Biblio "SEBO"
CONHEÇO PESSOAS CAPAZES DE LEMBRAR A LONGA SERIE DE SUAS férias infantis e ver na memória sempre uma paisagem diferente - chapadas gredosas ou montanhas suíças; um mar ensolarado e azul ou a fímbria do oceano sempre agitada e cinzenta; charnecas cobertas de urzes sob a nuvem com uma nesga distante de luz do sol sobre os montes, dourados como a felicidade e, como a felicidade, remotos, precários e efémeros, ou as águas serenas do Como, os ciprestes e as rosas da Páscoa.
Invejo-as pela variedade de suas impressões. Pois é bom ter visto alguma coisa do mundo com oLhos infantis, desinteressados e pouco críticos, observando não o que é útil, belo ou interessante, mas apenas coisas que, para um ser de menos de um metro e vinte de altura e desprovido de todo conhecimento da vida ou da arte, parecem imediatamente significativas. São os mendigos, são os guarda-chuvas verdes sob os quais os cocheiros se sentam quando chove, e não* a cúpula de Brunelleschi, não as extorsões do gerente do hotel, não os túmulos dos Mediei que impressionam a criança viajante. Essas impressões, é verdade, não são de particular valor para nós depois de crescermos. (A famosa sabedoria dos bebés, com aquelas insinuações infantis de imortalidade e tudo o mais, nunca chegou realmente a representar grande coisa; e o homem que estuda a alma das crianças na esperança de descobrir alguma coisa sobre a alma dos homens tem tanto probabilidade de descobrir algo importante quanto o homem que pensa poder explicar Beethoven relacionando-o com as origens selvagens da música ou a religião relacionando-a com os instintos sexuais.) Nem por isso deixa de ser bom ter tais impressões infantis, ainda que apenas para comparar (a fim de podermos extrair a moral filosófica) o que vimos de um lugar quando tínhamos seis ou sete anos com o que vemos de novo aos trinta anos.
Minhas férias não tiveram variedade. Desde o tempo em que fui pela primeira vez à escola preparatória até ao tempo em que meus pais voltaram definitivamente da índia - acho que eu tinha então dezesseis ou dezessete anos - todas elas foram passadas com Tio Spencer. Durante anos os únicos lugares da superfície da terra de que tive conhecimento foram Eastbourne, onde eu frequentava a escola; Dover (e isso se reduzia ao porto e à estação), onde eu embarcava; Ostend, onde Tio Spencer ia esperar-me; Bruxelas, onde mudávamos de trem; e finalmente Longres, em Limburg, onde meu Tio Spencer era dono da usina de açúcar, que a mãe, minha avó, herdara de seu pai belga, e onde ele tinha sua casa.
Pendurado sobre o parapeito do navio que se movia vagarosamente, com a popa para frente, através do estreito canal do porto de Ostend, eu costumava forçar a vista, tentando distinguir na multidão, na beirada do cais, a pequena e familiar figura. Lá estava sempre ele, sacudindo o lenço de seda colorida, gritando inaudíveis cumprimentos e conselhos, atrapalhando carregadores e coletores de bilhetes, remexendo-se com quase incontrolável impaciência atrás da barreira, até que finalmente, apertado e quase sufocado entre homens e mulheres crescidos - que o processo de desembarque transformava, como que por alguma malévola magia circeana, em feras rosnadoras e irracionais - eu chegava lutando à terra, carregando em uma mão minha pequena mala e segurando com a outra, na cabeça, se era verão, um chapéu de palha mosqueado, enfeitado com as cores da escola; se era inverno, um absurdo chapéu-de-côco, cuja copa enfiada sobre as orelhas me fazia parecer uma criança de história cómica fingindo-se de gente grande.
- Até que enfim você chegou! - dizia meu Tio Spencer, arrancando a mala da minha mão.
- Onze minutos atrasado.
E corríamos para o armazém da Alfândega como se nossas vidas dependessem de lá chegarmos antes dos outros passageiros transformados em feras.
Tio Spencer era homem de mais ou menos quarenta anos quando pela primeira vez fui de minha escola preparatória passar as férias com ele. Era magro, bem baixo, muito rápido, ágil e impulsivo, em seus movimentos, com pés pequenos e mãos delicadas e pequenas. Seu rosto era fino, bem delineado, escarpado e aquilino; seus olhos eram pretos e extraordinariamente brilhantes, profundamente engastados embaixo de sobrancelhas salientes; seus cabelos eram pretos e bem compridos, penteados da testa para trás. Dos lados da cabeça os cabelos já estavam começando a ficar cinzentos e, acima das orelhas, por assim dizer, duas asas cinzentas dobravam-se sobre a cabeça, de modo que, olhando-o, a gente se lembrava de Mercúrio com seu gorro alado.
- Depressa! - dizia ele. E eu corria atrás dele. - Depressa! Naturalmente, de nada nos adiantava a pressa. Mesmo depois de ter sido examinada minha pequena mala de mão? era sempre preciso esperar que se desembaraçasse o baú. E isso, para meu Tio Spencer, era uma agonia. Embora nossos lugares no expresso de Bruxelas estivessem reservados, embora ele soubesse que em circunstância nenhuma o trem partiria sem nós, essa certeza intelectual não era suficiente para aquietar sua apaixonada impaciência, para atenuar seus temores instintivos.
- Terrivelmente vagaroso - repetia ele. - Terrivelmente vagaroso. - E pela centésima vez olhava o relógio. - Dites-moi - dizia, mais uma vez, à sentinela postada na porta do armazém da Alfândega, - "lê grana bagage...? - até que finalmente o homem, exasperado por essas perguntas que não era de sua obrigação responder, dizia alguma coisa rude; ao que Tio Spencer, ofendido, o chamava de mal eleve e grossier personnage - para enfurecimento da sentinela, mas que não deixava de aliviar bastante os sentimentos de meu tio, isso porque, depois de tal explosão, ele conseguia esperar com paciência uns bons cinco minutos, esquecendo-se tanto de sua ansiedade a respeito do baú a ponto de começar realmente a falar comigo sobre outros assuntos, perguntando como eu fora naquele trimestre na escola, qual era minha média de pontos no criquet, se eu gostava de latim e se o Velho Thunderguts,(*) nome que dávamos ao diretor devido à sua nobre voz de barítono, continuava mal-humorado como sempre.
Ao fim dos cinco minutos, porém, a menos que o baú tivesse aparecido antes, Tio Spencer começava a olhar de novo para o relógio.
- Escandalosamente vagaroso - dizia ele. E dirigindo-se a outro guarda: - Dites-moi, monsieur, lê grana bagage... ?
Mas quando por fim nos vimos seguros no trem e nada havia que o impedisse de exibir todas as graças e amabilidades de seu caráter, Tio Spencer, então todo encanto e bondade, dedicavase calorosamente a mim.
- Olhe! - dizia ele. E do bolso do capote tirava um pacote grande e úmido, de cuja existência meu nariz havia muito tempo já me dera notícia. - Adivinhe o que há aqui?
- Camarões - respondia eu sem um instante de hesitação.
(*) N.T. - Barriga de trovão.
E eram mesmo camarões, um quilo inteiro de camarões. Lá ficávamos nós sentados em cantos opostos de nosso compartimento de primeira classe, com a pequena mesa dobradiça aberta entre nós e os camarões rosados espalhados sobre ela, comendo com infinito apetite e jogando pela janela as cascas rosadas, as caudas e as cabeças chupadas. A planície flamenga passava correndo ao nosso lado; as compridas filas duplas de choupos plantados ao longo das margens dos canais, ao longo das beiradas das rodovias, movendo-se à medida que nos movíamos, marchavam paralelamente à nossa rota ou, quando as atravessávamos em ângulos retos, deixavam ver por um rápido e significativo momento a entrada da avenida Hobbema. Depois, os campanários de Bruges acenavam de longe através da planície; mais uma dúzia de camarões e estávamos atravessando ruidosamente a estação, toda feita de escuridão e ogivas em homenagem a Memling e ao passado gótico. Quando já havíamos comido outro hectograma de camarões, o bairro moderno de Ghent lembrava-nos que a arte tinha apenas cinco anos de idade e fora inventada em Viena. Em Alost as chaminés das fábricas fumegavam; e antes de sabermos onde estávamos já havíamos quase chegado aos subúrbios de Bruxelas, com duzentas ou trezentas gramas de frutos do mar ainda intatos sobre a mesa à nossa frente.
- Depressal - gritava Tio Spencer, ameaçado por outro acesso de ansiedade. Precisamos acabar com eles antes de chegarmos a Bruxelas.
E durante as últimas cinco milhas nós os comíamos furiosamente, com casca e tudo. Mal havia tempo para cuspir as cabeças e as caudas.
- Nada como camarões - nunca deixava de dizer Tio Spencer quando o expresso entrava devagar na estação de Bruxelas e as últimas caudas e antenas com o pedaço de papel eram jogadas pela janela. - Não há como camarões quando o cérebro está cansado. É o fósforo, sabe? Depois de todos os seus exames do fim do trimestre você precisa deles.
E depois batia afetuosamente com a mão em meu ombro.
Quantas vezes desde então tenho repetido com toda seriedade as palavras de Tio Spencer. "É o fósforo", asseguro a meus fatigados amigos, quando insisto para que façam seu almoço com mariscos. As palavras jorram de mim espontaneamente. A opinião de que camarões e ostras são bons para o cérebro cansado é quase uma das minhas crenças fundamentais e, por assim dizer, instintivas. Às vezes, porém, no momento em que digo as palavras, penso de repente em Tio Spencer. Vejo-o mais uma vez sentado à minha frente em um canto do expresso de Bruxelas, os olhos brilhando, o rosto fino movendo-se expressivamente quando fala, enquanto os dedos rápidos e nervosos apanham impacientemente as cascas rosadas ou, com um gesto desdenhoso, deixam uma cabeça com antenas cair pela janela aberta na paisagem flamenga. Lembrando-me de Tio Spencer, surpreendo-me não sei porque acreditando com menos firmeza do que acreditava naquilo que estou dizendo. E pergunto a mim mesmo com certa inquietação quantas outras relíquias do espírito de Tio Spencer ainda carrego comigo, de maneira absolutamente inconsciente.
Quantas de nossa? crenças - mais sérias mesmo que a crença em que camarões revigoram o cérebro cansado - nos chegam casualmente de fontes muito menos dignas de crédito que Tio Spencer! Os homens mais inteligentes são surpreendidos sustentando sobre certas coisas opiniões que lhes foram incutidas durante a infância por pagens e cavalariços. Até o fim de nossa adolescência, e mesmo depois, há para todos nós certos seres admirados, cujas palavras penetram irresistivelmente em nossas mentes, nelas gerando crenças que a razão não se atreve a pôr em dúvida e que, embora possam estar completamente fora de harmonia com todas as nossas outras opiniões, persistem ao lado delas sem que jamais percebamos as contradições entre os dois grupos de ideias. Assim, um moço emancipado, cujo pai tenha sido distinto servidor civil na índia, é ardoroso apóstolo da liberdade e da autodeterminação; mas insiste em que os indianos são e serão sempre completamente incapazes de governarem-se a si próprios. E um crítico de arte, extremamente judicioso em relação a Vlaminck e Marie Laurencin, elogia magistralmente, grandiosamente - e sinceramente, pois essa é sua opinião genuína - as obras de um artista cujas pretensiosas e medíocres pinturas da paisagem toscana agradavam, por lhe fazerem lembrar sua mocidade, a uma velha senhora, já morta, mas que quando moço ele amou e admirou muito.
Tio Spencer foi para mim, em minha meninice, um desses seres admirados, cujas opiniões possuem valor mais que terreno para o ouvinte cheio de admiração. Durante anos as crenças que com mais apaixonado carinho alimentei foram as suas. As opiniões que formei por mim mesmo eu sustentava com mais timidez, com menos ardor; pois, afinal de contas, eram apenas frutos de meu próprio julgamento e observação, crescimentos racionais e superficiais; ao passo que as opiniões por mim recebidas de Tio Spencer - como essa crença nas propriedades curativas dos camarões nada tinham a ver com a razão, mas haviam sido sugeridas diretamente nas profundezas subracionais, onde pareciam apegar-se como cracas ao próprio casco e fundo de minha mente. Espero ter conseguido desde então raspar a maioria delas; e foi um processo doloroso, trabalhoso, demorado. Mas ainda resta, ouso dizer, bom número delas, tão profundamente arraigadas e grudadas, que me é impossível reconhecê-las. Descerei a meu túmulo fazendo certos julgamentos, sustentando certas opiniões, considerando algumas coisas e ações de certa maneira - e a maneira, as opiniões, os julgamentos não serão meus, mas de Tio Spencer; e as obscuras câmaras de minha mente serão até o fim assombradas por esse fantasma inquieto, excêntrico, brilhante.
Há pessoas cujos hábitos de pensamento um menino ou um moço pode adotar, com a maior vantagem possível para si próprio. Mas Tio Spencer não era uma delas. Sua mente ativa atirava-se para um lado e para outro, de maneira tão selvagem e caprichosa que não podia servir de guia seguro a uma inteligência inexperiente. Mostrava-se -muito prontamente lógica em tirar conclusões de premissas falsas, aceitas como verdadeiras com muita facilidade e entusiasmo. Vivendo como vivia em solidão - em solidão mental, pois, embora não fosse recluso e aproveitasse sua parte de todos os prazeres sociais, a sociedade de Longres não podia oferecer-lhe grande coisa em matéria de companhia altamente intelectual - era capaz de dar largas à excentricidade nata de sua mente. Não tendo ninguém para refreá-lo ou dirigi-lo, disparava por estradas intelectuais que não levavam a lugar algum ou levavam a atoleiros de absurdos. Quando, muito tempo depois, eu costumava divertir-me ouvindo nas tardes de domingo os oradores em Marble Arch, muitas vezes me lembrei de Tio Spencer. Como Tio Spencer, eles viviam em solidão, separados do principal mundo contemporâneo de ideias, desconhecendo, ou conhecendo tão vagamente que mal adiantava, a própria existência de ciência organizada e sistemática, sem saber sequer onde procurar as reservas acumuladas de conhecimento humano. Conversei no Parque com estudiosos da Bíblia que se vangloriavam de remendar sapatos ou vender queijos durante o dia, enquanto à noite ficavam acordados aprendendo hebraico ou estudando os críticos do Livro Sagrado. Eu ficava envergonhado de minha própria ociosidade, envergonhado do mau uso que fazia de minhas oportunidades. Aqueles humildes intelectuais heroicamente à procura de instrução são figuras comoventes e nobres - mas muitas vezes também pateticamente ridículas! Os críticos que meus estudiosos da Bíblia costumavam ler e sobre os quais meditavam estavam sempre pelo menos três quartos de século atrasados - desacreditados sábios d" Tubingen ou inspiracionalistas literais; suas autoridades eram sempre livros escritos antes da invenção da moderna pesquisa histórica; sua geologia tinha provas irrefutáveis da existência da Atlântida; sua fisionomia, se acontecia de serem ateus, era obsoletamente mecanística e, se cristão, meramente providencial. Todo o seu obstinado engenho, todos os seus anos de heróicos esforços haviam sido desperdiçados - desperdiçados, pelo menos, no que se referia ao aumento do conhecimento humano, mas não para eles próprios, pois o trabalho, a ambição desinteressada, trouxera-lhes felicidade.
Tio Spencer era espiritualmente um primo desses oradores e críticos superiores de Hyde Park. Tinha toda a paixão deles por instrução e por ideias profundas, mas não contente em concentrar-se, como eles, em um único assunto, como a Bíblia, deixava-se atrair por tudo quanto havia sob o sol. Todo o campo da história, da ciência (ou melhor, do que Tio Spencer julgava ser ciência), da filosofia, da religião e da arte ficava dentro de sua competência. Ele tinha seu engenho também - engenho, em seu caso, bastante extravagante, caprichoso e inconstante, pois começava estudando apaixonadamente uma matéria, para voltar-se pouco depois em direção a outra cujo aspecto lhe parecia no momento mais atraente. Como eles, demonstrava - embora em grau menos pronunciado, pois sua educação fora melhor que a deles (mas não muito melhor, pois nunca frequentara qualquer centro de cultura, mas apenas uma de nossas mais antigas e mais desesperadoras escolas públicas) - demonstrava vasto desconhecimento do pensamento contemporâneo e uma fé pouca crítica em autoridades que, para um homem mais sistematicamente instruído, teriam parecido evidentemente atrasadas; aliados a uma profunda ignorância até mesmo dos métodos pelos quais se poderia adquirir um conhecimento do universo mais preciso ou, pelo menos, mais "moderno" e em moda.
Tio Spencer tinha opiniões e informações sobre quase todo assunto que alguém se desse ao trabalho de mencionar; mas a informação era quase invariavelmente falha e os julgamentos em que se baseava eram fantásticos. Quantas coisas ele costumava contar-me enquanto ficávamos sentados frente a frente nos cantos de nosso compartimento de primeira classe, com os camarões empilhados em uma pequena montanha coralina sobre a mesa dobradiça entre nós! Fragmentos de sua animada conversa voltam-me à memória:
"Existem na Lombardia ciprestes que foram plantados por Júlio César..."
"A raça humana descende de pigmeus africanos. Adão era preto e tinha apenas um metro e vinte de altura..."
"Similia similibus curantur. Você já aprendeu latim suficiente para saber o que significa isso?" (Tio Spencer era um homeopata entusiástico e as palavras de Hahnemann representavam para ele uma fórmula mística, uma espécie de Om mani padme hum, cuja repetição lhe causava imensa satisfação espiritual.)
Lembro-me que, certa vez, quando passávamos pela nova e fabulosa estação de Ghent aquela estação que quinze ou dezesseis anos depois eu iria ver toda destruída e saqueada pelos invasores em retirada - ele começou, a propósito de um pelotão de soldados parado na plataforma, a contar-me como um professor alemão havia provado, matematicamente, empregando as teorias da balística e das probabilidades, que a guerra era então impossível, por serem os modernos fuzis de tiro rápido e metralhadoras tão eficientes que era, como dizia Tio Spencer, "ci-en-ti-fí-ca-mente impossível" a qualquer grupo de homens conservar-se vivo a uma milha de distância de um número suficiente de metralhadoras, movendo-se para frente e para trás através do arco de um círculo e disparando continuamente o tempo todo. Passei minha meninice na serena certeza de que a guerra era então coisa do passado.
Às vezes ele me falava seriamente, por cima dos camarões, sobre as cosmogonias de Boehme ou Swedenborg. Tudo isso era, porém, tão extraordinariamente obscuro que nunca entendi coisa alguma. Apesar da ascendência de Tio Spencer sobre minha mente nunca me contagiei com seus entusiasmos místicos. Esses desregramentos mentais haviam sido os desvarios da mocidade de Tio Spencer. Reagindo à sufocante respeitabilidade ortodoxa de sua criação, ele se entregara, não ao vício, não ao ateísmo, mas a Swedenborg. Conservara - um legado de sua próspera mocidade no século XIX - um otimismo fácil, uma grande crença no progresso e na superioridade dos tempos modernos sobre os antigos, juntamente com conveniente ignorância das coisas sobre as quais teria sido perturbador pensar muito. Essa agradável noção do mundo eu ingeri fácil e copiosamente junto com meus pequenos crustáceos; minhas opiniões sobre o universo e os destinos do homem eram naquele tempo tão róseas quanto os próprios camarões.
Não era senão às sete ou oito horas da noite que chegávamos finalmente a nosso destino. A carruagem de Tio Spencer - victoria ou brougham, de acordo com a época do ano e as condições do tempo - esperava-nos na porta da estação. Subíamos e rodávamos sobre suas rodas de borracha em um silêncio que parecia quase mágico, tão ensurdecedor era o barulho que as carruagens comuns e os simples carros de aluguel da estação faziam ao matracolejar sobre as pedras do calçamento da comprida e desoladora Rue de Ia Gare. Mesmo no inverno, quando nada havia para ver nela além de um ocasional lampião de gás verde, com um pequeno universo de calçamento, muros de tijolos e janelas fechadas que dele dependiam e por ele eram criados na escuridão circundante, a Rue de Ia Gare era notavelmente deprimente, ainda que apenas por ser tão reta e comprida. No verão, porém, quando as lúgubres casas de tijolos que a ladeavam se revelavam à luz do anoitecer, quando a poeira e os pedaços de papel avançavam por ela soprados por luxadas de vento quente e cheirando a ranço, a rua parecia duplamente comprida e desagradável. Por outro lado, porém, isso tornava ainda mais impressionante e refrescante o contraste entre sua sordidez e a espaçosa e fresca GrandTlace em que ela finalmente desembocava, depois do que parecia ser uma cuidadosa preparação mediante curvas e dobras entre as estreitas ruas da cidade velha. Corno um navio saindo das mandíbulas de um desfiladeiro para um lago largo e iluminado pelo sol, nossa carruagem emergia na GrandTlace. E o momento era solene, ansiosamente esperado e teatral, como se estivéssemos avançando suavemente entre oboés e fagotes calados, com os violinos tremendo de amorosa ansiedade ao nosso redor, entrando silenciosamente e sem a menor dificuldade de carpintaria em um vasto e iluminado palco, onde, assim que ocupássemos nosso lugar bem na frente e no centro, algo tremendo começaria a acontecer de repente - um enorme tutti orquestral do trombone contrabaixo ao piccolo, das campainhas até o triângulo, e depois o tenor e o soprano em um dueto como nunca se ouvira em toda a história da música.
Mas quando chegava o momento, nossa entrada nunca era tão dramática assim. Ao chegar realmente ali, a gente descobria que se enganara de "ópera; não era "Parsifal" nem "Rigoletto"; era "Pelléas" ou talvez "Village Romeo and Juliet". Isso porque nada havia de grandiosamente wagneriano, nada de italiano e aparatoso na GrandTlace de Longres. A última luz caía rosada sobre suas torres, as sombras dos passeantes estendiam-se por metade da praça, e no vasto quadrado a noite tinha espaço para ser fresca e quieta. A Igreja Gótica tinha uma afiada agulha, e o seminário a seu lado, uma torre, enquanto o pequeno Hotel de Ville do século XVII, com seu fino campanário, erguido no meio daquele espaço aberto como se não tivesse medo de deixar-se ver por todos os lados, era um milagre de alegre e sóbria arquitetura. As casas que se voltavam para ele tinham fachadas realmente simples, burguesas e engenhosas, mas não sem certa nobreza e uma espécie de despretensiosa elegância provinciana. Deslizávamos então para dentro e os sons dos oboés à nossa entrada, ao invés de levar a um grandioso e pomposo estouro de harmonia, encomprídavam-se agradavelmente naquela beleza do anoitecer, exultavam quietamente sob a luz rosada, meditavam entre as sombras alongadas; e os violinos, deixando de tremer de expectativa, cresciam e avolumavam-se, como torres leves e saltitantes, dentro do céu sereno. Se por acaso o relógio batia no momento em que entravámos, como as notas do carrilhão mecânico se harmonizavam encantadoramente com essa música imaginária! Nas horas certas, os sinos da alta torre do Hotel de Ville tocavam um minueto e trio, tilintante e formal como a primeira composição de um Boccherini na infância, que durava até passarem três minutos inteiros. Nas meias horas, era uma ária patriótica da mesma duração. Nos quartos de hora, porém, os sinos não faziam mais que iniciar uma melodia. Três ou quatro compassos e a música cessava, deixando o ouvinte a perguntar-se o que deveria ter vindo depois e a atribuir a esse pedaço fragmentário de ária algum rico florescimento no prenhe e musical silêncio, algum sutil desenvolvimento que teria feito o todo mais encantador que as peças posteriores e anteriores, e cujo encanto consistia precisamente em sua antiquada mediocridade, na antiga, desafinada e trémula doçura dos sinos que o tocavam, e nos defeitos do mecanismo, que davam ao ritmo aquela peculiar e imprevisível irregularidade que a criança ao piano, com a língua entre os dentes, os olhos relanceando ansiosamente das notas impressas para os dedos e vice-versa, trabalhosamente introduz na impecável uniformidade de "The Merry Peasant".
Esses regulares e repetidos toques de carrilhão eram e de fato ainda são - pois os invasores pouparam os sinos - parte essencial de Longres, aspecto característico e reconhecível, igual à silhueta das suas três torres vistas de muito longe entre os choupos do outro lado do terreno largo e plano.
É com uma pequena risada de divertido prazer que o estranho em visita a Longres ouve, pela primeira vez, as vibrantes árias e os entrechoques de fina e doce harmonia que descem do céu flutuando sobre ele, uma nota seguindo-se a outra ainda não abafada, de modo que as vibrações se misturam no ar, envolvendo os claros contornos da melodia com um fraco e trémulo halo de dissonância. Depois de uma ou duas horas, o minueto e trio, e a ária patriótica ficam familiares demais, enquanto toda repetição dos fragmentos nos quartos de hora se torna cada vez mais enigmática, prenhe, incerta e irritante. A luz rósea desaparece das três torres, as complexidades góticas da igreja afundam-se em uma chata e negra silhueta contra o céu noturno; mas do alto da escuridão sem teto ainda flutuam para baixo, flutuam para cima e para fora sobre os telhados das casas, através dos campos planos, o minueto e trio. A ária patriótica continua ainda, mesmo depois do pôr do sol, a comemorar os grandes acontecimentos de 1830; e os fragmentos intermediários, como apontamentos no caderno de anotações de um génio, sugerem à mente, nos rabiscos de vinte notas, um tema esplêndido e a possibilidade de mil e quinhentas variações. À meia-noite os sinos ainda estão tocando; meia hora antes da uma o estranho desperta novamente de seu sono; redespertado a um quarto para as quatro suas especulações sobre as possíveis conclusões da sinfonia inacabada deixam-no acordado por tempo suficientemente longo para ouvir o minueto e trio na hora-certa e perguntar a si próprio como alguém em Longres consegue dormir. Em um ou dois dias, porém, ele próprio responde à pergunta dormindo ininterruptamente através das sugestões do caderno de anotações de Beethoven, das mais deliberadas evocações da infância de Boccherini e da revolução de 1830. A doença cria seu próprio antídoto e o hábito de ouvir o carrilhão provoca gradualmente um estado de especial surdez mental no qual os habitantes de Longres vivem permanentemente.
Mesmo quando menino, para quem a insónia era coisa desconhecida, achei os sinos decididamente exasperantes nas duas primeiras noites depois de minha chegada a Longres. A casa de Tio Spencer dava para a própria GrandTlace e minha janela no terceiro andar ficava a cinquenta jardas do campanário do Hotel de Ville e da fonte da música aérea sempre que o vento soprava do sul, o Boccherini de três anos de idade parecia estar comigo no quarto, martelando seu minueto em meus ouvidos. Depois das duas primeiras noites, porém, ele podia martelar e gritar quanto quisesse; não havia em Longres sino capaz de acordar-me.
O que me acordava, porém - todo domingo de manhã mais ou menos às quatro e meia ou cinco horas - eram os porcos que vinham para o mercado. Seria preciso passar um mês de sábados em Longres para poder adquirir a especial surdez mental que permitisse ignorar o estrondear das rodas dos carros sobre as pedras do calçamento e os gritos e grunhidos de dois ou três mil porcos. E quando se olhava para fora que vista se tinha! Toda a GrandTlace era dividida por grades em uma multidão de pocilgas e cercados, cada um deles cheio de rosados porcos nus que do alto se assemelhavam muito a outros tantos élan vital bergsonianos em estado de incessante agitação. Homens iam e vinham entre os cercados, falando, barganhando, cutucando criticamente potenciais toucinhos ou pernis com a ponta de uma vara. Quando se fechava o negócio, o dono entrava no cercado, perseguia a vítima e, agarrando-a por uma orelha de couro ou por sua fina cauda de cordão de sapato, carregava-a, entre grunhidos que terminavam na penetrante e demorada harmonia de um grito, até um carro fechado ou talvez até algum outro cercado pouco mais abaixo. Ensinado na Inglaterra a considerar a imposição de desconforto a um animal tanto senão mais repreensível que a crueldade para com meus semelhantes humanos, lembro-me de ter ficado horrorizado diante daquele espetáculo. Ó mesmo parece ter acontecido com o exército alemão de ocupação. Tanto assim que, entre 1914 e 1918, nenhum porco no mercado de Longres podia ser erguido pela cauda ou pela orelha, sendo a desobediência punida com multa de vinte marcos na primeira infração, cem marcos na segunda e, depois disso, uma pena de trabalho forçado nas linhas de comunicação. De todas as medidas opressoras do invasor dificilmente terá havido alguma que irritasse mais profundamente os camponeses limburgianos. Nero foi impopular entre o povo de Roma, não devido a seus crimes e vícios, não por ter sido um tirano e assassino, mas porque construiu no meio da cidade um palácio tão grande que obstruía a entrada de várias das ruas principais. Se os romanos o odiavam era porque sua casa dourada os obrigava a dar uma volta de um quarto de milha toda vez que queriam fazer compras. As pequenas liberdades habituais, o direito de fazer pequenas coisas que sempre fizemos, são mais altamente valorizados que as liberdades maiores, mais abstratos e menos imediatos. Igualmente, a maioria das pessoas prefere correr o risco de apanhar tifo a adotar algumas desagradáveis precauções sanitárias a que não está acostumada. Neste caso particular, porém, havia ainda outra questão: Como se pode carregar um porco a não ser pela cauda e pelas orelhas? Seria preciso jogar a criatura de costas e levantá-la por seus quatro pés - processo dificilmente exequível pois o centro de gravidade de um porco fica tão perto do chão que se torna quase impossível virá-lo. Ou então - e foi isso que o revoltado povo de Longres se viu obrigado a fazer - era preciso estender os braços em roda do animal e carregá-lo encostado ao peito como se fosse um bebé, com risco de ser mordido na orelha e com a certeza de ficar fedendo porco o resto do dia.
No primeiro domingo depois da partida das tropas alemãs, a manhã foi ruim para os porcos. Carregar um porco pela cauda era símbolo exterior e visível da liberdade reconquistada; e os gritos dos capados misturavam-se aos aplausos da multidão e aos trinados e harmonias dissonantes dos sinos despertados de seu silêncio de quatro anos pelo tocador de carrilhão.
As dez horas estava encerrado o mercado. As grades dos cercados eram levadas embora e, a não ser pelas marcas no calçamento - que os varredores municipais já estavam também começando a limpar - eu poderia ter acreditado que a cena que olhara sob a brilhante luz da manhã fora parte de algum agitado sonho matinal.
Contudo, mais semelhante a sonho e mais fantástico era o aspecto da GrandTlace quando, todo ano em fins de agosto, Longres fazia sua tradicional quermesse. Então toda a enorme praça ficava coberta de barracas, com carrosséis girando e cintilando sob o sol, balanços e montanhasrussas, pináculos provisórios rivalizando com as seculares torres permanentes da cidade, e de cujo topo a gente, gritando descontroladamente com horrorizado prazer, escorregava por uma pista polida em espiral até chegar ao chão. Havia bandeiras por toda a parte, havia lustrosos balões e estandartes, havia tabuletas vistosamente pintadas. E, tendo como fundo as paredes cinzentas da igreja, as fachadas caiadas das casas, a escura alvenaria do seminário e o suave reboque amarelo do Hotel de Ville, um mar de muitas cores agitava-se tumultuosamente. Um imenso e indefinível barulho que era uma mistura da música de quatro ou cinco órgãos, das vozes de milhares de pessoas, do soar das trombetas e apitos, do retinir de címbalos, do bater de tambores, dos gritos e uivos de crianças, de enorme risada rústica, enchia o espaço entre as casas de ponta a ponta - um ruído tão continuado e tão amorfo que, ouvido do alto de minha janela, era, depois de algum tempo, quase como se não houvesse o menor barulho, mas uma nova espécie de silêncio, na qual o tilintar do minueto do Boccherini infante, a ária patriótica e as fragmentárias sinfonias se tornavam por alguma razão obscura inteiramente inaudíveis.
Depois do pôr do sol as chamas brancas de acetileno e as chamas vermelhas de gás de carvão tiravam do coração da noite um pequeno dia particular, no qual o divertimento prosseguia mais ruidoso do que nunca. E a luz do gás subindo para as torres misturava-se a meio caminho de suas agulhas com o luar que vinha de cima, de modo que, para mim, em minha janela, os campanários pareciam pertencer metade à terra e metade ao pálido silêncio do alto. Gradualmente, porém, à medida que a noite avançava, a terra abandonava suas pretensões; o barulho diminuía; uma depois da outra as chamas eram apagadas, até que finalmente a lua era deixada na posse absoluta, com apenas alguns fracos e esverdeados lampiões de gás aqui e acolá, sem fazer a menor tentativa de contestar a autoridade dela. As torres eram dela até as raízes, as barracas e os carrosséis encapuçados, as montanhas-russas, os balanços - tudo vestia a libre dourada e preta da lua. Audíveis mais uma vez, os sinos pareciam tocar em homenagem a ela uma nota mais doce, mais clara e mais melancólica.
Mas não era apenas de minha janela que eu via a quermesse. Desde o momento em que os carrosséis começavam a girar, o que acontecia tão logo terminava a missa das onze horas do penúltimo domingo de agosto, até o momento em que eles finalmente descansavam, o que sucedia mais ou menos às dez ou onze horas da noite do domingo seguinte, eu me movimentava quase sem cessar entre as delícias da feira. E que feira era aquela! Eu nunca vi coisa igual na Inglaterra. Tanto esplendor, tanta perfeição mecânica nos balanços, montanhas-russas, carrosséis, torres e coisas semelhantes! Tão espantosa riqueza e variedades dos espetáculos subsidiários! E além disso que maravilhosa barateza!
Quando a gente se cansava de escorregar e balançar, de ser girado e sacudido, podia ir ver por um pêni o homem que puxava para fora pedaços da pele para prendê-los com alfinetes de segurança, fazendo dobras e pregas ornamentais. Podia ir ver a mulher sem braços que abria uma garrafa de champanha com os dedos dos pés e bebia à saúde da gente, erguendo o copo até os lábios com os mesmos membros. Depois, em outra barraca, sobre cuja entrada ondulava - símbolo concreto de boa fé - uma enorme calça feminina, ficava sentada a Mulher Gorda - tão gorda que podia (e o faria por quatro sous extras, segundo contavam à gente), nas palavras do aviso em flamengo pregado na porta, que eu prefiro deixar em sua original obscuridade dialética, "heur gezicht bet heur tiekes wassen".
Ao lado da barraca da Mulher Gorda ficava uma tenda muito maior, na qual o célebre
Monsieur Figaro, com a esposa e sete filhos, apresentava sete ou oito vezes por dia uma dramática versão da Paixão de Nosso Senhor, à qual até mesmo o clero era autorizado a assistir. A família Figaro era célebre de um extremo a outro do País e isso há não sei quantos anos - quarenta ou cinquenta pelo menos. Pois havia várias gerações de Figaros. Se sete crianças encantadoras e inteiramente genuínas ainda pisavam o palco, não era que os sete filhos e filhas originais do velho M. Figaro tivessem permanecido perpetuamente jovens por algum milagre; mas, casando-se e chegando à meia-idade, eles haviam produzido seus pequenos Figaros que, por sua vez, haviam dado origem a outros, de modo que o idoso M. Figaro original podia contar entre os sete membros de sua suposta família com mais de um de seus bisnetos. Tão célebre era M. Figaro que havia mesmo uma canção a seu respeito, da qual infelizmente só consigo lembrar dois versos:
Et lê voilà, et lê voilà, Fi-ga-ro,
Lêplus comique de Ia Belgique, Fi-ga-ro!
Mas com que base e em que remota época da história ele se intitulara "Lê plus comique de Ia Belgique", nunca consegui descobrir. Isso porque o único papel que vi o velho e venerável cavalheiro desempenhar foi o de Caifás na "Paixão de Nosso Senhor", que era uma das mais comoventes ou, pelo menos, uma das mais pungentemente realísticas interpretações que me lembro de ter visto; tanto que as vozes dos atores eram com frequência abafadas pelos soluços e, às vezes, pelos penetrantes gritos de uma criança que pensava estarem eles real e genuinamente enfiando pregos no jovem e gracioso Figaro da terceira geração, que fazia o papel do Salvador.
Nem um dia de minhas primeiras quermesses passei sem ir, pelo menos uma vez e em certas ocasiões duas ou três vezes, ver os Figaros em sua representação; em parte, sem dúvida, porque, entre os nove e os treze anos, eu era um "broad churchman"(*) extremamente devoto e, em parte, porque o papel de Madalena era interpretado por um menina de uns doze anos, que eu fiquei amando, selvagemente, extravagantemente, como se pode amar quando se é criança. Eu teria dado fortunas e anos de minha vida para ter a coragem de ir até o fundo da barraca depois da representação e falar com ela. Mas não me atrevia; e, para dar uma justificação intelectual à minha covardia, assegurava a mim mesmo que teria sido indecoroso de minha parte intrometer-me em uma vida privada a que eu atribuía todo o caráter sagrado da vida pública de Madalena, um ato de sacrilégio como entrar na igreja de chapéu na cabeça. Além disso, dizia comigo mesmo, consolando-me, de pouco ter-me-ia adiantado encontrar-me frente a frente com minha enamorada, pois com toda a probabilidade ela não falava senão flamengo e eu, além de minha língua materna, só falava naquela época um pouco de francês e latim suficiente para saber o que Tio Spencer queria dizer quando exclamava: "Similia similibus curantur." Minha paixão por Madalena durou três quermesses, mas declinou, ou melhor chegou repentinamente ao fim, quando, ao correr para a primeira das representações dos Figaros na quarta quermesse, vi que a pequena Madalena, então chegando aos dezesseis anos, se tornara, como tantas meninas no meio da adolescência, gorda e redonda quase ao ponto da obesidade. Meu amor, depois de cair a zero no teatro, transformou-se em profunda aversão quando, alguns dias depois, eu a vi de manhã antes da representação andando na GrandTlace com uma blusa azul escura de gola de marinheiro, uma pequena saia azul até os joelhos e um par de brilhantes botas amarelas amarradas até o alto das grossas barrigas de suas pernas, por elas tão comprimidas que a carne exuberante transbordava sobre o couro. No ano seguinte, uma das bisnetas do velho M. Figaro, que dificilmente teria mais de sete ou oito anos, tomou o lugar dela no palco. Minha Madalena deixara-o - para casar-se, sem dúvida. Todos os Figaros se casavam cedo; era importante que não houvesse falha no abastecimento de apóstolos juvenis e mulheres santas. A essa altura, porém, eu já deixara de ter o menor interesse por ela, pela família ou pelas sagradas representações. Isso porque foi mais ou menos na época de minha quinta quermesse, se bem me lembro, que começou meu período de ateísmo - ateísmo, contudo, ainda combinado com todo o alegre otimismo de Tio Spencer em relação ao universo.
(*) Membro do partido que defendia ideias liberais dentro da Igreja Anglicana. (N. do T.)
Tio Spencer, embora o aborrecesse ouvir alguém dizer isso, gostava da quermesse quase tanto quanto eu. Em todo o ano, agosto era o melhor mês para ele; continha em seus trinta e um dias menos motivo de ansiedade, impaciência ou irritação que qualquer outro mês. Assim, deixado em paz pelo mundo perverso, Tio Spencer ficava livre para mostrar-se tão animado, tão alegre e tão bondoso quanto lhe era possível. Causava espanto a reserva que possuía dessas virtudes. Se pudesse viver em uma daquelas ilhas felizes onde a natureza fornece bananas e cocos em quantidade suficiente para se comer e jogar fora, onde o sol brilha todos os dias e um pouco de tatuagem é a única indumentária de que se precisa, onde o amor é fácil, o comércio é desconhecido e nunca se ouviu falar em pecado ou progresso - se pudesse viver em uma dessas ilhas sem preocupações, como Tio Spencer seria completamente feliz e uniformemente santo! Mas os cuidados e as preocupações mundanas frequentemente sufocavam sua alegria, faziam parar a vazão de sua bondade; e seu temperamento vivo, nervoso e impulsivo - borbulhante fonte de animação nos agostos de sua vida - fervia com feroz impaciência, transformava-se em biliosa fonte de irritação, sempre que ele se via diante da passiva perversidade da matéria, da estupidez ou duplicidade do homem.
Mostrava-se no que tinha de pior durante as festas do Natal. Isso porque o período de boa vontade universal infelizmente coincidia com a época de fabricação de açúcar. Com as primeiras nevadas, as beterrabas eram extraídas do solo e cada dia, durante três ou quatro meses, trezentos mil quilos de raízes flutuavam pelo labirinto de pequenos canais que iam dar nas máquinas de lavagem e nos formidáveis cortadores da usina de Tio Spencer. Por todas as fendas do enorme edifício saía um enjoatívo cheiro de beterraba cozida, misturado com o fedor mais penetrante dos resíduos da manufatura - a fibra vegetal desprovida de seu suco, que nos andares superiores era transformada em aumento para o gado e no quintal em adubo. Durante aqueles meses da safra de beterraba a atividade era febril, delirante. Uma selvagem orgia de trabalho, dia e noite, com três turmas nas vinte e quatro horas. Depois a usina era fechada e durante o resto do ano lá ficava, sozinha, nos campos amplos além das orlas da cidade, desolada como uma abadia em ruínas, silenciosa e sem vida.
Durante a safra da beterraba Tio Spencer quase perdia o juízo. Rodeados por lívidos círculos de cansaço, seus olhos brilhavam como os de um louco; seu rosto fino não era mais que pele pálida estendida sobre os ossos salientes. A mais ligeira contrariedade fazia-o praguejar e bater os pés de impaciência; era uma tortura para ele ficar sentado e quieto. Lembro-me que, certo ano, nas festas de Natal, quebrou-se alguma coisa na maquinaria da usina e, durante quase cinco horas, os cortadores e as batedeiras de lavagem não funcionaram. Tio Spencer era quase um homem perdido quando voltou à GrandTlace para jantar naquela noite. Era como se um demónio o tivesse possuído e só tivesse sido expulso à custa de horrível trabalho. Se a interrupção tivesse durado mais uma hora, creio realmente que ele teria ficado louco.
Não, o Natal na casa de Tio Spencer nunca era muito alegre. Nos feriados da Páscoa, porém, ele já estava começando a refazer-se. A frenética produção de açúcar cedera lugar à venda do produto, coisa mais calma. A boa natureza de Tio Spencer começava a ter oportunidade de reafirmar-se. Em agosto, ao fim de um longo e calmo verão, ele estava perfeito; e a quermesse o encontrava com seu mais excelente bom-humor. Quando chegava setembro, porém, certa ansiedade premonitória começava a mostrar-se. Era preciso inspecionar a maquinaria, examinar a situação do mercado de mão-de-obra. Quando, mais ou menos no dia vinte do mês, eu partia de volta para a escola, era um Tio Spencer melancólico, taciturno e carrancudo que viajava comigo de Longres a Bruxelas, de Bruxelas a Ostend, e que, preocupado com outros pensamentos, acenava distraidamente do cais, enquanto o navio deslizava devagar através da falsa calma da saída da baía em direção ao Canal ameaçador e equinoxial.
Na quermesse, porém, como já disse, Tio Spencer mostrava-se no que tinha de mais rico e maduro. Divertia-se com tudo como eu e passava longas horas da noite comigo, vagueando entre as atrações da GrandTlace. Penso que se entristecia porque a dignidade de sua posição, como um dos eminentes cidadãos de Longres, não lhe permitia subir comigo nos carrosséis, nos balanços e nas ferrovias de montanha. Contudo, uma visita aos espetáculos subsidiários não era incompatível com sua gravidade; visitava todos eles. Embora proclamando achar de lamentável mau gosto a exibição de aleijões e monstros, Tio Spencer nunca deixava de levar-me para ver todos eles. Era um ponto cardial em sua teoria de educação que os moços deviam ser postos o mais cedo possível em contato com o que chamava de Realidades da Vida. E como nada, evidentemente, poderia ser mais Realidade que a mulher sem braço ou o homem que pregava alfinetes de segurança na pele, era importante que eu logo tomasse conhecimento deles, apesar do indubitável mau gosto da exibição. Foi em obediência ao mesmo princípio educacional que Tio Spencer me levou, em um período de Páscoa, para ver o Asilo de Lunáticos. Todavia, a impressão que o enorme edifício semelhante a prisão e seus esquisitos ocupantes - um dos quais, ainda me lembro, cabriolava alegremente à minha volta onde quer que eu fosse, dando tapinhas em minhas faces ou beliscando-me afetuosamente as pernas - me causou foi tão forte e desagradável que, durante várias noites, não consegui dormir; ou, se dormia, era oprimido por pavorosos pesadelos que me faziam acordar, gritando e suando no escuro. Tio Spencer teve de renunciar à sua intenção de levar-me para ver a sala de anatomia do hospital.
Espalhadas entre os monstros, as barracas de tiro ao alvo e de jogos de habilidade, havia barraquinhas onde a gente podia comprar comidas e bebidas. Havia um homem, por exemplo, que sempre fazia grande movimento vendendo, por dois sous, tantos mexilhões crus quantos o freguês conseguisse comer sem tossir. Debatendo-se entre sua crença nas qualidades medicinais do marisco e seu medo de febre tifóide, Tio Spencer hesitava em decidir se devia permitir que eu gastasse meu pêni. Por fim, dava sua autorização. ("É o fósforo, sabe?") Eu entregava minha moeda de cobre, pegava o mexilhão, mordia, engolia, e tossia violentamente. O marisco era salgado como se tivesse saído do mar Morto. O velho vendedor fazia excelente negócio. Ainda assim, eu o via, às vezes, com um ar de ansiedade, pois nem todos os seus fregueses eram tão sensíveis quanto eu. Havia jovens e resistentes camponeses que eram capazes de engolir meia libra daqueles frutos do mar Morto sem piscar um olho. Finalmente, porém, a salmoura exercia seu efeito mesmo sobre a mais resistente garganta.
Mais satisfatórias como alimento eram as feituras de maçã, produzidas aos milhares em uma grande estrutura temporária de madeira que ficava à sombra do Hotel de Ville. A Gente de Qualidade, como Tio Spencer e eu, comia as frituras no parcial isolamento de um dos numerosos cubículos dispostos como caixotes ao longo de um dos lados do edifício. Tio Spencer caminhava decididamente para o cubículo que nos era destinado sem olhar para a esquerda ou para a direita; eu devia seguir-lhe o exemplo e não demonstrar a menor curiosidade a respeito dos ocupantes dos outros cubículos, por cuja entrada tínhamos de passar a caminho do nosso. Havia o perigo, explicava-me Tio Spencer, de algumas das famílias que estavam comendo frituras de maçã nos cubículos serem Negras - quero dizer, Negras politicamente, não ètnicamente - ao passo que nós éramos liberais ou mesmo, positivamente, maçons. Portanto - mas como simples estranho em Longres, confesso que nunca fui capaz de compreender a força desta conclusão - portanto, embora pudéssemos falar com Negros do sexo masculino em um café, ter com eles relações comerciais e mesmo amizade, não podíamos ser conhecidos pelas mulheres Negras, mesmo em uma barraca e diante de feriais frituras de maçã. Por isso não devíamos olhar para dentro dos cubículos pelo temor de lá vermos um velho e querido amigo que ficaria na embaraçosa situação de não poder apresentarnos sua esposa e filhas. Aceitei, sem compreender, essa lei; e pareceu-me ser uma lei perfeitamente boa até o dia em que descobri quem proibia de travar conhecimento mesmo com uma só das onze encantadoras filhas de M. Moulle. Pareceu-me então uma lei estúpida.
Diante das barracas onde se vendiam doces Tio Spencer nunca ficava parado. Não que ele fosse sovina. Pelo contrário, era muito generoso. Não que achasse me fizesse mal comer doces; tinha uma crença profissional nas virtudes do açúcar. O fato era que as coisas expostas nas barracas o embaraçavam. Isso porque na quermesse já se começavam a ver alguns daqueles pequenos objetos de chocolate que, entre a Festa de São Nicolau e o Ano Novo, enchem as vitrinas de todas as doçarias da Bélgica. Tio Spencer passara um terço de sua vida em Longres, mas mesmo depois de todos esses anos ainda era incapaz de desculpar ou compreender a inocente coprofilia de seus habitantes. O espetáculo, na vitrina de uma doçaria, de um pequeno pot de chambre feito de chocolate provocava um rubor de embaraço em suas faces. Quando na quermesse eu lhe pedia para comprar-me um pouco de açúcar-cande ou algumas bêtises de Cambrai, ele fingia não ouvir o que dizia e se punha a andar depressa. Isso porque seus-olhos rápidos tinham visto, em uma das prateleiras mais altas da barraca do doceiro, uma comprida fileira de pequenos vasos marrons, e teria sido uma agonia para ele se, parado ali e esperando que fosse pesado o açúcar-cande, eu ingenuamente comentasse o aspecto equívoco daqueles objetos. Não que alguma vez eu tivesse feito comentários sobre eles. Eu era tão completamente inglês quando o próprio Tio Spencer mais ainda, realmente, pois estava uma geração mais distante da mãe flamenga, cujo sangue tivera, porém, pouco ou nenhum efeito contra a educação inglesa de meu tio. A mim também os pequenos vasos marrons espantavam e apavoravam por sua falta de discrição. Se meu companheiro fosse outro estudante de minha idade, eu teria apontado para os inomináveis objetos e rido baixinho. Mas como estava com Tio Spencer, guardava em relação a eles eloquente e prenhe silêncio. Fingia não os ter visto, mas de maneira tão culpada que o fato de ignorá-los era em si próprio um comentário que enchia de vergonha meu pobre Tio Spencer. Se pudéssemos falar a respeito deles, se pudéssemos pelo menos lamentar abertamente sua existência e denunciar seus fabricantes, teria sido melhor. Mas evidentemente não podíamos fazer isso.
Com o passar dos anos, porém, aprendi, sendo moço e ainda maleável, a ficar menos espantado e apavorado diante dos pequenos vasos de chocolate e das outras manifestações da imemorial coprofilia flamenga. Por fim passei a considerá-los quase como coisa natural, da mesma forma que os próprios nativos, até que finalmente, quando São Nicolau enchia as lojas com esses símbolos escatológicos, eu era capaz de mastigar um ou dois vasos entre as refeições tão jovialmente e com tão pouco constrangimento quanto qualquer criança belga. Mas eu tinha de comer meu chocolate, quando modelado nesse formato, longe das vistas de meu Tio Spencer. Ele, pobre homem, teria ficado horrorizado se me visse nessas ocasiões.
Nessas ocasiões, eu geralmente me refugiava no quarto da governanta - e em qualquer caso, nessa época do Natal, quando o açúcar estava sendo produzido, era melhor sentar na alegre companhia de Mlle. Leeauw do que com Tio Spencer, taciturno, irritável e levado do diabo. Mlle. Leeauw foi quase desde o começo a primeira de minhas mais firmes e seguras amizades. Acho que era uma mulher de uns trinta e cinco anos quando a conheci, já bastante gasta pela vida de trabalho ativo, mas ainda conservando certo grau daquela beleza loura, decidida e regular que tivera em sua mocidade. Era filha de um pequeno agricultor que vivia perto de Longres e recebera a habitual instrução de aldeia, suplementada, porém, nos anos recentes, pelo que aprendia com Tio Spencer. Este se ocupava de vez em quando, à sua maneira caprichosa e entusiástica com a melhoria do espírito dela, emprestava-lhe livros de sua biblioteca e fazia-lhe palestras sobre os assuntos que, no momento, estavam mais próximos de seu coração. Mlle. Leeauw, ao contrário de muitas mulheres de antecedentes iguais aos seus, sentia insaciável curiosidade no tocante a todo aquele conhecimento misterioso e fantástico que os ricos e ociosos mantinham fechado em suas bibliotecas; e não apenas em seus livros, como ela vira com seus próprios olhos (pois não havia, quando mocinha, servido como pajem na casa daquele célebre colecionador, o conde de Zuitigny?), não apenas em seus livros, mas também em seus quadros - alguns dos quais, assegurou-me Mlle. Leeauw, poderiam ter sido pintados por uma criança, tão mal desenhados eram, tão diferentes da vida (e no entanto só Deus sabia quanto o conde pagara por eles), em seus vasos chineses, nos próprios padrões dos tapetes sobre o soalho. Tudo quanto Tio Spencer lhe dava ela lia com avidez, e ouvia atentamente tudo quanto ele dizia. Surgiam assim, como manchas no ilimitado e inexpressivo oceano de sua ignorância, algumas, pequenas ilhas de estranho conhecimento. Uma, por exemplo, se chamava homeopatia; outra era a Construção de Cúpulas (assunto sobre o qual Tio Spencer estava preparado para falar com copiosa e cruel erudição durante horas seguidas, sendo sua tese que qualquer pedreiro capaz de arredondar o teto abobadado de um forno poderia ter construído as cúpulas de São Pedro, São Paulo e -Santa Maria dei Fiore e, portanto, que os elogios prodigalizados
a Michelangelo, Wren e Brunelleschi eram totalmente imerecidos). Uma terceira se chamava Antivivissecção. Uma quarta, Swedenborg...
O resultado do ensino de Tio Spencer consistia em convencer Mlle. Leeauw de que o conhecimento dos ricos era coisa ainda mais fantástica do que ela supusera - coisa irreal e absolutamente distante da vida como era realmente vivida, artificial e arbitrária, como as atividades sociais daqueles mesmo ricos, que passavam o tempo um na casa do outro, comendo à custa um do outro e aborrecendo-se.
Esta convicção da completa futilidade do conhecimento não a tornava menos ansiosa por aprender o que Tio Spencer, por ela considerado como uma mina e um compêndio ambulante de todo o conhecimento humano, lhe podia ensinar. E ela o encantava com sua respeitosa atenção, com a rapidez de sua compreensão - pois era uma mulher de inteligência natural muito grande - e sua avidez por todo novo esclarecimento. Não lhe confiava sua verdadeira opinião sobre p conhecimento, de acordo com a qual o conhecimento era uma espécie de brincadeira curiosa e irrelevante à margem da vida, digna de ser aprendida precisamente pela mesma razão por que valia a pena aprender a segurar o garro à mesa - porque é um dos segredos dos ricos. Admirando sinceramente Tio Spencer, apesar disso ela não levava a sério coisa alguma do que ele lhe ensinava e, embora, quando estava com ele, acreditasse em doses de um milionésimo de grama e em altas potências espirituais, continuava, quando se sentia indisposta ou quando eu comia demais, a recorrer à velha colherada de óleo de rícino; embora quando estava com ele fosse uma swedenborgiana convicta, na igreja era inteiramente ortodoxa; embora na presença dele achasse monstruosa a vivissecção, falava-me com prazer daqueles felizes dias de sua infância na fazenda, quando o pai cortava a garganta do porco, a mãe segurava o animal pelas pernas traseiras, a irmã dançava sobre o corpo para fazer o sangue escorrer e ela segurava o balde embaixo da artéria onde o sangue jorrava.
Se aos olhos de Tio Spencer sua governanta parecia ser como ele gostava de vê-la e não como ela era realmente em ocasiões comuns, não é que ela praticasse com ele insinceridade consciente. Ela tinha uma daquelas naturezas sensíveis e instáveis que se adaptam quase automaticamente à atmosfera social em que por acaso estejam no momento. Assim, com pessoas bem educadas olá tinha maneiras encantadoras; mas os camponeses de cujo meio :;aíra achavam-na tão cheia de animado gosto flamengo, tão rude 3 inocentemente grosseira quanto eles. O núcleo de seu ser permanecia solidamente camponês; mas a parte superior e consciente de sua mente era, por assim dizer, apenas frouxamente presa à base, de modo que podia facilmente virar para um lado ou outro, sem esforço ou dificuldade, de acordo com as circunstâncias mutáveis. Tio Spencer dava-lhe valor, não só como mulher competente " inteligente, o que ela sempre era em sua companhia, mas tam-. em por ser ela, considerando sua classe-e suas origens, tão notavelmente bem educada e distinta, o que ela não era senão quando estava com ele e com gente igual a ele.
Comigo, porém, Mlle. Leeauw era absolutamente natural e flamenga. Com seu pronto e, poderia dizer, instintivo conhecimento de caráteres, via que minha envergonhada reação à cropologia, sendo de data muito mais recente que a de Tio Spencer, era muito menos forte, muito menos profundamente enraizada. Ao mesmo tempo, percebia que eu não tinha grande gosto natural para a vulgaridade nem inclinação para o que eu posso chamar de flamenguismo. Assim, em minha presença ela podia mostrar seu eu flamengo natural e assim corrigir uma absurda delicadeza adquirida sem correr o risco de encorajar em grau desmedido e inconveniente uma tendência natural na direção oposta. Notei que quando Matthieu (ou Tcheunke, como o chamavam), seu pequeno primo, vinha à cidade e lhe fazia uma visita, Mlle. Leeauw mostrava-se quase tão cuidadosa e distinta como quando estava com Tio Spencer. Não que Tcheunke partilhasse das suscetibilidades de meu tio. Pelo contrário, ele experimentava prazer tão desmedido em tudo quanto era excrementício que ela julgava melhor não alimentar seu gosto de maneira nenhuma, assim como julgava melhor não alimentar meu preconceito nacional em favor de excessiva reserva sobre essas e outras questões semelhantes. Creio que estava certa em ambos os casos.
Mlle. Leeauw tinha uma irmã mais velha, Louise - Louiseke, na língua de Longres, onde colocavam o símbolo do diminutivo depois de quase todos os nomes. Louiseke, como sua irmã, não se casara; e, considerando a feiúra da mulher - pois se parecia com Mlle. Leeauw como uma caricatura muito maliciosa se parece com seu original, isto é, muito de perto e, ao mesmo tempo, quase nada, sendo a semelhança acentuada nesse caso pelo fato de a natureza, na modelagem de certas feições, ter recorrido a outras origens ancestrais, piores que aquelas de que fora formado o rosto de sua irmã - considerando sua feiúra, repito, não era de surpreender. Embora talvez fosse, considerando-se seu dote. Louiseke de maneira nenhuma era rica; mas tinha os quinhentos francos anuais, mais ou menos, que sua irmã também tinha, depois que o pai morrera e que o sítio fora vendido, juntamente com outros duzentos francos herdados de uma velha tia de sua mãe. Era renda suficiente para permitir-lhe viver sem trabalhar em uma ociosidade ocupada principalmente pela observância de práticas religiosas.
Nos arrabaldes de Longres havia uma, pequena béguinage, havia muito tempo abandonada por suas Béguines (hoje em toda a Bélgica uma comunidade decadente e quase extinta) e habitada por uma colónia de gente pobre e comum. As velhas e pequenas casas erguiam-se dos lados de uma grande praça gramada em cujo centro havia uma igreja abandonada. Louiseke morava em uma dessas casas, em parte porque o aluguel era barato, mas também porque gostava das associações religiosas do lugar. Ali, em sua casa de telhado pontiagudo, olhando a igreja no meio do monás-tico quadrângulo, ela quase podia acreditar-se uma genuína Beguine. Toda manhã saía para assistir à primeira missa e, nos domingos e dias de festa, era tão assídua na igreja quase ao ponto de exagero.
Na casa de Tio Spencer nós a víamos com muita frequência. Quando ia à igreja e quando voltava para casa, nunca deixava de parar para trocar umas palavras com a irmã Antonieke. Lembro-me que, às vezes, levava consigo - nessas ocasiões atravessando às carreiras a GrandTlace com passos rápidos e ansiosos, olhares desconfiados e assustados para a direita e à esquerda, como um viajante atravessando uma charneca infestada de bandidos - uma grande sacola de baeta verde, cheia de estranhos tesouros - a coroa e o cetro de prata de Nossa Senhora, o diadema dourado do Menino, a auréola de São José, o livro de prata com pedras preciosas de não me lembro mais que Doutor da Igreja, os lírios de São Domingos e uma massa de corações de prata dos quais saíam chamas douradas. Louiseke, cujo zelo era observado e aprovado por M. lê Cure, tinha o raro privilégio de polir as jóias pertencentes às imagens da Igreja. Dias antes de cada uma das festas importantes os santos de gesso pintado eram despojados de seus adereços e os despojos entregues a Louiseke, que, não ousando andar com a preciosa carga embaixo do braço até sua casa na béguinage, atravessava rapidamente a GrandTlace até a casa de Tio Spencer. Lá, sobre a mesa, no quarto de Antonieke, a sacola de baeta verde era aberta e os tesouros, horrivelmente sujos e embaçados depois de semanas ou meses de abandono, eram espalhados sob a luz. Uma espécie de pasta era feita então de pedra-sabão misturada como gim, que as duas irmãs aplicavam às coroas e corações com escovas de unha ou, quando o trabalho era fino e complicado, com uma velha escova de dentes. A prata era depois secada com um pano e polida com um pedaço de couro.
Um sentimento de orgulho masculino impedia-me de participar do que eu considerava trabalho de mulher. Mas eu gostava de ficar parado com as mãos nos bolsos, observando as irmãs trabalharem entre aqueles régios e sagrados símbolos, e tentando compreender, até onde permitiam meu limitado conhecimento do flamengo e meu quase igualmente limitado conhecimento da vida, os mexericos que Louiseke contava incessantemente em tom de monótona e invariável censura.
Eu sempre achei Louiseke um pouco desagradável. Faltava-lhe o encanto e a qualidade, que só posso chamar de brandura, de sua irmã; para mim ela parecia rude, rabugenta e mesmo maldosa. É muito possível, porém, que eu a julgasse injustamente, pois, confesso, nunca consegui suportar sua feiúra. Era um tipo de feiúra de feiticeira, astuto e sinuoso, que naquela época eu achava particularmente repulsivo.
Como é difícil, mesmo com a melhor boa vontade do mundo, mesmo para um homem adulto e razoável, julgar seus semelhantes sem referência à sua aparência exterior! A beleza é uma carta de recomendação quase impossível de ser ignorada; e com muita frequência atribuímos ao caráter a feiúra do rosto. Ou, para ser mais preciso, não fazemos a menor tentativa de penetrar além da máscara opaca da face até as realidades existentes por trás dela, mas fugimos dos feios ao vê-los sem tentar sequer descobrir como são realmente. Aquele sentimento de instintiva aversão que a feiúra inspira em um homem adulto, mas que ele tem raciocínio e força de vontade suficientes para reprimir ou pelo menos ocultar, é incontrolável em uma criança. Com três ou quatro anos de idade, a criança foge correndo da sala diante do aspecto de certo visitante cujas feições lhe pareceram desagradáveis. Por que? Porque o visitante feio é "ruim", é um "homem mau". E até idade muito mais avançada, embora consignamos deixar de gritar quando o visitante feio aparece, fazemos o possível - a princípio, pelo menos, ou até que seus atos tenham provado impressionantemente que seu rosto lhe contradiz o caráter - para ficar fora de seu caminho. De modo que, se sempre tive aversão por Louiseke, talvez não fosse dela a culpa, mas meu próprio e peculiar horror à feiúra me fizesse atribuir a ela características desagradáveis que, na realidade, não possuía. Ela me parecia rude e rabugenta; talvez não fosse, mas, em qualquer caso, eu assim pensava. E isso explica o fato de eu nunca ter chegado a conhecê-la, nunca ter tentado conhecê-la, como lhe conhecia a irmã. Mesmo depois do extraordinário acontecimento que, um ou dois anos após minha primeira visita a Longres, alteraria completamente todos os aspectos de sua vida, não fiz o menor esforço para compreender o caráter de Louiseke. Como lamento agora minha negligência! Afinal de contas, ninguém pode culpar um pequeno menino por não ter os mesmos padrões que um homem. Hoje, lembrando o passado, acho o caráter e as ações de Louiseke curiosos e dignos de estudo no mais alto grau. Há vinte anos, porém, quando a conheci, sua feiúra a princípio apavorou-me e sempre, mesmo depois que consegui vencer minha repugnância, a envolveu, para mim, em uma espécie de atmosfera irrespirável, para penetrar a qual eu nunca consegui juntar o interesse ativo necessário. Além disso, o acontecimento que agora me impressiona como tão extraordinário pareceu-me então quase normal e sem particular interesse. Como ela morreu antes que eu tivesse tempo de mudar de opinião a esse respeito, só posso dar a impressão de uma criança sobre seu caráter e o relato nu dos fatos até onde os conheci.
Foi então, na minha segunda ou terceira quermesse, que um espetáculo subsidiário, novo não apenas para mim (para quem realmente tudo - mulheres gordas, engolidores de fogo, homens elásticos e até os mais simples anões e gigantes - era novidade) mas mesmo para os mais velhos habitantes de Longres, que em sua vida deviam ter visto aparecer na GrandTlace quase tudo quanto o mundo já produzira em matéria de maravilhas, raridades, monstros e abortos. Era uma troupe de dançarinos do diabo, que se diziam tibetanos por causa da sonoridade e do tom misterioso do nome; na realidade, porém, era constituída de dois hindus expatriados e um par de morenos franceses meridionais, que, em caso de necessidade, podiam passar por compatriotas arianos daqueles escuros drávidas. Não que importasse muito a nacionalidade ou a cor dos dançarinos, pois no palco usavam enormes máscaras - gigantescas cabeças falsas, sorridentes, chifrudas e diabólicas, que, segundo afirmavam os anúncios, eram as usadas nas danças rituais executadas perante o Dalai Lama no principal convento de Lhasa. Comparando o que me lembro delas com o conhecimento de arte oriental que hoje possuo, imagino que provinham na realidade da loja de algum fabricante de acessórios teatrais de Marselha, lugar onde os dançarinos do diabo tinham aparecido originariamente. Nem por isso eram menos impressionantes e pavorosas; assim como as danças não eram lubricamente simbólicas, não eram típica e convencionalmente "orientais" por terem sido em grande parte inventadas pelos franceses, que forneciam o argumento e a substância dramática dos bales, enquanto os espantados e admirados indianos contribuíam apenas com algumas recordações da religião de Siva e o culto do beneficente linga. Esta cooperação entre Leste e Oeste era o que garantia o sucesso da representação; a substância ocidental satisfazia por sua perfeita familiaridade, enquanto o detalhe oriental dava às velhas situações um ar especioso de novidade e quase uma nova significação.
Encantado pela perspectiva de ver o que supunha ser alguns espécimes característicos dos ritos religiosos do misterioso Oriente e ambicioso por melhorar minha educação, iniciando-me nos segredos dessa Realidade, Tio Spencer levou-me para assistir aos dançarinos. Contudo, a dramática pantomima dos franceses representava uma marca de Realidade que meu tio absolutamente não aprovava. Levantou-se abruptamente no meio da primeira dança, dizendo que achava que o circo seria mais divertido, o que, para mim, certamente era. Isso porque eu não estava em idade de apreciar a beleza plástica ou a peculiar significação moral da representação dos dançarinos do diabo.
- O hinduísmo - disse Tio Spencer, quando abríamos caminho entre as barracas e os carrosséis - degenerou tristemente de sua pureza bramanista original.
Começou então a expor-me os princípios do bramanismo, elevando a voz para fazer-se ouvir no meio do ruído dos órgãos a vapor. Tio Spencer. tinha grande fraqueza pelas religiões orientais.
- Bem - perguntou Mlle. Leeauw, quando voltamos para jantar - gostaram dos dançarinos?
Contei-lhe que Tio Spencer havia pensado que acharíamos o circo mais divertido. Antonieke sacudiu a cabeça com um significativo ar de compreensão.
- Pobre homem - disse ela e passou a perguntar a si mesma se Louiseke, que ia ver os dançarinos naquela noite, gostaria do espetáculo.
Nunca fiquei sabendo exatamente o que aconteceu. Isso porque um mistério e, por assim dizer, uma zona de silêncio envolveu o acontecimento e minha curiosidade sobre tudo quanto tinha relação com Louiseke era fraca demais para fazer-me atravessá-la. Só sei que, dois ou três dias depois, quando se aproximava o fim da quermesse, o pequeno Albert Snyders, filho do advogado, encontrou-se comigo na rua e perguntou, com a radiante expressão de quem diz algo que tem certeza de ser desagradável para o interlocutor: - Que acha você de sua Louiseke e dos namoros dela com o homem preto?
Respondi sinceramente que nada ouvira dizer sobre tal coisa e que, fosse como fosse, Louiseke não era nossa Louiseke e absolutamente não me importava o que ela fizesse ou o que lhe pudesse acontecer.
- Não ouviu falar nisso? - disse o pequeno Snyders incrèdu-lamente. - Mas o homem preto vai à casa dela toda noite, ela lhe dá gim, os dois cantam juntos e as pessoas vêem suas sombras dançando nas cortinas. Todo o mundo só fala nisso.
Acho que decepcionei o pequeno Snyders. Ele esperava deixar-me furioso e malograra miseravelmente. Seus erros foram dois: primeiro, ter suposto que eu considerava Louiseke como nossa Louiseke, simplesmente porque a irmã era, por acaso, governanta de Tio Spencer; e, em segundo lugar, por ter-me atribuído conhecimento do mundo suficiente para permitir-me compreender a escandalosa conduta de Louiseke. Eu não gostava de Louiseke nem tinha o menor interesse por seus atos e, além disso, nada via de extraordinário no que supunham que ela tivesse feito.
Diante de minha inabalável calma, o pequeno Snyders retirou-se, bastante desconcertado. Mas vingou-se antes de afastar-se, dizendo que eu devia ser muito estúpido, o que achei insultante, e muito infantil por não compreender.
Antonieke, a quem repeti as palavras do pequeno Snyders, disse simplesmente que o menino devia ser chicoteado, especificando, com uma riqueza de pormenores precisos e um entusiasmo inteiramente flamengos, como, com que instrumento e onde devia ser aplicado o castigo. Eu não pensei mais no incidente. Todavia, depois que terminou a quermesse e a praça voltou mais uma vez a ser a GrandTlace silenciosa e vazia dos dias comuns, observei vagueando sem rumo pelas ruas um robusto homem cor de café, que as crianças de Longres, como aqueles três rudes meninos de "Struwwelpeter", perseguiam à distância, torcendo-se de rir. Naquele ano voltei para a Inglaterra mais cedo que de costume, pois fora convidado a passar as últimas três semanas de minhas férias com um colega de escola (infelizmente, em Hastings, de modo que meu conhecimento da superfície da terra não foi materialmente aumentado pela visita). Quando voltei a Longres para as festas do Natal constatei que Louiseke não era mais simplesmente Louiseke, mas a esposa de um homem cor de café. Madame Alphonse era como a chamavam, pois ninguém podia entender o verdadeiro nome do dançarino do diabo: continha um Al em algum lugar, era só o que se sabia. Monsieur e Madame Alphonse. Mas a notícia, quando a ouvi, não me impressionou particularmente. Mesmo que eu tivesse tido a curiosidade de saber mais, denso silêncio continuava a envolver o episódio. Antonieke nunca me falou dele; e, faltando-lhe todo interesse por essa espécie de Realidade, desaprovando-a mesmo, Tio Spencer parecia silenciosamente considerar aquilo um fato liquidado. Que o assunto era copiosamente discutido pelos mexeriqueiros de Longres não tenho a menor dúvida; e, lembrando-me do anedotário censório da própria Louiseke, sou capaz de imaginar como. Na minha frente, porém, nunca foi discutido; deliberadamente, imagino - pois eu vivia sob ft proteção de Antonieke e o povo tinha medo de Antonieke. Sucedeu, por isso, que a história não chegou a ser para mim mais notável que aquela relatada por Edward Lear sobre o
... oldMan of Jamaica
Who casually married a Quaker;
Buí she críed out, "Ãlack,
l have married a black!"
Which distressed that old Man of Jamaica. (*)
Que acidentalmente se casou com uma quacre.
Ela, porém, gritou: "Ai de mim,
Que me casei com um preto!",
O que afligiu aquele Velho da Jamaica." (N. do T.)
(*) "...Velho da Jamaica."
Afinal de contas, talvez seja essa a melhor maneira de encarar tais incidentes: sem fazer perguntas e sem curiosidade. Todos nós somos curiosos demais em relação aos negócios de nossos vizinhos. Especialmente quanto aos negócios de natureza erótica. Que comichão temos de saber se o Sr. Smith tem relações amorosas com sua secretária, se a esposa procura consolos, se certo ministro do Gabinete é realmente o sátiro que dizem ser. Enquanto isso, os mais incríveis milagres estão acontecendo a nosso redor; pedras, quando as levantamos e soltamos, caem ao chão; abelhas visitam flores; o sol brilha; sementes transformam-se em plantas; uma célula, em nove meses, multiplica seu peso alguns milhões de vezes e torna-se uma criança; e homens pensam, criando o mundo em que vivem. Essas coisas deixam-nos quase absolutamente indiferentes.
Mas a respeito das maneiras como diferentes indivíduos satisfazem os desejos de determinado instinto, apesar da assustadora monotonia da situação, apesar de só haver uma consumação conhecida e inevitável, nós temos uma incessante e sempre nova curiosidade. É possível que um dia fiquemos um pouco cansados de livros cujo tema é sempre esse determinado instinto. É possível que um dia o romancista de sucesso escreva sobre a relação do homem com Deus, com a natureza, com seus próprios pensamentos e com a obscura realidade em que ele trabalha, não sobre a relação do homem com a mulher. Até lá, porém...
Que fases a velha solteirona atravessou entre sua- devoção e sua reprovadora condenação do amor até sua paixão pelo drávida, é coisa que só posso imaginar. É muito provável que não tenha havido fases, que a conversão tenha sido repentina e fulgurante, como aquela na estrada de Damasco - e como aquela, secreta e inconscientemente preparada, muito tempo antes do acontecimento. Tora a pura selvajaria, sem dúvida, a triunfante bestialidade e paganismo das danças que a dominaram, que irresistivelmente derrubaram as barreiras repressivas por trás das quais, muito humanamente, a natureza de Louiseke se impacientara durante tanto tempo.
Quanto a Alphonse, não podia haver dúvida em relação a seus motivos. Ser dançarino do diabo, constatara ele, era uma profissão extenuante, precária e não muito lucrativa. Estava engordando, seu coração não era mais tão forte como fora e começava a sentir-se de meia idade. Louiseke e sua pequena renda caíram do céu. Que importava o rosto dela? Ele não hesitou.
Monsieur e Madame Alphonse instalaram uma pequena loja na Rue Neuve. Antes de deixar a índia e tornar-se dançarino do diabo, Alphonse fora sapateiro em Madras - e como tal era capaz de contaminar um brâmane à distância de vinte e quatro pés; agora, tendo-se tornado comedor de carne e prescrito, era moralmente infeccioso a nada menos que sessenta e quatro pés de distância. Mas em Longres, felizmente, não havia brâmanes.
Era um homem grande, gordo, de cara chata e lustrosa, sempre sorrindo, com um sorriso que me fazia lembrar um acordeão esticado. Muitos pares de botas levei-lhe para pôr sola - pois Antonieke, embora horrorizada por ter como cunhado o que ela chamava de negro, embora tivesse brigado com a irmã por sua insana e monstruosa loucura e dificilmente pudesse reconciliar-se com ela, Antonieke insistia em que todo nosso serviço fosse dado' ao novo sapateiro. Isso, explicava ela, "era obrigação". O dever dos membros de uma família de favorecer os negócios de outro membro superavam, em seu entendimento, as simples brigas pessoais que pudessem surgir entre eles.
Tio Spencer era frequente visitante da sapataria, onde ficava sentado durante horas, enquanto M. Alphonse batia pregos nos sapatos, ouvindo anedotas mitológicas do "Ramayana" ou "Maha-bharata", e discutindo a filosofia bramanista, sobre a qual, naturalmente, ele sabia muito mais que um pobre sudra como Alphonse. Tio Spencer voltava dessas visitas com a melhor das disposições.
- Homem muito interessante, seu cunhado - dizia a Antonieke. - Tivemos uma longa conversa sobre Siva esta tarde. Muito interessante!
Antonieke, porém, limitava-se a sacudir os ombros. "Mais cest un nègre", resmungava. Tio Spencer podia garantir-lhe o quanto quisesse que os drávidas não eram negros e que Alphonse muito provavelmente tinha bom sangue ariano nas veias. Era inútil. Antonieke não se deixava convencer, nem sequer ouvia. Para os ricos ficava muito bem acreditar em coisas assim, mas um negro, afinal de contas, era um negro. E isso encerrava o assunto.
Meu orgulho e meu jovem senso de justiça ficavam horrivelmente ofendidos nessas ocasiões. A incoerência de um homem que não tinha tempo para ler minha sorte, mas tinha infinito lazer para outros, parecia-me abstratamente repreensível e pessoalmente insultuosa. Eu proclamava, mesmo naquela idade, não acreditar em quiromancia; isto é, achava que as fortunas que M. Alphonse profetizava para outros eram absurdas. Contudo, meu interesse por minha própria personalidade e meu próprio destino era tão enorme que me parecia, não sei como, que tudo quanto se dissesse a meu respeito devia ter certa significação. Se M. Alphonse tivesse tomado minha mão, olhado para ela e dito: "Você é generoso; sua cabeça é tão grande quanto seu coração; você terá uma doença grave aos trinta e oito anos, mas depois disso sua vida será sadia até extrema velhice; você vai fazer uma grande fortuna no começo de sua carreira, mas precisará ter cuidado com estranhos loiros de olhos azuis", eu teria aberto uma exceção e decidido nesse caso que devia haver alguma verdade naquilo. Infelizmente, porém, M. Alphonse nunca tomava minha mão; nunca me disse coisa alguma. Eu me sentia cruelmente ofendido e espantado também. Parecia-me muito extraordinário que um assunto tão evidentemente fascinante e tão importante quanto meu caráter e meu futuro não interessasse a M. Alphonse tanto quanto interessava a mim. Que ele preferisse chafurdar-se nos monótonos destinos e tolamente insignificantes caracteres de um punhado de mocinhas estúpidas parecia-me incrível e ultrajante.
Havia outra pessoa que parecia partilhar de minha opinião. Era Louiseke. Se vinha da saleta de estar no fundo e entrava na loja - ela parecia estar perpetuamente saltando para fora da porta escura como um cuco ao bater de seu relógio - e via seu marido lendo a sorte de uma freguesa, sua cara de feiticeira assumia uma expressão mais maligna que de costume.
- Alphonse! - dizia ela significativamente.
Alphonse deixava cair a mão da paciente, olhava para a porta e, rolando os olhos esmaltados, enrugando as faces gordas em um encantador sorriso, mostrando os dentes de marfim, dizia alguma coisa amável.
Louiseke, porém, não desfazia a carranca.
- Se você quer ler a sorte de alguém - dizia ela, após a freguesa ter saído da loja - por que não lê a deste pequeno cavalheiro? - Apontando para mim, prosseguiu: - Estou certa de que ele ficaria muito satisfeito.
Ao invés de agradecer a Louiseke, ao invés de dizer: "Oh, naturalmente eu gostaria" e estender a mão, eu sempre sacudia perversamente a cabeça.
- Não, não - dizia eu. - Eu não quero aborrecer M. Alphonse. Mas eu desejava que Alphonse insistisse em falar sobre meu delicado e maravilhoso eu. Devido a meu orgulho, não gostava de dever minha felicidade a Louiseke, não queria sentir que me estava aproveitando de sua irritação e do desejo de Alphonse de abrandá-la. Além do orgulho, eu era movido por aquela estranha e inominável perversidade, que muitas vezes nos faz insistir em fazer o que não queremos fazer - como ter. relações amorosas com uma mulher de quem não gostamos e cuja intimidade, bem sabemos, não nos trará senão contrariedades - ou nos leva a recusar obstinadamente fazer o que apaixonadamente desejamos, apenas porque a oportunidade de fazê-lo não se apresentou exatamente da maneira como prevíamos ou porque a pessoa que se ofereceu para satisfazer nossos desejos não insistiu suficientemente em seus oferecimentos. Alphonse, nessas ocasiões, não tendo curiosidade a respeito de meu futuro e não sentindo o menor prazer em alisar minha pequena e suja mão, sempre considerava de maneira literal e decisiva minhas recusas, e se punha a trabalhar de novo com renovado ardor. Eu saía da loja, contrariado comigo mesmo por ter deixado escapar a oportunidade quando estava a meu alcance; furioso com Louiseke por tê-la apresentado de uma maneira em que aproveitá-la seria humilhante e com Alphonse por sua obtusidade em não observar como eu desejava que ele lesse minha mão e sua grande descortesia por não insistir apesar de minha recusa.
Passaram-se os anos. Minhas férias e as estações sucederam-se umas às outras com regularidade. O verão, os choupos verdes e amabilidade de Tio Spencer cediam lugar à fria estação da safra de açúcar, aos símbolos escatológicos de chocolate, ao escurecer cedo e à depressão moral da neurastenia anual de Tio Spencer. A meio caminho entre os dois extremos ficavam os feriados da Páscoa, de colorido verde pálido e brotos esperançosos, da tepidez do calor temperado e de uma amabilidade moderada. Havia promoções também, assim como férias. Eastbourne não me viu mais; meu conhecimento do globo aumentou; tornei-me aluno de escola pública.
Lembro-me que, aos quinze anos, entrei em um período de pedantismo que me tornou solene demais para minha idade. Há muitos meninos que não sabem como são jovens senão quando chegam à maioridade, e um moço muitas vezes preocupa-se menos com sua dignidade que um estudante em crescimento, temeroso de ser desprezado por sua inexperiência. Foi durante esse período que escrevi de Longres uma carta a um de meus colegas de escola, que ele felizmente preservou, de modo que, anos mais tarde, pudemos lê-la de novo, rir e admirar aqueles velhos cavalheiros, graves e académicos, que éramos em nossa mocidade. Ele me mandara uma carta descrevendo o casamento de sua irmã, ao que respondi nestes termos:
"Com que rapidez, meu caro Henry, o manto cor de açafrão e as tochas de Himeneu cedem lugar à nênia, à uma funerária e ao cipreste! Enquanto seus dias se passaram entre as alegrias de uma festa matrimonial, os meus foram escurecidos pelos horrores circundantes da morte. Com efeito, assim é a vida."
E eu sublinhei a reflexão filosófica.
Os horrores da morte mostraram-se mais em minhas sonoras antíteses do que em minha vida. Isso porque, embora o acontecimento tenha causado certa impressão em mim - pois foi a primeira coisa dessa espécie que aconteceu dentro de minha órbita pessoal - não posso fingir que fiquei muito seriamente comovido quando Louiseke morreu, velha demais para ter tentado a experiência, ao dar à luz uma filha meio-flamenga e meio drávida, que faleceu com ela. Tio Spencer, ansioso por introduzir-me nas Realidades da Vida, levou-me para ver o corpo. A morte havia atenuado um pouco a feiúra de Louiseke. Na presença daquele repouso absoluto senti-me de repente envergonhado de ter sempre sentido tanta aversão por Louiseke. Desejei ser capaz de explicar-lhe que, se soubesse que ela ia morrer, eu teria sido mais atencioso com ela, teria tentado gostar mais dela. E de repente me surpreendi chorando.
Embaixo, na sala do fundo M. Alphonse também estava chorando, ruidosamente, lamentosamente, como era de seu dever. Três dias depois, suficientemente cumprido seu dever e satisfeitas as convenções, passou a mostrar-se excessivamente filosófico em relação à perda que sofrerá. O pequeno rendimento de Louiseke agora era seu e, juntando a isso o que ganhava com sua sapataria, podia viver em estilo quase principesco. Uma ou duas semanas depois dos funerais começou a quermesse. Seus velhos companheiros, que haviam dançado de um lado para outro pela superfície da Europa desde a última vez que estiveram em Longres, reapareceram inesperadamente na GrandTlace. Alphonse deu-se o prazer de bancar o hospedeiro generoso e todas as noites, depois que terminava o espetáculo, os diabos tiravam as máscaras chifrudas e, diante dos copos, na pequena saleta atrás da loja de Alphonse, falavam alegremente dos velhos tempos e, com um pouco de inveja, felicitavam o companheiro pela sua prodigiosa sorte.
Nos anos imediatamente anteriores à guerra, não fui com muita frequência a Longres. Meus pais haviam voltado da índia; minhas férias eram passadas ao lado deles. E quando os feriados escolares se transformaram em férias universitárias e eu já tinha idade suficiente para cuidar de mim, passava a maior parte do tempo de lazer viajando pela França, Itália ou Alemanha. Só raramente e de passagem - a caminho de Milão quando voltava de Colónia ou depois de uma quinzena entre as galerias de pintura da Holanda - eu voltava então a visitar a casa da GrandTlace, onde passara tantos dias e em geral tão felizes. Ainda gostava de Tio Spencer, mas ele deixara de ser um ente admirado e suas opiniões, em lugar de se enraizarem e proliferarem dentro de minha mente, como acontecia outrora, pareciam em sua maior parte, à luz de meu próprio conhecimento e experiência, fantásticas demais até mesmo para merecerem ser refutadas. Eu o ouvia então com toda a intolerância dos moços pelas opiniões dos velhos (e Tio Spencer, embora tivesse apenas cinquenta anos, parecia-me completamente fossilizado e antediluviano), concordando com tudo quanto ele dizia com um sorriso no qual um homem mais desconfiado e menos simples teria visto o divertido desdém. Tio Spencer estava, nesses anos, inclinando-se cada vez mais para as ciências ocultas. Falava menos sobre a construção de cúpulas e mais sobre os místicos altos potenciais de Hahnemann, mais sobre Swedenborg, mais sobre a filosofia bramanista, na qual a essa altura já doutrinara perfeitamente M. Alphonse. Estava então entusiasmado com um novo assunto - os cavalos calculadores de Elberfeld, que, naquela época, faziam grande barulho no mundo com sua espantosa capacidade de extrair raízes cúbicas de cabeça. Forte na filosofia materialista, no descuidado e irrefletido ceticismo que era, naquele tempo, a ortodoxia de todo moço que se julgava inteligente, eu achava maravilhosamente ridículas as preocupações místicas e religiosas de Tio- Spencer. Devo achá-las menos ridículas agora, quando a fácil crença de minha meninice é que se tornou bastante estranha. Agora é possível - é de fato quase necessário - a um homem de ciência ser também um místico. Mas então havia desculpas para supor que só se podia combinar misticismo com o conhecimento falho e a fantástica excentricidade mental de um Tio Spencer. Quanto mais se vive, tanto mais se aprende.
Com Mlle. Leeauw, nessas últimas visitas, devo confessar que não me sentia inteiramente à vontade. Antonieke via-me essencialmente como o mesmo meninozinho que todos aqueles anos, férias após férias, fora com regularidade a Longres. Sua conversa comigo era sempre sobre os alegres acontecimentos do passado - dos quais ela tinha aquela lembrança extraordinariamente precisa e pormenorizada com que homens e mulheres, cujas mentes não foram exercitadas por preocupações intelectuais e que nunca leram muito, sempre espantaram seus semelhantes mais estudiosos. Mergulhado como estava então em todos os recém-descobertos prazeres da história, filosofia e arte, eu me sentia excessivamente ocupado para dedicar mais que muito fraco interesse por meu passado infantil. Não havia eu patinado nos canais em 1905? Não fora picado, no verão anterior, por um moscardo tão venenoso que meu rosto inchara como um balão e eu precisara ficar de cama? Possivelmente, possivelmente; quando ela me lembrava dessas coisas eu recordava vagamente. Mas que interesse real podiam ter fatos como esses quando eu dispunha de Platão, dos romances de Dostoiewski, dos afrescos de Michelangelo para pensar? Como eles eram também inteiramente irrelevantes em relação, digamos, a David Hume! Como eram insípidos comparados com os ditos de Zaratrusta, a overture de "Coriolano", a poesia de Arthur Rimbaud! Para a pobre Antonieke, porém, era toda a sua vida. Eu sentia sempre que não estava demonstrando por ela a simpatia que devia demonstrar. Mas seria culpa minha? Poderia eu voltar a ser o que fora ou fazer com que ela, de repente, se tornasse diferente do que era?
No começo de agosto de 1914 eu estava em Longres a caminho das Ardennes, onde pretendia instalar-me sossegadamente, durante um mês mais ou menos, com dois ou três amigos para dedicar-me a um pouco de leitura sólida antes de rumar para o sul, em direção à Itália, em setembro. Convencido pela fé do professor alemão que provara, pelas teorias da balística e das probabilidades, que a guerra estava então fora de cogitação, Tio Spencer não prestou a menor atenção aos estrondos premonitórios. Era apenas outra pequena crise de Agadir da qual nada resultaria. Eu também - absorto, segundo me lembro, na leitura de "Varieties of Religious Experience", de William James - não prestei atenção. Nem sequer olhava os jornais. Nessa época as convicções de Tio Spencer sobre a impossibilidade da guerra eram também minhas. Eu não tinha experiência que me levasse a considerá-las infundadas e, além disso, elas se ajustavam muito bem às minhas esperanças, aspirações e crença política - pois nesse tempo eu era ardoroso sindicalista e internacionalista.
Então, de repente, caiu tudo em cima de nós.
Tio Spencer, porém, continuou perfeitamente otimista. Depois de uma semana de luta, profetizou, ficaria provado que o professor alemão estava certo e eles teriam de parar. Lembro-me que meu próprio sentimento era de infantil animação. Minha excitação era mais forte que meu choque de horror. Senti-me quase como me sentia na véspera da quermesse, quando, olhando de minha janela, via lá embaixo os saltimbancos instalando suas barracas e motores na praça. Alguma coisa ia realmente acontecer. Suponho que essa sensação infantil de excitação é a emoção prevalecente no começo de uma guerra. Um embriagador ar de Feriado Bancário parece soprar pelas ruas. A guerra é sempre popular, no começo.
Não voltei imediatamene à Inglaterra, mas deixei-me ficar alguns dias em Longres, na vaga esperança de que pudesse "ver alguma coisa" ou que talvez Tio Spencer realmente tivesse razão como eu ainda acreditava - e o negócio todo acabasse em poucos dias. Minha esperança de "ver alguma coisa" foi satisfeita. Mas essa alguma coisa não foi um daqueles espetáculos brilhantes e românticos que eu havia imaginado. Consistiu em alguns pequenos grupos de refugiados das aldeias ao redor de Liège - homens de barba crescida, mulheres macilentas com compridas marcas de lágrimas nas faces empoeiradas, e meninos e meninas caminhando trôpegamente como se estivessem dormindo, entorpecidos e estupidificados de cansaço. Tio Spencer recebeu uma família deles em sua casa.
- Dentro de alguns dias - disse ele - quando tudo estiver acabado, poderão voltar para suas casas.
Quando a indignada Antonieke lhe repetia as histórias que eles contavam sobre incêndios e fuzilamentos, meu Tio Spencer não acreditava.
- Afinal de contas - dizia - estamos no século XX. Essas coisas não acontecem atualmente. Essa pobre gente está cansada e assustada demais para saber exatamente o que diz.
Na segunda semana de agosto regressei à Inglaterra. Tio Spencer ficou indignado quando lhe sugeri que voltasse comigo. Para começar, disse ele, logo tudo estaria acabado. Em segundo lugar, estávamos no século XX - que é o que os cretenses disseram, sem dúvida, quando no na 1500 antes de Cristo, depois de dois mil anos de paz, prosperidade e civilização progressista, foram ameaçados pelos homens selvagens que vinham do norte. Em terceiro lugar, ele precisava ficar em Longres para cuidar de seus interesses. Não insisti mais; teria sido inútil.
- Adeus, meu caro rapaz - disse ele, com uma desusada nota de emoção na voz. Adeus.
O trem pôs-se em movimento vagarosamente. Olhando pela janela, pude vê-lo em pé na plataforma, acenando com o chapéu. Os cabelos estavam então inteiramente brancos, mas o rosto era tão jovem, os olhos tão escuramente brilhantes, o corpo pequeno e magro tão direito e ágil como quando o conheci pela primeira vez.
- Adeus, adeus.
Eu não o veria de novo senão quase cinco anos depois.
Louvain foi incendiada em 19 de agosto. Os alemães entraram em Bruxelas no dia 20. Longres, embora mais a leste que Louvain, não foi ocupada senão dois ou três dias mais tarde pois a cidade ficava fora da rota direta para Bruxelas e o interior. Um dos primeiros atos do comandante alemão foi mandar para a prisão Tio Spencer e M. Alphonse. Não que eles tivessem feito alguma coisa; era simplesmente contra sua existência que o comandante fazia objeção. O fato de serem súditos britânicos era por si só extremamente incriminatório.
- Aber wir sind - protestou Tio Spencer em seu alemão bastante rudimentar - im zwanzigsten jahrhunderd. Und der - ou será das? - krieg wird nicht lang... - gaguejou ele, procurando desesperadamente a palavra - ... bem, seja como for - concluiu, caindo em sua própria língua e feliz por poder expressar seu espantado protesto com fluência - isso não vai durar uma semana.
- E o que esperamos - respondeu o comandante em excelente inglês, sorrindo. - Mas enquanto isso, sinto muito...
Tio Spencer e seu concidadão britânico foram encerrados provisoriamente no asilo de lunáticos. Alguns dias depois, foram enviados escoltados para Bruxelas. Alphonse, contou-me depois Tio Spencer, suportou o infortúnio com exemplar e oriental paciência. Calado, sem queixarse, obediente, ficava onde seus captores o punham, como um grande pacote pardo deixado pelo viajante na plataforma, enquanto vai ao bufete beber alguma coisa e comer um sanduíche. E mais dócil que um mero pacote, calado e obedientemente, ele ia para onde quer que o chamassem.
- Gostaria de ter podido imitá-lo - disse Tio Spencer. - Mas não pude. Meu sangue fervia depressa.
Pelo que eu me lembrava dele na época de fabricação de açúcar, pude imaginar a profundidade, a fúria da impaciência e irritação de Tio Spencer.
- Mas estamos no século XX - repetia ele para os guardas. - E eu nada tenho a ver com sua guerra bestial. E para onde nos está levando? E até quando vamos ficar esperando nesta maldita estação sem almoçar?
Falava como um homem rico acostumado a poder comprar todo o conforto e toda a consideração. Os soldados, que tinham a paciência dos pobres e estavam acostumados a serem mandados de um lado para outro, a esperar indefinidamente no lugar onde lhes mandavam esperar, não podiam compreender essa furiosa irritação contra o que consideravam como a ordem natural das coisas. Tio Spencer a princípio os divertiu; depois, quando sua impaciência foi crescendo ao invés de diminuir, começou a aborrecê-los.
Finalmente, um dos guardas perdeu a paciência também e deu-lhe um grande pontapé no traseiro para fazê-lo segurar a língua. Tio Spencer virou-se e investiu sobre o homem, mas outro soldado fê-lo tropeçar em seu fuzil, e ele caiu pesadamente ao chão. Vagarosamente ele se levantou; os soldados riam às gargalhadas. Alphonse, como um pacote pardo, estava onde o tinha posto, imóvel, sem expressão, os olhos fechados.
No último andar do Ministério do Interior as autoridades alemãs haviam criado uma espécie de campo de internamento temporário. Todas as pessoas suspeitas - estrangeiros duvidosos, nativos recalcitrantes, qualquer indivíduo que os invasores suspeitassem de possuir influência perigosa sobre seus vizinhos - eram mandadas para Bruxelas e encerradas no Ministério do Interior, para lá permanecer até as autoridades terem tempo de examinar seu caso. Foi para essa prisão improvisada que levaram Tio Spencer e seu compatriota drávida, em uma sufocante tarde do fim de agosto. Em um ano comum, refletia Tio Spencer, a quermesse de Longres estaria então em pleno funcionamento. A mulher gorda estaria lavando o rosto com seu seio, os Figaros estariam reapresentando entre soluços a Paixão de Nosso Senhor, a mulher sem braços estaria bebendo à saúde com os dedos dos pés, o vendedor de mexilhão cru estaria esperando ansiosamente ouvir o primeiro som rouco que pudesse ser considerado como tosse. Onde estavam todos eles naquele ano, toda aquela boa gente? E onde estava ele próprio? Incrédulamente, olhou a seu redor.
No sótão do Ministério do Interior a companhia era estranha e mista. Havia nobres belgas que os invasores consideravam perigoso deixar em seus castelos entre os camponeses. Havia uma condessa e um anarquista russos encarcerados devido à sua nacionalidade. Havia um cantor de ópera, que talvez fosse um espião internacional. Havia uma pequena imitadora de homem, de cabelos dourados, que estava atuando em um music-hall de Liège e cujo crime, como o de Tio Spencer e do drávida, era ser cidadã britânica. Havia numerosos e variados franceses e francesas, apanhados do lado errado da fronteira. Havia um tocador de realejo, que continuara tocando a "Brabançonne" depois de lhe terem dito que parasse, e toda uma coleção de belgas, de todas as classes e ambos os sexos, de todas as partes do País, que haviam cometido um ou outro crime ou talvez tivessem apenas parecido suspeitos, e que esperavam então ter seu destino decidido, logo que as autoridades tivessem tempo de dedicar-lhes atenção.
Nessa sociedade reunida ocasionalmente Tio Spencer e o drávida foram casualmente jogados. A porta fechou-se atrás deles. Como recém-chegados no inferno, cabia-lhes tirar o melhor de sua situação.
O último andar do Ministério do Interior era dividido em um aposento grande e vários aposentos pequenos, estes últimos com as paredes forradas, em sua maior parte, de compartimentos e armários nos quais estavam armazenados os produtos de papel de anos de atividade burocrática.
Nos quartos menores os prisioneiros haviam colocado os colchões de palha dados a eles por seus carcereiros; os homens dormiam nos quartos de uma ponta do corredor, as mulheres nos da outra ponta. A sala grande, que devia ter abrigado o pessoal do serviço de registro do Ministério, ainda continha numerosas escrivaninhas, mesas e cadeiras. Servia então como sala de estar, refeitório e pátio de recreio dos prisioneiros. Não havia banheiro, mas uma bacia para lavar-se e um chalet de necessite, como o chamava Tio Spencer, com um eufemismo característico. A vida no sótão do Ministério do Interior não era lá muito agradável.
Tio Spencer notou que os prisioneiros que não estavam afundados na melancolia e em uma doentia ansiedade pelo futuro, conservavam uma jovialidade quase ruidosa demais. Parecia ser preciso encarar aquela situação como uma prodigiosa brincadeira ou meditar sobre ela como o mais horrível dos pesadelos. Parecia não haver alternativa. Com o tempo, sem dúvida, os dois extremos se nivelariam na mesma calma resignação. Mas o confinamento ainda fora muito curto para isso; a situação era ainda muito nova, como um sonho, e fantasmagórica, e o destino muito incerto.
Os alegres eram abundantes em gracejos, risadas altas e brincadeiras pesadas. Haviam criado na prisão uma espécie de atmosfera de escola particular. Aqueles cujo confinamento era mais antigo (e alguns já estavam no Ministério havia quase uma semana, quase desde o dia da entrada dos alemães em Bruxelas) assumiam o inalienável direito dos veteranos para fazer os recémchegados sentirem-se novatos e inconfortáveis. Cada calouro era sujeito a penetrante interrogatório, como aquele que espera o menino novo em sua primeira escola. As vezes, se a vítima parecia particularmente ingénua, pregavam-lhe uma pequena peça.
O líder do grupo alegre era .um jornalista belga de meia-idade - homem corpulento e forte, com bigode cor de cenoura e tez bem vermelha, voz trovejante, infinito dom de riso e genial conversa rebelaisiana. Diante do aparecimento do humilde drávida, ele quase gritou de alegria. Tão grande foi realmente seu interesse por Alphonse que Tio Spencer escapou como mais perfunctório exame e o mínimo de brincadeira atormentadora. Isso talvez tenha sido muito bom, pois Tio Spencer não estava com disposição para ser alvo de brincadeira, mesmo por parte de um companheiro de sofrimento.
Em torno do pobre Alphonse o jornalista improvisou imediatamente uma farsa. Sentado como juiz a uma das escrivaninhas da sala grande, fez com que o drávida fosse levado à sua presença, dando-lhe a entender que era o comissário alemão incumbido de seu caso. No interrogatório o drávida foi levado a contar toda a sua história. Local de nascimento, Madras; profissão, sapateiro... Um escrivão anotava todas as suas respostas à medida que as proferia. Quando falou da dança do diabo, o juiz fez com que ele fizesse uma demonstração de seu desempenho ali em frente à escrivaninha. A questão de seu casamento com Louiseke foi focalizada nos mais íntimos pormenores. Convencido de que sua liberdade e provavelmente sua vida dependiam de sua sinceridade, Alphonse respondeu a todas as perguntas com o máximo de verdade que pôde.
No fim, o jornalista, pigarreando, fez a recapitulação e proferiu julgamento. Inocente. O prisioneiro seria imediatamente libertado. Em uma grande folha de papel oficial, escreveu laissez passer, assinou Von der Golz e, abrindo uma gaveta da escrivaninha, escolheu entre os numerosos sinetes nela contidos aquele que, em tempos mais felizes, fora usado para lacrar certos diplomas agrícolas. Na grossa cera vermelha apareceu a figura de uma premiada vaca shorthorn tendo à sua volta as palavras: "Pour l 'amélioration de Ia roce bovine."
- Aqui está - rugiu o jornalista, entregando-lhe o papel lacrado. - O senhor pode retirarse.
O pobre Alphonse tomou seu laissez passer e, curvando-se a intervalos quase até o chão, retirou-se de costas da sala. Alegremente apanhou o chapéu e a pequena trouxa, correu para a porta, bateu e chamou. A sentinela do lado de fora abriu para ver o que era. Alphonse apresentou o passaporte.
- Aber w as s is t das? - perguntou a sentinela.
Alphonse apontou para o selo: pela melhoria da raça bovina; para a assinatura: Von der Golz. A sentinela, pensando que fosse ela, não o drávida, a vítima da brincadeira, irritou-se. Empurrou Alphonse rudemente pela porta a dentro. Quando, protestando, murmurando e sorrindo conciliatóriamente, o pobre homem avançou de novo para explicar à sentinela o engano, o soldado ergueu o fuzil e com a coronha deu-lhe uma cutucada na barriga, que o fez recuar, dobrado e tossindo, pelo corredor. A porta bateu. Inutilmente, quando se recuperou, Alphonse nela martelou e gritou. Não se abriu de novo. Tio Spencer encontrou-o ali parado - batendo, escutando, tornando a bater. As lágrimas corriam pelas suas faces; demorou muito para que Tio Spencer conseguisse fazêlo compreender que o negócio todo não fora senão uma brincadeira. Finalmente, porém, Alphonse deixou-se levar para seu colchão. Em silêncio, deitou-se e fechou os olhos. Na mão direita ainda segurava o passaporte - firmemente, preciosamente, entre seus grossos dedos pardos. Não o jogaria fora; ainda não. Talvez, se dormisse, descobrisse ao acordar que aquele incidente na porta fora um sonho. O papel teria deixado de ser uma brincadeira e quando, no dia seguinte, o mostrasse de novo - quem sabe? - a sentinela apresentaria armas e ele desceria; e todos os soldados no pátio lhe fariam continência e ele sairia para as ruas ensolaradas, acenando com a assinatura, apontando para o grosso selo vermelho.
Ficou ali deitado muito quieto. Seu braço estava cruzado sobre o corpo. Entre os dedos de sua mão pendia o papel. Ousado, como só poderia ser a assinatura de um general conquistador, Von der Golz espraiava-se pela folha. E no canto direito, embaixo, impressa sobre a cera vermelha, a imagem da vaca sagrada era um símbolo de verdadeira salvação através do oceano separador e dos séculos. Pour Vamélioration de Ia roce bovine. Não teria sido talvez, em tais circunstâncias, mais razoável começar pela raça humana?
Tio Spencer deixou-o para ir censurar o jornalista pela barbaridade de sua brincadeira. Encontrou-o sentado no chão - pois não havia cadeiras suficientes para todos - ensinando a imitadora de homem de cabelos dourados a praguejar em francês.
- E isto - dizia ele, em sua voz alta e alegre - isto é o que você deve dizer a Von der Golz, se um dia se encontrar com ele.
Soltou uma série de palavras injuriosas, que a pequena imitadora de homem repetiu cuidadosamente, deturpadas por sua arrastada entonação inglesa, em sua voz clara e aguda; "Sole espécie de cochon." O jornalista soltava risadas de verdadeiro prazer e batia com as mãos nas coxas.
- Que vem depois disso? - perguntou ela.
- Com licença - disse Tio Spencer, interrompendo a lição. Estava ligeiramente ruborizado. Jamais gostara de ouvir essa espécie de linguagem e na boca de uma moça (que, além disso, parecia ser uma compatriota) aquilo parecia duplamente contristador. - Com licença. - E implorou ao jornalista que não pregasse mais peças em Alphonse. - Ele leva muito a sério explicou.
Ao ouvir sua descrição do desespero do drávida, a pequena imitadora de homem ficou comovida quase até as lágrimas. O jornalista, que, como todo o resto de nós, tinha um coração de ouro sempre que era lembrado de sua existência - e, como todo o resto de nós, precisava ser lembrado com muita frequência, pois seus próprios prazeres e interesses muitíssimas vezes impediam-no de lembrar-se - o jornalista ficou extremamente arrependido do que havia feito, declarou que não tinha a menor ideia que Alphonse levaria tão a sério a pequena farsa e prometeu deixá-lo em paz no futuro.
Passaram-se os dias. O pesadelo tornou-se habitual, seguiu uma rotina. Três vezes por dia o magro suprimento de alimento nada apetitoso chegava e era consumido. Duas vezes por dia um oficial com um pelotão de soldados atrás fazia uma visita de inspeção. De manhã, cada um esperava sua vez de lavar-se; mas durante a tarde havia imensos abismos de tempo cálido, que os prisioneiros tentavam encher com jogos, com conversas, com a leitura de antigos dossiês dos arquivos, com solitária meditação ou com caminhadas de um lado para outro do corredor - vinte passos de cada lado, para cima e para baixo, para cima e para baixo, até ter percorrido em imaginação a distância entre um e outro lugar amado e conhecido. Para cima e para baixo, para cima e para baixo. Tio Spencer às vezes caminhava ao longo da estrada ladeada de choupos entre Longres e Waret; às vezes de Charing Cross seguia pelo Strand, passava embaixo da ponte ferroviária e subia o morro até St. PauTs e de St. Paul's até a Bank e da Bank tortuosamente até a Torre de Londres, o rio e os navios. Algumas vezes, andava com seu irmão de Chamonix até Montan-vert; de Grenoble, através do passo, até a Grande Chartreuse. Outras vezes, menos cansativamente, caminhava com sua mãe, falecida muito tempo antes, através das clareiras da floresta de Windsor, onde a grama é tão verde no começo do verão que cada folha parece esmeralda iluminada por dentro; e aqui e acolá, entre os carvalhos, os rododendros de folhas escuras acendiam suas inúmeras lâmpadas róseas.
A noite, os alegres, com o jornalista à frente, organizavam diversões para entretenimento da companhia. O próprio jornalista recitava poemas de sua composição a respeito do kaiser. Um dos franceses fazia alguns truques de amador com maços de baralho, lenços e moedas. O cantor de ópera berrava no mais alto de sua prodigiosa voz de tenor, "La donna è mobile", "O sole mio" e, quando era necessário algo mais sério, "Dieu s'avance à travers Ia lande", de César Franck, esta última cantada por ele, contudo, em estilo lírico tão rico que Tio Spencer, que gostava muito da canção, quase não conseguia reconhecê-la. Todavia, o número mais popular era sempre o da "célebre diva, Emmy Wendle", como a chamava o jornalista, quando a apresentava ao grupo. O entusiasmo era tremendo quando Emmy Wendle aparecia - vestida com uma jaqueta curta à moda de Eton, largo colarinho engomado, calça listrada e uma cartola, levando na mão uma pequena bengala - executava dois ou três barulhentos sapateados e cantava uma canção com este coro:
We are the nuts that get the girls
Ev-ery time;
We get the ones with the curly curls, We get thepeaches, we get thepearls...
Ev-ery rime.(*)
E quando, no fim do número, ela tirava a cartola e, rigidamente em posição de sentido, como um soldado, com uma expressão muito grave em seu rostinho infantil de nariz arrebitado, os olhos azuis fixados em visões que não eram deste mundo, cantava com a voz desafinada de um moleque de rua uma versão espantosamente inglesa da "Brabançonne", então havia mais que entusiasmo. Os homens sentiam de repente lágrimas brotando em seus olhos e as mulheres choravam copiosamente. Quando terminava, todos martelavam violentamente os pés no chão, batiam palmas e acenavam com lenços, riam e gritavam imprecações contra os alemães, diziam "Vive Ia Belgique", corriam para Emmy Wendle, seguravam-lhe a mão, davam-lhe palmadas nas costas como se ela fosse realmente um rapaz ou beijavam-na - mas como se ela não fosse uma moça e, ainda por cima, vestida com calça listrada muito justa - beijavam-na cbmo se ela fosse um símbolo da nação, uma personificação visível e encantadora do próprio patriotismo e infortúnio deles.
(*) "Nós somos os bambas que ficamos com as garotas
Todas as vezes;
"Ficamos com aquelas de cachos encaracolados, "Ficamos com as uvas, ficamos com as pérolas
Todas as vezes." (N. do T.)
Quando terminava o divertimento da noite, a. companhia começava a dispersar-se. Estendidos em seus duros colchões no chão, os prisioneiros dormiam agitados ou ficavam acordados durante a abafada noite, ouvindo os passos das sentinelas no pátio embaixo e escutando de vez em quando, através do estranho silêncio da cidade invadida, as pesadas passadas de um regimento marchando pela rua deserta, o surdo e forte ruído de uma bateria em marcha na direção de alguma frente distante.
Passaram-se os dias. Tio Spencer logo se acostumou ao pequeno e estranho inferno em que fora lançado. Conhecia-o de cor. Uma enorme sala quadrada, de forro baixo e sufocante por baixo do telhado de chapas de chumbo. Homens em mangas de camisa, em pé ou sentados, alguns em cadeiras, alguns no canto de uma escrivaninha ou mesa, alguns no chão. Alguns se debruçavam sobre os cotovelos no peitoril da janela e olhavam para fora, satisfazendo os olhos com a vista das árvores no parque do outro lado da rua, respirando o ar mais puro - pois o ar na sala era viciado, respirado duas vezes, e cheirava a suor, fumo e sopa de couve.
Desde o começo os prisioneiros se dividiram, quase automaticamente, em pequenos grupos separados. Iguais em sua miséria, ainda conservavam suas distinções sociais. O tocador de realejo, os artesãos e os camponeses sentavam-se sempre juntos em um canto do chão, jogando com um maço de cartas engorduradas, fumando e, apesar das reclamações, apesar dos sinceros esforços para conter-se, cuspindo no chão à sua volta.
- E minha! - dizia triunfantemente o tocador de realejo, mostrando seu ás de copas. - E minha! - E cuspia profusamente, para dar ênfase à sua satisfação. - Ah, pardonl - dizia em seguida, lembrando-se tarde demais e correndo os olhos pela sala com expressão de quem pede desculpas. - Desculpem-me!
Levantava-se, esfregava o cuspo no chão com a bota e, indo até a janela, debruçava-se para fora e cuspia de novo - não que sentisse necessidade disso, pois fazia apenas um momento que cuspira, mas para mostrar que tinha boas maneiras e podia cuspir pela janela e não no chão quando se lembrava disso.
Outro grupo separado era o da aristocracia. Havia o pequeno e velho conde cujo rosto era como um bule de chá - com brilhantes faces redondas e um nariz muito fino e irrelevante; e o jovem conde de monóculo - um, tão delicadamente amável com todos, mas apesar disso tão distante e arredio por trás de toda sua polidez; o outro, de maneiras tão arrogantes, mas, podia-se ver isso, desejando tanto que sua posição social lhe permitisse misturar-se com os que lhe eram espiritualmente iguais. O velho conde ria cortesmente sempre que o jornalista ou algum membro do grupo alegre fazia um gracejo; o jovem conde fechava a carranca, até o monóculo ser a única superfície lisa que restava em seu rosto enrugado. Mas ansiava por poder aderir às brincadeiras pesadas e aos gracejos. Aos dois condes estavam associados dois ou três cidadãos ricos e importantes, entre os quais, nos primeiros dias, Tio Spencer. Contudo, outros interesses iam fazer com que ele abandonasse a companhia deles quase completamente depois de algum tempo.
Nas orlas desse círculo rondava de vez em quando a condessa russa. Essa dama passava a maior parte do dia em seu quarto, deitada sobre seu colchão e fumando cigarros. Tinha opiniões decididas sobre o respeito que era devido à sua classe e esperava que o banheiro fosse imediatamente desocupado sempre que manifestava o desejo de usá-lo. Quando lhe diziam que precisava esperar sua vez, tinha um acesso de fúria. Quando se aborrecia de ficar sozinha, ia à sala de estar procurar alguém com quem conversar. Certa ocasião, chamou Tio Spencer de lado e faloulhe demoradamente e com uma riqueza de pormenores íntimos sobre o nono e maior caso de amor de sua vida. Depois disso, sempre que a via correr pela sala os grandes olhos escuros e protuberantes, Tio Spencer tomava o cuidado de absorver-se em conversa com alguma outra pessoa.
O compatriota dela, o anarquista, era um homem de aparência judaica com barba preta e nariz igual ao número seis. Não se ligava a qualquer dos pequenos grupos, mostrava-se encantado com a guerra, que, profetizava alegremente, iria destruir a pretensa civilização, e fazia questão de mostrar-se o mais desagradável possível com todos - particularmente com a condessa, que chegava a insultar confidencialmente em russo. Fora em obediência ao mesmo princípio democrático que se apossara da única poltrona existente na prisão - devia ter sido o trono de um sous chef de dtoision pelo menos - recusando cedê-la mesmo a uma dama ou um inválido. Sentava-se nela imóvel o dia inteiro, colocava-a entre seu colchão e a parede à noite e levava-a até mesmo ao quarto de banho e ao chalet de necessite.
O grupo alegre reunia-se, à maneira de planetas, em torno da radiante jovialidade do jornalista. Seu divertimento favorito era procurar nos arquivos dossiês curiosos que pudesse ler em voz alta perante o grupo reunido, com comentários adequados e emendas improvisadas. Contudo, a mais saborosa de todas as suas piadas era feita ritualmente cada manhã quando examinava os documentos de nobreza de toda a aristocracia belga (encontrados, cuidadosamente guardados, em um armário no corredor), escolhendo entre os nobres nomes alguns títulos altamente sonoros, que levava consigo ao chalet de necessite. Entre seus discípulos incluíam-se vários burgueses, franceses e belgas; um odioso e manchado jovem bancário inglês surpreendido em suas férias no estrangeiro; a condessa russa quando estava com certas disposições; a imitadora de homem de vez em quando; e o cantor de ópera.
Com este último, Tio Spencer, que era grande amante da música e até mesmo pianista relativamente bom, fazia frequentes tentativas de conversar sobre sua arte favorita. Descobriu, porém, que o cantor de ópera só se interessava pela música até onde afetava a voz de tenor. Consequentemente, nunca ouvira Bach ou Beethoven. Sobre Leoncavallo, porém, sobre Puccini, Saint-Saens e Gounod era extremamente instruído. Era um personagem imponente, com um rosto largo e simpático, e o sorriso gracioso e condescendente de grande homem que não recusa conversar mesmo com a gente. Com mulheres, como dava a entender com frequência, obtinha grande sucesso. Contudo, seu temor de fazer qualquer coisa capaz de prejudicar a voz era quase tão forte quando sua lascívia e sua vaidade. Passava a vida, como um monge de Tebaida, em estado de perpétuo conflito. Ostensiva e declaradamente membro do partido alegre, em segredo o cantor de ópera preocupava-se extremamente com seu futuro. Em particular, discutia com Tio Spencer os horrores da situação.
Mais evidentemente melancólico era o pequeno e grisalho professor de Latim que passava a maior parte do dia andando de um .lado para outro no corredor como um lobo enjaulado, meditando e suspirando. O pobre Alphonse, acocorado com as costas para a parede perto da* porta, era outra figura triste e solitária. Às vezes olhava em roda pensativamente, observando os companheiros de prisão em suas várias ocupações com o ar de um habitante da eternidade observando as incompreensíveis momices daqueles que vivem no tempo. Às vezes passava horas inteiras de olhos fechados em estado de meditação. Quando alguém falava com ele, voltava ao presente como se viesse de imensa distância.
Para Tio Spencer, porém, como todos eles se tornaram gradualmente distantes! Recuaram, pareceram perder-se de vista; e, com seu esmaecimento, a figura de Emmy Wendle chegou mais próxima, ficou maior e mais brilhante. Desde o primeiro momento em que pôs os olhos sobre ela, ali sentada no chão, recebendo sua lição de vitupérios do jornalista, Tio Spencer dedicou-lhe particular atenção. Aproximando-se dos dois, ficara agradavelmente impressionado pela infantilidade e inocência da aparência dela - pelo narizinho arrebitado, os olhos azuis, os cabelos amarelos, tão teimosamente encaracolados que ela precisava usá-los curtos como os de um rapaz, pois por mais óleo que pusesse ou por mais que os puxasse para trás não havia como fazer deles uma longa cabeleira. Mesmo em sua vida feminina privada - e isso só fazia com que ela parecesse mais infantil - havia uma insinuação de imitação masculina. Depois, quando chegara à distância de ouvir, daqueles lábios saíram "salè espèce de cochon" e ainda uma fileira de locuções menos agradáveis. Impressionante, chocante. Um momento depois, porém, quando lhes estava contando como o pobre Alphonse recebera mal a brincadeira, ela dissera as coisas mais encantadoras, com tanto sentimento verdadeiro em sua voz de cockney, tão genuína expressão de simpatia e comiseração em seu rosto, que Tio Spencer ficara pensando se ouvira direito e se aquele "sale cochon" e tudo o resto poderia realmente ter sido pronunciado por criatura tão delicada e sensível.
O estado de agitação em que Tio Spencer vivera desde sua prisão, a espantosa e horrível novidade de sua situação, sem dúvida o predispusera em certo grau para apaixonar-se. Frequentemente acontece que uma emoção - desde que não seja tão poderosa a ponto de tornarnos inconscientes para tudo menos ela - nos estimula a sentir outra. Assim, o perigo, se não é suficientemente agudo para causar pânico, tende a ligar-nos àqueles junto com os quais corremos o risco, sendo os sentimentos de compaixão, simpatia e mesmo amor estimulados e acelerados pela apreensão. O sofrimento, igualmente, muitas vezes traz consigo a necessidade de afeição e mesmo, embora não gostemos de admiti-lo sequer em nosso íntimo, obscuramente uma espécie de desejo; de modo que uma paixão de sofrimento se transforma por graus quase imperceptíveis ou, às vezes, de repente, em uma paixão de amor. A atitude habitual de Tio Spencer em relação às mulheres era de extrema reserva. Antigamente, quando moço, amara e estivera noivo; mas o objeto de suas afeições abandonara-o por outro homem. Desde então, em parte pelo temor de repetir sua decepção, em parte por uma espécie de romântica fidelidade à infiel, evitara as mulheres ou, pelo menos, se dera ao trabalho de não enamorar-se mais, vivendo sempre em estado de perfeito celibato, que faria honra ao mais virtuoso dos padres. Contudo, as agitações daqueles últimos dias haviam perturbado todos os seus hábitos de vida e pensamento. Apreensão do perigo, uma indignação que era coisa muito diferente da periódica irritabilidade da época de fabricação de açúcar, profunda perplexidade e um sentimento de desorientação mental haviam-no deixado sem suas defesas costumeiras e em um estado de sensibilidade maior que a comum. De modo que quando viu, no meio de seu pesadelo de olhos abertos, aquela encantadora cabeça de criança, quando ouviu aquelas delicadas palavras de simpatia pelo pobre drávida, ficou estranhamente comovido; e se surpreendeu dedicando a Emmy Wendle um interesse que não dedicara a qualquer mulher desde a ocasião em que a primeira infiel de sua mocidade o abandonara.
Tudo conspirou para fazer com que Tio Spencer tomasse interesse por Emmy Wendle tudo, não apenas seu estado emocional, mas o lugar, o tempo, as circunstâncias exteriores. Ele poderia ter ido vê-la no music-hall todas as noites durante um ano; e, embora pudesse apreciar seu número - e na realidade não o apreciaria, pois o acharia essencialmente vulgar - embora pudesse achá-la bonita e encantadora, nunca lhe teria ocorrido procurar conhecê-la ou introduzir-se na história dela. Ali, porém, naquela miserável prisão improvisada, ela adquiria nova significação, tornava-se a personificação de tudo quanto era gracioso, suave, simpático, de tudo o que não era guerra. E no fim de sua representação (ainda de mau gosto, era verdade, mas mais permissível, considerando-se que era feita para consolo dos affitos), como era profundamente impressionante sua maneira de cantar a "Brabançonne"! Ela se tornara grande com a grandeza do momento, com a grandeza das emoções a que dava expressão naquela sua áspera voz de moleque - cantando as exultações, as agonias e o inconquistável espírito do homem. Atribuímos ao símbolo algo do que tem de sagrado a coisa ou ideia por ele simbolizada. Dois pedaços de madeira dispostos em forma de cruz não são. dois pedaços comuns de madeira. Igualmente, em qualquer crise em nossa vida, o objeto mais trivial ou uma pessoa insignificante em si própria pode tornar-se, por alguma razão, dotada de toda a grandeza do momento.
Até mesmo o incidente do "sale cochon" contribuíra para aumentar o interesse de meu Tio Spencer por Emmy Wendle. Isso porque se ela era gentil, inocente e jovem, se personificava em seu pequeno e brilhante eu toda a infelicidade e toda a coragem de uma nação', do mundo inteiro aflito, era também falível, feminina e fraca; era sujeita a más influências, podia ser desencaminhada. A lembrança daquelas frases grosseiras, proferidas ingénua, inocente e abertamente (como os mais pudicos são sempre capazes de proferi-las quando estão em uma língua desconhecida, em torno de cujas palavras o costume não cristalizou aquela riqueza de associações que dá às locuções nativas sua significação peculiar e variável, de idade para idade) enchia Tio Spencer de alarma e de um missionário zelo de salvar da corrupção natureza tão potencialmente bela e mesmo grande.
De sua parte, Emmy Wendle ficou encantada com Tio Spencer, pelo menos durante os primeiros dias depois de se conhecerem. Ele era inglês, para começar, e falava a língua dela; era também - o que o igualmente inglês e inteligível bancário não era - um cavalheiro. Ainda mais importante para Emmy, em sua disposição do momento, ele não tentou fazer-lhe a corte. Emmy não desejava admiradores, no momento. Nas circunstâncias presentes, ela achava que seria errado, inconveniente e indecoroso pensar em namoro. Ela cantava a "Brabançonne" com ardor religioso demais para isso; o momento era solene demais, extraordinário demais. Na verdade, a solenidade do momento e o ardor de seus sentimentos patrióticos poderiam, se por acaso um moço adequado estivesse com ela no sótão do Ministério do Interior, tê-la levado a ficar amando com um fervor dotado quase da qualidade religiosa de seus outros sentimentos. Infelizmente, porém, nenhum moço adequado se apresentou. O bancário tinha manchas no rosto e não era cavalheiro, o jornalista era de meia idade e muito corpulento. Ambos tentaram fazer-lhe a corte. Mas suas investidas tiveram, para Emmy, toda a impropriedade -de um namoro em lugar sagrado. Com Tio Spencer, porém, ela se sentia inteiramente segura. Não era apenas porque ele tinha cabelos brancos; Emmy já vivera o suficiente para saber que esse símbolo não representava garantia de comportamento decoroso antes pelo contrário; mas porque ele era, evidentemente, tão cavalheiro, por causa dos sinais de espiritualidade e brando idealismo estampados em seu rosto.
A princípio, realmente, foi apenas para fugir às cansativas e indecorosas atenções do bancário e do jornalista que ela se dirigiu a Tio Spencer. Logo, porém, passou a gostar de sua companhia. Começou a interessar-se pelo que ele dizia, a ouvir com seriedade sua conversa invariavelmente séria - pois ele "nunca falava senão sobre temas úteis e intelectuais, não tendo a menor reserva de conversa trivial.
Nos primeiros dias Emmy tratou-o com a respeitosa cortesia que julgava devida a um homem de sua idade, sua posição e seu caráter. Posteriormente, porém, quando ele começou a segui-la com sua abjeta adoração, ela se tornou mais familiar. Inevitavelmente, pois não se pode esperar ser tratado como velho e importante por alguém a quem se fita com os olhos suplicantes de um cão. Ela o chamava de Tio Spenny e mandava nele, fazendo-o levar e trazer as'coisas como se fosse um animal treinado. Tio Spencer, naturalmente, só sentia prazer em obedecê-la. Ficava encantado com as familiaridades que ela tomava com ele. O período de sua graciosa e espicaçante familiaridade (intermediário entre seu respeito e sua posterior crueldade) foi, no que se referia a Tio Spencer, o mais feliz de sua breve relação. Ele amava e se sentia, senão amado em retribuição, pelo menos jovialmente tolerado.
Outro homem teria em troca tomado liberdades, teria sido leviano, galanteador e importuno. Tio Spencer, porém, conservou-se gravemente e ternamente ele próprio. Sua única represália ao "Tio Spenny" e ao resto foi chamá-la pelo seu prenome em lugar de "Srta. Wendle", como sempre a chamava solenemente antes. Sim, Emmy sentia-se segura com Tio Spenny; quase segura demais, talvez.
As conversas de Tio Spencer, como já disse, eram sempre de natureza muito séria. Eram nesse tempo ainda mais sérias que de costume, pois a catástrofe e depois sua paixão haviam dado à sua mente um "modo de pensar muito severo. Havia tanta coisa que, à luz dos acontecimentos das últimas semanas, exigia reconsideração. Desde a teoria do professor alemão até o problema do bem e do mal; desde a ideia de progresso (pois, afinal de contas, não estávamos no século XX?) até a austera teoria e o novo e estranho fato do amor; desde o internacionalismo até Deus - tudo precisava ser considerado de novo. E ele considerava tudo em voz alta com Emmy Wendle. A bondade, por exemplo, não era mais que uma coisa relativa, uma questão de convenções sociais, medida por padrões meramente locais e ocasionais? Ou havia algo absoluto, definitivo e fundamental na ideia moral? E Deus - poderia Deus ser absolutamene bom? E haveria diferença tão vasta entre o século XX e os outros séculos? Poderia realidade rimar com ideal? Todas essas perguntas inquietadoras precisavam ser feitas e respondidas mais uma vez para a satisfação dele próprio.
Foi característico de Tio Spencer que - depois de levar em considerarão tudo quanto acontecera - ele respondeu a todas elas do lado otimista, exatamente como fizera antes da catástrofe; e, além disso, com uma convicção mais profunda. Antes ele aceitava a alegre visão idealista com facilidade um pouco excessiva. Herdara-a do século em que nascera, sugara-a dos mais velhos, respeitáveis e sempre prósperos, entre os quais fora criado. As circunstâncias estavam agora fazendo com que aquela fácil, alegria parecesse bastante estúpida. Contudo, era precisamente porque tinha de reconsiderar as objecoes ao otimismo, os argumentos contra a confiança, não teoricamente no vazio, mas praticamente e no meio de calamidade pessoal e universal (esta última muito suportável quando a gente está confortávelmente colocado, mas real e perturbadoramente, quando a gente também está sofrendo um pouco), que ele então se convenceu, com maior dificuldade, mas mais profundamente, da verdade daquilo em que acreditara antes, mas levianamente e, como via agora, quase acidentalmente. Os acontecimentos logo iriam perturbar essa recém-descoberta convicção.
Emmy ouvia-o com enlevo. As circunstâncias, o tempo, o lugar inclinavam-na para uma disposição séria e pensativa. Os discursos de Tio Spencer eram exatamente do que ela precisava naquele determinado momento. Naturalmente supersticiosa, vivia constantemente sob a proteção de um porquinho de ouro que usava como mascote e de uma cruz de coral que pertencera à mãe. Quando a sorte era desfavorável, ia à igreja e consultava videntes. Daquela vez que quebrara a perna e precisara cancelar aquele maravilhoso contrato para uma excursão a Austrália, sabia que fora porque se descuidara de Deus em todo os prósperos meses anteriores; rezara e prometera corrigir-se. Quando melhorara, Deus lhe mandara uma oferta da Cohen's Provincial Alhambras Ltd., como sinal de que seu arrenpendimento fora aceito e ela estava perdoada. E agora, embora parecesse pertencer ao grupo alegre no sótão do Ministério do Interior, seus pensamentos eram secretamente muito graves. À noite, deitada desperta sobre seu colchão, perguntava a si própria no escuro qual era a razão de tudo aquilo - a guerra e sua falta de sorte em ser apanhada pelos alemães. Sim, qual poderia ser a razão? Por que Deus estava de novo zangado com ela?
Mas naturalmente ela sabia por que. Era tudo por causa daquele horrível negócio em junho último, quando estava trabalhando em Wimbledon. Aquele moço que a esperara na porta do fundo do teatro; e que a convidara para ir cear com ele. E ela respondera que sim, embora isso fosse contra suas regras. Sim: porque ele tinha uma voz muito bonita, muito refinada, quase como a voz de um ator muito categorizado de West End. "Vim ver as marionettes", dissera-lhe ele. "Parece que as marionettes nunca vão além dos subúrbios, não acha? Mas eu fiquei por sua causa."
Foram de táxi de Wimbledon a Picadilly. "Um dia", dissera ela, apontando para o Pavilion, "você verá meu nome lá, em grandes letras luminosas: EMMY WENDLE." Cem libras por semana e o verdadeiro West End. Que sonho!
Ele tinha 'belas maneiras e parecia tão simpático quando visto no claro. Haviam tomado champanha na ceia.
No escuro, Emmy enrubesceu de vergonha retrospectiva. Enterrou o rosto no travesseiro, como se estivesse tentando esconderse de algum olhar penetrante. Não era de admirar que Deus estivesse zangado. Em uma agonia beijou a cruz de coral. Puxou a fita azul, em cuja ponta, entre seus dois pequenos seios, pendia o porquinho de ouro; segurou a mascote na mão, bem apertado, como se esperasse extrair dela algo daquele poder de felicida.de misteriosamente guardado em seu interior, como o poder de atrair limalha de ferro está guardado dentro do imã.
A alguns pés de distância, a condessa russa respirava pesadamente. Ao estertorante som, Emmy estremeceu, lembrando-se da maldade que dormia tão perto dela. Isso porque, se ela deixara de ser, tecnicamente, uma moça direita, envergonhava-se do fato, agora que sua sorte virara; sabia, pela cólera de Deus, que havia feito mal. Mas a condessa, se o sono não a tivesse dominado, teria continuado a noite inteira a vangloriar-se de seus amantes. Para a Emmy de classe média, a franqueza da condessa, sua liberdade em relação aos preconceitos comuns, seu aristocrático desprezo pela opinião pública e sua presunção - a presunção de quase todas as mulheres ociosas e dos homens ociosos que não têm coisa melhor a fazer ou em que pensar - de que o único fim da vida era fazer o amor, complicadamente, sossegadamente e com muitas pessoas, parecia profundamente chocante. Não importava tanto o fato de ela não ser uma moça direita - ou melhor uma viúva correta. O que parecia a Emmy tão terrível era ela falar a esse respeito como se não ser direita fosse natural, comum e até mesmo positivamente meritório. Não era de admirar que Deus estivesse zangado.
Para Emmy, Tio Spencer - ou deverei chamá-lo agora de Tio Spenny? - trouxe conforto e apoio em sua miséria cheia de remorsos. Verdade, que as divagantes especulações dele nem sempre eram particularmente relevantes para suas próprias complicações; nem ela compreendia sempre sobre o que ele estava falando. Mas havia em seus discursos, fosse qual fosse o assunto, certa qualidade que ela achava inspiradora e animadora. Assim Tio Spencer, citando Swedenborg para provar que, apesar de todas as presentes aparências em sentido contrário, as coisas todas estavam provavelmente certas, era o maior dos consolos. Havia nele algo semelhante a um clérigo de classe muito alta - um clérigo de West End, por assim dizer. Quando ele falava, ela se sentia melhor e de certa maneira mais segura.
Ele lhe inspirava tanta confiança que um dia, quando o jornalista estava fazendo alguma ruidosa brincadeira que mantinha ocupado todo o resto da companhia, ela o levou para o vão de uma das janelas e contou-lhe tudo, OIT quase tudo, a respeito do episódio por cuja causa Deus estava tão zangado. Tio Spencer assegurou-lhe que Deus não encarava as coisas exatamente da maneira como ela imaginava; e que, se Ele decidira que devia haver uma Guerra Europeia, não fora com toda a probabilidade humana, para o propósito de criar pretexto para fazer com que Emmy Wendle - por mais culpada que fosse - se visse encerrada no sótão do Ministério do Interior, em Bruxelas. Quanto ao pecado propriamente dito, Tio Spencer tentou fazê-la acreditar que não era tão grave quanto ela acreditava. Não sabia ele que ela só o achava grave porque estava na prisão e naturalmente deprimida.
- Não, não - disse ele consoladoramente - você não deve levar isso tão a sério assim.
Mas o conhecimento de que essa delicada e inocente criatura se desviara da virtude uma vez
- e, se fora uma vez, por que não duas vezes, por que não (meu Tio Spencer deixou seus próprios pensamentos noturnos especularem febrilmente), por que não cinquenta vezes? - perturbava-o. E verdade que a imaginara cercada por más influências, como o jornalista; mas entre ser ensinada a dizer "sale cochon" e um efetivo desvio da virtude havia considerável diferença. Nunca ocorrera a Tio Spencer que Emmy pudesse ter ido além da fase do "cochon". E agora ouvia os próprios lábios dela contarem que isso acontecera.
Celibatário como um padre, Tio Spencer não gozara da viçaria experiência do padre no confíssionário. Nunca lera aqueles espantosos manuais cie psicologia prática, fruto de sabedoria acumulada durante séculos, nos quais o seminarista aprende a compreender os penitentes, a classificar e medir seus pecados e, eventualmente - tão cruéis, nuas e inflexíveis são as descrições de vício humano que eles contêm - a odiar as tentações que, quando delicadamente pintadas de cor de rosa, podem parecer tão infernalmente atrativas. Sua ignorância dos seres humanos era enorme. Em seu refinamento, ele preferira não conhecer; e as circunstâncias, até então, haviam conspirado maravilhosamente para poupar-lhe o conhecimento.
Anos mais tarde, lembro-me eu, quando nos encontramos de novo, ele me perguntou depois de um silêncio, e falando com esforço, como que para vencer uma repugnância, o que eu realmente pensava das mulheres e de todas "as coisas dessa espécie". Era um assunto a cujo respeito naquela época eu sentia a amargura e o divertido cinismo de quem tivera o mais amplo sucesso no amor com muitas pelas quais não tinha o menor interesse e fora, lamentável e persistentemente, mal sucedido com a única em cujo caso o sucesso teria pelo menos valido a pena.
- Então, você realmente pensa - disse Tio Spencer, quando eu parei para respirar - que efetivamente acontece muita coisa dessa espécie?
Eu realmente pensava.
Ele suspirou e fechou os olhos, como que para ocultar de mim sua expressão. Estava pensando em Emmy Wendle. Como esperara apaixonadamente que eu demonstrasse, necessariamente e apriori, que ela era virtuosa!
Há certas pessoas sensíveis e idealistas nas quais a descoberta de que o mundo é como é provoca repentina e violenta reação no sentido do cinismo. Depois de voar nas esferas da pureza ideal, caem na lama, esfregam nela o nariz, comem-na, banham-se e chafurdam-se nela. Laceram seus próprios sentimentos superiores e sentem prazer na dor. Sentem prazer em macular as coisas que antes achavam belas e nobres; examinam com nauseada atenção as sujas entranhas das coisas cuja pele macia e adorável era o que antes adoravam.
Swift, certamente, foi um desses - o maior deles. Seu tipo nossas ilhas ainda vêm produzindo, talvez mais copiosamente do que nunca antes, nas últimas duas ou três gerações. Isso porque o século XIX se especializou naquele idealismo otimista e romântico que sustenta ser o homem em geral bom e estar inevitavelmente se tornando melhor. O idealismo dos homens da Idade Média era mais sensato, pois, para começar, insistia em que o homem era principalmente e essencialmente mau, um pecador por instinto e hereditariedade. Seus ideais, sua religião, era antídotos divinos e não naturais para seu pecado original. Eles viam primeiro o pior e nenhum horror poderia espantá-los - mas apenas o ocasional milagre da doçura e da luz. Mas seus descendentes do romântico, otimista e humanitário século em que Tio Spencer nasceu e foi criado manifestavam seu idealismo de outra maneira. Começavam por ver o melhor; insistiam em que os homens eram naturalmente bons, espirituais e amáveis. Um moço sensível criado nessa confortadora crença não precisava senão encontrar-se com um espécime característico do pecado original para ficar espantado, chocado e desiludido a ponto de desesperar-se. As circunstâncias e o temperamento haviam permitido a Tio Spencer conservar seu otimismo romântico por muito mais tempo que a maioria dos homens.
O tardio reconhecimento da existência do pecado original perturbou a mente de Tio Spencer. Mas os efeitos disso não foram imediatos. No momento, enquanto estava diante da bela e embriagadora presença de Emmy e enquanto ela ainda era bondosa, ele não podia acreditar que ela tivesse sua parte do pecado original. Mesmo quando se esforçava para acreditar, o rosto ingénuo e infantil dela era por si só uma completa desculpa. Foi mais tarde - especialmente quando ficou separado dela - que o veneno começou a atuar vagarosamente, amargurando-lhe todo o espírito. Naquele momento, a confissão de Emmy apenas serviu para aumentar a paixão por ela. Para começar, porque fez com que ela parecesse ainda mais necessitada de proteção. E depois, satisfazendo dolorosamente um pouco de sua curiosidade sobre a vida dela, intensificou-lhe o desejo de conhecer tudo, de introduzir-se completamente em sua história. Ao mesmo tempo provocou um ciúme retrospectivo, aliado a uma intensa e presente suspeita e uma angustiosa previsão de perigos futuros. Sua paixão tornou-se como que uma doença dolorosa. Ele a perseguia com incessante e abjeta devoção.
Aliviada, em parte pela assistência espiritual de Tio Spencer, em parte pelo poder curativo do tempo, de seu primeiro acesso de remorso, depressão e autocensura, Emmy começou a recuperar sua animação normal. Tio Spencer tornou-se menos necessário para ela como consolador. Suas incompreensíveis especulações começaram a aborrecê-la. Em sentido contrário, os gracejos do grupo alegre pareciam mais engraçados, ao mesmo tempo que os galan-teios do jornalista e do bancário pareciam menos repulsivos porque - agora que sua disposição mudara - a impressionavam como menos inconvenientes e indecorosos. Ela não estava mais na igreja, espiritualmente falando. Na igreja, a devoção retraída e tímida de Tio Spencer parecia maravilhosamente em seu lugar. Agora, porém, que estava saindo novamente da escura disposição religiosa para a brilhante disposição secular, achava-a bastante ridícula e, como não retribuía à adoração, enfadonha.
- Se você pudesse ver a si próprio, Tio Spenny - dizia-lhe ela - a aparência que tem...
Ela baixava os cantos da boca e abria os olhos com uma expressão reverente e mortiça.
Depois a careta tendente a fazer com que Tio Spencer visse sua adoração verdadeiramente refletida desintegrava-se no riso; os olhos apertavam-se, uma pequena ruga horizontal aparecia perto da ponta do nariz arrebitado, a boca abria-se, ondas de hilaridade pareciam sair dela através do rosto e uma estridente gargalhada levava-o a uma tentativa de sorriso.
- Eu realmente tenho essa aparência? - perguntava ele.
- Tem, realmente - respondia Emmy, sacudindo afirmativamente a cabeça. - Não é coisa muito alegre para se ver dia e noite, não acha?
Às vezes - e isto para Tio Spencer era indescritivelmente doloroso - ela chegava mesmo a chamar uma terceira pessoa para partilhar do divertimento à custa dele; associava o bancário, o cantor de ópera ou o jornalista a seu riso zombeteiro.
A caçoada que, nos primeiros dias, fora tão leve e afetuosa, tornava-se cruel.
Emmy teria ficado aflita, sem dúvida, se soubesse quanto o feria. Mas ele não se queixava. Ela só sabia que Tio Spencer era ridículo. A tentação de dizer alguma coisa espirituosa e desagradável a respeito dele era irresistível.
A companhia de Tio Spencer ela passou a preferir a do jornalista, do bancário e do cantor de ópera. Com o bancário, falava sobre atores e atrizes do West End, artistas de music-hall e estrelas de cinema. Na verdade, ele não era muito cavalheiro, mas nesse absorvente assunto tinha extraordinário conhecimento. O cantor revelava-lhe o deslumbrante e quase desconhecido universo do teatro lírico - um mundo de arte capaz de inspirar tanto respeito que ficava acima mesmo do West End. O jornalista contava-lhe histórias apimentadas do mundo teatral de Bruxelas. Tio Spencer ficava sentado na orla do grupo, ouvindo em silêncio e através de um abismo de separação, enquanto Emmy e o bancário concordavam em que Clarice May era linda, George Robey engraçadissimo e Florence Smithson uma artista realmente de alta classe. Quando lhe pediam a opinião, Tio Spencer precisava sempre admitir que nunca vira o artista em questão. Emmy e o bancário escarneciam dele; e o cantor de ópera, com mordente sarcasmo, perguntava a Tio Spencer como um homem que proclamava gostar de música podia ter passado a vida inteira sem fazer sequer uma tentativa de ouvir Caruso. Tio Spencer estava deprimido demais para tentar explicar.
Passaram-se os dias. Às vezes um prisioneiro era chamado e examinado pelas autoridades alemãs. O velho e pequeno nobre parecido com um bule de chá foi solto uma semana depois da chegada de Tio Spencer; e alguns dias depois o altivo moço de monóculo desapareceu. Em seguida, sumiu a maioria dos camponeses. Depois o anarquista russo foi chamado, demoradamente examinado e mandado de volta, para descobrir que sua poltrona estava sendo ocupada pelo jornalista.
Na quarta semana de prisão de Tio Spencer, Alphonse ficou doente. O pobre homem nunca se refizera dos efeitos da peça que lhe fora pregada no dia de sua chegada. Melancólico, oprimido por temores, mais terríveis por serem vagos e sem objetivo definido (pois nunca podia entender por que e por quern havia sido preso e, quanto a seu destino final, ninguém conseguia convencê-lo de que seria outra coisa que não a mais lenta e medonha morte), ele ficava sentado meditando sozinho em um canto. Seu perdão, assinado por Von der Golz e selado com a imagem da Vaca Sagrada, ele ainda o conservava, pois, embora estivesse intelectualmente certo de que o papel não tinha valor, no fundo de seu ser continuava esperando fracamente que ele se transformasse um dia em um talismã; e, em qualquer caso, a imagem da Vaca era muito confortadora. De vez em quando, tirava o papel do bolso, desdobrava-o ternamente e fitava com grandes e tristes olhos a efígie sagrada: Pour
1'amélioration de Ia roce bovine - e lágrimas escorriam por baixo de suas pálpebras, ficavam suspensas entre os cílios e rolavam finalmente pelas faces pardas.
Essas faces não eram mais tão redondas como haviam sido. A pele bambeara, as lustrosas protuberâncias convexas haviam perdido o brilho. Miseravelmente ele definhava. Tio Spencer fazia o possível para animá-lo. Alphonse era grato, mas não aproveitava o consolo. Perdera todo interesse
até mesmo por mulheres. Quando, sabendo por Tio Spencer que o indiano era uma espécie de profeta, Emmy lhe pedira que me lesse a mão, ele a olhou indiferentemente como se ela fosse um simples homem e não uma imitadora de homem, e sacudiu negativamente a cabeça.
Certa manha, queixou-se de que estava passando tão mal a ponto de não poder levantar-se. Tinha a cabeça quente, tossia, respirava com dificuldade e sentia dor no pulmão direito. Tio Spencer tentou pensar no que Hahnemann receitaria em tais circunstâncias e chegou à conclusão de que um milionésimo de "grain" de acônito seria o remédio adequado. Infelizmente, nem um milionésimo de "grain" de acônito pôde ser encontrado em toda a prisão. Da busca resultou apenas um vidro de comprimidos de aspirina e, fornecido pela condessa russa, um pacote de cocaína em pó. Considerou-se melhor dar uma dose de cada um ao drávida e esperar pelo médico.
Em sua visita do meio-dia, o oficial inspetor foi informado do estado de Alphonse e prometeu mandar o médico imediatamente. Na realidade, porém, o medico só chegou na manhã seguinte. Enquanto isso, Tio Spencer tornou-se enfermeiro do drávida. O fato de Alphonse ser viúvo da rima de sua governanta e ter vivido em sua cidade adotiva fazia com que Tio Spencer se sentisse um tanto responsável pelo pobre indiano. Além disso, sentia-se satisfeito por ter alguma ocupação definida que lhe permitisse esquecer sua infeliz paixão, ainda que parcialmente e por um ocasional momento.
* Medida inglesa equivalente a 64,8 mg. (N. do T.)
Desde o começo, Alphonse tinha certeza de que ia morrer. A Tio Spencer previu sua iminente extinção, não apenas com serenidade, mas quase satisfação. Sentia que morrendo estaria ofendendo e enganando seus inimigos, que desejavam tão diabòlicamente dar-lhe fim no momento em que quisessem e da horrível maneira que quisessem. Foi em vão que Tio Spencer lhe assegurou que não ia morrer, que nada tinha de grave.
- Dentro de oito dias - disse ele - estarei morto.
E, fechando os olhos, silenciou.
O médico, quando chegou no dia seguinte, diagnosticou pneumonia lombar aguda. No abatimento de sua febre, Alphonse sorriu para Tio Spencer com um olhar quase de triunfo. Naquela noite delirou e começou a falar desvairadamente em uma língua que Tio Spencer não conseguiu compreender.
Tio Spencer ouvia no escuro o incompreensível tagarelar do drávida e, subitamente, com um estremecimento, com uma sensação de terror, sentiu - na presença daquele homem de outra raça, falando em língua desconhecida palavras saídas de obscuras profundezas que não eram ouvidas por homem algum e nem mesmo sua própria alma ouvia ou compreendia - sentiu-se indiscritívelmente sozinho. Estava preso consigo mesmo. Estava em uma ilha cercado de todos os lados por solidões vastas e sem fundo. Enquanto o indiano tagarelava, ora suavemente, persuasivamente, aduladoramente, ora com acessos de raiva, ora rindo alto, ele pensava em todos os milhões e milhões de homens e mulheres no mundo todos sozinhos, todos solitários e confinados. Pensou em amigos, incompreensíveis uns para os outros e opacos depois de uma vida inteira de companheirismo. Pensou em amantes distanciados quando estão um nos braços do outro. E a desesperança de sua paixão revelou-se a ele - a desesperança de toda paixão, pois toda paixão pretende atingir aquilo que, na natureza das coisas, é inatingível: a fusão e interpenetração de duas vidas, de duas histórias separadas, duas individualidades solitárias e para sempre desunidas.
O indiano ria às gargalhadas.
Contudo, a inatingibilidade de uma coisa nunca é razão para deixar de desejá-la. Pelo contrário, tende a aumentar e mesmo a criar desejo. Assim nosso amor por aqueles que conhecemos e nosso desejo de estar com eles são frequentemente aumentados por sua morte. E a impossibilidade de voltar a comunicar-se com ele realmente transforma indiferença em afeição, em respeito e em estima por alguém cuja companhia na vida parecia mais enfadonha que desejável. Assim, para o amante, o conhecimento de que é inatingível o que ele deseja e que toda posse revelará áreas ainda maiores do que não é possuído e não pode ser possuído, não é um dissuasor, não é um antídoto para sua paixão; serve antes para exacerbar seu desejo, aguçá-lo até uma espécie de desespero e, ao mesmo tempo, fazer o objeto do desejo parecer mais precioso que nunca.
O indiano tagarelava, como um fantasma entre os fantasmas de sua imaginação, distante como se estivesse falando de outro mundo. E Emmy - não estava igualmente distante, igualmente inatingível? E, sendo distante, ela era mais desejável; sendo misteriosa, era mais adorável. Um homem mais brutal e experimentado que Tio Spencer dedicaria todas as suas energias a seduzir a moça, sabendo que depois de algum tempo a satisfação de seu desejo físico provavelmente faria com que deixasse de ter qualquer interesse pela alma ou pela história dela. Mas a posse física era a última coisa em que Tio Spencer pensava, e seu amor havia tomado a forma de um imenso desejo pela união impossível, não de corpos, mas de mentes e vidas. Na verdade, o que ficara sabendo até então sobre a mente e a história dela não era particularmente encorajador. Mas para Tio Spencer, a tolice dela, seu amor pelo prazer e sua frivolidade eram qualidades estranhas e misteriosas - pois ele conhecera poucas mulheres em sua vida e nenhuma como Emmy Wendle - quase encantadoras em sua novidade e, se reconhecidas como más, desculpadas como sintomas de uma infantilidade deliciosa e de uma educação infeliz. A solicitude dela, naquele primeiro dia, em relação ao pobre Alphonse convenceu-o de que ela era fundamentalmente bondosa; e se se mostrara cruel desde então em relação a ele, isso fora mais por engano e devido às más influências circundantes que por maldade natural. Depois, havia a maneira como ela cantava a "Brabançonne". Era nobre, era comovente. Para ser capaz de cantar daquela maneira uma pessoa precisava ter um belo e nobre caráter. Pensando assim, Tio Spencer esquecia-se de que nenhuma característica é incompatível com qualquer outra, que qualquer pecado mortal pode ser encontrado em companhia de qualquer virtude cardial, mesmo a virtude aparentemente contraditória. Infelizmente, porém, essa é a espécie de sabedoria de que a gente invariavelmente se esquece precisamente no momento em que poderia ser-nos de utilidade. A gente a aprende quase no berço. Pelo menos, lembro-me de ter lido em minha escola preparatória, na "Breve História da Inglaterra", do professor Oman, a respeito do "heróico embora depravado duque de Ormond" e a respeito de um grande rei inglês que nem por isso deixava de ser "um gago indolente e pedante com uma língua grande demais para sua boca". Todavia, embora a gente saiba suficientemente em teoria que um duque pode ser tão licencioso quanto bravo, que a sabedoria real pode combinar-se com pedantismo e defeito da fala, na prática a gente continua a acreditar que uma mulher atraente é bondosa porque é encantadora e virtuosa .porque repele as primeiras investidas; sem refletir que a graça de suas maneiras talvez mal possa esconder uma dura crueldade e egoísmo, enquanto a timidez no rosto diante da insistência talvez seja mera artimanha para iludir mais completamente a vítima. Só na presença de pessoas antipáticas é que nos lembramos que as ações mais odiosas são compatíveis com os sentimentos mais genuinamente nobres e que um homem ou mulher que faz uma coisa, ao mesmo tempo que proclama outra, não é necessariamente um mentiroso consciente ou um hipócrita. Se pudéssemos ter constantemente em mente este conhecicimento quando estamos com pessoas que achamos simpáticas!
Desejando Emmy tão apaixonadamente como desejava, Tio Spencer não teria tido muita dificuldade em convencer-se - apesar da sua recente crueldade em relação a ele - que o espírito com que desejava unir o seu era de maneira geral um espírito belo e interessante; realmente não teria a menor dificuldade, se não fosse aquela infeliz confissão feita por ela. Esta, embora o lisonjeasse como manifestação da confiança dela em sua discrição e sabedoria, perturbara-o tristemente e continuava a perturbá-lo cada vez mais. De toda a história dela - a história em que ele desejava colocar-se inteiramente à vontade como se efetivamente a tivesse vivido junto com ela
- esse episódio era quase o único capítulo que conhecia. Fora como um fino raio de luz que a confissão dela se mostrara a Tio Spencer na escuridão circundante. E que episódio! Quanto mais Tio Spencer refletia sobre ele, tanto mais o achava lamentável.
O homem prático e brutal que Tio Spencer não era teria considerado esse incidente do passado como augúrio para suas próprias perspectivas futuras. Mas como ele não desejava, conscientemente pelo menos, a espécie de sucesso que isso augurava, o conhecimento do incidente causava-lhe genuína aflição. Por mais que Tio Spencer, em seu próprio íntimo, insistisse na culpa da circunstância externa e da outra parte, não podia exonerar inteiramente Emmy. Nem podia fingir que ela não participara de alguma maneira, ainda que apenas fisicamente, de seu próprio deslize. E talvez tivesse participado premeditadamente. Mesmo que isso não fosse verdade, a ideia de que ela fora maculada, ainda que relutantemente, pelo contato obsceno, era indescririvelmente penosa para ele. Enquanto o indiano delirava e nos longos e escuros silêncios em que não havia outro som além da respiração anormalmente rápida e curta, e às vezes um gemido, às vezes uma tosse seca, Tio Spencer penosamente pensava e pensava. Sua mente oscilava entre a convicção da pureza dela e o temor de que talvez ela fosse absolutamente corrupta. Via em imaginação ora a fisionomia infantil dela e a embevecida expressão com que cantava a "Brabançonne", ora o suave e solícito olhar com que manifestara sua comiseração pela infelicidade do pobre Alphonse e depois, um momento depois, intermináveis abraços, beijos brutais e inumeráveis. E sempre a amava.
No dia seguinte a febre do drávida estava ainda mais alta. O médico, quando apareceu, anunciou que já estava ocorrendo hepatização vermelha de ambos os pulmões. Era um caso grave que devia ser tratado no hospital; mas ele não tinha autoridade para mandar o homem para lá. Receitou banho morno com esponja para reduzir a febre.
Em vista das instalações sanitárias muito deficientes, da prisão, Tio Spencer fazia o máximo possível para auxiliar. Tinha uma multidão de solícitos assistentes. Todos se sentiam ansiosos por fazer alguma coisa útil. Ninguém se mostrava mais ansioso que Emmy Wendle. A inação forçada da vida na prisão, mesmo quando atenuada pelos gracejos dos alegres, pelas discussões teatrais e pela chistosa galanteria do bancário e do jornalista, era desagradável para ela. E a perspectiva de poder fazer alguma tarefa, particularmente (pois, afinal de contas, era tempo de guerra) de fazer alguma coisa útil e caridosa era recebida por ela com real satisfação. Sentava-se ao lado do colchão do drávida, falava com ele, dava-lhe o que ele pedia, executava os serviços desagradáveis que precisavam ser feitos no quarto do doente, fazia o que Tio Spencer e os outros mandavam e parecia completamente feliz.
De sua parte, Tio Spencer estava encantado pelo que considerava como uma reversão ao verdadeiro eu dela. Não podia haver dúvida quanto a isso: Emmy era boa, era bondosa, um anjo de caridade e, portanto (apesar do heróico embora depravado duque do professor), pura, portanto interessante, portanto digna de todo o amor que pudesse dedicar-lhe. Esqueceu-se da confissão ou, pelo menos, deixou de atribuir-lhe importância; não era mais perseguido pelas odiosas imagens que o excesso de meditação sobre o fato evocava em sua mente. O que o convenceu, talvez mais que qualquer outra coisa, da bondade essencial dela foi o fato de mostrar-se mais uma vez bondosa com ele. Sua energia jovem, inteiramente ocupada no trabalho prático (que não era, porém, suficientemente árduo para esgotar as forças ou irritar os nervos), não precisava manifestar-se em risos e caçoadas, como acontecera quando ela se refizera da disposição de melancolia que a deprimira durante os primeiros dias de prisão. Agora eram colegas de trabalho.
Enquanto isso, o drávida ficava cada vez pior, cada dia mais fraco. Ò médico estava positivamente irritado.
- O homem não tem razão para estar tão ruim como está - resmungava ele. - Não é velho, não é alcoólatra ou sifilítíco, sua constituição é bastante forte. Está simplesmente deixandose morrer. Nesse andar ele nunca superará a crise.
Ao ouvir essa notícia Emmy ficou séria. Nunca vira a morte de perto - defeito de sua educação que Tio Spencer, se tivesse tido a incumbência de educá-la, teria corrigido. Isso porque a morte era uma daquelas Realidades da vida com que, em seu entender, todos deviam travar conhecimento o mais cedo possível. O amor, por outro lado, não era uma das Realidades desejáveis. Nunca lhe ocorreu perguntar a si próprio a razão dessa odiosa distinção. De fato, não havia razão; simplesmente era assim.
- Diga-me, tio Spenny - sussurou ela, quando o médico se retirou - que acontece realmente a uma pessoa quando morre?
Encantado por esse sinal do renovado interesse de Emmy por temas sérios, Tio Spencer explicou-lhe o que Alphonse pelo menos achava que ia acontecer a ele.
Ao meio-dia, diante da repetida sopa de couve e da horrível carne cozida, o bancário, com humorismo de característico mau gosto, perguntou:
- Como está nosso negrinho?
Emmy olhou para ele com repugnância e raiva.
- Eu o acho absolutamente horrível - disse ela. Abaixando a voz reverentemente, acrescentou: - O médico disse que ele vai morrer.
O bancário não se perturbou.
- Oh, ele vai esticar as canelas, não é? Pobre negro! Emmy não respondeu. O silêncio foi geral. Era como se alguém tivesse feito um ruído inconveniente dentro de uma igreja.
Depois, na intimidade do pequeno quarto, onde, entre os arquivos e os papéis empoeirados, o drávida estava morrendo contente, Emmy virou-se para Tio Spencer e disse:
- Sabe, Tio Spenny? Acho que o senhor é uma pessoa maravilhosamente decente. Acho realmente.
Tio Spencer ficou comovido demais para dizer outra coisa além de "Emmy, Emmy" duas ou três vezes. Tomou a mão dela e, muito delicadamente, beijou-a.
Naquela tarde continuaram falando sobre todas as coisas que poderiam concebivelmente acontecer depois de uma pessoa estar morta. Emmy disse a Tio Spencer tudo quanto havia pensado ao receber o telegrama - fora dois anos antes, quando estava trabalhando em um teatro em Glasgow, em um de seus primeiros compromissos - dizendo que o pai morrera de repente. O pai bebia demais e não era bom para a mãe quando estava fora de si. Apesar disso, ela gostava muito dele e quando chegara aquele telegrama ficara pensando, pensando...
Tio Spencer ouvia atentamente, feliz por ter esse novo vislumbre do passado dela. Esqueceu-se do outro incidente que o raio de luz de sua confissão iluminara para ele.
Mais tarde, naquela noite, depois de ter ficado deitado por muito tempo absolutamente imóvel, Alphonse repentinamente se mexeu, abriu os grandes olhos pretos e começou a falar, a princípio na linguagem incompreensível que empregava no delírio, depois, quando percebeu que os ouvintes não o entendiam, mais devagar e em seu estranho francês arrevezado.
- Eu vi tudo ainda agora - disse ele - tudo.
- Mas o que? - perguntaram.
- Tudo o que vai acontecer. Vi que esta guerra durará muito tempo... Muito tempo. Mais de cinquenta meses.
Em seguida, profetizou calamidades enormes.
Tio Spencer que sabia com certeza que a guerra não poderia durar mais de três meses mostrou-se incrédulo. Emmy, porém, que não tinha ideias preconcebidas sobre guerra e tinha uma forte crença em oráculos, deteve-os impacientemente quando ele quis fazer o drávida silenciar.
- Conte-me - disse ela - o que vai acontecer conosco. Ela tinha muito pouco interesse pelo destino da civilização.
- Eu vou morrer - começou Alphonse. Tio Spencer saltou alguns sons suplicantes.
- Não, não - protestou ele.
O indiano não lhe prestou atenção.
- Eu vou morrer - repetiu ele. - E você - disse a Tio Spencer - você vai ser solto e depois levado de novo à prisão. Mas não aqui. Em algum outro lugar. Muito longe daqui. Por muito tempo... muito tempo mesmo. Você será muito infeliz. Sacudiu a cabeça, antes de acrescentar: Não posso evitar isso, embora você tenha sido tão bom comigo. É o que eu vejo. Mas o homem que me enganou (referia-se ao jornalista) será logo solto e viverá em liberdade o tempo todo. Na liberdade que houver aqui. Aquele que fica sentado na cadeira voltará finalmente para sua terra. Aquele que canta ficará livre como o homem que me enganou. O pequeno homem grisalho será mandado para outra prisão em outro país. A mulher gorda de boca vermelha será mandada para outro país; mas não ficará na prisão. Penso que lá ela se casará... de novo.
Era fácil reconhecer os retratos da condessa russa e do professor de Latim.
- O homem com carbúnculos no rosto (era o bancário, sem dúvida) será mandado para outra prisão em outro país. E lá morrerá. A mulher de preto que está tão triste...
Emmy, porém, não podia esperar mais.
- E eu? - perguntou. - Conte-me o que vê a meu respeito? O drávida fechou os olhos e ficou em silêncio por um momento.
- Você vai ser solta - disse ele. - Logo. E um dia - prosseguiu - você será a esposa deste bom homem. - Indicou Tio Spencer. - Mas não já; só daqui a muito tempo; quando toda esta luta estiver terminada. Você terá filhos... muita sorte...
Suas palavras tornaram-se mais fracas. Fechou novamente os olhos. Suspirou como se estivesse completamente exausto.
- Cuidado com estranhos loiros - murmurou, voltando à velha e conhecida fórmula. Nada mais disse.
Emmy e Tio Spencer ficaram olhando um para o outro em silêncio.
- Que acha, tio Spencer? - sussurou ela finalmente. Será verdade?
Duas horas depois o indiano estava morto.
Tio Spencer naquela noite dormiu, ou melhor, não dormiu na sala de estar, ô corpo ficou sozinho entre os arquivos. As palavras do indiano continuavam a ecoar e re-ecoar em sua mente: "Um dia você será a esposa deste bom homem". Talvez, pensou "ele, à beira da morte, o espírito já comece a experimentar suas asas no novo mundo. Talvez já tenha começado a conhecer as orlas, por assim dizer, de segredos que deverão ser-lhe revelados. Para Tio Spencer nada havia de repugnante nessa ideia. Em seu universo havia lugar para o que é comumente e talvez erroneamente conhecido como milagre. Talvez as palavras fossem uma promessa, uma declaração de fato futuro. Deitado de costas, com os olhos fitos no estrelado céu azul escuro além da janela aberta, ele meditava naquele problema do destino fixo e do livre arbítrio, com que os demónios no inferno de Milton desperdiçavam seu infernal lazer. E como um estribilho as palavras repetiam-se: "Um dia você será a esposa deste bom homem". As estrelas moviam-se vagarosamente através da abertura da janela. Ele não dormiu.
De manhã chegou uma ordem para a soltura do jornalista e do cantor de ópera. Alegremente disseram adeus a seus colegas de prisão. A porta fechou-se atrás deles. Emmy virou-se para Tio Spencer com uma expressão quase de terror nos olhos. As profecias do indiano já estavam começando a concretizar-se. Contudo, nada disseram um ao outro. Dois dias depois, o bancário partiu para um campo de internamento na Alemanha.
Em seguida, certa manhã, mandaram buscar Tio Spencer. A ordem chegou de maneira absolutamente repentina. Não lhe deram tempo para despedir-se. A autoridade competente examinou-o, considerou-o inofensivo e permitiu seu regresso a Longres, onde, porém, deveria viver sob vigilância. Não lhe permitiram sequer voltar à prisão e despedir-se. Um soldado levou suas coisas do Ministério. Foi posto no trem, com ordem de apresentar-se ao comandante em Longres logo que chegasse.
Antonieke recebeu o patrão com lágrimas de alegria. Tio Spencer, porém, não encontrou prazer na liberdade recuperada. Emmy Wendle ainda estava presa. É verdade que logo seria posta em liberdade, mas, percebeu ele horrorizado, ela não sabia seu endereço. Ele fora solto tão de repente que não tivera tempo de combinar com ela as possibilidades de encontros futuros. Nem se quer a vira na manhã de sua libertação.
Dois dias depois de seu regresso a Longres, pediu ao comandante, a quem tinha de apresentar-se diariamente, permissão para ir a Bruxelas. Perguntaram-lhe para que. Tio Spencer respondeu honestamente que era para visitar um amigo que se encontrava na prisão de onde ele acabava de ser solto. Imediatamente foi recusada permissão.
Tio Spencer foi a Bruxelas do mesmo jeito. Na porta da prisão a sentinela prendeu-o como pessoa suspeita. Foi mandado de volta para Longres. O comandante falou com ele ameaçadoramente. Na semana seguinte, Tio Spencer tentou de novo. Era pura loucura, ele sabia disso; mas era preferível fazer alguma coisa idiota do que nada fazer. Foi preso de novo.
Desta vez condenaram-no a internamento em um campo na Alemanha. As profecias do indiano estavam sendo cumpridas com notável precisão. E a guerra durou mais de cinquenta meses. O bancário carbunculoso, que meu Tio Spencer encontrou de novo no campo de internamento, efetivamente morreu...
O que o levou a fazer-me confidencias - a mim, que ele conhecera como criança e a quem quase servira de pai - é coisa que eu não sei. Ou talvez saiba. Talvez tenha sido porque achou que eu seria mais competente para aconselhá-lo em assunto dessa natureza do que seu irmão - meu pai
- ou o velho Sr. Bullinger, estudioso de Dante, ou qualquer outro de seus amigos. Teria talvez sentido vergonha de falar com eles sobre uma coisa dessas. Teria achado também que talvez não adiantasse muito falar com eles e que eu, apesar de minha juventude, ou mesmo por causa dela, poderia de fato ser mais experimentado nessas coisas do que eles. Imagino que nem meu pai nem o Sr. Bullinger conhecia muita coisa a respeito de imitadoras de homem.
De qualquer maneira, fosse qual fosse a causa, foi comigo que ele falou sobre toda a questão, naquela primavera de 1919, quando estava conosco no Sussex, refazendo-se depois dos terríveis meses de confinamento. Costumávamos dar longos passeios juntos, pelas campinas abertas ou entre os pilares cinzentos das matas de faias. Vencendo penosamente relutância após relutância, passando de uma confidencia para outra mais íntima, Tio Spencer contou-me toda a história.
A história envolveu também intermináveis discussões, pois precisávamos decidir, antes de tudo, se havia alguma explicação científica possível para a profecia; se existia algo como um futuro absoluto à espera de ser vivido. E muito mais demoradamente ainda tivemos de discutir sobre mulheres - se elas eram realmente "daquele jeito" (e em que profundezas de cinismo o pobre Tio Spencer aprendera, durante as longas e amarguradas meditações de seus dias e noites de prisão, a mergulhar e espojar-se!) ou se eram como os anjos que ele desejava que fossem.
Mais importante, porém, que especular sobre o possível caráter de Emmy era descobrir onde ela estava naquele momento. Mais urgente que indagar se a profecia podia concebivelmente merecer confiança era adotar providências para concretizar essa profecia determinada. Durante semanas Tio Spencer e eu "bancamos" os detetives.
Tenho com frequência imaginado que nós devíamos, quando fizemos nossas investigações juntos, parecer-nos extraordinariamente com o tradicional par das histórias: Tio Spencer, p génio de feições bem definidas, cadavérico, de olhos brilhantes, o Holmes do conjunto; e eu, gorducho, de cara redonda, um Watson muito moço. Na verdade, porém, se posso dizer isso sem parecer presunçoso, dos dois eu é que era o verdadeiro Holmes. Tio Spencer era excessivamente inocente a respeito do mundo para saber como procurar uma amante desaparecida; assim como era excessivamente inocente em matéria de ciência para saber como ou onde descobrir o que havia para ser descoberto em qualquer assunto mais abstraio.
Fui eu que o levei ao Museu Britânico e fiz com que olhasse todos os números atrasados dos jornais teatrais para ver quando Emmy anunciara pela última vez seu desejo de ser contratada. Fui eu, o aparente Watson, que pensei nas agências teatrais e nas portas do fundo de todos os musichalls suburbanos. Com aspecto de detetive, de coração inocente, Tio Spencer seguia-me, maravilhado pela minha familiariedade com os caminhos do estranho mundo.
Devo, porém, temperar minha fanfarronada com a confissão de que fomos sempre inteiramente mal sucedidos. Nenhuma agência ouvira falar em Emmy Wendle desde 1914. Em nenhum jornal aparecera anúncio seu. Os porteiros dos music-halls lembravam-se dela, mas como de algo antediluviano. "Emmy Wendle? Oh, sim, Emmy Wendle..." E, cocando a cabeça, dedicavam-se a um esforço mental para passar do simples nome à pessoa, como paleontologistas reconstruindo o diplodoco inteiro com base em um único osso fossilizado.
Duas ou três vezes nos deram endereços. Mas as donas das pensões onde ela estivera hospedada nem sequer se lembravam dela; e a velha tia residente em Ealing, de quem alegremente esperávamos tanto, lavara as mãos em relação a Emmy dois ou três meses antes de começar a guerra. A convicção que ela tinha então de que Emmy era uma moça ruim só foi intensificada e confirmada por nossas indagações. Não ela nada sabia a respeito de Emmy Wendle nem queria saber. E pedia-nos que deixássemos em paz as pessoas respeitáveis como ela. Derrotados, voltamos a subir em nosso táxi, enquanto os habitantes da esquálida ruazinha nos espiavam e a nosso veículo, como se fôssemos visitantes de outro planeta e o carro de aluguel uma carruagem de fadas.
- Talvez ela esteja morta - disse Tio Spencer baixinho, depois de um longo silêncio.
- Talvez - disse eu brutalmente - ela tenha encontrado um marido e se retirado para a vida privada.
Tio Spencer fechou os olhos, suspirou e passou a mão pela testa. Que imagens pavorosas enchiam sua mente? Ele quase teria preferido que ela estivesse morta.
- No entanto - murmurou ele - o indiano sempre acertou... Talvez ainda possa acertar desta vez. Quem sabe?
O LOJISTA CHAMOU-O AFETUOSAMENTE DE MEXICANINHO. E, para mexicano, talvez fosse mesmo pequeno. Mas nesta nossa Europa, onde o espaço é limitado e a escala é menor, o Mexicaninho era portentoso, um gigante entre os chapéus. Lá estava pendurado, no centro da vitrina da chapelaria, uma enorme auréola preta, apropriada a um rei dos demónios. Nenhum demónio, porém, caminhava naquela manhã pelas ruas de Ravenna; apenas o mais pacífico dos turistas literários. Era uma época em que chapéus bem grandes me pareciam muito desejáveis, e sobre minha cabeça, absolutamente indigna, é que estava destinada a baixar aquela auréola de pretidão. Sobre minha cabeça, pois tão logo vi o chapéu, entrei correndo na loja, experimentei-o, achei o tamanho certo e comprei-o sem regatear, pelo preço feito para estrangeiro. Saí da loja com o Mexicaninho na cabeça e minha sombra sobre as calçadas de Ravenna era como a sombra de um pinheiro.
O Mexicaninho está agora muito velho, comido pelas traças e verde. Mas ainda o conservo. De vez em quando, por amor a velhas associações, chego mesmo a usá-lo. Querido Mexicaninho! Para mim, representa toda uma época de minha vida. Simboliza emancipação e o primeiro ano na universidade. Simboliza a descoberta de quantas coisas novas, ideias novas, sensações novas! Da literatura francesa, do álcool, da pintura moderna, de Nietzsche, do amor, da metafísica, de Mallarmé, do sindicalismo e só Deus sabe do que mais. Acima de tudo, porém, prezo-o porque me faz lembrar minha primeira descoberta da Itália. Reevoca para mim, o meu Mexicaninho, todas as emoções, os espantos e virginais arroubos daquela primeira excursão pela Itália no começo de outono de 1912. Urbino, Rimini, Ravenna, Ferrara, Modena, Mântua, Verona, Vicenza, Pádua, Veneza - minhas primeiras impressões de todos esses nomes fabulosos encontram-se, como um punhado de jóias, na copa do Mexicaninho. Terei algum dia coragem de jogá-lo fora?
Depois, naturalmente, há Tirabassi. Sem o Mexicaninho, eu nunca teria conhecido Tirabassi. Com meu pequeno e despretensioso chapéu inglês, ele nunca teria pensado que eu fosse pintor. E, em consequência, eu nunca teria visto aqueles afrescos, nunca teria conversado com o velho conde, nunca teria ouvido falar na Colombella. Nunca... Quando penso nisso, o Mexicaninho parece-me mais precioso do que nunca.
Naturalmente, foi muito típico de Tirabassi supor, pelo tamanho de meu chapéu, que eu devia ser pintor. Ele tinha a mentalidade militar precisa que recusa aceitar a vaga desordem do mundo. Estava sempre rotulando, classificando e limitando seu universo; e, quando os objetos classificados saíam de seus escaninhos e arrancavam os rótulos que tinham no pescoço, Tirabassi ficava perplexo e aborrecido. Seja como for, desde o primeiro momento em que me viu no restaurante em Pádua, foi evidente para ele que eu devia ser pintor. Todos os pintores usavam grandes chapéus pretos. Eu estava usando o Mexicaninho. Logo, eu era pintor. Era silogístico, irrefutável.
Mandou o garçom perguntar-me se eu queria dar-lhe a honra de tomar café em sua companhia na sua mesa. Devo confessar que no primeiro momento fiquei um pouco alarmado. Que poderia querer de mim aquele jovem e galhardo tenente de cavalaria? Encheram minha mente as mais absurdas fantasias: eu havia cometido, inconscientemente, .algum terrível solecismo; eu pisara nos pés da honra do tenente e ele ia desafiar-me para um duelo. A escolha das armas, refleti rapidamente, seria minha. Mas que... oh, que escolheria eu? Espadas? Eu nunca aprendera esgrima. Pistolas? Eu certa vez disparara seis tiros contra uma garrafa e errara todos eles. Haveria tempo de escrever uma ou duas cartas, de fazer uma espécie de testamento de meus bens pessoais? Dessa angústia mental livrou-me o garçom, ao voltar um momento depois com meu polvo frito. O tenente conde, explicou ele numa confidencia sussurrada, tinha uma vila em Brenta, não longe de Strà. Uma vila - estendeu as mãos em um gesto generoso - cheia de pinturas. Cheia, cheia, cheia. E estava ansioso para que eu as visse, pois tinha certeza de que eu me interessava por pinturas. Oh, naturalmente - sorri de maneira um pouco tola, pois o garçom parecia esperar de mim alguma espécie de interpolação confirmatória - eu me interessava por pinturas; interessava-me muito. Nesse caso, disse o garçom, o conde ficaria encantado em levar-me para vê-las. O garçom deixoume, ainda perplexo, mas enormemente aliviado. Fosse como fosse, eu não estava sendo convidado a fazer a embaraçosíssima escolha entre espadas e pistolas.
Sub-repticiamente, sempre que ele não estava olhando em minha direção, examinei o tenente conde. Sua aparência não era tipicamente italiana (mas que é um italiano típico?). Não tinha, quero dizer, faces azuladas, olhos de conta, tez morena e nariz aquilino. Pelo contrário, tinha cabelos ruivos claros, olhos cinzentos, nariz achatado e pele sardenta. Eu conhecia muitos moços ingleses que poderiam ter sido irmãos menos vivazes do conde Tirabassi.
Recebeu-me ele, quando chegou a ocasião, com a mais encantadora cortesia, pedindo desculpas pela maneira sem cerimonia com que estabelecera relações comigo.
- Mas como eu tinha certeza - disse ele - que o senhor se interessava por arte, pensei que me perdoaria em vista do que eu tinha a mostrar-lhe.
Não pude deixar de perguntar a mim mesmo por que o conde tinha tanta certeza de meu interesse pela arte. Só mais tarde, quando saíamos juntos do restaurante, é que eu compreendi. Isso porque, quando pus o chapéu na cabeça para sair, ele apontou com um sorriso para o Mexicaninho.
- Pode-se ver - disse - que o senhor é um verdadeiro artista. Fiquei desarvorado, sem saber o que responder.
Depois de termos trocado as cortesias preliminares, o tenente mergulhou imediatamente, só para meu benefício como pude ver, em uma conversa a respeito de arte.
- Hoje em dia - disse - nós, italianos, não nos interessamos muito pela arte;- Em um país moderno, sabe... ? - Encolheu os ombros, deixando a frase sem terminar. - Mas acho que isso não está certo. Eu adoro a arte. Simplesmente a adoro. Quando vejo estrangeiros com seus guias, parados durante meia hora diante de um quadro, olhando primeiro para o livro, depois para o quadro ... - Neste ponto, fez a imitação mais brilhantemente acabada de um clérigo anglicano "vendo" conscienciosamente a capela de Mantegna: primeiro um olhar para o imaginário guia aberto nas duas mãos, depois, com o movimento de um frango ao beber água, o erguer do rosto em direção a um afresco imaginário, um longo olhar entre pálpebras franzidas, a boca aberta e finalmente os olhos voltando-se de novo para as inspiradas páginas do Baedeker - quando os vejo, sinto vergonha de nós, italianos.
O conde falava com muita seriedade, sentindo, sem dúvida, que se deixara levar longe demais por seu talento para mímica.
- E se eles ficam meia hora olhando a coisa, eu vou e fico parado lá durante uma hora. Essa é a maneira de compreender a grande arte. A única maneira. - Inclinou-se para trás na cadeira e bebericou o café. - Infelizihente - acrescentou, depois de um momento - ninguém dispõe de muito tempo.
Concordei com ele.
- Quando a gente só pode vir à Itália passar um mês de cada vez, como eu...
- Ah, se eu pudesse viajar pelo mundo como o senhor. - O conde suspirou. - Mas aqui estou eu, enjaulado nesta miserável cidade. E quando penso no enorme capital que está pendurado lá nas paredes de minha casa...
Conteve-se, sacudindo a cabeça. Depois, mudando de tom, começou a falar-me sobre sua casa à margem do Brenta. Parecia bom demais para ser verdade. Carpioni, sim... eu poderia acreditar que houvesse afrescos de Carpioni. Quase qualquer pessoa poderia tê-los. Mas um salão de Veronese, salas de Tiepolo, tudo na mesma casa... parecia incrível. Não pude deixar de acreditar
que o conde fora arrastado demais por seu entusiasmo pela arte. Em qualquer caso, porém, no dia seguinte eu poderia julgar por mim mesmo. O conde convidara-me para almoçar com ele.
Deixamos o restaurante. Ainda embaraçado pelas referências do conde ao meu Mexicaninho, subi a seu lado em silêncio a rua de arcadas.
- Vou apresentá-lo a meu pai - disse o conde. - Ele também adora as artes.
Mais do que nunca senti-me como um impostor. Insinuara-me na confiança do conde por meio de falsidades. Meu chapéu era uma mentira. Achei que devia fazer alguma coisa para esclarecer o mal-entendido. Mas o conde estava tão ocupado em queixar-se do pai que não tive oportunidade de apresentar minha pequena explicação. Não ouvi com muita atenção, confesso, o que ele estava dizendo. No decorrer de um ano em Oxford, eu ouvira muitos moços queixarem-se dos pais. O dinheiro não chegava, havia interferência demais - a história era velha. E naquela época, além disso, eu estava assumindo um ponto de vista muito filosófico sobre atitudes dessa espécie. Estava querendo criar a impressão de que não me interessava por pessoas... só por livros, só por ideias. Como se pode fazer papel de bobo naquela idade!
- Eccoci - disse o conde. Paramos diante do Café Pedrochi. - Ele vem sempre aqui tomar seu café.
E onde mais, realmente, poderia ele ir tomar seu café? Quem, em Pádua, iria a outro lugar?
Encontramo-lo sentado no terraço situado na extremidade mais afastada do edifício. Achei que nunca tinha visto um velho cavalheiro de aparência mais alegre. O velho conde tinha um rosto vermelho marcado pelo tempo, com bigodes brancos eriçando-se galantemente para cima e um cavanhaque branco à maneira grandiosa do Risorgimento da época de Vittorio Emanuel II. Embaixo das sobrancelhas espessas e fixados no meio de uma teia de finas rugas, os olhos eram castanhos e brilhantes como os de um papa-roxo. Seu comprido nariz parecia, não sei por que, mais praticamente útil que o nariz humano comum, como se fosse feito para aguçado farejamento crítico, para introduzir-se delicadamente em buracos e farejar. Encorpado e forte, estava solidamente sentado na cadeira, com os joelhos separados, as mãos fechadas sobre o castão da bengala, carregando a barriga com dignidade, quase chego a dizer nobremente. Estava todo vestido de linho branco - pois ainda fazia muito calor - e seu largo chapéu cinza inclinava-se caprichosamente sobre o olho esquerdo. Causava verdadeira satisfação olhar para ele; era tão completo, tão perfeito em sua espécie.
O jovem conde apresentou-me.
- Este é um cavalheiro inglês. Signor... - disse, virando-se para mim, à espera do nome.
- Usselei - disse eu, tendo aprendido pela experiência que essa era a pronúncia mais próxima que se poderia esperar de um italiano.
- O signor Usselei - continuou o jovem conde - é um artista.
- Bem, não exatamente um artista - comecei eu, mas ele não me deixou terminar.
- Interessa-se muito também pela arte antiga - prosseguiu. - Amanhã vou levá-lo a Dolo para ver os afrescos. Sei que vai gostar deles.
Sentamo-nos na mesa do conde. Criticamente ele olhou para mim e acenou com a cabeça, concordando.
- Benissimo - disse, acrescentando depois: - Esperemos que seja capaz de fazer alguma coisa para ajudar-nos a vender as pinturas.
Isso foi surpreendente. Olhei com certa perplexidade para o jovem conde. Franzia a testa colericamente em direção ao pai. O velho cavalheiro evidentemente havia dito o que não devia dizer. Adivinhei que ele havia falado cedo demais. Fosse como fosse, entendeu a insinuação do filho e desviou-se serenamente para outro rumo.
- A ardente fantasia de Tiepolo - começou ele em tom grandiloqíiente - o frio e desapaixonado esplendor de Veronese... em Dolo o senhor os verá em contraste.
Ouvi atentamente, enquanto o velho cavalheiro prosseguia com voz trovejante no que era sem dúvida um discurso previamente preparado. Quando terminou, o jovem conde levantou-se. Precisava estar de volta ao quartel às duas e meia. Eu também fiz como quem ia despedir-se, mas o velho pôs a mão sobre meu braço.
- Fique comigo - disse. - Aprecio infinitamente sua conversa.
Eu bem podia acreditar nisso, pois ele próprio quase não deixara de falar desde o primeiro momento em que o avistei. Com o gesto de uma dama erguendo a saia para não raspar na lama (aquela era uma época em que as saias ainda precisavam ser erguidas), o jovem conde segurou o sabre rastejante e afastou-se com arrogância, muito militarmente, muito brilhante e cintilante, como um soldado no palco, até sair para o sol e perder-se de vista. Os brilhantes olhos de pássaro do velho acompanharam-no.
- Bom rapaz, Fábio - disse, virando-se finalmente de novo para mim. - Um bom filho.
Falava afetuosamente, mas achei que, em seu sorriso, no tom de sua voz, havia uma insinuação de divertimento, de ironia. Era como se estivesse acrescentando por dedução: "Mas afinal de contas os bons rapazes são tolos em serem tão bons." Apesar de minha atitude de desinteresse, senti-me extremamente curioso em relação àquele velho cavalheiro. Ele, por sua parte, não era homem que deixasse alguém em sua companhia permanecer muito tempo em esplêndido isolamento. Insistiu em que eu tomasse interesse por seus negócios. Contou-me tudo a respeito deles - ou pelo menos tudo a respeito de alguns deles - derramando suas confidencias com espantosa falta de reserva. Depois do amigo íntimo e merecedor de confiança, o perfeito estranho é o melhor de todos os confidentes possíveis. Não há viajante comercial, de aparência moderadamente simpática, que não tenha, no curso de seus dias nos trens e suas noites nos vestíbulos de hotéis comerciais, sido repositório de milhares de segredos íntimos - mesmo na Inglaterra. E na Itália - só Deus sabe o que contam aos viajantes comerciais na Itália. Mesmo eu, um estrangeiro, falando mal a língua e não sendo muito habilidoso em conduzir uma conversa com estranhos, ouvi coisas extraordinárias nos vagões de segunda classe dos trens italianos... Ali também, no terraço do Pedrochi, eu ia ouvir coisas extraordinárias. Uma porta ia ser entreaberta e, através da fenda, eu ia espreitar vidas incomuns.
- Que faria eu sem ele - continuou o velho cavalheiro. - Realmente não sei. A maneira como ele administra a propriedade é simplesmente maravilhosa.
Prosseguiu perdendo-se em longas digressões sobre a estupidez dos camponeses, a incompetência e desonestidade dos administradores, a crueldade do tempo, a propagação da filoxera, o alto preço do adubo. O desfecho foi que, depois que Fábio assumira a direção da propriedade, tudo correra bem. Até o tempo melhorara.
- É tão grande alívio - concluiu o conde - sentir que tenho tomando em conta alguém em quem posso realmente fiar-me, alguém em quem possa confiar absolutamente. Deixa-me livre para dedicar meu espírito a questões mais importantes.
Não pude deixar de perguntar a mim mesmo quais seriam as questões importantes. Achei, porém, que seria impertinência perguntar tal coisa. Em lugar disso, formulei uma pergunta prática.
- Mas que acontecerá - perguntei - quando os deveres militares de seu filho o levarem para longe de Pádua?
O velho piscou-me um olho e, muito deliberadamente, encostou o dedo indicador no lado de seu comprido nariz. O gesto era rico em significação.
- Isso nunca acontecerá - disse. - Tenho tudo arrumado. Uma pequena combinazione, sabe? Tenho um amigo no Ministério. Os deveres militares conservá-lo-ão em Pádua.
Piscou de novo o olho e sorriu.
Não pude deixar de rir e o velho conde juntou-se a mim com um alegre ah, ah, ah, que era a expressão de uma profunda satisfação, que era, por assim dizer, uma manifestação de aplauso a si próprio. Evidentemente sentia-se orgulhoso de sua pequena combinazione. Sentia-se, porém, ainda mais orgulhoso da outra combinação, a cujo respeito começou a falar-me então inclinando-se confidencialmente sobre a mesa. Decididamente era a mais sutil das duas.
- Não são apenas seus deveres militares - disse, sacudindo em minha direção o grosso indicador de unhas amarelas que havia encostado no nariz - não são apenas seus deveres militares que o conservarão em Pádua. São seus deveres domésticos também. Ele é casado. Eu o casei.
Inclinou-se para trás em sua cadeira e fitou-me, sorrindo. As pequenas rugas em roda de seus olhos pareciam vivas.
- Esse rapaz, disse eu comigo mesmo, precisa assentar. Precisa ter um ninho, senão voará. Precisa ter raízes, senão fugirá.
E seu pobre e velho pai ficará ao desamparo. Ele é moço, pensei, mas precisa casar-se. Precisa casar-se. Imediatamente.
E o velho cavalheiro fez uma grande exibição com seu dedo indicador. Era uma história comprida. Seu velho amigo, o avvocato Monaldeschi tinha doze filhos - três meninos e nove meninas. (A essa altura houve digressões a respeito do avvocato e do tamanho das boas famílias católicas). A menina mais velha estava com a idade certa para Fábio. Não tinha dinheiro, naturalmente, mas era uma boa menina, bonita, muito bem educada e religiosa. Religiosa... isso era muito importante, pois era essencial que Fábio tivesse uma família grande... para conservá-lo mais efetivamente enraizado, explicou o velho conde... e com essas moças modernas criadas fora da Igreja a gente nunca podia ter certeza de filhos. Sim, a religião dela era muito importante; examinara isso com bastante cuidado antes de escolhê-la. Bem, em seguida, naturalmente, o necessário era que Fábio fosse induzido a escolhê-la. Era uma questão de levar o cavalo à água e fazer com que ele bebesse. Oh, negócio muito difícil e delicado! Principalmente porque Fábio se orgulhava de sua independência; e era teimoso como uma mula. Ninguém interferia em seus negócios, ninguém o convencia a fazer o que não queria. E era tão melindroso, tão cabeçudo que muitas vezes não fazia o que realmente queria fazer, simplesmente porque alguém lhe sugerira que o fizesse. Portanto, eu podia imaginar - o velho conde abriu as mãos à minha frente - como o negócio havia sido difícil e delicado. Só um consumado diplomata poderia ter conseguido êxito. Seu processo foi fazer com que os dois estivessem frequentemente juntos e, ao mesmo tempo, falar sobre a imprudência de casamentos prematuros, a inutilidade de esposas pobres, a inconveniência de esposas sem origem nobre. Funcionou como que por encanto; em quatro meses, Fábio estava noivo; dois meses depois, estava casado e, dez meses mais tarde, tinha um filho e herdeiro. Depois disso, estava fixado, enraizado. O velho cavalheiro riu baixinho, e eu imaginei estar ouvindo o riso reprimido de um velho tirano de cabelos brancos do quattrocento, congratulando-se consigo mesmo pelo bom êxito de algum golpe de política peculiarmente engenhoso - uma cidade rica induzida a render-se por meio de fraude, um rival perigoso atraído por palavras bonitas a uma cilada e capturado. Pobre Fábio, pensei; e, também, que desperdício de talento!
Sim, continuou o velho conde, ele nunca mais iria embora. Não era como seu irmão mais moço, Lúcio. Lúcio era um patife, jurbo, ardiloso. Não tinha consciência. Mas Fábio tinha ideias sobre dever e vivia de acordo com elas. Depois de comprometer-se, aferrava-se a seus compromissos, obstinadamente, com toda a teimosia de seu caráter. Bem, estava vivendo então na fazenda, na grande casa pintada de Dolo. Três dias por semana ia a Pádua para cumprir seus deveres militares e o resto do tempo dedicava à fazenda. Esta rendia mais do que nunca antes. Mas, queixou-se o velho, só Deus sabia como isso era pouco. Pão e óleo, vinho e leite, galinha e carne de vaca - disso havia abundância, chegava a sobrar. Fábio poderia ter uma família de cinquenta pessoas e ninguém morreria de fome. Mas dinheiro de contado... disso não havia muito.
- Na Inglaterra - concluiu o conde - os senhores são ricos. Mas nós, italianos...
Sacudiu a cabeça.
Passei o quarto de hora seguinte tentando convencê-lo de que nem todos nós éramos milionários. Inutilmente, porém. Minhas estatísticas, baseadas em lembranças um pouco imperfeitas do Sr. e Sra. Sidney Webb, não tinham convicção. Por fim, desisti.
Na manhã seguinte, Fábio apareceu na porta de meu hotel em um Fiat grande, muito velho e muito barulhento. Era a máquina de todo o serviço da família, amassada, riscada e suja por anos de trabalho. Fábio guiava-a com fácil e brilhante temeridade. Atravessamos velozmente a cidade, virando de um lado para outro da estreita rua, com um desrespeito pelas regras de trânsito que, em um país pedante como a Inglaterra, teria resultado pelo menos em uma multa de cinco libras e uma anotação na licença. Mas ali os carabineiros, caminhando gravemente aos pares embaixo das arcadas, deixavam-nos passar sem comentário. Direita ou esquerda"- afinal de contas, que importava isso?
- Por que tirou o silencioso? - gritei para fazer-me ouvir acima do terrível ronco do motor.
Fábio encolheu ligeiramente os ombros
- Ê piu allegro cosi - respondeu.
Eu nada mais disse. De um membro dessa raça temerária que gosta de barulho, que aprecia desconforto, um inglês nervoso dificilmente poderia esperar simpatia.
Logo saímos da cidade. Deixando atrás de nós uma agitada esteira branca de poeira e com o motor disparando suas explosões como uma bateria de metralhadoras, avançamos rapidamente pela estrada de Fusina. De ambos os lados estendia-se a planície cultivada. A estrada era ladeada por valetas e, nas margens além, em lugar de sebes, havia fileiras de pequenas árvores sem copas com vinhas carregadas de uvas estendidas como grinaldas de uma árvore para outra. Brancas de poeira, gavinhas, frutas e folhas pendiam como um trabalho de ourives esculpido em metal fosco, pendiam como friso de frutas e folhagens enrolando-se em volta das beiradas de uma grande tijela de prata. Continuamos correndo. Logo, à nossa direita, vimos o Brenta, afundado entre as margens de seu canal. Chegamos depois a Strà. Através de portões ricos de fantástico estuque, descemos por túneis de sombra permanentes e, em uma série de vislumbres momentâneos, olhamos no coração do parque. Por um instante as estátuas nos telhados da vila acenaram contra o céu e nós passamos. Prosseguimos. À direita e à esquerda, em ambas as margens do rio, eu via de relance de vez em quando uma encantadora mansão, cinzenta e brilhante mesmo em decadência. Pequenas casas de verão barrocas espreitavam-se por cima dos muros; e através de grandes portões, no fim de empoeiradas avenidas de ciprestes, meio humoristicamente, segundo parecia, as grandiloqíientes e frívolas fachadas erguiam-se desafiando todas as regras. Eu gostaria de ter feito a viagem devagar, parando aqui e acolá, para olhar, para saborear à vontade. Mas Fábio desdenhava viajar a menos que cinquenta quilómetros por hora e eu tive de contentar-me com momentâneos e precários vislumbres. Era nessas vilas, refleti eu, enquanto sacolejávamos à frente de nossa desolação de poeira branca, que Casanova vinha passar o verão. Ali seduzia as criadas de quarto, aproveitava-se de aterrorizadas marquesas em caleches durante tempestades, enganava velhos e decrépitos senadores de Veneza com sua quiromancia e magia negra. Grandioso e feliz patife! Apesar de meu proclamado desprendimento, tive inveja dele. De fato, que era aquele famoso desprendimento senão uma expressão disfarçada da inveja que os sucessos e audácias de um Casanova deviam necessariamente despertar em todo espírito tímido e hesitante? Se eu vivia em esplêndido isolamento, era porque me faltava audácia para fazer guerra - até mesmo para fazer complicadas alianças. Eu estava absorto nesses agradáveis pensamentos autocondenatórios, quando o carro diminuiu de velocidade e parou diante de um enorme e imponente portão. Fábio tocou impacientemente a buzina. Houve um ruído de passos apressados, o barulho de ferrolhos puxados, e o portão abriu-se. No fim de uma curta alameda, muito grande e grave, muito casta e austera, erguia-se a casa. Era consideravelmente mais velha que a maioria das outras vilas que eu vira de relance em nossa viagem. Em sua fachada não havia frivolidade, nem grandiloqíiência Irregular. Um grande bloco de tijolos cobertos de estuque; um terraço a que se chegava por uma escada e que era encimado por um maciço frontão; uma fileira de rígidas estátuas sobre a balaustrada acima da cornija. Era corretamente, até mesmo friamente, paladiana. Fábio parou o carro diante do terraço. Descemos. No alto da escada estava uma moça com uma criança de cabelos ruivos nos braços. Era a condessa com o filho e herdeiro.
A condessa causou-me impressão muito agradável. Era magra e alta - duas ou três polegadas mais alta que o marido; com cabelos escuros puxados da testa para- trás e enrolados em um coque na nuca; olhos escuros, vagos, brilhantes e melancólicos, como os olhos de um animal dócil; uma pele castanha e transparente como âmbar escurecido. Suas maneiras eram gentis e discretas. Raramente gesticulava; nunca a ouvi erguer a voz. Falava, realmente, muito pouco. O velho conde dissera-me que sua nora era religiosa e pela aparência dela eu poderia facilmente acreditar em suas palavras. Ela olhava para a gente com a expressão calma e distante de alguém cuja vida se passa principalmente por trás dos olhos.
Fábio beijou a esposa e depois, inclinando o rosto em direção à criança, fez uma careta assustadora e rugiu como um leão. Tudo foi feito com afeição, mas a pobre criaturazinha encolheuse, aterrorizada. Fábio riu e beliscou-lhe a orelha.
- Não o atormente - disse a condessa em tom gentil. - Fará com que ele chore.
Fábio virou-se para mim.
- É nisso que dá deixar um menino ser tratado por mulheres. Ele chora por qualquer coisa. Vamos entrar - acrescentou. - Atualmente usamos apenas dois ou três aposentos do andar térreo e a cozinha no porão. Todo o resto está deserto. Não sei como aqueles sujeitos antigos conseguiam manter seus palácios. Eu não posso. - Deu de ombros. Por uma porta à direita do terraço, entramos na casa. - Esta é nossa sala de estar e sala de jantar combinadas.
Era uma bela e grande sala, nobremente proporcional - um cubo duplo, calculei eu - com portas de mármore esculpido e uma magnífica lareira ladeada por um par de ninfas em cujos ombros curvados repousava uma placa inclinada em que havia, esculpidos, brazões de armas e festões de folhagem. Ao longo das paredes corria um friso em grisalha; em uma graciosa confusão de cornucópias e panóplias, deusas reclinavam-se suntuosamente e querubins meneavam-se e voavam. A mobília era estranhamente misturada. Em roda de uma mesa de jantar do século XVI, que era uma peça de arquitetura paladiana em madeira, estavam dispostas oito cadeiras no estilo da secessão vienense de 1905. Um grande relógio de cuco em formato de chalé de Berna pendurava-se na parede entre dois armários de nogueira, com pilares e frontões para parecerem pequenos .templos e com heróicas estatuetas em buxo amarelo, colocadas em nichos entre os pilares. Havia ainda os quadros nas paredes e os cretones com que estavam cobertas as poltronas. Diplomaticamente, porém, admirei tudo, tanto novo como velho.
- E agora - disse o conde - vamos aos afrescos.
Segui-o através de uma das portas de batentes de mármore e vi-me de repente no grande hall central da vila. O conde virou-se para mim.
- Aí está! - disse, sorrindo triunfantemente com o ar de alguém que tivesse realmente conseguido tirar um coelho de um chapéu vazio. De fato, o espetáculo era suficientemente espantoso.
As paredes do enorme salão estavam inteiramente cobertas de afrescos e não havia necessidade de muito juízo crítico ou conhecimento para perceber que se tratava de genuínos veroneses. A autoria era evidente, palpável. Quem mais poderia ter pintado aqueles grupos de figuras harmoniosamente ondulantes colocadas em sua esplêndida moldura arquitetônica? Quem senão Veronese poderia ter combinado tanto esplendor com tanta frieza, tão extravagante opulência
com tão delicada suavidade?
- É grandioso! - disse eu ao conde.
Era realmente. Grandioso. Não havia outra palavra. Uma rica arcada triunfal corria ao redor de todo o salão, com quatro ou cinco arcos aparecendo em cada parede. Através dos arcos, via-se um jardim; ali, tendo como fundo ciprestes, estátuas e distantes montanhas azuis, grupos de senhoras e cavalheiros venezianos divertiam-se gravemente. Embaixo de um arco estavam tocando música; através de outro, eram vistos sentados em volta de uma mesa, bebendo à saúde recínroca em copos de vinho vermelho, enquanto um negrinho em libre verde e amarela carregava o jarro de prata. No painel seguinte estavam assistindo a uma luta entre um macaco e um gato. Na parede oposta um poeta lia seus versos ao grupo reunido e ao lado dele o próprio Veronese - o autoretrato era reconhecível - aparecia em pé ao lado de seu cavalete, pintando o retrato de uma opulenta loira em cetim cor de rosa. Aos pés do artista estava deitado seu cão; havia dois papagaios e um macaco em cima da balaustrada de mármore na distância intermediária.
Contemplei aquilo com prazer.
- Que coisa maravilhosa de se possuir! - exclamei, arrebatado pelo entusiasmo. Tenho inveja do senhor.
O conde fez uma pequena careta e riu.
- Vamos olhar os Tiepolos? - convidou.
Atravessamos um par de alegres salas pintadas por Carpioni - sátiros perseguindo ninfas em uma floresta romântica e, nas orlas de uma paisagem marinha, um rapto muito excêntrico de sereias por centauros - para entrar naquele universo brilhante, ao mesmo tempo delicado e violentamente extravagante, selvagem e sutilmente ordenado, que Tiepolo, nos últimos dias da pintura italiana, criou de maneira tão magistral e mágica. Era a história de Eros e Psique, que se desenrolava através de três grandes salas, estendendo-se até mesmo ao forros, onde, em um céu pálido manchado de nuvens brancas e douradas, as divindades apropriadas balançavam-se, mergulhando ou ascendendo através do empíreo com aquele ar de estar perfeitamente à vontade em seu elemento que, na natureza, parece pertencer apenas aos peixes e talvez a alguns insetos alados e pássaros.
Fábio vangloriara-se na minha frente de ser capaz de ficar parado olhando um quadro mais tempo que qualquer estrangeiro. Mas eu fiquei tanto tempo admirando aquelas deslumbrantes fantasias que finalmente ele perdeu a paciência.
- Eu queria mostrar-lhe a fazenda antes do almoço - disse, olhando para o relógio. Mal temos tempo para isso.
Acompanhei-o reluntantemente.
Olhamos as vacas, os cavalos, o touro premiado, os perus. Olhamos as altas e finas pilhas de feno, de formato semelhante a gigantescos charutos postos em pé. Olhamos os sacos de trigo no celeiro. Na falta de comentário melhor, disse ao conde que me faziam lembrar os sacos de trigo nos celeiros ingleses. Ele pareceu encantado.
Os edifícios da fazenda erguiam-se em volta de um imenso pátio. Havíamos explorado três lados dessa piazza. Chegamos então ao quarto, que era ocupado por um prédio comprido e baixo atravessado por arcos redondos e, como fiquei surpreendido ao ver, completamente vazio.
- Que é isto? - perguntei, quando entramos.
- Nada - respondeu o conde. - Mas um dia poderá vir a ser... chi sã?
Ficou parado por um momento em silêncio, franzindo a testa pensativamente, com a expressão de Napoleão em Santa Helena - sonhando com o futuro, lamentando as oportunidades passadas e perdidas para sempre. Seu rosto sardento, comumente brilhante com uma lâmpada, tornou-se incoerentemente sombrio. Depois, de repente, ele explodiu - vida miserável, destino maldito, bem poderia Deus permitir-lhe que fosse embora e fizesse alguma coisa em lugar de ficar perdendo seu tempo ali. Eu ouvia, fazendo de vez em quando um som vago de simpatia. Que poderia eu fazer? Depois, com grande consternação, descobri que eu podia fazer alguma, que esperavam que eu fizesse alguma coisa. Pediam-me que ajudasse o conde a vender seus afrescos. Como artista, era evidente, eu devia conhecer patronos ricos, museus, milionários. Eu vira os afrescos; poderia honestamente recomendá-los. Já existia aquele processo aperfeiçoado de transferência de afrescos para telas. As paredes poderiam ser facilmente descascadas de sua pintura, as telas enroladas e levadas para Veneza. De lá seria a coisa mais fácil do mundo contrabandeá-las para bordo de um navio e levá-las embora. Quanto ao preço - se conseguisse alcançar um milhão e meio de liras, tanto melhor; mas aceitaria um milhão, aceitaria até mesmo três quartos de milhão. E me daria dez por cento de comissão...
E depois, quando tivesse vendido seus afrescos, que iria fazer? Para começar - dizendo isso, o conde sorriu para mim triunfantemente - transformaria aquele edifício vazio em que nos encontrávamos em uma moderna fábrica de queijo. Poderia iniciar otimamente o negócio com meio milhão e, empregando mão de obra feminina barata das vizinhanças rurais, poderia ter quase certeza de obter grandes lucros imediatamente. Em uns dois anos, calculou, estaria apurando de oitenta a cem mil liras anuais com seus queijos. E depois - ah, depois! - seria independente, poderia sair dali, iria ver o mundo. Iria ao Brasil e à Argentina. Um homem empreendedor com capital sempre podia sair-se bem lá. Iria a Nova Iorque a Londres, a Berlim, a Paris. Nada havia que ele não pudesse fazer.
Enquanto isso, porém, os afrescos ainda estavam nas paredes - belos, sem dúvida (pois, lembrou-me o conde, ele adorava arte), mas f úteis; um enorme capital congelado no reboco, desperdiçando-se, completamente inútil. Ao passo que, com sua fábrica de queijo...
Vagarosamente voltamos para a casa.
Estive em Veneza novamente em setembro do ano seguinte, 1913. Imagino que lá havia naquele outono mais casais alemães em lua de mel, mais grupos de pássaros errantes de mochila nas costas do que já se vira até então em Veneza. Fosse como fosse, para mim, havia demais. Arrumei minha mala e tomei o trem para Pádua.
Inicialmente não pretendia tornar a ver o jovem Tirabassi. Não sabia, realmente, se ele ficaria contente em ver-me. Isso porque os afrescos, pelo que eu sabia, ainda estavam seguramente grudados nas paredes e a fábrica de queijo ainda estava distante no futuro, na imaginação. Eu lhe escrevera mais de uma vez, dizendo-lhe que estava fazendo o possível, mas que até o momento, etcetera, etcetera. Não que eu alguma vez tivesse tido muita esperança. Tornara claro desde o início que minhas relações com milionários eram limitadas, que não conhecia diretores de museus americanos, que não tinha a menor ligação com negociantes internacionais de quadros. Mas a fé do conde em mim permanecera, ainda assim, inabalável. Era o Mexicaninho, creio eu, que inspirava tanta confiança. Àquela altura, porém, depois de minhas cartas, depois de todo aquele período de tempo transcorrido sem nada ter sido feito, ele poderia achar que eu o abandonara, que eu o enganara de alguma maneira. Foi por isso que não dei o menor passo para procurá-lo. A sorte, porém, revogou minha decisão. No terceiro dia de minha estada em Pádua, dei com ele na rua. Ou melhor, ele deu comigo.
Eram quase seis horas e eu descera passeando até a Piazza dei Santo. Àquela hora, quando a luz oblíqua é cheia de cores e as sombras são longas e profundas, a grande igreja, com suas cúpulas, torreias e campanários, adquire mais do que nunca um aspecto fantástico e oriental. Eu dera a volta ao redor da igreja e me encontrava então parado embaixo da estátua de Donatello, olhando para o sombrio homem de bronze, o animal de passos pesados, quando de repente percebi que alguém estava parado muito perto atrás de mim. Dei um passo para o lado e virei-me. Era Fábio. Ostentando -sua famosa expressão de pároco turista, fitava a estátua, com a boca aberta em um embasbacamento estúpido que fazia lembrar um peixe.
- Eu tinha essa aparência? - perguntei.
- Precisamente. - Ele riu também. - Observei-o durante os últimos dez minutos, vagueando pela igreja. Vocês, ingleses! Realmente ...
Sacudiu a cabeça.
Subimos juntos vagarosamente a Via dei Santo, conversando enquanto caminhávamos.
- Sinto muito não ter podido fazer coisa alguma em relação aos afrescos - disse eu. Mas realmente...
Estendi-me em explicações.
- Algum dia, talvez - disse Fábio, ainda otimista.
- E como está a condessa?
- Oh, está muito bem - respondeu Fábio - considerando-se as circunstâncias. Ela teve outro filho três ou quatro meses depois que vopê foi visitar-nos, sabe?
- Não diga?
- Agora está esperando outro.
Achei que Fábio falava com tristeza. Mais do que nunca, admirei a sagacidade do velho conde. Mas lamentei, por causa de seu filho, que ele não tivesse tido um campo mais amplo em que exercer seus talentos.
- E seu pai? - perguntei. - Vamos encontrá-lo sentado no Pedrochi, como de hábito?
Fábio riu.
- Não - disse ele significativamente, - Ele voou.
- Voou?
- Partiu, sumiu, desapareceu.
- Mas para onde?
- Quem sabe? - disse Fábio. Meu pai é como as andorinhas. Chega e parte. Todo ano... Mas a migração não é regular. Às vezes ele se vai embora na primavera; às vezes, no outono, outras vezes, no verão,.. Uma bela manhã seu criado entra no quarto para chamá-lo e ele não está lá. Sumiu. Poderia estar morto. Oh, mas não está. - Fábio riu. - Dois ou três meses depois, ele chega de novo, como se estivesse voltando de um passeio aos Jardins Botânicos. "Boa tarde. Boa tarde".
- Fábio imitou a voz e os gestos do velho conde, cheirando o ar como um cavalo de batalha, torcendo as pontas de um imaginário bigode. - "Como está sua mãe? Como estão as meninas? Como foram as uvas este ano?" - Fungou várias vezes. - "Como está Lúcio? E quem deixou todo este lixo aqui no meu estúdio?"
Fábio soltou um rugido indignado que fez todos os ociosos da Via Roma virarem-se, espantados, em nossa direção.
- E onde vai ele? - perguntei.
- Ninguém sabe. Minha mãe costumava perguntar antigamente. Mas logo desistiu. Não adiantava. "Onde você esteve, Ascânio?" "Minha querida, acho que a colheita de azeitonas vai ser muito ruim este ano." Fungava. E quando ela insistia, ele tinha um acesso de fúria e batia as portas... Que me diz de um aperitivo?
As portas abertas do Pedrochi convidavam. Entramos, escolhemos uma mesa retirada e sentamo-nos.
- Mas que acha que o velho cavalheiro faz quando está fora?
- Ah!
Fazendo o gesto ricamente significativo que eu tanto admirara no pai, ó jovem conde colocou o dedo sobre o nariz e vagarosamente, solenemente, piscou o olho esquerdo.
- Você quer dizer...? Fábio acenou afirmativamente.
- Há uma viuvinha aqui em Pádua. - Com o dedo estendido o jovem conde descreveu no ar uma linha ondulante. - Bonita e gordinha. Olhos pretos. Notei que ela em geral parece estar fora da cidade exatamente na época em que o velho faz suas migrações. Mas pode ser mera coincidência, naturalmente.
O garçom trouxe nosso vermute. Pensativamente, o jovem provou sua bebida. A alegria desapareceu de sua fisionomia.
- E enquanto isso - prosseguiu vagarosamente, com voz alterada - eu fico aqui, cuidando da fazenda, para que o velho possa ir correr mundo com sua pombinha... Ia sua colombella. (A expressão pareceu-me particularmente primorosa). - Oh, é engraçado, não há dúvida - continuou o jovem conde. - Mas não é direito. Se eu não fosse casado, daria o fora e tentaria minha sorte em outro lugar. Deixaria que ele cuidasse de tudo sozinho. Mas com esposa e dois filhos - logo três filhos - como posso assumir o risco? Seja como for, há muito o que comer enquanto eu ficar aqui. Minha única esperança - acrescentou depois de pequena pausa - está nos afrescos.
Isso dava a entender, refleti eu, que sua única esperança estava em mim. Senti pena dele.
Na primavera de 1914, mandei dois americanos ricos olharem a vila de Fábio. Nenhum deles fez oferta para a compra dos afrescos. Eu teria ficado espantado se fizessem. Mas Fábio sentiu-se grandemente encorajado com sua visita. "Acho", escreveu-me ele, "que foi feito um começo. Esses americanos voltarão a seu país e contarão a seus amigos. Logo haverá uma procissão de milionários vindo ver os afrescos. Enquanto isso, a vida continua como sempre. Pior até, se é possível. Nossa filhinha, que batizamos com o nome de Emília, nasceu no mês passado. Minha esposa passou muito mal e ainda está longe de sentir-se bem, o que é muito aborrecido." (Parecia curioso o emprego desse adjetivo, naquelas circunstâncias. Mas partindo de Fábio, eu compreendia; ele era uma daquelas pessoas extraordinariamente sadias para as quais toda espécie de doença é misteriosa, inexplicável e, acima de tudo, aborrecida e irritante). "Anteontem meu pai desapareceu de novo. Ainda não tive tempo de verificar se a Colombella também sumiu. Meu irmão, Lúcio, conseguiu arrancar dele uma bicicleta motorizada, o que é mais do que eu até hoje consegui. Mas eu nunca fui capaz de ficar rastejando diplomaticamente em roda de uma coisa, como ele é capaz de fazer... Tenho estudado com muito cuidado o negócio da fábrica de queijo nos últimos tempos e estou em dúvida se não seria mais lucrativo instalar em seu lugar um estabelecimento de tecelagem de seda. Quando você vier aqui de novo, explicar-lhe-ei pormenorizadamente."
Transcorreu, porém, muito tempo antes que eu visse de novo Pádua e o conde... A guerra pôs termo a minhas visitas anuais à Itália e, por várias razões, mesmo depois de terminada ela, eu não pude ir novamente para o sul tão logo quanto gostaria de ter ido. Não embarquei novamente no expresso de Veneza senão no outono de 1921.
Encontrei-me então em uma Itália não de todo familiar - uma Itália cheia de violência e derramamento de sangue. Os fascistas e os comunistas ainda lutavam renhidamente. Roncando à frente das tempestades de poeira que levantavam, os caminhões, carregados de meninos cantando, corriam através do país à procura de aventura e de bolchevismo oculto. A gente ficava respeitosamente na sarjeta enquanto eles passavam; e através da poeira que voava, através do barulho do motor, voltava um pedaço daquela canção: "Giovinezza, giovinezza, primavera di bellezza..." (Juventude, juventude, primavera de beleza). Onde senão na Itália poderiam tais palavras ter sido postas em uma canção política? E depois as proclamações, os manifestos, as denúncias, os apelos!
Todo tapume e toda parede em branco estavam cobertos por eles.
Entre a estação e o Pedrochi, atravessei toda uma biblioteca dessas coisas. "Cidadãos!", começavam eles. "Um vento heróico está hoje revivendo a quase asfixiada alma de nossa infeliz Itália, dominada pelas venenosas emanações do bolchevismo e rolando em gnóbil degradação aos pés das Nações." E terminavam, em sua maioria, com referências a Dante. Eu lia todos eles com infinito trazer.
Finalmente cheguei ao Pedrochi. No terraço, sentado no mesmo canto onde eu o vira pela primeira vez, anos antes, estava o velho conde. Fitou-me com olhos vazios de expressão quando o cumprimentei, sem reconhecer-me. Comecei a explicar quem era eu. Depois de um momento, interrompeu-me, quase com impaciência, protestando que já se lembrava, perfeitamente bem. Duvidei muito de que realmente se lembrasse. Mas ele era orgulhoso demais ara confessar que se esquecera. Enquanto isso, convidou-me a sentar à sua mesa.
À primeira vista, de longe, imaginei que o velho conde não envelhecera um dia desde a última vez que o vira. Mas estava enganado. Da rua, eu vira apenas a atrevida inclinação de seu chapéu, seu eriçado bigode e cavanhaque brancos, os joelhos separados, a nobre protuberância da barriga. Contudo, depois que pude olhá-lo de perto e sossegadamente, vi que era de fato um homem muito diferente. Sob o chapéu inclinado, o rosto era de um vermelho doentio; a pele caía formando papadas. No branco dos olhos, descoloridos e como que embaçados pela idade, as pequenas veias rompidas mostravam-se vermelhas. E, sem brilho, os próprios olhos pareciam olhar sem interesse pelo que viam. Os ombros estavam curvados como se carregassem um peso e, quando ele ergueu a xícara para levá-la aos lábios, a mão tremeu tanto que uma gota de café caiu sobre a mesa. Era então um homem velho, e cansado.
- Como está Fábio? - perguntei. Desde 1916, eu não tivera notícias dele.
- Oh, Fábio está bem - respondeu o velho conde. - Fábio está muito bem. Tem seis filhos agora, sabe?
O velho cavalheiro acenou a cabeça e sorriu para mim sem um traço de malícia. Parecia terse esquecido completamente das razões pelas quais se dera a tanto trabalho para escolher como nora uma boa católica.
- Seis - repetiu ele. - E depois - sabe? - ele se comportou muito bem na guerra. Nós, Tirabassi, sempre fomos guerreiros.
Cheio de orgulho, passou a contar-me as proezas e os sofrimentos de Fábio. Ferido duas vezes, promoção especial no campo de batalha, condecorações esplêndidas. Já era major.
- E seus deveres militares ainda o conservam em Pádua?
O velho cavalheiro concordou com a cabeça e, de repente, apareceu em seu rosto algo semelhante ao velho sorriso.
- Numa pequena combinazione minha - disse ele, rindo baixinho.
- E a fazenda? - perguntei.
Oh, estava indo muito bem, considerando-se tudo quanto acontecera. Ficara bastante desorganizada durante a guerra, com Fábio na frente de batalha. Depois, tinha havido muita complicação com os camponeses. Mas Fábio e seus fascistas estavam corrigindo isso tudo.
- Com Fábio lá - disse o velho cavalheiro - eu não tenho preocupações.
Depois começou a contar-me de novo tudo a respeito das proezas de Fábio na guerra.
No dia seguinte, tomei o bonde para Strà e, depois de passar uma hora agradável na vila e no parque, segui a pé sossegadamente para Dolo. Levei muito tempo para chegar lá, pois nessa época eu era capaz de parar e olhar por tanto tempo quanto quisesse todas as coisas encantadoras do caminho. Casanova parecia então muito menos invejável, observei eu, olhando para dentro de mim mesmo, do que quando passara por aquele caminho pela última vez. Eu estava nove anos mais velho.
Os portões estavam abertos. Entrei. Lá estava a casa, grave e pesada como sempre, mas mais estragada do que quando a vira pela última vez. As -venezianas precisavam de pintura e em alguns lugares o estuque estava descascando. Aproximei-me. De dentro da casa veio o som alegre de risos e gritos de crianças. Supus que a família estivesse brincando de esconde-esconde, de trens ou talvez de algum jogo local de fascistas e comunistas. Quando subi a escada do terraço, pude ouvir o som de pequenos pés correndo sobre pisos ladrilhados. Nas salas vazias passos e gritos ecoavam estranhamente. Depois, de repente, da sala de estar à direita, veio o som da voz de Fábio, gritando furiosamente!
- Oh, pelo amor de Deus! - gritou ele. - Faça essas malditas crianças ficarem quietas.
- Em seguida, irritadamente, queixou-se: - Como espera que eu faça as contas com esse barulho?
Fez-se imediatamente profundo e por assim dizer antinatural silêncio. Depois o som de passos na ponta dos pés afastando-se, alguns sussurros e uma risadinha nervosa. Toquei a campainha.
Foi a condessa quem abriu a porta. Ficou parada por um momento, hesitante, sem saber quem era eu. Depois, lembrou-se, sorriu e estendeu a mão. Notei que estava muito magra e, com o definhamento do rosto, os olhos pareciam ter-se tornado maiores. A expressão era gentil e serena como sempre. Parecia estar olhando para mim à distância.
- Fábio ficará encantado em vê-lo - disse, levando-me pela porta à direita do terraço diretamente para a sala de estar. Fábio estava sentado à mesa paladiana à frente de uma pilha de papéis, mordendo a ponta do lápis.
Mesmo em seu uniforme de serviço verde-cinza, o jovem conde parecia maravilhosamente brilhante, como um soldado no palco. O rosto era ainda infantilmente sardento, mas a pele estava profundamente enrugada. Parecia muito mais velho do que quando eu o vira pela última vez mais velho do que era realmente. A alegria aberta, a luminosidade, o brilho parecido com lâmpada haviam desaparecido. No rosto tinha uma expressão ridiculamente inadequada de crónica melancolia. Ficou radiante, é verdade, por um momento quando eu apareci. Penso que ficou0 genuinamente alegre em ver-rne.
- Caspita! - repetia ele. - Caspita! (Era sua expressão favorita de espanto, uma palavra estranha e antiquada). - Quem poderia pensar? Depois de tanto tempo!
- E de toda a eternidade da guerra também - disse eu. Todavia, quando declinou a primeira ebulição de surpresa e prazer, a expressão de melancolia voltou.
- Deixa-me deprimidoA disse ele - vê-lo de novo, ainda viajando, livre para ir aonde quiser. Se soubesse como foi a vida aqui...
- Bem, em qualquer caso - disse eu, achando que devia, pelo bem do conde, apresentar alguma espécie de protesto - em qualquer caso a guerra acabou e vocês escaparam de uma verdadeira revolução. Já é alguma, coisa.
- Oh, você é tão ruim quanto Laura - disse o conde impacientemente. Olhou para a esposa, como se esperasse que ela dissesse alguma coisa. Mas a condessa continuou com sua costura, sem mesmo erguer os olhos. O conde tomou-me pelo braço.
- Vamos - disse ele, em tom que era quase de cólera. Vamos dar uma volta lá fora.
A religiosa resignação da esposa, a paciência dela, a serenidade dela encolerizavam-no, pude eu ver, como uma repreensão - tácita, sem dúvida, e dada sem intenção, mas nem por isso menos mortificante.
Ao longo das alamedas onde crescia o mato, no que fora o jardim antigamente, nos velhos dias de esplendor, caminhamos vagarosamente em direção à fazenda. Alguns buchos irregulares cresciam nas beiradas dos caminhos, onde outrora havia sebes bem cuidadas. Em cima de um tanque seco um tritão soprava sua concha sem água. No fim da vista um par de raptos - Plutão e Preserpina, Apoio e Dafne - contorcia-se desesperadamente contra o céu.
- Vi seu pai ontem - disse eu. - Parece envelhecido.
- E deve mesmo estar - disse Fábio venenosamente. - Tem sessenta e nove anos.
Senti incômodamente que o assunto se tornara sério demais para conversa leviana. Eu quisera perguntar a respeito da Colombella. Nas circunstâncias, decidi que seria mais prudente nada dizer sobre ela. Contive minha curiosidade. Caminhávamos então ao lado dos edifícios da fazenda.
- As vacas parecem muito sadias - disse eu cortesmente, olhando por uma porta aberta. Na penumbra que havia dentro, seis traseiros cinzentos cobertos de estrume seco apresentavam-se em fila; seus compridos rabos de couro balançavam-se impacientemente de um lado para outro. Fábio não fez comentário. Apenas resmungou.
- Em todo caso - disse ele vagarosamente, depois de outro silêncio - ele não poderá viver muito mais tempo. Venderei minha parte e irei para a America do Sul, com família ou sem família.
Era uma ameaça contra seu próprio destino, uma ameaça cuja futilidade ele devia conhecer. Estava enganando a si próprio para conservar o ânimo.
- Mas - exclamei, aproveitando outra e melhor oportunidade para mudar de assunto vejo que você afinal de contas iniciou uma fábrica aqui.
Havíamos dado a volta pelo lado mais distante da praça. Através das janelas do comprido e baixo edifício que, em minha última visita, estava vazio, avistei as complicadas formas de máquinas, fileiras delas em uma linha dupla ao longo de toda a extensão do prédio.
- Teares? Então decidiu contra o queijo? E os afrescos?
Virei-me interrogativamente para o conde. Estava com um medo horrível de encontrar, quando voltássemos para a casa, o grande hall despojado de seus Veroneses e uma parede branca de reboco onde antes estava a história de Eros e Psique.
- Oh, os afrescos ainda estão lá, o que resta deles. - Apesar da expressão triste de Fábio, fiquei encantado com a notícia. - Convenci meu pai a vender alguns de seus imóveis em Pádua e iniciamos este negócio de tecelagem há dois anos. Bem no tempo - acrescentou Fábio - da revolução comunista.
Pobre Fábio, não tivera sorte. Os camponeses lhe haviam tomado a sua fábrica e tentado apossar-se da terra. Durante três semanas vivera na vila em estado de sítio, defendendo o lugar, com vinte fascistas a ajudá-lo, contra todos os camponeses da região. O perigo havia passado, mas as máquinas estavam quebradas e, em qualquer caso, estava fora de cogitação fazer com que funcionassem de novo. Os ânimos ainda estavam muito exaltados. O que tornava tudo ainda pior para Fábio era o fato de o irmão Lúcio, que também tomara um pouco de capital do velho, ter partido para a Bulgária e investido o dinheiro em uma fabrica de cordões de sapato. Era a única fábrica de cordões de sapato no país e Lúcio estava ganhando dinheiro como água. Era livre como o ar, abastado, com uma encantadora moça turca como amante. Para Fábio, a moça turca era evidentemente a última gota d'água.
- Una turca, una vera turca - repetia ele, sacudindo a cabeça. A infiel simbolizava a seus olhos tudo quanto era exótico, irregular, não doméstico; tudo o que não era a família; tudo o que era distante de Pádua e da fazenda.
- E eram máquinas tão bonitas - disse Fábio, parando por um momento para olhar pela última da comprida fileira de janelas. Vendê-las ou esperar até que tudo isto haja passado, consertálas então e tentar começar de novo... não sei. - Encolheu os ombros desesperançado. - Ou apenas deixar que as coisas corram até o velho morrer.
Viramos no canto da praça e começamos a caminhar de volta para a casa.
- Às vezes - acrescentou, depois de um silêncio - não acredito que ele chegue a morrer.
As crianças brincavam no grande hall dos veroneses. As majestosas portas duplas que davam para o terraço estavam entreabertas. Pela fresta, nós as vimos por um momento sem sermos vistos. A família estava disposta em ordem de batalha. Um menino ruivo de dez ou onze anos ocupava a vanguarda, seguido por um menino trigueiro. Vinham depois três meninas, cujo tamanho diminuía gradualmente como pérolas graduadas; e, finalmente, um toquinho de gente em macacão de linho azul. Todos os seis carregavam bambus nos ombros e cantavam em dissonante uníssono ao som de uma espécie de toque de clarim de três notas: "All'armi i Fascisti; a morte i comunísti; a basso i socialisti" - vezes e vezes sem parar. E enquanto cantavam, marchavam dando voltas e voltas, seriamente, incansavelmente. O enorme aposento vazio ecoava como uma piscina. Distantes embaixo de seus arcos triunfais, em seu sereno mundo de fantástica beleza, as sedosas damas e cavalheiros tocavam sua música e bebiam seu vinho; o poeta declamava, o pintor descansava seu pincel diante da tela; os macacos trepavam entre as ruínas romanas, os papagaios cochilavam sobre as balaustradas. "Allfarmi i fascisti, a morte i comunisti..." Eu gostaria de ter ficado ali parado em silêncio, simplesmente para ver por quanto tempo as crianças continuariam sua patriótica marcha. Fábio, porém, nada tinha de minha curiosidade científica; ou, se havia tido, ela certamente se esgotara muito tempo antes de haver nascido o último dos filhos. Depois de permitir que eu visse o espetáculo por um momento, abriu a porta e entrou. As crianças correram os olhos em roda e fizeram silêncio imediatamente. Com o mau humor dele e sua teoria de educação por atormentação, elas pareciam estar completamente atemorizadas pelo pai.
- Continuem - disse ele. - Continuem.
Elas, porém, não continuaram. Evidentemente, não podiam fazê-lo em sua aterrorizadora presença. Discretamente se retiraram.
Fábio fêz-me dar a volta pela sala pintada.
- Olhe aqui - disse ele - e olhe aqui.
Em uma das paredes do grande hall havia meia dúzia de orifícios de balas. Uma lasca fora arrancada de uma das cornijas pintadas; uma dama estava horrivelmente ferida no rosto; havia dois ou três buracos na paisagem e a cauda de um macaco estava cortada.
- Foram nossos amigos, os camponeses - explicou Fábio. Nas salas de Carpione tudo ainda estava bem. Os sátiros ainda perseguiam suas ninfas. Na sala dos centauros e sereias, os homens que eram meio cavalos ainda entravam no mar galopando tumultuosamente como sempre, para raptar as mulheres que eram meio peixes. Mas a história de Eros e Psique sofrerá tremendamente. O delicado painel em que Tiepolo pintara Psique erguendo a lâmpada para olhar seu misterioso amante não era mais que uma fraca mancha embolorada. E onde antes o jovem e indignado deus voava para o alto a fim de reunir-se a seus parentes olímpicos (que felizmente ainda nadavam mais ou menos intatos entre as nuvens do forro) não havia senão o mais pálido fantasma de um Cupido em ascensão, enquanto Psique chorando na terra embaixo era absolutamente invisível.
- Isso foram nossos amigos, os franceses - disse Fábio. - Ficaram aquartelados aqui em
1918 e não se davam ao trabalho de fechar as janelas quando chovia.
Pobre Fábio! Tudo era contra ele. Não havia consolo a oferecer. Naquele outono, mandeilhe um crítico de arte e mais três americanos. Nada resultou, porém, dessas visitas. A verdade é que ele tinha coisas demais a oferecer. Um quadro... seria muito fácil talvez dispor disso. Mas que poderia alguém fazer com toda uma casa de pinturas como aquela?
Passaram-se os meses. Mais ou menos na Páscoa do ano seguinte, recebi outra carta de Fábio. A colheita de olivas fora ruim. A condessa estava esperando outro bebé e não passava bem. Os dois filhos mais velhos estavam de cama com sarampo e o penúltimo tinha o que os italianos chamam de "tosse asinina7'. Acreditava que todas as crianças apanhariam as duas doenças no devido tempo. Duvidava muito que valesse a pena restaurar seus teares. A situação do comércio de seda não era tão sólida quanto fora no fim de 1919. Se tivesse ficado firme com o queijo, como pretendia de início! Lúcio acabava de ganhar cinquenta mil liras em uma afortunada especulação. Mas a infiel fugira com um romeno. O velho conde estava envelhecendo rapidamente; quando Fábio o vira pela última vez, ele contara as mesmas anedotas três vezes no espaço de dez minutos. Com essas duas boas notícias - imagino que para ele eram os únicos pontos brilhantes na escuridão circundante Fábio encerrava sua carta. Fiquei pensando por que se dera ao trabalho de escrever-me. Talvez fosse porque sentia certa lacerante satisfação em enumerar assim suas dificuldades.
Naquele mês de agosto havia um festival em Salzburgo. Eu nunca estivera na Áustria e a ocasião me parecia boa. Fui e diverti-me prodigiosamente. Salzburgo atualmente está em pleno movimento. Há igrejas barrocas em abundância; há fontes italianas; há jardins e palácios que imitam, em sua maneira teutônica extravagantemente pesada, os jardins e palácios de Roma. E, o mais primoroso de todos os tesouros, há um túnel, de doze metros de altura, aberto através de um precipitoso rochedo - um túnel como só um príncipe bispo do século XVII poderia ter sonhado, tendo em cada extremidade um arco do triunfo, com pilastras, frontões quebrados, estátuas, escudos, tudo esculpido na rocha viva - uma obra-prima entre os túneis e o mais divertido de todos os aspectos numa cidade onde tudo, sem ser realmente bom, é requintada-mente "divertido". Ah, decididamente, Salzburgo está em movimento.
Certa tarde tomei o funicular e subi até o castelo. Sob as muralhas da fortaleza há uma cervejaria com um terraço de onde se tem uma vista que ocupa lugar de destaque no Baedeker. Abaixo dele, de um lado, fica a cidade, espalhada no vale curvo, atravessada por um rio, como uma pequena versão germânica de Florença. Do outro lado do terraço, avista-se um panorama que não tem pretensão de italianismo; é suave e romanticamente alemão como uma ária saída de "Freischutz" de Weber. Há montanhas no horizonte, pontiagudas e azuis como as montanhas de um livro de gravuras; e, no primeiro plano, avançando até o sopé do extraordinário penhasco sobre o qual estão pendurados o castelo e a cervejaria, estende-se uma planície lisa e verde - quilómetros e quilómetros de suculentas campinas salpicadas de minúsculas vacas, tendo aqui e acolá uma bem arrumada fazenda de brinquedo ou, mais raramente, um amontoado de casas de bonecas, com um campanário subindo brilhante do meio delas.
Eu estava sentando com minha cerveja loira diante dessa paisagem deliciosa e ligeiramente cómica, confortàvelmente sem pensar em nada de particular, quando ouvi atrás de mim uma voz entusiástica exclamar: "Bello, bello!" Olhei com curiosidade para trás - pois me pareceu um pouco surpreendente ouvir alguém falando italiano ali - e vi uma daquelas suntuosas e belas mulheres que no Sul tanto admiram. Era uma bella grassa, gorda ao ponto de parecer quase madura demais e perigosamente perto da meia idade; mas, à sua maneira, ainda excessivamente bela. Seu rosto tinha as proporções de um iceberg: um quinto acima d'água e quatro quintos abaixo. Amplo e florido dos olhos para baixo, era quase desprovido de testa; os cabelos começavam imediatamente acima das sobrancelhas. Os olhos eram escuros, grandes e, pelo menos para meu gosto, um pouco ternos demais em sua expressão. Avaliei-a em um momento e estava para desviar de novo os olhos quando seu companheiro, que estivera olhando a vista do outro lado, virou-se. Era o velho conde.
Creio que fiquei mais embaraçado que ele. Senti-me enrubescer quando nossos olhos se encontraram, como se fosse eu que estivesse viajando pelo mundo com uma Colombella e ele que me tivesse surpreendido em flagrante. Eu não sabia o que fazer - se sorria e falava com ele, se me virava como se não o tivesse reconhecido ou se acenava à distância e depois, discretamente, desaparecia. Mas o velho conde pôs termo a minha irresolução gritando espantado meu nome, correndo em minha direção e agarrando-me a mão. Que prazer encontrar um velho amigo! Principalmente ali! Naquela terra abandonada por Deus... embora tudo fosse bem barato, não achava eu? Queria apresentar-me a uma encantadora compatriota sua, uma dama italiana que ficara conhecendo no dia anterior no trem de Viena.
Fui apresentado à Colombella e todos nós nos sentamos à minha mesa. Falando resolutamente em italiano, o conde pediu mais duas cervejas. Conversamos. Ou melhor, o conde falou, pois a conversa foi um monólogo. Contou-nos anedotas da Itália de cinquenta anos atrás; feznos imitações de personagens curiosas que conhecera; chegou mesmo, em certo momento, a imitar o zurro de um asno - esqueço-me em que contexto; mas o zurro permanece vividamente em minha memória. Cheirando o ar entre cada sentença, deu-nos suas opiniões sobre as mulheres. A Colombella gritava protestos indignados, desmanchava-se, em risadas. O velho conde torcia o bigode, piscando para ela através da rede de suas rugas. De vez em quando se voltava em minha direção e dava-me uma pequena piscadela.
Eu ouvia espantado. Era esse o homem que contava a mesma anedota três vezes em dez minutos? Olhei para o velho conde. Estava debruçado sobre a Colombella segredando em seu ouvido algo que a fez rir tanto a ponto de precisar enxugar as lágrimas dos olhos. Desviando os olhos dela, encontrou meu olhar; sorrindo, encolheu os ombros, como se dissesse: "Estas mulheres! Como são imbecis, mas como são deliciosas, como são indispensáveis!" Era esse o velho cansado que eu vira um ano antes sentado no terraço do Pedrochi? Parecia incrível.
- Bem, adeus, a rivederci.
Precisavam descer de novo para a cidade. O funicular estava esperando.
- Estou encantado em tê-lo visto - disse o velho conde, sacudindo-me afetuosamente a mão.
- Eu também - afirmei. - Particularmente encantado por vê-lo passando tão bem.
- Sim. Agora estou maravilhosamente bem - disse ele, estufando o peito.
- E jovem - continuei eu. - Mais jovem que eu! Como conseguiu isso?
- Ah! - fez o conde, inclinando a cabeça para um lado misteriosamente.
Mais em tom de brincadeira que a sério, eu disse: - Creio que foi ver Steinach em Viena. Fazer uma operação de rejuvenescimento.
Como única resposta, o velho conde levantou o indicador da mão direita, levando-o primeiro aos lábios e depois até o lado do nariz, piscando ao fazer isso. Depois, fechando o punho e com o polegar projetando-se rigidamente para cima, fez um gesto complicado que, para um italiano, disso estou certo, estaria cheio de profunda e vital significação. Para mim, porém, pouco familiarizado com a linguagem dos sinais, a significação exata não era inteiramente clara. Mas o conde não ofereceu explicação verbal. Ainda sem proferir palavra, ergueu o chapéu. Depois, levou mais uma vez o dedo aos lábios, virou-se e desceu correndo com espantosa agilidade o íngreme caminho que chegava até o pequeno carro do funicular, no qual a Colombella já ocupara seu lugar.
PARA HUBERT LAPELL AQUELE PRIMEIRO CASO DE AMOR ERA extremamente importante. "Importante" era a palavra que ele próprio havia empregado quando escrevera a esse respeito em seu diário. Era um acontecimento em sua vida, um verdadeiro acontecimento para variar. Sentia que ele assinalava um genuíno ponto crítico em seu desenvolvimento espiritual.
"Voltaire", escreveu ele em seu diário - e o escreveu pela segunda vez em uma de suas cartas a Minnie - "Voltaire disse que a gente morre duas vezes: uma vez com a morte de todo o corpo e outra vez antes, com a morte da capacidade de amar. E, da mesma maneira, a gente nasce duas vezes, a segunda vez sendo a ocasião em que a gente começa a amar. A gente nasce então em um novo mundo... um mundo de sentimentos mais intensos, de valores mais elevados, de percepções mais penetrantes". E assim por diante.
Na realidade, Hubert achava este novo mundo um pouco decepcionante. Os sentimentos mais intensos mostravam-se bastante brandos; de maneira nenhuma correspondiam aos padrões literários.
I TELL THEE I AM MAD IN CRESSID'S LOVE. THOU ANSWER'ST: SHE IS F AIR;
POUR'ST IN THE OPEN ULCER OF MY HEART
HER EYS, HER HAIR, HER CHEEK, HER GAIT, HER VOICE...(*)
(*) Digo-te que estou louco / De amor por Cressid. Tu me respondes; ela é formosa; / Derramas na úlcera aberta do meu coração / Seus olhos, seus cabelos, sua face, seu andar, sua voz. . . (N. do T.)
Não, certamente não era bem isso. Em seu diário, em suas cartas a Minnie, havia pintado, é verdade, uma série de brilhantes e românticas paisagens do novo mundo. Mas eram paisagens imaginárias compostas à maneira de Salvator Rosa - mais ricas, mais selvagens, mais pitorescamente claro-escuras que a realidade. Hubert aproveitava com avidez a menor veleidade de infelicidade, um desejo físico, um anseio espiritual, para, em suas cartas e diários, transformá-la em algo substancialmente romântico. Havia ocasiões, geralmente muito tarde da noite, em que conseguia convencer-se de que era realmente o mais selvagem, o mais infeliz, o mais apaixonado dos amantes. Durante o dia, porém, cuidava de sua vida, alimentando uma espécie de ressentimento contra o amor. O negócio era até certo ponto uma fraude; sim, realmente, decidiu, uma verdadeira fraude. Além do mais, achava que não era importante.
Para Minnie, porém, o amor absolutamente não era uma fraude. Quase desde o primeiro momento, ela o adorou. Um amigo levara-o a uma das reuniões que ela promovia nas noites de quarta-feira. "Este é o Sr. Lapell; mas é moço demais para ser chamado por outro nome além de Hubert." Assim é que ele fora apresentado. E, rindo, ela segurara-lhe a mão e o chamara de Hubert imediatamente. Ele também havia rido, nervosamente. "Meu nome é Minnie", disse ela. Mas ele estava acanhado demais para chamá-la por qualquer nome naquela noite. Sua cabeleira castanha era basta e desgrenhada como a de um menino, e seus olhos cinzentos tímidos nunca olhavam para a gente senão de relance, desviando-se quase imediatamente, como se tivessem medo. Rapidamente ele olhava para a gente, com ansiedade - depois desviava novamente o olhar. Sua voz musical, com suas ênfases repentinas, suas rápidas modulações de alto para baixo, parecia sempre dirigir-se a um fantasma flutuando um pouco do lado da pessoa com quem ele falava. Acima das sobrancelhas havia uma testa belamente arqueada, com uma pensativa ruga subindo entre os olhos. Em repouso, sua boca de lábios cheios espichava-se um pouco, como se ele estivesse expressando um descontentamento crónico pelo mundo. Naturalmente, pensou Minnie, o mundo não era suficientemente belo para o idealismo dele.
- Mas afinal de contas - dissera ele seriamente naquela primeira noite - a gente tem o mundo do pensamento para viver. Esse, de qualquer maneira, é simples, claro e belo. A gente sempre pode viver longe da brutal barafunda.
Do fundo da poltrona em que estava sentada, frágil, cansada e quase inconvenientemente elegante naquele ambiente "artístico", Helen Glamber soltara sua clara risadinha.
- Penso, pelo contrário - dissera ela (Minnie lembrava-se de todos os incidentes daquela primeira noite) - penso que a gente deve correr por aí e conhecer milhares de pessoas, comer e beber enormemente, fazer o amor incessantemente, gritar, rir e bater na cabeça dos outros.
Tendo dado vazão a esses sentimentos rebelaisianos, a Sra. Glamber afundara-se de novo na poltrona, com um suspiro de cansaço, cobrindo os olhos com uma mão fina e branca. Ela estava com uma lancinante dor de cabeça e a luz fazia-lhe mal.
- Que coisa! - protestara Minnie, rindo. Teria ficado bastante chocada se alguma outra pessoa tivesse dito aquilo. Mas Helen Glamber tinha o direito de dizer qualquer coisa.
Hubert reafirmou seu quietismo. Elegante, exausta, infinitamente frágil, a Sra. Glamber permanecera no fundo de sua poltrona, ouvindo. Ou talvez, sob a mão protetora, estivesse tentando dormir.
Ela o adorara à primeira vista. Agora que olhava para trás podia ver que fora à primeira vista. Adorara-o protetoramente, maternalmente - pois ele tinha apenas vinte anos e era muito jovem, apesar da ruga entre as sobrancelhas, das palavras compridas -e do recém-descoberto conhecimento de universitário. Apenas vinte anos e ela tinha quase vinte e nove, Ela também se tomara de amores pela beleza dele. Ah, apaixonadamente.
Hubert, percebendo isso mais tarde, ficara surpreendido e excessivamente lisongeado. Nunca antes lhe acontecera tal coisa. Gostava de ser adorado e, como Minnie passara a amá-lo tão violentamente, parecia a coisa mais natural do mundo que ele também amasse Minnie. Na verdade, se ela não tivesse começado a adorá-lo, nunca teria ocorrido a Hubert cair de amores por ela. Em seu primeiro encontro, ele a achara sem dúvida muito linda, mas não particularmente atraente. Depois, a manifesta expressão da adoração dela fizera com que a achasse mais interessante e por fim ele se apaixonara também. Talvez, porém, não fosse de admirar que tivesse achado o processo um pouco decepcionante,
No entanto, refletia naquelas ocasiões secretas em que se via obrigado a admitir que algo estava errado em sua paixão, o amor sem posse nunca podia, evidentemente, pela própria natureza das coisas, ser o artigo genuíno. Em seu diário, registrou argutamente aquelas duas quadras de John Donne:
SÓ MUST PURÉ LOVERS' SOULS DESGEND
TO AFFECTIONS AND TO FACULTIES,
WHICH SENSE MAY REACH AND APREHEND,
ELSE A GREAT PRINCE IN PRISON LIES.
TO OUR BODIES TURN WE THEN, THAT SÓ
WEAK MEN ON LOVE REVEALED MAY LOOK;
LOVFS MYSTERIES IN SOULS DO GROW,
BUT YET THE BODY IS HIS BOOK.(")
(*) N.T. - Assim as almas puras dos amantes precisam descer
A afeições e a faculdades Que o sentido possa alcançar e apreender,
Senão um grande príncipe fica na prisão.
Para nossos corpos nos voltamos então, a fim de que Homens fracos possam olhar o amor revelado;
Os mistérios do amor crescem nas almas, Mas o corpo é o seu livro.
No encontro seguinte, recitara-as para Minnie. A conversa que se seguiu, constituída como era de filosofia e confidencias pessoais, foi primorosa. Hubert achou que realmente correspondera aos padrões literários.
Na manhã seguinte Minnie telefonou à sua amiga Helen Glamber e perguntou-lhe se podia ir tomar chá com ela naquela tarde. Precisava conversar com ela sobre várias coisas. A Sra. Glamber suspirou ao pendurar o fone.
- Minnie vem tomar chá aqui - gritou ela, virando-se para a porta aberta.
Do outro lado do corredor veio a voz do marido.
- Santo Deus! - disse ele em tom de distante horror, de distraída resignação. Isso porque John Glamber estava enterrado em seu trabalho e só um pouco dele restava, por assim dizer, acima da superfície para reagir à má notícia.
Helen Glamber suspirou de novo e, acomodando-se mais confortàvelmente entre suas almofadas, estendeu a mão para seu livro. Conhecia aquela voz distante e sabia o que significava. Significava que ele não responderia se ela continuasse a conversa; só diria "num" e "é". E se ela insistisse depois disso, significava que ele diria queixosamente, angustiosamente: "Querida, você precisa deixar que eu faça meu trabalho." E naquele momento ela gostaria tanto de conversar um pouco. Em lugar disso pôs-se a ler a partir do ponto onde havia parado para atender ao telefonema de Minnie.
"A essa altura as chamas haviam envolvido o gineceu. Dezenove vezes o heróico Patriarca de Alexandria ousou entrar na estrutura em chamas, de onde conseguiu salvar todas as suas encantadoras ocupantes menos duas, em número de vinte e sete, todas as quais mandou que fossem transportadas imediatamente para seus próprios aposentos particulares..."
Era um daqueles instrutivos livros que John gostava que ela lesse. História, mistério, lição e lei. No momento, porém, ela não se sentia muito disposta para história. Sentia-se disposta para falar. E isso estava fora de cogitação; absolutamente fora de cogitação.
Descansou o livro e começou a limar as unhas e pensar na pobre Minnie. Sim, pobre Minnie. Por que será que a gente não podia deixar de dizer "Santo Deus!" sentidamente, quando se ficava sabendo que ela vinha tomar chá? E por que a gente nunca tinha coragem de recusar quando ela dizia que vinha tomar chá? Ela era patética, mas patética de maneira tão enfadonha! Há pessoas com quem a gente gosta de ser bondosa, pessoas que a gente quer ajudar e proteger. Pessoas que olham para a gente com olhos de macacos doentes. O coração da gente comove-se quando as vê. A pobre Minnie, porém, não tinha nenhum dos encantos de um macaco doente. Era apenas uma mulher grande e sadia de vinte e oito anos que devia ter-se casado e ter filhos, e não tivera. Teria sido esposa tão boa, mãe tão admiravelmente solícita e cuidadosa. Acontecera, porém, que nenhum dos homens que ela conhecera desejara desposá-la. E por que teriam desejado? Quando ela entrava em uma sala, a luz parecia ofuscar-se perceptivelmente, a tensão elétrica afrouxava. Ela não trazia vida; absorvia a que existia, era como mata-borrão. Não era de admirar que ninguém quisesse casarse com ela. E contudo, naturalmente, essa era a única coisa que importava. Particularmente porque ela estava sempre se apaixonando; A única coisa.
- John! - gritou de repente a Sra. Glamber. - E realmente verdade o que dizem dos furões?
- Furões? - repetiu a voz do outro lado do corredor com distante irritação.
- Que as fêmeas morrem se não são fecundadas?
- Como é que eu vou saber?
- Mas você geralmente sabe tudo.
- Mas, querida, realmente...
A voz era queixosa, cheia de censura.
A Sra. Glamber deu uma palmada com a mão sobre a boca e só a tirou de lá para jogar um beijo.
- Está bem - disse muito depressa. - Está bem. Realmente, sinto muito. Não farei mais isso. Realmente.
Jogou outro beijo na direção da porta.
- Mas furões... - repetiu a voz.
- Psiu... psiu... psiu.
- Por que furões?
- Querido - disse a Sra. Glamber quase rispidamente - você realmente precisa continuar seu trabalho.
Minnie foi tomar chá. Expôs o caso - hipoteticamente a princípio, como se fosse o caso de uma terceira pessoa; depois, adquirindo coragem, o expôs pessoalmente. Era seu próprio caso. Do fundo de sua inocência paga e imperturbada, Helen Glamber aconselhou-a brutalmente.
- Se você'quer ir para a cama com o moço - disse - vá para a cama com ele. A coisa não tem a menor importância em si própria. Pelo menos não muita. Só é importante porque torna possíveis mais confidencias secretas, porque reforça a afeição, faz com que o homem em certo sentido dependa de você. E depois, naturalmente, é a coisa natural. Eu sou decididamente a favor da natureza, exceto quando se trata de pintar o rosto. Dizem que os furões...
Minnie notou, porém, que ela não chegou a concluir a frase. Apavorada e fascinada, chocada, mas convencida, ela escutava.
- Querido - disse a Sra. Glamber naquela noite quando o marido voltou para casa - pois não havia sido capaz de enfrentar Minnie e fora tomar chá no clube - quem foi que inventou religião, pecado e tudo isso? E por que?
John riu.
- Isso foi inventado por Adão - disse ele - por várias pequenas e transcendentes razões que você provavelmente acharia difícil compreender. Mas também para o propósito muito prático de manter Eva na linha.
- Bem, se você acha que complicar a vida dos outros é mante-los na linha, atrevo-me a dizer que tem razão. - A Sra. Glamber sacudiu a cabeça. - Acho muito obscuro. Aos dezesseis anos, está certo. Mas a gente devia realmente ter superado essas coisas aos vinte anos. E aos trinta... a mulher está com quase trinta, sabe? ... Bem, realmente...
Por fim, Minnie escreveu a Hubert dizendo-lhe que havia decidido. Hubert estava morando em Hertfordshire com seu amigo Watchett. A casa era grande, a comida era boa e a gente sehtia-se muito à vontade. Além disso, o velho Sr. Watchett tinha uma biblioteca muito sólida. A sombra impenetrável das Welingtonias, Hubert e Ted Watchett jogavam croquet e discutiam os melhores métodos de cultivar o Eu. A gente podia, decidiram eles, fazer muita coisa com a arte - livros, quadros e música, sabe?
- Ouça "Sacre" de Stravinsky - disse Ted Watchett - e estará dispensado para sempre de ir ao Tibete, à costa do Ouro ou à qualquer daqueles lugares horríveis. Depois há Dostoievsky em lugar de homicídio e D. H. Lawrence como substituto para o sexo.
- Ainda assim - disse Hubert - a gente precisa ter certa quantidade de experiência real, não imaginativa. - Falava seriamente, abstratamente, mas a carta de Minnie estava em seu bolso.
- Gnosce teipsum. Poderá você realmente conhecer-se sem entrar em conflito com os acontecimentos?
No dia seguinte, a prima de Ted, Phoebe, chegou. Tinha cabelos ruivos e uma pele leitosa. Estava mais ou menos dentro do teatro de comédia musical.
- Um pé para a frente e o outro para trás - explicou ela. E* a extensão.
E ali mesmo ela executou a extensão sobre o tapete da sala de estar.
- E' muito fácil - disse, rindo, e levantou-se de um salto com uma graça fácil que fazia a gente perder o fôlego. Ted não gostava dela.
- Moça maçante - comentou. - Tão tola também. Conscientemente tola, tola de propósito, o que é ainda pior.
E era verdade. Ela se vangloriava da quantidade de champanha que podia tomar sem ficar tonta e do número de vezes em que ultrapassara os limites e se mostrara "cega ao mundo". Gostava de falar sobre seus admiradores em termos que deixavam a gente pensando serem todos eles seus amantes reconhecidos. Ela tinha, porém, a justificativa de sua vitalidade e seus lustrosos cabelos ruivos.
"A Vitalidade", escreveu Hubert em seu diário (previa uma data distante, depois, ou preferivelmente antes, de sua morte, em que essas confissões e aforismas seriam publicados), "a vitalidade pode fazer exigências ao mundo quase tão imperiosamente quanto a beleza. As vezes, beleza e vitalidade se encontram em uma única pessoa."
Foi Hubert quem arranjou para que fossem no moinho. Um de seus amigos lá estivera certa vez com um grupo de estudantes e achara o lugar confortável, isolado e admiravelmente quieto. Quieto, isto é, com a quietude especial peculiar aos moinhos. Isso porque o silêncio não era o silêncio da noite em uma montanha. Era um silêncio feito de contínuo trovejar. As nove horas da manhã a roda do moinho começava a virar e seu rugido não parava durante o dia inteiro. Nos primeiros momentos, o barulho era aterrorizador, era quase insuportável. Em seguida, um pouquinho depois, a gente se acostumava a ele. O trovejar, pela razão de sua própria continuidade, transformava-se em um silêncio perfeito, maravilhosamente rico e profundo.
No fundo do moinho havia um pequeno quintal cercado de três lados pela casa, pelos anexos e por um alto muro de tijolos, e aberto do quarto lado, que dava para o riacho. Olhando sobre o parapeito, Minnie observou a água passar fluentemente. Era como uma serpente marrom com marcas sagitadas nas costas; rastejava, deslizava, fluía eternamente. Ficou ali sentada, esperando: seu trem, vindo de Londres, trouxera-a até ali logo depois do almoço; Hubert, vindo da casa dos Watchetts através do campo, dificilmente chegaria antes das seis. A água corria sob seus olhos como o tempo, como o destino, suavemente em direção a algum acontecimento novo e violento.
O imenso barulho que nesse quintal era silêncio envolveu-a. Acostumada, sua mente moviase nele como se fosse seu elemento nativo. Do outro lado do parapeito vinham o frescor e o cheiro de erva da água. Quando se voltou em direção ao quintal, porém, aspirou imediatamente o quente perfume do sol batendo nas flores e nos frutos em amadurecimento. Sob o sol da tarde o mundo inteiro estava maduro. A velha casa vermelha lá estava, madura, como uma ameixa caída; as paredes estavam mais maduras que os frutos da nectarina, tão ternamente e cuidadosamente crucificadas sobre seus tijolos quentes. E aquele rico silêncio do trovejar incessante parecia, por assim dizer, o empoeirado florescimento de um dia que chegara à delicada madureza e pendia, redondo como um pêssego e suculento de vida e felicidade, esperando sob o sol a mordida de dentes ávidos.
No coração desse mundo maduro como uma fruta Minnie esperava. A água corria em direção à roda; tranquila, tranquila... depois caía, quebrava-se em pedaços sobre a roda que girava. E o tempo deslizava para a frente, quietamente em direção a um acontecimento que destruiria toda tranquilidade de sua vida.
"Se você realmente quer ir para a cama com o moço, vá para a cama com ele." Podia ouvir a voz clara e aguda de Helen dizendo coisas brutais e impossíveis. Se alguma pessoa as tivesse dito, ela teria saído correndo da sala. Mas na boca de Helen pareciam, não sabia porque, tão simples, tão inócuas e tão verdadeiras. No entanto, tudo quanto outras pessoas haviam dito ou sugerido - em casa, na escola, entre as pessoas com quem costumava encontrar-se - parecia igualmente verdadeiro.
E também, naturalmente, havia o amor. Hubert havia escrito um soneto shakespeareano que começava assim:
Love hallows ali whereon 'tis truly placed.
Turns dross to gold with one touch oj his dart, Makes matter mind, extremest passion clíaste,
And buílds a temple in lhe lustful heart.(*)
(*) O amor santifica tudo aquilo sobre o qual é verdadeiramente colocado.
Transforma a escória em ouro com um toque de seu dardo, Torna a matéria importante, e casta a mais extrema paixão, E constrói um templo dentro do coração lascivo. (N. do T.)
Ela achava isso muito bonito. E muito verdadeiro. Parecia estender uma ponte entre Helen e as outras pessoas. Toda a diferença estava no amor, no verdadeiro amor. Justificava tudo. Amor quanto, quanto ela amava!
O tempo passou e a luz tornou-se mais rica à medida que o sol declinava do apogeu do céu. O dia ficou cada vez mais deliciosamente maduro, estourando de inaudita doçura. Sobre suas faces coradas pelo sol o silêncio trovejante da roda do moinho estendeu o mais macio, o mais veludoso dos florescimentos. Minnie ficou sentada no parapeito, esperando. As vezes olhava para a água que corria embaixo, às vezes voltava os olhos para o quintal. O templo fluía, ela, porém, não tinha mais medo daquele destruidor acontecimento que trovejava no futuro. A madura doçura da tarde parecia entrar em seu espírito, enchê-lo até as bordas. Não havia mais lugar para dúvidas, previsões temerosas ou arrependimento. Ela estava feliz. Ternamente, com uma ternura que não poderia expressar em palavras, mas apenas com o mais delicado dos beijos leves, com dedos enfiando-se caridosamente nos cabelos despenteados dele, ela pensou em Hubert, seu Hubert.
Hubert, Hubert... E de repente, surpreendentemente, ele estava em pé ao lado dela.
- Oh - exclamou ela, e por um momento fitou-o com redondos olhos castanhos, nos quais nada havia senão espanto. Depois a expressão mudou. - Hubert - disse suavemente.
Hubert tomou-lhe a mão e deixou-a cair de novo; olhou para ela por um instante, depois desviou o olhar. Inclinando-se sobre o parapeito, fitou a água que corria embaixo. Não havia sorriso em seu rosto. Por longo tempo, ambos permaneceram em silêncio.
Minnie ficou onde estava, sentada muito quieta, com os olhos fitos no rosto virado do moço. Estava feliz, feliz, feliz. O comprido dia amadurecia e amadurecia, perfeição após perfeição.
- Minnie - disse o jovem de repente e, com muita brusquidão, como se tivesse ficado muito tempo decidindo para falar e tivesse finalmente conseguido soltar as palavras preparadas e reprimidas - acho que me comportei muito mal com você. Nunca devia ter-lhe pedido para vir aqui. Foi um erro, desculpe.
- Mas eu vim porque quis - explicou Minnie.
Hubert olhou-a de relance, depois desviou os olhos e continuou dirigindo-se a um fantasma
que parecia flutuar pouco acima da superfície da água corrente. - Era pedir demais. Eu não devia ter feito isso. Para um homem é diferente. Mas para uma mulher...
- Mas estou-lhe dizendo que eu queria.
- É demais.
- Não é nada - disse Minnie - porque eu o amo. Inclinando-se para a frente, correu os dedos pelos cabelos dele.
Ah, ternura que nenhuma palavra podia expressar!
- Bobinho - sussurrou. - Pensava que eu não o amasse o suficiente para isso?
Hubert não ergueu os olhos. A água deslizava e deslizava diante de seus olhos. Os dedos de Minnie brincavam em seus cabelos, corriam cariciosamente pela sua nuca. Sentiu de repente um ódio positivo por aquela mulher. Idiota! Não seria capaz de entender uma insinuação? Ele não a queria. E por que imaginara que a queria? Durante toda a viagem no trem fizera a si próprio essa pergunta. Por que? Por que? E a pergunta se repetira ainda com maior urgência poucos minutos antes, quando, parado na porta do quintal, olhara detrás da macieira e observara-a, sem ser visto, por um longo minuto - observara-a sentada no para-peito, voltando seus vagos olhos castanhos ora para a água, ora para o quintal, e sorrindo consigo mesma com uma expressão que lhe parecera tão vazia e vaga a ponto de levá-lo quase a imaginar que ela era uma imbecil.
Com Phoebe no dia anterior havia parado no topo da ladeira nua. Como um mar a seus pés estendia-se a planície e acima do escuro horizonte destacavam-se nuvens heróicas. Os dedos do vento ergueram as mechas ruivas dos cabelos dela. Ela ficara como que equilibrada, pronta para saltar no ar turbulento.
- Como eu gostaria de voar! - disse ela. - Sempre pensei que há algo de particularmente atraente nos aviadores.
E ela descera correndo o morro.
Mas Minnie, com seus cabelos baços, as faces vermelhas como maçãs, o corpo grande e pesado, assemelhava-se a uma moça do campo. Como chegara a convencer-se de que a desejava? E o que tornava tudo muito pior, naturalmente, é que ela o adorava, embaraçosamente, aborrecidamente, como um cão afetuoso demais que insiste em pisar nos seus pés e lamber a sua mão exatamente quando você quer ficar sentado quieto e concentrar-se em coisas serias.
Hubert afastou-se, ficou fora do alcance da mão carinhosa dela. Ergueu em sua direção por um momento um par de olhos que se haviam tornado, por assim dizer, opacos de fria cólera; depois deixou-os cair de novo.
- O sacrifício é grande demais - disse ele com uma voz que lhe parecia de outra pessoa. Achava muito difícil dizer convincentemente coisas dessa espécie. - Não posso pedir-lhe isso prosseguiu o ator. - Não pedirei.
- Mas não é sacrifício - protestou Minnie. - É uma alegria, é felicidade. Oh, será que você não consegue compreender?
Hubert não respondeu. Imóvel, com os cotovelos sobre o para-peito, fitava a água em baixo. Minnie olhou para ele, perplexa apenas, a princípio; mas subitamente foi dominada por inominável e angustiante dúvida que cresceu e cresceu em seu íntimo, à medida que o silêncio se prolongava, como um tremendo câncer do espírito, até ter comido toda a sua felicidade, até não restar em sua mente outra coisa senão dúvida e apreensão.
- Que é? - disse ela finalmente. - Por que você está tão estranho? Que é, Hubert? Que é?
Inclinando-se ansiosamente para a frente, pôs uma mão em cada lado do rosto que se desviava e virou-o em sua direção. Vazios e opacos de raiva estavam os olhos. - Que é? - repetiu ela. - Hubert, que é?
Hubert soltou-se.
- Não adianta - disse com voz sufocada. - Não adianta nada. Acho que é melhor eu ir embora. A carruagem ainda está na porta.
E sem esperar que ela dissesse qualquer coisa, sem se explicar mais, virou-se e caminhou rapidamente, quase correndo, em direção à casa. Bem, graças a Deus, disse consigo mesmo, dessa estava livre. Não agira muito bem, elegantemente ou com coragem, mas de qualquer maneira estava livre dessa. Pobre Minnie. Sentia pena dela; mas, afinal de contas, que podia fazer? Pobre Minniel No entanto, lisonjeava sua vaidade pensar que ela estaria chorando por ele. E em qualquer caso, afirmou ele à sua consciência, ela não podia realmente importar-se muito com isso. Por outro lado, porém, lembrou-lhe sua vaidade, ela o adorava. Oh, adorava-o absolutamente...
A porta fechou-se atrás dele. Minnie ficou novamente sozinha no quintal. Maduro, maduro, estava o quintal sob o sol do fim da tarde. Metade dele já estava na sombra; mas o resto, sob a luz colorida da tarde, parecia ter chegado à perfeição final e absoluta da madureza. Florescendo no trovejante silêncio, o mais escolhido fruto de todos os tempos lá pendia, deliciosamente doce, doce até o caroço; pendia resplandescente e belo quase no escuro.
Minnie ficou sentada ali muito quieta, perguntando a si própria o que havia acontecido. Teria ele ido embora, teria ido realmente embora? A porta fechou-se atrás dele com uma batida e, quase como se o • som fosse um sinal previamente combinado, um homem saiu do moinho, caminhou até a represa e fechou a comporta. Subitamente a roda parou. Apocalipticamente fez-se silêncio; o silêncio da ausência de som tomou o lugar daquele outro silêncio que era som ininterrupto. Abismos abriram-se interminavelmente ao redor dela. Ela estava sozinha. Através do vazio da ausência de som uma abelha tardia deixava seu fino zumbido; os pardais chilreavam e, do outro lado da água, vinha o som de vozes e risos distantes. Como se tivesse despertado de um sono, Minnie ergueu os olhos e escutou, medrosamente, virando a cabeça de um lado para outro.
FAZIA QUASE TRÊS QUARTOS DE HORA QUE ELES BRIGAVAM. Aflamadas e inarticuladas, as vozes desciam flutuando pelo corredor, vindas do outro lado do apartamento. Debruçada sobre sua costura, Sophie perguntava a si própria, sem muita curiosidade, por que estariam brigando dessa vez. Era a voz de Madame que ela ouvia com mais frequência. Estridente devido à raiva e indignada devido às lágrimas, a voz saía em rajadas, em golfadas. Monsieur era mais controlado e sua voz mais profunda tinha tom muito brando que não lhe permitia penetrar através das portas fechadas e avançar pelo corredor. Para Sophie, em seu quartinho frio, a briga parecia, na maioria das vezes, uma série de monólogos de Madame, interrompidos por estranhos e ominosos silêncios. De vez em quando, porém, Monsieur parecia perder completamente a calma e então não havia silêncio entre as golfadas, mas gritos ásperos, profundos, coléricos. Madame mantinha sua alta estridência continuamente e sem esmorecimento; sua voz tinha, mesmo com raiva, curiosa e nivelada monotonia. Monsieur, porém, falava ora alto, ora baixo, com ênfases e modulações, e repentinas explosões, de modo que suas contribuições à discussão, quando eram audíveis, pareciam uma série de explosões separadas. Au, au-au-au, au - um cão latindo bem devagar.
Depois de algum tempo, Sophie deixou de prestar atenção ao ruído da briga. Estava consertando uma das combinações de Madame e o trabalho exigia toda a sua atenção. Sentia-se cansada; seu corpo inteiro doía. Fora um dia duro; o dia anterior também; e o outro antes dele igualmente. Todos os dias eram duros, e ela não era mais moça como antigamente. Mais dois anos e estaria com cinquenta. Todos os dias haviam sido duros desde quando podia lembrar-se. Pensou nos sacos de batatas que carregava quando menina no campo. Devagar, bem devagar, ia caminhando pela estrada empoeirada com o saco sobre o ombro. Mais dez passos; podia conseguir isso. Só que nunca tinha fim; precisava sempre começar de novo.
Ergueu os olhos da costura, moveu a cabeça de um lado para o outro e piscou. Começara a ver luzes e manchas de cor dançando diante dos olhos. Isso lhe acontecia com frequência ultimamente. Uma espécie de brilhante minhoca amarelada estava rastejando coleante em direção ao canto direito de seu campo visual; e, embora se movesse sem parar para cima, para cima, continuava sempre no mesmo lugar. E havia estrelas vermelhas e verdes que explodiam, resplandeciam e desapareciam em torno da minhoca. Moviam-se entre ela e sua costura; lá ficavam quando fechava os olhos. Depois de um momento, prosseguiu em seu trabalho. .Madame queria sua combinação com insistência para a manhã do dia seguinte. Mas era difícil ver em volta da minhoca.
Houve de repente uma grande intensificação do barulho na outra ponta do corredor. Uma porta abriu-se; palavras articularam-se.
- .. .bien tort, mon ami, si tu crois que j e suis ton esclave. Je ferais cê que j e voudrai.
- Mói aussi.
Monsieur soltou uma risada áspera e perigosa. Houve o ruído de passos pesados no corredor, e o barulho de alguém mexendo no porta-chapéus; depois a porta da frente bateu.
Sophie ergueu novamente os olhos de seu trabalho. Oh, a minhoca, as estrelas coloridas, o doloroso cansaço em todos os seus membros! Se pelo menos pudesse passar um dia inteiro na cama
- em uma cama enorme, plumosa, quente e macia, um dia inteiro...
O toque da campainha assustou-a. Aquele furioso zumbido semelhante a uma vespa sempre a fazia saltar. Levantou-se, pôs o trabalho em cima da mesa, alisou o avental, endireitou a touca e saiu para o corredor. Mais uma vez a campainha zumbiu furiosamente. Madame estava impaciente.
- Até que enfim, Sophie. Pensei que não viesse nunca. Sophie nada disse. Nada havia a dizer. Madame estava em pé diante do guarda-roupa aberto. Um monte de vestidos pendurava-se em seu braço e havia outros amontoados sobre a cama.
"Une beauté à Ia Rubens", era como o marido a chamava quando estava com disposição amorosa. Ele gostava dessas mulheres grandes, esplêndidas, maciças. Não queria saber daqueles canos de esgoto flexíveis. "Hélène Fourmont" era o nome carinhoso que lhe dava.
- Algum dia - costumava Madame dizer a seus amigos - algum dia irei realmente ao Louvre ver meu retrato. De Rubens, sabe? É extraordinário a gente ter passado a vida inteira em Paris e nunca ter visto o Louvre. Não acha?
Ela estava maravilhosa àquela noite. Suas faces estavam rubras; seus olhos azuis cintilavam com um brilho estranho entre os compridos cílios; seus cabelos curtos castanho-avermelhados estavam selvagemente soltos.
- Amanhã, Sophie - disse ela dramaticamente - nós vamos partir para Roma. Amanhã de manhã.
Tirou outro vestido de um cabide do guarda-roupa enquanto falava e jogou-o sobre a cama. Com o movimento, seu peignoir" abriu-se e houve uma visão de luxuosas roupas de baixo e exuberante carne branca.
- Precisamos arrumar as malas imediatamente.
- Para quanto tempo, Madame?
- Uma quinzena, três meses... Como vou saber?
- Isso faz diferença?
- O importante é ir embora. Não voltarei a esta casa, depois do que foi me dito hoje à noite, senão quando ele humildemente me pedir.
- Então é melhor levarmos a mala grande, Madame. Eu vou buscá-la.
O ar no quarto de despejo era enjoativo pelo cheiro de poeira e couro. A mala grande estava apertada em um canto distante. Precisou curvar-se e esticar muito o corpo para poder puxá-la. A minhoca e as estrelas coloridas tremeluziam diante de seus olhos. Sentiu-se tonta quando endireitou o corpo.
- Eu a ajudarei a arrumar as malas, Sophie - disse Madame, quando a criada voltou, arrastando atrás de si a pesada mala. Como a velha estava parecida com uma caveira! Odiava ter gente velha e feia perto de si. Mas Sophie era tão eficiente, seria uma loucura mandá-la embora.
- Madame não precisa incomodar-se.
Aquilo não teria fim, Sophie sabia que não haveria fim se Madame começasse a abrir gavetas e jogar coisas para fora.
- Madame faria muito melhor se fosse para a cama. Já é tarde.
Não, não. Não conseguiria dormir. Estava tão nervosa. Esses homens. .. Que estupidez! Não somos escravas deles. Não podemos ser tratadas dessa maneira.
Sophie estava arrumando a mala. Um dia inteiro na cama, uma enorme cama macia, como a de Madame. Cochilaria, acordaria por um momento, depois voltaria a cochilar.
- Sua última artimanha - dizia Madame indignada - é dizer-me que não tem dinheiro. Não devo mais comprar roupas, diz ele. E' grotesco demais. Eu não posso andar nua, posso? Jogou as mãos para fora. - E esse negócio de dizer que não pode gastar é simplesmente um absurdo. Ele pode muito bem. Só que é sovina, sovina, terrivelmente sovina. Se pelo menos fizesse algum trabalho honesto, só para variar, em lugar de ficar escrevendo versos tolos e publicando-os às suas custas, ele teria bastante dinheiro para gastar. - Caminhou de um lado para outro no quarto.
- Além disso - prosseguiu - existe o pai dele. Para que serve ele, eu gostaria de saber? "Você devia sentir orgulho de ter um poeta como marido", diz ele. - Madame fez sua voz ficar trémula como a de um velho. - Não sei como consigo não rir na cara dele. "E que belos versos Hégésippe escreve sobre você! Que paixão, que fogo!" - Pensando no velho, ela fez uma careta, balançou a cabeça, sacudiu o dedo e cambaleou sobre as pernas. - E quando a gente reflete que o pobre Hégésippe é calvo e tinge os poucos fios de cabelo que lhe restam. - Madame riu. - Quanto à paixão de que tanto fala em seus estúpidos versos - riu de novo - é tudo pura invenção. Mas, minha boa Sophie, que é que você está pensando? Por que está pondo na mala esse horrível vestido vermelho velho?
Sophie tirou o vestido sem nada dizer. Por que a mulher escolhia exatamente essa noite para parecer tão terrivelmente doente? Tinha o rosto amarelo e os dentes azuis. Madame estremeceu; era horrível demais. Devia mandá-la para a cama. Mas, afinal de contas, o serviço precisava ser feito. Que podia ela fazer? Sentia-se mais magoada do que nunca.
- A vida é terrível. - Suspirando, sentou-se pesadamente na beira da cama. As molas fortes balançaram-na uma ou duas vezes antes de assentar. - Ser casada com um homem assim. Logo estarei ficando velha e gorda. Não fui infiel uma única vez. E veja como ele me trata. Levantou-se de novo e começou a andar sem rumo pelo quarto. - Mas não vou suportar isso estourou ela.
Havia parado diante do comprido espelho e admirava sua própria figura trágica e esplêndida. Ninguém acreditaria, olhando-a, que já tinha mais de trinta anos. Por trás da bela trágica, pôde ver no espelho uma velha criatura, magra e miserável, com rosto amarelo e dentes azuis, agachando-se sobre a mala. Realmente, era desagradável demais. Sophie parecia uma daquelas mendigas que a gente via nas manhãs frias, paradas na sarjeta. E melhor passar depressa, procurando não olhar para elas? Ou parar, abrir a bolsa dar-lhes uma moeda de cobre e níquel - até mesmo uma nota de dois francos, quando não se tem mais trocado? Qualquer coisa que se fizesse, porém, a gente sempre se sentia inconfortável, sempre sentia como se tivesse pedindo desculpas pelas peles que usava. Era nisso que dava andar a pé. Se a gente tivesse uma carruagem - mas era outra das sonivices de Hégésippe - a gente, rodando por trás de janelas fechadas, não precisaria tomar conhecimento delas. Afastou-se do espelho.
- Não suportarei isso - disse, tentando não pensar nas mendigas, de dentes azuis em um rosto amarelo. - Não suportarei isso.
Deixou-se cair em uma cadeira.
Mas imagine-se um amante de rosto amarelo e dentes azuis irregulares! Fechou os olhos, estremecendo diante da ideia. Era o suficiente para deixar uma pessoa doente. Sentiu-se impelida a dar outra olhada: os olhos de Sophie eram de chumbo esverdeado, absolutamente sem vida. Que se poderia fazer? O rosto da mulher era uma censura, uma acusação. Além disso, a vista dele fazia, deixava-a positivamente doente. Nunca estivera tão profundamente deprimida.
Sophie, que estava ajoelhada,: levantou-se devagar e com dificuldade. Uma expressão de dor apareceu em seu rosto. Vagarosamente encaminhou-se para as gavetas, vagarosamente contou seis pares de meias de seda. Voltou em direção à mala. A mulher era um cadáver ambulante!
- A vida é terrível - repetiu Madame, sem convicção - terrível, terrível, terrível.
Devia mandar a mulher para a cama. Mas nunca conseguiria arrumar suas malas sozinha. E era tão importante partir no dia seguinte bem cedo. Havia dito a Hégésippe que iria embora e ele se limitara a rir. Não acreditara. Precisava dar-lhe uma lição dessa vez. Em Roma, encontrar-se-ia com Luigino. Um rapaz tão encantador, e marquês, além do mais. Talvez... Mas não podia pensar em coisa alguma a não ser no rosto de Sophie; os olhos plúmbeos, os dentes azulados, a pele amarela enrugada.
- Sophie - disse de repente; era com dificuldade que continha os gritos - olhe em minha camiseira. Lá há uma caixa de rauge, Dorin numero vinte e quatro. Ponha um pouco em suas faces. E há um tubo de batom na gaveta da direita.
Conservou os olhos resolutamente fechados enquanto Sophie se levantou - com que horrível ranger das juntas! - caminhou até a camiseira e lá ficou parada, mexendo levemente nos objetos, durante o que pareceu ser uma eternidade. Que vida, meu Deus, que vida! Passos vagarosos arrastaram-se de volta. Abriu os olhos. Oh, assim estava muito melhor, muito melhor.
- Obrigada, Sophie. Você parece agora muito menos cansada.
- Levantou-se bruscamente. - E agora precisamos andar depressa. - Cheia de energia, correu para o guarda-roupa. - Santo Deus! - exclamou, jogando as mãos para cima. - Você se esqueceu de pôr meu vestido azul de noite. Como pode ser tão estúpida, Sophie?
QUADROS? - DISSE O SR. B1GGER. - O SENHOR QUER VER alguns quadros? Bem, temos no momento em nossas galerias uma exposição mista de obras modernas, muito interessante. Francesas e inglesas, sabe?
O freguês ergueu a mão e sacudiu a cabeça.
- Não, não. Nada de moderno para mim - declarou ele, em seu agradável inglês do norte.
- Quero quadros de verdade, quadros antigos. Rembrandt e Sir Joshua Reynolds, coisas dessas espécies.
- Perfeitamente - disse o Sr. Bigger, concordando com um aceno de cabeça. - Velhos Mestres. Naturalmente, trabalhamos tanto com coisas antigas como com coisas modernas.
- O fato é que - disse o outro - acabo de comprar uma casa muito grande... uma mansão - acrescentou em tom impressionante.
O Sr. Bigger sorriu. Havia naquele sujeito simples uma ingenuidade muito cativante. Perguntou a si próprio como teria o homem ganho seu dinheiro. "Uma mansão". A maneira como dissera isso era realmente encantadora. Ali estava um homem que, às custas de seu trabalho, subira da servidão à senhoria de uma mansão, da larga base da pirâmide feudal até o estreito cume. Sua própria história e toda a história das classes estavam implícitas na ênfase respeitosamente orgulhosa que dera à "Mansão". Mas o estranho continuava falando. O Sr. Bigger não podia permitir que seus pensamentos vagueassem ainda mais.
- Em uma casa desse estilo - dizia ele - e com uma posição como a minha, a gente precisa ter alguns quadros. Velhos Mestres, sabe? Rembrandts e não sei o que mais.
- Naturalmente - disse o sr. Bigger - um Velho Mestre é um símbolo de superioridade social.
- E exatamente isso - gritou o outro, radiante. - O senhor disse exatamente o que eu queria dizer.
O Sr. Bigger curvou-se e sorriu. Era delicioso encontrar alguém que aceitava suas pequenas ironias com sóbria seriedade.
- Naturalmente, só vamos precisar de Velhos Mestres embaixo, no salão de recepção. Seria coisa boa demais tê-los também nos dormitórios.
- Excessivamente boa demais - concordou o Sr. Bigger.
- Para dizer a verdade - prosseguiu o Senhor da Mansão - minha filha... desenha um pouco. Desenhos muito bonitos. Vou mandar pôr alguns de seus trabalhos em molduras e pendurálos nos dormitórios. É uma vantagem ter artista na família. Permite à gente economizar na compra de quadros. Mas, naturalmente, precisamos de alguma coisa velha embaixo.
- Acho que tenho precisamente o que o senhor deseja.... O Sr. Bigger levantou-se e tocou a campainha.
"Minha filha desenha um pouco..." O Sr. Bigger imaginou um tipo de criada de bar, loira e grande, com trinta anos e ainda solteira, já um pouco murcha. Sua secretária apareceu na porta.
- Traga-me o retrato veneziano, senhorita Pratt, aquele que está na sala dos fundos. Sabe ao qual me refiro.
- O senhor está bem instalado - aqui - disse o Senhor da Mansão. - Espero que os negócios estejam indo bem.
O Sr. Bigger suspirou.
- A crise - disse ele. - Nós, negociantes de arte, somos mais prejudicados por ela que qualquer outra pessoa.
- Ah, a crise - repetiu o Senhor da Mansão, rindo baixinho. - Eu a previ o tempo todo. Algumas pessoas pareciam .pensar que os bons tempos iam durar sempre. Que tolos! Eu vendi tudo na crista da onda. É por isso que agora posso comprar quadros.
O Sr. Bigger riu também. Essa era a espécie certa de freguês.
- Gostaria de ter tido também alguma coisa para vender na época de prosperidade disse.
O Senhor da Mansão riu até correrem lágrimas pôr suas faces. Ainda estava rindo quando a Srta. Pratt voltou a entrar na sala. Carregava um quadro com as duas mãos, à sua frente, como um escudo.
- Ponha no cavalete, Srta. Pratt - disse o Sr. Bigger. - Agora - disse virando-se para o Senhor da Mansão - que acha disso.
O quadro que estava no cavalete à frente deles era um retrato de meio corpo. De faces gordas, pele branca, seios altos sob seu vestido de seda azul cheio de babados, o modelo do quadro parecia uma típica dama italiana de meados do século XVIII. Um pequeno sorriso complacente curvava seus lábios espichados e, em uma das mãos, segurava uma máscara, como se acabasse de tirá-la do rosto depois .de um dia de carnaval.
- Muito bonito - disse o Senhor da Mansão; mas acrescentou com ar de dúvida: - Não parece muito com Rembrandt, parece? E tudo tão claro e brilhante. Geralmente nos Velhos Mestres a gente nunca consegue ver coisa alguma, pois são escuros e nublados.
- Uma grande verdade - disse o Sr. Bigger. - Mas nem todos os Velhos Mestres são iguais a Rembrandt.
- Acho que não.
O Senhor da Mansão parecia difícil de convencer-se.
- Este é um veneziano do século XVIII. Seu colorido sempre foi luminoso. Giangolini chamava-se o pintor. Morreu moço, sabe? Não se conhece mais que meia dúzia de seus quadros. E este é um deles.
O Senhor da Mansão acenou afirmativamente. Sabia apreciar o valor da raridade.
- Nota-se ao primeiro olhar a influência de Longhi - prosseguiu airosamente o Sr. Bigger. - E há algo da morbidezza de Rosalba na pintura do rosto.
O Senhor da Mansão olhava contrafeito do Sr. Bigger para o quadro e do quadro para o Sr. Bigger. Nada existe tão embaraçoso como ouvir alguém dotado de mais conhecimento falando com a gente. O Sr. Bigger acentuava sua vantagem.
- É curioso - continuou - que neste quadro nada se vê da maneira de Tiepolo. Não acha?
O senhor da Mansão concordou com um aceno de cabeça. Seu rosto tinha uma expressão sombria. Os cantos de sua boca de bebé caíram. Podia-se quase esperar que rompesse a chorar.
- É um prazer - disse o Sr. Bigger, compadecendo-se finalmente - falar com alguém que de fato entende de pintura. Tão pouca gente entende.
- Bem, não posso dizer que já me tenha aprofundado no assunto - disse modestamente o Senhor da Mansão. - Mas sei do que gosto quando o vejo.
Seu rosto iluminou-se de novo, quando se sentiu em terreno mais seguro.
- Um instinto natural - disse o Sr. Bigger. - Esse é um dom muito precioso. Pude ver em seu rosto que o senhor o possuía; pude ver isso no momento em que entrou na galeria.
O Senhor da Mansão estava encantado.
- Realmente - disse ele. Sentia-se cada vez maior, mais importante. - Realmente. Inclinou a cabeça criticamente para um lado. - Sim. Devo dizer que acho essa pintura muito boa. Muito boa. Mas o fato é que eu preferiria uma peça mais histórica, se é que compreende o que quero dizer. Alguma coisa que pareça mais ter vindo de ancestrais, sabe? Um retrato de alguém que tenha uma história... como Ana Bolena, Nell Gwynn, o duque de Wellington ou alguém assim.
- Mas, meu caro senhor, era precisamente o que eu ia dizer-lhe. Este quadro tem uma história. - O Sr. Bigger inclinou-se para a frente e deu umas palmadinhas no joelho do Senhor da Mansão. Seus olhos faiscaram com um brilho benevolente e divertido por baixo das sobrancelhas espessas. Havia uma inteligente bondade em seu sorriso. - Uma história muito notável está ligada à pintura deste quadro.
- Realmente?
O Senhor da Mansão arqueou as sobrancelhas.
O Sr. Bigger recostou-se para trás em sua cadeira.
- A dama que o senhor está vendo ali - disse ele, indicando o retrato com um aceno da mão - era a esposa do quarto conde de Hurtmore. A família hoje está extinta. O nono conde morreu ainda no ano passado. Adquiri este quadro quando a casa foi vendida. E triste ver o desaparecimento desses velhos lares ancestrais.
O Sr. Bigger suspirou. O Senhor da Mansão tinha uma aparência solene, como se estivesse na igreja. Houve um momento de silêncio. Depois o Sr. Bigger continuou em tom diferente:
- Pelos retratos que vi, o quarto conde parece ter sido um sujeito de aparência cinzenta, taciturno, de cara comprida. Não seria possível imaginá-lo moço; era a espécie de homem que parece ter tido sempre cinquenta anos. Seus principais interesses na vida eram pela música e por antiguidades romanas. Há um retrato dele segurando uma flauta de marfim em uma mão e descansando a outra sobre um fragmento de escultura romana. Passou pelo menos metade da vida viajando pela Itália, procurando antiguidades e ouvindo música. Quando estava com uns cinquenta e cinco anos, decidiu de repente que era tempo de casar-se. Esta foi a dama de sua escolha. - O Sr. Bigger apontou para o retrato. - Seu dinheiro e seu título devem ter compensado suas deficiências. Não se pode imaginar, pela aparência dela, que Lady Hurtmore tivesse grande interesse pelas antiguidades romanas. Penso que também não se importava muito com a ciência e a história da música. Gostava de roupas, gostava de sociedade, gostava de jogar, gostava de namorar, gostava de divertir-se. Não parece que o par recém-casado se desse muito bem. Ainda assim, evitaram um rompimento declarado. Um ano depois do casamento, lorde Hurtmore decidiu fazer outra visita à Itália. Chegaram a Veneza no começo do outono. Para lorde Hurtmore, Veneza significava música sem limites. Significava concertos diurnos de Galuppi no orfanato da Misericórdia. Significava Piccini em Santa Maria. Significava novas óperas no San Mose. Significava deliciosas cantatas em uma centena de igrejas. Significava concertos particulares de amadores; significava Porpora e os melhores cantores da Europa; significava Tartini e os maiores violinistas. Para Lady Hurtmore, Veneza significava coisa muito diferente. Significava jogo no Ridotto, baile à fantasia, ceias alegres
- todas as delícias da cidade mais divertida do mundo. Mantendo suas vidas separadas, os dois poderiam ter sido quase indefinidamente felizes ali em Veneza. Um dia, porém, lorde Hurtmore teve a desastrosa ideia de mandar pintar o retrato da esposa. O jovem Giangolini foi-lhe recomendado como o promissor pintor do futuro. Lady Hurtmore começou a posar. Giancolini era bonito e atrevido. Giangolini era moço. Tinha uma técnica amorosa tão perfeita quanto sua técnica artística. Lady Hurtmore precisaria ter sido mais que humana para conseguir resistir a ele. Ela não era mais que humana.
- Nenhum de nós é, eh?
O Senhor da Mansão cutucou as costelas do Sr. Bigger com o dedo e riu.
Cortesmente, o Sr. Bigger aderiu à sua hilaridade. Quando passou, prosseguiu.
- Por fim decidiram fugir juntos através da fronteira. Viveriam em Viena... viveriam das jóias da família Hurtmore, que a dama teria o cuidado de guardar em sua mala. Valiam mais de vinte mil, as jóias dos Hurtmore. E em Viena, sob Maria Teresa, podia-se viver muito bem com os juros de vinte mil.
- Os preparativos foram feitos facilmente. Giangolini tinha um amigo que fez tudo por eles - tirou passaportes com nomes falsos, alugou cavalos para ficarem à espera no continente, colocou sua gôndola à disposição deles. Decidiram fugir no dia em que ela posaria pela última vez. Chegou o dia. De acordo com seu costume normal, Lorde Hurtmore levou a esposa ao estúdio de Giangolini em uma gôndola, deixou-a sobre o trono de modelo de encosto alto e partiu novamente para ouvir o concerto de Galuppi na Misericórdia. Veneza estava em pleno carnaval. Mesmo à luz do dia pessoas andavam de máscara. Lady Hurtmore usava uma máscara de seda preta... Pode vê-la segurando-a aqui no retrato. O marido, embora não fosse folião e desaprovasse as brincadeiras do carnaval, preferia conformar-se com a moda grotesca de seus semelhantes do que atrair atenção sobre si próprio por não conformar-se.
"A comprida capa preta, o enorme chapéu preto de três bicos, a máscara de papelão branco com comprido nariz eram os trajes comuns de todo cavalheiro veneziano nessas semanas de carnaval. Lorde Hurtmore não queria chamar atenção. Por isso, usava a mesma coisa. Devia haver algo ricamente absurdo e incongruente no espetáculo desse grave milorde inglês de fisionomia solene vestido no cómico uniforme de um alegre mascarado veneziano. Pan-talão com as roupas de Polichinelo, era como os amantes o descreviam quando estavam sozinhos. O velho senil da eterna comédia vestido de palhaço. Bem, nessa manhã, como eu ia dizendo, Lorde Hurtmore chegou como de hábito em sua gôndula alugada, levando junto sua Lady. Ela, por sua vez, levava sob as dobras de sua volumosa capa uma caixinha de couro dentro da qual, acomodadas em seu leito sedoso, repousavam as jóias dos Hurtmore. Sentados na pequena e escura cabina da gôndola, os dois observavam as igrejas, os palazzi com ricos ornamentos em relevo, as casas altas e medíocres que deslizavam ao lado deles. Debaixo de sua máscara de Polichinelo, a voz de lorde Hurtmore falava gravemente, vagarosamente, imperturbavelmente".
- "O ilustre padre Martini - disse ele - prometeu-me a honra de jantar conosco amanhã. Duvido que algum homem conheça a história da música melhor que ele. Peco-lhe que se esforce para tratá-lo com honras especiais."
- "Pode ter certeza de que o farei, meu senhor."
"Ela mal podia conter a risonha excitação que borbulhava em seu íntimo. No dia seguinte à hora do jantar ela estaria muito longe - do outro lado da fronteira, além de Gorizia, galopando ao longo da estrada de Viena. Pobre e velho Pantalão! Mas, não, ela absolutamente não sentia pena dele. Afinal de contas, ele tinha sua música, tinha suas bugigangas de mármore quebrado. Embaixo da capa, ela apertou com mais força a caixa de jóias. Como era embriagantemente divertido seu segredo."
O Sr. Bigger cruzou as mãos e apertou-as dramaticamente sobre o coração. Estava-se divertindo. Virou seu comprido nariz de raposa para o Senhor da Mansão e sorriu benevolamente. O Senhor da Mansão era todo atenção.
- E então? - perguntou ele.
O sr. Bigger descruzou as mãos e deixou-as cair sobre os joelhos.
- Bem - disse - a gôndola pára na porta da casa de Giangolini, lorde Hurtmore ajuda a esposa a descer, leva-a até a grande sala do primeiro andar da casa do pintor, deixa-a sob a gurda
dele com sua habitual fórmula de polidez e depois parte, para ir ouvir o concerto matutino de Galuppi na Misericórdia. Os amantes dispõem de duas boas horas para fazerem seus preparativos finais.
- "Com o velho Pantalão seguramente à distancia, surge o prestativo amigo do pintor, mascarado e encapado como todos os outros homens nas ruas e nos canais daquela carnavalesca Veneza. Seguem-se abraços, apertos de mão e risadas. Tudo correra tão maravilhosamente bem, sem que tivesse havido a menor suspeita. Debaixo da capa de Lady Hurtmore sai a caixa de jóias. Ela a abre e ouvem-se altas exclamações em italiano de espanto e admiração. Os brilhantes, as pérolas, as grandes esmeraldas Hurtmore, os broches de rubi, os brincos de diamantes, todas aquelas coisas brilhantes e cintilantes são examinadas com amor, manuseadas com conhecimento. Cinquenta mil cequins pelo menos, é o cálculo que faz o prestativo amigo. Os dois amantes jogamse extáticamente nos braços um do outro.
- "O prestativo amigo interrompe-os. Há ainda algumas coisas a fazer. Precisam ir assinar os passaportes no Ministério da Polícia. Oh, mera formalidade; mas é preciso. Ele sairá ao mesmo tempo e venderá um dos diamantes da senhora para obter os recursos necessários à viagem."
O Sr. Bigger fez uma pausa para acender um cigarro. Soprou uma nuvem de fumaça e prosseguiu:
- Assim, saíram, todos com suas máscaras e capas, seguindo o amigo prestativo em uma direção, o pintor e sua amante em outra. Ah, o amor em Veneza!
O Sr. Bigger virou os olhos para cima em êxtase.
- Já esteve em Veneza e já amou, senhor? - perguntou ao Senhor da Mansão.
- Nunca fui além de Dieppe - respondeu o Senhor da Mansão, sacudindo a cabeça.
- Ah, então perdeu uma das grandes experiências da vida. Nunca poderá compreender inteira e completamente o quê devem ter sido as sensações da pequena Lady Hurtmore e do artista, quando deslizavam pelos compridos canais, fitando-se através dos buracos dos olhos de suas máscaras. De vez em quando, talvez, se beijavam - embora fosse difícil fazer isso sem tirar as máscaras e houvesse sempre o perigo de seus rostos descobertos serem reconhecidos através das janelas de sua pequena cabina. Não, em geral - concluiu o Sr. Bigger pensativamente - creio que se limitavam a olhar um para o outro. Mas em Veneza, deslizando devagar pelos canais, a gente quase pode contentar-se em olhar - apenas olhar.
Acariciou o ar com a mão e deixou que a voz morresse no silêncio. Deu duas ou três chupadas no cigarro sem dizer palavra. Quando prosseguiu, a voz era calma e regular.
- Cerca de meia hora depois de terem saído, uma gôndola parou na porta da casa de Giangolini e um homem com máscara de papelão, envolto em uma capa preta e usando na cabeça o inevitável chapéu de três bicos, desembarcou e subiu até a sala do pintor. Estava vazia. O retrato sorria docemente e um pouco nèsciamente no cavalete. A sua frente, porém, não havia pintor, e o trono do modelo estava desocupado. A máscara de nariz comprido correu os olhos pela sala com inexpressiva curiosidade. O olhar errante caiu por fim sobre a caixa de jóias que estava onde os amantes a haviam deixado descuidadamente, aberta sobre a mesa. Afundados e cfercados de sombras escuras, por trás da máscara grotesca, os olhos demoraram fixamente sobre esse objeto. Polichinelo de nariz comprido parecia estar mergulhado em meditação.
- "Alguns minutos depois, ouviu-se o ruído de passos na escada e duas vozes rindo juntas. O mascarado virou-se para olhar pela janela. Atrás dele a porta abriu-se ruidosamente embriagados de excitação, com alegre e risonha irresponsabilidade, os amantes entraram barulhentamente.
- "Ah, caro amico! Já voltou? Teve sorte com o diamante?
"A figura de capa ao lado da janela não se moveu. Giangolini continuou a falar alegremente. Não houvera a menor complicação na questão das assinaturas, nem haviam sido feitas perguntas. Já estava com os passaportes no bolso. Podiam partir imediatamente.
"De repente, Lady Hurtmore começou a rir descontroladamente. Não conseguia parar de rir."
- "Que foi? - perguntou Giangolini, rindo também".
- "Eu estava pensando - disse ela ofegante entre os paroxismos de sua hilaridade - eu estava pensando no velho Pantalão sentado na Misericórdia, solene como uma coruja, ouvindo ela quase ficou sufocada e as palavras saíram agudas e forçadas como se estivesse falando entre lágrimas - ouvindo as velhas e maçantes cantatas do velho Galuppi".
"O homem que estava ao lado da janela virou-se.
- "Infelizmente, madame - disse ele - o ilustre maestro estava indisposto esta manhã. Não houve concerto. - Tirou a máscara. - Por isso, tomei a liberdade de voltar um pouco mais cedo que de costume.
"O longo e cinzento rosto de Lorde Hurtmore, sem um sorriso, confrontou-os."
"Os amantes fitaram-no sem fala, por um momento. Lady Hurtmore pôs a mão no coração, que dera um salto terrível. Ela sentiu uma horrível sensação na boca do estômago. O pobre Giangolini ficara branco como sua máscara de papelão. Mesmo naqueles dias de cieis bei, de cavalheirismo, havia casos de maridos ultrajados e ciumentos que recorriam ao homicídio. Ele estava desarmado e só Deus sabia que armas de destruição havia escondidas embaixo daquela enigmática capa preta. Lorde Hurtmore, porém, nada fez de brutal ou indigno. Gravemente e calmamente, como fazia com tudo, caminhou até a mesa, apanhou a caixa de jóias, fechou-a com grande cuidado e disse: - Acho que a caixa é minha - colocou-a no bolso e saiu da sala. Os amantes ficaram olhando um para o outro com ar de interrogação."
Houve um silêncio.
- Que aconteceu então - perguntou o Senhor da Mansão.
- O anticlímax - responder o Sr. Bigger, sacudindo a cabeça pesarosamente. Giangolini tinha combinado fugir com cinquenta mil cequins. Lady Hurtmore, pensando bem, não confiava na ideia de amor em uma cabana. O lugar da mulher, decidiu ela finalmente, é no lar com as jóias da família. Mas Lorde Hurtmore encararia a questão precisamente pelo mesmo ponto de vista? Essa era a questão, a alarmante e inquietadora questão. Lady Hurtmore resolveu ir ver pessoalmente. Chegou exatamente na hora do jantar. - Sua Ilustríssima Excelência está esperando na sala de jantar, disse o mordomo. As altas portas foram abertas de par em par à frente dela. Entrou majestosamente, de queixo erguido - mas com que terror na alma! O marido estava em pé ao lado da lareira. Adiantou-se para recebê-la.
- "Eu a estava esperando, madame - disse ele, conduzindo-a depois para seu lugar."
"Foi essa a única referência que ele fez ao incidente. À tarde mandou um criado buscar o retrato no estúdio do pintor. Fazia parte da bagagem do casal quando, um mês mais tarde, partiu para a Inglaterra. A história foi transmitida junto com o quadro de geração a geração. Ouvia-a de um velho amigo da família quando comprei o retrato no ano passado".
O Sr. Bigger jogou a ponta do cigarro na lareira. Congratulou-se consigo mesmo por ter contado muito bem a história.
- Muito interessante - disse o Senhor da Mansão - muito interessante realmente. Absolutamente histórico, não é? Dificilmente se estaria melhor servido com Nell Gwynn ou Anna Bolena, não acha?
O Sr. Bigger sorriu vagamente, distantemente. Estava pensando em Veneza - a condessa russa hospedada na mesma pensão que ele, a árvore, copada no quintal do lado de fora do quarto, aquele perfume forte e quente que ela usava (fazia a gente prender a respiração ao cheirá-lo pela primeira vez) e havia os banhos no Lido, a gôndola e a cúpula da Salute contra o céu nublado, exatamente com a mesma aparência que tinha quando Guardi a pintou. Como tudo aquilo parecia remoto e distante! Era pouco mais que um menino naquela época. Fora sua primeira grande aventura. Despertou de seu devaneio com um sobressalto.
O Senhor da Mansão estava falando.
- E quanto pediria o senhor por esse quadro? - perguntava ele. Seu tom era desinteressado, sem hesitação. Era um homem extraordinário para negociar.
- Bem - disse o Sr. Bigger, deixando com relutância a condessa russa e a paradisíaca Veneza de vinte e cinco anos atrás - já cheguei a pedir até mil por obras menos importantes que .essa. Mas eu poderia deixar que o senhor a levasse por setecentos e cinquenta.
O Senhor da Mansão assobiou.
- Setecentos e cinquenta? - repetiu ele. - E muito.
- Mas, meu caro senhor - protestou o Sr. Bigger - pense no que teria de pagar por um Rembrandt desse tamanho e dessa qualidade... vinte mil no mínimo. Setecentos e cinquenta absolutamente não é muito. Pelo contrário, é muito pouco considerando-se a importância do quadro que vai levar. O senhor tem discernimento suficientemente bom para ver que se trata de uma obra de arte muito fina.
- Oh, não estou negando isso - disse o Senhor da Mansão. - Só estou dizendo que setecentos e cinquenta é muito dinheiro. Puxa! Sinto-me muito contente por minha filha desenhar. Imagine se eu tivesse de decorar os dormitórios com quadros de setecentos e cinquenta cada um!
O Senhor da Mansão riu. O Sr. Bigger sorriu.
- O senhor deve lembrar-se - disse ele - que está fazendo um investimento muito bom. Os preços dos venezianos do último período estão subindo. Se eu tivesse algum capital de que dispor...
A porta abriu-se e a cabeça loira e crespa da Srta. Pratt apareceu.
- O Sr. Crowley quer saber se o senhor pode recebê-lo, Sr. Bigger.
O Sr. Bigger franziu a testa.
- Diga-lhe que espere - disse irritado. Tossiu e voltou-se para o Senhor da Mansão. Se eu tivesse algum capital de que dispor, empregaria todo ele em venezianos do último período. Até o último níquel.
Ficou pensando, enquanto proferia essas palavras, quantas vezes dissera aos outros que empregaria todo o capital, se tivesse capital, nos primitivos, no cubismo, na escultura negra, nas gravuras japonesas...
Por fim, o Senhor da Mansão preencheu-lhe um cheque de seiscentos e oitenta.
- Talvez possa dar-me uma cópia datilografada da história -disse ele, quando punha o chapéu. - Seria uma boa história para contar aos convidados durante o jantar, não acha? Eu gostaria de ter os pormenores com toda a correção.
- Oh, naturalmente, naturalmente - disse o Sr. Bigger - os pormenores são muito importantes.
Conduziu o homenzinho redondo até a porta.
- Até logo. Até logo.
O Senhor da Mansão foi-se embora.
Um moço alto e pálido, de suíças, apareceu na. porta. Seus olhos eram escuros e
melancólicos. Sua expressão, sua aparência geral, era romântica e ao mesmo tempo um pouco deplorável. Era o jovem Crowley, pintor.
- Sinto muito tê-lo feito esperar - disse o Sr. Bigger. - Que queria de mim?
O Sr. Crowley pareceu embaraçado e hesitou. Como odiava precisar fazer coisas dessa espécie!
- O fato - disse finalmente - é que estou com uma falta horrível de dinheiro. Pensei que talvez o senhor não se importasse... se não lhe fosse inconveniente... de pagar-me aquela coisa que lhe fiz outro dia. Lamento terrivelmente incomodá-lo desta maneira.
- Não é nada, meu caro amigo.
O Sr. Bigger sentia pena dessa miserável criatura que não sabia cuidar de si própria. O jovem e pobre Crowley era tão indefeso quanto um bebé.
- Quanto foi que combinamos?
- Vinte libras, penso eu - respondeu o Sr. Crowley timidamente.
O Sr, Bigger tirou a carteira.
- Bem, vamos fazer vinte e cinco - disse.
- Oh, não, realmente, eu não poderia... Muito obrigado. - O Sr. Crowley corou como uma moça. - Não gostaria que eu lhe mostrasse algumas de minhas paisagens? - perguntou, encorajado pelo ar de benevolência do Sr. Bigger.
- Não, não. Nada seu mesmo.
O Sr. Bigger sacudiu a cabeça inexoravelmente.
- Coisa moderna não rende dinheiro. Mas aceitarei qualquer número daqueles seus Velhos Mestres falsos.
Tamborilou com os dedos sobre os ombros lustrosamente pintados de Lady Hurtmore.
- Experimente outro veneziano - acrescentou. - Este foi um grande sucesso.
FOI A VISTA QUE FINALMENTE NOS FEZ FICAR COM A CASA. Na verdade, a casa apresentava suas desvantagens. Ficava muito longe da cidade e não tinha telefone. O aluguel era excessivamente caro e o sistema de esgoto era ruim. Nas noites de vento, quando os caixilhos mal ajustados matraqueavam furiosamente nos batentes da janela a ponto de a gente imaginar que estava em um ônibus de hotel, a luz elétrica, por alguma razão misteriosa, invariavelmente costumava apagar e deixar-nos na barulhenta escuridão. Havia um banheiro esplêndido, mas a bomba elétrica, que devia fazer a água subir dos tanques em que a chuva era recolhida no terraço, não funcionava. Pontualmente, todo outono, o poço de água potável secava. E nossa senhoria era mentirosa e impostora.
Mas essas são as pequenas desvantagens de toda casa alugada, em todo o mundo. Na Itália, isso não era realmente coisa grave. Tenho visto muitas casas que apresentam todas essas desvantagens e uma centena de outras, sem possuir as compensadoras vantagens da nossa: o jardim e terraço voltados para o sul, ideais para o inverno e primavera, as salas grandes e frescas como proteção contra o calor ao verão, o ar da montanha, a ausência de mosquitos e finalmente a vista.
E que vista era aquela! Ou melhor, que sucessão de vistas. Pois era diferente cada dia. Sem sair de casa, a gente tinha a impressão de uma incessante mudança de cenário; todos os prazeres da viagem sem suas fadigas. Havia dias de outono em que todos os vales se enchiam de nevoeiro e os cumes dos Apeninos se erguiam escuros sobre um liso lago branco. Havia dias em que o nevoeiro invadia até o monte onde ficava a casa e nós éramos envolvidos por um suave vapor no qual as oliveiras coloridas pela névoa, que desciam pela encosta abaixo de nossas janelas em direção ao vale, desapareciam como se entrassem em sua própria essência espiritual; e as únicas coisas firmes e definidas no pequeno e escuro mundo em que nos encontrávamos confinados eram os dois altos ciprestes negros que cresciam em uma pequena plataforma saliente cem pés abaixo, na encosta do monte. Negros, pontiagudos e sólidos, lá ficavam eles, pilares gémeos de Hércules na extremidade do universo conhecido. Além deles, havia apenas nuvens pálidas e ao redor deles apenas as nebulosas oliveiras.
Esses eram os dias de inverno, mas havia os dias de primavera e outono, dias imutavelmente sem nuvens ou - ainda mais encantadores - tornados variados pelas vastas formas de vapor flutuante que, níveas acima das distantes montanhas encimadas de neve, gradualmente executavam, sobre o azul pálido e brilhante, enormes gestos heróicos. E no alto do céu as cortinas enfunadas, os cisnes, os pedaços de mármore etéreo, talhado e deixado inacabado por deuses cansados da criação quase antes de terem começado, vagueavam sonolentos levados pelo vento, mudando de forma à medida que se moviam. E o sol aparecia e desaparecia por trás deles. A cidade no vale ora se dissolvia e quase desaparecia na sombra, ora, como uma imensa jóia desgastada entre os montes, brilhava como que por sua própria luz. Olhando através do vale tributário mais próximo que descia sinuosamente abaixo de nosso pico em direção ao Arno, olhando por, cima do monte baixo e escuro em cujo promontório distante se erguia a igreja torreada de San Míniato, viam-se a enorme cúpula pairando etèreamente sobre suas costelas de alvenaria, o campanário quadrado, a pontiaguda agulha de Santa Croce e a torre coberta da Signoria, alteando-se acima do complicado labirinto de casas, distintas e brilhantes, como pequenos tesouros esculpidos em pedras preciosas. Era por um momento apenas e depois sua luz desvanecia mais ama vez e o raio itiaerante destacava, entre os anilados montes distantes, um simples pico dourado.
Havia dias em que o ar ficava úmido da chuva caída ou que se aproximava e todas as distâncias pareciam milagrosamente nítidas e claras. As oliveiras destacavam-se umas das outras nas vertentes distantes; as aldeias longínquas eram lindas e patéticas como os mais delicados brinquedinhos. Havia dias no verão, dias de trovoada iminente, em que, brilhantes e iluminados pelo sol contra as enormes massas bojudas de preto e roxo, os montes e as casas brancas fulguravam como se estivessem precariamente, em agonizante esplendor, na iminência de alguma tremenda calamidade.
Como os montes mudavam e variavam. Cada dia e quase cada hora do dia eram diferentes. Havia momentos em que, olhando através da planície de Florença, se via apenas uma silhueta azul escura contra o céu. A cena não tinha profundidade; havia apenas uma cortina pendurada com os símbolos das montanhas nela lisa-mente pintados. E depois, quase de repente, com o passar de uma nuvem ou quando o sol declinava até certo nível no céu, a cena lisa se transformava; e, onde antes havia apenas uma cortina pintada, apareciam então cordilheiras atrás de cordilheiras, tom após tom graduado desde marrom, cinzento ou verde dourado até azul distante. Formas, que um momento antes se fundiam indiscriminadamente em uma única massa, separavam-se em seus elementos constituintes. Fiesole, que parecia apenas um contraforte de Monte Morello, revelava-se então como saliente promontório de outro sistema de montes, separado dos mais próximos bastiões de seu vizinho maior por um vale profundo e ensombrado.
Ao meio-dia, no calor do verão, a paisagem ficava empanada, poeirenta, vaga e quase descolorida sob o sol a pino; os montes desapareciam nas trémulas franjas do céu. Mas à medida que avançava a tarde a paisagem emergia de novo, deixava seu anonimato, saía novamente do nada para tomar forma e vida. E sua vida, à medida que o sol se afundava vagarosamente ao longo da comprida tarde, tornava-se mais rica, tornava-se mais intensa a cada momento. A luz direta, com as compridas e escuras sombras resultantes, desnudava, por assim dizer, a anatomia da terra; os montes - cada escarpa do oeste cintilando e toda encosta escondida da luz do sol em profunda sombra - tornavam-se maciços, salientes e sólidos. Revelavam-se pequenas dobras e depressões no terreno aparentemente liso. A leste de nosso monte, do outro lado da planície de Ema, um grande penhasco lançava sua sombra crescente; na luminosidade circundante do vale toda uma cidade ficava eclipsada dentro dela. E quando o sol expirava no horizonte, os montes mais distantes resplandeciam sob sua luz quente, até seus flancos iluminados ficarem da cor de rosas fulvas; mas os vales já estavam cheios do nevoeiro azul do anoitecer. E o nevoeiro subia, subia; o fogo apagavase nas janelas ocidentais das populosas encostas; só os cumes ainda estavam acesos e finalmente eles também se extinguiam todos. As montanhas desvaneciam-se e fundiam-se de novo em uma pintura lisa sobre o pálido céu do anoitecer. Pouco depois, era noite; e se havia lua cheia um fantasma da cena morta ainda assombrava os horizontes.
Mutável em sua beleza, essa larga paisagem conservava sempre uma qualidade de humanidade e domesticação que fazia dela, no meu entender pelo menos, a melhor de todas as paisagens para se viver. Dia a dia a gente viajava através de suas diferentes belezas; mas a jornada, como a Grande Caminhada de nossos ancestrais, era sempre uma viagem através da civilização. Apesar de todas as suas montanhas, suas íngremes encostas e seus fundos vales, o cenário toscano é dominado por seus habitantes. Estes cultivavam todo palmo de chão que pode ser cultivado; suas casas espalham-se densamente pelos montes e os vales são populosos. Solitária no alto do monte, a gente não está sozinha em um deserto. Os traços do homem estão gravados na região e - pode-se sentir com satisfação, olhando através dela - há séculos, há milhares de anos, ela já tem sido dele, submissa, domesticada, humanizada. As vastas e monótonas charnecas, os areais, as florestas de inúmeras árvores - esses são lugares para visitas ocasionais, saudáveis para o espírito que não se submete a eles por muito tempo. Mas influências diabólicas, assim como divinas, frequentam essas solidões totais. A vida vegetativa das plantas e coisas é estranha e hostil ao ser humano. Os homens não podem viver à vontade senão onde dominaram seu ambiente e onde suas vidas acumuladas têm maior número e maior peso que as vidas vegetativas a seu redor. Despojada de suas matas escuras, semeada, terraceada e cultivada quase até os cumes das montanhas, a paisagem toscana é humanizada e segura. Às vezes aqueles que vivem no meio dela anseiam por algum lugar solitário, desumano, sem vida ou povoado apenas por vida estranha. Mas o anseio é logo satisfeito e a gente fica contente em voltar ao cenário civilizado e submisso.
Achei que aquela casa no alto do monte era a moradia ideal. Lá, seguros no meio de uma paisagem humanizada, nem por isso estávamos sós; podíamos ser tão solitários quanto quiséssemos. Pessoas que nunca chegamos a ver de perto são os vizinhos ideais e perfeitos.
Nossos vizinhos mais próximos, em termos de proximidade física, viviam muito perto. De fato, tínhamos dois grupos deles quase na mesma casa conosco. Uma era a família camponesa, que vivia em um edifício comprido e baixo, parte residência e parte está-bulos, depósitos e estrebarias, adjacente à vila. Nossos outros vizinhos - vizinhos intermitentes, porém, pois só se aventuravam a sair da cidade de vez em quando, com o tempo mais perfeito - eram os proprietários da vila, que haviam reservado para si a ala menor da enorme casa em forma de L - apenas uns doze aposentos
- deixando para nós os restantes dezoito ou vinte.
Formavam um casal curioso, os nossos senhorios. Um marido velho, encarnecido, apático, trôpego, com setenta anos no mínimo; e uma signora de uns quarenta anos, baixa, muito gorda, com mãos e pés minúsculos e roliços, um par de olhos muito grandes e muito pretos, que ela usava com toda a habilidade de uma comediante nata. Sua vitalidade, se fosse possível explorá-la e destiná-la a alguma aplicação útil, forneceria luz elétrica a uma cidade inteira. Os físicos falam em extrair energia do átomo; eles seriam empregados com maior proveito mais perto dos lares - na descoberta de algum meio para extrair aquelas enormes reservas de energia vital que se acumulam em mulheres desocupadas de temperamento sanguíneo e que, no atual e imperfeito estado de organização social e científica, se desabafam de maneira geralmente muito deplorável: interferindo na vida de outras pessoas, provocando cenas emocionais, pensando em amor e praticando-o, e importunando os homens até impedi-los de trabalhar.
A "ignora Bondi descarregava sua energia supérflua, além de outras maneiras, prejudicando os inquilinos. O velho cavalheiro, que era um comerciante aposentado com reputação da mais perfeita integridade, não tinha oportunidade de manter a menor relação conosco. Quando fomos ver a casa, foi a esposa que nos mostrou tudo. Foi ela que, com pródiga exibição de encantos, com irresistível rolar dos olhos, se estendeu sobre os méritos da casa, cantou louvores à bomba elétrica, glorificou o banheiro (considerando-se, insistiu ela, que o aluguel era notavelmente modesto). Quando sugerimos chamar um avaliador para olhar a casa, implorou-nos ardentemente, como se nosso bem-estar fosse sua única preocupação, que não desperdiçássemos o dinheiro desnecessariamente fazendo coisa tão supérflua. "Afinal de contas", disse ela, "nós somos gente honesta. Eu não sonharia em alugar-lhes a casa a não ser em perfeitas condições. Tenham confiança. E olhou para mim com uma expressão suplicante e pesarosa em seus magníficos olhos, como a implorar-me que não a ofendesse com minha rude suspeita. Sem nos dar tempo de insistir mais na questão de avaliadores, começou então a assegurar-nos que nosso menino era o anjo mais belo que já vira. Quando terminou nossa entrevista com a signora Bondi, estávamos definitivamente decididos a ficar com a casa.
"Mulher encantadora", disse eu, quando saíamos da casa. Acho, porém, que Elizabeth não se sentia tão segura quanto eu.
Depois começou o episódio da bomba.
Na noitinha em que chegamos à casa ligamos a eletricidade. A bomba fez um ruído chiante muito profissional; mas não saiu água das torneiras do banheiro. Olhamos um para o outro com ar de dúvida.
"Mulher encantadora?" - disse Elizabeth, arqueando as sobrancelhas.
Pedimos para ser recebidos; mas de uma maneira ou outra o velho cavalheiro nunca podia atender-nos e a Signora estava invariavelmente fora de casa ou indisposta. Deixamos bilhetes; nunca foram respondidos. Por fim descobrimos que o único método para comunicar-nos com nossos senhorios, que viviam na mesma casa que nós, era descer até Florença e remeter-lhes uma carta registrada. Para recebê-la, tinham de assinar dois recibos separados e ainda, se quiséssemos pagar mais quarenta centavos, um terceiro documento incriminatório, que nos era devolvido depois. Não havia como fingir, como sempre ocorria com as cartas ou bilhetes comuns, que a comunicação nunca fora recebida. Começamos finalmente a receber respostas para nossas queixas. A Signora, que escrevia todas as cartas, começou dizendo-nos que, naturalmente, a bomba não funcionava, pois as cisternas estavam vazias, devido à prolongada seca. Tive de andar três milhas até o correio a fim de registrar minha carta lembrando-lhe que caíra violenta tempestade ainda na quarta-feira anterior e que consequentemente os tanques deviam estar com água acima de metade. A resposta veio: água para banho não fora garantida no contrato; e, se eu a queria, por que não mandara olhar a bomba antes de mudar para a casa? Outra caminhada até a cidade para perguntar à Signora da moradia ao lado se se lembrava das súplicas que nos fizera para que tivéssemos confiança nela e para informála que a existência de banheiro em uma casa era por si só garantia implícita de que devia haver água para banho. A resposta foi que a Signora não podia continuar mantendo comunicação com pessoas que lhe escreviam coisas tão indelicadas. Depois disso pus a questão nas mãos de um advogado. Dois meses mais tarde, a bomba foi realmente substituída. Mas tivemos de obter um mandado judicial antes que a mulher cedesse. E as despesas foram consideráveis.
Certo dia, quase no fim do episódio, encontrei-me com o velho cavalheiro na estrada, levando a passeio seu grande cão maremman - ou, melhor, sendo levado a passeio pelo cão. Isso porque para onde o cão puxava, o velho cavalheiro precisava forçosamente seguir. E quando o cão parava para cheirar ou raspar o chão, para deixar em um pilar de portão seu cartão de visita ou um desafio ofensivo, pacientemente, na sua ponta da trela, o velho tinha de esperar. Encontrei-o parado à beira da estrada, a algumas centenas de jardas abaixo de nossa casa. O cão farejava as raízes de um dos ciprestes gémeos que cresciam dos dois lados da entrada de uma fazenda. Ouvi o animal rosnar indignado consigo mesmo, como se tivesse cheirado um intolerável insulto. O velho Signor Bondi, atrelado a seu cão, esperava. Os joelhos dentro das calças tubulares cinzentas estavam ligeiramente dobrados. Descansando o peso do corpo sobre sua bepgala, ele fitava melancólica e vaziamente a vista. Os brancos de seus velhos olhos eram descoloridos como velhas bolas de bilhar. No rosto cinzento, profundamente enrugado, seu nariz era dispèpticamente vermelho. Seu bigode branco, irregular e amarelando nas pontas, caía em uma curva melancólica. Em sua gravata preta, usava um diamante muito grande; talvez fosse isso que a Szgnora Bondi achara tão atraente nele. Tirei o chapéu quando me aproximei. O velho olhou-me distraidamente e, só quando eu quase já passara por ele, é que me reconheceu.
- Espere - gritou ele atrás de mim - espere. Desceu apressadamente pela estrada em minha perseguição. Tomado completamente de surpresa e em situação desvantajosa - pois estava ocupado em replicar à afronta impressa nas raízes do cipreste - o cão deixou-se arrastar atrás dele. Espantado demais para fazer outra coisa senão obedecer, seguiu o dono.
- Espere! Esperei.
- Meu caro senhor - disse o velho cavalheiro, segurando-me pela lapela do paletó e soprando muito desagradàvelmente em meu rosto. - Quero pedir desculpa.
Olhou em roda, como se tivesse medo que o ouvissem às ocultas mesmo ali. - Quero pedir desculpa - prosseguiu - por aquele maldito negócio da bomba. Asseguro-lhe que, se o negócio tivesse sido comigo, eu teria acertado as coisas logo que o senhor pediu. O senhor tinha toda a razão: um banheiro é uma garantia implícita de água para banho. Vi desde o começo que não teríamos a menor probabilidade se o caso chegasse aos tribunais. Além disso, acho que devemos tratar nossos inquilinos da melhor maneira possível. Mas minha esposa - abaixou a voz - o fato é que ela gosta dessas coisas mesmo quando sabe que não tem razão e vai sair perdendo. Além disso, ela esperava, atrevo-me a dizer, que o senhor se cansasse de pedir e mandasse fazer o conserto por sua conta. Disse-lhe desde o começo que devíamos ceder. Ela, porém, não quis ouvir. Ela gosta disso, sabe? Agora, porém, viu que é preciso fazer o serviço. Dentro de dois ou três dias, o senhor terá água para seu banho. Mas eu achei que devia dizer-lhe como...
Todavia, o maremman, que a essa altura se refizera de sua surpresa de um momento antes, de repente, rosnando, saltou estrada acima. O velho cavalheiro tentou deter o animal, esforçou-se para segurar a trela, cambaleou sem firmeza, depois cedeu e deixou-se arrastar. - ... como sinto - prosseguiu ele, enquanto se distanciava de mim - que tenha acontecido esse pequeno desentendimento...
Mas não adiantava. - Adeus - disse sorrindo cortesmente e fazendo um gesto de súplica, como se tivesse lembrado repentinamente de um compromisso urgente e não tivesse tempo de explicar o que era. - Adeus. - Tirou o chapéu e abandonou-se completamente ao cão.
Uma semana mais tarde a água começou realmente a correr e, no dia seguinte ao do nosso primeiro banho, a Signora Bondi, vestida em cetim cinza-pombo e usando todas as suas pérolas, veio visitar-nos.
- Estamos em paz agora? - perguntou ela, com encantadora franqueza, quando trocávamos apertos de mão.
Asseguramos-lhe que, de nossa parte, certamente estávamos.
- Mas por que me escreveu cartas tão terrivelmente rudes? - disse ela, lançando-me um olhar de censura que teria levado à contrição o mais impiedoso malfeitor. - E aquele mandado. Como pôde fazer aquilo? A uma senhora...
Murmurei alguma coisa sobre a bomba e nossa necessidade de banhos.
- Mas como podia esperar que eu o ouvisse quando estava agindo daquela maneira? Por que não agiu de maneira diferente - cortesmente, delicadamente?
Sorriu para mim e baixou suas pálpebras trémulas.
Achei que era melhor mudar de assunto. É desagradável, quando se tem razão, ser levado a parecer que não se tem razão.
Algumas semanas depois recebemos uma carta devidamente registrada e por mensageiro expresso - na qual a Signora nos perguntava se pretendíamos renovar o contrato de aluguel (que era apenas por seis meses) e nos comunicava que, em caso afirmativo, o aluguel seria aumentado em 25 por cento, tendo em vista as melhorias executadas. Consideramo-nos felizes por termos, ao término de muitas negociações, conseguido renovar o contrato por um ano inteiro com apenas 15 por cento de aumento de aluguel.
Foi principalmente por causa da vista que nos sujeitamos a essas intoleráveis extorsões. Mas havíamos encontrado, depois de nela residir durante alguns dias, outras razões para gostar da casa. Delas a mais poderosa foi que, no filho mais nàvo do camponês, descobrimos o que parecia ser o companheiro perfeito para nosso menino. Entre o pequeno Guido - pois esse era seu nome - e o mais novo de seus irmãos e irmãs havia uma diferença de seis ou sete anos. Seus dois irmãos mais velhos trabalhavam com o pai no campo; desde a morte da mãe, dois ou três anos antes de os conhecermos, a irmã mais velha cuidava da casa e a mais nova, que acabara de deixar a escola, ajudava-a e, nos intervalos, tornava conta de Cuido, que a essa altura, porém, precisava muito pouco de quem tomasse conta dele; isso porque tinha de seis a sete anos e era precoce, confiante e responsável como são geralmente os filhos dos pobres, abandonados à sua própria sorte quase desde quando aprendem a andar.
Embora dois anos e meio mais velho que o pequeno Robin - numa idade cm que trinta meses contêm a experiência de quase meia vida - Guido não se aproveitava indevidamente de sua superioridade de inteligência e força. Nunca vi uma criança mais paciente, mais tolerante e menos tirânica. Nunca ria de Robin pelos desajeitados esforços que fazia para imitar os prodigiosos feitos do amigo. Não caçoava nem bravateava, mas ajudava o pequeno companheiro quando ele estava em dificuldades e explicava quando ele não era capaz de compreender. Em troca, Robin adorava-o, considerava-o como o modelar e perfeito Menino Grande e servil-mente o imitava em tudo quanto podia.
Essas tentativas de Robin para imitar o companheiro eram muitas vezes excessivamente ridículas. Por uma obscura lei psicológica, palavras e atos em si próprios muito sérios tornam-se cómicos assim que são imitados; e, se a imitação é uma paródia deliberada, quanto mais exata, tanto mais engraçada - pois a imitação exagerada de alguém que conhecemos não nos faz rir tanto quanto outra que seja quase indistinguivelmente igual ao original. A má imitação só é ridícula quando é uma sincera e ardorosa lisonja que não dá certo. As imitações de Robin eram em sua maioria dessa espécie. Suas heróicas e mal sucedidas tentativas de executar os feitos de força e habilidade que Guido podia realizar com facilidade eram intensamente cómicas. Suas cuidadosas e demoradas imitações dos hábitos e maneirismos de Guido não eram menos divertidas. As mais ridículas de todas, por serem mais seriamente executadas e mais incongruentes no imitador, eram as personificações que Robin fazia de Guido em atitude pensativa. Guido era uma criança pensativa, dado a meditações e repentinas abstrações. A gente o encontrava sentado em um canto, com o queixo na mão, o cotovelo sobre o joelho, mergulhado, segundo toda aparência, na mais profunda meditação. As vezes, mesmo no meio de seu brinquedo, ele se afastava de repente, para ficar parado, de mãos nas costas, franzindo a testa e fitando o chão. Quando isso acontecia, Robin ficava assustado e um pouco alarmado. Em perplexo silêncio olhava para o companheiro. "Guido", dizia suavemente, "Guido". Mas Guido geralmente estava preocupado demais para responder. Robin, não se atrevendo a insistir, aproximava-se dele e, colocando-se o mais próximo possível da atitude de Guido - parado napoleônicamente, com as mãos cruzadas nas costas, ou sentado na postura de Lorenzo, o Magnífico, de Michelangelo - tentava imitar também. De poucos em poucos segundos, voltava os brilhantes olhos azuis para a criança mais velha a fim de ver se estava fazendo direito as coisas. Mas ao fim de um minuto começava a ficar impaciente. A meditação não era seu forte. "Guido", chamava ele de novo e, em voz mais alta: "Guido!" Segurava-o pela mão e tentava puxálo. Às vezes Guido despertava de seu devaneio e voltava ao brinquedo interrompido. Outras vezes não prestava atenção. Melancólico e perplexo, Robin precisava ir brincar sozinho. Guido lá continuava sentado ou em pé, absolutamente imóvel; e seus olhos, quando a gente olhava dentro deles, eram belos em sua calma grave e pensativa.
Eram olhos grandes, bem separados e, coisa estranha em uma criança italiana de cabelos pretos, de cor cinza-azulada pálida e luminosa. Nem sempre eram graves e calmos, como nesses momentos pensativos. Quando estava brincando, quando falava ou ria, eles se iluminavam; e a superfície daqueles claros e pálidos lagos de pensamento pareciam, por assim dizer, agitar-se em brilhantes ondas iluminadas pelo sol. Acima daqueles olhos havia uma bela testa, alta e inclinada, subindo em uma inclinação que era como a curva sutil de uma pétala de rosa. O nariz era reto, o queixo pequeno e bem pontudo, a boca caída um pouco tristemente nos cantos.
Tenho um instantâneo das duas crianças sentadas juntas sobre o parapeito do terraço. Guido está sentado quase de frente para a câmara, mas olhando um pouco de lado e para cima; suas mãos estão cruzadas no colo, sua expressão e sua atitude são pensativas, graves e meditativas. E Guido em uma daquelas suas atitudes de abstração a que se entregava mesmo no auge das risadas e brincadeiras - de repente e completamente, como se tivesse de súbito posto na cabeça a ideia de ir embora e deixado para trás o corpo belo e silencioso, como uma casa vazia, a esperar por seu regresso. A seu lado está sentado o pequeno Robin, virando-se para olhá-lo, com o rosto meio escondido da câmara, mas com a curva de sua face mostrando que está rindo; uma pequena mão erguida é apanhada no alto de um gesto, enquanto a outra segura a manga de Guido, como se estivesse insistindo com ele para ir brincar. E as pernas pendendo do parapeito foram vistas pela máquina piscante no meio de um movimento impaciente; ele está a ponto de deixar-se escorregar e sair correndo para ir brincar de esconde-esconde no jardim. Todas as características essenciais das duas crianças estão naquele pequeno instantâneo.
- Se Robin não fosse Robin - costumava dizer Elizabeth - eu seria quase capaz de desejar que fosse Guido.
Mesmo naquele tempo, quando eu não dedicava interesse particular à criança, concordei com ela. Guido parecia-me um dos meninos mais encantadores que eu já conhecera.
Não éramos os únicos a admirá-lo. A Signora Bondi quando, naqueles cordiais intervalos entre nossas brigas, vinha visitar-nos, falava nele constantemente.
- Uma criança tão bonita, tão bonita! - exclamava ela com entusiasmo. - É realmente uma pena pertencer a camponeses que não dispõem de recursos para vesti-la convenientemente. Se fosse minha, eu a vestiria de veludo preto; ou calções brancos e uma malha de seda branca com uma lista vermelha na gola e nos punhos; ou talvez ficasse bonito com um terno branco de marinheiro. E no inverno um pequeno capote de pele, com um gorro de pele de esquilo e possivelmente botas russas... - Sua imaginação arrebatava-a. - E eu deixaria seu cabelo crescer, como o de um pajem, e mandaria enrolá-lo um pouco nas pontas. Faria uma franja reta na testa. Todos se virariam para olhar-nos se eu o levasse comigo à Via Tornabuoni.
O que você quer, gostaria de ter-lhe dito, não é uma criança; é uma boneca de corda ou um macaco artista. Mas não disse isso - em parte, porque não fui capaz de descobrir como se dizia boneca de corda em italiano e, em parte; porque não queria arriscar-me a ter o aluguel aumentado em mais 15 por cento.
- Ah, se eu tivesse um menino como esse! - Ela suspirava e baixava modestamente as pálpebras. - Adoro crianças. As vezes penso em adotar uma... isto é, se meu marido deixasse.
Pensei no pobre e velho cavalheiro sendo arrastado atrás de seu grande cão branco e sorri por dentro.
- Mas não sei se ele deixaria - continuava a Signora. - Não sei se ele deixaria.
Ficou em silêncio por um momento, como se estivesse considerando uma nova ideia.
Alguns dias mais tarde, quando estávamos sentados no jardim depois do almoço, tomando nosso café, o pai de Guido, em lugar de passar com um aceno de cabeça e o habitual e alegre bomdia, parou diante de nós e começou a falar. Era um homem muito bonito, não muito alto, mas bem proporcionado, de movimentos rápidos é elásticos, e cheio de vida. Tinha um fino rosto moreno, de feições iguais às de um romano e iluminadas pelo par de olhos cinzentos de expressão mais inteligente que eu já vi. Mostravam inteligência quase excessiva quando, como não era raro acontecer, estava tentando, com uma presunção de perfeita fraqueza e infantil inocência, convencer alguém ou tomar alguma coisa de alguém. Divertindo-se consigo mesma, a inteligência brilhava ali maliciosamente. O rosto podia ser ingénuo, impassível, quase imbecil em sua expressão; mas os olhos nessas ocasiões traíam-no completamente. Quando cintilavam daquela maneira, a gente sabia que era preciso ter cuidado.
Naquele dia, porém, não havia neles luz perigosa. Ele nada queria de nós, nada de valor apenas conselho, artigo que, como ele sabia, a maioria das pessoas tem muito prazer em dar. Contudo, queria conselho sobre o que era, para nós, um assunto muito delicado: sobre a Signora Bondi. Cario muitas vezes se queixara dela para nós. O velho é bom, dizia-nos ele, muito bom e caridoso. O que significava, ouso dizer, entre outras coisas, que era fácil de enganar. Mas a esposa... Bem, a mulher era uma fera. E ele nos contou histórias sobre a insaciável ganância dela; estava sempre reclamando mais de metade da produção que, pela lei do sistema de meação, era devida ao proprietário. Queixou-se da desconfiança dela: estava sempre acusando-o de desonestidades, de roubo mesmo - a ele, disse batendo no peito, que era a honestidade em pessoa. Queixou-se da estúpida avareza dela: não gastava o suficiente em estéreo, não comprava outra vaca para ele, não mandava instalar luz elétrica nos estábulos. Nós demonstramos simpatia, mas cautelosamente, sem expressar opinião muito veemente sobre o assunto. Os italianos são maravilhosamente comedidos em suas palavras. Nada revelam a uma pessoa interessada até terem absoluta certeza que fazer isso é direito, necessário e, acima de tudo, seguro. Nós havíamos vivido entre eles o suficiente para imitar sua cautela. O que disséssemos a Cario, mais cedo ou mais tarde, seguramente chegaria aos ouvidos da Signora Bondi. Nada tínhamos a ganhar agravando desnecessariamente nossas relações com a mulher - muito provavelmente só teríamos a perder outros 15 por cento.
Naquele dia, ele não estava tanto se queixando quanto se mostrando perplexo. Parece que a Signora mandara chamá-lo e lhe perguntara se ele gostaria que ela se oferecesse - era tudo muito hipotético, no cauteloso estilo italiano - para adotar o pequeno Guído. O primeiro impulso de Cario fora dizer que absolutamente não gostaria. Mas uma resposta assim teria sido muito grosseiramente comprometedora. Preferira dizer que ia pensar no assunto. E para isso estava pedindo nosso conselho.
Faça o que achar melhor, foi o que respondemos na realidade. Mas dêmos-lhe a entender distantemente, embora distintamente, que em nossa opinião a Signora Bondi não seria uma mãe adotiva muito boa para a criança. E Cario estava inclinado a concordar com isso. Ademais, ele gostava muito do menino.
- O negócio - concluiu ele com ar bastante sombrio - é que se ela resolver mesmo apossar-se do menino não há nada que ela não faça para isso... nada.
Pude ver que ele também gostaria que, antes de tentar explorar o átomo, os físicos começassem a lidar com a mulher desocupada sem filhos e de temperamento sanguíneo. No entanto, refleti, enquanto o observava caminhando a passos largos pelo terraço, cantando poderosamente com uma garganta de bronze, nele havia força, havia vida suficiente naqueles membros elásticos, por trás daqueles brilhantes olhos cinzentos, para travar uma boa luta mesmo contra as acumuladas energias vitais da Signora Bondi.
Foi alguns dias depois disso que meu gramofone e duas ou três caixas de discos chegaram da Inglaterra. Foram um grande conforto para nós naquele monte, pois forneceram a única coisa que naquela solidão espiritualmente fértil - afora isso uma perfeita ilha da Família Robinson Suíça estava faltando: música. Não há atualmente em Florença muita música que se possa ouvir. Já se foram os tempos em que o Dr. Burney podia viajar por toda a Itália, ouvindo uma sucessão ininterrupta de novas óperas, sinfonias, quartetos e cantatas. Estão longe os dias em que um músico erudito, inferior apenas ao reverendo padre Martini, de Bolonha, podia admirar o que os camponeses cantavam e os intérpretes ambulantes zangarreavam e arranhavam em seus instrumentos. Viajei durante semanas pela península e raramente ouvi uma nota que não fosse de "Salomé" ou da canção dos fascistas. Não sendo rica em outra coisa que torne a vida agradável ou mesmo tolerável, as metrópoles do norte são ricas em música. Essa é talvez a única razão que um homem razoável pode encontrar para viver lá. As outras atrações - alegria organizada, gente, conversas mistas, os prazeres sociais - que são essas coisas, afinal de contas, senão um dispêndio de espírito que nada compra em troca? E depois o frio, o escuro, a sujeira apodrecendo, a umidade e a imundícia... Não, onde não há necessidade quem prenda, a música pode ser a única atração. E isso, graças ao engenhoso Edison, pode ser agora levado em uma caixa e desempacotado em qualquer lugar solitário que a gente queira visitar. A gente pode viver em Benin, Nuneaton ou Tozeur, no Saara, e ainda assim ouvir os quartetos de Mozart, seleções do Cravo Bem Temperado, a Quinta Sinfonia, o quinteto para clarineta de Brahms e os motetes de Palestrina.
Cario, que fora até a estação com sua mula e o carro buscar a caixa, estava muito interessado na máquina.
- Ouviremos novamente um pouco de música - disse ele, enquanto me observava desempacotar o gramofone e os discos. - E difícil para gente tocar muita música.
Ainda assim, refleti, ele conseguia fazer muito. Nas noites quentes, costumávamos ouvi-lo, sentado na porta de sua casa, tocando guitarra e cantando suavemente. O menino mais velho tirava estridentemente a melodia no bandolim. As vezes toda a família aderia e a escuridão enchia-se de seu canto apaixonado e rouco. Cantavam principalmente canções de Piedigrotta; e as vozes decaíam pastosamente de nota para nota, subiam preguiçosamente ou se sacudiam com repentinas ênfases soluçantes de um tom para outro. A distância e sob as estrelas o efeito não era desagradável.
- Antes da guerra - continuou ele - em tempos normais (e Cario tinha esperança, até mesmo crença, de que os tempos normais iam voltar e a vida logo ficaria tão fácil e barata como nos dias anteriores à enchente) - eu costumava ir ouvir as óperas no Politeama. Ah, eram magníficas. Mas agora a entrada custa cinco liras.
- É demais - concordei.
- O senhor tem "Trovatore"? - perguntou ele. Sacudi negativamente a cabeça.
- "Rigoletto1?
- Acho que não.
- "Bohème"? "Fanciulla dei West"? "Pagliacci"? Precisei continuar decepcionando-o.
- Nem "Norma"? Ou o "Barbiere"?
Pus Battistini em "La ei darem" de "Don Giovanni". Ele concordou em que o canto era bom; mas pude ver que não gostou muito da música. Por que não? Ele achava difícil explicar.
- Não é como "Pagliacci" - disse por fim.
- Não é palpitante? - sugeri, empregando uma palavra que tinha certeza lhe seria familiar; isso porque surge em todo discurso político e artigo de fundo patriótico italiano.
- Não é palpitante - concordou ele.
Refleti que é precisamente pela diferença entre "Pagliacci" e "Don Giovanni", entre o palpitante e o não palpitante, que o gosto musical moderno se distingue do antigo. A corrupção do melhor, pensei eu, é o pior. Beethoven ensinava a música a palpitar com sua paixão intelectual e espiritual. Continuou palpitando desde então, mas com a paixão de homens inferiores. Indiretamente, pensei, Beethoven é responsável por "Parsifal", "Pagliacci" e "Põem of Fire"; ainda mais indiretamente, por "Samson and Delilah" e "Ivy, cling to me". As melodias de Mozart podem ser brilhantes, memoráveis, contagiosas; mas não palpitam, não prendem a gente entre vento e água, não arrebatam o ouvinte em êxtases eróticos.
Para Cario e seus filhos mais velhos, meu gramofone, temo eu, foi quase uma decepção. Eram delicados demais, porém, para dizer isso abertamente. Simplesmente, depois de um ou dois dias, deixaram de mostrar interesse pela máquina e pela música que ela tocava. Preferiam a guitarra e seus próprios cantos.
Cuido, por outro lado, interessava-se imensamente. Apreciava, a coisa genuína, não as alegres músicas de dança, a cujos ritmos animados nosso pequeno Robin gostava de bater os pés de um lado para outro na sala, fingindo ser um regimento inteiro de soldados. Lembro-me que o primeiro disco que ele ouviu foi o do movimento lento do Concerto em Ré Menor para dois violinos, de Bach. Essa foi a gravação que pus no toca-disco logo que Cario saiu. Pareceu-me, por assim dizer, a peça de música mais musical com que eu poderia refrescar minha mente seca havia tanto tempo - o mais fresco e mais claro de todos os sopros de vento. O movimento acabara de pôr-se em ação e estava começando a desdobrar suas puras e melancólicas belezas de acordo com as leis da mais precisa lógica intelectual, quando as duas crianças, Cuido na frente e o pequeno Robin seguindo-o sem fôlego, entraram barulhentamente da loggia para a sala.
Cuido estacou diante do gramofone e ficou parado, imóvel, ouvindo. Seus olhos de um cinza-azul pálido arregalaram-se; fazendo um pequeno gesto nervoso que eu muitas vezes antes já observava nele, segurou o lábio inferior com o polegar e o indicador. Devia ter respirado muito fundo, pois notei que, depois de ouvir por alguns segundos, expirou fortemente e tomou nova golfada de ar. Por um instante olhou para mim - um olhar interrogativo, espantado, arrebatado deu uma pequena risada que terminou em uma espécie de calafrio nervoso e voltou a olhar para a fonte dos incríveis sons. Imitando servilmente seu companheiro mais velho, Robin também havia parado diante do gramofone exatamente na mesma posição, olhando para Cuido de tempos a tempos para ter certeza de estar fazendo tudo, até o segurar do lábio, da maneira correta. Depois de um minuto mais ou menos, aborreceu-se, porém.
- Soldados - disse ele, virando-se para mim. - Quero soldados. Como em Londres.
Ele se lembrava do ragtime e das alegres marchas em volta da sala.
Levei o dedo aos lábios.
- Depois - sussurrei.
Robin conseguiu ficar em silêncio e imóvel talvez por mais vinte segundos. Depois agarrou Guido pelo braço, gritando:
- Vieni, Guido! Soldados. SóIdati. Vienigiuocare soldati.
Foi então, pela primeira vez, que vi Guido impaciente.
- Vai! - sussurrou ele colericamente. Deu um tapa na mão de Robin e empurrou-o rudemente. Debruçou-se um pouco mais sobre o instrumento, como se quisesse; escutando de maneira ainda mais intensa, compensar o que a interrupção lhe fizera perder.
Robin olhou para ele espantado. Tal coisa nunca acontecera. Depois desandou a chorar e procurou-me para que o consolasse.
Quando as pazes foram feitas - e Guido ficou sinceramente arrependido, mostrou-se o mais delicado que sabia ser depois que a música cessou e seu espírito se viu novamente livre para pensar em Robin - perguntei-lhe se gostara da música. Ele disse que a achava bela. Mas bello em italiano é uma palavra vaga demais, proferida com muita facilidade e frequência, para ter grande significação.
- Do que você gostou mais? - insisti. Isso porque ele parecia gostar tanto da música que fiquei curioso por descobrir o que realmente o impressionara.
Ele ficou silencioso por um momento, franzindo a testa pensativamente.
- Bem - disse por fim - gostei daquele pedaço que é assim.
- E cantarolou uma longa frase. - Depois há a outra coisa cantando ao mesmo tempo... Que são aquelas coisas - perguntou, interrompendo o que vinha dizendo - que cantam daquele jeito?
- Chamam-se violinos - respondi.
- Violinos - repetiu ele, acenando com a cabeça. - Bem, os outros violinos fazem assim. - Cantarolou de novo. - Por que a gente não pode cantar como os dois ao mesmo tempo? E que há dentro daquela caixa? Como é que ela faz aquele som?
A criança despejou suas perguntas.
Respondi da melhor maneira que pude, mostrando-lhe as pequenas espirais no disco, a agulha, o diafragma. Pedi-lhe que se lembrasse como a corda da guitarra tremia quando era tangida; o som é uma sacudidura no ar, falei-lhe, e tentei explicar como essas sacudiduras eram impressas no disco preto. Guião ouvia-me muito gravemente, acenando com a cabeça de tempos a tempos. Tive a impressão de que compreendia perfeitamente tudo quanto eu estava dizendo.
A essa altura, porém, o pobre Robin estava tão terrivelmente aborrecido que, por pena dele, tive de mandar as duas crianças irem brincar no jardim. Guido saiu obedientemente; mas pude ver que teria preferido ficar dentro de casa e ouvir mais música. Pouco depois, quando olhei para fora, ele estava escondido nos escuros recessos de um grande loureiro, rugindo como um leão, e Robin, rindo, mas um pouco nervoso, como se tivesse medo que o horrível ruído pudesse, afinal de contas, transformar-se no rugido de um leão verdadeiro, rodeava a árvore com uma vara na mão e gritava:
- Saia, saia! Quero atirar em você.
Depois do almoço, após Robin ter subido para dormir seu sono da tarde, ele reapareceu.
- Posso ouvir a música agora? - perguntou.
Durante uma hora ficou sentado em frente do instrumento, a cabeça ligeiramente pendida para um lado, ouvindo enquanto eu punha um disco após outro.
A partir de então vinha toda tarde. Em pouco tempo conhecia minha discoteca inteira, tinha suas preferências e aversões, e sabia pedir o que desejava cantarolando o tema principal.
- Não gosto dessa - disse ele, a respeito de "Till Eulen Spie-gel", de Strauss. - É igual ao que cantamos em nossa casa. Não igual mesmo, sabem? Mas, não sei como, parecida. Compreendem?
Ergueu os olhos para nós perplexo e suplicante, como que nos implorando que compreendêssemos o que queria dizer e assim lhe poupássemos o sacrifício de continuar a explicar. Concordamos com a cabeça. Guido continuou!
- Depois - disse ele - o fim não parece vir direito do começo. Não é como aquela que o senhor tocou na primeira vez.
Cantarolou um trecho do movimento lento do Concerto em Ré Menor de Bach.
- Não é - sugeri eu - o mesmo que dizer: Todos os meninos gostam de brincar. Guido é um menino. Logo Guido gosta de brincar.
Ele franziu a testa.
- Sim, talvez seja isso - disse por fim. - Aquela que o senhor tocou primeiro é mais desse jeito. Mas, sabe? - acrescentou, com excessiva consideração pela verdade. - Eu não gosto de brincar tanto quanto Robin.
Wagner estava entre as coisas de que não gostava. O mesmo acontecia com Debussy. Quando toquei o disco de um dos "Arabesques" de Debussy, ele comentou:
- Por que ele diz a mesma coisa uma porção de vezes? Devia
dizer alguma coisa nova, ou continuar ou fazer a coisa crescer. Será que ele não pode pensar em alguma coisa diferente?
Foi menos severo, porém, com "Après-Midi d'un Faune".
- As coisas têm vozes bonitas - disse.
Mozart esmagava-o de prazer. O dueto de "Don Giovanni", que o pai achara insuficientemente palpitante, encantava Guido. Mas preferia os quartetos e as peças orquestrais.
- Eu gosto de música - disse - mais que de canto.
A maioria das pessoas, refleti, gosta mais de canto que de música; interessa-se mais pelo intérprete do que por aquilo que ele interpreta e acha a orquestra impessoal menos comovente que o solista. O toque do pianista é o toque humano e o alto dó do soprano é a nota pessoal. E por causa desse toque e dessa nota que o público enche os salões de concerto.
Guido, porém, preferia a música. E verdade que gostava de "La ei darem", gostava de "Deh vieni alia finestra"; achava "Che soave zefiretto" tão encantador que quase todos os nossos concertos tinham de começar por ele. Mas preferia as outras coisas.
A abertura do "Figaro" era uma de suas peças favoritas. Há uma passagem, não muito depois do começo da peça, em que os primeiros violinos de repente sobem como foguetes até o auge da beleza; quando a música se aproximava desse ponto, eu sempre via um sorriso desenvolver-se e depois gradualmente iluminar o rosto de Guido; e quando, pontualmente, a coisa acontecia, ele batia palmas e ria alto de prazer.
Do outro lado do mesmo disco estava gravada a abertura de "Egmont" de Beethoven. Ele gostava disso quase mais que do "Figaro".
- Tem mais vozes - explicava. E eu fiquei encantado pela argúcia da crítica, pois é precisamente na riqueza de sua orquestração que "Egmont" supera "Figaro".
Mas o que o excitou mais que qualquer outra coisa foi a abertura de "Coriolano". O terceiro movimento da "Quinta Sinfonia", p segundo movimento da "Sétima", o movimento lento do "Concerto do Imperador" - todos esses trechos agradavam-no quase igualmente. Mas nenhuma peça o excitava tanto quanto "Corio-lano". Certo dia fêz-me tocá-la três ou quatro vezes em seguida. Depois a deixou de lado.
- Acho que não quero mais ouvir isso - disse.
- Por que não?
- E muito... muito... - hesitou - muito grande - disse por fim. - Não compreendo realmente. Toque-me aquela que faz assim.
Cantarolou a frase do Concerto em Ré Menor.
- Gosta mias dessa? - perguntei. Sacudiu negativamente a cabeça.
- Não, não é exatamente isso. Mas é mais fácil.
- Mais fácil?
Essa me pareceu uma expressão estranha para aplicar a Bach.
- Compreendo-a melhor.
Certa tarde, quando estávamos no meio de nosso concerto, apareceu a Signora Bondi. Começou logo a mostrar-se esmagadora-mente afetuosa para com a criança; beijava-a, dava-lhe tapinhas na cabeça, fazia os mais infames elogios à sua aparência. Guido afastava-se dela.
- E você gosta de música? - perguntou ela. A criança acenou a cabeça afirmativamente.
- Penso que ele tem um dom - disse eu. - De qualquer maneira, tem um ouvido maravilhoso e uma capacidade de ouvir e criticar como nunca encontrei em criança dessa idade. Estamos pensando em alugar um piano para ele aprender a tocar.
Um momento depois eu me amaldiçoava por minha inconveniente franqueza ao elogiar o menino. Isso porque a Signora Bondi começou imediatamente a protestar que, se pudesse ter a incumbência de criar o menino, lhe daria os melhores professores, desenvolveria seu talento, faria dele um consumado maestro - e, de passagem, um menino prodígio. Nesse momento, tenho certeza, ela se viu sentada maternalmente, com pérolas e cetim preto, ao lado do enorme Steinway, enquanto um angélico Guido, vestido como o pequeno Lorde Fauntleroy, martelava Liszt e Chopin para grande prazer do auditório repleto. Ela via os buques e todas as caprichosas homenagens florais, ouvia as palmas e as poucas e bem escolhidas palavras com que os maestros veteranos, comovidos quase até as lágrimas, saudavam o aparecimento do pequeno génio. Tornou-se para ela mais importante do que nunca adquirir a criança.
- Você a deixou delirante - disse Elizabeth, depois que a Signora Bondi se retirou. - Ê melhor dizer-lhe na próxima vez que cometeu um engano e que o menino não tem o menor talento musical.
No devido tempo, o piano chegou. Depois de dar-lhe o mínimo de instrução preliminar, deixei Guido à vontade com ele. Começou por tirar sozinho as melodias que ouvira, reconstruindo as harmonias em que elas estavam encerradas. Depois de algumas lições, compreendeu os rudimentos da notação musical e tornou-se capaz de ler uma passagem simples à primeira vista, embora muito devagar. O processo inteiro de leitura ainda lhe era estranho; havia aprendido as letras de alguma maneira, mas ninguém ainda lhe ensinara a ler palavras e frases inteiras.
Aproveitei a oportunidade, na vez seguinte em que vi a Signora Bondi, para assegurar-lhe que Guido me decepcionara. Nada havia realmente em seu talento. Ela fingiu estar muito triste em saber disso, mas pude ver que nem por um momento acreditou no que eu dizia. Provavelmente pensou que nós também estávamos atrás do menino e queríamos tomar a criança prodígio para nós, antes que ela pudesse impor sua reivindicação, privando-a assim do que considerava quase seu direito feudal. Afinal de contas, eles não eram seus camponeses? Se alguém tinha de beneficiar-se adotando a criança, devia ser ela.
Com tato e diplomacia, ela reiniciou suas negociações com Cario. O menino, disse-lhe ela, tinha génio. Quem lhe dissera isso fora o cavalheiro estrangeiro, evidentemente um homem que entendia dessas coisas. Se Cario a deixasse adotar a criança, ela o faria estudar. Ele se tornaria maestro e se apresentaria na Argentina, nos Estados Unidos, em Paris e Londres. Ganharia milhões e milhões. Veja Caruso, por exemplo. Parte dos milhões, explicou ela, iria naturalmente para Cario. Mas antes que começassem a entrar esses milhões, o menino precisava ser ensinado. O ensino, era, porém, muito caro. Em seu próprio interesse, assim como no de seu filho, ele devia deixar que ela tomasse conta dele. Cario disse que ia pensar e veio novamente pedir-nos conselho. Sugerimos-lhe que o melhor em qualquer caso seria esperar um pouco e ver que progresso faria o menino.
Apesar de minhas afirmações à Signora Bondi, ele fazia excelente progresso. Toda tarde, enquanto Robin dormia, vinha para seu concerto e sua lição. Estava indo maravilhosamente na leitura; e seus dedinhos adquiriam força e agilidade. O que me pareceu mais interessante, porém, é que começou a compor pequenas peças por sua própria conta. Algumas delas eu anotei enquanto ele as tocava e ainda as tenho. Estranhamente, a maioria delas era cânones. Ele tinha paixão por cânones. Quando lhe expliquei os princípios da forma, ficou encantado.
- E belo - disse, com admiração. - Belo, belo. E tão fácil.
Novamente a palavra me surpreendeu. Afinal de contas, o cânone não é tão conspicuamente fácil. A partir de então ele passava a maior parte do tempo ao piano fazendo pequenos cânones para seu próprio divertimento. Eram muitas vezes notavelmente engenhosos. Na invenção de outras espécies de música, porém, não se mostrou tão fértil quanto eu esperava. Compôs e harmonizou uma ou duas solenes àriazinhas como melodias de hinos, bem como algumas peças mais animadas dentro do espírito da marcha militar. Eram extraordinárias, naturalmente, como invenções de criança. Mas muitas crianças são capazes de fazer coisas extraordinárias; todos nós somos génios até os dez anos idade. Eu esperara, porém, que Guido fosse uma criança destinada a ser um génio aos quarenta anos; caso em que as coisas extraordinárias para uma criança não eram suficientemente extraordinárias para ele. "Não chega a ser um Mozart", concordamos, depois de tocarmos suas pequenas peças. Senti-me, devo confessar, quase ofendido. Parecia-me que dificilmente valeria a pena pensar em algo que fosse menos que Mozart.
Ele não era um Mozart. Não. Mas era alguém, como eu ia descobrir, igualmente extraordinário. Foi numa manhã do começo do verão que fiz a descoberta. Estava sentado à sombra quente de nosso balcão, que dava para oeste, trabalhando. Guido e Robin brincavam no pequeno jardim fechado embaixo. Absorto em meu trabalho, acho que somente após o silêncio ter-se prolongado por tempo considerável é que percebi que as crianças estavam fazendo notavelmente pouco barulho. Não havia gritos, nem corre-rias; só fala baixa. Sabendo por experiência que quando crianças estão quietas geralmente é porque estão absortas em alguma deliciosa travessura, levanteime de minha cadeira e olhei pela balaustrada para ver o que estavam fazendo. Esperava surpreendêlos brincando na água, fazendo uma fogueira, cobrindo-se de piche. Na realidade, o que vi foi Guido, com uma vara de ponta queimada na mão, demonstrando sobre as lisas pedras da alameda que o quadrado da hipotenusa de um triângulo retângulo é igual à soma dos quadrados dos outros dois lados.
Ajoelhado no chão, ele desenhava nas pedras com a ponta queimada da vara. E Robin, ajoelhado imitativãmente ao lado dele, estava ficando, como pude ver, muito impaciente com aquele jogo vagaroso demais.
- Cuido - disse ele. Mas Guido não prestava atenção. Franzindo a testa pensativamente, continuava seu diagrama. - Guido!
- A criança mais nova curvou-se e depois esticou o pescoço para olhar Guido no rosto. Por que você não desenha um trem?
- Depois - disse Guido. - Mas só quero mostrar-lhe isto primeiro. E tão belo acrescentou adulatòriamente.
- Mas eu quero um trem - insistiu Robin.
- Daqui a um momento. Espere só um momento.
O tom era quase suplicante. Robin armou-se de renovada paciência. Um minuto depois Guido havia terminado seus dois diagramas.
- Pronto! - disse triunfantemente e endireitou-se para olhá-los.
- Agora eu vou explicar.
Passou então a demonstrar o teorema de Pitágoras - não à maneira de Euclides, mas pelo método mais simples e mais satisfatório que, com toda probabilidade, era empregado pelo próprio Pitágoras. Havia desenhado um quadrado e o dividira, por meio de um par de perpendiculares cruzadas, em dois quadrados e dois retângulos iguais. Os retângulos iguais ele dividia por suas diagonais em quatro triângulos retângulos iguais. Os dois quadrados mostraram-se então como sendo os quadrados sobre os dois lados de qualquer um desses triângulos que não a hipotenusa. Isso no primeiro diagrama. No outro, ele tomou os quatro triângulos retângulos em que haviam sido divididos os retângulos e os arrumou de novo em volta do quadrado original, de modo que seus ângulos retos preencheram os cantos do quadrado, as hipotenusas ficaram voltadas para dentro e os lados maior e menor dos triângulos ficaram em continuação ao longo dos lados do quadrado (que são iguais à soma daqueles lados). Dessa maneira, o quadrado original é redividido em quatro triângulos retângulos e o quadrado sobre a hipotenusa. Os quatro triângulos são iguais aos dois retângulos da divisão original. Portanto, o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos dois quadrados - os quadrados nos outros dois lados - em que, com os retângulos, o quadrado original foi pela primeira vez dividido.
Em linguagem muito pouco técnica, mas claramente e com impecável lógica, Guido fez sua demonstração. Robin ouviu, com uma expressão de perfeita incompreensão em seu brilhante rosto sardento.
- Trenó - repetia ele de tempos a tempos. - Trenó. Faça um trem.
- Daqui a um momento - implorava Cuido. - Espere um momento. Mas olhe isto. Olhe.
- Ele adulava e agradava Robin para que o atendesse. - É tão belo. É tão fácil.
Tão fácil... O teorema de Pitágoras pareceu-me explicar as predileções musicais de Guido. Não era um Mozart infantil que estávamos alimentando; era um pequeno Arquimedes com ocasional inclinação musical, como a maioria dos de sua espécie.
- Trenó, trenó!! - gritava Robin, ficando cada vez mais inquieto com o prosseguir da exposição. Quando Guido insistiu em continuar sua demonstração, ele perdeu a calma. - Cattivo Guido - gritou e começou a bater nele com os punhos.
- Está bem - disse Guido resignadamente. - Eu vou fazer um trem.
E com sua vara de carvão começou a rabiscar nas pedras.
Continuei olhando em silêncio por um momento. Não era um trem muito bom. Guido podia ser capaz de inventar sozinho e demonstrar o teorema de Pitágoras; mas não era grande desenhista.
- Guido! - chamei eu. Os dois meninos viraram-se e olharam para cima. - Quem ensinou você a desenhar aqueles quadrados?
Era admissível, naturalmente, que alguém pudesse tê-lo ensinado.
- Ninguém.
Sacudiu negativamente a cabeça. Depois, ansiosamente, como se tivesse medo que houvesse algo de errado em desenhar quadrados, prosseguiu para desculpar-se e explicar.
- Sabe? - disse. - Pareceu-me tão belo. Porque aqueles quadrados - apontou para os dois quadrados pequenos na primeira figura - são exatamente do mesmo tamanho que este. - E, indicando o quadrado da hipotenusa no segundo diagrama, ergueu os olhos para mim com um sorriso súplice.
Concordei com um aceno de cabeça.
- Sim, é muito belo - disse eu - é realmente muito belo. Uma expressão de delicioso alívio apareceu em seu rosto. Riu de prazer.
- .Está vendo? É assim - continuou ele, ansioso por iniciar-me no glorioso segredo que havia descoberto. - O senhor corta estes dois quadrados compridos - referia-se aos retângulos em duas fatias. Então ficam quatro fatias, todas exatamente iguais, porque, porque... oh, eu devia ter dito isto antes. .. porque estes quadrados compridos são os mesmos, porque aquelas linhas, está vendo... ?
- Mas eu quero um trem - protestou Robin.
Debruçado sobre a grade do balcão, observei as duas crianças embaixo. Pensei na coisa extraordinária que acabara de ver e no que ela significava.
Pensei nas vastas diferenças que existem entre seres humanos. Classificamos os homens pela cor de seus olhos e cabelos, pelo formato de seus crânios. Não seria mais sensato dividi-los em espécies intelectuais? Entre os tipos mentais extremos haveria diferenças ainda mais vastas do que entre um bosquimano e um escandinavo. Esta criança, pensei, quando crescer, será em relação a mim, intelectualmente, o que um homem é em relação a um cão. E há outros homens e mulheres que são talvez em relação a mim quase como cães.
Talvez os homens de génio sejam os únicos verdadeiros homens. Em toda a história da raça houve apenas alguns milhares de verdadeiros homens. E o resto de nós - que somos? Animais capazes de aprender. Sem a ajuda dos homens verdadeiros, quase absolutamente nada teríamos descoberto. Quase todas as ideias com que estamos familiarizados nunca teriam ocorrido a mentes como as nossas. Plantando as sementes ali, elas crescerão; mas nossas mentes jamais poderiam têlas gerado espontaneamente.
Tem havido nações inteiras de cães, pensei eu; épocas inteiras em que não nasceu um único Homem. Dos obtusos egípcios os gregos receberam tosca experiência e normas práticas, e fizeram ciências. Mais de mil anos transcorreram antes que Arquimedes tivesse um sucessor comparável a ele. Existiu apenas um Buda, um Jesus, apenas um Bach de que temos notícias, um Michelangelo.
Será por mero acaso, pensei eu, que um Homem nasce de tempos em tempos? Que coisa faz com que toda uma constelação deles nasça contemporaneamente e no meio de um único povo? Taine achava que Leonardo, Michelangelo e Rafael haviam nascido quando nasceram porque o tempo estava maduro para grandes pintores e o ambiente italiano era congenial. Na boca de um francês racionalista do século XIX a doutrina é estranhamente mística. Talvez nem por isso seja menos verdadeira. Mas e aqueles que nasceram fora de tempo? Blake, por exemplo. Que dizer deles?
Esta criança, pensei, teve a fortuna de nascer numa época em que poderá aproveitar bem suas capacidades. Encontrará ao alcance de suas mãos os mais minuciosos métodos analíticos; terá atrás dela uma experiência prodigiosa. Suponha-se que tivesse nascido quando Stone Henge estava sendo construída; poderia ter passado a vida descobrindo os rudimentos, adivinhando no escuro, ao passo que agora talvez possa ter uma oportunidade de provar. Nascido na época da Conquista Normanda, teria precisado lutar com todas as dificuldades preliminares criadas por um simbolismo inadequado; levaria longos anos, por exemplo, para aprender a arte de dividir MMMCCCCLXXXVIII por MCMXIX. Atualmente, aprenderá em cinco anos o que o Homem levou gerações para descobrir.
Pensei no destino de todos os Homens nascidos tão desesperadamente fora de tempo que pouco ou nada puderam fazer de valor. Beethoven nascido na Grécia, pensei, ter-se-ia contentado em tocar finas melodias na flauta ou na lira; naquele ambiente intelectual dificilmente lhe teria sido possível imaginar a natureza da harmonia.
De desenhar trens, as crianças no jardim embaixo haviam passado a brincar de trens. Estavam correndo em roda; com as faces redondas infladas e a boca fazendo bico, como o símbolo querubínico do vento, Robin fazia pufe-pufe, enquanto Guido, segurando as abas de sua blusa, arrastava os pés atrás dele, apitando. Corriam para frente e para trás, paravam em estações imaginárias, entravam em desvios, passavam rugindo sobre pontes, atravessavam túneis, sofriam ocasionais colisões e descarrilamentos. O jovem Arquimedes parecia ser tão feliz quanto o pequeno bárbaro que o rebocava. Alguns minutos antes estivera ocupado com o teorema de Pitágoras. Agora, apitando incansavelmente ao longo de trilhos imaginários, estava perfeitamente contente em arrastar os pés para frente e para trás entre os canteiros de flores, entre os pilares da loggia, entrando nos escuros túneis do loureiro e deles saindo. O fato de que vai ser um Arquimedes não o impede de ser, por enquanto, uma criança comum e alegre. Pensei nesse estranho talento, distinto e separado do resto da mente, quase independente de experiência. As crianças prodígios típicas são musicais ou matemáticas; os outros talentos amadurecem devagar sob a influência da experiência e crescimento emocionais. Até aos trinta anos Balzac não deu provas de outra coisa além de inépcia; mas aos quatro anos o pequeno Mozart já era uma músico e alguns dos mais brilhantes trabalhos de Pascal foram feitos antes de sair da adolescência.
Nas semanas que se seguiram, alternei as lições diárias de piano com lições de matemática. Eram mais insinuações que lições, pois eu apenas fazia sugestões, indicava métodos e deixava que a própria criança desenvolvesse as ideias pormenorizadamente. Depois levei-a à álgebra mostrandolhe outra prova do teorema de Pitágoras. Nesta prova a gente deixa cair uma perpendicular do ângulo reto até a hipotenusa e, argumentando com o fato de os dois triângulos assim criados serem semelhantes entre si e em relação ao triângulo original, e as proporções entre seus lados correspondentes serem portanto iguais, pode-se mostrar em forma algébrica que c2 + d2 (os quadrados dos outros dois lados) são iguais a a2 + b2 (os quadrados dos dois segmentos da hipotenusa) + 2ab; o que resta, como é fácil de demonstrar geometricamente, é igual a (a--b)2, ou seja, o quadrado da hipotenusa. Guido ficou tão encantado com os rudimentos de álgebra como teria ficado se eu lhe desse um motor a vapor, com uma lâmpada de álcool metilado para aquecer a caldeira; mais encantado, talvez - pois o motor teria quebrado e, continuando a ser sempre ele próprio, de qualquer maneira acabaria perdendo o encanto, ao passo que os rudimentos de álgebra continuavam a crescer e florescer em sua mente com incessante exuberância. Cada dia ele fazia a descoberta de algo que lhe parecia primorosamente belo; o novo brinquedo era inesgotável em suas potencialidades.
Nos intervalos da aplicação da álgebra ao segundo livro de Euclides, fazíamos experiências com círculos; enfiávamos bambus na terra ressecada, medíamos suas sombras em diferentes horas do dia e tirávamos excitantes conclusões de nossas observações. As vezes, por brincadeira, cortávamos e dobrávamos folhas de papel de modo a fazer cubos e pirâmides. Uma tarde, Guido chegou carregando cuidadosamente em suas mãos pequenas e bastante sujas um frágil dodecaedro.
- Ê tanto bello! - disse ele, quando nos mostrou seu cristal de papel. E quando lhe perguntei como conseguira fazê-lo, simplesmente sorriu e disse que fora fácil. Olhei para Elizabeth e ri. Mas achei que teria sido mais simbolicamente acertado se eu tivesse caído de quatro, sacudido a excrescência espiritual de meu osso coccix e ladrado minha espantada admiração.
Era um verão extraordinariamente quente. No começo de julho, nosso pequeno Robin, desacostumado a temperaturas assim elevadas, começou a parecer pálido e cansado. Ficou apático, perdeu o apetite e a energia. O médico aconselhou ar de montanha. Decidimos passar as dez ou doze semanas seguintes na Suíça. Meu presente de despedida a Guido foram os seis primeiros livros de Euclides em italiano. Ele virou as páginas, olhando extàticamente para as figuras.
- Se eu soubesse ler direito - disse. - Sou tão estúpido. Mas agora vou tentar realmente aprender.
De nosso hotel perto de Grindelwald mandamos para a criança, em nome de Robin, vários cartões postais de vacas, montanhas alpinas, chalés suíços, edelweiss e coisas semelhantes. Não recebemos respostas para esses cartões; mas também não esperávamos respostas. Guido não sabia escrever e não havia razão para que o pai ou as irmãs se dessem ao trabalho de escrever por ele. Falta de notícia, assim o entendíamos, é boa notícia. Um dia, no começo de setembro, chegou ao hotel uma carta estranha. O gerente colocou-a no quadro envidraçado de avisos no saguão, a fim de que todos os hóspedes pudessem vê-la e quem conscienciosamente julgasse que lhe pertencia pudesse reclamá-la. Passando diante do quadro para ir almoçar, Elizabeth parou para olhá-la.
- Mas deve ser de Guido - disse ela.
Aproximei-me e olhei o envelope por cima dos ombros dela. Não tinha selo e estava preta de carimbos postais. Traçadas a lápis, as grandes e inseguras letras maiúsculas esparramavam-se
B w sua superfície. Na primeira linha estava escrito: AL BABBO I ROBIN. Seguia-se uma versão fantasiada do nome do hotel e da localidade. Ao redor do endereço perplexas autoridades postais haviam sugerido emendas com rabiscos. A carta vagueara durante uma quinzena pelo menos, de um lugar para outro através da superfície da Europa.
"Al Babbo di Robin. Ao pai de Robin." Ri. "Foram muito inteligentes os homens do correio em fazê-la chegar até aqui". Fui ao escritório do gerente, expus a justiça de meu direito à carta e, tendo pago a sobretaxa de cinquenta centavos pelo selo faltante, fiz com que a caixa fosse aberta e a carta me fosse entregue. Fomos almoçar.
- A letra é magnífica - concordamos, rindo, quando examinávamos de perto o endereço.
- Graças a Euclides - acrescentei eu. - E o que dá incentivar a paixão dominante.
Mas quando abri o envelope e olhei seu conteúdo não ri mais. A carta era breve e em estilo quase telegráfico. "SONO DALLA PADHONA", dizia ela, "NON MI PIACE HA RUBATO IL MIO LIBRO NON VOGLIO SUONARE PIU VOGLIO TORNARE A CASA VENÇA SÚBITO GUIDO".
- Que foi?
Entreguei a carta a Elizabeth
- Aquela maldita mulher apoderou-se dele - disse eu.
Bustos de homens com chapéus de feltro, anjos banhados em lágrimas de mármore apagando velas, estátuas de meninas, querubins, figuras veladas, alegorias e cruéis realismos - os mais estranhos e mais diversos ídolos acenavam e gesticulavam enquanto passávamos. Impressas indelevelmente no estanho e incrustadas na rocha viva, as fotografias marrons olhavam, para fora, por baixo do vidro, nas cruzes mais humildes, pedras tumulares e pilares quebrados. Senhoras mortas à maneira geométrica cubista de trinta anos atrás - dois cones de cetim preto encontrandose ponta com ponta na cintura, e os braços: uma esfera até o cotovelo e um cilindro polido daí para baixo - sorriam melancolicamente em suas molduras de mármore; os rostos sorridentes e as mãos brancas eram as únicas coisas reconhecidamente humanas que emergiam da sólida geometria de suas roupas. Homens de bigodes pretos, homens de barbas brancas, moços de cara raspada olhavam para a frente ou desviavam o olhar para mostrar um perfil romano. Crianças em suas melhores roupas engomadas arregalavam os olhos, sorriam esperançosamente na expectativa do passarinho que ia sair da objetiva da câmara, sorriam cèticamente por saber que não ia sair, sorriam esforçada e laboriosamente porque lhes tinham mandado fazer isso. Em casinhas góticas de mármore cercadas de grades pontiagudas os mortos mais ricos repousavam privadamente; através das portas gradeadas podiam-se ver de relance as pálidas Inconsoláveis chorando e os perturbados anjos guardando o segredo do túmulo. Os mortos menos prósperos dormiam em comunidades, próximos uns dos outros, mas elegantemente abrigados embaixo de contínuos e lisos pisos de mármore, onde cada laje era a entrada de um túmulo separado.
Estes cemitérios continentais, pensei, enquanto Cario e eu abríamos caminho entre os mortos, são mais assustadores que os nossos, porque esta gente dedica a seus mortos mais atenção do que nós. Aquele culto primordial dos cadáveres, aquela terna solicitude por seu bem-estar material, que levava os antigos a abrigarem seus mortos entre pedras, enquanto eles próprios viviam entre ripas e embaixo de colmo, ainda perdura aqui; persiste aqui, pensei, mais vigorosamente do que entre nós. Há aqui uma centena de estátuas gesticulantes para cada uma que se vê em um cemitério inglês. Há criptas familiares, mais numerosas mais "luxuosamente aparelhadas" (como dizem dos transatlânticos e hotéis), do que se encontraria em nossa terra. E incrustadas em todas as pedras tumulares há fotografias para lembrar aos ossos lá dentro transformados em pó que forma deverão reassumir no Dia do Juízo Final; ao lado de cada uma delas há pequenas lamparinas pendentes para arder otimisticamente no Dia de Todos os Santos. Do Homem que construiu as Pirâmides, pensei eu, eles estão mais perto do que nós.
- Se eu soubesse - repetia Cario - se eu soubesse.
Sua voz chegava até mim através de minhas reflexões como se viessem de muito longe.
- Na ocasião ele não fez a menor questão. Como poderia eu saber que ele ia levar as coisas tão a sério depois? E ela me enganou, ela mentiu para mim.
Assegurei-lhe ainda mais uma vez que não fora culpa dele. Embora, naturalmente, fosse, em parte. Era culpa minha também, em parte. Eu devia ter pensado na possibilidade e tomado alguma providência contra ela. E ele não devia ter deixado que a criança fosse, mesmo temporariamente e em experiência, ainda que a mulher estivesse fazendo pressão sobre ele. E a pressão havia sido considerável. Fazia mais de cem anos que eles trabalhavam na mesma propriedade, os homens da família de Cario; e ela fizera com que o velho ameaçasse mandá-lo embora. Seria uma coisa terrível deixar o lugar; além disso, não era fácil encontrar outro. Ficara perfeitamente claro, porém, que ele poderia permanecer se a deixasse levar a criança. Só por um pouco de tempo para começar; só para ver como ele se .daria. Não haveria a menor coação sobre o menino para que ficasse, se ele não quisesse ficar. E tudo seria para o bem de Guido, e de seu pai também, no fim. Tudo quanto o inglês havia dito sobre ele não ser músico tão bom quanto pensara a princípio era evidentemente inverídico - simples ciúme e mesquinhez: o homem queria chamar a si o mérito pelo que Guido viesse a ser, mais nada. Quanto ao menino, era evidente que nada-aprenderia com ele. Precisava era de um mestre profissional realmente bom.
Toda a energia que, se os físicos soubessem qual é sua obrigação, estaria fazendo girar dínamos, foi empregada naquela campanha. Começou no momento em que deixamos a casa, intensivamente. A Signora sem dúvida pensou que teria mais probabilidade de êxito se não estivéssemos lá. Além disso, era essencial aproveitar a oportunidade e apossar-se da criança antes que nós fizéssemos nossa tentativa - pois para a Signora evidenciava-se que nós desejávamos Guido tanto quanto ela.
Dia após dia ela renovou o ataque. Ao fim de uma semana, mandou o marido queixar-se do estado das videiras; estavam em condição impressionante; ele estava decidido ou quase decidido a mandar Cario embora. Humildemente, envergonhadamente, em obediência a ordens superiores, o velho cavalheiro proferiu suas ameaças. No dia seguinte, a Signora Bondi voltou ao ataque. O padrone, disse ela, havia ficado furioso ela, porém, faria o que pudesse, tudo o que pudesse, para abrandá-lo. E após uma pausa significativa, voltou a falar em Guido.
Por fim Cario cedeu. A mulher era persistente demais e tinha trunfos demais. A criança poderia ficar com ela durante um ou dois meses como experiência. Depois disso, se realmente manifestasse desejo de permanecer em sua companhia, ela poderia adotá-lo oficialmente.
À ideia de ir passar algum tempo à beira-mar - e era à beira-mar, dissera-lhe a Signora Bondi, que eles iam - Guido ficou contente e excitado. Ouvira de Robin muita coisa sobre o mar. "Tanta acqua!" Parecera-lhe quase bom demais para ser verdade. E ele ia realmente ver aquela maravilha. Foi com muita alegria que se despediu da família.
Contudo, depois das férias à beira-mar e de ser levado pela Signora Bondi para sua casa em Florença, ele começara a ter saudade de casa. A Signora, era verdade, tratava-o com excessiva bondade, comprava-lhe roupas novas, levava-o para tomar chá na Via Tornabuoni e enchia-o de bolos, sorvetes de morango, creme batido e chocolates. Mas fazia-o praticar piano mais do que lhe agradava e, o que fora ainda pior, tomara seu Euclides, sob a alegação de que perdia muito tempo com ele. Quando ele disse que queria voltar para casa, enganou-o com promessas, desculpas e descaradas mentiras. Disse-lhe que não podia levá-lo imediatamente, mas que na semana seguinte, se ele ficasse bonzinho e se esforçasse bastante no piano até lá, na semana seguinte ... E quando chegou a ocasião, ela lhe disse que o pai não o queria de volta. Redobrou seus agrados, deu-lhe presentes caros, encheu-o de alimentos ainda mais insalubres. Sem o menor efeito. Guido não gostava de sua nova vida, não queria praticar escalas, suspirava por seu livro e ansiava voltar para a companhia dos irmãos e irmãs. Enquanto isso, a Signora Bondi continuava a esperar que o tempo e os chocolates fizessem com que um dia a criança ficasse dela; e, para manter a família da criança à distância, escrevia a Cario de poucos em poucos dias cartas que fingia ainda partirem da praia (dava-se ao trabalho de mandá-las a uma amiga, que as remetia de novo para Florença) e nas quais pintava o mais encantador quadro da felicidade de Guido.
Foi então que Guido me escreveu sua carta. Abandonado, como supunha, pela família pois o fato de não se terem dado ao trabalho de ir vê-lo quando estavam tão pertos só podia ser explicado pela hipótese de o terem realmente abandonado - ele deve ter-me procurado como sua última e única esperança. E a carta, com seu fantástico endereço, levara quase uma quinzena para chegar ao seu destino. Uma quinzena - devia ter parecido centenas de anos; e à medida que os séculos se sucediam um ao outro, gradualmente, sem dúvida, a pobre criança convencera-se de que eu também a abandonara. Não restava esperança alguma.
- E aqui - disse Cario.
Ergui os olhos e vi-me diante de um enorme monumento. Em uma espécie de gruta escavada nos flancos de um monólito de arenito cinzento, o Sagrado Amor, em bronze, abraçava uma uma funerária. E em letras de bronze fixadas na pedra havia uma comprida legenda para dizer que o inconsolável Ernesto Bondi erguera aquele monumento à memória da amada esposa, Annunziata, como símbolo de seu imortal amor por alguém a quem, roubada dele por uma morte prematura, ele esperava muito em breve juntar-se embaixo daquela lápide. A primeira Signora Bondi falecera em 1912. Pensei no velho atrelado a seu cão branco; ele deve ter sido sempre um marido muito baboso, pensei.
- Enterraram-no aqui.
Ficamos ali parados por longo tempo em silêncio. Senti as lágrimas chegando-me aos olhos enquanto pensava na pobre criança que jazia ali embaixo. Pensei naqueles olhos graves e luminosos, na curva daquela bela testa, nos cantos caídos da melancólica boca, na expressão de prazer que iluminava seu rosto quando ficava conhecendo alguma ideia nova que o agradava, quando ouvia uma peça de música de que gostava. E aquele pequeno e belo ser estava morto; o espírito que habitara aquela forma, o espantoso espírito, fora também destruído quase antes de ter existido.
E a infelicidade que devia ter precedido o ato final, o desespero da criança, a convicção de seu completo abandono - era terrível pensar nessas coisas, terrível.
- Acho que agora é melhor irmos embora - disse eu finalmente, tocando no braço de Cario. Ele estava ali parado em pé como um homem cego, os olhos fechados, o rosto ligeiramente erguido em direção à luz; entre suas pálpebras fechadas, as lágrimas corriam, ficavam penduradas por um momento e desciam-lhe pelas faces. Seus lábios tremiam, e eu pude ver que ele fazia força para conservá-los parados.
- Vamos embora - repeti eu.
O rosto que estava imóvel em sua tristeza convulsionou-se de repente. Os olhos abriram-se e, através das lágrimas, neles brilhou violenta cólera.
- Eu vou matá-la - disse ele. - Eu vou matá-la. Quando penso nele se jogando para fora, caindo pelo ar... - Com as duas mãos fez um gesto violento, trazendo-as da cabeça para baixo e detendo-as com uma sacudida repentina quando chegaram à altura do peito. - E depois a batida. Ele estremeceu. - Ela é tão responsável como se o tivesse empurrado. Eu vou matá-la.
Cerrou os dentes.
Ficar bravo é mais fácil do que ficar triste, menos doloroso. E confortador pensar em vingança.
- Não fale assim - disse eu. - Não adianta. E estupidez. E qual seria a vantagem?
Ele já havia tido aqueles acessos antes, quando o sofrimento se tornava doloroso demais e dele precisava fugir. A cólera é o meio mais fácil de fugir. Eu já havia precisado, antes disso, convencê-lo a voltar ao árduo caminho do sofrimento.
- É estúpido falar assim - repeti e levei-o embora através do medonho labirinto de túmulos, onde a morte parecia ainda mais terrível do que é, quando deixamos o cemitério e descemos a pé de San Miniato para a Piazzale Michelangelo embaixo, ele ficou mais calmo. Sua cólera diminuíra de novo e voltara à tristeza de onde havia extraído toda a sua força e amargura. Na Piazzale paramos por um momento para contemplar a cidade no.vale abaixo de nós. Era um dia de nuvens flutuantes - grandes formas, brancas, douradas e cinzentas; e entre elas nesgas de fino e transparente azul. Com sua lanterna quase ao nível de nossos olhos, .a cúpula da catedral revelava-se em toda a sua grandiosa leveza, vastidão e etérea força. Sobre os inúmeros telhados marrons e rosados da cidade o sol da tarde caía suavemente, suntuosamente, e as torres ficavam como que envernizadas e esmaltadas de ouro velho. Pensei em todos os Homens que ali viveram, deixaram os traços visíveis de seu espírito e conceberam coisas extraordinárias. Pensei no menino morto.
Aldous Huxley
O melhor da literatura para todos os gostos e idades