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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CÍRCULO DE MEGIDO / Nathalie Rheims
O CÍRCULO DE MEGIDO / Nathalie Rheims

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CÍRCULO DE MEGIDO

 

No táxi que a levava para o aeroporto de Heathrow, Maya sonhava acordada, de olhar perdido. Estava presa nos engarrafamentos. Os tons azulados que banhavam Trafalgar Square anunciavam a alvorada. Sons abafados vindos do fundo da sua bolsa trouxeram-na de volta à realidade do início deste novo dia. Remexeu na confusão de objetos dispersos, procurou o celular. Demasiado tarde. O toque parará. Porém, na caixa preta piscava o sinal de uma nova mensagem. Viu aparecer a imagem do professor Friedmann. O velho homem posava diante de um muro onde parecia estar gravado um círculo, mas a imagem era cinzenta, estava desfocada. Maya não conseguia detalhar os estranhos sinais inscritos no interior do círculo. Com a mão direita, o professor fazia o sinal da letra V. A jovem pediu ao motorista que parasse um momento à beira da calçada. Leu uma mensagem: “Feliz aniversário. O seu velhote amigo.” Sorriu, enternecida, comovida. Aquele homem ensinara-lhe tudo, fazendo crescer nela, todos os dias, a sua paixão pela arqueologia, pela descoberta dos objetos, pelas antigas civilizações, pelos túmulos secretos, tema da sua tese de licenciatura. Ele acolhera-a quando seus pais tinham morrido tragicamente num acidente e hoje recordava-lhe aquilo de que ela mesma se esquecera: a data do seu nasci­mento. Olhou para a data marcada no relógio. Era, com efeito, o dia 21 de Setembro. Pediu ao motorista que arrancasse de novo.

— Oito e quinze. Oxalá consiga apanhar o avião. Não conhece um cami­nho mais rápido?

— A que hora é o seu vôo? — perguntou-lhe o motorista.

— Nove e meia. É muito importante.

Piscou-lhe o olho através do retrovisor. Ela olhou para a imagem parada na tela do celular. Teria o professor encontrado por fim o que ambos procuravam há três longos anos? O círculo gravado no granito, aquelas inscrições imprecisas dar-lhes-iam finalmente a resposta às perguntas que se faziam? Maya respirou profundamente. Levantando a cara, avistou um jornal pousado no assento ao lado do motorista.

— Não se importa de me emprestar o seu jornal?

Sem deixar de fitar o subúrbio de Londres que desfilava, ele passou-lhe o jornal, sussurrando-lhe:

— Qual é o seu signo?

— Como...?

— O seu signo astrológico. O mês em que nasceu.

— Balança. Hoje é o meu aniversário.

— Ah, bom... Pois bem, devia ler o seu horóscopo.

Maya sorriu e leu. “Balança. Primeiro decano. Sentimentalmente, é o deserto. Pense em esforçar-se mais para seduzir. Talvez faça um encontro durante uma deslocação. Depende de si. Prudência no trabalho. Não tire conclusões precipitadas. Aja, acredite em si.” O motorista espreitava as reações dela no retrovisor. Cruzou com o seu olhar. A jovem sorriu: talvez ele imaginasse ser o encontro predito pelo astrólogo.

— Não me avança lá muito. Aliás, esta manhã nada parece avançar — disse-lhe, com um olhar malicioso.

Ele murmurou:

— Hoje é o seu ascendente que conta.

Maya prestou-se àquele jogo, mas sentia-se embaraçada. Leu: “Touro. Restam-lhe doze dias.” Depois, nada, o fim da frase parecia ter sumido na impressora.

— Que tolice — comentou, em voz alta. — Estes horóscopos não têm ponta por onde se lhes pegue!

Estava zangada consigo mesma por ter caído naquele jogo idiota. “Doze dias... restam-me doze dias... talvez antes de encontrar o amor”, pensou, sorridente, fechando o jornal. Preocupava-se com o tempo que passava.

— Apresse-se. Com esta história vamos acabar por perder o vôo.

Ele guinou, passou para a via rápida e acelerou, resmungando:

— Bom. Que se lixe. Lá vamos nós.

Dez minutos depois, o táxi parou diante da porta B.

 

Entregou trinta libras ao motorista. Não tinham trocado mais nenhuma palavra. Maya pegou a bolsa e colocou-o no ombro. A insistência com que ele a olhava ao sair do táxi incomodava-a. Bateu com a porta. O aeroporto estava silencioso. No painel com a indicação das partidas viu que o vôo para Telavive partia à hora prevista. De passaporte na mão, passou pelos intermináveis controles de segurança. Sentia-se feliz por voltar à estação arqueológica onde o professor Friedmann trabalhava. Já não o via há dois meses, tempo que precisara para concluir e defender a sua tese. Sentira a falta dele, como se sente a falta de um pai, de um amigo, quase de um amor, tão particulares eram os laços que os uniam.

9h 20m. Atravessou o longo corredor que a conduzia ao interior do avião. Uma aeromoça indicou-lhe o lugar, nos assentos da frente, junto à janela. Maya tirou da bolsa um livro sobre a civilização suméria, esperando abstrair-se do ruído dos motores, do zunzum dos passageiros, das idas e voltas da aeromoça que indicava a um homem o lugar vazio ao lado dela. Ergueu o olhar, havia uma ligeira agitação à volta do indivíduo. Alto, magro, demasiado elegante, ele dirigiu-lhe um sorriso bem-educado. Dois agentes de segurança tinham-se instalado mesmo atrás deles. “Deve ser um tipo importante”, pensou ela. Aquele vôo angustiava-a. A presença daquele homem só vinha aumentar a sua perturbação. O seu coração acelerou. Depois, foi o ruído ensurdecedor da descolagem. O jovem parecia observá-la. Maya retomara a sua leitura, mas não conseguia concentrar-se. Pensou no trajeto do táxi, naquele estranho horóscopo inacabado, na predição: “Restam-lhe doze dias.” Hoje tudo lhe parecia impreciso, inquietante, opaco. Seria o seu aniversário, ou a imagem do professor posando diante daquele muro? Tinha pressa de aterrissar, de percorrer finalmente as longas pistas de terra vermelha que a levariam ao centro do local de escavações, para junto do homem que mais amava no mundo. A voz suave do seu vizinho interrompeu o fio das suas cogitações.

— Parece tão distante... Permita-me que me apresente. Edward Rothsteen.

Maya voltou a cabeça para o lado e inclinou-a.

— Bom dia, chamo-me Maya. E agora, o que fazemos? — perguntou, soltando uma pequena gargalhada.

O homem sorriu.

— Se quiser, podemos ter dois dedos de conversa. Vejo que está a ler um livro sobre os Sumérios.

— Sim, sou arqueóloga. Vou ter com um amigo a norte de Telavive, num local onde trabalhamos há três anos. Há dois meses que não o vejo. Hoje faço aniversário. Sou órfã. Não tenho filhos. Nem amante. Tenho vinte e seis anos, tudo o que fiz foi estudar, não tenho medo de nada, exceto viajar de avião. Chega-lhe?

Edward não deixara de a fitar. Estava mergulhado no seu olhar intenso de reflexos verdes.

— Chega — respondeu-lhe. — Sou americano. Tenho trinta e seis anos. Deixo Londres por Telavive. Sou adido de embaixada. Vou ocupar o meu posto daqui a dois dias, daí a presença destes dois engraçados personagens atrás de nós.

Ela sentia-se melhor. O charme tranqüilizante do seu companheiro de viagem devolvia-lhe a sua leveza. O Airbus alcançara a altitude prevista e a sua velocidade de cruzeiro. Ela falou-lhe da sua vida, do seu encontro com o velho professor, da morte dos seus pais num acidente, da sua paixão pelas pedras, da sua tese sobre os túmulos secretos, da instalação de Claude Friedmann e da sua equipe no vale de Jezreel. Do seu interesse pelas civilizações desaparecidas, da sua relação com o passado, da memória enterrada debaixo de terra, do respeito pelos rituais, da decifração dos signos.

— Devo estar a atordoá-lo com toda esta conversa — concluiu.

— De modo algum. Pelo contrário, gosto das pessoas que têm uma paixão. Teria gostado de ser violinista. Mas o meu pai era diplomata e eu segui o mesmo caminho. Às vezes lamento, mas bom, é assim. Gosto da minha profissão, dos contatos, das relações humanas, da política. Gosto de mediar conflitos.

— Invejo-o — respondeu-lhe ela. — Tenho medo dos outros. Os homens são muitas vezes cruéis. Sou uma solitária, não tenho amigos. Vivo em casa do professor, ele é tudo para mim. As buscas, o céu, a terra e os livros são os meus guias.

— É muito jovem para esses sentimentos. É certamente por isso que tem um olhar tão diferente dos outros.

Calaram-se. Maya fechou os olhos. O homem olhou para ela um longo momento. Depois, absorveu-se nos seus dossiês. Uma aeromoça anunciou que a descida começava. Maya acordou.

— Dormi muito tempo?

— Dormiu — disse-lhe ele, com um leve sorriso.

Trocaram números de telefone, mas ambos estavam convencidos que nenhum deles telefonaria ao outro.

 

O avião aterrissara. Do alto da escada, Maya avistou a silhueta de Edward a entrar na limusine preta que o esperava na pista de aterrissagem. O vidro escuro da janela baixou, deixando ver a cara do jovem diplomata. Ele sorria-lhe com tristeza, parecendo lamentar não poder acompanhá-la. Maya dirigiu-se para os soldados, que controlaram o seu passaporte, o seu visto, a carta indicando a sua missão. Tudo foi minuciosamente inspecionado.

À saída, Pierre Grün, o organizador da expedição, recebeu-a com um longo abraço, como era seu hábito. Ela apreciava a fidelidade dele, a dedicação que tinha pelo professor, apesar do embaraço que sentia sempre devido às suas efusões excessivas. Libertou-se com um movimento ligeiro e subiu para o jipe.

— Sentimos a sua falta. Não deve tornar a deixar-nos assim. É muito tempo — disse-lhe ele.

O rosto de Pierre iluminou-se. Dos seus traços, das suas rugas profundas sob os óculos de aros de tartaruga, emanava a energia de um homem mais novo do que parecia.

— Parece estar em plena forma! — disse-lhe ela.

— Oh, eu estou bem, o Claude é que me preocupa. Previno-a já: emagreceu imenso. Há três semanas que quase deixamos de o ver. Depois de ter descoberto o túmulo, passa o tempo lá fechado. Proibiu a todos que descessem. Até a mim! É o cúmulo!

— Até você? — repetiu ela, trocista.

— Não troce, minha cara amiga. Toda a equipe está preocupada. Aliás, ninguém sabe o que ele faz. Está lá enfiado dia e noite. Deixou de falar conosco. Não pára de fumar. Deixou de comer, o que é um desastre para a sua diabete. Deixou crescer a barba.

— Pierre, não é a primeira vez que isso lhe acontece. Assim que faz uma descoberta importante, fecha-se, torna-se irascível e você é que paga as favas. Quantas vezes já o vi assim alarmado? Há quarenta anos que trabalha com ele. Tudo entrará na ordem, como sempre.

— Não, não, desta vez é diferente. Tenho um mau pressentimento. Só você pode falar com ele. Ele ouve-a. Tem de convencê-lo a ser sensato. Na nossa idade, há coisas que já não podemos ter a liberdade de fazer.

— Mas olhe para si, Pierre: parece um jovem!

— Sim, mas eu cuido-me.

O trajeto desenrolava-se como previsto. As filas de caminhões militares, as barragens, os controles, o fluxo da conversa de Pierre tinham-na esgotado. Ficou ao corrente de tudo sobre uns e outros, das suas pequenas histórias, daquilo que tinham vivido, até aos mais ínfimos pormenores. A noite começava a cair. Aproximavam-se da estação arqueológica. Sentiu-se invadida por uma forte emoção. Ao pensar na sua chegada as lágrimas acudiram-lhe aos olhos. A equipe esperava-os. Todos a abraçaram, desejando-lhe um bom aniversário. Pierre abraçou-a novamente.

— Sinto-me fora de tudo. Com as minhas preocupações nem pensei que era o seu aniversário.

O professor Friedmann apareceu. Perguntou-lhe:

— Então, minha cara, que efeito te faz ser uma moça já crescida?

Pegou-lhe no ombro e murmurou-lhe ao ouvido:

— Temos de falar a sós e depressa.

Tinha efetivamente emagrecido. A barba realçava ainda mais a sua magreza. O seu olhar era febril.

— Venha até à minha tenda enquanto tiro as minhas coisas da bolsa — disse-lhe ela, dando-lhe um beijo na face.

 

Maya mal tivera tempo de tirar os objetos da bolsa e o professor já irrompera tenda adentro. Caminhava de um lado para o outro, não parando de repetir: “Incrível, é incrível.”

A jovem sentou-se no chão, de pernas cruzadas.

— Mas, enfim, Claude, que se passa? Nunca o vi nesse estado. Diga-me o que é assim tão incrível...

— Meu Deus, meu Deus — prosseguia o velho homem. — Se é mesmo o que penso, é extraordinário. O remate final de toda uma vida!

Maya levantou-se, pegou-lhe nas mãos, procurou acalmar a excitação dele.

— Acalme-se. Conte-me.

— Maya, creio que descobrimos o templo que todos os arqueólogos procuram há anos e anos em Betel. É uma loucura!

Ela deixou-se cair na cama.

— É uma loucura — repetiu.

— O que é incrível é o afresco no muro. Não compreendo o que está ali a fazer. Maya, é um afresco caldeu. Imagina?

— Mas isso é impossível — respondeu-lhe, num sussurro.

— Mas não deixa de ser verdade. Não viu a imagem que lhe enviei esta manhã? É insensato. É por isso que desde que limpei o muro proibi que a equipe descesse. Primeiro quero compreender, ouvir a sua opinião. E então?

— Então, nada. A imagem era demasiado pequena, demasiado imprecisa. Conte-me. Mostre-me.

— Ouça-me bem: o afresco representa um ritual astrológico, o dos sacerdotes caldeus, provavelmente do século VII a.C, com o círculo do zodíaco no centro.

— É impossível. Não posso acreditar. A astrologia. Os signos do zodíaco... É uma coincidência, mas no táxi que me levava esta manhã para o aeroporto, o motorista pediu-me para ler o meu horóscopo e no meu ascendente estava escrito: “Restam-lhe doze dias...” Não acha isto muito estranho?

— Talvez tenhamos acabado de fazer uma descoberta que irá alterar completamente a nossa concepção das origens do mundo ocidental e você diverte-se a responder a esta imagem com uma brincadeira estúpida! Sabe perfeitamente que foi você que me enviou essa mensagem.

— O quê?

Ela sentiu um formigueiro nas mãos e, depois, uma náusea súbita.

Claude tirou o seu celular da algibeira e ligou a tela.

— Não foi esta a resposta que me enviou? Não compreendi o sentido da sua frase. Pensei que a comunicação fosse má.

Tremendo, ela agarrou no celular. Lá estava nitidamente escrito: “Restam-lhe doze dias.” Carregou na tecla, em busca da hora e da origem da chamada.

— Professor, não fui eu que enviei esta mensagem. Aliás, veja: não há qualquer indicação, qualquer algarismo. Ambos recebemos o mesmo aviso, ao mesmo tempo!

O rosto de Pierre surgiu à entrada, interrompendo o diálogo.

— Desculpem-me, não posso bater à porta. (Era uma das suas piadas favoritas.) — A equipe organizou uma recepção em sua honra.

— Já vamos — respondeu o professor. — Descemos mais tarde — murmurou a Maya.

Tochas de bambu, espetadas no solo, iluminavam o pequeno grupo. Fizeram brindes, cada um proferiu o seu discurso. Maya ouvia-os, comovida por aquelas palavras. Aprendera a conhecê-los ao longo de todos aqueles anos de expedição. Acolhia as suas confidencias, as suas alegrias, mas também, as suas tristezas. Afastados dos familiares, sentiam-se mais unidos. Esta noite, contudo, pareciam diferentes. Saberiam alguma coisa? Nenhum deles pudera ver o fresco, pois Claude interditara o acesso. Ninguém estava ciente daquela história do horóscopo. E, todavia, todas as palavras que proferiam pareciam ter um duplo sentido. Pierre ergueu o seu copo.

— À vida, que é demasiado curta! Ao tempo que nos resta! Às doze badaladas da meia-noite!

Claude interrompeu-o bruscamente:

— Que quer dizer com todos esses delírios?

Proferira a frase num assomo de cólera. Todos se sentiram embaraçados. O silêncio veio juntar-se à noite. Os homens eclipsaram-se discretamente. Depois de ter ficado uns momentos sem abrir a boca, o professor disse a Maya:

— Espere-me à entrada da cripta.

 

Ela esperou alguns minutos e levantou a cabeça. A ausência total de luz deixava ver centenas de estrelas na abóbada celeste. Nunca vira tantas. Pensou nos sacerdotes caldeus, no seu fascínio pelo céu, na sua convicção da existência de um destino guiado pelos planetas. Maya adorava aquelas pequenas luzes. De pé, parada, olhos fixos nos astros, procurava desenhar com o olhar os animais dessa mitologia. Viu o Carneiro. A mão do professor no seu ombro fê-la sobressaltar-se.

— Venha, minha pequena, é altura de descermos.

Acendeu a tocha que lhe servia para descer aos subterrâneos. Ela seguiu-o.

— Tenha cuidado, houve desmoronamentos. Segure-se em mim.

Entraram numa sala abobadada. Claude apontou a luz para o afresco, que permanecera num estado de conservação inexplicável. No muro, podiam distinguir perfeitamente sacerdotes ocupados num estranho ritual. Uma cena representava os obséquios de um rei, outra evocava a vida daquele que estava a ser enterrado. No centro, à direita, via-se o monarca lendo um pergaminho diante de uma assembléia. Em baixo, à esquerda, outra imagem mostrava uma procissão de oráculos atrás de um objeto cilíndrico. A última parte do afresco, em baixo, era diferente. Representava doze religiosos com trajes de cerimônia. O professor apontou o feixe de luz em cheio para o centro do muro. Apareceu um baixo-relevo: um círculo incrustado com pequenos fragmentos de mosaicos formava os doze signos do zodíaco.

— Então, que acha? Contente por estar aqui?

— É inacreditável! — disse-lhe ela. — Como explica...

— Não explico nada — respondeu-lhe o professor. — Mas é absolutamente necessário que guarde segredo sobre o que está a ver. Nem uma palavra, mesmo à equipe. Correríamos o risco de sermos invadidos por gente que só viria estorvar-nos. Primeiro temos de perceber a natureza desta descoberta. Portanto, bico calado...

— Mas, porquê? Não confia neles? Em Pierre?

— Não, nem em Pierre nem em ninguém. Tenho um mau pressentimento. Talvez alguém tenha vindo aqui e descoberto o afresco. Se não foi assim, como explicar a mensagem no celular? Qual é o sentido desses doze dias?

— Talvez seja um pouco como os doze signos do afresco — respondeu-lhe Maya, com um sorriso no canto dos lábios.

— Veremos amanhã. Temos de fechar a cripta. Vá dormir. Teve um dia longo. Quanto a mim, ainda não preguei o olho desde há praticamente três dias. Recomeçaremos amanhã de manhã. Para a cama, minha filha. Aos vinte e seis anos ainda está na idade de obedecer.

— Muito bem. Vemo-nos às seis e meia da manhã.

Subiram silenciosamente. Cada um regressou para a sua tenda. Ao entrar, ela viu Pierre, que a esperava, à luz de uma vela. Agarrou-lhe no braço.

— Então, viu? O que é, Maya? Diga-me lá...

— Pierre, estou esgotada. Vá deitar-se. Falaremos mais tarde. Não há nenhuma razão para se inquietar.

— O quê? Nenhuma razão? Não viu a maneira como ele reagiu ao meu discurso? Enlouqueceu!

— Não, Pierre, não. Não seja tão susceptível. Asseguro-lhe que corre tudo bem. Uma boa noite de sono e tudo entrará na ordem. Até amanhã...

— Bom...

O chefe da expedição saiu a passos lentos. Voltou-se.

— Onze dias... onze dias...

— O quê? — interpelou-o ela.

— Nada. Nada. Até amanhã... enfim, até logo.

Ela estendeu-se, febril, e caiu num sono pesado feito de pesadelos. Estava no táxi que a levava para Heathrow, absorta num jornal. Erguia a cabeça. Enquanto conduzia, o motorista, de cara voltada para ela, olhava-a fixamente. Trajava uma túnica de sacerdote caldeu.

Maya despertou alagada em suor. Levantou-se, procurando os fósforos. As suas mãos tremiam. Procurava acalmar-se. Os seus pensamentos voltaram ao afresco: aqueles homens pintados com pigmentos eram magos, adivinhos, persuadidos que o destino da humanidade dependia dos movimentos das estrelas no céu. Aquele muro, as inscrições que o cobriam, deviam ter uma função precisa. Mas, qual? Sentia-se agitada com todas estas perguntas, tinha de conseguir instalar o vazio na sua mente.

 

Um ruído de motor arrancou-a àquela noite demasiado curta. Maya saiu para o terreno. Um veículo acabara de chegar ao local. Reconheceu o caminhão que todas as semanas vinha entregar o material, os mantimentos, o correio, os jornais. Um homem desceu.

— Feliz por vê-la de novo, menina. Fez uma boa viagem? Tenho uma carta para você.

Rajan era cingalês. Seguia todas as expedições do professor. Ela abraçou-o, pegou no envelope e dirigiu-se para o refeitório para beber um café com leite.

Sentada à mesa, abriu o envelope, desdobrou a carta. Uma mão infantil escrevera a lápis de cor: “Feliz aniversário, querida madrinha.” O resto do espaço era ocupado por um desenho a lápis de carvão. Era um círculo negro circundado por pequenos símbolos desenhados com uma caneta de feltro vermelha. Uma seta indicava o signo da Balança e à sua frente estava escrito: VOCÊ. Outro apontava para o Caranguejo. Por baixo, a mesma escrita formava a palavra EU. A carta era assinada por Benjamin, nome inscrito dentro de um coração.

Maya pousou a folha diante dela, sentiu o solo fugir-lhe sob os pés. Segurou-se à cadeira para não cair. Tinha de telefonar imediatamente. Elizabeth. O seu número. Levantou-se, correu para a tenda, remexeu na bolsa. A sua agenda. Depressa. Correu para o posto técnico. A Austrália. Tinha de chamar a sua melhor amiga, instalada naquele país há dois anos. Porquê aquele signo no papel? Os dedos tremiam-lhe ao marcar o número.

— Alô? Alô? Elizabeth, está me ouvindo? Aqui é a Maya.

Do outro lado da comunicação ouviu ecoar soluços.

— Elizabeth, que se passa? Fala-me! Estou na estação de Megido, não te ouço bem.

Entre dois ataques de lágrimas, ouviu a voz embargada da amiga:

— Maya, o Benjamin morreu. Afogou-se. Não sei. Encontraram o seu corpo ontem de manhã. Não sei — repetia a sua amiga, no outro lado do mundo.

Maya falava-lhe, mas que podia dizer-lhe? Teve a impressão de que a sua vida a abandonava. Desligou, chorou um longo momento, só, e saiu, vacilando. As suas têmporas latejavam. Todo o corpo lhe doía. Procurava o professor. Tinha de lhe falar. Imediatamente. Viu-o sentado no fundo do refeitório, acompanhado por Pierre. A jovem avançou para eles como um autômato. Pierre ergueu o olhar.

— Maya, que lhe aconteceu? Está tão pálida...

— Não dormi bem.

Lançou ao professor um olhar que significava “não posso dizer nada”. Friedmann pediu a Pierre que os deixasse a sós. Ele foi-se embora, resmungando. Maya sentou-se diante de Claude e deslizou a carta para ele através do oleado que cobria a mesa. O professor pegou nela.

— É do meu afilhado, o Benjamin, o filho de Elizabeth Kern, que foi sua aluna. Acabo de falar com ela ao telefone. Ele morreu afogado, ontem. Tinha seis anos. Tinha-me enviado este desenho.

O professor ficou calado. O seu olhar traía um sentimento de medo. Maya nunca o vira assim. Ele entregou-lhe a folha de papel e disse-lhe em voz baixa:

— Maya, está a acontecer o que eu pressentia. Se não compreendermos depressa, morreremos todos.

— Mas o que vem a ser esta ameaça? Que temos de compreender?

O professor levantou-se, fez-lhe sinal para que o seguisse e levou-a até à cripta.

— Maya, eu sei que é completamente irracional, mas não consigo deixar de pensar que existe uma ligação entre a nossa descoberta e este trágico acontecimento.

— É possível. Mas que relação há entre a mensagem que anunciava que só nos restava doze dias e a morte de Benjamin? Um espírito cartesiano como o seu não pode ver aí qualquer ligação.

— Começo a perguntar-me a mim mesmo. Com quem estamos a lidar? Não sei. Mas o que eu gostaria de compreender é o sentido desta encenação. Será uma coincidência ou tratar-se-á realmente de fenômenos...

— Astrológicos... Diga-o, se é aquilo em que está a pensar.

— Pois bem, já não sei. Oh, não vale a pena olhar para mim dessa maneira! É absurdo, Maya, mas se a maldição dos próximos dias for real, entramos numa sinistra contagem decrescente e todos os dias haverá uma tragédia.

— Estou a ouvir, estou a ver... Claude, tenho medo. Diga-me sinceramente o que pensa. Preciso saber.

Caiu um longo silêncio. O professor percebia bem de como as suas considerações eram aberrantes. Prosseguiu:

— Bom. Maya, creio compreender por que motivo Benjamin foi o primeiro morto deste ciclo. Ouça-me, como se lhe estivesse a falar pela primeira vez.

A jovem anuiu com um sinal da cabeça.

— Os Caldeus são provavelmente os inventores da astrologia. Para eles, o céu era todo-poderoso. Dividiam-no em doze grupos de estrelas que formavam os signos do zodíaco, governados pelos doze deuses. Estes correspondiam às fontes de luz de intensidade variável; eles observavam as suas deslocações mais ou menos rápidas no céu: as mais visíveis, o Sol e a Lua, e planetas como Mercúrio, Marte, Vênus, Júpiter ou Saturno[1]. Chamaram-lhes Senhores dos Dias, aos quais, aliás, atribuíram os seus nomes: Terça para Marte, Quarta para Mercúrio, Quinta para Júpiter, Sexta para Vênus, Sábado para Saturno. Para eles, as duas principais divindades eram o Sol, Senhor do Domingo, e a Lua, Senhora da Segunda.

— Muito bem, mas em que é que isso nos ajuda a compreender por que morreu Benjamin? — perguntou-lhe Maya, fascinada.

— Espere. Há doze signos que começam no dia 21 de cada mês, e só sete planetas que correspondem aos dias da semana. Só os Senhores dominantes correspondem a um único signo: o Sol ao Leão, a Lua ao Caranguejo. Cada um dos outros planetas está ligado a dois signos: Marte a Carneiro ou Escorpião, Mercúrio a Gêmeos ou Virgem, Júpiter a Aquário ou Sagitário. Vênus dá, portanto a escolher entre Touro e Balança e Saturno domina o Capricórnio ou o Peixe.

Maya olhava fixamente para o professor. Parecia como que enfeitiçada.

— Portanto, se compreendi bem — prosseguiu ela — a segunda-feira cor­responde unicamente ao Caranguejo, o signo de Benjamin. Ele é primeiro morto, o morto do primeiro dia. Ora, se seguirmos o seu raciocínio, hoje, terça-feira, só um Carneiro ou um Escorpião se arriscam a conhecer o mesmo destino.

— Se é verdade, não tardaremos a saber.

— De que maneira?

— Seguindo o sentido do círculo. Reparou na ordem em que estão classificados os planetas? Os Caldeus eram astrônomos fantásticos. Olhe para este esquema. Começaram por Mercúrio, Vênus e Marte e, depois, puseram no outro extremo os planetas mais afastados, Saturno e Júpiter. Por outro lado, representaram-nos de modo simétrico em torno de um eixo que divide o círculo mágico em duas partes: de um lado, o dia, iluminado pelo Sol, do outro a noite, iluminada pela Lua.

— O que é que isso muda, professor?

— Nada, Maya. Enfim, para nós, é a mesma coisa. Eu sou do signo da Balança.

— E eu também — prosseguiu ela, numa voz abafada.

— Vejo que me compreendeu.

Ela ajoelhou-se diante do afresco, iluminando com a lâmpada o grupo de doze personagens representadas em baixo, à direita.

— Já reparou? O primeiro é mais pequeno que os outros. Será uma criança?

— Esperemos. Talvez não passe de uma coincidência.

A voz de Rajan chamando Maya, levou-os a subir.

— Chegou um fax para você.

 

Dirigiram-se para o posto técnico. Ela pegou na folha e leu: “Deve contatar com toda a urgência a polícia de Londres e pedir para falar com o inspetor Clark.” Ao seu lado, Claude continuava parado, silencioso.

Ouviu uma voz do outro lado da linha:

— Estou a falar com Maya Spencer, residente em Londres, no n.°16 de South Kensington?

— Sim, sou eu — murmurou ela.

— Encontramos o seu cartão de visita num táxi. Tem de se apresentar no comissariado central para um caso que lhe diz respeito.

— É impossível, senhor, estou em Israel.

Registrou-se um silêncio.

— Qual é o número do seu celular? — perguntou-lhe o inspetor.

Maya enunciou lentamente os algarismos.

O homem prosseguiu:

— Conhece Neil Lambden, o motorista de táxi onde encontramos o seu cartão de visita?

— Não, porquê? — respondeu ela.

— Porque ele morreu, minha senhora. O seu corpo foi encontrado esta manhã, no táxi; teve um acidente no norte de Londres. Por conseguinte, pode explicar-me o que fazia o seu cartão de visita no carro dele?

— Suponho que é o táxi que tomei ontem de manhã. Estava estacionado diante de minha casa. Deixou-me por volta das nove em Heathrow. Eu partia para Telavive. O cartão deve ter caído quando retirei o dinheiro da carteira.

— Falou com ele durante o trajeto?

— Pedi-lhe apenas o jornal emprestado.

Maya fixou Claude nos olhos.

— O que me pareceu estranho foi ele ter-me pedido para ler o meu horóscopo.

— Reparou nalguma coisa de particular nessa página?

— Não creio.

— Tem a certeza?

— Deixe-me pensar.

O homem prosseguiu:

— Um dos signos do zodíaco não tinha um círculo vermelho à volta?

— Não, não me lembro. Que signo? O Carneiro? — perguntou ela.

— Sim, precisamente. Como sabe, se não o viu?

O professor, que pusera o alto-falante a funcionar, fez-lhe sinal para que se calasse.

— Não sei. Talvez me tenha falado do signo dele.

— Sim, deve ser isso. Nasceu a 21 de Março. Portanto, era do signo do Carneiro.

— Que foi que aconteceu?

— É o que procuramos saber. O táxi embateu em qualquer coisa. O cinto de segurança soltou-se sob o efeito do choque. O pára-brisas explodiu e decapitou-o. Caso se lembrar de algum pormenor não hesite em entrar em contato comigo. Vou enviar-lhe um fax com a sua declaração e agradecia que me enviasse de volta com a sua assinatura. Talvez voltemos a precisar de você.

— Muito bem — respondeu Maya, num estado de hebetude.

O homem já tinha desligado. Ela ficou um momento com o fone na mão. A voz do professor fê-la cair em si:

— Como vê, o segundo morto, o morto do segundo dia, é um Carneiro. Apagou-se na escuridão. Desta vez não há qualquer dúvida... A cabeça...

— A cabeça?

— Os Caldeus atribuíram a cada signo uma parte do corpo, que dividiam em doze segmentos, de cima para baixo, da cabeça aos pés, se preferir. O primeiro, o Carneiro, corresponde ao rosto. O motorista ficou com a cabeça cortada no acidente. Ao Caranguejo correspondem os pulmões e Benjamin morreu afogado, isto é, de uma embolia pulmonar.

O professor Friedmann e Maya sentiam-se o alvo de um mecanismo implacável. Estariam os dias seguintes programados por uma força maléfica? Haveria em cada dia uma nova vítima oferecida em sacrifício neste ritual macabro? Consideravam todas as hipóteses que lhes permitissem compreender por que a descoberta daquele muro provocava acontecimentos tão trágicos. Hoje já nada parecia vir reforçar aquela ameaça, mas duas pessoas já tinham morrido e o tempo estava contado.

Ao longo dos anos passados a trabalhar juntos, partilhando a mesma paixão, tinham aprendido a adivinhar-se um ao outro em poucas palavras. Claude não falava muito, mas Maya sabia ler os seus silêncios, interpretar os seus olhares. Crescera na sua companhia, negligenciando todo o resto. Hoje, o destino unia-os num círculo funesto, que os separava dos outros.

Estavam perdidos no meio daquele ciclone. Os dez dias seguintes pareciam-lhes uma eternidade aterradora. Recusavam aquele presságio, sabendo que precisavam de juntar forças, conhecimentos, tudo o que tinham aprendido ao estudar ritos, pedras e túmulos.

Se havia seres humanos que tinham conseguido pôr em execução aquela predição, deviam ser capazes de decifrar o seu segredo, procurar sob que signo tinham nascido os seus próximos e, para começar, descobrir a ligação entre Benjamin e o motorista de táxi.

Que iria passar-se no dia seguinte? Que sinistra notícia lhes traria o terceiro dia? Segundo o círculo, a ameaça atingiria alguém do signo dos Gêmeos ou da Virgem.

O professor perguntou:

— Pierre não é Gêmeos?

— Não sei — respondeu-lhe Maya.

Os seus pensamentos iam para o diplomata que encontrara no avião.

— Espere um momento.

Tirou do bolso o cartão de visita que Edward lhe dera. Pegou no celular e enviou uma mensagem: “Sob que estrela nos encontraremos?” Assinou com o seu primeiro nome.

 

A noite caía sobre Megido. Não tinham visto ninguém há horas e decidiram voltar ao refeitório. Pierre estava sentado sozinho a uma mesa, de olhar perdido.

— Até que enfim, estou contente por tornar a vê-lo. Ninguém ousa incomodá-lo. Queria falar consigo.

— Que se passa? — perguntou Claude.

— Todos estão cada vez mais inquietos. Eu e os quatro rapazes da equipe julgamos que a chegada de Maya ia acalmá-lo e que tudo voltaria à ordem. Mas, desde ontem, ainda é pior. Que fazemos aqui? Não sabemos nada. Você já nem refila com a cozinha de Simon. Rajan e Zoltan andam a contar moscas.

O professor interrompeu aquelas lamúrias:

— Ouça, Pierre, vai ter de se encher de paciência. Talvez estejamos prestes a fazer uma descoberta crucial. Mas isso exige calma, reflexão e método. Quanto à equipe que, segundo diz, anda a contar moscas, não vai ficar desiludida. Parece-me que aqui ainda há muito por fazer. As tabuinhas não foram limpas. Os pincéis estão sujos de terra. A terebintina não foi mudada. As olarias, os objetos que retiramos, não foram nem classificados nem inventariados. Os selos encontrados na urna funerária estão espalhados. Portanto, mãos à obra! Quando for altura de descer, logo avisarei. Coragem!

Pierre reencontrara o seu sorriso charmoso. Gostava de ver Claude exercer a sua lendária autoridade, isso tranquilizava-o. Chamou os rapazes, indicando a cada um o que devia fazer. Quando regressou para se sentar à mesa, Maya perguntou-lhe:

— Você não é do signo dos Gêmeos?

— Sou, porquê? Leu o meu horóscopo? Vou encontrar finalmente a mulher da minha vida?

— Talvez. Mas, sobretudo, tem de estar atento, tem de vigiar as suas articulações.

Pierre desatou a rir e prosseguiu:

— Então esses truques funcionam? É extraordinário! Esta noite fui acordado por violentas dores nos braços. Pensei que o fato de ter transportado um bloco de granito me causara curvaturas. Massageei-me com Sintol. Melhorou um pouco. O meu horóscopo diz a verdade. Eu, que nunca liguei a essas inépcias, vou lê-lo atentamente. Se não me sentir melhor amanhã, o nosso dedicado Frédéric acalmará as minhas dores. Quanto lhe devo, senhora vidente?

— Nada — respondeu-lhe Maya. — Mas seja prudente.

Um pequeno ruído sobressaltou-a. Pegou no seu celular. Havia outro SMS. Aguardava notícias de Edward. Leu a mensagem: “Não encontrará. Restam-lhe dez dias.” Não havia qualquer número. Passou o celular para o professor.

 

De olhos inchados, Maya dirigiu-se para o refeitório. O seu sono fora invadido por imagens perturbadoras e confusas. Regressara aos locais da sua infância, ao apartamento onde crescera, mas a sua chave não abria nenhuma porta, as fechaduras tinham sido mudadas. Chorava os seus pais, que tinham desaparecido tão cedo. Teria desejado aninhar-se nos braços do pai, contar-lhe o seu medo, a sua tristeza. Sentia mais do que nunca a falta dele.

Ao passar sob o alpendre, ficou espantada por não avistar ninguém. Avançou para a cozinha. Reinava um silêncio pesado. Simon estava estendido no solo. À volta dele, a equipe olhava para Frédéric, que lhe segurava a cabeça. O médico voltou-se para o professor.

— Demasiado tarde, Claude. Morreu. Parece um envenenamento. Olhe para a espuma no canto dos lábios. É preciso chamar a embaixada e mandar analisar esta substância.

Pierre sentiu-se mal. Maya trouxe-lhe uma cadeira. Calmo, como era seu hábito, Rajan ocupava-se de tudo. O professor levou Maya para o exterior.

— A mensagem especifica-se, pequena. Se não a encontramos é porque continuamos sem a perceber. Não fomos suficientemente rápidos. No entanto, podemos constatar dois pontos: Simon nasceu no final de Agosto e, portanto, é do signo da Virgem. Morreu envenenado. A parte do corpo atingida é o ventre. Mas não chega seguir simplesmente a ordem do círculo para adivinhar quem irá desaparecer. Pensávamos em Pierre. Mas há outros. Como pedir a todas as pessoas próximas ou afastadas que nos digam qual é o seu signo? Impossível. Temos de pensar depressa, juntos.

— Se os sacerdotes caldeus selaram esta maldição é porque tinham um propósito. Não poderíamos desvendar o segredo a partir do afresco?

— É preciso descobrir o sentido daqueles desenhos, daquela fachada.

— Em que está a pensar, Claude?

— No relato de Assurbanipal ao descrever Susa, os seus bosques secretos, os seus túmulos reais. Aí residia Insusinak, o deus do mistério, que habitava em locais escondidos. Era considerado como o Senhor do Reino dos Mortos. Julgava-se que no centro dos seus túmulos havia portas que davam para o Além. Recitavam-se preces diante delas. Lembro-me da descrição que me deu um arqueólogo: a porta de Insusinak tem muitas semelhanças com o fresco que descobrimos.

 

Envolto num cobertor, o corpo de Simon foi colocado numa maca na parte de trás do caminhão conduzido por Rajan. Pierre subiu para a frente. Frédéric instalou-se perto do defunto. Ao fechar a porta, Pierre disse ao professor:

— Vamos ao hospital para o exame e depois seguimos para a embaixada, para preencher os documentos oficiais. Procuraremos estar de volta esta tarde. Encarrego-me de telefonar à família. Espero que consigam levantar o moral da tropa.

Dissimulava mal a sua tristeza, tinha os olhos avermelhados.

— Eu trato disso, Pierre — disse o professor. — Enquanto não soubermos o que se passou, não diga nada a ninguém.

O veículo arrancou numa nuvem de pó. Claude deu instruções ao resto dos homens. Pediu a Maya que pegasse num cesto de frutas e noutro com carne de caça e descesse com ele. Ela obedeceu.

O muro ali estava, parecendo esperá-los, desafiá-los.

— Pronto, estamos outra vez diante do afresco — disse o professor —, como dois adoradores da maqueta de bronze que lhe mostrei no museu do Louvre, com todos os elementos necessários para uma cerimônia fúnebre. Procedamos como faziam os oficiantes.

— Mas, Claude, não temos nada para cumprir esse ritual. Não conhecemos as fórmulas.

— Minha jovem amiga, deixemos falar as nossas almas e os nossos conhecimentos; se estivermos a lidar com Insusinak, ele ouvir-nos-á. Lembre-se do jarro de alabastro no museu de Bagdá. Os oficiantes estão representados por um homem e uma mulher que vêm apresentar oferendas às suas divindades. O Gênesis retomou a descrição: O primeiro apresenta os frutos da terra, o segundo os recém-nascidos do seu rebanho. Você vai apresentar os frutos e eu a carne de caça. Ponhamos um joelho no chão e ofereçamos-lhe os nossos presentes de braços estendidos.

A lamparina colocada sobre uma pedra iluminava o afresco, enquanto o resto permanecia na penumbra. Calaram-se, não ousando olhar um para o outro. Maya oscilava entre a vontade de rir e o medo, que progredia. Fechando os olhos, iniciou uma prece, lembrando-se de um texto enterrado na sua memória:

 

Ó Senhor da porta dos salmos

Deus criador de vida, que reside no Opsu,

Estas sementes da terra são uma oferenda para ti,

Tu, que diriges as serpentes a as águas que jorram

Para que, purificados, possamos tocar na árvore

E entrar no pequeno bosque.

Estas oferendas são para ti,

Deus misterioso do Reino dos Mortos

Que vives nesses locais secretos e nos guias.

 

A jovem não sabia se aquilo tinha sentido, mas esperava que algo acontecesse, para os tirar daquele pesadelo.

Ouviu-se um ruído abafado. O muro começou a tremer ligeiramente, revelando fendas na rocha à volta do afresco. Fragmentos de terra seca caíram no solo. Depois, muito lentamente, o bloco começou a girar sobre o seu eixo central e parou a meio caminho. Agora havia dois espaços vazios de ambos os lados do muro, do qual se distinguia apenas a espessura da pedra, no meio. Atrás, uma sala estava mergulhada na escuridão.

Levantaram-se, iluminando a espessura da pedra. Apareceu uma inscrição vertical em letras cuneiformes. O professor pegou num pincel para retirar o pó. Começou a decifrar os signos alfabéticos em voz baixa: B... E... N... Maya sentiu um arrepio.

— Benyamin! — exclamou.

— Sim, é o que está gravado.

O professor pegou na lamparina, passou pelo lado esquerdo da porta e fez sinal a Maya para entrar pelo lado direito. Passou o feixe de luz pelas paredes. Estavam nuas. Iluminou o solo, no qual repousava uma estela retangular.

— Na realidade — disse Claude — parece-me uma sepultura, mas talvez seja outra coisa.

Pegou no pincel, varrendo o pó de outras inscrições cuneiformes gravadas na rocha.

— Veja, é um AN! — prosseguiu. — Em cima, no centro, figura o nome da divindade, senhora do primeiro mês, do primeiro dia, segunda-feira, 21 de Junho, solstício do Verão. Chama-se DU-UZU.

Agora, todas as letras estavam legíveis.

— E que significam as outras inscrições? — perguntou ela.

— Trata-se do repertório dos deuses colocados sob a égide de DU-UZU, compreende, Maya? Os nomes estão alinhados em duas colunas paralelas. Veja, é extraordinário! A apresentação é típica da literatura e do pensamento mesopotâmicos. Na coluna da esquerda figuram os nomes e na da direita o seu significado. Veja: NIN à esquerda... e à direita: “segunda esposa de ANU”.

O professor estava excitado, inteiramente absorvido na sua descoberta. Parecia ter olvidado o resto. Maya estava angustiada. Perante a capacidade de Claude em desligar-se do mundo, devorado pela sua paixão, sentia uma espécie de abandono. Não gostava de superstições. Para a jovem, a arqueologia era uma ciência exata. Procurava a verdade; o sobrenatural e o irracional eram-lhe estranhos.

Libertava-se um odor tenaz, ao mesmo tempo azedo e adocicado. Os séculos de clausura abafavam o ar. Maya sentiu dificuldade em respirar.

— Professor, não me sinto muito bem, vou voltar uns instantes lá para cima.

Ele não a ouviu e acendeu outro cigarro. Ela regressou ao ar livre, deixando o velho homem entregue à sua febre. Sentada no solo, observava o horizonte. O que significava aquilo tudo? As suas idéias eram confusas. Os três mortos, o motorista e o seu horóscopo, o zodíaco, as mensagens, o nome na porta, tudo se baralhava. Maya dizia para consigo que o seu espírito correra sem ela, deixando-a vítima dos fantasmas do professor.

Era sem dúvida uma descoberta extraordinária. Mas que relações podiam os acontecimentos ter entre si? Procurava esvaziar a mente, reencontrar a sua calma. O toque do celular fez-se ouvir discretamente. Hesitou antes de responder.

— Alô? Alô, Maya?

— Sim, sou eu...

— Aqui fala Edward Rothsteen. Recebi a sua mensagem. Desculpe-me por não lhe ter telefonado mais cedo. Não percebi lá muito bem a sua alusão à estrela. Tem algo a ver com o seu trabalho?

— Esqueça isso. Como está?

— Tenho muito trabalho. Já leu os jornais? Sabe, o road map... Maya, está a ouvir-me?

— Sim, claro. Só recebo o jornal uma vez por semana, mas segui o caso. Deve estar extremamente atarefado...

— É verdade, mas gostaria de vê-la, falar com você pessoalmente.

— Ah, bom? É o amor?

O jovem soltou uma gargalhada.

— Não, é profissional. Gostei muito da nossa conversa no avião. Foi franca, direta, diferente das hipocrisias habituais. Tem algum endereço eletrônico para onde lhe possa enviar uma mensagem? Ou melhor: não podemos encontrar-nos?

— Tinha de ir amanhã a Telavive para ver Serge Finkelstein, o diretor do Instituto de Arqueologia, pois preciso consultar os arquivos. Mas vou partir agora. Telefonar-lhe-ei quando chegar.

— Muito bem. Formidável. Até logo — despediu-se Edward, desligando.

Maya ficou um momento pensativa. Sentia-se espantada com a familiaridade que se instalara entre eles, tinha a impressão de conhecê-lo desde pequena. Escreveu uma palavrinha ao professor para lhe dizer que antecipava a sua partida e confiou a carta a Zoltan, o único homem que ficara no acampamento.

A jovem subiu para o jipe. Percorridos os primeiros quilômetros, experimentou uma sensação de alívio, um sentimento de liberdade. Ligou o rádio. Na estrada, as barreiras sucediam-se. A Palestina, os seus territórios ocupados, desfilavam sob o seu olhar atento. Seria possível que todos aqueles horrores parassem e a paz voltasse?

Maya pensava nos trabalhos do professor Finkelstein. Ele fizera descobertas fundamentais sobre as origens da Bíblia. Fora publicado um livro que causara grande celeuma. Tinham-se seguido fóruns, sites na Internet. Ele pusera em causa muitas idéias feitas sobre o povo de Israel, a Terra Prometida e Jerusalém. Isso tudo coincidia curiosamente com as buscas do professor Friedmann sobre os túmulos secretos. Maya sentia aproximar-se de elementos decisivos. Talvez o seu encontro com Finkelstein pudesse dissipar o obscuro.

Supunha que ele tinha em sua posse documentos não publicados. Por certo que lhe faltavam provas e sentia-se sem dúvida retido pelo medo de revelar coisas que pudessem provocar escândalo. Financiado pela Universidade de Telavive, Finkelstein devia recear reações violentas. Como pôr em causa crenças milenares?

Os cantos israelitas tornavam-na mais serena, mas a freqüência foi paralisada. Rodando o botão do rádio para procurar sintonizar a mesma emissão, ouviu uma voz surda pronunciar as seguintes palavras: “Restam-lhe nove dias.” Depois, a música voltou.

Parou à beira da estrada e desfez-se em soluços. Perguntava-se se a loucura não estaria a apoderar-se dela, apertando-a numa gargantilha da qual não mais poderia escapar. Um homem armado bateu no vidro do jipe, fazendo-lhe sinal para que arrancasse. Inspirou profundamente e expulsou as idéias sombrias. Pensar na busca da verdade. Naquele círculo do absurdo, haveria para ela um destino a cumprir, uma engrenagem a pôr em marcha?

Entrou em Telavive, instalou-se num quarto do hotel Hilton e telefonou para Edward, para marcar um encontro no restaurante.

 

Maya já estava à mesa quando Edward chegou e se sentou.

— Queria ver-me — disse ela. — Pois bem, aqui estou.

O jovem pegou-lhe na mão e beijou-a.

— Na realidade, não é nada de preciso. Estou intrigado por mensagens que recebo. Os serviços da embaixada pensam que são enviadas a partir de uma escola cabalista, situada perto de Megido. Como é aí que trabalha, perguntei-me se não estaria em contato com eles.

— Ouvi falar deles, mas não os encontrei. Penso que são pessoas que vivem muito retiradas. Em autarcia. Em princípio não privam com ninguém, são puristas inacessíveis. Mas que espécie de mensagens recebe?

Ele pegou no seu celular e dedilhou as teclas.

— Veja, esta é a última.

Ela leu: “Conte os dias que lhe restam.” Largou o celular murmurando:

— Oh, meu Deus!

— Tem alguma idéia do que significam?

Maya hesitou. Agora tudo ia depressa demais. Era preciso reter o tempo, não dizer tudo, abordar o tema de outra maneira. Ergueu a cabeça.

— Pensa que essas pessoas querem intervir no processo de paz? — perguntou ela.

— Não, não creio. São sábios que se dedicam inteiramente ao estudo e à transmissão do seu saber. Não são hostis.

— Que sabe sobre eles?

— Criaram uma espécie de escola superior consagrada ao estudo da Cabala. O método como procedem à seleção é muito severo. Muitos gostariam de lá entrar, mas poucos são admitidos. Parece que uma elite intelectual, oriunda das universidades do mundo inteiro, segue aí uma formação aprofundada durante vários anos. São iniciados aos saberes secretos da Cabala.

— Não manifestam uma posição política em relação à situação atual?

— Não, Maya. Mantêm-se voluntariamente afastados dos jogos do poder.

— O problema não será precisamente o fato de viverem fora da realidade?

— Sim, mas pensei que se se instalaram perto de Megido, talvez tenha sido por se interessarem pelo terreno arqueológico, pelas buscas. Estou simplesmente admirado por eles nunca terem tentado entrar em contato convosco.

— A menos que o tenham feito e eu não saiba. Tenho de falar com o professor Friedmann e com os membros da equipe.

Quanto ao resto, Maya preferia calar-se.

O seu olhar foi atraído por uma silhueta familiar. Pierre acabara de entrar na sala de jantar do Hilton. Ela recuou instintivamente. Teria preferido que ele não a visse. Tarde demais. Ele já se encaminhava para a mesa deles.

— Maya! Não pensava encontrá-la aqui esta noite. Que dia!

Sentara-se, esperando que o apresentassem.

— Edward Rothsteen. Pierre Grün, que sempre trabalhou com o professor Friedmann. Edward acaba de ocupar o seu posto na embaixada dos Estados Unidos; encontramo-nos no avião que vinha de Londres. Bebe alguma coisa, Pierre?

— Oh, Maya, sabe, foi um dia terrível. Acabo de sair do hospital. Assisti à autópsia. Não tardaremos a saber os resultados. Foi para isso que veio? Eu trato de tudo. Se tivéssemos de contar com Claude...

Ela interrompeu-o.

— Amanhã de manhã tenho encontro marcado com Finkelstein.

Depois, voltando-se para Edward, disse:

— Esta manhã, descobrimos o cozinheiro da equipe morto, estendido no solo. O nosso médico pensa que se trata de uma intoxicação alimentar. A propósito, Pierre, Frédéric ficou no hospital?

— Ficou. Preferiu esperar pelos resultados antes de avisar a família. Eu já não agüentava mais. Tenho de dormir algumas horas. Ele me manterá ao corrente. Mas, intrometi-me na sua conversa... — disse-lhes, com ar malicioso. — Vou deixá-los.

— Espere, Pierre, não haja como criança. Fique mais um pouco, vou encomendar o puro malte de que tanto gosta.

— Ela sabe como lidar comigo — disse ele a Edward. — Faz de nós o que quer. Desconfie, jovem.

— Saberei tomar em consideração as suas advertências, caro senhor.

— Trate-me por Pierre e é tudo.

— Diga-me, Pierrot, em vez de proferir tolices, Edward estava a fazer-me uma pergunta. Já ouviu falar de uma escola cabalista situada perto do lugar onde estamos?

— Com certeza, Maya. Porquê?

— Conhece-os? — perguntou por sua vez Edward.

— Conhecê-los é exagerado. Encontrei-os duas ou três vezes.

— Pode contar-nos? — perguntou Maya.

— Oh, sabe, são pessoas muito singulares.

— Que lhe disseram? — insistiu ela.

— Espere. Deixe lembrar-me... Na realidade, não foi há muito tempo. Se a memória não me falha, creio que foi no dia seguinte ao da sua partida, há dois meses. O diretor da escola veio ao nosso acampamento. O professor descera para ir buscar uma estátua. Fui eu que o recebi. Ele apresentou-se. Contou-me um pouco a história deles. A comunidade instalou-se perto de Megido em 1939. Os seus antepassados conheciam esta cidade canaanita do vale de Jezreel. Ela representava uma posição-chave na Via Maris que ligava a Síria ao Egito. Eles sabiam que este local fora mencionado nos anais de Tutmés III e que as tabuinhas de Toanak o descreviam como a sede de uma guarnição egípcia. Tinham decorado excertos da Bíblia que evocavam as vitórias de Josué e Débora, os embelezamentos e as fortificações realizados por Salomão, a derrota de Josias em 609 a.C. Sabiam tudo sobre as buscas de Schumacher entre 1903 e 1905. Era fascinante.

— Não lhe contou como funcionava a escola? — perguntou Edward.

— Isso soube mais tarde.

— Tornou a vê-lo? — prosseguiu Maya.

— A ele não, mas a outra pessoa. O nosso encontro intrigara-me. Um mês depois fui visitar a escola deles. O diretor não estava. Fui recebido por outro indivíduo, que sabia que nos tínhamos encontrado. Foi ele que me explicou como funcionavam. Se bem compreendi, trata-se de uma instituição criada muito antes do Zohar e fundada em tradições que se perdem na noite dos tempos. São doze Mestres que transmitem o seu saber a doze alunos. Um Mestre para cada noviço. Cada superior deve escolher o aluno que lhe corresponde seguindo um protocolo sobre o qual não percebi grande coisa. De qualquer modo, o que retive foi que finda essa iniciação, cada aluno é chamado a substituir o seu Mestre quando este morre. A tradição perpetua-se assim há séculos. No último momento, o jovem retoma o nome do Mestre. Mas estou a atordoar-vos com isto tudo. A menos que seja eu que esteja atordoado. Por que se interessam por eles?

Edward ia responder, mas Maya interrompeu-o:

— Sabe, Pierre, na embaixada americana eles interessam-se por tudo. Mas você deve estar esgotado. Não vamos retê-lo mais tempo.

Espantado, Edward olhou para Maya. Tinha começado a obter respostas às suas perguntas. Não percebia por que motivo ela pusera assim termo à conversa. Pierre levantou-se, saudou-os e atravessou o átrio de entrada. A jovem prosseguiu antes que Edward pudesse falar:

— Adoro-o, mas ele é tão tagarela...!

— No entanto, o que ele dizia era interessante. E...

— Porquê? A minha conversa aborrece-o, Edward?

— Desculpe-me. Neste momento ando um tanto obcecado. Foi terrível o que aconteceu ao seu cozinheiro.

Maya fingiu não ter ouvido.

— Fale-me de você. Nunca pensou em casar-se?

— Tem alguém em vista para me apresentar? Cuidado, sou Sagitário.

— Por que me fala do seu signo?

— Estou a ofender a cientista que é. Só queria brincar.

Um criado aproximara-se da mesa, com um sobretudo no braço.

— Senhora, o seu celular não pára de tocar.

— Desculpe-me, tinha-me esquecido dele — disse ela, pegando na peça de roupa. Um pequeno envelope piscava na tela. Tinha cinco novas mensagens. Ouviu-as. O professor, com uma voz cada vez mais nervosa, pedia-lhe que lhe telefonasse com toda a urgência.

 

Maya olhou para o relógio.

— É terrível! O tempo passa tão depressa! Tenho encontro marcado para as oito da manhã. Preciso de ir dormir.

Levantou-se.

— Caro Edward, estou-lhe muito agradecida por esta noite. Desculpe-me deixá-lo assim. Espero tornar a vê-lo dentro em breve.

Ele pegou-lhe na mão e beijou-a.

— Sou eu que me desculpo por tê-la retido, mas era importante que lhe falasse.

Ela sorriu.

— Estritamente profissional.

— Você é que decidirá.

— Até breve, Edward.

Maya entrou no quarto, estendeu-se na cama, procurou descontrair-se. Decorridos alguns minutos, pegou no celular. Tinha uma nova mensagem. A voz de Claude, ainda mais rouca, implorava-lhe que lhe telefonasse. A jovem olhou um momento para a tela apagada e depois marcou o número de telefone do professor.

— Maya, é você? Que faz? Enviei-lhe doze mensagens.

— Ah, sim? Que estranho, só recebi seis.

— Pare, não é o momento para brincadeiras. Estou inquieto. Você está bem?

— Claro, Claude. Que se passa?

— O quê? Acontece que... acontece que... olhe, já não sei. Você vai-se embora e deixa tudo de lado. Escreve um bilhetinho e desaparece. Entretanto...

— Entretanto o quê, professor?

— Bom, estou a ver que não é possível falar consigo. Pois bem, boa noite.

— Espere, que estamos a fazer?

— Maya, pare com este estúpido jogo. Porque se foi embora tão precipitadamente? E o que é esse encontro com o Finkelstein?

— Claude, não mostre tanta má fé. Tinha-lhe falado no assunto. Não me agrada ter de me levantar às quatro da manhã. Estes últimos dias no acampamento foram extremamente esgotantes para nós. Precisava de uma noite bem passada, numa verdadeira cama. Porque está furioso?

— Não estou furioso, minha pequena, estava apenas preocupado; confesse que há motivo para isso.

— Claude, julgava que me chamava por ter descoberto outra coisa atrás da estela de Benjamin.

— Você é mesmo incrível! Para você, aquilo que descobrimos não é nada...

— Não disse isso. Mas, avançou alguma coisa?

— Não, só umas bagatelas, nada de significativo.

— Com efeito, a descoberta do zodíaco é fundamental. É preciso protegê-la a todo o custo, não fale disso a ninguém, sobretudo a Pierre. Olhe, dei com ele esta noite no Hilton.

— O quê? Cruzou-se com Pierre?

— Cruzei-me. Passou enquanto eu jantava. Esperava os resultados da autópsia de Simon.

— Ah, bom... E Frédéric não estava com ele?

— Não, ficou no hospital para tratar da transferência do corpo. O coitado, é tão triste... Vamos sentir a falta dele, você já não poderá barafustar com ele por causa da comida.

Caiu um longo silêncio. Claude suspirou.

— Tem razão. E que faz neste momento?

— Claude, vou dormir.

— E amanhã, tem mesmo encontro marcado com Finkelstein?

— Amanhã, não; hoje. Olhe para o seu relógio.

— Eu sei, Maya; entramos no quarto dia. Enfim, estou a impedi-la de dormir. Mas porque vai ver esse indivíduo?

— Ouça, não vamos recomeçar esta discussão, é uma da manhã, já falamos cem vezes disto, vou vê-lo para as minhas investigações pessoais. Pare de me perseguir com isso! Se quiser que eu largue tudo para me dedicar exclusivamente à glória do professor Friedmann, diga-me francamente de uma vez por todas!

— Que disparate, Maya! Não tenho nada contra ele. Mas, desconfie. Ele vai tentar saber coisas. Quanto às suas próprias publicações, sabe muito bem que se ele não revelou tudo é porque lá tem as suas razões. Seja prudente, é uma velha raposa.

— E você é um velho rezingão, não é, meu professor adorado?

— Sim, é isso, minha cara, um velho rezingão que a adora.

— Claude, agora tenho de dormir.

— Muito bem. Boa noite. Chame-me amanhã, depois do encontro.

— Prometido. Beijinhos.

Maya desligou. A pequena luz do banheiro continuava acesa. Reencontrava a sua calma. Sentia-se mais forte. Longe dos medos dos últimos dias. Tudo aquilo parecia-lhe estranho. As mensagens, os complôs, a contagem decrescente afastavam-se. Aqueles fantasmas dos sábios não iam servir-lhe de sepultura. Para ela, tudo não passava de uma série de coincidências.

Assim era a sua vida. Escolhera dedicar-se a descobrir coisas que já não interessavam a quase ninguém. Hoje, quem se sentia ainda atraído pela civilização mesopotâmica? O que Friedmann considerava como tão importante seria objeto de uma simples comunicação na Revista de Assiriologia, lida por um punhado de especialistas que discutiriam infinitamente, ao passo que o público nunca ouviria falar do assunto. O que é que isso mudava quanto ao futuro do planeta? Edward, ele sim, tratava de problemas reais, que punham em jogo o destino dos homens. Pensou em Benjamin, que não veria nada disto. Tinha frio. Chegou o cobertor mais para cima. Pouco importa, era toda a sua vida. Quando era pequena, enterrava objetos na areia para poder redescobri-los alguns dias depois. Passou em revista as perguntas que faria a Finkelstein. Imaginou a sua fotografia na capa do Times: “Maya Spencer. A revelação.” Minutos depois, foi apanhada pelo sono.

 

Maya estava sentada num corredor da universidade de Telavive. Uma porta anunciava: Prof. Serge Finkelstein. Só vira a cara dele numa fotografia da contracapa de um dos seus livros de cabeceira, As Origens da Bíblia. Segundo o mail que recebera, ele regozijava-se por receber a sua visita. Dizia ter lido atentamente os dois artigos que ela publicara. O edifício estava deserto. Nenhum ruído vinha perturbar a sua espera. Ouviu passos abafados ao longe. Maya voltou a cabeça. Eram oito horas em ponto. Um pequeno homem gorducho avançava devagar, de cabeça baixa.

Maya levantou-se. Ele parou diante dela e fixou-a. Ela ficou impressionada pela expressão do seu olhar verde, que parecia atravessá-la. O rosto dele, como uma lua de maçãs salientes, sorriso irônico, era imutável. Era a um tempo feio e belo, estranho, perturbador. Tinha o crânio glabro. O seu aspecto de duende derreteu-a. Subitamente, teve vontade de lhe acariciar a cabeça.

— É a Maya Spencer, não é? Lamento imenso ter de recebê-la tão cedo, mas sabe, depois é o inferno. Não teríamos tempo para falar tranqüilamente.

O professor Finkelstein tirou uma chave do bolso, abriu a porta do seu gabinete e convidou-a a entrar. Retirou alguns papéis espalhados e indicou-lhe uma poltrona. Sentando-se diante dela, prosseguiu:

— Não pensava que fosse tão nova. Ao ler os seus artigos, imaginava-a diferente. E, além disso...

— Há alguma coisa que o incomoda, professor?

— De modo nenhum. Antes pelo contrário. Mas como é que uma moça tão encantadora, com esses longos cabelos louros, com esse ar, essa carinha de anjo, pode ir enterrar-se na escuridão dos velhos túmulos? Devia mostrar-se à luz do dia, sei lá, trabalhar no cinema...

— Senhor, devo entender que sigo o caminho errado? E que a mensagem que me enviou sobre os meus trabalhos não passava de mais uma formalidade?

— Não, não, não me leve a mal. Estava a elogiar a sua graça. Desculpe-me se fui desajeitado.

— Bom, e então?

— Então, parece-me que começou bem. Desculpe a minha brutalidade. Trabalha com Friedmann. Se não me enganei, ele é um pouco o seu pai de substituição. Que espera de mim?

— Espero que a minha iniciativa não o incomode. É verdade: trabalho com Claude. Sinto-me muito ligada a ele, admiro-o. Ao mesmo tempo, os meus trabalhos e a minha busca da verdade são tão essenciais para mim como os laços do coração. Conheço as suas investigações, aquilo que escreveu. Se eu quiser avançar, não poderei fazê-lo sem a sua ajuda.

Ele ouvia-a, perplexo.

— Em que pensa?

— Nas suas conclusões sobre as origens da Bíblia há hipóteses que, mesmo que sejam abordadas com prudência, me levam a pensar que não revela tudo o que descobriu, que não diz tudo ao leitor. Talvez por escrúpulo, ou por precaução. Mas creio ler entre as linhas e os seus silêncios fazem-me pensar.

O velho homem não deixava de fita-la, sem piscar os olhos, sem manifestar a menor reação. O tom da sua voz era diferente.

— E sobre que assunto incidem os seus trabalhos atuais?

— Sobre os túmulos reais secretos.

Ele levantara-se bruscamente, caminhando de um lado para o outro. Parecia agora mais velho que a sua idade.

— Estou vendo — disse. — Mas perde o seu tempo. Não há túmulo nenhum no local de escavações de Megido.

— Trabalho lá porque, como sabe, o professor Friedmann descobriu um certo número de objetos rituais.

— Estou a ver, estou a ver — repetia ele, afagando o queixo. — Torno a fazer a mesma pergunta: que espera de mim?

— Professor, o senhor é o gato de Sais[2] e eu sou um ratinho.

Ele soltou uma gargalhada e o seu rosto iluminou-se.

— Preferia ser o deus Rá.

Ela levantou-se por sua vez e aproximou-se.

— Professor, aceita falar-me de Josias?

— Ele morreu em Megido. É isso que lhe interessa, não é?

— É.

— Mas que espera encontrar? Ele não está enterrado lá, foi morto pelos Egípcios e não foi sepultado. Nunca encontraram o seu corpo.

— É assim tão certo?

— Sabe, minha jovem amiga, a história de Josias é muito estranha. Quando ele encontra a Bíblia durante as obras de restauração do Templo de Jerusalém... Imagine: só tinha dezoito anos.

— Estava bem acompanhado, não estava?

— Ah, como gosto do ardor da juventude! Também gostaria de estar no início dessa história e ocupar-me dela de outra maneira.

— Que quer dizer, professor?

— Quero dizer, minha bela, que esse velho malandro do Friedmann é um felizardo por tê-la a seu lado.

— Por favor, professor, não misture tudo. Diga-me simplesmente se pensa que estou no caminho certo.

— É extraordinário, quer que eu lhe responda assim, sem mais nem menos?! Venha trabalhar comigo.

— Professor, não estou a brincar. Quero saber mais sobre Josias e as origens da Bíblia. Ele descobriu-a realmente?

— Maya, formule a sua hipótese com maior precisão.

— Pois bem, penso que Josias não encontrou a Bíblia, mas a encomendou a escribas para justificar a sua política de conquistas e que essa prova existe algures.

Finkelstein empalidecera.

— Tem consciência do que está a dizer? Já falou disso com Friedmann?

— Não, nunca.

— Ah, muito bem — murmurou ele.

— Se ficou tranqüilizado, isso prova que o meu raciocínio não é absurdo.

— Não é o que eu digo. Mas penso que faria melhor se deixasse de pensar nisso e não o referisse a ninguém, senão passará por uma louca.

— Muito bem; no entanto, tenho a certeza que partilha da minha opinião.

— Minha pequena, não sou eu quem dirige as suas investigações.

— Professor, mostre-me o que encontrou.

— Ao menos, isso é direto.

Olhava para ela com ar enternecido. Passou a mão pela testa e inclinou-se para a secretária. Pegou numa segunda chave, abriu uma gaveta e retirou um objeto cuidadosamente envolvido num tecido de veludo. Ao desdobrá-lo com precaução, murmurou:

— Sou louco.

Passou-lhe um fragmento de argila.

— Aqui tem. É a primeira pessoa a quem o mostro.

Era um pedaço de terra seca com inscrições gravadas em hebraico. Maya tinha dificuldade em decifrá-lo. No início, estava escrito: “Eu, Josias, Rei de Israel, comprometo-me a entregar setenta siclos de ouro ao escriba Igraf, por...” A frase estava interrompida, a argila quebrara-se. Ela arregalou os olhos. Teria nas mãos o desfecho de todos os seus sonhos? Um pequeno fragmento de terra iluminava a sua existência. Afogada pela emoção, sentiu as lágrimas prestes a brotar. Mas procurou não mostrar nada. Disse ao professor:

— É o contrato do século.

— Um famoso best-seller — acrescentou ele.

— Pensa mesmo que é...

— Parece-se muito. Mas para o revelar, é preciso encontrar o resto. Será que existe? Terá sido destruído?

Havia tanto barulho no exterior que o professor Finkelstein se levantou para a acompanhar até à porta. Centenas de estudantes tinham invadido a universidade. Alguns investigadores esperavam para ser recebidos.

— Qual a razão deste privilégio? — perguntou-lhe ela, pegando-lhe nas mãos.

Foi a vez dele as apertar.

— Acho-a estranhamente comovedora. Cara Maya, creio que está no bom caminho.

Dito isto, voltou para o seu gabinete, a pequenos passos.

 

Na estrada para Megido, Maya sentia-se pronta a enfrentar tudo. O seu en­contro com Finkelstein regenerara-a. Saíra daquele frente-a-frente mais convencida do que nunca da justeza das suas paixões, das suas convicções profundas. As obsessões de Friedmann, o domínio que ele exercia sobre ela, atenuavam-se. As superstições, os temores infantis iam desaparecendo à me-dida que os quilômetros iam passando. Tudo não passava afinal do fruto do acaso: o afogamento de uma criança, um motorista de táxi morto num acidente, um cozinheiro vítima de uma intoxicação. As mensagens eram provavelmente reclames, como recebia aos milhares. Sorria, pensando numa campanha publicitária: “Restam-lhe três dias... para aproveitar os fabulosos descontos nas nossas lojas.”

Como pudera vacilar nas divagações do seu caro professor e tornar-se adepta da quiromancia? As coisas seriam diferentes logo que regressasse. Era preciso convencer Claude a quebrar o silêncio em que envolvia os seus trabalhos, desmantelar a loucura reinante, informar a equipe das novas descobertas. Pô-los de novo ao trabalho, reencontrar um ambiente sereno.

Não falaria da conversa que tivera com Finkelstein. Era o seu segredo. As suas investigações pessoais. A sua maneira de se despedir de uma parte da infância que ainda a habitava.

O tempo estava sombrio em Megido. Pierre e Frédéric tinham voltado sem o resultado das análises. Todos estavam abatidos, deprimidos. Maya dirigiu-se para o professor, que bebia um café, sentado, à parte.

— Claude, sabe muito bem que não é meu costume manifestar-me acerca das suas decisões. Mas agora, basta! Tem de cair em si, você contamina toda a gente com os seus estados de alma. Convoque a equipe. Fale-lhes do santuário. Estabeleça um plano de trabalho para cada um. Já encontrou um novo cozinheiro?

Claude balbuciou:

— Hum, sim... Rajan vai tratar disso. Tem razão. Tenho de retomar as coisas em mão. Como foi o seu encontro?

— Nada de especial. Ele é encantador. Falamos sobretudo de si. Vamos, Claude, não há tempo a perder.

 

Claude convocou cinco homens e explicou-lhes a importância da sua descoberta. Descreveu o plano de trabalho numa ardósia instalada no refeitório. Quando acabou, voltou-se para Maya.

— Alguma pergunta?

— Professor — disse-lhe ela — o muro descoberto é uma porta que se abre graças a um mecanismo cujo princípio ainda não conhecemos. Dá para uma sala onde está essa estela, provavelmente uma sepultura. Pensa que esse dispositivo pode levar a outras salas? E quais? Por outro lado, como explicar a descoberta de vestígios da civilização mesopotâmica num local israelita do século VII a.C?

Friedmann respondeu:

— Meus amigos, as perguntas de Maya são muito pertinentes. Todos perceberam que a presença de Sumérios em Megido é um verdadeiro mistério, uma nova página na história da arqueologia moderna. Sempre pensei, sem nunca ter encontrado as provas, que os Caldeus tinham formado sociedades secretas, seitas, se assim preferirem, que enxamearam por toda esta região. Esses sacerdotes, esses magos, eram exilados, perseguidos pelos poderes instalados, obrigados a esconder-se, protegendo o seu patrimônio não obstante a sua errância.

Pierre interrompeu-o:

— Mas, sendo assim, como puderam construir os templos cujos vestígios nos está a descrever?

— É possível — mas isso permanece uma hipótese — que tivessem encontrado aqui um reino que aceitasse protegê-los, com o qual teriam firmado laços e concluído uma aliança. Talvez tivessem se associado ao povo hebreu quando Josias empreendia a reforma dos ritos ancestrais.

Maya interveio brutalmente:

— Mas como é possível imaginar que esses apóstolos do politeísmo que passavam o tempo a adorar centenas de divindades, que praticavam a magia branca, a magia negra, que eram adeptos do amor livre, da prostituição sagrada, que esses adivinhos do horóscopo, tivessem podido aliar-se com os reformadores mais puritanos do monoteísmo que não podiam ler os mandamentos recebidos por Moisés sem as lágrimas lhes acudirem aos olhos: “Adorarás um só Deus, não cobiçarás a mulher do próximo...”, esses homens que, na origem do nosso judeo-cristianismo, empreenderam a destruição dos cultos pagãos e de todos os que, adorando ídolos, não comungavam no amor por um Deus único? Parece uma idéia aberrante.

— É verdade. Compreendo a sua reação. No entanto, verá que neste mesmo local está a prova irrefutável dessa inverosimilhança. Sob os seus pés, há um local que testemunha que o politeísmo e o monoteísmo se encontraram no século VII a.C, sob o reinado de Josias, tendo concluído uma aliança. Por que motivo, não sei. Mas conto com vocês todos para me ajudarem a compreender. Se conseguirmos estabelecer essa verdade histórica, imaginem a relevância da mensagem que revelaremos aos nossos contemporâneos. Ela poderá mudar o destino da humanidade.

Todos se tinham calado.

 

Tudo entrara na ordem. Tinham podido admirar o afresco, limpando e classificando os objetos. Maya e Pierre encontraram-se na tenda do professor Friedmann.

— Corre tudo bem, não acha, Pierre?

— Nem acredito: sinto-me reviver.

— Pois — realçou Claude — é uma loucura ver como os rapazes gostam de ser dirigidos, como gostam de sentir a minha autoridade.

— Isso surpreende-o? — irritou-se Maya. — Assinalo-lhe que é quase meia-noite e que eu saiba ainda não aconteceu nada.

— De que estão a falar? — perguntou Pierre.

— Não se preocupe, meu caro, a menina está a escarnecer.

— De modo nenhum. Constato um fato. Parece desiludido.

— Não seja cínica, Maya. Não lhe assenta bem. Ou então, deixe de privar com velhos mochos.

— Vocês cansam-me com as vossas disputas de apaixonados — disse Pierre. — Vou dormir. Estou morto de cansaço.

Rajan entrou, de respiração arquejante.

— Professor, há uma notícia terrível. Acabam de anunciar na rádio que encontraram o professor Finkelstein morto, no seu gabinete.

 

Os signos do zodíaco circundavam-nos de novo, para melhor os cingir. Ficaram sentados um certo tempo, sem olharem um para o outro. Friedmann fixava o solo, como que absorto na contemplação de um precipício. Maya levantou-se e partiu a correr.

Debaixo da almofada da cama tirou o livro de Finkelstein para procurar a sua data de nascimento. Na antepenúltima página estava escrito: “Nascido em Cracóvia, a 21 de Janeiro de 1932.”

O Senhor de Júpiter atingira o Aquário. Ela julgou sentir-se mal. Pegou na garrafa de água e passou um pano pela testa. Sexta-feira começara e só lhes restavam oito dias. Agora tinha a certeza: uma força superior operava, dominando-os a todos. Não lhes restava tempo suficiente para compreender o seu desígnio.

Uma energia sombria e cega apoderara-se do seu destino. Maya sentia-se tentada a abandonar a luta, a fechar os olhos.

Claude entrou e abraçou-a.

— Maya, compreendo o seu desalento, mas, por favor, não deve renunciar. Façamos abortar esta maldição. Somos provavelmente vítimas de um ritual de magia negra. Temos de desvendar este segredo, travar o círculo que se fecha sobre nós.

— E como proceder, Claude? Só nos restam oito dias de vida. Veja: quatro dias, quatro mortos e não avançamos. Não nos serve de nada saber qual é o signo da próxima vítima, pois não temos a menor idéia daquilo que nos ameaça. Será uma entidade visível ou invisível? Sabemos que hoje irá morrer alguém do signo do Touro ou da Balança, porque Vênus domina o dia do seu nascimento. E o que é que isso muda? Que fazer dos nossos anos de estudo, dos nossos conhecimentos? É um pesadelo. Como encontrar os rituais a Vênus adequados para impedir o sacrifício? Claude, tenho medo, ajude-me.

Pierre entrou nesse momento.

— Desculpem-me, ouvi a vossa conversa sem querer. Isso não me diz respeito, mas julguei perceber que se confrontam com um perigo iminente. Estes mortos parecem fazer parte de um plano do qual seremos vítimas, mais cedo ou mais tarde.

— O que o leva a dizer isso, Pierre? — inquiriu Claude.

— Não tive tempo para lhe contar. Pessoas da escola cabalista instalada perto daqui vieram ver-me. Ontem, falei disso a Maya, em Telavive; o seu amigo diplomata parecia questionar-se a respeito dessa gente.

— O quê? — berrou Claude. — Que história é essa? Qual a relação com essa gente? Maya, quem é esse diplomata?

— No avião encontrei um jovem, Edward Rothsteen, que veio ocupar um posto em Telavive. Queria tornar a ver-me para me falar dessa escola. Saber se eu os conhecia. Pierre chegou nessa altura. Foi ele que nos disse que se tinha encontrado com eles.

— É verdade, Claude. O diretor veio visitar-me aqui. Recebi-o. E, depois, fui visitá-los.

— Mas, Pierre, você não me disse nada!

— E em que altura podia fazê-lo? É impossível captar a sua atenção por mais de cinco minutos. Não julgava que fosse importante. Mas depois das perguntas de Edward e da morte de Finkelstein, vejo as coisas de outra maneira.

— Que quer dizer com isso, Pierre? — perguntou Maya.

— Essa gente causou-me uma impressão curiosa. Parecem muito interessados pelas nossas buscas.

— Falou-lhes delas? — perguntou Claude.

— Sim, um pouco. Pensava que a curiosidade deles era legítima.

— Pierre... — suspirou o professor. — E que mais?

— Perguntaram-me se podiam descer um dia conosco no local da estação onde efetuamos as buscas.

— Porquê? Eles conhecem-no? Forneceu-lhes essa indicação?

— Não, Claude, pois você proibiu-me de lá entrar.

— Pierre, fite-me bem nos olhos e jure-me que hoje foi a primeira vez que lá desceu.

— Palavra de honra, Claude.

Pierre voltou-se para Maya, o olhar dela fê-lo corar e balbuciou:

— Mas isto é inimaginável! Agora põem em dúvida a minha palavra. É um tribunal! Digam-me já se não confiam em mim.

Olhava atentamente para Claude e para a jovem, como alguém apanhado com a boca na botija.

— Vamos lá, não seja tão susceptível — prosseguiu Friedmann. — Diga-me, ainda não recebeu os resultados do laboratório sobre Simon? Pode ver isso com Frédéric? Não compreendo o que se passa.

Pierre dirigiu-se para a saída. O professor chamou-o de volta.

— A propósito, quero que me marque um encontro com esses cabalistas o mais rapidamente possível. O melhor seria já amanhã.

 

O celular de Maya tocou. Era Edward.

— Já estou ao ciente sobre Finkelstein. É tão triste. Sinceramente, sinto muita pena por você.

— Obrigada, Edward. Já há mais informações sobre a causa do falecimento?

— Está a decorrer uma investigação. Sabemos apenas que ficou com as pernas esmagadas.

— Pensa que poderá ter sido assassinado?

— Nada o indica. Mas se for o caso, não tardaremos a sabê-lo. Mantê-la-ei ao corrente. Maya, soube mais alguma coisa acerca dos cabalistas? Continuam a preocupar-me.

— Acabamos precisamente de falar do assunto com Claude. Ele deseja vê-los; Pierre, que você conheceu ontem, acaba de me dizer que temos um encontro marcado para as catorze horas.

— Na escola deles?

— Sim, porquê?

— Pensa que poderei ir com vocês, de modo não oficial?

— Aguarde um momento. Vou perguntar ao professor se é possível.

Voltou-se para Claude.

— É o Edward. Como lhe disse, trabalha na embaixada dos Estados Unidos de Telavive. Os seus serviços têm suspeitas sobre os cabalistas. Ele pergunta se pode acompanhar-nos esta tarde. Apresentá-lo-íamos como um membro da equipe. Que pensa?

— É delicado, Maya. Não sabemos em que vamos meter-nos.

— Mas, Claude, Edward tem uma abordagem diferente do problema. A embaixada também recebe mensagens, provenientes dessa zona. Se calhar, trata-se de uma coisa completamente diferente do que imaginamos. Talvez seja o processo de paz que está a ser visado. Devemos pôr todas as chances do nosso lado.

— Bom, de acordo, Maya, mas diga-lhe que quero vê-lo antes de partirmos. Que venha ter conosco à hora do almoço.

Ela tornou a pegar no celular.

— Edward, ainda está aí? O professor concorda, mas quer falar consigo o mais depressa possível.

— Muito bem. Vou já para aí.

 

Claude, Pierre e Maya estavam sentados numa mesa afastada dos outros. Edward entrou no refeitório. Claude convidou-o a sentar-se.

— Desculpe-me ser tão direto, mas quais são as suas funções na embaixada?

— Estou encarregado da missão. Acabo de ser nomeado para este posto depois de passar dois anos em Londres. O meu papel consiste em preparar as reuniões de negociação do plano para a paz. Sabe, o propalado road map.

— Esteve em Harvard?

— Estive.

— Com quem?

— Segui, mais particularmente, os cursos da professora Forrester. Conhece-a?

— Com certeza.

— O meu pai lecionou lá durante anos e depois entrou na política, ao lado de Isaac Rabin. Morreu num atentado.

— É o filho de Elie Rothsteen?

— Sou, porquê?

— Meu Deus, conheci muito bem o seu pai; era um homem notável. Perdê-lo deve ter sido uma enorme tristeza para si.

— Foi sim, professor.

— Maya, devia ter-me dito. Teríamos ganho tempo.

— Mas, Claude, não sabia, Edward não me disse nada.

Pierre interveio:

— Porque se interessa tanto por estes cabalistas?

O jovem olhou para o professor Friedmann, que lhe fez sinal para que respondesse.

— Como sabe, muitos movimentos religiosos são hostis ao processo de paz. Somos alvo de pressões, de ameaças. Algumas são feitas à luz do dia, outras são mais subterrâneas. São estas últimas que nos inquietam mais, pois podem desembocar em atos mortíferos. Não temos nada de preciso contra os cabalistas. Aparentemente, mantiveram-se sempre afastados, dedicando-se exclusivamente ao estudo, à investigação e ao ensino. Mas recebemos certas mensagens provenientes desta região. Ora, exceto vocês, só eles residem aqui. Por isso, gostaria de conhecê-los melhor.

— Mensagens? Mas que mensagens? — perguntou Pierre.

— Infelizmente, não lhe posso dizer nada sobre isso.

— Bom — disse Claude — acabemos com estas perguntas. Edward, vamos apresentá-lo como um membro da equipe. Interessa-se pela arqueologia?

— Interesso, graças ao meu pai, que era um apaixonado; aliás, ele seguia todos os vossos trabalhos.

— Isso bastará — Claude olhou para o relógio. — Está na hora de partir. Seria mal visto se chegássemos atrasados.

Durante o trajeto, na parte de trás da caminhonete conduzida por Rajan, o professor murmurou a Maya:

— Encantador, o seu amigo.

— Claude, por favor, não é a altura apropriada.

O veículo parou diante da escola. Era uma construção provisória, de materiais precários. Os edifícios seguiam um plano singular: módulos semelhantes a capacetes de escafandro estavam dispostos em torno do edifício principal. Um homem esperava-os frente à entrada. Dirigiu-se a Pierre, cumprimentou-o calorosamente, exprimindo a sua alegria por tornar a vê-lo e depois convidou-os a segui-lo até ao centro do conjunto arquitetônico, onde havia uma sala redonda. Fez-lhes sinal para que se sentassem. Nessa altura, onze outros cabalistas sentaram-se à volta da enorme mesa, diante deles. Todos vestiam uma túnica preta. Tal como os antigos rabis, traziam barba e trancas encaracoladas.

O diretor da escola foi o primeiro a falar:

— Desejo-lhes as boas-vindas a este modesto local. Fazemos questão de lhes dizer que nos sentimos muito honrados pela visita de um investigador tão ilustre. Pareciam impacientes por nos encontrar.

Friedmann respondeu:

— Caro Mestre, fui há pouco informado que nos visitaram recentemente. Estamos atulhados de trabalho e Pierre Grün não encontrou um momento apropriado para nos falar da vossa visita. Assim que fui informado, desejei encontrá-los.

— Sinto-me muito feliz, professor Friedmann, por esta oportunidade de conhecer os nossos vizinhos; nunca vemos ninguém.

— Interessam-se pelos nossos trabalhos? — perguntou Claude.

— Essa afirmação seria um tanto exagerada. Procuramos simplesmente manter-nos ao corrente das últimas descobertas. Consagramos-lhes algumas horas semanais do nosso ensino, orientadas pelo nosso confrade Jonathan, aqui presente, que foi arqueólogo.

— A vossa escola parece ser de nível muito elevado.

— Procuramos ser exigentes.

— Com que propósito?

— Na realidade, a nossa instituição parece-se com uma espécie de retiro. Quando alguém entra aqui como aluno, é porque foi escolhido para um dia substituir um mestre e se comprometeu a passar aqui o resto da vida. A nossa formação não prepara os homens para uma atividade profissional orientada para o exterior. Consagramo-nos à Bíblia, aos seus segredos. O nosso saber perdura de geração em geração. Tendes diante de vós os doze Mestres, os alunos estão no estudo.

— E quantos são? — encadeou Friedmann.

— Obedecemos a um protocolo preciso. São também doze, um noviço para cada Mestre. Ser cabalista é dedicar a vida ao Livro Sagrado. No entanto, a história da nossa confraria é muito anterior à da Cabala. Somos os herdeiros de uma tradição criada por escribas mesopotâmicos. O tempo fez de nós os seus transmissores espirituais. Esses homens participaram na redação de grandes textos, encontrados recentemente, como a Epopéia de Gilgamesh. Aliás, muitas passagens da Bíblia assemelham-se aos seus escritos, como o Gênesis, o Dilúvio, o Êxodo, o Exílio. Se a nossa atividade principal consiste em decifrar a Sagrada Escritura, outros ensinamentos decorrem dela. Consagramo-nos à transmissão de um saber ligado à escrita e ao livro. Cada Mestre deve escolher um aluno, destinado a tornar-se o seu sucessor; assim é desde os tempos mais recuados. Somos eleitos para os séculos vindouros.

— Compreendo. Mas que facetas dos nossos trabalhos vos interessam mais particularmente?

— Sabem, a nossa escola instalou-se perto de Megido em 1939. Nessa época, os decanos pensavam que este local era importante para as investigações sobre as origens da Bíblia e, mais precisamente, sobre o destino do rei Josias, que os Egípcios mataram aqui. Os trabalhos desde então dirigidos por Serge Finkelstein, que modificaram o nosso conhecimento do Livro, deram-lhes razão.

Ninguém se mexera durante este diálogo. Ouvia-se o silêncio entre as palavras. Os homens da Cabala tinham permanecido de cabeça baixa. Maya sentiu uma comichão na cintura. Tirou discretamente o celular de sob a mesa e leu: “Os dias passam tão depressa como os mortos vindouros; só vos restam sete.”

Maya desligou o celular, procurando não deixar transparecer a sua perturbação. A conversa seguia agora o seu rumo à volta da mesa. A jovem fez algumas perguntas sobre Josias, a tradição dos escribas, as origens da Cabala, mas a sua mente pairava noutras bandas, errando no seu temor.

Como pudera receber aquela mensagem neste sítio, neste local perdido, a quilômetros de qualquer vida? A reunião acabou. Ao sair, conversou com Jonathan, falou-lhe do passado: porque abandonara a arqueologia?

Chegados perto do veículo, ela disse-lhe:

— Tenho de reativar o meu celular. Preciso de fazer um telefonema urgente.

— Oh, aqui é impossível, não há rede. Temos uma linha fixa, se quiser, mas ela não permite contatar os celulares, os nossos meios são muito escassos.

— Não é grave. Telefonarei de Megido. Até à próxima. Mil agradecimentos pelo vosso acolhimento.

Ninguém falou no trajeto de volta. Pareciam refletir no que fora dito. Passado um momento, Maya dirigiu-se a Edward:

— De acordo com o que Jonathan me explicou, não vejo como as mensagens recebidas na embaixada possam ter sido emitidas a partir da escola ou até das cercanias.

— Com efeito, falei com o intendente e eles não têm acesso a qualquer rede. Aliás, tentei, mas a comunicação não funcionava. Temos de esclarecer isto tudo.

Claude interveio:

— Penso que estes homens se inclinam mais para a magia do que para as novas tecnologias. São sérios e particularmente radicais nas suas práticas, nas suas disciplinas. Aborrece-me que eles conheçam tão bem os nossos trabalhos. Sinto que isso lhes causa um problema.

— Ah, bom... — disse Pierre. — Tenho a impressão que eles seguem com benevolência o que fazemos. No fim de contas, as nossas buscas dizem-lhes diretamente respeito, pois se tivermos êxito, elas poderão pôr em causa os fundamentos, a própria concepção da Bíblia. É normal que se sintam implicados.

— Sim, é muito normal — respondeu-lhe o professor num tom seco.

Em Megido, Maya acompanhou Edward até ao seu carro. Pelo caminho, falou-lhe da mensagem que recebera durante a reunião.

— Haverá então uma instalação escondida? — interrogou o jovem.

— A menos que passe por outra coisa.

— Como seria possível, Maya? Conservemos os pés bem assentes na terra e pensemos. Tenho de me ir embora, estou atrasado. Esperam-me em Telavive.

Ela ficou à beira da pista de terra, vendo-o afastar-se, sem se mexer, como que perdida. A voz do professor, chamando-a, fê-la sobressaltar-se. Caiu em si. Era preciso enfrentar o tempo.

— Maya, é essencial que desçamos de novo ao túmulo para tentarmos avançar o mais depressa possível.

— Avançar, Claude, mas como?

— Temos de procurar, ou morreremos todos.

Uma vez chegados à câmara funerária de Benjamin, o professor declarou:

— Se há uma porta que se abre para a câmara do morto do primeiro dia, uma segunda deve corresponder forçosamente ao morto do segundo dia. Temos de tentar o mesmo ritual.

— Mas, Claude, não temos oferendas a propor aos deuses.

— Penso que é inútil. Coloquemos outra vez um joelho no solo e recite a sua prece. Concentre-se, logo veremos.

Ajoelharam-se diante do muro da direita e estenderam os braços. A voz abafada de Maya declamou as estâncias. Desta vez, não tinham vontade de sorrir. Agora sabiam que as forças que combatiam eram reais. Num tremor de ruídos surdos, rangidos, torrentes de pó, a segunda porta abriu-se lentamente. No umbral estava gravado um nome: NILISANU.

Maya teve a impressão de ter chegado a sua vez de morrer. O medo apoderava-se da sua vida, mantendo-a refém dos acontecimentos. Olhava para o professor como uma menina que procurasse os braços do pai para se tranqüilizar. Era um pesadelo, mas estava acordada. Claude trouxe-a de volta à realidade de um modo brutal:

— Maya, não desfaleça, continue, reze de joelhos, reze!

Ela obedeceu. Abriu-se uma terceira porta, à direita, como a anterior. Apareceu o nome SIMANU. Maya já não era a mesma. O seu corpo estava noutro lado. Só o seu pensamento vibrava como a corda de um violino sob as ordens de Claude. Depois, foi a vez da quarta porta. Nela descobriram as letras que formavam o nome SERGANU. Claude estava no auge da excitação. Lívido, de olhos arregalados, parecia ter alcançado a nota perfeita, a coroa de glória de toda a sua existência. Maya já não lhe reconhecia o rosto.

— Claude, que tem?

— Nilisanu, Simanu, Serganu, o primeiro era Benyamin... Não está vendo, Maya?

Até a sua voz se alterara. Prosseguiu:

— Cada um dos mortos dos últimos dias tem o seu nome inscrito neste santuário, sob a sua forma caldeia, desde os mais remotos tempos.

— Sim, e cada sala é como que um túmulo — murmurou Maya — tendo no centro esta estela funerária...

— ...erigida para os nossos amigos mortos. Precisamente, minha pequena: parece não ter qualquer sentido, mas é assim. Existe um laço entre as vítimas atuais e os rituais caldeus, como se o destino delas tivesse sido selado séculos antes de terem nascido.

— Mas porquê eles? O que os predestinava a serem sacrificados a estes deuses esquecidos?

— É o que temos de compreender para pôr termo à maldição. Talvez haja uma regra, que resta descobrir. Se conseguirmos, se encontrarmos os nomes das próximas vítimas, cujos signos astrológicos já conhecemos, poderemos salvá-las.

— Como fazer?

— Ainda não sei... Entretanto, avancemos, Maya. Veja, as salas que atravessamos não são quadradas nem retangulares, mas trapezoidais. Já reparou que todas as portas se situam do mesmo lado? Temos de desenhar um plano. Tenho quase a certeza que o conjunto das salas forma um círculo. Logo veremos quando chegarmos à décima segunda câmara.

— Se lá chegarmos — disse ela, em voz baixa.

— Maya, penso que avançamos no interior de um zodíaco. Concentre-se, temos de conseguir abrir esta quinta porta, saber quem deve morrer hoje.

Tornaram a pôr um joelho no solo, estenderam novamente os braços. O muro permanecia imóvel. A morte fazia-lhes frente. Ficaram assim, a orar, proferindo as mesmas palavras. Mas nada. Nem um ruído.

Ouviram a voz de Pierre que berrava o nome deles à entrada da cripta:

— Claude! Maya! Onde estão? Venham depressa!

Levantaram-se e subiram à pressa. Pierre apressou-os pelo caminho.

— É o Jonathan! — disse, arquejante. — Lembram-se? O arqueólogo da escola. Seguiu-nos. Escondeu-se na beira da pista, atrás do monte de terra; Zoltan fez uma má manobra com a escavadora. Conduzia depressa demais em marcha-ré, não o viu e esmagou-o. Venham, está inconsciente.

Chegaram ao pé dele. Zoltan lançou-lhes um olhar perdido que parecia dizer-lhes: “Não foi culpa minha.”

Frédéric estava debruçado sobre o corpo inerte de Jonathan. Imagens semelhantes acudiram, numa sobreposição: o médico debruçado da mesma maneira, na antevéspera, sobre o corpo de Simon. Ergueu a cabeça, com a mesma impressão de impotência estampada na cara.

— Está morto.

— Pierre, leve o corpo para o posto técnico e espere por mim.

Claude levou Maya na direção da cripta. Desceram. Uma nova porta tinha-se aberto. Nela estava inscrito o nome YONATU. Pegou nos braços da jovem.

— Maya, não venceremos o tempo.

 

Edward chegou diante da embaixada. Cumprimentou distraidamente o porteiro, que lhe indicou que já chegara o homem com quem tinha encontro marcado. Várias pessoas esperavam pelo elevador. Edward decidiu subir os dois andares a pé. Entrou no secretariado, cumprimentou o homem que estava sentado e, depois, dirigiu-se à sua assistente:

— Laura, vou receber o senhor Benassan no meu escritório. Pode filtrar as chamadas?

— Muito bem, senhor. Deseja ver a lista das pessoas a quem deve telefonar?

Entregou-lhe uma folha com uma vintena de nomes.

— Veremos isso mais tarde. Senhor, queira ter a amabilidade de me seguir...

Instalaram-se nas poltronas à volta de uma mesa baixa que ocupava a parte da divisão que fazia de salão. Benassan perguntou se podia fumar e acendeu uma cigarrilha.

— Em que ponto está? — perguntou-lhe Edward.

— Avanço devagar. Tenho de ser prudente. Custa-me muito perceber o que se trama.

— Que mais soube desde a última vez?

— Penso que estão exasperados com aquelas buscas. Consideram que é território deles e que os estão a manter afastados das investigações.

— Mas, Benassan, trata-se de uma missão científica.

— Bem sei, mas não gostam nada da presença de uma escola cabalista nas proximidades. Procuraram vê-los. Os rabis recusaram-se a recebê-los.

— Os cabalistas não são rabis, são universitários que seguem uma missão, sábios que nunca interferiram na política.

— Nesse caso, como explica essa atitude opaca?

— Neles, é um princípio, não recebem ninguém, tanto do lado israelita como do lado palestiniano. Querem permanecer de fora, estudar, são pessoas que vivem acima das contingências.

— Bom, de acordo, deixemos os cabalistas de lado. Mas circula um rumor que me inquieta mais, sobre uma descoberta em Megido. Qual poderá ser a origem desses zunzuns?

— Não faço a menor idéia. Mas, continue. Que o leva a pensar que os Fundamentalistas se interessam por esse local?

— Parece que os elementos descobertos poriam em causa a legitimidade histórica das reivindicações israelitas sobre os territórios.

— Espere aí, Benassan, eles não vão recomeçar com essas velhas histórias! Ultrapassámos largamente a etapa desse debate arcaico sobre as religiões. Hoje, aquilo que os nossos dirigentes procuram são soluções concretas, econômicas, políticas. Que sentido teria esse regresso ao passado? É absurdo.

— Não sei. Talvez os negociadores de ambos os lados pensem que com isso poderão ocupar os extremistas, proporcionando-lhes um ponto de fixação em ressonância com as suas crenças.

— Uma espécie de cortina de fumaça?

— Se quiser, Edward.

— E porque não, se isso os ajudar a avançar?

— Por conseguinte, os Fundamentalistas apoiar-se-iam nos trabalhos científicos dos arqueólogos, para demonstrar que o Livro Sagrado seria uma espécie de embuste, uma operação de propaganda completamente inventada no século VII a.C. As noções de povo e de território não teriam qualquer fundamento histórico. A Bíblia seria uma construção fabulosa assentando apenas na encomenda de um monarca ambicioso.

— Mas, enfim, Benassan, pense bem: ao dizerem isso, eles destroem os fundamentos das suas próprias crenças, da sua religião, pois o Islão também se apóia no Texto Sagrado.

— Isso, meu amigo, não parece incomodá-los. Querem pegar no caso, convencidos que a imprensa mundial cairá sobre essa aberração.

— Então, seria uma espécie de atentado simbólico, um 11 de Setembro da religião?

— Sim, de certo modo.

— Estou vendo. Mas, enfim, derrubar o Livro dos Livros é muito mais complicado do que destruir edifícios.

Benassan levantou-se, saudou Edward e saiu. O jovem ficou só, a cismar. O que aprendera do seu informador tranquilizava-o em parte. Se o grupo palestino que se fazia chamar de Fundamentalistas deslocava sua ação para o terreno simbólico, talvez fosse por ter renunciado aos atentados contra civis, as únicas ameaças que os serviços da sua embaixada temiam verdadeiramente. Mas hesitava escrever o seu relatório enquanto não tivesse identificado a fonte daquelas mensagens. Tinha de prosseguir as suas investigações. Dirigiu-se para o secretariado a fim de consultar a lista das chamadas. O nome de Maya aparecia três vezes. Ligou o seu celular.

— Maya, você telefonou-me; aconteceu alguma coisa?

— Ah, é você, até que enfim... Jonathan, o cabalista, lembra-se? Acabou de morrer. Um acidente. É o quinto morto em cinco dias. Segue a linha das mensagens, as de Claude, as suas, as minhas. Agora temos a certeza que só nos restam sete dias. Não creio que as mensagens venham da escola, eles só querem descobrir o sentido das nossas buscas. Há outras forças em ação, entidades que certamente nos ultrapassam. Tem alguns elementos novos?

— Tenho, mas nada de preciso. Acalme-se, Maya. Veremos isso juntos, mas não pelo telefone. Esta noite estou de serviço, bloqueado na embaixada. Não teria a possibilidade de vir até aqui com o professor, para falarmos traquilamente?

— Mas, Edward, você não está entendendo. É aqui, em Megido, que os fenômenos se manifestam. Temos absolutamente de lhe mostrar o que descobrimos. É a vida de todos nós que está em jogo.

— Sinto muito mesmo, Maya, mas esta tarde não posso deixar o meu posto.

— Bom, vou ver com Claude se podemos ir aí.

— Além disso, você e o professor estariam mais seguros na embaixada.

— Isso, Edward, não tenho certeza. Então, talvez até logo.

Apressou-se a ir ter com o professor, que estava sentado à sua mesa de trabalho. Fazia projeções topográficas. Sentou-se perto dele.

— É o que pensava, Maya. Segundo os meus esboços, os cinco túmulos que abrimos estão dispostos desta maneira.

— Sim, estou a ver, formam um arco de círculo.

— É isso. Veja. Se prolongarmos esta linha para os sete túmulos que restam, o conjunto forma um círculo perfeito. Eles foram construídos segundo o esquema do zodíaco. Ora, sabemos que os nomes inscritos verticalmente em cada porta correspondem aos nomes dos mortos dos cinco últimos dias. E sabemos também que as divindades cujos nomes figuram nas estelas governam os signos de cada um deles: Du-Uzu para Benjamin, que era do signo do Caranguejo, Nissanu para Neil Lambden, Carneiro, Sivan para Simon, Virgem, Sabatu para Finkelstein, Aquário, e Ajatu para Jonathan, Touro. Estes são os deuses que os Caldeus chamavam os Senhores dos Dias. Seguiam o calendário semanal, simbolizando os planetas que supostamente influenciam os nossos destinos. Por ordem, temos: Lua, Marte, Mercúrio, Júpiter, Vênus... A vítima de amanhã, sábado, deverá ser, portanto do signo dos Peixes, sob a dominação de Saturno, que governa Addaru.

— De acordo. Estou a segui-lo, mas como adivinhar o nome dele? Há milhares de possibilidades.

— Talvez não sejam assim tantas, pois descobri outra coisa. Veja: fiz a lista das cinco primeiras vítimas, com os seus nomes, a sua transcrição em caldeu e a sua data de nascimento. Maya pegou na folha. Aquela litania soava-lhe de modo lúgubre. Não conseguia deixar de olhar para este processo implacável, imaginando a sua identidade, a sua data de nascimento inscritas na décima segunda câmara, anunciando a sua morte.

Enroscou-se na manta de viagem que colocara nos ombros. O frio e o medo gelavam-na.

— Maya, concentre-se. Os nomes nas portas lembram-me qualquer coisa. Não conseguia recordar-me do que era e, de repente, pensei naquela história que exumamos no Iraque, sabe, sobre os servos dos deuses. Cada um deles dedicava-se mais particularmente a uma divindade. Redescobri os nomes: Benyamin, servo de Du-Uzu, Nilisanu, servo de Nissanu, etc.

— Meu Deus! Nesse caso...

— Sim, nesse caso podemos saber quais os nomes das próximas vítimas. O servo de Addaru era Asanu. Aquele que deverá morrer amanhã, chamar-se-á, portanto Assan, ou qualquer coisa parecida.

— E os seguintes?

— Só encontrei mais três: Olilu, Aar, Abasanu, para os três próximos dias.

— Temos absolutamente de procurar ao que poderão corresponder!

— Não faço a menor idéia. Mas espere, minha pequena, há também as datas de nascimento. Examinei as dos primeiros mortos e percebi-me que todos nasceram no primeiro dia do seu tema astral: 21 de Junho, 21 de Março, etc. Além disso, reconstituí o calendário do ano em que nasceram. O dia da semana coincide com o do seu desaparecimento programado. Para Benjamin, o 21 de Junho de 1999 era uma segunda-feira. Para Neil Lambden, o 21 de Março de 1967 era uma terça-feira, e assim sucessivamente para os outros. Portanto, a pessoa que morrerá amanhã terá nascido num sábado, 21 de Fevereiro. O que nos dá o ano de 1948.

— Sim, parece lógico. Enfim, não tenho a certeza de que seja a palavra apropriada, mas espero que tenha razão.

— Minha pequena, temos até à meia-noite para verificar isso e procurar contrariar o destino. Depois, entraremos no sexto dia e cada segundo da vida desse desconhecido será ameaçado.

— A propósito, Claude, Edward parece ter descoberto coisas importantes. Não pode deixar a embaixada e propõe-nos ir ter com ele a Telavive. Que acha?

— Vamos. Eles dispõem certamente de bases de dados, elementos que nos permitirão identificar a pessoa designada.

 

Pelo caminho, Maya e Claude passaram pelas brasas. Fiel à sua calma habitual, Rajan velava por eles. Chegaram diante da embaixada. Um porteiro fê-los esperar. Edward saía de uma entrevista. O jovem veio buscá-los e levou-os para um salão particular.

— Aqui estaremos tranqüilos para falar.

Instalaram-se todos à volta de uma mesa.

— Querem jantar, beber alguma coisa?

— Não tenho muita fome — disse Maya. — Só desejo um café com leite, quente.

— Eu não me importo de comer qualquer coisa — respondeu Friedmann. — Precisamos de forças nas próximas horas.

Edward mandou trazer as bandejas com a refeição e disse-lhes:

— Há pouco fiquei sabendo que um grupo palestino, os Fundamentalistas, está na posse de informações sobre os vossos trabalhos. E provável que haja alguém no seio da vossa equipe que esteja em contato com eles e lhes forneça informações.

Claude e Maya entreolharam-se, embaraçados. Um membro da equipe? Era impossível. Quem, entre eles, podia dissimular-se ao ponto de os trair?

— Não, é impossível — respondeu-lhe o professor.

— Infelizmente, nada é de espantar com os seres humanos. E você, Maya, parecia aterrorizada quando lhe falei há pouco.

— Sim, havia razões para isso — respondeu ela.

Descreveu-lhe o raciocínio do professor, os últimos cinco dias, o encadeamento das mensagens, as datas, os mortos, a descoberta dos túmulos. Foram interrompidos por um toque no celular do diplomata. Ele pegou no aparelho e leu uma mensagem enviada por Benassan às vinte e três e trinta: “Creio que me descobriram.” Prosseguiu:

— Então, pensam poder adivinhar quem poderá ser a próxima vítima amanhã?

— Sim, e pensei que talvez tivesse aqui os documentos que permitissem identificá-la — anunciou o professor.

— Mas, como?

— Pois bem, meu caro amigo, posso dar-lhe a data de nascimento e o primeiro nome.

— Diga.

— Essa pessoa terá nascido a 21 de Fevereiro de 1948 e o seu primeiro nome deverá ser Assan ou algo parecido.

Edward tornou-se lívido.

— Não vamos precisar de mais informações... Foi ele que acabou de me enviar uma mensagem, em que me diz estar em perigo. Vejam.

Leram a mensagem, enquanto Edward consultava um dossiê sobre o seu amigo. De fato, este nascera a 21 de Fevereiro de 1948.

— Temos de contatá-lo imediatamente — disse Friedmann, consultando o relógio.

Faltavam quinze minutos para a meia-noite.

Edward marcou o número. Só lhe respondeu o gravador de mensagens.

— Não posso deixar mensagens, isso denunciá-lo-ia.

— Eu vou fazê-lo — disse Maya, num tom firme.

Edward e Claude entreolharam-se.

— Muito bem, se assim quiser — disse-lhe o jovem. — Mas é você que correrá o risco.

— Ao ponto a que cheguei — murmurou ela.

— Muito bem, peça-lhe que lhe telefone urgentemente.

Maya telefonou. Faltavam dez minutos para o início do sexto dia. A jovem pousou o celular em cima da mesa. Ficaram ali, esperando pelo toque, retendo a respiração.

 

Ouviram um breve sinal. Maya agarrou no aparelho e pôs-se à escuta. Julgou ouvir uma voz vinda das entranhas da terra. Sentiu uma queimadura ao longo da coluna vertebral. Edward e Claude olhavam-na, suspensos aos seus lábios. Mas não se ouviu o menor som. Ela passou-lhes o celular. Ambos ouviram a mensagem: “Restam-lhes seis dias.” Edward apertou nas teclas para descobrir a sua proveniência.

— Vem de Benassan.

Não tinham esperado muito tempo. O mal atacara ainda na noite do sexto dia. O jovem inspirou profundamente.

— Professor, já não sei o que pensar. Infelizmente, a sua profecia parece verdadeira. Mas se Benassan foi morto, talvez seja porque os Fundamentalistas o desmascararam.

— Desmascararam?

— Ele trabalhava para a embaixada. Era uma espécie de agente duplo. Infiltrara-se no meio deles.

— Foi a pessoa que viu esta tarde, enfim, ontem?

— Foi. Veio aqui para me falar das suas preocupações. Foi ele que evocou a presença de um informador no seio da vossa equipe.

— Mas o que poderá interessá-los nas nossas buscas, nas nossas descobertas?

— Benassan contou-me uma história inverossímil a propósito da Bíblia. Julguei que me falava disso por não ter nada de preciso a comunicar-me. O que ele queria, sobretudo dizer-me é que havia um traidor entre vós.

— É aberrante, caro Edward, mas atendendo à nossa situação, não devemos negligenciar nada. Que foi que lhe disse a propósito da Bíblia?

— Ouça, professor, não tenho bem a certeza de ter compreendido tudo. Segundo ele, os vossos trabalhos na estação de Megido trariam a prova de que o Livro Sagrado não passa de uma obra encomendada, um texto puramente literário destinado a justificar as conquistas militares. Assim, a própria noção de povo judeu não seria mais do que o fruto de uma ficção.

— Que estupidez!

— Nem por isso, caso esse grupo chegasse a servir-se dessa descoberta...

— De que maneira?

— Na minha opinião, essas pessoas consideram que o desfecho do conflito israelo-palestino e, por conseguinte, do processo de paz, só depende da maneira de comunicar. Tentam, por todos os meios, manipular a opinião, alertar os mídia. As ações terroristas voltam-se contra eles. Desejariam, sem dúvida, poder agir sobre os fundamentos da história, fazer explodir o próprio coração da religião judaica, destruindo o símbolo absoluto que é a Bíblia.

— Mas é uma idéia louca, completamente absurda! — exclamou Friedmann. — O que é que os nossos trabalhos têm a ver com essas divagações? Não posso crer que Benassan tenha sido morto por causa disso. Não. Deve tratar-se de outra coisa. Edward, você tem absolutamente de ir à nossa estação arqueológica, para compreender. Verá que não estamos lidando com fenômenos racionais. É muito mais perigoso. Não é, Maya? Diga-lhe.

A jovem refletia. Duvidava de tudo. Tinha a impressão que os seus sentidos lhe tinham escapado, deixando-a ali como uma carcaça vazia. Alguém teria penetrado na sua mente para nela descobrir o seu segredo? Ela não falara do assunto a ninguém, nem sequer a Claude. Subitamente, as suas hipóteses cientificas tornavam-se paradas políticas malsãs, perigosas, como se tivesse retirado a espoleta de uma granada e a tivesse colocado ao peito. A finalidade da sua vida tornava-se o seu pior inimigo. Ninguém estava ao ciente das suas suposições sobre o Livro Sagrado, exceto Finkelstein, mas este morrera. Quem podia desconfiar que ela procurava o tumulo de Josias, que se encontrava sem dúvida em Megido? Quern podia crer que esse rei era o comanditário da Bíblia e que as tabuinhas contendo essa prova talvez estivessem enterradas ali, com ele? Devia ter contado tudo ao professor. A vida dava-lhe uma lição. Dissimulara as suas hipóteses por ambição. Talvez houvesse um traidor entre eles, mas ela também traíra, por orgulho excessivo. Quem teria podido ler os seus pensamentos? Não revelara nada a ninguém.

— Ninguém.

Pronunciara esta última palavra em voz alta.

— O quê? — interrogou Claude.

— Que quer dizer? — acrescentou Edward.

Maya caiu em si.

— Desculpem-me, pensava em voz alta. Há um ponto sobre o qual não tornamos a falar: as circunstâncias da morte de Finkelstein.

— É verdade — observou Edward. — Mas as coisas estão a avançar depressa. Esta manhã recebemos um relatório sobre a investigação.

— E então? — inquiriu ela.

— Morreu de crise cardíaca.

— Mas tinha-me falado de uma ferida ao nível dos joelhos...

— Sim, ao sentir-se mal deve ter-se agarrado à secretária metálica. Na queda, o móvel deve ter-lhe caído em cima dos joelhos, quebrando-os em vários sítios.

— E não descobriram nada de especial? — perguntou Maya, numa voz entaramelada.

— Não, os investigadores verificaram tudo. Não encontraram o menor indício. Não se encontrou com ele nesse mesmo dia? Não deu por nada?

Friedmann insistiu:

— Mas é verdade, Maya, você foi vê-lo para que ele lhe fizesse revelações. Que foi que lhe disse?

— Nada de especial, Claude. Finkelstein era um homem rigoroso. Não teria dissimulado nada que pudesse fazer progredir a ciência. Estava apenas a perguntar a mim mesma se não teriam encontrado no seu gabinete um objeto, um documento que tivesse provocado essa crise cardíaca, qualquer coisa que lhe tivesse causado medo a ponto de morrer.

— Nada foi assinalado.

O olhar de Maya cruzou-se com o de Claude. Parecia-lhe ler nele uma dúvida. Ela acabou por baixar os olhos, voltando a mergulhar nas suas reflexões. O fragmento da tabuinha que Finkelstein retirara do tecido tinha portanto desaparecido. Seria possível que o encontro deles tivesse sido escutado, que alguém o tivesse brutalizado para roubar o objecto? O sábio teria tido a presença de espírito necessária para o colocar num lugar seguro?

Sentia o olhar de Friedmann pousado nela. Ele parecia ler o que lhe passava pela cabeça.

— Pare com isso, Claude! — disse-lhe secamente.

— Calma, creio que a situação que vivemos já é suficientemente delicada assim — reatou Edward. — Temos de reagir. Procurem sair dessas trincheiras lamacentas. Professor, você tem razão. Irei visitar a estação. Infelizmente, só acabo o meu serviço às oito da manhã. Mas prometo-lhes que logo a seguir irei ter convosco.

 

O professor e Maya regressaram a Megido.

No meio do trajeto, Claude quebrou o silêncio:

— Sabe, Maya, já há algum tempo que adivinho os seus projetos.

— De que está a falar, professor?

— Ora, não se faça de criança. Você está obcecada pela descoberta do túmulo de Josias. Porque não me disse? Teria podido ajudá-la.

— Não, não, sei perfeitamente que teria feito tudo para me desencorajar, para me provar que eu me enganava, que perdia o meu tempo e o seu. Em oito anos, aprendi a conhecê-lo.

— Maya, não seja injusta. Não fiz sempre tudo o que estava ao meu alcance para ajudá-la a tornar-se independente?

— É verdade, Claude. Mas não me teria seguido. De qualquer modo, não me sentia suficientemente segura de mim para lhe falar.

— Bom, e agora, jovem?

— Já não sei. Tudo se embaralha. E o que Edward nos contou já não me dá vontade de continuar.

— Enfim, Maya, essa história de atentado contra a Bíblia é absurda! Deixe de pensar nisso e diga-me o que lhe vai pela cabeça.

— Pois bem, sempre tive dúvidas sobre a passagem do Livro que evoca a morte de Josias. Termina de forma demasiado abrupta. Para começar, não se percebe o que ele foi fazer a Megido. Por que foi lançar-se nas garras do faraó Neco quando este partia em campanha contra os Assírios? O egípcio deve ter ficado surpreendido por encontrar Josias pelo caminho. Essa morte sumária é despachada numa linha: O rei Josias foi ao seu encontro e, ao vê-lo, Neco matou-o em Megido. E pronto, é tudo, acabou. Não acha estranho um final tão lacônico para um rei desta importância, que restabeleceu o culto de Iavé? Espere, vou ler-lhe a continuação.

Ela tirou algumas folhas da sua pasta e prosseguiu:

— E os seus servos levaram-no morto, de Megido, e trouxeram-no a Jerusalém, e sepultaram-no no seu túmulo.

Ela levantou os olhos.

— Compreendo que os escribas desejassem concluir desta maneira. Era sem dúvida mais digno. Mas custa a acreditar. Dir-se-ia uma reescrita, não é?

— Talvez tenha razão, mas onde é que isso a leva?

— Se ele foi a Megido, talvez tenha sido por motivos que o Texto Sagrado não desejou reter e se foi lá que morreu efetivamente, por que não o enterraram no próprio local? É simples, não é?

— Sim, Josias era uma personagem-chave e ainda descobriremos muitas coisas sobre ele. Também penso que o sumo sacerdote dessa época, o famoso Hilquias, desempenhou um papel capital. Não se esqueça daquela cena épica em que Josias, que só tem dezoito anos, pede ao sacerdote para que inicie as obras de restauro do Templo de Jerusalém. Subitamente, Hilquias regressa dizendo: Achei o Livro da Lei na casa do Senhor! É verdade que somos levados a inclinar-nos mais para uma espécie de encenação.

— Nesse caso, professor, concorda com esta interpretação?

— E por que não? Aliás, depois as coisas tornam-se mais grandiloquentes. Quando ouve as palavras contidas nas tábuas da Lei, Josias rasga as suas roupas. É evidente que houve a intenção de impressionar os espíritos da época.

— Mas, além disso — acrescentou Maya, que começava a entusiasmar-se — o estranho é que quando Josias pede ao sumo sacerdote, cujo nome nunca consigo pronunciar...

— Hilquias...

— Obrigada. Quando lhe diz para ir consultar a profetiza Hulda — lembra-se dessa passagem? — o que ela lhes anuncia é terrível.

Consultou as suas folhas.

— Pretextando que os antepassados de Josias adoraram outros deuses — aqueles que o interessam, Claude — segundo essa profecia, Iavé terá dito: Eis que trarei o mal sobre este lugar e sobre os seus moradores. O meu furor acendeu-se contra este lugar e não se apagará.

— Estou a lembrar-me — respondeu-lhe Friedmann. — É a passagem em que está mencionada a promessa feita a Josias, de que ele não assistirá a todos esses malefícios.

A jovem já não lia. Recitou:

— Iavé comunicou-lhe, através do oráculo: Porquanto rasgaste os teus vestidos, e choraste perante mim, eis que eu te ajuntarei a teus pais, e tu serás ajuntado em paz à tua sepultura, e os teus olhos não verão todo o mal que hei de trazer sobre este lugar.

— Mas, Maya, você conhece a Bíblia de cor!

— Não troce de mim. Só conheço de cor as passagens sobre as quais trabalho. Vê-se bem que era preciso encontrar uma espécie de consolo. Josias consagrara trinta e um anos do seu reinado a Iavé, aplicando-se a destruir os ídolos e os templos das outras religiões. Em troca, o seu Deus único semeou o terror na Judéia, sobre o seu povo. A sua única recompensa consistiu em não ter de ver a infelicidade abater-se sobre eles e em ser enterrado no túmulo da família, em Jerusalém.

A partir daí, pensava Maya, tornava-se impensável concluir a história de Josias escrevendo que a profecia de Hulda não se realizara e que não o tinham levado de Megido a Jerusalém, senão o seu fim teria sido demasiado injusto, inaceitável para o leitor. Tratava-se, portanto de um problema ético, moral, em torno da história, que semeava uma verdadeira dúvida sobre a realidade histórica dos fatos relatados. Parecia-lhe mais lógico que caso ele tivesse morrido em Megido, aí o tivessem enterrado. Aliás, Maya não via como era possível que os Egípcios, o Faraó, tivessem deixado partir os servos de um rei que tinham acabado de vencer, permitindo-lhes regressar a Jerusalém.

 

Chegaram ao acampamento. Todos dormiam. Desceram à cripta. A sexta porta abrira-se, sem preces, sem oferendas. As letras formando a palavra ASANU confirmaram as suas convicções.

— Sabe, Maya, penso que estamos a perder tempo, deixando-nos levar por esta cronologia macabra. Não vamos continuar assim, como fantoches, à espera da última ameaça sem tentar vencê-la. A jovem enxugou furtivamente uma lágrima que lhe corria pela face.

— Que quer dizer, Claude?

— A única porta para a qual devemos concentrar as nossas forças é a última, aquela que dá para a décima segunda câmara, pois essa, minha pequena, é a nossa.

— Mas o que faremos, Claude? — murmurou ela, desamparada.

— Siga-me.

Levou-a para a sala onde repousava a estela dedicada a Benjamin.

— Se esta cripta tiver a forma de um zodíaco, portanto, de um círculo perfeito...

Instalou-a no muro da esquerda, no lado oposto ao da segunda porta.

— Veja, entramos por aqui. À direita, conseguimos abrir a porta de Nilisanu. Se estivermos efetivamente numa arquitetura circular, é porque do outro lado deste muro...

Bateu com a palma da mão na parede.

— ...fica a décima segunda câmara. A nossa, Maya.

— Mas, Claude, não percebe o que me está a dizer: eu nasci numa sexta-feira, a 21 de Setembro de 1979.

Desatou a soluçar.

— Bem sei que essa data coincide com as suas previsões. Aquele que morrerá na próxima sexta-feira, décimo segundo dia, será do signo da Balança, nascido no início do decano. E essa vítima sou eu.

Chorava com todas as suas forças como que para se libertar dos dias passados. Das toneladas de aço que carregava aos ombros. O velho homem abraçou-a, encostando-a a ele, acariciando-lhe suavemente a cabeça.

— Sabe, meu anjo, nunca conheci a minha verdadeira data de nascimento. Os acontecimentos que se desenrolaram em Lodz no ano em que nasci, 1934, fizeram desaparecer os registros para sempre. Procurei-os muitas vezes, mas em vão. Depois da descoberta desta cripta e da mensagem que recebi, compreendi que também nasci num 21 de Setembro. Verifiquei no calendário. Era, de fato, uma sexta-feira.

Maya acalmara-se. Ele dera-lhe forças para ultrapassar a sua tristeza. Ela perguntou:

— Por que haveria dois mortos nesse dia?

— A Balança é um signo duplo, governado por um par de divindades. Haverá, portanto, dois sacrifícios ao mesmo tempo: um homem e uma mulher, para os Senhores da Sexta, sob o reinado de Vênus. E isso passar-se-á aqui, do outro lado.

Ela olhou para a massa de pedra, dizendo para consigo que seria enterrada ali, a alguns metros. Teve um acesso de raiva, experimentou um terrível sentimento de impotência. Cerrou os punhos e bateu várias vezes na rocha. Como resposta obteve apenas um ruído abafado.

— Muito bem, Claude. Furemos este muro. Derrubemo-lo. Vamos recuperar forças e, de madrugada, com a equipe, fá-lo-emos explodir.

O professor sorriu.

— Prefiro vê-la assim.

 

O professor foi o primeiro a acordar. Bebia um café sem cafeína quando Frédéric foi ter com ele.

— Estou contente por vê-lo a sós — disse ao médico. — Como se passaram as coisas com o Jonathan?

— Não muito bem. Quis ocupar-me do corpo, mas os cabalistas chegaram. Senti-os hostis. Queriam ver Zoltan, interrogá-lo.

— Que queriam saber?

— Não sei, professor. Creio que punham em causa a versão de um acidente. Pensaram que fora um ato deliberado. Jonathan recebera ameaças. Também queriam falar com Pierre, mas não o encontramos. Mostravam-se agressivos.

— Mesmo assim não nos acusaram, não é?

— Não propriamente. Por fim, lá levaram o corpo. Procurei dissuadi-los, dizendo-lhes que não era legal, mas não quiseram prestar-me ouvidos. Preveni as autoridades.

— E quanto a Simon? Continua sem resultados?

— Não, já sei. Foi um envenenamento.

— Uma intoxicação alimentar?

— Não. Teríamos morrido todos. Foi um ato criminoso.

— O quê, Frédéric, está a dizer-me que...

— Espere. Pensei muito nas últimas horas. Queria fazer-lhe uma pergunta.

— Diga...

— É delicado. Não me tome nor um louco, mas não haverá uma espécie de maldição que se terá despoletado depois da abertura da cripta?

— Frédéric, conheço o seu espírito racional. Se me faz essa pergunta, é porque adivinhou alguma coisa. Que sabe?

— Ouço o que se murmura no seio da equipe. Falei disso com Pierre. E, depois, há estranhos fenômenos em torno da morte de Simon e de Jonathan.

— Prossiga.

— Julguei entender que um garoto morreu afogado e que, no dia seguinte, um homem perdeu a vida em Londres, com a carótida seccionada por um pára-brisas. O terceiro foi Simon. O quarto foi esse professor que morreu em Telavive, com as pernas partidas, segundo ouvi na rádio. O quinto foi Jonathan, esmagado, cortado em dois pelas rodas do veículo de Zoltan.

— E então, que deduz?

— Professor, desde que trabalho consigo, estudei tudo o que diz respeito à medicina dos Caldeus. Aprofundei essas crenças. Eles associavam cada signo astrológico a uma parte do corpo. Se aquilo que acabei de lhe dizer se confirmar, cada modo de morrer seguiria essa divisão. O primeiro terá morrido dos pulmões por afogamento, sob o signo do Caranguejo. O segundo, da cabeça, que corresponde ao Carneiro. O terceiro, atingido no ventre, sob a égide da Virgem. O quarto, de pernas partidas, sob o signo do Aquário. O quinto, empalado pelo Touro.

O professor estava admirado. Frédéric continuou:

— E hoje, se o meu raciocínio estiver correto, a vítima deverá ser do signo dos Peixes, o último signo a estar ligado a uma parte do corpo humano, os tornozelos ou os pés.

— Meu caro, você tem uma inteligência que me mostra sempre a sorte que tenho por tê-lo a trabalhar comigo. Infelizmente, quanto à última vítima, já está feito. Mas ainda não sabemos como perdeu a vida.

— Houve outra morte?

— Houve, Frédéric. A sua análise confirma-se, estamos de fato perante uma maldição que responde ao esquema caldeu dos doze signos do zodíaco. Hoje, o nosso problema é salvar os próximos. Já sabemos que eu e Maya seremos os últimos. A propósito, agora que percebeu tudo, posso dizer-lhe que a sua data de nascimento o põe a salvo.

— Isso já sabia, graças a Deus. Mas se fosse preciso, daria a minha vida para salvar a sua.

 

Foram interrompidos pela chegada de Pierre. Claude pediu-lhe que lhes fizesse companhia. O professor anunciou-lhes a intenção de abater o muro que separava a primeira câmara da décima segunda.

— Isto não parece surpreendê-lo, Pierre.

— Claude, não tivemos muito tempo para nos explicarmos, mas creio ler os seus pensamentos.

— Não posso dizer o mesmo — murmurou Frédéric.

— Parem de desconfiar de mim! Posso dizer-lhes tudo. Aliás, já falei com Frédéric. Se estamos confrontados com uma maldição ancestral por termos profanado uma sepultura mesopotâmica, é demasiado tarde para abrir caminho. Pelo contrário, devemos antecipar-nos.

— Já ouviu falar dos Fundamentalistas?

— Já, Claude. Sei que na embaixada dos Estados Unidos eles estão particularmente atentos a esse movimento, tal como em relação aos cabalistas. Os dois grupos parecem agitar-se à volta das nossas buscas, qualquer deles procurando tirar partido, dispostos a utilizar certas revelações para prejudicar o processo de paz, em relação ao qual são igualmente hostis. Mas eu continuo persuadido que o nosso... que o vosso problema é de outra natureza.

— Com efeito, você não arrisca nada, pois está protegido pela sua data e nascimento.

— Será mesmo uma ameaça séria? Não pensa que se trata de outra coisa?

— Em que está a pensar, Pierre?

— Falei com os cabalistas. Estão convencidos que decifraram segredos fundamentais que dizem respeito à Bíblia e que estariam enterrados em algum lugar neste local. Acima de tudo, temem a cólera de Iavé caso eles sejam desenterrados. Não acha que o terror deles pode estar diretamente relacionado com o que se passa aqui?

— De que maneira?

— Por um lado, temos a maldição do zodíaco, proferida por magos caldeus há vinte e seis séculos, cobrindo de malefícios os que desvelariam o segredo dos doze deuses e, por outro, temos a cólera de Iavé.

— E sobre quem pesariam todas esses alegres predições? — interrompeu-o Maya, que acabara de se lhes juntar.

Pierre sobressaltou-se.

— Assustou-me. Não a ouvi chegar. Não sei. Sobre os que desejarem desvendar segredos invioláveis.

— Mas, Pierre, por que desejariam destruir-nos?

— Os mestres cabalistas pensam que quando você foi ver Finkelstein, ele forneceu-lhe informações inéditas.

— Pois bem, você sabe muitas coisas. Os seus amigos não serão um tanto paranóicos?

— A morte de Jonathan só veio agravar as coisas, Maya. Quanto às suas reflexões... Tenho de me manter ao corrente, aqui tudo se passa nas minhas costas.

— Vamos, acalme-se — interveio Frédéric. — Eles queriam falar consigo, Pierre. Procurei-o, mas...

— Estava com Mansour, o Grão-Mestre deles. Foi ele que me contou tudo.

— Chama-se Mansour e é egípcio? — admirou-se Claude.

— Sim, do lado do pai.

O professor reuniu a equipe. Expôs o seu projeto: furar o muro a fim de entrar na décima segunda câmara. Friedmann tinha consciência de que este pedido era contrário à sua deontologia. O trabalho deles era o restauro das ruínas, dos templos, e não a sua destruição. Explicou-lhes os motivos desse ato, a importância do que estava em jogo. Pareciam prontos. O tempo passava. Todos desceram à cripta e atacaram o muro com cinzéis. O tijolo era friável, o pó esvoaçava. Avançavam com precaução. Rajan, que trabalhava no lado esquerdo, exclamou:

— Venham ver. Não consigo avançar. Na parte de trás há um material que resiste.

— Tenho o mesmo problema — disse Karl. O jovem assistente chegara na antevéspera para substituir Simon.

— Insistam! — ordenou-lhes Claude. — Temos de retirar esta primeira camada de argila.

Passado meia-hora, encontraram-se diante de uma parede negra com reflexos metálicos. Toda a superfície continha inscrições gravadas, frescos que cintilavam. Ficaram silenciosos, estupefatos.

A escrita não se parecia com nada que conhecessem. Estavam petrificados. Submergidos pela emoção. Pareciam ter encontrado o seu Graal. Friedmann passou a sua lâmpada pela rocha, da esquerda para a direita, de cima para baixo, afastando-se para admirar melhor o seu esplendor. Disse:

— Dir-se-ia uma espécie de escrita arcaica intermédia, entre o hieróglifo, o alfabeto cuneiforme e as letras hebraicas, como se estivéssemos diante de uma matriz que, por si só, tivesse produzido todas essas línguas. É incrível. Vejam bem estas letras em forma de traços que parecem formar algarismos atravessando os séculos.

— Uma espécie de primeira escrita — disse Pierre. — Uma civilização tragada, que teria dado nascença às que conhecemos. Nunca vi nada de semelhante.

— Maya, que pensa? — perguntou Claude.

— É irreal. Dir-se-ia uma encenação concebida por um decorador genial, um fantasma absoluto de arqueólogo. Lembrem-se da Bíblia: E Iavé disse: “Eis que o povo é um e todos têm a mesma língua; e isto é o que começaram a fazer. Desçamos, e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua do outro. Assim o Senhor os espalhou dali, sobre toda a face da terra; e cessaram de edificar a cidade. Por isso, se chamou o seu nome Babel, porquanto ali confundiu o Senhor a língua de toda a terra, e dali os espalhou o Senhor sobre a face de toda a Terra.”

— Bravo! — exclamou Friedmann. — Que memória! Contudo, não creio na realidade desta parede. Ela foi concebida para nos impedir de avançar.

Olhava para todos.

— Não compreendem?

Era visível que ninguém o seguia. Para eles, a construção estava ali desde o começo dos tempos e aquelas inscrições representavam uma descoberta inestimável para a história. Cada um pousou as ferramentas no solo, olhando para o professor como se ele estivesse a ter um ataque de demência. Claude sentiu-os a fugirem-lhe. Formavam um bloco demasiado pesado para ser erguido. Apesar do seu entusiasmo, das suas certezas, mais nada lhes daria o ímpeto necessário. Não tocariam naquela parede. Tentou um derradeiro argumento:

— E mesmo que esta parede fosse autêntica, é a minha vida e a de Maya que estão em jogo. Vocês estariam dispostos a deixar-nos morrer para salvaguardar esta ruína? Pensem bem! A nossa vida vale bem este tesouro.

Cada uma das suas palavras cavava ainda mais o fosso entre eles. O pacto quebrara-se. A confiança cedia lugar à desilusão.

Pierre confirmou esse sentimento:

— De qualquer modo, se lhe obedecermos e a partirmos... e depois? Entraremos na décima segunda câmara, que supostamente é a vossa sepultura. E então... vocês salvar-se-iam! Tudo está bem quando acaba em bem. Mas quem nos diz que nesse preciso momento não serão fulminados?

Frédéric insistiu:

— Desculpe, mas adiro às conclusões de Pierre. Para quê lançarmo-nos assim nas trevas, quando nos restam seis dias para refletir, pesar, analisar, compreender este mecanismo?

Friedmann voltou-se para Maya:

— E você, que tem para lhes dizer?

— Claude, creio que eles têm razão. É uma decisão grave e o desfecho é incerto. Se estivermos perante forças como as que imagina, poderemos com efeito morrer prematuramente ao abrir a décima segunda câmara. Porque não utilizar o tempo que nos resta e adiar a última confrontação?

O professor deixou cair a sua lamparina e subiu sozinho, cabeça enfiada entre os ombros.

 

No momento em que Claude regressava à luz do dia, Edward saía do seu carro. Dirigiu-se para o professor. O velho homem apertou-lhe as mãos. O diplomata sentiu a sua tristeza.

— Que se passa?

— Estou contente por vê-lo. Não faça caso. É a idade. Às vezes sinto-me desencorajado. Venha. Queria mostrar-lhe uma coisa e depois vamos descer ao santuário.

Instalaram-se à mesa do professor, que lhe explicou a situação com a ajuda dos seus esquemas.

— Está vendo, Edward, se conseguirmos abater esta parte, entraríamos na décima segunda câmara e aí, talvez...

— Compreendo, professor, e também é do meu interesse, porque se seguir bem os seus cálculos, como nasci numa quinta-feira, 21 de Novembro, sob o signo do Sagitário, e como recebi uma mensagem semelhante, restam-me cinco dias....

— Mas Maya não me disse nada!

— Não lhe falei nisso. Não queira inquietá-la ainda mais.

— Está um pouco apaixonado por ela, não é?

— E como poderia ser de outro modo, professor?

— Bom! Pois bem, Edward, o seu destino parece-me selado, tal como o nosso. Estamos no mesmo barco.

— Não temos por onde escolher: é preciso seguir o plano e furar o muro.

— Foi o que começamos a fazer esta manhã. Mas, depois de termos libertado a primeira camada friável, deparamos com um bloco de material desconhecido.

— Não é possível abatê-lo?

— Era aí que estávamos quando você chegou. Nessa parede estão gravadas inscrições absolutamente extraordinárias, tais como nenhum de nós teria sonhado poder encontrar um dia. Se forem autênticas, é sem dúvida alguma o vestígio mais antigo da nossa civilização. Sob o choque, a equipe recusou tocar-lhe. Foi por isso que me encontrou desencorajado.

— Então, renuncia a entrar na décima segunda câmara?

— Seria necessário efetuar trabalhos gigantescos para a preservar. Não temos tempo.

— Posso ver outra vez o seu esquema, professor?

— Porquê? Quer tornar-se arqueólogo?

— Prefiro vê-lo sorrir assim. Não, só quero compreender. Aliás, também tenho um esquema a mostrar-lhe, que me foi comunicado confidencialmente. Estava na carteira de Finkelstein quando o encontraram morto. Graças a um inspector, obtive uma fotocópia.

Tirou uma folha do bolso e entregou-a a Claude. Mostrava um anel desenhado a lápis, circundado de signos, no centro do qual fora traçado um círculo mais pequeno, à volta da letra J, maiúscula. Em baixo, à direita, havia uma data: 1995.

— Que pensa?

— Finkelstein trazia isto com ele?

— Aparentemente.

— Portanto, há dez anos ele teria tido a idéia daquilo que acabamos de descobrir.

— Mas, professor, que significa este círculo com a letra J?

— Isso pode querer dizer que a hipótese de Maya está correta.

— Como assim?

— Pois bem, no centro do dispositivo haveria uma décima terceira câmara.

— Nesse caso, professor, haveria um décimo terceiro dia, um décimo terceiro morto, cujo nome começaria pela letra J?

— Não, Edward, essa sala redonda seria o túmulo de Josias.

— O rei que os Fundamentalistas pretendem ter sido o comanditário da Bíblia? Estaria aí, enterrado debaixo dos nossos pés?

— É muito possível — respondeu-lhe Claude.

Essa perspectiva tornaria a pôr em causa toda a teoria de Friedmann. O anel formando o esquema das câmaras funerárias estaria ali apenas para proteger o túmulo de Josias. Mas por que motivo os sacerdotes caldeus teriam defendido assim a sepultura do monarca que destruíra os seus ídolos? Que outra coisa haveria, enterrada a seu lado, que precisava tanto de ser protegida?

— Edward, agora as coisas parecem claras. Temos de escavar um caminho subterrâneo para chegarmos lá. É certamente aí que está a chave.

 

O corpo de Jonathan estava estendido numa prancha colocada entre cavaletes, na sala do conselho da escola cabalista. Fora coberto por uma mortalha branca. Mansour orara com os seus irmãos junto do defunto. Agora estavam sentados à volta da mesa. Houve um grande silêncio e o Grão-Mestre dirigiu-se à assembléia:

— Como sabemos, a morte de Jonathan não foi um acidente. Ele é uma vítima deles. Recitemos, pois, os versículos de Jeremias: Mas tu, Iavé, sabes todo o seu conselho contra mim, para me matar; não perdoes a sua maldade, nem apagues o seu pecado de diante da tua face, mas que tropecem diante de ti; trata-os assim, no tempo da tua ira.

Mansour ergueu a cabeça.

— Meus amigos, temos de aplicar a regra, por muito dolorosa que ela seja neste dia. É nosso dever fazermos entrar aqui o aluno de Jonathan, aquele que usará o seu nome.

Um jovem avançou. Mansour pegou-lhe nos ombros, indicou-lhe o lugar entre eles, dizendo-lhe o seguinte:

— Assim, és Jonathan, o herdeiro dos segredos ensinados pelo teu mestre. Pela tua presença, pelo pacto que selaste, jura formar o discípulo que te sucederá no dia da tua morte, para que a profecia se realize no último dia.

— Juro — murmurou o jovem.

Depois, Mansour leu versículos de Isaías:

 

A terra pranteia e murcha:

O mundo enfraquece e murcha:

Enfraquecem os mais altos povos da terra.

Porquanto transgridem as leis,

E quebram a aliança eterna.

Por isso, a maldição consome a terra;

E os que habitam nela serão desolados;

Por isso, serão queimados os moradores da terra,

E poucos homens restarão.

 

A entronização do noviço prosseguiu. Todos recitaram textos sagrados. Em seguida, Mansour pronunciou as palavras rituais do fecho da cerimônia:

— Que Jonathan reserve o conhecimento verídico e o direito justo aos que entrarão na via iniciática, cada um segundo o seu espírito, de acordo com o momento determinado do tempo que os guiará no conhecimento e os instruirá sobre os mistérios maravilhosos da verdade, por entre membros da comunidade, para que eles caminhem na via da perfeição, um após outro, em tudo o que lhes terá sido revelado, pois os homens, antes de nascerem, pertencem à luz ou às trevas.

Quando acabou, Mansour pediu para que se procedesse à abertura do Conselho Supremo.

Cada um evocou o que aprendera sobre as circunstâncias da morte de Jonathan. Uns tinham ouvido falar de mensagens estranhas. Outros pensavam que a comunidade era vigiada pelas autoridades, que desconfiavam deles, acusando-os de quererem travar as buscas dos arqueólogos para intervir no processo de paz.

— Não passam de rumores — declarou Mansour. — Temos de retomar o estudo no único fito de revelar o que deve sair para a luz e manter escondido o que deve permanecer nas trevas.

Depois, dirigiu-se a Jonathan:

— Ainda és uma alma frágil para assumir essa pesada tarefa. Mas não temos outra opção. Foste formado nos saberes da arqueologia. A partir de amanhã, terás de encontrar-te com a equipe que trabalha na estação de Megido e tomares conhecimento dos seus progressos. Voltarás para nos informar. Então decidiremos o que convirá fazer.

Os homens dispersaram-se. O Grão-Mestre falou a sós com Jonathan, dando-lhe alguns conselhos para o ajudar a cumprir a sua missão.

— Procura encontrar o braço direito do professor Friedmann. Chama-se Pierre Grün. Diz-lhe que é o novo eleito, que fui eu que o enviei. Pede também para falar com Maya. Vocês devem ser da mesma idade. Segundo as minhas informações, ela viu o professor Finkelstein mesmo antes de ele morrer. Procure saber o que ele lhe transmitiu, quais eram as suas intenções e as suas buscas sobre as origens do Livro Sagrado.

— Mestre, seguirei as suas indicações, mas como fazer para não despertar a desconfiança?

— Ainda não chegamos lá. Hoje, todos desconfiam e os tempos estão próximos. É preciso proteger o segredo a todo o custo. Vai e deixe-se guiar pela sua consciência.

 

Na embaixada dos Estados Unidos, Laura, a assistente de Edward, começava a ficar bastante apreensiva. Procurava contatar o jovem diplomata com toda a urgência. Não conseguia encontrá-lo. O celular dele estava desligado. Deixara-lhe cinco mensagens e ele não lhe ligara. Leo Sapersteen, o embaixador, entrou no seu escritório.

— Menina, não compreendo o que se passa. Tinha-lhe pedido que ficasse contactável a toda a hora. Isto é intolerável.

— Eu sei, senhor embaixador, mas ele foi-se embora logo de madrugada, depois do serviço, sem dizer palavra. A partir daí, nada.

— Laura, faça qualquer coisa, previna os serviços. Assediam-me por todo o lado por causa de um dossiê muito urgente. Tenho de falar com ele antes desta tarde.

— Muito bem, senhor. Que devo dizer à jornalista que espera no corredor há mais de uma hora?

— O que é que ela quer?

— Está a preparar uma reportagem sobre Megido. Chama-se Olivia de Lambert, é filha do embaixador de França e trabalha para um canal cultural da televisão européia.

— Ouça, ela que vá filmar no local. Não temos tempo a perder.

— Muito bem senhor.

Sapersteen saiu. Ela enviou uma outra mensagem a Edward e foi ter com a jornalista.

— Sinto muito, menina Lambert, mas Edward Rothsteen está ocupado, não pode recebê-la. É melhor que vá diretamente ao acampamento e que volte a telefonar-lhe esta noite para marcar um novo encontro.

— Obrigada. Vou desenvencilhar-me sozinha — respondeu Olivia. — Deixo-lhe o meu número. Pode insistir junto do senhor Rothsteen para que me ligue logo que tiver um momento livre?

Laura olhou para a jovem que se afastava.

 

No santuário, as obras para escavar o túnel progrediam lentamente. Fora feito um buraco num dos muros da primeira câmara, frente à porta. A equipe retirava a terra com cuidado. Friedmann dirigia as operações com uma bússola e um plano. Segundo os seus cálculos, o muro que dava para a sala central devia encontrar-se a dezoito metros. Registraram-se alguns desmoronamentos. Pierre estava inquieto, nervoso.

— Claude, devíamos colocar arcos para consolidar o túnel. Senão, arriscamo-nos a ficar soterrados.

— Bom, dividam-se em dois grupos. Vão buscar cabos de sustentação. Devemos ter aço suficiente para isso.

Karl, que escavava à frente, exclamou:

— Professor, venha ver, há tabuinhas aqui!

Friedmann aproximou o feixe de luz da sua lâmpada e descobriu fragmentos de terracota presos no solo.

— Não pode ser! — exclamou. — Isto é uma verdadeira biblioteca. Nunca mais acabaremos. Não vamos conseguir chegar à sala central através deste túnel. Vamos ter de encontrar outra via de acesso.

Pegou no primeiro bloco, subiu até à luz do dia que declinava para o limpar e decifrar os signos. Pierre, Maya e Edward juntaram-se a ele. Claude pousou o pedaço de argila numa rocha, à direita do santuário e começou a ler as inscrições cuneiformes:

 

O primeiro animal era semelhante a um leão

E o segundo animal semelhante a um bezerro

O terceiro animal tinha o rosto como de homem

E o quarto animal era semelhante a uma águia voando

E os quatro animais tinham, cada um, seis asas,

E ao redor, e por dentro, estavam cheios de olhos.

 

Friedmann ergueu o olhar. Maya disse-lhes:

— É impossível, são versículos do Apocalipse de João.

— Sim, não há qualquer dúvida — reafirmou o professor.

— Desde a descoberta dos rolos do Mar Morto em Qumram, já se desconfiava que o exilado de Patmos se inspirara em textos antigos, mas o que vemos aqui foi gravado quatro séculos antes dos Essênios!

 

Olivia de Lambert fora ter com o engenheiro do som e o operador de câmara que a esperavam no furgão parado diante da embaixada. Seguiram para Megido.

A jornalista obtivera os meios para filmar graças ao sucesso do seu documentário anterior. Depois da sua difusão, vários canais de televisão tinham comprado os direitos para a exibição do filme.

Aos trinta anos, essa jovem ambiciosa e determinada impusera-se numa profissão difícil e perigosa. Os ciumentos, os invejosos do seu sucesso diziam que ela era apoiada pelas poderosas redes de influência do pai que, no entanto, fizera tudo para dissuadi-la a interessar-se por áreas onde reinava o terror e a morte. Porém, a sua paixão era mais forte.

O seu primeiro filme fora concebido a partir de uma longa investigação sobre as imagens difundidas por sites jihadistas na Internet. Aprendera a língua árabe e os seus dialetos no Instituto de Línguas Orientais, em Paris.

Segundo a jovem, os terroristas serviam-se dessas novas mídias para alargarem o seu campo de ação. A mudança do conflito do Afeganistão para o Iraque fora, através deles, um novo meio de comunicação. Tinha sido criada uma multitude de sites, animados por pequenos grupos. Nalguns difundiam-se vídeos de atentados suicidas, noutros imagens aterradoras de execuções sumárias.

Nos últimos meses, inventariara e analisara todos esses documentos, indo até às suas fontes, obtendo testemunhos de antigos prisioneiros jordanianos e comentários de numerosos especialistas do Islão.

Quando o seu filme foi concluído, a cadeia de televisão que devia passá-lo protelara a data, adiando-a constantemente, semanas e meses. Mas, dados os acontecimentos, as tragédias, o filme foi finalmente programado. Foi premiado em vários países.

Algumas semanas depois, Olivia começou a receber no seu celular imagens intencionalmente captadas para ela.

Aparentemente criavam-se novos grupos de combatentes, deslocando os seus meios de comunicação da Internet para os celulares, dirigindo-se a alvos muito precisos, como a jornalista.

Falou com o diretor dos programas, que aceitou produzir a sua nova reportagem.

Dezenas de pequenos filmes de vídeo chegavam através dessa rede. Ela transferia as imagens para o computador. As mais recentes provinham do site de um grupo não listado que se batizara “Os Fundamentalistas”: doze homens, todos com diferentes lenços na cabeça, simbolizando as várias correntes da Jihad e os seus locais de combate.

Depois chegaram as imagens de Megido, onde se via trabalhar uma equipe de arqueólogos. Em seguida, fotos representando a embaixada dos Estados Unidos e montagens misturando terroristas a falsos processos, planos fixos de execuções sumárias. Numa delas, surgiu o rosto de Edward Rothsteen.

Olivia procurou contatá-lo imediatamente, mas ele não comparecera ao encontro.

Pelo caminho, na parte de trás do furgão, visualizou no seu computador as últimas imagens que recebera. Os doze Fundamentalistas estavam reunidos à volta de um homem, ajoelhado no solo. Um deles recitava versículos do Corão; depois, ergueram o refém e penduraram-no pelos pés. Na parede do fundo podia ler-se as seguintes palavras: “Benassan, o traidor.”

Era preciso mostrar aquelas imagens ao mundo inteiro, nunca deixar de alertar as consciências.

Chegaram à planície de Jezreel, quando um pequeno ruído no seu celular lhe assinalou uma nova mensagem. Olhou para a imagem. Julgou reconhecer-se a si mesma, rodeada pelos doze homens.

Na parede do fundo não havia nada escrito. Nela fora traçado um círculo, representando os signos do zodíaco. Ouviam-se palavras pronunciadas em voz baixa. Procurou aumentar o som, mas o ruído do furgão passando pelos calhaus da estrada impedia-a de ouvir. Pediu ao operador de câmara que parasse um momento e desligasse o motor.

Só uma frase era distinta: “Restam-lhe vinte e quatro horas”. Olivia não queria deixar transparecer nada da angústia que a sufocava. Perguntava-se se o medo não a faria recuar. Mas já era tarde demais.

O veículo arrancou novamente. Chegaram à estação arqueológica no momento em que Claude, Edward, Maya e Pierre estudavam o significado da tabuinha que tinham acabado de retirar do solo.

Olharam para aquela silhueta desconhecida que avançava na direção deles.

Ela apresentou-se, apertou a mão do professor e fez um pequeno sinal aos outros. Maya sentiu uma antipatia imediata por ela. A sua desfaçatez e o modo como ela olhava para eles incomodavam-na.

Olivia voltou-se para Edward e, sorrindo, disse-lhe:

— Mas é o senhor Rothsteen! É incrível encontrá-lo aqui. Acabo de vir da embaixada, onde me disseram que estava retido por um encontro.

— Não lhe mentiram — respondeu ele, secamente. — Com efeito, estou numa reunião. Não se vê?

— Oh, desculpe-me — respondeu-lhe ela, mais timidamente. — Sinto muito de o incomodar, mas parece-me que me tinha concedido uma entrevista em Telavive para as catorze horas de hoje.

Maya fixava o jovem diplomata, espreitando a sua reação. Esperava que ele se desembaraçasse rapidamente daquela intrusa. Edward cruzou com o olhar da sua amiga e respondeu, um tanto embaraçado:

— É exato, menina Lambert, sinto muito, mas não poderei vê-la antes da próxima semana. Porque não contata a minha secretária para arranjar outra data?

— Está a falar-me dessa infeliz que o procura por toda a parte?

Edward corou. Via-se que estava prestes a perder a calma. Ligou o seu celular. Claude interveio:

— Desculpe-nos, mas não pode ficar aqui. Estamos em pleno trabalho, menina. Pierre, faça o favor de acompanhá-la.

O professor pronunciara estas palavras num tom que não admitia qualquer réplica. Pierre cerrou os lábios e levou Olivia pelo caminho. Ela pediu aos seus dois técnicos que a esperassem no parque de estacionamento.

— Sinto muito pelo acolhimento, mas apareceu num mau momento. Anunciaram-me a sua vinda para amanhã, ao meio-dia.

— É exato, pensávamos chegar apenas no domingo. Tinha de filmar a entrevista com o senhor Rothsteen, mas como ele se esquiva e o meu tempo está contado, decidi vir filmar aqui.

— Tinha encontro marcado com Edward para hoje? E que relação é que isso tem com as buscas em Megido?

— É verdade, senhor Grün, com efeito qual a relação entre um adido da embaixada americana e os trabalhos do professor Friedmann? Sou eu que lhe faço a pergunta.

A jovem agradava a Pierre. Seduzira-o em poucas palavras. Ele soltou uma gargalhada.

— Bom, muito bem. Vou tentar ajudá-la, porque... porque você é morena e encantadora. Enfim, um deslumbre. Posso chamá-la Olivia?

— Pode, Pierre — anuiu ela, baixando os olhos.

— Depois do seu filme sobre os movimentos islamistas, perguntava a mim mesmo o que a levou a vir fazer uma reportagem sobre as nossas buscas arqueológicas. Sei que trabalha para um canal cultural, mas enfim...

— Pierre, creio que posso dizer-lhe tudo. Sigo uma pista que prolonga a minha investigação sobre a Jihad.

— E qual a relação conosco?

— Investigo sobre a emergência de novas formas de terrorismo, o que me trouxe aqui.

— Como assim? — murmurou Pierre.

— Recebo mensagens. Veja.

Passou-lhe o seu celular. Ele viu a sucessão de imagens. Do grão, das cores, emanava algo de irreal. Pierre vira muitas vezes vídeos transmitidas na Internet, mostrando a execução de reféns. Estas imagens assemelhavam-se, embora sendo diferentes. Não sabia o que pensar.

— Olivia, não consigo perceber o que eles dizem.

— Dizem: “Restam-lhe vinte e quatro horas.”

Pierre empalideceu.

— E quando a recebeu?

— No início desta tarde.

 

Edward ligou para Laura, na embaixada. Leo Sapersteen precisava dele. Partiu precipitadamente para Telavive, deixando Maya triste e preocupada. Friedmann pedira que não o incomodassem e fora instalar-se na sua tenda. Pierre continuava a conversar com Olivia.

Maya precisava caminhar. Ladeou as fortificações, passou diante da célebre porta com uma tripla tenaz que fechava a entrada da estação arqueológica. Chegada à beira do outeiro, contemplou o vale de Jezreel, iluminado pela luz avermelhada do pôr-do-sol. Pensava no declínio do Reino do Norte, em Israel. Em Jeroboão, Omri, Acad e Jezabel, injustamente tratados pelo Livro dos Reis.

Que ódio tenaz fora preciso para reescrever dessa maneira a história dos Omridas, os senhores de Megido, retendo apenas o crime de não terem adorado o Bezerro de Ouro no templo de Betel, de se consagrarem ao culto de Baal, para justificar o fim de Israel no caos e o advento de reino de Judeia e de Jerusalém.

Hoje, o fanatismo prosseguia o seu caminho através da loucura dos integristas, essa necessidade absoluta de adorar um só deus. A jovem pensava no Islão, nessa devoção sem falhas, que levava homens de todas as idades, vindos de todos os horizontes, a destruírem-se, sozinhos, face a um mundo que os rejeita e lhes oferece apenas uma vida medíocre, sem identidade, face a uma civilização de consumo, de mentira. Pensava naqueles jovens que esperavam, às centenas, pelo reconhecimento e pela honra de morrer em nome da Jihad, de oferecerem as suas vidas a esse Deus exclusivo, ordenando o seu sacrifício.

Aqui, em Megido, existira uma civilização feita de tolerância, presentes, riquezas. Neste local a natureza era serena, situada entre o deserto árido e o Mediterrâneo. Tudo transitara por aí, as mercadorias preciosas, mas também os exércitos, os confrontos entre o Egito e a Babilônia. Segundo a tradição, é nesse local que advirá o final dos tempos, o Armagedon, o Apocalipse.

“E pronto, cá estamos”, disse para consigo.

Aquelas mensagens marcando a contagem decrescente da sua vida não seriam destinadas a toda a humanidade? “Restam-lhe doze dias.” Era sábado e na próxima sexta-feira ia acontecer algo de irreal. Seria a descoberta do túmulo de Josias, circundado pelas tabuinhas do Apocalipse, primeira escrita dos magos? Seria a maldição do zodíaco, levando com ela, implacavelmente, as suas vítimas? Seria o encontro dos cabalistas com os Fundamentalistas? O evento do décimo segundo dia ultrapassaria o destino de todos eles.

O Sol desaparecera. A planície de Jezreel escurecera, as estrelas estavam suspensas na abóbada celeste. Maya contemplava as constelações. Deteriam elas os segredos do seu futuro? Nesse fragmento do universo, os astros tinham, sem dúvida, a resposta. Viu uma estrela cadente. Formulou um desejo.

Quando se dirigiu para o acampamento, viu a jornalista e a sua equipe filmando com uma câmara de infravermelhos. Maya foi procurar Pierre.

— Parece-me que Claude foi claro a respeito desta gente. Está fora de questão deixá-los filmar.

— Mas, não compreendo: pensava que tinham ido embora e que só voltariam na próxima semana.

— Não sei o que essa jovem lhe contou, mas entretanto eles continuam aqui e não há ninguém para os vigiar.

Pierre pulou da cadeira e dirigiu-se para a jornalista. Tiveram uma troca de palavras muito viva. Os técnicos arrumaram o seu material e a equipe deixou a estação precipitadamente.

— Penso que não voltaremos a vê-los tão cedo. Têm um descaramento inacreditável.

Maya inclinou a cabeça e foi ter com o professor.

— Encontrou outra via de acesso? — perguntou-lhe.

— Só vejo uma solução.

Mostrou-lhe um novo plano.

— Temos de tentar chegar à sala central passando por cima, cavando um orifício na vertical, para entrarmos pelo teto.

— É preciso tentar tudo, Claude.

— Convoque a equipe. Vou explicar-lhes.

Era preciso sondar a uma dezena de metros, criar uma espécie de poço estreito que permitisse a passagem de uma pessoa graças a uma escada de corda.

Claude pediu a Maya que os deixasse.

— Vá dormir algumas horas. Trabalharemos toda a noite. Você será útil depois.

Passado pouco tempo, a jovem foi acordada em sobressalto pelo toque repetido do seu celular. Pegou nele e viu aparecer imagens fixas. Os rostos de Benjamin, Neil, Simon, Finkelstein, Jonathan e Benassan surgiram uns após outros, diante de um muro minado pela oxidação. Nenhum texto acompanhava estas visões macabras. De repente, o escuro invadiu o ecrã e, depois, pouco a pouco, surgiram os traços de Olivia.

Olhou para o relógio. Eram duas da manhã. Domingo. A jornalista talvez já estivesse morta. O coração de Maya batia desalmadamente. O suor escorria-lhe pelas têmporas, ao longo das costas. Foi acometida por violentas náuseas, saiu para respirar, os espasmos que a sacudiam fizeram-na cair; perdeu os sentidos.

Caminhava esgotada por um deserto de dunas, progredindo a passos lentos, enterrando-se na areia branca. Um homem surgiu à sua frente. Estava ali, parado, com um cafetã azul cor do céu e os seus compridos cabelos prateados brilhando à luz do sol.

Ajoelhou-se, levantou os braços para o sol escaldante e pronunciou as seguintes palavras:

E vós, que sabeis quantos cabelos temos, acaso ignorais quantas são as estrelas?

Todo o espaço está contido nas bases da vossa geometria, graças a um cálculo deslumbrante, semelhante às computações do Apocalipse.

Haveis pousado cada astro miliaria no seu ponto, semelhante às lâmpadas de ouro que guardam a vossa sepultura em Jerusalém...

Agora posso dizer... Já não existis, ó terror da noite!

Assim permanecia, de braços estendidos para o céu e o seu corpo desapareceu na areia. Maya voltou o olhar para o horizonte e viu uma forma desenhar-se. Não a distinguia, como se todas aquelas visões reunidas se sucedessem umas às outras, como um caleidoscópio em movimento. Ela perguntou:

— Quem sois?

Um sopro respondeu-lhe:

— Sabes quem sou, mas não ousas enfrentar-me. Renuncia aos teus desejos, ao teu projeto insensato. Então, salvar-te-ei.

Maya abriu os olhos, tremendo de frio, só, estendida no solo.

Levantou-se, tolhida de dores. A alvorada úmida deixava entrever o início do dia. Cobriu-se com um cobertor e dirigiu-se para o refeitório. Estavam todos lá, visivelmente estafados, à volta de Claude e Pierre, debruçados sobre um plano.

— Ah, Maya, venha cá — disse-lhe o professor, afastando-a. — É incompreensível: nada, não encontramos nada. Já ultrapassamos em três metros a suposta localização da sala central, mas só encontramos o vazio.

— Não há nada... — repetiu Maya. — Enganamo-nos. O santuário em forma de zodíaco só está aí para servir de sepultura aos doze mortos. Não esconde o túmulo de Josias. O círculo não passa da primeira cintura que protege as primeiras tabuinhas do primeiro Apocalipse.

— É possível — respondeu o professor. — A menos que o túmulo de Josias esteja no mesmo plano que as outras câmaras, enterrado mais profundamente.

— Mas quanto tempo teremos ainda de escavar assim? Recebi, na tela do meu celular, as imagens dos rostos dos mortos. O sétimo era o de Olivia de Lambert. Claude, já não temos tempo. Além disso, tive uma indisposição. Visões.

— Olivia terá morrido! — exclamou Pierre, que os tinha seguido.

— Não sei. Procure contatá-la. Eu disse apenas que as pessoas apareceram na tela do meu celular e que ela fazia parte do grupo.

— Que visões teve? — inquiriu Claude.

— Caminhava num deserto. Um mago recitava uma ode. As suas palavras não me eram estranhas, parecia-me conhecer as estâncias. Depois, sumiu. Tragado pela areia. E encontrei-me só, diante de...

— Quem era, Maya?

— Não sei. Uma entidade que me pedia que renunciasse às minhas buscas, prometendo que, em troca, me salvaria a vida. Claude, creio que tenho de parar aqui. Tudo isto é morte, desolação por causa desse projeto demente: descobrir o túmulo secreto de Josias, desvelar as origens da Bíblia. Se renunciar, talvez nos salvemos.

O professor baixara subitamente a cabeça.

— Maya, que se passa? O que lhe aconteceu? Já não a reconheço. Agora é impossível abandonar. Se não avançarmos, estamos perdidos.

— Compreenda-me: tenho medo. Estou aterrorizada. Se as minhas visões não forem fantasmagorias, se estivermos realmente confrontados com o divino, essa mensagem representa um último aviso. O que se ergue diante de nós não são os cabalistas, nem os Fundamentalistas, mas o Senhor do Céu.

— Tenha cuidado, Maya, está a perder a razão.

A inquietação invadira o rosto de Claude. Ela procurou cair em si.

— Muito bem, professor. Que espera de mim?

— Temos de continuar. Temos de verificar a hipótese de o túmulo de Josias estar no centro do círculo. Talvez por baixo das outras câmaras. Temos de ver se a sétima porta se abriu para Olivia de Lambert. Temos de tentar tudo para procurar abrir as cinco restantes. Maya, não me abandone. Não dê cabo das esperanças que depositei em si.

 

Pierre, que dava alguns passos no exterior, viu avançar na sua direção um jovem de traços desconhecidos.

— Bom dia, senhor, sou Jonathan, sucessor do meu defunto tutor; o Grão-Mestre pediu-me para o ver. Espero não o incomodar.

— Venha — respondeu-lhe Pierre. — Não fiquemos aqui.

Entraram no refeitório e sentaram-se um diante do outro.

— Como foi vivido o desaparecimento do seu Mestre?

— Efetuamos os rituais. Depois, reunimos o Conselho Supremo.

— Qual é o vosso ponto de vista?

— A comunidade pensa que se trata de um assassinato.

— Jovem, tem de lhes dizer que estão enganados. Foi um acidente. Um infeliz acaso. Aqui ninguém lhes é hostil, pelo contrário. Temos o maior respeito pela vossa disciplina, pelo vosso desapego.

Jonathan escutava, sereno. Olhava para Pierre com uma concentração rara num rapaz tão novo.

— Transmitirei as suas palavras à assembléia e agradeço-lhe.

— Bom, mas suponho que está aqui com uma finalidade precisa.

— Não. Queria precisamente apresentar-me a vocês. Antes de ser escolhido pela escola, segui uma formação em Arqueologia na Universidade de Cambridge. Doravante serei o vosso interlocutor, caso desejarem dialogar conosco.

— Conheceu Serge Finkelstein?

— Sim, foi ele que me formou.

— E que pensa das suas últimas teorias?

— Ele foi certamente um dos arqueólogos mais brilhantes da sua geração. Talvez o sucesso que obteve junto do grande público o tenha impedido de levar ainda mais longe as suas investigações.

— Que quer dizer?

— Penso que devia ter levado em consideração as descobertas primordiais provenientes das recentes buscas sobre as civilizações mesopotâmicas, mais particularmente aquelas que vocês fizeram junto dele, no Iraque. Mas ele bloqueou-as, estava demasiado apressado.

Pierre sorriu de satisfação.

— As suas palavras parecem-me extremamente justas. Mas não está surpreendido pela nossa presença em Megido, depois de tantos anos passados no Iraque?

— Não. Por que motivo os Caldeus não teriam deixado vestígios aqui, numa altura em que dominavam o mundo?

Pierre olhou para o jovem com um ligeiro sentimento de dúvida. Aquele discurso era inabitual para um cabalista.

— Estou espantado. O que diz não se parece nada com as preocupações do seu saudoso Mestre.

— Penso que ele estava preocupado com outra coisa.

— Mas, o quê?

— A minha comunidade considera que a vossa equipe não é... como direi?... homogênea. Que talvez haja nela certas pessoas que não têm o mesmo objetivo que o professor Friedmann.

— Está a pensar em mim?

— Claro que não. Você é o fiel companheiro dele. Isso não faria qualquer sentido.

— Nesse caso, não estou a ver quem possa ser.

— Na realidade, caro senhor, vou ser franco consigo. A minha iniciativa junto de você tem como objetivo pedir-lhe... Posso ver Maya Spencer? É com ela que tenho de falar.

— Nem pense! É impossível. Como pode desconfiar que ela tenha a menor divergência em relação ao seu pai espiritual? Tudo o que fazem, decidem em conjunto. Aí, sinceramente, não estou a segui-lo.

— Compreendo a sua reação, mas obtivemos informações que nos alertaram.

— Que diz? Do que se trata?

Subitamente Pierre estava febril, curioso. Haveria rumores sobre um eventual conflito entre Claude e Maya?

— A menina Spencer encontrou-se com o professor Finkelstein pouco antes de ele morrer. Não me pergunte como o sabemos. Mas supomos que ele lhe confiou qualquer coisa fundamental, descoberta quando de uma expedição aqui, em Megido. Ele não terá mencionado isso em nenhuma das suas publicações.

— O quê, Jonathan? Ele teria encontrado um elemento que confirmaria as mais loucas hipóteses? E tê-lo-ia transmitido a Maya, nas costas de Friedmann? É isso que pensa?

— Sim, senhor, é isso que julgamos.

— Insensato! Alucinante! Tem razão, têm de ver Maya o mais depressa possível. Vou tratar disso.

— Senhor, ficar-lhe-emos eternamente reconhecidos.

 

A notícia do desaparecimento brutal de Olivia de Lambert espalhara-se por Telavive, alimentando todas as conversas. O seu veículo, que circulava noite dentro numa zona perigosa, fora atingido por um foguete. Atingida em cheio, a jovem morrera imediatamente. Os seus dois companheiros de equipe tinham sido transferidos para o hospital.

Edward estava no escritório de Leo Sapersteen.

— Mas, afinal, o que é que ela procurava? Disse que a viu ontem. Falou com ela?

— Não verdadeiramente, senhor; cruzei-me com ela quando me ia embora. Devia recebê-la amanhã. Ela queria fazer uma reportagem sobre os novos métodos de ação que utilizam a transmissão de imagens por celular.

— Julgava que se tratava de um filme sobre as buscas de Megido, para um canal cultural.

— Foi o que ela me disse. Aliás, não percebo porque queria encontrar-se comigo. Mas Pierre Grün, o assistente do professor Friedmann, disse-me que ela lhe fez confidencias. É óbvio que esse documentário lhe servia de cobertura. É uma curiosa coincidência, mas a sua investigação incidia, na realidade, sobre os Fundamentalistas. Parece até que recebeu no seu celular mensagens semelhantes às nossas.

— E pensa que...

— Não, não são os métodos deles. Penso que se trata efetivamente de um acidente. Atravessavam uma zona na qual não se deviam ter metido. Houve disparos de foguetes. Atualmente ninguém sabe de que lado dispararam aqueles que os atingiram. Atribuem as responsabilidades uns aos outros. Mas os Fundamentalistas parecem estar fora de causa.

— Ainda é cedo demais para o afirmar. O que Friedmann conta mais parecem visões esotéricas que conclusões cientificas. Nada que possa servir-nos numa ação sensata. De qualquer modo, nada que seja de molde a ameaçar o processo de paz. Há, com efeito, esse fantasma da descoberta do túmulo de Josias, que era também, creio, a obsessão do pobre Finkelstein. Mas por ora não passa de vento.

— Talvez, mas mesmo assim foi encontrado morto no seu gabinete. Depois foi a vez de Benassan e agora a da menina Lambert. E tudo isto em pouco tempo.

— Tem razão, senhor embaixador. Estudamos a hipótese de um plano que incluiria essas vítimas e outras, ainda não identificadas.

— Ah, bom... E que plano seria esse?

— Aparentemente doze mortos, um por dia.

— Obrigado por me pôr ciente, meu caro.

— Não ousava falar-lhe disso, senhor embaixador. Essa história parecia-me demasiado extravagante. Aliás, só comecei a acreditar nela a partir de ontem. Foi por isso que voltei a Megido.

— O que está em jogo em torno do túmulo de Josias?

— Há arqueólogos que pensam que esse rei teria sido o comanditário da Bíblia. Teria confiado a sua redação àqueles que são chamados os Deuteronomistas, escribas que teriam reinventado a história. Teriam utilizado histórias emprestadas às diversas civilizações dominantes da época. O seu propósito teria sido o de justificar a unificação do povo judeu à volta de Jerusalém, depois da queda do Reino do Norte. Esses arqueólogos possuiriam talvez as provas de que os reinos de David e Salomão não passavam afinal de invenções destinadas a legitimar os projetos de conquista do novo reino.

— E por que não, mesmo que isso pareça uma loucura? No fim de contas, a força da Bíblia não reside numa mistura de mito e história? E o que constitui a sua grandeza. Mas quem poderia tirar partido de uma descoberta histórica que sublinhasse apenas a dimensão poética e mística do Livro Sagrado?

— Concordo. Mesmo que esse túmulo fosse descoberto, fornecendo assim as provas materiais dessa encomenda, isso não mudaria nada.

— Ao mesmo tempo, Edward, temos de permanecer atentos ao que se esconde por trás disso tudo. Primeiro, porque os mortos são bem reais. Depois, porque a opinião, e através dela os media, é um elemento determinante para o progresso das negociações. As pessoas mostram-se cada vez mais sensíveis quanto às questões que dizem respeito às origens das nossas crenças, das nossas religiões. Agarrar-se-iam a qualquer coisa. Veja como as seitas florescem. Seria irresponsável não levar em consideração a influência dessas correntes. Aliás, vão ao encontro do que Olivia parecia ter descoberto: novas formas de terrorismo cuja arma principal seriam as crenças.

— Quer que eu volte a Megido para saber mais alguma coisa?

O embaixador consultou o relógio.

— Espere. Tenho mesmo de telefonar a Jérôme de Lambert.

Discou o número.

— Jérôme, aqui fala Leo Sapersteen. Acabo de receber a terrível notícia. Estou a seu lado.

A voz do embaixador francês soou no alto-falante.

— A sua amizade reconforta-me. Não consigo perceber o que aconteceu. Tinha um mau pressentimento. O trabalho dela parecia-me tão perigoso... Falei-lhe nisso o ano passado. Mas isto... desta maneira... Não compreendo. Pensa que...?

— Não, Jérôme, temos a certeza de que se trata de um acidente. Ela não era visada.

— Sim, eu sei. Mas esta nova investigação, ainda mais arriscada que a anterior...

— Caro amigo, irei visitá-lo amanhã. Dar-lhe-ei todos os elementos que temos em nossa posse. Dê um beijo à Sophie e diga-lhe que penso nela.

— Obrigado pelo seu apoio, Leo.

Sapersteen estava comovido.

— Edward, pode ir embora, mas não antes de ter reunido todos os elementos sobre a morte de Olivia. Quando lá chegar, mantenha-me informado. E procure estar de volta amanhã à tarde. Precisarei de você a partir de terça-feira. As negociações sobre os territórios vão recomeçar.

— Estarei presente às oito horas, para a primeira sessão.

 

Cada um refugiara-se nas suas obsessões como que para esquecer melhor a preeminência de um destino trágico. Edward telefonou a Maya para a prevenir do seu regresso, o que a aliviou.

Pierre só tinha uma idéia na cabeça: descobrir o que Finkelstein teria podido transmitir a Maya. Era preciso organizar o encontro com Jonathan. Frédéric multiplicava os seus esquemas anatômicos. Queria perceber a ligação entre as partes do corpo e os signos astrológicos. Esperava assim adivinhar quais seriam as próximas vítimas.

Estendida, de olhar fixo, Maya cogitava nas suas visões. Desejava tornar a encontrar a entidade que lhe falara no sonho.

Quanto ao professor, queria localizar a décima terceira câmara a todo o custo. Contudo, nada avançava. A equipe que escavava na vertical ultrapassara largamente a distância prevista pelo traçado, mas no lugar onde o túmulo devia supostamente estar só havia pó. Rajan trabalhava no plano horizontal, trazendo para a superfície dezenas de tabuinhas. Friedmann ia decifrando-as à medida que ele as trazia. Já havia uma quantidade suficiente para que uma versão original do Apocalipse desfilasse perante os olhos deles. Algumas descreviam Megido, destinado a ser o teatro do final dos tempos, do advento de um messias. Já não havia lugar para dúvidas. O Armagedon de São João estava bem ali. Deus convocara a humanidade para os pés daquela colina a fim de proceder à catástrofe final.

Friedmann olhava igualmente para o esboço de Finkelstein. Sentia-se particularmente assombrado pelo círculo central onde figurava a letra J, o Yod do alfabeto hebraico, a existência no âmago do tempo, que designa a potência na Cabala e que serve para aplicá-la, por oposição ao Alef, que é intemporal. Esse J maiúsculo talvez não fosse o de Josias. Podia indicar simplesmente que o círculo envolvente estava inscrito na temporalidade e não no eterno, representando a cintura do zodíaco que protegia as tabuinhas do primeiro Apocalipse. O túmulo de Josias estava sem dúvida noutro sítio. O Yod significava que o final dos tempos se inscreveria ali, no dia e na hora indicados.

O professor parou os seus trabalhos. Enganara-se. O santuário fora concebido pelos magos caldeus para lançar uma maldição sobre a humanidade, prevendo o seu desaparecimento. Esses sacerdotes, esses astrônomos tinham lançado um feitiço sobre o mundo terrestre porque o seu poder fora posto em xeque. Novas potências tinham-nos forçado ao exílio, à clandestinidade, mergulhando-os no isolamento. Tinham-se vingado.

O castigo reservado aos profanadores do círculo espalhava-se agora pela terra.

Pensativo, Friedmann não ouviu Maya chegar.

— Incomodo-o, Claude, estava a trabalhar...

— Não. Pensava. Creio que percebi.

Explicou-lhe o desenrolar do seu raciocínio.

— Talvez tenha razão, professor. Posso fazer-lhe uma pergunta?

— Claro, Maya. Escuto-a.

— Queria pedir-lhe uma coisa pessoal. Tem a certeza quanto à data e ao local do seu nascimento?

— Não, verdadeiramente. Porquê?

— E conhece a origem do seu nome?

— Como? O meu nome é o meu nome. E então? Não gosto de falar nisso. Fui encontrado vivo, com algumas semanas, sem pais, sem família. As pessoas que me recolheram deram-me este nome.

— E o apelido dos seus pais biológicos?

— Não conheço.

— Mesmo o primeiro nome do seu pai? Na nossa religião, ele é muitas vezes transmitido ao filho.

— Creio que se chamava Josué, ou algo do gênero.

 

Era preciso tornar a descer sob a terra, percorrer o santuário, estudar de novo as portas que se tinham aberto. Entraram na sétima câmara e viram inscrito no umbral o nome OLILU. No centro da sala, a esteia trazia o nome da deusa ABU, Senhora do Domingo, reinando sob a dominação do Sol, na constelação do Leão.

Este túmulo era efetivamente o de Olivia. Mais longe, à direita, encontrava-se a oitava porta. Abrir-se-ia no dia seguinte, antes da meia-noite. As quatro a seguir, entre as quais a décima segunda, estavam ali, a alguns metros deles, mas separava-os uma distância intransponível.

— Por mais que seja confrontado com esta realidade, não consigo crer que dentro de cinco dias talvez já não estaremos aqui.

— Como não ser incrédulo face ao mistério? A nossa vida é baseada em fatos tangíveis. Sempre lhe ensinei uma ciência exata, a partir de datas, objetos, monumentos. Como crer que tudo isto é real e, sem dúvida, inelutável?

— Mas, professor, mesmo que uma confraria de sacerdotes, de magos, tivesse conseguido pôr a funcionar semelhantes malefícios há vinte e seis séculos, não é possível imaginar uma força capaz de os contrariar?

— Maya, são saberes esquecidos, que o ceticismo varreu das práticas, dos ensinamentos. Toda a nossa história tende para o real, o racional. Ela impôs a proibição, a eliminação dessas crenças. Rejeitamo-las como símbolos do mal, como representações dos atributos do diabo. Ao riscá-las da nossa memória, perdemos os antídotos.

— Não há mais nada a fazer?

— Como por exemplo, minha pequena?

— Se esses homens foram vencidos quando dominavam o mundo, é porque outra potência triunfou.

— Em que está a pensar?

— Desculpe-me por voltar ao meu sonho, mas a presença que me apareceu propunha uma espécie de troca. Se eu renunciasse a procurar o túmulo de Josias, proteger-nos-ia.

— Mas, Maya, era um sonho. Aqui, infelizmente, os nossos mortos não são imaginários, nem os muros que temos diante de nós, nem as inscrições.

— Eu sei. Mas esta civilização, com as suas centenas de divindades, foi efetivamente destruída, substituída por aquelas que se reclamam de um só Deus. Se pusermos de lado a loucura dos homens, sinistros intermediários de um confronto entre essas potências, o divino apresenta-se como único, exigente, ciumento, acabando sempre por triunfar. Se somos capazes de admitir que doze magos governam os dias sob o domínio dos planetas, porque recusaríamos a ajuda de um só, do Deus soberano, do monarca absoluto?

— É uma aposta sem risco. Podemos resumi-la dessa maneira. Mas, mesmo assim, paga-se um pesado tributo por ela.

— Qual?

— Abandonar o que procuramos. Mas, para si, Maya, talvez não represente grande coisa.

O velho homem estava triste. Sentia-se só. Teria gostado tanto que ela lançasse a sua vida no desconhecido em nome da paixão, do amor que lhe transmitira. No entanto, desculpava a sua juventude. Era preciso fazer tudo para a proteger.

— Creio que precisa de ir dormir. Vá. Amanhã, talvez os seus pensamentos e os seus desejos sejam diferentes. É difícil carregar com tudo o que nos está a acontecer.

Maya abraçou-o.

 

Dormia profundamente quando abriu os olhos, lentamente.

Teria ouvido um ruído? Há quanto tempo estava assim, estendida de costas, braços ao longo do corpo, como uma estátua jacente? Olhou para o relógio: eram três da manhã.

Tinha as mãos cerradas, doloridas. Sentiu qualquer coisa incomodá-la na cova da mão direita. Abriu os dedos um a um. Encontrou um papelzinho amarrotado. Ergueu-o, desenrolou-o e leu.

Quatro letras hebraicas formavam um tetragrama. Em cima, à esquerda, um Alef seguia o 1. À direita, a letra Mem era seguida pelo número 40. Em baixo, à direita, a letra Yod e o número 10. E à esquerda, novamente o Alef e o algarismo 1. O total, 52, estava inscrito no centro.

Ela fixava o desenho. Era o seu nome inscrito em hebraico. Voltou a folha. Duas frases figuravam no reverso:

“MA = Tudo o que serve à potência geradora e a manifesta no exterior.

YA = Faculdade das coisas que existem em potência.”

 

Antes de deixar a embaixada, Edward folheava os principais artigos da imprensa para completar o seu dossiê sobre a morte de Olivia. O trágico evento provocara uma tempestade mediática. Suspeitava-se que os serviços secretos americanos e israelitas estivessem na origem daquilo que era apresentado como um assassinato. Outras hipóteses punham em causa grupos terroristas.

Todos se interrogavam sobre os motivos destinados a impedir a jornalista de prosseguir a sua investigação. Alguns evocavam as buscas de Megido, deixando entender que havia revelações. Tinham sido organizadas manifestações em Paris, frente à embaixada americana.

O jovem diplomata estava inquieto. Temia movimentos incontroláveis. Como gerir aquela crise, continuando a ajudar Friedmann? Fez uma cópia do dossiê e partiu ao encontro de Maya e do professor.

Quando chegou ao local das escavações, eles estavam reunidos. Leu-lhes os títulos dos jornais.

— Que horror! — exclamou o professor. — Vamos ser invadidos, submersos! Prefiro ainda enfrentar as forças obscuras aos jornalistas. Isso está acima das minhas capacidades.

— Caro amigo, sabe quanto aprecio o seu humor inglês, mas desta vez temo que tenha razão.

— A sério, Edward, que vamos fazer?

— É preciso canalizá-los, ganhar tempo. O ideal seria que um de vocês, com suficiente autoridade, fosse designado como único interlocutor. Que os receba num local bem preciso, para evitar os transbordamentos, e lhes transmita a maior quantidade possível de dados para que tenham alguma coisa para contar.

— Mas não somos adidos de imprensa — protestou Maya. — Não sabemos fazer isso, é uma profissão. Você não está na embaixada.

Pierre interveio:

— Claude, Edward tem razão. Se não fizermos o que ele diz, vamos perder o controle.

— Tem alguma idéia, Pierre?

— Ouçam, não me importo de desempenhar esse papel com Karl. Vamos instalar-nos no refeitório e receber os jornalistas. Fazer uma lista. Exigir que tragam um passe com a respectiva foto. Entregar-lhes um pequeno dossiê explicando as nossas buscas. Enfim, o que quisermos dizer-lhes. Talvez possamos mostrar-lhes uma tabuinha com versículos para ir alimentando as suas crônicas.

— Isso está fora de questão! — indignou-se Friedmann. — Estou de acordo em que nos encarreguemos deles, para os vigiar, mas nem uma palavra acerca das nossas descobertas. Enfim, Pierre, pense um pouco!

— Bom, bom, Claude. Não se enerve.

Pierre e Karl improvisaram um ponto de acolhimento para a imprensa na parte lateral da estação e quadricularam a zona das buscas com uma fita amarela, colocando setas para orientar os visitantes.

Edward acertara. Ao meio-dia já eram uma centena, com máquinas fotográficas e câmaras instaladas na cantina. Pierre deu uma conferência de imprensa. Edward ficou aliviado ao ver a sua habilidade.

— É um milagre — disse a Maya. — Sai-se às mil maravilhas.

— É verdade. Dir-se-ia que fez isto toda a vida.

Depois de ter concluído a sua exposição, Pierre perguntou:

— Alguém tem perguntas a fazer?

Foi um pandemônio. Todos se levantavam, falando ao mesmo tempo.

— No veículo de Olivia de Lambert foi encontrado um documento em vídeo, onde se viam imagens da estação arqueológica seguidas por um comentário que anunciava uma descoberta capital demonstrando que a Bíblia poderia ser uma ficção.

Outro perguntou:

— Também se fala de mensagens recebidas num celular implicando os mortos destes últimos dias, entre os quais um membro da vossa equipe e o professor Finkelstein. Olivia de Lambert teria recebido ordens destinadas a impedir essas revelações. Que pensa?

Uma mulher interveio:

— Pode dizer-nos mais alguma coisa sobre a morte de Simon Chevalier, que trabalhava convosco? É verdade que um de vocês matou involuntariamente um membro da escola cabalista? Como foi que se passou?

Outras perguntas dispararam:

— Diz-se que um objeto de grande importância desapareceu no momento da morte do professor Finkelstein.

— Circulam rumores quanto a um acordo entre a embaixada norte-americana e a francesa, segundo os quais Sapersteen e o pai da jornalista assassinada procuram abafar o caso.

— A Mossad exerceu ou não pressão para que parassem as suas buscas e receberam ou não ameaças de um grupo terrorista que se faria chamar os Fundamentalistas?

Pierre tomava notas. Febril, tinha a impressão de que a sua cabeça ia explodir.

Elevou-se outra voz:

— Conhecem um certo Benassan, cuja execução é difundida pela Internet?

Atordoado pela rajada de perguntas, pediu-lhes que parassem e retomassem as perguntas uma a uma. Compreendera que a informação se inflamara. O rumor invadia tudo. Só lhe restava uma solução. Dizer o que sabia, protegendo ao mesmo tempo o segredo de Friedmann.

Edward e Maya precipitaram-se para a tenda de Claude.

— É terrível, professor. Se ouvisse o que eles fazem das nossas buscas! Já não temos por onde escolher. Temos de parar tudo.

— Eu sei, Maya. Tudo será deformado, manipulado. Mas já é tarde demais. Os jornalistas correram mais depressa. O que dissermos será utilizado para alimentar polêmicas. Essas paradas ultrapassam-nos, escapam-nos. Trata-se da loucura dos homens, dos seus delírios, das suas paixões, das suas lutas, das suas querelas. Da guerra, Maya, da sua morbidez secular. Não somos senão um pretexto a mais para tudo isso.

— Tem imensa razão — acrescentou Edward. — O que disser, prossiga ou não as suas buscas, não mudará nada. Recordo-lhes que cinco dias nos separam do desconhecido. Mas isso, eles não sabem.

 

Maya insistiu junto de Claude para que pusesse fim ao suplício de Pierre. O professor entrou no refeitório. Agradeceu aos jornalistas pelo interesse que mostravam pelos seus trabalhos, explicando que ainda não estava na posse de respostas científicas sobre o túmulo de Josias e ainda menos sobre eventuais revelações a propósito das origens da Bíblia e sobre o encadeamento fatídico das mortes. Anunciou-lhes que esperava informações para o final da semana e que logo os receberia. O tempo pressionava e precisava de calma. Estas declarações pareceram satisfazê-los. Retiraram-se silenciosamente. Pierre estava arrasado. Agradeceu ao professor por ter vindo em seu auxílio.

— Espero não ter falado demais. Sabe, Claude, eles têm uma maneira insidiosa de fazer perguntas.

— Não se preocupe. De qualquer modo, vão escrever o que lhes der na telha.

No fundo da sala, Pierre avistou um jovem que não se mexera. Aproximou-se dele e reconheceu Jonathan. Voltou-se para Maya.

— Sinto muito por lhe fazer este pedido hoje, mas creio que é indispensável que conheça este jovem. É o sucessor de Jonathan. Deseja absolutamente falar consigo. Foi aluno de Finkelstein.

Maya olhou-o com curiosidade.

Pierre fez as apresentações. Ela propôs-lhe que saíssem para o exterior.

— Estou contente por encontrá-lo, Jonathan. Queria dizer-lhe que o acidente que vitimou o seu Mestre nos deixou a todos desolados.

— Agradeço-lhe. Sinto-me comovido que tenha aceite consagrar-me um pouco do seu tempo neste momento difícil.

— De que me quer falar?

— Vou responder-lhe francamente. Sabemos que esteve com Finkelstein alguns instantes antes de ele morrer. Ao ler os trabalhos dele, julgamos entender que ele teria feito uma descoberta importante de quando das buscas que efetuou aqui. Isso não está escrito em lado nenhum. É só uma suposição. Sabe que dedicamos as nossas vidas à interpretação dos textos. Talvez seja uma deformação nossa, mas pensamos que aquilo que ele escondia diz respeito às origens da Bíblia. A minha pergunta é simples e direta: ele falou-lhe do assunto? Mostrou-lhe alguma coisa? Não sei... um objeto, um fragmento? Entregou-lhe? Levou-o consigo?

— Livra, para ser direto, não se pode ser mais! Chama a isso uma pergunta? É um interrogatório!

— Desculpe-me, Maya, fui desastrado.

— Bom, Jonathan. Adivinho o que sente. Penso que no seu lugar não seria mais habilidosa. Mas é a minha vez de lhe fazer uma pergunta.

Tirou do bolso o pequeno pedaço de papel amarrotado que encontrara na mão ao acordar. Entregou-lhe.

— Pode explicar-me o sentido destas inscrições?

O jovem olhou atentamente para elas.

— É a formulação do seu nome.

— Sim, isso percebi, mas qual é o significado?

— Conhece o método de abordagem da Cabala?

— Não, a arqueologia não me deixa muito tempo livre.

— Seria muito longo explicá-la pormenorizadamente. Em todo o caso, posso dizer-lhe que o que está aqui escrito destina-se a ajudá-la.

— Como?

— Bom, no nosso entender, as palavras são símbolos que dissimulam poderes importantes. Particularmente no caso dos nomes. No seu há uma potência de que não suspeita. A pessoa que escreveu isto para si procurou dar-lhe as chaves.

— Não foi você?

— Não, senão dir-lhe-ia. Mas quem o fez procura protegê-la.

— Muito bem, Jonathan, estou disposta a acreditar em você.

Quanto tempo é necessário para aprender a decifrar as palavras?

— Uma vida não chega.

— A minha arrisca-se a ser singularmente reduzida. Aceita dizer-me mais alguma coisa?

— Aceito, na medida dos meus modestos meios e dos meus conhecimentos.

— Finkelstein foi seu professor, não foi?

— Foi. Em Cambridge.

— Por conseguinte, sabe que ele formulou uma hipótese sobre a Bíblia, que tendia a provar que ela fora elaborada pelos Deuteronomistas e pelos partidários do Iavé único. Com efeito, o professor estava na posse de um fragmento de uma tabuinha. Guardava segredo sobre isso. Para ele, era um início de contrato que não chegava para fazer revelações dessa importância. Não tenho esse objeto. Desapareceu. Para ele representava um troféu, um fetiche, o coração da sua vida. Além disso, juntamente com o professor Friedmann, levamos muito longe as buscas sobre o túmulo de Josias. Mas em vão. Jonathan, se essa sepultura existe, não está aqui. O que o Texto Sagrado nos diz deve ser verdadeiro. Ele foi efetivamente transportado e enterrado em Jerusalém, de acordo com a promessa que Deus lhe fizera. Como pode pôr isso em dúvida?

— Nunca o fiz. Mas o que deciframos não se parece nada com o que pode ser interpretado por uma leitura profana. Quanto tiver tempo, explicar-lhe-ei. Já lhe prometi.

Maya acompanhou-o até à porta da escola. Pelo caminho, ele revelou-lhe o que podia para a ajudar.

— Obrigada, Jonathan. Talvez seja a solução.

Voltou a pegar no pedaço de papel e guardou-o apertado na mão.


 

Edward caminhava de um lado para o outro, esperando pela jovem. Viu-a chegar e foi ao seu encontro.

— Não tivemos muito tempo para falar. Tenho de estar em Telavive amanhã de manhã. As negociações começam às oito horas.

— Edward, a sua presença aqui foi de grande auxílio para nós. Se não fosse você, teríamos sido completamente ultrapassados. Como julga que a imprensa irá reagir?

— A morte de Olivia causou grande agitação. Não estão perto de largar o caso. Imagine: isso permite-lhes tecer todo o tipo de teorias. E se soubessem...

— Que sabemos nós precisamente, Edward?

— Nada, mas o seu amigo cabalista deve ter-lhe dito coisas essenciais. Que queria ele?

— Não queria grande coisa. Conhecer-me. É o sucessor de Jonathan. Eles estão preocupados com as revelações que poderíamos fazer sobre as origens da Bíblia.

— Também eles?

— Consagram a vida a esse texto.

— Sim. É estranho.

— Que quer dizer?

— Não sei. Porque não foi ele falar com Friedmann?

— Edward, que se passa consigo? É tudo em que pensa?

— Maya, inquieto-me por você. Não confio neles.

— No entanto, depois de todos estes dramas, é a primeira vez que me sinto protegida, graças ao saber deles.

— Ah, sim? E como?

—Não conheço os fundamentos da Cabala, mas o que adivinho deles parece-me correto. Eles conhecem melhor que nós as forças que enfrentamos. A cultura deles está no cerne daquilo que nos ameaça.

— Que lhe acontece? Onde está a jovem cientista lúcida e determinada? No entanto, você tem os pés bem assentes na terra. Não pode deixar-se embalar por essas tolices a esse ponto.

— Como pode ser desdenhoso! Os mortos não lhe chegam? Que lhe permite dizer que são tolices?

— Sabe perfeitamente que o texto de referência que eles usam é uma mistificação.

— Como?

— O Zohar, onde vão buscar toda a sua sabedoria, foi escrito em aramaico, para fazer crer que se trata de um texto antigo, quando, na realidade, foi redigido por um espanhol, um certo Moisés de Leão, no século XIII.

— Você reage como aqueles jornalistas que quando lhes explicam que a Bíblia talvez tivesse sido escrita apenas no século VII a.C. gritam que é uma escroqueria.

— Mas, enfim, Maya, uma coisa nada tem a ver com a outra!

— No entanto, Edward, o procedimento é semelhante. Pode tratar-se de aspectos essenciais da mística judia que certos grandes escritores e poetas reuniram a partir de histórias e de mitos, para comporem verdadeiros livros. Obras capazes de transformar a visão do mundo, a representação humana das crenças. Essa não é finalmente a força da Bíblia, do Zohar?

— Mas, nesse caso, que faz das suas buscas? Dessas vidas consagradas à verdade histórica, a sua, a de Friedmann, a de Finkelstein?

— Precisamente, digo para comigo que tudo isso é vão. Se abandonar tudo, este processo sinistro acabará imediatamente.

— Ah, sim? Num golpe de varinha mágica?

— Não troce, é bem possível. Tem outra solução? Venha comigo, vamos falar com Claude.

Foram ter com o professor, que passava pelas brasas na sua mesa de trabalho. Maya fez-lhe notar que o oitavo dia não tardaria a acabar e que não tinham feito nada para tentar salvar a próxima vítima. Friedmann entregou-lhes uma folha de papel.

— Penso tê-lo identificado. Tenho quase a certeza que é...

Pierre entrou nesse momento.

— Caro amigo, como se sente? — perguntou Claude.

Edward e Maya entreolharam-se, estupefatos.

— Mas... enfim... pensava que ele estivesse protegido — disse ela.

— Eu sei — disse Friedmann. — Pierre, você mentiu-me. Diga-me a verdade sobre a sua data de nascimento.

— Pensa que sou visado? Vou morrer? É isso?

— Pierre, é tempo de nos dizer o ano em que nasceu verdadeiramente. Talvez possamos ajudá-lo.

— Na realidade, nasci em 1936. É verdade que quis fazer-me passar por mais novo.

— Já suspeitava. Foi a 21 de Dezembro, uma segunda-feira, não é verdade?

— Creio que sim, Claude.

— Agora já sei. Falta o seu nome.

— Na verdade, pertenço a uma família judia da Polônia. Fui educado na tradição. Os meus avós eram rabis. Um deles chamava-se Aarão. No clã, o costume exige que o nome do irmão de Moisés se transmita saltando uma geração. O meu avô tinha esse nome e o primeiro dos meus netos deveria chamar-se também Aarão. Mas eu interrompi a cadeia, decidi chamar-me Pierre e tornei-me arqueólogo.

— Isso confirma os meus receios. Nas tabuinhas que encontramos no Iraque, o servo do deus que governa a Segunda da segunda lua chamava-se Aar. Pierre, a ameaça vai recair sobre si antes da meia-noite. Devemos permanecer imperiosamente juntos até essa hora.

Maya interveio:

— Claude, talvez haja um meio para o salvar.

Esmagado pelo que acabara de ouvir, Pierre sentara-se, de olhar perdido.

— Infelizmente, Maya, vai acontecer-me o mesmo que aos outros. Tudo me condena: as datas, esse nome.

— Precisamente, as letras hebraicas que o compõem podem ser a sua salvação.

— Explique-se, minha pequena — pediu-lhe o professor.

— Esta noite acordei com este pedacinho de papel na cova da mão.

Mostrou-lhes o tetragrama.

— Jonathan explicou-me que era uma fórmula cabalística destinada a proteger-me.

— Como assim? — inquiriu o professor.

— Ela deve permitir abrir uma porta antes que a morte ocorra.

— Mas nós já tentámos, pronunciámos o nome do deus caldeu. Não funcionou.

— Não era a boa fórmula. Foi precisamente isso que Jonathan me revelou: no meio da Cabala há um ritual secreto contra a maldição do santuário.

Cada vez mais céptico, Pierre ironizou:

— Ora, Maya! O famoso livro do Zohar foi escrito no século XIII e este santuário datado século VII a.C. Há dois milênios entre eles.

Claude interveio:

— Espere, Pierre, Moisés de Leão, o autor dessa obra, conhecia perfeitamente o aramaico. Pode ter tido acesso a documentos antigos, que desapareceram com a Inquisição. Prossiga: que lhe disse Jonathan?

— Aceitou revelar-me certos segredos. Para ele, o zodíaco dos Caldeus e os princípios da Cabala formam uma só coisa. Os seus Mestres ensinaram-lhe que quando os Elohim participaram na Criação, os deuses do zodíaco tinham-se reunido, formando um círculo que preencheram com a sua substância. E Deus criou o mundo a partir desse sêmen.

Pierre encolheu os ombros.

— Não vejo onde isso nos leva. Nunca sairemos desta.

— Deixe-a continuar — disse Claude, num tom seco. — Ela procura encontrar algo que contrarie aquilo que o espera.

— Nessa altura da Gênese, nasceram entidades secretas, que os cabalistas chamam Sefirotes. Segundo eles, estão ligados aos planetas que governam os dias na astrologia caldeia. Vejam, Jonathan forneceu-me a lista: o Sol chama-se Tipheret, e a Lua Jesod. Saturno, Marte e Mercúrio são chamados Binah, Geburah e Hod. Por fim, na Cabala, Júpiter e Vênus são os sefirotes Chesed e Netsach.

— Compreendo, mas como encontrar o nome que abrirá a oitava porta? — perguntou Claude.

— Não tenho bem a certeza, mas o modo como os sefirotes se inscrevem no círculo do zodíaco talvez nos revele o sentido das vinte e duas letras do alfabeto sagrado, tal como os vinte e dois capítulos do Apocalipse, cuja primeira versão encontramos aqui.

Edward, que escutava desde o início, perguntou:

— Quer dizer que cada câmara funerária é como um cofre-forte e que as vinte e duas letras hebraicas servem para encontrar a combinação para abrir as portas?

— De certo modo. Creio que se pronunciarmos em voz alta o nome das letras do alfabeto sagrado, conseguiremos mobilizar a força dos anjos. O que é preciso é transcrever em hebraico o nome que pensamos encontrar na porta.

— Se me tivessem dito que a ouviria um dia falar dessa maneira, nunca teria acreditado! — exclamou o professor.

— Pois bem, minha cara! — acrescentou Edward.

— Afinal, que arriscamos ao tentar? — concluiu Friedmann.

Caminharam em fila indiana ao longo do caminho embrechado e desceram um a um. Depois de terem traçado num pedaço de papel as letras hebraicas de AAR, colocaram-se diante da oitava porta. Em seguida, pronunciaram o nome das letras sagradas: Alef, Alef, Resh.

A porta abriu-se. Pierre ficara ligeiramente para trás. Os seus três companheiros voltaram-se, ele estava bem vivo. As três letras estavam gravadas na rocha.

— Extraordinário! — exclamou o professor. — Bravo, Maya! Orgulho-me de você! Pierre, parece-me que está salvo.

Olhou para o seu relógio. Faltavam cinco horas para a meia-noite.

 

Ficaram juntos para melhor esconjurar o destino. O oitavo dia ia chegar ao fim e eles triunfariam da maldição.

— Quem me esgotou completamente foi John Cinghart do Washington Post — disse Pierre. — Mostrou uma má fé insensata, afirmando coisas falsas com uma desfaçatez incrível. Para acalmá-lo, prometi-lhe que falaria com ele ao telefone esta manhã.

— O quê? Tem de telefonar ao Cinghart? — perguntou Edward.

— Está doido, esse tipo é o Maquiavel em pessoa.

— Meu caro, não tinha outra opção.

— A que hora deve contatá-lo?

— As... Enfim, quero dizer...

— Sim?

— Tenho de falar... às...

Maya inquietou-se:

— Pierre! A que hora ficou de lhe telefonar?

— Mas, já lhes disse... às... enfim, percebem...

— Não, Pierre, não percebemos. Diga-nos simplesmente: quando?

— Mas... bom, pois é...

Pierre parecia ter perdido a capacidade para dizer certas palavras. Nos minutos que se seguiram, a sua linguagem desarticulou-se completamente, como se a memória central do seu vocabulário se esvaziasse.

Claude olhava para o seu amigo. Estava lívido. Exclamou:

— Foi salvo por uma palavra, mas perdeu todas as outras!

Frédéric juntara-se-lhes. Observou Pierre e fez-lhe os primeiros testes neurológicos. Explicou:

— Penso que teve um ligeiro acidente cerebral na zona esquerda do lóbulo temporal, que gere a função da linguagem. Vou injetar-lhe imediatamente um anticoagulante.

Pierre sorria para eles.

— Mas, sinto-me muito bem. Porque me olham dessa maneira?

— Pierre, sabe dizer-nos que dia é hoje?

— Evidentemente. O... O dia, enfim... hoje.

Soltou uma gargalhada.

— Segunda-feira! — exclamou Maya.

— É isso! É isso!

Frédéric voltou e deu-lhe uma injeção intravenosa. O professor olhou para o relógio. Era meia-noite e dez. Ergueu a cabeça.

— Está vivo.

— Está vivo — repetiu Maya. — Conseguimos.

O médico levou a jovem para o exterior da tenda.

— Não se regozijem depressa demais. Este tipo de sintoma é por vezes benigno, mas também pode ser um sinal antecipado de um desregulamento mais grave.

— Como saber?— Não lhe posso responder assim. O que parece claro é que já não estamos no quadro de uma maldição, pois o nono dia começou e ele continua aqui. Por outro lado, segundo a correspondência corporal com o seu signo zodiacal, o joelho é que devia ter sido atingido, o que não é o caso.

— É verdade. Dir-se-ia que a mensagem vinda da Cabala deslocou o curso das coisas. A ameaça já não recai sobre as nossas vidas, mas sobre algumas das nossas funções. Pontos essenciais e sagrados, tais como a linguagem.

— Assim parece. Mas não sejamos demasiado otimistas. Atrás destas aparências, é a vida que está em jogo. No caso de Pierre, amanhã arriscamo-nos a encontrá-lo paralisado ou morto.

— Frédéric, se é isso que pensa, devemos transportá-lo imediatamente para o hospital.

Inconsciente do perigo, Pierre não queria acompanhá-los. Não parava de repetir:

— Mas eu sinto-me bem.

Friedmann interveio:

— Basta! Não pode correr o risco de despertar encerrado num lock-in syndrome. Frédéric vai acompanhá-lo ao hospital. Tem de fazer um raio-x. Não posso perdê-lo.

Partiram para Telavive. Edward acompanhou-os. Pediu desculpa a Maya. Lamentava a sua reação sobre Jonathan. Ela pegou-lhe nas mãos e beijou-as.

 

Claude e Maya tinham-se sentado à luz das estrelas. Ele falou-lhe de uma tese enviada por uma das suas antigas alunas. O título era Adivinhação, Horóscopo e Astronomia na Cultura Mesopotâmica. Acabara num livro intitulado A Escrita Celeste.

— Já cheguei quase ao fim, é apaixonante. Entrego-lhe amanhã, logo verá. Essa mulher participou nas últimas obras efetuadas no Iraque. Isso coaduna-se com o nosso trabalho.

— Claude, pensa que poderemos compreender a escrita das constelações?

— Se não conseguirmos, elas formarão a nossa sepultura. Mas Maya, que tem? Está diferente desde há dois dias. Há qualquer coisa em você que me escapa.

— Não, Claude, não é disso que se trata.

— Pode falar comigo. É essencial que digamos tudo um ao outro.

— Na realidade, não tenho bem a certeza. É sem dúvida um detalhe.

— Maya, deixe de ser criança!

— Pois bem, observei um fenômeno estranho.

— De que natureza?

— É negro... difícil de descrever. Aquela matéria de que é feito o muro negro...

— Sim...

— À medida que a limpamos, a pedra utilizada para as estelas torna-se idêntica à desse muro. A cor sombria brilha cada vez mais. É uma espécie de matéria cintilante.

— Sim, dei por isso. E depois?

— Penso que está em mutação.

A expressão do professor alterou-se. Após um silêncio, prosseguiu:

— Não prestei atenção. Pode ser o contato com o ar depois de tantos séculos passados debaixo de terra. Mas não está a pensar noutra coisa?

— Tocou nela?

— Não.

— O contato é demasiado polido, quase macio. Não se sente qualquer aspereza. Não é nem a frieza do mármore nem a dureza do metal. Dir-se-ia cristal de rocha.

— Mas é impossível, seria transparente.

— É precisamente isso que tento explicar-lhe, professor. Pergunto a mim mesma se esses blocos não estarão a tornar-se translúcidos, tendo sob eles uma espécie de líquido escuro.

Friedmann estava perdido nas suas cogitações. Por fim, disse:

— Repare, isso corresponderia à concepção dos magos caldeus. Eles acreditavam que a terra assentava numa massa de água que representava as trevas, o negativo do céu. Mas uma construção dessas parece impossível... Vamos ver. Sente-se com forças para me acompanhar?

— Com certeza, não temos tempo a perder.

Ambos pegaram em lâmpadas e desceram à cripta. Chegados à primeira câmara, pousaram-nas perto da esteia. Maya estendeu-se com o rosto colado ao piso para tentar ver através dele. Passado um momento, soltou um grito e levantou-se bruscamente.

— Claude! Há mesmo uma espécie de líquido por baixo! Creio que há um corpo a flutuar nas águas.

Lançou-se nos braços do professor, com todo o corpo a tremer. Ele levou-a para a estender na cama.

— Vou passar esta noite junto de si. Agora tem de dormir. Amanhã logo veremos. Procure expulsar essa imagem. Estou aqui.

 

O hotel Hilton estava em efervescência. Todas as conversas giravam em torno do assassínio da jornalista. Tornara-se “o caso da Bíblia”. Os jornais empolavam o assunto com títulos cativantes: “O Antigo Testamento: um embuste”, ou “O povo judeu: uma ficção literária”. Declinavam-se as mais loucas extrapolações.

A morte de Olivia era objecto de uma investigação internacional que punha em perigo as negociações para a paz. Outros artigos começavam a relatar os desaparecimentos misteriosos, evocando a sua ligação com a estação arqueológica de Megido e as eventuais descobertas em torno dos textos sagrados.

Reinava uma atmosfera de apocalipse. Seitas pretendiam dirigir-se em peregrinação à terra do Armagedon. Instalava-se a maior confusão. Os diplomatas faziam todos os esforços para procurar restabelecer a calma, mas isso não interessava a mídia. As imaginações estavam em incandescência e nada parecia poder apagá-las.

Leo Sapersteen conversava com Jérôme de Lambert, procurando uma maneira de tranqüilizar os ânimos, mas nenhuma voz parecia suficientemente forte para se fazer ouvir. Quem, aos olhos do mundo, possuía uma legitimidade suscetível de fazer frente a estes eventos e ao seu sopro místico, esotérico?

Edward ligou a Maya para mantê-la informada.

— Acordei-a?

— Não. Está bem. Que se passa?

— É preciso prevenir o professor. A imprensa desencadeou um maremoto. Vocês vão assistir à chegada de toda a espécie de seitas, de curiosos, para não falar dos jornalistas. As autoridades estão em estado de alerta, é preciso contatá-las para controlar a situação, estabelecer uma zona fechada para os proteger. Há notícias de Pierre?

— Não. Mantêm-no no hospital até esta noite. De qualquer modo, no estado em que está não pode ajudar-nos. Vamos fazer todos os possíveis. Obrigada por nos ter prevenido, Edward.

— E você, Maya, como está? Acho a sua voz esquisita.

— Não é nada. Depois explico-lhe. Beijinhos.

Claude adormecera numa poltrona perto da cama dela. Maya acordou-o. Saíram e viram chegar caminhões do exército israelita. Falaram com os oficiais sobre a instalação de um dispositivo de segurança. Os soldados colocaram barreiras de modo a impedir o acesso à estação arqueológica.

As autoridades e o próprio papa tinham condenado os excessos da imprensa, apelando aos cientistas para que fossem mais reservados.

Os peregrinos começavam a amontoar-se diante das barreiras. Responsáveis de diversos movimentos pediam para ter um encontro com o professor Friedmann. Havia mormons, cientologistas, testemunhas de Jeová; um importante banqueiro de Salt Lake City propôs uma ajuda financeira.

A multidão reunida no local das escavações impacientava-se, provocando disputas com os militares; outros permaneciam imóveis, rezando. Apesar de protegidos, os membros da equipe sentiam a tensão crescer. Claude dirigiu-se-lhes:

— A oitava câmara foi aberta e aquele que devia morrer sobreviveu. Era o Pierre. Frédéric teve de levá-lo para o hospital para efetuar exames. Deverá estar de volta esta noite. Posso tranquilizá-los: segundo os médicos, corre tudo bem. Descobrimos um protocolo que permite suspender o mecanismo fatal, mas não estamos seguros dos seus efeitos a longo termo; eu e Maya vamos tentar abrir as quatro portas que nos separam da décima segunda câmara. Entretanto vocês vão formar dois grupos. O primeiro continuará a limpar as tabuinhas do Apocalipse. O segundo explorará o subsolo do santuário. Julgámos detectar uma matéria translúcida na rocha utilizada para as estelas. A construção parece ter sido edificada sobre um lago repleto de um líquido escuro. Temos de determinar o que é. De qualquer modo, é debaixo de terra que estaremos mais tranqüilos para trabalhar.

Desceram para a cripta. Maya devia contatar o mais depressa possível Mansour e Jonathan, para determinar os nomes secretos das câmaras fechadas.

 

Frédéric conversava com o neurologista no hospital de Telavive. O diagnóstico de Pierre fora estabelecido: tivera um enfarte cerebral na zona esquerda do cérebro, que comanda a linguagem. A lesão era benigna, mas os sintomas espantavam o especialista.

— Nunca vi uma lesão tão localizada — disse a Frédéric. — Aparentemente as palavras que ele não consegue formular só dizem respeito aos parâmetros relacionados com o tempo. Ele procura os dias, as datas, as horas, o resto parece funcionar.

— Caro colega, pensa que ele pode ter alta e retomar uma atividade normal?

— Não vejo inconvenientes. Continue com o tratamento anticoagulante. Dê-lhe um betabloqueador e, evidentemente, está completamente proibido de beber álcool ou de fumar. Cuidado com a alimentação e o stress. Mas você sabe isso tudo. Faça-lhe alguns exercícios ortofônicos. Se quiser partir já, pode ir.

 

No momento em que Claude se preparava para se juntar a Maya para ir à escola cabalista, Rajan chegou.

— Desculpe-me, professor, está aqui John Cinghart, do Washington Post. Insiste em falar consigo. Não sei como me livrar dele.

— Deixe, eu trato disso.

Cinghart era um homem sedutor, mas tinha uma maneira desdenhosa de olhar para os outros. Friedmann propôs-lhe que fossem beber um café ao refeitório.

— Diga.

— Sinto muito de o incomodar, mas esta manhã tinha uma entrevista marcada por telefone com Pierre Grün. É impossível contatá-lo. Espero que não lhe tenha acontecido nada...

— Não, mas estamos todos cheios de trabalho. Aqui, é ele que gere toda a logística. Não tem tempo para o atender.

— Professor Friedmann, o senhor tem consciência do eco que as suas recentes descobertas provocaram na mídia. Pode confirmar que elas põem em causa a nossa concepção das origens do monoteísmo?

— Para dizer a verdade, ainda não possuímos fatos comprovados que abonem nesse sentido. Porém, as hipóteses segundo as quais o Livro Sagrado seria muito mais recente do que se julgava tornam-se verossímeis.

— Para si, isso altera o seu significado?

— Não propriamente. Já há vários anos que eminentes especialistas da Bíblia notaram a coerência estilística do Deuteronomio. Suspeitavam que esses escritos não tinham sido encontrados por Josias, mas redigidos durante o seu reinado.

— Eu sei, professor, li o livro de Richard Eliot Friedman, Quem Escreveu a Bíblia? E um dos seus parentes?

— Não. O meu nome escreve-se com dois N.

— Mas as suas buscas não se arriscam a pôr em causa a legitimidade das reivindicações do povo judeu sobre este território?

— Caro amigo, não vejo qual a ligação. A existência do Estado de Israel tem um fundamento histórico, ligado à última Guerra Mundial. Uma ordem geopolítica decidida pelas Nações Unidas em 1948. Os meus trabalhos incidem sobre o impacto da civilização caldeia no século VII a.C. Como pode estabelecer uma ligação entre as duas coisas?

— Não sou eu que o faço, professor, é a opinião pública. Hoje, entramos numa nova forma de guerra de religião. As crenças, o seu impacto simbólico, levam a melhor sobre os esquemas clássicos.

Claude sentia a cólera crescer.

— Ora, Cinghart, não me venha com essa conversa! O mundo está empenhado em negociações militares e econômicas decisivas. O sucesso ou o fracasso do road map depende exclusivamente desses parâmetros. Você sabe-a melhor que ninguém. As nossas investigações científicas não têm nada a ver com isso! Trata-se apenas de uma comparação malsã, uma manchete para fazer vender papel, sem qualquer ligação com a triste realidade dos fatos. É circo mediático e ponto final.

— Não digo o contrário. Não tenciono seguir os passos dos meus colegas. Acho desoladora a forma como se comportam. É por isso que queria falar consigo.

— Bom, nesse caso que estamos aqui a fazer, perdendo o nosso tempo?

— Professor, queria mostrar-lhe uma coisa.

Cinghart passou-lhe o seu celular. Na tela estava escrito: “Restam-lhe dois dias.” Claude ficou calado, lembrando-se do aviso de Edward sobre a perversidade do seu interlocutor. O jornalista podia muito bem estar na posse de informações e ter ele próprio criado aquela mensagem.

— Quando recebeu esse aviso?

— Anteontem.

— Qual é a sua data de nascimento?

— Desculpe?

— Em que dia nasceu?

— A 21 de Outubro de 1958.

Friedmann tirou do bolso o esquema que elaborara. Naquele ano, o 21 de Outubro calhava numa terça-feira.

— O seu nome é um pseudônimo, não é?

— É — confirmou o jornalista, surpreendido.

— Qual é a sua verdadeira identidade?

— Cyril Abanassiev. Os meus pais eram de origem russa. Mas isso não era o ideal para trabalhar nos Estados Unidos e, consequentemente, optei por outro nome.

O professor estava inquieto. O servo de Arah-Samma, o Senhor da Terça, chamava-se Abanasu. Se o jornalista duvidasse de qualquer coisa, porque não escrevia um artigo, antecipando-se a todos os seus outros colegas? As coincidências eram muitas. Ele era sem dúvida a vítima do nono dia. Claude hesitava. Devia protegê-lo ou deixar o tempo agir?Maya entrou nesse momento.

— Apresento-lhe John Cirnghart. Na realidade, chama-se Abanassiev, como o nome caldeu Abanasu. Nasceu a 21 de Outubro de 1958, uma terça-feira, como verifiquei. Anteontem recebeu uma mensagem no seu celular: “Restam-lhe dois dias.”

Cinghart ficou paralisado perante aquela estranha apresentação. Não sabia que postura adotar.

— Bom dia, menina. Trabalho para o Washington Post.

— Sim, estou ao ciente.

Maya estendeu-lhe a mão. Ela olhou para Claude, não sabendo o que fazer. Voar em socorro daquele homem? Ou seria uma ratoeira montada pelo jornalista mais perverso de todos os que ali vinham?

— Como interpreta essa mensagem, senhor Cinghart?

— Precisamente, não a entendo. Não há qualquer dado que acompanhe este SMS, nem sobre a sua fonte nem sobre o momento em que foi enviado.

Maya prosseguiu.

— Porque teve a idéia de mostrá-lo a nós?

— Nas redações circulam rumores segundo os quais vocês teriam recebido ameaças semelhantes, bem como pessoas que vos são chegadas. Algumas já terão morrido, como a minha amiga Olivia de Lambert. Penso que também sou visado. Não sei por quem. Talvez me possam tirar desta situação.

— Ah, sim? E como? Claude, que pensa?

Friedmann decidiu pôr termo à conversa.

— Senhor Cinghart, eu e Maya temos de nos ausentar. Pode esperar-nos aqui?

— Tenho outra escolha?

— Para dizer a verdade, não creio — respondeu-lhe o professor.

 

Maya seguiu Claude pelo caminho que levava à escola cabalista. A situação era confusa. Cinghart dizia a verdade? Seria a nona vítima? A sua morte causaria uma nova vaga de choque mediático que poria em perigo os trabalhos na estação arqueológica. Preferiam não pensar nisso.

Com a ajuda dos mestres da Cabala, era preciso encontrar a fórmula que permitisse impedir esse sacrifício. No quadro negro do céu estavam projetadas as três últimas mortes anunciadas: a de Edward, no décimo primeiro dia e, depois, as deles.

Mansour e Jonathan esperavam-nos. Percorreram um labirinto que dava para uma biblioteca circular repleta de pergaminhos.

— Folgo por tornar a vê-los. Suponho que a vossa visita não é alheia às perguntas que fizeram a Jonathan.

— Obrigado pelo seu acolhimento, Mestre — respondeu Friedmann. — Com efeito, a vossa ajuda é indispensável.

— Prossigam, escuto-os.

— Descobrimos, nas fundações de Megido, um santuário em forma de zodíaco, formado por doze câmaras funerárias, construído por sacerdotes caldeus. Contém uma grande quantidade de tabuinhas onde está gravado uma espécie de alfabeto cuneiforme. Podemos decifrá-las: são os versículos de um apocalipse datado dessa época.

— Sim — respondeu Mansour — pensamos que encontrariam aquilo que na nossa tradição chamamos “O Círculo do Armagedon”.

— Conhecem a sua existência?

— A nossa escola instalou-se aqui porque esse santuário é mencionado nos nossos textos fundadores como sendo a origem da nossa confraria.

— Quer dizer que a vossa escola existe há vinte e seis séculos?

— Sim, precisamente. Contar-lhes-ei isso tudo uma outra vez. Agora cada minuto que passa é precioso.

— É exato — interveio Maya. — Quando estive com Jonathan, mostrei-lhe este papel, com o meu nome escrito em tetragrama. Seguimos as suas instruções para abrir a oitava porta e conseguimo-lo, impedindo a morte de Pierre Grün. Pronunciamos o seu nome secreto, Aar, soletrando-o: Alef, Alef, Resh. E a porta abriu-se, poupando-lhe a vida.

— Ele não sofreu nenhuma perturbação? — perguntou Mansour.

— Sim, perdeu uma parte da sua faculdade de elocução — respondeu Maya.

— Qual?

— Não sabemos com exatidão. Mantê-los-emos informados.

— Por ora, o mais urgente é evitar o próximo sacrifício. Identificaram a pessoa que está em perigo?

— Identificamos — respondeu Friedmann. — Enfim, não estamos completamente seguros.

— Não percam tempo. É preciso intervir antes de uma certa hora, pronunciar um certo nome. Identificou o nome secreto dele, professor?

— Identifiquei. É Abanasu, servidor do Mestre do Escorpião.

— Está certo — disse o Grão-Mestre, olhando para Jonathan. — Eis a fórmula que devem pronunciar.

Mansour traçou as letras hebraicas numa folha de papel.

— Pronunciem-nas como fizeram para Aar. Despachem-se, talvez já seja demasiado tarde.

 

O local das escavações estava invadido pela multidão. As barragens militares impediam os transbordamentos. Regressaram para buscar Cinghart, mas ele já não estava. Pierre e Frédéric, que tinham voltado há vinte minutos, não o tinham visto.

— Claude, desçamos já — pediu Maya.

Nas catacumbas, a nona porta estava aberta. Cinghart devia ter morrido. Mas, nesse caso, onde estava o seu corpo?

Karl juntou-se a eles. Trabalhava com a equipe encarregada de sondar o subsolo.

— Professor, segundo os testes que efetuamos, existe efetivamente um lago sob esta arquitetura. Mas não conseguimos lá chegar para analisar o líquido que o constitui. Entrevemos formas, semelhantes a corpos, flutuando nessas águas escuras. Talvez sejam estátuas, ou imagens projetadas por meio de um processo desconhecido. Só os distinguimos através da rocha translúcida das esteias. É muito difícil determinar.

— Retomem as sondagens — respondeu Claude.

Friedmann e Maya começaram a limpar o nono pavimento. Apontaram as lâmpadas para iluminar a superfície. Depois estenderam-se, perscrutando o que se escondia naquelas profundidades. Lentamente, apareceu uma forma. Parecia emergir das trevas. Os contornos desenhavam-se progressivamente. Um corpo encarquilhado, como um feto. Quando a massa estava prestes a tocar na estela, estabilizou-se, começando a girar sobre si mesma. Depois, desdobrou-se. Um rosto, de olhos grandes e abertos, remontou à superfície. Claude e Maya levantaram-se repentinamente, apavorados. Entreolharam-se, cada um procurando encontrar nos olhos do outro a força para prosseguir.

— Professor, viu a mesma coisa que eu? Não enlouqueci?

— Não, Maya. É aterrador. Como se sente?

— Já vai passar. De qualquer modo, se é efetivamente o morto do nono dia, não se trata de Cinghart. Ele mentiu-nos, impedindo-nos de salvar a verdadeira vítima. Viu aquele rosto?

— Vi, Maya. Mesmo que não o conheçamos, não me vou esquecer dele tão cedo.

Regressaram ao ar livre. Pierre e Frédéric esperavam-nos.

— A porta abriu-se? — perguntou o médico.

— Abriu, mas não sabemos quem é a vítima.

— Cinghart? — inquiriu Pierre.

— Não, não é ele.

— É... talvez seja... enfim, logo saberemos... como vêem!

— É isso, Pierre. Vemos muito bem. Vá descansar.

 

Leo Sapersteen, Edward e Jérôme de Lambert encontraram-se para o almoço. Deviam definir uma posição comum face à mídia. Sapersteen abriu a conversa:

— Faço questão de lhe dizer que estou ao seu lado nesta prova terrível. Farei tudo o que puder para que o autor deste crime odioso seja punido.

— Obrigado, Leo. Amanhã, voltamos a Paris para o funeral. A opinião pública francesa está sob o efeito do choque.

— Eu sei. Vamos ter de suspender as negociações e esperar por um clima mais favorável. Até lá, forneceremos alguns elementos à imprensa para pôr termo às especulações. Os nossos relatórios são formais. Você foi o primeiro a ser informado. O jipe de Olivia foi alvo de um atirador isolado. Identificaram-no e detiveram-no. É um membro dissidente do grupo dos Fundamentalistas, que a sua filha investigava. Tem só dezanove anos. Juntou-se a eles há alguns meses. Vivia na França, nos subúrbios de Marselha. Segundo as minhas informações, agiu só. Mas — quem sabe? — talvez tenha sido teleguiado por outras redes...

— Onde está agora? — perguntou Lambert.

— Está a ser interrogado pelas autoridades israelitas.

— Pedi ao meu advogado que viesse. Talvez esse indivíduo possa ser ouvido pelas autoridades francesas.

— Muito bem. Edward, você verá tudo isso com ele.

— Sim, senhor embaixador. Penso que esta informação deverá desfazer os rumores sobre um complô no qual participaríamos. Em Washington pedem-nos para reafirmar a nossa posição: avançar exclusivamente sobre o terreno da democratização do Médio Oriente.

— Com efeito, tudo isto os enerva. Querem simplesmente comunicar procurando uma base sólida para organizar eleições democráticas em todos esses países.

— Sim, mas a herança é pesada — respondeu Lambert. — Aqui, tudo depende dos recursos petrolíferos. A democracia reveste a figura do diabo, particularmente do lado religioso. Bem sei que a maioria aspira a um modo de vida diferente, que a tire da miséria. Mas isso vai levar tempo. Vejam o que se passou.

— Estou perfeitamente consciente disso, Jérôme, mas temos de fazer os mesmos esforços que fizemos para nos aproximarmos da Síria, mostrar à opinião pública a nossa vontade de nos desembaraçarmos desses regimes, que a maior parte do mundo já não quer.

— Restabelecerei os fatos. Falarei à imprensa. Mas e quanto a este caso de Megido? Olivia parecia intrigada pelo que se passava à volta dessas buscas arqueológicas.

Sapersteen fez sinal a Edward, que tomou a palavra:

— Estamos perante um fenômeno que nos escapa. Ele apresenta-se como uma maldição. Mas encontramos indícios de outra natureza, tais como certas mensagens em celulares, semelhantes àquelas que a sua filha recebeu. Há certamente pessoas bem reais por trás disso tudo e, de modo algum, entidades metafísicas, como pensam os arqueólogos. As nossas equipes talvez estejam prestes a identificar a fonte.

— Mas, por ora, não sabem nada de preciso?

— Não. Só temos suspeitas.

 

Friedmann estava só e pensativo. O desencorajamento ia tomando conta dele diante das pilhas de tabuinhas que se acumulavam na sua mesa de trabalho. Mais nada parava o processo fatal. O nono morto adquirira traços anônimos. Pierre estava em pena suspensa, mas por quanto tempo? Restavam três dias. Que elo havia entre todas aquelas vítimas? Quem agia? Com que finalidade? Claude perdera qualquer certeza. O seu cérebro já não era senão um túnel, sem luz para lhe iluminar o caminho. Perdido, contemplava aquelas pedras gravadas. Relia os seus apontamentos, comparando-os com os diferentes apocalipses.

O de João era composto por vinte e dois capítulos, correspondendo às vinte e duas letras do alfabeto hebraico. A primeira parte compreendia as “Cartas às sete igrejas da Ásia” e dizia respeito às quatro primeiras letras do alfabeto, cobrindo assim a criação do mundo e os seus elementos: o fogo, a água, o ar e a terra. A segunda parte, a das “Visões Proféticas”, começava pelo capítulo intitulado: “A visão do trono da majestade divina”. Claude contou-os. Havia efetivamente doze. O último era aquele que os ameaçava.

Devia haver naquelas tabuinhas uma numeração secreta que lhe permitisse identificar esse capítulo. Claude levantou-se e começou a examinar os colofões, esses espaços reservados onde os escribas gravavam os seus nomes fazendo-os acompanhar por diversas indicações, por todo o tipo de advertências ameaçando aqueles que lessem esses textos de perderem a vista, pois eles relevavam de uma tradição secreta. Só os iniciados podiam tomar conhecimento deles. A visão do professor confundiu-se. Alguns signos eram demasiado pequenos. Pegou na lupa e viu surgir a numeração de cada um e o incipit do seguinte. Levantou vários blocos de terracota e encontrou aquela em que estava inscrito o número doze do décimo segundo dia. No final do texto, o nome Armagedon estava traçado a letras hebraicas. Era formado por doze letras: HAAR-MAGEDDON. As quatro primeiras significavam a montanha, a colina, e as oito últimas, o local: Megido.

Friedmann compreendia por que motivo João escrevera: E os congregaram no lugar que em hebraico se chama Armagedon, simplesmente porque era o único nome redigido em hebraico.

“É isso mesmo”, pensou. “A maldição repousa no coração desta palavra. Cada vítima é designada pelo dia, pelo mês, pelo ano de nascimento, associados ao seu apelido, ao seu nome e à sua redução numerológica.” Lembrando-se dos corpos entrevistos sob as estelas, compreendeu que os deuses os utilizavam para traçar as letras daquele apocalipse.

Só o Grão-Mestre da Cabala podia impedir aquele alfabeto macabro de se fechar.

Maya veio ter com ele.

— Veja — disse-lhe — creio ter encontrado nesta tabuinha a chave para compreender o que nos acontece.

Ela pegou no bloco e, no meio das escritas cuneiformes, pôde ler as doze letras hebraicas.

— Está vendo, cada uma representa um dos dias passados e um dos dias seguintes. As divindades servem-se de nós, dos nossos corpos, para inscrever esse nome, Haar-Mageddon, reduzindo-nos à função de signos, de letras do alfabeto.

— E nós seríamos as duas últimas?

— Não vejo outra explicação. A única hipótese que temos de sobreviver é consultar de novo Mansour. Imediatamente.

Levaram o objeto para mostrá-lo ao Grão-Mestre.

— Conseguiram suspender o nono sacrifício? — perguntou-lhes este ao recebê-los.

— Infelizmente já era tarde demais — respondeu-lhe Friedmann.

— Era o que eu temia.

Avistou a tabuinha.

— Encontraram alguma coisa?

— Isto — disse o professor, entregando-lhe o bloco de argila.

Com um sorriso enigmático, ele leu as inscrições.

— Pois bem, cá estamos.

Sentiram que Mansour dominava a sua emoção.

— Está surpreendido, Mestre? — perguntou-lhe Maya.

— Não, mas o que tenho nas mãos graças a vocês representa muito para nós, para mim.

— Como devemos proceder? — prosseguiu ela.

— É extremamente complexo. Precisam do Conhecimento.

— Mas isso levaria muito tempo, não é? Não pode agir através de nós?

— Querem que eu substitua Deus? Ora, sejam sensatos.

Ela perturbou-se.

— Desculpe-me. Procuro.

— Bom. Vamos tentar encontrar, avançar juntos, queimar as últimas etapas.

— Muito bem — disse Friedmann.

O Grão-Mestre prosseguiu:

— O que encontraram no subsolo de Megido não é senão o Calendário divino. Ele indica-nos que a primeira obra de Deus foi misturar todas as essências zodiacais. Normalmente, se quisermos reproduzir o gesto divino, temos de esperar pelo percurso do Sol à volta dessas doze constelações, ou seja, um ano, onde Ele levou sete dias.

— Estaríamos mortos há muito tempo — murmurou Maya.

— Tem razão — prosseguiu Mansour. — Portanto, temos de agir de outra maneira. Concentrem-se e ouçam atentamente o que lhes vou dizer. Em cada ser humano há uma capacidade de fulgurância mental: reduzir o tempo, viajar no espaço do cérebro, comprimindo os meses, os dias, as horas, os minutos. Fazer da quintessência de um ano um breve instante. Fechem os olhos. Fixem a vossa mente no ponto luminoso que ilumina do interior os vossos olhos fechados.

O professor pegara na mão de Maya.

— Estamos prontos — anunciou.

Lentamente, o Grão-Mestre pronunciou as seguintes palavras:

— Deixem passar os doze signos do zodíaco que surgirão, um de cada vez, na roda do vosso espírito e captem a sua substância. Deixem entrar os sefirotes.

Eles permaneciam imóveis, como que em meditação.

— Agora são guiados pelo vosso propósito, tal como o Senhor seguiu o Seu na criação. Não somos senão minerais, semelhantes aos do primeiro dia, mas no último devemos juntar-nos ao nível dos deuses criadores, que governam o universo, deixando o Senhor descansar. Para a Cabala, restam três dias. O que estamos a viver neste instante é a sua preparação. No final do último dia, a Grande Noite descerá e tudo será aniquilado. Então, teremos de agir. Pedireis conselho à Noite.

— Quer dizer que isso deverá acontecer durante o nosso sono? — perguntou Maya.

— Sim, é durante ele que tudo deverá advir. Têm de chamar o vosso Anjo para que ele venha soprar-lhes ao ouvido a palavra a pronunciar. Depois, reencontrareis o sono, num espírito de clareza. E no dia seguinte, ao despertar, tereis a resposta.

— E como reconhecer o Anjo?

— E o septuagésimo segundo que se apresentará no seu coração, Maya: chama-se Mumiah. O seu, caro professor, é o primeiro, o senhor desses exércitos: Gabriel.

 

Pierre e Frédéric saíram do santuário. Tinham estudado a rocha translúcida e as formas que flutuavam no líquido opaco. Enfraquecido, Pierre ficara transtornado por aquela visão. O médico fê-lo caminhar à volta do sítio.

— Quando penso que devia estar metido num... num... carrinho... enfim, percebe.

— A esta hora, é verdade. É isso?

— Sim. Exatamente.

— Não devia tê-lo feito descer. Tem de evitar o stress.

— Não é o local ideal para isso. Mas como dizer-lhe, caro... doutor? Sinto amizade por você... Agradeço-lhe por se ter ocupado de mim. Se não fosse você, não sei... percebe, não percebe? Vou curar-me?

— Sabe, deve começar por agradecer ao Claude e à Maya. Penso que foi a obstinação deles e os seus estranhos rituais que o salvaram.

— É verdade, doutor, aquelas palavras tão estranhas... não se percebe... A propósito, onde estão eles?

— Creio que voltaram para junto dos cabalistas. Hoje o processo parece ter falhado.

— Quer dizer que ele... morreu?

— O nono? Sim, temo bem que sim, não puderam evitá-lo.

— Sabe-se quem é?

— Não. A porta abriu-se. Além disso, creio que avistaram o rosto de um desconhecido através da estela.

— Mas, Frédéric, julga mesmo que... são verdadeiros mortos que vemos através... que matéria é?

— Pierre, não faço a menor idéia. Nunca vi uma coisa assim. Dir-se-ia blocos de pedra de lava ou cristal negro com veios. Quanto aos corpos que entrevimos, não faço idéia. Talvez seja um sábio efeito de óptica. Uma espécie de passe de magia inventado pelos oráculos a partir da imagem de uma escultura. É difícil de interpretar. Mas a idéia que possam ser verdadeiramente as vítimas... não. insensato. Só de pensar nisso... No entanto, é efetivamente um corpo de criança que parece repousar sob a primeira.

— Mas, aliás, há uma forma sob a... enfim... a mistela... não, não é isso, sob a...

— A oitava estela, a sua, é isso?

— Sim, sim...

— Com efeito, há um corpo. Devia ser o seu.

— Pare. É horrível. Reparou? Como dizê-lo? Essas formas são um pouco como dançarinos, em estranhas posturas.

— É verdade. Aliás, isso chamou-me a atenção. Veja, desenhei alguns esboços no meu caderno.

Pierre observou atentamente os desenhos. Subitamente, empalideceu, começou a tremer.

— Acalme-se — pediu-lhe o médico. — Disse-lhe para ter cuidado.

Pierre levou Frédéric para o refeitório, arrancou uma folha do caderno e começou a redesenhar os contornos, simplificando-os.

— Veja, Frédéric. Parecem letras hebraicas.

— Tem razão. Mas, primeiro temos um problema concreto a resolver: não conseguimos furar as paredes das câmaras, nem o solo.

— Devíamos aceitar a proposta do banqueiro mórmon que Edward nos enviou. Está disposto a financiar as nossas investigações. Isso permitir-nos-ia avançar. Penso na nossa... ruptura...

— O nosso futuro, é isso?

— Sim, bom, percebe...

— Pois bem, em todo o caso, Pierre, tudo isto ajudou-o. Mas para a Maya e para o professor o tempo escasseia. A data fatídica é sexta-feira. Estamos na terça, e portanto...

— Ah, estamos... já... Não sei, já não consigo representar-me... as flores...

— Quer dizer os dias? É isso?

— Sim, evidentemente.

— O neurologista tinha razão. A sua amnésia é muito específica, só diz respeito aos vocábulos que têm a ver com as horas, os dias, os meses, os anos.

— Quanto...

— Quanto tempo pode durar? Ouça, Pierre, você está a fazer progressos constantes, tudo deverá arranjar-se. Vou examinar a proposta do banqueiro.

— E eu tenho de ligar ao jornalista do Washington Post. Tinha-lhe dito que... enfim, prometi-lhe.

— Está a falar de John Cinghart? Veio cá esta manhã.

— Falou com alguém?

— Creio que com Claude.

— Conseguiu falar com Friedmann? É horrível. Deve tê-lo feito cair numa armadilha.

— De qualquer modo evaporou-se, como que por encantamento.

— Enfim, falar de encantamento, no caso dele...

— Olhe, Claude e Maya vêm aí; perguntemos-lhes.

—Veja como caminham: parecem flutuar. Estas visitas à escola cabalista... não sei. Não devia tê-los apresentado àquelas pessoas.

— Meu caro amigo, sem eles talvez já não estivesse aqui.

O médico sentia afeto por ele, embora lhe custasse por vezes seguir o seu espírito tortuoso.

Maya e o professor tinham passado por numerosas barragens para chegarem à estação. Encontraram os dois homens no refeitório.

— Dentro em pouco deixará de ser possível entrar ou sair — observou Friedmann. — Mas, meu Deus, que espera esta gente?

— São os mistérios da arqueologia. Apaixonam-nos.

— Pierre, você está em plena forma. Até que enfim, uma boa notícia. O seu acidente não terá causado muitos danos.

— Não, só quanto aos... bom, percebe.

Claude voltou-se para Frédéric.

— Está zangado com as datas? Também gostaria de esquecê-las.

— Que pensam fazer? — prosseguiu Pierre.

— Fomos fazer uma visita ao seu amigo Mansour.

— Ele sabe o que se passa aqui?

— Parece saber até melhor que nós — respondeu Maya.

— Pode ajudar-nos?

— Em todo o caso, faz tudo o que pode — disse Friedmann.

— Mas, aparentemente, não pode agir por si só. Tem de intervir através de nós.

— É estranho, com os conhecimentos que tem, o que o impede de o fazer? — perguntou o médico.

— Segundo ele, não teria qualquer efeito. Só os que estão diretamente implicados pelo perigo é que podem contrariá-lo. Não me perguntem porquê. Segundo ele, a resposta levaria muito tempo. E o nosso está contado. Na realidade, senti que ele não queria explicar certas coisas a um não iniciado.

— Mas, precisamente, não é necessário conhecer esses segredos para ter êxito? — inquiriu Pierre.

— É.

— Mas, nesse caso, como fazer?

— Que outra escolha temos? — murmurou Claude.

Percebia até que ponto a iniciativa deles era aleatória, face a um inimigo comum, face ao tempo inexorável. A morte desfiava os segundos, como um metrónomo. A vida deles estava suspensa no fio de um sonho, no aparecimento de um anjo com as chaves do seu destino. O combate era desigual.

Frédéric sentiu que o desespero se apoderava do professor. Interveio:

— Mesmo assim, temos o exemplo de Pierre, salvo por uma simples palavra. Isso prova que a ciência dos cabalistas é correta e eficaz. Que pensa, Maya?

— Temos mesmo a certeza que se tratava dele? Ele não recebeu qualquer aviso, ao contrário de nós.

— Aliás — acrescentou Pierre — há outro corpo debaixo da minha estela.

— Não tenho nenhuma certeza sobre o que julgamos entrever sob essas lajes — disse Frédéric. — A natureza dos fenômenos com os quais estamos confrontados não encontra qualquer eco nos nossos conhecimentos. Estamos perante potências esquecidas há séculos. Os cabalistas perpetuaram esse saber, temos de confiar neles. Sigam os seus conselhos. Façam uma última tentativa amanhã, de madrugada, e se infelizmente ela falhar, ainda teremos vinte e quatro horas para encontrar uma solução.

— Concordo consigo — respondeu Maya. — Claude, temos de parar de enrolar. Como acabou de dizer: não temos outra escolha.

Agora tinham de entrar no sono ritual, a fim de encontrarem nele a resposta. Para eles, era um paradoxo doloroso. Durante as suas vidas, tudo os preparara para o contrário. E agora tinham de avançar por areias movediças, enfrentar o perigo, manter os olhos abertos embora estivessem, ao mesmo tempo, fechados, encontrar o inimigo, sondar o inconsciente, entregar-se às trevas.

— Com tudo isto, receio não conseguir adormecer — disse Claude.

— Quanto a mim, estou a cair de sono. No fim de contas, se tivermos de morrer, mais vale que seja sem nos percebermos. Deixo-vos jantar entre homens. Não tenho fome.

Rajan, Karl e Zoltan chegaram. Rodeado pela sua equipe, Friedmann dava a impressão de assistir à sua última refeição. Mas o medo tornara-se-lhe familiar. Comiam, bebiam, conversavam. Pierre evocou Cinghart.

— Ah, esse então — comentou Claude — pergunto-me que mosquito o picou. Mentiu-me sobre a sua identidade com uma desfaçatez... e, depois, zás, sumiu.

— Que identidade? — interrogou Pierre, subitamente inquieto.

— O seu nome era, supostamente, um pseudônimo, ele não era aquele que julgávamos e não sei que mais ainda.

— Como lhe disse ele que se chamava?

— Espere, Pierre, espere, tenho uma falha de memória, o seu truque torna-se contagioso. Deixe-me pensar... Ah, sim: Abanassiev.

— Mas é o correspondente do Washington Post em Moscovo!

— Como sabe?

— Encontrei-o quando estávamos no Afeganistão. É um doido por arqueologia.

— Mas por que se serviu ele do seu nome?

Pierre parecia cada vez mais nervoso. A emoção desorganizava a sua linguagem. Frédéric disse-lhe:

— Por favor, acalme-se, a sua tensão vai subir.

— Tem razão, doutor, creio que... evitarei ler a imprensa.

 

Maya estendeu-se de costas. Procurou relaxar respirando lentamente. Queria aderir ao sonho que devia chegar, para procurar compreender. Subitamente, adormeceu. Encontrava-se num sofá de veludo adamascado, numa sala repleta de quadros, de objetos. Em cima de uma secretária de madeira maciça estavam pousadas estatuetas antigas e primitivas.

Lia um artigo numa revista datada de 1932, intitulado: “Sonhos e Ocultismo”. Ergueu os olhos. Um homem sentado ao seu lado passava os dedos pela sua barba branca.

— Não sabia que tinha tanto fascínio por essas coisas — disse-lhe ela.

— Se me dessem uma segunda vida, consagrar-me-ia exclusivamente a elas.

— Porquê?

— Sabe, existem mistérios entre o céu e a terra que são difíceis de acreditar. Uma vez, quando viajava pela Grécia, em 1904, a minha atenção foi atraída pela repetição freqüente de um número. Via-o por todo o lado, no meu bilhete de passagem, nos painéis à beira das estradas, nos monumentos. Era o 62. Ao chegar a Atenas, senti-me aliviado pelo meu quarto de hotel ficar no terceiro andar. Mas tinha o número 31, precisamente a metade de 62. A partir dessa estada, e durante seis anos, fui constantemente confrontado com o 31.

— Será possível lutar contra o poder dos números? Poderia agir através deles, caso a minha vida estivesse ameaçada por um perigo? — perguntou-lhe ela.

O velho homem baixou-se. Depois, pegando numa das suas pantufas, apontou com perícia para uma esplêndida estatueta egípcia, atirou-a e partiu o objeto.

— Pronto — disse. — Tinha acabado de comprá-la. Gostava muito dela. A sua salvação vale bem uma estátua.

— Como agradecer-lhe? Posso também ajudá-lo em alguma coisa?

— Não sei, minha jovem amiga. Há aquele homem com quem cruzei esta manhã... Olhei muito tempo para ele. Parecia-se comigo como se fosse meu irmão, tenho a certeza de que era o augúrio do meu desaparecimento.

— Como poderia neutralizá-lo?

— Creio que se chama Moisés.

— Moisés — repetiu Maya. — Mas, não escreveu curiosas análises a respeito dele?

— E o que têm elas de tão particular para você?

— O senhor diz que ele era na verdade um príncipe egípcio, que foi buscar a sua fé ao monoteísmo de Ikhnaton no século XIV a.C, que ele foi assassinado. Daí, o senhor deduz que o inconsciente do povo judeu desenvolveu um profundo sentimento de culpa.

— Sim, e depois?

— Conhece Sargão I?

— Quem é?

— O primeiro rei da Acádia, que reinou na Mesopotamia de 2335 a 2279 a.C. Cinqüenta e cinco anos de reinado durante os quais a escrita acadiana se tornou a escrita oficial.

— Porque me fala dele?

— Sargão era filho de um desconhecido e de uma sacerdotisa de Azupiram, na margem do Eufrates. Como a mãe o concebera no pecado, abandonou a criança num cesto de vime. Este desceu a corrente do rio até à cidade de Kish, onde foi recolhido por Aggi, um poceiro, que o educou, ensinando-lhe o ofício de jardineiro. Mas o garoto caiu nas graças da deusa Ishtar, que o adotou. Assim, pôde ascender ao trono depois de se ter rebelado contra o seu monarca. Tomou o comando de um grupo de companheiros fiéis e fundou uma nova capital no confluente do Adiyala e do Tigre. A sua vida e a sua obra deram origem a contos e lendas, tal como Gilgamesh, na qual surgem certas mitologias que foram depois retomadas pela Bíblia.

O velho homem ouviu isto tudo com estupefação.

— Não vejo onde quer chegar com essa história. Inventou-a?

— Não, doutor, cinqüenta anos de buscas, depois de 1945, vêm confirmar os fatos.

— Mas, minha filha, estamos em 1939.

Maya sentiu que esta resposta ia acordá-la. O seu sonho arriscava-se a chegar ao fim antes de o Anjo ter podido aparecer. Agarrou-se ao sonho e encadeou:

— Seja. No fim de contas, não tem importância se o monoteísmo veio do Egito ou da Mesopotâmia. Qual a relação entre essas religiões primitivas e as suas teorias?

— Uma delas talvez possa orientá-la. Ela traça uma linha de separação entre o reino da luz e o reino das trevas. Como, para aquilo que se passa consigo, na sua própria vida, entre o que vem à sua consciência e o que permanece enterrado.

— Como por exemplo? — perguntou ela.

O velho levantou-se silenciosamente, dirigiu-se para a porta e abriu-a com vagar. Um raio de luz penetrou no espaço. Perfilou-se a silhueta de um jovem, que se introduziu silenciosamente ao lado dela. Ela olhou para a cara dele. Os seus traços lembravam-lhe alguém. No entanto, nunca o vira.

— É aquele que espero? — perguntou Maya.

— Vim trazer-lhe a palavra.

— Como posso ter a certeza de que é você?

— Sou o septuagésimo segundo anjo, o último sob as ordens de Gabriel. Chamo-me Mumiah.

— Então, é você que me traz a palavra, aquela que deve salvar-me?

— Trago, mas já cá estava, perto de ti, e não me reconheceste. O segredo está ao alcance da mão. A solução está em ti. A solução és tu.

— Quer dizer que é o meu próprio nome?

Ele sentara-se no sofá. Maya estava de pé, fixando-o. Ela conhecia-o. Quem era ele?

O velho olhava para ela afagando a barba com a mão direita. Disse:

— Maya. Mas que nome mais curioso para uma arqueóloga.

Ela despertou, sobressaltada.

 

O serão eternizava-se. Friedmann e a sua equipe discutiam, bebiam, esqueciam o tempo. No entanto, o professor decidiu regressar à sua tenda. Estendeu-se, buscando o sono, mas os seus pensamentos impediam-no de esvaziar a cabeça.

Perturbava-o a idéia de um sonho durante o qual um anjo viria falar-lhe. Durante toda a sua vida combatera a psicanálise, considerando os seus praticantes como charlatães. Aqueles que o interrogavam gostava de lhes dizer que não tinha inconsciente e que nunca se recordava dos seus sonhos. Para ele, esse universo era a caixa de Pandora dos estados da alma. Nunca confidenciava com ninguém. Não proferia intimidades. Anedotas, sim. Piadas, de acordo.

Recusava o mundo do irracional, a sua imagética néscia. Queria dominar os acontecimentos. Que ninguém decidisse por ele. Se era preciso encontrar o caminho do sonho, mesmo que fosse para o guiar, tinha de ser o seu mestre.

Pensou naquela aldeia situada a vinte e cinco quilômetros a sudeste de Megido: Galqamus. Esse nome lembrava-lhe um incidente do passado. Há alguns anos, uma equipe de arqueólogos americanos desembarcara em Megido para efetuar escavações. Meses depois de se terem ido embora, um pastor descobriu, por acaso, num aterro, a três metros do site, um fragmento de argila datando do século XIV a.C. Continha um texto gravado em seis colunas. Tratava-se da sétima tabuinha das doze que formavam a Epopéia de Gilgamesh, a primeira grande narrativa da nossa civilização.

Estes fatos assombravam-no. Sempre que cavava, na areia, na terra, não conseguia evitar pensar que talvez houvesse algo de fundamental ao seu alcance e não o conseguisse encontrar. Desde que chegara a Megido, o nome dessa aldeia, a sua semelhança com a do herói desse poema, faziam o seu caminho pela sua mente. Não seria ali que teria sido necessário escavar?

Este texto encontrado pelo pastor evocava a morte de Enkidu, o amigo de Gilgamesh, o seu duplo, cujo trespasse assombraria o resto da sua existência. Agradava-lhe sonhar com isso: adormeceu.

Tornara-se um gigante, com uma barba enorme. Reinava como déspota sobre Uruk, martirizando a sua população, infligindo-lhe terríveis vexações. De tal modo que os habitantes apelaram aos deuses que criaram Enkidu, para lhe opor um rival. Claude, que se tornara Gilgamesh, em vez de odiar esse adversário, sentiu por ele uma profunda amizade, uma paixão devoradora.

Foi durante a doença e o desaparecimento desse homem amado que sentiu a imperiosa necessidade de procurar o segredo da imortalidade no fundo dos abismos.

A sétima tabuinha apareceu. Pôde ler o sonho de Enkidu, agonizante:

 

Meu amigo, escuta o sonho desta noite.

Os céus bramavam, a terra respondia.

Entre céu e terra, eu estava de pé.

Junto de mim, uma presença, de rosto sombrio.

As suas mãos eram patas de leão.

As suas unhas garras de águia.

Agarrou-me pelo cabelo, dominou-me. A mim.

Bati-lhe, mas ele girava como uma corda.

Bateu-me e submergiu-me, como uma tromba de água.

Espezinhou-me, como um búfalo.

Esmagou-me todo o corpo.

Salva-me, meu amigo!, gritei.

Mas tu não o fizeste.

Tiveste tanto medo que não intervieste. Tu.

 

No seu sono, o professor sentia-se culpado por não ter tentado nada para salvar o seu amigo. Queria que ele voltasse à vida. Implorou ao deus Sol:

— Que o espectro de Enkidu possa sair do país dos mortos. Que possa vir contar ao seu irmão as regras desse mundo.

Apareceu uma barca, que deslizava pelas águas tranqüilas do rio. De pé, estava um jovem, de rosto e olhar sombrios. Os seus traços eram-lhe familiares. Mas era impossível reconhecê-lo.

— És Enkidu, que regressa do reino dos espectros?

— Não, sou Gabriel, que veio para te dizer a palavra que abrirá a décima segunda porta.

— Que aconteceu a Enkidu?

Friedman ouviu-se a si mesmo a pronunciar estas palavras e arrependeu-se logo de tê-las deixado escapar, temendo a reação do Anjo.

— Visto que só tens pensamentos para ele, deixo-te com esse nome — respondeu Gabriel. — Talvez encontres nele o segredo que te salvará.

A embarcação girou sobre si mesma e desapareceu na bruma espessa. O professor compreendeu que falhara o seu diálogo com o Anjo. Os seus olhos abriram-se imediatamente.

 

E a alvorada despontou. Durante a noite, a febre subira em torno da estação arqueológica. Várias testemunhas de Jeová tinham tentado forçar as barreiras, para rezarem no santuário. Rebentara uma viva rixa, causando feridos. O estado-maior encarava a possibilidade de mandar evacuar todo o perímetro.

Claude levantou-se e foi ter com Maya. Ela vestira-se à pressa. Tinha um ar pálido e os traços vincados.

— Não está com bom aspecto. Não se sente bem?

— Claude, não sei como explicar-lhe.

— Não conseguiu dormir, sonhar?

— Consegui, mas é difícil interpretar o que me aconteceu. A mensagem não era clara. Pensava encontrar uma palavra, um nome. Mas sinto-me perdida.

— Procure contar-me, descrever-me o que viu. Vamos procurar juntos.

— Estava na companhia de um senhor muito velho, que se parecia com Sigmund Freud e falamos de Moisés.

— Pois bem, talvez seja simplesmente esse nome. Porque quanto a Freud, não tenho bem a certeza que o seu nome diga qualquer coisa aos Caldeus.

— Claude, pare, por favor! Depois, apareceu-me um jovem. Devia ser o Anjo Mumiah de que Mansour nos falou.

— Viu-o. Portanto, funcionou.

— Sim, mas ele não me quis dizer o nome. Pronunciou uma frase dizendo que era eu, ou algo em mim. Em suma, só me resta ser eu a encontrar. Depois, acrescentou que já tinha estado ali, como se a minha atitude o tivesse vexado. Estava embaraçada, não sabia o que dizer. No entanto, tenho a vaga impressão de conhecê-lo. Parecia ter saído há pouco da infância.

— Como é estranho, Maya. Aquele que apareceu no meu sonho também era muito novo e também tive a impressão de conhecê-lo. De qualquer modo, apresentou-se. Era efetivamente Gabriel, mas encarnava Enkidu, o amigo de Gilgamesh. Vi a sétima tabuinha, a que está no Museu Britânico. Que sonho! Que luxo de pormenores! Perguntava-me se não devia fazer escavações em Galqamus. Não, isso foi antes. Era o rei de Uruk. Era engraçado, o fato encantou-me. Era um verdadeiro déspota, como na vida. Não, estou a brincar. Estava perdidamente apaixonado por Enkidu. Pensa que isso significa alguma coisa?

— Claude, mas você é completamente inconsciente! Sabe que dia é hoje?

— Sei, Maya: o décimo. Deixe-me contar-lhe o que a dona do cabaré disse a Gilgamesh.

— Faz parte do seu sonho?

— Sim, creio que sim. Ela dirige-se ao super-homem que persegue a imortalidade nos seguintes termos:

 

Gilgamesh, para onde vais?

A vida que persegues, não a encontrarás.

Quando os deuses a criaram

Guardaram-na para eles

E reservaram a morte para a humanidade.

Gilgamesh, sacia a tua barriga.

Regozija-te dia e noite

Festeja todos os dias

Dança, toca música...

 

— Bom, muito bem, Claude, mas o Anjo disse-lhe a palavra?

— Não, tal como aconteceu consigo parecia estar aborrecido por eu me interessar por Enkidu. Aliás, confundira-o com ele. Mas julguei reconhecer o seu olhar sombrio. Pensa que era a mesma encarnação nos nossos dois sonhos?

— É possível. Segundo a sua descrição, eles assemelham-se, mas em quem é que ele me faz pensar? Estou obcecada com isto.

— É preciso contar tudo a Mansour. Talvez ele possa ajudar-nos a encontrar a palavra para abrir essa maldita décima porta. É curioso que você se tenha encontrado com Freud. Como é que ele era?

— Fascinado pelo ocultismo.

— Não me admira.

— Falava-me de uma angústia. Cruzara-se com o seu sósia e pensava que esse duplo era o oráculo do seu próprio fim.

— Curioso, isso faz-me pensar noutra coisa. De certo modo, Enkidu era um outro “eu”. Vivi a morte dele como se fosse a minha.

 

O resto da equipe esperava-os no posto técnico. Pierre falava ao telefone com Laura. Ela procurava Edward. O embaixador telefonara para casa dela na véspera, pois esperava-o para jantar, mas o jovem diplomata não viera. Tinha o celular desligado. Não dera mais sinais de si. Parecia ter-se evaporado. Talvez estivesse a caminho de Megido. Rogou-lhes que a prevenissem imediatamente, caso ele aparecesse.

Leo Sapersteen pedira também que enviassem um fax ao professor com um artigo do Washington Post que recebera antes da sua publicação nessa mesma manhã.

Dirigiram-se para o refeitório, onde Maya lhes leu o artigo. Este descrevia, com uma precisão incrível, todas as suas descobertas: o santuário, as câmaras funerárias abertas... Seguia-se a lista das nove primeiras vítimas: Benjamin Kern, Neil Lambden, Simon Chevalier, Serge Finkelstein, Assir Benassan, Jonathan Kugel, Olivia de Lambert, Pierre Griin, Cyril Abanassiev.

O artigo revelava que estes mortos eram a fase inicial de uma importante operação terrorista fomentada por um novo grupo islamista: os Fundamentalistas. Decorridos doze dias, o seu desfecho devia ser a descoberta do túmulo secreto de Josias em Megido. Aí estariam as provas de que a Bíblia fora encomendada por esse rei para justificar a sua conquista dos territórios da Palestina. O repórter pretendia ter encontrado nos Fundamentalistas a fonte das mensagens que certas pessoas recebiam nos seus celulares. Algumas linhas enquadradas descreviam o método utilizado. Tinham afinado um sistema de servidores Internet destinados à encenação da contagem decrescente. O jornal mostrava as imagens do enforcamento de Benassan e as imagens sobre as quais Olivia de Lambert trabalhava. O infeliz Cyril Abanassiev parecia ter identificado este dispositivo arriscando a sua própria vida.

Segundo o jornalista, era o prelúdio a uma série de atentados visando monumentos simbólicos em Israel, nos Estados Unidos e em diferentes países da Europa. Essa ofensiva intitulava-se “Operação Megido”.

Maya parou de ler.

— Quem escreveu este monte de disparates? — perguntou Claude, com voz surda.

— Está assinado por John Cinghart.

Pierre estava profundamente abatido.

— É um escândalo! Anunciam que eu estou... marau... dorma... que estou... matador! Enfim, estão a perceber...

— Sim, Pierre, ele diz que você está morto — respondeu Claude. — Quando Cinghart veio cá, você estava no hospital, devia constar da lista dele e ele não verificou. Esse imbecil queria absolutamente antecipar-se aos outros. Não ia deixar passar um dia sem vítima, isso teria tirado toda a credibilidade às suas revelações.

— Foi a única coisa que lhe chamou a atenção neste artigo? — perguntou Maya, agastada.

— É uma catástrofe! — exclamou Frédéric. — Que vamos fazer?

— Infelizmente, quanto a isso não podemos fazer grande coisa — respondeu o professor. — Se é tudo verdade, o mais urgente consiste em contrariar esses terroristas, mas não consigo acreditar que tudo o que descobrimos faça parte de uma encenação. Ou então, é Hollywood.

Frédéric prosseguiu:

— No entanto, tenho a impressão de que os corpos, sob as lajes, são projeções realizadas a partir de imagens fixas. Uma espécie de hologramas.

— E essas mensagens nos celulares, essas tabuinhas do Apocalipse, que trabalho, que minúcia na sua preparação — disse Claude.

— Pensa que eles tramaram isto tudo desde... há muito... — procurou dizer Pierre.

— Sim, desde há muito tempo — respondeu a jovem. — Não há qualquer dúvida que se a “Operação Megido” é obra dos Fundamentalistas, eles devem ter levado alguns anos para a preparar. Aliás, já não me lembro como as coisas se passaram exatamente para começarmos as buscas. Qual foi o ponto de partida, Claude?

— Na realidade, foi uma proposta de Pierre, depois das condições em que encontraram a sétima tabuinha, a três metros das buscas efetuadas pelos Americanos. Ele disse-me que talvez fosse necessário prosseguir nessa direcção. Lembra-se, Pierrot?

— Evidentemente, você falou-me da aldeia de Galqamus, a vinte e cinco quilômetros. E depois preferiu instalar-se aqui.

— É verdade. Mas como chegou a interessar-se pela relíquia do Museu Britânico?

— A partir do relatório que me enviou, evidentemente!

— Pierre, nunca lhe enviei qualquer relatório!

— Espere. Espere... mas... Julguei que vinha de você. Estavam lá todos os elementos sobre os quais trabalha. Claude, asseguro-lhe que, esse... velório... esse relatório... só podia vir de você.

— Meu Deus, Pierre! Não fui eu. O expedidor foi outra pessoa.

— Pensa que fui manipulado?

— Se aquilo que o Washington Post diz é verdade, fomos todos manipulados.

 

O professor sentia-se cansado. Desculpou-se junto dos seus colegas e retirou-se, depois de ter pedido a Maya para ir ter com ele.

Quando ela chegou, Claude estava debruçado sobre os seus desenhos. Reconstituíra o zodíaco e procurava adivinhar quem seria a décima vítima. Devia ser alguém do signo dos Gêmeos, oferecido ao Senhor da Quarta, sob a dominação de Mercúrio. O condenado teria nascido a 21 de Maio de 1930. O nome inscrito na estela devia ser MU-UZU.

Friedmann estudava a história desse deus babilônico, que reinava sobre os Gêmeos. Maya olhava para as letras traçadas.

— Claude, você não acredita na teoria do complô dos Fundamentalistas. Continua a trabalhar a sua hipótese, não é verdade?

— Absolutamente, Maya. Em compensação, levo em consideração o que nos aconteceu esta noite, nos nossos sonhos.

Entregou-lhe uma folha onde estavam inscritos dois nomes, um diante do outro:

SE-MOHI = MOI-SÉS.

— O primeiro é o nome hebraico de Mu-Uzu. Claude, pensa que foi através dele que se formou o mito de Moisés?

— De certo modo, como num jogo de espelho.

— Ou como a figura dos Gêmeos.

— Sim, Maya, aquele que deve desaparecer hoje é um duplo e o nome que devemos pronunciar é muito simplesmente Moisés. Venha.

 

O santuário esperava-os. Diante da décima porta, pronunciaram as letras hebraicas daquele que dera as tábuas da Lei. E a porta abriu-se. Entraram numa sala gelada por séculos de vazio. A estela parecia semelhante às outras. Ela declinava as divindades colocadas sob as ordens de Mercúrio. Ambos começaram a retirar a espessa camada de pó que a cobria. Fizeram brilhar as lajes, procurando ver qualquer coisa através da pedra translúcida. Mas não surgiu nada. Não havia qualquer presença na sepultura. Ouviu-se um bramido abafado. A porta fechara-se. Estavam prisioneiros do décimo túmulo.

— Claude, fomos apanhados na ratoeira.

— Os deuses resistem, Maya. Julgava que nos iam deixar agir sem se zangarem?

— Entretanto, eis-nos numa bela intriga. Não sei que quantidade de oxigênio poderá haver nesta sala.

— Minha cara, fomos castigados por termos tentado pôr em xeque o projeto deles.

— Mas qual?

— Eles reclamam doze sacrifícios numa ordem precisa, decidida por eles. Os magos caldeus simbolizaram esse círculo por meio de um desenho que nos permitia aceder à última câmara. Assim, a sua predição realizar-se-á. Querem que lhes obedeçamos. É tão simples como isso.

— Mas se obedecermos aos seus desejos, no fim seremos nós os sacrificados.

— Maya, se agirmos como acabamos de fazer, eles não esperarão por sexta-feira para nos executarem.

No fundo, ela sabia que o professor tinha razão. Era preciso segui-lo, vergar-se à vontade inexorável dos deuses, submeter-se ao seu desígnio.

— Como corrigir o nosso erro? Será demasiado tarde? — perguntou ela.

— Creio que devemos seguir as indicações deles. Deixar de lutar.

— Mas como dar-lhes a entender que aceitamos? Por certo que já não confiam em nós.

— Sim, mas se conseguirmos persuadi-los, talvez, em troca, eles nos perdoem.

— Que fazer, senhor professor?

— Pois bem, minha cara, a que extremo estamos reduzidos para que me trate dessa maneira!

— Francamente, Claude, você tem sempre essa necessidade de gozar nos momentos penosos. É irritante.

— Meu caro anjo, não seja tão dura com o velhote. Talvez tenha uma idéia. Os deuses reclamam um duplo, não é?

— Se assim o diz. Que lhes propõe?

— O meu.

— O quê? Você tem um?

— Todos nós temos um duplo. Lembre-se da obsessão do doutor Freud, no seu sonho. Ela girava em torno da figura de Moisés. Aliás, foi graças a esse nome que entramos aqui.

— Continue.

— Esta porta talvez funcione nos dois sentidos. Se lhes oferecermos um duplo em sacrifício, o meu duplo por exemplo, é possível que ela se abra de novo, deixando-nos sair.

— Tentemos, Claude, mas não vejo de que maneira.

— Gostaria de me debruçar sozinho sobre a estela para ver o que se passa.

— Tenha cuidado, Claude. Deixe-me dizer-lhe... Enfim, você é a pessoa que mais estimo neste mundo.

— Que sítio mais esquisito para uma declaração dessas... Acontece o mesmo comigo, minha pequena. Mas só restam dois dias.

Ditas estas palavras, dirigiu-se para as lajes, estendeu-se, rosto encostado à matéria. Despontou um raio de luz e a rocha tornou-se transparente como a água de um lago. Progressivamente, a câmara refletiu-se nela como num espelho. Surgiu o espectro de Friedmann.

— Eis o meu duplo — anunciou, levantando-se. — Neste momento, em que lhe falo, deve estar morto.

Voltaram-se. A porta estava escancarada. Pegou na mão da jovem e saíram, sem mais esperar.

 

A calma voltara à estação arqueológica. As autoridades tinham evacuado o perímetro. A multidão esperava no vale de Jezreel. Maya queria contar a Edward os acontecimentos das últimas horas. Telefonou a Laura. O jovem diplomata continuava desaparecido. Todos se inquietavam. O artigo provocara um verdadeiro cataclismo. Chamadas provenientes do mundo inteiro paralisavam os serviços da embaixada. O terror pelos atentados e a suspeição generalizada causavam tanto pânico que as reuniões, as conferências e as negociações tinham sido suspensas. Temia-se que Edward tivesse sido raptado. Não era de excluir que esse ato fizesse parte do plano dos Fundamentalistas. O jovem também recebera mensagens de ameaça designando a décima primeira vítima. Maya receava o pior. Desde que se tinham encontrado, ele nunca deixara passar tanto tempo sem lhe dar notícias. Ao longe, Friedmann fazia-lhe sinais. Mansour chegara. Claude sentara-se diante da sua mesa. O Grão-Mestre caminhava de um lado para o outro, com ar preocupado.

— Esperávamo-lo — disse Claude. — íamos falar-lhe dos nossos sonhos, mas o senhor antecipou-se-nos.

— Efetivamente. O que tenho para lhes revelar é muito delicado. Gostaria que me prometessem guardar silêncio absoluto.

— Caro senhor, tem a nossa palavra. Os nossos contatos sempre foram colocados sob o signo da maior confidencialidade, não é verdade, Maya?

— Com certeza. Silêncio total. Está prometido.

— Ficaria-lhes muito grato. Tomaram conhecimento do artigo publicado no Washington Post?

— Enviaram-nos um fax há pouco — disse Claude. — Já está ao ciente?

— Sim, fomos prevenidos. Esse artigo levanta muitos problemas. Subentende que aquilo que se passa aqui é devido a um grupo que se faz chamar os Fundamentalistas. Seria uma nova forma de terrorismo visando alvos simbólicos. É estranho, pois o autor do artigo parece estar na posse de informações precisas, mas por outro lado, escreve toda a espécie de inverosimilhanças.

— Está nos hábitos deles — comentou Friedmann.

— Sim, mas há um ponto crucial, sobre o qual ele não sabe nada, pela simples razão que, exceto nós, todos o ignoram.

Mansour calou-se. Procurava dominar cada uma das suas palavras, continuando a refletir sobre a oportunidade da sua confidencia.

— Prometemos-lhe que guardávamos segredo. Fale — impacientou-se o professor.

— Recordem-se da vossa primeira visita à escola. Estavam acompanhados por um jovem, que nos apresentaram como sendo um membro da vossa equipe.

Friedmann olhou para Maya, embaraçado por aquela observação. Devia continuar a mentir, ou dizer-lhes que Edward não era arqueólogo? Odiava a mentira. No seu caso, era uma questão de princípio. Era degradante colocar a inteligência ao serviço do embuste.

A jovem interveio, determinada:

— Mentimos-lhes. Ele trabalha na embaixada dos Estados Unidos.

— E veio porque pensava que as mensagens recebidas pelos celulares provinham da nossa escola, não é verdade?

Claude e Maya sentiam-se cada vez mais embaraçados pelo caminho que a conversa tomava. A sobrevivência deles podia depender daquele homem. Tinham-se tornado cúmplices de uma atitude malsã em relação a ele.

— Cometemos um erro — confessou Friedmann. — Não o conhecíamos.

— Esse diplomata não estava completamente enganado. A sua missão consistia em identificar e vigiar os Fundamentalistas. Acaso repararam que nas imagens transmitidas eles têm os rostos dissimulados por lenços na cabeça?

— Com efeito — respondeu ela.

— Porque nos fala disso? — inquiriu o professor.

Maya empalidecera.

— Quer dizer que os Fundamentalistas são... vocês?

Mansour ficou calado.

— Mas, com que propósito? Qual o sentido? — interrogou Claude. — Nesse caso, o que está escrito no artigo é...?

— Não, é totalmente falso — disse por fim o Grão-Mestre. — Estamos bem situados para o saber. Não tenho o direito de lhes explicar tudo, mas peço-lhes que respeitem a vossa palavra dada quanto ao segredo. E, se ainda for possível, que mantenham a vossa confiança em nós. Aceitem a nossa ajuda. Somos os únicos a poder esclarecê-los.

Estavam chocados com aquelas revelações. O professor voltou a pensar na submissão aos desígnios dos deuses. O que acabara de saber fazia parte desse processo. Tinha de respeitá-lo. Contou o seu sonho ao Grão-Mestre, convidando Maya a fazer o mesmo. Depois, descreveu-lhe o que acabara de acontecer na décima câmara. O nome de Moisés, o aparecimento do seu duplo, o efeito dos prismas, dos jogos de espelho na esteia. O fecho e a reabertura da porta.

— Vocês já não precisam de mim — disse o cabalista, sorrindo. — Progridem como iniciados.

— Penso que se trata mais do medo do tempo que nos resta. Pensa que o meu duplo esteja morto?

— Parece mais que provável. Não tardaremos a sabê-lo. É uma etapa preliminar daquilo que deverá acontecer a partir de hoje. Esse outro indica-nos o caminho. É a voz que lhes fala sem que a ouçam. O invisível que terão de enfrentar depois. Restam-lhes três dias para o descobrir.

— É perturbante — respondeu Claude. — Sempre senti que hoje, amanhã e sexta formavam uma unidade à parte.

— Inteiramente exato, professor. Os três sefirotes que eles representam, repousam em cada um de vós. Kether, Chockmah e Binah figuram a vontade, a sabedoria, que alguns designam como amor, e a inteligência. Mas só se reagrupam à luz, numa forma de vida reservada aos deuses. É a inteligência que foi encarregue de criar a zona obscura na qual vivemos. Certos elementos, operando nessa zona, recusaram a noite, criando assim o conflito original. Esses são lançados no abismo. Essas forças hostis ao desígnio divino estão mergulhadas nas trevas onde continuam a existir, sem nada poderem impedir. Esses três elementos são o mercúrio, o enxofre e o sal. O primeiro apareceu no espelho. O segundo apaga a parte de luz. Aquele que resta é o sal, do qual não advém qualquer luz. Ao deixar Sodoma atacada pelas chamas, quando a esposa de Loth se volta para trás para contemplar a catástrofe, impelida pela nostalgia, transforma-se numa estátua de sal. Assim, não se voltem para trás no último dia.

— E o enxofre? — perguntou Maya.

— É assim que se reconhecem as hordas luciferianas, pois elas não sabem utilizá-lo para criar. Essa substância é a herança do Diabo. Foi ela que causou a separação na Vaga da Vida dos anjos. Alguns deles preferiram utilizar as propriedades salinas para reter a claridade. Tornaram-se os anjos caídos. É um deles que tereis de combater. Tudo que acontece hoje é obra dele.

— Mas como reconhecê-lo? — murmurou Maya.

— Ele já vos conhece — concluiu o Grão-Mestre.

Esta frase mergulhara-a no vazio. Ela queria partir com ele. Saber mais. Mas Claude impediu-a.

— Sabe, quando penso na sexta-feira, isso não muda grande coisa para mim. Na minha idade...

— Claude, esse tipo de frases tem o dom de me exasperar. Não me sinto bem e isso é tudo o que você encontra para me dizer.

— Enfim, Maya, isto não tem pés nem cabeça. O artigo de Cinghart é uma efabulação. O labirinto dos cabalistas não nos leva a parte nenhuma. Somos piões num jogo de alquimistas.

— Nesse caso, que propõe? Qualquer coisa entre uma realidade completamente fabricada por magos e receitas de vidente de feira popular?

— Ouça, até agora as coisas tangíveis passaram-se em torno do zodíaco. De acordo, é surpreendente, mas é assim. Maya, temos de nos render à evidência.

— Infelizmente, é sem dúvida a única coisa em que podemos apoiar-nos. Mas se quisermos escapar à nossa condenação, temos de compreender qual é o seu propósito final. E, de repente, você baixa os braços, dizendo que isso não muda nada. Que se passa consigo?

Claude tinha um olhar triste. Parecia dizer-lhe: compreendo o seu desalento. Não nos devíamos ter submetido às forças divinas. Essa postura não se parecia com ele. Nele, tudo incitava a retomar o combate.

— Tem razão, desculpe-me, mas temos de saber com quem estamos a lidar. Já sabemos que não são os Fundamentalistas. De qualquer modo, nunca acreditei nisso. Custa-me simplesmente compreender a ação dos cabalistas. Temos de falar com Pierre. Foi ele que nos apresentou.

— Não sei se é uma boa idéia.

— Porquê? Continua a suspeitar dele?

— Claude, ele diz seja o que for. Foi ele que nos trouxe aqui. Teria sido vítima de um erro. Os documentos que recebeu teriam provido de outra fonte. E, como que por acaso, escapa à maldição.

— Sim, mas em que estado...

— Quem lhe diz que não está a fingir? Por ora, prefiro que atuemos a sós.

— Sabe, ontem à noite, quando você foi deitar-se, passamos umas horas juntos. Há muito que não me sentia tão bem. Jantamos, bebemos e conversamos. Afinal, assemelhamo-nos aos homens da Antigüidade. Sinto uma profunda ternura por Pierre. Ele acompanha-me há já tanto tempo. Sem falhas. Fielmente. Está a seguir uma pista falsa a seu respeito. É uma pessoa de bem.

— Não digo o contrário. Mas é influenciável, não consigo confiar completamente nele.

— Muito bem. Farei o que quiser.

— Nesse caso, Claude, se concordar, tem de me deixar só algumas horas.

— Porquê, minha querida, também lhe pareço suspeito?

— Não diga disparates. Como explicar-lhe? Tenho a impressão que uma parte dos acontecimentos só diz respeito a mim. É difícil de descrever.

— Devido aos seus trabalhos sobre o túmulo de Josias?

— Fiz essas investigações sem lhe dizer nada e talvez sejam elas que provocaram este caos. Tenho de lutar sem a sua ajuda.

— Se é isso que pensa...Mas avalie o perigo, pois se o que Mansour diz é verdade, o adversário é de grande envergadura.

— Claude, ele não disse que eu ia encontrá-lo, mas que ele já me conhecia. Por conseguinte, agora tenho de descobrir.

— Bem vejo que não conseguirei convencê-la. Meu Deus, como é teimosa! Prometa-me que me dirá tudo.

— Não, Claude, deixe-me em paz até ao meio-dia de amanhã. Não me faça mais perguntas.

— Mas, Maya, não se trata de umas horas como quaisquer outras.

— Por favor.

— Seja. Aja como entender. Mas, por piedade, tenha cuidado.


 

Maya caminhava na direção da escola. Havia numerosas barragens à volta, vedando agora o acesso. Pediu a um oficial de serviço que fosse prevenir Jonathan. O militar pediu-lhe os documentos de identificação. Depois de um longo momento, o jovem apareceu. Saíram do perímetro de segurança.

— Que se passa? Temem um atentado?

— Não sei. Foi-nos imposto uma espécie de estado de sítio. Até é surpreendente que me tenham deixado sair com tanta facilidade.

— Jonathan, tenho de falar consigo. Talvez seja uma questão de idade, talvez seja a nossa formação comum, mas tenho a impressão de que nos compreendemos.

— Também sinto isso. Pensei muito em você. Rezei por você.

— Que os deuses o ouçam, Jonathan.

— Os deuses?

— Enfim, desculpe, Deus.

— Não se desculpe. Neste caso, trata-se bem deles.

— É mesmo o que julga?

— Assim estavam persuadidos aqueles que construíram o santuário. Jonathan, o meu tempo está contado, preciso de saber quem é você.

— Mas, já lhe disse... a escola cabalista é...

— Não é isso que lhe peço. Acabamos de falar com o Grão-Mestre. Estamos ao corrente sobre os Fundamentalistas.

— Ele disse-lhes... mas o que foi que ele lhes contou?

— Que os dois grupos formam um só.

— E você quer compreender, Maya, não é verdade?

— Jonathan, saber equivale talvez a salvar a nossa vida. Responda-me.

— Somos uma confraria de doze homens, partilhando uma tradição secular em torno da Cabala. A nossa missão também está ligada ao sofismo. Por isso, escondemo-nos atrás dos lenços, mas também de outras heranças oriundas do cristianismo, como a dos Ebionitas e a dos seus antepassados essénios. Veiculamos essas três religiões nascidas de uma mesma raiz. Somos as últimas testemunhas da sua origem comum.

— Qual é o vosso ponto de partida? Quais são os doze fundadores da vossa linhagem?

— Só temos um conhecimento parcial dessa questão. Sabemos que inicialmente cada um veiculava os nomes que herdamos através dos séculos. Onze escribas caldeus reunidos à volta de um sumo sacerdote, refugiados aqui, em Megido, no século VII a.C.

— Sois os herdeiros dos Caldeus? Foram os doze primeiros que construíram o santuário descoberto pela nossa equipe?

— É provável.

— Eles poderiam ser os autores da maldição?

— Aí está a ir depressa demais. Esses homens construíram certamente esse círculo para figurar uma representação ritual, que chamamos o “Círculo de Armagedon”. A sua primeira intenção era fecharem-se nele, para aí protegerem um segredo.

— Qual?

— Maya, que pergunta mais curiosa...

— Desculpe-me, mas deve ter uma idéia, pois consagra-lhe a sua vida.

— E você, Maya, consagra a sua existência a quê?

A pergunta de Jonathan projetou nela o filme da sua vida. Tudo se misturava. As certezas e as dúvidas. Acreditava ela em Deus, na ciência? Que caminho a levara a esta busca da verdade? O seu desejo de viver sobrepunha-se a todo o resto. Havia uma dualidade em jogo, que ela não podia dominar. Tudo lhe escapava. A sua relação com Claude ocupara o cerne do seu destino. Temia destruí-la. Quais eram os seus sentimentos por Edward? Teria sido o medo que transtornara tudo nela? Olhava para Jonathan com os olhos perdidos na vaga dos reflexos do tempo.

— Maya, não havia nada de particular na minha pergunta. Desculpe-me se a perturbei. Queria simplesmente dizer-lhe que a descoberta desse segredo era a nossa finalidade última.

— Compreendo. Mas posso pedir-lhe a sua opinião sobre uma coisa?

— Esforçarei-me por lhe responder.

— Devo renunciar?

— Se bem a compreendi, é por temer que as suas investigações cheguem a um determinado resultado e que o Armagedon seja trazido à luz do dia. Pensa que se abandonar as suas investigações, a maldição parará. É isso?

— É.

— Repito-lhe mais uma vez: mesmo quando tomamos o rosto dos Fundamentalistas, não estamos em nada ligados a esses eventos macabros. A nossa vida, a nossa energia são consagradas ao bem do homem. O santuário está aí para salvaguardar a humanidade e não para a destruir. A única coisa que podemos fazer é ajudar-vos a combater esses malefícios. Quais são as regras do jogo? Não sabemos. É preciso avançar, Maya. Prossiga. Não passe ao lado do seu destino.

— Eu aceito-o, Jonathan, mesmo que tudo isso me seja estranho. Por que motivo e por quem fui escolhida? Se me abandonar a tudo isto sem procurar compreender os seus fundamentos, tenho medo de perder a razão e as suas respostas não me fazem avançar como desejaria.

— De que está a falar?

— Como imaginá-los, a você e aos seus irmãos, de cabeça tapada diante das câmaras?

— Vista do exterior, a nossa ação é condenável. Aliás, cometemos certamente um erro.

— Porque chegaram a este ponto?

— Já lhe expliquei que a nossa tradição reúne as três religiões do Deus único. Chamam-nos cabalistas há séculos, mas entre nós também há cristãos e muçulmanos. O que nos junta é o estudo das Sagradas Escrituras. A nossa missão consiste em transmitir o seu segredo, preservando-o. Quando se sabe interpretar essas palavras, elas contêm um poder perigoso. Quando o professor Friedmann descobriu o santuário, compreendemos que o momento tinha chegado e que a nossa razão estava ameaçada. Porém. Dor muito antigo que seja, o nosso ensino sempre nos prescreveu que vivêssemos de acordo com o século, com os meios proporcionados pela época. A nossa é tristemente regida pelo terrorismo. Através desse simulacro quisemos interromper as buscas.

— Tornando-vos aprendizes de feiticeiro, não foi?

— É como diz, Maya. Os acontecimentos escaparam-nos. Fomos submergidos, pois não tínhamos medido até que ponto esses movimentos são desorganizados, incontroláveis. Por toda a parte apareceram soldados da Jihad, fazendo não importa o quê, servindo-se da nossa encenação como forma de ajuste de contas político, como quando enforcaram Benassan ou quando assassinaram essa infeliz jornalista francesa. Aquilo que era inicialmente um método pacifista para parar as vossas buscas transformou-se num verdadeiro instrumento de morte.

— De acordo, Jonathan, mas como explicar que as vítimas correspondam tão exatamente às previsões do zodíaco? Verificamos os dias, as datas, os signos. Tudo coincide em cada um dos desaparecimentos.

— Eu sei, Maya, é isso que não conseguimos compreender.

— Tudo se passa como se uma força única manipulasse os seres, os elementos mais imprevisíveis, no dia e na hora indicados.

— Na minha opinião, só existe uma potência capaz de realizar tudo isso. Mas é impossível que essa identidade o tenha desejado.

— Está a falar de Deus. Mas não tem a prova que outros detêm esse poder?

— É uma idéia que nunca poderei admitir.

— No entanto, os vossos escribas fundadores, os vossos antepassados caldeus acreditavam nessa multitude.

— É verdade, mas abandonaram essas crenças. É por isso que nós estamos hoje aqui, ao passo que os outros já cá não estão.

— Tem a certeza de que desapareceram? Não estamos hoje a lidar com esses exércitos celestes?

— Se é esse o caso, não poderá vencê-los sem a nossa ajuda.

— É precisamente isso que quero que você perceba. Jonathan, porque repete que a sua missão consiste em proteger o segredo?

— É outra coisa, Maya. Trata-se das palavras que ninguém deve pronunciar.

— Podemos triunfar dos deuses sem elas?

— Foi para isso que serviram as palavras mágicas. Uma vez os deuses vencidos, deixaram de ter qualquer utilidade. Mas o seu o poder destruidor podia voltar-se contra a humanidade.

— Se bem o compreendi, essas palavras tornaram-se perigosas para nós. Mas se os deuses voltarem, como utilizá-las?

— São os nossos escudos. Aquele que irá encontrar essas forças poderá servir-se delas, mas na condição de estar só.

— Explique-me.

— Os anjos caídos fizeram uma aliança com elas, a fim de restabelecer o seu poder. Se as pronunciarem num determinado momento, seremos esmagados.

— E como reconhecer esses anjos?

— Aí é que está a dificuldade. Eles são-nos desconhecidos. São eles que a escolhem. Têm esse poder e outros mais.

— O de nos seduzir e dominar, é isso?

— Cuidado, Maya, não basta sabê-lo para o enfrentar.

Assim ficaram um longo momento, sem dizer palavra. Ela ia buscar nos olhos do jovem a energia para combater. As suas pálpebras estavam fixas. Ela sentiu as lágrimas escorrerem até ao solo. Depois, ele deixou-a só. Então, Maya tomou o caminho de regresso para Megido.


 

Na estação, o professor juntara-se a Pierre. A desconfiança de Maya em relação ao seu velho amigo entristecia-o. Desejava falar com ele para dissipar as dúvidas.

— Pierrot, gostava de protegê-lo do stress, mas há coisas que tenho para lhe dizer.

— Sim, eu sei que tudo corre mal.

— Diga-me o que se passou com os cabalistas. Você deve-me a verdade.

— Como assim, os tabagistas, hã, não... os...

— Os Fundamentalistas. Que papel desempenhou você nisso tudo?

— Não queria incomodá-lo, mas dado o caminho que tomam os acontecimentos, mais vale...

— Sim, é melhor.

— Quando chegamos aqui e você descobriu este vestígio, fui imediatamente contatado por Mansour.

— Que queria ele?

— Convencer-me a parar com as buscas. Preveniu-me que nos arriscávamos a pôr a descoberto os segredos de que a sua confraria era guardiã desde a noite dos...

— Dos tempos. Que gênero de segredo?

— Isso não me quis dizer. Depois... explicou-me que tinham montado uma operação para instaurar o pânico em torno de Megido, obrigando-nos a partir se as autoridades se deixassem convencer de que os nossos trabalhos se arriscavam a provocar uma vaga terrorista. Foi isso, os Fundamentalistas.

— E quando lhe fez essas revelações, você não pensou que elas pudessem interessar-me?

— Quando ele me preveniu já era demasiado... outros pequenos grupos tinham-se intrometido e aproveitado a oportunidade para agir...

— Estou à espera de Leo Sapersteen, que quer encontrar-se comigo. Já me devia ter contado tudo há muito tempo, Pierre.

— É verdade... fui eu... preveni a embaixada.

— Dizendo-lhes o quê, precisamente?

— Falei-lhes dos Fundamentalistas.

— O quê? Prestou-se ao jogo de Mansour? Fazendo-nos correr o risco de comprometer as nossas investigações?

— Claude, era simplesmente para que os... canibais... hã, os cabalistas não metessem o nariz na nossa vida.

— E, portanto, contatou a embaixada dos Estados Unidos. Mas há uma coisa que gostaria de esclarecer: é essa questão do relatório que nos trouxe aqui.

— Na realidade, Claude, penso que ele veio precisamente dos Americanos.

— Mas não, Pierre, foi em Londres.

— Sim, mas enfim... de alguém dos seus serviços.

— Edward Rothsteen?

— Provavelmente.

— Mas Pierre, é uma loucura.

— Juro-lhe que julgava que fora você que o enviara.

— Quando Edward veio aqui investigar os cabalistas, você devia ter-me dito.

— É verdade, mas você estava tão absorvido que não ousei...

— Pois bem! Antes de Sapersteen chegar, diga-me se ainda houve mais alguma coisa.

— Não sei até que ponto os Americanos se serviram dos Fundamentalistas... É delicado.

— Ao menos você não tem nada a ver com isso, pois não?

— Não, não. Mas como fui intermediário deles, talvez, como dizer... tenha sido manipulado.

— Talvez?! Meu caro, isso é um suave eufemismo.

— Sinto muito. Está furioso comigo, não está?

— Conheço-o. Tenho a certeza de que agiu para me proteger. Não se preocupe, vamos tentar arranjar isso. Olhe, ali vem o carro do embaixador.

Ter de se deslocar, de intervir, agastava Sapersteen. Detestava ser confrontado com esse gênero de situações. Tinha medo de não poder controlar tudo. Porém, depois do artigo do Washington Post e do desaparecimento de Edward, compreendera que não podia esquivar-se a um encontro com Friedmann.

— Caro professor, senhor Grün, estou-lhes muito agradecido por me receberem, por me dedicarem um pouco do vosso tempo nestas circunstâncias.

— Somos nós que nos sentimos muito honrados pela sua visita — respondeu Claude.

— Às vezes os cientistas têm motivos para se queixar do pouco eco que encontram os seus trabalhos. O menos que se pode dizer é que os vossos suscitam um interesse indesmentível. Que pensaram do artigo de Cinghart?

— Tê-lo-íamos muito bem dispensado. Além disso, o que ele escreve é um tecido de disparates e de mentiras. Uma pessoa pergunta-se aquilo que o terá levado...

— Com efeito. Vim aqui porque Edward desapareceu há já vinte e quatro horas. Estamos muito inquietos. Ao passar uma vista de olhos pelas suas coisas, encontramos isto.

Mostrou um objeto envolto num tecido.

— Queria saber se sabem identificar esta peça, se ela pode ajudar-nos a encontrá-lo.

Friedmann desenrolou o pedaço de tecido e descobriu um fragmento de tabuinha cuneiforme. Procurou decifrá-la.

— É uma espécie de contrato. Mas a fenda na pedra impossibilita a compreensão do texto. Precisaria de saber onde e quando isto foi encontrado — explicou Claude, enquanto passava o pedaço de argila a Pierre.

— Parece-me ter ouvido falar de uma descoberta feita pelo professor Finkelstein — disse Pierre, hesitando.

— Nesse caso, talvez haja uma ligação com o desaparecimento de Edward. Tinha-o encarregado de seguir esse caso.

— Como é estranho que o tenha dissimulado — disse Friedmann.

— Porque o teria feito? — perguntou Pierre, inocentemente.

— Você é que faz essa pergunta?

— Espantarei-os ainda mais se lhes disser que não tenho a menor idéia do que se trata — prosseguiu Sapersteen. — Em todo o caso, ele não me disse nada.

— Não tem de se justificar.

Claude explicou-lhe a natureza das idéias de Finkelstein sobre as origens do Deuteronômio.

— É possível — concluiu — que se trate de um fragmento do acordo passado entre o rei Josias e os escribas que teriam redigido a Bíblia.

— Só isso! — exclamou o embaixador, estupefato.

— Se Edward pôde esconder este objeto entre os seus e se está desaparecido, o senhor tem de agir com toda a urgência.

— Mas tem a certeza de que ele não está aqui? Há testemunhas que o viram ontem dirigindo-se nesta direção.

— Que eu saiba, não — respondeu Claude. — Mas se quiser dar uma vista de olhos, Pierre pode acompanhá-lo e apresentá-lo aos outros membros da equipe.

 

Maya entrara no santuário sem atrair a atenção. Tinha de tentar o impossível. Levava na mão o papel amarrotado onde o seu nome fora escrito em letras hebraicas. Jonathan revelara-lhe um dos sentidos secretos de Iavé: por um lado, Yod, símbolo da criação; por outro, as três letras que formavam o nome da primeira mulher, Eva. Mostrara-lhe que o nome dela obedecia à mesma estrutura: por um lado, Mem, que significava a mãe; por outro, as três letras da feminilidade, o Yod entre os dois Alef. Tal como Eva só pudera ser criada a partir de Adão, o nome de Maya só poderia tomar corpo através de um duplo masculino. Ela não encontrara esse outro; procurá-lo-ia verdadeiramente?

De pé diante da décima primeira câmara funerária, proferiu: “Mem, Alef, Yod, Alef.” No meio de uma nuvem de pó, a porta girou. Maya avançou suavemente, músculos retesados pelo medo. Passados alguns segundos, a sua tocha vacilou e apagou-se. Procurando reacendê-la a todo o custo, de mãos estendidas, tateando na escuridão absoluta, procurava vislumbrar, sentir qualquer coisa. Só se ouvia o som dos seus passos naquela atmosfera. Fez uma pausa, escutando o silêncio. De repente, ouviu um ligeiro roçar.

Alguém respirava. “Não pode ser, é o eco da minha respiração”, disse para consigo. No entanto, ouviu-se de novo um som, um ruído seco, um roçar. Surgiu uma luz. Ela semicerrou os olhos para regular a vista perante aquela luz. Um rosto desenhou-se lentamente atrás da chama. Alguém estava sentado na estela, olhando fixamente para ela, atrás do pedaço de madeira que se consumia.

— Estava à sua espera, Maya.

— É você? Diga-me: é você? Mas, enfim, todos andam à sua procura. Estava inquieta. Felizmente, está vivo. Não foi raptado.

— Ninguém me trouxe aqui. Vim só. Como você.

— Como entrou?

— Pronunciando o meu nome. Não sou a décima primeira vítima? Devo lembrar-lhe que está na minha câmara?

Nesse momento, um estrondo sobressaltou-a. A porta fechara-se. A escuridão era total, como se houvesse diferentes graus de escuridão no fundo das trevas e eles tivessem alcançado o mais cerrado.

— Edward, já não há luz. Sufoco.

Ele tirou uma lâmpada do bolso, acendeu-a e pousou-a sobre a estela. Ela iluminava o teto, com um tênue reflexo.

— Edward, já não percebo nada. Diga-me qualquer coisa.

— Esperava-a. Dentro em pouco, a armadilha se fechara sobre a minha vida e queria passar os meus derradeiros instantes na sua companhia.

— Não, não era isso que lhe perguntava.

— Que quer saber?

Ele estava transfigurado, o seu rosto encovara-se, a sua pele tornara-se opalescente. Os seus olhos escuros brilhavam com uma luz espectral.

— Porque me olha dessa maneira? Enlouqueceu? Já não o reconheço. E nós? Que fez de nós? Da confiança entre nós, do nosso encontro, no início desta história que alterou a minha vida. Mentiu-me. Traiu-me. Você não é real. É um ser sinistro, cínico, frio. E eu que acreditava em si! Foi você que organizou tudo, que provocou tudo, tudo!

— Não tinha outra opção. Aliás, você também não.

— É isso. Que outra mentira vai ainda inventar?

— De que serve pedir-me para falar se não me quer ouvir?

— Não me importo de o ouvir. Mas, por uma vez, diga a verdade.

— É uma longa história... Começou há vinte e seis séculos.

— Passo a vida nas ruínas. Portanto...

— Sim, mas neste caso não se trata de construções, planos, muralhas ou relíquias. Não basta varrer o pó para as marcas aparecerem. São vestígios imateriais, os da alma, os mais difíceis de penetrar.

— E esse desastre, essas ruínas existem em você. Não é, Edward?

— Elas não se limitam a existir: reinam sobre a minha vida, os meus pensamentos, os meus atos.

— Nada me obriga a segui-lo. Julguei que fôssemos semelhantes. Mas hoje estou de luto. De luto por você. Agora sei quem é...

— Sim, Maya, eu sou.

— Qual é o seu desígnio? Que tem de realizar?

— Tenho de permanecer aqui, neste santuário.

— Para morrer.

— Não, Maya. Para executar o ritual. O do décimo segundo dia. Mas, para isso, é preciso que você esteja ao meu lado.

— Tudo o que diz é falso. Você é um monstro. Não acredito no seu sacrifício. Sinto-me infeliz. Você desiludiu-me, magoou-me. Que procura?

— Fala de traição, mas a primeira passou-se aqui.

— Qual?

— A que foi perpetrada pelos escribas, que utilizaram o poder das palavras, a potência da escrita, contra os que lhes tinham dado esse saber.

— Está a referir-se aos deuses caldeus?

— Estou. Foi aqui que se passou.

— Tiveram êxito?

— Os seus templos foram postos a saque, os seus ídolos foram destruídos, a sua civilização foi aniquilada.

— Mas as divindades desapareceram?

— Não, sobreviveram através dos tempos. Como eu.

— Você é um anjo caído?

— Se quiser. Mas esses deuses nunca acreditaram que um poder único pudesse reinar para sempre. Aquilo que se joga entre a força e a lei, negando as realidades mágicas da vida, está destinado a desaparecer mais cedo ou mais tarde.

— E você está aqui para realizar esse retorno? Porquê despertar esses ritos ancestrais? O que o fascina nesses sacrifícios horríveis? Ofereceu-lhes inocentes. Eles só sabem reclamar o nosso sangue e a nossa escravidão. É esse o futuro que nos prepara? Perdeu a cabeça! Tem de ir tratar-se.

— Acalme-se, Maya. O que está em jogo não é um regresso ao passado. Não sou responsável pelas mortes dos últimos dias. O “Círculo do Armagedon” não é uma maldição. Permite compreender as leis do universo. O santuário não atua. É um sistema de leitura daquilo que vocês chamam o destino.

— Edward, que espera de mim? Porque me quer implicar?

— Os escribas enterraram aqui o seu segredo: as palavras que lhes permitiram destruir o reino politeísta. Se eu as pronunciar sem você estar ao meu lado, morrerei; se o fizer consigo ao meu lado, pois você é a minha alma irmã, sobreviverei.

— A sua alma irmã?! Está a sonhar! Não pertenço ao reino da escuridão.

— É verdade, Maya. Você pertence ao reino da luz. Somos a reunião dos dois contrários.

— E se você renunciar, o que lhe acontecerá?

— Os anjos nunca renunciam.

Maya ouviu ruídos vindos do outro lado. Reconheceu a voz de Claude que chamava por ela.

— Edward, deixe-me ir embora.

E a porta abriu-se.

Ela correu, a juntar-se ao professor.

— Aí, você está aí, minha pequena. Finalmente, estava tão inquieto.

— Que há? Prometeu que me deixaria sozinha.

— Eu sei, mas tenho demasiadas coisas a contar-lhe.

Levou-a a dar alguns passos com ele. O silêncio cobrira o local.

— Que tem de tão urgente a dizer-me?

— Que fazia sozinha há tanto tempo? Procurava Edward?

— Ah, não! Não vai recomeçar!

— Sabe, Sapersteen veio cá. Mostrou-me um objeto que pertencia a Finkelstein. Estava escondido nos objetos do seu jovem amigo.

— A tabuinha?

— Conhece-a?

— Sim, o professor mostrou-me.

— Não acha curioso que ele se tivesse apoderado dela e a tivesse escondido?

— Acho.

— Também falei com Pierre. Tem razão. Não podemos confiar nele. Julga proteger-nos, mas dá muito à língua. Conta tudo e não importa o quê.

— Como por exemplo?

— Serviu de mensageiro entre os cabalistas e a embaixada, que parece tê-lo manipulado completamente. Inclusive a propósito das nossas buscas aqui. Aliás, agora creio saber quem provocou tudo.

— Edward?

— Sim, infelizmente — disse o professor, de cabeça baixa.

— Claude, por que agiu ele assim?

— Maya, minha pequena, sei que está desiludida. Não devia falar-lhe disso. Talvez noutro dia.

— Pare de me tratar como a uma criança!

— Muito bem, não se zangue. Vou tentar explicar-lhe como tudo se passou.

O professor pôs-lhe uma mão no ombro e enquanto caminhava à luz das estrelas, evocou a guerra dos deuses, Josias e a Bíblia, a destruição dos ídolos, o triunfo do Deus único, a revolta do Anjo, a vingança das divindades pagas, a construção do santuário, a maldição. Maya ouvia-o como quando era pequena. Disse:

— Como opera um anjo caído?

— Insinua-se num espírito e toma o seu controle.

— Pensa que Edward está possuído?

— Parece evidente. Foi ele que redigiu o relatório que nos levou a fazer estas investigações. Maya, foi ele que executou a maldição, é um servo dos deuses do zodíaco. Traz-lhes sacrifícios que eles reclamam para restabelecer o seu reino.

— Mais uma pergunta, Claude: por que motivo Edward se designou a si próprio como décima primeira vítima?

— Por ora, não sei. Talvez o anjo caído deva desembaraçar-se do seu corpo terrestre em determinado momento.

— Poderia agir de outro modo?

— É possível. Como saber?

— Isso quer dizer que ele está a morrer enquanto nós conversamos.

— Maya, quer que desçamos?

— Quem somos nós para intervir nesta guerra entre os deuses?

— Eles não se interessam por nós, mas pela nossa ciência.

— Claude, creio que não devemos fazer nada e deixar o destino realizar-se.

— Isso parece-me sensato. Temos de recobrar forças para amanhã, pois amanhã é o nosso destino que se jogará.

Claude acompanhou Maya até à sua tenda. Doravante tinha de enfrentar os deuses sozinho. Tornou a descer à cripta.

Edward não se mexera.

— Muito prazer em tornar a vê-lo, professor.

— Sabia que o encontraria aí.

— E eu sabia que você viria. De qualquer modo, você não tem outra solução.

— Ah, sim? E porquê?

— Não pode agir sem o meu apoio.

— Nunca serei cúmplice das suas atrocidades.

— Elas só dizem respeito a nós os três. Meu caro, os nossos destinos são indissociáveis.

— Simplesmente, não somos da mesma natureza. Eu e Maya somos seres de carne e osso, ao passo que você...

— Tem assim tanto a certeza de ser diferente de mim? Sabe muito distintamente o que governa o seu espírito?

— Às vezes faço essa pergunta a mim mesmo. Mas você, Edward, está em missão. Qual seria a nossa?

— Preciso da sua jovem amiga.

— Para que finalidade?

— Temos de proferir as palavras juntos.

— Quais?

— Não as conheço. Elas esperam-nos atrás da décima segunda porta.

— Mas, para isso, será preciso que você esteja vivo amanhã.

— Isso depende de você.

— E por que o ajudaria? Ainda não tem sangue que chegue nas mãos?

— Se amanhã eu não estiver aqui, vocês morrerão ambos.

— Que espera de mim?

— Tem de se entregar aos sonhos, onde lhe farei uma visita.

Com um gesto, Edward mergulhou o professor no sono.

 

Friedmann e Maya estavam diante da entrada do santuário.

— Eis-nos a ambos no mesmo sonho — disse Claude.

— Parece-me bem que sim — respondeu ela.

Entraram na cripta. A porta da décima segunda câmara estava aberta. Os muros estavam cobertos por aquela escrita desconhecida que constava do muro de matéria negra da primeira câmara. A sala era imensa. No centro, uma mesa de pedra representava o círculo zodiacal com todos os signos astrológicos, diante dos quais tinham sido dispostos tronos de bronze dourado com as figuras das divindades caldeias esculpidas. As vítimas estavam sentadas em cada um dos tronos reais. Claude instalou-se naquele que lhe estava destinado. Dois lugares permaneciam vazios. Edward entrou e sentou-se no seu, rogando Maya para que se instalasse no lugar vazio, que devia ter sido ocupado por Pierre.

— Pronto, está tudo completo, para a felicidade dos deuses — disse o jovem.

— Porque ocupo o lugar de Pierre? — perguntou Maya.

— Porque ainda pode acompanhar-me. Os que estão aqui sentados são as vítimas designadas pelas divindades, ao passo que você foi escolhida por mim.

— Mas Pierre não foi designado?

— Os deuses não o quiseram. O seu castigo foi a perda da linguagem temporal.

— É o que eu sempre digo. Ele fala pelos cotovelos...

— Mesmo nos sonhos, Claude, você não consegue evitar...

— Tenham cuidado — avisou Edward — os deuses estão a ouvi-los e não brincam.

— Não há uma tradição, uma lenda à volta da Palavra perdida? — interrogou Friedmann.

— Sim, precisamente: aquela que a liga aos Nomes secretos.

— Qual é o seu mecanismo?

— Nada existe se não tiver recebido um nome pronunciado em voz alta. Quando o diz, desperta o Ka, ou seja, a parte espiritual sem a qual o Ba, o corpo, a parte física, não é nada.

— Mas esses são os princípios da Cabala — disse Maya.

— Tudo vem daí.

— Quais são as palavras que devemos proferir?

— Ainda não sei. Só nos serão reveladas no último dia.

— É por isso que ocupo o lugar da Palavra perdida?

— Sim, Maya, está a avançar na direção certa. O seu amigo apagou as palavras do tempo. Essa perturbação vem de uma palavra, a primeira, aquela que abre a Bíblia: Bereshith: no princípio. Todas as outras palavras do tempo decorrem daí.

— E essa a palavra que deve proferir? — inquiriu Claude.

— Repito-lhe: saberemos amanhã.

— Quero sair deste pesadelo — disse Maya — Dê-me uma razão para o salvar.

— Aquilo que descobrirão na décima segunda câmara não é o que vêem aqui. Isto são apenas simulacros. Amanhã, tomarão corpo para agir. Sem mim, não terão ninguém para os compreender, para dialogar com eles, e eles nos matarão.

— E se você estiver aqui?

— Poderão falar com eles. Sou o único a poder defender a vossa causa.

Claude e Maya olharam para as vítimas sacrificiais que se tornavam cada vez mais imprecisas. Ela inclinou-se para o professor:

— Sou incapaz de tomar uma decisão no meu sonho. Somos manipulados por Edward. Tenho de falar a sós consigo e na realidade. Vou despertar, encontremo-nos.

Nesse momento, evaporaram-se.

 

Claude estava sentado na cama de campo de Maya. Comparavam os seus sonhos.

— O indivíduo tem uns poderes tremendos — disse Claude.

— Por isso devemos manter a cabeça fria e o espírito claro.

— O que ele diz não é absurdo. É provável que sejamos confrontados amanhã com os deuses. Nem todos têm a sorte de ter um anjo caído.

— Mas, Claude, ele está do lado deles. Porque nos salvaria?

— Se os deuses decidiram a nossa perda, com ou sem ele, morreremos.

— Claude, isso não tem pé nem cabeça. Por que motivo o destino de Edward dependeria de nós, quando foi ele que urdiu isto tudo?

— Tem razão. O que ele procura é de outra natureza.

— Lá vem você com as suas obsessões.

— Mas Maya, o que ele quer é implicá-la na vida dele. Fazer de si a sua cúmplice. Isso nada tem de metafísico. Está persuadido que você é a alma irmã dele.

— Sabe perfeitamente que não é verdade.

— Nesse caso, porque duvidar ainda?

— Sobre esse ponto não tenho qualquer hesitação. Recuso-me a acompanhá-lo na sua queda.

— Maya, temos de deixá-lo só, face ao décimo primeiro dia. Está na altura de reunir toda a equipe e lhes contar tudo.

— Tem razão.

Maya sentia-se demasiado nova para assumir aquele testamento. Os últimos dias tinham alterado tudo, precipitando-a numa fuga para a frente, envelhecendo-a. A reunião deles parecia-lhe irreal. A equipe ouvia Claude, chocados pela sua história. Agora era a verdade deles. Friedmann pediu para que interrompessem as buscas até ao dia seguinte.

— É imperativo guardar silêncio sobre aquilo que estamos a viver. Sobretudo, nem uma palavra à embaixada. Oficialmente, não temos qualquer notícia sobre Edward. Não dêem a menor informação aos cabalistas sobre o que talvez encontremos atrás da décima segunda porta. Daqui até lá, boca calada. Percebeu, Pierrot?

— Agirei como se tivesse perdido completamente a fala — respondeu Pierre, sorrindo.

— Venham buscar-nos amanhã à meia-noite. Se a maldição se tiver fechado sobre nós, vão à minha mesa de trabalho, onde terei deixado instruções para você, Pierre, dentro de um envelope. Entretanto, cortem madeira para construir uma jangada. Peguem em pneus usados no hangar, para construir flutuadores. Atem-nos à jangada com a ajuda de cordas suficientemente sólidas. Não façam perguntas. Depois, abandonem todos a estação.

— Deixem-me ficar, para o caso de precisarem do caminhão — pediu Rajan.

— Professor, precisa de mim — acrescentou Frédéric.

— Infelizmente nenhuma medicina pode tratar o que nos espera. A única coisa que podem fazer por nós é deixarem-nos sós.

 

Um fax chegara ao posto técnico. As autoridades confirmavam a iminência de um ataque terrorista a Megido. A estação arqueológica tinha de ser evacuada antes da meia-noite. Uma decisão administrativa de Telavive ordenava a interrupção das buscas. O professor mandou acelerar a cadência para fixar as cordas. Rajan, Karl e Zoltan transportaram as tabuinhas para a parte de trás do camião. Frédéric juntou-se-lhes. Claude e Maya abraçaram-nos e pediram a Pierre para atuar de modo a que todos tivessem partido antes do cair da noite.

— Que faremos se o exército desembarcar aqui? Vão expulsar-nos.

— Ouçam, há um sítio onde eles não poderão entrar. Venham.

A décima primeira câmara estava deserta. Deslocaram a estela. Atrás da sua sombria transparência flutuava um corpo, formando a penúltima letra do Armagedon.

Maya tinha o rosto descomposto.

— Será um novo truque de magia? Estará morto? Já não sei em que devo acreditar.

— Maya, tem de se render à evidência: os deuses não recuarão. O que escreveram com o corpo de Edward significa que entraram na última fase. Temos de conseguir falar com eles. Doravante, estamos sós perante eles.

Ela continuava com os olhos fixos naquela forma incerta que se desenhava nas águas.

— Afinal, todos terão ido até ao fim.

— Minha pequena, não temos outra opção.

O professor apontou a sua lamparina na direção da décima segunda porta. Depois de ter desembaraçado a matéria que a cobria, surgiram os doze signos do zodíaco. No centro, um cilindro de pedra ultrapassava ligeiramente o círculo em alguns centímetros.

— Veja, Maya, isto deve poder desselar-se.

Fez girar delicadamente o objeto em torno do seu eixo. Ouviu-se um estalido. Claude segurava nas mãos um quadrante solar. Colocou-o rente à estela. Aquela massa tinha gravada apenas uma profunda incisão. Apontou a luz de modo a que a sombra tocasse nessa única marca. A porta da décima primeira sepultura fechou-se com o estrondo de um trovão.

— Pronto, Maya, a comunicação com os deuses está estabelecida. Restam-nos doze horas e nem mais um minuto.

 

Apagaram as lâmpadas a fim de preservar a sua energia. Só a estela difundia uma luz azulada, como se a lua a iluminasse das profundezas da terra. Falavam em voz baixa, na escuridão:

— Claude, eles estão aqui; sinto-os, estão a decidir o nosso destino.

— Creio que tem razão.

— Que querem?

— Voltar, Maya. Simplesmente voltar.

— Eles são eternos, não são?

— Sim, numa forma de errância. Que fazer dessa eternidade? Para nós, os vivos, o tempo funciona de outra maneira. Doze meses, doze dias, doze horas, o nosso destino é efêmero, mas para eles...

— Como lutar contra aquilo que não podemos ver? Perdemos antecipadamente.

— Maya, não é o momento de baixar os braços. É preciso tentar tudo.

— Tornando-nos deuses?

— Não. Permanecendo arqueólogos.

— O que pode o nosso saber face ao poder deles?

— Conhecemo-los certamente melhor do que eles nos adivinham. Temos de utilizar a maior fraqueza deles: o seu mau feitio. Passam o tempo a invejar-se uns aos outros. Olhe, neste preciso momento devem discutir sobre o destino da humanidade, imaginando os piores cataclismos para punir aqueles que os ignoram há vinte e seis séculos.

— Tem razão, parece-me ouvi-los.

— Maya, eles só pensam em reinar e essa é a falha deles.

— Em que pensa?

— No Dilúvio, minha pequena...No Dilúvio.

— Claude, não paire nas alturas, assusta-me. Acalme-se. Explique-se.

— Na Bíblia, Deus envia o Dilúvio para a terra e diz: O fim de toda a carne aparece perante a minha face; porque a terra está cheia de violência; e eis que os desfarei com a terra. A causa está entendida em três simples linhas.

— Qual a relação com os deuses deste santuário?

— Lembre-se da décima primeira tabuinha no Museu Britânico. É o mesmo episódio, redigido vinte séculos antes da Bíblia. Uma divindade, chamada Enlil, provoca o Dilúvio sem prevenir as outras. Furibunda, a deusa Ishtar decide deixar de o ver. Um terceiro deus, Ea, salva um par de seres humanos, traindo o desejo de Enlil de os eliminar a todos. Por sua vez, este zanga-se. Assim se formou um movimento perpétuo chamado “"a disputa dos deuses”. Essa é a primeira versão da terra inundada pelas águas.

— Claude, ouço ruídos do outro lado.

— Talvez tenha falado demais.

Não se mexeram, como que circundados de presenças ameaçadoras. A escuridão, o silêncio envolviam-nos como uma mortalha invisível. Ela acendeu a lâmpada, a sala estava vazia.

— Que aspecto terão?

— Maya, sobretudo não faça essa pergunta. É demasiado cedo. Apague a sua lâmpada.

 

A equipe arrumara tudo na parte de trás do caminhão. Os militares tinham ocupado as suas posições, evacuando todo o perímetro. Frédéric, Rajan, Karl e Zoltan olhavam para o pôr-do-sol em Megido.

Sentado numa rocha, garganta apertada pela tristeza, Pierre olhava para as ruínas que se fundiam no horizonte. Com um sinal da mão, Claude pedira-lhe que partisse, que deixasse o acampamento. Não encontrara as palavras que o teriam impedido de se sentir humilhado. Trinta anos de vida partilhada, a antecipar os seus menores desejos, a acalmar as suas más disposições e agora não ia passar este dia fatídico ao lado dele. Já o ouvia dizer, caso tornassem a encontrar-se: “Mas, enfim, Pierre, foi para o proteger. Meu Deus, como você é suscetível.” Gostava tanto daquele homem, que lhe retribuía tão desajeitadamente... A voz do médico arrancou-o à sua tristeza. Pierre subiu para a parte da frente do veículo. Tinham o coração apertado. Um avião de carga esperava-os em Telavive. No meio do ruído dos reatores, viam a paisagem afastar-se. Estavam todos calados.

 

O professor estava de pé diante da décima segunda porta.

— Não podemos esperar mais, Maya; temos de ultrapassar esta parede antes da meia-noite, pois a partir dessa hora cada segundo poderá ser-nos fatal.

— Mas continuamos sem conhecer a palavra para abri-la.

— Tenho de voltar a encontrar o meu sonho, no meio da Epopéia de Gilgamesh. A palavra-passe está na décima primeira tabuinha. Vou mergulhar no sono. Fique acordada e se eu ainda estiver a dormir daqui a meia hora, acorde-me.

Claude concentrou-se, a sua respiração abrandou e adormeceu lentamente.

Quando se juntou à alma de Gilgamesh, Utnapishtim, o antepassado de Noé, veio ter com ele. Era o único que sobrevivera ao Dilúvio e conquistara a eternidade. Confiou-lhe o segredo dos deuses:

 

Gilgamesh, vou revelar-te o segredo escondido,

Apesar de estar reservado às divindades.

Megido é uma cidade tão antiga

Que nela moravam essas Almas imortais.

Foi aí que Enlil provocou o Dilúvio.

O príncipe Ea prestou um juramento com ele

Mas como era chegado aos homens

Veio falar comigo através da fileira de juncos.

 

Presta atenção. Deita abaixo a tua casa.

Constrói uma embarcação.

Deixa para trás de ti as tuas riquezas

Renuncia às tuas posses.

Procura a vida. Salva os teus irmãos.

 

Friedmann pediu a continuação da história, esperando encontrar nela o sésamo.

 

Quando surgiram os primeiros raios da alvorada

Uma nuvem escura rasgou o horizonte.

O pesado silêncio dos deuses adveio sob a abóbada celeste

E transformou toda a claridade em trevas.

Depois, as fundações terrestres quebraram-se como um cântaro.

Durante um dia, terrível e destruidor,

O furacão desencadeou a sua fúria.

O Dilúvio tomou conta de todas as coisas.

A sua violência arrastou tudo nesse cataclismo.

Então, os deuses, apavorados,

Fugiram para o céu.

O vento persistiu seis dias e sete noites.

O furacão tragou a terra.

Depois, no sétimo dia, tudo voltou à calma.

Nem mais um sopro. Nem mais um ruído.

Mas os mortais, especados no terror,

Tinham-se tornado estátuas de argila.

 

O professor sentia que se aproximava do que queria. Procurando na sua memória uma recordação precisa da epopéia, perguntou ao sobrevivente:

— Utnapishtim, não houve então um sacrifício ou uma oferenda?

 

No cume da montanha coloquei

Doze recipientes repletos de mirto.

Atraídos por esse aroma

Os deuses acorreram como moscas

Para sentirem a sua fragrância.

 

“Pronto”, disse Claude para consigo, “eis o que transforma os deuses em insetos. O mirto. Tenho que despertar e guardar esta palavra presente no espírito.”

Maya ouviu-o gemer. Agarrou-o pelos ombros.

— Claude, estou aqui, diga-me a palavra.

Ele esfregou a cara.

— É uma consonância perfumada... espere... Mirto. Pronto, é isso. Devemos proferir juntos as letras hebraicas que o compõem.

 

— Mem, Yod, Resh, Tet.

A porta abriu-se. Entraram prudentemente no último túmulo. A luz da sua tocha iluminou a estela. Nela jazia um corpo, circundado de escritos hebraicos.

Maya aproximou-se para acariciar aquele rosto de alabastro. Olhou para o professor e murmurou:

— O túmulo de Josias. Meu Deus. É o túmulo de Josias.

Ali repousava o rei de Judeia. Ela acertara. Ele não fora transportado para Jerusalém. A promessa feita por Iavé estava destinada a desnortear aqueles que tivessem desejado profaná-lo.

Friedmann olhou para ela e disse:

— É incrível, Maya, você tinha razão. O túmulo secreto dele está bem aqui, em Megido.

Procuraram um esconderijo, um nicho nos muros da sala. Mas não havia nada. Ajoelharam-se, perscrutando a esteia do corpo jacente. Claude passou a mão pelo mármore e sentiu um depressão. Carregou no entalhe. Surgiu um prego de argila completamente gravado de inscrições. O professor decifrou-o.

— Este texto indica que no interior do jazigo há tabuinhas reservadas aos iniciados.

— Como abri-lo, Claude?

Ele conhecia aquelas disposições funerárias, tendo estudado algumas no Iraque. Deslizou os dedos pelo orifício cônico onde estava o prego e pressionou de lado. A base da estela abriu-se como uma gaveta secreta. Nessa cavidade havia doze tabuinhas de argila. A primeira estava quebrada.

— Veja. Corresponde ao fragmento encontrado por Finkelstein.

Ao ler as linhas, tornava-se cada vez mais febril.

— Que se passa? Algo corre mal? — perguntou Maya.

— Se soubesse o que tenho nas mãos...

— Claude, fale, suplico-lhe...

— É inimaginável. Trata-se, nem mais nem menos, do contrato da encomenda da Bíblia.

— Espere, Claude, você continua a sonhar. É impossível, está a interpretar. O contrato não pode ter sido estabelecido de forma tão explícita.

— No entanto, é muito claro. Veja.

Maya começou a decifrar o texto.

— Mas, tem razão!

— Sim, isto ultrapassa tudo o que podíamos imaginar. Não foi Josias que fez a encomenda. Foram os próprios escribas.

— Claude, já não compreendo.

— Os escribas caldeus já tinham redigido o texto; depois, firmaram um acordo com Josias para que ele se declarasse comanditário dos seus escritos.

Ouviam-se ruídos e estalidos vindos das paredes. Três delas giraram, deixando ver uma gigantesca superfície. Silhuetas, umas atrás das outras, avançavam para eles. Formaram um círculo à volta do túmulo. Claude e Maya entreolharam-se, incrédulos. O professor dirigiu-se a uma das silhuetas:

— É você?

— É você, Jonathan? — acrescentou Maya.

— E todos os outros — respondeu Mansour. — Chegaram ao termo do vosso caminho. Viemos dar-lhes uma última oportunidade. Esta descoberta é o segredo de que somos os guardiães. Foi colocado neste sítio para que ninguém jamais tivesse conhecimento dele. Vocês transgrediram o interdito supremo. Partam, ou não poderemos interceder em vosso favor.

— Interceder? Mas junto de quem? — perguntou Friedmann.

— Daqueles aos quais consagraram a vossa ciência, professor: os deuses.

— Que devemos fazer?

— Entregar-nos as tabuinhas do Contrato.

Claude sabia que eles guardariam aqueles escritos como num túmulo. O segredo seria protegido para os séculos vindouros. Para quê revelá-lo ao mundo e pôr em causa todos os fundamentos religiosos? Para quê provocar novas fracturas, novos conflitos, fazer correr ainda mais sangue? Um a um, entregaram-lhes os pedaços de argila. Os cabalistas inclinaram-se, deixando-os sós. Nesse momento, as paredes fecharam-se atrás deles.

 

-Como vê, Maya, eles detêm todos os segredos e ainda muitos mais. São mais poderosos do que teríamos podido imaginar. De qualquer modo, obtiveram o que queriam e abandonaram-nos. Desta vez estamos completamente sós. Enfim, não completamente.

— Claude, sinto sombras, mas não consigo distingui-las.

— Não os verá, mas eles estão presentes nesta sala. Temos de lhes falar.

 

— Sei que vieram assistir à nossa última hora — disse, numa voz forte.

O solo tremeu, fendeu-se.

— Veja, Maya, eles manifestam-se. Temos de prosseguir o diálogo.

— Claude! Espere!

— Esperar pelo quê? Estamos perdidos, destinados a servir de meio para que eles restabeleçam o seu reino.

— Tem razão. Tentemos. Não temos mais nada a perder.

O professor prosseguiu dizendo as seguintes palavras:

— Falei com Utnapishtim. Ele disse-me que Enlil decidira, sem vos avisar, punir os homens por se terem afastado de vós, provocando assim um novo Dilúvio. Mas ele traiu a sua promessa e revelou-me como sobreviver a esse cataclismo.

Quando acabou, caiu um profundo silêncio. Depois, um sopro, vindo de longe, fez-se ouvir. Pouco a pouco, transformou-se num vento quente, violento, turbilhonante.

Eles protegiam o rosto com as mãos. Palavras, frases, gritos de terror soavam no meio daquela tempestade. Maya caiu no solo e gritou:

— Claude! Claude!

O professor apertou-a nos braços, com toda a força. Nesse instante, ouviram uma deflagração por cima deles. O pó, as pedras passaram pelo teto. Procuraram, a toda a pressa, passar pela brecha que se abrira sob o céu estrelado. Mas o solo fendeu-se ainda mais e torrentes de água começaram a emergir. O santuário afundava-se nas águas.

Maya agarrou-se a Friedmann e nadaram até à jangada. Ele ajudou-a e, depois, içou-se por sua vez para a embarcação. Prenderam-se com a ajuda de cordas. Um segundo tremor, ainda mais violento, manifestou-se à superfície da água.

A descoberta deles desaparecia na onda de reflexos de ónix. Depois, tudo foi submergido. A água tornou-se plana. Claude e Maya avançaram para a margem, sobre os toras de madeira. Ele murmurou:

— Não se volte para trás.

 

No avião que os levava de volta para Londres, Maya pousara a cabeça no ombro do professor, que lia os jornais. Os títulos da primeira página relatavam o atentado perpetrado contra a estação arqueológica. Uma tonelada de explosivos destruíra um santuário do século VII a.C, provocando um desmoronamento que arrastara consigo as ruínas pelo vasto lago sobre o qual ele fora construído.

A ação fora reivindicada por um grupo que se fazia chamar os Fundamentalistas. Tinham enviado um comunicado para se justificarem. Segundo eles, era preciso destruir aquele local cuja profanação desencadeara uma maldição que já provocara numerosas vítimas. Aqueles homens pretendiam agir para salvaguardar o processo de paz e diziam ter prevenido as autoridades para que houvesse apenas danos materiais.

O professor Friedmann lia os artigos, uns após outros, enquanto Maya continuava de olhos semicerrados.

— Tudo se passou tão depressa, Claude, que tenho a impressão de sair de um pesadelo. Que se passou? Tudo se embaralha na minha cabeça.

— Eles falharam. É tudo. Procuraram ressurgir depois de dois milênios de esquecimento. Mas o orgulho deles foi mais forte. As suas incessantes disputas impediram-nos de governar de novo. Os deuses regressaram ao seu mundo.

— Então, desapareceram?

— Não, estão sempre lá. Num universo separado do nosso por essa massa de água que é o território deles. Por vezes voltaremos a encontrá-los nos nossos sonhos.

— Nesse caso, as letras que eles formavam com os corpos das suas vítimas não eram fruto da nossa imaginação?

— Como sabê-lo, Maya? Doravante, nunca mais poderemos verificá-lo. Temos de fazer o luto das nossas certezas. Está a fechar os olhos. Durma. Recupere forças. A nossa chegada a Londres arrisca-se a não ser muito tranqüila.

Maya encostou-se mais a ele. Claude devia ter-se sentido aliviado, mas o avião atravessava uma zona de turbulências. Os safanões da cabine angustiavam-no. Seria ridículo, pensava, que o avião caísse. Uma aeromoça passou perto deles. Pediu um whisky.

A voz da aeromoça anunciou o início da aterragem. Chovia em Londres. A temperatura era de dezasseis graus. O professor descontraiu-se.

 

Pierre esperava-os. Ao avistá-los, o seu belo rosto iluminou-se. O reencontro foi terno e caloroso. Tomaram um táxi para se juntarem ao resto da equipe no hotel Bedford, onde haveria uma conferência de imprensa à noite.

Pierre falava quase normalmente. De vez em quando hesitava nalgumas palavras, mas já não havia espaços em branco ou falhas.

— Meu caro Pierrot, estou contente por ver que vai melhor.

— Ainda não estou completamente restabelecido. Preferia não ter de intervir diante dos jornalistas.

— Não se preocupe. Eu trato do assunto. E, além disso, Maya está aqui.

— Sabe, eles são horrorosos — prosseguiu Pierre. — Desde que voltei, sou constantemente assediado. Querem saber tudo e não percebem nada. Organizei esta conferência de imprensa, senão amanhã teria sido não importa o quê.

— Fez muito bem. Como sempre.

Friedmann pegou-lhe no ombro e abraçou-o afetuosamente.

— Quando tiver recuperado, tem de me contar tudo — disse-lhe Pierre. — Deve ter sido incrível...

— Sabe, creio que tivemos muita sorte.

Enquanto pronunciava estas palavras, o professor olhava através do vidro. Os carros circulavam pela radial. Detestava tudo o que o mundo moderno criara. Só gostava da solidão dos desertos e dos vestígios do passado. O táxi parou diante da porta do hotel.

Os fotógrafos rodearam o carro, correndo ao encontro deles, chamando-os pelos seus nomes.

— Claude! Claude! Aqui! Maya! Olhe para aqui!

Os flashes cegavam-nos. O professor estava furioso. Puxou pela manga de Maya e entrou com ela no átrio do hotel.

 

Depois de terem jantado juntos no restaurante do hotel, seguiram uma mulher que os levou para a sala de imprensa. O ambiente era explosivo.

Um conservador do departamento de antigüidades do Museu Britânico apresentou-os. As perguntas choviam de todos os lados.

Um jornalista francês começou:

— Professor Friedmann, depois da morte trágica de Olivia de Lambert, que investigava sobre novas formas de terrorismo em Megido, algumas pessoas parecem ter estabelecido uma ligação entre as vítimas destes doze últimos dias e as suas investigações. Pode dizer-nos mais alguma coisa sobre aquilo que a imprensa batizou de “a maldição de Megido”?

— Meu caro senhor, tal como disse na sua pergunta, foram a mídia que arranjaram esse título. Quanto a mim, quando analiso a lista dos mortos, publicada aqui e além, só vejo causas fortuitas. Houve mortes naturais, outras foram causadas por acidentes, algumas foram devidas a atos criminosos. O fato de elas terem ocorrido durante estes últimos doze dias não me parece significativo. Há milhares de desaparecimentos todos os dias. De qualquer modo, creia-me que nada permite estabelecer uma relação entre os nossos trabalhos e esses acontecimentos.

Um repórter inglês pôs um dedo no ar.

— No entanto, foram recebidas mensagens de ameaça em celulares, anunciando às vítimas o número de dias de vida que lhes restavam.

— Com efeito, mas tudo indica que emanavam de diversos grupos ativistas que se reclamavam dos Fundamentalistas — respondeu imediatamente o professor. — Não tenho provas, mas estou convencido que não havia uma verdadeira organização por trás disso tudo. Fomos alvo de uma campanha de desinformação orquestrada por um pequeno grupo que tomou esse nome, nome que foi depois retomado por outros movimentos, como há tantos pelo mundo fora. Eu próprio recebi uma mensagem dessas, tal como alguns dos meus colaboradores aqui presentes. Esta sexta-feira devia ser supostamente o nosso último dia, mas como podem constatar, estamos sãos e salvos.

Uma jornalista espanhola pediu para falar.

— Por entre as causas que foram atribuídas a esses curiosos fenômenos, consta a profanação do túmulo do rei Josias. Os senhores teriam descoberto que a Bíblia foi um trabalho encomendado, reconstituindo uma história de pura ficção sobre o povo eleito. Que pode dizer-nos a esse respeito?

— Minha cara senhora, essa descoberta só existe na imaginação dos jornalistas. O santuário que foi devastado por uma explosão criminosa é de origem caldeia. Foi erigido para prestar um culto aos deuses dessa civilização. Como sabe, era uma cidade muito antiga. Encontramos nela uma sucessão de vestígios sobrepostos, quer egípcios, quer sumários e cananeus. A sua localização num ponto de cruzamento de potências militares e comerciais que tinham dominado essa região explica as suas riquezas arqueológicas. Quanto às origens do Texto Sagrado, reporte-se aos trabalhos efetuados pelos meus eminentes colegas. Não é a minha área de predilecção. Em compensação, posso confirmar-lhe que esse santuário era um vestígio capital para a compreensão das crenças caldeias e que a sua destruição constitui uma perda irreparável para a nossa disciplina.

Ouviu-se a voz de John Cinghart:

— Boa noite, professor. Quando o encontrei no quadro da minha investigação sobre a maldição de Megido, um membro da escola cabalista perto da estação tinha acabado de morrer, derrubado por um dos vossos veículos. Que sabe sobre essa escola? E sobre os motivos da sua implantação nesse local?

— Caro senhor, reconheço bem na sua pergunta o estilo que tanto pude apreciar no artigo que nos consagrou. A investigação em curso deverá confirmar o que pensamos. A morte desse homem foi um lamentável acidente. Quanto à escola cabalista, trata-se de um instituto de investigação e de ensino como tantos outros. A Cabala é uma abordagem filosófica e mística dos textos sagrados e suscita um enorme interesse há séculos, sendo hoje objeto de um verdadeiro entusiasmo, particularmente no seu país, caro senhor Cinghart. Não admira que os seus membros mais respeitáveis tivessem desejado instalar-se nesse local, aproximando-se assim das suas raízes. São sábios desinteressados, que têm a coragem de prosseguir a sua busca da verdade num mundo entregue a mercadores de mentiras e de ilusões.

Houve burburinho na sala. Pierre olhou para Claude e fez-lhe sinal para que se acalmasse. Mas ele prosseguiu:

— Estou consciente da dificuldade, da importância da vossa profissão. Quero prestar aqui homenagem a Olivia de Lambert e a Cyril Abanassiev. Ao irem até ao fim das suas investigações, procuraram trazer aquilo de que mais precisamos: a verdade. É um ponto comum entre nós.

Cinghart interrompeu-o:

— Não respondeu à minha pergunta.

— Não era bem uma pergunta, senhor, era mais uma inferência. Numa teoria, esse método permite concluir diretamente a verdade de uma proposição a partir de uma hipótese. O senhor utilizou-o no seu artigo e prossegue aqui. Tem um ponto de vista já feito sobre este caso, não tem? Pois bem, é a minha vez de interrogá-lo. De onde lhe vem essa convicção? Quem lhe pôs essas idéias na cabeça? Não será a campanha de desinformação à volta das nossas buscas, empreendida por um membro da embaixada dos Estados Unidos? O senhor esteve constantemente em contato com esse diplomata que, aliás, desapareceu misteriosamente. Muitos são os que pensam ter sido ele a soprar-lhe a matéria para os seus artigos.

O rumor amplificava-se. Os jornalistas entreolhavam-se. Alguns puseram o dedo no ar, quando uma voz se elevou:

— Professor Friedmann, quem lhe contou isso? Eu nunca desapareci.

Uma longa silhueta ergueu-se no fundo da sala.

— O que diz é falso. Não conheço esse senhor. Com efeito, trabalho na embaixada de Telavive. Não me viu? Ia no mesmo avião que o senhor.

Sob a mesa, Maya apertava com toda a força a mão de Claude.

— A minha pergunta é destinada a si, menina Spencer. A menina é a assistente do professor há vários anos. Como todos nós, acabou de ouvir as respostas dele... Mas já é tarde. Olhe para o seu relógio. Ainda não mexeu nos ponteiros? Já não estamos em Megido. Em Londres, são menos três horas do que em Megido. A propósito, que dia é hoje?

 

[1] A língua francesa presta-se a esta correspondência: Marte; Mardi (Terça) / / Mercúrio; Mercredi (Quarta) / Júpiter; Jeudi (Quinta) / Vênus; Vendredi (Sexta) / / Saturno; Samedi (Sábado). (N. do T.)

[2] Cidade do Baixo-Egito, mencionada por Platão em Timeu, onde Sólon teria se encontrado com sacerdotes egípcios. (N. do T)

 

                                                                                Nathalie Rheims  

 

                      

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