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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Chamado da Eternidade / Kurt Brand
O Chamado da Eternidade / Kurt Brand

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Chamado da Eternidade

 

Nem mesmo os homens mais chegados ao administrador descobrem a fraude; a máscara é perfeita.

    Thomas Cardif, o renegado, ocupou o lugar de Perry Rhodan: agora é Administrador do Império Solar.

    Ninguém, nem mesmo os amigos mais íntimos de Perry Rhodan ou os mutantes, desconfia de que o governo vem sendo exercido por um usurpador.

    Se o comportamento de Cardif não corresponde ao que se costumava ver em Perry Rhodan, a estranha conduta do administrador é explicada por meio dos danos psíquicos que Perry Rhodan sofreu quando era prisioneiro dos antis.

    Thomas Cardif pode sentir-se exultante, pois ninguém o desmascarou. Pode dirigir os destinos do Império Solar conforme melhor lhe aprouver, mesmo que sua atuação leve os povos da Via Láctea para a beira do abismo.

    Acontece que existe um fator que o usurpador não incluiu em seus planos: o Ser espiritual do planeta Peregrino, que adquiriu uma triste fama graças às suas brincadeiras macabras.

    De qualquer maneira, Ele ainda tem a decência de transmitir O Chamado da Eternidade...

   

                                               

   

    Para os terranos sempre seria Atlan, o solitário do tempo.

    Havia muita gente que nem sabia que o Imperador Gonozal VIII era o mesmo Almirante Atlan, que há mais de dez mil anos pusera pela primeira vez os pés na Terra. Por isso não deram maior atenção ao comunicado oficial publicado pela imprensa terrana que dizia o seguinte:

   

    Perry Rhodan, administrador, ordena, com base nos poderes que lhe são conferidos pelo art. 45, inciso IV e no art. 193, inciso II, que dentro de cinco dias retornem ao Império Solar todos os terranos que vêm prestando quaisquer serviços ao Imperador Gonozal VIII. Esta ordem entrará em vigor em 25 de agosto de 2.103.

    Administração do Império Solar,

                ass.: Perry Rhodan.

   

    Reginald Bell, o representante de Rhodan, acabara de abrir a Terrania Post, a fim de deleitar-se com seu jornal predileto, durante o café. A primeira coisa que lhe chamou a atenção foi o comunicado oficial.

    Arregalou os olhos. Furioso, amassou o jornal e atirou-o ao chão. Mas Bell logo recuperou o autocontrole. Aproximou-se do jornal amassado, abaixou-se e levantou-o. Alisou cuidadosamente o volumoso jornal e voltou a ler o comunicado.

    — Não estou sonhando — constatou em voz alta. Estava de pé junto à mesa, apoiando os braços na mesma e examinando o jornal.

    Voltou a ler a meia voz:

    — “...que dentro de cinco dias retornem ao Império Solar todos os terranos que vêm prestando quaisquer serviços ao Imperador Gonozal VIII...” Pela grande Via Láctea! Será que Perry faz questão de destruir em poucos dias aquilo que construímos no curso dos decênios? Por que o diabo não carrega suas decisões solitárias? Não; não pode ser verdade! Não é possível...

    Aquele homem de pequena estatura precipitou-se para o videofone.

    O relógio mostrava que eram apenas dez para as seis. O Marechal Solar Mercant ainda devia estar dormindo. Naquela situação isso não importava a Bell.

    A tela cinzenta começou a tremeluzir. As linhas estabilizaram-se, mas a tela não mostrou nenhuma imagem. O canal de som fez com que Bell ouvisse o sinal de chamada.

    — Sim — disse a voz de Mercant depois de vários toques. — Já vou!

    Dali a pouco o rosto de Mercant apareceu na tela. Parecia sonolento, mas Mercant estava bem acordado. Imaginava que devia haver um motivo importante para que Bell o chamasse.

    — O que é que há?

    — Um momento — respondeu Bell.

    Por um instante seu rosto desapareceu da tela que Mercant via à sua frente. Quando voltou, encostou ao videofone a página da frente do Terrania Post.

    — É isto, Mercant. Consegue ler?

    Não houve resposta.

    Bell guardou o jornal. O videofone transmitiu a imagem de dois homens que se fitavam em silêncio. Um deles balançou a cabeça, num gesto de mudo desespero. Era o Marechal Solar Mercant, chefe da Segurança Solar.

    Finalmente Mercant recuperou a fala.

    — Atlan já chamou?

    Bell deu de ombros.

    — Ainda não entrou em contato comigo. Mas talvez tenha falado com o chefe.

    — Estarei aí, dentro de cinco minutos, Bell. Não farei a barba nem lavarei o rosto. O senhor tem umas doses de conhaque em casa?

    Passava pouco das seis, e Mercant queria tomar conhaque em jejum!

 

    Às seis e meia Bell e Mercant haviam deixado a garrafa pela metade. Desde o momento em que Mercant chegara à sua residência, Bell andava ininterruptamente de um lado para outro.

    Nem pensaram em entrar em contato com Perry Rhodan.

    Seria inútil.

    Desde que acontecera a catástrofe de Okul, durante a qual Perry Rhodan caíra nas mãos dos antis e de seu filho Thomas Cardif, uma mudança assustadora se verificara com o chefe. Tudo aquilo que antes o distinguira e lhe conferira uma posição especial, em virtude de suas capacidades extraordinárias, deixara de existir ou se manifestava muito raramente.

    Rhodan, que nunca quisera tornar-se ditador, extorquia poderes extraordinários do Parlamento e se transformou num ditador de primeira linha. A melhor prova disso era a ordem, segundo a qual os terranos que se encontravam no Império de Árcon deveriam retirar-se imediatamente do grupo estelar M-13.

    Essa ordem fatalmente desencadearia uma catástrofe de âmbito universal e de conseqüências imprevisíveis no grande império, e faria com que Gonozal VIII duvidasse de que Rhodan continuava a manter a lealdade que lhe devia como amigo. O imperador não poderia dispensar a colaboração que lhe vinha sendo prestada por algumas centenas de milhares de terranos que ocupavam os postos mais importantes na administração de Árcon. Esses terranos formavam a espinha dorsal da estrutura estatal; eram os únicos elementos de confiança em meio a bilhões de arcônidas degenerados.

    Bell e Mercant não abordaram este ponto. Ninguém saberia avaliar a situação melhor do que eles. No entanto, sabiam perfeitamente que seria inútil procurar Rhodan e chamar sua atenção para este ponto, numa tentativa de fazê-lo mudar de idéia.

    Desde o momento em que Rhodan passara a tomar as decisões mais importantes em matéria de política mundial sem o concurso de qualquer pessoa, ele se tornara inacessível a todos os conselhos. Evitava todo mundo, inclusive seu grande amigo Bell.

    Para Bell, Perry Rhodan transformava-se num enigma cada vez mais complicado. Culpava os médicos pelas alterações do caráter de Rhodan. Desconfiava do tratamento de choque a que Rhodan tivera de submeter-se quando retornara de Okul, com a mente bastante abalada. Os próprios médicos não tinham muita certeza quanto aos efeitos do tratamento de choque e esquivavam-se às perguntas que lhes eram dirigidas.

    Até então nem suspeitara de que o homem que acreditava ser Perry Rhodan na verdade pudesse ser Thomas Cardif. Bell e os outros colaboradores mais chegados de Rhodan se obstinavam na idéia de que o chefe ainda estava doente e por isso tinha de ser julgado por padrões diferentes.

    — Não agüento mais! — exclamou Bell em tom violento e afastou a garrafa. Esta alusão não dizia respeito à bebida, mas ao esforço de compreender o último ato de Rhodan. — Acontece que não tenho nenhuma vontade de continuar a ver tamanha loucura e ficar quieto.

    Mercant ergueu os olhos. Pela primeira vez Bell deixara de andar de um lado para outro. Mercant disse no tom tranqüilo que lhe era peculiar:

    — Desde sua permanência em Okul, o chefe tem mostrado uma reação alérgica às irrupções temperamentais do senhor.

    Bell fez uma careta.

    — Ora, Mercant, não podemos tornar-nos coniventes pelo silêncio! Um dia, e esse dia não demorará a chegar, seremos todos apresentados a um tribunal que mandará apedrejar-nos por termos permitido que Rhodan agisse à vontade.

    Mercant não perdeu a calma.

    — Mister Bell, não podemos resistir às ordens do chefe. Na situação atual não hesitará em usar sem a menor contemplação os poderes extraordinários que lhe foram concedidos.

    Bell fitou o chefe de segurança. Parecia perplexo e demorou a recuperar o autocontrole.

    — Será que o senhor quer insinuar que Perry poderia mandar trancafiar-nos no xadrez só porque em sua opinião não obedecemos conforme devíamos?

    — É exatamente o que quero dizer, mister Bell.

    Reginald Bell deixou-se cair na poltrona.

    — Está bem — disse em tom contrariado. — Vejo que o senhor e eu pensamos da mesma maneira, Mercant. Mas não tenho a menor vontade de ser apedrejado um dia.

    Mercant interrompeu o homem impulsivo com um gesto.

    — Por enquanto prefiro não falar em conspiração e revolução, mister Bell. Tenho uma antipatia toda especial por palestras desse tipo. Sugiro que observemos o chefe ainda mais atentamente e que procuremos freá-lo.

    — O que espera conseguir com isso, Mercant? — perguntou Bell em tom contrariado.

    — Talvez consigamos ganhar tempo. Talvez...

    Bell interrompeu-o.

    — Será que o senhor sempre tem de começar suas frases com um talvez?

    O marechal solar sorriu.

    — Ontem conversei com Deringhouse e Freyt sobre o mesmo assunto. Chegamos a um acordo. Resolvemos retardar o cumprimento das ordens do chefe que possam produzir conseqüências mais graves até que possamos fazer tudo que esteja ao nosso alcance para evitar maiores prejuízos.

    — O que acha disto? — perguntou Bell em tom irônico, mostrando a Terrania Post. — Pretende colar os cacos resultantes da ação de Perry? Sabe lá o que Atlan lhe dirá?

    — Poderá haver um rompimento entre Árcon e o Império Solar.

    — Bem que gostaria de saber usar uma linguagem tão discreta como o senhor, Mercant — respondeu Bell em tom sarcástico. — Esta obra-prima do chefe transforma nosso tratado com Árcon num papel sem valor. Fomos nós, do Império Solar, que rompemos o tratado. Fomos nós...

    O videofone chamou.

    Bell levantou-se da poltrona e foi para junto do aparelho. O ajudante do marechal solar desejava falar com seu chefe.

    — É para o senhor, Mercant — disse Bell, afastando-se.

    Mercant acomodou-se à frente do aparelho.

    — O que houve?

    — Marechal solar — principiou o ajudante, segundo o figurino. — Acabo de saber, através de uma consulta pelo hiper-rádio vinda de Árcon I, que na noite passada o chefe chamou de volta todos os membros da Segurança Solar que se encontram em planetas arcônidas. A ordem dirigida a todos determina que se inicie imediatamente uma vigilância rigorosa de todas as bases da frota arcônida. Qualquer movimentação das respectivas unidades deverá ser avisada imediatamente. A cada seis horas, tempo padrão, terá de ser enviado a Terrânia um relato sobre as forças dos diversos destacamentos da frota arcônida.

    “É este o conteúdo da consulta que recebi pelo hiper-rádio, marechal solar. Tomei a liberdade de chamá-lo porque não encontrei nenhuma anotação sua sobre a ordem do chefe.”

    Mercant não deixou que seu interlocutor percebesse o que a notícia significava para ele. Perry Rhodan passara por cima dele ao transmitir ordens à Segurança Solar, e essas ordens acabariam por levar a um conflito bélico com Árcon.

    Apesar disso Mercant respondeu com um admirável autocontrole:

    — Obrigado pelo aviso, embora já tivesse conhecimento disso. Ainda lhe fornecerei um memorando a este respeito.

    O marechal solar desligou. Permaneceu imóvel.

    Não viu que às suas costas o ar tremeluziu e Gucky, o rato-castor, apareceu repentinamente. Ouviu a voz da pequena criatura, que se valera da teleportação para percorrer a distância que separava seu bangalô do de Bell.

    — Se eu descobrir o sujeito que inventou o provérbio “Quem cedo madruga, Deus ajuda”, eu lhe torço o pescoço. O chefe ordenou que a maior parte dos mutantes se dirigisse a Árcon e suas estrelas, a fim de realizar missões especiais. Trata-se de uma tarefa de vigilância específica! — piou Gucky e seus olhos de rato-castor chispavam.

    Mercant virou-se.

    — Conte logo, Gucky!

    Não havia muita coisa para contar. A maior parte dos mutantes encontrava-se no interior das naves espaciais que se dirigiam ao Império de Árcon. Gucky só se achava em Terrânia porque pertencia ao sexto destacamento, que partiria às dez horas, tempo padrão, no cruzador Burma.

    Evidentemente o rato-castor mais uma vez se valera das suas forças telepáticas para introduzir-se nos pensamentos de Bell e Mercant, embora isso fosse proibido.

    — Onde está John Marshall? — perguntou Bell.

    — Já saiu com o primeiro destacamento — respondeu Gucky, prontamente.

    Enquanto Bell e Mercant se comunicavam por meio de olhares, o rato-castor, que sabia ler pensamentos e podia dispensar as mensagens faladas, surpreendeu-os com outra notícia.

    — O comando especial com Alkher e Nolinow também está a caminho do Império de Árcon.

    Com isso até mesmo Mercant perdeu o autocontrole.

    — Gucky, se isso não for verdade... O rato-castor piou em tom furioso:

    — Allan, sei muito bem quando posso soltar uma piada e quando não posso. No momento não tenho a menor vontade para isso. Procurei insinuar-me nos pensamentos do chefe. Posso fazê-lo sem medo, já que suas faculdades telepáticas já se foram. Mas qual é o resultado? Nenhum. Perry só pensa em fragmentos. Isso é de amargar. Não é normal que alguém pense dessa forma. Talvez ultimamente seja capaz de irradiar parte de seus impulsos mentais para dentro de si mesmo ou de absorvê-los. E essa faculdade torna-se cada vez mais pronunciada.

    — Gucky...

    Não era a primeira vez que Allan D. Mercant tentava interromper o rato-castor, mas quando este começava a falar, não parava tão depressa. E agora, que Mercant conseguira dizer alguma coisa, a decolagem de grande número de espaçonaves tornou impossível qualquer forma de conversação.

    O barulho infernal surgido de repente fez com que os dois homens e o rato-castor corressem para o terraço.

    Um espetáculo impressionante desenrolou-se diante de seus olhos.

    Com os propulsores trovejantes, as unidades pesadas e superpesadas da Frota Solar erguiam-se do amplo porto espacial de Terrânia e iniciavam seu vôo pelo espaço.

    Os gigantescos veículos espaciais esféricos de oitocentos e mil e quinhentos metros de diâmetro precipitavam-se para o límpido céu matutino, acompanhados de grupos de cruzadores de várias classes e das naves supervelozes da classe Estado.

    De repente Gucky sentiu que alguém o agarrava pelos ombros e o sacudia fortemente. Bell berrou ao seu ouvido:

    — O que houve? Quem ordenou a partida da frota?

    A pergunta de Bell tinha sua razão de ser. Previra corretamente que Gucky, uma criatura bastante curiosa, se insinuaria nos pensamentos de um dos comandantes das espaçonaves que partiam, a fim de descobrir o destino da gigantesca formação de espaçonaves.

    Gucky piou em tom zangado:

    — Solte-me, seu bruto, senão não lhe contarei nada.

    A ameaça produziu o efeito desejado. Mercant também se inclinou em direção ao rato-castor.

    Gucky deu suas informações:

    — O destino é o Império de Árcon, mais precisamente o grupo estelar M-13, no setor de Hércules.

    — O que é que nossas naves vão fazer por lá? — berrou Bell, em tom exaltado.

    — Não sei, gorducho. E os comandantes das espaçonaves também não sabem. Apenas receberam ordem para dirigir-se ao Império de Árcon e permanecer em posição de espera.

    As naves esféricas foram subindo cada vez mais, e o ruído dos propulsores foi diminuindo.

    Finalmente a capital do Império Solar viu-se novamente envolta pela tranqüilidade daquela manhã ensolarada. Reginald Bell, Allan D. Mercant e Gucky saíram do terraço. Gucky foi mais rápido que os outros. Quando os homens entraram na sala, estava tomando um conhaque.

    — O que é bom para vocês também é bom para mim — disse em tom arrogante, enxugando a boca e passando a pata pelos raros pêlos de bigode.

    — Foi tomar logo do meu copo! — disse Bell em tom de recriminação. — Passe para cá!

    Arrancou o copo da mão do rato-castor, encheu-o e sorveu seu conteúdo de um só gole.

    — Quer mais um, Mercant? — perguntou.

    — Quero. Um duplo. Eu...

    Gucky só respeitava um ser humano, cujo nome era Perry Rhodan. Não se interessava pelo fato de que Mercant ocupava o posto de marechal solar e Bell era o representante de Rhodan. Não demonstrou a menor consideração ao interromper Mercant.

    — O chefe deve manter contato telepático com alguém. Infelizmente não consegui descobrir com quem. Só consegui compreender estas palavras: “Perry, você ficará grande e forte demais se não...” Depois disso o contato foi interrompido, como se o interlocutor de Perry tivesse notado minha presença. Não acham isso bastante estranho? Nunca vi uma coisa dessas. Tenho a impressão de que conheço a voz.

 

    Cardif-Rhodan voltou a ouvir a voz a que Gucky se referira. A mesma soou em seu subconsciente; parecia exorcizá-lo.

    — Você só dispõe de mais alguns dias de prazo, Perry Rhodan. Eu o previno! Desfaça-se do ativador celular, senão você ficará grande e forte demais.

    Ainda era muito cedo e Cardif-Rhodan havia trabalhado até altas horas. Apesar disso estava parado junto à janela do seu escritório, de onde acompanhava a decolagem em massa das naves esféricas que se dirigiam ao céu tingido pelas cores do amanhecer.

    Já conhecia a voz que acabara de soar em seu subconsciente. Ouvira-a todos os dias, desde que regressara de Peregrino. E todos os dias esta insistia para que se desfizesse do ativador, usando quase sempre as mesmas palavras. Concedera-lhe um prazo de cinqüenta dias.

    A advertência do Ser fictício de Peregrino só lhe provocou risos.

    Cardif soltou uma gargalhada, pois naquele momento revistara mais uma vez os conhecimentos de Rhodan a respeito do Ser Coletivo. Não conseguia dispensar ao Ser atemporal a veneração que Rhodan sentia pelo mesmo.

    Uma pessoa que conseguisse enganar nunca mereceria seu respeito. Ele ou Aquilo apenas servia para entregar-lhe as armas criadas por uma tecnologia superior, que exigira em termos precisos. Ele ou Aquilo não passava de um fornecedor de armas.

    Cardif dobrou o cotovelo direito e colocou a mão sobre o ativador que trazia no peito. Naquele instante sentia as pulsações de seu corpo, e agora também sentia o fluxo revitalizador que percorria o organismo.

    A eternidade estava chegando.

    Não chegara para os antis.

    Um sorriso de deboche desfigurou seu rosto, um rosto que bilhões de terranos e arcônidas continuavam a contemplar com grande admiração.

    Cardif nem imaginava como era feio naquele momento. Muito menos imaginava que dava ao seu rosto, feito à imagem do de Rhodan, feições diferentes, que combinavam com seu caráter originário.

    Seus olhos, que de tempos em tempos tinham que ser tingidos a fim de que a coloração vermelha não lhe traísse a identidade, emitiram um brilho frio. Deleitava-se com a desgraça dos outros. A morte do sumo sacerdote Kalal, ocorrida em Utik, provava que Ele ou Aquilo descobrira o roubo dos vinte ativadores pelos antis, o que fez com que agisse imediatamente, modificando a regulagem dos aparelhos sem sair de Peregrino.

    Cardif nem se deu conta de que essa suposição não tinha a menor lógica. E nem desconfiou de que Ele, o Ser de Peregrino, pudesse ter descoberto sua trama.

    — “...senão você ficará grande e forte demais.”

    Para Cardif, essa frase tinha um sentido profético. Ser forte como soberano da Galáxia, grande em espírito. Como essa força e essa grandeza poderiam ser demais?

    Contemplou o céu límpido, onde acabara de desaparecer pequena parte da frota. A partida da mesma representava mais um lance do xadrez cósmico. Queria provar a si mesmo que sua grandeza excedia a do pai, e queria mostrar aos antis que não era uma marionete, capaz apenas de desferir golpes mortais.

    Seu plano dera início à destruição de Árcon.

    Em todos os mundos de Árcon os terranos se preparavam para retornar ao Sistema Solar. O abandono dos postos fatalmente provocaria uma catástrofe no Império Arcônida. A essa catástrofe se seguiria a decadência e a destruição. O domínio do Império Solar representaria o fim de tudo.

    Cardif sabia perfeitamente que estava brincando com fogo. Conhecia a força das frotas robotizadas de Árcon. No entanto, não se esquecera de considerar a mentalidade de Atlan no seu plano refinado.

    O Imperador Gonozal VIII vivera mais de dez mil anos na Terra, com o nome de Almirante Atlan. Pensava e agia antes como um terrano que como um arcônida.

    Para ele, o pacto de amizade representava mais que um pedaço de papel. A ruptura de todos os tratados representaria uma tremenda sobrecarga psíquica para aquele homem. E sob a pressão dessa sobrecarga Atlan fatalmente tomaria decisões erradas. Acontece que cada decisão errada representaria um fator favorável ao Império Solar. Uma avalancha política se seguiria aos tumultos resultantes da retirada dos terranos e do avanço da frota solar. E essa avalancha afastaria Gonozal VIII do trono e imporia a ele, Thomas Cardif, que passava por Rhodan, a obrigação de intervir no grande império.

    — Intervir... — disse a meia voz e um sorriso sarcástico surgiu em seu rosto.

    Para Thomas, a intervenção representaria um processo de subjugação.

    A execução do plano acabara de ser iniciada. Não haveria nada que pudesse detê-lo. Ele, Cardif, passara todo mundo para trás.

    Dali a pouco, dentro de meia hora, ou talvez mesmo dentro de quinze minutos, todos se veriam diante dos fatos consumados.

    Não fora por nada que passara os últimos quinze dias e noites na elaboração do plano em todas as minúcias. Não fora por nada que solicitara um contato direto com o grande cérebro instalado em Vênus. Só mesmo a colaboração do grande dispositivo positrônico possibilitaria a execução coerente de todos os detalhes de um plano dessa magnitude e complexidade.

    Parado junto à janela, contemplava o oceano de casas de Terrânia. O panorama nunca deixava de fasciná-lo. Representava uma expressão do poder do Sistema Solar. E a ânsia pelo poder apossara-se de sua mente...

    Ainda se lembrava do tempo em que um patriarca dos saltadores queria transformá-lo em administrador. Naquela época rejeitara a proposta em termos ásperos, pois então sentia-se animado apenas pelo desejo de vingança, que o fazia ansiar pela destruição de Perry Rhodan.

    Esse desejo de vingança já não era tão forte. Fora substituído em grande parte pelo desejo do poder, mas Cardif não se dava conta disso.

    De repente seus pensamentos tomaram outra direção.

    Teve a impressão de ver à sua frente os jovens oficiais Brazo Alkher e Stana Nolinow.

    Depois de seu regresso da nave cilíndrica Baa-Lo, tripulada por antis, manifestara na sala de comando da Ironduke a suspeita de que ambos eram traidores. Suas declarações nesse sentido provocaram manifestações de incredulidade especialmente no Major Jefe Claudrin. O Marechal Solar Allan D. Mercant também não aceitara a afirmativa de Cardif nesse sentido.

    Cardif acenou com a cabeça. Já iniciara o plano secundário, por meio do qual os dois oficiais ficariam livres de qualquer suspeita de traição. Com esse plano, ele mesmo não se defrontaria com perguntas desagradáveis sobre quem poderia ter sabido que ele pretendia ir a Peregrino para pedir certa quantidade de ativadores celulares.

    Não foi por decência que Cardif resolveu reabilitar os dois jovens oficiais; era movido apenas por considerações práticas. Se os dois tenentes eram prisioneiros dos mutantes, havia o perigo de que um belo dia conseguissem fugir. E quando isso acontecesse, não teriam a menor dificuldade em provar que não havia revelado aos adeptos do culto de Baalol os detalhes da viagem que o chefe realizara para o planeta Peregrino. Além disso, Cardif não deixou de notar que seus colaboradores mais chegados costumavam fitá-lo com uma expressão que ora era pensativa, ora apavorada, ora desconfiada.

    Sempre que isso acontecia, ficava zangado, e invariavelmente decidia que dali em diante agiria, pensaria e tomaria suas decisões da forma que faria Rhodan. Acontece que seu ego era mais forte que sua vontade. Sabia perfeitamente que o saber recebido do pai, em Okul, empalidecia lenta mas seguramente.

    A transmissão do saber realizada às pressas em Okul, não foi cem por cento bem-sucedida. Muitos detalhes da vida de Rhodan estavam totalmente ausentes. Muitas vezes sentia-se apavorado ao perceber uma lacuna no saber recebido de Rhodan. Quando fez essa constatação pela terceira vez, resolveu transformar-se num homem solitário para evitar acontecimentos desagradáveis.

    Sabia que teria de viver solitariamente por vários anos, até que chegasse o dia de os primeiros colaboradores tomarem a ducha celular.

    Ele mesmo possuía o ativador e por isso não precisava da ducha celular. Acontece que Reginald Bell precisava, mas não a receberia. Nenhum dos velhos amigos de seu pai a receberia. Queria que todos morressem. Queria cercar-se de seus próprios amigos para nunca mais ver nenhum dos rostos que durante toda a vida lançavam olhares de admiração para Perry Rhodan — o homem que odiava profundamente por ter assassinado sua mãe.

    Às suas costas, o aparelho de intercomunicação chamou.

    Virou-se lentamente, sentou-se junto à escrivaninha e olhou para a direita, onde ficava a tela de comunicação visual.

    Era o oficial de plantão da grande estação de hiper-rádio. Havia um chamado de Árcon I, o mundo de cristal.

    O Imperador Gonozal VIII queria falar com Perry Rhodan.

    A tela mostrou o sinal que anunciava as palestras oficiais do imperador. Depois desapareceu e deu lugar ao rosto marcante de Atlan.

    — Perry Rhodan — gritou o imperador para o amigo, superando um abismo de 34.000 anos-luz. — Acabo de saber que você deu ordem para que dentro de cinco dias todos os terranos que trabalham no Império de Árcon voltem à Terra. Será que você poderia explicar o que espera conseguir com isso, bárbaro? E permita que lhe diga que me senti profundamente chocado com essa ordem, que me faz duvidar de sua lealdade?

    — Gosto de ouvi-lo falar com arrogância, almirante — disse Cardif-Rhodan em tom cínico. — Seu chamado me surpreende. Eu não lhe expliquei por ocasião de nossa última palestra, há uma semana, que preciso mobilizar todos os recursos humanos para cumprir o novo plano decenal do Império Solar? Será que você tem coragem de me acusar de não o ter avisado e de ter agido sem você saber? Ora, almirante, não posso conformar-me com nenhuma dessas acusações.

    O rosto do arcônida assumiu uma expressão rígida. Seguiu-se uma pausa de muitos segundos. O receptor zumbia em tons ora mais altos, ora mais baixos.

    — Você poderia fazer o favor de explicar por que há algumas horas parte da Frota Solar seguiu em direção ao grupo estelar M-13, Perry Rhodan? — perguntou Atlan, depois de algum tempo.

    — Realmente, parte da Frota está a caminho, almirante — respondeu Cardif-Rhodan, em tom frio. — Essa é outra pergunta que me deixa perplexo. Primeiro, segundo o tratado por nós celebrado, a Frota Solar tem permissão de penetrar à vontade no Império de Árcon e dele sair sem ser incomodada. Depois, acontece que nem Árcon nem o Império Solar dispõem das estações transmissoras com que está equipado o Sistema Solar; até parece que você se esqueceu disso. As naves saíram para recolher os terranos e trazê-los de volta ao nosso planeta. Será que você viu uma ameaça na aproximação de nossas naves?

    O rosto do arcônida assumiu uma expressão ainda mais sombria. Sua voz parecia trovejar quando disse:

    — Terrano, se eu não visse seu rosto na tela, seria capaz de jurar que estou falando com um estranho. Acontece que a pessoa que vejo diante de mim não é um estranho, mas um homem que acaba de revelar seu verdadeiro caráter.

    “Você escolheu o momento mais favorável, Rhodan. Você sempre soube quando podia golpear e quando devia esperar. Meus cumprimentos, bárbaro! E eu que fui idiota a ponto de acreditar que você era um homem decente. E olhe que vivi bastante na Terra para saber como são vocês. Meus parabéns, seu patife!”

    Cardif-Rhodan ouviu as palavras do arcônida sem pestanejar. Com um sorriso cínico disse:

    — Imperador, fique sabendo que Perry Rhodan nunca se esquece de uma ofensa recebida. Você pagará por isso. Para evitar outros mal-entendidos quero deixar bem claro que eu e o Sistema Solar não estamos dispostos a continuar a apoiar um ajuntamento de degenerados. Um belo dia, até mesmo a melhor boa vontade em ajudar a alguém chega ao fim. O Sistema Solar não é nenhuma instituição de caridade, Imperador Gonozal.

    O arcônida não perdeu o autocontrole.

    — Perry Rhodan, fico-lhe muito grato por sua extraordinária sinceridade. Já enxergo as coisas como realmente são. Será que nestas condições você ainda acredita que suas naves poderão viajar à vontade no Império de Árcon? Avise suas unidades que, neste mesmo instante, as frotas robotizadas de Árcon serão colocadas em estado de prontidão e receberão uma programação que fará com que cacem qualquer nave terrana que procure penetrar em nosso sistema.

    — Será que isso significa uma ameaça de guerra, imperador? — perguntou Cardif-Rhodan em tom frio.

    Confiava inteiramente no raciocínio do computador positrônico de Vênus, segundo o qual havia uma probabilidade de 67,4% de que Árcon não estaria em condições de sustentar uma guerra contra o Sistema Solar.

    — Rhodan, não fui eu que usei a palavra guerra. Não quero passar para a História como o destruidor de grande parte da Galáxia. Não possuo essa ambição criminosa.

    — Suas naves robotizadas não me impedirão de cuidar do regresso dos terranos que deverão retirar-se de Árcon, imperador! — exclamou Cardif-Rhodan.

    Rhodan e Atlan nunca costumavam chamar-se pelo título. Por isso o arcônida achou muito estranho que de repente Perry Rhodan o chamasse de imperador.

    — Rhodan — a voz de Atlan adquiriu um tom de súplica. — Acabo de eliminar a palavra amizade do meu vocabulário. No entanto, apelo para seu bom senso: não prossiga nesse jogo. Não se esqueça de que as vidas de bilhões de criaturas estão em jogo. E lembre-se de que a Terra também poderá ser destruída. Repito, Rhodan: se as unidades de sua frota penetrarem em Árcon...

    O arcônida que se encontrava no distante mundo de cristal ficou em silêncio.

    Notara pela imagem projetada na tela que Rhodan virará a cabeça. Perry fitava outras telas que ficavam à esquerda da escrivaninha.

    Aguçou o ouvido. O homem de Árcon I ficou perplexo ao ouvir que vinte e um grupos poderosos da frota terrana acabavam de saltar para dentro do grupo estelar M-13, vindos do hiperespaço.

    Mais uma vez Atlan assustou-se com o cinismo que Rhodan demonstrou para com ele.

    — Atlan, espero que você não procure impedir minhas naves de recolher os terranos que deverão retornar ao Sistema Solar. Na minha opinião, você perdeu o momento oportuno de uma reação militar favorável.

    Os olhos avermelhados do arcônida fitavam o rosto do ex-amigo com uma expressão de desespero. Em vão procuravam os traços com que estavam familiarizados.

    Atlan viu a imagem de um homem totalmente estranho, e as palavras de Rhodan se revestiam de uma estranheza assustadora.

    Atlan manteve-se em silêncio. O hiper-rádio voltou a emitir um zumbido irregular.

    A uma distância de 34.000 anos-luz, o olhar de Atlan parecia penetrar o homem que, segundo acreditava, era Rhodan.

    — Terrano — disse depois de algum tempo. — Ainda hoje será decretada a mobilização geral no Império de Árcon. Prepare-se! É só o que tenho a lhe dizer.

    O sósia de Rhodan manteve-se em silêncio. Continuou a fitar o rosto de Atlan projetado na tela, até que este desligasse.

    Levantou-se e foi novamente à janela.

    A seus pés estendia-se o imenso oceano de casas de Terrânia.

    Para ele, o quadro possuía um significado simbólico. O poderio do Império Solar jazia a seus pés.

   

    Há meses Rhodan dissera que o imperador de Árcon era um pobre-diabo. Referia-se ao cerimonial da corte imperial, que transformava Atlan num escravo da etiqueta.

    Não era nisso que o arcônida estava pensando enquanto lia as notícias vindas de todas as partes do império, que subitamente confluíam a Árcon I e sempre diziam a mesma coisa: os terranos se retiravam atabalhoadamente, grandes formações da frota terrana surgiam no império, notava-se uma atividade extraordinária da Segurança Solar no seio do Império Arcônida.

    A essa altura achava que a designação de “pobre-diabo” referia-se exclusivamente a ele mesmo.

    Dispensara a Rhodan, o terrano, a confiança que só se costuma dispensar ao melhor amigo. Prejudicara muita coisa em virtude dessa amizade; fizera muita coisa em benefício de Rhodan e à custa do império.

    E agora esse sujeito o traíra de forma tão vergonhosa. E não era só isso. Declarara-lhe cinicamente que o Império de Árcon, habitado por uma raça degenerada, apenas representava um fruto maduro a ser colhido pela Frota Solar.

    Atlan recorreu ao setor lógico de seu cérebro. Conforme se conclui das próprias palavras, o funcionamento dessa parte do cérebro baseava-se na lógica pura, e não estava sujeito à interferência dos sentimentos e de outros fatores que poderiam provocar um desvio. Além disso, deixava de considerar a traição cometida por Rhodan.

    Essa traição era um simples fato, tal qual a retirada dos terranos que trabalhavam no Império de Árcon e a invasão da frota terrana. Para o setor lógico, não importava que o fato fosse bom ou mau.

    — A única saída dessa situação catastrófica será uma aliança militar com o Sistema Azul! — balbuciou em conformidade com seu setor lógico.

    O arcônida, que fora obrigado a viver por mais de dez mil anos na Terra e sentia uma simpatia toda especial pelo gênero humano, fez um sinal de assentimento para a conclusão a que chegara seu setor lógico.

    E passou a agir de acordo com essa conclusão.

 

    O Grande Conselho de Ácon estava reunido em assembléia extraordinária.

    Uma série de boatos corria em Sphinx ou Drorah, o quinto mundo iluminado pelo sol branco-azulado. Pelo que se dizia, há algumas horas fora recebido um pedido de socorro de Gonozal VIII, Imperador de Árcon. Nele se teria solicitado auxílio para enfrentar a ação do terrano Perry Rhodan, que tentava abalar a estrutura do Império de Árcon, a fim de apoderar-se do mesmo.

    Com exceção de alguns altos personagens do governo, ninguém sabia em Ácon se esses boatos correspondiam à verdade ou não. No entanto, a própria reunião do Grande Conselho provava que grandes coisas estavam para acontecer na área da política galáctica.

    Os boatos provocaram inesperado efeito psicológico no seio do Sistema Azul.

    De repente os arcônidas, que por mais de vinte mil anos haviam sido considerados um grupo de descendentes degenerados dos acônidas e há poucos meses se tinham transformado num perigo iminente para o Sistema Azul, em virtude de uma aliança com o terrano Rhodan, voltaram a ocupar um lugar no coração dos acônidas.

    Os acônidas sentiram-se dominados pelo sentimento misterioso que garante a coesão de toda e qualquer raça. Compartilharam os sentimentos dos arcônidas ameaçados, e suas simpatias passaram a ser dedicadas exclusivamente aos colonizadores que há mais de vinte milênios haviam dado as costas ao seu mundo de origem.

    Os acônidas nem se deram conta se agiriam movidos por uma questão de sentimento. Seu instinto lhes dizia que o terrano Rhodan e sua poderosa frota representavam a maior ameaça à sua segurança. Ainda não se haviam recuperado da derrota que Rhodan lhes infligira.

    Os órgãos executivos do Grande Conselho já haviam estendido suas antenas em todas as direções, a fim de averiguar os sentimentos do povo. A assembléia extraordinária foi aberta com a revelação de que qualquer ação destinada a ajudar o Império de Árcon poderia contar com o apoio do povo acônida.

    Entre os membros do Conselho havia uma mulher. Era Auris de Las-Toor, uma jovem acônida de rara beleza e grandes encantos. Entre os acônidas era considerada a maior especialidade no que dizia respeito aos terranos e ao Império Solar. Ninguém conhecia os terranos melhor que ela. A jovem vira o Administrador do Império Solar bem de perto e também tivera um encontro com Gonozal VIII, Imperador de Árcon, que costumava ser chamado de Atlan por Rhodan.

    O velho Sa-Ga declarou aberta a assembléia extraordinária do Grande Conselho. Em breves palavras anunciou que todos os membros haviam comparecido e a seguir passou à leitura da mensagem de Gonozal VIII. Depois disso disse que concederia a palavra a quem dela quisesse fazer uso para discutir a mensagem.

    Lempart de Fere-Khar, o primeiro chefe que fora convocado, começou a falar. Chamou a atenção dos presentes para os vínculos raciais que existiam entre os acônidas e os arcônidas, e realçou discretamente o perigo que os terranos representavam para o Sistema Azul. Dedicou apenas três frases ao entreposto comercial terrano instalado em seu planeta. Foi justamente a discrição com que falou que deu peso aos seus argumentos. Teve a habilidade de aludir somente no fim de seu discurso ao entreposto comercial solar estabelecido em Drorah. Preferiu mesmo não o apontar como uma base militar disfarçada.

    Além de Lempart de Fere-Khar, mais oito acônidas fizeram uso da palavra. Três desses acônidas eram peritos em assuntos militares. Jogavam com cifras.

    Sua exposição terminou numa exigência:

    — O Império de Árcon deverá ceder ao Sistema Azul mil espaçonaves do último tipo. E o Império de Árcon deverá obrigar-se a colocar acônidas submetidos a treinamento hipnótico nos postos-chave da frota arcônida.

    A resposta constituiu num murmúrio de aprovação. Um único membro do Conselho não concordou com as exigências. Era Auris de Las-Toor.

    Pediu a palavra.

    — Pois não! — disse o velho Sa-Ga, e seus olhos sábios fitaram-na com uma expressão de curiosidade.

    Numa introdução habilmente concebida Auris ressaltou que não poderia pronunciar-se sobre as considerações dos perigos militares, já que essa área lhe era estranha. No entanto, tinha muitas ponderações a fazer sobre o juízo leviano que acabara de ser formulado a respeito dos terranos.

    Fez questão de enfatizar as palavras “leviano” e “muitas”.

    Abordou o recente passado. Referia-se exclusivamente ao terrano Perry Rhodan. Despertou nos membros do Conselho a lembrança dos inúmeros acontecimentos dos últimos tempos. Uma vez conseguido isso, formulou algumas perguntas em tom professoral:

    — Como teríamos agido se estivéssemos no lugar de Rhodan? A Galáxia não teria sido atingida pela guerra, pela destruição e pela morte? Se estivéssemos no lugar de Rhodan, não teríamos destruído totalmente esses acônidas arrogantes?

    Essas perguntas representavam uma verdadeira monstruosidade. Auris teve de ouvir ásperas respostas, pois suas palavras haviam despertado o nervosismo e mesmo a indignação dos membros do Conselho.

    Mas Auris de Las-Toor não deixou que os apartes a interrompessem. Transformou-se numa defensora de Perry Rhodan.

    — Não é possível que a situação do império seja realmente a que o Imperador Gonozal VIII expôs. Não é possível que o terrano Rhodan tenha traído seu amigo, o imperador. Deve haver algum mal-entendido, ou então surgiram circunstâncias que não podem ser avaliadas à distância a que nos encontramos.

    “Como membro deste Conselho não posso deixar de formular uma advertência. Não vamos apressar-nos em prometer o auxílio solicitado pelo Imperador Gonozal VIII. Vamos recorrer aos subterfúgios diplomáticos. O Grande Conselho tem o dever de averiguar a verdadeira natureza dos mal-entendidos assustadores que surgiram entre o Império de Árcon e Perry Rhodan.

    “Posso garantir que Perry Rhodan não seria capaz de cometer a traição de que o arcônida o acusa. Rhodan é um terrano que sabe dar o devido valor a uma vida humana; por isso também sabe quanto vale possuir amigos.

    “Grande Conselho, faço uma prece para que a sabedoria dos deuses e a compreensão dos grandes do nosso povo não nos abandonem neste momento, e que nos ajudem a tomar uma decisão adequada.”

    Quando Auris de Las-Toor voltou a sentar-se, foi acompanhada pelos olhares dos membros do Conselho. Ninguém conseguiu subtrair-se à impressão produzida por suas palavras. Mas o terceiro perito militar voltou a pedir a palavra.

    Desfez os argumentos de Auris, procedendo com uma lógica na qual não havia lugar para os sentimentos. E o material estatístico oferecido era esmagador.

    No momento em que o perito voltou a sentar-se, a decisão já estava tomada, antes que se passasse à votação.

    Com um único voto contrário decidiu-se prestar ao Imperador Gonozal VIII o auxílio de que Árcon precisava.

    Dali a uma hora, a maior emissora do Sistema Azul transmitiu ao grande império a resposta do Conselho. Essa resposta consistia exclusivamente em condições que, no seu conjunto, representavam uma série de grilhões que deixariam Atlan quase sem liberdade para agir a seu modo.

 

    O número dos robôs de guerra arcônidas que protegiam o imperador no interior do Palácio de Cristal de Árcon I fora triplicado.

    Fazia uma hora que o centro de computação de Árcon III lhe transmitira a mensagem vinda do Sistema Azul, juntamente com a interpretação de seu conteúdo.

    O enorme centro de computação de Árcon III prevenira o imperador para que não aceitasse a proposta. Sugeriu que se arriscasse o confronto com o Sistema Solar.

    A interpretação lógica revelou que a relação de forças seria de 58 por 42 a favor do Império de Árcon, desde que o imperador conseguisse obter o auxílio dos mercadores galácticos ou dos sacerdotes de Baalol.

    Atlan já havia lido pelo menos vinte vezes a interpretação do gigantesco cérebro positrônico. De repente perdeu o autocontrole.

    — A coisa ficou maluca! Esse cérebro não passa de um idiota! Quer que nos aliemos aos antis. São piores que Rhodan!

    Tinha toda razão para desconfiar do resultado da interpretação realizada pelo gigantesco centro de computação de Árcon III. O gigante positrônico nunca se mostrara capaz de formular um juízo correto a respeito de Perry Rhodan. O terrano sempre conseguira enganar o cérebro positrônico por meio de lances geniais, totalmente inesperados, já que o cérebro “pensava” segundo a lógica arcônida e não estava em condições de adaptar-se à mentalidade humana.

    Os olhos avermelhados de Atlan chamejavam. Tresnoitado e profundamente abalado com a traição inconcebível cometida pelo amigo, examinava a mensagem vinda de Ácon, a interpretação das condições contidas na mesma e o parecer do centro de computação.

    — Ora, os mercadores galácticos! — disse com a voz apagada. — Só estão esperando para fazer o melhor negócio de sua vida. Eles se mostrarão frios e irônicos quando eu solicitar seu auxílio. Dos antis nem se cogita. Acho que você conseguiu, Rhodan. Já se foram os tempos em que Árcon era um império independente.

    Lançou um olhar contrariado para o resultado da interpretação: 58 por 42. Não podia ser correta. A razão certa seria de 80 por 20, a favor do Império Solar.

    Apoiou a cabeça nas mãos.

    Achava-se desesperado e jamais se sentira assim em sua longa vida.

    — Não compreendo! Não consigo compreender. Por mais que me esforce, não consigo! — repetia constantemente.

    Pobre-diabo!

    Tinha a impressão de que ouvia essas palavras da boca de Rhodan.

    — Uma pessoa que pretende trair alguém não lhe dirige estas palavras!

    Atlan prestou atenção às suas palavras. Voltou a rememorar a situação em que Rhodan o chamara de pobre-diabo.

    Atlan conhecia os homens, conhecia seus lados bons e maus, também conhecera muitos traidores, mas não conseguia compreender o porquê da traição de Rhodan.

    — O gordo, ou então Mercant ou Deringhouse... — pegou o microfone e pediu uma ligação de hiper-rádio com Terrânia. Pretendia falar com Reginald Bell.

    Seguiu-se a espera martirizante.

    Essa espera foi encurtada por novas notícias alarmantes.

    Cerca de vinte e oito mil espaçonaves terranas encontravam-se no centro do grupo estelar M-13. Suas posições tornavam-se cada vez mais inconfundíveis. Circulavam em formação, bem próximas dos fortes estelares mais importantes do Império Arcônida.

    Atlan não precisou de nenhum mapa estelar para compreender que essa demonstração de força provava a situação de impotência em que se encontrava seu império.

    Além disso, a atuação da Frota Solar provava que esta seguia um plano elaborado com um cuidado extraordinário. O arcônida que se encontrava no Palácio de Cristal reconheceu ao primeiro relance de olhos a estratégia genial de Perry Rhodan.

    Finalmente a ligação de hiper-rádio foi estabelecida.

    A voz metálica do robô que trabalhava na central do Palácio de Cristal disse:

    — Eminência, mister Reginald Bell, em Terrânia, Terra, está pronto para falar.

    A tela que se encontrava ao lado do imperador iluminou-se. Atlan esperou que o rosto largo de Bell aparecesse na mesma.

    E começou a falar. Bell ouviu o que Atlan tinha a dizer. Vez por outra acenava com a cabeça. Finalmente chegou sua vez de falar.

    — Arcônida, há três dias o chefe não permite que ninguém dialogue com ele. Colocou-nos diante de uma série de fatos consumados. A todos nós, sem exceção. É bem provável que esteja ouvindo nossa palestra. Ainda bem. Dessa forma ao menos tenho uma oportunidade de deixar claro meu ponto de vista.

    O imperador interrompeu-o em tom impaciente.

    — Bell, não estou interessado em ouvir discursos. Não tenho tempo para isso. Por que vocês não puseram um freio à traição cometida por Rhodan?

    Bell respondeu sem pestanejar:

    — Porque há poucas semanas o Parlamento concedeu poderes ditatoriais a Rhodan. Mercant, Freyt, todos nós estamos com as mãos amarradas. Temos de obedecer, senão... Você compreende nossa situação?

    — Acontece que não compreendo a traição de Rhodan.

    — Você acha que nós compreendemos sua maneira de agir? — respondeu Bell em tom violento, respirando profundamente. — O chefe só pode estar doente. É a única explicação para as modificações havidas com ele, Atlan.

    A resposta do Imperador Gonozal VIII também foi proferida em tom violento:

    — Os terranos não viviam se orgulhando de serem individualistas? Onde está esse individualismo? O que é feito de sua formidável iniciativa? E da disposição de assumir riscos? Terrano, eu lhe garanto que não me sinto nada à vontade ao dizer-lhe que me sinto enojado.

    O homem atarracado berrou a uma distância de 34.000 anos-luz:

    — Compreendo perfeitamente que você tenha raiva de nós, Atlan, mas peço-lhe que procure compreender que, desde seu regresso de Okul, a mente de Perry está enferma...

    — Isso seria mais um motivo para que você ocupasse seu lugar! — interrompeu Atlan.

    Reginald Bell fez um gesto de cansaço.

    — Quem poderia adivinhar que o chefe estava tão doente? Ninguém. Nem mesmo os médicos. Afinal, por que você acredita que o pior está para acontecer, arcônida?

    — Porque as coisas não poderão ficar piores. Com a retirada dos terranos, meu império foi arrastado para a beira do precipício. Não posso continuar a manter-me inativo. Vou agir. Tomarei as providências que a situação exige.

    Atlan fez menção de interromper a palestra infrutífera, mas Bell apressou-se em responder:

    — Por que você acredita que o pior está para acontecer?

    O Imperador Gonozal VIII estacou. Era a segunda vez que Bell formulava essa pergunta. Atlan respondeu num tom que quase chegava a ser hostil:

    — Perdi a confiança nos terranos. Só tenho um desprezo infinito para os mesmos.

    Com estas palavras desligou.

    A sorte acabara de ser lançada.

    Não tinha outra alternativa senão aceitar as condições do Sistema Azul.

    De qualquer maneira, os dias de independência do gigantesco império estelar de Árcon estavam contados.

    — Perry! — exclamou Atlan. Era apenas uma exclamação... Procurou ouvir em meio ao silêncio da sala.

    Mas esforçou-se em vão.

    Não ouviu nada.

    No interior do Império de Árcon, as frotas do Sistema Solar cruzavam em posição de ataque.

    Thomas Cardif escutara a palestra que Atlan e Reginald Bell travaram pelo hiper-rádio. Quando Bell falou na doença mental de Rhodan e nas alterações de seu caráter, um sorriso de satisfação surgira em seu rosto. Mas uma pergunta fizera com que aguçasse o ouvido: “Por que você acredita que o pior está para acontecer?”

    Imaginava quais eram os planos de Bell, Mercant, Freyt e Deringhouse.

    Mas tomara suas providências para esse caso. Nenhum deles conseguiria realizar seu intento.

    A noite descera sobre Terrânia. A faixa macia da Via Láctea brilhava no céu límpido. Milhões de sóis reduzidos a pontos luminosos enviavam sua luz à Terra. Thomas Cardif ergueu os olhos para os mesmos, mas o que animava seu gesto não era a veneração, mas a sede do poder.

    O herdeiro do Universo era ele, o filho de Rhodan.

    Olhou para o porto espacial, que ficava bem distante. Viu uma pequena esfera banhada pela luz dos holofotes. Era a Ironduke.

    — Hum... — limitou-se a dizer.

    O aparelho de intercomunicação emitiu um sinal.

    Colocou-se à frente do mesmo. Um lacônico “sim”, que em Terrânia todos já começavam a temer, saiu de seus lábios.

    — O Marechal Solar Mercant deseja falar com o administrador a respeito de Nolinow e Alkher — anunciou a central.

    Muita gente tentara falar com ele nos últimos dias, depois que a Frota Solar decolara com destino a Árcon. E ele, Perry Rhodan, não recebera ninguém.

    Mas resolveu fazer uma exceção. Sabia por quê.

    — Aguardo Mercant! — disse para dentro do microfone.

    Esperou calmamente que o chefe do Serviço de Segurança aparecesse. Confortavelmente sentado na poltrona e totalmente descontraído, sentia-se senhor da situação. Deixou que o tempo passasse. De repente seu ativador celular voltou a funcionar.

    Sentiu um fluxo que se dirigia do aparelho para seu corpo.

    Era a vida eterna que lhe estava chegando.

    Mas no mesmo instante ouviu no subconsciente a risadinha que já conhecia tão bem. Era a forma pela qual Ele ou Aquilo anunciava sua presença diária.

    Cardif não prestou muita atenção à voz que se fez ouvir em seu interior. A advertência estereotipada começou a entediá-lo:

    — Se não quiser ficar grande e forte demais, Perry Rhodan, livre-se do ativador celular.

    Esta mesma frase voltou a soar. Cardif esforçou-se para não ouvi-la. Mas subitamente estacou. Hoje o Ser fictício de Peregrino falava mais que de costume.

    — Perry Rhodan, você ainda dispõe de um dia para livrar-se do aparelho. Não se esqueça de que uma grandeza excessiva pode ser um mal. Você sabe o que faz, Perry Rhodan!

    Sua reação a estas palavras consistiu apenas num sorriso de desprezo. Seu fornecedor de armas de Peregrino não era a grande entidade espiritual que Perry Rhodan sempre vira nele.

    Ele, Thomas Cardif, descobrira até onde chegava a capacidade do Ser. Notara por experiência própria que a faculdade de compreender o pensamento alheio, de que era dotado o Ser coletivo, tinha seus limites.

    Conseguira enganar o Ser de Peregrino. E nem pensava em desfazer-se do ativador.

    E Ele se despediu de Thomas Cardif com aquela risada indescritível. Os últimos sons desta risada fizeram-se ouvir no momento em que o Marechal Solar Mercant entrou, apesar da hora avançada da noite.

    — Faça o favor de sentar, meu caro Mercant — convidou Cardif-Rhodan em tom amável. — Quais são as novidades? Problemas políticos no sistema de Árcon? Ou será que se trata de um ataque das naves robotizadas arcônidas à nossa frota? Ah, sim! Acabo de me lembrar, Mercant. O senhor veio por causa de Alkher e Nolinow. Alguma novidade a este respeito?

    Mercant limitou-se a acenar com a cabeça. Colocou a pasta que segurava na mão sobre a mesa de centro.

    — Sir, existem novidades espantosas. Infelizmente, em seu conjunto, são por demais misteriosas.

    Cardif-Rhodan inclinou-se para a frente. Parecia curioso.

    O marechal solar iniciou seu relato.

    — Sir, nestas últimas horas tivemos várias surpresas. Estas surpresas tiveram início quando, entre outros veículos espaciais estacionados no interior da Ironduke, o jato espacial em que o senhor, Alkher e Nolinow voaram para Peregrino foi submetido a uma inspeção de rotina. Num canto, sob o painel de controle da sala de comando, foi encontrado um microtransmissor.

    — O quê? — a surpresa de Cardif-Rhodan foi muito bem fingida. — Na sala de comando do jato espacial...? É um aparelho do tipo que foi descoberto na musculatura dos braços do anti encontrado no entreposto comercial dos saltadores em plutão?

    — Não, senhor. É bem verdade que não existe a menor dúvida de que o microtransmissor foi produzido nas oficinas dos swoons. Esse transmissor liliputiano deve ter sido introduzido no jato espacial de uma forma que por enquanto representa um mistério para mim...

    — Faça o favor de ser mais breve, Mercant. Essa noite não estou disposto a resolver enigmas. O que há com esse transmissor? Quais são as finalidades preenchidas pelo mesmo?

    Era uma atitude típica de Rhodan. O mesmo nunca apreciara as falas prolongadas. Sempre fazia questão de ouvir apenas o que importava.

    — O microtransmissor — principiou Mercant — funcionava com a energia fornecida pelo computador do jato espacial, que ao mesmo tempo lhe fornecia a posição do veículo. O alcance do transmissor é de cem anos-luz.

    Se Mercant esperava qualquer reação do chefe, sentiu-se decepcionado.

    — O transmissor captava qualquer palestra travada no interior do jato espacial e a irradiava sob a forma de impulsos concentrados. A duração de cada impulso era pouco inferior a um quinto milésimo de segundo. O aparelho estava em condições de transmitir enquanto o propulsor do jato espacial estivesse funcionando. Realizamos ensaios de laboratório e constatamos que o aparelho deixou de funcionar no momento em que os antis envolveram o veículo num campo mental, tornando-o incapaz de voar.

    — Hum... — respondeu o sósia de Rhodan, e conseguiu fitar Mercant com uma expressão pensativa. — Dali talvez se deva concluir que minhas suspeitas para com os tenentes Stana Nolinow e Brazo Alkher não se justificavam. Mercant, se a informação que o senhor acaba de me dar for correta, serei o primeiro a desculpar-me formalmente perante os dois, isso naturalmente se ambos não estiverem mortos. Seria um prazer reabilitá-los em público. Como é que alguém poderia saber que eu voaria justamente com a 1-09?

    Um sorriso fugaz passou pelo rosto de Mercant. Sua alegria não era causada exclusivamente pelo interesse que o chefe acabara de demonstrar. Pela primeira vez nessas últimas semanas tinha a impressão de ver-se diante do velho Perry Rhodan, diante de um Rhodan sadio, de um homem que praticava com a maior facilidade a arte da condução de homens, que é impossível de ser ensinada. A pergunta que acabara de formular ressaltava tudo isso.

    — Sir, também andamos quebrando a cabeça com esta pergunta, até o momento em que interrogamos o oficial do hangar. Ele disse que se guiou pela idéia de que, se o chefe queria usar um jato espacial, o mesmo deveria receber o aparelho mais moderno. E o sujeito que colocou o microtransmissor num canto, embaixo do painel de controle, deve ter partido do mesmo pressuposto. Eu...

    — Um momento, Mercant. Eu me sinto culpado. Antes que prossigamos em nossa palestra, quero pedir-lhe uma coisa. Transmita uma declaração circular de hiper-rádio dirigida a todos os membros da Frota Solar, segundo a qual lamento ter acusado os dois tenentes de traição e não deixarei de pedir desculpas formais, se ambos regressarem à Terra. Mais alguma coisa, Mercant?

    — Sir — principiou o chefe do Serviço de Segurança. — Devo ressaltar que seus colaboradores mais chegados não concordam com a ação que a Frota Solar vem desenvolvendo no Império de Árcon.

    Cardif-Rhodan levantou-se. Mercant calou-se. Naquele instante viu sepultado um minúsculo raio de esperança.

    — Mercant, ainda tenho algum trabalho a fazer — disse Cardif-Rhodan.

    O marechal solar fez uma ligeira mesura, pegou sua pasta com documentos e retirou-se.

    Sentiu um calafrio. O caráter estranho que repentinamente passou a ser irradiado por Perry Rhodan era assustador. Mercant, que era um perito competentíssimo em sua área, nem desconfiava que o homem que, segundo acreditava, era seu chefe enfermo, o enganara no caso Alkher-Nolinow por meio do microtransmissor escondido no jato espacial.

    Num momento de tranqüilidade, Thomas Cardif chegara à conclusão de que se expusera demais com as acusações formuladas contra os tenentes Alkher e Nolinow. Foi só por isso que resolveu restaurar o conceito dos oficiais que o haviam levado a Peregrino. E, se Mercant e toda a Segurança Solar quebrariam a cabeça para descobrir quem instalara o microtransmissor no jato espacial, isso não o interessava nem um pouco. O marechal solar nunca pensaria que o chefe em pessoa poderia ter escondido o microtransmissor no veículo espacial depois de seu regresso à Terra.

    Lançou um olhar rápido para o relógio.

    Eram 3:18 h, tempo de Terrânia. Dali a uma hora o dia começaria a raiar. Para as 4:30 h tinha encontro marcado com um homem que naquela noite viera à Terra com uma nave cargueira cilíndrica. Pertencia a um clã dos mercadores de Aralon, o mundo dos médicos galácticos, e lhe transmitira lembranças de Fut-Gii.

    Um rosto desconhecido fitara-o da tela. Não lhe teria dado um minuto de atenção se não tivesse sido pronunciada a senha Fut-Gii.

    Fut-Gii fora um saltador insignificante. Talvez ainda estivesse vivo, se não tivesse cometido o erro de recusar-se a trabalhar para os antis.

    Pouco depois dessa recusa, Fut-Gii sofreu um acidente fatal. Morrera por ordem dos antis.

    Thomas Cardif conhecia os fatos. Durante quase cinco decênios trabalhara como médico para os adeptos de Baalol, usando o nome Edmond Hugher. Durante esse tempo não conhecia sua verdadeira identidade. Um bloqueio hipnótico inalterável que lhe fora imposto por uma máquina instalada em Árcon III impedia que se lembrasse de que era o filho de Perry Rhodan.

    Durante um ataque da Frota ao templo de Baalol no planeta Lepso, os antimutantes haviam descoberto e removido o bloqueio hipnótico que fora imposto a Edmond Hugher.

    Thomas Cardif despertou de um sono que durara cinqüenta e oito anos. Voltou a saber quem era e não se esqueceu de nenhuma das experiências que fizera durante os seis decênios em que usara o nome Edmond Hugher.

    Seu ódio ao pai cresceu ao infinito. Sentiu-se roubado dos melhores anos de vida, e não se esqueceu de que — segundo lhe constava — Rhodan era culpado da morte de sua mãe Thora.

    Agora parecia encontrar-se próximo ao objetivo final. Perry Rhodan fora colocado fora de ação e como prisioneiro dos antis estava escondido em algum lugar da selva estelar. Ele mesmo se fez passar por Perry Rhodan e há poucas semanas conseguiu que o Parlamento lhe conferisse poderes ditatoriais. E os acontecimentos dos últimos quatro dias provavam de que forma usava esses poderes.

    O Império de Árcon estava prestes a desabar. A Frota Solar só esperava o momento em que deveria apoderar-se dos mundos mais importantes do império estelar.

    O fato de que há poucas horas um agente dos sacerdotes de Baalol se anunciara com a senha Fut-Gii não lhe causava maiores preocupações. Possuía um arsenal de argumentos altamente convincentes, que obrigariam até mesmo o mais desconfiado dos antis a colocar-se de seu lado.

    Cardif abriu uma gaveta da escrivaninha na qual havia uma variedade espantosa de armas. Tirou cuidadosamente duas armas de choque, certificou-se de que estavam carregadas e escondeu-as sob as vestes.

    Após isso anunciou à central telefônica:

    — Nas próximas três horas não estarei presente.

    Entrou no elevador antigravitacional e subiu ao campo de pouso construído na cobertura do edifício. Ali havia constantemente três planadores à sua disposição. Os dois robôs que vigiavam um grupo de doze planadores dirigiram seus raios sobre ele, identificaram-no como Perry Rhodan e não lhe deram mais a menor atenção.

    Thomas Cardif entrou no veículo mais veloz. O propulsor começou a trabalhar com um ruído leve. No pequeno painel que se encontrava à sua frente as luzes verdes se acendiam. Finalmente a luz central começou a brilhar.

    O planador estava pronto para entrar em ação. Cardif fê-lo subir. Preferiu não ligar o farol. Subindo cada vez mais, tomou exatamente o rumo oeste e foi deixando para trás o oceano de casas de Terrânia. Dirigia-se à região que há uns cento e cinqüenta anos ainda fora a área mais quente do deserto de Gobi.

    Seguia uma rota desconhecida. Fora percorrida muitas vezes, tanto por ele como pelo verdadeiro Perry Rhodan. No fim dessa rota ficava um pequeno bangalô que há trinta anos fora dado de presente ao terrano Rhodan, porque um cruzador da Frota Solar salvara a nave bastante avariada de seu patriarca do naufrágio espacial.

    Em meio ao alvorecer cinzento do novo dia, Thomas Cardif pousou o planador entre as árvores do parque que se estendia à frente do bangalô.

    Desligou o propulsor, saiu do veiculo e, sem olhar para a esquerda ou para a direita, dirigiu-se ao amplo terraço. Naquela região solitária não precisava preocupar-se com sua segurança. Um grupo de trinta robôs de guerra regulados exclusivamente para suas vibrações individuais e submetidos a uma programação rigorosíssima submetiam o grande terrano a uma vigilância ininterrupta.

    Cardif, que estava familiarizado com todos os detalhes do terreno, atravessou o terraço, entrou no bangalô e, só quando chegou à sala de visitas, acendeu a luz. Dirigiu-se à única parede livre, fez a mesma rolar para trás e viu-se diante de um painel de controle. Colocou a chave mestra em outra posição. Uma tela até então invisível passou a mostrar o tremeluzir característico.

    Era uma tela localizadora, que reproduzia o espaço aéreo acima do bangalô, dividido em quadrados.

    Cardif verificou as horas. Se o agente dos antimutantes fosse pontual, seu planador deveria surgir na tela, dentro de alguns minutos.

    Assim que este pensamento passou pela cabeça de Cardif, um ponto fulgurante surgiu no quadrado 2-leste e deslocou-se lentamente em direção a 5-leste. Cardif ligou o rádio de pequena distância.

    — Quem é? — perguntou laconicamente.

    — Fut-Gii — respondeu a voz saída do alto-falante.

    Para Cardif, essa senha representava o sinal de que devia desativar a força combativa de todos os robôs, até que o planador tivesse pousado.

    Isso não representava nenhum risco para Cardif. A sala em que se encontrava estava protegida por um potentíssimo campo defensivo. Além disso, o equipamento de televisão lhe permitia verificar se o agente vinha só.

    O veículo pousou junto ao seu planador. A porta abriu-se e um homem desceu.

    Cardif ligou a aparelhagem infravermelha.

    O equipamento ótico instalado nas proximidades do terraço funcionava automaticamente em acoplamento com o telessetor. Por alguns segundos exibiu o interior do planador que acabara de pousar.

    Estava vazio. O agente dos antimutantes viera só.

    Satisfeito, Cardif acenou com a cabeça, desligou os controles, fez a parede retornar à posição primitiva e desativou o campo defensivo que envolvia a sala.

    Cardif e o agente que lhe transmitira lembranças de Fut-Gii encontraram-se no terraço.

    — Faça o favor! — disse Cardif, convidando o visitante a sentar.

    Este aceitou o convite, pôs a mão no bolso, tirou um objeto e colocou-o na mesa, à frente de Cardif.

    — É minha identificação — comentou. Era uma minúscula pirâmide-templo, a miniatura do templo de Baalol.

    Thomas Cardif devolveu o documento do agente. Compreendeu que o homem que se encontrava à sua frente não era um enviado qualquer, mas um homem investido de todos os poderes. A minúscula pirâmide provava isso, e Cardif conhecia os usos e costumes dos antis melhor que qualquer outro terrano.

    — Rhabol, o sumo sacerdote, envia-lhe lembranças, Cardif! — principiou o agente sem apresentar-se. — Acontece que todos os servos de Baalol sentem cólera quando se lembram de você. Estão de luto por Ka-lal, sumo sacerdote do planeta Utik, que morreu de uma doença misteriosa, a doença do “farejamento”.

    O sorriso silencioso e irritante obrigou o agente a ficar calado.

    — Diga aos antis, especialmente a Rhabol, que não sou culpado da morte de Kalal — respondeu Thomas Cardif. — Se o ativador celular, entregue a Kalal, deu a este a doença do “farejamento” em vez da vida eterna, a culpa na minha opinião é de Rhabol, que me obrigou a entregar esse ativador.

    “Meu Serviço Secreto me informou de como morreu Kalal. Seria ridículo responsabilizar-me por sua morte. Não sou o Invisível do mundo Peregrino, que sabe fabricar ativadores celulares. Mas na minha opinião um ser capaz de criar um aparelho, que confere a vida eterna, também deve ser capaz de modificar os efeitos desse aparelho, sem sair de Peregrino, quando este cai ou caiu em mãos não autorizadas...”

    — Você quer dizer que todos os aparelhos foram modificados, Cardif?

    O homem que envergava o uniforme simples do administrador respondeu em tom frio:

    — Não sou o Ser de Peregrino. Não sei. Mas será que a lógica não nos impõe a conclusão de que, consideradas as circunstâncias que cercaram a morte de Kalal, os outros dezenove ativadores também devem ter sofrido uma modificação? Vocês ainda não sabem o que está acontecendo em Trakarat?

    Fez como se não notasse o ligeiro estremecimento de seu interlocutor. Como este se mantivesse em silêncio, prosseguiu:

    — Você veio munido de poderes extraordinários. Pois bem. Podemos encerrar o tema ligado aos ativadores celulares e tudo que se relaciona com o mesmo. Eu...

    O agente interrompeu-o subitamente.

    — Fui incumbido de informá-lo de que o requerimento dos mercadores galácticos, que querem montar mais trezentos entrepostos comerciais no Império Solar, deve ser deferido imediatamente.

    Cardif fitou seu interlocutor com uma expressão de compaixão.

    — Os servos de Baalol não possuem visão política. Até parece que ainda não sabem do que vem acontecendo nestes últimos quatro dias no Império de Árcon. O grande império está prestes a cair nas mãos do Sistema Solar. Você acha que neste momento histórico vou criar dificuldades políticas no interior de meu império? E é o que acontecerá se eu permitir aos saltadores que, além dos escritórios que já possuem, montem mais trezentos entrepostos comerciais. Nem penso nisso, e muito menos permitirei que alguém me obrigue a fazer uma coisa dessas. Será que os servos de Baalol já se esqueceram de que tudo que resulta em meu benefício também resultará em benefício deles?

    O agente respondeu em tom hesitante:

    — Dispomos de informações dignas de crédito, segundo as quais o Imperador Gonozal VIII pretende formar uma aliança com o Sistema Azul. Nos termos dessa aliança, deverá obrigar-se a colocar à disposição dos acônidas mil espaçonaves do último tipo. Em compensação os acônidas cederão ao imperador oficiais submetidos a treinamento hipnótico para todas as naves arcônidas.

    Num instante Cardif recorreu aos conhecimentos que assumira de seu pai. Segundo essas informações, no Sistema Azul a navegação espacial deixara de existir, com exceção das viagens das naves do comando energético. O tráfego de um mundo para outro era realizado por meio de milhares de estações transmissoras de alta potência. Ainda segundo esses conhecimentos, uma aliança entre Árcon e os acônidas traria como conseqüência fatal a submissão do Império Arcônida à soberania do Sistema Azul.

    Cardif perguntou em tom indiferente:

    — O que acha Baalol da intenção de Gonozal, que pretende formar uma aliança com os arcônidas primitivos?

    — O Império de Árcon é nosso inimigo, Cardif. Será que esta resposta é suficientemente clara?

    — Não, agente. É muito vaga. Preciso saber o que os antis estão dispostos a fazer. Será que irão apoiar-me na minha luta contra Árcon?

    O outro empertigou-se de repente. Perplexo, fitou o homem que tinha tamanha semelhança com Rhodan.

    — Então? — perguntou Cardif no tom de um homem que sabe o quanto o tempo é precioso. — Você dispõe de poderes para fazer um acordo que vincule a outra parte ou não?

    — Você acha que sua ordem de atacar a Baa-Lo já foi esquecida? — indagou o agente, um tanto perturbado.

    — Isso são bagatelas! — disse Cardif com um gesto de desprezo. — Será que Rhabol acreditava que eu iria abraçá-lo, mostrando-me alegre? Se é tão idiota, então eu fiz uma idéia favorável demais a seu respeito. Pouco importa que tenhamos tentado enganar-nos um ao outro, agente. Nos próximos dias se decidirá se nos apoderaremos do Império de Árcon ou não. Quanto mais força eu tiver, maior será a vantagem de vocês e a nossa.

    — Quais são as garantias objetivas que o Império Solar nos dá, Cardif? — perguntou o agente, em tom exaltado.

    O falso administrador soltou uma estrondosa gargalhada.

    — Garantias? — perguntou, ainda rindo. — Só falta que você me peça que eu lhe dê as garantias por escrito. Ora, agente, não me sinto nada bem por estar submetido à chantagem de vocês, e agora vocês ainda querem que me amarre ainda mais fortemente aos antimutantes? Não. Eu os odeio demais para fazer uma coisa dessas. Será que me exprimi com suficiente clareza?

    — Cardif, você não está disposto a assumir qualquer compromisso?

    — Não. Não lhes garanto nada. Não farei nenhum acordo. Não formularei nenhuma promessa. Afinal, o que é que vocês querem? Rhabol não vive dizendo que não passo de uma marionete do culto de Baalol? Pois bem. Se é assim, os antis terão tudo quando eu me tiver apoderado do Império de Árcon.

    — Isso são sofismas, Cardif — falou o agente, em tom contrariado.

    — Obrigado — disse Cardif com um sorriso. Seus olhos chamejavam violentamente. — O que você acaba de dizer constitui a melhor prova de que os antis não têm tanta certeza de me terem nas mãos como pretendem fazer crer.

    — Peço-lhe que não se esqueça de Stana Nolinow e Brazo Alkher, os dois oficiais que, segundo você diz, nos informaram sobre seu vôo ao planeta Peregrino — disse o anti numa tentativa de chantagem.

    O agente viu-se brindado com um olhar de compaixão.

    — Ultimamente vocês sempre querem jogar seus trunfos depois que estes perdem seu valor. Ao que suponho, há uma hora foi expedida uma mensagem circular pelo hiper-rádio, dirigida a todas as naves da Frota Solar, segundo a qual os tenentes Alkher e Nolinow foram reabilitados e o administrador se desculpará formalmente assim que regressarem. Então, o que me diz, agente? Vamos entrar em negociações? Ou será que não temos mais nada a dizer um ao outro?

    O plenipotenciário dos antis deu-se conta de que tinha à sua frente um terrano frio como gelo, que sabia aproveitar qualquer chance sem revelar os menores escrúpulos.

    — Não há nada a negociar, Cardif!

    O agente teve de fazer um tremendo esforço para proferir essas palavras num tom de autoconfiança. Naquele instante convenceu-se de que os antimutantes haviam cometido um erro enorme ao avaliarem a personalidade de Thomas Cardif. Se o mesmo conseguisse apoderar-se do Império de Árcon, não estaria longe o dia em que ficaria em condições de subtrair-se totalmente à influência dos servos de Baalol.

    Cardif levantou-se com um ligeiro sorriso nos lábios.

    — Se não há nada a negociar, poderemos dar por encerrada nossa palestra, agente.

    O anti foi de opinião que deveria formular mais uma advertência.

    — Cardif, não subestime o poder de Baalol!

    O filho de Rhodan respondeu em tom áspero:

    — Uma alusão dessas não me amedronta. Vá embora, agente!

    Subitamente o anti mudou de idéia. Lembrou-se de que Cardif aludira ao planeta Trakarat. Ao que tudo indicava, o filho de Rhodan nem desconfiava do que havia atrás desse nome, mas o agente soube avaliar corretamente o desempenho da Segurança Solar. Tinha certeza de que os homens comandados pelo Marechal Solar Mercant não suspenderiam suas investigações, enquanto não tivessem descoberto o ponto da Galáxia em que o mundo Trakarat girava em torno de seu sol. Foi só essa circunstância que o fez proferir estas palavras surpreendentes:

    — Terrano, os antis não oporão nenhum obstáculo à sua tentativa de apoderar-se do Império de Árcon.

    Depois disso o agente retirou-se, deixando para trás um Thomas Cardif bastante pensativo.

   

    Fazia cinqüenta dias que Thomas Cardif, que se passava por Perry Rhodan, recebera do Ser fictício de Peregrino vinte e um ativadores celulares. Vinte desses aparelhos, dotados de dispositivo de regulagem individual, haviam caído nas mãos dos antis, quando o jato espacial de Cardif, pilotado pelos oficiais Nolinow e Alkher, foi apresado pela nave cilíndrica Baa-Lo.

    Durante cinqüenta dias Ele ou Aquilo, o Ser de Peregrino, formulara junto a Cardif a advertência estereotipada:

    — Desfaça-se do ativador celular, Perry Rhodan, senão você ficará grande e forte demais.

    Por cinqüenta vezes Thomas Cardif talvez não quisera compreender a mensagem do Ser coletivo. Agora, mais uma vez Ele fazia-se ouvir:

    — Perry Rhodan, você ainda dispõe de cinco minutos para desfazer-se do ativador celular. Recomendo-lhe que o faça. Não se esqueça de que um excesso de força e grandeza pode representar um mal.

    Desta vez a mensagem não foi seguida da risadinha. Chegou ao fim abruptamente, e Cardif viu-se a sós com seu ativador celular, pendurado ao peito, sob a roupa.

    Examinou algumas informações importantes vindas da área estelar M-13. Os membros da Segurança Solar que atuavam por lá diziam haver, invariavelmente, tumultos cada vez mais graves no Império de Árcon. Ainda aludiam a uma série de dificuldades econômicas e a um súbito recrudescimento das atividades dos mercadores galácticos.

    Reduzidas ao denominador comum, essas informações significavam que o império de Atlan se aproximava inexoravelmente do desmoronamento.

    Cardif, que naquele tempo só costumava ser visto no uniforme simples do administrador, estava manipulando uma pilha de informações quando subitamente uma dor insuportável fustigou seu corpo.

    Cardif, que em Aralon se tornara um médico famoso sob o nome de Edmond Hugher, não teve forças para diagnosticar seu estado. Caiu da poltrona, contorceu-se no chão e soltou um grito lancinante.

    A dor enlouquecedora estava em toda parte: no crânio, no tórax, nos dedos, nos braços, nas pernas.

    Um suor frio cobriu seu corpo. Teve a impressão de que iria enlouquecer de dor. Seu grito não tinha nada de humano: era apenas o pedido de socorro de uma criatura martirizada.

    Cardif-Rhodan não chegou a ver quem entrou precipitadamente. E não soube quem o levantou e o colocou sobre o sofá. Não ouviu quando os médicos mais importantes de Terrânia foram convocados às pressas.

    O médico de plantão entrou correndo.

    — Uma injeção! — berrou Reginald Bell, muito exaltado.

    O médico recusou-se a aplicar uma injeção no chefe, antes que este tivesse sido examinado.

    Acontece que Cardif-Rhodan não permitiu que o examinassem.

    Revirou os olhos. O suor lhe corria pelo corpo.

    Quatro mãos robustas seguraram o braço esquerdo de Cardif-Rhodan. A manga da camisa foi arregaçada. O médico fez pontaria com a seringa de pressão e aplicou-a sobre a musculatura do braço. No momento em que o fio finíssimo de líquido saía num chiado, o administrador voltou a contorcer-se num acesso de dor. E o líquido esguichou para o ar!

    — Não agüento mais! Não agüento mais... — foram estas as primeiras palavras que o chefe pronunciou. Ficou quieto por cinco segundos.

    Depois disso, o corpo do homem com o uniforme do administrador voltou a empertigar-se. Cardif soltou outro berro. Parecia que ia cair do sofá. O médico de plantão fez outra tentativa.

    Três quartas partes do conteúdo da ampola penetraram na musculatura do braço. O corpo do chefe amoleceu em meio a um grito. Esticou-se, virou-se de lado e de repente pareceu adormecer tranqüilamente.

    Reginald Bell soltou um gemido. Só agora se deu conta de que também estava banhado de suor.

    — O que houve com Perry? Que diabo, doutor! Examine-o logo.

    O médico plantonista fechou seu estojo de instrumentos. Balançou a cabeça.

    — Sir — principiou em tom hesitante. — Este caso não é para mim. Olhe o braço esquerdo do chefe. Aqui... e aqui! Mesmo nos lugares onde não há nenhum músculo, parece atacado por uma cãibra. Está duro como pedra. Nunca vi coisa igual na medicina. Peço-lhes que não insistam em que eu o examine. De qualquer maneira meu diagnóstico não seria correto.

    Bell certificou-se pessoalmente sobre os pontos a respeito dos quais o médico plantonista chamara a atenção.

    O braço esquerdo de Perry Rhodan parecia duro que nem pedra. Mas Bell constatou outra coisa.

    — Será que o chefe está com febre? Ou será que o calor que seu corpo irradia foi causado pela injeção?

    O médico colocou-se apressadamente a seu lado. Segurou o braço de Rhodan, procurou o pulso e começou a contar sem dizer uma palavra. À medida que prosseguia na contagem, maior se tornava seu espanto.

    — O pulso está completamente normal. Isso não corresponde ao efeito normal do analgésico que acabamos de aplicar. A pulsação deveria ficar ao menos vinte e cinco por cento abaixo do normal. E ainda há essa febre...

    Soltou o braço do chefe e colocou-lhe a mão na testa.

    A mesma parecia estar em fogo vivo.

    O médico voltou a abrir o estojo de instrumentos. Colocou o termômetro sobre a testa de Rhodan. O aparelho apurava a temperatura do corpo dentro de três segundos.

    — Trinta e seis vírgula cinco — balbuciou o médico ao ler a temperatura. — Não é possível! O administrador está pelo menos com quarenta graus de febre.

    O médico pegou o termômetro sobressalente. Enquanto fazia a leitura, mostrava a escala a Bell. Também indicava 36°5’.

    — Vamos deixar livre o peito — disse o médico, que já não sabia o que fazer.

    — O que é isso? — perguntou Bell quando Rhodan estava apenas de camiseta.

    Um objeto em forma de ovo, ligeiramente saliente, desenhava-se sob essa peça de roupa!

    Naquele instante Bell lembrou-se de uma porção de possibilidades, menos de um ativador celular.

    Por que iria pensar nisso? Perry, ele mesmo, Bell, e outros amigos iam a Peregrino a cada sessenta e dois anos para que lhes fosse aplicada a ducha celular. E a tal ducha bastava para evitar que dentro desse prazo houvesse qualquer tipo de envelhecimento.

    O médico tirou a camiseta do falso Rhodan. O tórax foi posto à mostra.

    — O que... o que... é i-isso? — gaguejou o médico, apontando para um objeto metálico em forma de ovo que penetrara pela metade no tórax do chefe.

    — Isso... isso... mas isso é...

    Bell não disse o que era. Já não compreendia mais nada. Perry Rhodan estava usando um ativador celular.

 

    O chefe estava inconsciente quando foi levado à clínica. Os médicos insistiram em que isso fosse feito.

    Três cirurgiões acabavam de concluir seus exames, mas nem pensaram em revelar os resultados.

    A equipe de seis neurologistas aplicou os contatos no corpo de Rhodan. Meissner, o chefe da equipe, constatara durante o teste um reflexo que em sua opinião não era natural. A parte do corpo em que pusera a mão era extremamente pobre em reflexos.

    O neuroton começou a funcionar. Era um aparelho produzido pela medicina dos aras. Registrava num espaço de tempo extremamente curto todos os fluxos nervosos do corpo.

    Ginseng, um neurólogo, não tirava os olhos do chefe, que continuava inconsciente e demonstrava uma tolerância extraordinária para o excesso de impulsos de radiações.

    Esse fato também constituía novidade numa pessoa inconsciente.

    Mais de vinte médicos sacudiam a cabeça. Rhodan, que por ocasião dos outros exames de rotina revelara ser um modelo de sanidade e se mostrava normal sob todos os pontos de vista, acabara de transformar-se num fenômeno da medicina.

    Meissner, o chefe da equipe de neurologia, soltou um gemido.

    — O que houve com o administrador?

    Estudou com uma ânsia nervosa os registros dos inúmeros fluxos nervosos.

    Bell explodiu. O medo pela sorte do amigo quase chegou a matá-lo. Os rostos perplexos dos médicos e cientistas multiplicavam seu medo ao infinito. Não compreendia o que diziam em sua linguagem especializada. Queria saber o que estava acontecendo.

    A reação dos médicos foi totalmente errada.

    Se o caso fosse outro, teriam toda razão em procurar livrar-se de um leigo que os perturbasse. Mas acontecia que este caso era bem diferente. Tratava-se do administrador, e Bell era representante do mesmo.

    Em atitude ameaçadora, colocou-se à frente do professor Legrand.

    — Ficarei aqui mesmo. Quero deixar isso bem claro. Saia da minha frente, senão me verei obrigado a tomar uma atitude violenta.

    O professor Manoli consertou a situação. Pediu desculpas a Bell. Mas este não estava interessado em ouvir pedidos de desculpas. Queria saber por que Meissner, o chefe da equipe de neurologia, parecia desesperado junto ao neuroton.

    — É bom que saiba de uma coisa — disse, dirigindo-se ao especialista em doenças dos nervos. — Não quero que me forneça explicações em sua linguagem secreta. Exprima-se de tal forma que todos possam entendê-lo.

    O chefe da equipe de neurologia deu início às explicações:

    — Está vendo estes traços, mister Bell? — estavam parados à frente da tela do neuroton. — São os fluxos nervosos. Esta área vazia, de formato oval, representa o ativador celular. Acontece que nem mesmo eu compreendo o que estou vendo neste momento. Um instante... Aquilo que não compreendo diz respeito aos meus conhecimentos médicos, não àquilo que aparece aqui.

    — Diga logo, doutor. O que está havendo com o ativador?

    — Prepare-se para o que está por vir, mister Bell. Esteja preparado para o pior. O chefe sofreu uma série de alterações inconcebíveis. De repente passou a possuir fluxos nervosos que não são encontrados num homem normal. Surgiu um contato orgânico entre todos esses fluxos nervosos e o ativador celular. Em virtude disso, o ativador não poderá ser removido por meios cirúrgicos. Se arriscássemos uma intervenção, o chefe não sobreviveria à mesma.

    — Mas o ativador não passa de uma peça de metal, doutor! Como é que os nervos de alguém podem entrar em contato com um pedaço de metal? Não venha me dizer que o senhor acredita numa tolice dessas! — esbravejou Bell, ainda mais nervoso que antes.

    — Quer queira, quer não queira — admitiu o médico, em tom simplório — não posso deixar de acreditar naquilo que o neuroton nos mostra. Quero pedir-lhe que se afaste, a fim de ceder lugar aos meus colegas para que estes possam convencer-se de que não cometi nenhum erro de diagnóstico.

    Os outros médicos confirmaram as conclusões a que chegara o chefe da equipe neurológica.

    Também não encontraram explicação para o fenômeno. O fato de fluxos nervosos, estranhos ao organismo, surgirem no corpo de Rhodan, e ocorrer a ligação entre uma substância orgânica e um objeto metálico, tudo isso representava um mistério para eles. Não sabiam dizer por que metade do ativador penetrara no tórax de Rhodan; não sabiam apontar a causa do súbito acesso de dor que acometera o chefe.

    Havia uma única pessoa que tinha uma explicação para tudo isso. E tratava-se justamente de alguém que não era médico: Reginald Bell.

    Este só pensava no Ser fictício de Peregrino: Ele ou Aquilo devia ter tramado uma coisa dessas. Só Ele seria capaz disso.

    Bell foi dominado por sentimentos conflitantes.

    Será que Ele, um Ser que, apesar do seu estranho senso de humor, até então nunca fizera mal aos homens, de repente se revelara como inimigo mortal de Perry Rhodan?

    Bell sentiu que havia algo de errado. E teve a impressão de que seu raciocínio sempre partira de um falso pressuposto, mas não conseguiu atinar com o erro.

    — O chefe está recuperando os sentidos!

    Foi o professor Manoli quem fez essa observação. Os neurologistas apressaram-se em remover os contatos. Quando Cardif-Rhodan abriu os olhos, procurou erguer o corpo e, perplexo olhou em torno, ainda havia três deles na altura do coração.

    Fitou os médicos como quem não compreende nada. Bell, que se mantinha num lugar mais afastado, não disse nada.

    — O que houve...? — indagou Cardif-Rhodan assustado, mas depois se calou.

    Num movimento instintivo pusera a mão sobre o ativador celular. E constatou que o aparelho penetrara pela metade no seu tórax e não havia como movê-lo.

    O pavor estava prestes a desenhar-se em seu rosto quando sentiu que o ativador entrava em funcionamento. E, mais uma vez, o fluxo que percorreu seu corpo era um pedaço da vida eterna.

    De um momento para outro a tensão cessou. Mas, no mesmo instante, as recordações voltaram.

    De um momento para outro sentira-se fustigado por dores de uma intensidade inconcebível, que quase o levaram à loucura, até que recebesse uma injeção de narcótico. E agora via-se no interior da clínica.

    — Acho que já estou em condições de levantar sem auxílio!

    Sua voz parecia completamente normal, e seu aspecto melhorava a olhos vistos. Levantou-se, sem dar ouvido aos protestos formulados por vários médicos. Passou os olhos pelo corpo e fitou o ativador. Voltou a olhar para os médicos. Conseguiu fitá-los com uma expressão um tanto divertida.

    — Isto deve ter provocado uma série de indagações nos senhores. Mas é bom que meu exemplo lhes sirva de consolo, pois também não consigo resposta a todas as perguntas que formulo.

    Nem desconfiou dos sentimentos que estas palavras provocaram em Reginald Bell.

    O mesmo rejubilou-se por dentro. Tinha certeza absoluta de que, para Perry, o pior já passara, e de que, dentro em breve, Rhodan voltaria a ser o velho amigo.

    Adiantou-se, pegou as roupas do chefe, estendeu-as em direção ao amigo, sem dizer uma palavra, e soltou uma risada de alívio.

    — Obrigado, gordo! — disse Rhodan, pegando suas roupas e exibindo o genuíno sorriso rhodaniano.

    Para Bell, isso representava mais uma confirmação de que o pior já havia passado para o amigo.

    Apesar disso três médicos fizeram questão de acompanhar o chefe e insistiram para que ficasse de cama até o dia seguinte.

    Cardif-Rhodan cedeu, aparentemente a contragosto. No seu íntimo sentiu-se satisfeito, pois a dor inesperada consumira muitas forças.

    Estava acostumado a ficar só. Mandou que Reginald Bell se retirasse juntamente com os médicos. A preocupação do gorducho deixava-o nervoso, e, além disso, preferia ficar só.

    Mal se viu só, deu vazão à sua curiosidade. Pegou o espelho e observou o ativador celular profundamente incrustado em seu peito. Não soube explicar como esse objeto em forma de ovo pôde enterrar-se tão profundamente, mas o fato não lhe causou maiores preocupações. Acreditava ter vencido a prova que lhe fora imposta pelo Ser fictício. A título de agradecimento, embora isso lhe custasse dores inacreditáveis, Aquilo colocara o ativador celular no lugar adequado, para que Cardif nunca o perdesse.

    Inebriado pela idéia de ter pela frente a vida eterna, Cardif-Rhodan acabou adormecendo.

 

    Uma das espaçonaves mais velozes do Império de Árcon corria em direção ao sol que no catálogo estelar arcônida era designado como 41-B-1847-ArqH. Esse sol distava 33.218 anos-luz da Terra, de onde vinha a rápida nave. Tal sol era uma pequena estrela amarela com dois planetas. O planeta exterior era habitado embora não fosse nenhum prazer viver em Saós. Sua gravitação era de 1,3 G, e levava 214 horas para girar uma vez em torno de seu eixo. O movimento de rotação extremamente lento provocava constantes tormentas, especialmente na zona de compensação, e as mesmas dificultavam bastante a vida nesse mundo.

    O conteúdo de oxigênio da atmosfera era muito reduzido. Em compensação a percentagem de nitrogênio e monóxido de carbono era elevada.

    O agente que se encontrara com Cardif-Rhodan ao amanhecer, no bangalô, estava a caminho de Saós.

    Sentia-se angustiado, pois desejava chegar o quanto antes às instalações industriais secretas, localizadas naquele planeta inóspito, bastante fustigado pelas tormentas, conhecido como Saós.

    O agente anunciara sua chegada por meio de um impulso concentrado. Sabia que os antis, que produziam em Saós seus inigualáveis projetores de campo defensivo, também ansiavam por falar com ele.

    Quando estava a caminho da Terra não seria capaz de imaginar que no vôo de regresso seria portador de mensagem tão importante.

    O Serviço Secreto Solar conhecia o nome Trakarat!

    O agente teve a impressão de que sabia de onde os terranos obtiveram o conhecimento do nome desse planeta. Só mesmo Kalal, o sumo sacerdote que morrera em Utik, da misteriosa doença do “farejamento”, poderia ter traído sua raça na agonia da morte.

    Há horas o agente via-se perseguido por este nome: Trakarat. Grudara-se nele que nem um fantasma.

    Trakarat!

    — Quando pousaremos? — perguntou em tom impaciente, dirigindo-se ao comandante da nave.

    — Aproximadamente dentro de três horas, senhor! — respondeu o comandante, em tom submisso.

    — Não posso esperar tanto, Mingo! — disse o homem que se apresentara a Cardif como plenipotenciário. — Por que fez um hipersalto tão curto? Por que não saímos do semi-espaço num ponto mais próximo de Saós?

    Mingo apressou-se em responder em tom submisso.

    — Senhor, peço-lhe que não se esqueça de que Saós está cercado por um anel de meteoritos. Sou responsável pelo bem-estar de Vossa Excelência, e eu mesmo tenho vontade de servir ainda por muitos anos com todas as minhas forças ao Baalol.

    Seu interlocutor fitou-o com os olhos semicerrados. Realmente se esquecera do anel de meteoritos que cercava Saós, mas nem pensava em confessá-lo. Voltou a fitar a tela. O lado esquerdo da mesma estava tomado por uma enorme concentração de sóis que se apresentavam como pequenos pontos luminosos. O coração do Império de Árcon, o sistema estelar M-13, situado na constelação de Hércules, apresentava-se com todo o esplendor em meio ao negrume do cosmos, cercado por uma luminosidade de cor madrepérola que fazia com que aquela concentração de sóis parecesse maior do que realmente era.

    O agente surpreendeu-se em meio a estas reflexões e espantou-se consigo mesmo. Até então o destino do grande império lhe fora indiferente. Pertencia ao povo dos antimutantes, e este só conhecia um objetivo: transformar o culto de Baalol no poder dominante. A intenção era subjugar todas as estrelas habitadas por seres inteligentes.

    Naquele instante sentiu uma ligeira tristeza ao contemplar o grupo estelar esférico M-13. No seu subconsciente comparara a personalidade de Gonozal VIII com a do homem que usava o nome de Perry Rhodan. Embora o imperador não ocultasse sua posição hostil face aos antimutantes, o agente o considerava infinitamente superior a Thomas Cardif. Este era o maior dos canalhas: um homem que não recuava diante de qualquer meio que pudesse servir para destruir o pai e fortalecer sua própria posição.

    Sob os efeitos destas reflexões e com a concentração estelar M-13 diante dos olhos, o agente desceu da nave assim que esta pousou em Saós. Pouco depois viu-se diante dos servos de Baalol, que já o esperavam ansiosamente.

    Notou imediatamente a estranha inquietação dos antimutantes.

    — Falei com Cardif — principiou, para calar-se logo em seguida.

    Olhou em torno. Estava cercado por cinco antis, e só três deles viviam permanentemente em Saós. Cuidavam da fabricação dos projetores de campos defensivos. O agente não conhecia os outros dois, mas concluiu pelas suas vestes que se tratava de pessoas importantes.

    — Aconteceu alguma coisa em Saós? — perguntou cheio de pressentimentos.

    O chefe de produção, um homem de pequena estatura, sacudiu a cabeça.

    — Em Saós, não. Mas na Terra.

    Por pouco o agente não perde o autocontrole. t

    “Thomas Cardif morreu!”, foi o primeiro pensamento descontrolado que veio à sua mente.

    — Thomas Cardif de repente adoeceu gravemente. Foi levado à clínica de Terrânia. Não sabemos qual é seu estado. A Segurança Solar deve ter prendido nosso elemento de ligação, que nos transmitiu a informação pelo hiper-rádio. Há algumas horas não conseguimos entrar em contato com nossa estação secreta de Terrânia.

    O agente levou algum tempo para digerir a notícia. Viu diante dos olhos de sua mente o homem que até então desempenhara o papel do administrador Perry Rhodan, sem ser descoberto. Seu rosto não revelara o menor sinal de doença. Pelo contrário, Thomas Cardif parecia vigoroso e juvenil.

    — Segundo as últimas notícias que recebemos de Terrânia, a súbita doença de Cardif está ligada ao ativador celular que traz consigo.

    O agente levantou-se de um salto. Essa reação constituía uma violação das normas de etiqueta dos antimutantes. Desculparam-no imediatamente. Os outros cinco lembraram-se de que sua reação à alarmante notícia fora idêntica.

    Não se preocupava com a saúde de Cardif porque tivessem uma simpatia toda especial por ele, mas apenas porque o mesmo, disfarçado em Perry Rhodan, era a figura mais importante em seu jogo pelo poder. Se não pudessem contar com Thomas Cardif, que era obrigado a fazer o que eles exigissem, poderiam sepultar seus planos.

    — Nosso irmão, o sumo sacerdote Rhabol, cometeu um erro grave ao não revistar cuidadosamente Cardif, quando ele estava preso a bordo da Baa-Lo. Se tivesse agido com a necessária cautela, não poderia ter deixado de encontrar mais um ativador em poder de Cardif, além dos vinte de que se apoderara. Se o filho de Rhodan morrer, como aconteceu com nosso irmão Kalal no planeta Utik, que foi vitimado, a bem dizer, pela histeria das multidões, tudo que já fizemos terá sido em vão.

    O agente confirmou com um aceno de cabeça. Naquele momento teve medo de transmitir a informação que trazia. Voltou a sentar e disse de supetão:

    — Thomas Cardif aludiu ao planeta Trakarat!

    Cinco mutantes levantaram-se de um salto; estavam apavorados. E os cinco exclamaram:

    — Trakarat?

    — Isso mesmo — disse o agente. — Thomas Cardif manifestou a suspeita de que os vinte ativadores celulares não produzam o resultado que se espera. E disse: “Será que em Trakarat ainda não sabem disso?” E disse estas palavras como quem sabe muito bem o que existe nesse planeta.

    — Será que foi Kalal? — gritou um dos antis em tom exaltado.

    — Kalal deve ter cometido uma traição. Nenhuma outra pessoa poderia ter mencionado o nome Trakarat; seria impossível.

    Os servos de Baalol levaram algum tempo para tranqüilizar-se. A notícia deixara-os profundamente abalados.

    — Voltei tão depressa, não apenas para trazer-lhes esta notícia, mas ainda por outro motivo — disse o agente, e ficou satisfeito ao constatar que lhe prestavam muita atenção. — Devemos colocar a Segurança Solar numa pista falsa. Se eles nos derem tempo e se não agirmos precipitadamente, poderemos usar os dois oficiais para levá-los a acreditarem que Saós é o planeta Trakarat.

    — Você se refere aos terranos Alkher e Nolinow, que Rhabol deixou aqui? — perguntou o anti cujo nome o agente não conhecia.

    — Naturalmente. Afinal, são terranos, e a Segurança Solar estará mais disposta a acreditar neles que nos arcônidas, nos saltadores ou nos aras. Se agirmos com bastante habilidade e deixarmos entrever numa palestra que, para nós, o planeta Saós também é conhecido como Trakarat, conseguiremos que por enquanto a Segurança Solar siga uma pista falsa. Se, além disso, insinuarmos que aqui existe um gigantesco estabelecimento, sem darmos a menor indicação da finalidade do mesmo, poderemos atrair uma frota de Rhodan para cá. Se concluirmos nossos preparativos em tempo, não teremos a menor dificuldade em colocar uma carga explosiva subterrânea que detonará no momento em que as naves de Cardif pousarem no planeta.

    O agente entusiasmou-se com suas próprias palavras.

    — Que plano idiota é esse? O que é que os dois oficiais da Frota Solar têm que ver com isso? — gritou um anti em tom contrariado.

    O agente reconheceu seu erro, aceitou a repreensão e acrescentou:

    — Devemos criar uma possibilidade de fuga para os dois terranos. E, ao fugirem, estes devem saber que Saós também costuma ser chamado de Trakarat, e que no hemisfério norte do planeta, no centro da área montanhosa, existe um gigantesco estabelecimento subterrâneo. No momento os dois terranos não valem nada para nós, mas se fugissem... poderiam prestar serviços inestimáveis a Baalol, desde que façam com que a Segurança Solar suspenda as operações destinadas a localizar o planeta Trakarat.

    O chefe de produção compreendeu o plano e manifestou sua opinião:

    — Não posso concordar! O perigo de que nossos projetores caiam nas mãos dos terranos é muito grande...

    Viu-se interrompido por um gesto autoritário.

    Alguém dirigiu-se ao agente.

    — Devemos examinar cuidadosamente todos os detalhes de seu plano. Na minha opinião deve ser executado o quanto antes. Será facílimo levar o equipamento destinado à produção de geradores de campos defensivos a outro planeta. O mais difícil será criar no hemisfério norte indícios que levem à conclusão de que por lá existam instalações subterrâneas.

    O agente, que se sentiu mais que feliz por ver seu plano aceito tão depressa, estava em condições de fornecer uma dica.

    — Um porto espacial em meio às montanhas, uma única construção junto à pista e uma estrada, que termina junto a uma encosta rochosa, devem ser suficientes para ludibriar os terranos. Além da carga explosiva atômica na encosta rochosa deverá ser instalada uma série de aparelhos que irradiem fortes impulsos energéticos. Não devemos esquecer que as naves solares estão equipadas com eficientíssimos instrumentos de localização energética, e certamente haveria desconfianças se tais aparelhos não reagissem por ocasião do controle das elevações que cercam o porto espacial.

    Os dois antis que, segundo supunha o agente, haviam vindo diretamente de Trakarat, fitaram-se com uma expressão indagadora. Depois de algum tempo acenaram com a cabeça. Um deles tomou a palavra.

    — Elabore todos os detalhes de seu plano. Não se esqueça de encontrar um meio de fazer com que os oficiais terranos saibam que se encontram em Trakarat. Apareça daqui a duas horas e apresente seu plano. Acreditamos que Baalol lhe deverá uma infinita gratidão.

 

    Mil espaçonaves arcônidas que mal haviam saído das linhas de montagem realizaram, depois de um único vôo experimental, o salto pelo hiperespaço que os levou ao Sistema Azul.

    Atlan concordava com as condições dos ancestrais dos arcônidas e fez com que seus robôs levassem as naves para Drorah, o mundo central dos acônidas.

    Três dessas naves estavam abarrotadas de aparelhos de ensinamento hipnótico.

 

    Às onze horas, tempo de Terrânia, o despertador tocou no quarto de Thomas Cardif. Despertou de um sono profundo e repousante, e piscou os olhos para o grande mostrador do relógio.

    “Por que liguei o despertador?”, refletiu, ainda sonolento.

    No mesmo instante lembrou-se. Ao meio-dia deveria chegar o relato diário de todos os grupos da Frota Solar que se encontravam no sistema de Árcon. Além disso, o Marechal Solar Mercant fora convocado para apresentar seu relatório à mesma hora.

    Cardif levantou-se, foi ao banheiro e começou a vestir-se.

    O uniforme limpo, cuidadosamente dobrado em cima do cabide, fora feito sob medida por alfaiates positrônicos.

    Enfiou as calças e fez menção de fechá-las. Estacou.

    “Desde quando tenho barriga?”, pensou, e examinou cuidadosamente a peça de vestuário.

    Sua personalidade médica despertou.

    Segurando a calça com uma das mãos, foi até o sofá e deitou-se. Suas mãos treinadas apalparam o abdômen.

    Repetiu a operação, mas ainda desta vez não constatou nada.

    Praguejou.

    — Não é possível! Será que...? — interrompeu-se. — Deve ser meteorismo.

    Mas o diagnóstico não o deixou satisfeito. Se fosse correto, deveria ter constatado um crescimento do abdômen.

    — Hum...!

    Cardif voltou a levantar-se. Fez força e fechou a calça.

    — Tem três centímetros a menos. E sinto-me muito bem...

    Um tanto contrariado, foi até o videofone. Pediu uma ligação com o médico de plantão. Este fitou-o; parecia muito preocupado.

    — Não é nada — disse Cardif-Rhodan em tom tranqüilizador. — Mande um purgante de ação rápida, doutor. É só. O melhor talvez seja o gelontifad.

    No mesmo instante arrependeu-se de ter pronunciado este nome. O gelontifad era um remédio ara que mal acabara de passar pelos testes clínicos nos mundos dos médicos galácticos. No Império Solar só uns poucos especialistas deviam conhecer o preparado, que dificilmente era encontrado. A resposta veio como um eco.

    — Gelontifad? — repetiu o médico, em tom de surpresa. — Sir, não conheço este preparado. Entrarei imediatamente em contato com a clínica e farei o pedido.

    Cardif só pôde confirmar com um aceno de cabeça.

    Acabara de cometer um erro imperdoável.

    A ligação não foi interrompida. Cardif afastou-se do ângulo de visão da câmara, passou a camisa por cima da cabeça, puxou-a para baixo e sentiu-se rijo de perplexidade.

    A peça estava apertada sob as axilas.

    Cardif sentiu-se dominado pelo medo.

    O cós da calça estava apertado, e a camisa muito justa sob as axilas. Ontem tudo assentara muito bem.

    O filho de Rhodan virou-se para o robô, que se mantinha imóvel num canto, aguardando suas ordens.

    — Dê-me outra calça e camisa! — ordenou.

    Viu o robô mexer no armário embutido e voltou ao banheiro.

    O homem-máquina seguiu-o prontamente. Cardif arrancou as peças de roupa de suas mãos. Vestiu outra calça.

    O resultado foi o mesmo.

    — Caramba! Devo ter engordado ultimamente, e só hoje noto. É o que acontece quando a gente não tem tempo de cuidar de si mesmo.

    Cardif ouviu sua própria risada. Era esta a solução do enigma. Poderia dispensar o purgante. Devia fazer bastante exercício para emagrecer.

    O robô continuava parado na porta que dava para o quarto.

    — Temos uma fita métrica por aqui? — perguntou Cardif.

    — Sim senhor — respondeu o robô. Depois virou-se e voltou a dirigir-se a Cardif no momento em que este se contemplava no espelho do quarto.

    — Aqui, sir! — disse entregando-lhe a fita métrica.

    Cardif passou a fita pela cintura.

    — Noventa e oito centímetros. Lembre-se disso!

    A última frase fora dirigida ao seu criado positrônico.

    O homem-máquina acenou com a cabeça. Cardif voltou a dirigir-se ao videofone.

    — Alô, médico de plantão — disse para dentro do microfone. — Daqui a cinco minutos poderei ser encontrado no meu escritório.

    Neste meio tempo, o pedido de fornecimento de gelontifad, transmitido pelo médico de plantão, provocara certo alvoroço na clínica central de Terrânia.

    — Perry Rhodan fez um pedido urgente de gelontifad.

    Acontece que o preparado não existia. O médico de plantão insistiu:

    — O chefe fez um pedido de gelontifad. Trata-se de um purgante.

    Fez-se uma consulta ao computador positrônico. A resposta foi negativa. O médico de plantão, que há alguns minutos aguardava uma interpelação áspera de Rhodan, gritou em tom exasperado:

    — Este remédio deve existir! Pois o chefe conhece. Arranjem-no!

    Isso bastou para provocar um nervosismo extremo em todos os recintos da clínica, geralmente tão tranqüila.

    Até mesmo a Segurança Solar teve conhecimento do fato, mas o major que recebeu a notícia e deveria tê-la transmitido a Allan D. Mercant estava de ressaca provocada por uma bebedeira da noite anterior. Leu a notícia, afastou-a de cima da escrivaninha e voltou a jurar que nunca mais beberia tanto, por mais gostosa que fosse a bebida.

    Os médicos da clínica central encontraram-se espantados com um colega que não sabia do que se tratava. Este fitava os homens confusos com uma expressão de perplexidade.

    — Gelontifad? — perguntou em tom de espanto. — É claro que conheço. Mas por aqui ninguém pode conhecê-lo. O remédio acaba de ser descoberto pelos aras. Só eu posso saber, pois acabo de chegar de Aralon.

    Nem um único dos médicos teve qualquer suspeita. Todos se sentiam satisfeitos por saberem que preparado era este.

    — É um purgante? — procurou certificar-se um deles.

    O colega que regressara ao Sistema Solar há vinte dias disse que sim.

    Por um triz Thomas Cardif não foi desmascarado.

 

    Brazo Alkher, que apesar de tudo conservara o aspecto de um rapaz desajeitado, levantou os olhos com uma expressão de indiferença quando seu companheiro Stana Nolinow voltou a entrar na cela, acompanhado por dois robôs de guerra.

    Stana Nolinow acabara de ser submetido ao décimo oitavo, ou talvez mesmo ao vigésimo interrogatório. Brazo Alkher tinha atrás de si o mesmo número de interrogatórios. Na manhã daquele dia, os antis haviam recomeçado tudo, depois de tê-los deixado em paz por alguns dias. Os dois jovens não sabiam que informações os antis queriam arrancar deles.

    Sem dizer uma palavra, Nolinow sentou-se ao lado de Alkher. Os robôs haviam desaparecido e a porta fora fechada, mas sem dúvida a barreira energética, que tornava impossível a fuga, voltara a ser ativada.

    — Cuidado, Brazo, dentro de dez minutos virão buscá-lo!

    Foi só o que Stana teve a dizer a respeito do interrogatório que acabara de enfrentar.

    Era impossível falar sobre o que quer que fosse. Cada palavra era captada e três objetivas de televisão observavam-nos ininterruptamente. Uma hora depois de sua chegada à cela, já haviam descoberto as instalações secretas e adaptaram seu comportamento às mesmas.

    Brazo Alkher, que exercera as funções de oficial de armamento na nave linear Ironduke, levantou-se e iniciou sua caminhada. Eram cinco passos em direção à porta, cinco passos em direção à parede. A porta não apresentava qualquer fresta; o mesmo acontecia com a parede. Além disso, os dois homens encontravam-se uns quarenta ou cinqüenta metros abaixo da superfície do planeta inóspito, chamado Saós.

    — Está começando a ficar nervoso, meu filho? — perguntou Nolinow, em tom um tanto irônico.

    — No momento não tenho tempo para isso — respondeu Alkher, laconicamente.

    A conversa, que mal fora iniciada, interrompeu-se. Alkher caminhava incessantemente de um lado para outro em sua cela subterrânea. Estava refletindo sobre alguma coisa. Notara que por ocasião dos últimos três interrogatórios, a que fora submetido nos últimos dias, sempre fora levado ao respectivo local por um caminho diferente. Perguntou a si mesmo se haviam agido assim intencionalmente, isto é, com uma finalidade determinada.

    O passo surdo do robô fez-se ouvir. A porta maciça abriu-se silenciosamente. Uma voz metálica mandou que Brazo Alkher o acompanhasse.

    Brazo despediu-se do companheiro com um ligeiro aceno de cabeça. Dois robôs colocaram-se aos seus lados, um caminhava atrás dele enquanto o quarto ia à frente.

    Prestou mais atenção ao caminho que das três vezes anteriores.

    Dali a dez minutos perdeu o sentido de orientação. Não sabia se sua suspeita de que estava sendo levado em círculo era correta. O caminho para a sala dos interrogatórios parecia infinitamente longo.

    Lembrava-se de como era o estabelecimento dos antis na superfície de Saós. Uma vez que seu disparo de radiações atingira os propulsores da nave Baa-Lo e lhe causara graves avarias, o pouso demorara cinco vezes o tempo normal. E ninguém impediu que ele e Nolinow olhassem de cima os edifícios e as áreas adjacentes.

    Em meio a uma depressão, cercada por montanhas íngremes, havia um conjunto circular de edifícios de vários tipos, que media pelo menos dois quilômetros de diâmetro. O ponto dominante era uma pirâmide, o templo, de mais de cem metros de altura. Ficava no centro das instalações que o circulavam. Havia, também, quatro edifícios com telhados em forma de abóbada, enfileirados em distâncias uniformes.

    Enquanto ele e Nolinow, que envergavam os trajes espaciais, eram conduzidos ao templo, conseguira lançar um olhar para um dos edifícios abobadados. Os enormes conjuntos de máquinas, que viu no interior dos mesmos, revelavam tratar-se de usinas que produziam a energia necessária ao funcionamento do grande complexo industrial.

    De repente Brazo, que já desistira de descobrir em que ponto situado embaixo da superfície se encontrava, se viu diante do conhecido poço do elevador antigravitacional que levava à pirâmide. Dali a pouco entrou na sala de interrogatórios, acompanhado pelos robôs.

    Brazo sentiu-se surpreso ao ver dois rostos estranhos entre os cinco antis à sua frente.

    Um dos desconhecidos apresentou o outro a Brazo.

    — Terrano, você responderá às perguntas do sumo sacerdote Kutlós.

    Alkher fez um rosto de jogador de pôquer.

    O interrogatório foi iniciado. Os antis foram formulando uma pergunta após a outra. Não foi em vão que o tenente se saíra muito bem dos exames da Academia Espacial. Soube esquivar-se habilmente das armadilhas colocadas à sua frente.

    De repente o interrogatório sofreu uma interrupção. Um anti saiu de uma sala contígua, parou à frente de Kutlós, inclinou-se e pediu-lhe que o acompanhasse.

    Kutlós levantou-se com mostras evidentes de contrariedade e solicitou ao anti, seu apresentador, que prosseguisse no interrogatório do terrano.

    Na opinião de Brazo, este se conduziu de maneira pouco hábil. Teve de esforçar-se desesperadamente para encontrar perguntas. De repente Brazo Alkher ouviu alguém pronunciar o nome Trakarat.

    Nem desconfiava que quem o pronunciara desejava que ele o ouvisse.

    E a resposta, que Kutlós pronunciou com a voz potente na sala contígua, destinava-se aos seus ouvidos.

    — Não permitiremos que os saltadores exerçam pressão contra nós. O estabelecimento central está em condições de defender-se.

    Dali a meia hora, quando foi levado de volta à sua cela, não deu a menor atenção ao caminho. O nome Trakarat e a idéia do estabelecimento central não lhe saía da cabeça.

    Stana Nolinow teria de ser avisado de qualquer maneira sobre o que acabara de descobrir. Em sua opinião era muito importante. Refletiu intensamente sobre o motivo por que esse planeta inóspito teria dois nomes: Saós, que era a denominação constante do catálogo estelar dos arcônidas, e o segundo nome, Trakarat.

    A idéia do estabelecimento central fixou-se em sua mente.

    Será que o complexo que vira da espaçonave, e que possuía mais de dois quilômetros de diâmetro, era apenas a ponta de iceberg que se tornava visível, enquanto a sua maior parte ficava oculta sob a superfície?

 

    O rosto marcante de Kutlós desfigurou-se num sorriso. Sorria para o homem que conseguira conversar nas primeiras horas do amanhecer com Cardif-Rhodan, num bangalô situado na Terra.

    — O que você acha? — perguntou num tom de espreita.

    — Acho que o plano simplificado será mais eficiente. E observei muito bem o jovem terrano com aspecto de adolescente, quando foi pronunciado o nome Trakarat. Não tenho a menor dúvida de que aguçou o ouvido e engoliu a isca. Se não precipitarmos as coisas, deverá ser possível criar uma pista falsa que talvez possa fazer que até mesmo Cardif venha para cá. Ao mesmo tempo, tal plano fará com que o Imperador Gonozal VIII tenha ainda mais motivo de queixas contra os terranos.

    O sorriso espalhou-se pelo rosto de Kutlós. Esfregou as mãos. Enquanto se levantava e abria os braços, disse em tom patético:

    — Para Baalol está raiando o dia de que falam as profecias!

    Depois disso inclinou o corpo e cochichou algumas palavras incompreensíveis.

    Saiu sem dizer mais nada.

    A execução do plano simplificado, que dispensava a construção de um falso estabelecimento central no hemisfério norte do planeta Saós, estava nas mãos do homem que garantira a Thomas Cardif que os antis não criariam nenhum obstáculo à sua ação dirigida contra Árcon. Na verdade, ele empenhava-se em cumprir a promessa, pois, fazendo uso do plano simplificado, conseguiriam até agravar as tensões entre a Terra e Árcon...

    Acreditavam que sabiam até onde poderiam chegar. E tinham certeza de que seriam bem-sucedidos, pois o único homem que representava um perigo para eles encontrava-se em seu poder. Era o verdadeiro Perry Rhodan.

 

    Bell entrou precipitadamente nos aposentos particulares de Allan D. Mercant.

    Viu que o marechal solar tinha visita. Era o Coronel Nike Quinto.

    — Que bom que o senhor está presente, Quinto — disse o homem baixo, dirigindo-se ao cabeça da Divisão III. — Acabo de estar com o chefe. Não consegui dizer nada. Depois de cinco minutos perdi todo o interesse em conversar com ele. Senhores...

    Bell fez uma pausa. Até então permanecera no centro do aposento, mas agora acomodava-se numa poltrona.

    — Senhores, receio que o pior esteja para acontecer ao chefe. Fiquei com ele uns trinta minutos. E nesses trinta minutos pegou pelo menos oito vezes uma fita métrica e mediu sua cintura.

    Fitou Mercant e Quinto com uma expressão de curiosidade. Ficou surpreso ao ver o chefe de segurança fazer um gesto de desprezo.

    — Todo mundo sabe que Rhodan está doente. E hoje eu soube por acaso que sofre perturbações digestivas. É só isso, mister Bell. Além disso, provavelmente está preocupado com a possibilidade de voltar a sofrer aquelas dores atrozes.

    Assim que Mercant começou a falar, o Coronel Nike Quinto levantou-se e aguçou o ouvido. Não teve tempo para formular sua pergunta, pois Bell antecipou-se.

    — Será que isso já faz com que alguém pegue a fita métrica? Para mim, os acontecimentos destes últimos dias são demais. Por que Perry arranjou um ativador celular? O que menos compreendo é o Ser de Peregrino! Por que Ele resolveu entregar um aparelho desses a Perry? Então, Quinto, qual é sua opinião?

    Quinto sacudiu a cabeça, num gesto comedido.

    — Mister Bell, não se pode dizer nada a este respeito, enquanto o chefe continuar envolto em silêncio. Mas essa história da fita métrica não deixa de ser interessante...

    — Não é interessante coisa alguma; é uma loucura! — berrou Bell, completamente fora de si. Logo se acalmou. — Mercant, não vim até aqui para bater um papo. Marechal, está na hora de...

    Mercant levantou-se. Compreendeu o que Bell quis dizer. Interrompeu-o de modo áspero.

    — Ainda é cedo para isso! Falei com meia dúzia de médicos. Não existe o menor indício de perturbação mental. Mister Bell, acho que o senhor compreende o que significa isso.

    Bell, que sentia mais intensamente que Mercant e Quinto o conflito entre o sentimento de fidelidade ao amigo e a noção do seu dever para com o Império Solar, corria nervosamente de um lado para outro. Parou abruptamente à frente do marechal solar.

    — Mas as coisas não podem acontecer assim! Se as unidades de nossa frota continuarem a provocar o Império de Árcon, dentro de dois ou três dias a Galáxia estará incendiada. Já não existem palavras capazes de exprimir o que Atlan pensa de nós.

    Mercant fitou-o prolongadamente.

    — Mister Bell, será que o senhor quer depor o chefe, face à simples suspeita de que poderia estar doente?

    Bell respondeu em tom furioso:

    — John Marshall, que acaba de regressar da missão desempenhada em Árcon, já me fez a mesma pergunta idiota. Caramba! Eu seria a última pessoa capaz de trair Perry, mas como colaboradores investidos de certa responsabilidade não podemos permitir que o Império Solar se arrebente!

    Estas palavras exprimiam um profundo senso de responsabilidade, aliado à preocupação com o destino de bilhões de seres humanos. Bell prosseguiu:

    — Procurei influenciar Marshall. Obriguei-o a penetrar nos pensamentos do chefe. Já que Perry não possui mais nenhum dom telepático, não existe a possibilidade de que ele perceba esse tipo de ação. O que acham que Marshall pôde informar? O chefe pensa para dentro! E ficou firme nesta afirmativa. Não consegui atinar com o que vem a ser isso.

    Sem dizer uma palavra, Mercant ofereceu-lhe um conhaque. Bell sorveu-o num gesto automático. Só depois de ter esvaziado o copo, se deu conta disso.

    — Levem isso daqui! Não quero saber mais de conhaque. Perdi todo o gosto por essa bebida. Boa noite!

    Bell afastou-se tão repentinamente como entrara. Enquanto os passos do gorducho ressoavam no aposento, Mercant e Quinto mantiveram-se em silêncio.

 

    Perry Rhodan sempre fora um madrugador, e Cardif-Rhodan seguia seu exemplo. Mas hoje de manhã seu despertar não foi nada gostoso.

    Não se sentiu reconfortado pelo sono. A primeira coisa que fez foi pôr a mão sobre a mesinha-de-cabeceira, onde estava guardada a fita métrica que, na noite anterior, quase deixara Bell louco. Thomas Cardif mediu o diâmetro do abdômen. Seus olhos iluminaram-se quando leu a cifra: 98!

    — Já estava vendo fantasmas — disse com um suspiro de alívio. Soltou uma risada, deixou cair a fita métrica e espreguiçou-se.

    Muito bem-disposto, entrou no banheiro. Seguindo um hábito de todos os dias, subiu à balança.

    — O quê...?

    Suas mãos procuraram algo em que pudessem apoiar-se. Os joelhos começaram a tremer. Aquilo que seus olhos viam não podia ser verdade!

    Seu peso aumentara seiscentos gramas, embora na noite anterior não tivesse ingerido nenhum alimento ou bebida.

    Olhou para o espelho.

    Viu um rosto estranho, marcado pelo pavor.

    Abriu apressadamente o pijama e viu nitidamente o ativador celular, incrustado pela metade no peito. Naquele momento o aparelho voltou a dar suas batidas regulares. Um fluido tranqüilizante penetrou em seu corpo.

    A expressão de pavor desapareceu de seu rosto.

    — Não fique nervoso, Rhodan! — disse em voz alta e soltou uma risada.

    Enquanto isso sua mão enxugava o suor frio que gotejava em sua testa.

 

    Em Saós, um dia e uma noite duravam 214 horas terranas. No momento em que Brazo Alkher fora levado ao último interrogatório, durante o qual se vira colocado frente a frente de Kutlós, o dia estava raiando naquele mundo desolado. O longo dia de Saós estava começando com o rugido de um furacão que não se detinha nem mesmo diante da pirâmide do templo com seus cento e cinqüenta metros de altura, sacudindo furiosamente a construção. Por uma única vez, durante o caminho de volta, Brazo Alkher conseguira lançar um ligeiro olhar para fora. Foi então que viu as massas de poeira, tangidas pelo furacão, passarem velozmente.

    O robô voltou a colocá-lo no recinto à prova de fuga e o trancou juntamente com Stana Nolinow. Este estava mergulhado num sono profundo. Também se deitou. Os pensamentos atropelavam-se em seu cérebro, mas apesar disso adormeceu.

    Teve a impressão de que estava sonhando.

    Viu-se no meio de uma terrível trovoada. Os relâmpagos desciam ininterruptamente à terra e o trovão ribombava. O chão começou a tremer sob seus pés. Alguém sacudiu-o brutalmente.

    — Acorde! Está havendo um ataque! — berrou Stana Nolinow ao seu ouvido.

    Brazo Alkher despertou no mesmo instante.

    Ergueu-se de um salto de sua cama simples.

    O chão tremia sob seus pés. Um barulho infernal atingia seu ouvido.

    Certamente um terrível ataque estava sendo desfechado contra as instalações industriais.

    No mesmo instante, Brazo lembrou-se das palavras que conseguira ouvir por ocasião do último interrogatório. Durante a transmissão de uma mensagem de rádio, Kutlós dissera na sala contígua: “Não permitiremos que os saltadores exerçam pressão contra nós. O estabelecimento está em condições de defender-se.”

    De repente os dois terranos que se encontravam no interior da cela foram atirados ao chão.

    — Bombas! — gritou Alkher, em tom de alarma.

    Devia estar certo, pois era oficial de armamento. E também sabia quem gostava de atirar bombas nessa parte da Via Láctea: os mercadores galácticos.

    Quer dizer que os saltadores estavam cumprindo suas ameaças contra os antimutantes.

    O ataque vindo do espaço acabara de ter início.

    O planeta parecia esfacelar-se.

    — Olhe a porta...! — gritou Brazo. A porta deixara de existir.

    Mas será que o campo energético que existia à frente da mesma também desmoronara?

    Brazo atirou uma banqueta para o corredor. A mesma quebrou-se de encontro à parede.

    — Vamos embora, Stana! — gritou.

    O ataque ao estabelecimento tornava-se cada vez mais intenso. Uma grande frota dos saltadores devia ter surgido sobre a base dos antis, e com todo o armamento de que dispunha, bombardeava as instalações.

    Brazo Alkher e Stana Nolinow dispararam pelo corredor largo. Era a mesma galeria pela qual tantas vezes haviam sido levados para serem submetidos aos interrogatórios.

    O corredor partiu-se bem à sua frente. Uma fenda de três metros abriu-se. No último instante, Brazo conseguiu segurar o companheiro.

    Alkher, viu a bifurcação. No fim da mesma havia um poço antigravitacional que talvez poderia representar a salvação, caso não tivesse sido destruído.

    Correram e admiraram-se por não se encontrarem com nenhum robô. Chegaram ao poço do elevador antigravitacional. O mesmo ainda estava funcionando. Saltaram para dentro dele e foram subindo.

    Era impossível comunicar-se por meio de palavras. O fim do mundo parecia ter chegado ao segundo planeta daquele pequeno sol amarelo, sem nome.

    Brazo sentiu que deveriam sair do poço imediatamente. Deu o empurrão em Stana, que hesitou por um instante.

    — Vamos para a esquerda! — berrou ao ouvido do mesmo.

    Viram dois robôs à sua frente. Os dois oficiais da Frota Solar atiraram-se ao solo, pois esperavam alguns disparos de radiações.

    Não aconteceu nada. Os robôs não eram máquinas de guerra, mas autômatos utilizados na fabricação de campos defensivos individuais.

    Os dois homens se levantaram e continuaram a correr. Atingiram a fita transportadora, saltaram sobre a mesma e deixaram que ela os carregasse.

    No momento em que a fita atravessava um túnel, uma bomba detonou nas proximidades, provocando um forte abalo e paralisando aquele meio de transporte.

    Felizmente as luzes continuavam acesas. Os dois terranos avançaram de quatro. Dali a mais alguns metros, o túnel ia dar num gigantesco pavilhão onde havia uma série de instalações destinadas ao acabamento dos campos defensivos individuais. Os robôs trabalhadores corriam de um lado para outro.

    Tinham a impressão de já estarem fugindo há uma pequena eternidade, mas na verdade fazia menos de cinco minutos que tinham saído da cela.

    Assim que atingiu a entrada, Alkher soltou um grito. No mesmo instante desapareceu num recinto cuja porta fora arrancada pelos abalos das explosões.

    Stana Nolinow seguiu-o de perto.

    Encontravam-se no interior do depósito de trajes espaciais.

    Essa descoberta não fora premeditada pelos antis. Acontecera por puro acaso, e o fato de encontrarem seus próprios trajes espaciais representava uma sorte extraordinária.

    Levantaram o pesado conjunto, realizaram num instante os controles, que haviam aprendido na Academia Espacial Solar, e depois de terem terminado seus preparativos ao mesmo tempo, sorriram animadamente.

    Stana Nolinow deu o sinal de partida, e prosseguiram em sua caminhada que deveria levá-los à superfície. O ataque, que ainda estava em pleno andamento, oferecia-lhes uma chance de escaparem em meio à confusão.

    O elevador antigravitacional mais próximo não estava funcionando. Não poderiam imaginar que os antis o haviam desligado poucos segundos antes, para obrigá-los a utilizarem a escada de emergência.

    Subiram correndo. A escada era um artefato suspenso no ar, que levava ao pavimento térreo. Os dois terranos corriam lado a lado, sem desconfiar de que os antis os observavam pelo circuito de televisão.

    — Fogo sobre o alvo oito — disse um anti calmamente para dentro do microfone.

    E o alvo oito foi atingido pelo disparo de uma nave cilíndrica que se encontrava parada bem em cima do templo.

    A porta da eclusa foi estraçalhada bem à frente de Nolinow e Alkher. Os dois oficiais sentiram-se ofuscados pela luminosidade do raio que abriu uma cratera no solo. Antes que a onda de compressão os atingisse, fecharam os capacetes e colocaram o filtro diante da lâmina do visor.

    Saíram aos saltos para o ar livre, sem dar atenção ao inferno que rugia em torno deles. Tiveram de separar-se no momento em que, contrariando a orientação dos antis, um disparo atingiu em cheio a parede de sustentação de um edifício baixo, no qual procuravam abrigar-se.

    Envolto numa nuvem de poeira e gás, Brazo Alkher comprimiu-se contra o solo. Não sabia onde estava Stana. Preferiu não chamá-lo pelo rádio de capacete.

    O furacão espalhou em todas as direções a nuvem que impedia a visão. De um salto Brazo pôs-se de pé e, mais uma vez, sentiu que a gravitação de Saós era 0,3 G superior à da Terra. Estava prestes a sair em desabalada carreira, quando viu a trinta metros um anti que corria pela área livre existente entre as construções.

    A reação de Alkher foi instantânea. Notara que se encontrava junto a uma porta que levava para o interior do edifício baixo. Num movimento rápido comprimiu a fechadura, abriu a porta e entrou. Naquele instante, a intensidade do ataque diminuiu um pouco. Alkher, que agora estava parado entre duas portas de eclusas, procurou calcular o tempo que o anti levaria para chegar ao outro lado da área livre. Aproveitaria a pausa para chamar Stana pelo rádio de capacete.

    O receptor começou a funcionar.

    Brazo Alkher não acreditou no que estava ouvindo.

    Um antimutante conversava tranqüilamente com os ocupantes de uma das naves dos saltadores que participavam do ataque às instalações. Ouviu o saltador responder em intergaláctico. O anti voltou a falar. O nome Extan foi pronunciado. Não havia dúvida de que correspondia a um clã dos mercadores galácticos.

    O que deveria fazer Extan? Avançar a linha de fogo?

    Brazo Alkher não conseguiu ouvir mais que isso. Ficou um pouco triste.

    Stana Nolinow chamou por meio de uma tecla de emergência, e Brazo teve de mexer nos controles.

    Respondeu em código:

    — Direção da fuga: trezentos metros para a frente. Desligo.

    Era a indicação da posição de Stana.

    Para Brazo, a mensagem representava o sinal de que deveria abandonar seu abrigo no interior da pequena eclusa. Fê-lo a contragosto. Teria preferido voltar a regular seu rádio para a faixa em que estivera antes, a fim de ouvir a palestra entre o saltador e o anti.

    “Como é possível que um anti converse tranqüilamente pelo rádio com um membro do clã de Extan, dando-lhe o conselho de fazer avançar a linha de fogo?”, refletiu.

    Acontece que naquele momento Alkher não tinha tempo para pensar muito sobre isso. Correu por cima da grande área, em direção a uma maciça construção aboba-dada que abrigava uma das quatro usinas energéticas. Mais uma vez o inferno parecia desabar sobre este mundo de tormentas, vindo da densa camada de nuvens. Esguichos energéticos saíam do chão à esquerda e à direita de Brazo.

    Stana Nolinow não poderia deixar de ouvir a respiração pesada do companheiro em seu rádio. Dali a alguns segundos o mesmo apareceu em meio aos vapores, aos gases e à poeira. Os dois terranos continuaram a correr lado a lado. Mantinham-se em silêncio e vez por outra lançavam um ligeiro olhar ao redor, a fim de não serem atingidos por um disparo de radiações. Quando já haviam passado pela unidade energética, um raio de desintegrador abriu o chão numa profundidade de trinta metros, bem à sua frente, na periferia do centro industrial. Alkher, cujas reações eram muito mais rápidas que as de Nolinow, virou para a esquerda, arrastando seu companheiro.

    Abandonaram a proteção das instalações templárias e saíram para o fundo do vale.

 

    Sem que ninguém o convidasse, Allan D. Mercant sentou. Nem sequer levantou os olhos quando Bell grunhiu em tom ameaçador.

    — Não me lembro de tê-lo convidado a comparecer à minha presença, Mercant.

    Mercant remexeu nos papéis. Bell cutucou-o no ombro.

    — Mercant, acho que me exprimi com suficiente clareza.

    Finalmente o chefe da Segurança Solar levantou os olhos. A expressão de seu rosto era indiferente. Não havia o menor sinal de que passara duas noites sem dormir.

    — Mister Bell — disse com a voz tranqüila. — Poderemos conversar sobre isso depois que o senhor tiver lido este papel.

    Obrigou seu interlocutor a pegar um documento. Bell aceitou-o com certa relutância, sem desconfiar de nada.

    — Tratado secreto entre o Grande Conselho de Ácon e o Imperador Gonozal VIII — leu Bell.

    Ficou sabendo que, nos termos do tratado, Atlan colocara à disposição do Sistema Azul mil espaçonaves esféricas do último tipo. Ainda leu que três naves haviam levado um equipamento completo de ensinamento hipnótico para Drorah. Com isso seria possível transformar, num brevíssimo espaço de tempo, os ancestrais dos arcônidas em astronautas experimentados.

    Bell fitou o marechal solar. Estava pálido.

    — O chefe sabe disso? — perguntou muito confuso.

    — Sabe. Bell explodiu.

    — Não espere que lhe arranquem as palavras da boca, Mercant. O que foi que o chefe disse?

    — O que poderia ter dito, mister...

    Bell bateu com a palma da mão na mesa. Mercant não se impressionou.

    — O que é que Perry pode ter dito? — perguntou Bell, em tom exaltado. — Por certo disse a mesma coisa que eu direi, Mercant. O que Atlan acaba de fazer é uma infâmia. É uma... é... O que foi mesmo que Perry disse?

    Bell fitou seu interlocutor com certa consciência de culpa.

    Sem dizer uma palavra, Mercant tirou o documento das mãos do homem exaltado à sua frente e voltou a colocá-lo numa pasta. Mercant bateu no maço para tirar um cigarro, enfiou-o entre os lábios e acendeu-o. Deu duas tragadas e só então dispôs-se a falar.

    — Mister Bell, o chefe não disse nada a este respeito, mas durante os quinze minutos que estive com ele subiu quatro vezes à balança e se pesou...

    — O que foi que Perry fez? Será que ouvi bem, Mercant? Ele se pesou? Quatro vezes em quinze minutos?

    Seguiu-se o silêncio.

    Esse silêncio durou alguns minutos. Finalmente foi rompido por Bell.

    — Está doido? — perguntou sem rebuços.

    — Não — respondeu o marechal solar. — Apenas sente-se fustigado pelo medo.

    — Isso tem algo a ver com as pesagens?

    — Talvez. Como é que eu poderia saber? Será que ainda existe alguém a quem o chefe faça confidencias? Desde o tempo em que realizamos a operação em Okul não tem mais confidentes. Até parece que o chefe é uma das vítimas daquele maldito entorpecente.

    — Acho que o senhor quer dizer que Perry Rhodan se tornou vítima de seu filho Thomas Cardif. Seu Serviço de Segurança ainda não descobriu onde anda esse sujeito, Mercant?

    — Thomas Cardif desapareceu em meio às estrelas, tal qual o arcônida Banavol.

    — Quem é este?

    — O senhor já se esqueceu? Certo dia alguém deu ao chefe uma dica de que um anti se havia introduzido no estabelecimento comercial dos saltadores em Plutão. Segundo informou Perry, essa dica lhe foi dada por Banavol. Tentei localizar esse Banavol. A Segurança não conseguiu encontrá-lo. Desapareceu durante um vôo da Terra para M-13.

    — Mercant, não foi por simples coincidência que o senhor voltou a este assunto tão velho. Fale logo!

    Mercant levantou a mão, num gesto de recusa.

    — É claro que estou agindo com uma ação bem definida, mister Bell. Nestes últimos tempos, quase todos que têm estado a sós com Rhodan desaparecem tal qual fantasmas!

    Bell saltou da poltrona. Com largas passadas colocou-se junto à janela. Parou e apoiou os cotovelos no peitoril. Manteve-se imóvel.

    Mercant esperou até que Reginald Bell reencetasse a conversa. Dali a pouco ouviu-o dizer a si mesmo:

    — Banavol aparece e desaparece. Um anti encontra-se com o chefe no estabelecimento de Plutão e morre. Stana e Alkher voam para Peregrino com o chefe, e este volta sem os dois oficiais. E, se examinarmos o assunto com mais cuidado, chegaremos à conclusão de que isso teve início em Okul. Foi lá que pai e filho se encontraram pela primeira vez a sós, depois de muito tempo afastados. E não foi depois disso que Thomas Cardif desapareceu sem deixar o menor vestígio, Mercant?

    Mercant respondeu em tom contrariado:

    — Suas especulações são um tanto levianas, mister Bell.

    Bell virou-se para o visitante, mas continuou parado junto à janela.

    — O senhor não pode negar que tudo começou em Okul.

    — O que quer dizer com isso, mister Bell? — perguntou Mercant, em tom cauteloso.

    — Os antis não poderiam ter influenciado o chefe? Não poderiam ter recorrido a um método que nossos médicos não conhecem, e talvez nem mesmo os aras?

    — Queira exprimir-se com maior clareza, mister Bell.

    Bell cruzou os braços à frente do peito.

    — Pois não — disse, respirando pesadamente. — Talvez tenha havido alguma forma de influência hipnótica ou sugestiva. Não consigo livrar-me dessa idéia desde que John Marshall me disse que o chefe pensa para dentro. Mercant, já começo a acreditar que as modificações assustadoras que constatamos em Rhodan não foram causadas exclusivamente pelo tratamento de choque. O senhor nem imagina como estou nervoso depois que Perry foi buscar um ativador celular em Peregrino... e esse aparelho está enterrado até a metade em seu tórax. Todos sabemos que Ele tem um senso de humor quase incompreensível para um ser humano, mas não o julgo capaz de fazer uma brincadeira macabra. Mercant, será que Ele quer chamar nossa atenção para alguma coisa, ou será que quer obrigar Rhodan a manter-se dentro de certos limites? Será que, em Peregrino, Perry fez alguma coisa de que nunca seria capaz se ainda estivesse de posse das faculdades mentais de que era dotado antigamente?

    — Bell, o senhor voltou a aludir à possibilidade de que Perry esteja louco. Se ele tiver conhecimento disso, o senhor poderá ter problemas — disse o chefe de segurança, em tom de advertência.

    Bell soltou uma risada contrariada.

    — O senhor nem imagina como eu gostaria disso. Acontece que não ficarei parado por muito tempo. A hora em que terei de agir aproxima-se inexoravelmente. E quando essa hora chegar, Mercant, agirei a favor de Perry, meu amigo doente, e não contra ele. Entendido?

    — Nem haveria necessidade de dizer isso, Bell. Sei perfeitamente o que o chefe lhe representa, apesar de tudo que aconteceu. Só tenho medo de que o senhor vá chocá-lo muito cedo...

    O gorducho interrompeu o inteligente Mercant num tom furioso:

    — O senhor acha que é cedo, no momento em que dois impérios correm perigo de desmoronar? Quando Atlan pensa em aliar-se aos acônidas? Isso é a mesma coisa que colocar a corda em torno do próprio pescoço. E olhe que, por ocasião de nossa palestra, deixei bem claro que jamais acontecerá aquilo que ele receia, face à penetração de nossa frota do Império de Árcon.

    Mercant respondeu em tom indiferente:

    — A Segurança dispõe de provas de que sua palestra com Atlan, na qual o senhor lhe forneceu certas garantias, foi ouvida pelo chefe.

    Bell nem pestanejou.

    — Tanto faz! Não tenho nada a esconder, mas não compreendo Atlan.

    — Pois eu compreendo, Bell — disse Mercant. — Certa vez Atlan me disse que nos dez mil anos que permaneceu na Terra encontrou vários amigos, mas só um amigo de verdade. E não se esqueça que, em muitos pontos, Atlan pensa como um homem, não como um arcônida.

    — Ele não tem um cérebro adicional conhecido como o setor lógico? — falou Bell em tom furioso, e com o rosto desfigurado fitou o videofone, que emitiu um sinal. — O que será desta vez?

    A Clínica Central de Terrânia anunciou:

    — Há poucos minutos Perry Rhodan, o administrador, chegou à clínica de Terrânia. Não se dispõe de qualquer informação sobre o motivo do internamento.

 

     Brazo Alkher e Stana Nolinow pousaram no platô, situado a trezentos metros acima do fundo do vale e a mais de cinco quilômetros do templo. Em meio ao mortífero bombardeio de radiações acabara por transformar-se em realidade aquilo que já não ousavam esperar. Encontravam-se em relativa segurança e tinham motivos para supor que os antis acreditavam que estivessem mortos.

    Brazo e Stana nem desconfiavam de que o bombardeio de radiações literalmente os tangera para esse platô, e de que os antis os mantiveram sob observação ininterrupta por meio de seu equipamento de televisão. Principalmente Stana de nada desconfiava, pois este não tinha ouvido o diálogo entre o anti e o mercador.

    Encolhidos num minúsculo nicho de pedra, os dois oficiais da Frota Solar procuraram restabelecer-se das canseiras da fuga. Sabiam que facilmente uma palestra pelo rádio de capacete poderia ser escutada, motivo por que haviam desligado esse meio de comunicação.

    Nesse momento, Brazo Alkher lembrou-se de ter escutado a palestra radiofônica entre um anti e um dos saltadores que atacavam as instalações, durante a qual o mercador galáctico recebeu em sua nave cilíndrica uma solicitação de fazer avançar a linha de fogo. Esteve prestes a ligar novamente seu rádio de capacete, mas no último instante deu-se conta do risco que isso representaria. Por Stana Nolinow não ter ligado, durante a fuga, seu rádio de capacete, não teve conhecimento do fato. Poucos instantes depois nem mesmo Brazo se lembrava mais desse acontecimento, pois os saltadores iniciaram outro ataque contra as instalações dos antis.

    Stana sentiu através do traje espacial a mão de Brazo que o apertava. Olharam-se e piscaram um para o outro. Alkher foi saindo do nicho de pedra, fez algumas regulagens em seu traje de guerra, a fim de enfrentar as fúrias do tufão, e rastejou até a beira do platô.

    Queria saber o que restara das instalações depois do tremendo ataque.

    Um oceano de nuvens impenetráveis surgiu diante dos seus olhos. Não viu o menor sinal do templo de Baalol.

    Brazo Alkher ligou os microfones externos para o volume máximo. O ribombar das explosões que rugiam no fundo do vale quase lhe arrebentou os tímpanos, mas não se incomodou com isso. Virou a cabeça, que se encontrava coberta pelo capacete de visão total, e passou a fitar as nuvens acima dele.

    Vez por outra ouvia o trovejar inconfundível de potentes propulsores a jato. Uma grande frota de espaçonaves cilíndricas devia circular acima do vale. Naquele instante, as suspeitas de Brazo obtiveram mais um reforço.

    “Será que essa multidão de naves armadas já não devia ter concluído há tempo a obra de destruição das instalações industriais?”, refletiu. “Será que o ataque desfechado contra o templo não é uma farsa?”

    Mas naquele instante uma terrível língua de fogo abriu-se nas profundezas do vale, fazendo com que por pouco Brazo Alkher não enterrasse suas suspeitas. Ao mar de chamas que se expandiu para todos os lados, seguiu um ribombo que deixou Brazo surdo por alguns minutos.

    Subitamente viu uma sombra à direita. Tratava-se de uma nave auxiliar balouçante, do tipo que os saltadores levavam em suas naves cilíndricas, para poderem salvar-se num caso de emergência.

    E o barco espacial pousou cem metros atrás dele, a uma distância não superior a trinta metros do esconderijo onde Stana aguardava sua volta.

    Brazo resolveu arriscar tudo. Ligou o rádio de capacete.

    — Stana...

    Stana já aguardava o chamado.

    — Está bem, irmão — disse. — Verei o que posso fazer.

    Na Frota Solar já se sabia do que o Tenente Stana Nolinow era capaz quando usava esse tipo de linguagem. Observara o barco espacial e, desconfiado, piscara os olhos embaixo do capacete. Ficou sem saber se o balouçar do barco era genuíno, ou se era um blefe para atraí-los a uma armadilha. Procurou em vão qualquer sinal de avaria no casco. Surpreendeu-se ao ver a escotilha abrir-se e dois saltadores aparentemente feridos saírem do barco. Um dos dois mal conseguia mover-se. O outro arrastava-o para a popa.

    Stana Nolinow, que se mantinha à espreita, gostaria de saber se os dois saltadores que acabavam de sair representavam toda a tripulação do veículo espacial, ou se havia outros mercadores a bordo. Os dois terranos não possuíam nenhuma arma, e por isso tinham de agir com uma cautela toda especial.

    — Bem, veremos! — disse Stana para si mesmo.

    Observou os dois saltadores, que examinavam o setor do barco onde ficavam os propulsores.

    Nolinow aproveitou uma nuvem baixa vinda do vale, que foi tangida pelo platô em direção ao barco, e saiu correndo.

    Levou duas quedas, e só mesmo o resistente traje espacial evitou que se ferisse. Apesar da gravitação de 1,3 G conseguiu alcançar a escotilha com apenas um salto. Com outro colocou-se no centro da sala e suspirou aliviado.

    O barco espacial estava vazio.

    Stana conhecia esse tipo de veículo. Sabia onde ficava o armário em que eram guardadas as armas. Com três passos colocou-se à frente do mesmo, abriu-o apressadamente e viu uma porção de armas à sua frente.

    Stana Nolinow serviu-se à vontade, mas não se esqueceu de verificar os indicadores de potência. Enquanto guardava a terceira arma, sorriu de alegria. O saltador encarregado das armas devia ser um sujeito muito cuidadoso, pois todas as armas energéticas estavam carregadas ao máximo de sua capacidade.

    Nolinow examinou o barco. Havia um sinal insignificante de impacto no costado. Por acaso lançou os olhos para o chão. A poça de sangue falava uma linguagem inconfundível. Removeu as últimas desconfianças de Stana Nolinow. Não poderia imaginar que aquilo que tinha diante de si era o conteúdo de uma conserva de sangue, e que o pouso daquele barco espacial representara parte do plano dos antis.

    De repente a voz de Brazo berrou em seu alto-falante de capacete.

    — Stana, eu os agarrei. Os dois.

    Com um salto Nolinow saiu da pequena nave. Segurava uma arma em cada uma das mãos.

    Correu para o ponto onde ficava o propulsor do barco. Naquele momento a visibilidade sobre o platô era excelente. As nuvens mais próximas eram tangidas pelo furacão a uma altitude de cem metros.

    Viu Brazo ajoelhado sobre um dos saltadores, enquanto o outro jazia imóvel no chão.

    — Um deles está ferido, Brazo! — gritou Stana pelo rádio.

    — Era o que eu imaginava — respondeu Brazo. — Os dois caíram antes que eu pusesse as mãos neles de verdade...

    Stana Nolinow chegou ao lugar em que estava o companheiro. Virou de costas o saltador que jazia imóvel. Viu um rosto barbudo cujo lado direito estava sujo de sangue. Ao que tudo indicava aquele homem estava inconsciente.

    — O que vamos fazer com eles? — perguntou apressadamente.

    De repente o chão parecia arder sob seus pés. Se conseguissem decolar com a pequena nave, e se o propulsor não tivesse sofrido avarias mais sérias, dali a algumas horas poderiam estar trabalhando novamente a bordo da Ironduke.

    — Vamos deixá-los aqui mesmo! — decidiu Brazo. — Daqui a pouco, meu caro saltador, estará bem de novo, e daqui até o templo não é muito longe. Além disso, há muitos barcos cilíndricos passando por aqui. Este barco está em condições de decolar?

    Sem dizer uma palavra, Brazo pegou as armas portáteis que Nolinow lhe entregou. Lançaram mais um olhar para o mercador que jazia no chão e correram em direção à escotilha do barco.

    Assim que se encontravam no interior do barco, Stana mostrou ao companheiro o local do impacto no costado da nave.

    Brazo pensou: “Isto foi feito de propósito.”

    Naquele momento, mais uma vez lembrou-se de que um anti conversara amavelmente com o saltador Extan, que participava do ataque, a fim de pedir-lhe que fizesse avançar a linha de fogo.

    — Feche a eclusa e abra o ar, Stana!

    Com um salto Brazo acomodou-se na poltrona do piloto.

    Stana Nolinow aceitou sem a menor objeção o comando do companheiro.

    Assim que a escotilha se fechou, acionou as bombas que expeliam a atmosfera de Saós. Sem sair da poltrona do piloto, Brazo fez um exame acurado do propulsor.

    — Isso é pura tapeação!... — ouviu Stana no seu capacete.

    Não tinha a menor idéia do que Brazo quis dizer com isso, mas não formulou nenhuma pergunta. Qualquer demora poderia ser fatal para os dois oficiais.

    Não poderiam imaginar que, naquele instante, Kutlós esfregava as mãos de satisfação, sem tirar os olhos da tela que exibia um pequeno barco auxiliar dos saltadores, pousado num platô de rocha.

    Mas da mesma forma que os dois terranos não sabiam que estavam sendo vigiados, Kutlós nem desconfiava de que o plano tão dispendioso por meio do qual se pretendia transformar Saós no planeta Trakarat praticamente já podia ser considerado um fracasso.

    Um jovem oficial da frota terrana, que parecia um adolescente, estava prestes a desmascarar o plano dos antis.

    — Mas é claro! — disse a voz furiosa de Brazo, saída do alto-falante do capacete de Stana. — Como está o ar?

    — Daqui a pouco atingirá a pressão de uma atmosfera, Brazo! — disse Stana depois de lançar um olhar para o manômetro.

    O corpo da nave auxiliar começou a vibrar. Brazo colocou em funcionamento o mecanismo propulsor. Não houve necessidade de deixá-lo trabalhar em ponto morto. Todos os aparelhos que exigiam aquecimento já se encontravam na temperatura normal de funcionamento.

    — O ar está bom! — anunciou Nolinow.

    Abriu o capacete, e Alkher seguiu seu exemplo.

    O barco espacial subiu que nem um torpedo. Brazo fê-lo descrever uma curva junto a uma encosta rochosa. Stana Nolinow acomodou-se na poltrona do co-piloto. Deu uma olhada para os instrumentos e constatou que Brazo voava para o norte e fazia descer violentamente a pequena nave.

    — Vai cortar a ponta da pirâmide? — perguntou em tom exaltado.

    — Não; quero ver quantas espaçonaves estão pousadas junto ao templo para cumprimentar os antis.

    — Até que você tem senso de humor! — constatou Stana em tom de espanto. — Por que não faz tudo para sairmos daqui quanto antes?

    — Porque quero saber se eles tentaram enganar-nos e... Olhe! Está vendo as naves?

    Essas palavras foram gritadas por Brazo. As nuvens abriram-se, permitindo a visão sobre o templo. O mesmo deveria ter sido reduzido a escombros, mas na verdade praticamente não fora danificado. Mas o que mais chamava a atenção era o fato de que sete ou oito espaçonaves cilíndricas estavam pousadas no pequeno porto espacial, mostrando as escotilhas de carga abertas.

    — Fogo da esquerda! — gritou Stana Nolinow em tom áspero.

    O disparo de radiações feito por um posto de defesa dos antis veio com um atraso de fração de segundo. Brazo fez o barco descrever uma curva fechada para a esquerda, submetendo seu casco a uma tensão tremenda. Valeu a pena assumir o risco. O disparo passou a mais de um quilômetro do barco.

    — Será que isso também foi de propósito? — resmungou Brazo com um olhar indagador para o companheiro.

    — Você é um otimista incorrigível! — objetou Stana, que ainda não aceitara a teoria de Brazo. — Apenas tivemos sorte. Acontece que você procura virar tudo de pernas para o ar e até é capaz de afirmar que os antis nos mandaram este barco...

    — Mandaram mesmo, Stana, mandaram mesmo. O próprio ataque dos mercadores galácticos não passa de um blefe. Queriam enganar-nos com isso. Querem que escapemos aos queridos servos de Baalol para contar ao chefe, logo após nosso regresso à Terra, que estivemos em Saós, um planeta que os antis chamam de Trakarat. Por pouco não caio nessa. Ainda bem que ouvi essa palestra pelo rádio. Olhe para a localização, Stana. Você vê qualquer nave que nos persegue?

    — Não. E isso me deixou surpreso durante todo o tempo que você gastou para fazer seu discurso. Com a frota enorme de que eles dispõem teria sido fácil pegar-nos. Mas o que foi que você ouviu? Uma palestra pelo rádio?

    Enquanto o pequeno barco subia cada vez mais, deixando Saós para trás, Brazo relatou a experiência pela qual passara.

    No fim Stana soltou um assobio. Lançou um olhar de admiração para Brazo. Não teve dúvida em confessar:

    — Não sei se eu teria notado isso. Você já tinha ouvido falar em Trakarat?

    — Nunca. Mas sou capaz de jurar que esse mundo de Trakarat assume uma importância extraordinária para os antis. Stana, redija a mensagem que vamos transmitir pelo hiper-rádio. Tenho a impressão de que quanto mais cedo avisarmos o chefe, melhor.

    — OK. Vou esquentar o transmissor.

    Dali a alguns minutos, Nolinow tinha o texto à sua frente e o codificou segundo o modelo simplificado. O barco não possuía o equipamento de condensação e distorção de mensagens. Mas dispunha de um pequeno computador positrônico. Stana Nolinow acoplou o hiper-rádio ao mesmo. Graças ao seu funcionamento ultra-rápido, o aparelho só levou alguns segundos para transmitir o texto codificado por meio de sinais positrônicos.

    Dali a trinta segundos receberam a resposta:

    Texto incompreensível. Repitam.

    Stana e Brazo sorriram.

    — Não faremos nada disso — decidiu Stana. — Nem pensamos em enviar uma mensagem em texto claro, fazendo com que os antis saibam que descobrimos o logro que quiseram passar-nos. Vamos é irradiar um pedido de socorro. Só quando respirar um ar puro de bordo, me sentirei bem, mas...

    Ficou calado.

    — Mas o quê? — insistiu Brazo, cuja mão esquerda transmitia ao computador positrônico de bordo o comando de preparar a transição.

    — Quando penso no chefe, Brazo, não me sinto nada feliz em voltar à Terra. Isto não parece uma loucura?

    — Se é uma loucura, também sou louco, Stana. Não consigo ficar contente. Até chego a ter medo do encontro com Perry. Durante o vôo de regresso do planeta Peregrino e a bordo da Baa-Lo, fiquei apavorado com ele.

 

    Kutlós, que estava sentado entre o televisor e o hiper-rádio, viu o barco romper as linhas das naves cilíndricas e correr em direção ao espaço. Em seu interior estavam os terranos.

    — Esta nave não deve ser perseguida — disse Kutlós ao operador de rádio.

    O agente que mantivera contato com Thomas Cardif na Terra manifestou suas dúvidas.

    — O barco voou muito baixo sobre o templo, Kutlós. Os terranos devem ter visto as naves cilíndricas pousadas por aqui.

    — E daí? — perguntou Kutlós em tom áspero. — Estas naves não podem ter sido surpreendidas pelo ataque dos saltadores? Levamos o plano a um ponto em que não podemos voltar atrás. Apenas devemos apressar-nos para desmontar e remover as instalações industriais antes que um grupo de naves da Frota Terrana apareça nos céus de Saós.

    O agente ainda tinha suas dúvidas.

    — Tomara que tudo corra segundo os preparativos e as expectativas, Kutlós. Quando me lembro desses terranos muito jovens, começo a duvidar do êxito da operação. Quando estive na Terra pedi informações sobre esses homens. O tenente de aspecto tão inofensivo é o melhor oficial de armamento da Frota Solar!

    Um sorriso largo surgiu no rosto de Kutlós.

    — Tanto melhor. Neste caso as informações desse terrano pesarão mais nas decisões do comando da frota. Mas por que só agora sou informado sobre a importância desse homem?

    O sorriso de Kutlós desmanchou-se. Seus olhos chamejavam de raiva.

    O receptor de hiper-rádio do templo captou a primeira mensagem que Alkher e Nolinow enviaram às naves da Frota Solar.

    — Está codificada, senhor — disse o radioperador. — Dentro de poucos minutos teremos o texto em linguagem clara.

    Cumpriu a promessa. A decifradora positrônica não teve a menor dificuldade em decifrar o código simplificado. Mas a sorte dos antis de Saós não foi melhor que a dos tripulantes do cruzador que enviara esta resposta:

    Texto incompreensível. Repita.

    O agente, que falava o terrano como sua língua materna, franziu a testa enquanto repetia a leitura do texto decodificado. Depois de algum tempo confessou em tom resignado:

    — Não compreendo!

    Kutlós não estava muito interessado em saber o que o agente não compreendia. Apenas queria saber se a palavra Trakarat aparecia na mensagem.

    — Há duas alusões ao planeta, Kutlós, mas o nome não é mencionado. A palavra estabelecimento aparece uma vez, mas o restante do texto é incompreensível...

    Viu-se interrompido pelo recebimento de outra mensagem de hiper-rádio. Imediatamente o agente fez a tradução. Para ele apenas assumiam certa importância as três palavras nas quais um cruzador da Frota Solar, que se encontrava no grupo estelar M-13, pedia aos dois oficiais do barco espacial que repetissem a mensagem.

    De repente o rosto de Kutlós descontraiu-se. Foi-se levantando devagar.

    — Podemos dar-nos por satisfeitos — disse, dirigindo-se ao agente. — Os terranos engoliram a isca. O plano vai correndo muito bem.

 

    A nave Ganges, um cruzador da classe Estado pertencente à sexta esquadrilha, captou a mensagem de hiper-rádio expedida pelos dois oficiais que acabavam de fugir de Saós. O comandante só teve conhecimento da mesma quando já tinha sido expedida a ordem de repeti-la. Ao ouvir os nomes Alkher e Nolinow, entrou em pânico. Falou asperamente ao seu oficial da equipe de rádio:

    — Será que estes nomes não significam nada para o senhor? São os oficiais que levaram o chefe para Peregrino e ficaram presos na nave cilíndrica Baa-Lo, enquanto Perry foi libertado. E olhe que todos acreditavam que estivessem mortos. Tenente Bilk, não me olhe desse jeito. Expeça uma mensagem destinada à Segurança Solar e ao chefe. Transmita o texto de Alkher tal qual o recebemos. Espero que cumpra esta ordem dentro de três minutos.

    Mal o comandante acabou de falar, os rastreadores estruturais do cruzador constataram o hipersalto do barco espacial no qual Alkher e Nolinow haviam fugido de Saós.

    — Quero as coordenadas! — disse.

    A chave sincronizada fixou-se em certa posição. Os jatos da Ganges começaram a trabalhar com a potência máxima. A nave esférica daria um salto pelo semi-espaço, que a faria sair nas proximidades do barco espacial, a fim de recolher os dois oficiais.

    O grande computador positrônico já estava trabalhando para preparar o salto.

 

    Os médicos não permitiram que Reginald Bell e Allan D. Mercant entrassem na sala em que o chefe estava sendo examinado. Os dois conformaram-se com isso, mas não saíram da ante-sala.

    O médico, ao qual coubera a tarefa nada agradável de detê-los, falou com toda franqueza.

    — Não poderemos fornecer-lhes qualquer informação sobre o resultado do exame, a não ser que o chefe nos dispense expressamente do dever de guardar o sigilo profissional.

    — Pois o chefe os dispensará! — afirmou Bell em tom convicto, fingindo uma segurança que não sentia.

    O médico despediu-se e os dois viram-se a sós.

    Do outro lado da porta, Cardif-Rhodan estava sendo examinado. O computador positrônico fornecera todos os dados médicos a respeito de sua pessoa. Tais dados não comportavam qualquer dúvida, e viram-se confirmados pelo exame que estava sendo realizado.

    — Sir — disse Bock, um médico residente. — Sob o ponto de vista orgânico, o senhor é completamente sadio.

    Cardif-Rhodan interrompeu-o em tom áspero.

    — Isso não me interessa. Explique como engordei mais de oitocentos gramas, explique como pude crescer mais de um centímetro e como minha cintura aumentou três centímetros. Foi por isso que vim para cá. Quero que o senhor me dê respostas para estas perguntas.

    Não se importou com o fato de que os médicos não se sentiram nada encantados com seus modos arrogantes.

    — Sir, não temos explicação para isso, mas se o senhor faz questão de que descubramos as causas dos três fenômenos teremos de realizar certos exames que exigirão sua permanência na clínica.

    — O que quer dizer com isso? Faça o favor de exprimir-se com maior clareza, doutor! — gritou Cardif-Rhodan, e o pânico voltou a tomar conta dele.

    Sentia-se muito bem: o ativador celular estava funcionando, e toda vez que o fluido emanado desse aparelho penetrava em seu corpo tinha a impressão de ser banhado por uma fonte da juventude. No entanto, o fato de que, além de engordar, também crescera em altura, fizera com que se sentisse tomado de pânico e corresse apressadamente para a clínica.

    Teve de esforçar-se muito para não trair-se em virtude de seus conhecimentos médicos. Compreendia todos os termos técnicos usados em sua presença, pois, ao mesmo tempo em que usara o nome Hugher, fora um dos médicos mais conhecidos. Teve de enfrentar dificuldades medonhas para, em meio à psicose do medo, desempenhar o papel de leigo. E os esforços que teve de realizar foram tamanhos que perdeu todo o autocontrole.

    — Por que não dizem nada? — perguntou em tom enérgico, fitando os médicos um por um.

    Já tinha um pressentimento dos motivos que o fizeram crescer e engordar. Afinal, possuía seus conhecimentos médicos. No entanto, preferia afastar esse pressentimento. Seu ser revoltava-se contra tal pessimismo. Além de mentir a si mesmo, queria que os médicos mais importantes do Império Solar também lhe contassem mentiras. Queria que descobrissem qualquer motivo para as alterações que sofrerá nas últimas horas, mas não queria que descobrissem o motivo que lhe infundia um terrível pavor.

    Bock exprimiu-se com a maior cautela.

    — Sir, talvez haja necessidade de intervenção cirúrgica.

    — Na situação política tensa em que nos encontramos? — objetou Cardif-Rhodan. — Acham que isso pode ser feito?

    O professor Manoli, que até então se mantivera em silêncio, sentiu-se na obrigação de prosseguir na palestra com Perry Rhodan.

    — Sir, posso garantir que as intervenções previstas não o prenderão ao leito por mais de três horas. Sugiro que por enquanto permita que realizemos uma análise do tecido celular, que praticamente não lhe causará nenhum incômodo, mas poderá fornecer-nos esclarecimentos preciosos.

    O professor Manoli não compreendeu por que o chefe o fitava com os olhos cintilantes de um homem acossado pelo medo, que já não sabia o que fazer. Também viu os pingos de suor na testa de Rhodan e notou que os lábios tremiam. E agora ouviu a voz do homem, que num trabalho incansável construíra o Império Solar:

    — Realizem a análise do meu tecido celular.

    Os preparativos já haviam sido tomados. A coleta do material não demorou mais que um minuto. O remédio ara, aplicado em forma de spray, fez que a pequena ferida no antebraço de Cardif-Rhodan desaparecesse imediatamente, cicatrizando dentro de três horas sem deixar o menor vestígio.

    O exame do tecido foi iniciado. O chefe, que voltara a vestir-se, estava parado junto à janela que dava para o pátio interno.

    Não conseguia encarar os médicos. Sabia que seu rosto estava marcado pelo pavor. Temia o resultado do exame como nunca temera nada em sua vida.

    A voz cochichante que ouvia dentro de si, e que pretendia dizer-lhe qual era o mal que o abatia, tornava-se cada vez mais forte. Dali a pouco não teria mais forças para reprimi-la.

    “De repente minha cintura aumentou três centímetros”, pensou e sentiu as palmas da mão úmidas de suor, mas não pôde deixar de levar este pensamento até o fim. O medo fê-lo proceder assim contra sua vontade.

    “Em poucos dias cresci um centímetro. O uniforme começou a ficar apertado em tudo quanto é lugar e já é um pouco curto”, voltou a refletir.

    Por alguns segundos as batidas fortes do ativador celular interromperam seus pensamentos. Um fluido, que provocou uma sensação refrescante, atravessou seu corpo e deu-lhe forças para empertigar-se de repente. Com o desespero do náufrago agarrou-se á idéia fixa de que o ativador celular lhe dava sempre uma porção de vida eterna.

    Uma porta fechou-se atrás dele. Três médicos acabavam de entrar na grande sala de exames e aproximavam-se do lugar em que se encontrava. Mais uma vez sentiu-se dominado pelo pânico, mas num esforço admirável conseguiu dominar-se. Virou-se e perguntou com a voz tranqüila:

    — O que é?

    — Sir — principiou o professor Redstone. — Cabe-me desempenhar a tarefa bastante desagradável de informá-lo de que o senhor sofre de cisão celular explosiva.

    Naquele instante Thomas Cardif teve a impressão de ouvir a voz do Ser fictício de Peregrino:

    — Perry Rhodan, desfaça-se do ativador celular, senão você ficará grande e forte demais.

    Só agora compreendia estas palavras. Só agora compreendia por que, durante cinqüenta dias, o Ser coletivo o prevenira constantemente. Ele sempre o chamara de Perry Rhodan. Mas na verdade Aquilo pretendia lembrá-lo de que não era Perry Rhodan.

    E ele, Cardif, não quisera compreender a advertência.

    “Cisão celular explosiva!”, repetiu mentalmente.

    Cardif sabia o que significava isso. Em seu organismo, o processo normal de cisão celular atingira um estágio explosivo permanente. E o fato era causado pelo ativador celular, que se integrara organicamente em seu tórax.

    — Sir — ouviu a voz do professor Redstone, que parecia vir de longe. — Salvo engano, podemos afirmar que o processo de cisão celular não é de natureza maligna.

    Mas por enquanto não sabemos qual é a causa da divisão ultra-rápida das células.

    Thomas Cardif teve de controlar-se ao máximo para reter o seguinte pensamento desesperado: “A causa da divisão de minhas células está incrustada em meu tórax. Este aparelho, que deveria proporcionar-me a vida eterna, me traz a morte.”

    Limitou-se a dizer em voz débil:

    — Obrigado.

    O professor Redstone foi de opinião que devia dizer-lhe algumas palavras a título de consolo.

    — Sir — disse. — Temos certeza de que dentro de poucos dias conseguiremos deter este processo de divisão das células.

    Nem imaginava que estava dirigindo estas palavras a um médico que, como todo e qualquer médico, sabia que não havia remédio contra isso. Era o primeiro ser da Galáxia que padecia de cisão celular explosiva.

    Até então essa doença não surgira na Terra.

    — Obrigado, professor — voltou a dizer Cardif-Rhodan.

    Depois estacou em meio ao passo e aguçou o ouvido.

    A grande estação de hiper-rádio de Terrânia acabara de receber uma notícia importante para o chefe.

    O cruzador ligeiro Ganges, que operava no império estelar dos arcônidas juntamente com as demais unidades da Frota do Império Solar, anunciou que estava a caminho para recolher os tenentes Stana Nolinow e Brazo Alkher. A seguir transmitiu o texto da mensagem expedida pelos dois oficiais que se encontravam no barco espacial.

    Cardif-Rhodan ouviu o nome dos dois oficiais que abandonara vergonhosamente a bordo da nave Baa-Lo e compreendeu a mensagem enviada por eles. No mesmo instante lembrou-se das últimas palavras proferidas pelo antimutante agonizante, no planeta de Utik. Este aludira ao planeta Trakarat.

    Uma esperança absurda alvoroçou sua mente. Com a coragem do desespero agarrou-se à idéia de que os antimutantes deveriam ser capazes de, com o saber de que dispunham, dominar o processo de cisão celular.

    Devia ir a Saós o mais rápido possível!

    Cardif-Rhodan esquecera-se de que estava cercado por médicos, que o observavam constantemente.

    Naquele instante estava elaborado o plano que levaria os antis a ajudá-lo. Contou com a possibilidade de que não se dispusessem a fazer qualquer coisa por ele. Nesse caso as instalações de Saós seriam destruídas juntamente com o planeta.

    — Quero que me levem de volta!

    Estas palavras, pronunciadas em tom áspero, surpreenderam os médicos, que se entreolharam e balançaram levemente a cabeça.

 

    Os dois homens que se encontravam na ante-sala, à espera de Rhodan, também ouviram a mensagem, já que segundo as ordens do comandante da Ganges a notícia não fora enviada apenas ao chefe, mas também ao Marechal Solar Mercant.

    A última sílaba ainda ressoava nos ouvidos dos homens, quando Mercant, com um nervosismo que era raro em sua pessoa, pediu a Reginald Bell que o acompanhasse.

    O planador-relâmpago aguardava junto à entrada. Num instante levou-os ao quartel-general da Segurança. Durante a viagem, Mercant imediatamente começou a transmitir suas instruções. Assim que chegou ao seu gabinete, acompanhado de Bell, os preparativos mais importantes já haviam sido concluídos.

    Seguiu-se uma ligeira conferência, do tipo que antigamente Rhodan costumava realizar.

    — Senhores — disse Mercant aos cinco colaboradores que se encontravam em seu gabinete. — Precisamos descobrir a posição galáctica do planeta Trakarat. Se não me engano, a mensagem de Alkher diz que em Saós existem antis que podem dar-nos informações a este respeito. Os senhores sabem quando ouvimos falar pela primeira vez no mundo Trakarat. É o lugar de origem dos antis, ou o lugar em que atualmente se encontra sua sede central. Recomendo-lhes encarecidamente guardar o maior sigilo. Quaisquer informações serão fornecidas exclusivamente a mim ou a mister Bell. Entendido? Podem retirar-se. Um momento, vamos aguardar esta mensagem...

    A tela do videofone iluminou-se.

    O rosto do epsalense Jefe Claudrin apareceu. O comandante da nave linear Ironduke viu na tela a pequena conferência realizada no gabinete de Mercant. Logo tirou suas conclusões.

    — Marechal solar — trovejou sua voz. — Acabo de receber do chefe uma ordem para decolar às 15:10 h, com destino ao sistema de Saós, situado no grupo estelar M-13. Também ouvi o chefe colocar em estado de prontidão vários grupos de unidades de nossa frota que, até então eram mantidos em reserva. O senhor também deverá ir a Saós. O chefe subirá a bordo às 14:50 h.

    Mercant acenou com a cabeça para Jefe Claudrin e desligou. Fitou intensamente os colaboradores que se encontravam em seu gabinete.

    — Os senhores estão tão bem informados quanto eu. Se precisarem de auxiliares, levem homens que mereçam confiança irrestrita. Não tenho mais nada a dizer sobre este caso. Encontrar-nos-emos às 14:30 h, a bordo da Ironduke. Os senhores dispõem de vinte minutos para concluir seus preparativos. Bom dia.

    Bell e Mercant viram-se a sós.

    — O senhor pensou em todas as conseqüências? — perguntou Bell.

    — Sei o que quer dizer, mister Bell. Está pensando em Atlan. Se o imperador descobrir que outras unidades estão penetrando no sistema M-13, interpretará isso como um ato de hostilidade. Sua reação poderá consistir numa declaração de guerra formal. Mister Bell, o senhor é a única pessoa capaz de evitar a catástrofe. Atlan ainda tem um pouco de confiança no senhor. Eu...

    Ouviu-se uma batida. A porta abriu-se e o professor Manoli entrou. Foi recebido em silêncio.

    As palavras que proferiu causaram uma estranha impressão:

    — Nenhuma pessoa que possa estar interessada nisso deve saber que estou aqui. O chefe está acometido de um processo de cisão celular explosiva. A responsabilidade de que me acho investido obriga-me a informá-los sobre isto.

    Bell e Mercant fitaram-se sem dizer uma palavra. O nome da doença não lhes dizia nada.

    Sem que o pedissem, Manoli explicou o estado de Perry. Enquanto falava, o rosto de Bell tornava-se cada vez mais pálido.

    — Terá de morrer? — perguntou em tom apavorado.

    — Não tenho nenhuma esperança. Alguns dos meus colegas são de outra opinião. Talvez eu esteja errado. Por enquanto ninguém pode afirmar nada. É a primeira vez que esta doença surge na Terra.

    — Será que a doença foi provocada pelo ativador celular? — perguntou Bell em tom exaltado.

    Manoli respondeu com outra pergunta.

    — O senhor julga o Ser capaz duma coisa dessas, mister Bell?

    Os três homens que se encontravam no gabinete já haviam recebido várias aplicações da ducha celular do planeta artificial e conheciam o Ser fictício.

    — Não! — respondeu Bell em tom enérgico.

    — Então... — retrucou Manoli. — Se é assim, a causa da doença do chefe deve ser outra. Acontece que não a conhecemos; ainda não.

    — O senhor ainda tem esperanças? — perguntou Mercant, com um brilho fugaz nos olhos.

    Um sorriso triste surgiu no rosto de Manoli.

    — Afinal, somos criaturas humanas que vivem da esperança... Conservamos a esperança até o último instante. Portanto, esperemos que o chefe seja curado por um milagre, pois, do contrário, poderá transformar-se num monstro.

    As últimas palavras foram proferidas em voz tão baixa que Bell e Mercant quase não conseguiram entendê-las.

    Bell refletiu.

    — Professor, será que o senhor se zanga se eu voltar a aludir ao tratamento de choque?

    — Não, mister Bell. Também vivo pensando nisto. No entanto, também é possível que a doença de Rhodan tenha sido causada pelos antis. Não devemos esquecer-nos de que, em Okul, o chefe ficou nas mãos deles por muitas horas.

    Bell lançou um olhar penetrante para Mercant. O marechal solar acenou com a cabeça.

    — Compreendi, Bell. Isso nos impõe mais uma tarefa. Devemos descobrir se a doença pode ser atribuída aos antimutantes. Em caso afirmativo, nós os obrigaremos a curá-lo.

    — Isto é muito mais fácil de dizer que fazer. Mas não podemos deixar de tentar.

    Bell ergueu-se abruptamente e lançou um olhar para o relógio.

    — Está na hora. Professor, será que o senhor quer acompanhar-nos no vôo da Ironduke para o planeta Saós?

    Manoli fez que não.

    — Todos conhecem as alterações que o chefe sofreu nestas últimas semanas. Se eu aparecer na Ironduke, poderei provocar suspeitas nele. E os senhores terão melhores condições de vigiá-lo se o deixarmos na crença de que não sabem que está doente.

    O rugido de centenas de propulsores tornou impossível qualquer forma de palestra. Os três homens foram à janela e viram um grande grupo de naves da classe Estado disparar em direção ao céu. Tomavam o rumo do planeta Saós, situado no grupo estelar M-13.

    — Vamos andando — disse Bell, quando o barulho diminuiu um pouco.

    Assim que chegaram à porta, despediram-se do professor Manoli. O planador-relâmpago levou-os ao lugar em que se encontrava a nave linear Ironduke, um veículo espacial esférico de oitocentos metros de diâmetro. Entraram pela eclusa C. Bell deu uma ordem ao oficial de serviço junto à eclusa:

    — Não anuncie nossa chegada. Se houver problemas, pode dizer que eu dei a ordem.

    Fez como se não visse o rosto espantado do experimentado oficial. Bell teve a impressão de que não poderia agir de outra forma.

    Dirigiram-se ao camarote em que Mercant costumava ficar. Através do sistema de intercomunicação de bordo ficaram sabendo que o chefe comparecera pontualmente. A Ironduke decolou no momento exato.

    Acelerou mais fortemente que de costume. Cardif-Rhodan dera ordens para isso. O medo de morrer fazia com que ansiasse por chegar logo a Saós...

 

                                                                                            Kurt Brand  

 

                      

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