhar.
— O senhor não tem tino para as possibilidades — ela retrucou. — Imagine as redes pintadas de creme, as cadeiras, estofadas, e as mesas, cobertas de louças de porcelana e baixelas de prata.
Michael ainda se mostrava cético.
— Vem — ela disse, levando-o pela mão até o jardim, onde AIec examinava as rosas. — Agora... imagine este jardim em junho com rosas desabrochando e toalhas de mesa de renda branca e bules bonitos e bolos sofisticados e mulheres com seus chapéus de verão...
Michael olhava para as rosas. E também olhava para os muros de tijolos avariados, para o relógio solar enferrujado, para o mato que cobria o caminho.
— E quem é que vai limpar tudo isso? — ele perguntou.
— O Alec, com dois ou três rapazes.
— E as obras? Você vai precisar de mais dois ou três homens para isso.
— Sei disso — ela disse com impaciência. — Já tenho um carpinteiro em vista, e também um pedreiro e um pintor. Eles vão trazer os homens de que precisam.
— Suponho que virá aqui diariamente para vigiar uma dúzia de homens. né? Talvez até vista um macacão e saia dando marteladas por aí.
— Virei aqui todos os dias, mas não vou vestir macacão, não, tio Michael. Não cabem em mim. Acho que Frank Pryor, o carpinteiro, pode ser um bom capataz ela disse entre dentes. Por que o tio era sempre tão difícil? Por que não se abria de um modo mais agradável para os planos dela? Por que nunca lhe dava apoio? Por que tudo acabava sendo motivo para brigas?
— E quanto ao dinheiro? Os quatro mil dólares que você quer de empréstimo cobrirão o preço da casa e das obras. E o resto? As baixelas, os talheres de prata e a porcelana que serão necessárias. E também as toalhas, as travessas, o salário das garçonetes e sabe Deus mais o quê.
— Posso usar um pouco do meu próprio dinheiro para isso. Lembra da Ioja? E do GostoChá? — ela retrucou, com sarcasmo. — Tudo isso gera lucro, o senhor sabe. E o Nick também vai ajudar.
— Com o quê? Com a aparência bonita? Ele está quebrado, mocinha! Você mesma me disse.
O dinheiro logo será enviado pelo banco do pai dele. Ele disse que o fundo de investimento dele vale cem mil libras e que espera receber pelo menos duasmil libras de três em três meses. E questão de uma ou duas semanas mais. Ele pahara pelo aluguel dos andares superiores e me ajudará com o custo das obras. E quanto às coisas de que vou precisar, não sou obrigada a comprá-las novas. O Nick disse que posso conseguir louça e prataria em leilões e em lojas de artigos usados. Ele vai me acompanhar nas compras.
— Isso é perda de tempo e de dinheiro — vociferou Michael. — Com um dos homens mais ricos de Nova York atrás de você, e tudo que lhe passa pela cabeça é essa sua mania de chá. O que há de errado com você? McClane logo se casará você e nada disso terá a menor importância. O que você deve fazer é imaginar uma aliança no seu dedo. E não armar uma confusão por causa dessa porcaria!
Saíram faíscas de raiva dos olhos de Fiona.
— Para a sua informação, WiIl não me pediu em casamento — ela disse esquentada. — Nem ninguém mais. Eu só conto comigo mesma para cuidar de mim e tenho um irmão para criar, e ninguém paga as minhas contas senão eu mesma.
Michael gesticulou, com nervosismo.
— Por que não conserta a casa e aluga os andares? Teria um bom lucro e não precisaria se preocupar com uma casa de chá.
—Não! — esbravejou Fiona, — Ouviu alguma coisa que eu disse, seu imbecil? A casa é que vai tornar real o meu negócio com o chá. Eu já tinha explicado isso!
Eles começaram a gritar. Michael disse que não arriscaria a loja dele em uma aventura maluca. Fiona rebateu dizendo que ele não estaria com a loja se não fosse por ela. Afirmando que ela não tinha o direito de jogar isso na cara dele, Michael voltou para dentro da casa. Ela o seguiu, ainda argumentando. Ela queria a casa, precisava dela, já estava quase em suas mãos, e agora ele tentava tirá-la dela. Alec, que ouvia toda a discussão, plantou-se na passagem atrás deles, fumando o seu cachimbo. Acenou para Michael.
— Isso não pode esperar, Alec? — Michael arriscou perguntar.
— Não pode, não.
Michael o seguiu pelo jardim. Fiona manteve - se na porta, ouvindo e esperando pela chance de voltar a conversar com o tio assim que AIec o liberasse.
— O que é? — perguntou Michael com impaciência.
O velho jardineiro tirou o cachimbo da boca e apontou para as roseiras.
— São rosas-chá — ele disse.
Michael olhou rapidamente para elas.
— Eu sei.
— Em perfeitas condições de saúde, como uma mocinha escocesa — disse AIec, apontando para uma robusta vara verde. — E impressionante, quer dizer, para uma rosa-chá. E muito difícil encontrar rosas tão vigorosas como essas assim tão ao norte. A rosa-chá gosta de climas mais quentes. E olhe só pra essas, abandonadas meio do mato e da merda de gato e crescendo até as alturas. E como se as danadinhas estivessem lutando bravamente pela vida.
Alec soltou a vara e encarou Michael.
— As rosas são engraçadas. As pessoas costumam pensar que elas são delicadas frágeis. Mas algumas são pequenas malandras, brigonas e obstinadas. Mesmo um solo ruim e em péssimas condições, elas continuam a florescer. Insetos, doenças, aridez, nada disso as impede de crescer. Podando-as, elas vão brotar com resistência dupla. Algumas rosas são verdadeiras guerreiras. Na minha opinião, deve-se encorajar esse tipo de rosa.
Alec retirou-se, deixando Michael a olhar as rosas, maldizendo e abençoando o velho escocês. Alguns minutos depois, ele voltou para a casa. Fiona ainda o esperava na porta, com o semblante ansioso e esperançoso. Ele a olhou, balançou a cabeça e disse:
— Vamos logo para o banco.
OLHA O PÊSSEGO! Deliciosos pêssegos ingleses. Nada daquele lixo francês. Pêssegos doces de Dorset! Quem vai querer? Quem vai comprar?
A voz de Joe soava clara e potente pela Bruton Street, no elegante Mayfair. Já era quase meio-dia. O sol estava a pino e a temperatura, acima de trinta graus altíssima para Londres. Ele estava molhado de suor. Sua camisa, colada às costas Seu lenço azul amarrado ao pescoço, encharcado. Saíra de Covent Garden do amanhecer e agora seus músculos doíam pelo esforço que fazia ao empurrar o carrinho. Sentia-se exausto, mas feliz.
Ele estava com sete libras no bolso, sendo que duas já eram lucro. E tinha mais duas libras escondidas debaixo de uma tábua solta na cocheira de Baxter. Embora tivesse largado o trabalho com Ed Akers para começar o seu próprio negócio, Ed permitiu que ele dormisse no celeiro, contanto que continuasse alimentando Baxter. Joe ficou feliz com isso; não queria pagar por um quarto. Preferia não gastar qualquer pêni que pudesse ser poupado. Eram as suas economias para a passagem de Nova York. Ele calculava que precisaria de mais ou menos seis para a passagem de ida e volta, mais seis libras para se sustentar enquanto estava lá e outras seis para duas passagens extras, só de volta.
Dezoito libras era muito dinheiro, mas ele teria que pagar pela comida, e estadia enquanto estivesse procurando por Fiona, e não fazia ideia do tempo que levaria para encontrá-la. Talvez somente uns poucos dias, mas quem sabe até semanas. E quando a encontrasse, se por algum milagre ela não o despachasse, se aquele coração ferido ainda guardasse um pouco de amor por ele, e pudesse convencê-la a lhe dar uma segunda chance e voltar para a Inglaterra com ele. Se assim fosse, ele tinha que ter certeza de que teria dinheiro suficiente para pagar as passagens de volta para ela e Seamie.
— Ei! Joe! Joe Bristow, olhe aqui!
Joe voltou-se na direção da voz. Era Emma Hurley, da casa 20, uma copeira, uma garota de uns quatorze anos que viera de Devon para trabalhar em Londres e pensava que tudo era uma grande aventura. Estava parada no portão deentrada da criadagem e usava um vestido cinza de punhos, golas e bata brancos. Joe sorriu e empurrou o carrinho até ela. Ele gostava de Emma. Era uma garota corada e falante. Só a conhecia há duas semanas e já sabia tudo que acontecia no número 20. O patrão dela era bobo, a patroa, uma fera; a cozinheira e o mordomo viviam às turras e o novo copeiro era lindo. Emma era um verdadeiro jornal ambulante, falava de tudo para quem quer que fosse, inclusive dele. Ela falou dele para as amigas — criadas e babás das casas vizinhas — e estas, para as cozinheiras, de modo que, graças a Emma, agora tinha uma dúzia de novos freuegses só na Bruton Street.
— A garota nova arruinou a couve-flor gratinada da cozinheira — ela disse, rindo a valer. — Deixou tudo queimar! A cozinheira encheu os ouvidos dela. Você não faz ideia do que ela disse, Joe. Vou querer duas couves-flores, está bem? E um molho de salsinha. Ah, e alguns pêssegos. Dois quilos e meio, por favor. A patroa acabou de pedir sorvete de pêssego para a sobremesa do jantar desta noite. Ela é tão generosa por nos ter falado isso agora, não é? Vai ser um milagre se o sorvete gelar a tempo. A cozinheira ficou lívida por causa da couve-flor. Já ia mandar uma de nós para a quitanda quando falei que você chegaria a qualquer momento. Você salvou a vida daquela pobre garota, salvou, sim!
Joe selecionou os pedidos de Emma. Depois que ela o pagou e recebeu o troco, ele colocou um generoso saco de morangos na mão dela.
— Esses são pra você, Em. Não conta pra cozinheira — ele escancarou um sorriso para ela. — Talvez você possa compartilhá-los com um certo criado bonitão.
— Terminei com ele, Joe. Eu o flagrei paquerando a arrumadeira. Vou dividir com a Sarah, a garota nova. A cozinheira mandou que ela esfregasse o chão da copa como castigo. Ela vai precisar de um agrado esta noite. Quer dizer, se estiver viva para ver esses morangos!
— Emma! Onde você está, menina? Depressa! — uma voz chamou de dentro da casa.
— É melhor que eu vá. Você também, Joe. A Elsie, da casa 22, está acenando para você. Até amanhã. Tchau! E obrigada pelos morangos!
Joe se despediu e saiu. Fez mais sete paradas na Bruton Street antes de seguir para a Berkeley Square. As pilhas de frutas, legumes e verduras em seu carrinho vermelho com as palavras MONTAGUE‘S — ONDE QUALIDADE E CONVENIÊNCIA SE ENCONTRAM nas laterais já tinham diminuído consideravelmente. Ele estava com medo de ficar sem estoque antes de terminar sua rota. As vendas tinham sido boas naquela manhã.
Seu plano começava a decolar. No início, ele se viu desencorajado; sua ideia não foi apreendida de maneira correta. Levou algum tempo para convencer as cozinheiras e suas ajudantes de que ele não era o rapaz de entregas de alguma loja,e sim o que levava as mercadorias em domicílio — as melhores mercadorias, não se esqueça, e não aqueles repolhos velhos que o quitandeiro costumava jogar fora. Livrando-as de uma viagem. Acudindo-as nas necessidades delas.
Agora ele era aguardado em muitos lugares e geralmente com impaciência, com pés batendo no chão e até com desaforos quando ele atrasava. Seus preços eram um pouco mais altos que os dos estabelecimentos das redondezas, uma vez que ele só vendia mercadorias de primeira qualidade, mas nenhuma de suas freguesas reclamava. Elas sabiam reconhecer mercadorias de qualidade.
Ele se deteve por alguns segundos no alto da Berkeley Square para secar a testa. O carrinho era pesado, media cerca de um metro e meio de comprimento por um metro de largura, com duas rodas na dianteira, duas na traseira e um par de pegadores na extremidade. Um freio o impedia de rolar abaixo nas ladeiras. Não era fácil manobrá-lo, especialmente quando estava apinhado de mercadorias. Um pônei e uma carroça seriam uma baita melhoria. Ele poderia carregar mais mercadorias e se movimentar com mais rapidez. Com o tempo, teria uma carroça maior mas só depois de seu retorno da América. E, quando a tivesse, ele contrataria seu irmão, Jimmy, para empurrar o carrinho numa segunda rota. Formaria uma frota e ampliaria as rotas, e depois, um dia, teria uma loja. A loja com que ele sempre sonhou. E talvez, quem sabe, poderia até desfrutá-la com a garota dos seus sonhos.
Ele sentia que o carrinho ficava ainda mais pesado à medida que terminava sua rota, mas não se importava. Depois de um longo tempo, pela primeira vez estava esperançoso. E essa esperança o fortalecia. Era como se pudesse empurrar o carrinho por todo o Mayfair, por toda a Londres, por todo o país, até mesmo por toda a Escócia, se fosse o caso, para trazer Fiona de volta.
— Morangos doces e vermelhos! — ele gritava. — Para pôr no pudim, na torta, venham ver, senhoras, não sejam tímidas!
Ele já estava com quatro libras. Se tivesse sorte e os negócios continuassem bons, ele teria as dezoito libras de que precisava para ir para Nova York. E lá encontraria Fiona. Conversaria com ela e faria com que o ouvisse. Faria com que ela entendesse o quanto lamentava por tudo o que fizera. Diria que o seu desejo era passar o resto da vida ao lado dela. Diria que a amava muito e que tentaria de todas as maneiras fazer com que ela o amasse outra vez. Ele tinha que fazer isso. Ela era a coisa que ele mais desejava no mundo, e só se importava com ela. Ele se perdera de vista uma vez e com isso a perdera. Talvez tivesse a chance de tê-la de volta; uma chance que ele mesmo sabia não merecer, mas que dessa vez agarraria com unhas e dentes.
NARTIN! — gritou Will para o cocheiro da escada do prédio da prefeitura. — Para o meu escritório! O mais rápido possível! Vocâ ganhará uma nota de dez dólares se me fizer chegar antes da hora!
Ele entrou apressado na carruagem e fechou a porta. Martin estalou o chicote; Tinha dez minutos para percorrer trinta quarteirões. Tão logo disparou com a carruagem Will largou-se no assento e soltou um berro exultante. Era dele! Ele acabou ganhando. Obtivera o contrato para a primeira via subterrânea de Nova York.
Depois de anos de planejamento e meses de tentativas para provar que o seu plano era melhor que o de August Belmont, ele finalmente convenceu o prefeito e seus conselheiros a finalizar o projeto. Estava com o documento — assinado e selado — no bolso do paletó. A escavação começaria em menos de um mês. Depois de todo o tempo e esforço que jogara nesse projeto, de todo o dinheiro gasto, ele finalmente tinha o aval para começar.
Não via a hora de contar para os filhos que o contrato era deles. Eles ficariam extasiados. Essa conquista era de vital importância para WiIl Junior. Ele se dedicara demais ao projeto. Will imaginava a expressão que ele faria, seus urros de alegria quando soubesse da notícia. E, depois de contar para os filhos, ele contaria para Fiona. Há dias que não a via. Duas semanas, para ser exato. A negociação do contrato do metrô tomara cada minuto desses dias. E ela também estava ocupada com nova aquisição — a casa na Irving Place — e não tinha tempo livre. Mas, nesse ia dele a veria à noite. E a levaria para jantar, por mais que ela protestasse, por mais que alegasse estar sem tempo. Essa noite eles celebrariam. Somente os dois. Claro que Nick estaria disponível para acompanhá-los. Ele era mais fácil de se livrar, que Mary. Will mal podia esperar para estar com Fiona, sentar- se à mesa à sua frente e contemplar aqueles deslumbrantes olhos de safira; e, mais tarde, tomá-la nos braços, mesmo que ela não quisesse ir para a cama.
Recostou-se no banco e fechou os olhos, lembrando-se da noite em que quis fazer amor com ela. Pensava nisso com muita constância. Ardia de desejo ao se lembrar dos lábios suaves dela, da pele desnuda daquele maravilhoso corpo. Só pensar em como ela estava linda naquela noite, semidespida e com os cabelos soltos, ele sentia as pernas bambeando. Desejava-a como nunca desejou outra mulher em toda a sua vida. E ele tinha precipitado as coisas. Deixou-a assustada. fora um bronco. Cercando-a como um cachorro, querendo que fosse para a cama com ele sem nem mesmo dizer o que sentia por ela, antes mesmo de dizer que a amava. Ela não era como as suas amantes, mulheres mundanas e sofisticadas dispostas a terem um caso. Era uma garota de dezoito anos. Inexperiente e insegura de si mesma. E igualmente insegura quanto a ele.
A coisa que mais o aborrecia é que ela também o quis. Ele sentiu isso no seu beijo,como ela se agarrou nele. Ele tinha feito com que ela o quisesse e arruinou tudo quando demonstrou toda a finura, toda a sensibilidade de um touro no cio.
Ele havia dormido com quantas mulheres que não amava? E agora que estava apaixonado — caído de amor — por uma, ela não dormiria com ele. Não depois de como ele se comportou. Não até que se casasse com ela. E esperar até que ele a apresentasse para a sua família. E ainda teria que esperar que Will Junior assimilasse a ideia de que ele cortejava uma mulher de outra classe. O garoto estava de pé atrás, preocupado com a possibilidade de um escandalo, com os efeitos de um escândalo sobre o contrato do metrô...
...o contrato do metrô.
Will encostou-se ereto no banco.
Agora, o contrato do metrô era seu. Ele não só provou que Belmont estava errado, como também fez o mesmo com seu filho. As objeções de Will Junior a Fiona eram inteiramente infundadas. O relacionamento deles não causara escândalos. Ela não tinha afetado nem o prefeito nem os possíveis investidores. Na hora em que mostrasse o contrato para o filho, ele certamente cairia em si. E deixaria de ter um comportamento truculento e assentiria em conhecer Fiona. Afinal levou quarenta e cinco anos para encontrar a mulher que ele amava. Quem podia saber quanto tempo ele viveria? Ele satisfizera as demandas de sua família e, tendo ganhado o projeto do metrô, proporcionaria mais renda e maior prestigio aos filhos, agora era o momento de ter o que queria.
Ele bateu na janela que o separava do cocheiro.
— Pois não, senhor? O que é? — perguntou Martin, abrindo a janeira.
— Eu tenho que dar uma parada antes de seguir para o escritório — Martin mostrou um semblante contrariado. — Não se preocupe, Martin, os dez dólares ainda são seus! Leve-me até Union Square!
— Onde, senhor?
— Union Square!
— Qual endereço, senhor?
— Para a Tiffany‘s, Martin. Depressa!
— VOCÊ SABE QUE O PETER HYLTON ACHA QUE NÓS SOMOS UM casal — disse Nick para Fiona do topo de uma escada de madeira. Experimentava diferentes cores em uma das paredes, embora estivesse mais coberto de tinta que qualquer outra, — Li a coluna dele de hoje. Fez comentários a respeito de nossa sociedade no negócio, dos seus planos para o salão de chá e dos meus para a galeria, e completou afirmando que somos sócios no amor há muito tempo. Tomara que WilI fique com ciumes. Você acha que isso vai acontecer? Se for assim, faremos um duelo por você, Fi! Imagine, pistolas ao amanhecer. Não é excitante?
— Peter Hylton é um idiota e você é outro — disse Fiona, tirando um balde de gela de uma caixa. Estava suada e suja, com as mangas arregaçadas e a saia amarrada. Seus pés doíam e transpiravam porque estiveram calçados nas botas o dia inteiro, e horas antes ela se livrara das botas e das meias. Era um balde pesado e ricamente ornamentado com figuras de flores e animais, tendo duas cabeças de Baco como alças. — O que isso esta fazendo aqui? — ela perguntou. — Achei que tínhamos decidido não comprá-lo.
— Nós decidimos comprá-lo.
— Nós? Ou você? Parece que aqui será um salão de chá, Nick. Isso não tem utilidade para mim.
— Tente imaginá-lo sobre o aparador dourado que encontramos. Polido e cheio de morangos no verão. Ou no Natal, repleto de uvas e romãs caramelizadas. Ficara deslumbrante, Fi. Além disso, não é nem americano nem de 1850, como afirmou o antiquário. Ele é inglês. É um George Terceiro e vale o dobro do que pagamos.
Fiona suspirou, colocou o balde de gelo no chão e começou a revirar o fundo da caixa. As compras que eles tinham feito numa loja de antiguidades em East Side tinham chegado pela manhã. E agora ela as desempacotava. Tirou da caixa um conjunto de pratinhos de prata que estava enfiado dentro do balde. Nick insistira que ela o comprasse. Eles o acharam entre as coisas recém-chegadas de uma mansão da Madison Avenue cujo dono tinha falecido. Enquanto Nick se encarreda porcelana e da roupa de cama e mesa, ela vasculhava a prataria. Encontrou três baixelas incompletas e uma baixela de prata de lei completa, e decidiu-se pela última. Não era tão boa quanto as outras três, mas pelo menos combinava.
— Não seja banal — disse Nick. — Combinar prataria é coisa de maitre e de novo-rico. Leve as três baixelas incompletas.
Enquanto os operários trabalhavam na casa nas últimas duas semanas, Fiona e Nick percorriam antiquários e brechós em busca do que precisavam. Encontraram peças de mobiliário maravilhosas — duas escrivaninhas de ébano e duas poltronas idênticas para Nick, e canapés de damasco para o conforto dos clientes dele. E para Fiona, um aparador dourado estilo Luís XV para guardar bolos e itens de confeitaria, cadeiras com recosto alto, mesinhas de chá estilo rainha Anne, móveis de ferro para o jardim, porcelana Limoges, roupa de mesa de linho Frette e quatro pares de cortinas acetinadas seminovas com um lindo tom verde-claro; tudo isso por uma fração do que se teria que pagar se fossem novos.
A obra no número 32 da Irving Place progredia de maneira acelerada, embora não sem os ocasionais desastres imprevistos; um cano de descarga enferrujado, uma goteira no telhado e vigas destruídas pelos cupins. A casa consumia com muita rapidez o dinheiro do empréstimo que ela pegara no First Merchants, e isso a deixava aflita. Comandar os operários — obrigá-los a fazer exatamente o que ela queria e por vezes ter que repetir as ordens — era algo que a deixava exasperada. E ter que transitar diversas vezes entre a 8th Avenue e a Irving Pace a deixava exaurida. Mesmo assim, ela se sentia incrivelmente feliz. Dormia e acordava excitada toda manhã, pensando no seu salão de chá, no seu Rosa-Chá, em como ele ficaria extraordinário. E todo dia, quando chegava lá, ela rapidamente percorria os cômodos para ver o que tinha ficado pronto no dia anterior, e seu coração se enchia de orgulho e alegria. O Rosa-Chá era seu filho. Ela concebera e nutrira a ideia e logo a veria desabrochar. Diferentemente do armazém, o salão de chá era seu, só seu.
— O que acha da cor, Fi? — chamou Nick do seu poleiro. Naquele dia, eles tinham estado bem cedo com o pintor e Nick mandou que ele fizesse misturas para as paredes dele e dela. — Eu quero um branco suave para a minha galeria. E um verde primaveril para o acabamento de portas, janelas e rodapés — ele disse para o homem. — Não muito verde nem muito amarelo. Suave, mas não suave a ponto de não aparecer. Algo assim próximo da cor do aipo, mas com um toque de bege. E para o salão de chá é preciso uma cor creme, com um leve tom de rosa. Um rosado feminino, nada muito rosa nem muito laranja. Alguma coisa no tom de uma pétala de rosa não de um damasco — Fiona desconfiou que o homem sentia gana de matá-lo.
Ela olhou para as amostras de cores nas paredes e escolheu a mais suave, um bege aconchegante com um leve toque de rosa.
— Essa também é a minha favorita — ele disse. Ela o olhou e reparou nas olheiras escuras sob os seus olhos. Já eram quase nove horas. Já estavam ali há mais de doze horas.
— Vamos embora. Agora mesmo. Você precisa dormir.
- Mas eu ainda não terminei — ele protestou.
— Amanhã você termina. Você está cansado. Está com cara de exausto. Não quero ver você se exaurindo tanto, Nick. Estou falando sério. Você sabe bem o que aconteceu na última vez.
— Mas eu estou bem...
— Nicholas Soames, você não poderá abrir a galeria se estiver morto! — ela disse, com veemência.
Ele acatou as palavras dela e desceu da escada. Tampou as latas de tinta e colocou os pincéis numa jarra de solvente.
— E você? Você também precisa descansar — ele disse.
— Não demorarei muito. Vou desempacotar algumas coisas e depois volto pra casa.
Nick lhe deu um beijo de boa-noite, manchando o rosto dela de tinta e subiu para os seus aposentos. Tão logo ele saiu, Fiona alongou seus membros cansados tentando relaxar a musculatura. Estava quase acabando de desempacotar quando um a movimento no jardim chamou sua atenção. Eram as rosas. Das novas janelas já instaladas, podia vê-las, balançando ao sabor da brisa da noite. Incapaz de resistir, eIa saiu. Aquelas rosas eram criaturas dela e Fiona pertencia a elas. A medida que percorria o jardim, imaginava que o balanço das rosas era uma acolhida especial para ela.
O céu estava claro e cheio de estrelas. O ar esfriava e a grama afofava seus pés descalços. O aroma de uma rosa mais próxima deixou-a inebriada. Ela aninhava o botão amarelo tênue em seu rosto, desfrutando a maciez das pétalas, quando ouviu o som de passos atrás de si. Não se voltou. Ela sabia quem era.
— Pensei que já tinha mandado você pra cama. O que está fazendo aqui?
— Essa acolhida não foi das melhores, não é?
Fiona virou-se com rapidez.
— Will! — ela exclamou. Fazia dias que não o encontrava.
— O Nick me deixou entrar. Toquei a campainha errada. Mas olhe só você! — ele exclamou, rindo e procurando uma parte limpa no rosto dela para beijá-la. — Você esta imunda! Estou pensando em levá-la para jantar. Para celebrar. Mas, do jeito que está, duvido que alguém do Delmonico‘s deixe você entrar. Acho que seria barrada até num botequim vagabundo. Mas o que você andou fazendo?
— Trabalhei aqui o dia inteiro. O lugar está entupido de poeira. E para completar o Nick me sujou de tinta. O que estamos celebrando?
Will escancarou um sorriso.
— A via subterrânea McClane. Conseguimos o contrato.
Fiona exultou de alegria, genuinamente feliz por ele. Ela sabia o quanto ele se esforçara e como isso lhe era importante.
—Oh, Will, parabéns! Estou tão contente por você! — ele ergueu-a nos braços, com os protestos dela de que iria sujá-lo, e girou com ela. Quando a pôs no chão, ela o pegou pela mão e o levou para ver o banco de ferro que tinha comprado. — Conte tudo. Quero saber de todos os detalhes!
Ele descreveu as duas últimas semanas, todo o trabalho, todas as reuniões e argumentações e persuasões. Falou sobre aquele dia, o que havia sentido quando finalmente o prefeito lhe disse que o projeto dele saíra vitorioso. Como os filhos receberam a notícia quando ele chegou com as boas-novas. Como o filho mais velho insistiu para que todos fossem brindar no Union Club. E como acabaram bebados, só um pouco bêbados. Ele próprio ainda estava meio bêbado. E ainda Will Junior se desculpou pelo péssimo comportamento que teve e como ele disse que queria conhecer Fiona, sugerindo que o pai a levasse para a casa de campo para que ela conhecesse a família inteira.
Fiona ficou surpresa e grata quando soube que o rapaz havia mudado de ideia. Isso significava que, finalmente, ele aceitava o relacionamento deles. Ela sabia o quanto a recusa do filho feria o pai. Mas isso não a fez se sentir inteiramente bem.
— Vamos nesse fim de semana — disse WiIl. — Leve Nick e Mary e um batalhão inteiro de policiais como acompanhantes, caso isso deixe o seu tio feliz.
— Eu adoraria, Will, mas marquei com os pintores para que começassem a pintar no sábado. Que tal no outro fim de semana?
— Não, terá que ser nesse fim de semana, eu insisto — ele pegou a mão dela, e com seu lenço retirou algumas manchas de tinta. — Você está trabalhando muito, Fiona. Trabalhando demais. Não quero que você trabalhe tanto. Nunca mais. Não quero que você continue trabalhando desse jeito. Eu quero cuidar de você, quero mimá-la e afastar qualquer preocupação da sua cabeça.
Fiona o olhou como se ele tivesse enlouquecido.
— Will, o que você está querendo dizer?
Em vez de responder, ele a tomou nos braços e beijou-a com intensidade, tão intensamente que ela perdeu o fôlego.
— Senti tanto a sua falta. Nunca mais ficarei tanto tempo longe de você.
— Isso não vai acontecer, Will — ela disse, ao mesmo tempo em que acariciava o rosto dele, se perguntando se teriam sido os drinques que ele tomara com os filhos que haviam causado aquele comportamento estranho. — Agora, você já tem o contrato, e qualquer dia desses o meu salão de chá ficará pronto. Estará aberto daqui a pouco tempo e não terei que dispensar tantas horas para ele. Vou ter de novo minhas noites livres e...
— Eu quero mais que as suas noites, Fiona. Quero beijá-la quando você acordar de manhã em nossa cama. Quero desfrutar todas as refeições com você do outro lado da mesa. Quero chegar do trabalho no final do dia e poder ver o sorriso lindo, e os nossos filhos correndo para me receber.
WiIl enfiou a mão no bolso e tirou uma caixinha. Embora a noite estive cálida, de repente Fiona tremeu de frio. Ele abriu a caixa, pegou um estonteante anel de brilhante, colocou no dedo dela e disse:
— Fiona, você quer casar comigo?
— JESUS CRISTO! VEJA O TAMANHO DISSO! E tão grande quanto um ovo! — exclamou Michael.
— Pare de exagerar — disse Fiona.
Ele retirou o enorme solitário de brilhante de dentro da caixa e mostrou para Mary.
— É maravilhoso, Fiona. Por que você o está guardando na caixa? Por que você não o usa? — ela perguntou.
— Acho que não devo.
— Por que não? — perguntou Michael. — Ele é seu, não é?
— Não, de verdade. Pelo menos até agora. Eu... eu ainda não aceitei.
Michael olhou horrorizado para ela.
— Você deu o fora nele?
— Não...
— O que você fez, então?
— Disse que precisava de um tempo para pensar.
—Pensar se eu quero ou não passar o resto da minha vida como senhora McClane - ela disse, compenetrada. — É a escolha de um marido e não de um casaco novo. O senhor sabe, trata-se de um casamento. De votos, de compromisso. Tenho me sentir segura. Eu quero saber do fundo do meu coração se ele é o homem da minha vida.
— E se ele não for, quem será? O rei de Sião? Com toda a certeza eu lhe digo, que se você não quiser se casar com Will McClane, eu mesmo me caso com ele. Ele vai tratar você como uma princesa, ora se vai. Você não terá mais que se preocupar com chás e costeletas de porco. Vai se fartar de seda pelo resto da vida.
— Modere suas palavras, Michael! — Mary o repreendeu. — É uma questão delicada. Fiona tem todo o direito de dispor de um tempo. Afinal, é a maior decisão que ela terá que tomar em toda a sua vida.
— Mas ele é um bom homem, e é louco por ela! O que mais ela pode querer?
Fiona suspirou. Por que eles não estavam dormindo? Ela achou que a casa inteira estaria dormindo quando chegasse, mas Michael e Mary estavam sentados na sala de visitas tomando um licor. O avançado da hora e o rosto afogueado dela deixaram transparecer que tinha acontecido alguma coisa. Ela queria manter a proposta de Will em segredo, para poder refletir de maneira mais íntima, mas eles a pressionaram e ela acabou falando. Michael pôs o anel de volta na caixa e a devolveu para ela.
— Meu conselho é que você ponha este anel no dedo e dê o seu sim antes que ele pense duas vezes — disse Michael. — Antes que ele perceba como você é cabeça dura e geniosa.
— Eu lhe agradeço muito.
— Só estou tentando orientá-la. Afinal, o que direi para o meu irmão quando encontrar com ele no céu?
— O que o faz pensar que o senhor vai pra lá? — perguntou Fiona.
Michael ignorou a ironia.
— Ele vai me dar uns cascudos e dizer: ―Michael, por que você não a orientou? Por que permitiu que ela desperdiçasse a vida com essa loucura de salão de chá?‖.
— Não estou desperdiçando a minha vida! Eu adoro o Rosa-Chá! E também o GostoChá e também o armazém.
— Nossa, mocinha, isso não é trabalho para mulheres. Trabalho de mulher é ter filhos e cuidar da casa. E isso que faz as moças felizes e realizadas, e impede que elas fiquem voluntariosas e rabugentas como você. Você tinha mesmo que ter feito isso, claro que tinha. Olhe, se você perder o McClane, tão cedo não vai encontrar outro como ele.
— Eu vou pra cama — disse Fiona, irritada.
Mary alcançou-a no corredor.
— Não dê atenção a ele — ela disse, com gentileza. — Ele só quer vê-la feliz e estabelecida, só isso. Você deve ouvir a voz do seu coração. Isso é o que interessa— deu-lhe um beijo maternal e recomendou que dormisse. De repente, Fiona sentiu uma terrível falta da mãe. Sua mãe lhe diria as palavras certas e a deixaria aliviada. De que forma ela deveria agir? Como saber o que era mais certo?
Mary já estava no meio do corredor quando Fiona a chamou.
— O que é, querida?
— O que foi que seu coração lhe disse? Quando o seu marido a pediu casamento?
Mary sorriu.
— Ele me disse que o sol nascia e se punha só por causa dele, e que os pássa cantavam somente para ele, e que eu não poderia viver um único dia sem ele. Você conhece essa sensação?
— Sim — disse Fiona. — Eu conheço.
Já dentro do seu quarto, ela colocou a caixa do anel sobre a cômoda, acendeu o lampião e graduou a chama. Estava fatigada e queria dormir. Desabotoou a blusa e tirou a saia e pôs as roupas no encosto da cadeira. Depois disso, seus olhos pousaram outra vez na caixinha do anel. Abriu-a e enfiou o anel no dedo. O diamante brilhava como se fosse uma estrela colhida no céu e colocada no anel. Era perfeito, definitimente impecável, e parecia tão deslocado em sua mão cheia de cortes e grosseiramente vermelha. Ela o tirou do dedo e guardou numa gaveta da cômoda.
Ao cruzar o quarto para pegar a camisola, viu seu reflexo no espelho. Na frente dele, de camisola e anágua, ela soltou seus negros e longos cabelos e os deixou sobre os ombros. Will tinha dito que ela era linda. E ela se perguntou: será?
Mirou-se com atenção, tentando ver o que ele tinha visto que o fez querer beijá-la e fazer amor com ela. Apalpou a cintura, segurou os seios e os ergueu. Tirou as calçolas, desabotoou a camisola e timidamente olhou seu corpo desnudo. Sua pele era macias e elástica, abençoada pelo brilho suave da juventude. Seus membros eram fortes e delgados. Deslizou a mão no ventre, imaginando-o cheio e redondo. Will tinha dito que queria ter filhos com ela. Fiona faria dezenove anos na próxima primavera. Muitas com a idade dela já estavam casadas, algumas já eram mães. Se ela se casasse ele, logo seria mãe. Até que seria bom ter um marido. E um bebezinho para cuidar.
Ela fechou os olhos e tentou se imaginar na cama com Will, visualizou o rosto e os lábios dele em seu corpo, acariciando-a. Mas eram azuis os olhos castanhos que ela tentava imaginar. O cabelo despenteado e longo era louro. Os Iábios que sussurravam seu nome não eram os de Will. ―Eu te amo, Fi‖, diziam esses Iábios. ― E sempre vou te amar.‖ Ele era aquele para quem o sol nascia e se punha, para os pássaros cantavam. Aquele cuja falta a fazia morrer.
— Não — ela sussurrou com veemência. — Vai embora. Por favor, vai embora.
Já fazia algumas semanas que ela havia pensado nele e se permitido relembrar seu rosto e sua voz. E agora tentava afastar essas imagens, mas elas insistiam em voltar. Irrompiam de seus esconderijos e fluíam sem que fossem convidadas e desejadas, um milhão de lembranças de Joe: o modo como ele olhava para o rio, querendo vê-la ao sol; o som de sua risada; seu cheiro quando chegava suado do mercado, ou depois do banho, aos domingos; a sensação do coração dele batendo sob as mãos dela. O poder, a força e a nitidez dessas lembranças a deixavam atordoada. Era como se ele estivesse ali no quarto com ela, como se ela pudesse esticar os braços e tocá-lo. Mas ela sabia que, tão logo abrisse os olhos, essas lembranças não estariam mais ali, nenhuma delas. E ela estaria só. As lágrimas brotados seus olhos. Ela chorou de dor e saudade.
Fiona focou seu pensamento em Will, em todas as suas admiráveis qualidades na tentativa de se convencer de que agora o amava e não a Joe. Mas seu coração não ouvia. Estava emparedado e fechado. Há muito tempo ele fizera a sua escolha e fora rejeitado. E agora o coração doía dentro dela, quebrado e vazio, e gelado como pedra.
Ela abriu os olhos e de novo mirou seu reflexo. Viu um rosto molhado de lágrimas, de tristeza e raiva. Viu um corpo que por ora era elástico, mas que um dia perderia o viço. Viu uma jovem que um dia seria uma velha, frágil, entrevada e sozinha. E se deu conta de que, se não expulsasse Joe do seu coração de uma vez por todas, ela nunca aceitaria o amor que Will lhe oferecia e acabaria exatamente como a senhorita Nicholson, desperdiçando a vida com um luto por alguém que não morrera.
Rapidamente, vestiu de novo as roupas e tirou a caixinha da gavera da cômoda.
Abriu-a e colocou o anel em seu dedo, Deu uma pausa de alguns segundos enquanto ouvia a porta do seu quarto. A casa estava em silêncio. Mary tinha subido para o seu apartamento. Michael já estava dormindo. Ela pegou a bolsa e saiu do quarto e da casa sem fazer ruído, determinada a enterrar o passado e abraçar o futuro.
— VOCÊ NÃO PODE CAVAR LÁ, JÁ LHE FALEI ISSO, HUGH — disse Will. Ele estava na saleta do seu quarto, apertando o bocal do seu negro telefone como se quisesse estrangulá –lo. — Como é que você vai dinamitar? Explodirá o terminal Grand Central e todo East River! Usaremos o método de cortar e cobrir. Abra um buraco, disponha os trilhos, feche o buraco... o quê? Não estou ouvindo... espere...
Will bateu o fone na escrivaninha, jurando que a recém-formada companhia McClane Communications daria um sonoro pontapé na bunda da American Bell. Quando a comunicação foi restabelecida, ele terminou a conversa com o prefeito, perguntando- se se o homem não tinha nada melhor a fazer do que se ocupar com o metrô à meia -noite de sábado. Ele mesmo já estava de roupão, pronto para se retirar para o seu quarto com uma taça de vinho e um livro nas mãos quando o telefone tocou.
Agora se via envolvido em uma discussão em torno da engenharia subterrânea, quando tudo o que queria era deitar e cuidar do seu orgulho ferido. Naquela mesma noite, mais cedo, ele tinha pedido Fiona em casamento. Achava que ela pularia em seus braços e aceitaria efusivamente. Mas, em vez disso, ela pediu um tempo para pensar. Ela o beijou e disse que se sentia honrada. E também disse que o amava eele acreditou. Mas, quando a abraçou, ele a sentiu rija, de um modo defensivo que lhe erbastante familiar. Ela se afastou, como sempre fazia quando ele se achegava demais.
— Está me ouvindo agora? Otimo. Perturbador? Sim, é claro que será. Fazer uma linha subterrânea sob a cidade causa transtornos.
A súbita aparição do mordomo à soleira da porta o deixou surpreso. Ele achava que o homem já tinha ido para a cama.
— Chegou alguém que quer vê-lo — sussurrou o mordomo.
— Quem? — perguntou WilI, sem falar. Primeiro, o telefonema do prefeito e agora um visitante. A essa hora da noite? O que há de errado com essa gente?
— É a senhorita Finnegan, senhor.
Will levantou o dedo, fazendo sinal para que o homem permanecesse no lugar. As vezes, o péssimo serviço da Bell era providencial.
— Hugh, não estou ouvindo-o... a linha está caindo outra vez. O quê?Não estou ouvindo nada... — ele pôs o fone no gancho. — Se o telefone tocar, não atenda - passou pela porta, foi até o corredor, desceu a escada e chegou ao vestíbulo. Fiona estava lá. Com os cabelos soltos e o rosto afogueado e suado.
— O que houve? — ele perguntou, alarmado. — O que há de errado? Você esta sem fôlego!
— Eu... eu corri — ela respondeu, ainda ofegando.
— Correu? De onde?
— Lá de casa.
— Você, o quê? Correu pela 8th Avenue inteira? Fiona, você é louca? Nesta hora tem todo tipo de gente nas ruas. Podia ter acontecido alguma coisa com vocé
— Não brigue comigo, Will; não consegui encontrar uma carruagem. Tive que vir... eu... — ela estava tão sem fôlego que não conseguia terminar a frase. — Will... — ela gaguejou. Enterrou as mãos no cabelo dele, puxou o rosto dele para o dela e o beijou. — ... eu queria lhe dizer que aceito! Sim, eu quero casar com você. Will estava surpreso com a presença de Fiona em sua casa e confuso com a virada súbita da situação.
— Fiona, eu... eu não sei o que dizer. Estou nas nuvens... mas, você está certa disso? Pensei que você queria um tempo.
— Não quero mais. Mudei de ideia. Quero ser sua esposa. Se ainda me quiser.
— É claro que quero. Mais do que qualquer coisa no mundo — ele a estreitou nos braços, emocionado por ela ter corrido até lá para dizer que o queria. Quando ela lhe pediu um tempo, ele achou que ela só queria encontrar um jeito de descartá-lo educadamente. E agora estava ali, nos braços dele, fazendo com que o seu mais profundo desejo se tornasse realidade.
— Sente-se — ele disse, envergonhado pela voz embargada. — Você está arfando como um cavalo de corrida. Gostaria de um copo de vinho? Acabei de abrir a garrafa. Está no meu quarto. Sente-se no estúdio que eu já trago. Ou você quer alguma coisa gelada?
— O que eu queria mesmo era um bom banho — ela disse, ignorando a sugestão de Will de esperá-lo no estúdio. Ela o seguiu pela escada.
— Um banho? — ele se virou, viu que ela se dirigia para o banheiro e se perguntou se toda aquela corrida não tinha afetado o juízo dela. — Acho que você devia tomar alguma coisa e depois eu a levo para a casa. Já é muito tarde.
— Eu não vou para casa — ela disse, tranquilamente. — Vou passar a noite aqui.
Will, que segurava a garrafa de vinho, colocou-a bruscamente de volta.
— Veremos — ele retrucou. — Você está realmente segura quanto a isso?
— Estou, sim — ela atravessou o quarto e o beijou mais uma vez. Ternamente. Intensamente. Depois, desabotoou e despiu a blusa, tirou a saia e as botas e ela ficou na frente dele apenas com a roupa de baixo. Seu corpete, empapado de suor, aderira à sua pele. Ele podia ver através do tecido o contorno dos seios de Fiona, a sombra escura dos mamilos. Seu desejo era levá-la para a cama e fazer amor com ela. Naquele segundo. De imediato. Sem nem mesmo se deter para tirar o roupão. Mas ele não podia. Tinha de se controlar. De alguma forma ele tinha que refrear o impulso de agarrá-la.
— Will, eu corri por quarteirões e quarteirões. Estou suada como um estivador. Será que posso tomar um banho? Tem alguma banheira neste seu palácio? Ou terei que esquentar a água para tomar um banho de cuia?
— Não, é claro que não — ele disse, sorrindo. — Não aqui.
Ele a guiou pelo seu quarto — uma ocupação masculina — até o banheiro, um enorme aposento todo de mármore carrara branco com um tapete persa no chão; duas pias, grandes espelhos nas paredes e uma imensa banheira de mármore no centro.
Ele abriu as torneiras da banheira e procurou alguma coisa nos armários para aromatizar a água. Não havia nada doce nem floral. O sândalo serviria. Despejou os sais de sândalo na água, observou enquanto se formava a espuma, e em seguida pegou algumas toalhas e deixou-a sozinha no banheiro. Alguns minutos depois, preocupado com a possibilidade de ter esquecido alguma coisa, ele bateu à porta e disse:
— Você precisa de alguma coisa?
— Estou bem. Só um pouco sozinha.
— Posso fazer companhia? Prometo que não vou olhar.
Fiona riu.
— De qualquer forma, você não veria nada. A banheira está cheia de espuma. estou me sentindo como se estivesse sentada num merengue. Você colocou muito sal na banheira?
— Acho que exagerei — ele disse com timidez enquanto entrava no banheiro. - Desculpe, quem sempre faz isso é o camareiro. Quer um pouco de vinho? — puxou uma cadeira para o lado da banheira e estendeu seu copo de vinho para ela.
Fiona tomou um gole, fechou os olhos e suspirou de prazer. Will pegou uma esponja e esfregou o pescoço e os ombros dela.
— Isso é tão bom — ela disse. Ele passou a esponja em seu rosto, e brincou dizendo que ela ficaria limpinha.
Ela tomou outro gole de vinho e disse em seguida:
— Estou me sentindo aqui como se estivesse num castelo, Will. Exatamente como uma princesa. A salvo do mundo. E de todo mundo.
— Você sempre estará segura comigo. Não deixarei que se magoe com nada. Nunca. Eu juro — ele se inclinou e beijou a boca molhada de Fiona. Ela estremeceu. A água estava esfriando.
— Você está com frio. Vou pegar uma toalha maior.
Ele se levantou e foi até um grande armário castanho que ocupava uma parede inteira. Abriu e fechou várias portas, perguntando-se onde estavam guardar as toalhas maiores.
— Ah! Achei! — ele disse. Ela se levantou de costas para ele. A água escorria pela sua pele. Ele viu a longa e graciosa linha de sua espinha, a curva estreita de sua cintura, suas nádegas arredondadas e rosadas pelo banho. — Controle-se, WiII — ele murmurou para si mesmo. — Controle-se.
Contornou a banheira e entregou a toalha. Ela cruzava os braços sobre seios. Os cabelos molhados grudavam-se em sua pele. A água escorria pelo delicado ventre e descia pelos quadris e coxas de marfim. A água também escorria pelo tufo de pêlos negros entre as suas coxas. Ele fez força para não fixar o olhar mas não se conteve.
— Meu Deus, olhe só você. Fiona, você é tão adorável. Tão adorável.
— Sou? — ela falou com uma voz tão tênue e tão vulnerável que fez o sangue dele ferver. Ele a olhou no fundo dos olhos, estavam arregalados, líquidos e desoladamente inseguros.
— E, sim. E, se não sair daí, vou acabar fazendo amor com você na banheira.
Ela riu e saiu da banheira. Ele pôs uma enorme toalha turca em seus o e a fez sentar-se na privada. Enrolou outra toalha nos cabelos dela e começci secá-los. Ela se secou toda e levantou-se. E ele estendeu-lhe um roupão.
— Eu não quero isso — ela disse, desvencilhando-se das toalhas. Não havia mais incerteza em seus olhos. Agarrou-o pela cintura e puxou o roupão dele pelos ombros. Ele estava nu debaixo do roupão. Ela pressionou seu corpo contra o dele, e a sensação do corpo dela desnudo fez com que ele tivesse uma rápida ereção. Ela acariciou os pelos do peito dele e o beijou nessa região.
— Eu quero você, WiIl — ela sussurrou. — Faz amor comigo.
Ele a levou para a sua enorme cama de casal. A colcha e as cortinas eram de um tecido acetinado azul e, contra elas, Fiona parecia uma escultura de Vênus.
A princípio, as mãos dela mostravam-se hesitantes e timidas. Ela as deslizou pelo peito dele e pelas costas, até as nádegas. Isso era mais do que ele podia aguentar. Afastou as mãos dela, ergueu-se e procurou por algo na mesinha de cabeceira. Depois, estendeu-se ao lado dela, tomou-a nos braços e beijou-a, apertando o seu corpo o máximo que pôde. O desejo, o gosto e o perfume dela o deixaram enlouquecido. Ele não conseguia mais se controlar. Tentou se segurar, tentou ser delicado, mas a sensação de estar dentro dela foi mais forte e rapidamente tudo estava terminado.
— Will — ela disse, alguns segundos depois. — Você não o retirou?
— Não retirei o quê?
— O que você acha? — a voz dela estava em pânico na escuridão.
— Está tudo bem, Fiona — ele disse, acalmando-a. — Eu tomei cuidado — obviamente ela não era virgem, mas era inexperiente. Quem teria feito amor com ela, ele se perguntou, algum rapazola idiota? Ele mostraria a ela o que era um verdadeiro amante.
— Tomou cuidado? Como? — ela perguntou.
— Um truque francês — ele respondeu, sentando-se para remover a camisinha usada. Tirou uma nova de sua gaveta e explicou como é que o preservativo funcionava. E acrescentou. — Desculpe, querida. Não consegui me segurar, bem que tentei — colocou uma camisinha nova. — Em todo caso, foi só um treino. Vai ser melhor da segunda vez. Prometo — segurou o rosto dela, beijou-a e depois deslizou as mãos para dentro das coxas dela.
— Vamos fazer de novo?
— Mmm-hmm. E de novo e de novo. Até que você implore por piedade.
Ela soltou uma risada que foi substituida pelos suspiros à medida que ele introduzia os dedos dentro dela com delicadeza e a fazia acelerar a respiração, o que indicava que ela estava pronta para recebê-lo. Depois, ele afastou a sua mão.
— Oh, Will, não... — ela murmurou. — Não, pare, por favor...
— Shsshh — ele acalmou os protestos dela com beijos. E com seu membro outra endurecido, penetrou-a. Ele se movimentou bem devagar, de maneira sensual, dessa vez sem pressa, como se tivesse centenas de anos para beijá-la e tocá-la e estar dentro dela. Beijou-a na boca e murmurou elogios no ouvido. Segurou os seios e os mordiscou e os lambeu e os chupou. Depois, ele a agarrou pelos quadris e puxou-a com força para si, penetrando-a profundamente. Ela ofegou. Ele sentiu que ela era apossada por uma mudança que a fazia responder com o corpo aos clamores do dele, de um modo que ela visivelmente não esperava. Ela se contraiu, agitou-se contra ele como se quisesse empurrá-lo, mas logo se mexia junto com ele inteiramente submetida. Os olhos dela prenderam-se nos dele e, por um instante, ele achou que captava alguma coisa arredia naqueles olhos, alguma coisa selvagem e particular. E tão rápido quanto surgiu, isso se dissipou e os olhos dela se fecharam enquanto seu corpo arqueava contra o dele e estremecia. Ela gozou em pequenos espasmos rápidos e ele estava certo de que lhe ensinara uma nova lição. Isso o deixou entusiasmado e ex tremendamente excitado. Ele quis gozar, mas se conteve; queria dar mais prazer ela. Queria amá-la, diversas vezes seguidas. Queria possuí-la.
CONHECE O JOE BRISTOW? — perguntou Roddy para um homem que carregava uma barraca de maçãs.
O uniforme de Roddy não passou despercebido para o homem.
— Nunca ouvi falar dele, companheiro.
Roddy fez a mesma pergunta para outro homem que ajustava os antolhos no seu burro.
— Quem quer saber? — disse o sujeito, desconfiado. — Ele está encrencado como a maioria dos barraqueiros, esse também demonstrava uma profunda desconfiança em relação à polícia e procurava se salvaguardar.
— Ele não está metido em nenhuma encrenca — retrucou Roddy. — Sou amigo dele. Preciso encontrá-lo.
— Tente na barraca do Fynmore. Está vendo, Fynmore Produtos de Alta lidade? Descendo a rua à esquerda? E lá que ele compra as mercadorias dele.
Roddy agradeceu ao homem e se apressou. Estava preocupado de ser tarde demais. Só eram quatro e meia da madrugada. Os lampiões a gás ainda estavam acesos e o sol só sairia mais tarde, mas os barraqueiros começavam o dia com as cotovias. Roddy largara o seu turno uma hora e meia mais cedo a fim de pegar um ônibus e chegar bem cedo a Covent Garden. Queria encontrar Joe antes que este saísse de sua ronda matinal. Roddy vinha ruminando uma ideia desde que Joe e a mãe estiveram em seu apartamento algumas semanas antes para dizer que sabiam onde Fiona estava. Mas precisava do consentimento de Grace para realizar a ideia e hesitava em lhe fazer esse pedido. Ela era uma mulher paciente, mas a paciência também tem seus limites. Acontece que, na noite anterior, de repente ela surgiu com a mesma ideia, Ele a beijou e lhe disse que ela era uma joia rara, uma em um milhão de mulheres.
Roddy se deu conta de que Joe estava certo quanto ao paradeiro de Fiona e ficou furioso por não ter tido o mesmo pensamento. Sua convicção de que ela não podia ter ido tão longe era tanta que ele nem desconfiou que ela podia estar na América. Joe e Rose mostraram-se desapontados quando ele disse que não tinha o endereço do Michael e que Fiona carregara consigo os pertences da família, inclusive as cartas do tio. Ele tinha certeza de que Michael morava em Nova York e que era dono de uma loja.
Também achava que Joe precisava ir o mais rápido possível para a América. Ele intuía isso. Não sabia exatamente por quê: essa intuição não fazia o menor sentido. Afinal, Joe tinha magoado Fiona e ela colocou claramente que nunca mais o veria. Mas, em seu íntimo, Roddy sentia que ela precisava dele. Naquela hora. E ele sempre levou fé em suas intuições. As pessoas diziam que os policiais — os bons policiais — possuíam um sexto sentido para as coisas. Por exemplo, se alguém dizia ou não a verdade. Ou sobre qual seria o próximo passo de algum fugitivo. O sexto sentido de Roddy nunca o desapontara. Ao acercar-se da barraca indicada, ele avistou Joe. Ele já estava saindo. Um outro rapaz estava ao lado dele.
— Joe! — ele gritou. — Joe Bristow!
Joe se virou e largou o carrinho.
— O que está fazendo aqui, Roddy? — ele perguntou. — Veio dar uma batida em Covent Garden?
— Não, vim aqui pra vê-lo.
— Alguma coisa errada? — Joe sentiu-se subitamente preocupado. — Não é nada com minha mãe, não é?
— Não, rapaz. Calma. Não há nada errado. Ontem mesmo estive com sua mãe. Ela disse que você está trabalhando por conta própria e economizando dinheiro para procurar Fiona.
— Estou, sim.
— De quanto você precisa?
— Cerca de dezoito libras, acho eu. Para passagem, estadia, alimentação e...
Roddy o interrompeu.
— E quanto você já tem?
— Umas seis libras, mais ou menos. E alguns poucos xelins.
— Isso aqui... — Roddy pôs a mão no bolso da calça e tirou um maço de notas.
Joe olhou para o dinheiro e balançou a cabeça em sinal negativo.
— Roddy, não posso aceitar isso.
— Grace quer que você fique com o dinheiro tanto quanto eu. Nós queremos que você encontre a Fiona. Vamos, rapaz, aceite. Coloque a sua bunda no navio.
Joe assentiu decidido, pegou as notas e as pôs no bolso.
— Obrigado, Roddy. Pagarei cada centavo. Eu juro.
— É claro que vai pagar!
Joe pegou o irmão pelos ombros.
— Jimmy, agora é por sua conta — ele disse. — Durante as próximas semanas, até a minha volta, você será o chefe.
— Jesus! Você vai agora mesmo? — perguntou Roddy.
— Vou — respondeu Joe.
— O quê? Está indo pra onde? Espere um minuto. E o meu segundo dia Joe. — protestou Jimmy.
— Você é um cara esperto, Jimmy. Vai fazer tudo direito. E só seguir a rota que eu mostrei para você. Diz pra mamãe que fui encontrar Fiona. Diz que escreverei assim que chegar lá. Trabalhe direito, Jimmy. Você me ouviu? Direito! Não deixa a peteca cair! — Joe saiu apressado.
— Espere um instante! Joe, espere! Que merda! — gritou Jimmy, enquanto via o irmão descer pela rua. Pôs as mãos nos lados da boca. — Joe! — ele berrou. — Pra que diabo de lugar você está indo?
— América, Jimmy! — gritou Joe, virando-se para trás. — Nova York!
SENTE-SE, SENHOR MCCLANE. Relaxe — disse Kevi Burdick com sua voz mais tranquilizadora.
— Não me diga para relaxar, merda! — gritou Will Junior, zanzando pelo escritório abafado. — Ele vai casar com a moça daqui a um mês!
— Está brincando comigo.
— Bem que eu gostaria. Ele a pediu em casamento. Ela está andando com um diamante do tamanho de uma bola de beisebol na mão. O desgraçado deve ter custado uma fortuna. A merda da minha fortuna. O que quer que tenha obtido sobre ela, é bom que seja bom. O que você conseguiu descobrir:
Burdick pigarreou.
—Nada.
Will parou de zanzar.
—O quê?
Burdick se encolheu na cadeira.
— Tentei cavar alguma coisa, mas ela é a pessoa mais correta que já vi. Não tem homem algum na vida dela. Ela não frequenta bares nem salas de ópio, nem vende órfãos no mercado negro. O pior que ela fez foi jogar argolas no parque de Coney Island. Ela não faz nada senão trabalhar, dormir e se encontrar com seu pai.
Will estava branco de raiva.
— O que você está me dizendo? Que não posso impedir esse casamento? Foi pra isso que te paguei?
— Deixe-me acabar, senhor McClane. Acho que ainda posso ajudá-lo. Embora não encontrado nada a respeito da senhorita Finnegan, eu descobri uma coisa sobre o amigo dela, Nicholas Soames. Parece que ele tem o hábito de frequentar bares de viados. É um frequentador assíduo do The Slide, na Bleecker Street.
— E daí? — gritou Will. — Meu pai não vai se casar com o Nicholas Soames!
— Sei disso. O que pretendo é usar as preferências sexuais do senhor Soames para armar um escândalo. É um tiro no escuro, mas talvez funcione.
— Como é que isso pode me ajudar? Não dou a mínima para o que acontece o senhor Soames.
Burdick se inclinou para frente.
— E melhor abrir os olhos antes de ir para Washington, senhor McClane, ou o pessoal de lá o comerá vivo. Vai haver uma batida policial. Teremos que pedir ajuda do seu bom amigo, o juiz.
Finalmente, Will Junior deu sinal de que tinha entendido.
— Eames — ele disse.
Burdick assentiu com a cabeça.
— Sua excelência, ele mesmo. Sente-se, senhor McClane. Desanuvia. O que vamos fazer é...
JOE SE DESLUMBROU com a iluminada e ensolarada manhã de Nova York. Ajeitou o saco de viagem perto dos pés.
— Meu Deus, Brendan, nós conseguimos! Quando aquele médico começou a examiná-lo , pensei que você estava liquidado, ele disse, rindo. — Você precisava vê-lo, Bren. Olhou o seu ouvido e ficou vesgo. E talvez cego pela luz que vinha do outro lado.
— Muito engraçado, seu inglês melequento. Eu vi quando ele examinou as suas cuecas e caiu para trás. Por falar em melequentos, cadê o Alfie? E o Fred? Será que eles passaram?
Joe e Brendan olharam ao redor, procurando ansiosamente pelos seus companheiros de cabine, Alphonse e Frederico Ferrara. Os quatro rapazes viajaram juntos desde Southampton. Joe os avistou — dois rapazes de cabelos negros e castanhos quando lutavam para caminhar no meio da multidão que desembarcava.
— Olhe, estão lá — disse Joe, acenando para os dois, aliviado por eles terem passado pelo serviço de imigração de Castle Garden. — Veja toda essa gente - ele acrescentou, apontando para a multidão. — Nem mesmo os carros de aluguel conseguem se mover. Acho melhor a gente ir a pé. Alguma ideia sobre a que vamos tomar?
— Norte, definitivamente. E leste, acho eu — disse Brendan. — É melhor a gente perguntar pra alguém.
Joe e Brendan tinham decidido que dividiriam um quarto. Brendan, um irlandês ruivo e rude de vinte e um anos de idade, vinha de uma fazenda de Connemara em busca de fortuna. Planejava trabalhar em Nova York nas obras de escavação, até que tivesse dinheiro suficiente para viajar até o Oeste, para procurar ouro na Califórnia. Ele tinha ouvido que Bowery era o lugar onde estavam as pensões mais baratas. Durante as semanas que ficaram juntos, Joe estabeleceu uma forte amizade falando-lhe inclusive de Fiona e de sua esperança de encontrá-la.
Alfie e Fred tinham emigrado de uma cidadezinha miserável da Sicília para Londres, onde trabalharam para um primo que tinha uma sorveteria até juntar para a passagem até Nova York; eles se juntariam à mãe, ao pai e a uma família numa habitação de um tio deles na Mulberry Street. Joe estava triste por ter que se despedir dos Ferrara. Os quatro tinham passado bons momentos juntos: jogando cartas, bebendo cerveja e dançando nas festas improvisadas no convés da terceira classe. Trocavam algumas frases em italiano e inglês, escolhidas entre eles. Debochavam do sotaque caipira de Brendan, do modo como ele dizia ―foldido‖ em vez de fodido. Riam e brincavam e conversavam a noite inteira sobre as suas façanhas.
— Pra que lado vocês vão? — perguntou Alfie, quando ele e o irmão se juntavam a Joe e Brendan.
— A gente não sabe ao certo — Brendan começou a falar. — Se vamos seguir em frente, na direção de... — suas palavras foram cortadas por uma gritaria lancintante. Aterrorizado, ele deu um pulo para trás e puxou Joe enquanto uma mulher gorducha de cabelos negros se dirigia ruidosamente na direção deles.
— I miei bambini, i miei bambini!— ela gritou e atirou-se nos braços de Alfie e Fred, beijando-os freneticamente. — Oh, Dio mio, grazie, graziel
Atrás dela, uma tropa de crianças junto com uma velha magra e encarquilhada que beijava um rosário. Algumas mulheres jovens, umas poucas com bebês no colo, se apinharam ao redor. Um bando de homens velhos e jovens ligeiramente afastados da confusão ria e trocava tapinhas.
— Jesus, que algazarra — disse Brendan para Joe. — Se é assim que eles fazem quando estão felizes, tremo só de pensar no que fazem quando estão num velório.
Joe riu, olhando Alfie e Fred, que se abraçavam à mulher em pranto. Depois, eles foram até a velha que, com as mãos retorcidas, agarrou o rosto de ambos e os beijou. Eles abraçavam e eram abraçados — violentamente — por todos que estavam em volta, até que começaram as apresentações. Joe e Brendan conheceram o senhor Ferrara, a avó, os dois avôs, o tio Franco, a tia Rosa, os irmãos, as irmãs, os primos, as primas e os sobrinhos. Ainda em lágrimas, a mãe dos rapazes também beijou Joe e Brendan, e depois começou a conversar com os filhos em italiano, amassando o peito deles com a mão.
— Si, mamma, si... i nostri amici.., — disse Alfie. Ele se voltou para seus companheiros de viagem. — Minha mãe quer que vocês venham. Até a nossa casa. Para comer — e acrescentou, ofegante. — Pelo amor de Deus, digam sim! Ela fez comida pra uma semana!
Joe e Brendan disseram que ficariam muito felizes, e isso propiciou a ambos outra rodada de beijos. Colocaram os sacos nas costas e seguiram em frente, acompanhando o vozerio dos Ferrara, admirando a vista por onde passavam. Joe custava a acreditar que houvesse um lugar tão grande e barulhento. Estava tão atordoado com todas as edificações, com a descontração das pessoas, que se esqueceu de olhar por onde andava e acabou colidindo com um rapaz- sanduíche.
— Desculpe, meu camarada — ele disse.
O rapaz sorriu. No seu cartaz de madeira, lia-se: GOSTOCHÁ — O QUALICHÁ, O ESTOCHÁ, O MAIS REFRESCANTE ESPECIALCHÁ!
— Não há de quê, senhor. Tome, uma amostra grátis para o senhor — disse o rapaz, entregando-lhe uma caixinha de chá.
Joe agradeceu e se voltou para Brendan para mostrar o que havia ganhado, o amigo estava um pouco mais à frente, ocupado em paquerar uma loira que pegava um ônibus.
— Comporte-se — disse Joe. — Você vai fazer com que nos prendam e acabamos De chegar.
— Pois é, se todas as garotas forem como essa, eu ficarei aqui. Já reparou nesse lugar? Um baita céu azul. Não dá pra ver nenhuma merda de nuvem de chuva. E, se tiver mesmo sorte, talvez não haja batatas. Estamos aqui há tão pouco tempo e já fomos convidados para jantar. Adoro este lugar, Joe. Aposto que aqui o homem pode dar o melhor de si.
— É tão grande, Bren, Meu Deus, é enorme! Se você se perder aqui, nunca mais ser achado — ele disse, ao mesmo tempo em que observava o movimento da rua.
Brendan o olhou, longamente.
— Está preocupado com a sua garota, não é?
— Estou.
— Não se preocupe. Você a encontrará. Sei disso. Levando em conta tudo o que me disse, ela só pode estar em algum lugar daqui. Acho que você só terá um problema.
—Qual?
— Se ela é tão bonita como você diz, é melhor rezar para que eu não seja o primeiro a encontrá-la.
Joe revirou os olhos. Brendan passou o pesado saco do ombro direito para o esquerdo. Quando atravessaram a Broadway, viram um elegante coche passar.
— Vou ter um igualzinho a esse quando ficar rico — disse Brendan. — E terei um cocheiro inglês. Talvez você, se você tiver sorte.
— Vá à merda, Brendan — disse Joe, distraído, enquanto olhava ao redor, as vitrinas, os rostos das pessoas que passavam por perto, ansiando desesperadamente se deparar com Fiona.
Empolgado, Brendan começou a assoviar. Logo se cansou e se pôs a cantar.
Senhora Durkin, adeus, estou doente e cansado de trabalhar,
Não pegarei mais na enxada, nunca mais serei pobre.
Tão certo como me chamo Barney, eu vou pra Califórnia,
E, em vez de cavar bobagens, cavarei pepitas de ouro…
Algumas jovens italianas o olharam e riram. Ele soltou um sorriso largo, o chapéu e engatou o verso seguinte.
Na época em que namorava, eu nunca me cansava de frequentar
a cervejaria e o teatro e a outra casa ao lado...
— Brendan, as irmãs do Alfie e do Fred estão presentes — Joe o alertou.
— Arre, elas nem sabem o que estou dizendo.
Mas eu disse ao meu irmão, Seamus, que agora vou embora pra ficar famoso,
e, antes de retomar, vou percorrer o mundo inteiro...
Joe riu para o seu irreprimível amigo. O entusiasmo dele era contagiante. E ele estava certo. Fiona estava ali. Em algum lugar daquela cidade. E tudo o que ele tinha a fazer era encontrá-la.
NICK ENCARAVA FIONA COMO SE ELA ESTIVESSE MALUCA. Ele balançava a cabeça, como se quisesse desentupir os ouvidos, como se não estivesse ouvindo direito. Não conseguia acreditar no que ela acabara de dizer.
— Nick — ela hesitou. — O que há de errado? Achei que gostaria da ideia. Achei que você ficaria feliz. Afinal, você vai ter mais espaço e...
— O que há de errado? — ele finalmente se manifestou. — O que há de errado? Fiona você acabou de me dizer que vai me dar a casa inteira! Acabou de dizer que não vai mais abrir o Rosa-Chá. E isso que está errado!
—Por favor, não grite.
— Não consigo entender — ele continuou, zanzando pelos aposentos. — Você adora esta casa. Batalhou tanto para consegui-la. Convenceu a velha a vendê-la a preço de banana, convenceu o banco a lhe emprestar dinheiro e há semanas que trabalha como uma escrava para deixá-la maravilhosa. E agora que está quase no fim, você vai abandonar tudo? Pelo amor de Deus, por quê?
Recostada no encosto alto de uma poltrona vermelha, Fiona mostrava uma aparência pálida e frágil e brincava nervosa com o fecho de sua bolsa.
— É que estou muito ocupada com o casamento... e depois tem a lua de mel... ficaremos fora por dois meses e...
—Ocupada? Ocupada com o quê? Experimentando o vestido? Encomendando o bolo? Isso não é nada! Já vi você dar conta de cem coisas ao mesmo tempo. E quanto a lua de mel... será que não pode simplesmente adiar a inauguração do salão de chá até você voltar?
— Não,não posso — ela olhou novamente para a bolsa. — Will quer filhos, Nick. Logo. Ele diz que quer estar presente para vê-los crescer.
— Sim, até aí tudo bem, é isso que geralmente acontece quando as pessoas se casam. Mas e daí?
— Ele quer criar os filhos fora da cidade. Em Hyde Park. Ele quer que eu more lá. Permanentente. Não quer que eu trabalhe mais. Ele diz que uma mulher com minha...com minha futura posição não deve trabalhar. Isso seria malvisto. Poderia refletir negativamente nele, e ele não quer isso.
Nick assentiu com a cabeça. Agora tudo fazia sentido. Aquilo que Will considerava charmoso em Fiona quando ela era sua namorada — a ambição, a devoção ao trabalho —, não mais o seria numa esposa. Afinal, a esposa devia se devotar a ele e não aos interesses dela. Devia se dedicar à casa dele e aos filhos dele.
— Eu sabia que isso ia acontecer — ele disse. — Torcia para que não acontecesse mas estava me enganando. Eu me dei conta no momento em que você disse que estava noiva.
— É só um velho salão de chá, Nick — ela retrucou, com um tom ligeiramente constrangido. — É uma lojinha em Chelsea. O que é isso comparado aos negócios dele? Na verdade, nada.
— Olha só o que você está dizendo! Isso é besteira e você sabe disso. O Rosa-Chá o GostoChá... eles valem mais do que qualquer outra coisa. Muito mais. Eles são você. Você os fez.
— Will não está fazendo isso por mal, Nick. O que ele diz é que não quer eu trabalhe tanto. Ele quer cuidar de mim, me prover.
— Mas esse sonho era seu, Fiona. Aprender o negócio com seu tio. Ter algo só seu um dia. Lembra? Lembra de como falamos sobre isso no navio? Como é que agora você pode virar as costas para o seu sonho?
— Você não gosta do Will. E por isso que está me dizendo essas coisas.
— E claro que eu gosto do Will. Ele é um homem espetacular. Mas é um homem típico. Ele quer subjugar aquilo que realmente o deixa cativado: o rito, o seu fogo. E vai fazer isso. Já começou a fazer. Essa não é você. Não a Fiona que eu conheço. Desistindo de tudo pelo que trabalhou tanto, de tudo que ama, simplesmente porque alguém mandou. Essa não é a Fiona.
— Não sei por que você está sendo tão cruel comigo — ela disse, desolada.
— Não sei por que você está mentindo. Quando eu estava doente, você me fez jurar que eu nunca mais mentiria. Em relação a qualquer coisa. E agora você esta mentindo para mim.
— Mentindo? — ela gritou. — Nick, não estou mentindo. Eu nunca mentiria.
— Está mentindo, sim! — ele gritou, fazendo-a se encolher. — Tanto para você como pra mim.
Ele andou até a janela e olhou para a rua lá embaixo. Estava furioso. E lembrava do que era fazer o que se devia em vez de fazer o que se queria. Lembrava de Paris e de como ele se sentia quando via a obra de um novo amigo pintor, de toda a paixão e excitação que sentia. Depois, lembrou do retorno a Londres e do trabalho no seu primeiro projeto, a oferta pública de ações de uma companhia passou semanas e semanas nos escritórios do Albion, consultando livros e livros contábeis, revendo colunas infindáveis, avaliando ativos, taxando rendimentos e passivos... e se sentia como se estivesse sufocando aos poucos.
Ela acha realmente que isso será o bastante? Casamento, uma casa elegante, segurança? O bastante para compensar tudo do qual ela está desistindo? Não pode ser. Talvez para algumas mulheres, mas não para Fiona. Ele a conhecia. Sabia que ela precisava estar apaixonada, profundamente apaixonada. E ela não estava. Por mais que dissesse o contrário, ele sabia que ela não estava. Ele se deu um tempo para acalmar e depois empurrou uma banqueta para a frente dela e sentou-se. Os joelhos dos dois se tocaram.
— Você gostaria de ouvir a minha opinião? — ele perguntou.
Ela o olhou.
— E eu tenho escolha?
— Acho que você não ama o Will. Só se convenceu disso porque tem medo de nunca mais amar, de nunca mais amar alguém do jeito que você amou Joe. Por isso você cai nos braços do primeiro homem que se apaixona Por você. Ora, você gosta muito dele... qual mulher não o amaria? Ele é bonito e elegante e muito mais, mas você não o ama. Definitivamente, não o ama.
Fiona balançou a cabeça em negativa.
—Não posso acreditar que você está dizendo essas coisas. Foi você mesmo que me disse que eu esqueceria o Joe. E ainda disse que eu me apaixonaria outra vez.
— E eu continuo dizendo o mesmo. Só que até agora isso não aconteceu.
— Ora, você acha isso? Pois bem, você não sabe de nada — ela disse, na defensiva. — Você não sabe o que ele sente por mim. E nem o que eu sinto por ele .Não sabe como ele é bom pra mim. O que a gente conversa. Como ele mediverte. Não sabe como é bom quando estamos juntos, como ele me faz feliz.
— Não confunda fazer amor com estar apaixonada — ele disse, conciso.
Fiona abaixou os olhos. Seu rosto fervia. Ele estava sendo rude e cruel. Ele sabia disso, mas não conseguia parar. Queria feri-la. Queria penetrar no fundo dela e fazê-la encarar a verdade.
— Eu não estava falando disso — ela disse por fim. — Não é nada disso.
— Então, o que é? É dinheiro? — ele perguntou de maneira áspera, segurando o rosto dela contra o seu. — É isso? Se você procura isso, eu posso lhe dar dinheiro.
Fiona ficou paralisada, como se tivesse levado um tapa no rosto, e Nick sabia que tinha ido longe demais.
— Eu não quero o dinheiro do Will — ela disse, pausadamente. — Eu quero o Will. Quero um homem que me ame. Um homem que não parta o meu coração.
Nick lançou um sorriso gelado para ela.
—E claro que ele não vai fazer isso. Como poderia? Você não deu seu coração para ele.
Ele ficou à espera de uma réplica, mas em vão. Ela o fitou por alguns segundos, mas lágrimas de raiva irromperam de seus olhos; depois, ela saiu do apartamento, batendo a porta atrás dela.
SEGURANDO O QUEIXO, com o cotovelo apoiado na mesa engordurada de um restaurante do Bowery, Joe observava a garçonete, uma mulher desmazelada, carrancuda, com um vestido horroroso e um avental manchado, que praticamente jogou sobre a mesa pratos da especialidade do dia: costeletas de porco, batatas cozidas e ervilhas.
— Vinte e cinco centavos cada prato — ela disse, seca.
Joe e Brendan racharam a despesa e lhe entregaram o dinheiro. A mulher guardou as moedas no bolso sem agradecer, reabasteceu os copos com uma cerveja fraca e espumante e depois marchou para a cozinha, berrando ordens para um infeliz ajudante de garçom. Ela era como a maioria das pessoas que Joe encontrara durante a sua primeira semana no apinhado Baixo East Side nova-iorquino: rudes, inflexíveis, esgotados pela luta constante para viver dentro de um orçamento.
Brendan atacou a costeleta. Joe cortou-a sem o mesmo entusiasmo.
— O que há de errado com você? Por que não come? — perguntou Brendan desviando os olhos do prato e olhando para o amigo.
Joe deu de ombros.
— Acho que estou sem fome.
— Você vai encontrá-la. Afinal, está aqui há poucos dias.
— Já faz uma semana — retrucou Joe, suspirando. — Uma semana inteira e nada. Falei com um policial e ele sugeriu que eu batesse de porta em porta na 60th Ward, ao sul da Walker Street. Ele disse que muitos irlandeses vivem lá, Percorri toda a merda da área e nada. Achei uma dúzia de Finnegan — e dois Michael —, mas nenhum era o Michael certo. Um outro policial que conheci me disse para tentar no West Side, numa vizinhança chamada Chelsea e numa outra chama Hell‘s Kitchen. Mas ele acrescentou que não seria fácil e que eu tomasse cuidado com algumas ruas. Estou preocupado com ela. Não consigo evitar. E se ela não encontrou o tio? E se estiver por conta própria em algum lugar? Ela não sabia lidar com cidades grandes. Nunca tinha saído de Whitechapel até o dia em que a levei a West End. Ela é só uma mocinha com uma criança para cuidar. Talvez esteja morando em algum quarto imundo de um lugar medonho chamado Hell‘s Kitchen. Cristo, Brendan, eles vão comê-la viva. E se eu estiver errado, e se ela não veio para Nova York?
— Você está fazendo uma tempestade em copo d‘água — disse Brendan. — claro que ela está sã e salva com o tio. Pelo que você me disse, ela só podia ter vindo pra cá. Continue procurando. Não desista. Tudo o que você precisa faz achar o homem e, achando-o, acha ela. Você procurou naquela lista telefônica.
— Aquela que o camareiro do navio falou?
— Procurei, mas é uma lista só de profissionais. Médicos, advogados e outros. De qualquer forma, escrevi para todos os Finnegan que encontrei nela. Mesmo que ninguém seja o Michael, eles podem conhecê-la, não é?
— E as missões irlandesas? E as sociedades beneficentes? Minha mãe disse que se eu fosse até a Filhos de São Patrício se estivesse em dificuldades.
— O Bloke, um cara que conheci na pensão dos imigrantes, falou a respeito da Sociedade Gaélica. Ele soube que o pessoal de lá estava coletando nomes e endereços dos irlandeses de Nova York, para que os novos imigrantes consigam encontrar os parentes. Vou até lá esta tarde. Depois que checar alguns nomes em East Twenties. Acho que devo continuar procurando em East Side, antes de ir para o lado oeste.
— E uma boa ideia - disse Brendan, ainda atacando furiosamente a costeleta. Ao falar, sua faca se partiu em duas. O cabo bateu com força na borda do prato e o virou, espalhando comida para fora. Que coisa foldida! ele gritou. — Isso não é uma costeleta.,. é um pedaço de pau foldido!
Joe riu, mesmo com seu desânimo.
— Agora você está em Nova York, seu palhação irlandês. E é foda, não folda.
— Ah, é? Então, foda-se. E folda-se também. — Revoltado, ele recolheu a comida de cima da mesa com o guardanapo.
— Aqui — disse Joe, empurrando seu prato pela mesa. — Fique com o meu. E como foi a sua manhã? Teve sorte?
— Talvez — respondeu Brendan, de boca cheia. — Na noite passada, conheci um cara num bar. Ele disse que um sujeito chamado McClane está construindo uma via subterrânea. Estão contratando duzentos homens, só pra começar. E outros duzentos homens no mês que vem. O cara disse que eles estão procurando homens com experiência em mineração, para colocar dinamites, escorar túneis e coisas assim. Nunca fiz nada disso, mas posso erguer uma picareta e trabalhar com uma pá melhor que eles.
— Você acha que vai conseguir o emprego?
—Acho. O superintendente falou que gostou do meu jeito. Recomendou que eu voltasse amanhã de manhã. Acho que vou conseguir. Em todo lugar que fui era sempre a mesma coisa: ―Não temos nada pra você, irlandês‖. Ou então: ―É de homens que a gente precisa, não de asnos, irlandês‖. São todos uns foldidos de uns engraçadinhos.
— O senhor precisa de algum mensageiro? Quer que eu vá buscar cigarros? Quer que engraxe seus sapatos? — apareceu na mesa deles um menino aparentando uns dez anos de idade; ele estava descalço e vestia uma camiseta esfarrapada e cheia de remendos.
Joe colocou displicentemente a mão no bolso à procura de um níquel e depois o deu para o garoto, esperando que ele fosse embora. Mas o garoto o olhou de maneira intimidadora.
— Não quero esmola. O senhor não tem um trabalho pra mim?
Joe tentava pensar em alguma coisa quando Brendan disse:
— Por que não contrata ele para procurar Fiona?
— Brendan, ele só é uma criança. O que ele vai fazer? Percorrer o West Side, sozinho?
— Eu sei como encontrar pessoas, senhor! Toda semana, por mais que minha mãe esconda o dinheiro para o aluguel, meu pai foge com ele. E sempre o encontro. Uma vez eu o segui pelo rio até Weehawken. Qual é o nome da moça? Vou achá-la para o senhor.
Joe olhou para o menino. Ele estava magro. Provavelmente faminto. Lembrava Joe com a mesma idade. Ávido para trabalhar, para mostrar seu valor.
— Está bem, então... — Joe começou a falar, mas suas palavras foram cortadas pela garçonete.
— Olha só você, seu ratinho de esgoto — ela gritou. — Já lhe disse para nã entrar aqui! — ela puxou o garoto pela orelha. — Vou entregá-lo para o cozinheiro cuidar de você. Ele vai lhe dar uma boa surra. Talvez isso lhe sirva de lição!
— Espere um minuto, senhora — disse Joe, puxando o menino pelo braço. Nós estamos tratando de negócios aqui.
— As únicas pessoas permitidas aqui são os fregueses pagantes — replicou mulher. — É proibido vagabundos. São ordens do cozinheiro.
— Ele é nosso convidado — disse Joe. — Vamos pagar uma refeição pra ele. Faz parte do trato.
A garçonete balançou a cabeça, visivelmente contrariada, mas liberou a presença do garoto que se sentou com rapidez.
— O especial do dia? — ela perguntou.
— Não, muito obrigado — disse Brendan. — Queremos contratá-lo, não matá-lo. Traga um sanduiche. Qual você quer, rapazinho?
— Quero dois Coney Islands. Com mostarda, cebola e chucrute. E uma porção de feijão.
—Jesus, graças a Deus não vou dormir perto de você esta noite — disse Brendam.
— O que você quer beber? — perguntou a mulher.
— Meio litro de cerveja num caneco gelado.
— Não confie tanto em sua sorte, filhinho.
— Então, um refresco.
Enquanto esperavam a refeição, Joe e Brendan ficaram sabendo que o garoto chamava Eddie e que ele morava num cômodo na Delancey Street com a mãe, uma operária de fábrica, o pai desempregado e quatro irmãos. Joe lhe disse que precisa encontrar um homem, Michael Finnegan, um comerciante, e sua sobrinha, Fiona, Deu vinte centavos ao garoto e este prometeu encontrá-los. Tão logo acabou de comer perguntou o endereço de onde Joe estava hospedado e depois tomou seu rumo.
— Talvez esse garoto o surpreenda — disse Brendan, olhando para Joe.
— Ele não pode fazer nada pior que já fiz — rebateu Joe.
Brendan recostou-se na cadeira e limpou a boca com o guardanapo. Arrotou e disse:
— Bem, eu também vou tomar meu rumo. Tenho que comprar um bom par de botas de couro para o meu novo emprego. E um chapéu novo.
— Um chapéu, pra quê?
Brendan sorriu de modo maroto.
— Esta noite eu vou visitar os Ferrara.
— E você precisa de um chapéu novo pra visitar o Alfie e o Fred?
— Não, seu idiota, Os dois são apenas um pretexto. Quem eu quero mesmo ver é a Angelina.
— Vai sonhando, rapaz. Já esqueceu que o Alfie e o Fred conviveram com você? Eles sabem quem você é. Nunca permitirão que você se aproxime da irmã deles.
— Veremos.
Eles se despediram. Brendan se dirigiu para o centro da cidade e Joe seguiu n frente. À medida que Joe caminhava, seu humor melhorava. As casas de cômodos do Baixo East Side davam lugar às elegantes moradias de Gramercy Park e ele se sentia menos preocupado, até mesmo um pouco otimista. Algumas regiões da cidade eram realmente lindas, e essa era uma delas. Sim, Nova York tinha o seu lado difícil, mas também era um lugar excitante. Visto pelos olhos de Brendan, Alfie e Fred, um lugar cheio de promessas e esperanças. Era um lugar de recomeço, um lugar para se moldar uma vida nova. Um lugar de segundas chances. Talvez até mesmo para ele.
Enquanto caminhava pela Irving Place, uma altercação entre alguns operários e um superintendente de obras chamou sua atenção.
— O que há de errado com vocês dois? São surdos? Já falei pra vocês tirarem o primeiro letreiro e colocarem o outro no mesmo lugar, o da galeria de arte.
— Eu pensei que os dois deviam estar afixados, um debaixo do outro — disse um dos homens.
Joe olhou para o motivo da discussão. Era um lindo letreiro pintado à mão, afixado na frente de uma casa de tijolinhos. ROSA-CHÁ, estava escrito.
— Ela está lá em cima — disse o chefe. — Vai descer daqui a pouco. Foi ela que me disse para tirar o letreiro logo. Vai apertar os meus culhões quando vir o que vocês fizeram. E depois eu aperto o de vocês. Vou ajudá-los. Vocês sabem como ela é. Preguem o letreiro logo.
Joe balançou a cabeça, rindo. Fosse quem fosse, a dona daquele lugar só podia ser uma megera. Seguramente, ela aterrorizava aqueles homens. Ele seguiu em frente, na direção da 23td Street, onde encontraria um tal de M. R. Finnegan, um negociante de produtos para mercearia, um homem indicado pela dona da pensão, talvez fosse quem ele procurava.
DE PÉ, no centro de uma sala de provas espelhada, Fiona olhava de cara para o espartilho que vestia.
— Eu não quero isso. Detesto espartilhos. Eles pinicam — ela disse. Madame Eugénie, a costureira mais famosa da cidade, não prestava atenção no que ela dizia.
— O importante não é o que você quer e sim o que o vestido requer — retrucou a costureira. Apertava os lábios e fazia Fiona circular, apreciando o efeito do espartilho, até que balançou a cabeça em sinal de desaprovação. — Simone! — ela gritou.
Logo apareceu uma mocinha esbaforida com um porta-alfinetes no punho.
— Sim, madame?
— Aperte isso. Só pare quando eu mandar.
Fiona podia sentir os dedos ágeis da garota desfazendo o nó nas costas e segurando os cordões. De repente, a garota apoiou o joelho no seu traseiro e puxou os cordões.
— Pare! — ela protestou. — Está muito apertado. Não vou conseguir sentar nem comer... nem mesmo pensar!
Madame Eugénie manteve - se imóvel.
— No dia do seu casamento você não vai poder sentar, para não amarrotara vestido. Nem comer, para não manchá-lo. E muito menos pensar! Assim, você vai arruinar o seu lindo rosto com as rugas da expressão. No seu casamento, você poderá fazer uma coisa: ficar maravilhosa. Um pouquinho mais, Simone... — disse, pressionando as laterais do espartilho.
Simone deu uma última puxada. Enquanto ela fazia isso, a Madame se colocava na frente da peça da roupa, agarrava os seios de Fiona e os elevava.
— Agora! — ela ordenou. Simone amarrou os cordões e de repente Fiona se com seios enormes e empinados.
— Meu Deus, estão duas vezes maiores do que quando cheguei aqui! — disse Fiona, virando-se para Mary e Maddie, sentadas nos divãs atrás dela.
— Olhe só você! — exclamou Maddie. — É maravilhoso! Vou comprar um igual de Madame e Simone saíram para pegar o vestido de noiva. Fiona voltou-se outra vez para o espelho com a fisionomia preocupada. A droga do espartilho a deixava espremida, restringia seus movimentos, confinava-a. Ela não conseguia respirar. Com um lamento de frustração, desamarrou os cordões, arrancou o espartilho e o jogou no chão. Enterrou o rosto nas mãos e tentou conter as lágrimas.
Rapidamente, Mary colocou-se ao lado dela.
— Fiona, o que há de errado? — ela perguntou.
Fiona olhou-a com os olhos marejados.
— Nada — ela respondeu.
— Nada? Então, por que você está chorando?
— Nick devia estar aqui, Mary — ela disse, completamente desolada. — Para me ajudar com o vestido. Já devia estar aqui. Ele até anotou a data na agenda dele na ultima vez que estivemos juntos. Ele prometeu que viria. Sem ele, como vou saber se o vestido está bom?
— Se ele disse que vinha, claro que virá — disse Mary. — Tenho certeza de que chegara atrasado.
—Não, não é isso, Ele não está atrasado. Ele não vem. Eu não o vejo desde o dia que discutimos. Foi há uma semana. Ele não virá hoje e nem irá ao casamento.
Mary e Maddie se entreolharam, preocupadas. Fiona tinha falado para elas da briga horrível que tivera com o Nick. Elas foram muito compreensivas. Ficaram do lado dela e também acharam que Nick não tinha sido gentil em dizer todas aquelas coisas. Ela mesma ainda estava zangada pelo modo com que ele a tratara. O modo que ele usou para importuná-la. E ela também ainda se sentia zangada porque ele estava com a razão, embora não admitisse isso. Fiona não queria se desfazer do -Chá. Mas não tinha escolha.
Depois da briga dela com Nick, ela perguntou outra vez ao Will por que teria que se confinar e criar os filhos fora da cidade. Argumentou que para ela era muito melhor se manter como estava. Até mesmo depois do nascimento dos bebês. Ele disse que isso estava fora de questão. E explicou de novo que as mulheres da classe não podiam ser vistas em público com um barrigão. Além disso, se ela não fosse cuidadosa, isso poderia exauri-la e por isso muitas mulheres perdiam os seus bebes. E como é que ela poderia dar conta ao mesmo tempo de ser mãe e cuidar dos negócios? Will alegou que entendia o trabalho dela, entendia o que estava por trás de tudo, mas insistia que aquela parte da vida dela tinha terminado. Ele era homem rico, mais do que capaz de suprir as necessidades dela. Ele foi inflexível e ela não ousou tocar outra vez no assunto.
Confinamento; ela odiava essa palavra. Soava como uma sentença de prisão. No lugar em que havia crescido, as mulheres não ficavam confinadas durante a gravidez. Os barrigões não eram incomuns naquela vizinhança, onde as famílias eram enormes. O que tinha de vergonhoso nos adoráveis barrigões, cheios e redondos como as velas de navio infladas? As pessoas sabiam o que havia dentro deles e também como ficaram cheios. A mulher podia se manter reservada, se ela quisesse, mas a evidência devastadora e inquestionável acabava aparecendo em nove meses. Os bebês estavam por toda parte em Montague Street: nos braços das mães, carregados pelas irmãs, balançando nos joelhos dos pais. Eles faziam parte das coisas, não eram escondidos. E em Whitechapel nenhuma mulher parava de trabalhar por causa da gravidez. Elas trabalhavam na limpeza da casa e cozinhavam. Carregavam sacolas de compras do mercado ou limpavam o chão dos bares até que se viam forçadas a ir a cama pelas contrações. Mas, depois do parto, elas voltavam aos seus trabalhos.
De pé, na sala de provas da Madame, ela de repente sentiu uma tremenda inveja de Nick, de Nate e de Maddie. Todos eles tinham seguido os seus sonhos e iniciavam seus próprios negócios, tal como ela os tinha. Mas eles os manteriam. E ela, não.
Madame Eugénie providenciou chá, café e bolinhos. Mary serviu uma xicara de chá para Fiona. Depois que ela acabou de beber um pouco de chá e colocou a xícara na mesa, Mary secou seu rosto com ternura, da mesma forma que fazia Seamie e com Nell. Segurou em seguida as suas mãos e disse:
— Nick irá ao casamento. Eu sei que ele irá. Ele só precisa esfriar a cabeça.
— Ele me odeia — retrucou Fiona, desconsolada.
— Ora, pare com isso. Ele não a odeia, Ele adora você, Talvez fosse bom você dar um tempo para ele. Já pensou que pode estar sendo difícil para ele? Talvez esteja com um pouco de ciúmes.
— Ciúmes? Mary, isso é ridículo! Você sabe que ele não está interessado mim dessa maneira.
— O que eu quero dizer com ciúmes é que ele está com medo de te perder. Você é a melhor amiga dele, Fiona.
— A família dele — acrescentou Maddie.
— E agora você vai casar, vai se mudar e começar uma vida nova. Talvez ele esteja pensando que vai te perder. Talvez seja por isso que ele foi tão agressivo.
Fiona refletiu um pouco.
—Você acha que é isso?
— Pode ser. Tenha só um pouco de paciência. Dê um tempo pra ele.
Madame Eugénie retomou à sala com uma caixa nas mãos. Simone a seguiu segurando o vestido de noiva de Fiona. De repente, Madame se deteve. Olhou para o espartilho jogado no chão, para o rosto molhado de lágrimas de Fiona e para Mary.
— Ela está nervosa — murmurou Mary.
Madame olhou-a de maneira compreensiva e voltou-se para Fiona.
— Olhe, chérie, o que o seu futuro marido mandou — ela disse. Abriu a caixa de joia que carregava e tirou de dentro uma estonteante gargantilha de pérolas com um medalhão de diamantes no centro. Os olhos de Fiona se arregalaram. Mary e Maddie se engasgaram.
— De Paris. Cartier. Para combinar com o seu vestido — disse Madame. - É sensacional, não é? Experimente — ela colocou a gargantilha em Fiona. — Um homem que dá esse tipo de coisa... — meneou os ombros, sem palavras. — Bem, uma mulher que tem um homem assim não tem por que chorar.
Fiona mirou a gargantilha no espelho. Tocou-a, maravilhada. Durante toda a sua vida ela nunca tinha visto algo tão belo. Will era tão bom para ela, tão gentil, tão atencioso. Ela havia admirado as pérolas de Emily no dia em que conheceu a família dele algumas semanas antes em Hyde Park. Ele prestou atenção no que ela disse e agora lhe dava as pérolas. Ele foi tão doce com ela; Emily e a família dele também foram gentis. Até mesmo Will Junior se esforçou ao máximo para que ela se sentisse bem acolhida. Madame estava certa. A maioria das mulheres não choraria pelos cantos por estar se casando com um homem como Will. O que era um estúpido salão de chá comparado com o amor dele por ela? Como o amor dela por ele. E eu o amo. De verdade, ela insistia para si mesma. Nãoimporta o que o Nick pense.
Ela se virou para Madame, que segurava o espartilho e esticou os braços para vesti-lo, Depois que ele foi amarrado outra vez, com muito cuidado Simone removeu o vestido de noiva — outro presente de Will — do cabide e ajudou-a a vesti-lo. Ele já tinha passado por uma prova. E agora ela estava ali para garantir que ele não precisasse de alterações. Madame abotoou a fila de botões que desciam pelas costas, ajeitou o corpete e a saia, deu um passo para trás e sorriu.
— Perfeito! — ela declarou. — Eu sempre digo que, quanto mais bonita é a moça, mais simples deve ser o vestido. São as feiosas que precisam de modelos rebuscados — acrescentou com a franqueza francesa. — Para distrair.
Fiona voltou-se para o espelho. A partir do dia em que conheceu Will, ela comprou um punhado de vestidos bonitos. Mas, em comparação com aquele vestido de noiva, eles não passavam de panos de chão. Era um vestido de renda belga com bainha de seda, embelezado com milhares de pequenas pérolas. Madame aconselhou que se evitassem mangas bufantes exageradas, gola alta e o excesso de ornamentação tão em voga à época, em favor de uma silhueta lisa que começava a entrar na moda. O vestido tinha um decote quadrado que realçava o seu gracioso pescoço, mangas três — quartos, e uma faixa de seda marfim que terminava com um arranjo de rosas de seda e uma cauda que caía lindamente da cintura até o chão. O véu era de tule e parava na bainha do vestido. Olhando-se vestida de noiva, com jóias e o cabelo puxado para o alto da cabeça, Fiona se viu diante de uma mulher que logo se tornaria uma esposa. Ela não era mais uma garota.
— Minha nossa, como você está linda, minha velha. Quase não te reconheci.
Ela olhou depressa para a porta.
— Nick! — ela gritou, sorrindo pela primeira vez em semanas, um sorriso verdadeiro. Ele estava encostado na porta, segurando o chapéu com um olhar tristonho. Ela agarrou as saias, correu na direção dele e se deteve a poucos passos de distância.
— Pensei que você não viria... eu pensei...
— Tolinha. E claro que eu viria — ele disse.
Eles ficaram assim por alguns segundos. Fiona, rodando o anel em seu dedo, Nick, inspecionando a aba do seu chapéu.
— Eu não queria... – ele começou a falar.
— Está tudo bem – ela interrompeu, finalizando a discussão.
Nick olhou-a no fundo dos olhos.
— Amigos? – ele perguntou, esperançoso.
— Para sempre — ela respondeu, abraçando-p com força. Ficaram abraçados por um bom tempo antes de se soltarem.
Madame voltou-se para Mary e Maddie.
— É o marido? Ele não pode vê-la com o vestido de noiva!
— Não, é o namorado ciumento — disse Maddie.
— Eu ouvi isso, Maddie! — Nick Ralhou.
— Quel dommage — disse Madame. — Que homem bonito! As fotografias do casamento ficariam deslumbrantes. E os filhos, também.
JOE ACORDOU SOBRESSALTADO, com um rostinho sardenho debruçado sobre ele. —Eu a encontrei. Não disse que a encontraria? — disse Eddie, eufórico, empoleirado na beira da cama. — Eu disse que conseguiria e consegui!
— Você vai matá-lo ou eu mesmo o mato? — resmungou Brendan do outro lado do quarto. Eram seis horas da tarde e ele estava tirando uma soneca, por ter brandido uma picareta o dia inteiro. Joe também descansava, extenuado de tanto percorrer as ruas. Agora ele já estava apoiado no cotovelo para ouvir o garoto tinha a dizer.
— Michael Charles Finnegan. Duane Street, 54. É um comerciante de farinha. — Eddie se pôs a falar. — Sondei lá pelas docas e um homem que transporta mercadorias do rio para os armazéns me falou sobre ele. É irlandês e veio da Inglaterra para Nova York como você disse, Ele também tem uma sobrinha! Perguntei ao homem se o nome dela era Fiona e ele disse que era.
Joe levantou-se imediatamente.
— Eddie, onde você disse que esse homem mora?
— Na Duane Street. Número 54. Lá pelos lados da Broadway.
— Bom trabalho, rapaz — disse Joe enquanto procurava as botas debaixo da cama.
— É ela, não é? — perguntou Brendan, piscando para Joe.
— Tomara — ele respondeu.
—Você vai lá?
— Vou
— Boa sorte, então, companheiro.
— Eu também tenho um outro nome — disse Eddie, enquanto Joe amarrava as botas. — No Chelsea. Um policial que patrulha a minha rua disse que conhece um Michaela Finnegan, lá da Emerald Society. Ele falou que o sujeito tinha uma uma mercearia lá. Mas não tinha certeza se ainda estava por lá. Ele disse que o banco tomou a loja. Posso ir até lá pra você. Pra ver se ele ainda mora lá.
—Pode deixar. Claro que o endereço certo é o de Duane Street — disse Joe. Mas logo ele viu a avidez do semblante de Eddie se desfazer e se deu conta de que o garoto estava na expectativa de uma outra tarefa. Deu vinte centavos para ele, dizendo-lhe para checar a informação. Eddie saiu voando como uma bala, batendo a porta do quarto com tanta força que fez Brendan xingar.
Eufórico, Joe saiu pouco tempo depois de Eddie, certo de que aquele Michael Finnegan era o homem procurado. Certo de que em meia hora ou pouco mais ele a veria de novo. Sua garota.
Ele caminhava rápido por Canal Street rumo ao oeste, sacudindo as mãos enquanto passava pelas pessoas que voltavam para casa. Estava nervoso. Na verdade, apavorado. Como ela reagiria quando o visse? E claro que nem sonhava em vê-lo ali. E se ela o mandasse embora? E se ela se recusasse a recebê-lo? Ele a tinha magoado tanto e ele sabia disso. Se ela lhe desse um pouco do seu tempo... será que o perdoaria?
Joe poderia esclarecer tudo se pudesse conversar com Fiona, se pudesse vê-la. Lutaria por isso e não perderia a oportunidade. Se ela o repelisse, ele seria insistente. Se o mandasse de volta para Londres, ficaria em Nova York. Ele escreveria para que Jimmy cuidasse dos negócios e se estabeleceria ali, encontraria um trabalho, até convencê-la do seu arrependimento e do seu amor por ela. Até convencê-la a aceitá-lo de volta.
No topo da Duane Street ele se deteve, contraiu e soltou os dedos e começou a procurar pelo número 54.
FIONA LEU PELA TERCEIRA VEZ A MANCHETE DO TIMES londrino, pôs o jornal contra o peito e leu mais uma vez: ―Vitória dos trabalhadores das docas, era o que estava escrito — ―Patrões se rendem às reivindicações .
Lágrimas de felicidade rolaram pela sua face e cairam no jornal. Ela deixou que rolassem. Já era tarde e não havia ninguém por perto para vê-la chorar. Estava sozinha na sala de visitas do tio, desfrutando essas maravilhosas notícias.
Fora uma completa surpresa, absolutamente maravilhosa. A greve nas docas tinha atrasado a chegada do Times por algumas semanas. Já fazia muito tempo que lia o jornal e não tinha a menor ideia se a greve estava próxima de uma resolução, e muito menos de uma vitória. No início daquele dia, Michael estava de saída para o banco e ela lhe pedira para ver se havia um exemplar no jornaleiro. Ele voltou com um e tentou entregá-lo em suas mãos, mas ela estava ocupada na loja e pediu-lhe que o levasse para cima e o deixasse na sala. Ela só pudera dar uma olhada no jornal poucos minutos antes. E agora, depois de ter lido sobre as negociações, as concessões, a declaração de vitória, a caminhada triunfal pelas ruas dos líder dos trabalhadores, Ben Tillet e John Burns, ladeados pelos grevistas, as entusiásticas celebrações e passeatas com as mulheres acorrendo à Commercial Street para abraçar os maridos e os filhos, ela ainda custava a crer que aquilo acontecera.
Eles conseguiram. Os doqueiros venceram.
Contra todas as dificuldades, os homens rudes do rio de Londres tinham se unido para lutar contra a pobreza e a fome, e triunfaram sobre aqueles que os exploravam. Pobres, quase sempre iletrados e politicamente grosseiros, eles se mantiveram unidos e venceram.
O coração de Fiona se encheu de amor pelo pai. Ele também tinha feito parte dessa luta e a vitória significaria tudo para ele. ―O senhor devia estar aqui, papai‖, ela murmurou. ―Essa era a sua luta. O senhor devia estar aqui pra ver a vitória.‖ Ela secou os olhos. Em meio à felicidade, também sentia tristeza. E amargura. Como sempre sentia quando lembrava o que acontecera ao pai... e do que causara isso.
Mas agora, cerca de um ano depois da morte dele, a complexa mistura de emoção que ela sentia se transformara. Os sentimentos de orgulho, perda e pesar tinham aumentado, seu ódio por William Burton ainda era imenso, mas o medo que ela sentiu na noite em que saiu de Whitechapel, o desespero e a impotência tinham se dissipado.
Ela se pôs a imaginar como Burton teria reagido ao tomar conhecimento da vitória dos trabalhadores. Imaginou que ele estava sentado em seu escritório. Em silêncio. Tomado pela raiva. E, pela primeira vez, enfraquecido. Já não era a figura onipotente, o senhor dos homens que ele pensava ser. A fim de paralisar o sindicato tinha assassinado e destruído a família dela, pensando exclusivamente em si.Mas lhe foi mostrado que ele não podia deter o rumo do sindicalismo, da forma que uma criança não pode impedir que o mar destrua o seu castelo de areia. A justiça prevaleceu. Os doqueiros foram justiçados. E um dia ela também seria.
Fiona pressentiu que essa vitória era um sinal, um augúrio. Sua vida mudara. E continuaria a mudar. Para melhor. Ela podia sentir isso. Já não era a garota apavorada; sozinha no mundo e sem ninguém para defendê-la. Tinha sua família. Seua amigos. E no prazo de uma semana ela teria Will. Ele seria seu marido, seu protetor e a manteria a salvo de pessoas como Burton e Sheehan.
E pensar que só faltava uma semana para o casamento! Embora estivesse programado para ser uma cerimônia simples — reservada à família e aos amigos íntimos - ainda havia muito a ser feito. Ela estava feliz por ter uma noite só para si. Raramente a casa ficava tão silenciosa. Michael e Mary tinham ido a um espetáculo. Alec, lan e Nell estavam no apartamento de cima. Seamie dormia. Até Will estava fora, em Pittsburgh, tratando dos negócios do metrô, numa última viagem antes do casamento. Ela deixou o jornal de lado, foi para a cozinha e colocou a chaleira no fogo. Depois, serviu-se de uma fatia do bolo de limão de Mary, preparou um chá de baunilha, arranjou tudo numa bandeja e levou-a para sala. Enquanto o chá descansava, pegou uma folha de papel e uma caneta para escrever uma lista de todas as coisas que ainda precisava fazer.
Uma hora depois, já tinha acabado de comer o bolo e de escrever a lista e descansava no sofá. Uma brisa de outono entrava pela janela, trazendo algumas folhas e fumaça de carvão. O tempo estava virando. Ela pôs o xale nos ombros e se enfiou debaixo da coberta. Já estava quase inteiramente coberta quando ouviu batidas na porta de entrada e alguém gritando o seu nome da rua. Ela se levantou, sonolenta.
— Ô de casa! Aqui é a casa dos Finnegan? Tem alguém em casa?
Estava bom demais para ser uma noite tranquila, ela pensou, dirigindo-se à janela. Chegou ao parapeito e esticou a cabeça para fora. Um garoto batia à porta.
— O que é? — ela gritou, irritada.
Ele olhou para cima.
— Fiona Finnegan?
— Sim. O que você quer?
— Nossa, estou feliz por tê-la encontrado, senhorita! Será que dá pra vir aqui embaixo?
— Não, até você me dizer do que se trata.
— É muito importante, senhorita. Eu tenho uma mensagem urgente de um amigo seu.
ERAM OITO HORAS da manhã e Fiona, exausta, sentava-se em um banco duro de madeira de um Tribunal da baixa Manhattan. Sua face estava empapada de lágrimas, suas roupas, amarrotadas pela noite passada em Tombs, a cadeia municipal na Centre Street. Próximo a ela, seu advogado, Teddy Sissons, o homem que a ajudou na aquisição da propriedade da senhorita Nicholson, e Stephen Ambrose, um advogado criminalista recomendado por Teddy. Algumas outras pessoas também estavam presentes na corte, sentadas em silêncio, à espera do juiz que iniciaria os procedimentos do dia.
— Isso não pode estar acontecendo — ela disse. — Eu soube pelo menino que ele estava em dificuldades, mas achei que era um problema de saúde.
— Mas está acontecendo — disse Teddy. — E ele está seriamente encrencado. Que diabo ele fazia no The Slide? Aquilo é um antro de vício. Ele devia manter distância daquele lugar.
— Bem, o fato é que ele estava lá — disse Fiona, abruptamente. — E foi preso agora você tem que soltá-lo. Você tem que... — sua voz se entrecortou. Ela começou chorar. — Oh, Teddy, faça alguma coisa! E se o mantiverem preso, o que acontecerá?
— E provável que isso não aconteça — retrucou Stephen Ambrose. — Se acusações não forem graves, talvez ele só tenha que pagar uma fiança.
— E se forem graves? Ele irá para a prisão?
— Não — disse Teddy com frieza, esfregando os olhos. — Ele é estrangeiro. Será deportado.
Fiona chorou ainda mais. Teddy ofereceu-lhe o lenço. Enquanto Ambrose bem-apessoado, vestido com esmero e usando um anel de diamante, dizia:
— O problema é o juiz que vai presidir o caso... Cameron Eames. É um homem implacável. Ele começou uma campanha de limpeza na cidade. Fechamento de pontos de apostas, de bordéis e de lugares como o The Slide. Conversei com um policial que falou que Eames teve o apoio de Malloy, o capitão da polícia, para Ievar avante a batida. Ele é muito duro com os transgressores. E o fato é que ele não estipulou a fiança e isso não é nada bom.
Fiona fechou os olhos e se recostou no banco. A partir do momento em queo menino, o mensageiro enviado por Nick lá de Tombs, chegou à casa de Michael na noite anterior, ela se viu tomada pela sensação de que vivia um pesadelo e só pensava em acordar. Dirigiu-se de imediato para a cadeia, esperando soltá-lo ou pelo vê-lo, mas o sargento não permitiu. Ordens do capitão, ele disse.
Ela esperava que ele estivesse bem. Esperava que ele tivesse alguma coisa para comer e beber e um lugar para dormir. As palavras de Teddy ecoavam na sua cabeça: ―... ele é estrangeiro... será deportado‖. Se isso acontecesse, seria o fim dele. Perderia a galeria e tudo o que havia conquistado. Seria forçado a regressar a Londres. Teria que voltar para o odioso pai que tinha ameaçado cortar todo seu dinheiro se ele voltasse. Ele estaria completamente sozinho. Quanto sobreviveria nessas condições?
Ela sentiu uma mão em suas costas.
— Querida! Que diabo está havendo? - seu coração deu um salto. Era Peter Hylton.
— Não diga nada — cochichou Teddy em seu ouvido.
— Fui informado de que o Nick foi preso na noite passada. E ainda por cima no The Slide! Ele estava querendo conhecer os inferninhos?
— Eu... eu não sei, Peter... não sei o que houve. Só pode ter sido um terrível engano — ela foi tomada outra vez pela emoção e as lágrimas rolaram pelo seu rosto.
- Oh, querida! É ele, não é? Nick é o seu eleito. Olhe só pra você, está se desmanchando em lágrimas. Nenhuma mulher chora assim por um homem que ela não ama. Eu sempre soube que o McClane não tinha chance.
— Peter — Fiona começou a falar, embora cansada. — Nós não... — Teddy lhe deu cutucada, indicando que ela devia se calar. Ela desviou os olhos para o ambiente.
Peter não sabia nada a respeito de seu noivado com Will. Isso estava restrito aos membros mais íntimos do círculo deles, aos advogados dela e à discreta Madame Eugénie. E quando alguém admirava o anel de Fiona, ela dizia que era uma bijuteria e que o comprara por pura diversão. Will queria que o noivado fosse mantido em segredo. Ele sabia que haveria muitos comentários e não desejava que Hylton o noticiasse. O homem não dava trégua. Acabaria descobrindo coisas sobre o vestido, o bolo e não escaparia nem mesmo o que Fiona pretendia vestir na noite de núpcias. E ainda garantiria que toda Nova York ficasse sabendo. Ela ouviu quando ele folheou o bloco de notas, ouviu a caneta dele escrevendo freneticamente.
Ela se voltou e olhou ao redor. Havia outras pessoas na corte. Algumas portavam blocos de notas. Ela reconheceu Nelly Bly, uma amiga de Will. Uma mulher de quem também gostava. Uma mulher que podia arruinar Nick com poucos parágrafos. E se deu conta então de que Nick seria enforcado pela mídia, mesmo que não fosse condenado. Para acabar com ele, a mídia só precisaria mencionar o tipo de clientela do The Slide. Seria um escândalo. Um tremendo escândalo. As pessoas da sociedade que frequentavam a galeria dele simplesmente sumiriam. Seus negócios cairiam por terra e isso o deixaria mais destruído do que a cadeia e a deportação.
Ficou em pânico. O peito de Fiona se apertou. Ela disse para Teddy que precisava de ar fresco e que sairia por alguns minutos. Protegeu-se do frio da manhã na escadaria da corte, perguntando-se sobre o que faria. Se ao menos Will estivesse ali, ele certamente saberia. Mas não estava. Ele estava em Pittsburgh e levaria dias para voltar, Ela ainda se encontrava no mesmo lugar, sentindo-se desolada e perdida, quando viu no outro lado da rua uma firma de advocacia, e pela vitrina deu para notar que a recepcionista falava ao telefone. Apressada, atravessou a rua e entrou no escritório. Telefonaria para o hotel de Will. Talvez ele não estivesse lá, mas valia a pena tentar.
— Com licença — ela disse. — Tenho uma emergência e preciso usar o seu telefone. Eu lhe pago.
— Desculpe, senhorita, mas não é possível.
— Por favor. Não quero aborrecê-la, mas a vida de um amigo meu depende desse telefonema.
A mulher hesitou.
— Está bem — ela disse por fim. — A senhorita sabe o número?
Fiona disse o nome do hotel em Pittsburgh e, depois de um ou dois minutos, a moça conseguiu completar a ligação. Estendeu o telefone para Fiona e esta pediu à telefonista que chamasse William McClane. Para alívio dela, ele estava no hotel, tomando o café da manhã no restaurante; a mulher disse que iria chamá-lo. Fiona caiu em prantos quando ouviu a voz de Will do outro lado da linha.
— Fiona? Querida, o que houve? Está tudo bem?
— Não, Will, não está nada bem — ela contou com a voz embargada o que tinha acontecido.
A resposta dele foi curta e imediata.
— Fiona, escute. Eu quero que você saia daí o mais rápido possível.
— Will, eu não posso. O Nick precisa...
— Não dou a mínima para o que Nick precisa! — ele respondeu com rispidez. — A Tombs, a corte de justiça, não é lugar para você. Você tem que se afastar do Nick. De tudo isso. Imediatamente. Isso vai dar uma confusão danada quando a imprensa souber. E não só para o Nick. Quero que você vá para a minha casa de campo. Leve o Seamie com você. E Mary. Vou telefonar para Emily, dizendo que você está chegando. Fiona? Ainda está aí?
Houve alguns segundos de silêncio.
— Sim... sim, estou aqui.
— Vou tentar encurtar esta viagem. Se puder, estarei em casa amanhã de noite. Não fale com ninguém sobre isso. Você me entendeu?
— Entendi, sim. Completamente.
— Ótimo. Agora, tenho que ir. Faça o que eu disse e tudo ficará bem. Cuide-se, querida. Eu te amo.
— Eu também te amo — ela disse. As palavras arderam em sua boca.
— Até logo.
— Até logo, Will.
O telefone ficou mudo. Ela manteve o fone no ouvido por alguns segundos. Depois, colocou-o no gancho, deu uma nota de um dólar para a recepcionista e agradeceu. Caminhou entorpecida até a porta. Seus membros estavam tão gelados quanto gelo. Will acabara de sugerir que ela abandonasse Nick. Seu melhor amigo. O homem que a tinha salvado quando ela estava sem ninguém. Agora, era ele que não tinha ninguém e ela não o abandonaria em nenhuma hipótese. Voltou para a corte e sentou-se ao lado de Teddy. Muitas outras pessoas haviam chegado. Os bancos estavam cheios. E abriu-se, então, a porta do juiz. Surgiu um oficial da corte.
— Todos de pé! — ele gritou.
Fiona levantou-se, juntamente com todos os presentes. Cameron Eames entrou, vestido com uma toga branca. Olhou para a audiência e em seguida sentou-se para ler a ata. Ela se espantou ao ver que ele parecia muito jovem. E extremamente duro. Não havia o menor sinal de compaixão naquele rosto de menino. Nenhuma piedade. Ele acabou de ler a ata e solicitou a entrada dos prisioneiros. Abriu-se uma porta e uma fila de homens passou por ela. Estavam algemados. Fiona esticou o pescoço e procurou freneticamente por Nick. Quando finalmente o avistou, ela se assustou. Ele estava com o olho esquerdo roxo. Apresentava um corte no rosto e sangue pisado no nariz. Parecia enfraquecido. Seu paletó estava rasgado.
— Nick — ela soluçou, levantando-se do assento.
— Silêncio! — cochichou Teddy, puxando-a de volta ao assento.
Nick não a ouviu, mas Eames, sim. Ele lançou um olhar irritado na direção dela.
— A Corte Criminal da cidade de Nova York está aberta — ele entoou. E começou a conferir as acusações contra aquele grupo de homens. — Vagabundagem, conduta desordeira... — leu em voz alta.
— São todos delitos leves — murmurou Ambrose, esperançoso.
— ... obscenidade em público, sedução... e sodomia.
— Ele está frito. Por causa da última acusação, a de sodomia. Não o soltarão com uma fiança. Se ele não se declarar culpado, eles o levarão a julgamento. Por alguma razão, Eames quer fazer desses homens um exemplo.
— Stephen, não há nada que se possa fazer? Alguma coisa? — perguntou Fiona, branca de medo.
— Eu tive uma ideia — disse Stephen. — Não é lá grande coisa.
— Não importa. Tente qualquer coisa.
— Você disse que Nick caminha pelas ruas à noite, não é?
— Sim. Com frequência.
—Porquê?
— Algumas vezes ele não consegue dormir e caminha até se cansar.
Ambrose assentiu com a cabeça.
Eames chamou o primeiro detento, um sujeito de aparência insípida que se declarou culpado de todas as acusações. Dois homens de aparência respeitável foram chamados em seguida. Indagou-se a ambos se tinham advogado. Nenhum dos dois tinha. Ambos se declararam culpados. Nick foi o próximo. Quando o juiz indagou se ele tinha advogado, Stephen Ambrose levantou-se e aproximou-se do banco. Nick, que estava sentado de cabeça baixa, ergueu o olhar, surpreso. Seus olhos atravessaram Ambrose em busca dos bancos. E logo ele a viu. Ambos se entreolharam, e ela viu medo refletido nos olhos dele. Ele tentou esboçar um rápido sorriso, mas encolheu-se. Ao invés de correr até ele e abraçá-lo, ela não pôde fazer nada senão permanecer no mesmo lugar.
Eames perguntou a Ambrose qual era a alegação de seu cliente.
— Inocente, meritíssimo — replicou Ambrose.
— Não estou disposto a ouvir gracinhas, senhor advogado, O senhor Soames foi preso no The Slide. Há relatos de testemunhas oculares e também os testemunhos dos oficiais que o prenderam — advertiu Eames.
Ambrose ergueu suas mãos bem tratadas.
— Não questiono a presença do meu cliente no The Slide. Não obstante mantenho a alegação de que ele é inocente de todas as acusações. Houve um terrível engano, meritíssimo.
— Sempre há — suspirou Eames, provocando risinhos na corte.
— Meu cliente, o senhor Soames, entrou inocentemente nas premissas relatadas. Ele estava simplesmente procurando algum lugar onde beber e não tinha ideia do que acontecia naquele estabelecimento, Meu cliente sofre de insônia e tem o hábito de caminhar pelas ruas a fim de se cansar. Sendo estrangeiro, ele não está completamente familiarizado com todas as regiões de nossa cidade ou natureza de alguns dos seus estabelecimentos. Ele não sabia que estava entrando num local de má reputação.
Fiona conteve a respiração. O argumento de Stephen era arriscado. E se Nick fosse um frequentador assíduo do The Slide? E se algum dos outros detentos dissesse isso? Ela os olhou. Muitos sorriam, mas ninguém disse nada.
— O senhor Soames é um respeitado membro da sociedade — continuou Stephen. — Essas acusações são espúrias. Um homem correto foi equivocadamente detido...
— Senhor advogado...
— E, para completar, ele recebeu um tratamento brutal. Eu gostaria de registrar para que isso constasse nos autos.
— Advogado Ambrose, sua lenga-lenga não me impressionou — disse Eames. - Já vi todo tipo de argumento para evitar punição e esse é mais do que velho.
Fiona se pôs a chorar de novo. Um pranto realmente desesperado.
— Oh, não chore, querida. Eu não aguento isso — uma voz emocionada atrás dela. Era Peter Hylton.
— Meritíssimo! Meritíssimo! — ele gritou, levantando-se.
Oh, não, pensou Fiona.
— Senhor Hylton, por favor... — ela começou a falar, mas ele já estava na passagem entre os bancos.
Eames brandiu o martelo.
— Ordem! Não me chame aos gritos, senhor. Aproxime-se.
— Desculpe — disse Peter, enquanto se dirigia ao juiz.
— O que é? Senhor... — perguntou Eames.
— Hylton. Peter Randall Hylton. Eu escrevo uma coluna para o World a ―Peter‘s Patter‖, e...
— O que é, senhor Hylton?
— Eu só gostaria de dizer que o doutor Ambrose está dizendo a verdade! Houve um engano. Um terrível engano. Nick Soames não é... o senhor sabe — ele disse, fazendo um trejeito com a mão.
— Não, senhor, eu não sei.
— Uma florzinha!
A audiência irrompeu em risos. Eames bateu outra vez seu martelo.
— Bem, o fato é que ele não é — insistiu Peter. — Sabe, ele tem uma namorada. Uma mulher. Não vou dar o nome aqui, isso não seria apropriado, mas é verdade.
Fiona vislumbrou uma chance. Ela se levantou e pediu permissão para se aproximar do juiz. Eames permitiu e ela andou até ele de pernas bambas. E pensar que o Ambrose achava que o seu próprio argumento era mera tentativa. O dela seria mais ousado. Will ficaria furioso, mas ela não tinha como evitar. Isso era tudo que ela — e Nick tinham. Ela pigarreou e disse:
— Meritíssimo, o que o senhor Hylton disse é verdade. O senhor Soames é meu noivo. Já estamos noivos há dois meses — irromperam suspiros e conversas na audiência. Eames teve que brandir novamente o martelo, ameaçando evacuar o recinto. — O que o doutor Ambrose falou também é verdade — ela continuou. — Nicholas não consegue dormir e caminha à noite para se cansar. Não sei como ele foi parar num lugar como o The Slide, mas tenho certeza de que ele não sabia de nada. Estou certa de que ele está profundamente consternado com o seu terrível engano.
Ambrose olhou horrorizado para Fiona.
— Meritíssimo... — ele começou, impetuosamente. O resto de suas palavras foi abafado pela barulheira que se fez no recinto. Pressentindo que estavam diante de uma grande matéria, os repórteres trocavam informações na tentativa de obter o nome completo de Fiona, e ainda a forma correta de escrever Soames e o endereço da galeria dele.
Furioso, Eames bateu o martelo como se quisesse quebrá-lo ao meio.
— Sente-se, doutor! — ele gritou. Sua voz provocou o silêncio que seu martelo não conseguiu. Ele reuniu seus papéis e levantou-se. — Advogado Ambrose, eu estou ficando muito, muito cansado do senhor e dos seus espetáculos. Solicito um breve recesso e, quando eu voltar, quero ver todos os presentes sentados em seus lugares. E quero que o silêncio seja tanto que se possa ouvir um alfinete caindo no chão. Estou sendo claro?
Ninguém ousou se manifestar, todos acataram. Eames virou-se de costas e saiu do recinto, batendo a porta atrás de si. A batida ecoou de maneira soturna.
Fiona voltou para o seu lugar e sentou-se próxima a Teddy. Stephen Ambrose espremeu-se ao lado dela.
— É preciso muita coragem — ele disse baixinho.
Ela assentiu, desolada. Seu desejo era salvar Nick, mas, ao que parecia, ela só tinha piorado a situação.
A expressão que ela fez não passou despercebida para Ambrose.
— Anime-se — ele lhe disse. — Se até agora o Eames não mandou Nick para a forca, talvez ele o absolva.
WILL JUNIOR TOMOU UM GOLE GENEROSO DE UÍSQUE, desfrutando-o de modo caloroso, e disse em seguida:
— Cameron, você sabia que é um gênio? Um desgraçado de um gênio!
Sentado em seu gabinete com os pés sobre a mesa, Cameron sorriu abertamente para o amigo.
— Eu não quero me gabar, mas a situação está correndo bem.
Correndo bem? Cam, a coisa não podia estar melhor. Eu não posso acreditar que ela esteja aqui! — ele exclamou, recostando-se sorridente em sua poltrona e olhando para o alto. — Custo a crer que ela tenha passado a noite em Tombs e esteja sentada na corte no meio de bichas e criminosos! Meu pai vai ficar uma fera! E o que houve depois da alegação do Ambrose?
Cameron sorriu.
— O Hylton entrou em cena. Meu Deus, gostaria que você tivesse visto, Will. Ele se levantou e disse para a corte que Nick Soames não era uma florzinha. Cheguei a pensar que cairia da minha cadeira.
Cameron continuou a descrever a atuação de Hylton e Will o ouvia embevecido, agitando a cabeça como se não acreditasse em sua sorte. A coisa estava saindo às mil maravilhas, melhor que o esperado. Cameron lhe disse que a corte estava apinhada de repórteres. Alguns fotógrafos também estavam presentes. Será um grande escândalo social. Naquela noite mesmo — talvez até antes! —, a merda estaria estampada em todos os jornais. E Fiona Finnegan se enterraria nela! Claro que agora o pai dele romperia com ela. Ele tinha que fazer isso. Casar com uma mulher respeitável de outra classe era uma coisa, mas casar com uma aliada de pervertidos era completamente diferente.
— ... e depois, Will... ora, você não vai acreditar nisso... ela se levantou e de declarou que estava noiva do Soames. Há dois meses!
—O quê?
— Ela disse que eles estavam noivos e que o Soames entrou no The Slide por acidente, por causa de uma insônia ou de alguma merda parecida — Cameron gesticulava as mãos sem parar. — Eles realmente acham que eu nasci ontem.
Este é o dia mais feliz da minha vida, pensou Will Junior enquanto seu amigo terminava o relato. Ela está todinha nas minhas mãos.
— Cameron... — ele disse devagar.
— Hmm — o outro murmurou, reabastecendo o copo de Will.
— E se eu estiver errado? E se o meu pai perdoar toda essa confusão?
— Então, todo o nosso esforço e o favor que solicitei de Malloy terão sido em vão. Mas é claro que ele não vai perdoar, Will. Não depois que tudo for para os jornais.
— Do jeito que ele está apaixonado, tudo é possível — retrucou Will Junior. Ele esvaziou o copo e olhou para o amigo.
— Eu acho, juiz Eames, que o que temos a fazer não é nada mais que tirar a senhorita Finnegan de cena, para sempre. E penso que devemos nos valer desta extraordinária oportunidade.
Cameron devolveu o olhar, assentiu com a cabeça e Will Junior entendeu que ele tinha captado a sua ideia. Os dois sempre foram exímios na leitura dos pensamentos um do outro. Isso lhes servira quando precisavam inventar histórias na infância e também na escola, quando eram pegos colando. Juntos, eles já tinham chegado longe, e continuariam assim.
— Se o seu pai souber o que realmente aconteceu, ele me enforca.
— Ele não saberá. Como poderia? Claro que não vou contar para ele.
— O que é que vou alegar quando ele souber que o juiz fui eu?
— O que é que ele pode dizer? Tecnicamente, você nem sabe quem é ela. Você á viu os dois juntos?
—Não.
— Foi apresentado a ela por ele?
—Não.
— Ele disse que os dois estavam noivos?
— E claro que não.
— Então, que culpa poderá ter? Você simplesmente não sabia de nada. Só estava fazendo o seu trabalho. Quando chegar a hora — se chegar — de você ser questionado, dirá para ele que não sabia quem era ela e que, se soubesse, nunca, mas nunca mesmo, insistiria nisso tudo.
— Está bem. Mas agora é melhor você sair daqui. Volte pelo mesmo caminho que entrou. Ninguém pode vê-lo, Will. Ninguém.
— Deixa comigo. Pare de se preocupar, Cam. E me quebre esse galho.
Cameron levantou- se e vestiu a toga. Os dois combinaram de se encontrar no Union Club para jantar e depois Will se retirou. Ele se sentia totalmente aliviado. Logo tudo estaria acabado. Costurado e perfeitamente terminado. Seu pai nunca desconfiaria que Cameron tinha feito o que estava para fazer. E nunca pensaria que fora o seu próprio filho que arquitetara tudo. Ele tinha representado tão bem — desculpando-se pelo mau comportamento, acolhendo a garota na família — que o pai engoliria tudo. Enquanto atravessava o corredor escuro que os oficiais da corte usavam para entrar e sair do prédio sem precisar esbarrar com os réus, Will Junior admitiu que de fato ficaria em dívida com Cameron. Mas ele sabia de uma boa maneira de retribuir o favor. Tão logo chegasse ao Congresso, ele começaria a trabalhar pela indicação de Cam para a Suprema Corte, o cargo que o seu amigo tanto queria. E um dia, quando ele chegasse na Casa Branca, a primeira coisa que faria seria nomear Cameron Eames para a Suprema Corte Federal de Justiça. Afinal , todo presidente precisa ter um juiz no bolso.
FIONA OLHAVA PARA AS PAREDES BRANCAS DA SALA, para os retratos dos grandes homens que lá estavam dependurados, para a bandeira americana posicionada num canto e para a efígie dourada da cidade de Nova York. Ela vasculhava com o olha cada cantinho, na expectativa de ver algum sinal de gentileza e compreensão com as falhas humanas naquele recinto. Ela procurava por um sinal de que os homem que retinham tanto poder sobre a vida dos outros mesclavam esse poder com sabedoria e tolerância. Mas ela só via as fisionomias duras e impassíveis dos oficiais da corte e o vazio imponente da cadeira do juiz.
Eames nunca aceitaria a história dela. Stephen o tinha enfurecido. Hylton piorou a situação e ela deu o toque final. O homem insistiria em um julgamento e depois mandaria Nick embora.
A porta de entrada dos juízes se abriu e ela se sobressaltou. Eames reapareceu e assumiu seu posto. Fiona ouvia os rumores ao seu redor à medida que os espectadores e repórteres se sentavam, prontos para ver o desenrolar da próxima rodada. Eames não os deixaria à espera. Tão logo se sentou, ele pediu que Stephen Ambrose e Fiona se aproximassem.
Ele pigarreou, fitando a corte enquanto fazia isso.
— Ao contrário da forma com que às vezes sou retratado pelos vários jornais da cidade — ele começou a falar, encarando Nellie Bly —, eu não sou intransigente nem desalmado.
O coração de Fiona deu um salto de esperança.
— Eu também devo admitir que pode ter havido um engano no caso do senhor Soames.
As pernas dela ficaram bambas de alívio.
— Senhorita Finnegan, a senhorita afirma que o senhor Soames é seu noivo e está certa de que ele entrou por acidente no The Slide... isso é verdade?
— Sim, meritíssimo.
Eames se voltou para onde estavam os acusados.
— Senhor Soames, isso é verdade?
— Sim, meritíssimo — ele disse baixinho.
— Muito bem, então. Estou pronto a liberar o senhor Soames e deixá-lo sob a sua custódia, senhorita Finnegan. Com uma condição...
— Sim, meritíssimo, qualquer coisa que vossa excelência pedir — ela disse, aliviada e feliz por seu plano ter dado certo. Nick fora salvo por ela! Logo terminaria aquele horrível pesadelo.
— Exijo que a senhorita se case com o senhor Soames, hoje mesmo. Na minha corte. Como prova de sua sinceridade.
Por um segundo, fez-se um silêncio absoluto na corte e depois se seguiu o vozerio. Stephen, agora com a aliança de Teddy, interpelou o juiz, argumentando que aquilo era completamente inusitado e fora de propósito. Eames retrucou, alegando que conhecia muito bem as lorotas e que eles não o fariam de bobo em sua própria corte. Os repórteres dirigiram perguntas para Fiona, para Níck e para Eames. Os expectadores conversavam alegremente entre si, comentando que aquilo era bem melhor que o teatro de Tony Pastor. Enquanto Fiona, petrificada e aturdida, pensava na alternativa que Eames lhe oferecia.
De repente, os olhos dela notaram um movimento. Era Nick. Ele acenava desajeitadamente por causa das algemas, tentando chamar sua atenção. Ela foi até ele. Não havia ninguém para impedi-la. Eames estava envolvido pela discussão. Dois dos oficiais da corte continham um acusado que se levantara, recolocando-o de volta ao banco. E os outros dois tentavam acalmar a audiência.
— Acabe com isso. Agora — disse Nick. — Não quero que você leve isso adiante.
— Mas vou levar.
— Você está maluca? — ele sibilou. — Está jogando sua vida fora! E sem nenhuma razão Isso não é crime para a forca, Fiona. Eles vão me acusar, eu pago uma fiança e me soltam.
— Eles não vão fazer isso, não. O Teddy disse que você será mandado para a cadeia e mantido lá por algumas semanas, e que, depois do julgamento, será deportado. Deportado. Para a Inglaterra. Você entende o que isso significa?
— E você, sua garota estúpida, entende o que isso significa? Se você se casar comigo, não poderá casar com o Will! Só permitem isso em alguns lugares, Arábia, África, ilhas dos Mares do Sul, mas não em Nova York!
— Eu não quero casar com o Will.
Nicholas abaixou a cabeça de Fiona e segurou-a com as duas mãos.
— Por favor, Fiona. Por favor. Já fiz muitas loucuras nas últimas doze horas. E não preciso que você faça outra agora.
— Nicholas... uma vez você se casou comigo. Agora é a minha vez de casar com você.
— Aquilo foi um casamento simulado e você sabe muito bem disso. Este não será de mentirinha.
— Você me salvou.
— Difícil.
— Salvou, sim. A mim e ao Seamie. Acredite em mim. Agora, eu é que vou salvar você.
Nick ergueu a cabeça e olhou-a no fundo dos olhos.
—Porquê?
Fiona encolheu-se, desolada.
— Porque eu te amo.
Um oficial segurou-a pelo cotovelo.
— Desculpe, senhorita, não posso permitir o acesso aos prisioneiros — ele disse bruscamente, conduzindo-a de volta ao juiz.
Irritado com o aumento do barulho, Eames brandiu outra vez o seu martelo.
— Ordem! Ordem! — ele gritou. — Se começar de novo esse barulho, eu mandei evacuar a corte!
Quando o silêncio foi restaurado, ele recomeçou.
— Estou pronto a acreditar na história da senhorita Finnegan. Só preciso de uma prova daquilo que ela afirmou, doutor advogado. Se o senhor Soames é realmente inocente, eu gostaria de libertá-lo, mas não permitirei que se zombe dessa corte.
— Meritíssimo — disse Fiona, tentando se fazer ouvir, mas sua voz foi abafada pelas denúncias vociferantes de Stephen dirigidas ao juiz e à corte. Segundo ele, a cruel condição do juiz arruinaria a cerimônia religiosa planejada pelo seu cliente. Ele tentava dissuadir Eames.
— A cerimônia civil não interfere na cerimônia religiosa — retrucou Eames. — Eles ainda poderão se casar no religioso. Não tenho a mínima intenção de impedir isso.
— Meritíssimo, por favor! — gritou Fiona.
— O que é, senhorita Finnegan?
— Eu aceito a sua condição. Nós dois aceitamos.
Eames assentiu com a cabeça.
— Ótimo. Darei duas horas para juntar os papéis necessários e, enquanto isso eu termino a minha sessão na corte. Tragam o próximo acusado, por favor. Como o senhor se declara?
Atordoada pela excitação e pelo choque, Fiona sentou-se. Ávidos por uma entrevista, três repórteres tentavam se aproximar dela, mas Teddy e Stephen os afastaram. Um quarto insistia. Era Nellie Bly.
— Eu preciso falar com ela, Teddy — Fiona ouviu quando ela disse. —Não como repórter, mas como amiga.
— Pode deixar, Teddy — interferiu Fiona. Ele deixou a repórter se aproximar e Nelly sentou-se perto de Fiona e se achegou ainda mais perto para que ninguém ouvisse a conversa.
— Fiona, o que você está fazendo? — ela perguntou baixinho, — O Will ama você, sei que ele a ama. Eu soube disso antes mesmo dele. Uma noite o vi no Union Club e ele suspirava por você, embora não admitisse naquela época. Eu os vi juntos e notei como ele olha pra você. Por que magoá-lo dessa maneira?
- Porque eles matarão o Nick se eu não fizer isso.
- Fiona, isso aqui é a América. Eles não vão matá-lo. Ele ficará preso por algum tempo. Na pior das hipóteses, ele será deportado...
Fiona cortou as palavras dela.
— Por algum tempo? - ela disse, raivosa. — Talvez quebrando pedras com uma picareta que ele nem consegue erguer? Ou se arrastando, acorrentado aos outros, até sofrer um colapso? — tremeu de medo só de pensar em Nick acorrentado e forçado a trabalhar. — Ele tem o coração fraco, Nellie — ela continuou, retendo um soluço. — Ele mal consegue segurar suas telas, quanto mais uma pá cheia de terra... ou um carrinho de pedras. Ele não duraria uma semana... — sua voz ficou embargada. As lágrimas rolaram pelo seu rosto. Aquilo era demais para ela. Por pouco perdera Nick. E agora perderia Will.
— Desculpe, Fiona. Eu não sabia. Meu Deus, que escolha você tem que fazer... ssshhh, eu sinto muito... - Nellie confortou-a e, quando Fiona recuperou o controle, aprumou-se e encarou o juiz. — Meu Deus, Eames, você é mesmo um filho da puta! — ela gritou.
Eames estava falando com um prisioneiro e se deteve. Seu rosto ficou rubro.
— O que você disse? — ele perguntou.
— Você me ouviu muito bem! Isso é uma corte de justiça ou a Inquisição espanhola?
— Como você se atreve...
— Eu vou lhe dizer do que se trata: é uma farsa! Forçar alguém a casar desse jeito. Você sabe, e todos os que estão nesta corte!
— Já basta! — Eames explodiu, colocando-se de pé. — Eu peço que a senhorita demonstre o devido respeito quando se dirigir a mim em minha corte! ele gritou. — Meirinho! Retire a senhorita Bly e toda a imprensa da corte. Agora!
O recinto foi esvaziado. Com a ordem finalmente restaurada, Eames conseguiu continuar a sessão com o resto dos prisioneiros. Ajudada por Teddy, Fiona se retirou pela entrada dos fundos, para evitar os repórteres no trajeto que faria em busca dos seus documentos e dos de Nick. Teddy tentava dissuadi –la argumentando que o procedimento de Eames tinha sido ilegal, pois o juiz não tinha o direito de demandar ou forçar aquele tipo de condição e que ele e Stephen resolveriam tudo. Eles só precisariam de poucos dias. Uma semana, no máximo.
Com o braço estendido para chamar uma carruagem, Fiona virou-se para ele.
— Uma semana? Você quer que eu o deixe em Tombs por uma semana? Você viu o rosto dele? Só Deus sabe se isso é tudo que podem fazer com ele — uma carruagem parou e ela se apressou em pegá-la. — Voltarei em duas horas — ela disse, — Por favor, fique com ele. Não deixe que ele faça nenhuma besteira.
— E muito tarde para ele — Teddy suspirou quando a carruagem partiu. — Eu estou tentando impedir você.
— ELGIN? PENSEI QUE O SEU SOBRENOME ERA SOAMES — disse Cameron Eames, olhando para a certidão de nascimento de Nick.
— E Elgin. Mas eu uso o sobrenome de minha mãe, Soames.
Fiona olhou para Nick. Aquilo era novidade para ela. Logo o sobrenome dela também seria Elgin. Ou será que eles usariam Soames? Ela se sentiu totalmente atordoada. Por alguns segundos, chegou a pensar que podia desmaiar. O que não seria uma surpresa. Não tinha dormido nem comido e, além disso, é claro, ainda havia o pequeno problema do casamento com Nick.
— O que é isso? — perguntou Eames, apontando para uma abreviatura que antecedia o nome de Nick.
— É... um... título de visconde.
Oh, o que ele está fazendo agora? Fiona se perguntou, aborrecida. Aquele jogo já tinha ido longe demais para se tentar uma outra cartada. Aliás, eles já tinham tentado todas. Será que ele achava que se fingindo de nobre intimidaria o juiz?
— Visconde? — indagou Eames.
— Sim.
— O que é exatamente um visconde?
— O filho mais velho de um duque.
— Seu pai é um duque?
— O sexto duque de Winchester.
Fiona o fulminou com um olhar.
— Pare com isso, seu tolo! — ela murmurou, valendo-se de mímica. O filho do duque de Winchester. Realmente! Só falta ele declarar que eu sou a princesa real.
Ele devolveu um olhar envergonhado para ela. Pelo menos foi isso que ela pensou. Com aquele olho era difícil distinguir. Mas agora ele parecia melhor, a juiz permitiu que ele lavasse o rosto. E ele também tinha se penteado e vestira roupas limpas que ela levara. Estava mais apresentável. Como um jovem de posição, pelo menos, e não como um criminoso.
Fiona também tinha trocado de roupa. Ela entrou no apartamento de Michael, esgueirando-se para não ser notada. Felizmente, Mary saíra com as crianças para algum lugar. No quarto, despiu as roupas amarrotadas, substituindo-as por uma blusa de renda branca e um conjunto de saia e casaco de algodão acetinado turquesa. Depois, penteou rapidamente os cabelos e pegou um chapéu no armário. Quando procurou a sua certidão de nascimento em uma gaveta, encontrou alianças dos pais e colocou-as no bolso. E levou um susto quando saiu de casa, já se dirigia para a sala de visitas quando a porta da frente se abriu e Michael entrou. Voltou depressa para dentro do seu quarto enquanto ele atravessava o corredor rumo ao banheiro. Ele não podia saber o que ela estava fazendo. Se descobrisse, certamente tentaria impedi-la. Ficou escondida em seu quarto até ele entrar no banheiro e em seguida saiu de casa e correu até a 7th Avenue, onde pegou carruagem que a levou até Gramercy Park. Ela precisou de algum tempo para localizar a pequena pasta de couro onde Nick guardava seus documentos, mas no fim a encontrou debaixo da cama dele. Pegou uma camisa e um paletó limpos no armário e depois se apressou para voltar à corte. Se Peter Hylton e sua corja queriam fotos, eles a teriam, mas ela e Nick não estariam com uma aparência suja e desmantelada. Pelo menos no dia do casamento eles se mostrariam bem-vestidos.
O casamento deles.
Suas mãos começaram a tremer quando ela pensou nisso. Estava se casando com Nick. Ela se devotaria a ele e ele a ela. Para sempre. Ela se viu outra vez violentamente atordoada. Fechou os olhos e enterrou as unhas na palma das mãos, penetrando-se na dor. Não, não, não, disse para si mesma. Não pense nisso. Não em nada. Só leve até o fim.
Eames terminou de verificar a documentação de Nick e passou para as informações de Fiona a fim de preencher a certidão de casamento. Fiona pediu para que Teddy segurasse as alianças de seus pais. A corte estava vazia, apenas com ela, Teddy, Stephen e Eames presentes. Ela agradecia por isso. Aquela manhã fora um verdadeiro circo e todos os palhaços ainda os aguardavam na entrada do prédio. Pelo menos não teriam que proferir seus votos na frente daquela turba.
Eames deu início à cerimônia com uma breve introdução. Sem palavras bonitas nem sentimentos românticos, uma cerimônia simples, a troca de alianças e os votos. E logo a coisa estava feita. Lá estavam eles, de pé, entreolhando-se com as alianças de ouro nos dedos. Nicholas e Fiona Soames... ou seria Elgin? Marido e ..mulher. Até que a morte os separe.
Eames estendeu a certidão para que ambos assinassem e os advogados assinaram como testemunhas. Depois, o juiz se despediu deles, disse que Nick estava livre e, com um sorrisinho cínico, aconselhou-o a manter distância do The Slide e estabelecimentos semelhantes em suas futuras peregrinações.
As quatro pessoas permaneceram no mesmo lugar, sem jeito, sem saber o que fazer , até que Stephen quebrou o silêncio batendo as mãos, anunciando que a imprensa estava lá fora e que, se eles quisessem levar aquilo a cabo, e convencer os outros de que a prisão de Nick fora um engano, era melhor que representassem o papel de recém-casados felizes. Eles recolheram suas coisas e o seguiram.
Na entrada da corte, Stephen Ambrose comunicou aos presentes que Cameron Eames tinha um senso aviltante de justiça e que devia desculpas ao seu cliente. O Senhor Soames fora preso graças a um terrível engano. Ele tinha sofrido terrivelmente nas mãos da polícia e do sistema judiciário, além de ter sido obrigado a se casar com sua noiva, a senhorita Fiona Finnegan, bem antes da data prevista por ambos.
— Nós estamos em 1889 — disse Ambrose exaltado, esmurrando a palma da mão — e não na Idade Média! Nenhum homem deveria ser forçado a casar dentro de uma corte de justiça, em meio a criminosos, só para limpar o seu nome! — ele acrescentou que, embora todas as acusações contra o seu cliente tenham sido retiradas, o senhor Soames estava seriamente inclinado a processar a prefeitura por prisão ilegal e violação dos direitos civis.
As fotos pipocaram, inclusive uma em que Nicholas beijava o rosto de Fiona, que segurava um buquê de rosas que um repórter comprara numa floricultura. As perguntas foram feitas e respondidas, os nomes foram soletrados um sem-número de vezes, as congratulações foram dadas ao casal e por fim a turba se dispersou. Teddy e Stephen se despediram, com os dois afirmando que, sombra de dúvida, aquele dia tinha sido o mais interessante de suas carreira depois se retiraram, Fiona e Nick ficaram a sós.
Fiona foi a primeira a falar.
— Nick... eu... eu acho que vou desmaiar.
— Não vai, não! Tem um banco logo ali, debaixo daquela árvore. Vamos.
Ele a segurou pelo cotovelo e ambos saíram da entrada da corte. Ela sentou-se no banco e descansou a cabeça em seus joelhos. Sua pele estava viscosa. Seu coração, disparado. Ela se sentia prestes a cair doente.
— O que fizemos? — ela gemeu. — O que vou dizer para o Will?
Nick afagou-lhe as costas com gentileza.
— Desculpe, Fiona — ele disse. — Eu sinto muito, estou arrasado — irromperam as lágrimas. Nick chorava tanto que ela mal conseguia entender o que dizia. — ... arruinei a sua vida... Will... você... amava ele...
Fiona refletiu sobre o que ele dizia. Olhou para os prédios e as arvores em volta, para o sol a pino no céu. E depois se voltou para ele.
— Não. De verdade, não — ela disse, com uma voz estranhamente calma.
— O quê? — ele perguntou, fungando.
— Você é que estava certo. Lembra aquela noite no seu apartamento? Quando nós brigamos? Você disse que eu não amava o Will de verdade. Não da forma que amei o Joe. Eu amava muitas coisas no Will. Seu coração de ouro. Sua inteligência. Amava a sofisticação da vida que ele leva e gostava de ser desejada outra vez por alguém, de ser cuidada e paparicada. Mas eu não amo ele. Não como se deve amar. Só estou sentida, profundamente sentida, por causar sofrimento nele. Joe foi o meu verdadeiro amor, Nick. Como o Henri foi o seu. Só se ama assim uma vez na vida. Eu sei que é difícil, mas já é hora de aceitar isso.
—Você me ama?
Ela sorriu para ele.
—Você sabe que sim.
— Eu também te amo. E vou cuidar de você, Fi. E também do Seamie. Eu serei o melhor marido do mundo. Sei que não teremos um casamento convencional... eu não posso te dar filhos... mas posso dar tudo o mais. Uma casa boa. Roupas. Jantares em restaurantes. Tudo o que você quiser. Não tenho tanto dinheiro quanto o Will, mas tenho um bom bocado. Cerca de dez mil libras por ano. E a galeria já está quase para abrir. Sabe, minhas perspectivas são excelentes.
Fiona o olhou de soslaio longamente.
— Nicholas Soames... você está me pedindo em casamento?
— Acho que estou. Na verdade, um pouco atrasado.
—Eu aceito.
— Verdade?
— Absoluta — ela repousou a mão no ombro dele. — Eu casaria de novo com você sem pestanejar. Faria qualquer coisa para mantê-lo aqui. Você é a pessoa mais importante para mim neste mundo. Você e o Seamie.
Ela o ouviu fungar novamente. E, depois de alguns segundos, ele disse:
— Você tem certeza de que é isso que você quer? Porque, se não quiser, acho que podemos conseguir o divórcio.
— Não, nós não podemos. lsso só causaria um escândalo que dificilmente conseguiríamos evitar, e já tive confusão de sobra.
—E aquele seu lindo vestido de noiva, Fi? E as jóias que Will lhe deu?
— Uma outra poderá usar o vestido. E, quanto a isso... — ela puxou o enorme diamante do dedo e o guardou na bolsa. — Ele nunca caiu bem em mim.
— E ainda tem a sua viagem. Você aguardava por isso e agora não vai poder ir para a França na semana que vem.
—Não vou — ela disse, abrindo um sorriso para ele, feliz por se dar conta de poderia fazer uma outra coisa. — Mas posso ir para o meu maravilhoso Rosa-Chá, Nick! Vestirei meu avental e começarei a trabalhar! — ela riu. — Não quero desistir dele! Como é que eu pude imaginar isso? Sabe de uma coisa? Eu mal possoesperar! Mal posso esperar para voltar lá e ver minhas rosas e abrir o lugar e me empapuçar de chá e bolinhos.
— Eu vou levá-la para uma lua de mel, Fi.
— Você vai? Aonde?
— Coney Island.
Fiona sorriu.
— Com Seamie e Michael e os Munro de acompanhantes. Isso, sim. Será romântico!
Fiona e Nick sentaram-se de mãos dadas no banco e conversaram até a uma da tarde, até que Fiona percebesse que já era tarde e as pessoas já deviam estar preocupadas em casa. Ela saíra apressada de casa na noite anterior e só levou um segundo para dizer a Alec que tinha acontecido algo com Nick.
— E melhor a gente ir pra casa, não é? — ela disse. — Eles devem estar morrendo de preocupação. Vamos ter que contar para o Michael o que houve.
Nick gemeu.
— Acho que teria sido melhor ser deportado.
Eles se levantaram para sair e Fiona notou que o corte no rosto dele sangrando outra vez. Estancou o sangue com o lenço que Teddy lhe oferecera e esquecera de devolver.
— A propósito — ela disse, enquanto passava o lenço no corte —, aquela jogada que você tentou na corte foi idiota. Não tem vergonha de tentar se passar por visconde?
Ele segurou-a pela mão.
— Fiona, não foi nenhuma jogada — ele retrucou, com timidez.
Ela avaliou a fisionomia dele.
— Você... você está brincando, não é?
Ele negou com a cabeça. Pegou-a pela mão, abriu um sorriso e disse:
— Viscondessa, quero ser o primeiro a lhe dar congratulações pelo seu casamento.
REANIMADO PELO BANHO da manhã, o único banho semanal permitido pela senhoria, Joe vestiu uma camiseta limpa e a enfiou por dentro da calça. Olhou o rosto no pequeno espelho quadrado dependurado na parede acima da do quarto e começou a se pentear. Agora, ele passaria a procurar em Chelsea fazia quase três semanas que estava na cidade e ainda não encontrara sinal algum de Fiona. Estava cada vez mais difícil manter o otimismo.
Michael Charles Finnegan revelara-se um outro beco sem saída. Ele tinha sobrinha, mas ela se chamava Frances e estava com dez anos de idade. Eddie não tivera melhor sorte. Ele chegou à mercearia no endereço da 8th Avenue e bateu à porta. Foi atendido por um velho que confirmou que ali era realmente a residência de Michael Finnegan, mas o homem tinha saído. O velho sugeriu a Eddie que retomasse pela manhã. Eddie indagou se Michael tinha uma sobrinha, mas o velho o cortou, dizendo que já tinha tido muita comoção para uma única noite e que não ia responder perguntas de um moleque de rua. Depois, bateu a porta na cara de Eddie.
Isso ocorreu dois dias antes. Eddie não pôde voltar à 8th Avenue, porque passou o outro dia inteiro entregando folhetos, mas deu o endereço para Joe. E nessa manhã ele iria até lá. Fiona tinha que ser encontrada. Ele estava sendo extremante cauteloso com o dinheiro, que mesmo assim diminuía.
— Onde você está, garota? — ele suspirou alto no quarto vazio. — Em que buraco meteu? — sentiu-se inteiramente devastado pelo desespero. Sentou-se na beirada da cama e apoiou os cotovelos nos joelhos, convencido de que nunca a encontraria, que todas as suas esperanças e todos os seus esforços tinham sido em vão.
Ele repeliu esse sentimento, determinado a continuar em sua busca. Não se deixar abater. Ela estava na cidade. Ele pressentia isso, sabia disso. Só precisava encontrar o Finnegan certo. Alguém bateu à porta enquanto ele pegava as botas, com uma batida tão súbita e tão pesada que o fez dar um salto.
— Senhor! — uma voz pequena atravessou a porta. — Abra a porta! Eu a encontrei! Dessa vez realmente a encontrei!
Joe atravessou o quarto correndo. Abriu rapidamente a porta. Eddie estava parado à soleira, segurava um jornal nas mos. — Olhe! E ela, não é? Fiona Finnegan. É essa, não é?
Ele pegou o jornal. Na segunda página, uma fotografia de Fiona, mas não a Fiona que ele conhecia. Essa Fiona sorria. Vestia um traje elegante e um bonito chapéu. Ela estava linda. Absolutamente radiante. Um homem beijava o seu rosto. A manchete dizia: ―O casal mais charmoso de Nova York se casa na corte de justiça‖ artigo escrito por um tal de Peter Hylton comentava:
Nada de coluna nesta edição, caros Leitores. Hoje, só vamos relatar uma história, a de um dramático casamento na corte, de Nicholas Soames com Fiona Finnegan, a adoravel proprietária do GostoChá e do salão de chá que está para inaugurar, o Rosa-Chá. Nesta manhã, a notícia deve ter partido muitos corações na cidade, e um certo e famoso milionário rival do senhor Soames retirou-se no campo. Vale tudo na guerra e no amor, queridos, mas já estou divagando! De volta à noite de terça-feira e à prisão equivocada que levou ao casamento...
O artigo detalhava a prisão de Nicholas Soames, a defesa de seu advogado, o heróico testemunho de Hylton sobre o comportamento do senhor Soames, e o apelo desesperado da senhorita Finnegan ao juiz. Anexo ao artigo, textos à sobre a galeria de Nicholas Soames e sobre o próspero negócio de chá de Fiona.
Joe estava boquiaberto. Aquilo não era real. Não podia ser. Ele continuava a ler. Fiona vivia em Chelsea, dizia o artigo. Em cima da mercearia do tio, Michael Finnegan. O lugar que tinha sido visitado por Eddie. Se ao menos ele também tivesse ido lá, na 8th Avenue, e não na Duane Street. Oh, Deus, se ao menos...
— Senhor? O senhor está bem? O senhor não parece bem—disse Eddie. — uma xícara de café? Um pouco de uísque? Talvez seja melhor o senhor se sentar.
— Estou bem — disse Joe, amortecido. Enfiou a mão no bolso, puxou a primeira coisa que tocou e entregou para Eddie.
— Um dólar inteiro? Puxa, obrigado! — Joe o levou para fora do quarto. Pegou outra vez o jornal e se pôs a olhar a foto, esperando que não fosse Fiona. Ma era. Aquele rosto, aquele sorriso. Eram inconfundíveis. Ele se sentiu vazio. Como se fosse um enorme buraco. Não havia mais nada dentro dele. Nem coração, nem esperança, nem vida. Tudo desaparecera. Arrancados em um único instante.
A medida que olhava a foto, um riso amargo escapava dele. Que tolo ele fora. Ela não se encaixava nem um pouco na imagem pobre e desprotegida que ele havia criado. Ela não estava em dificuldades, nem perdida, nem assustada. Como fora presunçoso ao presumir que ela ficaria infeliz e solitária sem ele. Ela se tomara uma linda mulher de sucesso, não era mais a garota cujo coração ele havia partido em Old Stairs. Seguira em frente e tinha criado uma vida completamente nova para ela. Uma ótima vida. Ela parecia tão feliz como toda noiva com seu noivo elegante, um homem, pela aparência muito melhor que um carroceiro de Whitechapel. Joe fitou esse homem — de rosto esmurrado, mas ainda assim bonito — e se sentiu mal, só de pensar nela nos braços dele. E se perguntou furioso: o que você esperava? Abandonou-a e ela encontrou um outro. Exatamente como devia ter feito.
Por um segundo, pensou na possibilidade de sair para vê-la. Para vê-la pela ultima vez. Mas se deu conta de que isso seria egoísta e injusto, e só a deixaria aborrecida. A culpa era toda dele, não dela. Na verdade, os fatos retornavam contra ele. Isso não passava de uma punição pelo que ele havia feito com ela. E ele outra vez a voz de sua avó: ―Nós não somos punidos por causa de nossos pecados, mas pelos próprios pecados.
Ele não iria vê-la. Deixaria que ela seguisse sua própria vida. Assim como ele seguiria a dele. Sem ela. Ela não voltaria para ele. Não voltaria para Londres. Ele se sentiu acossado por uma dor que crescia dentro dele, um profundo sentimento de perda que o aterrorizou. Ele tinha que superar isso; não podia se deixar ser apanhado pela dor. Se permitisse isso, a dor o quebraria em pedaços.
Joe puxou o saco de viagem de debaixo da cama. Partiria naquele dia mesmo. Já tinha sua passagem de volta. Daria um pulo até o local de trabalho de Brendam para se despedir, e depois iria ao porto para ver se havia um navio da Whitestar partindo naquela noite e se ainda havia alguma vaga disponível. Abriu a gaveta superior da cômoda, pegou suas coisas e colocou-as dentro do saco. O mapa de Nova York ainda estava lá. Jazia aberto em West Side. Em Chelsea onde ela morava. Onde ele planejara ir naquele dia. Ele a tinha perdido por um dia. Um desgraçado dia.
Sem aviso prévio, a dor o invadiu e o empurrou até as profundezas, deixando-o engolfado, afogado. Ele se viu inundado de um pesar sufocante, de suas penas, sua loucura. E se deu conta de que sua vida seria assim. Naquela hora e sempre.
AQUI, Stan, use o querosene — ordenou Bowler Sheehan. — Seu puto, é pra queimar, não é pra fazer um foguinho.
— Está bem, está bem — resmungou Stan Christie. — Dá pra esperar um minuto? Porra, você está muito nervosinho.
Se pudesse, Bowler esganaria Stan. Mas estava tão escuro na velha fábrica de chá de William Burton que ele não conseguia enxergar um palmo diante do nariz. A única luz existente vinha de uma pálida lua crescente. Seus raios esmaecidos infiltravam-se bravamente pelas janelas altas, iluminando as latas enferrujadas de chá e serpenteando pelas trilhas de querosene. Maçanetas, dobradiças, lampiões, candelabros de parede, tudo sumira. Carregado pelos catadores de ferro-velho.
De repente, um ruído.
— Ai, meu tornozelo! Que merda! Não consigo enxergar porra nenhuma! — gritou Reg Smith.
Ecoou uma risada.
— Acende um fósforo — disse Stan.
— Você é muito engraçadinho, Stan, ora se é.
— Opa! Calados. Querem que nos ouçam? — bronqueou Bowler.
— Detesto isso, chefe — reclamou Reg. — Derramei querosene nos meus sapatos. Vai feder durante dias. Por que estamos fazendo essa droga de serviço?
— Burton quer receber o seguro — disse Bowler, — Ele tentou vender o prédio durante anos. Nenhum comprador se interessou. Se o prédio pegar fogo, o seguro vai ter que pagar. Mas só se parecer um acidente.
— Mas pra que ele precisa do dinheiro do seguro? É mais rico que o rei Midas — retrucou Stan.
— Burton não tem mais dinheiro. A fortuna dele sofreu um baque, rapazes - disse Bowler. — Ele levou na bunda alguns anos atrás, quando tentou entrar no mercado de chá na América. E a propriedade dele na Índia faliu no ano passado. O homem que ele contratou pra fazer esse serviço recebeu o dinheiro e fugiu. O cara está cheio de dívidas e precisa de dinheiro em caixa para saldá-las.
— E vai sair deste incêndio — disse Stan, com ares de entendido. — Nunca provocamos um incêndio.
— Acrescentem no curriculum vitae de vocês, rapazes — disse Bowler, com sarcasmo. Ele não foi entendido pelos outros.
— A gente faz isso fácil — disse Stan, pensativamente. — Não é qualquer que tem a nossa experiência, Reg. Bater carteira, assaltar, furtar, invadir residências, extorquir...
— Manipular eventos esportivos... — acrescentou Reg.
— Quebrar braços, fraturar joelhos...
- E matar, não se esqueça disso. E a maior de todas.
— Já podemos até dar um curso. Pra turma que está entrando no ramo.
— Claro que podemos ! — disse Reg, entusiasmado. — Mas como é que o chamaríamos?
- Educandário Stan Christie e Reg Smith, Escola de Lesão Corporal e Assassinato — respondeu Bowler.
— É um bom nome, não é? — disse Reg, e Stan concordou.
Enquanto os dois trocavam ideias sobre o conteúdo das aulas, Bowler sentava-se num caixote de chá, esfregando o rosto. Só podia dar no que deu. Um homem do gabarito dele se sujando no meio da noite naquele pardieiro, acompanhando homens como aqueles dois. E sob as ordens de um maluco como o Burton que se tornara mais imprevisível e violento com o passar dos anos e à medida que os problemas financeiros aumentavam. Ele mesmo viu quando Burton um dia agrediu seu próprio capataz e certa vez quase esganou Stan porque o rapaz riu de maneira inapropriada. Ele não devia ter aceitado um serviço como aquele. Era coisa para peixes pequenos, para amadores. Mas estava ficando cada vez mais difícil aparecerem serviços remunerados.
Tudo tinha mudado. Não era mais como nos velhos tempos — 1888 a. J., como Bowler costumava dizer, ou antes do Jack. Aquele bastardo miserável acabou arrumando o ramo para todos. Sob o impacto dos assassinatos, as autoridades morais de Londres deram prioridade a East End. Colocaram mais policiais nas rua. Apareceram mais pregadores. Mais missões e bons samaritanos, E ainda por cima o insolente do Roddy O‘Meara, que cumprira à risca a promessa feita e ficou em sua cola por todos aqueles anos. Sempre o seguindo, falando com ele em público como se ele fosse um informante, realizando batidas nas casas de apostas e nos que ele controlava. Bowler só passou a ter um pouco mais de descanso três antes, depois que O‘Meara foi promovido a sargento e teve que ficar mais tempo detrás de uma escrivaninha, mas se os deveres de agora o impediam de rastreá-lo pessoalmente, isso não o impedia de pôr seus subordinados na sua cola.
E, ao mesmo tempo em que as forças da lei o pressionavam, a sua própria gente e se tornava cada vez mais imoral. Alguns deixaram de contratá-lo, como Denny Quinn, o dono do Taj. Quinn estava sempre chorando miséria, mas tirava potes de dinheiro do Taj. Bowler sabia qual era a verdadeira razão para a recusa de seus serviços: o desgraçado do Sid Malone.
Bowler deu uma cusparada, sentindo-se mal só de pensar no seu rival. Malone era jovem. Um presunçoso. Saíra sabe-se lá de onde. Não fazia muito tempo que ele não passava de um mero marginalzinho metido em brigas, pequenos roubos e venda de mercadoria roubada. Como ele havia centenas. Bandidinhos que roubavam para comer ou para pagar um leito numa pensão pulguenta. Malone, no entanto, não engrossou essas fileiras por muito tempo. Cérebro e coragem, combinados com uma reputação de valentão, asseguraram-lhe uma rápida ascensão ao topo.
Como Bowler, Sid Malone controlava os resultados dos estabelecimentos ilícitos e coletava dinheiro em troca de proteção. Diferentemente de Bowler, ele atuava ao sul do rio, em Lambeth, Southwark, Bermondsey e Rotherhithe. Viva e deixe viver, era a política de Bowler. Desde que Malone permanecesse no lado do dele, Bowler permaneceria no seu. Só que o outro não estava respeitando os limites. Nos últimos meses, ele tinha se valido de sua influência com os administradores portuários e os donos de navios para operar atividades bastante lucrativas: trafico de armas para Dublin, ópio para Nova York e mercadorias roubadas de primeira qualidade para Paris, O sucesso desses empreendimentos aguçara a ambição dele. Circulavam rumores de que ele estava pronto para atuar na parte norte do rio, território de Bowler. E, no dia anterior, os boatos se confirmaram. Malone cresceu no Taj. Reg e Stan o viram. Ele fez uma refeição, apostou numa luta e dormiu com uma das prostitutas de Quinn.
Descarado. Maldito descarado, pensou Bowler. Sua dúvida era sobre qual pescoço ele mais desejava quebrar: se o de Malone, por ter mijado no seu território, ou o de Quinn, por ter permitido.
Se tivesse uma chance, Bowler mataria Malone em um segundo, sem dó nem piedade, mas o homem era bem protegido. Para chegar perto dele seria preciso encarar meia dúzia de seguranças, cada qual mais parrudo que o outro. Mas Bowler sabia o que fazer: pegaria o Denny Quinn. Seria um recado. Um aviso. A ideia o chateava — gostava muito do Denny —, mas se permitisse aquele tipo de comportamento , aonde ele iria parar? Sem dúvida, boiando de bunda para o alto no Tâmisa. No Tâmisa de Malone.
O cheiro de querosene o engasgou, fazendo-o tossir.
— Vocês dois já acabaram?
— Sim, chefe. Já acabamos — respondeu Stan.
— E o nosso amigo vagabundo?
— Ainda está frio, mas daqui a pouco ficará quentinho.
Os olhos de Bowler estavam acostumados com a escuridão e ele não teve dificuldade para ver o cadáver no chão, com a latinha de tabaco pendendo para fora do bolso. Eles o tinham encontrado quando perambulava num beco. O cara reagiu. De fato, uma vergonha, mas não podia ser de outro jeito; dificilmente o velho cavalheiro consentiria em ser queimado vivo. Quando as chamas fossem apagadas, a impressão que se teria é que o velho incendiara o lugar por acidente.
— Pegou a garrafa — perguntou Bowler.
— Está aqui — disse Reg, segurando uma garrafa vazia de gim.
— Fósforos?
— Também.
Em silêncio, eles deixaram o prédio por onde entraram, pela porta lateral trancaram-na com a chave que Burton lhes dera e deixaram tudo do mesmo jeito em que estava. Já do lado de fora, Reg despejou querosene dentro da garrafa e depois enfiou um trapo pelo gargalo, deixando um pedaço de pano para servir de pavio. Por fim, ele acendeu um fósforo e pôs fogo no trapo. O fogo se acendeu com violência.
— Agora, cara! — silvou Bowler.
Reg jogou a garrafa através de uma janela sem vidro. Já correndo. Bowler olhou para trás para se certificar de que seus homens o seguiam. Stan estava atrás, mas Reg continuava no local, assistindo ao começo do incêndio e ouviu um grande chiado seguido por uma forte explosão. As trilhas do querosene ainda não foram detonadas, ele pensou, antes de sentir a força de uma explosão. As janelas das fábricas e casas vizinhas se estilhaçaram. Cacos de vidro voaram para todos os lados. Enquanto corria, Stan agarrou-o pelo cotovelo.
— Vamos embora! — ele gritou.
— E o Reggie?
— Esquece! Ele se safa!
Em pouco tempo, as chamas tomaram todo o prédio. A rua foi envolvida pela fumaça. Reg surgiu, correndo da densa nuvem enegrecida. Seu rosto apresentava manchas escuras e alguns cortes.
— Que maneira difícil de ganhar a vida — ele disse irritado. — Daqui pra frente, chefe, é melhor a gente só se dedicar aos assaltos.
LARGUE ESSA GARRAFA, Lizzie! — esbravejou Roddy O‘Meara. — Agora! Se você cortar o rosto dela, são três meses de cadeia. Escute, moça! Eu disse para largar a garrafa!
— Essa cadela fedorenta tentou roubar o meu cliente! — gritou a mulher. — Vou retalhar a cara dela! Quero ver se depois ela rouba mais alguém!
Lizzie Lydon, uma prostituta, tinha jogado no chão uma outra prostituta chamada Maggie Riggs, na frente do pub The Bells. Naquele instante, ela estava sentada em cima da mulher, tentando cortar o rosto dela com uma garrafa quebrada, a Maggie segurava o punho de Lizzie, na tentativa desesperada de imobilizá-la. Roddy estava a poucos passos de distância e, se fosse mais rápido,poderia render Lizzie com facilidade. Se ele não conseguisse, quem pagaria o preço seria Maggie.
— Vamos lá, Lizzie, largue a garrafa. Você não vai querer os problemas que virão se cortá-la.
Lizzie elevou os olhos para ele. Seu rosto estava transtornado pela raiva, mas os olhos estavam marejados.
— Mas fui eu que o vi primeiro, chefe — ela disse. — Era um cliente meu! Só dei um pulo no banheiro e, quando voltei, ela já estava saindo com ele!
Roddy se aproximou um pouco mais.
— Me dê a garrafa, querida.
— Há uma semana que eu durmo no chão! — ela gritou, chorando. — Só quero cama para dormir a noite toda, só isso — ela cravou os olhos outra vez em nele. — E eu tinha conseguido! Mas ela roubou o meu cliente!
— Solte-a. É bem melhor dormir no chão que na cadeia.
Lizzie sorriu, com melancolia.
— Você está errado, chefe. Na cadeia, a gente recebe uma tigela de comida. Pelo menos é quentinha.
Roddy se colocou ao lado de Lizzie. Esticou-se para pegar a garrafa.
— Vamos lá, me dê — ele tentou persuadi-la. — Tudo será resolvido — ela entregou a garrafa. Ele ajudou-a a se levantar e fez o mesmo com Maggie, reparando nas saias e nas mãos sujas de ambas. O rosto de Lizzie tinha cicatrizes horríveis, adquiridas em algumas brigas no passado. E ele pôde ver através das mangas puídas do casaco vermelho de Maggie que os punhos dela se reduziam a pele e osso.
Roddy estava perfeitamente ciente de que devia prendê-las por bebedeira e desordem mas não faria isso. Elas não eram criminosas e sim mulheres desesperadas.Desesperadas e famintas e miseráveis. Lembrou-as que a missão lhes daria um prato de sopa sem que precisassem ouvir sermões religiosos e avisou que da próxima vez ele não seria tão compreensivo. Depois, dispersou um grupo de curiosos que se formara para assistir à briga, mandando-os tomar seu rumo, e se dirigiu ao leste, no sentido da Christ Church.
Como sargento, Roddy não precisava patrulhar as ruas, mas ele passara muito cumprindo essa função e isso se tornou um hábito, de modo que toda noite reservava uma hora e pouco para isso, enquanto rumava ao encontro da família na sua confortável casa de dois pavimentos na respeitável Bow. Isso o mantinha em contato com as pessoas por quem ele era pago para proteger. E lembrava aos maus elementos que ele estava presente, vigiando-os.
— Boa noite, senhor — soou uma voz na névoa.
Roddy forçou os olhos em meio ao nevoeiro e entreviu a figura atarracada com capacete e uma fileira de botões de metal no paletó. Era McPherson. Já fazia vinte e cinco anos que estava no regimento e ainda patrulhava as ruas. Mas não porque não fosse bom o bastante para ser promovido. Além de ser um dos oficiais mais espertos e mais inteligentes que Roddy conhecia, ele tinha recebido diversas propostas de promoção, mas sempre se recusava, o homem não queria ter nada a ver com as dores de cabeça e frustrações de um cargo mais elevado.
— Noite tranquila, policial? — perguntou Roddy.
— Sem problemas. E a sua?
— Tive que impedir que uma moça cortasse a cara de outra mulher — ele disse com indiferença.
—Só isso?
— Sim.
McPherson riu.
— Sargento, o senhor é muito estranho. A maioria dos policiais mal consegue esperar para cair fora das ruas, e o senhor não aguenta ficar fora delas. Esta indo para casa?
— Estou, sim. Mas antes resolvi dar uma volta. Para observar as ruas.
— Pois eu acabei de ver algo que me deixou intrigado.
— O que foi?
— Sid Malone e Denny Quinn. Estavam saindo do Taj.
Roddy franziu a testa.
— Malone? Aquele cara de Lambeth?
— Ele mesmo.
— Whitechapel não é o território dele. Alguma ideia sobre o que ele veio fazer por aqui?
— Coisa boa é que não é. Estou certo disso.
— E como ele é?
McPherson deu de ombros.
— Como qualquer outro criminoso de Londres. Valentão. Capaz de pestanejar. Nunca o viu?
— Se vi, isso foi anos atrás — Roddy se lembrou que Charlie Fim tinha trabalhado na cervejaria com um rapaz chamado Sid Malone que uma vez tentou agarrar Fiona. A época, ele chamou o rapaz às falas, advertindo-o para que nunca mais mexesse com ela. O Sid Malone de quem ele se lembrava era um brigão, e os brigões preferem lutar com gente mais fraca que eles. E o Sid Malone que visitava o estava procurando encrenca com alguém mais forte. Muito mais forte que ele.
— Ouvi dizer que ele faz negócios na margem sul do rio — disse McPherson. — Talvez esteja pensando em abrir um ponto em nossa vizinhança.
— Pode ser. Mantenha os ouvidos abertos.
— Deixa comigo. Está indo para o norte, sargento? Dê uma espiada na fábrica de chá. O fogo se alastrou quase por toda a rua. Deixou quarenta famílias desabrigadas. A versão oficial é que o incêndio começou com um cigarro. O sujeito morreu e o fogo se alastrou.
Roddy deu uma cusparada, com um gosto azedo na boca.
— A versão extraoficial é que foi obra de Bowler Sheehan. Não conseguiremos pega-lo. Todos dirão ―não ouvi nem vi nada‖. Como sempre.
— O Sheehan agora é incendiário?
- Ele faz uns serviços estranhos para o dono do prédio, o William Burton. Andei conversando com um corretor e ele me disse que o Burton está tentando vender o prédio há anos. Meu faro diz que ele contratou o Sheehan para ajudá-lo a obter o cheque gordo do seguro.
— Ele escolheu uma excelente noite para um incêndio. Muito seca. É uma noite propícia — McPherson esfregou as mãos. — O mesmo clima do Estripador.
— É mesmo. Mas não toque mais nesse nome. É um assunto proibido na minha casa.
— Na minha também.
O Estripador era um tópico proibido nas casas dos oficiais que tinham trabalhado no caso. Suas esposas já estavam cansadas da obsessão que eles nutriam por este louco, de tanto que ouviram as histórias contadas por eles.
— Pare de falar nisso, Roddy. Acabou ! — gritou Grace para ele logo depois que se casaram; ele tinha acordado assustado com um pesadelo. — Encontraram aquele corpo no Tâmisa e todos afirmam que é do Jack. Você não poderá trazer aquelas mulheres de volta. Nem a Kate Finnegan. Pelo amor de Deus, por que não esquece disso?
Por quê? Bem que ele queria. Não queria mais ver os olhos esbugalhados de Annie Chapman em seus pesadelos. Não queria mais acordar sentindo cheiro de sangue. Não queria ouvir o pranto de Fiona enquanto sua pobre mãe assassinada era enterrada. Ele fazia força para acreditar que o jovem advogado, Montague que foi encontrado boiando nas águas do Tâmisa, em 1888, era realmente o assassino.
Como se lendo os pensamentos dele, McPherson disse:
— A Scotland Yard disse besteira quando afirmou que o Druitt era o Estripador. Nunca engoli isso.
Roddy o olhou longamente.
— Nem eu. Nada se encaixa. O pobre rapaz era um doido de pedra, mas não era um assassino. Não há registro de violência em seu histórico. E ele não conhecia Whitechapel.
- Não como Jack conhecia Whitechapel.
— Ou ainda conhece — disse Roddy, mansamente.
A ideia de que Jack ainda estava vivo, escondido em algum lugar, era um pensamento compartilhado por ambos, mas eles raramente enunciavam isso. Nos anos que se seguiram, apareceram mais dois cadáveres — prostitutas estranguladas e esfaqueadas e eles se perguntaram se não seria obra de Jack. Será que o sujeito tinha aprendido a controlar suas compulsões? Será que se satisfazia com menos frequência? Ou aprendera a variar de método? O alto comando fazia o máximo para manter esses segredo. Alegavam que o caso estava arquivado e que o Estripador tinha morrido.
—Espero que continue morto — disse McPherson. —Nunca teremos certeza, não é? Somos obrigados a deixá-lo arquivado debaixo de outros casos não solucionados.
Roddy assentiu com a cabeça. Casos não solucionados. Ninguém lhe tira ensinado nada sobre essa parte do trabalho. Fazer com que um homem se submetesse, como agir quando se estivesse em vantagem numérica, tudo isso era possível aprender. Mas nenhum treinamento podia prepará-lo para os casos não solucionados. Os becos sem saída. O fracasso. Quando jovem, ele se recusava a aceitar isso, acreditando que, se trabalhasse arduamente, acabaria solucionando fosse o que fosse. Ele encontraria uma pista, um detalhe esquecido, que o ajudaria a pegar qualquer molestador de crianças, assassino. Com o passar dos anos, ele mudou seu pensamento. Aprendeu que às vezes não existem pistas. Aprendeu que alguns criminosos eram inteligentes. Ou sortudos. Depois de muitos anos, ele aprendeu como beijar a mulher no final do dia e pôr os filhos para dormir, sabendo perfeitamente que, enquanto isso, os ladrões rondavam, as mulheres eram espancadas e os assassinos andavam à solta pelas ruas. Ele tivera muitos professores, mas nenhum tão bom quanto Jack.
— Eu já vou indo — disse McPherson. — Vou passar pela Brick Lane. A ronda de sempre. Boa noite, sargento. Chegue seguro em sua casa.
— Você também, McPherson. Cuide-se.
Roddy continuou seu caminho rumo ao leste. Ele rodopiava o cassetete enquanto andava, mergulhando profundamente nas lembranças de 1888. Numa noite como aquela, o passado insistia em se fazer presente. Tomava-se tão real como os paralelepípedos sob os seus pés, como o ar amargo que ele respirava. Ele se consolava com a única coisa boa que saíra de toda aquela miséria: Fiona e Seamie tinham escapado dali. Eles tinham uma vida nova na América.
E ele acabara de receber um cartão de Natal de Fiona com uma foto dela junto ao marido, Nicholas, e Seamie. Ela se tomara uma linda mulher, embora sempre tivesse sido uma moça bonita. E agora Seamie já era um rapazinho. Bonito e esguio. Roddy ficou muito feliz ao receber o cartão. Sempre se sentia feliz quando as cartas e as fotografias chegavam. Ele se alegrava em saber que ela era uma vencedora. Ela acabou se dando uma comerciante de chá! Nada menos que a maior em toda a América.
O marido dela era um cavalheiro rico, Roddy podia ver pelas fotografias, mas ela dizia que ele era muito bom para ela e que o amava muito. Aparentemente, ela se dera muito melhor com esse homem do que se daria com Joe Bristow. As vezes, só de pensar no que Joe tinha feito com ela, o sangue de Roddy fervia, mas esses sentimentos pelo rapaz se abrandaram com o decorrer dos anos.
Ele ainda se lembrava de como o rapaz estava quando retornou de Nova York. Um caco. Como se o coração tivesse sido arrancado de dentro do peito. Ele devolveu quatro libras que sobraram para Roddy, com a promessa de que pagaria o restante, trouxe um jornal com a foto de Fiona junto ao marido e o relato de todo o casamento. Roddy o fez entrar e beber um copo de uísque. Não teve coragem de dizer que tinha recebido uma carta de Fiona dois dias após a partida dele. Depois disso, não o viu. Umas duas ou três vezes, nas ocasiões em que ele foi saldar a dívida.
Fiona nunca perguntou por Joe nas cartas que escreveu durante todos aqueles anos. E Roddy, por sua vez, nunca mencionou o nome dele. Por que remexer em feridas? Ele também nunca se referiu ao nome de Bowler Sheehan ou a sua alegação de que ela havia roubado dinheiro de William Burton. O fato ainda o intrigava, mas ele deixou de se preocupar com a ideia de que Sheehan poderia fazer um mal para Fiona depois que soube que ela estava em Nova York. Ele sempre soube que ela era honesta, mas talvez estivesse tão desesperada em sair dali, em fugir do sofrimento, que era perfeitamente possível que tivesse apanhado algumas libras de Burton para poder escapar. E daí? Ele tinha dinheiro de sobra.
Em todas as cartas que escrevia, ele pedia para que ela o visitasse. Ele gostaria muito de ver Fiona e Seamie outra vez, assim como gostaria de conhecer o marido dela.. Mas ela sempre declinava, alegando que Nicholas tinha uma saúde frágil. Ela também o convidou para visitar Nova York junto com a família. Inúmeras vezes. Ele queria ir, mas não era capaz de encarar uma viagem marítima muito longa. O seu estômago fraco transformaria as duas semanas de viagem num verdadeiro padecimento. A única vez que ele entrou num barco foi na travessia que fez de Dublin para Liverpool com Michael e Paddy. Passou o trajeto inteiro com a cabeça debruçada na mureta do convés, com os irmãos Finnegan rindo muito dele. Essa lembrança o fez sorrir.
Paddy... meu Deus, como sinto falta dele, ele pensou. O sorriso se desfez. Se naquela a noite ele não estivesse trabalhando como vigia... as coisas seriam bem diferentes. Todos estariam juntos... Paddy, Kate e as crianças. Era tudo o que Paddy queria: uma família e os meios para sustentá-la. Ele só queria isso.
Suas lembranças foram interrompidas quando uma mulher esbarrou nele. Ela estava de cabeça baixa.
— Desculpe, chefe — ela murmurou ao passar. — Não o enxerguei no nevoeiro.
Roddy notou os cabelos ruivos. Ele a conhecia.
— Alice? É você?
Ela se virou.
— Sou eu, sim. É o senhor, sargento? Esta noite eu não estou enxergando bem.
Roddy suspirou fundo.
— Quem fez isso? — ele perguntou.
— Um cliente.
— Recentemente?
— Na noite passada.
Ele puxou-a para debaixo do lampião e inspecionou a face dela. Os olhos estavam tão machucados que praticamente se fechavam. No canto de ainda havia uma placa de sangue pisado, assim como no nariz. De tão mosqueado o rosto parecia uma fruta podre.
— Jesus, Alice! Você o conhece?
Ela negou com a cabeça.
— Nunca o tinha visto. Não devia ter ido com ele, mas ele me ofereceu um xelim. Parecia um cavalheiro rico. Logo que chegamos no meu quarto, ele enlouqueceu. Começou a dizer: ―eu te encontrei, eu te encontrei‖. E depois me espancou. Deu de falar umas coisas sobre ratos e me ameaçou com uma faca. Eu já estava achando que ia morrer e desandei a falar, e acabei convencendo-o de que ali não havia ratos e ele se acalmou.
— Você devia procurar um médico para ver esses olhos.
— Seria uma boa, chefe. Mas estou dura. Estou indo para o Bells, na esperança de uma bebida que faça a dor parar.
Roddy tirou seis pences do bolso e deu para ela.
— Coma alguma coisa antes.
Alice tentou sorrir, mas estremeceu.
— O senhor está certo, sargento.
— Não se esqueça do que eu disse. Tome um prato de sopa.
— Deixa comigo. Até logo, chefe.
Uma ova que você vai fazer isso, pensou Roddy, observando-a enquanto se afastava. Você vai correr até o Bells e vai encher a cara. A medida que o nevoeiro engolia a mulher, ele se dava conta de que, mesmo com Jack morto, o espírito dele continuava vivo naquelas ruas. No bastardo que espancara Alice. No barman que a enganaria no troco ao vê-la praticamente sem a visão. Nos rapazes que debochariam dela e roubariam as poucas moedas que restassem em seu bolso durante curso de volta a casa. Na fome e na miséria de todas as Alices e Lizzies e Maggie que tremiam de frio nas esquinas, vendendo seus corpos por quatro pences. Na selvageria brutal de alguém como Bowler Sheehan que, por algumas poucas libras, provocou um incêndio e deixou quarenta famílias desabrigadas. Na fria ambição de novatos como Sid Malone, ávido para passar por cima de Sheehan.
Roddy estremeceu, e não era apenas o nevoeiro que o deixava gelado. De repente, seu único desejo era estar no calor aconchegante do seu lar. Com Grace a recebê-lo em meio ao alvoroço e um jantar quentinho no fogão. Ele deu meia-volta e se dirigiu para o norte. Para casa. Para uma breve noite, longe de todos os casos não solucionados.
APOIADO NO CABO de prata de sua bengala, Nicholas Soames, o mais famoso comerciante de arte de Nova York e o queridinho da alta sociedade da cidade sorria para a mulher com quem estava casado havia dez anos. Embora ela tivesse pedido para que naquela manhã ele fosse até a fábrica do GostoChá — um enorme edifício de tijolinhos situado às margens do rio — para ver seu último projeto, agora ela estava tão absorta em seu trabalho que não notara a presença dele.
— A nova máquina é incrível, Nick — ela disse durante o café da manhã. — É de tirar o fôlego! Você tem que vê-la. Apareça na fábrica depois do almoço. Promete que vai?
E ele prometeu, mesmo sabendo que não deveria. Durante aqueles dias, ele sentia a dor com qualquer esforço que fizesse. Como sentia agora: cacos de vidro perfuravam seu coração. Sua saúde piorara dramaticamente nos últimos dois meses e ele se esforçava para esconder de Fiona o seu declínio. Ele sabia que ela ficaria preocupada com isso e não queria vê-la de jeito nenhum tomada pelo sofrimento. Ela já tivera dor de sobra.
Fiona estava a poucos metros dele, totalmente absorvida pelo forte ruído à sua frente. Nick balançou a cabeça. Só mesmo a sua Fi podia achar aquele barulho de metal sacolejante interessante. Ele não fazia a menor ideia do que era e para que servia aquilo; só sabia que ela havia comprado a geringonça em Pittsburgh pela astronômica quantia de cinquenta mil dólares e pretendia nada menos que revolucionar o comércio de chá com aquilo. Enquanto a observava, o sorriso dele — de amor, orgulho e deleite — abriu-se e abrandou sua pálida aparência.
— Olhe só pra você! — ele disse, demonstrando espanto. De manhã cedo, ao sair de casa, ela se mostrara tão refinada, tão elegante. E agora estava simplesmente medonha.
Seu casaco estava jogado sobre um banco, como se fosse um pano de prato. As mangas da blusa branca estavam arregaçadas e numa delas via-se uma mancha de graxa. O cabelo, despenteado; as tranças, que ela sempre usava, praticamente desfeitas. Ele a via de perfil; a fisionomia dela era viva e intensa. Como ele adorava aquele rosto!
Nick continuava a admirar a esposa quando, subitamente, a maquina entrou em funcionamento e o deixou assustado. Seguiu os olhos de Fiona e viu que as latas vermelhas do GostoChá saíam de um setor da engrenagem, enfileiradas numa esteira rolante. Ela pegou uma das latas, abriu-a, retirou algo que parecia um saquinho branco e o examinou.
— Deus do céu! — ela exclamou, agora com um sotaque mais americano que britânico. Retirou mais alguns saquinhos da lata. Depois, pôs o polegar e o indicador na boca e soltou um sonoro assovio. Ecoou um som de metal rangente e logo parou. — Stuart! — ela berrou. — Eles ainda estão se rasgando! Todos eles!
Nick se surpreendeu quando uma cabeça emergiu de um complexo conglomerado de engrenagens, placas e trilhos. Era Stuart Bryce, o segundo homem no comando, depois de Fiona. Ela o havia contratado oito anos antes, quando ele largara a Millard‘s.
— O que é? — ele gritou. — Não consigo ouvir! Estou ficando surdo com esta geringonça!
— É a tensão no rolamento, só pode ser! — ela gritou, enquanto e dos saquinhos para ele.
Ouviu-se uma outra voz, vinda de debaixo da máquina. Nick percebeu que era a voz daqueles dois pés próximos à cabeça de Stuart.
— Não pode ser! Já afastei o rolamento três ezes
— Então ajuste-o pela quarta vez, Dunne! Você não é o mecânico?
Nick ouviu uma bufada de insatisfação e depois:
— Não é o rolamento, senhora Soames. E o mecanismo do grampeador. As pontas estão rasgando o tecido quando os saquinhos passam por ele.
Fiona balançou a cabeça em negativa.
— As pontas do grampeador estão muito gastas. O grampeador não danificaria o corte. É a tensão, Dunne. O algodão está sendo rasgado, não recortado. E você vai consertar ou eu mesma terei que fazer isso?
— Eu gostaria de ver a senhora tentar.
Ora, caro senhor Dunne, pensou Nick, seu movimento foi completamente errado. Ele pegou o casaco de Fiona, dobrou-o e se sentou para assistir de camarote.
Fiona manteve-se parada por alguns segundos, olhando fixamente para os pés de Dunne, e depois pegou um banco, rastejou por baixo da esteira transportadora e foi até o centro da máquina. A saia se prendeu num prego do piso e deu um puxão. A saia rasgou. Nick se encolheu. Seda veneziana, fiada a mão. Um modelo criado por Worth, produzido em Paris. Que pena!
Ouviu-se uma série de resmungos e xingamentos. Um berro. Alguns minutos de silêncio. Um grito de vitória e em seguida...
— Liga! — o monstro retornou à vida. Fiona saiu engatinhando daquela confusão de cilindros e hastes. Nick viu que havia graxa no rosto dela e que uma das mãos sangrava. As latas rolavam outra vez pela esteira. Ela largou o banco, agarrou apressada uma lata e inspecionou o conteúdo. Um sorriso iluminou o seu rosto.
— Sim! — ela gritou, atirando a lata para o alto, não cabendo em si de felicidade. — Sim! Sim! Sim! Nós conseguimos! — ela avistou Nick em meio a uma chuva de saquinhos. Satisfeita, ela pegou no ar um dos saquinhos que caíam da lata e correu na direção dele. Sentou-se num caixote de chá e balançou o saquinho de algodão, agora cheio de chá, na frente dele, Do saquinho saía um cordão por um grampo de metal, que tinha em sua extremidade um pedacinho de vermelho impresso com as palavras ―GostoChá Instantâneo‖.
— Isso é fabuloso, meu amor. E incrível. Mas que diabo é isso? — ele perguntou, enquanto limpava o sangue na mão dela com seu lenço. O sangue tinha escorrido pelos dedo e manchava a aliança de brilhantes e o estonteante anel de esmeralda que ele dera de presente no aniversário do primeiro ano de casamento. Ele franziu a testa quando examinou as mãos dela. Eram mãos rudes, maltratadas, salpicadas de cicatrizes que pareciam ser de uma faxineira ou de uma lavadeira, e não da mulher mais rica de Nova York. Uma mulher que possuía o maior e o mais rentável comércio de chá do país e ainda trinta e cinco salões Rosa-Chá e mais de cem mercearias de luxo.
Fiona puxou a mão, impaciente com os cuidados dele.
— É um saco de chá, Nick! — ela disse, empolgada. — Isso vai modernizar toda a industria! Você só precisa colocar um desses dentro de uma xícara, acrescentar fervente, deixar um pouco em infusão, e está pronto. Sem trabalho, sem desperdício. Não vai precisar mais limpar bules e preparar uma quantidade maior de que o necessário.
— Parece muito eficiente — disse Nick, com uma expressão de aprovação. — americano.
— Exatamente! — exclamou Fiona, levantando-se de um salto. Veja só, é ideal para poupar tempo e trabalho. ―Um novo chá para um novo século!‖ Gostou? Foi o Nate que criou. Ele quer atingir a juventude, os jovens que acham que chá é antiquado, e produzir um mercado completamente novo. Nick, você quer ver os cartazes que Maddie criou! Um deles mostra uma atriz no camarim tomando um Chá Instantâneo. E também há um com uma datilógrafa preparando um chá instantâneo no seu local de trabalho, e um outro com um estudante tomando chá enquanto estuda, e mais outro com um rapagão servindo-se de uma xícara de chá ao mesmo tempo em que faz a barba. E Nick, Nick... ouça isso: Nate contratou o compositor Scott Joplin para compor uma música para nós. E ele já compôs. Chama-se ―O chá rapidinho que vem em saquinho!‖. Daqui a um mês todo mundo estará cantando e dançando. Oh, Nick, querido, não dá pra você só dar uma olhadinha?
Os incomparáveis olhos azuis de Fiona irradiavam um fogo azul. Seu rosto estava corado. Passou pela cabeça de Nick, como sempre passava em muitas ocasiões, o pensamento de que ela era a mulher mais linda que ele já tinha visto. A paixão dela aumentava essa beleza. Ele se viu tão empolgado por essa invenção quanto ela. Ela tinha esse dom, ele pensou, uma surpreendente capacidade de fazer com que as outras pessoas se sentissem tão excitadas quanto ela com suas ideias e projetos. Isso explicava em grande parte seu estrondoso sucesso.
Ele se lembrou de como alguns anos antes ela convencera os estados sulistas a consumirem o GostoChá. As vendas naquela região eram inexpressivas. Ela já tinha tentado propaganda, descontos e concursos, mas nada despertava interesse. Outros comerciantes de chá amigos dela diziam que era impossível vender para o mercado sulista. O povo de lá estava acostumado a beber limonada, ponche e uma mistura de uísque com folhas de hortelã. Poucas pessoas bebiam chá: o clima era muito quente para que se fizesse isso. Fiona ruminou durante semanas as informações, queimando os miolos em busca de uma solução que provasse seus competidores que eles estavam errados. Então, um dia, no café da manhã despejou impetuosamente o resto de chá num copo com gelo.
— Se não podemos convencê-los a tomar GostoChá quente, eles vão tomar gelado — ela declarou.
Fez vários experimentos até aperfeiçoar uma técnica que proporcionasse um chá saboroso e claro, ideal para ser consumido gelado. Depois, ela, Stuart e grupo de vendedores partiram para o Sul. Armaram barracas nas cidades e nos vilarejos e distribuíram panfletos com os dizeres: [b]MORTO DE SEDE VOCÊ ESTÁ? ENTÃO BEBA UM COPO GELADO DE GOSTOCHÁ! [/b]Sem descanso, serviram copos e mais copos de chá gelado e cupons de descontos para a compra de uma caixa de chá. Fiona encantou, adulou e convenceu as pessoas a beberem o seu chá, e elas acabaram achando que o chá era tão encantador e refrescante como ela. Três meses depois, quando ela e sua tropa voltaram para casa, o Sul tinha sido conquistado por inteiro. Nick não tinha a menor dúvida de que ela convenceria todo o país.
Agora, Fiona cantarolava a música. Rindo, ela o pegou pelas mãos e o puxou para dançar. Nick acompanhou os passos dela com perfeição e a certa altura parou e girou-a no ar. Quando ele fez isso, uma dor profunda atingiu seu coração e o fez soltar um grito abafado. Com grande esforço, evitou pôr a mão no peito.
Apavorada, Fiona interrompeu a dança. O sorriso sumiu de sua face.
— O que é? — ela perguntou. — Nick, você está bem? Diz o que há de errado. É o seu coração?
Ele negou com a cabeça, tentando tranquilizá-la.
— Não, querida, não é nada. Na verdade, são as minhas costas. Acho que distendi um músculo. Já estou ficando velho e devo ter dado um mau jeito.
O semblante de Fiona deixava transparecer seu descrédito. Ela o fez sentar-se e começou a demonstrar a sua preocupação, mas ele lhe assegurou que estava tudo tem. E fez uma boa representação, massageando as próprias costas, confiante de que a dor em seu peito perduraria apenas por um ou dois minutos. Descrente, Fiona perguntou a ele se não seria melhor chamar o doutor Eckhardt quando Stuart chegou para cumprimentá-lo, acompanhado por Dunne, o mecânico, um homem grisalho e rabugento que, pelo que Nick soubera, tinha chegado de Pittsburgh com a máquina para se certificar de que funcionaria direito depois de instalada.
A conversa se desviou para os atributos da máquina e Stuart, ensandecido com os planos de expansão mundial, não parou mais de falar sobre o rendimento e a distribuição da máquina. Nick tentava segurar a respiração, achando que isso poderia amenizar a dor no coração. Ele tinha que sair dali. O mais rápido possível.
Um súbito rangido das engrenagens apressou o retomo de Stuart e Dunne à máquina. Nick se levantou, com a sensação de que um gigante apertava o seu coração, e disse para Fiona que também tinha que sair. Alegou que estava esperando Hermione, a gerente de sua galeria, para tratar dos assuntos da semana. Hermione Melton era uma jovem inglesa egressa do Metropolitan Museum que ele contratara dois anos antes, depois que Eckhardt dissera que ele não podia mais trabalhar. Para seu alívio, sua apresentação de saudável e forte estava funcionando. A preocupação tinha abandonado o rosto de Fiona. Ele perguntou se ela estaria em casa para o jantar. Ela respondeu afirmativamente. Despediu-se dela com um beijo e mandou-a de volta ao trabalho.
A dor já estava paralisante. Ele caminhou bem devagar até a carruagem. Entrou no veículo, recostou-se no banco e fechou os olhos. Depois de algum tempo, enfiou a mão no bolso do paletó, pegou um pequeno frasco e tirou uma pílula branca de dentro. O remédio aquietaria o inquieto que pesava no peito como um peixe fora d‘água.
— Vamos — ele gemeu —faça alguma coisa.
Passado algum tempo que lhe pareceu uma eternidade, a carruagem estacionou na frente da mansão na 5th Avenue, onde ele e Fiona residiam. Saltou da carruagem e com a mão trêmula apoiou-se na balaustrada de mármore branco que flanqueava os degraus de entrada. A porta se abriu. Ele ergueu os olhos e viu Foster, mordomo. E ouviu quando a costumeira acolhida do homem se tornou um grito assustador.
— Senhor! Meu Deus... deixe-me ajudá-lo...
As pernas de Nick amoleciam à medida que seu peito explodia numa labareda de luz.
— Foster, chame o Eckhardt... — ele balbuciou, pouco antes de desfalecer.
SEGURANDO A BARRA DAS SAIAS, Fiona Finnegan Soames atravessava com os trilhos que separavam a sua fábrica da West Street. Um jovem vigia noturno aparentava uns dezoito anos a seguia.
— A senhora quer que eu chame uma carruagem, senhora Soames? — perguntou. — A senhora não devia andar sozinha. Está escuro e nesta hora tem todo tipo de gente na rua.
— Não precisa se preocupar, Tom. Estarei bem — disse Fiona, que caminhava à frente dele, abafando o sorriso por vê-lo tão preocupado. — Esta noite eu vou caminhar um pouco. O dia foi muito agitado por causa da nova máquina.
— Ela é uma beleza, não é, senhora Soames? Cem saquinhos por minuto, o senhor Bryce me disse. Nunca vi nada parecido.
— É uma beleza mesmo — disse Fiona. Ela parou de repente e se voltou rapaz. — Por que você se referiu à máquina como ela, Tom? — ela perguntou..
— Desculpe, madame; não entendi.
— A máquina nova. Por que é ela e não ele?
Tom deu de ombros.
— Pela mesma razão que barca é ela. Eu acho. A gente nunca sabe o que vai acontecer. Em certo momento ela está doce e tranquila e, no outro, uma ratazana. Igual a uma mulher.
Fiona arqueou uma sobrancelha.
— Você acha mesmo?
Tarde demais, Tom se deu conta do seu erro.
— Eu... desculpe, senhora Soames — ele gaguejou. — Eu não quis dizer isso, sempre esqueço que a senhora é uma mulher.
— Muito obrigada!
— Eu... eu não queria falar isso — disse Tom, já desesperado e atrapalhado —A senhora é muito bonita, senhora Soames, mas a senhora... a senhora sabe o que quer, a senhora não é tola e coquete. Não anda por aí batendo as pestanas e fingindo que não sabe atravessar uma rua sozinha. A senhora está entendendo o que quero dizer. - ele tirou o boné da cabeça. — Puxa, senhora Soames, por favor, não me despeça.
— Deixe de ser bobo — disse Fiona. — Aqui não se despede quem fala o que pensa.
EIa achou que o rapaz ficaria aliviado, mas, em vez disso, ele se mostrou desconcertado.
— A senhora vê? — ele disse. —Agente nunca está seguro ao lado de uma mulher. Se a senhora fosse um homem, teria me colocado no olho da rua.
— Só se eu fosse um idiota.
A confusão de Tom aumentou ainda mais.
— Como assim? Por ser um homem?
Fiona riu.
— Por isso também. Mas principalmente por despedir um dos meus melhores operários.
O rapaz abriu um sorriso de orelha a orelha.
— Muito obrigado, senhora Soames. A senhora... é muito boa.
— Para uma velha ratazana de esgoto... — acrescentou Fiona com uma piscadela.
— Ai,meu Deus! Eu não quis dizer isso! Eu quis...
— Boa noite, Tom — Fiona se despediu, já na rua.
Enquanto cruzava a West Street em meio a carruagens, troles e estranhos automóveis, ela mantinha a sua maneira habitual de andar com a cabeça erguida, os ombros jogados para trás e o olhar direto e franco. Essa objetividade — não apenas em seu olhar, mas em sua fala, em suas demandas e expectativas e em todo o resto de ser — tinha se tornado a sua marca registrada. Ela era conhecida pela capacidade de enxergar através da fanfarronice e do ar de superioridade dos banqueiros e dos homens de negócio e de penetrar nos falsos números e alegações dos distribuidores e fornecedores. A divertida insegurança da adolescência desaparecera e em seu lugar instalou-se uma segurança inabalável, algo adquirido com trabalho árduo, as realizações e as batalhas.
Ao chegar ao lado leste da rua, ela se voltou para trás a fim de dar uma última olhada em sua fábrica; sentia-se feliz por tudo que dez anos de trabalho tinham lhe dado a grande frota de carros de entrega vermelhos, cada qual com o logotipo branco da GostoChá impresso em ambos os lados, e o enorme prédio da fábrica que se levantava sobre eles. Atrás do prédio estavam as docas da GostoChá, com barcaças a postos para partir de madrugada, na maré alta. Algumas atravessariam o rio até Nova Jersey, outras seguiriam para o norte até cidades como Rhinebeck, Albany e Troy. Outras navegariam para bem mais longe pelo canal Erie até o lago de Ontário, uma vasta frota de transportadores aguardava para levar o GostoChá até as cidades da região dos Grandes Lagos, portos de entrada para cidades do noroeste.
A maioria das mulheres não acharia graça numa fábrica à margem do rio, para Fiona era a própria representação da beleza. Uma onda de preocupação por sua cabeça quando se lembrou da nova máquina e do que esperava que a máquina fizesse. Gastara uma fortuna com isso e gastaria ainda mais. Na publicidade local e nacional, na embalagem, nas promoções e nos novos meios de distribuição. E também em cada plano, esquema e artifício que Stuart e Nate viessem a bolar, por mais ousados que fossem. No decorrer do ano seguinte, ela investiria muito dinheiro nessa nova aventura. Uma aventura que tinha que dar certo.
Respirou fundo e soltou o ar. Os sapos se movimentavam. Alguns anos atrás, chegara à conclusão de que as ―borboletas‖ eram muito delicadas para descrever a sensação que sentia na boca do estômago quando abraçava um novo projeto. Ela não sentia borboletas e sim sapos grandes e pesados. Ela os conhecia demais.
Eles a visitaram quando ela destrancou pela primeira vez a porta da loja abandonada do tio. E no dia em que encomendara os seus primeiros cinquenta sacos de chá da Millard‘s. Eles estavam presentes quando a já falecida senhorita Nicholson lhe vendeu a casa que se transformaria no Rosa-Chá. Eles se preocuparam quando ela e Michael abriram a segunda mercearia Finnegan‘s, na 7th Avenue Street, e toda vez que ela abria um novo Rosa-Chá, quer fosse no Brooklyn Heights, Baltimore ou Boston.
Nick notava quando eles estavam dentro dela. E servia para ela uma xícara de chá bem forte. Do jeito que ela gostava.
— Encharque os bastardinhos com isso — ele dizia. — Sapos odeiam chá. A essa altura de sua vida, ela reconhecia os sapos como um mal necessário como pequenos demônios verdes cuja presença a fazia repensar todas as certezas e expectativas e alinhar os planos e os gastos; fazendo isso, eles acabavam minimizando as margens de erro. Agora, ela sabia que só devia se preocupar em que eles deixassem de atormentá-la.
Naquele exato momento, eles pulavam dentro de seu estômago, mas essas acrobacias não conseguiam diminuir o seu entusiasmo pelo Chá Instantâneo as promessas com que a nova máquina acenava! Se o Chá Instantâneo fizesse sucesso nos Estados Unidos, ela o introduziria no Canadá e talvez até na Inglaterra e na França — mercados propícios para uma nova proposta de chá —, e inevitavelmente triplicaria e até quadruplicaria as vendas.
Continuou na direção do norte, passando pela Jane Street, perdida em seus pensamentos, caminhando mais rápido de maneira inconsciente a fim de diminuir a excitação que a tomava por inteiro. Acho que devo pegar uma carruagem, ela pensava, não quero deixar o Nick esperando. Mas ela não fez isso. Ainda estava ansiosa e simplesmente não conseguia se imaginar dentro de uma carruagem. E também havia alguma coisa a mais que a perturbava. Debaixo das evoluções agitadas dos sapos, jazia um intenso pavor, uma apreensão em relação à saúde de Nick.
A dor que ele sentiu naquele dia na fábrica: teria sido realmente nas costas ou no coração? Ele não tinha esfregado o peito. E sempre fazia isso quando sentia dor.
E também não havia tomado o remédio que Eckhardt ministrara. O médico havia dito que Nick devia tomá-lo imediatamente ao primeiro sinal de desconforto. A preocupação de Fiona se abrandou um pouco e seus ombros relaxaram. Ele um estava um pouco pálido e cansado, mas isso já era esperado. Afinal, ele tinha uma séria e é claro que surgiriam contratempos.
— Mas ele está realmente bem — ela disse em voz alta. — Está, sim.
Ao longo dos últimos dez anos, Fiona tomara todas as precauções para assegurar a saúde de Nick. Providenciara para que ele se alimentasse bem e deixasse de lado sua velha dieta de champanhe e caviar. Fez por onde para que ele descansasse o bastante e se exercitasse na medida certa. E certa vez, guiada pela falsa convicção de que em algum lugar devia haver alguém que seria capaz de curar a sífilis, ela chegou a dispensar os cuidados do doutor Eckhardt e contratou uma série de de médicos americanos e europeus para examiná-lo.
Nick concordou e tolerou com paciência as especulações e tratamentos da primeira meia dúzia de médicos que ela havia arranjado. Suportou unguentos fedorentos e remédios asquerosos. Submeteu-se aos mais variados banhos terapêuticos: banhos de assento, banho de vapor, banho de ar. Massagens. Raspar a cabeça. Abrir as janelas em pleno inverno e agasalhar-se em pleno verão de julho. Mas, quando o sétimo médico ministrou uma dieta só de couve-flor cozida suco de aipo, além de o ter proibido de ouvir o seu novo gramofone — o médico afirmou que o aparelho era muito estressante para os nervos —, ele perdeu a paciência. Disse para Fiona que aqueles doutores só faziam apressar a morte dele e pediu a Eckhardt fosse chamado imediatamente.
Ela foi até o alemão com toda a humildade para se desculpar e implorar que ele voltasse. E, sem nenhuma recriminação, ele assentiu. Quando ela agradeceu pela gentileza, dizendo que era mais do que ela merecia, ele fez um simples gesto que indicava que tudo aquilo eram águas passadas. Werner Eckhardt, um especialista em cardiologia, também tinha um profundo conhecimento das motivações emocionais do coração.
— Cuidado com o excesso de esperança, está bem? — ele aconselhou. — É a esperança e não o desespero que às vezes nos faz enfiar os pés pelas mãos.
Eckhardt podia falar quanto quisesse. Ela não deixaria de nutrir esperança. E ele continuaria a tratar do seu precioso Nicholas. Se não fosse capaz de curar a doença, pelo menos minimizaria os efeitos. A doença não tinha atacado o cérebro nem o sistema nervoso de Nick, o que Eckhardt temia desde o início. Limitou-se a atacar o coração e estagnou por aí. E, segundo o que era lembrado por Fiona, deixou de se desenvolver desde o dia em que ela o encontrou agonizante no apartamento da senhora Mackie. Não vai acontecer nada com ele, ela garantiu para si mesma. Ele estava bem e continuaria assim. Ele tinha que ficar bem, porque ela simplesmente não podia se imaginar perdendo o seu melhor amigo, o seu marido.
Um sorriso lhe veio aos lábios quando se lembrou dos primeiros anos de casamento. Eles viviam no apartamento de Nick, em cima da galeria dele e do Rosa-Chá. Ela passou a maior parte do tempo abrindo novos salões de chá e outras mercearias e fazendo avançar o seu negócio do GostoChá, enquanto Nick trabalhava muito para se estabelecer na cidade como um importante marchand da arte impressionista. Os dois ficavam fora do apartamento o dia inteiro, caçando oportunidades e fazendo dinheiro, profundamente devotados ao trabalho. A noite voltavam para casa, pegavam Seamie na casa de Mary, abriam uma garrafa de vinho e comiam o que estava disponível na cozinha do Rosa-Chá; depois ajudavam Seamie com os deveres de casa, compartilhavam os acontecimentos trocavam conselhos e encorajamentos.
Nem Fiona nem Nick tinham o menor interesse pelas tarefas domesticas e havia uma piada entre eles de que no casamento de ambos nenhum dos dois queria ser a esposa. Agora, era o pobre do Foster que cumpria essa tarefa. Cabia a ele decidir o que haveria no jantar e as flores que enfeitariam a sala de jantar, e se a lavadeira se esmerava em deixar os lençóis brancos.
— Carruagem, madame? — gritou um condutor, tirando-a de seus pensamentos. Ela já ia aceitar a oferta quando se deu conta de onde estava, na Gansevoort Street, frente ao mercado que funcionava nas noites de sexta-feira. Dezenas de braseiros brilhavam intensamente. Suas chamas alaranjadas atraíam os frequentadores para castanhas e batatas assadas, e para uma caneca de sopa quente. Fiona pôde ouvir duas mulheres que conversavam com duas canecas marrons enquanto a fumaça que saía de suas bocas e o vapor do líquido quente se mesclavam com o ar gelado da noite. E também viu um açougueiro erguer um cordão aromático de linguiças.
— Não, muito obrigada — ela despachou o condutor com um gesto. E poucos segundos, ela estava em meio a Gansevoort, indescritivelmente feliz, como sempre, por se ver no mercado.
Deixou-se levar pelo fluxo de gente, simplesmente encantada em ver e ouvir. Acercou-se das carroças de madeira — chamadas de carrocinhas em Nova York — empilhadas até o alto com todo tipo de mercadorias, desde frutas, verduras e legumes da estação até roupas de segunda mão, tigelas e panelas, doces e removedores de manchas e tônicos. Os feirantes apresentavam os produtos aos berros e ela ouvia extasiada.
Feliz, percorria o mercado com seu coração de comerciante batendo excitado e curioso; espiava cada barraca e examinava o conteúdo de cada carrocinha de repente ela o viu. Um rapaz louro e bonito, com um sorriso tentador. Estava de costas e um pouco distante dela, mas ela podia vê-lo de perfil. Ele vestia um paletó roto, um boné escuro e um cachecol vermelho, Seus dedos saíam pelas extremidades das luvas. Ela se pôs a observar o rapaz e, a certa altura, o viu piscar para uma freguesa e lhe oferecer com um floreio um saquinho de castanhas assadas.
O rapaz se voltou na sua direção e logo Fiona se deu conta de que ele não era quem imaginava. O sorriso dele não era tão tentador, o ângulo do rosto não era o mesmo, o nariz era diferente. Os olhos eram castanhos e não azuis. E não passava de um garoto de dezessete anos. O rapaz em quem ela pensava devia estar com uns trinta anos. E estava comandando a Peterson‘s de Covent Garden e não vendendo castanhas assadas.
— Agora deu de ver coisas, sua tonta — ela disse para si mesma. Talvez por conta da penumbra e por não ter comido nada o dia inteiro. Olhou para outro ponto, fingindo-se interessada num exemplar de O morro dos ventos uivantes, exposto numa banca de livros usados nas proximidades, e tentando rir de sua estupidez. Mas o riso não acudiu.
No dia do seu casamento com Nick, ela se deu conta, com uma certeza aterradora, de que nunca deixaria de amar Joe Bristow. Já tinha até tentado se convencer do contrário, mas as consequências foram desastrosas. E embora fosse algo difícil de admitir, ela se esforçou ao máximo para aceitar essa realidade e seguir vivendo. Fazia de tudo para não pensar nele. E, quando pensava, dizia para si mesma que estava em paz pelo que ele tinha feito. E era verdade. Com o transcorrer do tempo e a imensa distância entre a sua vida antiga e a nova, a compreensão acabou substituindo a raiva que ela sentia. E a dor.
Joe era jovem e cometeu um terrível engano, um engano que também o deixou magoado. Ela imaginava que agora ele estava feliz, mas naquela noite, na Old Stairs, na noite em que ele contou o que havia feito, o sofrimento dele era genuíno. Ele só era um rapaz brilhante e ambicioso, um rapaz cujo pai fazia de tudo para desestimulá-lo e que se deslumbrara com o primeiro sabor do sucesso. Agora, ela conseguia entender que ele não fora seduzido apenas por Millie e o dinheiro de Tommy Peterson, mas também pela sua enorme ambição.
Facilidade e riqueza são coisas a que é quase impossível se resistir. Mais do que ninguém, Fiona sabia o quanto isso era verdadeiro porque ela mesma também se deixara seduzir: por William McClane e a vida de luxo que ele lhe ofereceu. Nas semanas e meses após seu casamento com Nick, tornou-se muito importante encontrar dentro de si a força para perdoar Joe; ela havia descoberto o quanto era doloroso magoar alguém e se sentir culpado por isso, e não ser perdoado. Will não a tinha perdoado.
Agora, ela se lembrava do último encontro que teve com ele. Ocorreu na casa dele, um dia após o casamento. Will se apressou em voltar da viagem e acabou descobrindo que a mulher que ele amava, a mulher que tinha aceitado se casar com ele, casara-se com outro. Ele ficou arrasado com essa traição e investiu furiosamente contra ela, dizendo que ela havia arruinado a vida de ambos. Depois, mais calmo, ele se sentou e cobriu o rosto com as mãos. Abalada pelo remorso, Fiona se ajoelhou perto dele e tentou explicar que não tivera escolha. Contou que Nick tinha sido ameaçado de prisão e deportação e que ela sabia que ele não sobreviveria a isso. Will ergueu a cabeça e retrucou:
— Obviamente, Nicholas Soames significa mais para você que eu.
Os olhos dos dois se encontraram.
— Sim. Ele significa, sim — ela disse com suavidade. Levantou-se, porque não havia mais nada a dizer e saiu da casa de Will. Foi a última vez que estiveram a sós.
Depois dessa ocasião, trocaram olhares em teatros e restaurantes, chegaram a acenar um para o outro e até a trocar algumas palavras, mas nada além disso. Ele se casou de novo cinco anos antes, com uma mulher do seu circulo social, viúva e da mesma idade dele. Fiona soube que agora ele passava a maior parte do tempo no campo e que deixara os filhos, James e Edmund, assumirem seus negócios. Os círculos sociais diziam que ele e a esposa viajavam com frequência para Washington, em visita ao filho mais velho, Will Junior, que, segundo os rumores, depois de ter se tornado congressista e senador, agora estava com grandes chances de disputar a presidência. Fiona sofreu muito por ter magoado Will, e ainda assim tinha certeza de que faria tudo outra vez. Nick significava tudo para ela e a simples ideia de perde-lo a apavorava. E embora eles não tivessem um casamento convencional, nenhuma mulher podia ter um marido mais devotado. Ele lhe dava tudo o que ela podia querer de um homem: carinho, humor, inteligência, respeito e sábios conselhos, quase tudo, ela pensou com pesar, enquanto olhava uma ilustração de Hearthcliff numa charneca de Yorkshine.
Em algumas noites, ela rolava na sua enorme cama vazia, preocupada com os negócios, com as péssimas notas que Seamie tirava em latim ou com a saúde de Nick, noites em que sofria fisicamente e ansiava por alguém que a tomasse nos braços e fizesse amor com ela. E, à medida que ficava mais velha, ela também descobriu outra espécie de dor, uma dor profunda que sentia toda vez que via um bebezinho. Havia sentido essa dor duas semanas antes, quando segurava nos braços a pequena e linda Clara, o novo bebê de Maddie, que já tinha quatro filhos com Nate. Fiona tinha tanta vontade de ter seus próprios filhos! Uma vez, anos antes, ela e Nick conversaram sobre isso e ele admitiu que queria uma família e que até faria um sacrifício para engravidá-la se não fosse a sua doença e o pavor de transmiti-la para ela.
No início do casamento, consciente de que ela poderia carecer de um tipo de contato físico que ele não podia prover, Nick encorajou-a a ter um amante.
— Arranje alguém, Fi — ele disse. — Alguém com quem você possa compartilhar um jantar romântico, um bom vinho e a sua cama. Não pode passar o resto da vida como uma freira. Você ainda é muito jovem.
Muitos meses depois, vendo que ela não arranjara nenhum amante, Nick disse que, segundo um artigo que lera sobre psicanálise, uma ciência que surgia à época, ela estava sublimando seus desejos. Ela respondeu que não fazia a menor ideia do que ele estava falando e duvidava que tinha sido diferente com ele, Nick começou a discorrer tudo a respeito de Sigmund Freud, um brilhante médico vienense, e de suas ideias não menos brilhantes teorias sobre a mente humana. Explicou que a sublimação ocorria quando uma pessoa tinha desejos, mas não os realizava. A energia desses desejos era então direcionada para uma outra área da vida dessa pessoa. Trabalho por exemplo. Fiona fez uma expressão de descrédito, mas ele insistiu, dizendo que a teoria explicava o surpreendente sucesso dela. Ela simplesmente direcionava para os negócios toda a energia que poderia ter despendido na cama.
— Por que você não tenta isso, Nick? Jogar toda a energia no seu negócio — ela sugeriu.
— Ora, não seja puritana, Fi. Se você não pode falar de sexo com seu marido, cn quem então vai falar? — ele a censurou.
Uma almofada atirada em sua cabeça o fez silenciar. E a despeito do que ele pudesse pensar, ela sabia que sua relutância em começar um caso com alguém não tinha nada a ver com puritanismo. Fiona não queria um amante. Queria se apaixonar. Will tinha sido seu amante, um amante habilidoso, e embora seu corpo tivesse se encaixado perfeitamente no dele, seu coração permaneceu arredio. Ela se lembrou da primeira vez que fizeram amor e se deitara ao lado dele, ouvindo a respiração dele enquanto dormia e sentindo-se mais sozinha que nunca. O que desejava é que Joe estivesse com ela.
No transcorrer daqueles dez anos, Fiona havia conhecido centenas de homens — muitos deles inteligentes, realizados e bonitos — e vários tinham se apaixonado por ela. Apesar de ter tentado se interessar por alguns deles, buscando em seus olhos a mesma luz que um dia encontrara nos de Joe, ela nunca a encontrou.
— Querida, você tem aí uma boa história. Essa Brontë sabe mesmo lidar com palavras.
Surpresa, Fiona ergueu os olhos para ver a livreira, uma irlandesa gorducha e desconjuntada que a olhava do outro lado da banca.
— Se eu desse um preço pra essa história, não daria menos de cem dólares — se a mulher, batendo o dedo indicador sujo sobre o livro. — Acho que você me entendeu! Cem dólares! E ainda assim considero uma pechincha, pelos dois personagens que estão aí. Cathy e Heathcliff são personagens sábios. Eles sabiam o que é o amor. É uma doença, ora se é! Pior que febre tifóide e mata rapidamente. O melhor é se manter longe dele, costumo dizer.
Fiona sorriu.
— Eu concordo em gênero, número e grau.
A mulher sorriu, estimulada pela resposta de Fiona.
— O livro também tem outros personagens, Edgar e Isabella e Hindley, mas os personagens menos intensos e esses vão de graça... isso se eu estivesse vendendo a história. Mas esta é a beleza dessa história, querida, é só o livro que eu estou lendo! Algumas folhas de papel, algumas tiras de couro para prendê-las. Isso posso vender barato. Baratinho! Pra você, só meio dólar.
Fiona deixou de lado seu instinto natural para pechinchar, um instinto que foi nutrido pela mãe nos mercados de Whitechapel, e pagou o preço exato que a mulher tinha cobrado. Afinal, agora tinha uma boa vida e, embora isso fosse esperado, não podia pechinchar com alguém que trabalhava de maneira tão exaustiva.
Guardou o livro dentro da bolsa e se preparou para voltar para casa. Já passava das sete horas e ela não queria deixar Nick esperando-a por muito tempo.
Quando se dirigia de volta para West Street, seus olhos foram de novo para o rapaz louro, o vendedor de castanhas. Tentava convencer um grupo de doqueiros a comprar seu produto, mas eles estavam a caminho de casa para o jantar e não demonstraram interesse. Ele tentou atrair duas operárias e, depois, um padre... mas ninguém se interessou. Algumas crianças maltrapilhas se aglomeravam em torno dele, implorando por uma castanha assada. Fiona notou que de vez em quando ele dava uma castanha para uma delas e viu como uma menininha conteve a castanha em suas mãos sem luvas e só depois a comeu. Então, ao se virar à procura de novos fregueses, o rapaz a avistou. Ele voltou sua atenção de imediato a ela, sorrindo e flertando e lhe dizendo muito mais do que ela queria saber as castanhas em geral, e principalmente das dele.
— Vamos lá, madame, experimente uma — ele insistiu, atirando duas castanhas e forçando-a a pegá-las no ar. — Olhem, senhoras e senhores — continuou com alegria. — Nunca conheci uma mulher que não quisesse pôr as mãos num par de castanhas quentes.
As crianças maltrapilhas caíram na risada. Uma senhora que segurava sacola deu uma piscadela para ela. Ruborizada, Fiona procurou a carteira da bolsa, irritada por ter sucumbido outra vez ao charme de um barraqueiro bonito.
— Vai querer um ou dois saquinhos?
— Quero tudo que você tem aí — ela disse, puxando uma nota da carteira.
Ele emudeceu por alguns segundos.
— O quê? Todas as castanhas? — ele por fim perguntou.
— Sim, todas elas — ela disse, olhando os dedos azulados do rapaz e pensando que ele precisava ter um par de luvas apropriadas.
— É pra já — ele pegou uma concha e encheu cerca de uma dúzia de saquinhos. Fiona pagou e depois distribuiu os saquinhos para as crianças que assistiam a transação com olhares gulosos.
— Obrigado, madame! — gritaram as crianças, surpresas pela generosidade dela. Fiona sorria enquanto elas saíam correndo com os saquinhos nas mãos.
Quando o rapaz se virou de sua caixinha de dinheiro — uma velha caixa de charutos — a fim de dar o troco para a nota de cinco dólares que Fiona lhe dera, ela já tinha ido embora. Procurou por ela na multidão e avistou-a caminhando na direção da West Street. Soltou um grito, mas ela não deu atenção. Ele pediu ao barraqueiro vizinho que espiasse sua barraca e saiu em disparada atrás dela. Ela tinha esquecido de quatro dólares de troco. Ele chegou na curva bem a tempo de vê-Ia entrando numa carruagem. Gritou outra vez. Ela o olhou da janela da carruagem. Ele agitou no ar. Ela virou a cabeça para o outro lado. A carruagem saiu a toda velocidade.
Intrigado, o rapaz se pôs a olhá-la, perguntando-se como uma mulher tão bonita, tão elegante e tão rica podia ter olhos tão incrivelmente tristes.
QUERIDO? Que diabo você está fazendo? — uma voz quebrou o silêncio. O tom lânguido e modulado tirou Joe Bristow do seu estado onírico. Suas memórias emergiram como uma bruma sobre um lago e se dissiparam.
Ele saiu da janela. Uma mulher de cabelos pretos o observava do quarto, recostada na cama de ébano floreada.
— Olhando as estrelas — ele disse.
Ela riu.
— Que excentricidade. Dá pra você fechar a janela? Estou morrendo de frio — a mulher acendeu um cigarro e deu uma tragada profunda, seus olhos verdes de gato o miraram com gulodice. Estava nua, exceto pelo par de brincos indianos que usava. Sua pele impecável, sempre alva, parecia ainda mais branca em meio aos lençóis em tons de vermelho e magenta. O corpo dela era esguio, os seios, redondos, e os quadris, estreitos. Seus cabelos negros caíam à altura da linha do queixo. Ela os tinha cortado num ímpeto de ousadia, para sua própria surpresa.
— Vem pra cama — ela disse, soltando fumaça no ar.
— Não posso — disse Joe, fechando as portas atrás dele. — Tenho um dia cheio pela frente. Preciso ir até Camden Town para sondar o mercado. Quero ver se a área suporta uma Montagues — ele zanzava pelo quarto, catando as roupas espalhadas pelo chão. Falava de modo apressado. Tinha consciência disso. E da desculpa esfarrapada que dera. Mas não podia ficar. Tinha que sair dali antes que ela notasse a tristeza profunda e devastadora que sempre o abatia quando dormia com uma mulher que ele não amava.
— Camden Town? — ela perguntou com uma expressão intrigada. — Mas Camden fica mais perto da minha casa que da sua. Não faz sentido sair de noite de Belgravia até Greenwich para voltar de manhã para Camden — sentou-se na cama. — Por que você insiste em morar em Greenwich?
— Eu gosto da minha casa — ele disse, despindo-se do roupão emprestado. — Gosto dos meus pomares. Gosto de estar perto do rio.
— Não é isso, não — ela retrucou, admirando o corpo e as musculosas pernas levemente cobertas de pêlos louros, a bunda perfeita e o gracioso fulgor das costas de Joe.
— Não é isso?
— Não é, não. É porque lá você pode manter o mundo à distância. E também suas amantes.
Joe começou a dar uma explicação, mas ela fez um gesto de descrédito. Ele
quis com ardor que ela não dificultasse as coisas.
Maud Selwyn Jones o tinha convidado para um jantar em sua casa. Para discussão de negócios, ela alegou. Era uma decoradora — a melhor decoradora de Londres — e ele a contratara para unificar o visual de suas quarenta e cinco lojas Montague‘s, e para decorar o interior da loja principal. Ela não precisava trabalhar, não por dinheiro, mas costumava dizer que o trabalho a distraía e aborrecia seu pai, e isso a divertia ainda mais. Conhecida pelo seu trabalho, ela era ainda conhecida por suas façanhas extravagantes. Viajar de carro de boi pelo Nepal, andar de camelo pelo Marrocos. Acampar com beduínos na Arábia. Seu marido um bêbado inveterado, tinha sido assassinado durante uma viagem ao Cairo. Ele insultou o dono de um restaurante após uma refeição que o desagradou e depois apareceu morto, fora esfaqueado num beco. A polícia declarou que tinha sido um assalto, mas ninguém acreditou. Já rica de berço (o pai possuía minas de carvão em Gales), Maud ainda herdou os milhões do marido. Era uma mulher de alma inquieta que amava qualquer lugar que não fosse a Inglaterra. Amava especialmente o Oriente e, segundo os rumores que circulavam, quando impedida de viajar para lá, ela tomava o rumo de East End. Atrás das ruas de Limehouse e dos seus conhecidos antros de ópio.
Ela e Joe tinham bebido uma boa quantidade de vinho durante o jantar e continuaram bebendo na sala de estar, dessa vez uísque. Depois de esvaziarem a garrafa, ela foi até a poltrona onde ele estava, ajoelhou-se no colo dele e o beijou na boca. Ele desfrutou o beijo e, ao terminá-lo, tentou explicar de forma desajeitadamente que não era um cara muito romântico, que não era...
— O quê? — ela perguntou com um tom de deboche. — Não é um rapa casadouro? Não se preocupe, querido, não é o seu coração que eu quero — desabotoou em seguida a calça dele e fez uso de seus lábios vermelhos e carnudos até que ele perdeu a consciência de si. Só por alguns momentos. Até que ele esquecesse a dor que o atormentava por viver sem Fiona. Depois, foram para o quarto dela e tentou se perder por completo naquele corpo adorável e faminto. E conseguiu... por pouco tempo. Chegou até a acreditar que dessa vez escapara por inteiro da tristeza. Mas não escapou. Quando tudo acabou, o sofrimento retornou duplicado. Exatamente como sempre acontecia quando terminava a luxúria e seu o corpo se aquietava, mas seu coração se via enganado, ainda partido, ainda vazio, ainda cheio de um desejo que nunca se satisfazia.
— Tem certeza de que não prefere ficar? — perguntou Maud. — Você pode ficar no quarto de hóspedes. Não precisa dormir comigo — ele recusou de novo e acrescentou. — Você é o homem mais solitário que já conheci, Joe. Desconfiado e injuriado como um tigre ferido.
Ele não respondeu. Já vestido, foi até ela e beijou-lhe a testa. Cobriu-a e recomendou que ela dormisse.
— Eu não durmo, querido — ela se debruçou sobre a mesa de cabeceira para acender o abajur e o narguilé que estava ao lado.
A criadagem de Maud já tinha se recolhido, e assim Joe é que teve de abrir a porta para sair. Enquanto caminhava na direção da Eccleson Street, na esperança de encontrar uma carruagem de aluguel, sua tristeza habitual caiu em cima dele como um grande morcego negro, embrulhando-o em suas asas. Ele agradeceu pela noite gelada de inverno, por estar sozinho, Aquela noite fora um erro. Um erro que já tinha praticado antes e que sem dúvida cometeria outra vez. Já tinha estado mulheres como Maud em outras ocasiões. Mulheres que não pediam aquilo que ele não podia dar. Que só queriam seu corpo e seu tempo, mas nunca seu coração. Mulheres que de alguma forma se resguardavam, injuriadas.
Injuriadas. Que engraçado, ele pensou. Maud também se referiu a mim com a mesma palavra.
Ele sorriu com amargura. Sentia-se mais do que injuriado. Sentia-se quebrado. Partido em pedaços. Estava sozinho no mundo, sem a pessoa que podia completá-lo. E ficaria assim para sempre.
NADA, PETER? Nada, mesmo? — disse Fiona, encarando o seu corretor financeiro. — Isso é impossível!
— Não é impossível, não — replicou Peter Hurst, recostando-se na cadeira. — É só incomum. Como você sabe, estão muito difíceis de se encontrar. Na semana passada eu só consegui duas mil pra você. Quinze dias atrás, consegui quinhentas. E esta semana elas mirraram completamente.
—Porquê?
— Porque não tem ninguém pra vender! Todos os que queriam vender já venderam, e pra você. Por sua causa, a Burton Tea perdeu a liquidez do capital.
Fiona zanzava pelo escritório enquanto Peter falava e de repente foi atraída para as janelas que davam para o rio. O céu cinzento empapado de chuva estragava a paisagem. Ela olhou para o rio lá embaixo, mas não viu o Hudson. Viu um outro rio. Um outro armazém. Viu uma névoa cinzenta rodeando o armazém e uma figura sombria à espera. Esperava por ela. A imagem fez com que ela fechasse os olhos. Fechou-os a raiva e o sofrimento que a visão daquele homem sombrio provocava. Ainda.
Nos últimos dez anos, ela se encontrava uma vez por semana com Peter para comprar ações da Burton Tea. No início, quando o preço das ações oscilava entre quinze e vinte dólares, ela lutava muito para poder comprar pequenas quantidades:
dez ações em uma semana e vinte em outra. A medida que fazia fortuna, comprava o maior número possível. Agora, devido aos problemas da companhia na India e na América, quando as ações eram encontradas, podiam ser adquiridas por cerca de cinco dólares. Mas o preço não era um problema para Fiona, o problema encontrar um vendedor.
Até então ela já tinha acumulado 22% da Burton Tea sob um véu de diferentes nomes corporativos e, graças à competência de Teddy Sissons, seu advogado, nenhum desses nomes levava até ela.
Sua participação na Burton era grande, mas não suficiente. Ela não deixaria de comprar ações até que detivesse 51% delas e da companhia. Dez anos não tinham atenuado a raiva que Fiona sentia por William Burton e, custasse o que custasse, ela o arruinaria. Não se tratava de justiça, ela sabia que nunca teria isso, e sim de responder com a mesma moeda. Como sempre, a única falha em seu plano é que Bowler Sheehan ficava de fora. Ela passou muitas noites zanzando e torrando miolos pelo quarto na tentativa de achar uma maneira de também puni-lo pelo que ele fizera. Mas nunca conseguiu vislumbrar essa maneira. O único jeito seria fazer com que Burton o acusasse de participação no assassinato do pai dela. Mas, para que isso acontecesse, primeiro Burton teria que admitir sua própria culpa e isso era algo que ele não faria. Por mais que quebrasse a cabeça tentando solucionar o problema, ela não conseguia. Ao longo de uma década, tivera de conviver com a terrível certeza daquilo que Burton e Sheehan tinham feito com o pai e a família E agora ela ainda esperava. Impotente. Impedida pela inabilidade de seu corretor para encontrar mais ações e pela sua própria inabilidade para encontrar um meio de destruir Sheehan. Quanto tempo mais ela teria que esperar?
Hurst reuniu toda a papelada.
— Farei o possível, Fiona, mas duvido que tenha mais ações antes do final do mês.
Ela o encarou, decidida.
— Peter, eu preciso delas agora e não no mês que vem! Mande alguém para Londres. Encontre os acionistas e compre suas ações!
— Eu entendo a sua frustração — ele disse, confuso com o tom agressivo na voz dela —, mas você há de entender que só detém 22% das ações e ele, 51% não deixa uma grande margem de circulação.
— Eu custo a acreditar que ele ainda tenha 51%. Mais cedo ou mais tara terá que vender algumas.
— Ele retém essas ações há muito tempo, Fiona, não será agora que irá vendê-las.
— Mas ele está atolado em dívidas — ela retrucou, sentando-se na escrivaninha. — Já pegou emprestado cerca de trezentas mil libras no Banco Albion. A propriedade dele na Índia não deu certo e a incursão que ele fez no mercado americano foi um fiasco — abriu um sorriso de satisfação ao lembrar disso. Ela mesma engendrara esse desastre ao abaixar seus preços até o limite máximo. Os agentes de Burton tinham aberto uma loja na Water Street, em junho de 1894. Em janeiro do ano seguinte, já estavam de portas fechadas. — Ele precisa de dinheiro em caixa. Peter. Acabará vendendo algumas de suas ações. Ele tem que fazer isso.
Hurst balançou a cabeça.
— Fiona, eu tenho que lhe dizer, não só como seu corretor, mas como seu amigo, que não entendo a sua obsessão com esse capital, nunca entendi. Como você já colocou, a companhia não está bem financeiramente. Você está certa quanto à dívida. É enorme. Bastará um desastre a mais e ele não terá mais nenhuma renegociação com os credores. Você tem um volume astronômico de dinheiro investido na Burton Tea. Essas ações não passam de passivo. Você não precisa mais de nenhuma delas. O que você precisa é...
— Peter, você não faz ideia do que eu preciso — ela gritou. — Só quero que você consiga essas malditas ações!
Peter empalideceu. Nunca, em todos aqueles anos em que eles se conheciam, ela tinha sido tão estúpida como naquela hora. Ele se levantou, enfiou os papéis na pasta e disse que esperava ter alguma coisa na semana seguinte.
Envergonhada, Fiona pousou a mão no ombro dele.
— Desculpe. Eu não queria ser rude com você. Eu só... eu não estou bem hoje...
Ele desviou os olhos da pasta estufada e em seus olhos a preocupação se misturou com a mágoa.
— Eu sabia que alguma coisa estava errada desde o instante em que entrei aqui. Você está com uma aparência terrível.
E de fato ela estava. Vestia um casaquinho cinza-carvão com passamarias negras, uma blusa branca com uma gravata de seda listrada de preto e branco e uma saia preta de corte reto. As cores sombrias realçavam as olheiras e os muitos quilos que ela havia perdido. Sua costumeira vitalidade simplesmente desaparecera. Ela parecia pequena. Frágil.
— É o Nick, não é? — ele perguntou, com os olhos voltados para a fotografia que ela mantinha em cima de sua escrivaninha.
— Sim — ela admitiu, irritada por ter perdido o controle, por ter permitido que o medo e a emoção a dominassem. Ela não queria falar a respeito disso. Só em falar, se tornava real.
— Só podia ser algo relacionado à família. A única vez que vi você tão chateada assim foi quando o Seamie teve apendicite. A saúde do Nick não vai bem?
Fiona balançou a cabeça. Seu rosto se contraiu. Ela cobriu os olhos com as mãos, como se tentando fazer com que as lágrimas voltassem para dentro.
— Fiona, o que houve? Ele está bem?
Ela não conseguiu responder. Ele pôs os braços em torno dela e de maneira desajeitada começou a murmurar palavras de conforto. Quando finalmente tirou as mãos dos olhos, ele puxou um lenço branco do bolso e lhe estendeu.
— Ele está muito mal?
Ela respirou fundo.
— Estou fazendo uma tempestade em copo d‘água — ela disse. — Ele está fraco é verdade. Não tem muito apetite. Passa a maior parte do dia na cama, mas ontem ele caminhou pelo jardim. Ele me disse quando cheguei em casa.
— Há quanto tempo ele está assim?
— Desde fevereiro.
Peter arregalou os olhos com a resposta. Fiona notou o espanto dele e se arrependeu de ter contado isso. Desejou que ele se fosse. Imediatamente. Não podia ver o medo estampado nos olhos dele. Só faltava ter que tranquilizá-lo. Já bastava ter que fazer isso para si mesma todo dia.
Dois meses antes, no dia em que a fábrica recebeu a maquinaria nova, chegou em casa depois de uma jornada de trabalho, ávida para jantar com Nick... teve a notícia de que ele tinha sofrido um ―feitiço‖, como ele próprio dizia quando desmaiava. Ela subiu a escada correndo e o encontrou na cama, pálido, enfraquecido e respirando com dificuldade. Ela o beijou e segurou o rosto dele, quase histérica de preocupação, até que Eckhardt, que estava sentado ao lado, tirou-a de cima dele. O médico explicou que o coração de Nick estava sobrecarregado e ele precisava descansar.
— Mas ele ficará bem, não é, doutor Eckhardt? — ela perguntou, com a voz embargada e apertando o braço do médico.
— Ele está descansando confortavelmente, senhora Soames. Olhe só ele... viu? É só uma pequena dificuldade com a respiração, uma pequena fraqueza. Ele vai melhorar.
Fiona assentiu com a cabeça e deixou que a voz calma do médico a tranquilizasse. Por um momento, chegou a pensar que ele estava escondendo a verdade, mas logo afastou esse pensamento. Embora fosse extremamente realista em todos os aspectos de sua vida, ela continuava se negando a aceitar o problema de saúde de Nick. Ela queria que ele melhorasse, e por isso ele teria que melhorar. Qualquer sinal contrário a isso a deixava aterrorizada; ela se recusava a vê-los como sinais de declínio e os afastava como meras pedras no caminho.
— O que disse o doutor Eckhardt? — perguntou Peter.
— Ele disse que esses sintomas vão passar — ela respondeu. Uma voz dentro dela relembrou o que Eckhardt tinha dito dois meses antes e desde então Nick não demonstrava muita melhora. Não falou sobre isso.
— Então, é só uma recaída. Uma condição temporária.
Fiona assentiu com a cabeça.
— É isso mesmo. Ele logo estará de pé outra vez.
Peter sorriu.
— Fico feliz em ouvir isso — ele se despediu com um beijinho no rosto dela e pediu que ela o chamasse se precisasse de alguma coisa.
Após a saída dele, Fiona olhou o relógio. Seis horas da tarde. Ela pensou n pegar suas coisas e ir mais cedo para casa. Podia levar o trabalho inacabado e terminá-lo depois do jantar em seu estúdio.
Ela sempre gostou de voltar para casa à noite, com a cidade iluminada, e encontrar Nick à sua espera na sala de estar, ávido para ouvir os relatos do dia, as agora se sentia agoniada, à medida que a noite se aproximava. Somente Foster esperava por ela. Nick estava sempre acamado no andar de cima. As vezes, acordado, outras vezes, dormindo. Quando ele não estava acordado, ela se mantinha a porta do quarto, querendo chegar perto, sentar na cama e conversar com ele. Tinha que vê-lo, verificar se ele não tinha piorado um milímetro que fosse durante o dia. Ela tentava ser otimista. Talvez naquela noite ele descesse do quarto e se sentasse com ela na sala de estar. Eles desfrutariam uma garrafa de vinho e conversariam ao pé da lareira como sempre faziam.
A mansão na 5th Avenue era imponente do lado de fora, mas acolhedora por dentro. Eles a construíram quando Nick começou a diminuir o seu ritmo de vida. Ele queria ficar mais próximo do parque e do Metropolitan Museum. Ele decorou maravilhosamente o lugar; todos os quatro andares da casa, com sua grande entrada, a enorme sala de jantar, a biblioteca, o estúdio, a sala de estar dupla, a estufa, a copa e a cozinha, e muitos quartos. Antiguidades bolorentas não eram permitidas, somente peças modernas. Janelas, espelhos e lâmpadas de Louis Comfort Tiffany. Prataria de chibald Knox. Mobília e lustres de Emile Galle. Quadros dos pintores franceses que Nick tanto amava e de um novo grupo de pintores americanos que ele patrocinava.
Agora, Fiona sorria, lembrando-se do tempo maravilhoso que eles desfrutam ali. Das muitas recepções e bailes. Ela raramente estava em casa durante o dia. mas sempre voltava à noite e se deparava com um inesperado jantar para os amigos. Ou talvez com uma festa de comemoração do aniversário de casamento de Michael e Mary, que haviam se casado em 1891, ou com uma festa de aniversário um dos filhos deles. No verão, sempre havia piqueniques no quintal iluminados pela lanternas nas árvores, música, um grupo de artistas famintos e Seamie de férias do internato bebendo champanhe escondido e dançando com lindas estudantes de arte. Nick adorava a diversão, amava uma noite ao lado de amigos, boa comida e vinho, barulho e risos, conversas sérias e superficiais.
O sorriso desapareceu do rosto de Fiona. Já fazia algum tempo que não se ouviam risadas dentro de casa. Os amigos visitavam Nick, claro, mas Eckhardt não permitia visitas longas, comportamento efusivo, enfim, nada que pudesse cansar seu paciente. Ela sentiu um pequeno tremor abalando as bases da sua esperança, do seu insistente otimismo, e uma tristeza aguda moveu-se da garganta até os olhos. As lágrimas irromperam outra vez. Ela secou o rosto com raiva.
— Pare. Pare com isso — disse para si mesma. — Agora.
Recolheu seus papéis e os colocou dentro da pasta, depois pegou o casaco apressada, sem nem mesmo se deter para se despedir de sua secretária. Queria ir para casa. Para sua casa de paredes de mármore, de sólida entrada e portão de ferro. Aquela casa era uma fortaleza. E os tinha mantido — ela, Nick e Seamie — a salvo por todos aqueles anos. Lá dentro eles tinham tudo e não temiam nada. Até aquele momento. Mas, agora, uma sombra rondava a casa, à espera de uma chance para entrar.
Ela conhecia essa besta, já tinha recebido a visita desse monstro antes. Mas aprendera a ser vigilante. Trancaria todas as portas. Montaria guarda. E a besta não entraria.
POR DEUS, NICK. Estou ouvindo o seu queixo bater daqui — disse Teddy Sissons. — Vou pôr outra tora na lareira.
— Obrigado, Teddy — disse Nick, jogando um pulôver de caxemira em torno dos ombros. Desde o seu colapso, ele estava sempre resfriado. Inclinou-se frente da poltrona, serviu outra rodada de chá para ele e para Teddy e se recostou de novo, exausto pelo pequeno esforço que fizera. Seu estado de saúde era grave. Segundo Eckhardt, Nick não tinha muito tempo de vida, e ele precisava pôr seus negócios em ordem o mais rápido possível. Sabia que devia estar na cama e não na sala de estar, mas os muitos remédios prescritos por Eckhardt e os linimentos alinhados sobre a mesa de cabeceira tornavam o seu quarto muito opressivo.
De todos os cômodos da casa, a sala de estar era o que ele mais gostava. Não era o cômodo mais bem decorado, mas o mais confortável. Sua decoração consistia de sofás e poltronas macios, almofadas de seda e canapés, além de uma grande lareira, perfeita para o aquecimento. Mas o que ele mais amava nesse cômodo eram as muitas lembranças dos tempos felizes que desfrutou com Fiona. Eles tinham passado um sem-número de noites e tardes preguiçosas de domingo, aninhados no sofá de meias com Seamie entre os dois, planejando, esquematizando e sonhando.
— Pronto! — disse Teddy, batendo palmas. — Isso, sim, é uma lareira!
— Lareira? Isso está parecendo uma fornalha! Você colocou mais madeira aí?
— Você precisa de calor, suas mãos estão azuladas de frio. — Teddy sentou-se de novo na poltrona, ajeitou os óculos no nariz e voltou a prestar atenção no documento sobre a mesinha à frente, o testamento de Nick. — Como eu estava dizendo, acho que você está se preocupando à toa. Mesmo sem um testamento, segundo a lei todos os seus bens, todos os seus investimentos financeiros, passam diretamente para sua esposa. Ninguém pode contestar isso.
— Você não conhece o meu pai. Tão logo eu tiver partido deste vale de lágrimas. Aquele odioso homem tentará de qualquer maneira impedir que o meu fundo de investimento passe para Fiona. É muito dinheiro, Na última vez que o conferi, ultrapassava um milhão de libras.
— Um milhão de libras? O seu fundo do Albion? — disse Teddy, deixando de as suas anotações.
— Sim.
— Quando você e Fiona se casaram, esse fundo tinha aproximadamente cem mil libras. Em que diabo você andou investindo?
Nick fez um gesto de indiferença com as mãos.
— Só Deus sabe.
— Você mantém um controle do seu fundo de investimento?
— Na verdade, não. Sei que as ações compradas pelo meu pai subiram muito nos últimos dez anos. E também sei que há três ou quatro anos ele comprou um grande montante de ações de uma companhia e acrescentou-as para o meu fundo. Não dão lucro. Pelo contrário, o preço despencou.
— Sua estimativa de um milhão inclui essas perdas?
— Ah, Teddy, sei lá — suspirou Nick. — Pergunte a Hermione. Ela é que controla os investimentos e o depósito de cheques. Já faz alguns anos que não toco em um centavo do dinheiro do meu pai. Assim que a galeria começou a fazer dinheiro, dispensei todo o dinheiro gerado pelo fundo.
—Todo?
Nick assentiu com a cabeça.
— Meu pai vem ajudando os artistas nova-iorquinos há anos. E também ajudou o fundo de expansão do Metropolitan e doou uma coleção considerável de obras dos novos pintores americanos para o museu — Nick abriu um sorriso. — Ele é generoso? Quando eu morrer, quero que Fiona fique com o fundo. Com cada pêni. Ela fará bom uso do dinheiro.
— Você já falou disso com ela?
— Já tentei. Mas ela se recusa a falar disso.
— Ela está aqui? Acho que devíamos expor seus desejos para ela e a reação que talvez o seu pai tenha frente a isso.
— Não está, não. Está em cima de mim há dias. Ela me traz todas as refeições e cada bule de chá — ele riu. — Nem no banheiro eu posso ir sozinho. Está atrás de mim, não para de me seguir. Faz uma semana que não vai trabalhar quando soube que você vinha, arranjou uma razão para sair. Ela deve estar amendrontada. Fiz de tudo para esconder a verdade, e até consegui por um tempo. Mas agora tem sido impossível. Olhe só para mim, estou parecendo um fantasma..
— Não, ainda não. E não vá ter nenhuma ideia enquanto eu estiver aqui.
Nick sorriu.
— Isso não entra na sua linha de trabalho?
— Não, que droga, não é nada disso — Teddy voltou a escrever. — Muito bem, e o que mais, além desse fundo? Vai devagar, uma coisa de cada vez. Temos que ser específicos.
Nick começou a enumerar os seus bens para Teddy, instruindo quanto ao destino que teriam. Sua parte da casa ficaria para Fiona, com toda a mobília, e também para ela a galeria de arte e todos os seus quadros e objetos pessoais. Além disso, ele especificou um generoso legado para Seamie, que continuava chamando-o de pai e não de Nick e a quem ele sempre considerou um filho. Também ações de dinheiro para lan, Munro e Nell Finnegan, e ainda para Sean, Pat e Jenny Finnegan, filhos de Michael e Mary, e para Stephen Foster, seu mordomo.
— Coloque tudo claramente aí, Teddy — disse Nick. — Amarre o testamento de um jeito que aquele homem não tente nem consiga tirar nada de Fiona, desde a casa até as minhas abotoaduras.
— Não se preocupe com isso, Nick. Eu quero que você descanse...
— ... em paz? — Nick sorriu de modo maroto. Ele não podia dizer essas na frente de Fiona, ela se aborrecia, mas na frente de Teddy podia e isso o alegrava. Teddy Desencucado, ele e Fiona o chamavam assim. Sempre suave e tranquilo, sempre competente. Salvou-os do escândalo quando Nick foi preso no TF e foi o conselheiro jurídico de ambos com o crescimento dos negócios. Um conselheiro no sentido amplo da palavra, uma rocha. Nunca perdia a cabeça e era disso que Nick mais precisava agora. Ele precisava de alguém firme, avesso ao sentimentalismos, alguém que pudesse rir com ele, já que estava determinado a encarar a morte da mesma maneira saudável e divertida que sempre enfrentou a vida.
— Eu ia dizer despreocupado. Garanto para você que o casamento de vocês é legal e que o seu pai não pode reivindicar a sua herança. Vocês casaram na corte de justiça e também na Igreja da Trindade...
Nick assentiu com a cabeça. Alguns meses depois do casamento na corte, quando Teddy se certificou que de fato Fiona não queria o divórcio, ele insistiu para que os dois casassem na religião anglicana — a religião da família — para garantir que o pai nunca viesse a questionar a legitimidade da união deles.
— Os documentos das duas cerimônias estão devidamente registrados e autenticados. Tudo na mais perfeita ordem. Será que seu pai não sabe mesmo que você se casou?
— Nem imagino. Só sei que, se ele soubesse, certamente já teria criado problemas. Não acredito que ele saiba alguma coisa a meu respeito.
— Ele nunca se comunicou com você?
— Nunca.
— Mas claro que deve ter procurado saber alguma coisa sobre você. Talvez por meio de terceiros, não é?
— Meu pai me odeia, Teddy.
— Desculpe. Eu não conhecia a extensão do problema.
Nick deu de ombros.
— Não precisa se desculpar. Infelizmente, a gente não pode escolher a família. Só os amigos — ele se recostou outra vez nas almofadas, exausto por ter falado muito, e fechou os olhos por alguns segundos. Teddy organizava as anotações. Quando abriu os olhos, ele viu o retrato de Fiona e disse, — Teddy, eu preciso pedir uma coisa a você como amigo.
Teddy o olhou por cima dos óculos.
— Pode pedir o que quiser. Você sabe disso.
— Cuide de Fiona — disse Nick, sério, com os olhos marejados. — Ela precisa de gente que cuide dela, você sabe. Pode parecer que não precisa, mas precisa. Está o tempo todo de um lado para o outro e não se alimenta direito e trabalha demais — e sua voz se embargou. Ele não pôde terminar. Tinha jurado para si mesmo que não ficaria com sentimentalismos na frente do amigo equilibrado e firme.
Teddy esperou um minuto para que ele se recompusesse e disse:
— Você sabe que não precisa se preocupar com isso. Eu cuidarei dela. Assim como de Seamie, Michael, Mary, Alec, Maddie, Nate, Stuart, Peter e todos os outros que a amam também farão.
— Eu quero que ela se case de novo. Ela é jovem ainda. Pode ter filhos, uma familia. Isso é o que mais quero, e é a única coisa que não posso pôr no testamento.
Eu quero que você procure alguém para ela.
— Não é bem uma das especialidades da firma, mas vou tentar — disse Teddy, um ar frívolo. — Quem você tem em mente?
— Quem? Esse é justamente o problema. Ela é mais rica que a maioria dos homens desta cidade e mais inteligente que todos eles.
Teddy e Nick riram juntos. Mas um riso forçado. Nick já estava exausto, se despediu, e chamou Foster com uma sineta para que ele o ajudasse a para o quarto. Quando ouviram os passos do mordomo no corredor, Nick se dirigiu pela última vez ao amigo e conselheiro, Teddy Desencucado.
— Cuide dela. — ele disse. — Prometa.
— Eu prometo — disse Teddy, desajeitado, enxugando as lágrimas com a manga da camisa.
JOE PEGOU UM PUNHADO de ervilhas para inspecioná-las. Estavam impecáveis macias, perfeitas, pequenas joias verdes. Levou-as até o nariz e inalou. Elas cheiravam tão bem, cheiro do rico solo de Kent, cheiro de primavera. Mastigou algumas. Estavam deliciosamente frescas.
A Bristow‘s de Covent Garden importava as frutas e os vegetais mais sofisticados do mundo durante o ano inteiro para satisfazer o desejo de sua rica e exigente. Joe só tinha que mandar um funcionário do seu escritório descer as escadas até o armazém para desfrutar a luxúria de um pêssego carnudo em pleno inverno, mas, mesmo podendo ter o mundo nas mãos, o que ele mais amava era os primeiros frutos da primavera colhidos no bom solo britânico.
Ele continuava a avaliar o produto quando, de repente, ouviu uma a do ouvido.
— Monsieur, como espera lucrar, se come toda a mercadoria?
Joe riu de felicidade ao ver Olivier Reynaud, seu amigo e freguês, chefe de cozinha do Connaught. Ele pôs um punhado de ervilhas na enorme mão vermelha de dedos longos do homem ao mesmo tempo em que dizia que elas estavam muito bonitas e frescas — primeira colheita! —, e que ficariam maravilhosas acompanhando um filé de salmão ou amassadas dentro de uma sopa temperada com menta e creme de leite.
Olivier provou-as, aprovou-as e encomendou uma grande quantidade, mais cinquenta quilos de batata, dois caixotes de aspargo, três de espinafre, duas dúzias de favas de baunilha, quatro caixotes de laranja, três caixotes de abacaxi e três caixotes de banana.
— Eles finalmente o tiraram do escritório? — ele disse, observando a arregaçadas e o avental sujo de terra de Joe.
— Ora, só estou dando uma mãozinha — disse Joe. — As cinco horas, o gerente de vendas disse que dois de seus homens não viriam hoje porque estão doentes e me perguntou se eu podia mandar um funcionário para ajudar. Só havia um rapaz no escritório e ele estava muito ocupado, escrevendo os pedidos, e então resolvi descer. Eu não podia sobrecarregar o pobre diabo.
— Você quer dizer que não podia deixar que ele se divertisse.
Joe riu ao ser flagrado na mentira.
— Claro, isso também. Olhe só, dê uma olhada nisso — ele puxou um saco de algodão que cobria um cesto e Olivier sorriu, deleitado. Dentro do cesto havia trufas frescas, negras e pungentes, cuidadosamente aninhadas numa cama de arroz branco.
— Extraídas do solo francês há dois dias — disse Joe cheio de orgulho. — Olhe só pra isso... pode sentir — ofereceu para o homem uma trufa especialmente grande.
— Firme, roliça e sem nenhuma mancha. O melhor que Perigord tem para oferecer. Acrescento duas dúzias no seu pedido?
— Duas dúzias? Você está maluco? Doze! Tenho um estoque delas. — Olivier levou a trufa ao nariz, e depois a admirou com um semblante doce e sonhador. — O aroma... é indescritível, não é? O verdadeiro aroma de uma boa foda.
Joe balançou a cabeça.
— Seu francês, não dá pra você separar a cozinha da cama?
— E por que eu deveria fazer isso? As duas são o recheio da vida. Mas como posso esperar que um homem que come essa... merda — ele apontou para a metade de um enroladinho de salsicha que estava em cima de um caixote — entenda isso?
— O que há de errado com isso? — perguntou Joe. Ele gostava de provocar Oliver. - É uma refeição forte para uma barriga inglesa forte! — Apesar de sua queda por enroladinhos de salsicha, peixes, batatas fritas e outros pratos de sua infância, seu gosto culinário era tão sofisticado quanto o de seu amigo.
—Baleia! Os ingleses não têm barriga! Nem língua! Meu amigo, eu não vim para Londres pra cozinhar, vim pra educar. Ensiná-los, mulas saxônicas, o que é uma autêntica. E o que vejo? O filé retorna porque está malpassado. Ninguém come miolo de boi. Todo mundo pede molho inglês pra tudo que é prato! Eu poderia servir pedras pra eles e ninguém notaria a diferença!
— Pedras no molho de cebola, talvez — admitiu Joe.
— Venha esta noite à minha cozinha e eu mostrarei o que é uma comida de verdade. — Olivier pressionou um dedo no peito de Joe. — E, pelo amor de Deus, leve uma mulher! Você come como um bárbaro e vive como um monge. Me dê essas — ele apontou para as trufas.
— Você disse doze?
— Não! Todas elas! — gritou Olivier, espumando. — Você acha o quê? Que devo deixar esse tesouro para ser ignorado? Ou, pior ainda, para ser maltratado por algum inglês grosseiro?
— Quer que entregue o seu pedido, Olivier?
— Tudo, menos as trufas. Eu as levo comigo. E te vejo à noite. Nove horas em ponto!
Joe sorria enquanto o seu amigo esquentado saía. Estava feliz consigo mesmo. Nenhum dos jovens que ele contratara como vendedores teria vendido quantidade de verduras, legumes e frutas, sem falar no cesto inteiro de trufas e ainda ser convidado pessoalmente pelo chefe de cozinha mais requintado de Londres! Mas quem é que iria com ele? Jimmy estava ocupado com os casamento. Talvez Cathy.
Pegou uma toranja e cheirou-a.
— Para ele, o cheiro de fruta era mais doce que o mais caro perfume. Voltou-se para inspecionar o seu grande e movimentado armazém. Os carregadores que transportavam os pedidos para os vagões, os vendedores exibiam os produtos e os chefes dos melhores restaurantes, hotéis e clubes londrinos selecionavam os itens que queriam e ele se viu invadido por uma onda de orgulho. Depois olhou para o relógio — já eram sete horas — e sentiu um aperto de culpa. Não devia estar no armazém. Devia estar no seu escritório, no piso superior, em meio a uma montanha de documentos. Ele sabia disso. Até chegou mais cedo para adiantar mas não resistiu quando o gerente de vendas subiu ao seu escritório dizendo que precisava de ajuda. Ele tinha que assumir o papel de vendedor, nem que pouco tempo. Prometeu a si mesmo que só ficaria por uma hora, mas já faziaa horas que estava ali. Porém, como é que ele podia sair? Já fazia muito tempo que não trabalhava no armazém; estava sempre no escritório, examinando com os contadores ou discutindo planos para as novas lojas com arquitetos e construtores. Sentia falta do armazém. Nada o excitava mais que o desafio de vender.
— Lá está ele — gritou alguém. Ele fora pego.
Olhou ao redor com a toranja ainda na mão e sorriu para Jimy, seu irmão e seu braço direito, e para Cathy, sua linda e loura irmã que trabalhava na sua maior loja, uma filial da Montague‘s, em Chelsea.
— Você sabe que a gente paga alguns caras pra fazer isso — disse Jimmy.
— Só estou dando uma mãozinha — Joe se defendeu.
— Nós devíamos dar uma carroça pra ele, Jimmy. Devíamos colocá-lo de volta na High Street pra vender maçãs e laranjas, porque é de lá que ele é — disse Cathy. — Se você conseguir largar essa toranja, talvez possa me levar para ver a nova loja que terei que gerenciar. Já devíamos estar lá há meia hora.
— Que droga! Esqueci completamente! Desculpe, querida! Só vou pegar meu casaco e já vamos.
Enquanto Joe colocava a fruta no caixote, Jimmy e Cathy se dirigiam para o andar de cima. A medida que se aproximava deles, ele ouvia a conversa acalorada que travavam sobre a loja de Knightsbridge. Os três irmãos depositavam uma grande esperança naquela que seria o novo cartão de visita da Montague‘s. Cathy seria a gerente. Agora com dezoito anos, ela era uma garota esperta, ágil, comunicativa, um pouco impulsiva. As vezes, era insuportável, mas, além de ser da família, era a única pessoa em quem Joe confiava para gerenciar uma loja de tal magnitude, Jimmy já tinha vinte e seis anos de idade e uma larga experiência com legumes, verduras e frutas, e ele queria que a loja se distinguisse em Londres como o principal ponto de venda dos mais exóticos produtos. A loja teria todos os itens costumeiros , é claro, mas também teria coisas que a maioria dos londrinos nem imaginavam: mirtilos, quiabos e abóboras dos Estados Unidos; groselhas, lichias e cunquates da China; goiabas, papaias e carambolas dos trópicos; pimentas-malaguetas e melões gigantes do México; tamarindos e cocos da Índia. Quanto a Joe, ele simplesmente queria que a loja fosse a melhor, a mais moderna e equipada mercearia do mundo, o pináculo de suas ambições.
— ... mas alface, endívia e espinafre são produtos muito delicados — ele ouviu a irmã dizendo. — Eles estragam quando está muito quente; quando está muito frio, em com muita rapidez. Como é que vai conservá-los? Pelo que você disse, não tem espaço suficiente para...
— Dá pra me ouvir? Você nunca me deixa falar! Já instalamos um sistema de irrigação. Foi bolado pelo Joe. Ele deixa os produtos mais delicados bem frescos. Com se fossem recém-colhidos.
— Um sistema de irrigação? — repetiu Cathy, dando uma cutucada no irmão.
— está me fazendo de boba!
—Eu juro,Cat.
— Meu Deus, Jimmy, é mesmo verdade? — ela trocou o ceticismo pela excitação. — O pessoal do Harrods sabe disso? Eles vão pular nas tamancas!
— Ninguém sabe e você não vai contar pra ninguém. Isso vai fazer a Harrods...
—Isso vai fazer a Harrods ficar em maus lençóis — disse Joe, puxando as orelhas enquanto passava correndo por eles para entrar. — Vamos ver os projetos!
Dentro do escritório, espalhados em cima de uma enorme escrivaninha de carvalho estavam os projetos para a loja. Joe e Jimmy trataram de expô-los para Cathy. O piso seria aberto, apoiado por enormes colunas. Ali ficariam todos os produtos alimentícios frescos. No fundo, uma ampla escada de mármore negro conduzia ao segundo piso, onde estariam situados uma floricultura, um setor de chocolates e doces, de café, de chá e tabaco, e uma seção de vinhos finos. No terceiro andar haveria um restaurante, onde se poderia desfrutar uma refeição ligeira ou um chá da tarde.
— Oh, Joe, é maravilhoso! — exclamou Cathy. — E a decoração? Quais serão as cores?
— Bem, será bombástica, eu diria extremamente bombástica. Londres nunca viu algo parecido.
— Foi a Maud que bolou? — perguntou Cathy.
— Hum... não completamente.
—Joe, o que você fez?
— Comprei murais que representam as quatro estações para cada parede do primeiro andar. Pinturas enormes! Maud aprovou. Ela os achou brilhantes. Darão ao lugar um visual diferente. De luxo. De exclusividade.
— Por Deus, Joe, isso é uma loja, não um museu.
Joe ergueu as mãos.
— Eu sei, eu sei... mas não diga nada até vê-los, Cathy. São espetaculares, surpreendentes, e será exatamente com eles que faremos diferença com nossos competidores.
— Que tal branco? O que há de errado nas paredes de azulejos brancos? —retrucou Cathy.
— São horrorosas. Fazem o lugar parecer um abatedouro.
— E os pisos?
— Todos de azulejos, mas não brancos e sim azuis e verdes. Com ralos embutidos. Você vai poder pôr as moças pra lavar tudo com água e sabão — disse Joe. Cathy se mostrou aliviada. Era maníaca por limpeza e conhecida por fazer as pessoas limparem manchinhas nas vidraças e no chão.
— E o segundo andar? E o restaurante? — ela perguntou.
— Pavões — agora Jimmy respondia.
— Pavões! Cagando por todo lado? Você enlouqueceu?
— Não pavões de verdade, serão pinturas — comentou Jimmy com intensidade.
Cathy olhou para Jimmy e para Joe.
— Eu mal posso esperar para ver esse lugar. Já está terminado?
— Quase — disse Joe. — Maud está trabalhando rápido porque quer ver tudo terminado antes de viajar. Ela vai para a China no mês que vem.
— Eu sei. Ela passou na loja de Chelsea na semana passada para reclamar dos pintores. Eles pintaram o acabamento da vitrina com a cor errada — Cathy pegou um lápis e o segurou como se fosse um cigarro. — Berinjela, querida — disse em teatral. — Falei para que pintassem de berinjela e eles pintaram de roxo! — levou a mão à testa e caiu no chão, fingindo um desmaio.
— Levanta, engraçadinha. Ela não é assim — disse Joe.
— É, sim! Você devia ver o cabelo dela! Cortou curtinho!
— Eu vi o cabelo dela. Vamos, então?
— Você só viu isso? — Cathy quis saber, rindo do chão para ele.
Joe olhou surpreso para a irmã.
— O que foi que você disse?
Cathy encolheu-se.
— Eu só estava perguntando — ela disse, enquanto se levantava. — Maud disse que mal pode esperar para ir para a China. Parece que ela quer se livrar de um certo diabo de olhos azuis. Ela não disse o nome dele. E eu estava me perguntando se você saberia quem é ele — olhou diretamente para Joe,
— Não sei quem é — ele disse bruscamente, enquanto pegava o paletó. — Vá.
— Que bom! Fico feliz — ela retrucou, parando o irmão para ajeitar a gravata dele. — Porque tenho uma outra pessoa para você. Ela vai ao casamento de Jimmy. É uma ótima garota de Stepney...
Joe segurou o queixo da irmã.
— Pare com isso. Agora — ele disse com dureza. — Não estou atrás de nenhuma garota. Eu sou casado com meu trabalho. E assim que gosto de viver, está bem?
— Está bem, está bem — disse Cathy, com um gesto de desânimo. — Não me meto mais nisso.
— Duvido — disse Jimmy.
— É só por enquanto. Vamos, depressa. Quero ver a loja. Tempo é dinheiro e vocês dois estão desperdiçando — ela saiu do escritório de Joe recitando o primeiro de verso ―Bow BeIls‖
Joe olhou para Jimmy. Jimmy olhou para Joe. E deu de ombros.
— A ideia de colocá-la no comando da loja foi sua — disse Jimmy. — Boa sorte, primogênito.
NICK OLHAVA o luar penetrando pela janela do quarto deitado em sua cama. Agitado, insone, era como se um peso de dez toneladas estivesse em cima de seu peito. Respirava com dificuldade. Era necessário muito esforço para respirar e o deixava totalmente exaurido.
Rolou-se na cama, ergueu-se um pouco e recostou-se nos travesseiros, tentando aliviar a pressão nos pulmões. Não funcionou. Pelo contrário, a nova posição provocou um espasmo de dor que se espalhou pelo peito e desceu pelo braço esquerdo até deixá-lo completamente imobilizado.
Nick sabia que estava morrendo e sentia medo.
Tudo o que ele mais amava estava neste mundo: Fiona, a família dela, todos os amigos deles. Pintura e música. Champanhe gelado. Rosas brancas. Se havia um outro mundo, quem podia dizer o que lá haveria? Um Deus austero que seguramente o desaprovaria. Anjos desanimados como aqueles que Giotto Santos pintava. Santos devotos. Um monte de chatos flutuando pelas nuvens. Definitivamente não havia lugar para ele e tampouco ele queria ir para esse lugar.
Ele se viu de novo acometido pela dor. Gemeu. A doença o torturava. Queria se libertar dela, mas, ao mesmo tempo, estava com medo de morrer. Ele lutava respirar, para suportar a dor dilacerante em seu peito, para manter acesa a frágil da vida.
A dor abrandou e lhe veio à mente uma imagem tranquilizadora: o seu antigo amor. A visão de Henri o acalmou. A despeito de onde estivesse, Henri estaria esperando por ele. E talvez o outro mundo não fosse tão horrível como imaginava. Talvez fosse um lugar maravilhoso. Quem sabe uma vila italiana onde ele pudesse encontrar Leonardo e perguntar sobre a identidade de sua Mona Lisa. Um lugar onde desfrutaria uma garrafa de vinho com Michelangelo e acabaria descobrindo quem era o bonito Davi. Ou talvez Paris, onde ele faria uma ceia com Vincent em algum café próximo ao Sena, e o pintor estaria feliz e cheio de saúde porque todo mundo no paraíso comprava suas telas. Talvez fosse um lugar onde junho nunca acaba e é sempre quentinho e as rosas não param de florescer. Um lugar onde ele poderia viver feliz com Henri.
Recostado em seus travesseiros, agora ele se sentia mais em paz, com menos medo. Mas foi perturbado por um outro pensamento. Se partisse para se encontrar com Henri, o que aconteceria com Fiona?
Ele virou a cabeça e olhou-a. Ela estava adormecida na enorme poltrona que pediu para Foster colocar ao lado da cama, com um livro aberto no colo. Nas últimas noites, ele conseguiu convencê-la a voltar para a cama em torno da meia-noite ou um pouco mais, mas nessa noite ela se recusara a deixá-lo sozinho. Ela aprumava-se na cadeira à medida que ele dormia e acordava, até que se viu vencida pela exaustão.
Como ele amava aquele rosto de queixo determinado, a franqueza da honestidade daqueles olhos azuis. Quando se tratava de negócios, ela podia ser mandona e chata, mas era gentil, generosa e profundamente devotada com os que a ela amava. Ela lhe tinha dado muita felicidade. Ele sorriu quando pensou nas surpresas que a vida oferece. Quando ele saiu de Londres, banido pelo pai, estava sozinho, sem ninguém que cuidasse dele. E depois ele a encontrou. Lembrou-se da imagem dela na plataforma do trem, em Southampton, recolhendo suas coisas espalhadas e lembrou da fisionomia preocupada, das roupas humildes e daquele sotaque horrível dela! Nunca poderia imaginar que um dia se casaria com aquela garota da periferia londrina e viveriam numa mansão em Nova York e que ele seria feliz e amado.
Ele queria que ela tivesse tudo: sucesso e segurança e principalmente que encontrasse alguém que a amasse completamente. Alguém que entendesse quem era ela e que nunca tentasse modificá-la, alguém como o rapaz que ela amara em Londres. Aquele rapaz estúpido que, ao perdê-la, acabou perdendo a mais preciosa joia.
Mas, e ela? Ele se perguntava, inquieto.
E depois teve uma outra visão de Henri. Estava se afastando dele, dirigindo-se para uma bela casa de pedras no meio de um campo de lavandas. Henri vestia um velho guarda-pó azul e suas mãos estavam cobertas de tinta. Voltou-se para trás e acenou, e de repente Nick sentiu o doce aroma do ar de verão e o calor do em seu rosto. Arles, era para lá que Henri estava indo. Para a casa deles no sul da França. É claro! Não era naquele lugar que Henri sempre dizia que eles deviam morar?
— Não posso — ele murmurou, pesaroso. — Eu não posso deixá-la.
Nick ergueu a cabeça na escuridão do quarto iluminado por um pálido luar, se ouvisse uma voz vinda de longe. Assentiu com a cabeça e se virou para Fiona ainda adormecida.
— Você ficará bem, Fi — ele sussurrou. — Sei que ficará.
Fiona acordou sobressaltada.
— O que está havendo, Nick? Você está bem? Precisa do doutor Eckhardt?
— Eu estou bem.
Ela deu uma piscadela para ele, ainda sonada.
— O que é então?
— Eu só queria dizer que te amo.
Ela sorriu aliviada.
— Oh, Nicholas, eu também te amo — ela acariciou o rosto dele. — Agora, dorme. Você precisa dormir.
— Está bem — ele disse, sabendo que não conseguiria, mas fechou os olhos para satisfazê-la.
Fiona aprumou-se na poltrona e pegou o livro. Em poucos minutos, estava dormindo outra vez.
Nick agora se sentia tão leve e etéreo quanto o ar da noite. Tinha a estranha sensação de que ele próprio era o ar e a noite e todas as plantas lá de fora. Sentiu uma última e breve dor agonizante à medida que sua artéria frágil e intumescida se exauria na base do seu coração, enchendo o peito de sangue. Ele fechou os olhos, respirando rápida e penosamente. Cessou a dor. O traço de um sorriso bailou em seus lábios. Alguns segundos depois, Nick suspirou suavemente. Seu coração grande e generoso tinha deixado de bater, e ele estava morto.
NO SOLO VERDEJANTE e tranquilo do cemitério da igreja anglicana, na Broadway com a 159h Street, o reverendo Walter Robbins entregou o corpo de Nick à terra e sua alma, a Deus.
De pé, ao lado do túmulo, Fiona se portava da mesma maneira que na igreja, com uma expressão vazia, totalmente alheia à cerimônia. As palavras do ministro não diziam nada, seu livro de orações e sua cruz eram meros acessórios. Nick estava morto e nada do que fosse dito poderia confortá-la.
— ... o nosso irmão Nicholas agora está no céu, descansando no seio de Abraão. Uniu-se ao nosso salvador, Jesus Cristo, na promessa da vida eterna...
Fiona desejava ter a mesma confiança daquele homem. Como, diabos ele podia saber onde é que Nick estava? Ela queria interromper aquele pretenso conhecimento e autoridade da parte dele e abalar as maneiras e o decoro que estavam ali presentes. Ela olhou as pessoas ao redor, todas com roupas apropriadas. Vestidos, ternos e luvas negras, prendedores de gravatas e broches. Uma fungada aqui, um soluço rapidamente silenciado ali. Lenços requintados pressionados em olhos marejados. Nenhum lamento escandaloso.
Ela queria ser escandalosa, queria gritar. Sua vontade era abrir a tampa do caixão, puxar Nick para fora e deixá-lo à vista do céu e das nuvens e da vegetação que florescia pela última vez, antes que o coveiro o cobrisse de terra. Fiona queria abraçá-lo com força e beijá-lo no rosto e perguntar se ele fazia ideia do quanto a fizera feliz e do quanto ela o amava. Ela queria gritar para os céus e uivar como um animal, mas não podia.
Não era um funeral de Whitechapel, era um enterro em Nova York e a sociedade estava presente. O pessoal do museu. Os artistas que Nick representava. Seus colegas e clientes do comércio de chá. Muitos dos seus empregados. Seu tio Michael e sua tia Mary. lan, que já era um homem e se tornara banqueiro, Nell, com dez anos de idade. Sean e Pat, os gêmeos de seis anos. Jenny, o bebê aninhado nos braços de Mary. E Alec, ainda em plena forma nos seus setenta e cinco anos. Fiona sabia que devia se manter firme na frente de todos, segurar as emoções com força, amarrá-las dentro de si com um nó. Mantinha-se de pé, com os braços perdidos, sozinha em sua tristeza e sua raiva, louca para que o ministro calasse a boca. Louca para que ele acabasse aquele discurso tolo, fechasse o livro de orações e admitisse que não fazia nenhuma droga de ideia de onde Nick estava. E que ele aproveitasse a oportunidade para se dar conta de que o grau de incompetência de Deus era absolutamente intolerável.
Muito tempo antes, depois de ter perdido a família e quase ter perdido a própria vida. Fiona chegou à conclusão de que Deus não passava de um senhorio ausente. Descuidado, desinteressado, ocupado com outras coisas. Desde então nada aconteceu de modo que ela pudesse reavaliar essa perspectiva. Achava difícil acreditar em Ser Supremo que tinha permitido que sua mãe e seu pai morressem de forma tão cruel e que ao mesmo tempo permitia que os assassinos prosperassem. Geralmente, ela ouvia os padres e ministros que eram solicitados por alguma pergunta desesperada dizerem que ―Deus age de maneiras misteriosas‖. Como se isso explicasse tudo. Mas não explicava. Na verdade, só o fazia parecer um mágico de quinta categoria. Um contraventor de apostas, um ilusionista, um trapaceiro.
— ... nunca duvidem de que Deus nos dá força para suportarmos nossos sofrimentos... — continuava o ministro.
Fiona o observou mais de perto. Ele não passava de um garoto. Louro, rechonchudo e de bochechas rosadas. Talvez tivesse uns vinte e dois anos. Provavelmente recém-saído da escola religiosa. A menina dos olhos da mãe dele, sem duvida. Seus trajes eram novos e de excelente qualidade. Ela olhou para os pés dele. Família rica, pensou. Sapatos de couro macio não podiam ser comprados com o salário de um jovem ministro. Ele usava no dedo uma aliança de ouro reluzente, recém-casado. Talvez um bebê a caminho.
Senhor reverendo, o que o senhor teria a dizer sobre a dor?, — ela se pergunta. enquanto buscava o rosto sombriamente benigno dele. Ela conhecia a dor de perto e sabia que não havia jeito de suportar o insuportável. A melhor coisa a fazer era tentar sobreviver à dor.
Ela continuou a observar à medida que o caixão de Nick descia à sepultura. O ministro aspergiu terra sobre ele, lembrando aos presentes que todos eram pó e ao pó retornariam. E depois, tudo acabado. As pessoas começaram a se afastar da sepultura. Fiona permaneceu. Haveria uma ceia na casa de Michael. Como diabos, ela suportaria? Sentiu um braço forte enlaçar seus ombros. Era Seamie. Ele a beijou na testa. Já podia fazer isso. Com quinze anos, já estava bem mais alto que ela e era extremamente parecido com seu irmão, Charlie. Estava mais alto que Charlie com aquela mesma idade, embora não tão musculoso, e era um requintado rapazinho americano, não um brigão de East End, mas os maliciosos olhos verdes, a risada solta, o coração generoso e a disposição viril eram idênticos aos do seu irmão mais velho.
Charlie teria agora vinte e seis anos, ela pensou. Um homem feito. Ela se perguntava o que teria sido feito dele com a vida rude que vivia em Londres se tivesse a chance de continuar vivendo, da mesma forma que se perguntava sobre o que resultaria da escola particular, das viagens de inverno e dos outros privilégios oportunidades de que Seamie desfrutava.
Durante anos, ela acalentou a esperança de Seamie voltar à cidade já formado para compartilhar sua casa e seus negócios. Mas, à medida que ele crescia começava a duvidar disso. O garoto vivia ao ar livre. Passava as férias fazendo caminhadas e canoagem em Catskills e em Adirondacks, e estava com muita vontade de explorar as Montanhas Rochosas e o Grand Canyon. Nada o excitava mais que descobrir uma nova planta, um novo inseto ou um novo animal. As notas dele refletiam esse interesse: era o melhor da classe em ciências naturais, matemática, geografia e história. E era o pior da classe em inglês, latim e francês.
— Esse garoto tem a alma de um pensador — Michael costumava dizer — Igual ao seu pai antes de conhecer sua mãe. Claro que você não vai querer que desista disso para vender chá. Ele chegará a lugares desconhecidos.
Fiona sabia que o tio tinha razão. Seamie faria viagens pelo mundo. A herança de Nick, mais o fundo que ela abriu, permitiriam que ele se dedicasse a viajar. Ele lhe escreveria do Cairo, de Calcutá e de Katmandu, e lhe faria visitas entre uma e outra aventura, mas nunca trabalharia no comércio de chá nem residiria na 5th Avenue. Ela teria que envelhecer sozinha em sua maravilhosa e gigantesca mansão.
— Vamos, Fi — sussurrou Seamie, apertando seus ombros. — Já está na hora de ir.
Ela encostou a cabeça no ombro dele e se deixou ser conduzida. Dois dias antes ele chegou de sua escola, Groton, para o funeral e ela se sentiu feliz com isso. A presença dele a confortava de uma forma que nenhuma outra conseguia. Eles tinham passado juntos pelo pior, tinham cruzado um oceano para começar uma vida de modo que os laços que havia entre ambos eram profundos. Fiona agora se dava conta do quanto precisaria dele nos dias que estavam por vir. A parte mais difícil depois que acaba o drama da morte e a comoção do funeral. Começa quando você se senta sozinho com sua dor. Seamie sempre sabia exatamente o que lhe dizer quando estava deprimida, assim como sempre sentia quando ela precisava de um abraço dele.
Teddy Sissons e esposa acercaram-se e disseram que estariam à disposição toda vez que fosse necessário. Depois, chegaram outras pessoas dizendo a mesma coisa com algumas variações. Gente boa, gentil. Pessoas que queriam o bem e a amavam, e que por ela eram amadas. Mesmo assim, ela não suportava ter que vê-las. Ela continuou recebendo pêsames, assentindo, agradecendo e tentando sorrir e se sentiu aliviada quando elas se foram, na direção de suas carruagens.
— Você vai ficar conosco esta noite, Fiona. Você e Seamie — a voz de Michael soou atrás dela. Ela se virou. Sua família estava reunida, pronta para partir.
Ela negou com a cabeça.
— Não posso, tio Michael, eu...
— Não discuta, Fiona — disse Mary. — Esse é um argumento que você não vencer. Temos muitos quartos e não quero que vocês dois fiquem sozinhos na sua casa enorme.
Ela esboçou um sorriso.
— Muito obrigada — abraçou a tia.
— Vou plantar uma roseira de rosas brancas, uma trepadeira, perto da lápide. O Nick gostaria — disse AIec. Seu queixo tremia. Ele se virou para enxugar as lágrimas. — É melhor pedir logo para que os coveiros não cubram de grama antes de plantá-la — acrescentou, afastando-se na direção do túmulo.
— Seamie, lan, será que vocês poderiam acompanhá-lo? — disse Mary. — Ele já enxerga tão bem como enxergava. Tenho medo de que ele caia.
lan se apressou atrás do avô, seguido por Seamie. Mary encaminhou sua prole à carruagem da família. Michael lhe disse que se juntaria a eles em um minuto.
— Como é que você está se segurando, mocinha? — ele perguntou para Fiona quando se viu sozinho com ela.
— Eu estou bem — ela disse. — De verdade.
Olhou para o tio e notou que ele não tinha acreditado em suas palavras.
— Sinto falta dele, tio Michael. Sinto muita falta dele.
— Eu sei que você sente. Nós todos sabemos — ele a segurou pela mão e manteve-se assim, desajeitado, emocionado. — Tudo vai ficar bem, Fiona, você verá. E somente o corpo que se foi. Somente o corpo. Tem uma parte que não é enterrada, uma parte que fica dentro de você para sempre.
Fiona beijou o rosto do tio. Gostou das palavras dele e queria poder acreditar.
Ela não sentia Nick dentro dela. Só sentia um vazio vasto e dolorido.
— Está na hora de irmos — disse Michael. — Você quer ir com a gente?
— Não, preciso de alguns minutos para me recompor. Irei sozinha. Vocês podem levar o Seamie?
Michael disse que sim e Fiona caminhou na direção de sua carruagem, louca para ficar sozinha, nem que fosse por pouco tempo. Ao se aproximar da carruagem, avistou um homem alto, elegantemente vestido, parado com as costas voltadas a ela. Ele se virou ao ouvir o som de seus passos e tirou o chapéu. O cabelo dele agora estava branco, mas ele continuava bonito e elegante.
— Will — ela disse, vacilante. Não lhe estendeu a mão com medo de que ele não a segurasse. Ela quase não sabia o que dizer. Já fazia uma década que não se falavam de um modo mais significativo, desde que tinham se separado.
— Olá, Fiona — ele disse. — Eu sinto muito... eu queria... como está você?
— Nada bem — ela respondeu, abaixando os olhos.
— Claro, não posso imaginar como você está. Que pergunta mais estúpida que eu fiz —ele se pôs em silêncio por alguns segundos e disse em seguida. — Eu soube que o Nicholas... que ele tinha falecido. Eu queria ir ao velório, mas não sabia se você gostaria de me ver lá. Por isso só vim ao enterro. Para oferecer minhas condolências.
Fiona ergueu os olhos até os dele.
—Porquê?
Ele sorriu, melancólico.
— Porque, mais do que ninguém, sei o quanto ele significava para você. Fiona o olhou nos olhos outra vez. Um soluço sacudiu o seu corpo. E depois outro. As palavras de Will, seu perdão enunciado sem palavras deixou-a profundamente comovida. Um nó apertou dentro do seu peito e se afrouxou, liberando toda a dor e a raiva que estavam dentro dela.
Ela começou a chorar. Will a tomou nos braços e deixou que ela desabafasse.
SENTADA EM SEU ESCRITÓRIO, com os cotovelos apoiados na escrivaninha e os dedos comprimindo as têmporas, Fiona tentava afastar uma forte dor de cabeça.À sua frente, um memorando de Stuart, um relatório de vendas do recém-lançado Chá Instantâneo. Já tinha tentado lê-lo quatro vezes, mas não conseguia passar da terceira frase. Debaixo dele jazia uma pilha de cartas e faturas que precisavam sua atenção. A secretária aguardava por isso. Ela sabia que, se não começasse nunca faria o trabalho.
Uma brisa de maio entrou pela janela aberta, agitando os papéis e acariciando seu rosto. Ela se encolheu. A primavera brincava com ela. Lá fora, a vegetação florescia. Tulipas, narcisos e frésias exibiam suas faces brilhantes para o sol. Floriam cornisos, magnólias e cerejeiras. E as crianças corriam felizes pelo parque bracinhos erguidos, saudando o retorno da vegetação.
A beleza, porém, não aliviava a dor no coração de Fiona, só a intensificava. Ela se esquivou do cálido raio de sol, que batia em seus ombros e estremeceu com o trinado feliz dos pássaros. Tudo e todos se mostravam radiantes com a chegada da primavera. E ela? Sentia-se morta por dentro. Nada lhe trazia alegria, nem a abertura de um novo salão de chá nem o êxito da campanha publicitária. Nem mesmo o crescimento de suas rosas-chá tão amadas. Tudo o que conseguia fazer era se arrumar toda manhã para o trabalho. Ela mal tinha ânimo para discutir com Peter Hurst por conta de novas ações da Burton, ou para saber se havia vendido dez ou dez mil caixas do Chá Instantâneo.
O relógio na parede mostrava a hora. Duas horas. Ela resmungou. Teddy Sissons chegaria a qualquer minuto com o testamento de Nick. Ela aguardava a visita com má vontade. Ultimamente, não suportava a presença de ninguém. Uma simples conversa casual era um suplício para ela. Suspirando, voltou a atenção para o memorando de Stuart, determinada a enfrentá-lo. Na metade da primeira página, ela foi interrompida por uma batida à porta.
— Fiona — uma voz a chamou.
— Olá, Teddy — ela disse, forçando um sorriso. — Entre. Posso lhe servir uma xícara de chá?
— Não, muito obrigado — ele disse, colocando a pasta sobre a mesa dela. — Prefiro ir direto ao assunto. Tenho que estar na corte lá pelas quatro horas.
Fiona abriu um espaço na mesa. Ele puxou um punhado de folhas da pasta e sentou-se. A medida que as colocava em ordem, dispondo-as sobre a mesa, seus óculos escorregaram para a ponta do nariz. Ela se debruçou na mesa e os ajustou.
— Obrigado — ele disse, distraído. Depois, olhou-a. — Como é que você está?
— Bem. Melhor, muito melhor.
— Você é uma péssima mentirosa.
Ela sorriu com amargura.
— Desgraçadamente mal. Que tal?
— Pelo menos isso é verdade. Então... aqui está — ele estendeu uma cópia do testamento. — A maior parte é rotineira, mas em algumas coisas vou precisar de suas instruções.
Ele começou a enunciar os tópicos do testamento, detalhando todos os legados não monetários de Nick. Desculpou-se pela extensão do documento e pela linguagem técnica, explicando que Nick insistira que cada coisa ficasse estritamente calçada pela lei. Fiona fazia o possível para acompanhar a leitura, mas as palavras dançavam diante dos seus olhos. Quando ele chegou à parte das várias contas bancárias de Nick e de como elas seriam distribuídas, a dor de cabeça dela simplesmente atingiu o apogeu. E quando ela já pensava que não aguentaria nem mais um segundo, ele virou a última página do documento.
— É isso, Fiona — ele disse. Mas falta uma última coisa.
— O quê? — ela perguntou, com a cabeça explodindo de dor.
— Como você sabe, o Nick tinha um fundo de investimento no Banco Albion, em Londres. O pai investiu uma soma de dinheiro para ele quando Nick deixou a Inglaterra, uma soma investida em diversas ações que por sua vez geraram lucro.
Ela assentiu com a cabeça.
— Esse fundo ele também deixou para você. Atualmente, vale cerca de setecentas mil libras.
— Isso deve estar errado, Teddy. Isso é mais de três milhões de dólares!
— Eu sei disso. E vai valer ainda mais. Muito mais.
— Mas, como? Quando casamos, essa conta valia cerca de cem mil libras.
— Houve uma compra adicional de ações.
— Quem comprou? O Nick? Pelo que sei, ele se recusava a se aproximar de uma corretora de valores. E até de um banco.
— Não foi ele, foi o Lord Elgin. O pai dele. Pouco antes de morrer, Nick me disse que o pai tinha acrescentado mais ações ao fundo. E também disse que o pai não renunciaria a esse dinheiro sem uma briga. Embora agora o fundo seja legalmente seu, Randolph Elgin pode tentar bloquear a transferência do dinheiro e, em minha opinião, ele fará isso. Ainda estou para conhecer alguém que desista de mais de três milhões de dólares sem uma briga.
— Então vamos brigar, Teddy. Até o fim. Eu pago. O pai de Nick é um homem horrível. Ficarei muito feliz de privá-lo desse dinheiro. E também me agrada a ideia de usá-lo para um fim positivo. Alguma coisa que o Nick aprovaria. Talvez bolsas de estudo para estudantes de arte ou uma doação para o Metropolitan.
— Está bem — disse Teddy, mexendo em alguns papéis até encontrar o doca — mento que queria. — Você terá que me dizer se quer que o fundo fique como esta ou se quer resgatá-lo e transferir o dinheiro para o seu banco.
— Resgatá-lo — disse Fiona, massageando as têmporas outra vez. Ela estava impaciente e irritada, querendo terminar a conversa logo.
— Você tem certeza? Talvez seja mais fácil o Elgin desistir das ações do que de uma grande soma de dinheiro vivo. Eu me lembro que aqui tem algumas bem rentáveis e uma que é um fracasso. Deixe-me ver... Abingdon Publisi Amalgamated Steel, esta é excelente... Beaton, Wickes Manufacturers... Milis... Ah, aqui está a maçã podre! Fiona, é uma companhia de chá. Burton Tea, Cristo, por que Elgin comprou tantas ações dessa companhia? E por que as conservou? Perderam dois terços do seu valor de compra.
Fiona parou de massagear as têmporas.
— Teddy, o que foi mesmo que você disse? — ela sussurrou.
— Hum... Burton Tea?
— São exatamente quantas ações? — ela perguntou, enquanto procurava caneta e papel.
Teddy desceu o dedo pela coluna.
— Na verdade, muitas.
— Teddy, quantas?
— Quatrocentas e cinquenta mil.
Fiona prendeu a respiração. Teddy olhou-a. Ela estava com os olhos a completamente arregalados.
— Então, foi assim que ele fez — ela disse, — Mentiroso, bastardo, ordinário. Nunca entendi como é que ele conseguia reter 51% quando está atolado em dívidas. Ele fez exatamente assim.
— Fez o quê, Fiona?
Ela não respondeu. Puxou abruptamente uma gaveta da escrivaninha e retirou uma pasta. Abriu-a, consultou os documentos dentro dela e fez umas contas.
— Cinquenta e dois por cento! — ela disse com a voz trêmula. — Agora tenho 52%!
— De quê?
—Da Burton Tea, Teddy, Deixe-me ver isso — ela pediu os papeis que estavam com ele.
Teddy os estendeu para ela. Os registros mais recentes estavam na parte de cima. Ela folheou atentamente os balancetes até achar o que procurava: a compra das açõe da Burton Tea. Foram acrescentadas ao fundo de Nick em 1894. Elgin pagara cerca de três libras por unidade, aproximadamente quinze dólares. O total das ações da Burton Tea somado as outras ações de Nick — avaliadas à época em cerca de cento e sessenta mil libras —, fizeram a conta crescer para um milhão e meio de libras, uma soma estonteante. Ela pegou rapidamente seus próprios balancetes e descobriu que pagara entre dezoito e vinte e um dólares por cada ação da Burton Tea. As ações de Nick tinham sido adquiridas com um desconto.
Depois, ela comparou o balancete de Nick de março de 1894 com o balancete mais recente de março de 1898. Teddy estava certo: todas as outras ações geraram lucro, exceto as da Burton Tea, e as perdas dessa companhia tinham sido tão grandes que, mesmo com o crescimento das outras ações, a conta perdera quase metade do seu valor em 1894. As quatrocentas e cinquenta mil ações que Nick Unha da Burton Tea agora só valiam quinhentas mil libras.
As datas, a diferença no preço das ações, as perdas: tudo checado.
— Teddy, eu quero o fundo do Nick. Intacto — disse Fiona, olhando os balancetes. — Custe o que custar, entendeu? Eu preciso dessas ações nas minhas mãos. Comece esta noite. Mande uma carta para o Albion... não, mande um telegrama — foi tomada de repente pelo pânico. — O Elgin não pode vender as ações, não é?— perguntou, angustiada.
— É claro que não. Os bens de Nick foram congelados no mesmo momento que o testamento foi autenticado aqui em Nova York. E agora pertencem legalmente ao parente mais próximo dele. Ou seja, você.
— Ótimo. Ótimo. Informe imediatamente ao Elgin os meus desejos — ela se levantou e começou a andar pelo escritório. — Mande o telegrama esta noite, Teddy. Esta noite. Alguém do seu escritório pode fazer isso? Eu quero que ele o receba amanhã de manhã. Anda, Teddy, vai agora. O meu cocheiro o levará. Assim você chegara á tempo de parar no seu escritório antes de ir para a corte.
Teddy foi colocado para fora do escritório de Fiona e para dentro da carruagem dela com uma fisionomia totalmente confusa. Ela o fez jurar que enviaria o telegrama o mais rápido possível e depois gritou para que o cocheiro o levasse correr até o outro escritório.
De volta à sua sala, Fiona sentou-se atônita na cadeira. Não sabia se chorava ou ria. As ações da Burton Tea que ela procurava tão desesperadamente estiveram durante todo aquele tempo no fundo de investimento do seu marido. Trinta por cento de um milhão e meio. Nas mãos de Nick.
Agora, tudo fazia sentido. Burton deve ter precisado de dinheiro em 1894 para financiar sua entrada no mercado americano. Antes daquela ocasião, ele já tinha vendido trezentas mil libras emprestadas do Albion. De acordo com os vários artigos que Fiona lera nos jornais, seus acionistas sabiam disso e dificultaram as coisas para ele.
A fim de obter os fundos adicionais dos quais necessitava, sem que os investidores ficassem sabendo, Burton ofereceu uma fatia de suas ações ao próprio Elgin e não ao banco. E ofereceu-as com um considerável desconto no preço, conforme visto por Fiona no balancete. Burton sabia que Elgin manteria as ações a salvo porque o havia convencido de que o valor das ações subiria com o estabelecimento da Burton Tea na América, um grande país com uma população crescente. Quando isso acontecesse, Burton usaria os lucros obtidos na América para comprar suas ações de volta a um preço mais alto e Elgin teria um bom lucro.
Como a venda era para ser mantida em segredo, Elgin não poderia usar o dinheiro do Albion. O banco já era uma sociedade anônima e suas transações estavam sujeitas à investigação dos acionistas. Sendo assim, Elgin fez uso do seu próprio dinheiro e transferiu as ações para uma conta privada, a conta de Nick. Talvez ele tenha contado com o auxílio de sua secretária particular e de algum contador de extrema confiança. Seriam os únicos no banco a saber da existência dessa conta. Claro que Elgin deve ter achado que as ações estariam a salvo nessa conta e não teria que dar nenhuma explicação para Nick. Ele sabia muito bem que odiava qualquer coisa relacionada com o Albion. Nick nunca reclamaria por aquelas ações; ele não se interessava pelos seus próprios investimentos, só queria saber dos lucros que ofereciam. E além disso estava gravemente doente. Quando ele morresse — solteiro e sem herdeiros —, o fundo simplesmente retornaria à sua familia. Os dois devem ter pensado que era um acordo perfeito: Burton teria o empréstimo de que precisava e Elgin, um bom lucro mais tarde, e nenhum seria mais esperto que o outro.
Havia, no entanto, duas coisas com as quais Elgin não contava. Primeira, um possível fracasso da expansão da Burton na América que o impedisse de comprar as ações de volta; segunda, Nick poderia não morrer, casar- se e depois deixar tudo para a esposa, inclusive o fundo de investimento.
Fiona respirou fundo por alguns segundos. Incapaz de permanecer sentada, levantou-se em seguida, chocada com o que acabara de saber. Seus olhos pousaram na fotografia de Nick que ela mantinha em sua mesa. Se ela ao menos tivesse sabido disso antes, mas como poderia saber? Ele nunca conversou com ela a respeito daquela conta, Aliás, nem ele sabia de alguma coisa. Nunca soube quanto tinha em sua carteira.
Ela pegou a fotografia. Pela primeira vez desde que Nick partira, ela o sentia ali, ao lado dela. Ele ainda a protegia, ainda olhava por ela. Seu corpo fenecera, mas seu espírito vivia no coração dela. Ele era e seria para sempre uma parte dela. Tal como Michael havia dito.
Uma outra brisa penetrou na sala e dessa vez ela não estremeceu. Dessa vez ela sorriu ao imaginar que a suave carícia da brisa era Nick tocando seu rosto. Ela levou a fotografia ao peito, fechou os olhos e murmurou por esse último presente que recebera dele
— Muito obrigada.
EU OFEREÇO AS minhas sinceras congratulações para o meu irmão James — disse Joe, brindando ao casamento do seu irmão. — E, para minha cunhada, Margaret... — ele deu uma pausa, fingindo-se pesaroso, e depois acrescentou — minhas sentidas condolências.
Os convidados reagiram com assovios e gritos de exclamação; a noiva e suas irmãs, com risadas.
— Isso é muito engraçado, Joe - berrou Jimmy em meio à gritaria. — Tomara que a fruta que você vende seja mais fresca do que as suas piadas. Podemos comer agora?
— A Jimmy e Meg! — disse Joe, erguendo o copo. — Vida longa, saúde, riqueza e felicidade!
— A Jimmy e Meg — repetiram todos. Tocaram-se os copos em brindes, foram os pedidos para que o noivo beijasse a noiva, e mais gritos e assovios encheram o ambiente quando ele a beijou. Joe olhou ao redor para se certificar de que os garçons já tinham começado a servir e alguém puxou sua manga. Era seu avô, que esperava sentado por perto.
— Tem alguma coisa errada nisso — o velho apontou para o próprio copo. É a pior cerveja que já provei na vida.
— É champanhe, vovô! Da França.
— Cerveja francesa? Muito elegante, demais da conta, se você quer saber. O há de errado com a Fuller‘s, rapaz?
Joe parou um garçom e pediu-lhe que pegasse uma cerveja na cozinha e pediu a um outro para servir mais uma rodada de champanhe porque os copos dos convidados já estavam vazios e eles queriam mais. Para um terceiro, solicitou o pão. Depois, pela primeira vez naquele dia, sentou-se.
Havia deixado a sua casa em Greenwich à disposição dos noivos para o moço que lhes dera de presente e queria que tudo estivesse perfeito. Gostava de sua nova cunhada, uma moça que pertencia a uma família humilde de barraqueiros de Whitechapel, e queria lhe propiciar um dia maravilhoso. Os encarregado pelo bufê e a florista chegaram de madrugada para decorar o salão de baile da sua mansão georgiana, mas, tão logo o sol nasceu e ele percebeu que o dia seria firme, mudou de ideia e pediu que levassem tudo para fora de casa. O salão de baile era bonito, mas nada se equiparava à beleza dos seus jardins.
A casa de Joe era uma velha propriedade rural cujos campos e pomares terminavam na margem sul do Tâmisa. Carvalhos centenários pontuavam a paisagem e também cerejeiras, cornisos e roseiras. Canteiros de flores se dispunham atrás casa. Ele fez com que arrumassem as mesas um pouco além dos canteiros para que os convidados pudessem ter uma visão à distância de suas macieiras, pereiras e marmeleiros em flor, e mais à frente, do rio.
Ele olhava em volta sem prestar atenção no seu próprio prato, preocupado nas com o bem-estar dos seus convidados, e teve que sorrir. Seu pai comia uma posta de salmão enquanto conversava com um vizinho, um peixeiro, a respeito dos méritos da defumação escocesa comparada à dos noruegueses. Sua irmã, Ellen, cujo marido era um atacadista no mercado de Smithfield, demonstrava que apreciava o bacon. A senhora Walch, uma outra vizinha da Montague Street que vendia flores à porta dos teatros de West End, admirava o arranjo de flores à mesa. A rude família de Joe e convidados eram mais exigentes à mesa, mais convictos de seus gostos que qualquer conde ou duque. Todos barraqueiros, cada homem e cada mulher ali presente sabia muito bem quem cultivava as melhores batatas — os fazendeiros de Jersey ou de Kent — e quais eram os tipos de alimentos que favoreciam o melhor presunto e o melhor toucinho, e quem produzia os melhores morangos, ou seja, os ingleses e os escoceses. Discutiam em voz alta sobre qual era o açougueiro que tinha o melhor toucinho e o que melhor preparava uma posta de bacalhau, da mesma forma que os membros da nobreza discutiam sobre qual era o clube que servia o melhor filé Wellington.
— Tio Joe! Tio Joe.
Joe se virou. Os três filhos lourinhos e lindos de Ellen despencaram em cima.
— A mamãe disse que tem bolo — disse Emma, a mais nova. — Um bolo ... com flores em cima.
— Tem, sim, meu amor. Querem ver? — os três disseram que sim. — Está na copa. Vão dar uma espiada lá — eles se prepararam para sair. — Robbie...
— Sim, tio Joe? — disse o mais velho, virando-se.
— Me dá esse garfo aí, por favor.
Robbie voltou e entregou o garfo que tinha enfiado no bolso de trás e depois saiu correndo, rindo.
— São uns capetas, os três — disse o avô. — Você não vai comer?
— Vou, sim, vovô, mas primeiro tenho que tratar de uma coisa. Daqui a pouco volto.
Joe saiu na direção de Jimmy e Meg.
— Está tudo correndo bem? — ele perguntou para ambos.
— Joe, querido, está tudo maravilhoso! — disse Meg, pegando-lhe a mão. — Muito obrigada! — Ela era ruiva e sardenta e estava com um vestido de organdi de gola alta, com um tom branco perolado. Jimmy lhe dera dois brincos de pérolas de presente de casamento e a mãe dela tinha feito um arranjo de rosas brancas na fita de napa que ela usava amarrada ao pescoço. Joe sempre a achou bonita, mas agora estava simplesmente maravilhosa, com o rosto corado e a delicadeza radiante que seus olhos espelhavam cada vez que ela olhava para o marido.
— Fico feliz por você estar gostando. Pode me emprestar o seu marido? Prometo que fico com ele apenas por um minuto.
Meg assentiu e Jimmy acompanhou Joe na direção da casa.
— O que houve? — perguntou Jimmy.
— Tenho um presente de casamento para você.
— Outro? É demais, Joe...
— Não é, não. Vem comigo — ele entrou no estúdio com o irmão, fechou a porta e apontou para uma caixa que estava em cima da escrivaninha. — Abre — disse.
Jimmy levantou a tampa e tirou um pedaço de flanela verde-clara. Seus olhos se depararam com uma placa retangular de bronze, onde se lia: BRISTOW‘S DE COVENT GARDEN. VENDAS POR ATACADO. JOS E JAS. BRISTOW, PROPRIETÁRIOS. Olhou emocionado para o irmão.
— Ai, Jesus, Joe...
— Sócios — Joe o cumprimentou.
— Eu não esperava por isso. Por que você fez isso? O negócio é seu, foi você que começou...
— Eu nunca teria vencido sem você. O negócio também é seu. Acho que devemos formalizar as coisas. A papelada está em andamento. Deve ficar pronta na semana que vem. Com o seu novo salário e a sociedade no maior estabelecimento atacadista de alimentos, você não terá o menor problema para comprar aquela casa em Islington que Meg tanto gosta.
— Eu... eu não sei o que dizer. Muito obrigado — emocionado, ele agarrou o irmão e o ergueu pelas costas. Depois, pegou a placa e saiu correndo do estúdio para mostrá-la a sua esposa.
Já fora da casa, Joe observava o casal com um sorriso tristonho — Jimmy exibia para Meg as letras do seu nome inscritas na placa. Jimmy teve sorte. Casou-se com uma moça maravilhosa, uma moça que ele realmente amava. Logo formariam uma família. E agora, com a sociedade, ele teria os meios para manter confortavelmente a mulher e os filhos.
Joe tinha muito dinheiro, tornara-se milionário, Mesmo cedendo meta do negócio atacadista para Jimmy, ainda mantinha as lojas Montague‘s e o lucrativo negócio de vendas de porta em porta. Mas, observando o seu irmão, ele se sentia paupérrimo. Entre os dois, era Jimmy que possuía a verdadeira riqueza.
De pé, com as mãos na cintura, de repente ele sentiu que alguém se enganchava em seu braço.
— Você teve um bom gesto, querido — disse sua mãe.
— Não mais do que ele merecia retrucou Joe. — Já devia ter feito isso há muito tempo.
Rose usava um vestido de seda castanho-avermelhado que ele lhe dera e um xale de lã xadrez. Mais velha, já com os cabelos grisalhos, mesmo assim ele ainda a achava bonita. Anos antes, ele insistiu para que a mãe e o pai se mudassem da casa úmida e apertada da Montague Street para uma casa nova e arejada em Finsbit. Residiram lá por uma semana, e depois, com saudade de Whitechapel e dos amigos retornaram para a velha casa e se recusaram a sair de lá. Reconhecendo a derrota Joe comprou a casa para eles e mandou reformá-la. Embora desse uma grande quantidade de dinheiro para eles, seu pai ainda trabalhava diariamente no mercado junto com a mãe, exceto nas segundas-feiras. A maior ostentação de seus pais era ter uma barraca nova e frequentar com assiduidade as salas de música.
Rose olhou para o rosto do filho. E viu que ele observava Jimmy e Meg.
— Você está pensando nela, não é?
—Em quem?
Rose o encarou, séria.
—Já faz dez anos, meu querido,
— Eu sei, mamãe; portanto, pare antes de começar a falar. Eu não estava pensando em ninguém.
— Está bem, não está mais aqui quem falou. Só estou preocupada, só — disse Rose, carinhosamente. — Você já está com quase trinta anos. Devia ter a esposa. Uma família. Um homem assim bonito e bem-sucedido como você, conheço umas dez moças que fariam de tudo para ter alguém como você.
Joe resmungou, mas isso não foi suficiente para calar a mãe.
— Eu só quero que você seja feliz, querido.
— Eu sou feliz, mamãe. Perfeitamente feliz. Meu trabalho me faz muito feliz.
— Ora, besteira. Você só trabalha tanto assim para não parar e pensar no quanto é infeliz.
— Mamãe, eu acho que o vovô está precisando de ajuda com o salmão dele. Por que a senhora não...
— Ah, você está aí! — exclamou urna voz feminina. Era Cathy. — Que diabo você está fazendo aqui de esgueira, Joe, quando devia estar conversando com os convidados? A Sally está aqui. Está caidinha por você. Ela acha você lindo.
Joe riu.
— Sally Gordon? Sua amiguinha de escola? Aquela que... tem dez anos? Ela precisa de uma babá, não de um marido. Ainda usa tranças?
— Sim, é ela mesma. Se você parasse de suspirar por um fantasma, veria o quanto ela se tornou bonita e agradável.
Joe se sentiu perdido. Aquilo doeu. Cathy atingira a ferida. Como de costume.
— Já basta, mocinha — advertiu Rose.
—Alguém tem que dizer que ele está desperdiçando a vida, mamãe — ela disse desafiadoramente. — E esse alguém pode muito bem ser eu — ela olhou o irmão de queixo levantado enquanto falava. — Fiona Finnegan está a um milhão de quilômetros de distância e casada com um grã-fino, e não vai voltar e pronto, falei. Sally Gordon está bem aqui e é apaixonada por você. Ela nunca foi de ficar falando de rapazes, mas não para de falar em você. Só Deus sabe por quê. Ela mudaria rapidamente de ideia se soubesse o pé no saco que você é!
— Eu já disse que basta! — gritou Rose. Cathy escapuliu da sala. — De todos os meus filhos, ela é a única que nunca consegui controlar — disse Rose, de cara feia para a sua filha caçula. Espero que você saiba o que está fazendo, contratando-a para comandar a nova loja.
— Eu sei. Eu não teria ninguém melhor.
— É uma garota inteligente, fará um bom trabalho — disse Rose. — E tem um coração de ouro. E é louca por você. Ela o adora, Joe, Quer o melhor pra você, como todos nós — ela apertou o braço dele. — Você sabe que devia estar realmente conversando com seus convidados. E não custa nada cumprimentar a Sally. Só por educação.
Joe cobriu a mão da mãe com a sua.
— Então, vamos procurar a Sally. Mas sem bancar o cupido, mamãe. Não preciso de esposa. Eu tenho você e a Cathy para ficarem no meu pé e isso é tudo que um homem pode aguentar.
ELE VAI LUTAR, FIONA — disse Teddy Sissons,
jogando um maço de documentos em cima da mesa dela. — Esses documentos chegaram hoje de manhã. Os advogados dele são bons. Criaram todos os obstáculos que eu já esperava e mais alguns.
Tão logo Fiona começou a ler os papéis, Teddy sentou-se. Pegou um lenço no bolso, tirou os óculos e enxugou a testa. Aquele dia de junho estava incrivelmente quente.
— Isto é um ultraje! — disse Fiona. — Ele está me oferecendo um terço do valor das ações se eu desistir imediatamente da minha apelação. Uma droga de um terço! E a oferta expira em sessenta dias e, depois que esse prazo expirar, não recebera nada! Isso é completamente ilegal. Você acredita em tanta cara de pau?
— Acredito — retrucou Teddy, guardando o lenço. — E, como seu advogado meu conselho é aceitar a oferta dele.
— O quê?
Teddy recolocou os óculos.
— Aconselho-a a aceitar.
— Mas, Teddy, você sabe o quanto eu quero essas ações — ela disse, irritada e perplexa com a mudança de comportamento do seu advogado.
— Deixe-me terminar, Fiona. Você precisa entender uma coisa. Esse processo vai ficar muito feio. Você é uma mulher rica. Não precisa dessas ações. Não precisa lutar por isso. Esquece.
Fiona chacoalhou a cabeça como se não tivesse escutado direito.
— Não tenho medo de brigar. O que é que o fez pensar que eu concordaria?
— Esse processo vai envolver um custo tremendo.
— Eu já disse que pagaria o que fosse...
— Custará tempo e dinheiro — Teddy a interrompeu bruscamente. — Antes mesmo da chegada do processo às mãos do juiz, você terá desperdiçado um ou dois anos do seu tempo e milhares de dólares no envio dos seus documentos originais como certidão de nascimento, de casamento, testamento e atestado de óbito de Nick; isso para estabelecer sua identidade e confirmar a do Nick e para verificar autenticidade do casamento. Eles vão retardar o processo ao máximo.
— Talvez seja melhor alguém de sua firma ir até Londres com os documentos em mãos. Pode ser uma boa ideia ter alguém lá para fazer pressão — disse Fiona.
— Impossível. Ninguém na minha firma é licenciado para advogar na Inglaterra.
— Você deve ter gente afiliada por lá. O que você faz se um cliente morre e possui bens na Inglaterra? — Fiona sabia que dizia o óbvio e se perguntava por que Teddy não queria levar o caso adiante se, na maioria das vezes, era um verdadeiro buldogue.
— Bem, sim. Nós trabalhamos com um grupo de advogados londrinos.
— Então, marque uma reunião com eles para mim. Se for preciso, sigo para Londres na semana que vem.
— E os seus negócios? Não pode abandoná-los.
— O Stuart Bryce é mais que capaz de comandar a GostoChá na minha ausência, e Michael pode assumir os salões de chá e as mercearias —ela retrucou.
Teddy agitou-se na cadeira, dizendo em seguida:
— Quando você tiver tempo de analisar os documentos, verá que os advogados do Elgin têm os registros médicos de Nick em mãos. Não os do doutor Eckhardt, que nunca se submeteria a eles, mas os de um tal doutor Hadley. Pelo que entendi, foi o primeiro a diagnosticar a sífilis do Nick.
Fiona assentiu com a cabeça.
— É verdade. Hadley era o médico da família de Nick.
— De acordo com as anotações de Hadley, Nick contraiu a doença de um outro homem.
— Como os advogados conseguiram essas anotações? Isso é informação confidencial.
Se Hadley é amigo de Elgin, provavelmente entregou-as para o amigo.
— Mas por que você trouxe esse assunto à baila, Teddy? O que isso tem a ver com a minha apelação?
— Tudo a ver. Os advogados de Elgin pretendem usar a sífilis de Nick e suas... e... suas supostas atividades sexuais para argumentar que o casamento de vocês era uma farsa, que Nick estava mentalmente perturbado quando se casou, que o casamento nunca se consumou e que você não tem direito à herança dele.
Fiona balançou a cabeça de olhos arregalados, sem acreditar no que ouvia.
— Eles não ousariam.
— Com essa quantidade de dinheiro em jogo, certamente ousarão, sim.
— Isso não faz diferença — ela retrucou, esquentada. — Mesmo assim, vou enfrentá-los.
— Você tem certeza disso?
— Tenho, sim! Você sabe que farei isso — ela disse, com impaciência. — Já lhe disse isso milhares de vezes. Por que você insiste nessa pergunta?
Teddy olhou para o vazio. Alguns segundos depois, ele pigarreou e disse:
— Fiona, é terrivelmente difícil provar que um casamento se consumou. Mas não impede que os advogados tentem. Está me entendendo?
— Não, Teddy, não entendi essa droga! Pare de ser tão delicado. Você está querendo dizer que eles vão me perguntar se eu e o Nick fizemos amor? Eu direi que fizemos.
— Você sabe que eu sempre admirei a sua vontade férrea, sua recusa de fugir das dificuldades. Mas, às vezes, força não significa perseverança. As vezes significa saber a hora de se retirar.
— Teddy, ouça...
— Não. Você é que precisa me ouvir — ele disse abruptamente. — Você não tem a mínima ideia do que os advogados são capazes de fazer nos tribunais. E se homens do Elgin insistirem para que um médico escolhido por eles a examine? E se vierem até Nova York para entrevistar a sua criadagem?
— Isso nunca vai acontecer — disse Fiona.
— E por que não? Compare o custo de mandar uma dupla de advogados pelo Atlântico com a perda de três milhões de dólares! É claro que vai acontecer! Eles vão perguntar para sua criada se algum dia você e Nick compartilharam a mesma cama. Vão querer saber das manchas nos lençóis, Fiona. Vão interrogar o seu médico para saber se você já engravidou. Se já sofreu algum aborto. Se existe alguma razão para que você não tenha engravidado em dez anos.
Fiona engoliu em seco, enojada com a ideia.
— E está pensando que é só isso? — disse Teddy. — Prepare-se, então. Se eles acharem que as coisas não estão correndo conforme o esperado, poderão pagar para algum rapaz em Londres, algum pobre sifilítico que esteja doente e sem dinheiro. Pagarão para que ele afirme que teve relações com Nick em diversas ocasiões. Ele poderá fornecer datas, horários e lugares. E até saberá se Nick tinha um sinal nas costas ou uma cicatriz na coxa. Eles podem conseguir um velho amigo de escola que esteja com dívidas de jogo para jurar que Nick não conseguia transar com mulheres.
— Eles não podem fazer isso! — gritou Fiona, batendo na mesa.
— Não seja ingênua! Eles podem, sim, e farão isso! Randolph Elgin não esta brincando. Ele quer essas ações tanto quanto você. Nada o deterá — ele ficou chateado por se ver gritando, recostou-se na cadeira e respirou fundo. Fez-se silêncio na sala enquanto Fiona se levantava de sua mesa e servia duas xícaras do bule de chá que estava sobre um móvel. Pôs a xícara de Teddy na frente dele e foi para a janela com a sua. Começou a tomar o chá, olhando para as águas, cinzentas do Hudson. Ela já esperava que Elgin reagisse de forma hostil, e ele confirmara isso, Mas ainda se sentia chocada com a ideia de que ele pudesse levar passado do filho para um tribunal. Pelo que parecia, quando se tratava de dinheiro Randolph Elgin era tão cruel quanto William Burton, o sócio dele.
Teddy queria que ela aceitasse o acordo e que desistisse daquilo que poderia ser uma luta sem trégua. Ela sabia que o conselho dele era para protegê-la e apreciava esse gesto. Mas achava que Teddy não estava levando em conta uma coisa importante. Ele leu a carta dos advogados de Elgin e só conseguiu vislumbrar a formação de uma batalha vil nos tribunais. Ela viu algo mais. Algo que estava escrito nas entrelinhas. Medo. Randolph Elgin estava amedrontado.
Obviamente, ele esperava que ela se assustasse com a ameaça de ter o seu casamento exposto nos mais íntimos detalhes. Ele deve estar preocupado para apresentar essas medidas, ela raciocinou. Deve achar que posso vencê-lo. Os advogados devem ter dito para ele que a minha apelação é legítima e que ele perderia o fundo do Nick. Ele deve ter ficado apavorado com a ideia de dizer para o Burton que tinha perdido as ações. E se puder me intimidar a desistir da minha apelação, ele nunca terá que fazer isso.
Sabendo que Elgin a temia, Fiona se encorajou. Ela não recuaria — Teddy, eu quero que você faça o seguinte — ela disse, sentando-se ao lado dele. — Escreva para os advogados do Elgin e diga que um terço é uma afronta. Escreva e diga...
— Fiona, eu insisto para que você aceite a proposta dele. Se persistir nessa apelação, não poderei representá-la. Eu prometi para o Nick que cuidaria de você. Estaria quebrando a minha promessa se a encorajasse a persistir.
— Eu vou para Londres.
Teddy soltou um forte suspiro.
— Quando?
— Daqui a uma semana.
— Fiona — ele insistiu, fatigado. — Eu imploro... imploro que você não faça isso. Eles vão acabar com você. Vão providenciar para que cada acusação sórdida saia nos jornais de Nova York. Você será arruinada. Haverá um escândalo e dessa vez não poderei impedi-lo. Você já pode até fechar as portas do GostoChá. Todos nós sabíamos quem era o Nick e isso não fazia a menor diferença porque ele era nosso amigo. Mas nem todo mundo tem a cabeça aberta. Muita gente acha que aquilo que o Nick fazia é pecado, e essa gente vai deixar de comprar o seu chá se achar que você tem a ver com essa imoralidade.
Fiona pegou a mão dele e apertou-a.
— Não me abandone agora, Teddy. Eu preciso de você. Você sempre esteve do meu lado. Sempre. Por favor, continue comigo.
Teddy olhou no fundo dos olhos dela, tentando — ela imaginou — enxergar a razão de tamanha obsessão.
— Não faça isso, Fiona, é loucura — ele disse baixinho. — Você vai destruir tudo pelo que trabalhou tanto.
— Você está errado, Teddy — ela replicou. — Foi por isso que eu trabalhei.
JÁ FAZ UM bom tempo que pus os pés dentro dessa espelunca — disse Roddy, olhando o letreiro na fachada do Taj Mahal. Desviou o olhar os andares superiores do prédio de tijolinhos e viu uma fileira de vidraças quebradas. — É desse estrago que você me falava?
P C. McPherson assentiu com a cabeça.
— Todas as vidraças mais a porta foram arrombadas, e roubaram a caixa registradora.
— Na noite passada?
— Sim.
— O Quinn deu queixa?
— Não, um dos vizinhos ouviu o barulho das vidraças quebrando e começou a gritar pela polícia. Ouvi a gritaria e vim correndo. Ofereci ajuda ao Quinn, mas ele não aceitou. Disse que era problema dele e que cuidaria de tudo. Disse que tinha sido uns rapazes do lugar.
— Uma dupla de arruaceiros chamados Bowler Sheehan e Sid Malone — disse Roddy, de cara feia.
— Sim, mas qual deles? Eu sempre ouvi dizer que o Sheehan trabalhava para o Quinn. Você acha que ele mudou de lado?
— Não sei, mas pretendo descobrir. Alguma coisa. As súbitas aparições do Malone e as vidraças quebradas indicam que há uma guerra sendo preparada em East London. Eu pressinto. Quem quer que seja, ele está com grandes planos, planos que incluem o nosso lado do rio.
— Você acha que o Denny vai lhe dizer o que está havendo?
— Se não quiser que o fino estabelecimento dele seja fechado, ele terá que contar. Vamos entrar.
Roddy abriu a porta e entrou no Taj, seguido de perto por McPherson. Ele já estava preparado para as habituais manifestações de desagrado: os olhares grosseiros e as pragas emitidas em voz baixa. Os comentários vulgares. Já estava preparado para ver restos de comida jogados nos seus pés, um pouco de cerveja molhando seu casaco, uma garra sendo atirada em sua cabeça. Assim como estava preparado para a possível oferta de serviços de alguma garota do Denny. E até mesmo para as gentilezas do Denny e sua oferta de uísque e comida por conta da casa. Mas não estava preparado para o que viu.
Nada. Absolutamente nada.
Não havia ninguém no lugar. Nem uma alma viva. Numa noite de sexta-feira. Tudo apagado. Mesas de bilhar vazias. Nenhum apostador no bar. Nem mesmo barman. Ninguém com a cara enterrada num prato de carne com ovos e legumes, ninguém subindo a escada atrás de uma das garotas. Ele olhou ao redor, assustado com todo aquele silêncio.
— Quinn? — ele chamou, vacilante. — Denny — sem resposta.
Olhou para McPherson, mas este sabia tanto quanto ele. Com as mãos nos cassetetes, os dois homens passaram pelo bar e atravessaram a porta que levava à cozinha. Lá também não havia ninguém, mas a pia estava cheia de batatas descascadas. Um cordão de linguiças jazia sobre a tábua de madeira como se alguém fosse cortá-las.
Os pêlos da nuca de. Roddy começaram a se eriçar. Algo estava muito errado. Ele saiu da cozinha, passou pelo bar e foi para a escada principal. O escritório de Quinn ficava lá em cima. Quinn, ou Janey Symms, sua amante e cafetina do seu quadro de prostitutas, talvez estivessem lá. Explicariam o que estava havendo.
— Quinn! — ele gritou diante da porta do escritório. Ninguém respondeu. Girou a maçaneta, mas a porta estava trancada. — Den? Você está aí? — berrou, batendo na porta. Nenhuma resposta. Já estava para bater outra vez na porta quando ouviu um débil gemido. Deu um passo para trás, tomou impulso e jogou seu ombro contra a porta. Ela estremeceu, mas não abriu. Ele repetiu o gesto. A fechadura arrebentou e ele entrou.
Dennis Quinn jazia no chão, encarando o teto com os olhos sem vida, seu corpo estava coberto de sangue como uma obscena flor vermelha.
— Jesus Cristo — disse McPherson.
Roddy ajoelhou-se e pôs a mão no pescoço de Quinn para sentir se havia pulsação, fazendo com que o sangue fresco jorrasse de uma perfuração a faca. Seus olhos percorreram o corpo de Denny; a parte frontal da camisa estava vermelha de sangue. Quando ele se levantou, ouviu de novo o gemido. Em um segundo, ele se deu conta de que não vinha do morto. Vinha de detrás da mesa, no fundo da sala. Ele sabia o que veria — quem veria — antes mesmo de se aproximar.
Janey Simms jazia de lado, engasgada com a própria respiração, com a pele empapada de suor. Com uma das mãos, ela pressionava uma ferida profunda em seu peito e com a outra chamava por ele. Olhava para Roddy com olhos vítreos.
— Janey, quem fez isso? Diz pra mim. Dê um nome.
Janey engoliu em seco, tentou falar, mas não conseguiu.
— Aguente firme, querida — disse Roddy. — Vou levá-la para o hospital — tirou o casaco e o estendeu sobre ela; tentou erguê-la, mas ela gritou de dor e ele teve que recolocá-la no chão. — Eu sei, Janey, eu sei que dói, mas aguente um pouco, você vai ficar boa...
Janey negou com a cabeça. Ergueu a mão. Ele a pegou. Ela levou a mão dele ao solo.
— Nós temos que ir, Janey. Vou te segurar de novo.
Janey fechou os olhos. Utilizando suas últimas forças, pegou a mão de Roddy e puxou-a para baixo. Ele olhou para a sua mão imobilizada no piso de madeira, viu o dedo indicador dela encharcado de sangue e, por fim, o que ela queria que ele visse. Ela tinha escrito a letra S no chão. Com sangue. Seu próprio sangue.
— Sheehan — ele disse.
— Ou Sid replicou McPherson.
— Qual deles, Janey? Foi o Sheehan ou o Sid Malone? — perguntou Roddy, aflito. Ele sabia que ela não duraria muito tempo. Janey engoliu em seco outra vez. Seu peito se elevou e se contraiu rapidamente. — Aguente firme — ele disse, apertando a mão dela com vigor. — Vou tirá-la daqui — mas, enquanto falava, ele sentia que a vida de Janey se esvaía. Ela estava morta. Roddy agitou a cabeça em sinal negativo, xingando. Soltou a mão dela. O sangue jorrava dos seus ferimentos, espalhando-se pelo chão e começando a cobrir o S. — Qual é o seu palpite? — ele perguntou para McPherson.
— Sheehan, caso Quinn tenha virado as costas para ele. Malone, caso não tenha acontecido isso.
— Isso foi de grande ajuda — disse Roddy. — Tão grande quanto a ajuda que a nossa testemunha morta nos deu, e a evidência apagada pelo sangue e ainda o fato de que, quando tudo aconteceu, devia haver umas cinquenta pessoas lá embaixo e nenhuma delas vai nos procurar para dizer o que viu. Duas pessoas foram assassinadas e não temos nenhum dado concreto.
— O senhor está certo quanto a isso, sargento. Mas está errado quanto a algo que disse antes.
—O quê?
— A guerra por East London não está se preparando. Já começou.
NEVILLE PEARSON, um homem corpulento e falante que aparentava uns sessenta e poucos anos contornou a escada, passou por cima de um balde de tinta e esticou a mão para Fiona.
— Senhora Soames, não é? — ele a cumprimentou com tanto vigor que os dentes dela bateram. — Muito prazer. O Teddy escreveu contando tudo sobre a senhora.
Ele vestia um antiquado terno marrom que talvez tenha estado na moda vinte anos antes e um colete amarelo esfarrapado e pontilhado de manchas de chá e farelos de pão. Era completamente careca no alto da cabeça, mas havia tufos de cabelo brancos nas laterais, e seu corpo era de quem gostava de comer e beber. Não parecia nem um pouco com Teddy ou com os outros advogados nova-iorquinos que Fiona conhecia, geralmente elegantemente vestidos, de cabelos cortados, unhas feitas e com sapatos caríssimos. Com sua pasta rota debaixo do braço e os óculos escorregando pelo nariz, Pearson lembrava mais um intelectual beberrão e não um dos advogados cíveis mais conhecidos em Londres, um membro do corpo jurídico da rainha.
— O prazer é meu, doutor Pearson — disse Fiona.
— Hmmm. Sim. Bem... — ele olhou em volta — ... podemos ir para um canto mais sossegado? Eu gostaria de poder recebê-la na minha sala, mas os operários estão colocando tudo abaixo. Sinto muito por tudo isso. Estamos em plena reforma. Ideia de um advogado jovem em início de carreira. Ele diz que o lugar está velho, defasado no tempo. Quer dar um ar de modernidade ao local. Tudo isso é um desperdício de dinheiro e uma baita inconveniência. Edwards!
— Sim, doutor Pearson? — respondeu um rapaz, surgindo por trás da mesa.
— Preciso de uma sala.
— Acho que a do doutor Lazenby está livre, doutor.
— Ótimo. Siga-me, senhora Soames, e cuidado com a saia.
Ele a conduziu através de um longo corredor, contando tudo sobre a venerável Gray‘s Inn — uma das quatro Inn of Court existentes, ou Escolas de Corte de Justiça —, que partes de lá tinham sido construídas no século XIV e ampliadas sob o reinado dos Tudor, e como sobrevivera a todos esses anos por graça apenas de Deus, sem a assistência desses estúpidos renovadores.
Fiona sorria enquanto a seguia, deleitada com o som da voz dele. Já tinha esquecido da musicalidade do inglês londrino. Os nova-iorquinos passavam por cima das palavras, falavam depressa como depressa faziam tudo o mais. Os londrinos usufruíam a língua, cada palavra. Desde o porteiro do hotel com seus lábios encrespados ao formar as consoantes até o condutor do carro de aluguel que a levou até ali, um homem de Lambeth que degustava as letras com prazer, como se tivesse um bife suculento na boca.
O trajeto até a firma de Pearson era a primeira saída de Fiona desde que chegara no dia anterior no Savoy Hotel. Nas últimas vinte e quatro horas ela vira uma cidade rica e refinada, uma Londres que nunca conhecera. Sua suíte era suntuosa e ela era servida como uma princesa. As ruas percorridas pela carruagem até as Escolas de Corte de Justiça eram arejadas e graciosas, com casas e lojas elegantes.
Ela, porém, sabia que Londres não se limitava a isso. East London era uma outra cidade, uma cidade de pobreza, luta, fome e miséria, Era a verdadeira face de Jano desta Londres e esperava por ela. Logo ela se aventuraria por lá, mas não iria até o centro, Whitechapel, um lugar que não podia enfrentar, e sim até Bow. Para se encontrar com Roddy. Para um encontro que ela desejava tanto quanto temia. Estava feliz com a ideia de que iria revê-lo, mas sabia que teria que contar para ele o que havia acontecido com seu pai e isso o deixaria de coração partido.
— Chegamos! — exclamou Pearson de repente, detendo-se poucos passos a frente dela. Ele abriu a porta e disse. — Ai, meu Deus! Desculpe, Lazenby! Bom dia para você. E para o senhor também. Mil desculpas — ele puxou rapidamente porta para fechá-la ao mesmo tempo em que Fiona ouvia a voz de um homem só podia ser Lazenby dizendo que talvez a sala de Philips estivesse vazia. Depois ela ouviu uma outra voz, sem dúvida do cliente de Lazenby, dizendo para Pearson que não precisava se desculpar.
Alguma coisa naquela voz deixou-a petrificada. Era uma voz masculina. Uma aconchegante. Vívida e bem-humorada, bem ao estilo de East London. Ela deu alguns passos à frente e agarrou a maçaneta da porta, atônita com o som daquela voz.
— Por aqui, senhora... ah... senhora... que droga!
— Soames — disse Fiona, largando a maçaneta. Que diabos ela estava fazendo. Não podia interromper um advogado com seu cliente.
— Sim, claro. Soames — disse Pearson, conduzindo-a por uma escada. — Vamos tentar no outro andar. Aquela sala está ocupada. Um cliente muito importante. Eu sempre o vejo aqui, mas não lembro do nome dele. Sou terrível com nomes. Barton? Barston? É alguma coisa assim. Ele tem uma cadeia de lojas que vendem produtos de primeira qualidade. Como é mesmo o nome delas? Montague‘s! É isso! — ele se voltou para Fiona ainda na escada e deu um cascudo na própria cabeça. — Essa cachola ainda funciona — acrescentou, divertido.
Fiona se perguntava, não pela primeira vez, onde é que Teddy estava com a cabeça quando tinha indicado aquele homem.
— É um camarada bem-sucedido, esse Barton — continuou Pearson. — Se fez do nada. A senhora é do mesmo ramo, não é? Além do negócio de chá, não é? Acho que o Teddy mencionou uma cadeia de lojas na carta que me mandou. A senhora devia fazer uma visita a uma das Montague‘s. São estabelecimentos de primeira linha. — Deteve-se topo da escada. — Acho que ele vai inaugurar uma megaloja em Knightsbridge na semana que vem. Vai ter uma grande festa. A firma inteira foi convidada. Por que a senhora não vai comigo e minha esposa? Primeiro jantaríamos e depois iríamos para a festa.
Fiona recusou o convite com polidez, tinha coisas mais importantes em que pensar do que festas, mas Pearson insistiu. Parecia que o homem não desistiria até que ela aceitasse, de modo que aceitou o convite, impaciente para iniciar a conversa sobre a sua apelação. Feliz por ela ter aceitado, ele a conduziu para dentro de uma sala desocupada e, ao passar por um funcionário, gritou para que levasse chá para eles; por fim, iniciou a consulta propriamente dita.
Ele leu e releu os documentos que Teddy tinha enviado e depois fez uma série de perguntas para ela. A medida que prosseguia com a consulta, o seu ar amalucado desaparecia, e Fiona se dava conta de que Teddy a tinha colocado na mãos de um advogado astuto e experiente.
— Sua apelação é de fato legítima, senhora Soames — ele concluiu, ainda examinando os documentos. — E certamente vencerá na corte.
— Fico feliz por ouvir isso — ela disse, aliviada.
— Mas, como Teddy já deve ter dito, será um processo longo e caro.
O coração de Fiona se apertou.
— Não há nada que o senhor possa fazer para apressá-lo, doutor Pearson? O senhor não pode cortar caminho? Não existe algum jeito para que a apelação seja julgada logo?
Pearson olhou-a por cima dos óculos.
Ninguém pode apressar a justiça, senhora Soames.
Ela concordou; chateada.
— Quanto tempo o senhor acha que levará?
—Eu preciso de alguns dias para estudar detalhadamente os documentos e fazer algumas investigações. Só então poderei fazer uma estimativa. Acho que devo avisá-la para não exagerar no otimismo. Conheço os advogados do Elgin. Confio que venceremos no final, mas eles vão dificultar a vitória. A senhora entende o que quero dizer?
— Entendo, doutor Pearson, e estou preparada para os aborrecimentos.
Pearson olhou-a longamente, apreciando a sinceridade dela, dizendo em seguida:
— Muito bem.
Ele também disse que entraria em contato com ela em uma semana e depois se ofereceu para acompanhá-la até a carruagem. No caminho, passaram de novo pela sala de Lazenby. E Fiona ouviu outra vez a voz que a tinha atraído. Agora estava um pouco mais alta, embora abafada pela pesada porta. A voz lhe era estranha — ela estava certa de que nunca tinha ouvido aquele tom comedido e autoritário —, mas era como se aquela voz a chamasse. Sua mão foi de novo atraída para a maçaneta.
— Não, não, por aqui, senhora Soames — disse Pearson, puxando-a.
Pela segunda vez naquele dia, Fiona se perguntou sobre o que estava acontecendo com ela. Seguiu Pearson até o saguão de entrada e se foi.
RODDY O‘MEARA olhava de soslaio para a mulher elegante ao lado. Era tão educada e tinha uma presença tão magnética que ele mal podia acreditar que era a garota de pés descalços, vestido remendado e avental que um dia ouviu suas histórias de fadas e duendes de olhos arregalados ao pé da lareira.
Ela então voltou seus admiráveis olhos azuis para ele. E a dificuldade se foi. A menina ainda estava ali, nos olhos dela. Agora o rosto era de uma mulher, bem marcado pelos anos, mas os olhos... ainda eram tão excitantes, tão vivos como de uma criança. Aconchegantes, embora duros. Rebeldes.
Ela herdara aqueles olhos do pai, pensou Roddy. Bem como a rebeldia. Fora a rebeldia que levara Paddy a se filiar e trabalhar pelo sindicato e a filha dele a escapar de Whitechapel e obter um extraordinário sucesso.
De repente, ao pensar no velho amigo, ele se sentiu triste, mas fez o que pôde para esconder a tristeza. Não queria deprimir Fiona com lembranças tristes e estragar aquela maravilhosa reunião. Ela chegou à casa para jantar e Grace tinha preparado uma autêntica refeição inglesa: rosbife e pudim Yorkshire com todas as guarnições. Rolaram lágrimas e risos da parte de todos quando ele abriu a porta para recebê-la. Nem ele nem Grace conseguiam acreditar no quanto ela havia mudado. E Fiona, por sua vez, não queria se desgrudar dos dois. Não deixou que ele pegasse seu chapéu nem que Grace lhe servisse uma xícara de chá, antes que pudesse abraçá-los vezes e vezes seguidas. O condutor a tinha seguido, segurando as caixas dos presentes que ela havia comprado em algumas das lojas mais elegantes de Nova York. Para Grace, ela deu um chapéu de tirar o fôlego e dois brincos de rubi; para Roddy, um lindo casaco de caxemira e um jogo de abotoaduras de ouro. Para as crianças — Patrick, o mais velho com nove anos; Emily, com sete; Roddy Junior, com quatro; e Stephen, que acabara de completar um ano de idade — ela levou brinquedos, jogos e guloseimas.
Durante o chá na sala de estar e posteriormente, durante a refeição na sala de jantar, conversaram sobre os últimos dez anos. Roddy e Grace falaram de suas vidas e da promoção dele na polícia, e Fiona narrou o que tinha vivido. Quando terminou, ela fez uma pausa de alguns segundos e disse em seguida:
—Não falei uma coisa pra vocês. A razão de minha súbita partida com Seamie. Desculpem por isso. Vocês dois — Roddy notou que as palavras se tornaram difíceis para ela. E carinhosamente pediu que ela se calasse. — Não, tio Roddy, eu quero falar, isso me incomoda há dez anos. Eu sinto muito, do fundo do coração, por ter partido sem informar o meu paradeiro para o senhor, sem agradecer-lhe pessoalmente por tudo o que o senhor fez por mim. Mas houve uma razão para isso. Uma razão que agora eu quero revelar... que eu preciso falar — ela desviou os olhos de Roddy e Grace e os pousou nas crianças. — Mas acho que aqui não é apropriado.
— Por que você e Roddy não dão uma volta, Fiona? — sugeriu Grace. — Assim eu poderei lavar a louça e vocês terão a chance de conversar a sós. Comeremos a
sobremesa quando vocês voltarem.
Roddy e Fiona saíram em seguida para dar uma volta no parque das redondezas. Aquele dia de julho terminava, mas o sol ainda aquecia naquele céu despido de nuvens.
— Não há nada mais bonito que o verão da Inglaterra, não é? — disse Fiona, admirando um tremoceiro. — Antes eu não notava. Achava que Whitechapel era horrível em qualquer estação. Mas hoje passei pelo Hyde Park e me dei conta de que nunca tinha visto algo tão adorável.
Roddy concordou com ela. Ele a ouviu falar do clima, das flores e de Londres se perguntando por que ela falava de tudo menos daquilo que os tinha feito sair para conversar. Será que era alguma coisa relacionada com Joe? Premeditadamente, ele não fez menção ao nome do rapaz porque achava que esse assunto dependia da vontade dela. Ou será que era alguma coisa que tinha a ver com aquele dinheiro que, segundo Sheehan, ela roubara de Burton? Fosse o que fosse, a hesitação dela em falar era um sinal de que o assunto devia ser doloroso para ela. Ele então achou que era melhor começar logo a conversa. Como se fosse tirar o esparadrapo de uma ferida. De uma só vez.
— Você quer me dizer alguma coisa, mocinha? — ele perguntou por fim.
Fiona balançou a cabeça. Ela estava com os olhos voltados para frente e ele pôde ver que o queixo dela tremia. Quando ela se virou para olhá-lo, ele notou que havia uma nova expressão no olhar de Fiona. Era uma mistura desconcertante de pesar e raiva — aliás, não era raiva e sim ódio — totalmente inédita para ele. Ele já tinha visto uma dor dilacerante nos olhos de Fiona durante o tempo em que ela viveu na casa dele. Como também vira o desespero. Mas nunca tinha visto o que agora via.
— Pois é, tio Roddy. Eu estava tentando encontrar um jeito de dizer. Tentando encontrar coragem.
— Fiona, filhinha, você não precisa trazer os fantasmas do passado...
— Preciso, sim. Seria bom que fosse assim — ela apontou para um banco. — Vamos sentar — eles se sentaram e ela começou a falar. Sua história, guardada por tanto tempo, saiu em um jorro. Ela contou tudo para Roddy e, quando terminou, ele estava afundado no banco, como se tivesse levado um soco no estômago. — Desculpe, tio Roddy. Eu sinto muito — ela pegou a mão dele.
Ele precisou de um tempo para conseguir falar.
— Por que você não me contou isso antes? — ele perguntou por fim. — Por que não me procurou em vez de fugir? Nós podíamos prendê-los.
Fiona balançou a cabeça.
— Não, tio Roddy. Pense. Além de mim, não havia nenhuma outra testemunha. Ninguém para confirmar a minha acusação contra Burton. E eu sabia que estava correndo perigo.
— Eu poderia tê-la protegido. Poderia mantê-la a salvo.
— Como? — ela perguntou com tato. — O senhor teria que ficar comigo a cada minuto do dia. E no instante em que o senhor virasse as costas e saísse para o trabalho ou para o pub para se encontrar com Grace, Sheehan atacaria. Além do mais, eu já estava em perigo e não queria colocar o senhor e a Grace também em perigo. Eu tinha que fugir. Fiz a melhor coisa, a única coisa que podia fazer.
Roddy concordou. Ele imaginava o medo e o desespero que ela sentiu. Paddy. Assassinado. Ele foi tomado pela dor quando pensou nisso. Abaixou a cabeça e chorou. Durante todos aqueles anos ele achou que a morte de Paddy tinha sido acidental e ainda assim era difícil aceitar. Mas isso! Perder o melhor amigo que tinha por causa da ambição de um homem... era incompreensível. Ele chorou por um longo tempo e, mesmo quando já não havia lágrimas para chorar, permaneceu sentado, completamente inerte. Em dado momento, ouviu a voz de Fiona perguntando se ele estava bem.
Ele ergueu a cabeça e enxugou os olhos.
— Eu só estava... pensando nisso tudo — disse. — Em como é injusto. Aconteceu há dez anos e eu entendi o que você disse sobre a falta de outras testemunhas, mas, ainda assim... deve haver um jeito de fazer com que Burton e Sheehan paguem pelo que fizeram. Essa ideia está martelando na minha cabeça, mas não consigo encontrar uma forma de pôr as mãos neles. Ou pelo menos em um deles.
— Eu posso fazer isso. Eu acho. Posso pegar um deles.
- Como?
Fiona explicou seu plano de tomar a Burton Tea e sua luta judicial contra Randolph Elgin. Roddy não entendia com clareza os meandros do mercado de ações, mas sabia o bastante para entender que quem possuísse 52% por cento das ações de uma companhia seria o dono dela.
— Então — ele disse —, logo que você conseguir as suas ações, a Burton Tea será sua, não é? O que diz o Pearson? Quanto tempo ele acha que levará para obtê-las?
— Ele não sabe. O meu advogado de Nova York acha que pode levar anos.
— Anos? Ai, Jesus.
— E não se trata apenas de um processo longo, também será muito feio.
— O que você está dizendo?
Até então Fiona maquiara a verdade sobre o seu casamento com Nick, e agora contava a história toda para Roddy. Explicou que Randolph Elgin usaria o homossexualismo de Nick para argumentar que o casamento deles fora uma farsa. E que o escândalo poderia prejudicar — e até mesmo destruir — os negócios dela.
— De verdade? — ele perguntou.
— Sim — ela respondeu. E disse como era a imprensa de Nova York, com s apetite insaciável por fofocas. — O meu próprio casamento foi para evitar um escândalo — continuou —, mas, tio Roddy, a verdade é que já não estou dando a mínima para escândalos. Vou arriscar os meus negócios para obter essas ações, mesmo que consiga arruinar o Burton, como ficará o Sheehan?
Roddy pegou uma vara e começou a brincar com ela enquanto digeria tudo o que tinha ouvido de Fiona.
O que temos que fazer é pôr um rato contra o outro. Mas ainda não sei como fazer isso. Pelo menos, por enquanto. Mas de uma coisa eu sei. Nunca vi advogado nenhum fazer alguma coisa depressa. Deve haver uma maneira de acelerar os acontecimentos e agarrar o Sheehan de lambuja. Só que ainda não estou vendo como.
Fiona suspirou.
— Nem eu.
Os dois ficaram em silêncio, olhando o anoitecer, até que as badaladas do sino da igreja lembraram a Roddy que já era hora de voltar para Grace e as crianças. Ambos se levantaram. Ele notou que Fiona estava muito pálida e arrasada. E se deu conta de que ela havia carregado aquele segredo por dez anos, sozinha. E que ele era a primeira pessoa para quem ela contava. Ali, de pé, enquanto a observava, seu coração doeu por ela. Pelo sofrimento e pelo terror que ela vivera, Pelo fato de que, mesmo com tudo o que tinha acontecido, ela não se deixou arrasar pela amargura e a raiva. Sim, se agora havia uma sombra no olhar dela, também havia luz. A mesma luz clara e poderosa que brilhava quando ela ainda era menina.
Sem palavras, ele a puxou para si. Aquela menina era órfã. Até o marido que ela amava estava morto. Mas ela o tinha. Ele a amava como a uma filha e faria de tudo para ajudá-la. Eles não podiam desfazer o passado, mas podiam mudar o futuro.
— Você não está mais sozinha, querida, nunca mais — ele sussurrou, com convicção. — Nós os pegaremos. Nós dois, juntos.
FIONA FRANZIU A TESTA, tentando se lembrar do endereço da agência de publicidade onde teria que estar em dez minutos.
— Número 23, da Tavistock Street, está bem? — ela disse em voz alta, de pé, na calçada do cruzamento da Savoy Street com Strand. — A Tavistock é a continuação da Southampton que por sua vez é uma continuação da Strand? Ou é o número 32 da Tavistock? — ela suspirou. — Você já notou que está falando sozinha? — murmurou, procurando o endereço dentro da bolsa. Até que achou o papel. — Número 32. Certinho. Então, vamos. Mas dessa vez sem cochichos.
Seguiu rumo a oeste, descendo pela Strand, com os lábios cerrados. Não falaria sozinha outra vez. Odiava essa mania, deixava-a assustada. Isso parecia o primeiro passo na direção da insanidade. Era uma mania que quando começava e antes mesmo de se saber onde se estava, você já parecia com um daqueles pobres coitados que passam pelas calçadas conversando com um companheiro invisível. Ela geralmente controlava esse impulso, mas hoje estava tão distraída que esqueceu.
Já tinha se passado uma semana depois do encontro que teve com Neville Pearson, e ele ainda não havia se manifestado. Ela achou que isso era um mau sinal. As coisas deviam estar piores do que ela esperava. Quais seriam as táticas que os advogados de Elgin preparavam? O que teria que fazer para ter aquelas ações? E quando isso aconteceria?
Ela também não tivera notícias de Roddy. Dois dias se passaram desde o encontro que tiveram e ela não havia recebido nenhum bilhete, nenhuma visita, nada que indicasse que ele havia achado um jeito de agarrar Sheehan.
Se ao menos ela pudesse ter nas mãos as ações, se ao menos Roddy encontrasse um jeito de pegar Sheehan. Se ao menos... se ao menos...
Fiona prosseguia pela Strand até a Southampton Street, na direção de Covent Garden. Olhou para o seu relógio — quase quatro horas — e apressou o passo. Sua ideia era um dia lançar o Chá Instantâneo na Inglaterra e ela sabia que seria bom se inteirar de como as agências de publicidade inglesas funcionavam. Marcara um encontro com Anthony Bekins, o cabeça da firma recomendado por Nate Feldman, para conhecer o trabalho dele e discutir custos e estratégias. Ela sabia que, se pudesse se concentrar nos negócios, conseguiria se esquecer das ou preocupações. Pelo menos por algum tempo.
Estava tão absorta em seus pensamentos na esquina da Southampton com Tavistock que não percebeu, antes que fosse tarde, o carregador que vinha em direção com caixotes de alface. Fazendo de tudo para se desviar do caminho dele ela caiu e se chocou contra a parede de um prédio de tijolinhos. O homem passou rente a ela.
— Olhe por anda, madame! — ele gritou.
— Eu? — disse Fiona, atordoada pela queda. — Você é que tem de olhar por o anda, seu desgraçado!
O homem lhe jogou um beijinho e desapareceu na esquina.
— Eles são diabólicos — disse uma voz. Fiona se virou e viu uma mulher que regava um cesto de flores. — Você está bem, querida? — ela ajudou-a a se levantar.
— Acho que sim. Muito obrigada.
— É preciso prestar atenção quando se anda por aqui. Eles derrubam você num piscar de olhos. Tchau, então.
—Tchau — disse Fiona, virando-se para procurar sua bolsa. Avistou-a na calçada e inclinou-se para pegá-la. Ao se abaixar, sentiu um ponto dolorido no ombro. Devo ter batido quando caí, pensou. Aprumou-se, fez uma pausa para massagear o ombro e viu a causa do seu desconforto. Uma placa de bronze. Era polida e nela se lia: BRISTOW‘S DE COVENT GARDEN. VENDAS POR ATACADO. JOS. E JAS. BRISTOW, PROPRIETARIOS. Ela olhou a placa por um minuto inteiro, lendo e relendo as palavras seguidas vezes, e por fim murmurou: — Não pode ser.
Não é ele, disse para si mesma. Por que abriria um negócio só dele? Ele trabalha na Peterson‘s. Talvez já esteja até comandando a empresa. Mas pode ser ele. Quem mais poderia ser? Ele tem um irmão mais novo chamado Jimmy — ela se lembrou vagamente —, que poderia ser o Jas. Bristow. E também tem as irmãs, mas não se lembrava de nenhuma delas. Tentou engolir a saliva, mas sua boca estava toda seca. Suas mãos tremiam. Tentou se convencer de que o tremor se devia ao tombo.
Homens e mulheres, todos trabalhadores do mercado, passavam por ela, alguns a ignoravam, outros a olhavam com curiosidade. Ela olhou para a porta. Esta pintada de um verde intenso, tal como as fachadas das mercearias dela e de Michael. Lembrava-se de ter visto esta mesma cor na fachada da Fortnum & Mason‘s. Um dia, naquele passeio. Ambos gostaram da cor e concordaram que era maravilhosa para a porta de uma loja.
Ela queria subir. Queria vê-lo. Mas estava com medo. Deu um passo na direção da porta e se deteve. Não, disse para si mesma. Não faz sentido. Você só vai se machucar. Volte e comece a caminhar. Pelo menos vai poder dizer que nunca o viu feliz, com a aliança dela no dedo. Mas continuou parada.
— Vai — ela sibilou para si mesma. — Agora, sua tola!
Ela voltou a caminhar. Primeiro, com passos tímidos, e depois, decididos. Chegou no número 32 da Tavistock e girou a maçaneta, mas logo desistiu e voltou correndo para o prédio da esquina. Medo era algo que ela sempre enfrentara na vida. Podia lidar com isso. A raiva e a dor já tinham passado. Ela só queria vê-lo outra vez. Da mesma forma que teria gostado de ver qualquer velho amigo. Ela só queria dar uma passada por lá para ver como ele estava.
— Mentirosa — ela murmurou. O que ela queria ver eram aqueles incríveis olhos azuis.
Deteve-se do lado de fora do prédio, respirou e o olhou. As portas amplas parcialmente abertas revelavam que era um armazém. Ela duvidava que ele estivesse lá. A porta verde deve levar aos escritórios, ela raciocinou. Tentaria essa porta. Respirando fundo, empurrou-a, abriu-a e subiu um lance dos degraus que davam para uma ampla área de recepção. Avistou um balcão de madeira comprido com duas jovens sentadas atrás, datilografando com furor; uma terceira mesa tinha dois telefones que tocavam continuamente e eram atendidos por um rapaz afobado que não tirava os olhos de um grande relógio na parede. Caixotes de frutas, legumes e verduras frescas amontoavam-se a esmo — para ser inspecionados e selecionados, ela pensou.
Parado no centro do lugar, um garoto em traje branco de cozinha que acabara de chegar com um envelope debaixo do braço se recusava a entregar a missiva para um funcionário irritado.
— É o menu para a festa — ele disse desafiadoramente. — O chef Reynaud disse que era para entregar ao patrão e não a um funcionário xereta — o funcionário ameaçou torcer o pescoço dele. Tanto o rapaz que operava os telefones como as datilógrafas não tinham notado a presença de Fiona. Ela começava a se desesperar por não ter despertado a atenção de ninguém quando viu uma moça loura e muito bonita conversando com dois carregadores ao lado do segundo lance de escada que dava para o interior do armazém. Depois de entregar algumas folhas de pedi para eles, a moça virou-se para ela. A jovem encarou-a por alguns segundos e em seguida, com um olhar estranho que para Fiona era quase de alarme, disse:
— Em que posso servi-la?
— Eu... eu gostaria de falar com Joe Bristow — disse Fiona.
A moça hesitou.
— Desculpe — ela disse —, mas ele não está aqui agora.
— Diga uma coisa, o senhor Bristow... é da Montague Street? Em Whitechapel?
— Sim.
Com o coração aos pulos, Fiona abriu a bolsa e pegou um cartão de visita.
— Posso deixar isso pra ele? — ela perguntou.
— Claro.
Ela sentia os olhos da mulher cravados nela enquanto escrevia um bilhete no verso do cartão. E o entregou para ela.
— Se não for incômodo.
— De forma nenhuma. Tchau.
— Tchau... então — disse Fiona, sentindo-se incomodada e desapontada. Depois dirigiu-se para a saída, rumo a Tavistock Street para uma reunião na Bekins e Brown. Cathy Bristow permaneceu com os olhos cravados na bela mulher de cabelos negros até que ela sumisse e depois olhou para o cartão em sua mão. SRA. NICHOLAS SOAMES, lia-se nele.
É ela. Fiona. Tenho certeza, ela disse para si mesma. Tem um rosto difícil de esquecer. Embora, é claro, tenha se esquecido do meu, ela pensou irritada. Quantos anos eu tinha mesmo? Oito anos, quando nos vimos pela última vez?
— Cathy! — ecoou uma voz pelo corredor.
— O que é, Joe? — ela olhou para trás do balcão de recepção, na direção do corredor. Seu irmão estava com meio corpo inclinado para fora da sala dele.
— Preciso da lista de convidados. Para o sábado. Pode trazê-la, querida?
— Agora mesmo.
Ele desapareceu de volta ao escritório. Cathy olhou outra vez para o cartão. Isso não é da sua conta, disse para si mesma. Mas, em todo caso, leu a mensagem.. ―Querido Joe, estou em Londres por algumas semanas. Hospedei-me no Savoy. Adoraria te ver. Atenciosamente, Fiona Finnegan Soames.
Cathy mordeu o lábio. Você devia ter pedido que ela aguardasse, dizia sua consciência. Devia ter avisado ao Joe. Ele vai ficar furioso quando souber o que você fez. Ainda está em templo de alcançá-la. Vai atrás dela!
Ela caminhou até a saída e parou, e se perguntou. Por quê? Pra quê? Para abrir velhas feridas? Fiona Finnegan está casada. Senhora Nicholas Soames, é isso que o cartão diz, não é? Não faz sentido correr atrás dela. Nenhum sentido. E por que ela quer vê-Io? Talvez ainda esteja zangada com ele, ela conjeturou. Talvez queira algum tipo de revanche. Talvez queira mostrar que está bem casada e solidamente comprometida.
Cathy imaginava a expressão que o irmão faria quando lesse o cartão. O idiota sairia correndo como um louco até o Savoy. E depois de vê-la, depois de ouvi-la falando do marido e da vida maravilhosa que tinha em Nova York, ficaria um trapo. Ela amava muito o irmão e sofria com a tristeza que sempre via nos olhos dele. Ela sabia que a tristeza teria um fim quando ele se apaixonasse de novo. E sabia que isso nunca aconteceria se ele visse Fiona.
Ela havia prometido a Sally Gordon que a ajudaria a conquistar seu irmão e manteria a promessa. Os dois tinham conversado no casamento de Jimmy e parece que a conversa foi boa. Joe se mostrara encantador e Sally estava muito bonita na ocasião. Por que ele não se apaixonaria por ela? Formavam um lindo par. Joe acabaria percebendo isso. E a reaparição de Fiona na vida dele destruiria tudo.
— Cathy! — gritou Joe outra vez. — Cadê a lista de convidados?
Ela decidiu rapidamente. Rasgou o cartão e jogou os pedacinhos de papel fora. Enquanto eles caíam na lata de lixo, ela gritou:
— Espere, já vou! Estou indo!
FOI ELE, SARGENTO — disse E C. McPherson, agitando um maço de folhas de papel no ar.
Roddy saiu da frente do pequeno espelho dependurado na porta do seu armário e olhou para o outro.
— Acontece que não foi — ele retrucou. — É impossível que tenha sido. Ele está morto.
— Sim, você está certo — disse McPherson, obediente.
— Mas, cá entre nós...
— ... como hipótese...
— ... o relatório do legista indica...
— ... que o filho da mãe está vivinho da silva.
— Meu Deus — suspirou Roddy. Voltou-se de novo para o espelho e acabou de ajeitar os emblemas de metal em sua gola. Chegara uma carta dez minutos antes, convocando sua presença no gabinete do seu superior. Ele tinha que ir imediatamente. Já esperava pela convocação e sabia por antecipação o que lhe seria perguntado.
Dois dias antes, McPherson e outro policial tinham alertado sobre a presença de um cadáver em decomposição enfiado numa privada nos fundos de uma casa abandonada, na Thrawl Street. Um bando de garotos o descobriu. McPherson reconheceu o casaco vermelho e espalhafatoso e identificou o corpo como sendo de Maggie Riggs, uma prostituta. A garganta tinha sido cortada e houve uma tentativa de fazer o mesmo no rosto. O bolso do vestido estava rasgado e sem dinheiro e Roddy declarou que ela fora vitima de um assaltante que usou de violência. Ele omitiu da imprensa a descrição dos ferimentos, querendo evitar comparações entre esse crime e os assassinatos do Estripador. E agora teria que apresentar o relatório do legista ao superintendente e garantir que seus oficiais estavam patrulhando ruas noite e dia e que tudo estava sob controle.
Deu um olhar de aprovação para si mesmo e virou-se, tentando ver o maximo que podia no pequeno espelho. Depois, voltou-se para McPherson e disse:
— Estou bem?
McPherson olhou para a gola de Roddy, para os ombros, para o bolso da frete, ornados de insígnias.
— Nos trinques.
— E o assassinato do Quinn? Soube de alguma coisa?
—Nada.
— Nadinha? Ninguém ouviu nada? Nem viu alguma coisa?
— E alguém dali vê alguma coisa, sargento? Olhando de fora dá pra pensar que todo homem, toda mulher e toda criança de Whitechapel é surdo, mudo e cego. Se fosse cometido um assassinato no meio da Commercial Street ao meio-dia de sábado, ninguém veria nada.
Roddy balançou a cabeça. Em Whitechapel não chove, cai um aguaceiro, ele pensou. Primeiro, o duplo homicídio no Taj, e agora a prostituta dilacerada.
— Continue alerta, MacPherson — disse Roddy. — Talvez a gente esteja na direção errada, pensando em Sheehan e Malone. Pode ser um outro. Quem tinha bronca do Denny? Quem devia dinheiro pra ele? Quem estava em dívida com ele? Dê uma prensa no barman. O nome dele é Potter. Disseram que ele tem lucrai com o ópio. Ameaça o negócio dele.
— O senhor sabe onde ele mora?
— Na Dean Street.
— Obrigado, chefe. Deixarei o relatório da Thrawl na sua mesa. McPherson se retirou. Roddy deu uma última espiada no espelho, satisfeito por ter cortado o cabelo e ajeitado a barba no dia anterior. Parecia cansado, mas, quanto a isso, não podia fazer nada. Desde que vira Fiona e soubera do que acontecera realmente com Paddy, ele passou a ter dificuldade para dormir, tentando vislumbrar um jeito de pegar Sheehan. Buscava desesperadamente uma solução. Queria ajudar Fiona, não podia decepcioná-la, mas os dias passavam e ele continuava sem solução. Pegou o relatório. Naquela noite, já em casa e de cabeça fresca, pensaria outra vez no problema. Agora tinha uma reunião. Mas, quando estava para sair de sua sala, ouviu uma gritaria vindo da frente da delegacia.
— Entrem aí, seus bastardos fodidos! Andando, os dois!
— Opa! Espere um minuto... — gritou um dos seus oficiais.
Ouviu-se um barulho de luta e depois, uma batida. Um homem berrou de dor e em seguida:
— Tente fugir de novo que eu quebro a sua perna.
— Ripton! O que está havendo? — gritou Roddy, enquanto se dirigia para a área de recepção da delegacia.
— Não tenho certeza, senhor.
Roddy olhou para a porta. Dois homens entravam. Cambaleavam, para ser ato. Seus rostos estavam ensanguentados. Suas roupas, rasgadas. Atônito com a ilusão, Roddy balançou a cabeça. Aproximou-se dos homens e se deu conta de que o conhecia: eram Reg Smith e Stan Christie. Os homens de Bowler Sheehan.
— Bom dia, sargento O‘Meara — disse uma voz atrás deles.
Um rapaz incrivelmente musculoso, de short e com uma bandana vermelha, deu um passo à frente. Foi seguido por outro jovem em trajes parecidos.
Lutadores, pensou Roddy. Percebe-se pelas roupas. Eles não conseguem evitar. Parece uma marca.
— Eu conheço vocês dois? — ele perguntou, enquanto observava a cicatriz no queixo de um deles e o nariz achatado de lutador no outro.
— Tom Smith — disse o primeiro rapaz, sério.
— Dick Jones — disse o segundo.
— Então, só está faltando o Harry Bollocks — replicou Roddy.
— Não entendi, sargento — disse Tom.
— Não banque o espertinho comigo, rapaz. O que vocês estão fazendo aqui?
— Eles têm algo a dizer para o senhor — disse Tom, dando um empurrão nos dois homens. — Falem, seus babacas. Alto e bom som para todo mundo ouvir.
Nem Reg nem Stan falaram. De cara feia, Tom estalou os dedos de maneira ameaçadora. Reg estremeceu. Com os lábios trêmulos, Stan falou:
— Fomos nós que matamos o Den Quinn e a puta dele.
— E quem mais? — perguntou Tom.
— O Bowler Sheehan.
Roddy olhou para Reg e Stan, impressionado.
— Vocês estão prontos para assinar uma confissão?
Eles assentiram com a cabeça, sentindo-se miseráveis, e Roddy pediu oficiais que os tirassem dali. Tom e Dick se prepararam para sair.
— Esperem um minuto — ele ordenou. — Como é que eles ficaram desse Tom deu de ombros.
— Não sabemos. Nós os encontramos assim. Do lado de fora de um pub.
— Do lado de fora de um pub? Que pub?
— Qualquer um que o senhor quiser.
— Vocês trabalham pra quem? — perguntou Roddy.
Tom sorriu.
— Não estou entendendo o que o senhor quer dizer, sargento — ele disse.
— Ah, você não está entendendo o que quero dizer? — Roddy caminhou até a porta, bateu-a e trancou-a. — Será que alguns dias na cadeia ajudariam a clarear o seu entendimento?
— Sob que acusação?
— Sob a acusação de que aqui mando eu e não há ninguém que me impeça. Que tal?
Tom olhou para Dick. Este assentiu com a cabeça.
— A gente trabalha para um amigo do Denny Quinn. Para um homem não acha certo que o Bowler Sheehan se safe do assassinato.
— Amigos uma ova. Vocês trabalham para o Malone. O patrão de vocês o Sheehan fora do caminho. Ele me deu o Reg e o Stan e agora imagina que farei o resto do trabalho sujo pra ele, não é mesmo?
Nenhum dos dois respondeu. Eles se limitaram a encarar Roddy com um olhar ao mesmo tempo polido e respeitoso, superior e furioso.
— Mas o que ainda não entendi — continuou Roddy — é por que Malone matou o Reg e o Stan. E por que não mata o Sheehan. A menos que o Sheehan tenha evaporado e Malone não esteja conseguindo achá-lo. Talvez seja isso. Talvez ele esteja usando esses dois paspalhões como isca. Ele sabe que o Sheehan — os quer na cadeia. Tem medo de que falem alguma coisa. Ele viria soltá-los. E se mostraria e Malone o pegaria. Estou certo, rapazes?
Tom engoliu em seco. Dick fez cara de espanto. Nenhum dos dois disse uma só palavra.
Roddy destrancou a porta. Já tinha obtido as respostas que queria.
— Passar bem, rapazes — ele disse —, e digam ao senhor Malone pra ficar lado dele do rio. Digam que, se não fizer isso, ele vai se arrepender.,
Tom deu uma parada ao sair.
— O senhor pode indiciá-los, sargento? — ele perguntou.
— Se assinarem as confissões, sim.
— E o Sheehan também? Pelo assassinato do Quimm?
— Se conseguirmos evidências suficientes contra ele, ou se conseguirmos que ele assine a confissão, sim — respondeu Roddy.
Tom balançou a cabeça em assentimento.
— Denny Quinn era um bom homem. E não merecia morrer daquele jeito. O Bowler Sheehan é que merecia. Ele tem que ser enforcado por isso — ele sorriu. — De um jeito ou de outro.
— Deixem isso por nossa conta — aconselhou Roddy. — Se o Sheehan aparecer morto, eu vou atrás de vocês.
Tom e Dick, porém, já tomavam o caminho da rua. Roddy os observou por alguns segundos. Estava tão distraído, tão surpreso com o presente que lhe caíra no colo, que se esqueceu de que segurava o relatório sobre o assassinato da prostituta e que ele já devia estar a caminho do escritório do superintendente.
Tom estava certo. Bowler teria que ser enforcado. Não só pelo assassinato de Deri e Janey, mas também pelo de Paddy Finnegan.
Teria que ser. Pelo menos ele já tinha um plano, com poucas possibilidades de sucesso, mas um plano. Precisava agir com rapidez. Antes que a notícia da prisão de Stan e Reg se espalhasse e Sheehan fugisse de vez e ele nunca mais o encontrasse.
— Ripton! — ele gritou.
— Sim, sargento?
— Pegue alguns homens e me tragam Bowler Sheehan. Vasculhem cada buraco de Whitechapel e me tragam o homem.
— E pra já, senhor.
— E, Ripton...
—Sim?
— Façam isso antes que aqueles dois o encontrem — acrescentou Roddy, apontando o polegar para a porta. — Eu preciso dele inteiro.
NOSSA! — exclamou Neville Pearson, apertando os
olhos atrás dos óculos. — São eletrizantes, não são?
— São as quatro estações! — disse Charlotte, sua esposa. — Está vendo? Aquela é a primavera, aquele é o verão, aquele é o outono e aquele é o inverno. Cada uma delas oferece os seus frutos. Que ideia interessante!
— São gigantescos — disse Neville. — Devem ter... uns seis metros por no nove? Pelo menos!
Fiona mantinha-se calada. Ela fez um giro lento e encantou-se com a beleza dos murais que ocupavam as quatro paredes do amplo salão de mercadorias Montague‘s. Reconheceu o artista — John William Waterhouse —, um dos pintores pré-rafaelistas ingleses. Nick tinha duas telas românticas dele.
Seus olhos admiravam cada estação. Verão, uma morena vestida de túnica verde em meio a uma pradaria, carregando frutinhas com o rosto voltado para o sol. Outono colhia peras num pomar. Seus cabelos acobreados eram longos e esvoaçantes como sua veste vermelha. Inverno era uma branca de neve loura que vestia uma alvíssima túnica. Estava em meio à folhagem de sempre-verdes e - tentava uma guirlanda de azevinho. Primavera era uma menina vivaz de cabelos negros, um espírito da água com um vestido azul-claro e olhos azul-índigo. Estava próxima a um riacho com botões de rosa nas mãos. Viam-se atrás dela cerejeiras em flor. Brotos de vegetação irrompiam na terra preta sob os seus pés. Dela não a colheita nem o descanso do inverno, mas a promessa das coisas futuras.
Quem tivera a ideia de colocar esses murais numa loja de alimentos?, Fiona se perguntava. Sem dúvida a mesma pessoa que pôs azulejos azuis e verdes iridescentes no chão em vez de brancos. A mesma que iluminou o lugar com lustres e candelabros em formato de lírios. Alguém que sabia o bastante para espelhar o fundo dos balcões de frutas, verduras e legumes de forma a parecerem duas vezes maiores. Alguém que preferiu pôr plaquetas de prata com a palavra ―Especialista‖ e não ―Funcionário‖ gravada embaixo do nome dos vendedores. Alguém que posicionou a escada para os outros pisos da loja no final do piso principal, para q a freguesia que entrasse em busca de flores ou tabaco tivesse que percorrer um miríade de produtos tentadores.
Seja quem for, é um baita gênio, pensou Fiona. Todas as escolhas dessa pessoa, cada decisão que tomou — desde as pinturas e os extraordinários arranjos de flores até as elaboradas exposições de frutas e legumes exóticos — davam o tom ao lugar, elevando-o de mero estabelecimento de vendas de alimentos a um luxuoso empório. Neville havia prometido que iria apresentá-la ao proprietário assim vissem o homem... esse senhor Barston ou Barton. Ele ainda não conseguia lembrar do nome.
— Parece com você, Fiona — disse Neville, apontando para a Primavera.
Fiona olhou para a moça da pintura.
— Ela é muito mais jovem. E bem mais bonita — ela retrucou.
— Bobagem. Neville está certo. Ela é muito parecida com você, minha querida disse Charlotte Pearson.
Fiona fez um gesto com a mão, querendo dizer que eles estavam vendo coisas. Um garçom se aproximou com champanhe. Neville pegou uma taça e tomou um gole. Fiona fez o mesmo por educação, mas recusou os lindos salgadinhos que foram servidos em seguida. Ela estava muito tensa para comer. Sua cabeça estava cheia.
Primeiro, Neville. Antes de ir para a festa, durante o jantar que ela teve com os Pearson no restaurante do Savoy, ele disse que as ações da Burton levariam uns seis meses para chegar a suas mãos. Ele sugeriu que se encontrassem na terça-feira à tardinha no escritório dele para discutir os detalhes. Seis meses era tempo demais para Fiona. Ela queria as ações na mesma hora e não em meio ano. Como é que poderia gerenciar os seus negócios de Londres? Teria então que fazer viagens seguidas, uma perspectiva que não lhe agradava.
Depois, Roddy. Ela recebera um bilhete dele no dia anterior. ―Eu o peguei‖, lia-se. ―Só preciso de dois dias.‖ Já tinha quase se passado um dia. Restava um. Como ele pegaria o Sheehan? E que diabos Roddy faria com ele? Ela quase não conseguiu dormir de preocupação. O que ele estava planejando? Será que o tal plano daria certo? A espera era insuportável, mas ele teria que ser paciente. Se tudo corresse bem, saberia de tudo lá pela segunda-feira.
E em seguida, Joe. Ela olhou mais uma vez ao redor do salão, para os produtos expostos, para o vestido de uma mulher, para qualquer coisa que a fizesse esquecer que já sé tinham passado três dias desde que deixara seu cartão no escritório dele. Três dias completos sem ter notícias dele. Ela devia estar louca quando fez isso. E, obviamente, ele não queria saber dela. E claro que não queria. Ele deixou isso bem claro dez anos atrás. Talvez tivesse jogado o cartão fora na mesma hora em que o recebeu daquela mulher. Fiona se encolhia toda vez que pensava nisso. Fez de tudo para não se incomodar com o silêncio dele. Tentou se convencer de que isso não tinha importância. Mas tinha. E doía. Ainda.
Tudo indicava que ela passaria aqueles dias à espera. Pelo retorno de Joe. Pela resolução de sua ação contra Randolph Elgin. Por uma palavra de Roddy. Ela não estava acostumada a esperar pelas soluções de seus problemas, costumava agir. E ser forçada a ficar esperando sentada a deixava maluca.
— O que você acha que é isso? — perguntou Neville, com um tipo de vagem verde na mão. Ele tinha percorrido a bancada de frutas e legumes e agora estava de volta.
— Quiabo — disse Fiona. — É da América. Cultivado nos estados sulistas — se perguntou como é que o quiabo pôde se manter tão verde e fresco. Ela e Michael sempre se viam em dificuldades para achar bons produtos da Geórgia e das Carolinas. Na maioria das vezes, rejeitavam a maior parte do que lhes era oferecido pelos fornecedores. Aqueles quiabos deviam ter saído diretamente dos portos sulistas navios velozes e mantidos em gelo, ela conjeturou.
— Quiabo. Que estranho, disse Neville. Ele arriscou uma mordida e fez uma careta, e depois o devolveu mordido para a bandeja de um garçom. — Venham amigo, vocês duas — ele continuou —, venham ver o que descobri. E fenomenal: estava parado perto de uma banca de legumes, me perguntando como é que podiam se manter tão frescos no calor do verão, quando de repente vi se um nevoeiro.
— Um nevoeiro? — repetiu Charlotte. — Você deve ter se enganado.
— Sim, um nevoeiro, minha querida. E muito engenhoso! Vem ver.
— Isso é tudo que nós precisamos em Londres: mais nevoeiro — comei Charlotte, seguindo o marido.
Fiona os seguiu e viu o que ele tinha falado. Os produtos estavam diante em bancadas feitas de metal. Alguém encontrou um jeito de fazer com que tênue neblina se liberasse pelas bancadas e envolvesse os produtos para mante-los frescos. Ela se esticou ao máximo e começou a examinar a bancada.
— Tem uma mangueira aqui — ela disse. Talvez haja pequenos orifícios nela. Para forçar a saída da água. Deve haver uma bomba. Mas onde está? — enfiou a cabeça dentro da bancada para espiar melhor, mas saiu de rosto molhado. — Você certo, Neville, isso é mesmo engenhoso! — secou o rosto com a manga, excitada.— Tenho que descobrir como se faz isso. Onde é que está o senhor Barton?
— Não sei — disse Neville, de testa franzida, enquanto tentava avistá-la na multidão. — Deve estar em algum lugar por aí, mas não consigo vê-lo. Vamos dar uma volta? — Ofereceu um braço para Fiona e o outro para a esposa. — De repente a gente esbarra com ele.
Enquanto circulavam em busca do proprietário, os três investigavam o do piso principal da Montague‘s, maravilhados com a grande variedade de pães — Charlotte parou de contar ao chegar à casa dos quarenta —, as vitrinas de bolos. pudins e biscoitos de dar água na boca, a extraordinária variedade de peixes e frutos do mar, a riqueza de aves e de outras carnes de caça, os suculentos cortes de carne de porco e de boi, as refeições prontas — patês, saladas, salpicões, tortas de carne ricamente trabalhadas e a surpreendente exposição dos mais variados queijos.
Ao mesmo tempo em que Fiona prestava atenção e se encantava com ao redor, tentava esquecer por um momento das ações da Burton Tea, da descortesia de Joe, e de Roddy e Bowler Sheehan. Era impossível se preocupar e experimentava uma fatia de queijo parmesão envelhecido ou questionava um funcionário — não um especialista — a respeito de algum tipo de café que até então não conhecia. Sentia uma grande admiração por aquele comerciante incrível chamado Barton e não via a hora de conhecê-lo.
Charlotte avistou uma amiga e afastou-se para conversar com ela.
— Vamos lá em cima — disse Neville para Fiona. — Quero visitar a tabacaria. Mas isso fica entre nós. A Charlotte não aprova.
Fiona riu. Seu humor tinha melhorado. As cabeças se viravam enquanto eles subiam a escada de mármore. As pessoas estavam encantadas e intrigadas com a mulher deslumbrante de braço dado com Pearson. Ela vestia um traje de verão de musselina creme acetinada com aplicações de renda e uma faixa de cetim atada à cintura. A gola aberta deixava à mostra seu gracioso pescoço, realçado pelo colar e os brincos de pérolas, opalas e ametistas. Os olhares se voltavam em sua direção atraídos por sua beleza e não conseguiam mais desgrudar dela, encantados com o vigor e o ânimo evidentes em cada um de seus gestos.
No topo, a balaustrada estendia-se para a direita e a esquerda, criando pequenos espaços onde as pessoas podiam se deter e observar o andar de baixo. Fiona acompanhou Neville na direção de um vendedor da tabacaria devidamente paramentado. Curiosa, ela se pôs a observar Neville enquanto ele passava diversos charutos por baixo do nariz e os pressionava levemente, para verificar o frescor antes de fazer sua escolha. Ele pagou pelos charutos e logo os escondeu no bolso interno do paletó.
De volta ao lado externo, nenhum sinal de Charlotte. Fiona e Neville se dirigiram até a balaustrada para esperá-la. Foram trazidas novas taças de champanhe. Fiona deixara sua primeira e intocada taça no piso inferior. Agora, mais relaxada, ela bebericava a outra taça de champanhe. Um garçom jovem e bonito estendeu-lhe uma magnífica rosa vermelha.
— Um presente de nossa floricultura — ele disse.
— Serviço completo — comentou Neville.
— Não é mesmo? — Fiona inalou o perfume da rosa. — Que loja extraordinária!
Neville debruçou-se na balaustrada.
— Olhe só essa gente toda. Só em champanhe o homem deve ter gastado uma fortuna.
— Sim, mas vai recuperar em dobro quando toda essa gente se tornar freguesa — disse Fiona, passando os olhos pela multidão charmosa e resplandecente lá de baixo. Era gente rica, gente socialmente importante. Ela soube disse pelo refinamento das roupas e pela maneira de conversar. Aquelas pessoas ficariam fascinadas pela festa e, quando voltassem para casa, diriam para as empregadas comprarem na Montague‘s. Por mais dinheiro que o dono da loja tivesse gastado, isso não passava de um investimento para ganhos futuros.
— Vamos ver o restaurante? — disse Neville. — Fica no próximo andar. Dizem que é extraordinário.
— Vamos, sim. Só vou acabar de tomar o meu champanhe... — suas palavras fugiram. Seus olhos cravaram-se num rosto em meio à multidão, o rosto de um homem.
O rabo de cavalo se fora. Os cabelos louros agora estavam curtos, mas ainda guardavam as ondas. A camiseta, o boné e a bandana vermelha também tinham desaparecido. Ele vestia um terno. Um terno cinza de corte impecável. Mas o sorriso largo e generoso ainda era o mesmo. E os olhos, tão azuis quanto o céu verão, também eram os mesmos. O rapaz se fora. O homem tomara o seu lugar. O homem mais bonito que ela já tinha visto.
Ela se lembrou da voz, a mesma voz que tinha ouvido na firma de Neville. E havia se sentido inexplicavelmente atraída por aquela voz. Porque era a voz ―Barton ou Barston‖, foi o que disse Neville. ―Sou péssimo com nomes‖. Não, era Bristow. Joe Bristow. O seu Joe.
Ela o olhava e mal conseguia respirar. Sorrindo, ele conversava com um casal com a mão no ombro do homem. Seu coração se emocionou tanto que de repente as lágrimas irromperam em seus olhos. Dias antes, no escritório dele em Covent Garden, ela havia dito para si mesma que aguentaria quando o visse de novo. Aguentaria? Ela mal se sustentava em pé e ereta. A simples visão dele deixou-a tomada de amor e desejo. Emoções que havia tempo ela pensava ter superado. Ela queria se aproximar dele, ouvir a voz dele, pegá-lo pela mão e olhar no fundo dos olhos dele outra vez. Queria abraçá-lo, sentir seu abraço e fingir, mesmo que por alguns segundos, que eles nunca tinham se separado.
Ela o observava, sorvendo cada detalhe do que via — como ficava em pé, como colocava as mãos nos bolsos ao mesmo tempo em que falava, como esticava a cabeça para ouvir —, quando, de repente, ele foi atacado por três crianças louras. Ele se abaixou. pegou a menorzinha no colo, beijou-lhe a bochecha e depois tirou um doce de uma bandeja e deu para ela. Enquanto ele colocava a menina no chão, ela se dava conta de que a garotinha devia ser a filha dele. Todas as três crianças eram dele. Dele e de Millie. Já que ele tinha se casado com MiIlie dez anos antes e não queria nada com Fiona.
Fiona se afastou da balaustrada, passando mal. Tinha que sair dali. Naquele segundo. Antes que ele a visse. Senão pareceria uma idiota apaixonada que mal se sustentava nas pernas. Uma mulher desesperada e patética.
Neville notou sua fisionomia abalada.
— Fiona, o que há? O que há de errado?
Ela forçou um sorriso.
— Nada, Neville. Foi só um pouco de vertigem. Eu me sinto mal com alturas — ela mentiu. E depois disse que havia se divertido muito, mas que estava exausta e ainda tinha um dia agitado pela frente e que por isso teria que voltar para o hotel. Pediu para que ele se despedisse de Charlotte por ela e disse que o veria na terça-feira no escritório dele.
Depois, começou a descer a longa escada. Já tinha visto uma porta lateral e planejava seguir em linha reta naquela direção. O que ela queria mesmo era sair correndo, mas se segurou para manter um passo elegante ao descer. Quando finalmente chegou ao térreo, ela passou apressada no meio da multidão em direção à porta. Essa porta se abria para uma galeria ao longo do prédio da Montague‘s. Ela atravessou-a e se pôs a correr. Correu pela galeria até chegar à rua, onde pegou imediatamente uma carruagem.
Já dentro, ela deixou extravasar a emoção. O condutor ouviu seus soluços. Preocupado, ele se virou e perguntou se ela estava bem.
— Não. Não estou, não. Nem um pouco — ela respondeu, muito abalada para se sentir envergonhada pelo pranto na frente de um estranho.
— Aposto que é um homem, não é? — ele continuou.
Ela assentiu com a cabeça.
— A senhora é uma boba, madame. Uma mulher elegante como a senhora... pode encontrar coisa melhor que ele. Não dou a mínima para quem ele seja.
Fiona suspirou.
— É isso que vivo dizendo para mim mesma. Talvez um dia eu me convença.
— ERA ELA — DISSE JOE PARA SI MESMO, em pé na calçada do lado de fora da loja, procurando por uma mulher com um vestido bege no meio da multidão. Aqueles olhos azuis, aquele rosto... era Fiona. Ela estava ali.
Ele a tinha visto descer a escada. E, quando a viu, o choque foi tão grande que ele deixou cair o copo de sua mão. Espatifou-se aos seus pés. Antes mesmo que pudesse chamá-la, ela já tinha descido e saído pela porta lateral. Ele correu atrás dela, mas foi retardado pelo acúmulo de gente. Quando enfim conseguiu chegar à rua, ela já tinha desaparecido.
Fiona. Aqui em Londres. Na loja dele. Ele a vira. Deu alguns passos pela calçada, olhando através das janelas das carruagens, atravessou a rua e olhou para todos os lados, mas não a encontrou em nenhuma parte.
Era ela, tenho certeza, ele disse para si mesmo. O que me intriga é que ela vive em Nova York e não em Londres. Com o marido dela.
— Joe! — gritou alguém. — Joe... aqui!
Ele se virou na direção da voz. Era Cathy. Ela lhe acenava.
— Por onde você andou? — ela perguntou quando ele a olhou. — Vi quando você saiu correndo. Pensei que tivesse acontecido alguma coisa.
— Não, não aconteceu nada. Só pensei...
— Você precisa entrar. Lady Churchill acabou de chegar. Ela quer que alguém lhe mostre a loja — Cathy o olhou bem de perto. — Joe, querido, o que houve? Você está meio fora de ar.
Ele balançou a cabeça.
— Você pode até não acreditar, mas eu poderia jurar que acabei de ver Fiona Finnegan.
Cathy lançou um olhar ansioso para a rua e depois para ele. Joe notou que estava deixando a irmã preocupada.
— Acha que estou doido, não é? — ele disse.
— Não está doido, não, querido. Só está exausto. Afinal, foi um mês de muitas horas de trabalho por dia para todos nós. Mas agora a loja está aberta e, pelo que tudo indica, será um sucesso estrondoso, Assim que a poeira assentar, você pode tirar alguns dias para descansar. Fique em Greenwich e trate de descansar.
Joe balançou a cabeça
— Sim, acho que farei isso.
— Vamos, então — ela disse, radiante. — Não podemos deixar as damas esperando.
Cathy preferiu voltar pela galeria. Seria mais rápido do que pela entrada principal. Joe deixou que a irmã entrasse na frente. Já estava a ponto de segui-la quando viu uma rosa caída no chão aos seus pés.
Pegou-a. Fiona amava as rosas vermelhas. Ele sempre levava uma para ela quando podia.
— Joe? Você não vem?
— Já vou — enfiou a rosa no bolso. Ele estava ficando maluco. Com toda certeza. Cathy estava certa. Alguns dias de descanso o deixariam bem.
SEU CRETINO! Seu cretino fodedor de porco, chupador de pau, comedor de merda! Você não pode me manter aqui! Eu quero o meu advogado e quero agora! Eu conheço os meus direitos! Quando eu sair daqui, O‘Meara. Você também vai rodar! Você e o seu traseiro irlandês! Está me ouvindo? Vou arrancar seu distintivo, seu puto! O seu e o daqueles sujeitinhos que me puseram aqui...
De braços cruzados, Roddy olhava o homem atrás das grades com um sorriso nos lábios. Ele daria com a língua nos dentes em um ou dois minutos. Dois dias sem comida e sem água enfraquecia até os homens mais durões. E, pelo escândalo que ele fazia, via-se que Bowler não era durão. Não era forte como Reg ou Stan. Era magro e não tinha gordura para absorver os socos. Roddy esperava que ele se esvaísse em sangue. Ele puxou o cassetete do cinto e começou a girá-lo no ar. Bowler o viu fazendo isso e soltou uma outra saraivada de impropérios. Sem a cor e o vigor do último desaforo. O homem estava se cansando.
Já fazia muito tempo que Roddy não conduzia um interrogatório dessa maneira. McPherson tinha se oferecido para ajudar, mas ele se recusou. Queria tratar sozinho de Bowler.
Esperou alguns minutos até que Bowler acabou se exaurindo e sentou no banco da cela. Então pegou um molho de chaves do cinto, destrancou a porta e entrou. Como esperava, Bowler partiu para cima tão logo ele entrou. Roddy estava preparado. Aparou o soco com o cassetete, agarrou o braço de Bowler e o girou, atirando-o contra a parede. Bowler deu um salto e partiu outra vez para cima de Roddy, e este lhe deu uma cacetada na cabeça, abrindo um ferimento em cima dos olhos.
Bowler soltou um grito. Roddy o agarrou pela camisa, arrastando-o de volta banco.
— Paddy Finnegan era como um irmão para mim — ele disse.
— E que merda isso tem a ver comigo? — gritou Bowler, limpando o sangue do olho.
— Você o assassinou. Você e o William Burton.
— Não sei do que você está falando.
— Você também assassinou o Dennis Quinn e a Janey Symms.
Bowler cuspiu um filete de sangue.
— Você pegou o homem errado. Foi o Sid Malone. Ele quer dominar East East. Estava tentando pressionar o Quinn, mas o Quinn não estava cedendo. E aí Malone o liquidou.
Roddy tirou duas folhas de papel do bolso do casaco, desdobrou-as e colocou- na frente dos olhos de Bowler.
— Você consegue ler? — ele perguntou.
— Vai se foder.
— Tomarei isso como um sim — disse Rodd. — Leia com muita atenção. São confissões assinadas pelo Reg Smith e o Stan Christie, testemunhadas por dois dos meus policiais. Eles dizem que você esfaqueou o Quinn e que fez o Reg e o Stan esfaquearem a Janey Symms.
Roddy viu que os olhos de Bowler ficavam vermelhos à medida que ele lia os documentos e se sentiu feliz por perceber medo neles.
— E daí? — retrucou Bowler no fim da leitura. — Isso é o que eles dizem, Eu digo outra coisa. Eu não estava nem perto do Taj quando o Den foi assassinado.
— Escuta, Bowler, vou te fazer uma proposta. Nós dois sabemos que você fez isso. Eu tenho as confissões do Reg e do Stan. E, se for necessário, terei mais duas testemunhas. Potter, o barman, dirá que te viu lá. E meia dúzia de garotas do Den também vão afirmar a mesma coisa.
Bowler sorriu.
— Eles não se atreveriam.
— Não se pensarem que você será solto — argumentou Roddy. — Mas se eu assegurar que isso não vai acontecer, você estará ferrado. Eu soube que o Ronnie Black, o dono daquela loja de bebidas na Lamb Street, estava jogando sinuca lá quando você chegou. Você acha que ele se sentia feliz por ter que te pagar durante todos esses anos? Aposto que ele te odeia. Aposto que vai soltar tudo como um papagaio. Aposto que qualquer cara que estava lá vai fazer o mesmo. Eles vão querer te ferrar.
Bowler respirou fundo, segurou o ar e soltou.
— O que você quer?
— A verdade. Sobre o Quinn. E sobre o Paddy Finnegan também. Eu quero que você conte como foi que aconteceu o assassinato do Finnegan. Como o William Burton obrigou você a fazer isso.
Bowler balançou a cabeça em assentimento.
— Foi exatamente isso que aconteceu! Ele me obrigou a fazer isso!
— Eu já imaginava — disse Roddy, encorajando-o — Quem eu quero realmente Burton.
Bowler estendeu-se para frente, mostrando-se agora mais esperto.
— E o que é que eu ganho com isso?
Um lugar no jogo de cartas do verdugo, pensou Roddy.
— Vou cuidar de você — ele disse. — Não sou daqueles que se esquecem de agradecer. Vou fazer de tudo pra que o juiz fique sabendo que você me ajudou e me esforçarei ao máximo pra que ele seja bom com você. Você irá para a prisão e não para a forca, e com o tempo sairá por bom comportamento. Em dez ou quinze anos será um homem livre — deu uma pausa e depois continuou, — Mas, se você recusar, vou fazer o possível e o impossível para que você seja enforcado pelo assassinato do Quinn.
Bowler pensou por alguns segundos.
— Está bem — ele disse por fim. — Sei quando o jogo está terminado. Mas, se eu cair o Burton cai comigo. Você tem algum papel neste buraco? Uma caneta? Pode trazer.
VESTINDO UM CONJUNTO de saia e casaco cinza, Fiona desceu apressada pela Commercial Street, cruzou a Christie Church e entrou num pub chamado Bells. A manhã estava nublada e ainda não eram seis horas. Alguns trabalhadores e uns tipos rudes estavam sentados no bar, comendo torta de carne ou ovos recheados acompanhados de chá.
— Fiona! Aqui!
Era Roddy, que estava sentado na mesa de um canto especial do pub. Ele tinha mandado um bilhete na noite anterior, pedindo que ela o encontrasse ali. Disse que havia uma informação sobre a morte do pai dela. Uma informação que seria útil ao plano dos dois. A frente dele, uma xícara de chá e os restos do café da manhã. Ela notou que ele estava de olhos inchados e com a barba por fazer.
— Pelo que vejo o senhor não dormiu. O que aconteceu? — ela perguntou, enquanto se sentava.
— Mais do que podia acontecer — ele respondeu, esgotado. — Fui chamado às duas da madrugada — olhou para os lados e abaixou a voz em seguida. — Foi encontrado um corpo num beco da Fournier Street. Uma prostituta. Com a garganta cortada. Um homem ouviu o grito dela e correu para ajudá-la, mas a encontrou morta.
— O senhor está brincando.
— Bem que eu gostaria.
— Está parecendo obra do Jack.
Roddy esfregou o rosto.
— Pois é, está parecendo, sim — ele disse. — E os jornais vão fazer uma festa com isso. Tinha uma porção de repórteres na cena do crime, todos tentando colher informações. Não estamos autorizados a dar informações para eles, mas isso não os inibe, O que eles não conseguem descobrir, eles inventam. O desgraçado do Bob Devlin, o editor do Clarion, essa tarde vai colocar em polvorosa East End inteira. Já pedimos reforços de Limehouse, Wapping e Bow para o caso de haver transtornos. Mas nada disso é da sua conta, mocinha — ele deu uma pausa enquanto a garçonete colocava um bule de chá fresco na mesa e perguntava o que Fiona queria comer.
— Nada, muito obrigada — ela disse.
A essa hora do dia, mesa especial é só para clientes que fazem refeições — retrucou a garçonete de mau humor.
— Entendi. Traga um café da manhã completo.
— Com batatas fritas ou tomates...
— Com tudo. Eu quero tudo — disse Fiona, despachando a mulher. Depois, serviu-se de uma xícara de chá e acrescentou um pouco de leite enquanto Roddy prosseguia.
— Pedi que você viesse até aqui porque sabia que hoje não poderia ir até o seu hotel e estava ansioso para lhe contar o que houve — ele disse. — Há poucos dias assassinaram um homem chamado Dennis Quinn e sua namorada, Janey Symms.
Fiona balançou a cabeça, se perguntando o que esses assasinatos tinham a ver com a morte do seu pai.
— Foi o Bowler Sheehan que cometeu o crime. Quem me entregou ele de bandeja foi um outro criminoso, o Sid Malone.
— Malone? — repetiu Fiona, — O mesmo Sid Malone que um dia tentou me arrastar para um beco?
— Eu não ficaria surpreso, mas não tenho certeza. Esse cara não é visto há dez anos — Roddy contou como os homens de Malone tinham levado Reg e Stan para a delegacia e como seus policiais encontraram Sheehan escondido na casa de uma irmã, em Stepney. —Falei que o havia prendido por causa do assassinato de Quinn — ele continuou —, mas que as coisas ficariam melhores para o lado dele se ele confessasse o assassinato do seu pai... e entregasse o William Burton.
Fiona pôs a xícara de chá no pires. Seus olhos se arregalaram.
— E ele fez isso?
—Fez.
Ela encostou as costas na cadeira, surpreendida com a súbita virada dos fatos. Começou a pensar em todas as implicações e se deu conta de que não teria que esperar seis meses pelas ações de Nick. Não precisaria mais delas. A confissão de Sheehan levaria ele e o próprio William Burton para a forca.
— Então o senhor já pode prender o Burton, não é? Pode colocá-lo na cadeia, levá-lo a julgamento e enforcá-lo pelo que ele fez — ela disse.
Roddy hesitou.
— E o que eu espero, filhinha — ele respondeu —, mas não posso garantir.
— Mas, por quê? — ela se mostrou confusa. — O senhor já tem a confissão do Sheehan.
— O que tenho é a palavra de um conhecido criminoso contra um comerciante respeitável. Não houve testemunhas no assassinato do seu pai. Não temos como provar que o Sheehan está dizendo a verdade — ele disse. — Fiz tudo o que pude. E talvez, com um pouco de sorte, isso seja o bastante. Mandei dois policiais até o escritório do Burton para apresentar a confissão do Sheehan e fazer uma entrevista formal. Pode ser que aconteça um milagre. Talvez ele confesse. Isso já aconteceu outras vezes. Uma pessoa pode viver muito tempo com um assassinato na consciência e um dia é pego pela culpa — ele cobriu a mão dela com a sua. — Agora é hora de você ter um pouco de fé.
Fiona balançou a cabeça, desconsolada. William Burton não era esse tipo de homem e a fé não era o seu ponto forte. Mas ela estava perto, muito perto, de vingar a morte do pai. Roddy tinha avançado bastante. Encaixara as peças do quebra-cabeça. Agora ela só precisava de um impulso adicional, uma forma de encurralar Burton de tal modo que ele viesse a confessar. Mas qual?
Chegou sua refeição. Ela começou a ciscar no prato. Tudo bem, disse para si mesma. Não importa, o Roddy já tem o Sheehan. Ele será enforcado pelo que fez. E, se Burton não confessar, você volta ao plano original: Neville consegue as ações e você pega Burton com isso. Tomou um gole de chá, tentando controlar a decepção. Seus olhos pousaram no jornal de Roddy. O Clarion. Estava sobre a mesa. ―Assassinato em Whitechapel!‖, dizia a manchete. ―Mulher mutilada no beco‖. Embaixo, estampava-se uma desordem. ―Vinte feridos na Hospedaria Melle‖. E mais abaixo, ―Escândalo! Ministro local e mulher pecadora. Detalhes na página 5‖. Com manchetes como essas, o Clarion deixava os jornais de Nova York encabulados, ela pensou. Leu de novo as manchetes. Por alguma razão, uma palavra em especial lhe saltou aos olhos.
Escândalo.
Uma palavra que lhe era bem conhecida. Ela se casara com Nick para evitar um escândalo. E corria o risco de perder seu negócio nos três meses seguintes se o sogro cumprisse a ameaça de criar um outro.
Escândalo.
Gritada ou sussurrada, era uma palavra poderosa. Intimidadora. Até mesmo aterrorizadora. Casamentos eram destruidos por conta de escândalos. E também negócios, reputações, vidas. Uma simples ameaça podia ser devastadora. Fazia-se de tudo para evitar um escândalo, Ameace alguém com um escândalo e você tem poder sobre o pobre infeliz. Você adquire poder. Controle.
Ela empurrou o prato para o lado.
— Não precisamos de um milagre, tio Roddy — ela disse baixinho.
—Não?
— Não. Nós só precisamos de um amigo no jornal. Em qualquer jornal, O senhor conhece bem o homem que mencionou? Devlin?
— Conheço muito bem. Trocamos favores há muitos anos.
Ela abriu a bolsa, colocou algumas moedas na mesa e se levantou.
— Então vamos vê-lo.
—Pra quê?
— Pra ver se ele nos ajuda a bolar um escândalo. Mesmo que a gente não consiga indiciar o Burton pelo assassinato do meu pai, vamos fazer com que o povo acredite que podemos.
— Não estou entendendo. O que vai haver? — perguntou Roddy, amassando o guardanapo.
— Tudo, espero. Mas vamos logo. Explicarei no caminho.
RODDY DEU UMA PAUSA, com a mão na porta de entrada do Clarion, Virou-se para Fiona e disse:
— Sabe, filhinha, isso pode dar certo.
— Tem que dar, tio Roddy.
— Você está pronta?
— Estou.
— Então vamos entrar.
Ele abriu a porta e os dois entraram numa sala ampla e barulhenta onde estavam as impressoras. O cheiro de óleo e tinta era forte.
— Vem comigo — ele disse, conduzindo-a por um lance de escada. — A redação é por aqui.
Ele conhecia o prédio. Já tinha estado lá diversas vezes, O Clarion não chegava aos pés do Times, mas era um jornal de grande circulação. Cobria todo o noticiário local, e muitas de suas histórias eram aproveitadas pelo Times e outros jornais. Serviria muito bem ao que eles pretendiam.
Fiona já tinha explicado todo o plano. Era brilhante, mas sua eficácia dependia inteiramente de Devlin. Ele era geralmente um boa-praça, mas de vez em quando se tornava intragável. Atento à possibilidade de o repórter estar de mau humor, Roddy deu uma parada na delegacia para pegar um trunfo. Um presentinho. Graxa para a engrenagem.
O odor de tabaco misturado a restos de desjejum impregnava a redação. Cerca de uma dezena de repórteres datilografava freneticamente e, no meio do recinto, um homem baixinho se esgoelava, em pé.
— Você se acha um repórter, Lewis? Tem titica na cabeça! Cadê o detalhe? Cadê o tom? Não disse que a garganta dela foi cortada? Que tamanho tinha o corte? Que profundidade? Atingiu a traqueia? Tinha sangue no chão ou só nas roupas? Os leitores querem saber isso tudo. Agora cai fora e só apareça aqui quando tiver uma história real para mim.
— Mas, senhor Devlin, a polícia não fornece nada! Não posso olhar a arma! Não posso nem mesmo entrar no beco!
— Você é homem ou não é, Lewis? Será que tem alguma coisa entre as suas pernas? Pare de choramingar e corra atrás da história! Se a polícia não quiser cooperar encontre alguém que faça isso. Alguma zeladora do prédio vizinho. O assistente legista. O cara que limpou o chão depois da autópsia. Algumas moedas na mão certa funcionam como uma maravilha. Encontre um jeito, cara!
O repórter, um rapaz com não nao mais de dezoito ou dezenove anos, afastou-se de cabeça baixa, vermelho de vergonha. Devlin o observava balançando a cabeça quando avistou Roddy.
— Sargento! A que devo o prazer da visita? — ele perguntou, enquanto caminhava na direção dos dois.
— Vim pra falar com você, Bobby. Em particular.
Devlin assentiu com a cabeça e os conduziu para dentro de sua sala. Roddy apresentou Fiona e, antes que o homem começasse a fazer perguntas, disse:
— Tenho uma história pra você. Uma boa história. E preciso que seja manchete de primeira página na edição desta noite.
Devlin pendeu a cabeça para o lado, com uma expressão intrigada na face.
— Que mudança — ele disse, — Estou acostumado a ver você tentando manter as boas histórias fora do jornal e não dentro dele. E ainda mais na primeira página! O que houve?
Roddy contou como um líder sindical chamado Patrick Finnegan tinha sido assassinado dez anos antes, pouco antes da greve nas docas, e que Bowler Sheehan acabara de confessar o crime. E acrescentou que o segundo suspeito era William Burton, o comerciante de chá.
Devlin franziu a testa.
— É uma história interessante — disse. — Mas são acusações sem provas. Vou publicá-la, se isso lhe interessa, mas não na primeira página. Talvez na quarta. O assassinato da prostituta é que vai para a primeira página. Achei que você tinha vindo aqui pra isso.
Roddy já esperava por essa negativa.
— Tenha dó, Bobby. Já fiz muitos favores pra você. Em 1896, lhe dei os assassinos da Turner Street, lembra? — ele disse. — Você mesmo disse que isso fez a sua carreira. E também lhe dei a gangue do mendigo cego. Você escreveu uma série de reportagens sobre esses ladrões e foi promovido a editor.
Devlin brincava com o peso de papel e bufou irritado:
— Por que essa história é tão importante pra você?
— Isso eu não posso dizer. Por enquanto. Faz isso por mim, Bobby. Não vou me esquecer.
— Não é uma história sangrenta o bastante! Aconteceu há dez anos! É muito velha. O público gosta de assassinatos frescos. Como o da prostituta com a garganta cortada. Isso, sim, é que é um bom assassinato!
Roddy puxou então o seu trunfo e disse:
— Foram dois.
Devlin parou de brincar com o peso de papel.
—Dois?
Roddy balançou a cabeça.
— O corpo encontrado na Fournier Street na noite passada é o da segunda prostituta assassinada em quinze dias. Ambas tiveram as gargantas cortadas.
—Jesus Cristo!
— Não queríamos um pânico em nossas mãos. Estamos tentando abafar o caso. Obviamente, se você não ficasse sabendo, teríamos feito um bom trabalho.
— Mas como você...
— Mentimos sobre a profissão da primeira vítima. Dissemos que era costureira. Foi metade da verdade. Ela dizia pra todo mundo que era costureira. O crime foi caracterizado como assalto seguido de morte.
— É o Estripador de novo! — disse Devlin, excitado. — Onde é que foi encontrado o primeiro corpo? Na mesma área? Quantos anos ela tinha? Foi usado o mesmo tipo de faca nos dois assassinatos? Outros ferimentos? Algumas contusões?
Roddy respondeu enquanto desabotoava o casaco e metia a mão no bolso interno para puxar algumas folhas.
— São os relatórios do legista sobre as duas mulheres. — Devlin se esticou para pegar as folhas, mas Roddy segurou-as. — Serão suas... se você colocar Sheehan e Burton na primeira página da edição desta noite.
Devlin mordeu o lábio enquanto pensava. Por fim, sua curiosidade venceu. Tal como Roddy tinha pensado.
— Está bem, está bem — ele disse.
— A minha colega aqui, a senhora Soames, precisa receber cem cópias adiantadas.
— Quer mais alguma coisa? Quem sabe uma foto dos seus filhos na segunda página?
— Você faria isso?
— Faria, sim! Agora, passe pra cá os relatórios!
Roddy os entregou.
— Tenho que tê-los de volta em uma hora, Bobby. Uma hora. Mande um dos seus rapazes me entregar. Peça pra que ele leve um sanduíche de bacon pra mim. E peixe com batatas fritas. Só isso. Ele deve fingir que foi me levar o jantar. Não pode parecer um repórter. Entendeu? Estou colocando o meu posto em jogo ao lhe dar isso.
Devlin concordou, com os olhos fixos nos documentos.
— Ouça isso, O‘Meara. A garganta foi cortada da esquerda pra direita... traqueia, cortada... esôfago, também... marcas de faca nas vértebras... mutilação inicial.,. possível tentativa de evisceração... é ele! — disse Devlin em júbilo.
Roddy levantou-se. Fiona fez o mesmo. Ele notou que ela estava pálida. Queria tirá-la dali. Por saber como a mãe dela tinha morrido, ele duvidava que ela compartilhasse o mesmo entusiasmo de Devlin por sangue.
— Você dará aos seus leitores a versão verdadeira sobre as prostitutas, não é, Bobby? — disse Roddy. — Não vai escrever nada irresponsável, como atribuir os assassinatos ao Estripador, quando todos nós sabemos que ele está morto, não é?
— Deixe comigo — disse Devlin, ainda lendo.
— Ótimo — Roddy sentiu-se aliviado.
O editor ergueu os olhos e riu.
— Diremos que é o fantasma do Estripador!
— NÃO POSSO ACREDITAR NISSO, RODDY — disse Joe, quase sussurrando. — Paddv Fnnegan foi assassinado?
— Sim, rapaz. Para impedir que os doqueiros se organizassem.
Joe ficou em silêncio por alguns segundos e disse em seguida:
— Ela precisava de mim, Roddy. Ela precisava tanto de mim. E eu a abandonei. Virei as costas para ela. Não a ajudei.
— Ajude agora, então. Se a amou de verdade, faça o que lhe estou pedindo.
— Farei. E verei se consigo a adesão da Harrods, da Sainbury‘s e de outros. Ele não vai se safar dessa. Não comigo metido no caso.
— Obrigado, rapaz. Eu sabia que podia contar com você. Quero que ela se sinta um pouco mais segura. Com você e seus amigos comerciantes do lado dela. E com os rapazes do sindicato também — Roddy se levantou. Estava no escritório de Joe, em Covent Garden, e tinha um longo caminho pela frente.
— Tenho que ir. Ainda preciso me encontrar com o Pete Miller, o líder do sindicato
em Wapping.
— Roddy, espere.
—Sim?
— Onde ela está?
Roddy balançou a cabeça.
— Isso eu não posso dizer.
— Por favor, Roddy.
— Não sei se ela quer vê-lo, rapaz.
— Deixe que ela me diga isso. Deixe que ela me diga na cara, e nunca mais a incomodarei.
— Você não pode fazer isso com ela, Joel — disse Roddy, zangado. — Jesus!
Não acha que esta noite ela já tem preocupação demais na cabeça sem que você apareça à porta dela?
— Não vou hoje à noite. Vou amanhã, Quando isso acabar. Não mentirei pra você, minha vontade era ir agora. Mas não vou. Eu prometo.
Roddy o olhou fixo.
— Ela está no Savoy — disse por fim. Já ia relembrar Joe da promessa, mas o rapaz não lhe deu chance.
— Trudy! — gritou Joe, passando apressado por ele rumo à saleta de sua secretária. — Coloque a Harrods na linha. Agora!
NUVENS PESADAS, CARREGADAS DE CHUVA, sombrias e agourentas, espraiavam-se sobre Londres. Um vento cortante as açoitava, impelindo-as do Tâmisa à terra firme, na direção dos bairros miseráveis à beira do rio até a parte oeste da cidade, com seus escritórios de contabilidade, e ainda para mais longe, para Westminster e St. James, redutos de privilegiados e poderosos.
Está vindo uma tempestade lá do leste, pensou Fiona. Ela podia sentir o cheiro do rio no vento. Será que o mesmo vento que a fustigava agora tinha varrido desoladas de Whitechapel?, - ela se perguntou. Será que se chocara contra as frágeis das casas descascadas e as roupas rotas da gente de lá? Era só imaginação ou o vento exalava o fedor amargo da pobreza?
Dois homens bem vestidos e bem alimentados passaram apressados por ela, desaparecendo no interior do White‘s, um clube só para cavalheiros, em cuja parte de fora ela agora se encontrava. Seu sogro, Lord Elgin, o duque de chester, estava lá dentro. Jantava lá todas as noites. Ela sabia disso porque dizia que o homem passava mais tempo no clube do que em casa.
Se tudo corresse bem, em poucos minutos ela estaria cara a cara com ele. E então, tudo dependeria dela. De sua capacidade de atuar, de sua postura, de sua habilidade para fingir segurança em relação ao dinheiro, ao mercado e outros dos investimentos ingleses e para enganar um homem que presidia os bancos mais poderosos da Inglaterra, um homem que sabia mais das finanças do que um dia ela nem sequer sonhara saber. Como faria isso? O fato é que ela estava apavorada com a possibilidade de errar quando tanta coisa estava em jogo. Uma súbita rajada de vento sacudiu sua saia. Ela a ajeitou. Enquanto levava a mão pela saia, seu diamante cintilava, aquele mesmo que Nick lhe dera — queria tanto que ele estivesse ali.
Precisava dele naquela hora. Uma outra rajada fustigou-lhe as costas. Era como se uma mão a empurrasse para frente. De repente um pensamento lhe veio à cabeça, tal como ocorrera no dia em que Teddv testamento de Nick, o pensamento de que ele estava ali ao seu lado. Ele tinha deixado Paris ou seja lá onde sua alma estivesse agora para se encontrar com ela, para lhe dar coragem. Ela chegava a ouvir a voz dele dizendo com toda a notidez: ―Vai em frente, minha velha, enfrente-o logo!‖. Isso lhe deu a coragem que precisava para caminhar até o clube e lá entrar.
Um mordomo abordou-a no saguão de entrada.
— Sinto muito, madame — ele disse abruptamente —, este clube é privado. Só para cavalheiros.
Fiona o olhou como se ele fosse um inseto asqueroso.
— Eu sou a viscondessa Elgin — ela disse com um tom arrogante, anunciando seu título com tanta fluência como se o usasse todos os dias. — O duque de Winchester é meu sogro. Preciso vê-lo imediatamente. E uma emergência. Um problema particular de família.
O mordomo assentiu com a cabeça, subitamente mais gentil.
— Um momento, por favor — ele disse, desaparecendo em seguida num lance de escada acarpetada, cercada de paredes de madeira com quadros que exibiam paisagens inglesas.
Fiona respirou fundo. Aliviada. Sua primeira cena fora excelente, mas a próxima seria mais difícil. Enquanto esperava pelo retorno do mordomo, as palavras de Roddy ao se despedir ecoavam em sua cabeça.
— Cuidado, mocinha, tome muito cuidado. Já vi gente ser assassinada por uma libra, imagine então por milhares delas. — Ela prometeu que seria cautelosa. Roddy tinha feito muito por ela. Se não fosse ele, não estaria ali agora, tão perto de ver o sucesso de seu frágil plano. Ele também queria que o pIano desse certo. Ela não podia falhar.
O mordomo reapareceu.
— O duque a receberá. Por favor, siga-me — ele a escoltou por um corredor. E por fim até um cômodo privado. Ela ouviu o som da porta fechar-se atrás dela e se viu sozinha. Pelo menos era o que estava pensando até ouvir uma voz masculina cortante e fria.
— Você tem uma coragem e tanto, senhorita Finnegan.
Fiona olhou rapidamente para ele. O homem estava de pé, atrás de uma mesa no extremo da sala. Era um tipo atarracado, parecido com um sapo em trajes de noite. Seu rosto, incrivelmente feio, exceto pelos mesmos belos olhos turquesa de Nick.
— Elgin. Senhora Nicholas Elgin — ela disse. — Pelo menos é o que afirma a minha certidão de casamento. Mas acabei adotando Soames. Meu falecido marido preferia.
— Posso lhe perguntar por que interrompeu um extraordinário jantar?
Fiona tirou um exemplar do Clarion de dentro de sua pasta e o jogou sobre a mesa.
— Não estou acostumado com esse tipo de publicação — disse o duque aborrecido, olhando-a.
— O senhor pode não estar — ela replicou —, mas os editores dos maiores jornais da cidade estão. Acho que seria interessante o senhor ler a notícia.
Ele se inclinou sobre a mesa. Ela notou que os olhos dele correram pela manchete. ―Comerciante de chá acusado de assassinato de líder sindical‖. E pela linha abaixo: ―William Burton interrogado pela polícia‖. Ele virou a página e leu a notícia. Por uma fração de segundo, ela viu uma chispa de preocupação transtornar a fisionomia cuidadosamente composta do homem. A chispa se foi tão rápido quanto surgiu, mas uma faísca de esperança se acendeu dentro dela, dando-lhe confiança.
— O que exatamente isso tem a ver comigo? — ele perguntou.
— O Nicholas o chamava de muitas coisas, senhor, mas nunca o chamou de tolo. O senhor sabe muito bem que assassinos não ficam soltos por aí. O William Burton será preso, condenado e enforcado. Os negócios dele serão arruinados. Entreguei cópias do Clarion para cada editor de cada jornal grande ou pequeno de Londres. Amanhã a notícia estará espalhada por toda a cidade. Algumas cópias também serão enviadas para os maiores acionistas da Burton. Acho que eles ficarão aterrorizados com a ideia de investir numa companhia cujo dono é um assassino. De manhã, eles sairão correndo para se livrar de suas ações.
— Talvez — disse o duque. — O que você quer de mim?
— As ações da Burton Tea que eram de Nick.
— E se eu recusar?
— Farei tudo o que puder para arruinar a Burton Tea. Eu possuo 22% da companhia, isto sem as ações do Nick, e garanto ao senhor que farei isso num piscar de olhos. Por volta do meio-dia, o mercado estará inundado de ações da Burton Tea. Elas cairão tanto que não valerão o papel e a tinta dos certificados. E o Banco Albion perderá as trezentas mil libras investidas na companhia.
O duque tirou um cigarro de uma cigarreira de prata sobre a mesa e o acendeu.
Deu uma longa tragada, soltou a fumaça e disse:
— Discordo. A polícia fará um interrogatório com William. E claro que ele vai negar qualquer envolvimento e em poucos dias o assunto terá caído no esquecimento. Então, nada de investidores ultrajados, nada de vendas movidas pelo pânico.
— Vou iniciar o pânico. Assim que a bolsa abrir.
— Com que fim? O fato de você ter 22% junto a sua fanática determinação de ficar com as ações do meu finado filho só indica uma coisa: você quer se apossar da Burton Tea. Como fará isso se soltar todas as suas ações?
— Não atingirei meu objetivo, mas colocarei a companhia em bancarrota. Pelo menos terei essa satisfação.
Elgin ficou pensativo.
— Muito provavelmente, mas não há garantias. Alguém pode comprar um grande lote das suas ações, estabilizar o preço e salvar a companhia. Já vi isso acontecer.
Fiona engoliu em seco. Estava perdendo suas vantagem. Tinha que se valer do seu trunfo.
— Isso aqui é uma ordem de pagamento bancário para trezentas mil libras - ela disse, enquanto puxava uma folha de papel de sua pasta e a colocava sobre a mesa. — A soma total dos empréstimos concedidos pelo Albion à Burton Tea. No minuto que o senhor me der as ações do Nick, ela passa a ser sua.
Elgin ergueu uma sobrancelha.
— Você quer pagar o total do empréstimo?
— Todinho. Amanhã, às oito horas da manhã, estarei no Albion. E poderemos então trocar as ações da Burton pelo meu dinheiro. O Nick tinha outras ações na conta. Valem um bom dinheiro. Fique com tudo. Com todas elas. Eu só quero as ações da Burton Tea — ela deu uma pausa para deixar sua oferta assentar. — E se o senhor estiver errado? E se eu estiver certa? E daí se a Burton Tea afundar? No mundo existe gente que valoriza bem mais a moral e a justiça do que o lucro.
— Será? Eu ainda não conheci ninguém assim. Um belo discurso, minha cara, mas acredite em mim, os investidores se preocupam bem mais com seus bolsos do que com um doqueiro morto há tanto tempo — ele apagou a ponta do cigarro. — Gostei muito desta nossa curta entrevista, minhas noites geralmente não me permitem interlúdios assim tão dramáticos, mas agora preciso retornar ao meu jantar e aos meus companheiros.
As paredes da sala pareceram esmagar Fiona. De repente, ela mal conseguia respirar.
O duque caminhou na direção dela. Parou na frente dela, tão perto que ela pôde sentir o odor do vinho que ele bebera e do carneiro que comera. Ele a encarou com intensidade e disse em seguida:
— Diga-me, senhorita Finnegan. Você é virgem?
Levou alguns segundos para que a mente de Fiona se recuperasse do choque e registrasse a pergunta.
— Como o senhor se atreve... — ela começou a falar, mas foi cortada por ele.
— Meu filho transava com você? Diz logo a verdade e a gente põe um ponto final nessa maluquice. Ele a pegava como um homem ou só queria saber de sua bundinha bem feita? Disseram que esse era o método preferido dele. Pelo menos foi o que disse um amigo dele, o Eton. Para o meu advogado. Na verdade, ontem — ele sorria enquanto ela empalidecia. — O que foi? O gato comeu sua língua? Não se preocupe, tenho outras formas de descobrir, Aquela lavadeira que você despediu três anos atrás, Margaret Gallagher, ela é muito faladeira. E, se tudo isso não der certo, nós sempre poderemos contar com uma autoridade médica independente para fazer um exame. Algum velho maluco que abra as suas pernas e olhe o que há entre elas.
— Seu cretino! — ela gritou, erguendo a mão para esbofeteá-lo. Mas ele era surpreendentemente ágil para um homem tão pesadão e agarrou o pulso dela, puxando-a para perto de si. Ela tentou se desvencilhar, mas ele a segurou com força.
— Quando você quiser blefar para alguém, tem que meter medo nele. Precisa fazer com que ele sinta que pode perder alguma coisa. Eu não tenho nada a perder. Amanhã haverá um escândalo nos jornais, mas isso passará. A Burton Tea sobreviverá. William Burton continuará honrando seu empréstimo. Eu vou reter o dinheiro que paguei pelas ações dele, e você, senhorita Finnegan — ele apertou o braço dela de tal maneira que ela achou que seria arrancado —, vai acabar desistindo de sua tola petição.
Ele a soltou e saiu da sala. As pernas de Fiona estavam bambas. Ela se dobrou sobre a mesa. Tudo acabado. Ela falhara. Profunda e completamente.
ADORMECIDA NUMA POLTRONA do quarto ao pé da lareira já apagada, Fiona contorceu e soltou um gemido plangente.
— Não... por favor... socorro... alguém me ajude...
Ela sendo perseguida por um homem sombrio que tentava pegá-la. Ele seguia por ruas sinuosas, entrando e saindo de prédios abandonados, até que ela correu na direção de um armazém sem via de escape. Foi rapidamente agarrada, apesar de suas violentas tentativas de se livrar dele, Ela gritou outra vez, esperando que alguém pudesse ouvi-la. Mas ninguém acudiu. Sentiu a respiração do homem em sua nuca e viu o brilho da faca vindo em sua direção. E aí ela ouviu uma batida surda e insistente. Tinha alguém lá fora. Alguém que vinha em seu socorro.
— Senhora Soames! — gritou uma voz. A senhora está aí?
— Eu estou aqui! — ela gritou. — Depressa!
— Senhora Soames, eu preciso falar com a senhora..
— Por favor, me ajude!
Mas era tarde. Ela sentiu uma dor ardente à medida que o homem cortava a sua garganta. Estava agonizante, impossibilitada de respirar, enquanto o sangue escorria em cascata pelo seu peito, quando ouviu de novo as batidas. E os de vidro se partindo. E logo ela se viu acordada, tremendo de medo e piscando frente à luz tênue da manhã chuvosa. Ela se levantou e olhou em volta para certificar de que estava viva e sozinha. Viu uma garrafa de vinho pela metade sobre a mesa à sua frente, junto com um lenço amarrotado. Olhou o seu corpo e se deu conta de que ainda estava vestida com a roupa com que tinha saido. Lembrou-se de ter afundado na poltrona, exaurida e dilacerada depois de ter saido do White‘s... horas antes... servindo-se de uma taça de vinho e logo sentou tomada por um pranto convulsivo. Devo ter chorado até dormir, ela pensou E depois tinha tido aquele horrível pesadelo. Ela tremia só de pensar nele. Aque homem sombrio, a faca, aquela enxurrada de sangue. Lembrava-se vagamente de que alguém tentara ajudá-la. Lembrava de uma voz, das batidas na porta de madeira. Ela fechou os olhos, tentando se acalmar, quando de repente se sobressaltou com novas batidas na porta.
— Senhora Soames! Fiona, você está aí? Sou eu, Neville Pearson. Por favor abra a porta!
Neville? Que diabos ele quer? Ela se perguntou. Olhou o relógio. Ainda não eram sete horas. Passou as mãos nos cabelos. Estavam despenteados.
— Um instante só! — ela gritou, enquanto ajeitava os cabelos. Ao levantar-se, ouviu o estalar de vidro sob seus pés. A taça do vinho. Olhou para a saia. Nela havia uma enorme mancha molhada. — Que droga! — esbravejou. — Já vou, Nevilie!
Atravessou correndo o quarto e a saleta, e abriu a porta. No corredor, três homens: o advogado, um outro homem elegantemente vestido beirando os cinquenta e poucos anos com um olhar ansioso e mais outro homem corpulento de cabelos negros, aparentando menos de trinta anos.
— Graças a Deus, você está em casa! — exclamou Neville, com uma expressão de alívio.
— O que está fazendo aqui? O que aconteceu? — ela perguntou.
— Podemos entrar?
— É claro. Desculpem — Fiona os fez entrar e os encaminhou para a saleta.
Neville olhou para ela.
— Você não dormiu?
— Não muito, eu...
— Não, imagino que você não conseguiu dormir — ele a interrompeu. — Não depois da noite passada. Que besteira que você fez, ir direto até a boca do leão. Mas também foi muito corajosa.
— Como pode saber... — ela começou a falar, mas Neville não a deixou terminar.
— Tomei a liberdade de pedir para trazerem o café da manhã. - ele disse. Deve estar chegando. Enquanto isso, eu quero apresentá-la a Giles Bellamy, o diretor do Banco Albion...
Fiona aprumou-se e cumprimentou o homem. Isso deve significar más notícias, ela pensou.
— ... e David Lawton, o advogado de Lord Elgin. David e Giles me falaram do eu encontro com o duque na noite passada. Vieram aqui para tratar da transferência das ações do seu finado marido.
— Nas condições que já discutimos, Neville — interveio rapidamente David Lawton. — A senhora Soames deve honrar a oferta que fez a Randolph Elgin. As ações em troca da ordem de pagamento. São as condições do duque.
— Sim, mas as coisas mudaram um pouco desde ontem, não é, David? — disse Seville, inflamado. Duvido que as ações estejam valendo muito agora.
Exausta, desconfiada e agora terrivelmente confusa, Fiona limitou-se a dizer:
— Esperem um pouco... do que estão falando? Ontem à noite eu estive com Elgin, o que os cavalheiros aqui parecem saber, e ele deixou bem claro que não tinha a menor intenção de me ceder as ações do Nick.
Neville deu uma piscadela para ela.
—Já viu os jornais matutinos?
—Não, não vi. Cheguei tarde e logo caí no sono, e eu...
— Olhe aqui — ele abriu a pasta, tirou meia dúzia de jornais de dentro e os jogou sobre a mesa. — Leia, minha cara — a cena foi interrompida por batidas à porta. — Ah, deve ser o café da manhã. Pode deixar comigo. Fique se Giles. Você também, David.
Fiona pegou o Times. Não fazia a menor ideia do que devia procurar. As manchetes dolorosas sobre a economia britânica? O relato sobre as perturbações na India?
— No pé da página — disse David Lawton, ajeitando-se na poltrona. Os olhos de Fiona desceram pela primeira página. E se depararam com a: ―Burton Tea à beira da ruína financeira‖. Ela se sentou, devorando cada linha da noticia. Neville retomou, indicando o caminho para dois garçom que empurravam o carrinho. O chá e a refeição eram servidos com decoro e Fiona nem se dava conta disso.
Segundo o artigo, a expectativa era que a Burton Tea declarasse falência no final do dia. A maioria dos seus clientes havia cancelado os pedidos. Além disso as instalações do seu armazém tinham sido destruídas por vândalos que o invadiram na noite anterior. E também se esperava que os acionistas em pânico inundassem a bolsa de valores com suas ações desvalorizadas tão logo ela abrisse:
Ela engasgou quando começou a ler o parágrafo seguinte:
Quando perguntado por que a Montague’s, um dos clientes mais lucrativos da Burton Tea, desistiu dos seus pedidos, Joseph Bristow, proprietário da popular cadeia de lojas declarou: “Depois de ter conversado com as autoridades que investigam o caso, eu me convenci da culpa de William Burton. Eu gostaria de afirmar com veemência que a Montague’s não vai mais negociar com a Burton Tea. Nossos lucros são honestos e nos norteamos pela moral de modo que não apoiamos fornecedores que não ajam da mesma maneira. E temos o apoio de nossos clientes. E quando digo que me sinto chocado e ofendido por ser informado de que um membro da classe de comerciantes possa ter se valido de meios tão ultrajantes para coibir uma justa causa trabalhista, eu falo não apenas por mim, mas por toda a equipe da Montague’s”
Como ele soube? Ela se perguntou, atordoada. Não saíra notícia alguma nenhuma edição dos outros jornais da tarde e ela duvidava que ele fosse leitor da Clarion. Como teria sabido? O artigo continuava.
Querendo que seus clientes reconhecessem neles a mesma ética conduzida pela Montague’s, muito varejistas londrinos, assim como hotéis e restaurantes, tiveram a mesma atítude.
Fiona leu os nomes: Harrods. Sainbury‘s. Home and Colonial Stores. Simpsons-in-the-Strand. Hotel Savoy Claridge‘s. Connaught. Inclusive as empresas marítimas Cunard e White Star. Ela encostou-se na poltrona, com a cabeça rodando.
— Continue a ler — disse David. — Ainda não leu a parte do envolvimento do sindicato. Que façanha, senhora Soames.
— Um bando de vândalos, uns arruaceiros — disse Giles Bellamy com desprezo. Fiona foi para a página dois e ficou sabendo que, na noite anterior, dezenas de homens com rostos escondidos atrás de máscaras e capuzes tinham entrado no Armazém do Oliver e jogado cada caixote, cada caixa e cada lata de chá no Tâmisa. Também destruíram as máquinas de empacotamento. Algumas gangues haviam entrado nas lojas das vizinhanças de East e South London e jogaram nas ruas todas caixas da Burton Tea que encontraram pelo caminho. Os comerciantes foram alertados a não vender o chá, e a população, a não comprá-lo. Citavam-se operarios e donas de casa que declararam que não tinham nada a dizer e muito menos a ver com o horrível chá da Burton Tea.
O artigo dizia que ninguém sabia quem eram os mascarados, mas que se suspeitava do sindicato dos doqueiros de Wapping. Peter Miller, o líder sindical, respondia às ações afirmando que o sindicato não aprovava qualquer tipo de ilegalidade e que repórteres fariam melhor se procurassem o verdadeiro criminoso, William Burton, e a ele, Miller, nem aos seus homens. O artigo concluía dizendo que os especialistas em operações financeiras previam uma queda no preço das ações da Burton Tea, estiada pela relutância de alguns comerciantes e do público em apoiar a companhia.
Fiona olhou para Neville, depois para Giles e depois para David. Ela já não estava confusa, já sabia por que estavam ali. Na noite anterior, ela sofreu e se desesperou profundamente. E até se convenceu de que tinha falhado. Mas agora estava óbvio que ela foi bem-sucedida. Estava prestes a obter as ações que queria. Graças a três homens: Joe Bristow, Peter Milier e Roddy O‘Meara. Roddy estava por trás daquilo tudo, ela sabia disso. Era bem provável que nem Joe nem Peter fizessem ideia do quanto haviam feito por ela, mas eles ficariam sabendo. Ela lhes diria. E lhes agradeceria. Assim que pudesse, faria uma visita a Peter Miller. Ele diria o que gostaria de ter dito para o Times, ou seja, que foram os seus homens que jogaram o chá do Burton no rio e que a ordem partira dele. E, logo que chegasse a Nova York, escreveria para Joe. Ele não quis vê-la e ela não o procuraria, para não se rebaixar pela segunda vez, mas ele a tinha ajudado muito e ela era grata por isso.
— Será que já podemos tratar de negócios? — sugeriu Giles, quebrando o silêncio.
— É claro — disse Nevilie. — Como eu já tinha começado a falar, Fiona, Lord Elgin autorizou David a fazer a transação que segundo ele você propôs, negociar as ações da Burton Tea, na posse de Nicholas Elgin, pela ordem de pagamento baancario no valor de trezentas mil libras. O David veio diretamente até mim, acompanhado pelo Giles, e depois viemos até aqui. Informei a esses cavalheiros que eu não sabia nada a respeito dessa oferta e que, mesmo que você a tivesse feito, eu a aconselharia a não realizá-la. Essas ações não estão valendo nada agora.
— Faça a transferência, Neville — disse Fiona.
— O quê? Mas por quê? As ações não valem nada! a
David Lawton inclinou-se para a frente da poltrona.
— A coisa não é bem assim, Neville. Não para a senhora Soames — ele disse— Você sabia que sua cliente já possui cerca de 22% da Burton Tea? Junto às ações do jovem Elgin, ela terá 52%. Você está olhando para a nova proprietária da Burton Tea. Ao nos conceder a ordem de pagamento, ela está liquidando a dívida de sua nova companhia.
— Isso é verdade — perguntou Neville.
— Sim — respondeu Fiona.
— É por causa do seu pai?
—É.
Ele balançou a cabeça. Agora ele é que se mostrava atordoado.
— Bem, então, cavalheiros, vamos começar? David, você está com as ações.
— Estou, sim.
David abriu a pasta, tirou um maço de certificados de ações e entregou para Neville, que se pôs a examiná-las.
— O duque perdeu uma fortuna — ele observou.
— O duque é um homem prático — replicou David. — Ele se deu conta de que o dinheiro dele praticamente se foi. Não quer repetir o erro perdendo dinheiro do Albion.
— Onde está a ordem de pagamento, Fiona? — perguntou Nevilie. — Está no cofre do hotel?
Ela balançou a cabeça em negativa. Enfiou a mão no bolso da saia e puxou uma folha de papel amassada.
— Está aqui — ela disse.
— No seu bolso? — ele perguntou, incrédulo. — Você podia ser morta enquanto dormia só por isso. Você é maluca?
— Depois das últimas vinte e quatro horas, é bem possível — ela disse. — Antes de entregá-la, tenho um pedido a fazer.
— O que é? — David quis saber.
— Eu gostaria que vocês dois, David e Giles, acompanhassem a mim e ao Neville até a Burton Tea. Vou confrontá-lo esta manhã. Assim que fizermos transação — ela disse. — A presença de vocês reforçará a minha reivindicação. Ele e a diretoria dele talvez não aceitem os fatos vindos de mim e do Neville, mas terão que aceitá-los do advogado do Elgin e do diretor do Albion.
— Isso está fora de questão — retrucou Giles Bellamy prontamente. — O Albion não deve se meter nisso. Tirar uma companhia de alguém é algo terrível.
— Não tão terrível quanto tirar a vida de um homem — disse Fiona baixinho.
David Lawton olhou-a longamente. Por um segundo o seu olhar duro abrandou-se, dando lugar a um olhar de admiração.
Termine o seu café, Giles, nós vamos acompanhá-los — ele disse.
— O QUE ESTÁ HAVENDO, HOMEM, POR QUE ESTAMOS PARADOS? — gritou Neville Pearson, debruçando-se na janela da carruagem. A chuva forte o forçou a voltar para dentro.
— Desculpe, senhor — gritou o condutor, com a voz quase abafada pela tempestade. A rua está congestionada! Não há como seguir. É melhor que os senhores sigam a pé daqui!
Eles pegaram os guarda-chuvas e as pastas. Já fora da carruagem, Fiona examinou o cenário à frente. A rua estava lotada de carruagens. Uma multidão acotoveIava-se confusamente, na tentativa de entrar no prédio da Burton Tea.
— Que gente toda é essa? — ela perguntou.
— Acionistas enfurecidos, E o meu palpite — respondeu David.
— E nós estamos a ponto de deixá-los ainda mais enfurecidos — comentou Nesorrindo. — Vamos. Vamos tirar essa companhia das costas de William Burton — e voltou para David e Giles. — Vocês conhecem o procedimento. Quem fala é a senhora Soames. Nossa presença aqui é observar a reivindicação dela.
Os homens assentiram. Estavam com as fisionomias sombrias. Fiona também, mas seus acompanhantes não notaram, porque ela escondia o rosto sob um véu de renda negro que pendia do chapéu. Combinava com os trajes de seda negra que vestia. Um traje de luto.
A medida que o grupo avançava, Fiona se via empurrada e cutucada de maneira rude. A chuva continuava forte e ela mal conseguia manter NevilIe em seu campo de visão.
— Senhora Soames? Onde a senhora está? — ele gritou, virando-se para procurá-Ia.
—Aqui!
Ele já estava quase na entrada. Ela se apressou para juntar-se a ele, abrindo caminho em meio a um mar de acionistas — alguns aos berros e outros atordoados com a confusão — que se acotovelavam nas portas, exigindo respostas do porteiro. De repente, ela sentiu muita pena daquela gente toda. Muitos estavam vivendo uma grande perda, talvez de todas as economias de uma vida inteira. Por causa dela. Ela, então, prometeu para si mesma que os recompensaria, tornando a Burton uma companhia rentável. Todos teriam o seu dinheiro de volta e com lucro.
Repórteres aflitos se misturavam aos investidores e perguntavam se eles consideravam William Burton culpado ou inocente. Ela avistou Neville no topo da escada entrada, gesticulando para o porteiro. Giles Bellamy estava atrás dele. Eles haviam planejado que Giles diria para o porteiro que queriam ver Burton. Não restava duvida de que Burton estava escondido dentro do prédio, mas eles tinham certeza de que Burton não ousaria se recusar a atender o diretor do Banco Albion. Contudo, quando já estava a ponto de se juntar ao grupo, uma virada na situação os pegou de chofre.
Um funcionário saiu esbaforido do prédio, pigarreou com nervosismo e berros avisou para a multidão que, em meia hora, o senhor Burton daria todas as informações necessárias numa reunião com os acionistas. A reunião ocorreria na sala da diretoria que, segundo o funcionário, era grande o bastante para acomodar todos, se eles se portassem de maneira ordeira, é claro. Os jornalistas não seriam bem-vindos, ele acrescentou, somente os acionistas. Ao ouvir essa afirmação, os reporteres trataram de esconder logo os blocos de anotações nos bolsos de seus paletós.
— Não é melhor falar com Burton a sós? — perguntou Neville, no instante — que Fiona o alcançava.
— Não — ela disse. — Vamos à reunião — ela se sentiu subitamente aliviada por não ter que se confrontar com o homem na sala dele, a mesma sala onde o ouviu debochando da morte de seu pai. A sala da diretoria estaria com muita gente, lotada, e a segurança seria maior.
Aos poucos, a multidão encheu a sala. Nela, via-se um balcão com um dossel à frente. Vinte mesas retangulares dispostas em quatro fileiras. Havia cadeiras nas mesas e mais cadeiras encostadas ao longo das paredes. Fiona e seus acompanhantes sentaram-se ao fundo. A sala ficou entupida. Com muita gente de pé. Um vozerio ansioso se espalhava pelo ambénte. Dez minutos se passaram, vinte.
Fiona não precisou nem olhar para sentir que William Burton tinha entrado na sala. Da mesma forma que uma gazela que está bebendo água percebe de repente a aproximação de um leão, ela sentiu a presença dele. Entrara por uma porta lateral e agora estava de pé no balcão, atrás do pódio, observando as pessoas com as mãos para trás. Ao vê-lo, ela tremeu por instinto. Foi apossada por um tremor incontrolável. Ela quase perdera a vida na última vez que estivera ali com aque homem. Com esforço, começou a combater o medo. Agora seria diferente, disse para si mesma. Ela não era mais uma adolescente ameaçada por dois assassinos. Agora ela era uma mulher feita e dona da situação.
A aparência dele estava melhor do que ela se lembrava. Bem-vestido, elegante, poderoso. O rosto envelhecera e era liso e completamente inexpressivo. Mesmo à distância, os olhos mostravam o mesmo negror e a frieza de uma cobra.
— Bom dia — ele disse abruptamente.
As conversas cessaram. Todos os olhos se voltaram para sua direção. Ele começou a falar. Sua voz estava calma e segura. Fiona se surpreendeu quando percebeu que se lembrava daquela voz e que nunca deixou de se lembrar dela, ouvindo - muitas vezes em seus pesadelos.
— Como vocês sabem, fui acusado de assassinato de um antigo funcionário meu, um líder sindical chamado Patrick Finnegan. Asseguro a todos vocês que essas acusações, feitas por Thomas Sheehan, de Limehouse, um notório chantagista, são completamente absurdas. Nunca prejudiquei nenhum dos meus operários, e sempre procurei melhorar a qualidade da vida deles com salários justos e condições decentes de trabalho.
Depois dessas palavras, os vestígios de medo que Fiona ainda sentia se desvaneceram e a familiar e velha raiva, que a fizera sentir-se impotente por tantos anos, se incendiou.
— Eu tive o infortúnio de conhecer o senhor Sheehan há dois anos — continuou Burton —, pouco depois de suas ameaças ao meu capataz de que ele acabaria com o Armazém do Olivers se eu não lhe pagasse cem libras por mês como proteção. Depois de ter sido informado de sua imposição, procurei deixar bem claro que jamais me submeteria a esse tipo de chantagem. Ele ameaçou destruir a minha propriedade e também a mim. Aumentei a segurança no armazém, mas fui ingênuo porque não fiz o mesmo numa velha fábrica de chá de minha propriedade. O senhor Sheehan a incendiou. Como sei disso? Ele mesmo me disse. E agora, encontrando-se em apuros com a polícia, ele faz essas acusações absurdas. Talvez para atenuar a sua participação no assassinato de Quinn.
A raiva de Fiona atingiu o seu limite, tornou-se um incêndio. Sentada ereta em sua cadeira, de olhos fechados e com as mãos estreitamente unidas sobre a mesa, ela se esforçava ao máximo para permanecer sentada, quieta e controlada.
Burton seguiu em frente, reconhecendo que o valor de suas ações tinham realmente despencado naquela manhã, mas assegurou aos investidores que ele recuperaria a confiança dos seus antigos clientes tão logo o seu nome fosse limpo, e pediu para que todos mantivessem as suas ações e a fé na Burton Tea enquanto ele a conduzia em meio a algo que, segundo ele, não passava de uma tempestade assageira.
Fiona olhou em volta e viu que as explicações e promessas dele eram prontamente aceitas por aquelas pessoas desesperadas por afirmações de que o dinheiro delas estava a salvo. Aquela gente acreditaria nas desculpas e promessas dele e esqueceria as acusações que lhe eram imputadas se isso significasse a sobrevivência dos seus investimentos. Bem, ela não permitiria isso. Eles teriam que ouvir a verdade.
Tão logo acabou de falar, Burton se colocou à disposição de perguntas. Uma a uma as perguntas o assolaram. Ele as recebia com maestria e com respostas sucintas, fazendo piadas aqui e ali para provocar o sorriso dos seus incuisidores. Dejois de ter dado umas vinte respostas, ele disse que só responderia a mais uma.
— Senhor Burton, segundo alguns rumores, o Banco Albion está exigindo o pagamento integral e imediato dos seus empréstimos. Isso é verdade? — perguntou um homem.
Burton riu.
— Onde obteve essa informação, senhor? De jornais sérios ou de tabloides baratos? O Banco Albion não fez isso. Falei com eles hoje de manhã cedo e me garantiram total apoio. E agora, se não há mais pendência alguma, preciso sair para cuidar da minha firma e recuperar o valor das suas ações, colocando-as lugar que deveriam estar.
Fiona ergueu- se em meio à forte iluminação daquela sala. Um repórter do Times escreveria depois que, naquele segundo, ela parecia uma Fúria moderna. negro anjo vingador.
— Ainda há uma pendência, senhor Burton — ela disse. Todas as cabeças voltaram na sua direção.
- A senhora é uma acionista? — ele retrucou com impaciência, para& pódio. — Essa reunião só está aberta para os acionistas.
— Sou, sim, na verdade, eu sou a maior acionista.
— É mesmo? E eu achando que era eu - disse Burton, extraindo risadas da audiência. Acho que não fomos apresentados. Qual é seu nome?
- Senhora Nicholas Soames — ela disse. — E acho que essa gente boa que aqui se encontra precisa ser informada de que, a partir desta manhã, eu detenho 52% da Burton Tea. E, como nova proprietária, exijo a sua demissão. Lmediatamente.
Burton encarou-a, incrédulo.
— É louca — disse Burton.
— Não louca, não, senhor Burton. E insisto que o senhor se retire.
— Isso é brincadeira de uma lunática. Retirem-na daqui! — ele gritou para os funcionários,
Neville Pearson levantou-se e pigarreou. Fiona notou que a multidão cochichava o nome dele. Ele era conhecido por quase todos os que ali estavam como um homem eminente.
- Senhor Burton, isso não é uma brincadeira — ele disse, alto e bom som — Minha cliente, a senhora Soames, é realmente a nova proprietária da Burton Tea. Detém 52%, como ela mesma disse — ele colocou duas pastas de couro sobre a mesa. — A documentação está toda aqui.
A compostura de Burton foi por água abaixo,
— Isso é impossível! — ele gritou. — Eu sempre fui muito cuidadoso com minha ações, senhor Pearson. Sempre fiz por onde para que nenhum investidor tivesse mais que 5%.
— Munro Enterprises... vinte mil ações. Chelsea Holding Incorporated... quinze mill ações — era Fiona entoando. — Seamus Consolidateci... quarenta mil ações.. Thames Group... dez mil ações.
Burton a encarou sem entender nada.
— São todas subsidiárias de uma companhia chamada GostoChá. Essas e muitas outras. Minha companhia, senhor Burton.
— Que seja, senhora Soames, mas o fato é que eu detenho a maioria das ações da minha própria companhia!
David Lawton levantou-se. Fiona viu que Burton o reconheceu.
— Não mais, William — ele disse. —Não é de hoje que você já não possui a maioria das ações. Mas desde que vendeu as quatrocentas e cinquenta mil ações para o meu cliente Randolph Elgin, muitos anos atrás. Essas ações foram mantidas em um fundo para o filho de Elgin, que faleceu nesta primavera. Nicholas Elgin, que usava o sobrenome Soames, casou-se sem o conhecimento da família. E deixou tudo, inclusive o seu fundo de investimento, para a esposa. O fundo foi transferido para ela nesta manhã.
— É verdade, William — disse Giles Belammy com toda a tranquilidade, enquanto se levantava da cadeira. — A senhora Soames agora é a proprietária da Burton Tea.
O recinto se alvoroçou. As pessoas se levantaram. Um bombardeio de perguntas berradas para Fiona e seus acompanhantes. Burton desceu do balcão e foi abrindo caminho pela multidão, empurrando as pessoas, as mesmas pessoas que pouco antes ele tentava tranquilizar.
— Giles, o que significa tudo isso? — ele perguntou.
— A documentação está toda aqui, William. Pode olhar — disse Giles. Ele abriu uma pasta e tirou os certificados. Os que Fiona tinha trazido de Nova York. Depois, abriu a segunda pasta. A que continha as ações de Nick. Agora ações dela.
Burton pegou um por um todos os certificados. Depois de ter examinado todos, ele deu alguns passos para trás, segurou a cabeça em desespero e disse:
— Não pode ser. Não pode ser — fechou os olhos com força, ignorando gritos, perguntas, enfim, toda a comoção ao redor. Depois, reabriu os olhos, olhou para Fiona e gritou. — Quem é você?
Fez-se silêncio na sala. Fiona levantou o véu e encarou os terrificantes olhos negros dele. A princípio, a fisionomia dele só refletia confusão, mas, de tanto encará-la, ele a reconheceu.
— Você! — ele exclamou. Fez-se um silêncio sepulcral.
— Lembrou-se de mim, senhor Burton? — ela disse. — Sinto-me lisonjeada. Eu me lembro do senhor. Lembro perfeitamente bem. Lembro que uma noite estava em seu escritório e ouvi o senhor e o senhor Sheehan discutindo sobre o assassinato do meu pai. Eu tinha ido ao seu escritório para implorar por uma indenização pelo então chamado acidente sofrido pelo meu pai. Eu e meu irmão não tínhamos dinheiro nem para comida nem para alugar um cômodo. E lembro de mais coisas ainda. O senhor se lembra daquela noite? Meu pai era um líder sindical. Lutava para que os doqueiros ganhassem um pêni a mais por hora. Por uma pequena quantia extra para a comida dos filhos e para um agasalho para ir ao trabalho. Um pêni a mais. E o senhor... — ela se calou, tomada pela emoção. A raiva enchera seus olhos de lágrimas ácidas. Ela podia sentir na garganta o gosto amargo delas — ... o senhor não abriu mão. O senhor Sheehan estava contando como tinha provocado a morte do meu pai. E o senhor ria. Nos meus pesadelos ainda escuto a sua risada, senhor Burton. Lembro que tentei sair do seu escritório e tropecei. Vocês me ouviram. O senhor e Sheehan. E vieram atrás de mim. O senhor Sheehan tentou me matar naquela noite. Mas tive mais sorte que meu pai. Escapei. Mas nunca consegui escapar das lembranças. Prometi a mim mesma que faria o senhor pagar por tudo que fez. E o senhor já está pagando. A Burton Tea é minha.
Instalou-se outra vez o caos no recinto. A multidão não parava de falar e de gritar. Alguns enxugavam a testa com um lenço. Outros se acotovelavam para verificar os certificados. Os repórteres chamavam Fiona aos berros. Ela não os ouvia. Os olhos de Burton estavam cravados nos dela. Ela sustentava o olhar, desafiadoramente. Havia entre os dois uma raiva pura: uma escuridão, quase tangível.
— Sua cadela. Eu devia ter matado você quanto tive chance — ele gritou. — As- sim, você já estaria a sete palmos, enterrada como o miserável do seu pai.
— William... por Deus! — exclamou Giles Bellamy. Ele recuou da mesa, constrangido.
— Senhora Soames! — gritou um repórter. — Senhora Soames, aqui!
O clarão branco de um flash rasgou o ar com um cheiro de fumaça. Alguém tinha conseguido entrar com uma máquina fotográfica. Fiona pestanejou, cega pelo clarão. Isso era tudo de que Burton precisava. Tirou uma faca do bolso do paletó com gesto rápido e avançou contra ela.
David Lawton percebeu o movimento, agarrou Fiona pelo casaco e puxou-a para trás. A lâmina não cortou sua garganta por um triz. Mas cortou o casaco na altura da gola e penetrou em sua carne.
— Alguém o detenha! — gritou Neville.
Brandindo sua faca, Burton correu pela sala e desapareceu atrás do balcão, saindo pela porta lateral. Um grupo de homens correu atrás dele, mas não pôde passar pela porta trancada. Alguns sairam para caçá-lo dentro do prédio enquanto outros se aglomeravam em torno de Fiona.
David a fez sentar-se numa cadeira. Com seu lenço e o de Giles, ele tentou estancar o sangue que escorria do ferimento, mas o tecido branco em suas mãos já estava todo empapado.
— Eu preciso de mais lenços... uma camisa... qualquer coisa! — ele gritou. Diversos lenços foram estendidos em sua direção. Ele juntou um punhado e o pressionou em cima do ferimento. Fiona gritou quando ele fez isso. Era uma dor dilacerante.
— Temos que levá-la para o hospital, agora! — ordenou Nevilie. — Giles, pegue a carruagem...
— Não vai dar tempo — retrucou David —, a rua está congestionada. A carruagem vai levar muito tempo pra chegar aqui. Nós mesmos temos que carregá-la. E rápido. Vamos!
David pegou-a pelos braços enquanto Neville abria caminho pela multidão que olhava, curiosa. Giles recolheu os certificados agora manchados de sangue e os seguiu. Conseguiram chegar à calçada e seguiram em frente, gritando pela carruagem. O condutor os avistou e os pegou na Mincing Lane.
— Para o London Hospital, rápido! — gritou Giles. Ele entrou na carruagem, seguido por Nevilie. Lá dentro, ajeitaram Fiona no banco. Neville a apoiou com o braço. Ela fechou os olhos, lutando contra uma forte tonteira. Seu peito parecia estar em chamas. Ela sentiu o calor viscoso do sangue empapando suas roupas. Sentiu que Davi subia na carruagem e que o veículo partia e acelerava.
— Depressa, homem, depressa! — gritava Giles da janela.
— Senhora Soames... Fiona... a senhora consegue me ouvir? — perguntou David, debruçado sobre ela.
— ... ouço... — ela balbuciou, zonza.
— Aguente firme, por favor! Já estamos quase chegando!
— Ela desmaiou! — disse Giles. — Ai, meu Deus, ela está mais branca que um lençol, Neville!
— Fiona! — gritou Neville. — Você consegue me ouvir? Diga alguma coisa!
— Ela tem família em Londres? — perguntou David. Alguém que deve saber o que houve?
— ... diz pro papai, David — ela murmurou. — Diz pro papai que nós ganhamos...
OH, JESUS! Olhe só pra você! — exclamou Roddy à entrada do quarto do hospital, segurando o quepe e devastado pela visão da pálida figura no leito.
Fiona abriu os olhos e soltou um sorriso tímido para ele.
— Eu estou bem, tio Roddy.
— Vim logo que soube. Um dos meus homens entrou correndo na delegacia com a notícia. Não posso acreditar. Meu Deus, filhinha, estou horrorizado! Pensei que você tinha sido assassinada. Mas que diabos fui fazer? Eu não devia ter deixado você ir sozinha!
— Eu não estava sozinha, tio Roddy, eu...
— Eu devia ter ido com você.
— Mas estou bem...
— Claro, você está com a cara escrita da saúde. Quer que eu pegue alguma coisa pra você? Um copo d‘água? Está com sede?
— Estou morrendo de sede.
Ele atravessou o quarto e encheu um copo com a água da jarra que estava na mesinha ao lado do leito.
— Tome. O que os médicos disseram? — ele perguntou.
— Que perdi um pouco de sangue, mas que vou ficar boa — ela disse.
pegando o copo da mão dele.
— E por que você tem que ficar no hospital?
— Eles querem que eu fique um ou dois dias em observação. Até que eu recupere as forças.
— Como está se sentindo? — ele afagou o rosto dela. Não gostou de vê-Ia tão pálida. Não gostou das olheiras profundas sob os olhos. Nem das manchas de sangue nos curativos.
— De vez em quando eu me sinto tonta.
— Burton não vai ficar impune, eu juro por Deus que não vai. Quando ele for encontrado, eu mesmo, pessoalmente, cortarei a cabeça dele.
— Ele ainda está solto?
Sinto dizer que sim. Antes de vir pra cá, fui até a Mincing Lane e falei com o homem no comando. Vasculharam o prédio inteiro da Burton Tea, e nenhum sinal dele. E também não está na casa dele. O pessoal do centro está achando que ele vai fugir para o continente. Se é que já não foi. Mandaram alertas para todas as ferrovias. E ainda ofereceram uma recompensa.
Roddy estava frustrado por não ser o encarregado do caso, mas Mincing Lane fazia parte do centro de Londres e pertencia à jurisdição policial dessa região. Ele era membro da polícia metropolitana, submetida às ordens do Home Office e não da delegacia do centro, e policiava o resto de Londres.
Fiona esticou-se até a mesinha. Ela gemeu ao pôr o copo no lugar.
— Dói? — perguntou Roddy.
— Um pouco. O doutor disse que o corte foi profundo — ela riu. — Para mim, acabaram os decotes.
— Fiona, você já se deu conta da sorte que teve? Se estivesse um pouco mais próxima... se não fosse puxada a tempo... se a faca fosse um tiquinho de nada mais comprida... — ele balançou a cabeça. — Eu estaria visitando você no necrotério e não no hospital.
— Mas o senhor está no hospital — ela disse. Sorriu de novo. — Nós conseguimos, tio Roddy.
— Você conseguiu, mocinha. Só Deus sabe como, mas você conseguiu.
— Só consegui graças a sua ajuda. O senhor fez umas visitinhas extras na noite passada, não foi?
— Uma ou duas.
— Onde posso encontrar o Peter Miller?
— No Lion, o velho pub que seu pai frequentava.
— O senhor falou com o Joe Bristow, não falou?
— Falei, sim.
Fiona balançou a cabeça em silêncio e Roddy viu uma dor profunda nos olhos dela, uma dor que não tinha nada a ver com o ferimento no peito. Ainda dói. Depois de todos esses anos, ainda dói até mesmo falar de Joe. Ele se lastimou por ter dito para o rapaz que ela estava no Savoy. E desejou muito que Joe se mantivesse longe dela.
— Eu não quero vê-lo — ela disse. — Ele me fez um grande favor e eu deveria agradecer-lhe pessoalmente, mas não posso. Escreverei para ele. Quando chegar em casa. Estou em dívida com ele.
Roddy assentiu com a cabeça. E já ia pedir para que ela fizesse um resumo dos acontecimentos do dia quando eles ouviram uma batida à porta. Era uma freira com um véu branco.
— Como você está se sentindo, querida? — ela perguntou para Fiona.
— Bem, obrigada. Muito melhor do que quando cheguei aqui.
— Fico feliz por saber disso. Aqueles outros cavalheiros a encontraram?
— Cavalheiros? — perguntou Fiona.
— Os entregadores.
— Que entregadores? — perguntou Roddy, abruptamente.
— Os dois entregadores da floricultura. Eu os encontrei zanzando pelo corredor, procurando pelo quarto da senhora Soames. Dei o número do quarto para eles.
— Falei que a senhora Soames não pode receber visitas. Nenhuma — disse Roddy. Ele tinha pedido para que a irmã só permitisse o acesso de policiais. Estava passando por cima da polícia do centro, mas não se incomodou com isso.
— Não venha me fazer sermão, senhor! — disse a mulher, ofendida. — Eles eram bons rapazes. Muito educados. Estavam com um enorme arranjo de rosas. O que eu podia fazer? Tirar as rosas deles? Eu não conseguiria!
Roddy levantou-se imediatamente.
— Como é que eles eram?
— Eu... não sei — respondeu a irmã, atordoada. — As rosas eram tão lindas que só tive olhos para elas e não prestei muita atenção nos rapazes.
— A senhora não consegue se lembrar de nada? Nem uma coisinha só?
— Tinham cabelos escuros, eu acho... e deviam ter uns vinte anos de idade. Talvez até menos. Eram grandões. Corpulentos.
- A senhora acaba de descrever metade dos valentões de Whitechap. – pensou Roddy.
— Essa porta pode ser trancada? — ele perguntou.
— Pode, sim — ela disse, mexendo no bolso. — Aqui está a chave.
— Fique aqui com a senhora Soames. E tranque a porta quando eu sair. O número do meu distintivo é zero-quatro-dois-três. Antes de abrir a porta pra mim, pergunte pelo meu número.
— Tio Roddy, o que há de errado? — perguntou Fiona.
— Nada, eu espero — ele disse —, mas mantenha esta porta trancada.
A medida que atravessava o corredor na direção da escada, Roddy sentiu as células do seu corpo anunciando o perigo. No final do corredor, ele empurrou a porta de acesso e desceu a escada em espiral. Não viu nada, mas ruído de passos apressados e o som de uma porta batendo em seguida. Não deu para ele chegar a tempo no final da escada e, quando lá chegou, saiu pela porta lateral que dava para um beco onde se deixava o lixo do hospital. Ofegante, ele correu até a saída do beco e lá seus olhos experientes observaramum grupo de pedestres na Whitechapel Road, procurando por dois homens que se encaixassem na descrição da irmã. Ele viu alguns: dois entrando num pub, outros dois embarcando num ônibus, e mais dois conversando com um carroceiro. Nenhum deles parecia suspeito. Alguns estavam às gargalhadas ou sorrindo; todos, despreocupados.
Talvez fossem mesmo entregadores, ele pensou, sentindo-se ridículo. E talvez tivessem se perdido. Ele se virou o tomou o caminho de volta ao beco, perguntando-se se o sexto sentido dele, a intuição da qual tanto se orgulhava, tinha sido afetado pelos acontecimentos do dia, enviando assim alarmes falsos. Ele estava se sentindo péssimo pela maneira que havia tratado a freira e por ter alarmado Fiona.
Quando passava por uma grande lata de lixo de metal, ele viu alguma coisa vermelha. Virou a cabeça para enxergar melhor aquilo que acreditava serem tapetes ou Iençóis ensanguentados. Em vez disso, viu rosas. Pelo menos umas dúzias. Não rosas secas de um arranjo velho, mas flores frescas e maravilhosas. Pegou o arranjo, à procura de um cartão que indicasse de onde tinham vindo até mesmo o endereço da floricultura. Mas não havia nada.
Isso não importava. Ele não precisava ler um endereço para saber quem tinha mandado... e de quem os dois rapazes recebiam ordens. O pessoal da delegacia do centro estava errado. Burton não tinha saído de Londres. Ainda estava na cidade. E pretendia terminar o que havia começado.
ALGUM ENDEREÇO para o condutor, sargento O‘Meara? — perguntou o garoto do hotel.
— Não. Deixe que eu mesmo falo com ele. Faremos uma corrida com ele, eu e a senhora Soames.
— Está bem, senhor. Vou pegar agora as coisas mais leves. E depois volto pra pegar os baús.
O rapazinho enfiou uma caixa de chapéus debaixo do braço e pegou duas malas. Roddy segurou a porta para ele e trancou-a. Percorreu a saleta empilhada de bagagem e olhou para a porta do quarto de Fiona. Fechada. Fiona estava tirando uma soneca. Ele deixou que ela descansasse até que toda bagagem descesse.
Ela estava extenuada porque tinha arrumado as malas. Saíra do hospital naquela manhã e ainda convalescia.
Roddy já estava achando que a tinha sobrecarregado demais. Sua preocupação de que ela tivesse as frágeis reservas de energia drenadas pela insistência dele de que se fizesse essa mudança, mas sabia que não havia outra escolha. Dois dias depois de ter tentado assassinar Fiona, William Burton continuava foragido. A polícia vasculhava a cidade inteira atrás dele. Alguns policiais faziam plantão na casa dele, na Mincing Lane e no Banco Albion. Diversos jornais estamparam o retrato de Bu rton e fizeram apelos que o público informasse o paradeiro dele se o visse, mas ninguém o tinha visto.
Ninguém sabia do paradeiro de Burton, mas, se ele quisesse, poderia encontrar com facilidade. Diversos jornais publicaram matérias sobre ela. Os leitores queriam saber tudo sobre a jovem destemida que vingara a morte do pai. Alguns jornais chegaram a informar que ela estava no Savoy. Burton só precisava pegar um jornal e lê-lo. E embora os quartos fossem privados, o saguão era aberto ao público. Qualquer um podia entrar. Centenas de pessoas faziam isso todos os dias. Umas poucas moedas nas mãos de um carregador inescrupuloso ou de alguma camareira podiam comprar sem dificuldade informações sobre os hóspedes do hotel.
Roddy decidiu que Fiona ficaria muito mais segura em alguma casa. Ele entrou em contato com uma imobiliária em Knightsbridge e disse para a proprietária que precisava de um lugar que fosse completamente seguro, e que precisava disso com urgência. Ela encontrou uma casa no mesmo dia, uma ótima casa, toda mobiliada, em Mayfair, situada no meio de um terreno pavimentado e cujo único acesso era pela frente. Pertencera a um diplomata que fora recentemente transferido para a Espanha. também solicitou a Alvin Donaldson, o policial superintendente que estava encarregado da investigação de Burton, que colocasse dois policiais à entrada da casa.
Fiona achava que Burton já estava longe, uma vez que Londres tornara-se um lugar perigoso para ele. Ela disse que Roddy estava fazendo uma tempestade em copo d‘água, mas ele foi inflexível. Burton tinha assassinado o pai dela simplesmente porque viu nele uma ameaça para sua companhia. O que então seria capaz de fazer com alguém que de fato lhe tirara a empresa? Ele a mataria num piscar de olhos. Só precisava de uma oportunidade.
Quando ele se certificava de que não ficara nada esquecido na saleta, ouviu uma batida à porta. Agarrou por instinto o seu cassetete. Presumia que era o garoto que voltava para pegar os baús, mas não queria arriscar.
— Quem é? — ele gritou, com a mão na maçaneta. Fez-se uma pequena pausa. e depois veio a resposta.
— Joe Bristow.
— Que merda — disse Roddy para si mesmo, abrindo a porta em seguida.
— Olá, Roddy. Ela... ela está?
Roddy balançou a cabeça em sinal negativo.
— Já saiu — ele mentiu, apontando para as malas —, partiu para a América. Hoje de manhã. — Ele não tinha a menor intenção de deixar que Joe Bristow encontrasse Fiona. Não depois que ela mesma lhe disse que não queria revê-lo.
Joe se mostrou desolado.
— Não posso acreditar que a perdi — ele disse. — Tentei vê-la no hospital depois de ter lido nos jornais o que houve, mas não permitiam visitas. Nem mesmo se me identificasse.
— Eu sei, foram ordens minhas — disse Roddy. — Minha preocupação era que o Burton ou algum dos seus capangas tentasse pegá-la. Direi para ela que você esteve aqui, Joe. Transmito suas saudações.
— Eu queria falar com ela pessoalmente — retrucou Joe. — Pode me dar o endereço dela em Nova York?
Roddy pensou por um segundo, tentando encontrar uma boa desculpa para não fazer isso, mas decidiu ser honesto com ele.
— Joe, ela já sabe que tivemos um encontro, sabe de tudo que você fez por ela e esta profundamente agradecida. Mas não quer vê-lo Ela mesma me disse. Eu sinto muito, rapaz.
Joe olhou para o chão e de novo para Roddy.
— Poderia pelo menos dizer que vim vê-la?
— Faço isso, sim.
— E você pode dar isso para ela? — Joe estendeu seu cartão.
— Eu posso enviar para ela.
— Obrigado. Tchau, Roddy.
— Até mais, Joe — Roddy fechou a porta e pôs o cartão no bolso.
A porta do quarto se abriu. Fiona surgiu com uma fisionomia sonada e a roupa amassada.
— Pensei ter ouvido vozes — ela disse. — Tinha alguém na porta?
— Na porta? Não. Ninguém. Só... hum... só um vendedor ambulante querendo empurrar sua mercadoria.
Fiona o olhou, espantada.
— Um vendedor ambulante dentro do hotel?
— Eu bem que disse que a segurança aqui deixa a desejar — ele retrucou, mudando rapidamente de assunto.
FIONA OLHAVA AS cruzes de madeira fincadas na terra. Seus túmulos estavam abandonados e cobertos de mato. Duas delas estavam tortas. E uma, quebrada na base. A quarta estava descolorida e tomada pela ferrugem dos pregos. Ela só conseguia ler um fragmento do nome: Patrick Finnegan.
Virou-se para o seu acompanhante, um grandalhão de East London que Roddy contratara para ser seu condutor e seu segurança. Ele carregava um ancinho, uma pá, uma colher de jardinagem, uma tesoura de jardim, um regador e um saco de fertilizante.
— Pode deixar tudo aí, Andrew — ela disse.
— Trago o seu cesto, senhora Soames? E o resto das flores?
— Você me faria esse favor?
Ela pegou os pacotes que levara e os desembrulhou. Eram mudas de roseiras, de rosa-chá. Passou uma tarde inteira percorrendo floriculturas em busca de mudas perfeitas. O cemitério era pequeno e a carruagem de Andrew tinha estacionado do outro lado do portão. Pouco tempo depois, ele estava ao lado dela outra vez, com prfmulas coloridas e um cesto de vime. Dispôs as coisas no chão e manteve-se de pé ao lado, com as mãos nos quadris.
— Eu gostaria de ficar sozinha por um tempo, Andrew. Será que você podia esperar na carruagem? — ela perguntou.
Ele franziu a testa.
— O sargento O‘Meara disse que eu não podia deixá-la sozinha.
— Ficarei perfeitamente bem. Ao contrário do sargento O‘Meara, duvido muito que William Burton ainda esteja em Londres, e, mesmo que estivesse, dificilmente estaria aqui no cemitério, você não acha?
— É mesmo. Está bem, então. Se precisar de mim, a senhora grita.
Ela pegou o ancinho e começou a remexer na terra. Era um dia claro de agosto, o céu estava todo azul e o sol batia nas costas dela. Era tão bom se movimentar e usar outra vez o corpo. Os pontos tinham sido retirados no dia anterior. Ela se exercitara muito pouco depois que Burton a tinha mandado para o hospital, cerca de três semanas antes. Já estava irritada com as restrições de Roddy e ela queria ar fresco, liberdade e um tempo para si.
Roddy não gostou nada desse passeio. Ele estava convicto de que Burton continuava em Londres, embora ela achasse que isso era impossível. Onde é que ele poderia se esconder? Alvin Donaldson a tinha visitado naquela manhã para informar o andamento da investigação, mas tudo seguia como antes. A casa o escritório de Burton e também o banco em que ele mantinha o seu dinheiro encontravam-se sob vigilância permanente. Donaldson achava que a falta de pistas sobre o paradeiro de Burton, junto ao fato de que ninguém o tinha visto durante aquelas semanas, indicavam que ele devia estar com uma soma de dinheiro vivo e que o teria usado para fugir pelo Canal. Os franceses também estavam em perseguição naquele momento; a prisão dele era uma questão de tempo.
Durante a visita de Donaldson, Roddy estava junto com ela. Ouviu atentamente tudo o que homem disse e admitiu que a teoria parecia razoável, mas mesmo assit ele insistia para que ela não saísse de casa. Como tinha algumas obrigações para essa dia, ele pediu que ela esperasse até o dia seguinte para que pudesse acompanhá-la. mas ela se recusou. Estava certa de que William Burton não ia mais obscurecer a su vida. Não queria que ele arruinasse nem mais um só dia de sua vida.
Ao cabo de urna hora, Fiona já tinha tirado o mato e preparado a terra dos quatro túmulos. Então plantou as rosas e depois as prímulas, e em seguida encheu o regador numa torneira próxima e regou o solo. Estava com as mãos e a saia sujas de terra, mas não se importou. No dia seguinte, arrumaria um jardineiro para cuidar dos túmulos, mas agora queria fazer isso sozinha. Tinha que ser assim. Ela ficara fora por muito tempo.
Ela fazia o seu trabalho e tinha o cemitério quase só para si. Duas velhas passaram para levar flores aos seus mortos e a cumprimentaram em voz baixa. Depois foi a vez de uma jovem mãe vestida de preto e acompanhada de seu filhinho. Por fim, ela viu dois rapazes que caminhavam de mãos nos bolsos. Eles paravam aqui e ali, examinando as lápides. Ela os olhou de relance quando eles apontavam para alguns túmulos. E quando se virou para olhá-los pela segunda vez, eles estavam perto. Muito perto.
— Ficou bonito o que você fez com as rosas — disse um deles.
— Muito obrigada — disse Fiona, observando os dois. Eram jovens, de compleição forte.Vestiam calças justas, camisetas, coletes e bandanas vermelhas. Seus rostos deixavam à mostra que eram briguentos: um deles tinha uma cicatriz, e o outro, um nariz visivelmente quebrado.
— Estamos procurando o avô dele — disse um deles, apontando para o outro —, mas até agora nada.
— Qual era o nome dele? — perguntou Fiona,
— Ele o quê?
— O nome dele. Qual é o nome que está na lápide?
— Smith, Tom Smith. Igual ao meu — disse o segundo rapaz.
Fiona olhou para os túmulos próximos e nenhum apresentava o nome ―Smith‖.
— Acho que ele não está por aqui — ela disse.
— Quem é esse? — perguntou Tom Smith, apontando para o túmulo do pai dela.
— Patrick Finnegan — respondeu Fiona.
— Ah, então é isso — disse Tom, aproximando-se dela para espiar. E se aproximou tanto que Fiona já podia sentir o cheiro de cigarro nas roupas e de cerveja no hálito dele, e por um segundo ela sentiu medo. Roddy já tinha lhe falado dos homens que foram atrás dela no hospital e que, segundo ele, eram capangas do Burton. E se fossem os mesmos homens? Foi nesse momento que ela avistou Andrew. Ele estava bem próximo, observando cada movimento dos rapazes. Eles também o viram. Tom Smith acenou com o boné. Andrew acenou de volta com a cara fechada e os braços cruzados à altura do peito.
— Bem, acho que é melhor continuar procurando. Ele deve estar por aí, em um lugar. Claro que o homem não saiu andando por aí, não é? — disse Tom,
— Tchau, madame.
— Tchau — ela disse, sentindo-se uma tola. Não passavam de dois rapazes amistosos que não tinham a menor intenção de feri-la. A mãe é que devia ter pedido para que eles ajeitassem o túmulo do avô ou qualquer coisa assim. As recomendações de Roddy já estavam fazendo com que ela tivesse delírios. Ela resolveu tira-las da cabeça. Voltou ao trabalho e depois de alguns minutos, com a saída dos rapazes do cemitério, Andrew retornou à carruagem.
Quando acabou de cuidar dos túmulos, ela estendeu uma toalha no chão, tirou uma garrafa de chá e alguns sanduíches da cesta e sentou-se junto à família. Enquanto comia, ela narrava tudo o que tinha acontecido para eles. Falou de Nova York, de Michael e Mary e da grande família que ganhara. Falou do seu negocio de chá. Falou de Will e Nick. Disse que talvez eles não reconhecessem mais Seamie porque ele tinha virado um autêntico americano. E que tinha certeza de um dia ele acabaria descobrindo alguma coisa importante. Talvez a cura de uma doença, ou um dinossauro, ou quem sabe até um país. Ele está bonito, ela era tão bonito quanto o Charlie. E acrescentou que eles deviam se orgulhar dele da mesma forma que ela.
E, no fim, ela contou para eles como tinha tomado a companhia de Burton. Ele está arruinado, ela disse, vai para a prisão assim que for capturado e depois enforcado.
— Sei que isso não basta, papai — ela descansou a mão sobre o túmulo do pai. — tomara que sirva para alguma coisa. Espero que isso o ajude a descansar em paz — lágrimas brotavam em seus olhos à medida que ela prosseguia. — Eu sinto tanto a sua falta, papai. Sinto saudade de você todos os dias. E o amo tanto. Dê um beijo na mamãe, no Charlie e no neném, está bem? Diz pra eles que os amo muito.
Permaneceu sentada em silêncio por mais alguns minutos, observando o sol do início da tarde que penetrava na ramagem das árvores e se espalhava sobre a grama, e levantou- se para sair, depois de ter prometido que não levaria mais anos para voltar.
Chamou por Andrew e os dois levaram todas as coisas para a carruagem. Ele ajudou-a a entrar no veículo, fechou a porta e se pôs a guiar os cavalos pelas ruas estreitas de Whitechapel de volta para Mayfair. Fiona espiava pela janela, reconhecendo as ruas e as construções. Viu homens que voltavam para casa depois trabalho e os ouviu chamando pelos companheiros ou saudando os filhos. Viu a cervejaria onde Charlie tinha trabalhado e se deu conta de que não ficava distante da Montague Street. De repente, ela se viu tomada por uma vontade irresistível de olhar sua velha rua, sua casa, o lugar em que tinha crescido.
— Andrew! — ela berrou, abrindo a pequena janela frontal do seu comparrimento. — Pare, Andrew!
A carruagem se deteve.
— O que é, senhora Soames? Alguma coisa errada?
— Eu quero descer. Vou caminhar um pouco. Eu volto sozinha para casa.
— A senhora não pode fazer isso, madame. O sargento O‘Meara disse que eu não podia perdê-la de vista. Disse que eu tinha que levá-la ao cemitério e depois voltar direto para casa.
Fiona mal conseguia ouvi-lo. Tinha visto Whitechapel outra vez. E ouvira seus ruídos e sentira seu aroma. Whitechapel acenava para ela.
— O sargento O‘Meara nunca saberá se você não contar para ele, Andrew — ela disse, — Por favor, não se preocupe comigo. Estarei em casa antes de escurecer — e já estava fora da carruagem em seguida, segurando sua bolsa, sob os protestos do pobre homem.
Satisfeita por estar usando saia e blusa velhas, ela se embrenhou pela Brick Lane. Feliz porque a barra da saia estava suja de terra e seu cabelo tinha se soitado enquanto ela trabalhava na terra; ela o prendera num coque malfeito. Estava adaptada ao lugar; ninguém olhava duas vezes na sua direção. Ela seguia apressada em meio ao fluxo de trabalhadores.
Já estava sem fôlego quando chegou à esquina da Montague Street. Lá estava sua casa. Exatamente como antes. Com os tijolinhos vermelhos manchados de fuligem, as venezianas pretas e os degraus de entrada impecavelmente limpos. E, a cena distância, a casa de Joe. Por um momento, ela se sentiu outra vez com dezessete anos; voltava para casa depois do trabalho na fábrica na expectativa de que ele estivesse lá fora, sentado nos degraus da escada da casa dele, esperando por ela.
A rua estava cheia de gente. Ela caminhava entre pais apressados para chegar em casa para o chá. As mães chamavam aos berros pelos filhos. Menininhas de rabo de cavalo, meninas mais velhas carregavam seus irmãozinhos. Um bando de garotos jogava bola. Um deles deu um chute mais forte e a bola entrou pela anela aberta da casa 6. Uma barulheira de alguma coisa se quebrando. ―Oh, meu bule de chá!‖, gritava uma mulher dentro da casa. O homem da casa saía disposto a brigar. Mas os meninos já tinham sumido de vista, dispersados como uma revoada de pardais.
Ela se deleitava com o barulho e a agitação. Na 5th Avenue, ninguém gritava sim. Pelo menos na parte nobre da rua, onde ela residia. Nenhuma criança jogava bola nem pulava corda. Não havia risadas de mulheres conversando na rua, ninguém rodeava uma jovem grávida com alegria. Nenhum velho exibia periquia em gaiolas.
Aquelas ruas abrigavam tanta vida, tanta emoção. Será que ela percebia isso antes? Seu sonho desde menina era escapar daquele lugar. Por quê? Ela nunca conseguiu ser tão feliz como fora ali. Naquela casinha humilde, sem um quarto só para ela e com o banheiro no quintal. Ela não tinha nada, nada mesmo, e ainda assim possuía tudo.
Fiona chegou ao final da rua e olhou para trás. Quase conseguia ouvir o pai mirando ao voltar das docas para casa. E sua mãe gritando por Charlie, de mãos nos quadris. E já estava quase vendo um rapaz alto, louro e surpreendentemente bonito caminhando em sua direção, com as mãos nos bolsos e o mundo inteiro dentro dos olhos.
Continuou caminhando até atingir a Commercial Road. Ela sabia que ali podia pegar uma carruagem de aluguel até Mayfair. A noite já estava caindo, já se avistavam umas poucas estrelas no céu. Mas não fez isso, porque seus pés a puxaram para o sul, na direção de Wapping e do rio. Ela conhecia o caminho de cor e, embora um ou outro pub tivesse trocado de nome ou alguma loja estivesse pintada de outra cor, tudo lhe era familiar.
A High Street de Wapping estava quase vazia quando ela a cruzou. O Armazem do Oliver ainda estava lá. Era estranho pensar que agora ela era a dona dele. Ao lado, tal como ela se lembrava, descortinava-se a estreita passagem que levava até a Old Stairs. Ela manteve-se de pé no topo da escada e a visão do seu amado, tranquilo e suave rio londrino escurecendo sob o céu do anoitecer tirou o seu fôlego. Ela nunca o viu tão bonito.
Desceu rapidamente a escada e sentou-se no último degrau, descansando o queixo sobre os joelhos, tal como fazia quando era menina. Observava o balanço dos barcos embalados pela maré e a silhueta negra das garças contra um céu azul-escuro. Milhares de lembranças inundavam sua mente. Ela se lembrou de quando era pequena e sentava ali com o pai, aninhada ao lado dele, devorando um saquinho de batatas fritas ou um pedaço de torta de carne enquanto ele apontava os barcos com orgulho e lhe dizia de onde vinham e o que carregavam. Lembrou de estar sentada ali com Joe quando já era uma mocinha, e lembrou-se da última vez que esteve ali, na noite em que ele partiu seu coração. Onde estão os cacos?, ela se perguntou. Será que ainda estão aqui? Enterrados na areia?
Ela tentou lembrar-se de outras ocasiões, de épocas mais felizes. Lembro- se então das vezes em que conversavam sobre a loja que eles teriam, da primeira vez que foi beijada por ele e da primeira vez em que ele declarou o amor que sentia por ela. Tudo isso tinha acontecido ali, pertinho do rio. Ela fechou os olhos e sentiu a brisa morna do verão acariciando-lhe o rosto, enquanto ouvia o doce barulho das águas. Exatamente como acontecia em sua meninice, sentiu-se confortada pelo rio. Ele a restaurou. Inspirou-a.
Ela voltou seus pensamentos para o futuro e deixou de lado o passado. Agora tinha uma nova empresa de chá para comandar, novos mercados a conquistar. Um dia após a sua saída do hospital, Fiona convocou uma reunião com todos os empregados para informar que quem chefiava agora ela. Falou do GostoChá e garantiu para todos que tinha a perspicácia comercial e as forças necessárias para tornar Burton Tea — agora a GostoChá de Londres — mais forte, melhor e mais lucrativa que antes. Os que quiserem permanecer serão bem-vindos, ela disse. E os que fossem fiéis a William Burton que saíssem. Ninguém quis sair.
Ainda havia muita coisa para aprender. Sobre a companhia. Sobre suas acomodações, tanto em Londres como em outros lugares. E sobre o mercado inglês e o mercado europeu. Ela sabia que precisava de Stuart Bryce ali o mais rápido possível. Já tinha falado com ele pelo telefone, logo depois de ter tomado posse da companhia. Ainda podia ouvir a voz dele: ―Meu Deus, Fiona! Você fez o quê?‘ Ele quase caiu para trás, quando soube que agora tinham uma nova companhia de chá para administrar, uma companhia completa, com escritórios, um armazém na docas e uma plantação na India. Não lhe pairavam dúvidas de que, com a aquilo sua posição da Burton Tea, ela e Stuart podiam tornar o GostoChá não apenas a maior companhia da América, mas também de todo o mundo.
Excitada com essa ideia, ela descalçou as botas, tirou as meias e enfiou os pé na margem enlameada e cheia de seixos do rio. Caminhou um pouco, pegou um punhado de pedras e começou a arremessá-las na água, o mais vigorosa e rapidamente possivel.
— O QUE VOCÊ ACHA, ALF? — PERGUNTOU JOE, mantendo uma concha de grãos de café de seu capataz.
Alf Stevens inalou e assentiu com a cabeça.
— Muito, muito melhor que o último lote que recebemos. Nenhum indício de bolor. Cor brilhante. Casca macia. Uma colheita de excelente qualidade. Eu diria que é da plantaçao de Oscar Sanches. Do norte de Bogotá.
— Alf, é surpreendente — disse Joe, dando um tapinha nas costas do tinha sido capataz por mais de trinta anos no Morocco, um armazém na High Street, em Wapping, e era capaz de distinguir tanto o país e a região como a plantação onde o café fora cultivado, isso só com uma cheirada e uma olhada — Temos que arranjar um novo fornecedor. Estou com o Márquez. O ultimo lote que me mandou estava uma porcaria. Pedi para que os rapazes da torrefação uma boa quantidade na segunda-feira de manhã.
— Deixe comigo, eu recebo.
— Você é ótimo. Eo que mais? Algum problema depois do incidente no Armazem do Oliver? — perguntou Joe, referindo-se ao estrago feito no Armazém do Oliver depois que Burton foi acusado pelo assassinato de Paddy Finnegan.
— Nenhum. Quer dizer, nada.
Joe percebeu a hesitação na resposta do homem.
— O que foi?
— Nada chefe. É... é bobagem — disse Alf, embaraçado.
— Diz logo.
—Não sei se é do seu conhecimento, mas, quando invadiram o Oliver, os caras arrancaram as portas de escoamento. Pois é, alguns dias atrás, eu voltava pra casa de noite e olhei sem querer pra cima do prédio. Sei que pode parecer maluquice, mas vi um homem em pé lá em cima. Num dos escoamentos. Fiquei tão assustado que tropecei num paralelepípedo e quase caí de cara no chão. Quando olhei de novo, ele tinha sumido.
— Como era esse sujeito?
— Palido, muito pálido. Cabelos negros. E me lembro muito bem dos olhos dele. Eram como o rio à meia-noite. Se eu acreditasse em espíritos e em todas essas baboseiras, diria que era ele, o Finnegan. Vindo do além para assombrar o lugar.
Joe lançou um olhar cético para Alf.
— Você está dizendo que viu um fantasma?
Alf se pôs na defensiva.
— Não estou dizendo nada.
— Talvez fosse o vigia. Fazendo a ronda.
— Eles estão sem vigia. O último saiu depois que o lugar foi depredado. — ergueu as mãos. — Sei o que você está pensando, chefe, mas eu estava tão sóbrio quanto o papa, eu juro.
- Eu mesmo vou dar uma olhada quando sair daqui. Se encontrar esse homem, mando lembranças por você.
Alf não entendeu a brincadeira de Joe.
— Ele não me pareceu um tipo sociável retrucou o velho. — Se vê-lo, aconselho que continue andando.
Alf e Joe terminaram a inspeção da nova remessa de café, escolhendo o sacos aleatoriamente e examinando o conteúdo. Já satisfeitos, Joe se preparou para sair e lembrou Alf de que os torrefadores viriam na segunda. Alf resmungou, dizendo que não precisa ser relembrado e que Joe não pensasse que ele estava de miolo mole só porque tinha visto espíritos.
Na descida pela High Street rumo ao oeste, Joe deu uma parada para observar os pisos superiores do Armazém do Oliver. Não viu nada. Somente as entrada de escoamento. Algumas fechadas, outras abertas. Espíritos, ele pensou, balançando a cabeça em negativa. O único problema fantasmagórico de Alf está no vidro de uísque que ele guarda no bolso traseiro. Continuou a observar o prédio e se perguntou por que William Burton não tinha consertado o estrago, mas de repente se deu conta de que Burton não era mais o dono do prédio. Agora pertencia a uma mulher chamada Soames. Fiona Finnegan Soames.
Ele tentou afastar esse pensamento da cabeça. Doía muito pensar que Fiona esteve ali, em Londres, e que até aquele momento, dez anos depois e já viúva ainda não queria saber dele. Lera nos jornais notícias sobre ela. Tinha ido cheio de esperanças ao quarto dela no hotel. Mesmo na noite em que Roddy o procurou para pedir ajuda, ele não conseguiu parar de ter esperanças. Se ao menos pudessem conversar. Se ao menos ela lhe permitisse dizer o quanto ele lamentava e que nunca deixara de amá-la. Ele faria qualquer coisa no mundo para ter uma segunda chance com ela. Qualquer coisa para ter o perdão dela.
Mas isso era em vão. Ele a tinha abandonado quando ela mais precisava dele. Ele a deixou lutar sozinha na miséria de Whítechapel. Deixou-a à mercê de Bowler Sheehan e de William Burton. Ela podia ter um grande coração, mas não grande o bastante para perdoar o que ele tinha feito. E pelo que tinha deixado fazer. Nenhum coração seria tão grande assim.
Enquanto observava o armazém, a porta do Town of Ramsgate abriu-se. Um homem saiu, pôs o chapéu e tomou seu rumo. Os odores habituais do pub entraram em suas narinas, odores de fumaça, cerveja e comida. Joe se deu conta de estava com fome. Decidiu entrar para comer alguma coisa. Isso afastaria aqueles pensamentos.
Pediu haddock e batatas fritas, e uma cerveja enquanto aguardava a refeição. Teve que ficar segurando o copo, os homens se espremiam como sardinhas no bar.
Procurou uma mesa, mas todas estavam ocupadas. Era uma noite agitada de sexta-feira. O lugar estava entupido de operários e de marinheiros. Ele perguntou para a garçonete se havia alguma mesa vazia no segundo andar, e ela disse que estava bem pior. O melhor que ele podia fazer, segundo a garçonete, seria pegar a comida e comer lá fora, na Old Stairs. Se ele quisesse, ela embrulharia a comida.
Old Stairs. Que ironia, Era tudo o que ele precisava para tirar Fiona da cabeça. Esvaziou o copo, pegou a comida — um pequeno embrulho engordurado e quente — e saiu. Ao sentar-se em um degrau no meio da escada, ele se viu invadido por um turbilhão de lembranças. Lembrou-se dos olhos azuis dela arregalando-se de deleite à medida que ele se aproximava. Lembrou-se do aroma que ela exalava depois do trabalho, um aroma de folhas de chá mesclado com o odor de pele suada. Lembrou-se do calor da mão dela na sua. E se viu tomado por uma velha e familiar tristeza.
Esquece, Joe, todos diziam. Sua mãe. Cathy. E também Jimmy. O passado se foi. Siga em frente.
Mas, para quê? Ele tinha conhecido o que havia de mais precioso — amor, amor de verdade — e o jogara fora. O que lhe restava? Uma vida de lembranças. De sonhos extintos e memórias dolorosas. Ainda se lembrava de como um dia o trabalho na Peterson‘s, o dinheiro, a aprovação de Tommy, tinham sido tão importantes para ele. E agora nada na vida significava tanto para ele — nem mesmo o sucesso que obteve e o dinheiro que ganhou — como poder se sentar nos degraus daquela escada com a garota amada. Somente eles dois, com nada mais que sonhos e algumas libras numa lata de chocolate.
Alf está certo, ele pensou, enquanto desembrulhava a refeição. Existe um fantasma aqui. Um espírito solitário de coração partido. O fantasma de tudo que podia ter sido e nunca foi.
Olhou para os barcos que balançavam com suavidade em suas amarras. A noite já tinha caído e os raios prateados da lua riscavam as delicadas ondas. O céu estava todo estrelado. Sua estrela favorita, a mais brilhante, piscava magicamente. Brilhava com uma intensidade nunca vista. Seus olhos se voltaram para a base da Old Stairs. Quantas vezes ele tinha ido ali só para encontrá-la, em cada degrau, observando as ondas e sonhando?
De tanto olhar ao longo da escada, ele se deu conta de que havia alguma coisa no último degrau lá de baixo. Esticou-se para enxergar melhor. Era um par de botas pretas. Botas femininas. Um pé estava apoiado corretamente no chão enquanto o outro, esquerdo, tombava ao lado. Nas proximidades se via au parecido com meias.
Ai, meu Deus, ele pensou, alarmado. Tomara que nenhuma moça tenha se suicidado. Ele sabia que os suicidas daquele rio sempre deixavam as botas em suas margens, esperando que alguém as achasse e ficasse com elas. Um pequeno e melancólico legado. Seus olhos percorreram a margem do rio. A sua esquerda, a cerca de vinte metros de distância, ele acabou por vê-la. Uma mulher esguia, descalça, de pé ao lado das estacas. Estava de costas, mas ele podia ver que ela atirava pedra no rio, uma atrás da outra, vigorosa e rapidamente. O luar reluzia em seus cabelos negros toda vez que ela se abaixava para pegar mais pedras. Ele se sentiu aliviado. Nenhuma pessoa transtornada estaria jogando pedras no rio.
Imóvel, ele se perguntou o que ela estaria fazendo no rio àquela hora. Aquele lugar não era seguro para uma mulher. Ele a contemplava, hipnotizado pelos seus movimentos graciosos e seguros. Notou que os cabelos dela tinham se soltado do coque e que a barra da saia se arrastava na lama. De repente, um pássaro aquático levantou voo. Ela virou a cabeça quando ouviu o barulho da ave.
Ele se levantou. A refeição caiu do seu colo e rolou pela escada.
— Não pode ser — ele murmurou.
Era um truque. Era aquele lugar, com todas as lembranças que guardava. Mas seus olhos lhe diziam que não era um truque. Ele desceu a escada e caminhou na direção dela. Cheio de esperança. Cheio de medo. Já tinha feito isso antes. Muitas vezes. Ele se via pego pela visão de alguma mulher esguia de cabelos negros e a chamava por impulso, mas ela acabava se virando com um olhar questionador e friamente polido, um olhar que nunca, nunca era igual ao olhar dela.
Ele se aproximou lenta e cuidadosamente, para não assustá-la. Ainda se lembrando da garota que um dia já estivera ali com a barra da saia suja de lama e que prometia que um dia seria tão grande quanto Londres.
Ela ouviu os passos dele sobre as pedras, virou-se e olhou. E arregalou os olhos. E ele então ouviu o que deixara de ouvir durante dez longos anos... a sonoridade da voz de Fiona dizendo o seu nome.
— Joe? Meu Deus... é você?
FIONA FICOU PETRIFICADA. NÃO OUVIA MAIS NADA, nem as risadas bêbadas que ecoavam de Town of Ramsgate, nem o barulho surdo de um barco que passava. Não sentia mais nada, nem a água do rio que batia em seus pés, nem a brisa da noite que sacudia sua saia. Não via mais nada, nada além de Joe.
— É você de verdade? — ela sussurrou, tocando o rosto dele com os dedos sujos da lama do rio.
Aquele rosto, o único que ela conhecia de cor, continuava o mesmo, ainda que diferente. Com algumas rugas e a estrutura óssea mais desenvolvida. Mas os olhos eram os mesmos, tão azuis, tão lindos, mas agora estavam tristes. Bem mais tristes do que ela se lembrava.
Ele tocou o rosto dela e o segurou, mantendo-o seguro, e o calor da palma de sua mão disse para ela que era ele de verdade. Ele a puxou para si e beijou-a, e ela ouviu um zumbido que vinha de dentro dela, um estalo que se estendeu até se assemelhar a um lago congelado que se partia. O cheiro da pele, o sabor da boca e a sensação do corpo dele comprimido no dela a tomaram por inteiro. Era como se aqueles infindáveis dez anos — dez anos que ela passou o desejando e amando, apesar da dor e da raiva, dez anos de solidão dilacerante, de vazio na alma e no corpo — tivessem se desvanecido no espaço em poucos segundos.
Emoções poderosas, conflitantes, enclausuradas por uma década, irromperam numa perigosa torrente, puxando-a para baixo, ameaçando afogá-la, dilacerá-la. Ela tentou se afastar, mas ele a segurou pelos pulsos.
— Não! Não vou deixar você ir. Nunca mais. Você está me ouvindo? Está?
Ele gritava. Desesperada, ela se debateu para se soltar, furiosa porque não conseguia. E depois ela o agarrou, puxou o paletó, a camisa e arranhou a pele dele, sem se importar se o machucava. Ela enterrou o rosto no peito dele e aos soluços repetiu diversas vezes o nome dele.
Ele a segurou com força, mantendo-a colada em seu corpo.
— Não vá, Fiona. Por favor, não vá — ele sussurrou.
Ela procurou os lábios dele, ansiosa por um beijo. Sabia que não devia fazer isso. Era loucura. Era um erro. Ele não lhe pertencia. Mas ela não podia evitar. Ela o desejava desesperadamente. A camisa dele estava desabotoada. Ela enfiou a mão por dentro. A emoção de sentir o coração dele batendo sob a palma de sua mão fez as lágrimas irromperem de seus olhos. Era tudo o que sempre quis, ela pensou, o coração dele nas minhas mãos. E o meu nas dele.
Emergiu um antigo desejo, um desejo enterrado no fundo dela. Ela queria sentir a pele dele contra a sua. Senti-lo dentro dela. Precisava tocar a alma dele mais uma vez e saber que ele tocava a sua, tal como fizeram uma vez na cama do apartamento de Covent Garden. Ele também queria o mesmo. Ela via nos olhos dele.
Sem palavras e sem perguntas, ele a suspendeu no colo e carregou-a para debaixo do cais. Já próximos às estacas, fora da visão de quem quer que fosse, ele abaixou-a e colocou-a sobre uma velha lona. Deitou-se ao lado e ajeitou-se bem junto dela. Tal como sempre fazia. Ela sentia o odor do rio lamacento e pesado e ouvia o rumor da água que batia suavemente na margem enquanto ele abria sua blusa e seu corpete. Ele tocou com delicadeza na cicatriz dela com um misto de revolta e tristeza em seu rosto. Ela tentou puxar a blusa para cima da cicatriz, mas ele segurou sua mão e beijou a carne viva. Beijou o ombro, a garganta e os seios. Estava sendo gentil, mas ela não queria que fizesse assim. Queria a marca das mãos, dos lábios e dos dentes dele em sua pele. Para se lembrar dessa noite. No dia seguinte e para sempre.
Ela puxou o rosto dele para bem perto do seu, enlaçando-o pelo pescoço. Beijou-o com fúria, querendo devorá-lo. Ela sentiu que ele remexia na própria calça e levantava sua saia até a altura dos quadris, lutando com as roupas íntimas, e depois o sentiu entre suas pernas e por fim dentro dela. Preenchendo-a. Completando-a.
— Eu te amo, Fiona. Oh, Deus, como eu te amo...
Ela balançou a cabeça. Não queria ouvir essas palavras. Ele a amava e ela o amava, e isso não adiantava nada, como sempre.
— Faz amor comigo, Joe. Por favor, faz amor comigo — ela murmurou.
Mas ele não fez. Continuou olhando para ela. Mesmo na escuridão, a paixão nos olhos dele era violenta e amedrontadora.
— Diz que me ama, Fi — ele disse.
— Não me peça isso. Não é justo.
— Diz. Diz, Fiona. Diz.
Ela fechou os olhos.
— Eu te amo, Joe — ela disse com a voz entrecortada. — Sempre o amei.
Ele logo se moveu, penetrando-a cada vez mais fundo, enredando-a pela cabeça com os braços, dizendo repetidas vezes que a amava, até que ela se fundiu nele com pele e ossos e tudo dentro dela. Ela gritou o nome dele e, quando terminaram, começou a chorar, sacudida por um pranto que a tomou por inteira.
— Sshhh — ele murmurou, — Está tudo bem, querida, está tudo bem. Não chore... — ele saiu de dentro dela, apoiou-se no cotovelo e a puxou para si.
A falta dele, a súbita sensação de vazio tornou tudo pior. Aquilo não estava certo. Ela o queria dentro dela outra vez. Não queria que aquilo acabasse. Não queria vê-lo se levantar e ir embora de novo. Queria ficar como estava; os dois juntos, unidos. Uma brisa soprou do rio. Ela estremeceu. Ele a puxou para mais perto.
— Fica comigo esta noite — ele disse. — Vem pra casa comigo.
Fiona se perguntou se tinha ouvido direito.
— Ir para sua casa com você?
Ele beijou a testa dela.
— Sim, agora mesmo.
— Você está maluco?
Ele olhou intrigado para ela.
— Claro que não. O que há de errado? Quem a impede de ir?
— Quem me impede? — ela repetiu, com um tom ferido. — E a Millie, Joe? E sua mulher?
— Millie? — ele repetiu, confuso, arregalando os olhos em seguida. — Droga, você não sabe. E claro que você não sabe...
— Não sei o quê?
Ele ergueu-se.
— Fiona, eu e Millie nos divorciamos já faz quase dez anos.
— Vocês o quê?
— Nos divorciamos antes do primeiro aniversário do nosso casamento. E depois tentei encontrar você. Fui até Nova York. Procurei você em tudo quanto é canto.
— Você foi a Nova York? — ela disse baixinho.
— Em 89. Pouco antes do seu casamento.
De repente, ela entendeu tudo.
— Meu Deus — ela murmurou.
— Eu acho... — disse Joe, ajeitando a blusa dela —, acho que nós devíamos ter conversado primeiro.
JOE SE ENCOSTOU DE COSTAS NA PARTE DA PAREDE DE TIJOLOS do Armazém do Oliver que dava para a Old Stairs. Ele balançou a cabeça e riu.
— O que é? — perguntou Fiona, mastigando uma batata frita. Estava sentada ao lado dele, comendo a refeição que ele tinha trazido do pub.
— Você. Esta noite. Tudo é tão fascinante.
Ela sorriu, encabulada.
— Um sonho.
— Um sonho que eu quero que nunca acabe.
— Eu também.
Ele olhou para o vazio, ciscando as lascas de um tijolo quebrado, e de repente puxou-a de novo para si e beijou-a. Ela riu, impossibilitada de retribuir o beijo porque estava de boca cheia com as batatas, Ele também riu e voltou a olhar para o vazio. Era como se estivessem se conhecendo naquela hora. Em dado momento, um procurava a mão do outro para logo se entreolharem longamente. Encabulados e desajeitados. Tão Çntimos e ao mesmo tempo tão estranhos.
Eles se sentaram e conversaram na Old Stairs durante quase uma hora. O coração de Fiona se dilacerava só de pensar que ele tinha estado em Nova York e que eles já podiam estar juntos havia dez anos, mas eram anos que já tinham passado. Varridos como folhas na água. E nada poderia trazê-los de volta. Mas agora eles estavam ali. Juntos. Sentados à beira do rio outra vez.
Ela contou tudo o que tinha vivido, desde o dia em que ela a deixou até algumas horas antes, quando visitou os túmulos de sua família e saiu caminhando até o rio. E ele também contou tudo para ela. Tudo sobre o rompimento de sza casamento. Sobre a época que viveu no estábulo em Covent Garden. Sobre os momentos em que imaginava o paradeiro dela. O começo do seu negócio. Sua ida para Nova York para encontrá-la, sua decepção, e os anos de solidão que se seguiram. Disse que nunca deixou de pensar nela e que nunca deixou de amá-la, e ela disse o mesmo para ele. A conversa foi marcada por momentos de lágrimas e silêncios. Não era fácil falar dessas coisas. Ainda havia tristeza e raiva.
Mas também houve alegria. Fiona ainda não conseguia acreditar que Joe estava ali, sentado ao lado dela. O homem que ela amava, o homem que ela desejava. mas também um velho amigo dela. O rapaz que tinha crescido com ela, ninguém no mundo a conhecia melhor que ele.
Agora, ela o olhava enquanto Joe olhava para as águas do rio. De repente, cs olhos dele mostraram-se sombrios. Em poucos segundos, perderam o brilho,
— O que há? — ela perguntou, subitamente temerosa de que ele estivesse arrependido do que tinham feito. Com medo de que ele não a quisesse. Já achando que tinha imaginado tudo que ele disse debaixo do cais. — O que há de errado?
Ele pegou a mão dela.
— Nada — disse. — E tudo.
— Você está arrependido pelo que fizemos?
— Arrependido! Por fazer amor com você? Claro que não, Fiona, não me arrependo disso. Eu estou com medo. Medo de que você não me queira. Medo de nunca mais ver você depois que sairmos daqui. Por tudo que fiz dez anos atrás. exatamente aqui...
— Joe, você não precisa...
— Preciso, sim. Eu lamento tanto, tanto. Por tudo. Por toda a dor que causei a você.
— Está tudo bem...
— Não está, não. Nunca ficou tudo bem. Não desde aquele dia que subi esta escada e a abandonei. Eu magoei você naquele dia, sei que magoei, mas você só perdeu a mim. Eu me feri um milhão de vezes mais fundo porque perdi você. A partir daquele dia, eu a quis tanto, e ao longo de todos esses dias sofri tanto por você. Ter que viver sem você todos esses anos... — ele engoliu em seco e Fiona viu lágrimas nos olhos dele. — Foi como viver numa caverna fria, escura e sem esperança — segurou outra vez as mãos dela. — Eu daria tudo para voltar atrás e desfazer tudo que fiz, mas não posso. Mas, se você deixar, farei o possível e o impossível para deixá-la feliz. E reafirmo o que disse há pouco. Eu te amo, Fi. Do fundo do coração. Você acha que podemos recomeçar? Você acha que pode me perdoar?
Fiona olhou para aqueles olhos que ela conhecia tão bem, olhos que ela amava tanto. Eles estavam cheios de pesar, cheios de dor. Ela queria tanto varrer aquele sofrimento.
— Eu já perdoei.
Joe a tomou nos braços, mantendo-a colada nele. Ficaram assim por longo tempo, até que ele disse:
— Vem pra casa comigo.
Ela já ia aceitar quando um par de pernas surgiu no topo da escada e uma voz berrou...
— Ah, você está aí, sua garota estúpida!
Era Roddy e ele estava uma fera.
— Que diabos há de errado com você, Fiona? O que é que você tem na cabeça? Já são quase dez horas! O Andrew me procurou na delegacia algumas horas atrás para dizer que você tinha saído sozinha. Fiquei esperando você na sua casa em Mayfair. Morrendo de preocupação! Pensei que o William Burton tinha colocado as garras em você. Por onde andou?
— Eu estava aqui... eu estava... hum... caminhando na beira do rio. Catando pedras.
— E ela também achou um par — disse Joe baixinho.
Fiona engasgou e começou a tossir. Já tinha esquecido o senso de humor cruel dele. Das expressões descaradas que ele usava para implicar. Quando por fim recuperou o fôlego, ela começou a rir histericamente.
— Isso não é nada engraçado! — gritou Roddy. —Já falei umas quinhentas vezes o quanto é perigoso sair sozinha!
— O senhor está certo, não é nada engraçado — disse Fiona, lutando para conter o riso. — Desculpe, tio Roddy. Eu não queria deixá-lo assustado, mas estou bem. Ninguém me perturbou. Vim de Whitechapel até aqui e encontrei o Joe, e perdemos a noção do tempo.
— Sim, eu posso ver — ele grunhiu.
— Senta aqui com a gente — ela disse, apontando o degrau abaixo. — Estive em segurança a tarde toda. De verdade.
— Depende do que você chama de segurança — ele disse, olhando para Joe. Desceu a escada ainda resmungando e juntou-se aos dois. Fiona lhe ofereceu o que havia sobrado da refeição. Ele comeu uma batata, depois outra e, por fim, o haddock. — Estou morto de fome. Não comi nada até agora. Passei um tempão procurando por você. Já estava prestes a chamar metade da força policial de Londres.
— Vou pegar uma refeição para o senhor. Fique aqui. Volto logo — ela disse, levantando-se. Subiu rapidamente os degraus e foi até o pub, ansiosa para escapar da ira de Roddy. Se tivesse sorte, ele já estaria de cabeça fria quando ela voltasse.
Joe e Roddy se puseram a observá-la enquanto ela saía. Quando já estava fora de vista, eles se entreolharam e desviaram o olhar para as águas escuras do rio.
— Voltou para Nova York, né? — disse Joe.
— Se eu vir uma só lágrima nela por sua causa, eu juro por Deus... Você não verá.
Fez-se um minuto de silêncio e Roddy disse em seguida:
— Ela precisa ser examinada da cabeça. Vocês dois. Só pode ser loucura, sentados aqui, mastigando tira-gostos engordurados, perto deste rio horrível, quando os dois têm dinheiro suficiente para comer num lugar decente.
RODDY EXAMINOU o corpo sem vicia e coberto de
sangue de Bowler Sheehan estendido no pátio da prisão de Newgate. Uma navalha ainda aberta jazia no chão, ao lado do cadáver.
— Suponho que ninguém assumiu a culpa, não é? - ele disse para o guarda.
O homem bufou.
Estão dizendo que foi ele mesmo que fez isso, senhor.
Roddy ergueu uma sobrancelha.
— Ah, então ele pegou uma navalha que certamente não tinha quando chegou aqui e cortou a própria garganta. Bem no meio do pátio?
O guarda sentiu desconforto.
— Sabemos que um deles fez isso, mas ninguém quer falar.
— E os outros guardas?
— Nenhum deles viu nada.
— Que delícia — desabafou Roddy. — Como se eu já não tivesse abacaxis o bastante pata descascar. Agora essa confusão. — Ajoelhou-se perto do corpo de Sheehan e examinou o corte na garganta. Ele se perguntou, por quê? Por que matá -lo Alguns outros prisioneiros deviam ter contas a ajustar com ele, mas nenhum bandido seria louco em arriscar o próprio pescoço com um crime assim. Só uma coisa faria um homem correr esse tipo de risco: dinheiro, uma boa soma de dinheiro. Alguém pagou um dos prisioneiros ou um dos guardas para matar Bowler.
Antes de sair da prisão, Roddy deu uma passada na sala do diretor para agradecer-lhe por tê-lo avisado da morte de Sheehan. Ele fora até Newgate porque o diretor sabia que ele tinha um interesse especial pelo caso e deveria saber de qualquer acontecimento relacionado ao prisioneiro — mesmo que fosse para dizer que o prisioneiro tinha cortado a própria cabeça. Ele encontrou Alvin Donaldson na sala do diretor. Este também fora informado da morte de Sheehan por conta do envolvimento com William Burton e de uma possível pertinência com seu caso.
— Você acha que é coisa do Burton, não acha? — Donaldson perguntou para Roddy, enquanto os dois saíam da sala.
— Esse pensamento passou pela minha cabeça — respondeu Roddy.
— O que você precisa para se convencer, O‘Meara? O cara fugiu. Todos estão certos disso. Estamos trabalhando com os franceses. Já enviamos fotos. Assim que o localizarem, eles o prendem.
— Você acha que o cara está veraneando em outro país só porque ele não apareceu na casa dele ou na Mincing Lane? — disse Roddy. Ele não gostava de Donaldson. O homem era muito seguro de suas opiniões. Muito convencido.
— Não, acho que ele se evadiu porque não pode ficar aqui. Há uma recompensa pela cabeça dele. Você sabe disso. A senhora Soames está oferecendo mil libras para quem o encontrar — retrucou Donaldson. — Suponhamos só por um momento que ele tenha se abrigado em alguma hospedaria... você acha que nenhum hóspede o entregaria? Por mil libras? Eles o agarrariam num piscar de olhos.
Roddy se manteve calado.
— Você sabe que eu estou certo. E se me perguntar...
— Não vou, não.
— Você devia estar de olho no seu amigo Sid Malone. Andam dizendo que ele queria se vingar de Sheehan pelo assassinato de Quinn.
— Diga alguma coisa que eu não saiba.
— Eu também preciso lhe dizer que estamos removendo os homens que montavam guarda na casa da senhora Soames.
— O quê? Por que diabo vocês estão fazendo isso? — perguntou Roddy, furioso.
— O chefão acha que o Burton escapou. E, se escapou, a senhora Soames não precisa mais ser protegida. Não podemos deixar homens parados sem um motivo.
— Não acho que isso seja uma boa ideia. Não acho mesmo. E se vocês estiverem errados?
Donaldson sorriu.
— Acontece que não estamos.
Ele saiu em seguida e deixou Roddy bufando de raiva no vestíbulo da prisão. Na saída, ele consultou o caderno de visitas, mas não reconheceu nome algum. Alguém que tinha sido bastante esperto para contratar o assassinato de Sheehan também seria esperto para não assinar o seu nome verdadeiro naquele caderno.
Enquanto caminhava de volta à delegacia, ele pensou repetidas vezes nas palavras de Donaldson. Sua intuição dizia que o responsável pela morte de Sheehan era o Burton, mas a intuição não passa de uma sensação. Sua lógica dizia outra coisa. Talvez Burton não estivesse mais em Londres. Quanto mais se deixava invadir por esse pensamento, mais Roddy percebia o quanto queria que ele estivesse. Por mais confiante que Donaldson se mostrasse, o fato é que, se Burton tivesse fugido para fora do país, seria muito difícil, quase impossivel prendê-lo.
Ele faria uma visita a Fiona mais tarde e contaria o que houve com Sheehan. Ela gostaria de ser informada. Ele diria que o suspeito mais provável era o Sid Malone.
Era muito difícil conviver com a ideia de que talvez Burton nunca fosse preso e acabaria não pagando pelo que fez. Mas quem sabe não era hora de aceitar isso.Talvez fosse ele, e não Donaldson, que não abria mão de suas opiniões pessoais.
JOE SORVIA GOLES generosos de vinho enquanto
contemplava a mulher nua que cochilava tranquilamente junto a ele. Ela estava deitada de lado. Com os cabelos negros soltos e esparramados sobre o travesseiro branco. Um lençol cobria a maior parte do seu corpo, menos seus adoráveis braços e suas longas pernas. Ela era a coisa mais linda que ele já tinha visto na vida.
Acabara de fazer amor com ela. Na cama dele. Com a luz e o calor da lareira iluminando e aquecendo a pele dela. Ela não tinha chorado como chorara antes no rio, e ele se sentia feliz por isso. Ele não queria que ela chorasse outra vez. Agora, ela se aninhava nos lençóis da cama, corada e sorrindo, suspirando lindamente de olhos fechados. Era sábado, uma semana após o reencontro deles no rio. A melhor semana da vida de Joe. Ele ainda não acreditava no que havia acontecido. A cada manhã, ao despertar, ele se via imediatamente tomado pelo pânico, apavorado com a ideia de que ele apenas tinha sonhado com aquela noite no rio e os dias gloriosos que se se seguiram. Mas, quando se virava na cama e a puxava para si enquanto ela resmungava e protestava sonolenta, ele se convencia de que não era um sonho. Ela era real.
Deu um beijo na cabeça dela. Os cabelos ainda estavam úmidos. Os dois estavam caminhando pelos jardins enquanto olhavam o rio quando de repente começou a chover. Correram para casa aos gritos e risos e chegaram encharcados na cozinha.
Antes de irem para o quarto, ele foi até a adega para pegar uma garrafa empoeirada de Haut-Brion. Já no quarto, acendeu a lareira e serviu uma taça de vinho tinto envelhecido para ela a fim de espantar o frio. Conversaram durante algum tempo na frente da lareira para se secarem, até que ele a tirou despida da poltrona e levou-a para cama. Ele estava doido por ela. Ávido para desfrutar seu corpo maravilhoso, abraçá-la e tocá-la, e para fazer amor com ela de uma forma que não pôde fazer no rio. Abraçando-a, olhando dentro dos olhos dela, como se nunca tivessem se separado. Já sabendo que ela o havia perdoado e que o amava e queria ficar com ele, finalmente sentia que a tristeza, sua fiel companheira, o tinha abandonado, deixando em seu lugar uma indescritível alegria.
Agora, a chuva batia na vidraça da janela. Joe olhou lá para fora e viu que os galhos de um velho carvalho balançavam intensamente com o vento. Que importa que o bastardo seja arrastado pelo vento, ele pensou com alegria, que importa que o mundo inteiro seja varrido pelo vento. Aquele quarto, eles dois, era tudo o que importava. Puxou o lençol até os ombros de Fiona, saiu da cama e vestiu um roupão.
— Não vá — ela murmurou.
— Não vou, não, querida. Só vou colocar uma outra tora de madeira na lareira — pôs mais duas toras e abanou até que pegassem fogo. Depois, serviu mais vinho nas taças e foi até a cômoda para procurar algo. Ele tinha uma coisa para ela. Algo que ele queria muito lhe dar. Qualquer um em sã consciência diria que ainda era muito cedo. Cedo demais. Mas ele não estava em sã consciência. Ele estava apaixonado. E para ele nada era cedo demais.
Encontrou o que estava procurando, uma caixinha de couro vermelha com a marca ―Lalique, Paris‖. Colocou-a em cima da mesinha de cabeceira, tirou o roupão e voltou para a cama. Fiona se mexeu. Ele pretendia pôr a pequena caixa na mão dela e pedir que ela abrisse. Mas, ao se levantar, ela se desvencilhou do lençol. Ele olhou para ela, os seíos redondos e sensuais pareciam mais belos que nunca. Seus olhos desceram um pouco mais, seguindo os contornos do corpo dela. Ele a queria mais uma vez. Muito. A caixinha teria que esperar.
Ele inclinou-se e beijou-a. Ela se espreguiçou e sorriu. Ele segurou um dos seios com vigor, abaixou a cabeça e se pôs a beijar o mamilo.
— Mmmmm — ela suspirou. A mão dele desceu pela cintura dela, pelas coxas e se deteve no ventre. Tocou-o com delicadeza e depois com força. Os dedos dele escorregaram para dentro dela, tocando uma terna doçura e fazendo-a ficar molhada e sem fôlego. Depois, ele parou, deu uma pausa para beijar a barriga, a suave curva dos quadris.
— É melhor acabar o que você começou, rapaz — ele a ouviu murmurar.
Sorriu para ela, deleitado com o fato de ela estar excitada. Ele se aprazia em provocar o desejo dela, adorava saber que o calor da pele dela, o fogo dentro dela e os seus gemidos guturais se deviam a ele. Mas não queria penetrá-la agora. Ainda não. Queria sentir o desejo dela por ele, ouvi-la dizendo seu nome. E constatar que ela era dele outra vez. Só dele.
Joe mordeu com delicadeza a orelha de Fiona, fazendo-a sentir cócegas, e depois desceu os lábios e o nariz até a nuca. Continuou descendo até chegar outra vez nos mamilos e começou a lambê-los até que ficassem completamente entumescidos. Depois, ele abriu-lhe as pernas e começou a chupá-la. Dessa vez ela não protestou como fazia quando ainda era mocinha; pelo contrário, dessa vez ela se abriu, tremendo de prazer enquanto ele a explorava. Alguns segundos depois, ele ouviu um pequeno grito e sentiu que o corpo dela estremecia, com ela sussurrando o nome dele.
Sussurro? Ele pensou, franzindo a testa. Isso não vai ficar assim. De jeito nenhum.
Ela estava deitada de lado. Seu rosto brilhava levemente, iluminado pelas gotas de suor. Ele se colocou ao lado com a cabeça no travesseiro e se pôs a brincar com os cachos do cabelo dela. Esperou até que a respiração de Fiona se abrandasse e puxou-a para cima dele.
— Oh, Joe, eu não posso... — ela disse, rindo, com a voz rouca e os olhos zonzos e pesados como os olhos de um fumador de ópio. Ela ergueu-se, montada nele, e tentou se equilibrar. — Não se mova, senão eu caio — ela disse, rindo. Ele se esticou para pegar a taça de vinho e ofereceu-a para ela, que a segurou com ambas as mãos e sorveu um bom gole. Enquanto ela bebia, ele a penetrava. Os olhos dela se fecharam. Seu corpo se curvou contra o dele. Ele pegou a taça das mãos dela em tempo, antes que ela a derrubasse nele e a bebida se esparramasse.
Ele a agarrou pela cintura, puxou-a com força para si e iniciou uma sequência de movimentos dentro dela; primeiro, devagar, ritmadamente, induzindo o retorno da excitação dela, até que ouviu gemidos mais altos que antes e a sentiu inteiramente lubrificada. Ele a penetrou mais fundo e com mais vigor, e ela arfou, agarrando as mãos dele. E depois ouviu os doces e trêmulos espasmos de Fiona, muito mais intensos que antes, e a ouviu gritando seu nome e não sussurrando. E depois ele se deixou gozar, com o nome dela nos lábios.
Depois de ter tomado o fôlego e a visão, ele se deu conta de que ela continuava deitada em cima dele, completamente exaurida. Ela abriu os olhos e o olhou. Ele afastou uma mecha de cabelo do rosto dela e disse:
— Chega, Fi. Assim você vai acabar me matando.
Ela começou a rir e ainda ria quando ele lhe entregou a caixinha de couro vermelha.
— O que é isso? — ela perguntou.
— Dê uma olhada.
Ela se ergueu, enrolou-se no lençol e abriu a caixa.
— Minha pedra azul! — gritou.
Ele balançou a cabeça. A pedra estava bem diferente de quando ele a tirara da lama do rio. Ele a enviara a Paris para que fosse polida e encaixada num anel.
René Lalique, o célebre joalheiro francês, criou um modelo especial para ela, todo de ouro trançado.
— Como você encontrou isso? — ela perguntou, excitada.
Ele contou como o detetive particular que contratara para procurá-la encontrou a pedra numa loja de penhores próxima à antiga casa de Roddy.
— É maravilhosa! — ela disse, segurando o anel de maneira que a luz do fogo incidisse sobre a pedra. — Ela brilha tanto, custo a acreditar que só seja um pedaço de vidro tirado do rio.
— Não é vidro, Fi. É um escaravelho de safira.
— Você está brincando! — ela murmurou.
— Não estou, não — ele pegou o anel. — Mandei fazer o anel logo que tive dinheiro e depois o guardei, esperando o dia em que poderia dá-lo pessoalmente para você. Uma semana depois de ter mandado a pedra para Paris, o joalheiro em pessoa me telefonou e disse que era uma safira. Antiga. E muito valiosa. Você vendeu a preço de banana — ele balançou a cabeça, lembrando todos aqueles anos sem ela, e ficou triste de repente. — E engraçado como a gente pode ter uma joia rara nas mãos e jogá-la fora, e só dar valor a ela depois de a ter perdido.
Fiona segurou o rosto dele e beijou-o.
— Não fique assim — ela disse. — Chega de lembranças tristes. Só importam as que vamos construir a partir de agora.
Ele colocou o anel no dedo dela.
— Bem, então esta é a primeira. Uma jóia antiga, mas uma lembrança nova ele se levantou para pôr mais vinho nas taças.
Fiona admirava o seu anel e de repente olhou timidamente para Joe.
—Joe?
— Mmm?
— Isso quer dizer que estamos noivos?
— Depende.
— De quê?
— De você ser ou não uma boa esposa. Você sabe cozinhar?
—Não.
—Limpar?
—Não.
— E passar roupa? Sabe fazer isso?
—Não.
— O que você sabe fazer?
— Vem aqui que eu mostro.
— De novo? Você é insaciável! Sempre ouvi dizer que as mulheres mais velhas são como gatas no cio.
— Mulheres velhas! Seu cretino! Vou mostrar pra você quem...
Ela o puxou para a cama e fez amor com ele, e, quando o fogo acabou, eles caíram no sono um nos braços do outro; ele, sorrindo e esperançoso de que ela estava certa quando disse que não haveria mais lembranças ruins, apenas as novas que iriam construir. Nada mais se interporia entre eles. Nunca mais o passado sombrk os assombraria. Na frente deles só havia um futuro no qual os dois estariam juntos. Enquanto eles vivessem.
BOBBY DEVLIN — disse Roddy, tirando os olhos
dos papéis que estavam em cima da mesa e olhando para o visitante que entrava em sua sala. — Que prazer!
— Poupe o blá-blá-blá, O‘Meara — disse Devlin, atirando um exemplar do Clarion na mesa de Roddy. — Edição de amanhã.
Roddy se alongou e olhou o relógio. Três horas.
— Cristo, já é tão tarde assim? — disse. Era sábado. Ele chegara às nove horas para dar conta do trabalho acumulado. Nas últimas semanas andara tão preocupado com William Burton que negligenciara as outras tarefas. Acenou para que Devlin se sentasse. — Você agora também é jornaleiro? Está fazendo entregas?
— Achei que isso fosse do seu interesse. Diz respeito ao seu homem, o Burton. Não pense que o verá de novo tão cedo.
Roddy pousou os olhos na primeira página. ―William Burton, impostor e dissimulado, foge do país‖, era a manchete. Abaixo dela: ―Parente justifica seu comportamento‖. A matéria era de Devlin. Roddy rapidamente abriu o jornal e leu o artigo. Devlin localizara uma tia de William Burton, uma senhora de oitenta anos que se chamava Sarah Burtt. A senhora Burtt vivia num apartamento confortável em Kensington. Concordou em dar uma entrevista para o Clarion, dizia a matéria, porque estava ansiosa para limpar o bom nome do sobrinho.
Na entrevista, a senhora Burtt apresentava uma versão inteiramente diferente da conhecida história da ascensão de William Burton da pobreza ao sucesso, segundo a qual ele ficara órfão quando menino e fora criado por uma gentil tia solteirona e superara sua origem humilde para tornar-se um rico barão do chá.
Ela revelou que tinha realmente acolhido William. Não porque a mãe dele tivesse morrido, e sim porque ela havia abandonado tanto William, à época com cinco anos de idade, como o irmão, Frederick, de três anos. A mãe abandonou os meninos, sem comida e sem dinheiro, num quarto sujo e úmido de uma hospedaria. Ao sair, ela ordenou que eles se calassem; caso contrário, levariam uma surra. William e Frederick esperaram em silêncio pela volta da mãe. Os dias se passaram até que os moradores do quarto vizinho, alertados pelo mau cheiro, imaginaram que havia alguma coisa errada. Mas já era muito tarde para Frederick. Quando arrombaram a porta, encontraram William perto do corpo em decomposição de Frederick. Ele estava doente e delirava, murmurando frases sobre os ratos. Foi então que perceberam que o pé direito de Frederick tinha sido devorado.
Devlin perguntou à senhora Burtt por que a mãe havia abandonado os filhos. Não tinha meios para cuidar deles? O salário de costureira não dava para sustentá-los. A senhora Burtt respondeu que a irmã, Allison Burtt, tinha começado como costureira, mas depois se tornou prostituta. Era uma mulher emocionalmente instável, alcoólatra, e batia nos meninos de maneira impiedosa. E fora expulsa do seio da família antes do nascimento dos meninos.
Devlin perguntou em seguida se o pai de Burton era de fato um capitão de navio que foi embora. ―Talvez tenha sido, respondeu com franqueza a senhora Burtt. Ou quem sabe um açougueiro, ou um padeiro, ou um artesão de castiçais.‖ Ela não fazia ideia de quem era o pai dos seus sobrinhos e duvidava que a irmã soubesse. Depois, ela disse que nada daquilo importava. O que realmente importava era que William sempre foi um bom garoto, sempre generoso com a tia Sarah. Ele tinha sido um excelente aluno. E trabalhou muito. Ao sair da escota, aos quatorze anos, começou a trabalhar numa quitanda em Camden Town, onde residiam, e aos dezessete já tinha economizado o bastante para comprar o estabelecimento do seu antigo dono. Essa loja deu início à Burton Tea.
Devlin também quis saber se fora feita uma busca pela mãe de Burton. Talvez ela ainda vivesse em Canden Town, ele sugeriu. Segundo a senhora Burtt, a irmã nunca viveu em Camden Town. Ela morava em Whitechapel, na Adam Court. ―O senhor deve conhecer esse lugar‖, acrescentou a senhora Burtt. ―Onde aconteceu aquele último assassinato pavoroso. Um lugar horrível.‖
—Não posso acreditar! — exclamou Roddy. — Burton viveu na Adam Court. A família de Fiona também morou lá!
— Ele mentiu sobre isso e sobre tudo o mais — disse Devlin.
Roddy continuou a ler. Passou superficialmente os olhos pela parte onde a senhora Burtt revelava que o sobrinho mudara o sobrenome de Burtt para Burton porque achava que o novo sobrenome soava mais importante e pulou para o fim da matéria, onde Devlin pedia que a mulher respondesse com sinceridade se tinha visto o sobrinho nos últimos trinta dias.
A senhora Burtt disse que não, mas que, duas semanas atrás, recebera uma carta do sobrinho, na qual ele dizia que estava fora. Não disse onde. Ela estava muito preocupada com ele. Ele sempre foi um homem bom, ela disse, sempre generoso com sua tia Sarah. Ela não acreditava que ele tivesse esfaqueado a senhora Soames ou que tivesse assassinado um doqueiro. A entrevista terminava com um apelo da senhora Burtt para que o sobrinho retornasse a Londres para limpar o seu nome.
— Ele é alvo de uma das maiores caçadas policiais que já se viu em Londres, e mesmo assim escapuliu do cerco. Pode estar em qualquer lugar. França. Itália. Talvez já esteja a meio caminho da China. Eu me pergunto como é que ele conseguiu. Será que se valeu de um disfarce? De um nome falso? Esse cara não seria ninguém se não fosse esperto — afirmou Devlin.
— Ora, ele é esperto, tudo bem, mas não saiu de Londres — aquele arrepio dele começava outra vez. Na nuca. Desceu pelos braços e penetrou nos ossos. Seu sexto sentido, abafado depois que ele conversou com Donaldson, mas que agora irrompia como uma vingança.
— Não concordo com você.
— Alguma coisa não bate, Bobby. Tudo está muito arranjadinho. De repente, surge a velha tia, aparece uma carta. Tudo isso é muito conveniente.
— Você acha que a carta é um engodo?
— Acho. Acho que ele percebeu que cedo ou tarde alguém descobriria a existência de Sarah Burtt. A polícia ou a imprensa. E sabia que ela iria mostrar a carta para quem a encontrasse. E uma pista falsa. Ele quer que a gente pense que ele saiu do país, mas não saiu. Ainda está por aí. Esperando. Aquele cretino do Donaldson! Eu sei que o Burton não fugiu do país. Tenho certeza disso!
Roddy levantou-se e estremeceu dentro do seu paletó. Seu sexto sentido deixou de ser um arrepio e virou uma pancada nos ombros. Uma porretada. Ele tinha que mostrar a entrevista de Sarah Burtt para Fiona. Ela vinha saindo com frequência depois que o seu ferimento cicatrizou e do seu reencontro com Joe. Ele tinha que alertá-la, avisá-la para redobrar os cuidados, Já andava até falando que ia despedir o Andrew. Ele não podia deixarque ela fizesse isso.
— Onde é que você vai com tanta pressa? — perguntou Devlin.
— Para a casa de Fiona. Vou mostrar o seu jornal para ela. Ela também não acredita que o Burton ainda esteja por aqui. Ela diz que isso seria muito perigoso para ele. Diz que ele já não tem casa, não tem mais a companhia de chá e que por isso não há razão para ele ficar. Mas ela está errada. Ele tem uma razão, sim. E essa razão é ela.
SENTADO NO BAR ONDE NOS ÚLTIMOS DEZ ANOS afogava a voz de sua consciência, Davey O‘Neill segurava uma nota de cinquenta libras. Era uma quantia suficiente para mandar sua filha, agora com onze anos e ainda fraquinha, para um sanatório na praia por um ano. Fora pago por mais uma tarefa que ele não gostaria de ter feito. Sorriu amargurado. Já tinha feito de tudo para aquele homem, exceto esmagar a cabeça podre dele.
Davey guardou o dinheiro, pediu uma cerveja e começou a beber. E logo pediu outra, tentando silenciar a voz interna que o infernizava com repetidas perguntas sobre as consequências da entrega que ele acabara de fazer.
Não sei e não quero saber, ele disse para a voz. Foi só uma entrega. Não tem nada a ver comigo. E, além do mais, foi a última. O homem disse que cairia fora.
Foi o último trabalho. Agora eu estou livre.
Livre?, debochou a voz. Você nunca será livre, Davey. Você vendeu sua alma.
E também vendeu a mulher. Por um punhado de moedas. Como um Judas. Só que Judas fez o favor de se enforcar.
— Foi só uma carta — resmungou Davey, furioso. — Pelo amor de Deus, me deixe em paz!
— O que há, Davey? — perguntou o taberneiro. — Já está pronto pra outra?
— O quê? Não. Desculpe, Pete. Eu estava falando sozinho.
O taberneiro virou-se de costas para enxugar alguns copos. Davey se olhou no espelho do bar. Estava esquálido, de olhos fundos. Seu rosto estava cheio de rugas. Seu cabelo, todo grisalho. E ele só tinha trinta e quatro anos.
Esfregou o rosto com as duas mãos. Estava um trapo. Levou dois dias para encontrar Piona Finnegan. Ele a seguira. Duas vezes a partir do Armazém do Oliver e três vezes da Mincing Lane, mas perdeu a carruagem de vista no tráfego em todas essas vezes. Então, acabou tendo sorte na quinta tentativa. Sua carruagem de aluguel a seguiu de perto o tempo todo até Mayfair. Ele viu quando a carruagem dela parou na Grosvenor Square e ela entrou no número 16. E, depois de ter conseguido o endereço dela, ele foi atrás de Joe Bristow em Covent Garden. Foi fácil, então, descobrir onde Bristow descarrega as remessas de chá.
O homem quer feri-la, disse a voz. Você sabe muito bem disso, não sabe?
E só uma carta, respondeu Davey outra vez, internamente. Que mal uma carta pode fazer?
Esse dinheiro em seu bolso é um certificadode óbito.
Fiz isso pela Lizzie. Tudo o que fiz, fiz pela Lizzie.
Você também matou pela Lizzie?
— Eu não matei ninguém — ele disse em voz alta.
Você estava por perto quando ele matou o pai dela. E agora vai fazer de novo a mesma coisa.
— Não! — ele gritou, dando um murro no balcão.
— Davey, meu rapaz, o que está havendo com você? — perguntou o taberneiro.
— Na-nada, Pete. Aqui, pela cerveja — ele disse, colocando uma moeda no balcão. — Tenho que ir.
Davey saiu do bar, caminhando normalmente, e logo começou a correr. Ele tinha vivido os últimos dez anos de sua vida consciente do papel importante que teve na morte de Paddy Finnegan, e isso o corrofa por dentro. Ele não queria passar o resto da vida com a lembrança de que tinha ajudado Burton mais de uma vez. Ese deu conta de que só teria uma chance de impedir aquilo que ele ajudou a pôr em andamento. E ele aproveitaria essa chance.
A CARRUAGEM DE ALUGUEL DIMINUÍA A VELOCIDADE à medida que se aproximava da esquina da Southampton com a Tavistock. Davey deu o dinheiro para o condutor e saltou com o veículo em movimento.
No lugar do remetente da carta estava escrito ―J. Bristow, 4 Tavistock Street, Covent Garden‖. Mas Bristow não era o remetente daquela carta e Davey tinha que dizer para ele quem a tinha enviado. Talvez Joe soubesse o que fazer.
Ele saiu em disparada até o número 4. BRIST0W‘S DE COVENT GARDEN. VENDAS POR ATACADO. JOS. E JAS. BRISTOW, PROPRIETÁRIOS, lia-se na placa. Ele girou a maçaneta, mas a porta estava trancada. Começou a bater nela. ―Senhor Bristow!‖, ele gritou. ―Senhor Bristow! Tem alguém aí?‖ Não houve resposta. Aquela tarde de sábado já ia bem adentrada e a maior parte do comércio estava fechada, mas talvez houvesse algum porteiro ou um funcionário que pudesse dar o paradeiro de J. Bristow.
— Senhor Bristow — ele gritou outra vez.
— O‘Neill — soou uma voz atrás dele.
Davey se virou, temeroso de que fosse William Burton de pé atrás dele, encarando-o com aqueles olhos pavorosos. Mas não era o Burton. Era um rapaz. Ele estava de boina e de bandana vermelha. Tinha uma cicatriz enorme no queixo e um corpo de touro. Ao seu lado, um outro rapaz.
— Você pode vir com a gente, por favor? — disse o primeiro rapaz.
— Como é que você sabe o meu nome? — perguntou Davey, dando um passo para trás.
— Vamos, Davey — disse o segundo rapaz.
— Não vou a lugar nenhum com vocês... eu... eu preciso encontrar o senhor Bristow — gaguejou Davey, tentando correr em seguida.
O rapaz da cicatriz o agarrou e o jogou contra a parede do prédio.
— Não faz isso de novo — ele avisou.
— Me solta! — gritou Davey, se debatendo.
— Na hora certa. Primeiro, temos umas perguntinhas pra te fazer — o rapaz empurrou Davey na direção de uma carruagem que os aguardava. — Vamos logo — ele disse.
— Diz pro Burton que já fiz tudo. - Davey aumentou ainda mais a voz. — Eu não tenho mais nada a ver com ele! Nós fizemos um trato...
O rapaz agarrou o braço de Davey e o girou até as costas, e depois o empurrou até a carruagem.
— Nós não trabalhamos pro William Burton, seu babaca. Depois que a gente terminar nossa conversa, você vai preferir que a gente trabalhasse pra ele.
— Porra! Meu braço! — gritou Davey. — De onde vocês são? Quem mandou vocês?
— Foi o chefe que nos mandou, Davey. O Sid Malone.
JOE SUBIU AOS PULOS OS DEGRAUS DA ENTRADA da casa número 16 da Grosvenor Scuare, com um lindo buquê de rosas vermelhas na mão. Tocou a sineta e esperou que a senhora Merton, a governanta, abrisse a porta. Mas quem o recebeu foi um bigodudo.
— Joe? Que diabo você está fazendo aqui? — disse Roddy.
— Eu também tenho muito prazer em vê-lo — disse Joe. — Será que posso entrar? Onde está a Fiona?
— É o que eu também pergunto. Ela devia estar com você e você devia estar no Armazém do Oliver.
Joe colocou as rosas em cima da mesa do saguão de entrada.
— Do que é que você está falando? — ele perguntou. — Eu não devia estar em lugar nenhum. Acabei cedo o trabalho e vim sem avisar pra ver se ela queria sair pra jantar e ir pra Greenwich comigo.
Roddy parecia confuso.
— Não estou entendendo. Cheguei aqui há poucos minutos e a senhora Merton me disse que Fiona tinha saído pra se encontrar com você. Disse que você mandou um bilhete. Alguma coisa sobre uma remessa de chá.
— Não enviei nenhum bilhete — retrucou Joe, confuso. E preocupado.
— Espere aí... talvez eu tenha entendido errado — disse Roddy. — Senhora Merton, a senhora está aí?
Eles ouviram passos se aproximando com rapidez e logo surgiu a governanta.
— Sim, o que é?
— A senhora disse que a senhora Soames tinha ido para o Armazém do Oliver, foi isso? E que ela tinha recebido um bilhete do senhor Bristow?
— Sim, foi isso mesmo que eu disse. Foi isso que ela me falou. Disse que não demoraria e que talvez voltasse com o senhor Bristow.
— Mas eu não escrevi nenhum bilhete — disse Joe, com uma onda de medo invadindo –o.
A senhora Merton franziu a testa.
— Eu tenho certeza de que a senhora Soames mencionou o seu nome, senhor. Eu não li o bilhete, é claro.
— O bilhete ainda está aqui? — perguntou Joe. — Ela o levou?
— Não sei — respondeu a mulher, conferindo a correspondência em cima da mesa do saguão de entrada. Ela não encontrou envelope algum aberto em meio outros envelopes e começou a procurar num cesto de lixo debaixo da mesa, — Aqui está — ela disse, entregando-lhe um envelope e um cartão amassados.
Ele os colocou na mesa de modo que Roddy também pudesse vê-los. O endereço do seu escritório estava estampado na parte de trás do envelope. Fora datilografado. O bilhete também datilografado dizia que havia chegado uma grande remessa de chá antes do tempo e que não havia lugar no Armazém Oriente, onde geralmente Joe descarregava o seu chá. No bilhete, ele perguntava se podia estocar o chá no Armazém do Oliver e pedia para que ela o encontrasse lá às seis horas. E ainda havia uma desculpa pelo bilhete ter sido datilografado: ele estava muito ocupado e tinha ditado para a secretária. Quando Joe viu seu nome datilografado, o medo tomou-se terrot
— Por Deus, Roddy... é o Burton — ele disse.
— Ele está no Armazém do Oliver...
— ... e ela foi pra lá ao encontro dele.
Saíram imediatamente pela porta e desceram a escada da entrada aos gritos pelo condutor de Joe.
ANDREW TAYLOR SUSPIROU E, ENFADADO, DISSE EM SEGUIDA:
— O sargento falou que eu não devia deixar a senhora sozinha em lugar nenhum. Eu tenho que ficar com a senhora o tempo todo.
— Andrew, eu só vou entrar no armazém — retrucou Fiona. — O senhor Bristow já está lá dentro. E o capataz também.
— Senhora Soames, a senhora não pode esperar um pouquinho enquanto eu amarro os cavalos?
— Deixe de ser bobo! Olhe, a porta está aberta! Está vendo, Andrew, está escancarada! Amarre os cavalos e depois venha — disse Fiona. Andrew já estava se tornando um chato igual ao Roddy. Ele sabia que ela ia encontrar Joe. Estava ao lado dela quando disse para a senhora Merton que ia se encontrar com ele no Armazém do Oliver. Ela já estava cheia de tanta preocupação. O Burton tinha fugido. Sheehan estava morto. Donaldson já havia dispensado os policiais que montavam guarda na casa dela, mas Roddy continuava insistindo para que Andrew a acompanhasse para todos os lados. Se ela quisesse tomar o chá das cinco, lá ia ele até a Fortnum & Mason‘s com ela. Se quisesse comprar um vestido novo ou alguma roupa íntima, os dois iam juntos até a Harrods. Como se William Burton fosse se esconder debaixo de uma mesa de chá ou sair de dentro de uma pilha de calçolas!
Irritada, ela rodava o lindo anel de escaravelho em seu dedo enquanto se dirigia para o Armazém do Oliver, mas logo a irritação se dissipou. Ela estava feliz, para lá de feliz, e não se zangaria por qualquer coisinha. As vezes, quando rememorava as últimas semanas, em tudo o que tinha acontecido — e tudo aquilo parecia tão incompreensível —, ela se sentia tão encabulada que se esforçava para deixar de pensar nisso. Mas o fato é que ela acabava se sentindo envaidecida. Pelo calor do amor de Joe. E, quanto mais pensava em como tudo se encaixara tão bem, mais ela sentia vontade de sorrir.
Uma semana antes, foram fazer uma visita aos pais dele. Fiona estava tão excitada para revê-los que se manteve indócil durante todo o trajeto. Tão logo a porta do número 4 da Montague se abriu e Rose surgiu à porta, as duas mulheres irromperam em prantos. Rose exalava um perfume maravilhoso, um aroma que trazia todas as memórias da infância de Fiona: sabonete de lavanda, batatas assadas, maçã com canela, chá forte. O abraço de Rose, ao mesmo tempo ardoroso e delicado, pareceu o abraço da mãe de Fiona. Por fim, elas conseguiram se desenlaçar e Rose a conduziu para dentro da casa ao encontro de Peter e do resto da família. Joe as seguiu. Ela reencontrou o avô de Joe; Jimmy, cuja esposa, Meg, estava grávida do primeiro filho do casal; Elien, com o marido, Tom, e os três filhos; e Cathy, de olhos cravados no chão durante os cumprimentos e as apresentações.
— Desculpe pelo cartão — disse Cathy, sem graça, finalmente olhando para ela. — Amigas?
— Amigas — repetiu Fiona, estendendo-lhe a mão. Cathy a cumprimentou.
— Deus do céu, que anel mais lindo! — ela disse, admirando o escaravelho de Fiona. — Nunca vi uma coisa igual.
— Não é lindo? Foi o Joe que me deu — disse Fiona, sem pensar.
— Ele fez isso? Então, vocês estão noivos? — perguntou Cathy.
Fiona não sabia o que dizer. Eles só tinham brincado sobre o assunto, e Elien então interferiu.
— Não seja intrometida, Cathy, que coisa pra se perguntar!
— Por quê? Ele deu um anel pra ela, não deu? E ele passou um tempão suspirando por ela. E claro que ele quer casar com ela.
— Meu Deus — suspirou Peter, olhando para o teto.
— Cathy, você é a mocinha mais mal-educada, mais ignorante... — Rose começou a falar, mas calou-se de repente, enquanto se voltava para Fiona. — Vocês estão?
Fiona desejou que o chão a engolisse. Como não a engoliu, ela se viu obrigada a dizer:
— Eu não sei... nós não...
— Bem, eu sei que ele quer casar com você — disse Rose, ansiosa. — É tudo o que ele sempre sonhou. Você vai casar com ele, não vai, querida?
Fiona ficou tão vermelha quanto um pimentão e depois sorriu.
— Se isso a faz feliz, Rose, eu caso com ele.
Rose deu um pulinho de alegria e depois abraçou-a.
— Você ouviu isso, rapaz? — ela gritou. — Ela vai se casar com você!
— Claro que ouvi. Muito obrigado, mamãe. A última coisa que eu queria era mesmo fazer o pedido — ele resmungou.
Já sentados à mesa, decidiu-se que ela e Joe se casariam em três semanas, o que, de acordo com Rose, era o tempo necessário para avisar os amigos e os familiares e organizar a festa de casamento. Fiona olhava para Joe em silêncio enquanto ouvia os planos, implorando para que ele a socorresse ou pelo menos mudasse de assunto, mas ele se limitava a sorrir, sem a menor intenção de contrariar a mãe e as irmãs.
Fiona compartilhou com os Bristow a tarde mais maravilhosa de sua vida. Ela se sentiu como se estivesse em casa e, pela primeira vez depois de tantos anos, soltou boas gargalhadas. Era impossível não se divertir com eles. Sempre havia alguém para dizer alguma coisa inapropriada. Era coisa de feirantes, ela estava certa disso. Não se pode exigir de quem trabalha diariamente gritando preços e mercadorias, que fique sentado à mesa em silêncio. Logo eles seriam seus contra- parentes. E Joe seria seu marido, Como tudo isso aconteceu?, ela se perguntava. Como alguém podia ser subitamente agraciada com tanta felicidade?
Ela balançou a cabeça e sorriu, incapaz de responder a suas próprias perguntas. Passou pelos degraus de madeira que davam no segundo piso do armazém e entrou num grande galpão. Estava escuro lá dentro e seus olhos saídos da claridade lá de fora levaram alguns segundos para se adaptar. Ela observou o galpão e viu os caixotes de chá recém-chegados de sua nova propriedade na India. E também notou que tinham sido colocadas portas novas no lugar das que foram arrancadas pelos homens de Peter MilIer.
— Joe? — ela chamou em voz alta. — Senhor Curran? — não houve resposta. O armazém estava em completo silêncio. E a rua também.
Dia de meio expediente, ela pensou, lembrando-se da escala de trabalho que seu pai seguia nos sábados.
— Tem alguém aí? — ela gritou. Continuou não havendo respostas. Eles devem estar lá em cima, ela raciocinou. Já estava para subir a escada quando notou uma luz acesa na sala do capataz. A sala ficava no extremo do galão, na parte que dava para o rio. Talvez eles estivessem lá e não a ouviram.
Ela contornou os caixotes de chá. A porta da sala estava semiaberta.
— Senhor Curran? O senhor está aí? — Thomas Curran estava sentado em sua cadeira de costas para ela. — Ah, o senhor está aqui — ela disse. — O senhor Bristow já chegou?
Nenhuma resposta de Curran. Ele estava de cabeça pendida. Parecia que estava dormindo.
— Senhor Curran? — ela pôs a mão no ombro dele e lhe deu uma sacudidela. A cabeça dele pendeu para frente e depois oscilou para trás. Oscilou demais. O sangue escorria na parte da frente da camisa. E descia pelo mata-borrão e pela máquina de escrever. A garganta dele tinha sido cortada.
— Oh, não... não... oh, Deus — ela balbuciou, desesperada, afastando-se dele. Ficou por um instante na porta, sem poder tirar os olhos daquela cena grotesca, mas depois se virou e correu. — Joe! — gritou de novo. Não enxergou um caixote de chá à frente e se chocou contra ele, gritando de dor. — Joe! — gritou mais uma vez, em pânico. — Joe, por favor! Vem rápido!
Mas não houve resposta. Ela correu na direção das portas laterais, com a perna latejando.
— Joe! Andrew! Tem alguém aí?
Faltava pouco para chegar à porta quando ela ouviu um ruído. Passos. Lentos e comedidos.
— Oh, graças a Deus — ela soluçou. — Joe, é o senhor Curran. Ele está morto!
Mas a figura que caminhava em sua direção não era Joe.
Fiona fechou os olhos com força. Isso não está acontecendo, ela pensou. Não pode estar acontecendo. Ele não é real. E só um pesadelo. Ele não existe.
Tremendo de medo, ela reabriu os olhos e se deparou com o olhar enlouquecido, furioso, daquele homem sombrio.
— JOE! — GRITOU FIONA. — SOCORRO!
— Ele não está aqui — disse William Burton, enquanto caminhava na direção dela de braços pendidos. E nem estará. Quem escreveu o bilhete pra você fui eu.
Não tem ninguém aqui.
Ela se esforçava para entender o que ele dizia. Joe não estava ali. Ninguém estava ali. Mas ele estava errado.
— Andrew! — ela gritou. — Aqui! Rápido!
Burton balançou a cabeça.
— Receio que ele não vai poder ouvi-Ia — ele estendeu a mão direita e ela viu que ele segurava uma faca. A lâmina prateada estava empapada de sangue.
— Andrew... oh, não! — ela gritou e pôs a mão na boca. Andrew estava morto. E tudo porque estava cuidando dela. — Seu crápula! — ela gritou de supetão, furiosa. — Seu crápula, assassino asqueroso!
Ele não emitiu uma única palavra, limitou- se a sorrir. Enquanto ela gritava, ele se aproximava. E agora estava bem próximo dela.
Corra, sua tola! Ordenou uma voz dentro dela. Ela beirou o caixote à frente, calculando a distância entre ela e a porta. Se ao menos pudesse sair. O Town of Ramsgate ficava bem ao lado. Se conseguisse chegar até lá, estaria salva.
Ele olhou para onde ela estava mirando e afastou-se para o lado, de modo que ela tivesse uma visão mais clara.
— Trancada — disse Burton. — Você podia tentar as escadas, talvez. Se você achar que pode chegar antes de ser pega por mim. Mas, de que serviria? Ela leva pra cima e não pra fora. Você só estaria prolongando as coisas.
Apavorada, Fiona olhou ao redor. Não havia por onde fugir. As paredes do prédio eram sólidas. Ao fundo, no lado esquerdo, estava a sala de Curran. Ela teve um lampejo de esperança. Poderia se trancar na sala! Ele não conseguiria derrubar a pesada porta de carvalho. Como se lendo a mente dela, ele deu uma guinada e bloqueou o caminho. Ela olhou para trás. A parede que dava para o rio tinha escoadores, mas estavam trancados. Com cadeados e correntes de ferro. Não havia nada na parede direita, nenhuma sala, nada. Só um arpéu que alguém deixara dependurado num prego da parede e alguns ciscadores de chá nela encostados.
Burton continuava a avançar, impelindo-a pouco a pouco contra a parede. E de repente a parede já estava bem atrás dela. Seu choque contra a parede foi tão violento que lhe provocou uma dor forte na omoplata. Ela se aderiu à parede como se fosse um animal acuado, mas não conseguiu de todo. Alguma coisa a espetava, machucando-a.
O arpéu.
Ela não quis correr o risco de olhar o objeto e rapidamente esticou o braço para trás, erguendo-o cada vez mais alto até que seus músculos gritaram de dor.
Ele já estava bem mais próximo.
— Vou cortar sua garganta e assistir a sua morte, senhora Soames — ele disse. — E depois vou colocar fogo neste lugar, para que não reste nada dele.
— Você não vai conseguir escapar. A polícia vai encontrá-lo — ela disse, lutando para manter o seu tom de voz. Suas juntas queimavam. Onde estava! Onde estava a droga do arpéu? Quando ela já pensava que seu braço se desencaixaria da junta, seus dedos tocaram o metal. Agora é fácil, ela pensou. Não derrube o arpéu, não ouse derrubá-lo.
— A polícia não vai me pegar. Daqui a uma hora embarco num barco rumo a Calais.
Nove metros, oito.
— Você sabe que, depois que o seu pai caiu, ele ficou mais ou menos uma hora ensanguentado no chão, com as pernas quebradas, antes que os gritos dele fossem ouvidos?
Por um instante, Fiona sentiu sua coragem se esvair e ela quase sucumbiu. Não lhe dê ouvidos, ela pensou consigo. Não lhe dê ouvidos. Ela conseguiu soltar o arpéu e o puxou até sentir que o cabo liso de madeira estava na palma de sua mão e a parte curva de metal entre os seus dedos.
Sete metros, seis, cinco.
— Não se leva muito tempo pra morrer com um corte na garganta — disse Burton. — Mas não é instantâneo como muita gente acredita.
Ela fechou a mão. Cada nervo do seu corpo vibrava de medo. Quatro metros, três metros, dois... até aí ela sabia o que estava acontecendo, o que veio depois era a cena que lhe vinha em sonhos... noite após noite, durante dez longos anos.
Só que dessa vez ela não estava dormindo.
Fiona brandiu o arpéu com um grito. O metal curvo atingiu o rosto de Burton, cortando-o. Ele urrou de dor. Sua faca caiu ao chão. Ela passou correndo por ele, ziguezagueando entre os caixotes de chá, e subiu correndo pela escada até o segundo piso e depois até o terceiro, onde caixotes recém-chegados estavam amontoados em pilhas altas. Ouviu os passos dele subindo a escada, ouviu quando ele gritou do segundo piso. Os caixotes dc chá dali não tinham sido empilhados; estavam abertos para inspeção. Ele logo notaria que ela não estava lá. Movendo-se com rapidez, Fiona se dirigiu para o centro do galpão e se agachou atrás de uma pilha mais alta.
E ele então chegou ao terceiro piso.
— Saia de onde está! — ele gritou. — Saia agora e eu acabo com você rápido.
Se eu tiver que procurá-la, vou cortar você em pedacinhos e depois arranco o seu coração!
Fiona tapou os ouvidos e se encolheu toda de medo. Não havia como sair. Ela já tinha visto as novas portas dos escoadores, mas estavam todas trancadas. E, mesmo que não estivessem, ela não poderia pular. O cais ficava lá embaixo, A queda certamente a mataria, da mesma forma que a faca de Burton. Tudo o que podia fazer era ganhar mais tempo. Em um ou dois minutos ele iria encontrá-la, e acabaria com ela quando isso acontecesse. Ela começou a chorar, em silêncio.
Ouviu-se um barulho estrondoso. Uma pilha de caixotes tinha sido derrubada.
— Fedorento como uma puta... — ele praguejou. Um outro estrondo. Dessa vez perto dela, muito perto. — Este armazém é meu... é meu chá... — ele esbravejou. Ela apertou os olhos. Ele estava do outro lado dos caixotes, a poucos centímetros dela. Só precisava dar mais dois passos para encontrá-la.
De repente, ele se deteve. E ela ouviu um ruído. Vindo da escada. Passos. Não, não eram passos... eram batidas. Vindas da frente do prédio. Das. portas. Ela se concentrou no ritmo das batidas e concluiu que era um barulho de machado. Alguém estava arrebentado as portas com um machado.
Ela ouviu um grito irado e logo os caixotes ao lado balançaram e despencaram. Dois deles caíram bem perto dela. Um terceiro caiu tão perto que rasgou seu casaco e sua pele. Ela mordeu o lábio inferior para reprimir um grito de dor. A poeira do chá a envolveu por inteiro.
As machadadas pararam.
— William Burton — gritou uma voz lá embaixo. — Aqui é o sargento Rodney O‘Meara. Abra a porta e saia!
Depressa, tio Roddy! Depressa! Fiona implorou dentro de si.
Ouviu Burton correndo na direção das janelas que davam para a rua; ouviu que ele se dirigia para a balaustrada da escada e, logo, seus passos nos degraus. Alguns segundos depois, ela arriscou uma olhadela. Ele não estava mais visível. Ela lutou para reprimir o impulso de sair de detrás dos caixotes para correr até a escada. De onde estava, ela só conseguia ver o topo da escada e ele podia muito bem estar nos degraus do meio. Era melhor ela ficar onde estava, fora de vista. Tudo o que tinha a fazer era esperar que Roddy colocasse a porta abaixo. Quando a polícia entrasse, ela estaria a salvo. Recomeçaram as machadadas.
Gotas de suor rolavam por sua testa e seu rosto enquanto ela esperava. Ela se sentia sufocada e acalorada. A poeira do chá ainda flutuava no ar, caindo em sua pele e em seus olhos. As machadadas seguiam em frente. As portas de madeira eram extremamente sólidas, feitas especialmente para evitar arrombamentos.
— Oh, depressa! — ela sussurrava. — Por favor, por favor, depressa.
Seus olhos começaram a se encher de lágrimas. Sua garganta queimava. Onde eles estão?, ela se perguntava com ansiedade. Por que demoravam tanto? Respirou profundamente, tentando se acalmar, e se deu conta de que não era a poeira de chá que entrava pelos seus pulmões. Saiu de detrás dos caixotes e olhou para a balaustrada da escada. O lugar estava tomado pela fumaça. Burton tinha ateado fogo no armazém.
Fiona sabia que tinha que sair do terceiro piso. Aquele armazém cheio de caixotes de chá era altamente inflamável, ainda mais com todas aquelas folhas secas de chá. Ele se consumiria em pouco tempo. Se o fogo atingisse o terceiro piso, ela nunca sairia dali. Criando coragem, levantou-se e disparou através do galpão. A fumaça obscurecia o caminho da escada. Ela tirou o casaco e o amarrou à altura do nariz.
Enquanto descia, ela tremia de medo só de pensar que Burton poderia pular em cima dela com aquela faca. Mas isso não aconteceu. Ela chegou a salvo no segundo piso e olhou em volta, Os caixotes tinham sido reunidos e incendiados no centro do pavimento. As chamas ardiam e já estavam quase no teto. Quando começou a descer para o primeiro piso, ela ouviu uma voz gritar:
— Já estamos quase entrando, sargento!
Ela soluçou, aliviada. Só precisava alcançar a porta — faltavam poucos passos e estaria salva. A fumaça estava agora tão espessa e negra que parecia meia-noite. Ela estava com os olhos irritados, mal conseguia respirar.
— Tio Roddy! — ela gritou. - Aqui!
Esticou a mão na direção da porta e já estava quase chegando lá quando um rosto horrendo emergiu da fumaceira, uma máscara infernal de ira e loucura borrada de cinzas e sangue. Os olhos negros daquele rosto faiscavam e seu ferimento deixava à mostra dentes e osso.
Burton agarrou Fiona pelos cabelos, puxou-a e subiu a escada aos gritos.
— Larga ela! — soou uma voz enérgica.
Era Joe, que enfrentava a fumaça, correndo na direção deles.
— Joe! Socorro! — gritou Fiona, Ela dava pontapés e murros, na tentativa de retardar o ritmo de Burton, mas ele era forte como um touro e continuou arrastando-a pela escada até que chegaram ao quarto piso, um pavimento vazio que ainda não fora reparado. O chão estava cheio de pedaços de madeira dos caixotes quebrados. E os escoadores, sem portas. Ele a levou até a plataforma de um dos escoadores e se manteve ali, agarrando-se nela como um escudo.
— Não se aproxime! — ele gritou. — Senão eu pulo e ela vai junto comigo!
Fiona mal podia se mexer, mas conseguiu girar a cábeça e olhar o rio lá embaixo. Eles estavam na beira da plataforma. O cais terminava diretamente abaixo do escoadouro. Se ela caísse, a única esperança de sobrevivência era cair dentro da água.
— Você não vai ter chance de pular, Burton. Vou matá-lo antes disso — disse Roddy. Ele apontava uma pistola para a cabeça de Burton.
— Solte-a. Acabou — disse Joe, caminhando na direção deles.
Fiona sentiu que o braço em torno do seu pescoço apertava ainda mais. Ela olhou para Joe e seus olhos se encheram de lágrimas. Se Burton desse um único passo para trás, ela nunca mais veria Joe.
Roddy seguia gritando. Joe continuava falando, continuava andando. Fiona notou que, embora se dirigisse a Burton, ele a olhava. Ela sentiu que ele queria que ela fosse forte e não perdesse a cabeça. Ela acenou discretamente com a cabeça e logo viu que os olhos dele apontavam para o seu lado direito. Para a lateral da plataforma. Uma vez. Duas. Ela seguiu o olhar e viu uma grande argola de ferro que era usada para sustentar os nós das cordas pregada na parede.
Joe se aproximou um pouco mais. Roddy gritou mais alto.
— Você não vai pular, seu filho da puta! Você mata qualquer um que se coloca no seu caminho, qualquer um, mas não tem coragem de se matar!
— Parem! — gritou Burton, com os olhos cravando-se ora em Roddy, ora em Joe. — Não se aproximem!
— Agora, Fiona! — gritou Joe.
Usando toda a sua força, Fiona deu um impulso e agarrou a argola. No mesmo instante, Joe partiu para cima de Burton e deu um puxão no braço dele, obrigando-o a soltar o pescoço de Fiona. Os dois homens se atracaram, Burton deu um passo atrás e seu pé só encontrou o vazio. Ele perdeu o equilíbrio. Suas mãos procuraram um apoio. E encontraram Joe.
— Nããããão! — berrou Fiona, quando os dois homens se precipitaram pela plataforma. Ela se projetou para frente para ver o que tinha acontecido, mas foi agarrada por braços fortes que a puxaram para trás.
— Não, Fiona, não! — gritou Roddy, tirando-a dali.
Desesperada, ela tentou se desvenciihar dele aos berros.
— Pare com isso! — ele gritou. — Nós temos que sair daqui agora, caso contrário não teremos tempo!
Ele saiu arrastando-a pelo pavimento. A fumaça se infiltrava pelas frestas do piso de madeira. O terceiro piso estava em chamas. O poço da escada era lambido por línguas alaranjadas. Quando chegaram ao segundo piso, viram que os degraus que davam para o térreo estavam totalmente em chamas.
— Corre! O mais rápido que puder! — gritou Roddy, abaixando-a. — É o único caminho!
Fiona disparou em meio às chamas, com as mãos cobrindo a cabeça. Ela ouviu um estrondo e sentiu um calor insuportável. Sentiu uma dor forte nas pernas e em seguida eles estavam lá fora, cercados por uma dúzia de mãos que sacudiam suas roupas.
Eia passou pelos policiais e pelos curiosos e correu na direção da Old Stairs. Desceu correndo pelos degraus de pedra e já estava quase chegando à margem do rio quando ouviu uma barulheira parecida com o fim do mundo que a arremessou como uma boneca de trapos para o que era uma mistura de água e lama. Durante alguns segundos, ela não conseguiu nem ver, nem ouvir, nem se mover. A água cobria-lhe a boca e o nariz. Mas, de repente, ela recobrou os sentidos. Levantou-se, tossindo e cuspindo, e olhou para trás. A Old Stairs tinha sumido debaixo de uma montanha de tijolos e madeiras em chamas. Agora só havia um gigantesco buraco de mais ou menos dois andares de diâmetro onde um dia esteve uma das paredes do Armazém do Oliver. Fumaça e fogo desciam em cascatas. Eia já não conseguia avistar o Town of Ramsgate nem o beco que ligava a Oid Stairs à rua. Onde estaria Roddy? Teria ficado com os policiais? Ou será que tinha saído atrás dela?
— Roddy! — ela gritou, voltando pelo caminho de pedras. - Tio Roddy!
— Fiona, você está bem? — soou urna voz forte, mas distante. Devia estar do outro lado da montanha de entulhos. — E a tubulação de gás! Saia daí antes que o prédio inteiro desmorone.
— Eu não posso! Tenho que encontrar Joe!
A maré estava subindo. Fiona corria por debaixo dos ancoradouros pela água lamacenta e chamava por Joe. Embrenhou-se cada vez mais longe sob o cais, com a água já batendo nas estacas altas. Tentava chegar à extremidade leste do armazém, onde havia uma faixa da margem que dava diretamente na doca. Se Joe tivesse se desviado da doca e caído na água, ele teria uma chance. Quando, finalmente, conseguiu superar o obstáculo das estacas, a água já estava à altura dos seus joelhos. Foi quando avistou um corpo estendido e meio submerso num banco de lama. A perna dele fazia um estranho ângulo com o corpo.
— Joe! — ela gritou, desesperada. Oh, não... por favor, não!
Joe gemeu, lutando para se erguer. Fiona correu na direção dele. Beijou o rosto dele, soluçando.
— Você está bem! Por favor, diz que você está bem!
— Estou bem, eu acho. A perna é que está ruim. Quando caí, ela bateu na beirada da doca. Bem embaixo do joelho. Não estou conseguindo movê-la.
— O que houve com Burton? — perguntou Fiona, olhando em volta, apavorada.
— Não sei. Ele não estava aqui quando emergi. Acho que ele bateu na doca. Joe tentou se erguer, mas caiu de novo na lama, gemendo de dor. Fiona viu que o rosto dele empalideceu e que, embora estivesse tremendo, a pele dele estava empapada de suor.
— Não se mexa — ela disse. — Vou tirar você daqui.
Mas como? Ela se perguntou, apavorada. A maré subia rapidamente. Ela teria cinco ou talvez dez minutos antes que o resto do banco de lama ficasse totalmente submerso. E não podia voltar pelo mesmo caminho que tinha ido. A Old Stairs estava bloqueada e, mais à frente, só havia os altos muros que davam para a entrada de Wapping. Ela podia ver as barcaças dentro do rio, mas estavam ancoradas muito distantes para oferecer qualquer ajuda. A única alternativa era a nova escada de Wapping, mas ficava a leste de onde eles estavam. Entre o armazém e a escada nova havia uma dúzia de novos armazéns um ao lado outro, sem nenhuma via entre eles. Ela não teria tempo de chegar na escada nova e trazer ajuda antes de a maré subir. Além disso, havia o próprio Armazém do Oliver. Uma outra explosão e o prédio inteiro desmoronaria. Fiona se deu conta de que teria que levar Joe pela água. A única maneira de saírem dali seria através da escada nova.
Ela contou o seu plano para Joe.
— Você pode conseguir algumas tábuas ou alguns galhos? — ele perguntou. — Para servir de tala para minha perna.
Desesperada, Fiona correu na direção do armazém à procura de pedaços de madeira. Encontrou uma parte de um caixote de madeira e um toco flutuante.
Talvez servissem. Ela correu de volta e se ajoelhou ao lado de Joe. No momento em que estava rasgando uma tira do tecido da saia para amarrar a tala, Joe ergueu a cabeça, De olhos arregalados.
— Cuidado, Fiona! — ele gritou, empurrando-a.
Ela tentou se levantar e sentiu alguma coisa parecida com um zumbido perto do seu rosto.
— Corre, Fiona, corre! Sai daqui! — gritou Joe.
Ela cambaleou, com uma dor ardente espalhando-se em seu ombro. Virou-se e se viu diante de William Burton, todo ensanguentado, e quebrado, pronto para atacá-la outra vez com uma faca na mão. Ela soltou um grito e deu um passo atrás. Logo sentiu o que ele tinha feito, sentiu o sangue quente escorrer em suas costas. Ele continuou avançando, empurrando-a para a Old Stairs, distante do Armazém Orient, distante do rio e de qualquer esperança de fuga.
— Deixe-a em paz, Burton! — gritou Joe. Ele tentou se levantar, queria sair no auxílio dela.
Burton golpeou-a mais uma vez, rindo, afastando-a cada vez mais de Joe.
— Socorro! Alguém me ajude! — berrou Fiona.
— Procurei por você nas ruas, nos becos, nas casas e nos quartos. Encontrei muitas iguais a você, todas eram prostitutas — disse Burton.
Ela continuou recuando de costas e bateu no muro da entrada de Wapping. Não havia mais saída. Estava tudo acabado, tudo acabado. Ele se preparou para matá-la. Ela se virou e fez uma tentativa desesperada de escalar o muro, e logo se abaixou, agarrou algumas pedras e um punhado de lama e começou a atirá-los nele.
— Assassino! — ela exclamou, soluçando.
Burton seguia avançando, resmungando uma estranha litania.
— Polly, Sombria Annie, Liz Compridona, Catherine e sua florzinha vermelha. Marie, a que cantou uma canção pra mim antes de perder a garganta. A linda Frances. E aquela que se intrometeu, a ruiva...
Fiona conhecia aqueles nomes. Eram todas prostitutas. Exceto uma. A que se intrometeu. A ruiva. Ela caiu de joelhos na lama. Agora, para além do medo. Para além do terror. Ele estava a poucos passos. E ela se viu invadida por uma certeza doentia.
- Você é o Jack, não é? — ela perguntou, furiosa.
Os olhos dela se encontraram com os dele. Sombrios e sanguinários, Brilhantes e negros e insanos.
— ... você fugiu, mas eu a encontrei. Minha faca está afiada e pronta para entrar em ação outra vez. Agora você não me escapa. Vou arrancar seu coração, vou arrancar...
— Você é o Jack?
Ele ergueu a faca.
— Responde, seu desgraçado! — ela gritou.
Soou um estampido no ar. E depois outro e depois outros. Seis ao todo. O corpo de Burton se contorcia a cada tiro, até que ficou imóvel por alguns segundos, vergou-se para frente e por fim tombou ao solo. Atrás dele, um homem segurava uma pistola. Fiona desviou o olhar para Burton e viu que o sangue vertia dos lábios e dos buracos no corpo dele. Ela começou a gritar freneticamente, sem conseguir parar. Jogou-se contra o muro de pedra de olhos fechados, mas logo depois sentiu que era puxada pelos braços por alguém.
— Vamos, temos que sair daqui, senhora Soames disse um homem. O armazém já tinha virado um inferno.
— Não! — ela gritou, desvencilhando-se, enlouquecida pelo medo e pela dor.
Ouviu-se um rangido metálico como o rugido de uma âncora sendo içada. E logo um abalo na doca e muitas madeiras e cacos de cerâmica voavam pelos ares.
O homem deu um puxão em Fiona e empurrou-a para a água.
— Joe! — ela gritou, tentando ir para debaixo da doca. Me deixe ir! Me deixe!
O homem foi rápido ao segurá-la.
— Ele está bem, senhora Soames. Já o resgatamos. Ele está no barco. Vamos, querida.
Tremendo e em estado de choque, Fiona olhou para o homem. Era jovem, musculoso e tinha uma cicatriz no queixo.
— Eu conheço você — ela disse. Você é o Tom. Tom Smith. Do cemitério.
Tom Smith sorriu.
— Como conseguiu chegar aqui? Foi o Roddy que o mandou? Meu tio Roddy?
Tom sorriu.
— Não foi ele, não. Foi o Sid Malone. Já está de olho na senhora há algum tempo.
Sid Malone. O homem que tentou agarrá-la num beco. O homem que havia matado Bowler Sheehan. O que ele queria com ela? Ela não queria entrar naquele barco com os capangas do Sid Malone, mas não tinha escolha.
Tom levou-a até o barco. Era um grande bote a remo. Logo algumas mãos os ajudaram a entrar, tirando-os da água, que já passava da cintura deles. Já dentro do barco, os homens começaram a remar e se afastaram do armazém. Eram cinco homens: dois, perto dela, na popa, dois nós remos e o quinto de costas para ela, na proa.
— Cadê o Joe? Onde ele está? - ela perguntou, olhando para cada um deles. Tom apontou para trás. Joe estava deitado com um cobertor em cima dele. Estava de olhos fechados. Ela se ajoelhou ao lado dele e viu que sua fisionomia era de dor. Segurou a mão dele e levou-a ao seu rosto, apavorada com a palidez dele, e depois olhou outra vez para Tom. — Muito obrigada — ela disse. — Ainda não sei como e por que você fez isso, mas, mesmo assim, muito obrigada.
— Não fui eu, senhora Soames — disse Tom, apontando para a figura na proa.
Ele ajudou Fiona a chegar até o homem.
— Senhor Malone? — ela disse, às costas dele, tentando manter uma voz firme e não demonstrar medo. Não recebeu resposta. — Senhor, para onde está nos levando? O meu amigo precisa de um médico.
— Ele será cuidado — disse o homem.
Era uma voz fortemente marcada pelo sotaque da periferia. E familiar. Familiar até demais.
— Acho que o senhor não entendeu. Ele tem que ir para um hospital — ela tocou no braço dele. — Senhor Malone?
O homem tirou o capuz e se virou.
Fiona se engasgou. Suas pernas bambearam. Ficaram tão bambas que, se Tom não estivesse ao lado para segurá-la, ela teria desfalecido.
— Não pode ser — ela murmurou. — Oh, Deus, não pode ser...
— Olá, Fiona — disse a voz.
A voz de um morto.
A voz de um fantasma.
A voz de Charlie, o irmão dela.
E A ACEITAÇÃO do Chá Instantâneo está sendo
absolutamente fenomenal! Estamos produzindo dez toneladas por semana, e mesmo assim quase não conseguimos responder à demanda. Tivemos que encomendar mais uma máquina e o Dume prometeu que ela estará em Nova York em novembro. Justo na época das festas! A Maddie bolou uma caixa linda para o Natal. Você vai ver. Eu trouxe o projeto...
— Ah, esquece o chá, Stuart. Como vai você? — perguntou Fiona. — Eo Michael, a Mary, o Nate e a Maddie, como estão? E o Peter?
— Eu estou ótimo, Fiona. E aqui está todo mundo bem. A grande questão é como está você? A gente custa a acreditar no que aconteceu com você. O Michael não para de contar, mas a gente acha que ele está exagerando. De verdade! Primeiro, uma empresa completa de chá, depois, um marido... já estamos achando que você ficou maluca!
Fiona riu. Ela estava tão feliz com a presença de Stuart. Ele acabara de chegar de Nova York naquela manhã. Ela providenciou para que o recebessem na estação e levassem as coisas dele para o Savoy, e já fazia aproximadamente meia hora que estava com ele. Ela tinha planejado saírem para urna boa refeição, mas ele disse que estava cansado de ficar sentado e insistiu para que fossem direto para o armazém e depois para Mincing Lane. Trabalhando há tanto tempo com o comércio de chá, ele estava mais interessado nos negócios do que numa salada de lagosta.
Agora, caminhavam de braços dados pela High Street, de Wapping.
- Realmente, Fiona — disse Stuart, subitamente sério. — Pondo as piadas à parte, ao que parece você quase perdeu a vida.
— Pelo contrário, eu a encontrei.
— Mas o homem quase te matou! O William Burton. Tremo só de pensar que, na minha mocidade, anos e anos atrás, eu quase trabalhei para ele. — Stuart balançou a cabeça . — Isso desafia qualquer compreensão. Quer dizer que a polícia nunca encontrou o corpo?
— Não, deve ter sido levado pela maré.
— E o homem que o matou?
— A polícia também nunca o encontrou — disse Fiona, olhando o vazio.
— Então ele atirou no William Burton, salvou a sua vida e seguiu em frente?
— Era o capitão de um barco. Só estava transportando passageiros pelo rio — ela disse baixinho, — Viu o incêndio, ouviu os meus gritos e parou para me ajudar.
— Eu não sabia que capitães de barcos carregavam armas de fogo.
— Ele disse que já estava cansado de ser assaltado.
— Não disse o nome dele?
— Não. Claro que não faria isso. Ele tinha matado um homem. Para salvar a mim e ao Joe, mas, mesmo assim, tinha cometido um assassinato e não queria se envolver com a polícia. Ele salvou nossas vidas, Stuart.
— Isso está parecendo um romance de aventuras — retrucou Stuart, e, por um momento, Fiona achou que uma nuvem negra passava pelo céu e encobria o sol.
— Mas teve um final feliz, não é mesmo? — ele disse. — Você se casou logo depois?
— Sim. - ela disse, sorrindo. — Na casa de Joe. Em Greenwich. Onde você irá esta noite.
— É um bom rapaz?
— Ele é um excelente rapaz.
— Imagino. Você está simplesmente radiante. Nunca a vi assim tão feliz.
— Obrigada, Stuart. Eu mal posso esperar para que você o conheça.
Ele acariciou a mão dela.
— O Nick ficaria feliz por você. Sabe disso, não sabe?
Fiona assentiu com a cabeça. Olhou para a própria mão que descansava no braço de Stuart. Já tinha transferido a aliança de seu casamento com Nick para a caixa de joias, onde poderia olhar as iniciais dele gravadas sempre que quisesse lembrar-se do seu primeiro marido e querido amigo. Agora ela usava a aliança de Joe. E o lindo anel de escaravelho que ele lhe dera. Mas ainda levava o diamante que ganhara de presente de Nick na mão direita e não na esquerda. Joe não se incomodava. Na verdade, ele sempre dizia que agradecia a Nicholas Soames por ter cuidado tão bem dela.
— E quando a teremos de volta a Nova York?
— Daqui a um mês. Agora que você está aqui, espero colocar a companhia de Londres nos trilhos. Nos últimos meses, só me concentrei nos reparos e não pude fortalecê-la como esperava. Temos muita coisa para fazer, Stuart. Mas as fontes estão todas preservadas. Temos até a nossa própria fazenda! Você pode imaginar? O problema é que vamos começar praticamente do zero. Está tudo uma grande confusão. Eu estava pensando... será que você se importaria de ficar aqui por algum tempo? Talvez até por um longo tempo? E claro que haveria uma compensação. Um novo cargo. Presidente da GostoChá de Londres. E um novo salário.
— Eu me importar? Fiona, tão logo recebi o seu telegrama pra vir, torci pra que você me pedisse pra comandar a nova companhia. Sinto uma falta terrível desta velha Londres. Eu me senti nas nuvens e quase caí em prantos quando desembarquei do trem. Eu gostaria muito de voltar para a minha terra natal.
— Oh, Stuart, isso é incrível! Não podia ser melhor. Eu estou felicíssima!
— E quanto a você? Não vai se importar de deixar Londres?
— Vou sentir por deixar o tio Roddy, meus sogros, minhas cunhadas e cunhados, mas também sinto muita falta do resto da minha família, Stuart. Mal posso esperar para ver o Seamie e a Mary e as crianças — ela sorriu com malícia. — E até o Michael — E era verdade. Sentia uma baita saudade deles todos. Partira em julho planejando ficar apenas um mês. Já era quase outubro. Também sentia falta da GostoChá. Em sua ausência, Stuart foi magnífico no comando de tudo, mas ela estava ansiosa para ver sua fábrica e sua frota de carros e caminhões.
— E o seu marido? Não vai se importar de perdê-la para Nova York?
— Ora, não vou deixá-lo! — ela retrucou. — Ele vai comigo. Pretendemos passar três meses em Nova York e três meses em Londres para ver como é que fica — ela o deteve e apontou para o prédio de tijolinhos vermelhos à frente. — Aqui estamos — disse. — E esse. O Armazém do Oliver.
— Meu Deus! E enorme! — exclamou Stuart, afastando-se para ver melhor.
Fiona também se sentiu feliz ao olhá-lo, por ver que a obra progredia rapidamente. O armazém mostrava-se outra vez digno de orgulho. As manchas negras de fuligem já tinham sido removidas das paredes externas. A parede danificada fora reconstruída. As janelas e as portas dos escoadores já estavam prontas, As colunas e as vigas de sustentação no interior do prédio foram substituidas por novas e os construtores estavam colocando pisos novos. O chá já estava outra vez no depósito. As folhas de Assam que ela encomendara para a nova GostoChá londrina já estavam em caixotes no segundo piso. Enquanto olhava os operários que içavam tábuas para o quarto piso, ela sentiu uma brisa fresca que soprava do rio.
— Vamos entrar — ele disse.
— Vá em frente e olhe tudo. Eu irei logo depois — ela disse.
Stuart entrou e Fiona se dirigiu para a Old Stairs — a nova Old Stairs - para sentar-se perto da água por um tempo. Ela precisava ver seu amado rio para se recompor, amenizar a forte emoção que sentiu por ter contado outra vez o que tinha ocorrido na noite do incêndio do armazém. Caminhou até a escada e sentou-se em seu ponto favorito: no degrau do meio.
Dedicou-se por um tempo a observar as gaivotas e uma cotovia que ciscava à procura de alimento. Já desanuviada, olhou na direção do Armazém do Cole, o depósito de cereais ao sul do rio, onde teve aquele último encontro com o irmão.
As lágrimas brotaram de seus olhos, como sempre brotavam quando se lembrava da voz, do rosto e do longo abraço dele. Já tinha despejado muitas lágrimas, destroçada pela emoção e pela exaustão, e também pelas feridas, pelo terror por que passara e, por fim, pela alegria.
Durante o trajeto de barco, Charlie lhe disse que havia lido sobre ela nos jornais depois que ela tomara a companhia de Burton. Disse ainda o que sentira quando soube que Burton era o assassino do pai deles: choque, raiva e dor. E o quanto ficou feliz quando ficou sabendo que ela estava viva e bem. Ele instruiu seus homens para que não a perdessem de vista e que encontrassem Burton. Mas não conseguiram encontrá-lo porque o homem se escondeu muito bem. Somente depois que Tom e Dick agarraram O‘Neill, que seguiu Fiona até a casa dela e em seguida até Covent Garden, é que souberam que Burton estava escondido no último andar do Armazém do Oliver. Aquela altura, quase que foi muito tarde. Os dois tiveram que dar uma parada para telefonar para Charlie e logo ele e mais alguns homens entraram num barco. Quando Tom e Dick chegaram ao armazém já imaginando qual era a intenção de Burton, o prédio estava em chamas. Correram pela escada nova e safram em disparada pela margem, chegando a tempo de impedir que Burton a matasse.
Enquanto Charlie falava, seus homens remavam. Eles desembarcaram no armazém e entraram por uma porta lateral. Fiona ficou impressionada quando se viu num salão confortável e iluminado, mobiliado com mesas, cadeiras e poltronas e com comida e vinho. Colocaram Joe deitado num sofá com muito cuidado e lhe deram láudano para a dor. Um médico foi levado para lá com muita rapidez. A perna de Joe foi tratada e logo enfaixada. Não teria um tratamento melhor se fosse atendido pelo cirurgião da rainha. O doutor Wallace, era esse o nome dele, também tratou do ferimento de Fiona e fechou o corte com alguns pontos. A faca de Burton não tinha feito um corte profundo como na primeira vez e ela não tinha perdido muito sangue.
Depois, enquanto Joe repousava e Tom Smith e os outros homens comiam, Charlie levou Fiona para uma sala menor e mais privada. Lá havia uma grande mesa, algumas poltronas e alguns sofás. Eles se abraçaram mais uma vez e ela chorou de novo, agarrada ao irmão, enquanto ele acariciava seus cabelos e acalentava seus soluços. Foi com ela até um sofá e a fez sentar-se, servindo-lhe um cálice de vinho do Porto.
— Fi, você tem que parar de chorar. Por favor. Seus olhos estão tão inchados que já estão quase fechados. Eu estou aqui, está tudo bem - ele disse.
Ela assentiu com a cabeça, mas não parou de chorar. Em meio aos soluços, ela fez um milhão de perguntas para ele.
— Charlie, onde você estava? Nós achamos que você estava morto. Pra onde você foi? Eles tiraram um corpo do rio. E ele estava com o relógio do papai. Onde você esteve esse tempo todo? Por que você não tentou nos encontrar?
Ele esvaziou o conteúdo do seu cálice e em seguida, com urna dificuldade visível, narrou os últimos dez anos de sua vida, começando pela noite do último assassinato de Jack.
Ele estava indo para casa depois de ter saído do Taj, onde celebrara uma vitória. Era tarde, estava muito escuro e ele se surpreendeu quando viu um aglomerado de gente na Adam Court. Abriu caminho na multidão e se deparou com o corpo da mãe na rua, com o sangue jorrando nos paralelepípedos. Ouviu os gritos de Fiona e o choro do bebê. Ele se lembrava de ter tentado abraçar a mãe e impedido que os policiais a levassem. Depois, se lembrava de ter corrido. De ter fugido daquela cena apavorante. E também dele. Continuou correndo até que suas pernas não aguentaram mais de dor e seus pulmões ficaram em brasa e seu coração gritou para que ele parasse. Ele se viu então no coração sombrio de East London. No caminho da Isle of Dogs. Lá, passou por baixo de urna cerca e entrou num estaleiro, onde se escondeu em meio aos destroços de uma velha traineira. Não tinha a menor noção de quanto tempo passou naquele lugar. Horas, talvez. Ou dias. Quando saiu de lá, com frio e fome, já não sabia quem era nem onde estava. Aconteceu alguma coisa com sua mente; naquela época ele não sabia exatamente o que era. Danny Quinn é que disse que isso se chamava amnésia.
Ele vagou pelos estaleiros e pelos armazéns. Dormia em condições precárias e se alimentava dos restos que revirava nas latas de lixo. Depois, voltou outra vez para Oeste, seguindo o rio. Sua memória foi retornando pouco a pouco. De vez em quando, vinham-lhe à mente imagens de sua antiga rua, de sua família, de seus amigos. Mas essas imagens se dissipavam com a mesma rapidez com que apareciam. Até que, por fim, tudo clareou e ele se lembrou de que tinha um irmão, duas irmãs e que sua mãe fora assassinada. A dor foi demais para ele.
Charlie contou para Fiona que, certa noite, ele voltou para Adam Court a fim de encontrá-los, mas eles haviam deixado a casa. E ele, então, se deu conta de que não tinha mais ninguém nem para onde ir, e retornou às ruas.
— Mas por que você não tentou encontrar o Roddy? — perguntou Fiona. Ele poderia ajudá-lo e lhe dizer onde eu e Seamie estávamos.
— Eu tentei — ele respondeu evasivamente. — Eu o procurei no antigo apartamento, mas ele já não estava lá.
— Mas, depois que você desapareceu — ela continuou —, encontraram um corpo no rio. Roddy o identificou. Era ruivo e estava com o relógio do papai. O relógio que ele deu pra você. Charlie, quem, afinal, está enterrado no seu lugar?
Ele olhou para o vazio.
— Quem, Charlie?
— Sid Malone.
Fiona levou um susto.
— Como?
Ele tespondeu, atropelando as palavras. Já tinha recuperado a memória e, uma noite, ele se viu na High Street de Wapping. Estava revirando uma lata de lixo quando alguém o agarrou pelo pescoço. Era Sid Malone, seu velho adversário.
— Ora, ora, se não é você! Todo mundo está querendo saber o que houve contigo. Ouvi dizer que você tinha fugido. Eu sempre soube que você era um covarde — foi o que disse Sid Malone. Depois, deu um soco no nariz de Charlie, quebrando-o. Ele ficou cego por alguns segundos e o agressor aproveitou a chance para ganhar vantagem. Sid começou a vasculhar os bolsos de Charlie. Não havia dinheiro, só o relógio do pai dele. Sid o pegou, colocou-o no bolso e voltou a esmurrá-lo. Disse que iria matá-lo e que jogaria o corpo dele no rio. E certamente faria isso. Os punhos de Sid eram treinados e o colocaram no chão. Charlie tentou se levantar. Seus dedos se agarraram em um paralelepípedo que estava solto. Ele o pegou e o usou de maneira cega. Ouviu um estalo surdo e molhado.
Tinha acertado a cabeça de Sid. Quebrou-a. Tentou reanimá-lo, mas em vão. Ficou com medo de que a polícia não acreditasse que ele tinha agido em legítima defesa quando encontrasse o corpo. Ele seria enforcado. Em pânico, Charlie acabou fazendo aquilo que Sid havia dito que faria; arrastou o corpo por uma doca até o rio e o empurrou para a água e, na correria, esqueceu de pegar o relógio.
— Na verdade, eu não procurei o Roddy por causa disso — ele admitiu. — Minha preocupação é que alguém tivesse visto o que fiz com Sid. Eu não queria envolver o Roddy.
— Mas ele teria acreditado em você, Charlie — disse Fiona, caindo outra vez em prantos. — Ele o teria ajudado.
— Preferi procurar o Denny. Foi ideia dele que eu assumisse a identidade do Sid. Ele disse que o cara não tinha família. Sugeriu que eu sumisse, que fosse para o lado sul do rio, onde ninguém me conhecia. O Den cuidou de mim. Olhou por mim durante todos esses anos. Estávamos para nos tornar sócios. Nós dois. Um negócio que abrangeria toda East London, o lado sul e o lado norte do rio. Ele me ensinou a sobreviver, Fiona. Ele me tratou como um filho.
— E transformou você num criminoso — retrucou Fiona, com delicadeza.
Ele desviou o olhar e logo se virou de novo para ela, com o dedo em riste.
— Eu não tinha nada! Ninguém! Eu tinha que sobreviver, Fiona. E sobrevivi. Talvez não da sua maneira, mas da minha. Da maneira de East London.
— Roubando, Charlie? Quebrando as cabeças dos outros? Fazendo as mesmas coisas que Bowler Sheehan fazia? O Sheehan, se lembra? O homem que matou o nosso pai?
Charlie contraiu o queixo.
— Acho que já é hora de você ir para casa — ele disse. — Tommy! Dick! — ele berrou.
Fiona se deu conta de que tinha tocado fundo nele.
— Não, Charlie, ainda não. Converse comigo, por favor.
— Charlie, quem? — ele retrucou, com um misto de dor e desconfiança no olhar. — Meu nome é Sid. Sid Malone.
Ele deu-lhe um beijo de despedida e pediu para que ela não tentasse encontrá -lo Depois, ela foi retirada do escritório sob protestos e lágrimas pelos homens dele.
Os dias que se seguiram foram tremendamente penosos. Tão logo os homens de Charlie os deixaram na casa de Joe, ela telefonou para Roddy na delegacia. Roddy não estava lá, mas um policial o encontrou e disse onde eles estavam. Antes do fim do dia, ele já se encontrava em Greenwich, custando a acreditar que os dois estivessem vivos. Fiona contou tudo o que tinha acontecido para ele. E Roddy, um dos homens mais duros que ela vira, chorou como uma criança quando soube quem era Sid Malone de verdade. Certa noite, eles voltaram ao Armazém do Cole, ela, Joe e Roddy. O vigia não os deixou entrar, mas Roddy o persuadiu, exibindo suas credenciais. Vasculharam o armazém inteiro — todos os andares —, mas só encontraram carga. Toda a mobília, toda a comida e a bebida, tudo que pudesse indicar que alguém tinha estado ali, sumira.
Ocorreu o inquérito e com isso muitas perguntas difíceis. Fiona se recusou a identificar qualquer dos homens envolvidos no seu resgate e Joe fez o mesmo. Eles simplesmente disseram que não se lembravam. Estava muito escuro, e eles estavam em estado de choque.
Em seu íntimo, Fiona sabia da verdade e não fugia dela. Seu adorado irmão era um criminoso. Um ladrão. Um contrabandista. Um achacador. Um rufião lindo que tinha uns olhos verdes corno esmeraldas.
Mas ela também estava bem consciente de uma outra verdade: Charlie tinha salvado a sua vida. E a de Joe. Não lhe restava a menor dúvida de que, se não fosse por ele, os dois estariam mortos. E ele acabou fazendo aquilo que ela em dez anos de tentativas não tinha conseguido: destruir William Burton.
Ela ainda se arrepiava só de pensar nos momentos finais de Burton e em como ele quase a matou. E se arrepiava quando lembrava das coisas que ele falou antes de Tom ter atirado nele. Eta contou para Joe e Roddy todas as loucuras que ele disse. Roddy chegou até a fazer uma busca na casa de Burton, mas não encontrou indícios que o incriminassem. A faca que seria usada para matá-la tinha desaparecido com ele. Roddy obteve de Fiona a descrição da arma e concluiu que, pelo tipo e tamanho, poderiam muito bem ter causado os ferimentos de 1888 naquelas mulheres e nas duas prostitutas cujos corpos tinham sido encontrados recentemente.
— E bem provável que tenha sido ele — disse Roddy. — Eu não o descartaria, tendo em vista tudo o que ele fez. Mas, sem ele para responder às perguntas, nunca teremos certeza, não é mesmo?
Não, tio Roddy, ela pensava, enquanto olhava o rio, nunca teremos certeza.
As vezes, sua sensação é de que o tinha visto... Burton.., Jack... o homem sombrio. Caminhando ao longo da margem do rio, com sobretudo negro e cartola, e as mãos às costas. Ele se virava para ela, como se percebesse de súbito que ela o olhava, e a saudava com a cartola, desaparecendo, em seguida, nas águas escuras da entrada de Wapping ou nas sombras do Armazém Orient. Roddy dizia que ele estava morto; ninguém conseguiria sobreviver a seis tiros a queima-roupa. Ela também sabia que ele estava morto. Mas também sabia que ele estava vivo. Nas cicatrizes que deixara em seu corpo. Nas cicatrizes que deixara em seu coração.
Nas semanas que se seguiram à investigação, Roddy solicitou a sua transferência. Ele argumentou com os seus superiores que já tinha ficado muito tempo em East London e que pretendia tirar a família da cidade. Aguardava a sua transferência para Oxfordshire ou para Kent. Disse para Fiona que, se continuasse em Londres, inevitavelmente se defrontaria com Charlie e a ideia de prender o filho de Paddy era demais para ele. E acrescentou que o verdadeiro Charlie Finnegan estava morto. Morrera em 1888.
— E nós também, não é? — ela disse com pesar. De certa forma, eles também tinham morrido. Nenhum deles, nem ela, nem Roddy, nem Joe, nem Charlie, era a mesma pessoa de dez anos antes.
As lágrimas irromperam mais uma vez, O que ela diria para Michael? E para Seamie, que adorava o irmão mais velho? ―Não diga nada‖, aconselhou Joe. ―Deixe Seamie com as lembranças dele. Pelo menos dê isso para ele.‖ Fiona aceitou o conselho. Mas só por enquanto. Só por agora. Apesar de tudo o que Charlie tinha feito, ela não mediria esforços para tentar encontrá-lo. Ela o amava. E um dia o teria de volta. O verdadeiro Charlie, não Sid Malone. Ela não se deixaria perder a esperança. Ela não era de perder a esperança.
Enquanto a brisa enxugava suas lágrimas, ela ouviu passos atrás de si, descendo a escada. Voltou-se, achando que era Stuart, mas viu uma menina ruiva de nove ou dez anos de idade. A menina sorriu timidamente para ela.
— As vezes eu sento aqui pra olhar os barcos — ela disse. — O ar está gostoso hoje, não é? Está cheirando a chá.
Fiona retribuiu o sorriso.
— Está, sim. E porque o Armazém do Oliver recebeu ontem cinquenta toneladas de um Assam da melhor qualidade.
— Eu adoro chá — disse a menina, já segura de si. — O chá vem do Oriente.
Da India, da China e do Ceilão. Sei onde eles ficam no mapa.
—Você sabe?
— Sei, sim — ela disse, empolgada. — Um dia, eu irei para a India. De navio. Vou ter a minha própria plantação de chá e serei uma grande dama igual à mulher dos jornais, a senhora Soames.
— Acho que agora ela é a senhora Bristow — disse Fiona, com os olhos faiscando de satisfação para aquela menininha esperta com seu vestidinho de algodão e um casaco puído. — Você quer mesmo ir para a India?
— Quero, sim — respondeu a menina, com uma dúvida irrompendo em seus grandes olhos castanhos. — Mas, eu não sei... — ela olhou para as próprias botas, brincando com a ponta de uma delas. — A senhorita diz que eu sou tola. Ela diz que sou cheia de sonhos e que tenho caraminholas na cabeça.
— E? — disse Fiona, com os olhos apertados. — E quem é essa senhorita?
— E a minha professora.
— Pois ela está errada. Você não é tola. As pessoas que sonham são inteligentes.
— Verdade?
— Verdade, No dia em que alguém lhe tirar os seus sonhos, é melhor encomendar um caixão. Porque você estará morta.
— Isso é verdade? - perguntou a menina, de olhos arregalados.
Verdade verdadeira. Foi um homem sábio que me disse isso. Um homem maravilhoso que costumava vir aqui para olhar os barcos. Igual a você. Como você se chama, mocinha?
— Daisy.
— Bem, Daisy. Se você quer ter a sua plantação de chá um dia, é bom saber muito a respeito do chá.
— A senhora sabe?
— Sei uma ou duas coisas.
— A senhora pode me ensinar! — disse Daisy.
— A primeira coisa que você precisa saber é distinguir um bom chá de um chá ruim. E existem algumas maneiras de se fazer isso. Vem comigo que eu vou mostrar pra você
Fiona ofereceu-lhe a mão e Daisy a segurou. Elas subiram a Old Stairs. Atrás delas, os guindastes subiam e desciam, as barcaças se encontravam com as balsas e uma canção de marinheiros era levada pela brisa enquanto o Tâmisa fluía prateado. Imutável, implacável. Estendendo-se até os seus limites e atravessando pelas suas margens. Sempre e nunca o mesmo.
Jennifer Donnelly
O melhor da literatura para todos os gostos e idades